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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM
DOUTORADO EM ENFERMAGEM
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FILOSOFIA, SAÚDE E SOCIEDADE
EDILZA MARIA RIBEIRO
CONCRETICIDADE DO VÍNCULO DO/NO PROGRAMA DE SAÚDE
DA FAMÍLIA (PSF): DESAFIOS DE MÉDICOS E ENFERMEIRAS EM
UMA REALIDADE DE IMPLANTAÇÃO DO PROGRAMA
Florianópolis, junho de 2005
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EDILZA MARIA RIBEIRO
CONCRETICIDADE DO VÍNCULO DO/NO PROGRAMA DE SAÚDE
DA FAMÍLIA (PSF): DESAFIOS DE MÉDICOS E ENFERMEIRAS EM
UMA REALIDADE DE IMPLANTAÇÃO DO PROGRAMA
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Enfermagem, da Universidade
Federal de Santa Catarina, como requisito para
obtenção do Título de Doutor em Enfermagem-
Área de Concentração: Filosofia, Saúde e
Sociedade.
ORIENTADORA: Dra. VERA LÚCIA G. BLANK
Florianópolis, junho de 2005
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Catalogação na fonte por Onélia S. Guimarães CRB-14/071
R484c Ribeiro, Edilza Maria
Concreticidade do vínculo do/no Programa de Saúde da Família (PSF) :
desafios de médicos e enfermeiras em uma realidade de implantação do
programa / Edilza Maria Ribeiro ; orientadora Vera Lúcia G. Blank. –
Florianópolis, 2005.
287 f.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina,
Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, 2005.
Inclui bibliografia.
1. Família – Programa de Saúde – Teses. 2. Pessoal da área médica.
3. Enfermagem em saúde pública. 4. Comunicação em enfermagem.
5. Relações humanas – Psicologia. I. Blank, Vera Lúcia G. II. Universidade
Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem.
III. Título.
CDU: 616-083
Catalogação na fonte por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
D
EDICATÓRIA
Para os meus amores fundamentais, que nutrem minha
vida com vínculos afetivos e de cuidado, independente
se nesta ou em outras dimensões: Zinho, Handi, Lici,
Egis, Leia, Hélio (irmão), Elba, Dandara, Vanessa,
Marlici, Alfredo, Hugo, Hélvion (irmão), Ieda, Eginha,
Rudá, Emilson, Dilza, Bruno, Eduardo, Reitan, Haidel,
Helvion (sobrinho), Hélio (pai) e Hélcion.
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
Aos homens e mulheres que idealizaram, construíram e fazem acontecer a Universidade
Federal de Santa Catarina na qual pude realizar minha formação.
Aos professores do Curso Doutorado em Enfermagem pela aprendizagem proporcionada:
Selvino Assmann, Denise Elvira Pires de Pires, Tamara Iwanow Cianciarulo, Gelson Luiz
Albuquerque, Alacoque Lorenzini Erdmann, Marta Lenise do Prado, Alcione Leite da Silva,
Lúcia H.Takase Gonçalves e
Maria Tereza Leopardi.
À Vera Lúcia Guimarães Blank
pela orientação como um todo, pelo constante incentivo e cuidado comigo.
À Denise Elvira Pires de Pires, Ingrid Elsen, Marco Aurélio da Ros e
Walter Ferreira de Oliveira,
pelas contribuições na banca de qualificação do projeto de tese.
Às colegas do Curso de Doutorado em Enfermagem por terem produzido uma convivência
parceria e bem humorada:
Vera, Maira, Rose, Valéria, Marineli, Adriana, Teda, Maristela, Lúcia, Suzana, Ana Isabel,
Angélica, Beth, Ana Zoé, Juliana, Dalva, Theo, Raul.
Ao chefe do Departamento de Enfermagem nos anos de 2001-2004,
Gelson Luiz Albuquerque, pelo incentivo e redução da demanda de trabalho.
À coordenadora da VI fase do Curso de Graduação em Enfermagem,
nos anos de 2003, 2004, Maria Bettina Camargo Bub,
pelo mesmo motivo.
À coordenadora do Programa de Pós Graduação em Enfermagem Maria Itayra C. de Souza
Padilha e a coordenadora didático- pedagógico do Doutorado (em 2004), Denise Maria
Guerreiro Vieira da Silva, pelo apoio na resolução de questões formais.
À Edaléa pela leitura cuidadosa do relatório de tese e sugestões.
À Eliane Regina Pereira do Nascimento pelo apoio especial.
À Ana Izabel Jatobá pelos compartilhamentos.
Ao Handi pela presença, pela ausência e compreensão.
À Edaléa, Hélio, Elba, Rose, Mila, Marisa, Miriam, Fátima, Vitória, Coleta, Astrid, Ilca,
Francine, Silvia, Dalva, pelos ditos especiais que me fortaleceram.
À Secretaria de Saúde do município de São José, Adeliana Dal Pont,
à Secretária Adjunta de Saúde, Suzana Senna Busfield,
à Coordenadora do Programa de Saúde da Família, Carin C. Guesser,
no ano de 2003, por autorizaram a pesquisa de campo.
Aos médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde e
usuários do bairro e CS ..... por terem possibilitado a construção dos dados de pesquisa e
pelo acolhimento amigável.
À Carolina e Mary Anne
pelo acolhimento e apoio especiais durante o trabalho de campo.
À Dudi pela amizade e pelo cuidado em múltiplas dimensões.
À Maria Denise Schimith por ter me facilitado o acesso ao seu trabalho sobre vínculo.
À Vera Lúcia Guimarães Blank, Águeda L. P. Wendhausen, Denise Elvira Pires de Pires,
Maria Alice Dias da Silva Lima, Marco Aurélio da Ros, Antônio Miranda Wosny
pela análise do relatório e trabalho na banca de defesa da tese.
RESUMO
RIBEIRO, Edilza Maria. Concreticidade do vínculo do/no Programa de Saúde da Família
(PSF): desafios de médicos e enfermeiras em uma realidade de implantação do programa,
2005. 285 f. Tese (Doutorado em Enfermagem) – Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
O vínculo de compromisso e co-responsabilidade foi proposto no Programa de Saúde da
Família (PSF) objetivando o alcance de finalidades estratégicas tais como: auxiliar na
transformação do modelo assistencial biomédico, hospitalocêntrico, para o de produção social
da saúde, ao nível da Atenção Básica de Saúde (ABS), ampliar responsabilidades dos
profissionais e dos usuários na condução dos serviços de saúde e humanizar práticas de
atendimento em saúde. Em função desta importância, desenvolveu-se um estudo de caso,
orientado pela dialética, com o objetivo de investigar em que medida as relações que médicos
e enfermeiras, membros de uma Equipe de Saúde da Família (ESF), estabeleceram com
usuários (individual e coletivo) numa comunidade com o Programa de Saúde da Família
(PSF) implantado, constituíram-se como vínculo no sentido estratégico requerido pelo PSF.
A investigação realizou-se de setembro de 2003 a março de 2004, num bairro do município
de São José, vizinho da capital do Estado de Santa Catarina, cujo Centro de Saúde (do tipo
NSII) dispunha de três ESF. Para possibilitar um diálogo com os dados empíricos configurou-
se uma estrutura conceitual agregando concepções teóricas de Pinchon-Rivière, Campos,
Merhy, Franco, e documentos oficiais do PSF. A coleta dos dados ocorreu principalmente
através da observação de campo e entrevistas gravadas, individuais e coletivas com médicos,
enfermeiras, usuários, auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde (ACS). Da
análise dos dados, efetuada sob a forma de análise categorial temática de Bardin, emergiram
dois temas. O primeiro foi nomeado “o vínculo que se constrói” composto pelas categorias:
é um pouco injusto pedirem esse vínculo da gente”; “o vínculo que a gente estabelece não é
num PSF mesmo”; “vínculo se constrói a partir de algumas bases”; “às vezes a gente
consegue”. O segundo tema foi “o vínculo requerido tem vários obstáculos” e compôs-se
das categorias:”às vezes a gente não consegue”;“tem coisas que dificultam/atrapalham”; “o
vínculo construído também se desconstrói”; “o que tem que ter/o que tem de mudar”.
Evidenciou-se que o vínculo de compromisso e co-responsabilidade esteve enredado numa
trama de influências/determinações advindas do macro, meso e micro contexto, que seus
autores são múltiplos, mas aos médicos e enfermeiras (e outros elementos das equipes) coube
experienciar as conflitualidades do jogo entre ‘dever’ e ‘poder’ estabelecer o vínculo no
sentido estratégico requerido. O modelo de atendimento em saúde vigente na realidade
investigada foi o biomédico, o qual sendo validado pela gerência e gestão, pela população e
pelos médicos e enfermeiras, produziram a pseudo-concreticidade do vínculo. Os dados
apontaram ainda para o que tem que ter/tem que mudar para que o PSF seja ‘PSF mesmo’
favorecendo, sob esta forma, o estabelecimento do vínculo de compromisso e co-
responsabilidade, possibilitando então o cumprimento das finalidades estratégicas a ele
atribuídas.
Palavras-chave: vínculo, vínculo no PSF, vínculo do médico e enfermeira no PSF.
ABSTRACT
RIBEIRO, Edilza Maria. Rendering the bond of/in the Family Health Program (PSF):
Challenges for physicians and nurses in a reality of the program’s implantation, 2005. 285 f.
Dissertation (Doctorate in Nursing) – Post-Graduate Program in Nursing, Federal University
of Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2005.
The bond of commitment and co-responsibility was proposed within the Family Health
Program (PSF), hoping to achieve the following strategic finalities: to assist in the
transformation from the biomedical, hospital-centered, care model to a social-health
production model, according to the Basic Health Attention (ABS); to expand professionals’
and users’ responsibilities in conducting health care services; and humanizing care practices
in health. Given this importance, a case study was developed, oriented by local dialect, with
the objective to investigate to what measurements the relationships between physician and
nurse members of the Family Health Team (ESF) established with the users (individually and
collectively) within the implanted Family Health Program (PSF) community can be
considered bonding in the strategic sense required by the PSF. The investigation took place
from September of 2003 to March of 2004 in the neighborhood of São José, neighbor-city to
the state capital. Its Health Center (NSII-type) has three ESF’s at its disposition. To make the
dialogue possible with empirical data, a conceptual structure aggregating the theoretical
conceptions of Pinchon-Rivière, Campos, Merhy, Franco, and official documents from the
PSF were configured. Data collection occurred principally through field observation and
recorded individual and collective interviews with physicians, nurses, users, nursing
assistants, and community health agents (ACS). Two themes emerged from the data analysis,
undertaken according to the thematic categorization of Bardin. The first was called, “the
bond that is constructed’, composed of the following categories: ‘it is a little unfair to ask for
this bond from us”; “the bond that we establish is not really a PSF”; “you construct bonds
based on certain bases”; “sometimes we can do it”. The second theme was “the required
bond has various obstacles” and consisted of the following categories: “sometimes we can’t
do it”; “there are things that complicate/make things difficult”; “the constructed bond also
comes undone”; and “what must be there/what has to change”. It was evidenced that the
commitment and co-responsibility bond was entangled in a web of influences/determinations
which come from the micro, meso and macro context; that there are multiples authors on the
subject; but the physicians and nurses (and other team elements) were given the responsibility
to experience the conflicts of the fine line between whether they ‘should’ or ‘can’ establish
the bond in the required strategy. The current health care model, validated by management
and administration, the populace, the physicians and nurses, within the investigated reality is
biomedical and produced the pseudo-rendering of the bond. The data points out that what
must be there/has to change in order for the PSF to be ‘truly a PSF’, favoring within this form
of establishing the commitment and co-responsibility bond, making it thus possible to fulfill
the strategic finalities attributed to it.
Key-words: Bond, Bond within Family Health Programs, physician and nurse bonds within
Family Health Programs.
RESUMEN
RIBEIRO, Edilza Maria. La concretidad del vínculo del/en el Programa para la Salud de
la Familia (PSF): desafios de médicos y enfermeras en una realidad de implantación del
programa, 2005. 285 hoj. Tesis (Doctorado en Enfermería) – Programa de Postgrado en
Enfermería, Universidad Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
El vínculo del compromiso y de la corresponsabilidad fue propuesto en el Programa de Salud
de la Família (PSF) con el objetivo de alcanzar las estratégicas tales como: ayudar en la
transformación del modelo asistencial biomédico hospitalo-céntrico para la producción social
de la salud a nivel de la Atención Básica en la Salud (ABS), ampliar las responsabilidades de
los profesionales y de los usuarios en la conducción de los servicios de la salud y para
humanizar las prácticas de atención en la salud. En función de esta importancia, se desarrolló
un estudio de caso, orientado por la dialéctica, con el objetivo de investigar en que medida las
relaciones que los médicos y las enfermeras miembros de una ESF, establecieron con los
usuários (indvidual y colectivo) en una comunidad con el Programa de Salud de la Familia
(PSF) implantado se constituyó en el sentido estratégico como un vínculo solicitado por el
PSF. La investigación, se realizó en el período de septiembre del 2003 a marzo del 2004, en el
barrio de una Municipalidad de San José, vecino de la capital del estado de Santa Catarina,
cuyo Centro de Salud (tipo NSII) disponía de tres ESF. Para posibilitar un diálogo con los
datos empíricos se configuró una estructura conceptual incorporando las concepciones
teóricas de Pichón Riviére, Campos, Merhy y Franco, asi como, los documentos oficiales del
PSF. La recolección de los datos fue a través de la observación de campo, la consulta de los
documentos, las entrevistas grabadas, tanto, individuales y colectivas, con los médicos, las
enfermeras, usuários, auxiliares de enfermería, y los agentes comunitários de la salud (ACS).
A través del análisis de los datos, realizado bajo la forma de análisis categórico temático de
Bardin, emergieron dos temas: El primero fue deniminado “el vínculo que se construye”
compuesto por las categorías: “es un poco injusto pedir ese vínculo de la gente”; “el vínculo
que la gente establece no se da igual en un PSF”; “el vínculo se construye a partir de
algunas bases”; “algunas veces la gente consigue”. El segundo tema fue “el vínculo que se
necesita tiene diversos obstáculos”, siendo compuesto por las categorias: “algunas veces la
gente no consigue”; “hay cosas que dificultan/confunden”; “el vínculo construido también se
desconstruye”; “lo que debe tener /lo que tiene que cambiar”. Se evidenció que el vínculo
del compromiso y de la corresponsabilidad estuvieron confusas en un trecho de
influencias/determinaciones provenientes del macro, meso y micro contexto, donde sus
autores son múltiplos, sin embargo, a los médicos y enfermeras (y otros elementos del equipo)
les cabe vivir la experiencia de conflictos del juego entre el ‘deber’ y el ‘poder’ establecer el
vínculo en el sentido estratégico solicitado. El modelo de atención en la salud vigente en la
realidad investigada fue el biomédico, siendo válido por la gerencia y la gestión, por la
población y por los médicos y enfermeras en su práctica, produjeron la pseudo-concreticidad
del vínculo. Los datos señalaron, también, para aquello que debe de tener/tiene que cambiar
para que el PSF sea ‘mismo PSF’ favoreciendo el establecimiento del vínculo de compromiso
y corresponsabilidad, haciendo posible, el cumplimiento de las finalidades estratégicas
atribuidos a este.
Palabras clave: Vínculo. Vínculo en el PSF. Vínculo del médico y la enfermera en el
PSF.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABS - Atenção Básica de Saúde
ACS – Agente Comunitário de Saúde
Aux Enf – Auxiliar de Enfermagem
CS – Centro de Saúde do bairro...
CLS – Conselho Local de Saúde
ESF – Equipe de Saúde da Família
MS – Ministério da Saúde
PSF – Programa de Saúde da Família
SS – Secretaria Municipal de Saúde (do Município de São José)
SMS - Secretaria Municipal de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
USF – Unidade de Saúde da Família
ACD – Acompanhamento de Crescimento e Desenvolvimento Infantil
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1............................................................................................................
16
16
17
22
APROXIMAÇÃO INICIAL COM A TEMÁTICA DE ESTUDO
1.1 O caminho da pesquisadora: mudando a rota ....................................................
1.2 As finalidades do vínculo ..................................................................................
1.3 Objetivo ...............................................................................................................
1.4 A tese defendida..................................................................................................
22
CAPÍTULO 2............................................................................................................
24
24
O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF)
2.1 Revendo antecedentes .....................................................................................
2.2 Uma breve apresentação do PSF .....................................................................
31
CAPÍTULO 3............................................................................................................
36
36
39
42
43
45
49
53
54
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62
64
65
68
72
VÍNCULO: TEORIA E PRÁTICA
3.1 Vínculo como um conceito da Psiquiatria e Psicologia Social .......................
3.2 Teoria do vínculo de PICHON-RIVIÈRE ......................................................
3.3 Vínculo na ótica de autores da Saúde Coletiva ...............................................
3.3.1 As proposições de CAMPOS .................................................................
3.3.2 As proposições de MERHY e FRANCO................................................
3.3.4 Construindo um conceito referência.......................................................
3.5 O vínculo nas pesquisas ..................................................................................
3.5.1 Em ARAÚJO .........................................................................................
3.5.2 Em BETTINELLI...................................................................................
3.5.3 Em SANTOS...........................................................................................
3.5.4 Em MATSUMOTO ...............................................................................
3.5.5 Em SCHIMITH ......................................................................................
3.5.6 Para o MINISTÉRIO DA SAÚDE ........................................................
3.5.7 Em FERTONANI ..................................................................................
3.5.8 Em ALONSO .........................................................................................
73
CAPÍTULO 4............................................................................................................
79
79
81
88
91
91
93
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95
101
102
103
BASES METODOLÓGICAS
4.1 Forma e natureza da investigação ...................................................................
4.2 A dialética ......................................................................................................
4.3 Método dialético..............................................................................................
4.4 Cenário da investigação...................................................................................
4.5 Escolha do local da investigação.....................................................................
4.6 Participantes do estudo ....................................................................................
4.7 Entrada no campo.............................................................................................
4.8 Procedimentos para coleta dos dados ..............................................................
4.9 Registros dos dados ........................................................................................
4.10 Cuidados éticos .............................................................................................
4.11 Procedimentos utilizados visando à confiabilidade dos dados .....................
4.12 Análise dos dados .........................................................................................
104
CAPÍTULO 5 ...........................................................................................................
108
108
111
115
115
CONTEXTO DAS RELAÇÕES QUE SE ESTABELECERAM ENTRE
MÉDICOS, ENFERMEIRAS E USUÁRIOS
5.1 O município de São José ................................................................................
5.2 O bairro ...........................................................................................................
5.3 O Centro de Saúde ..........................................................................................
5.3.1 O início ...................................................................................................
5.3.2 A estrutura ..............................................................................................
5.3.3 Condições e processo de trabalho das ESF.............................................
117
119
CAPÍTULO 6 ...........................................................................................................
135
137
137
141
O VÍNCULO QUE SE PENSA E O QUE SE ESTABELECE
6.1 Vinculo que se constrói .................................................................................
6.1.1 É um pouco injusto pedirem esse vínculo da gente ..............................
6.1.2 O vínculo que a gente estabelece não é num PSF mesmo .....................
6.1.3 Vínculo se constrói a partir de algumas bases ......................................
6.1.4 Às vezes a gente consegue ...................................................................
146
152
165
165
173
6.2 O vínculo requerido tem vários obstáculos ....................................................
6.2.1 As vezes a gente não consegue ..............................................................
6.2.2 Tem coisas que dificultam/atrapalham ...................................................
6.2.3 O vínculo construído também se desconstrói ........................................
184
CAPÍTULO 7 ...........................................................................................................
190
190
204
204
206
208
216
216
224
237
DIÁLOGO TEORIA PRÁTICA ...........................................................................
7.1 Diálogo n º1: é um pouco injusto pedirem isso da gente.................................
7.2 Diálogo n º2: o vínculo que a gente constrói não é num PSF mesmo.............
7.2.1 O projeto PSF.........................................................................................
7.2.2 PSFs reais ..............................................................................................
7.2.3 O olhar do MS sobre o PSF ..................................................................
7.3 Diálogo n º3: o processo e as condições de trabalho ......................................
7.3.1 O trabalho no setor de serviços e em saúde ...........................................
7.3.2 Conexões entre o processo de trabalho em saúde e os dados ................
7.4 Diálogo n º4: às vezes a gente consegue estabelecer vínculo .........................
7.5 De volta aos dados: o que tem que ter/o que tem de mudar ............................
246
CAPÍTULO 8 ...........................................................................................................
258
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS ......................................................................................................
268
ANEXOS ..................................................................................................................
277
APÊNDICES ............................................................................................................
279
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1: atividades observadas nas ESF ............................................................................. 98
QUADRO 2: atividades observadas do conjunto das ESF........................................................... 98
QUADRO 3: dados dos médicos e enfermeiras das ESF............................................................. 99
QUADRO 4: entrevistas efetuadas com as famílias..................................................................... 101
QUADRO 5: condições de saneamento disponíveis pelo Município de São José ..................... 110
QUADRO 6: acompanhamento da presença dos médicos e enfermeiras no CS ......................... 120
QUADRO 7: dos temas, das categorias e seus componentes ...................................................... 136
TEMA I: O VÍNCULO QUE SE CONSTRÓI
CATEGORIA: É UM POUCO INJUSTO PEDIREM ESSE VÍNCULO DA GENTE
QUADRO 8: componentes – vínculo de compromisso e co-responsabilidade é .......................
137
QUADRO 9: componentes – é injusto porque a gente não teve preparo ..................................
138
QUADRO 10: componentes – a prática foi nossa escola de PSF ................................................
140
CATEGORIA: O VÍNCULO QUE A GENTE ESTABELECE NÃO É NUM PSF MESMO
QUADRO 11: componentes – o que o PSF é ............................................................................................. 141
QUADRO 12: componentes – o PSF daqui .............................................................................................. 142
QUADRO 13: componentes – se fosse PSF mesmo ................................................................................ 144
CATEGORIA: VÍNCULO SE CONSTRÓI A PARTIR DE ALGUMAS BASES
QUADRO 14: componentes – relacionadas à comunidade ........................................................
146
QUADRO 15: componentes – relacionadas aos profissionais ...................................................
148
QUADRO 16: componentes – o trabalho do ACS é primordial .................................................
149
QUADRO 17: componentes – relacionadas ao processo e condições de trabalho ......................
150
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE CONSEGUE
QUADRO 18: componentes – pode-se estabelecer vínculo de várias maneiras mas não há receita ...
152
QUADRO 19: componentes – o que pode indicar a construção de vínculo ..............................
154
QUADRO 20: componentes – os médicos na construção do vínculo .........................................
156
QUADRO 21: componentes – as enfermeiras na construção do vínculo ...................................
159
QUADRO 22: componentes – os melhores espaços para construir vínculo ..............................
161
QUADRO 23: componentes – pra trabalhar normal não precisa vínculo ..................................
163
TEMA II: O VÍNCULO REQUERIDO TEM VÁRIOS OBSTÁCULOS
CATEGORIA:ÀS VEZES A GENTE NÃO CONSEGUE ............................................................................ 165
QUADRO 24: componentes – em função do estado da gente e do jeito da gente ser .................
165
QUADRO 25: componentes – em função do perfil da comunidade ...........................................
166
QUADRO 26: componentes – em função da forma como a população vê o SUS e o PSF ........
168
QUADRO 27: componentes – em função de comportamentos dos usuários ..............................
169
QUADRO 28: componentes – em função de como a equipe se relaciona e se organiza ............
172
CATEGORIA: TEM COISAS QUE DIFICULTAM/ATRAPALHAM
QUADRO 29: componentes – a política, os políticos, a Secretaria ........................................................... 173
QUADRO 30: componentes – as condições e o processo de trabalho/versão dos médicos e enfermeiras. 176
QUADRO 31: componentes – as condições e o processo de trabalho/ versão dos AuxEnf e ACS ........... 179
QUADRO 32: componentes – as condições, o processo de trabalho/ versão dos usuários ..................... 180
QUADRO 33: componentes – comportamentos de usuários ..................................................................... 183
CATEGORIA: O VÍNCULO CONSTRUÍDO TAMBÉM SE DESCONSTRÓI
QUADRO 34: componentes – os constantes recomeços .............................................................
184
QUADRO 35: componentes – modelo que rompe vínculo produz crise ...................................
185
QUADRO 36: síntese de proposições do PSF e de autores relacionadas ao vínculo
230
CATEGORIA: O QUE TEM QUE TER/O QUE TEM DE MUDAR
QUADRO 37: componentes – na política, nos políticos, na Secretaria .....................................
247
QUADRO 38: componentes – na questão dos recursos humanos ...............................................
250
QUADRO 39: componentes – nas condições e processo de trabalho .......................................
251
QUADRO 40: componentes – nas condições e processo de trabalho/versão dos usuários .........
254
CAPÍTULO 1
APROXIMAÇÃO INICIAL COM A TEMÁTICA DE ESTUDO
1.1 O CAMINHO DA PESQUISADORA: MUDANDO A ROTA
Quando defini desenvolver o trabalho no Programa de Saúde da Família (PSF) e
conseqüentemente na Atenção Básica de Saúde (ABS), tinha em mente o estudo do
vínculo de profissionais da equipe de saúde da família (ESF) com a família.
A assistência em saúde da família, onde quer que a família esteja (hospital,
comunidade, escola, etc.) tem se constituído numa segunda área de estudo em minha
trajetória profissional. A primeira é a área de saúde da criança (ordem apenas
cronológica).
Meu envolvimento com aquela área iniciou em 1991, quando ajudei a constituir
o Grupo de Assistência, Pesquisa e Ensino na Saúde da Família (GAPEFAM), fundado
por Ingrid Elsen. Em 96 passei a integrar a equipe de docentes do Curso de
Especialização em Enfermagem na Saúde da Família, desenvolvido pelo
Departamento de Enfermagem/Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo
coordenado a sua terceira edição em 2000/2001. De 1999 a 2001 coordenei o Núcleo 1
da UFSC, de Capacitação, Formação e Educação Permanente de Pessoal para Saúde
da Família, do Pólo de Capacitação de Santa Catarina, responsável por formação de
recursos humanos dos municípios da 16 e 18 Regionais de Saúde do Estado de Santa
Catarina. No ano 2000 integrei a equipe de elaboração da primeira versão do Projeto
de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e do Curso de Especialização
Multiprofissional em Saúde da Família, hoje em andamento na UFSC.
Embora não me tivesse dado conta durante a elaboração do projeto de pesquisa,
havia nele dois temas de que corriam em paralelo: um sobre o vínculo do/no PSF em si
17
(com os usuários em geral) e outro, o do vínculo com a família. Durante a coleta de
dados fui construindo dois conjuntos de informações, já que os temas mantinham-se
sem integração, pois o que emergia das relações entre profissionais e famílias era
conseqüente às demandas das mesmas quando em situação de crise. Em um dado
momento do trabalho, quando percebi claramente a situação, entendi que deveria fazer
uma escolha e por considerar a questão do vínculo do/no PSF carente de uma
configuração teórica, que permitisse posteriormente uma transposição para a família,
abandonei o segundo foco. Portanto, os dados referentes às relações que efetivamente
foram observadas entre profissionais e a ‘entidade’ família (ou vigente em situações de
crise), não constam deste relatório.
1.2 AS FINALIDADES DO VÍNCULO
Iniciado em 1994, intensificando sua implantação a partir de 1997 (quando da
criação do sistema de financiamento), o Programa de Saúde da Família (PSF) foi
efetivado na quase totalidade dos municípios brasileiros, dando enfim, uma nova
conformação estrutural para a prestação da atenção da saúde no Brasil.
Ao PSF foi dada a missão de consolidar e operacionalizar princípios e processos
contidos na proposta do Sistema Único de Saúde (SUS), assegurando desta forma as
conquistas sociais propostas pelo Movimento da Reforma Sanitária (iniciado na
década de setenta) e ratificados na VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), como
universalização do acesso, descentralização e hierarquização no atendimento.
Para concretizar as mudanças desejadas havia-se que desbancar ‘o hospital’
como lócus principal e privilegiado da prestação da atenção à saúde no país (tinha
mais recursos, mais profissionais, mais tecnologia, maior infra-estrutura burocrática) e
igualmente, o modelo de assistência que adotava, o modelo biomédico.
O modelo biomédico iniciou sua conformação no século XV e XVI, durante o
Renascimento, período onde se produziram condições para o deslocamento
epistemológico e clínico da medicina moderna, da arte de curar indivíduos doentes
para disciplina de doenças. Contribuiu para tal, a evolução do pensamento do simples
18
para o complexo, a adoção da comprovação científica proposta por Descartes (1596-
1650) e um contexto de grandes descobertas científicas. Em conseqüência instaurou-se
uma racionalidade médica, alicerçada no mecanicismo fisiologista clássico (Luz,
1988). Assentadas as bases da mudança epistemológica, os séculos seguintes (XVII a
XX) serão os de consolidação do modelo biomédico.
No modelo biomédico considera-se o corpo humano como uma máquina
complexa, imperfeita ou que terá problemas, os quais podem ser consertados. A
química, a física, a fisiologia, explicam as funcionalidades e disfuncionalidades desta
máquina. As doenças são resultado de agentes químicos, físicos ou biológicos que
invadem o corpo, de processos degenerativos que ocorrem dentro do mesmo, ou ainda
da falha em algum mecanismo regulatório. Como conseqüência, a saúde e a vida
saudável emergem da ciência, principalmente do trabalho médico, engajado no esforço
de reestruturar o funcionamento normal do corpo, interrompendo processos
degenerativos, regulando mecanismos, destruindo invasores. Considerando as doenças
desta forma, elas devem ser detectadas e tratadas por métodos científicos, não havendo
espaço para dimensões sociais, emocionais, comportamentais e ambientais das
doenças. A indústria dos medicamentos e dos equipamentos, afiliadas ao interesse do
capitalismo mundial, aliando-se a esta orientação epistemológica e clínica, auxiliaram
no fortalecimento do modelo biomédico que se tornou presente na maioria das práticas
de saúde do País, consolidando-se como hegemônico (CANGUILHEN, 1990;
KOIFMAN, 2001; LUZ, 1988).
A medicina científica consolida-se no ensino e nas práticas profissionais em
toda a área da saúde ao longo do século XX, sob a influência decisiva do Relatório
Flexner. No ano de 1910 a Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching
(EEUU) encomenda a Abraham Flexner, uma avaliação sobre a educação médica nos
Estados Unidos e Canadá, acusada de não possuir bases científicas sólidas. Flexner,
em seu relatório, fixa diretrizes rigorosas para o ensino da medicina que foram
adotados em diversos países, incluindo o Brasil, a partir da década de 50. Embora
Flexner “tenha reformulado e modernizado o ensino médico, nele imprimiu
características mecanicistas, biologicistas, individualizantes e de especialização da
19
medicina, com ênfase na medicina curativa e exclusão de práticas alternativas
(KOIFMAN, 2001).
Ademais o Relatório Flexner
com seus princípios e parâmetros – aparentemente voltados para a formação
do médico – inspiram as diretrizes que até hoje costuram as relações entre
ensino e serviços de saúde, orientam as políticas e as operações desses
setores de produção social e afinal conformam, orientam ou constrangem as
próprias demandas sociais (
SANTANA, CHRISTÓFARO, 2005, p.1) .
Retomando a temática do PSF, o mesmo fortaleceu a ABS num curto espaço de
tempo (menos de dez anos) por várias razões: personificava muitos dos sonhos e
projetos de personagens da vanguarda da Saúde Coletiva; respondia a necessidades de
populações que não dispunham de assistência em saúde; favorecia profissionais da
saúde que já não encontravam muitos espaços de trabalho disponíveis, e por fim, ainda
podia ser captado por setores políticos sempre pressionados pelas necessidades locais
de saúde.
Em função de sua rápida expansão passa a contar com um contingente
expressivo de novos trabalhadores, convocados a desempenhar novas e desafiantes
tarefas junto à população. Em janeiro de 2004 eram 19.182 ESF implantadas em 4.498
municípios brasileiros, apontando-se para uma cobertura populacional de 62.685.065
pessoas ou 35,9%. Prevê-se continuidade da extensão, sendo que para o ano de 2006
estão planejadas 32.000 ESF para atender 100 milhões de pessoas (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2004).
Dentre as tarefas a desempenhar destacam-se aquelas destinadas a acolher e
resolver problemas de saúde da população, no espaço da ABS, dentro de um novo
modelo de atendimento, o modelo de produção social da saúde.
Neste modelo a saúde não é obtida através do conserto de uma máquina
avariada, o corpo, no qual o médico é a figura principal; a saúde é tida como
resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente,
trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a
serviços de saúde, conforme definida na VIII Conferência Nacional de Saúde. Neste
20
modelo a atenção se viabiliza pela ação conjunta dos profissionais das ESF, inclusive
quando da mobilização do apoio de outros setores da comunidade. Requisita o
conhecimento dos problemas e necessidades da população pelos profissionais, a
participação desta no planejamento das ações de saúde, o fortalecimento da cidadania
e de ações de controle social por parte dos usuários dos serviços de saúde.
Nestes termos, para alcançar o que se propõe, o PSF adota em sua matriz
conceitual/teórica e operativa, dentre outros, um conceito estratégico ou o conceito do
vínculo de compromisso e co-responsabilidade, o qual deve ser estabelecido entre
profissionais da saúde e usuários (individual e coletivo).
Em documentos veiculados pelo Mistério da Saúde como o ‘Saúde da família:
uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial’ (MS, 1997), ‘Cadernos de
Atenção Básica/PSF’ (MS, 2001), a ‘Implantação de uma unidade de saúde da família’
(COSTA NETO, 2000), ‘Guia prático do Programa de Saúde da Família’ (MS, 2001),
‘Competências para o trabalho em uma unidade básica de saúde sob o olhar da
Estratégia de Saúde da Família’ (COSTA NETO et al., 2001),‘Relatório de Avaliação
da implementação do Programa Saúde da Família em dez grandes centros urbanos:
síntese dos principais resultados’ (MS,2002 b), atribuem-se finalidades ao vínculo.
Ressalte-se que tais documentos apresentam ora um aspecto ora outro, que reunidos
permitiram a elaboração de uma composição. Assim, as finalidades atribuídas ao
vínculo são: auxiliar na transformação do modelo assistencial do País, na direção da
Atenção Básica de Saúde, na perspectiva da universalidade, equidade e
integralidade; auxiliar na transformação do modelo assistencial biomédico para o de
produção social da saúde; ampliar as responsabilidades individuais e coletivas na
promoção da saúde, na prevenção, no tratamento e recuperação das doenças e, na
condução dos serviços de saúde; humanizar as práticas de saúde buscando a
satisfação dos usuários; incrementar a resolutividade no atendimento em saúde.
Não só os propositores do PSF atribuem ao vínculo esta posição estratégica na
ABS. Campos (1997) defende que a noção de vínculo é central para mudança do
modelo de atenção ou para modificar os padrões da relação profissionais de
saúde/clientela; que o vínculo é a pedra de toque de qualquer projeto que pretenda
21
mudar o modelo de assistência; que o vínculo inserido na prática clínica é o que
permite combinar autonomia e responsabilidade profissional.
Para Merhy (1997, 2003) Merhy et al (1997) e Merhy e Franco (2003), o
acolhimento e a capacidade de estabelecer vínculo formam a argamassa da
micropolítica do processo de trabalho em saúde. Também revelam o modo como se
produzem serviços de saúde (se capazes de absorver a demanda, os custos dos
serviços e também, a relação entre os sujeitos deste processo). Para remodelar a
assistência de saúde requerida pelo PSF, as tecnologias leves, ou tecnologia de relação
devem governar o processo de trabalho (o vínculo é tecnologia leve para esses
autores), mesmo que também se utilizem tecnologia dura e leve-dura para operar o
cuidado em saúde.
Para os autores citados esta é a forma de alterar o trabalho ‘médico centrado’
para um modelo de assistência ‘usuário centrado’, como o previsto no PSF.
Embora o vínculo seja um conceito fundamental no/para o PSF, evidenciei que
nos documentos oficiais que o explicitam, que há breves e dispersas referências
teórico conceituais sobre o mesmo; às vezes não se utilizam os mesmos termos ligados
ao conceito estratégico (por exemplo, em vez de ‘compromisso’ e ‘responsabilidade’
aparece o termo ‘confiança’), não se delineia uma ‘tecnologia de relações’ capaz de
favorecer a produção do vínculo, ou ainda, a possibilidade de verificação de que o
vínculo requerido esteja mesmo se estabelecendo. Trabalhos de autores da Saúde
Coletiva também refletem a condição mencionada (MERHY, 1997, 1998, 2003;
MERHY E FRANCO,1999, 2003; CAMPOS, 1997, 1998, 1999; MATSUMOTO,
1999; BERTONCINI, 2000; SCHMIDT, 2002; FERTONANI, 2003).
É preciso pontuar ainda que, em função do incremento acentuado no número de
ESF em vários municípios do País, há como resultante um maior número de interações
entre usuários e profissionais. Neste sentido pode-se esperar uma maior produção de
relações e, nos trabalhos investigativos sobre as mesmas não fica clara se constituem
efetivamente como vínculo do/no PSF.
Em 2004, por exemplo, o Ministério da Saúde publica os resultados de uma
ampla pesquisa desenvolvida no ano de 2002, avaliando o PSF e também a produção
do vínculo. No relatório de “Avaliação da implementação do Programa Saúde da
22
Família em dez grandes centros urbanos” ratifica-se que a constituição de vínculos
entre ESF e a população adscrita é um dos principais objetivos do PSF e que o vínculo
tem um papel essencial na transformação do modelo assistencial na direção desejada.
A análise do vínculo é referida como tarefa complexa e de ordem essencialmente
qualitativa, que sofre influência de inúmeros fatores de natureza individual e coletiva
dos grupos imersos em contextos sociais e geográficos distintos, requerendo
proximidade, para se poder chegar à conclusão ou uma síntese sobre o seu
estabelecimento (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b). Ou seja, apesar de constituir-se
um conceito estratégico, evidenciam-se dificuldades de várias ordens, do ponto de
vista teórico, da prática e da investigação.
A situação acima mencionada levou-me a formular uma série de
questionamentos, quais sejam: o que é vínculo do/no PSF enquanto núcleo conceitual,
em sua estrutura, nas condições/requisitos para viabilizá-lo? O que pensam os
profissionais de saúde sobre o vínculo? Quais são os caminhos que estão sendo
percorridos para o estabelecimento do vínculo entre profissionais das ESF e usuários
(individual e coletivo) no cotidiano da prática? O que se alcança em termos de relação
dá conta de ser o vínculo do/no PSF? Quais são efetivamente as contribuições dadas
pelo vínculo para efetuar transformações requeridas para o atendimento em saúde?
Esses questionamentos me conduziram à formulação do objetivo da pesquisa o
qual se configurou da seguinte forma: investigar em que medida as relações que
médicos e enfermeiras, membros de uma ESF, estabelecem com usuários (individual e
coletivo), numa comunidade com PSF implantado, constituem-se como vínculo no
sentido estratégico requerido pelo PSF.
Este objetivo fundamentou-se na seguinte tese que busquei responder/defender
qual seja: as relações que médicos e enfermeiras estabelecem com usuários
(individual e coletivo) numa dada realidade de PSF, constituem-se como ‘vínculo
requerido’ quando conseguem demonstrar-se impregnadas pelas (novas) formas
relacionais apontadas para o PSF como um todo e alcançar as finalidades
estratégicas a ele atribuídas.
23
O relatório da tese defendida foi estruturado contendo os seguintes capítulos:1º)
onde explicito a opção de estudar ‘vínculo’ e não ‘o vínculo com a família’ e onde
argumento sobre a importância do vínculo no PSF; 2º) neste capítulo situo o PSF em
seus antecedentes históricos e pontuo alguns aspectos gerais; 3º) componho um quadro
teórico conceitual para o vínculo e ainda, apresento e comento produções de autores
acerca do tema; 4º) capítulo onde exponho o caminho metodológico percorrido em
suas diversas etapas; 5º) apresento os dados referentes ao campo de investigação,
contextualizando o ambiente em que se processaram as relações de profissionais das
ESFs com os usuários; 6º) onde apresento os temas, as categorias e seus componentes,
que emergiram da análise dos dados; 7º) neste espaço busco ampliar o suporte teórico
do trabalho a partir das indicações das categorias e frente aos dados; 8º) onde efetuo
uma síntese em resposta a tese defendida e ainda considerações relacionadas ao
desenvolvimento do trabalho.
24
CAPÍTULO 2
O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA
2.1 REVENDO ANTECEDENTES
Nesta seção pontuo sobre algumas questões relacionadas à organização dos
serviços de saúde no Brasil, focalizando a ABS, que antecederam e conformaram o
Programa de Saúde da Família (PSF), especialmente a partir da década de 70.
A saúde pública se configurou, efetivamente como tal, no fim do século XIX e
nas primeiras décadas do século XX, quando finalmente pode valer-se racionalmente
dos resultados de um imenso trabalho de pesquisa empreendido nos séculos anteriores,
conforme coloca Rosen (1994). Ocorreram nos campos da bacteriologia, biologia,
física, química, imunologia, medicina, destacando-se dentre outras, figuras como
Hipócrates (459-460 teorização sobre condutas e cuidados em saúde), Fracastoro
(1478-1553; teorização do contágio), Paracelso (1493-1541; abordagem de problemas
de saúde de trabalhadores), William Petty (1623-1687; abordagem estatística de
problemas de saúde), Antony Van Leeuwenhoek (1632-1723; fundador da
bacteriologia), Jonh Howard (1745-1821; investigador de problemas sanitários em
prisões e hospitais), Edward Jenner (1749-1823; produtor da vacina contra varíola),
Edwin Chadwick (1800-1890; publicação relacionando pobreza e insalubridade,
documento básico para reformadores sanitários), Luiz Pasteur (1822-1895;
comprovação da teoria microbiana da doença), Max Von Pettenkofer (1818-1901;
introdução de métodos de laboratório no estudo da higiene e saúde pública), Willian
H. Welch (1850-1934; fundador da Escola de Higiene e Saúde Pública), Lawrence
Flick (1856-1934; organização da primeira sociedade antituberculose nos EEUU),
25
Wade Hampton Frost (1877-1957; estabeleceu a epidemiologia como ciência aplicável
nos problemas de saúde comunitária).
O enfrentamento liberal da pauperização das massas no século XVIII,
conseqüente aos efeitos nocivos decorrentes da industrialização mundial (migração de
contingentes populacionais para as cidades, jornadas com muitas horas de trabalho,
condições insalubre de trabalho e moradia), efetuado principalmente pela filantropia,
modifica-se no final do século XIX, já que o desafio posto, era o risco de desagregação
do tecido social. O Estado que vinha desempenhando até então um papel residual e
acessório, passa a ser o responsável pela materialização da solidariedade, repartindo
bens e serviços sociais. Adota-se a noção de risco, oportunizando a dimensionalização
probabilística do social, o que permitiu a unificação de problemas tais como o
envelhecimento, desemprego e doenças (CAPONI, 2000).
As estratégias para interromper o empobrecimento das massas e a
vulnerabilidade social no século XIX ocorreram de forma diferenciada, dependendo
das configurações políticas, culturais e econômicas vigentes nas diversas sociedades.
Ou sociedades como a inglesa, francesa e americana, que congregavam maior
desenvolvimento econômico, político e científico, se antecipam na
proposição/implementação de medidas no campo das políticas sociais (ROSEN, 1994).
No século XX se mantém o desafio de “construir sistemas redistribuitivos
capazes de impedir o crescimento das desigualdades, em um contexto generalizado de
mercado, como também com os riscos de desagregação da solidariedade social
(MAGALHÃES 2001, p. 572).
Benefícios sociais (emprego, educação, seguro desemprego, aposentadorias,
serviços de saúde) estendidos a amplos setores das populações ou até universalizados,
possibilitaram a configuração de ‘Welfare State’ (Estado de Bem–Estar) em
sociedades capitalistas, principalmente após a segunda guerra mundial, foram também
adotados de alguma forma, muito menos efetiva e universal, em países periféricos.
As bases conceituais e políticas do ‘Welfare State’ foram a emergência da
questão social e a crise econômica mundial. E, sua derrocada ocorreu pelo
endividamento do Estado que operou simultaneamente, através de fundos públicos, no
financiamento da reprodução da força de trabalho (através dos benefícios sociais) e no
26
financiamento da acumulação do capital, privilegiando este último. Em função do
endividamento o Estado entra em crise fiscal o que põe em risco a continuidade da
lógica capitalista, de não poder continuar a privilegiar a acumulação do capital. Tal
condição propicia o desmonte do Estado de Bem Estar na década de 70, de forma
mais acentuada em países em desenvolvimento como o Brasil, mesmo tendo atingido
escassos níveis de implementação dos benefícios sociais.
Para Chossodovsky (1999) a instauração de uma economia globalizada e sob a
égide de organizações mundiais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o
Banco Mundial (BM) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
requereram uma série de mudanças como desregulação ampla da economia, autonomia
do setor financeiro, desmantelamento do setor público, que se tornaram prioritárias na
agenda política. A política social passou a ser encarada como uma série de medidas
destinadas a compensar os efeitos negativos dos ajustes macroeconômicos realizados.
O conceito de desenvolvimento social se dilui e cede terreno para o de compensação
social, dando um caráter meramente assistencial a determinados segmentos
caracterizados pela extrema pobreza. As políticas sociais atendendo a situações
limites, assumem o papel de amortecedor das tensões sociais.
O Brasil, assim como outros países periféricos, mesmo sem ter alcançado e
consolidado o ‘Welfare State’ em níveis das sociedades capitalistas, sofre os processos
decorrentes da orientação neoliberal. Como aponta Iyda (1994), suas políticas de saúde
refletem marcadamente a sua evolução político-social, que se orienta pelo modelo
internacional das relações capitalistas, porém teve a peculiaridade de inserir-se num
Estado em formação, dentro do desenvolvimento capitalista tardio e dependente.
O modelo sanitarista campanhista, que representou a saúde pública tradicional,
foi hegemônico no Brasil do final do século XIX até os ano 20/30 do século XX..
Nesta época “(...) o que se exigia do sistema de saúde era, sobretudo, uma política de
saneamento dos espaços de circulação de mercadorias exportáveis e a erradicação ou
controle de doenças que poderiam prejudicar a exportação” (MENDES, 1993, p. 20).
A substituição do modelo agro-exportador, como decorrência do avanço do
processo de industrialização, acarreta novas demandas, dentre as quais a necessidade
de restaurar e manter a capacidade produtiva de uma massa de operária emergente,
27
produzindo-se como resposta o modelo médico–assistencialista (MENDES, 1993).
Este modelo desenvolveu-se no interior do sistema previdenciário (IAP’s e
posteriormente INPS, INAMPS), cobrindo inicialmente trabalhadores inseridos no
mercado de trabalho e suas famílias. Ao longo dos anos, com a continuidade da
expansão industrial e das atividades urbanas na economia, este modelo expande-se
para outros setores da população, tornando-se abrangente.
No período de 1968 a 1973 o País alcançara crescimento econômico importante
e sob égide do regime militar, que passando a contar com financiamento externo,
privilegia interesses econômico-corporativos do empresariado privado. Na saúde este
período é marcado pelo surgimento de um empresariado, de policlínicas, hospitais
privados, medicina de grupo, de desenvolvimento da indústria farmacêutica e da
indústria de equipamentos médico-hospitalares, configurando e alçando-se como
hegemônico o modelo médico-assistencial privativista (OLIVEIRA, 1989; IYDA,
1994).
O Estado brasileiro não consegue arcar com os custos do modelo médico-
assistencial privativista, tanto porque se torna progressivamente caro e complexo pela
incorporação crescente dos produtos da indústria de equipamentos hospitalares e
farmacêuticas, e também em função do franco crescimento populacional implicando
na necessidade de extensão deste modelo a uma população em expansão. O resultado é
a geração de uma crise do sistema previdenciário, através do qual o Estado financiava
o modelo médico-assistencial privativista, expondo a população à insuficiência,
ineficiência e ao caos da assistência em saúde.
Uma tentativa de organizar a situação do setor de saúde ocorreu em 1975
quando aprova-se a Lei 6.229 que cria o Sistema Nacional de Saúde, cuja
competências são executadas por vários ministérios: Ministérios da Previdência e
Assistência Social, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, do Trabalho e do
Interior (ANDRADE et al, 2000). Em 1977, reestrutura-se a previdência, com criação
do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), gerido pelo
Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e define-se o Instituto
Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS) como responsável
pela assistência médica.
28
Pires (1998, p. 9) coloca que
o modelo assistencial em saúde no Brasil começa a entrar em crise nos anos
70, numa conjuntura de crise econômica e política. Desfaz-se a ilusão do
milagre econômico e verifica-se um aumento dos índices de pobreza, ao
mesmo tempo em que os trabalhadores ressurgem em cena, reivindicando
maior participação nos benefícios produzidos por toda a sociedade.
Constitui-se um quadro conjuntural que força o Estado a abrir espaço para o
debate e para a experimentação de novos modelos.
Efetivamente, o processo de reformulação do setor saúde decorreu de pressões
sociais efetuadas pelo Movimento Sanitário, iniciado em meados da década de 70, que
culminou na proposta de Reforma Sanitária. A Conferência de Alma Ata realizada em
1978, posicionando a atenção primária como estratégia para alcançar a saúde de todos,
inspirou e fortaleceu o Movimento Sanitário. Este movimento atuou no sentido de
ampliar os debates e mobilização social em prol da redemocratização do país e
também a exigência de redefinição das políticas sociais, dada a conjuntura instalada
após endividamento e falência do Estado brasileiro, de ampliação da desigualdade
social, desproteção e empobrecimento da maioria da população.
Para Da Ros (1991) a conjuntura social brasileira fez emergir o Movimento
Sanitário a partir de setores contra-hegemônicos, localizados principalmente nas
universidades, conduzidos marcadamente com a participação do movimento estudantil,
de profissionais da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, da Associação dos
Médicos Sanitaristas, de departamentos de medicina preventiva e social, de escolas
de saúde pública, de movimento popular em saúde e outros setores da sociedade civil.
Segundo este autor, o movimento sanitário oportunizou enfrentamento da lógica
dominante na área da saúde, que privilegiava interesses econômico-corporativos e
empresariais do complexo médico-industrial.
O evento mais importante para reforma e mudança de perfil do setor de saúde, no
Brasil da década de 80, foi a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986.
Segundo Andrade et al (2000), nela vence o discurso que defende a saúde como um
conceito mais social que biológico, este típico do modelo curativista, reconhecendo-se
a essencialidade da atenção primária; define-se por consenso que o setor de saúde do
Brasil necessitava de uma mudança ampla, radical, no seu arcabouço jurídico-
29
institucional. A Conferência teve como desdobramento a aprovação de um projeto de
reforma sanitária que serviu de referência para a elaboração da Constituição de 1988,
na qual se consolida a idéia de um Sistema Único de Saúde.
Para Viana et al (1998, p. 12), a reforma que se instalou foi radical, por alterar
significativamente o funcionamento do sistema de saúde do país. Este modelo inscrito
na Constituição brasileira de 1988, define-se por três características:
criação de um modelo nacional de saúde; a proposta de descentralização (o
gestor do sistema será o executivo municipal) e a criação de novas formas de
gestão, que incluem a participação de todos os atores envolvidos com a
política (prestadores de serviços, trabalhadores, gestores e usuários)
A implementação do SUS foi iniciada na década de 90, após a criação da Lei
Orgânica da Saúde (LOS), composta das Leis Complementares n
o 8.080/90 e
8.142/90. A primeira regula a descentralização político administrativa do SUS,
enfatizando seus aspectos de gestão, financiamento e condições de funcionamento. A
Lei no 8.142/90 regula a participação da comunidade e as transferências
intergovernamentais de recursos financeiros.
Várias normas e portarias do Ministério da Saúde, as Normas Operacionais
Básicas (NOBs), foram emitidas para regular o sistema. A norma atual, NOB-SUS
01/96, fortaleceu a idéia do SUS em nível municipal, através da regulação da gestão do
sistema de saúde criando: o Sistema de Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde
(programação municipal) e a Gestão Plena dos Serviços de Saúde (programação dos
serviços de saúde). Criou também um mecanismo para pagamento das ações básicas
de saúde (Piso de Atenção Básica - PAB), que instituiu a transferência regular e
automática dos recursos federais (do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos Municipais
de Saúde) para os municípios habilitados como gestores da atenção básica e valores
agregados para estimular outros programas como o da Saúde da Família, Vigilância à
Saúde, Farmácia Básica (VIANA et al, 1998; ANDRADE et al, 2000).
São criados ainda os conselhos Nacional, Estadual e Municipal de Saúde,
Comissões de Intergestores Tripartite para a União, Bipartite para os Estados,
Conselhos de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS), Conselhos de Secretários
30
Municipais de Saúde (CONASSEMS), como instâncias de negociação, pactuação, para
favorecer a implantação, suporte e acompanhamento do SUS.
A proposição do SUS, não modifica a crise aguda de oferta de serviços da saúde
ainda vigente no país nos anos 90 e foi isto, segundo Viana et al (1998, p. 15) (...)
uma das razões para dar início a partir de 95 a reforma da reforma da Saúde no
Brasil, ou do processo de reforma incremental do SUS, concretizada pelos Programas
de Saúde da Família (PSF) e dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS)”.
Ainda, segundo Viana et al (1998, p. 29)
até a formulação do PSF não existia nenhuma proposta concreta de assistência
básica para o SUS. A proposta dos Sistemas Locais de Saúde (SILOS) e de distritos
de saúde, não se impunham como instrumento suficientemente forte no sentido de
uma mudança radical das práticas de saúde e do maior impacto dessas ações sobre a
população ou seja, sobre o grau de efetividade dos sistemas locais de saúde.
Assim o papel atribuído ao Programa de Saúde da Família, foi articular no
âmbito comunitário os preceitos da ação local e integral com os princípios basilares
do SUS” (ANDRADE et al, 2000, p. 90) dando andamento a este, que segundo
Mendes (1996), deve ser entendido como um processo social em marcha, que não se
iniciou em 1988, com a consagração constitucional de seus princípios, nem deve ter
um momento definido para o seu término (...).
O SUS é responsável por 80% da rede de atenção primária e secundária do país
e também por boa parte da rede de alta complexidade. Lida com problemas variados
que se configuram como seus desafios, dentre eles: diferença populacional dos
municípios, desigualdade social da população, a inexistência de recursos humanos em
quantidade e formação requisitadas, a falta de sintonia do aparelho formador e a
realidade onde os profissionais atuam.
Finalizando esta incursão sobre eventos recentes na evolução da organização
dos serviços de saúde do País, convém recolocar que as conquistas obtidas pelo
Movimento Sanitário, no Projeto de Reforma Sanitária, consolidadas na Constituição
de 1988 e na criação do SUS, estão em contínua tensão e ameaça, advindos de um
contexto no qual está incluído o Estado, que se por um lado lhe dá sustentação, por
31
outro se inclina às pressões advindas das exigências de entidades que requerem
práticas neoliberais, como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI).
2.2 UMA BREVE APRESENTAÇÃO DO PSF
A partir de 1991 o MS valida experiências vigentes nas regiões norte e nordeste
do País, que trabalhavam com a figura do agente comunitário de saúde, formulando o
PACS.
Os ACS foram percebidos pelo MS como peças importantes para a organização
do serviço básico de saúde dos municípios, pela sua atuação como elo de ligação entre
comunidade e unidade de saúde e atividade de mobilização da população para o
cuidado da saúde, em atividades básicas de promoção e prevenção. O PACS tanto
antecedeu como forneceu bases para formulação do Programa de Saúde da Família
(PSF) proposto em 1994 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999).
Conforme Souza (2000, p. 7) o PSF inicialmente não foi uma prioridade
governamental. Foi elaborado como programa de um Departamento de Operações da
Fundação Nacional de Saúde, desarticulado de outros setores do MS. Desde o seu
início em 1994 o PSF
valorizava os princípios de territorialização, de vinculação com a população,
de garantia de integralidade na atenção, de trabalho em equipe com enfoque
multidisciplinar, de ênfase na promoção da saúde com fortalecimento das
ações intersetoriais e de estímulo à participação da comunidade dentre
outros (SOUZA, 2000, p. 7)
Suas proposições se inseriam nos debates e movimento de descentralização e
municipalização da saúde, desafios para a efetiva implantação do SUS, mas seu
sistema inicial de financiamento se fazia pelo modelo de pagamento de procedimentos
executados, incompatível com o proposto pelo PSF, de produção social da saúde
(Souza, 2000). Ainda, no documento de 1994, foi atribuída ao PSF a focalização de 32
32
milhões de excluídos, conforme o mapa da fome do Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas (IPEA) e por isso tem carregado o estigma de ser voltado para os pobres.
Em 1995 o PSF passou a ser incorporado pela Secretaria da Assistência à
Saúde, gerando a organização do Departamento de Atenção Básica, depois foi
vinculado à Secretaria de Políticas de Saúde, obtendo progressiva relevância e
passando a constituir-se uma das grandes prioridades do MS. Em 1998 o sistema de
financiamento evoluiu através da operacionalização da NOB-SUS/96, chegando-se à
condição atual, de ser desenvolvido com recursos do governo federal e com
contrapartida dos estados e municípios.
Para Souza (2000) as mudanças na lógica de financiamento, aliadas a outras
medidas técnicas, foram adotadas para induzir o aumento da cobertura populacional
pelo PSF, ao mesmo tempo, para promover a substituição do sistema e das práticas
tradicionais de atenção de saúde, na direção do novo modelo.
Várias são as circunstâncias que têm favorecido a disseminação do PSF por
todo o país tais como: a alocação importante de recursos financeiros repassado
diretamente aos municípios; a mobilização do Ministério da Saúde para divulgar suas
propostas principalmente através de conferências e seminários nacionais e
internacionais, além da produção de documentos orientadores e normatizadores; a
criação dos Pólos de Capacitação, Formação e Educação Permanente em Saúde da
Família em 1997, para atender os requisitos dos novos perfis profissionais requeridos;
as oportunidades de geração de novos empregos no setor saúde.
O MS publicou duas versões sobre o PSF (conceito, diretrizes, funcionamento),
em 1994 e em 1997. No primeiro documento, de 94, o PSF era mencionado como
novo modelo de assistência para modificar o modelo tradicional vigente, através do
desenvolvimento da atenção primária. Na segunda versão, publicada em 1997, alguns
conceitos e diretrizes são aprofundados e outros revisados. O PSF passa a ser
definido e defendido como sendo uma estratégia; detalha atribuições da equipe,
indica necessidade de atuar sobre fatores de risco, inclui atenção curativa, aborda a
promoção das parcerias através de ações intersetoriais, considera que seu caráter é
substitutivo (busca transformar toda a rede de atenção primária numa rede que adote
conceitos e diretrizes do PSF/SUS); define também práticas para reorganização do
33
trabalho tais como diagnóstico de saúde da comunidade, planejamento e programação
local. Após o ano de 2000 o MS publica os Cadernos de Atenção Básica-Programa de
Saúde da Família, detalhando e explicitando conceitos, diretrizes e forma de
implantação, sem mudar qualitativamente o que já fora apresentado (SANTOS, 2002).
A discussão sobre o PSF ser programa ou estratégia foi produzida e manteve-se
ao longo da sua consolidação. ANTUNES et al (2001) coloca que o PSF passou a ser
definido como estratégia uma vez que apresentava os requisitos desta, ou seja, tem o
potencial de produzir mudanças incrementais, transformadoras, que poderiam impactar
tanto no sentido horizontal do sistema, como verticalmente, nas suas camadas
superiores e inferiores. Sousa (2000), Costa Neto (2000), Costa Neto et al (2001) são
autores que também consideram que o PSF seja estratégia.
Já autores como Franco e Merhy (1999, 2003) referem que o PSF se coloca
como programa dado o alto grau de normatividade em sua implementação. Formato
das equipes, funções de cada profissional, o cadastro das famílias, o levantamento dos
problemas de saúde existentes no território e os modos de fazer o programa são
regulados pelo MS. São definidas, a priori, locais de assistência, listas de atividades a
serem realizadas por cada equipe, confundindo-se o que são ferramentas de
diagnóstico e intervenção com o que é resultado em saúde.
Como os dados deste trabalho apontaram para predominância da posição
colocada por Franco e Merhy (1999, 2003), a qual também é identificada por outros
autores que aparecem ao longo deste texto (BERTONCINI, 2000; ALONSO, 2003,
FERTONANI, 2003) a posição que assumo é de que a realidade do PSF o tem
caracterizado como um programa, que persegue o ideal de ser estratégia.
Da mesma forma que o SUS, a matriz teórica filosófica do PSF foi construída
agregando contribuições da sociedade em geral, de grupos especiais, orientados por
idéias progressistas/solidaristas da saúde coletiva, em cujas trajetórias se atestava a
participação no processo de redemocratização do país e empenho na mudança das
práticas de saúde coletiva. Além destas, agrega as influências decorrentes da filosofia
neoliberal. Desde seu nascimento evidencia-se o embate que vai posteriormente reger
a implementação e execução do PSF, da disputa entre paradigmas
solidário/progressista e neoliberal (VASCONCELOS, 1999; SOARES, 2000).
34
O PSF tem tido avaliações positivas e outras ressaltam seus problemas. Estes
últimos serão abordados no capítulo 7, no item 7.2.2.
Sousa (2001, p. 50) refere impactos evidenciados em vários municípios ao
longo da implantação do PSF, e argumenta que se constituíram fatores motivadores da
disseminação da Estratégia pelo país, tais como:
alto nível de satisfação da população com o atendimento das equipes;
melhoria da vigilância à saúde da população; utilização adequada dos
serviços de maior complexidade com redução das internações hospitalares
desnecessárias; maior qualidade e cuidado com a assistência prestada;
elevação da resolutividade das redes assistenciais básicas (que passou a girar
em torno de 90%); aumento das coberturas vacinais; do pré-natal e dos
portadores de agravos específicos como hipertensão e diabetes; aumento do
percentual de aleitamento materno; aumento do percentual do SRO e
controle das doenças diarréicas, o que provocou redução da mortalidade
infantil de vários municípios.
Bertoncini (2000) identificou através de pesquisa, efetuada junto a profissionais
da ESF, mudanças no seu contexto do trabalho e nas ações de saúde em função da
implementação do PSF. As equipes citaram como diferenciais em seu trabalho o gostar
do que fazem; atuarem de forma comprometida, baseada no vínculo e co-
responsabilidade; terem maior adesão da população; obterem experiência no cotidiano
do trabalho; desenvolverem um trabalho diferenciado dos outros serviços de saúde
pública; produzirem alargamento das ações de promoção; terem a possibilidade de
desenvolver assistência integral e contínua junto à população/comunidade; reduzirem
as internações hospitalares; produzirem melhora do acesso da população à rede
básica de saúde; efetuarem o diagnóstico mais precoce das doenças; introduzirem
práticas assistenciais inovadoras; incrementarem a utilização de práticas assistenciais
de baixa aplicação no modelo anterior.
O outro impacto positivo do PSF pode ser verificado ao nível da formação
profissional. Após a criação dos Pólos de Capacitação, Formação e Educação
Permanente em Saúde da Família, para atender necessidades de formação requeridas
pelo PSF, em 1997, os mesmos tem atuado junto as ESF, bem como junto as
instituições de ensino para promover mudanças curriculares que possam dar conta das
35
demandas requeridas. Como resposta à política de formação, inúmeros cursos de
especialização e residência em saúde da família surgem em várias partes do país
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000 a).
Detalhamentos acerca da matriz teórico operacional do PSF serão apresentados
posteriormente, no capítulo 7, no item 7.2, procedimento adotado em função da
necessidade de sustentar categorias que emergiram da investigação, evitando-se neste
caso, possíveis repetições.
36
CAPÍTULO 3
VÍNCULO:TEORIA E PRÁTICA
3.1 VÍNCULO COMO UM CONCEITO DA PSIQUIATRIA E DA
PSICOLOGIA SOCIAL
O termo vínculo provém do latim dos vocábulos ‘vínculum’ que significa união
do tipo ligadura, atadura, de características duradouras e ‘vinco’ (sentido de dobra)
referindo-se à ligação entre partes unidas porém claramente delimitadas entre si.
Tem sido empregado correntemente tanto na linguagem cotidiana quanto na
mídia, nas produções teóricas de várias áreas e abundantemente, na área da saúde. Este
uso disseminado tem em comum a idéia de ‘ligação’.
Quando se efetua uma maior aproximação com o termo/conceito, especialmente
quando se apresenta com um complemento, evidencia-se uma complexificação
comumente não levada em conta. Ou, podem-se encontrar inúmeros tipos de vínculo
como o maternal, filial, geracional, afetivo, amoroso, simbiótico, de dependência,
transferencial, analítico, de confiança, de identificação, de reconhecimento, de
sociabilidade, de compromisso, de co-responsabilidade, e ainda o vínculo
interpessoal, intrapessoal (com partes do próprio sujeito) e vínculo social. Se o vínculo
for de dependência ou simbiótico se coloca algo mais ou a possibilidade de alguém
‘funcionar’ como objeto nesta ligação.
Essa multiplicidade de denominações que se pode encontrar quando se aborda
vínculo evidenciam-se diferentes configurações, naturezas e agentes envolvidos. Os
últimos podem ser, por exemplo, um bebê e sua mãe, um homem e uma mulher, um
psiquiatra e um paciente da saúde mental, um profissional da saúde e um grupo, ou
37
um grupo com sua comunidades, etc. Em trabalhos como os de Zimerman (1996),
Garelli e Montuori (1997), Katz (1999), Berenstein (2001), Coelho (2002) encontram-
se referenciados autores fundamentais no estudo do vínculo, tanto na linha psico-
analítica quanto na linha psicológica, quais sejam Freud, Klein, Bion, Bowlby, Spitz,
Berenstein, Winnicott, Ainsworth, Braselton. As versões psicanalítica e emocional
afetiva primária do vínculo serão abordadas muito sucintamente neste trabalho, já que
não se constituem como fundamento teórico do mesmo .
Adoto a versão de vínculo numa perspectiva social, uma vez que é nesse sentido
que considero que se processe o estabelecimento de vínculo no PSF. Para tal busco
suporte teórico em Pichon-Rivière, que formulou uma teoria conceitual nesta
orientação, e também em autores como Campos e Merhy, da Saúde Coletiva, que
tratam do vínculo nos serviços de saúde.
Bowlby (1990), Kennell e Klaus (2000), Garelli e Montuori (1997) são alguns
dos vários autores que tratam da teoria do “attachment”, uma nomeação que designa o
vínculo afetivo primário da relação mãe-filho. São as relações que se iniciam em geral
antes da concepção e que continuam após o nascimento, sendo uma ligação básica no
desenvolvimento sócio emocional das crianças.
Para Kennell e Klaus (2000, p. 15) o vínculo de pais com seus filhos deve ser
além de poderoso, a mais importante das ligações humanas ou ser tão forte que de um
lado possibilite a sobrevivência e desenvolvimento dos bebês, de outro capacite seus
pais a fazerem sacrifícios contínuos necessários para o cuidado. Estes autores definem
vínculo como “um relacionamento específico, único entre duas pessoas, que dura ao
longo do tempo”. Pode ser identificado pelas expressões de afeto, por gestos de um
em direção ao outro. Colocam que para formar vínculo há todo um processo, no qual
interfere a história dos pais, sua conjugalidade, o equilíbrio emocional da mulher na
gravidez. Uma conjuntura desfavorável interfere na construção desse vínculo.
Garelli e Montuori (1997, p. 122) entendem por “attachment” o vínculo
afectivo que une una persona a outra específica, claramente diferenciada y preferida,
vivida como más fuerte y protectora, y que las mantiene unidas ao largo del tiempo”.
Separações prolongadas, falta de respostas protetoras, inconsistência nas respostas
38
produzem rupturas e patologias no vínculo, levando algumas crianças crescerem
ansiosas e deprimidas, e outras a se tornarem frias, agressivas e anti-sociais.
Coelho (2002, p. 108) aborda o vínculo na perspectiva psicoterápica, baseado
em autores como Freud, Klein e Bion e assim o define:
vínculo psicoterápico é aquele que dá suporte necessário ao cliente para que
possa depositar na relação transferencial, toda a incompreensão de seu
conteúdo mental, a incoerência que habita seus pensamentos, suas fantasias
o absurdo que lhe constitui enquanto ser humano.
Um ponto que o autor destaca é que para se constituir vínculo terapêutico, o
processo de sua construção tem de cumprir sua função de ser o que se propõe ou ser
terapêutico, uma vez que poderia não se constituir assim.
Para Katz (1999, p. 36) o vínculo terapêutico psicanalítico se processa quando
se alcança a interação, mas esta só é possível quando o terapeuta e cliente estão em
diálogo simultâneo no qual se dão múltiplas e contraditórias narrativas, inclusive a do
terapeuta. Sua perspectiva consiste em “ajudar o paciente recontar sua história, de
maneira que lhe permita compreender as origens e significados de suas dificuldades
atuais a fim de tornar mais concebível, alcançável e coerente o caos de sua vida”.
Berenstein (2001, p. 246) usa o termo vínculo “como uma estrutura
inconsciente que une dois ou mais sujeitos, e que os determina em base a uma reação
de presença”. Essa abordagem psicanalítica requer que se considere, dentre outros
pontos, o sujeito, a lugar do outro, a realidade interna do sujeito e suas relações com a
realidade. Encontro pode ser ou não a origem do vínculo, já que para que isto ocorra
há necessidade de acontecimentos como produzir mudança nos envolvidos.
Zimerman (1996, p. 710), também numa abordagem psicanalítica, propõe um
novo tipo de vínculo que nomeia ‘vínculo de reconhecimento’ e o termo ‘reconhecer’
para o autor “abriga quatro conceituações: a de reconhecimento (de si próprio); 2)
reconhecimento do outro (como alguém diferente dele; 3)ser reconhecido ao outro
(como expressão de gratidão); 4)ser reconhecido pelos outros”. Este tipo de vínculo,
aplicado na terapia analítica, está embasado na necessidade humana, crucial, de “em
qualquer idade, circunstância, época ou geografia, sentir-se reconhecido e valorizado
39
pelos demais, de ter existência como individualidade” (ZIMERMAN, 1996, p. 712).
Aqui o analista tem um importante papel de participar e criar o conhecimento, o clima
emocional e sobre o que se passa entre ele o analisando. Neste espaço comparecem as
ânsias de ambos, embora de forma assimétrica, de se verem reconhecidos em suas
necessidades, desejos e demandas.
3.2 TEORIA DO VÍNCULO DE PICHON-RIVIÈRE
A escolha de Pichon-Rivière como uma das orientações deste trabalho recaiu
tanto em função de ter transposto o conceito ‘vínculo’ para o âmbito das relações
sociais, aplicando-o dentro de instituições, embora o faça numa orientação
psicanalítica, e também por ter proposto um desvelamento do núcleo conceitual do
vínculo. Muitos autores partem da premissa que ao mencionar “vínculo” sua estrutura
nuclear esteja revelada no sentido ‘ligação/elo’ e se concentram no desvelamento do
seu complemento, como ocorre em Campos e Merhy, cujas proposições serão
apresentadas adiante.
Pichon-Rivière, psicanalista, nasceu na Suíça em 1907, viveu e desenvolveu seu
trabalho na Argentina. Entre 1956 e 1957 apresentou sua Teoria do Vínculo, sendo que
sua produção foi organizada (gravada, transcrita) pelo psiquiatra Fernando Tagarano e
publicada em 1982.
Apesar de sua formação original, Pichon-Rivière deu ênfase à psiquiatria social,
estudando a relação indivíduo-grupo e as questões institucionais. O autor trabalhou
simultaneamente com behaviorismo, a pesquisa fenomenológica existencial e a
dialética materialista. Considerava que o aspecto exterior da conduta estava ligado ao
aspecto interior da vivência, esta construída historicamente, formando um todo, no
aqui agora de qualquer situação.
Para Pichon-Rivière (2000) o conceito de vínculo pertence tanto ao campo da
psiquiatria quanto da psicologia social. A psiquiatria e a psicanálise têm interesse
predominante no vínculo interno, que possui uma representação manifesta e uma
40
latente, enquanto que a psicologia social tem sua predominância de interesse no
vínculo externo.
Na Psicologia Social o vínculo é um conceito instrumental pois caracteriza uma
estrutura perfeitamente visível, manejável operacionalmente e passível de
investigação. Mesmo que se estabeleça entre duas pessoas será, nesta perspectiva, um
vínculo social. “Através da relação com essa pessoa repete-se uma história de
vínculos determinados em um tempo e em espaços determinados” (PICHON-
RIVIÈRE, 2000, p.31).
Pichon-Rivière (2000, p.113) definiu vínculo como uma estrutura de relação
especial que se forma a partir de um tipo particular de relações. Esta inclui “um sujeito
e um objeto (ou o outro), a relação do sujeito ante ao objeto e a relação do objeto
ante ao sujeito, cumprindo os dois uma determinada função de objeto, estabelecendo
uma relação particular entre eles”.
Tal estrutura funciona de forma dinâmica, em contínuo movimento e é acionada
ou movida por motivações psicológicas.
Esta relação particular tem como conseqüência uma conduta mais ou menos
fixa com este objeto, formando um ‘pattern’, uma pauta de conduta que
tende a se repetir automaticamente tanto na relação interna quanto na relação
externa com o objeto (PICHON-RIVIÈRE, 2000, p. 17).
No vínculo os componentes se alternam, sendo primeiramente interno, depois
externo, volta a ser interno e externo, configurando uma espiral dialética permanente.
O emergente tem uma estrutura, uma forma, uma configuração, é uma
gestalt”, em contínuo processo de formar-se. A esta se junta uma interpretação
resultante; num campo de trabalho os envolvidos fazem uma nova gestalt contendo o
emergente destes. O que aparece no objeto depende em boa parte da atitude do sujeito,
do seu modo de ser, do ambiente do encontro, das interpretações anteriores. “Todo o
processo se refaz e retro alimenta em permanente ação em espiral dialética”
(PICHON-RIVIÈRE, 2000, p. 90).
Pichon-Rivière (2000) considera que há vínculos normais e patológicos, sendo
vínculo normal, numa relação adulta normal, aquele que se estabelece entre um
41
sujeito e um objeto diferenciados, ou seja, tanto sujeito quanto objeto escolhem o
objeto livremente. Mas para o autor nunca existe um só tipo de vínculo. As relações
que o sujeito estabelece com o mundo são mistas, na medida que emprega,
simultaneamente, estruturas vinculares diversas.
A maneira particular de um sujeito estabelecer vínculo se expressa na conduta
e, portanto, pode ser observada. Conduta, segundo Pichon-Rivière (2000, p.46) “é a
expressão de um vínculo em termos daquilo que se vê”.
As relações atuais dos sujeitos sofrem influência dos condicionamentos
históricos dos vínculos, os quais compõem uma pauta de conduta inconsciente, tanto
em relação a vínculos, como aos papéis que o sujeito desempenha frente a outros.
Símbolos e seus significados, construídos na história de uma pessoa, determinam a
reação particular frente a um acontecimento que está influenciando um objeto (ou
pessoa). Ou as características da estrutura de relações, que configuram o vínculo
pessoal, são variáveis e tem significados particulares para cada sujeito, dado que cada
sujeito difere dos demais em sua personalidade e aparelho psíquico envolvido.
Outros conceitos que Pichon-Rivière (2000, p.55) agrega ao conceito de
vínculo são o de campo psicológico, papel, status e comunicação. Campo psicológico
é o local onde ocorrem as interações entre a personalidade e o meio, integrando a
influência da sociedade sobre os sujeitos. “A sociedade está dentro e fora, mas a
sociedade que está dentro o está de uma maneira particular para cada indivíduo”
caracterizando uma relação dialética. Pichon-Rivière (2000) apoia-se no autor Lagache
para abordar a composição de campo psicológico. O campo psicológico possui:
contorno, a situação, a conduta exterior, a vivência e os produtos da atividade dos
sujeitos. O ‘contorno’ é concebido como um conglomerado de situações e fatores
humanos e físicos que estão em permanente interação, exercendo influência sobre o
que ocorre. No conceito de ‘situação’ incluem-se as modificações em que o meio é o
agente. A ‘conduta exterior’, provocada ou espontânea, acessível à observação,
compreende as diversas formas de comunicação, em particular a palavra. A ‘vivência’
ou experiência vivida, aquilo que está acontecendo, é inferida pela conduta exterior e
comunicada verbalmente pelo sujeito. Frente a esta conjuntura surgem os produtos ou
o que pode ser materializado (uma obra de arte, relatos, registros).
42
Para Pichon-Rivière (2000, p.64) “a situação de vínculo sempre inclui o papel
sendo que a compreensão deste é fundamental para se compreender o outro. O autor
aponta características do papel como: poder ser transitório, ser exercido numa
determinada situação com uma função definida e de um modo particular por cada
pessoa. Um sujeito pode assumir o papel (ou papéis) de forma consciente e voluntária
ou inconscientemente, quando representa aquilo que lhe é atribuído por outros, sem
resignificá-lo.
Papel e status são conceitos estreitamente relacionados. Frente ao papel
(elemento qualitativo) ao ser considerado seu nível e seu prestígio, configura-se o
status (elemento quantitativo). Os integrantes de um grupo são considerados como
estruturas que funcionam em um determinado nível com determinadas características.
O nível é o status e as características são dadas pelo papel (PICHON-RIVIÈRE, 2000).
Pichon-Rivière (2000) também reforça a ligação dos fenômenos com a noção de
tempo-espaço, pois estes não podem ser concebidos sem os mesmos. Para o autor tudo
está em movimento e a estrutura em transformação varia num tempo, configurando-se
uma tridimensionalidade, fenômeno-espaço-tempo.
Em sendo o vínculo uma estrutura, dentro dessa estrutura ocorre a
comunicação, que será boa se os seus integrantes assumirem os papéis a ele atribuídos.
Caso esta condição não se concretize produz-se o mal entendido e a comunicação fica
comprometida.
Quando um dos dois não acusa o impacto do outro, quer dizer não assume o
papel que lhe é adjudicado ou, principalmente não informa a adjudicação
produz-se à indiferença e, nesse caso a comunicação se interrompe.
(PICHON-RIVIÈRE , 2000, p.117).
3.3 VÍNCULO NA ÓTICA DE AUTORES DA SAÚDE COLETIVA
Os autores, Campos, Merhy e Franco foram escolhidos para complementar a
configuração teórica da temática do vínculo. Além da importância dos mesmos na área
da saúde coletiva, foi nesses autores que encontrei um volume maior de produção
43
sobre o tema em pauta. Ressalto que a menção do termo vínculo encontrada
amplamente nos textos sobre o PSF não corresponde à produção de um corpo teórico
sobre este.
3.3.1 AS PROPOSIÇÕES DE CAMPOS
Campos (1997) apresenta pelo menos dois eixos argumentativos sobre vínculo: o
primeiro trata da relação profissional
x cliente e o segundo se refere a uma dada
responsabilização profissional.
Com relação ao primeiro eixo argumentativo Campos (1997, p.244) se refere ao
conceito de transferência e contra-transferência, baseado em Freud, indicando que nas
relações entre profissionais e clientes elas sempre estariam ocorrendo. “Transferência seria o
modo como um sujeito significa e representa – sempre se utilizando, em alguma medida, do
recurso do deslocamento – o outro com o qual se relaciona”. A transferência gera a contra-
transferência.
As representações dos profissionais foram construídas ao longo de suas trajetórias
pessoais, tendo peso a sua formação, suas referências sociais ou ainda pressões e
constrangimentos das instituições. O que seriam os clientes então: coitadinhos, figuras
culpadas por sua enfermidade, desvalidos sociais? Quando as representações negativas se
tornam fixas perde-se a possibilidade de “distinguir singularidades de cada caso como de
compreender a dinâmica do processo de saúde-doença-intervenção” (CAMPOS, 1997, p.
245).
No trabalho em saúde a subjetividade está sempre presente pelo contato com as
dimensões físicas e emocionais do outro, as coisas do medo, sofrimento, da vida e da morte.
Mas a subjetividade não vem sendo considerada pela administração dos serviços de saúde.
Nem mesmo a clínica e a saúde pública valorizam esse elemento capital do trabalho sanitário,
inventando técnicas pra objetivar as expressões subjetivas dos sujeitos a serem cuidados.
(CAMPOS,1997).
Campos (1997, p. 236) coloca que o vínculo só se produz quando há relação entre
sujeitos, jamais nas circunstâncias em que o cliente foi reduzido à condição de objeto. Como
sujeitos, estarão “habilitados a lidar com os constrangimentos do contexto, para, a partir
desses limites impostos pela realidade, construírem algo de que se orgulhem”
44
É importante diferenciar as posições de Pichon-Rivière e Campos sobre o termo
‘objeto’. Quando Pichon-Rivière (2000) refere-se a objeto, o faz como representação de algo
ou alguém com que se estabeleça relação, sem pré-suposição de degradação. Campos refere-
se a “condição de objeto” onde um indivíduo, o usuário dos serviços de saúde, está degradado
ou destituído de sua condição de sujeito, nas interações estabelecidas nos serviços de saúde.
Nas palavras de Campos (1997, p. 251):
a hipervalorização das técnicas de objetivação e, portanto uniformização,
arrefeceu em muito a preocupação com a subjetividade e com a cultura dos
clientes. Em certa medida passa-se a impressão de que o trabalho clínico ou
sanitário seria passível de automatização, de um desenrolar de
procedimentos, em grande medida independente do agente executor e do
paciente sofredor ou da população em risco de adoecer.
Tanto o processo de formação como a experiência institucional dos
profissionais exerce um duplo efeito sobre sua subjetividade: não somente os
treinam a se relacionarem com sujeitos degradados à condição de objeto,
como reforçam a sua alienação e desmotivação.
Com relação ao segundo eixo argumentativo Campos (1997) coloca que a
responsabilização do profissional por determinado número de casos, implicaria no
desenvolvimento de ações, por exemplo, de viabilização de interconsultas, internação,
exames complementares, intervenções terapêuticas pontuais. Nesta forma de trabalhar,
o profissional teria de dispor de autonomia para criar e desencadear mecanismos de
cuidados necessários; isto poderia tanto identificar sua ‘obra’, como permitiria a
avaliação de quem a produziu. Todo o controle institucional do trabalho dos
profissionais se daria através do acompanhamento do atendimento clínico, organizado
sob a égide do vínculo, já que os resultados do trabalho de cada um seriam facilmente
identificáveis pela gerência e pela clientela.
Mesmo reconhecendo a superioridade do trabalho em equipe, Campos (1997, p.
249) advoga “necessidade da definição precisa e inequívoca de responsabilidades
individuais diante de cada caso”. Na equipe sempre teria alguém administrando cada
caso, concretizando-se desta forma o conceito de vínculo e adscrição individual da
45
clientela. Esta condição não prescinde o apoio dos outros membros da equipe ou de
outros serviços de saúde.
Em princípio, saber conduzir casos deveria fazer parte do campo de todo
profissional de saúde (...).Conforme as características centrais da
intervenção seria designado o responsável (...). O mesmo tipo de raciocínio
poderia ser aplicado a problemas coletivos. Equipe, mas com definição clara
de responsabilidade. (CAMPOS, 1997 p. 249 e 250).
É necessário também que o vínculo seja uma ligação mais estável e duradoura,
recriada no cotidiano, permitindo nessas condições que o paciente exerça melhor seus
direitos de cidadania, quando do conhecimento do nome, posto e atribuições dos
responsáveis por ele.
A noção de vínculo é central para mudança do modelo de atenção ou para
modificar os padrões da relação profissionais de saúde/clientela. E ainda, é necessário
ampliar coeficientes de vínculo dos profissionais com pessoas portadoras de problemas
concretos dentro de um certo contexto existencial. Essa seria, para este autor, a pedra
de toque de qualquer projeto que pretendesse mudar o modelo de atendimento.
Para Campos (1997) o vínculo inserido na prática clínica é o que permite
combinar autonomia e responsabilidade profissional, é o que promove desalienação.
Neste sentido o processo de trabalho, precisa estimular a liberdade criadora e
ampliação de responsabilidades dos trabalhadores, produtoras de vínculo e de re-
ligação dos profissionais com sua ‘obra’.
3.3.2 AS PROPOSIÇÕES DE MERHY e FRANCO
O vínculo para Merhy (1997,1999) constitui-se numa tecnologia leve. A
tecnologia leve constitui o modo relacional de agir quando da produção de atos de
saúde, está representada pela produção de vínculo, autonomização, acolhimento,
gestão dos processos de trabalho.Autonomização significa ter como resultado
46
esperado da produção do cuidado, ganhos de autonomia do usuário para viver a
vida” (FRANCO E MERHY, 2003, p.84).
Criar vínculo implica em estabelecer relações tão próximas que favoreçam a
sensibilização dos trabalhadores para o sofrimento do outro (individual ou coletivo),
em ter responsabilidade pela sua vida e morte “dentro de uma dada possibilidade de
intervenção nem burocratizada, nem impessoal”. Implica ainda em “permitir a
constituição de um processo de transferência entre usuário e trabalhador que possa
servir para a construção da autonomia deste usuário” (MERHY, 1997, p. 138).
Sendo tecnologia, vínculo refere-se também a um conjunto de conhecimentos e
agires aplicados à produção de algo. As tecnologias, para Merhy (1997, 2003) Merhy
et al (1997), Franco e Merhy (2003), são importantes por configurarem um dado
modelo de assistência, revelarem o modo como se produz serviços de saúde,
traduzidos pela capacidade de absorver a demanda, de efetivamente resolver
problemas de saúde, revelar os custos dos serviços e também, a relação entre os
sujeitos deste processo. Ressaltam que para efetivamente remodelar a assistência de
saúde requerida, pelo PSF, às tecnologias leves devem governar o processo de
trabalho, mesmo que também se utilizem tecnologias dura e levedura para operar o
cuidado em saúde.
Acolhimento, implica na possibilidade de universalizar o acesso a unidade de
saúde aos usuários que dela necessitarem. Implica na escuta atenta do usuário, na
busca de resposta e no compromisso com a solução do problema de saúde que
apresenta, também como encaminhamentos quando necessário. Tanto atua na
humanização do atendimento como na reorganização do trabalho de equipes locais.
Para Franco e Merhy (2003, p.121, 122)
o acolhimento ao usuário e a capacidade de estabelecer vínculo, formam a
argamassa da micropolítica do processo de trabalho em saúde, com potência
para a mudança e a produção do cuidado e da cura, visando à recuperação ou
os ganhos de autonomia dos usuários-individuais ou coletivos, bem como da
promoção e defesa da sua vida
47
A tecnologia dura representa os equipamentos tecnológicos do tipo máquinas,
normas, estruturas organizacionais. A tecnologia leve-dura
é leve ao ser um saber que as pessoas adquiriram e está inscrito na sua forma
de pensar os caso de saúde e na maneira de organizar a atuação sobre eles,
mas é dura na medida que é um saber fazer bem estruturado, bem
organizado, bem protocolado, normalizável e normalizado (MERHY, 1999,
p. 307).
A tecnologia leve-dura opera, por exemplo, na clínica médica, psicanalítica e na
epidemiologia.
À semelhança de Campos (1997, 1998, 1999), para Franco e Merhy (2003,
p.84), o vínculo é o que permite que os usuários estabeleçam referências “a uma dada
equipe de trabalhadores, e a responsabilização destes para com aqueles, no que diz
respeito à produção do cuidado”.
Como nas relações sempre ocorre o encontro entre as subjetividades das
pessoas, Merhy (1997) considera que o mecanismo de transferência e contra-
transferência, conceituado por Freud, poderia representar o universo da tecnologia leve
do trabalho vivo, dado que acolhimento e vínculo, sendo componentes do universo
tecnológico do trabalho vivo em ato, poderiam dar sentido ao usuário no interior do
processo de trabalho, sentido este que se ‘capturado’, poderia aumentar seus graus de
autonomia.
Em qualquer encontro entre um usuário, portador de uma dada necessidade de
saúde e trabalhador em saúde, portador de um dado arsenal de saberes específicos e
práticas, sempre se configura um espaço relacional. Neste espaço ocorre fala, escuta,
interpretação e disputas permanentes de intenções em torno do que são o objeto e o
sentido das ações de saúde (MERHY, 1997, p. 76). O usuário (...) “sempre procura
obter nesse encontro, no mínimo, uma relação de compromisso que tenha como base a
‘sinceridade’, a ‘responsabilização’ e a confiança na intervenção, como uma possível
solução” ( MERHY, 1997, p. 76, 77).
48
O que se produz nas relações não é um somatório do que ocorre em função da
interseção (ponto de encontro) e sim um produto que existe apenas no momento da
relação, gerado por um processo que se dá entre sujeitos (inter), que se colocam como
instituintes na busca de novos processos .
A aceitação do ‘problema de saúde/necessidade’ de saúde apresentada pelo
usuário varia amplamente, tanto em função dos critérios de quem atende como em
função dos critérios com que o serviço opera. Neste espaço também se pode evidenciar
quando a base da relação é aquilo que é trazido pelo usuário.
No espaço relacional, onde ocorre o processo de interseção, ocorre o
atendimento, que pode se dar de múltiplas formas e isto acarreta implicações tanto
ético-políticas, institucional como individual. Tanto pode ocorrer a negação da
assistência, como sua confirmação, mas a lógica adotada pode ter ampla variação.
Assim pode abrir-se ou não para
(...) um processo de escuta dos problemas, para uma troca de informações,
para mútuo reconhecimento de direitos e deveres, e para um processo de
decisões que pode possibilitar intervenções pertinentes e/ou eficazes, em
torno das necessidades dos usuários finais (MERHY, 1997, p. 77).
Desta condição decorre uma das discussões mais importante para os serviços
saúde, qual seja, sobre o modo de proceder para atingir a finalidade dos serviços, de
promover e proteger a saúde, individual e coletiva, além da cura, pois este modo de
proceder pode ou não ser promotor da saúde e da cura. Procedimentos serão
cuidadores se produzirem ganhos para o usuário ou recuperem graus de autonomia no
modo do usuário andar na vida. Daí que interrogar o formato de realização das
tecnologias das relações permite analisarem-se estrategicamente modelos de atenção
em saúde, já expõe intensamente as falhas, os jogos de sentido e sem sentido das
práticas de saúde (MERHY, 1997, 1999, 2003; MERHY et al, 1997).
A finalização do trabalho, o resultado que produziu, permite qualificar o
processo, se intercessor, se acolhedor e resolutivo em termos do “problema de
49
saúde/necessidade” apresentado, e também se favoreceu do ponto de vista do usuário,
reconhecer a adequabilidade do processo frente ao que solicitou.
No trabalho em saúde, mesmo diante da captura do trabalho vivo em ato pelas
forças instituídas (tecnologias duras e leveduras), a autonomia do trabalhador é
bastante ampla, porque a captura vai ser dar no processo intercessor e este é “quase
estruturado” ou não é possível estruturar totalmente o modo relacional de agir quando
da produção de atos de saúde.
Ou, mesmo que o trabalhador
tenha o seu trabalho vivo capturado pelo trabalho morto, opera com um dado
‘auto-governo' que lhe dá inclusive a possibilidade de ‘privatizar’ o uso
deste espaço, conforme o modelo tecno-assistencial, sem ter de prestar conta
do que e do como está atuando (MERHY, 1997, p.77).
Considerando a autonomia dos trabalhadores e a aplicação das tecnologias
leve, há muito que os profissionais e gestores do processo de trabalho podem fazer no
sentido de modificar o atual modelo ‘médico centrado’para um modelo de assistência
‘usuário centrado’, como o previsto no PSF.
3.4 CONSTRUINDO UM CONCEITO REFERÊNCIA
Conforme já colocado anteriormente, não encontrei nos documentos do
Ministério da Saúde, que propõe o PSF, um quadro teórico que desvelasse o conceito
de vínculo em si ou quando agregado aos termos ‘compromisso e co-
responsabilidade’ entre profissionais e comunidade. Creio ser este um dos fatores que
produz entendimentos diferenciados, junto aos trabalhadores de saúde e na própria
produção teórica relacionada ao PSF, evidenciadas quando vínculo é significado como
‘dar-se bem’, ‘gostar’, ter amizade ou ser confundido com ‘bom relacionamento
interpessoal’.
50
Numa citação de Costa Neto et al (2001, p. 11) podemos encontrar um exemplo
das diferenças e indefinições que se escondem sob a égide da aparente
homogeneidade. Para estes autores, no PSF os profissionais deverão ter seu perfil
bastante diferente da maioria dos que hoje trabalham na atenção básica, sendo uma
destas diferenças, a dinâmica nas relações com a comunidade, com as quais devem ser
criados vínculos de compromisso e de responsabilidade compartilhada. “As relações
profissionais - família são parte de um processo dinâmico terapêutico e de confiança”.
Algumas perguntas que poderiam ser formuladas sobre o registro acima tais
como: o que significa processo dinâmico e terapêutico? Como o vínculo se posiciona
nele? A confiança é elemento definidor do vínculo ou um produto? Porque às vezes
aparece substituindo a co- responsabilidade citada nos documentos oficiais?
Se por um lado tal incompletude permite uma construção que agregue as
contribuições dos sujeitos envolvidos, por outro lado também acaba reproduzindo
inúmeras configurações, complexificando o entendimento e por conseqüência a
prática .
É importante porém destacar que há um consenso acerca do vínculo, que é o de
ser valorizado e recomendado enquanto atitude a ser adotada pelos profissionais das
ESF.
Em função da indefinição mencionada, fui consultando documentos sobre o
PSF (mencionados no capítulo 1), reunindo aquilo que se colocava a respeito do
vínculo. Nestes documentos pode-se encontrar que vínculo, no PSF, é de
compromisso e co-responsabilidade, se refere a um relacionamento estreito (laços)
estabelecido entre profissionais e saúde e uma população numericamente delimitada,
residente numa área definida (população adscrita). Tem certas finalidades a alcançar
quais sejam: auxiliar na transformação do modelo assistencial do País, na direção da
ABS, na perspectiva da universalidade, equidade e integralidade; auxiliar na
transformação do modelo assistencial biomédico para o de produção social da saúde;
ampliar as responsabilidades individuais e coletivas na promoção da saúde, na
prevenção, no tratamento e recuperação das doenças e, na condução dos serviços de
saúde; humanizar as práticas de saúde buscando a satisfação dos usuários;
incrementar a resolutividade no atendimento em saúde.
51
Visando configurar uma tecnologia de relações, não disponível nos
documentos, relacionei vínculo ao que está indicado/recomendado como
relação/comportamento ‘aos/dos’ profissionais de saúde, referido como relações
diferenciadas/novas a serem estabelecidas no PSF, pressupondo que o vínculo sendo
relação/comportamento também deva compor-se/incluir as mesmas.
Assim, considerei que esta nova relação teria que ser produzida pela adoção de
atitudes/comportamentos dos profissionais de saúde, frente aos usuários (individual e
coletivo), e também pelos usuários (individual e coletivo), perpassadas por certas
dimensionalidades, configurando uma dada ‘tecnologia de relação’ que está indicada
para o PSF.
Por parte dos profissionais suas atitudes/comportamentos teriam as
dimensionalidades:
1) de humanização da atenção incluindo: possibilidade de acesso aos serviços;
escuta/atenção ampliada; aceitação e valorização dos problemas/necessidades
trazidas pelos usuários (individual/coletivo); disponibilização de tempo para
expressão dos usuários; possibilidade dos usuários identificarem a(s) pessoa(s) que
presta(m) assistência (nomes em crachás por exemplo); serem identificados e
tratados pelos nomes ou sobrenomes; possibilidade de serem conhecidos.
2) Técnica (relacional) incluindo: investigação ampliada; troca de informações;
inclusão dos saberes dos usuários no processo decisório sobre seus cuidados;
comunicação dos insights, das inter-relações e interpretações emergentes da
comunicação; proposição e construção conjunta de planos terapêuticos que incluam
novas pautas de conduta para atender/apoiar os usuários frente às demandas da
saúde-doença em interface com seu processo de viver; responsabilização/resposta às
necessidades apresentadas, continuidade/manutenção da atenção, resolutividade no
atendimento.
52
3) Sócio-cultural incluindo: contextualização das necessidades de saúde do usuário
nas perspectivas familiar e social; resposta às necessidades e compromisso com
mudança da realidade; reconhecimento do profissional acerca de suas posições,
crenças e atitudes, frente ao universo cultural dos usuários; consideração da
pluralidade de concepções sobre o processo de saúde-doença; posicionamento
profissional de negociação entre saberes e práticas culturais.
4) Ecológica incluindo: a atenção às condições do ambiente físico/social/emocional
em que vivem os usuários, identificação de conhecimentos e comportamentos dos
usuários que melhorem ou degradem este ambiente, das relações entre ambiente e
processo de saúde-doença e das possibilidades de mudança que podem ser produzidas
neste ambiente.
5) Política incluindo: o reconhecimento de direitos e deveres dos usuários;
colaboração para que os usuários alcancem níveis crescentes de compreensão sobre a
inter-relação das condições de vida e saúde; de compreensão e exercício da
cidadania, do compromisso com o serviço de saúde (da participação, do controle
social).
Por parte do usuário inclui: colocação de suas dificuldades, necessidades,
experiências, emergentes do processo de saúde-doença, agregando aspectos
emocionais, sociais e culturais, individuais e familiares; envolvimento no processo
interacional; participação na análise da sua situação e da construção dos seus planos
terapêuticos; apropriação do direito de participação e controle social.
Esta divisão se deu apenas como um ‘recurso/artifício’ para poder
ressaltar/caracterizar o que se poderia esperar no vínculo, já que no atendimento em
saúde elas se expressam com uma totalidade, de forma interdependente,
indissociadamente. Uma dimensão não pode ser apenas técnica, tem de ser também
ética, tudo tem de ser perpassado pela perspectiva da humanização, o cultural é
também social, e assim por diante.
53
Como a primeira parte da conceituação não revela, deixa aberto o que seja
‘relacionamento estreito (laços)’ busquei resolver o desafio de superar o vazio
propositivo acerca do vínculo, adotando um conceito que incluiu as contribuições dos
autores Pichon-Rivière, Campos e Merhy, embora buscasse manter-me o mais
próximo possível do PSF.
Ou seja, vínculo neste trabalho significa: uma relação especial que se
estabelece e mantém entre o(s) profissional (is) da saúde e o usuário (individual e
coletivo) em função de adotarem uma forma intencionalmente diferenciada de se
relacionarem. Esta relação é produzida pela adoção de atitudes/comportamentos dos
profissionais de saúde frente aos usuários (individual e coletivo) e pelos usuários.
Nestas atitudes/comportamentos identificam-se dimensionalidades referidas
para as relações do PSF. Tem natureza processual, promove intercâmbio positivo das
subjetividades envolvidas. O vínculo objetiva o alcance de finalidades específicas,
referidas pelo PSF e também a fortalecimento da autonomia dos usuários (com relação
à sua saúde, como sujeito, como cidadão). No vínculo, papéis e status profissionais
são considerados/trabalhados a fim de garantir que tanto o profissional quanto o
usuário possam exercer-se como sujeitos na relação.
Desta forma o vínculo se produz como ‘tecnologia do vínculo’, e pode ser
identificada na conduta e comunicação do profissional da saúde e do usuário
(individual e coletivo).
3.5 O VÍNCULO NAS PESQUISAS
Ao efetuar levantamento bibliográfico na área de atenção à saúde em busca de
trabalhos que aplicavam o termo/conceito do vínculo encontrei várias situações:
poucos trabalhos tinham o vínculo como tema central do estudo (ARAÚJO, 2001;
SANTOS, 2001; SCHIMIDT; 2002); alguns trabalhos definiram previamente estudar
o vínculo como uma de suas categorias (MATSUMOTO, 1999; MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2002 b); em alguns trabalhos o vínculo aparece como resultado e aí seu autor
aborda o tema (BETTINELLI, 2002; ALONSO, 2003; FERTONANI, 2003). A
54
revisão apresentada a seguir descreve resumidamente como foram abordadas as
questões do vínculo nestes trabalhos.
3.5.1 EM ARAÚJO
Araújo (2001), médica, estudando o processo terapêutico na Medicina
Homeopática destaca a relevância da construção do espaço relacional, assentado no
vínculo, para a qualidade dos resultados do atendimento. Para a autora quando
construído adequadamente, o espaço relacional permite que pacientes e médicos
compartilhem a experiência do adoecer de forma ampliada, introduz-se a perspectiva
do cuidado e a possibilidade de um projeto de recuperação da saúde.
Araújo (2001) não apresenta uma conceituão de vínculo. Define componentes
do processo interativo terapêutico os quais entende como determinantes para
constituição do vínculo, bem como para seu fortalecimento e sustentação. São eles:
adotar o sujeito sofredor como foco central do cuidado, ao invés de sua doença; olhar
no sentido de enxergar a pessoa; escutar e buscar informações abrangentes e
qualificadas; demonstrar interesse e respeito; disponibilizar tempo para o paciente se
expressar; falar a linguagem do paciente; tocar o corpo do paciente e não
simplesmente apalpá-lo e percuti-lo em busca de sinais de seus órgãos ou sistemas;
agendar encontros periódicos que viabilizem a continuidade do tratamento; construir
um novo entendimento do adoecer favorecendo a desalienação do paciente; formular
um plano terapêutico conjunto que priorize novas pautas de pensar e agir, ao invés da
doença, do remédio e da cura.
O espaço relacional de Araújo (2001) se materializa constituindo uma via de
mão dupla, onde intersubjetividade tem expressão privilegiada, resgata-se o paciente
concebido como sujeito/pessoa em seu processo de adoecer, considerando-o
igualmente em seu contexto social e cultural. O médico é o outro ator da relação,
presente como sujeito/pessoa. Este, ao mediar transformações através de condutas
55
como acolher, escutar, perguntar, dar tempo, valorizar, também se transforma e se
gratifica no processo terapêutico.
Compreender a pessoa doente em sua subjetividade implica em situar a doença
no contexto de vida e no cotidiano dos sujeitos, caracterizar sua maneira peculiar de
adoecer, suas expectativas quanto à terapêutica e possibilidades de cura, influenciada
pelos significados atribuídos à experiência, de acordo com seu imaginário sócio-
cultural (ARAÚJO, 2001).
Compreender o paciente como sujeito adoecido implica, portanto, considerá-
lo em todos os seus aspectos, não somente biológicos e psíquicos, mas
também enquanto porta voz de um conjunto de representações sociais e
culturais e agentes de um processo de interação que pode aproximá-lo,
inclusive, da re-significação dos conceitos de saúde, cura e doença
(ARAÚJO. 2001, p. 36).
Um outro valor destacado por Araújo (2001) é o de que a ampliação do espaço
relacional possibilita condições mais favoráveis para a transmissão de instruções,
esclarecimentos, medidas a adotar, desconhecidas pelo paciente.
Para a referida autora, o aborto do vínculo ocorre quando o paciente percebe
que o médico não valoriza ou não valida suas queixas do ponto de vista do seu saber.
A inexistência de vínculo entre paciente e seu terapeuta representa, portanto, um
fator que pode afastar o paciente, não somente do seu tratamento, mas também, das
práticas de atenção à saúde (ARAÚJO, 2001, p.117).
Araújo (2001) procura diferenciar o processo terapêutico adotado pela
Homeopatia daquele adotado pela Psicanálise, uma vez que ambos trabalham com a
subjetividade. Na Homeopatia ocorre uma aproximação com as técnicas usadas na
Psicanálise, mas a valorização dos sintomas subjetivos do paciente é complementar
para se atingir os objetivos da prática médica, de detectar e corrigir ou eliminar uma
lesão ou distúrbio.
A narrativa da biografia, da história do paciente, dos sentimentos relacionados
ao adoecer, situados num contexto sócio-cultural, constituem-se objeto da escuta no
espaço relacional paciente-médico. A escuta, o questionamento visando obter indícios
56
de singularidades do paciente em sua vivência da enfermidade, ligadas ao contexto não
é
uma questão de maior ou menor paciência, de maior ou menor
disponibilidade para confidências, ou somente uma demonstração de
humanismo ou de compaixão do médico. Trata-se de um traço do exercício
de diagnose e da terapêutica (...) (ARAÚJO, 2001, p. 88).
As perguntas têm também um caráter amplo nesta construção relacional.
Buscam conhecer o paciente, para compreendê-lo. Caso o paciente não revele
espontaneamente aspectos de sua subjetividade em interface com seu adoecer, o
médico buscará conhecê-la através das perguntas.
Assim, se por algum motivo o paciente não se expressa espontaneamente, o
médico pode ‘arrancar o que ele tem guardado dentro de si’. Neste aspecto a
expressão ‘arrancar’ sugere o ato de suscitar algo, provocar e estimular a
manifestação de alguma coisa presa ou contida, evidenciando o caráter
pouco habitual dessas manifestações subjetivas do paciente no espaço de
uma consulta médica (ARAÚJO, 2001, p.145).
Araújo coloca que alguns pacientes demonstram estranheza quando o médico
efetua questões que produzem abordagem de conteúdos de natureza psicológica,
referindo-as como ‘coisa de psicólogo’, ou demonstram estranhamento com essa
conduta do médico .
A comunicação médico-paciente também é permeada por elementos decorrentes
da inserção social de ambos. Pode ser influenciada pela assimetria de poder entre os
sujeitos da relação, uma vez que o médico possui o poder legitimado do saber
científico.
O médico tem a possibilidade de sensibilizar moralmente o paciente,
exercendo sobre ele um papel normativo, como orientador de condutas
consideradas adequadas ou não, colocando seus pontos de vista na
caracterização do que é normal ou patológico.(..) Porém o encontro
relacional médico-paciente, tem a possibilidade de se constituir num espaço
privilegiado de encontro de universos simbólicos distintos (ARAÚJO,
p.110).
57
Já a programação de consultas dá “continuidade ao processo terapêutico
contribuindo para o fortalecimento do vínculo, o que, por sua vez, favorece o
desenvolvimento de uma ‘aliança terapêutica’ entre pacientes e médicos”. A
continuidade do processo interativo permite também que o paciente identifique o
profissional responsável por seu tratamento, como aquele que o conhecendo sabe tratá-
lo, o que favorece as possibilidades curativas do tratamento (ARAÚJO, 2001, p.116).
Ser considerado sujeito/pessoa num espaço relacional oportuniza ao paciente
realizar conexões e ligações, ter novos insights sobre sua doença, suas manifestações,
sua individualidade, sua maneira de ser e de agir. Enfatizam-se, pois, as mudanças de
natureza subjetiva, favorecedoras da reversão de condições de desalienação em
relação às manifestações da enfermidade. “O sucesso do tratamento não seria somente
melhora e cura relacionado à patologia, mas também a recuperação da capacidade
de realizar projetos e vislumbrar possibilidades novas, a busca de autonomia no
processo de adoecimento” (ARAÚJO, 2001, p.128).
Os resultados da construção do espaço relacional são, em síntese, maior
consciência e autonomia do indivíduo enfermo com relação à sua maneira própria de
enfermar-se, favorecendo o surgimento de uma postura pró-ativa frente a um projeto
de saúde.
O tempo para a interação é ainda considerado pela autora como fundamental,
pois sem tempo não há vínculo; é ele que possibilita a realização dos elementos
intersubjetivos.
(...) a experiência que preenche a idéia de tempo é profundamente humana,
justamente, por se referir ao processo de efetivo encontro, capaz de
materializar a idéia de cuidado (p. 171)... Porém não se trata de um tempo
ilimitado, e portanto, deve-se buscar um tempo possível, condicionado pela
necessidade de medicar o paciente e pelo espaço institucional em que ele
estiver inserido.(...) Uma boa relação facilita a obtenção dos sintomas e pode
reduzir este tempo (ARAÚJO, 2001, p.152).
Assim, o sentir-se cuidado na ação terapêutica decorre também da incorporação
de conteúdos de natureza interativa no espaço de relação, em poder personificar um
58
responsável pelo tratamento, em dispor de atenção e tempo para expor-se, em ter seu
sofrimento considerado.
É possível identificar pontos em comum nas proposições de Araújo, com o que
se coloca tanto no PSF como por autores como Campos (1997, 1998, 1999) e Merhy
(1997, 1999, 2003) e Franco e Merhy (2003) . Vemos em Araújo (2001) o objetivo de
humanização, tratando do outro como sujeito na relação, no desenvolvimento de um
processo visando à autonomia, a conscientização, a desalienação do paciente e do
médico, este recuperando o sentido do seu trabalho. Há proposição de ampliação da
clínica, que passa por uma nova postura para o médico e paciente e pelo requerimento
de contextualização dos aspectos sócio culturais emocionais deste. A diferença se dá
por conta da aplicação em Araújo, à relação médico-paciente num campo específico
do cuidado em saúde, a Homeopatia.
3.5.2 EM BETTINELLI
Bettinelli (2002), enfermeiro, construiu em sua tese de doutorado um modelo
teórico sobre solidariedade, fundamentada em dados obtidos junto a enfermeiros,
trabalhadores de instituições hospitalares e sendo o vínculo uma das categorias
emergentes, constitui-se como parte do modelo proposto. Para este autor vínculo é
algo que se integra ao conceito/modelo da solidariedade. Apoiando-se em Ferreira,
Bettinelli (2002, p. 22) afirma que “a solidariedade é um laço mútuo ou vínculo que
estabelece interdependência entre as pessoas”.
A estrutura encontrada por Bettinelli (2002) coincide de forma acentuada com a
apresentada por Araújo (2001). Foi nomeada CONSTRUINDO UMA REDE DE
VÍNCULOS e compôs-se das subcategorias mobilizando processos relacionais e
capacitando-se para uma aproximação respeitosa e dialógica. Estas
composições/conteúdos são reproduzidas a seguir.
A subcategoria mobilizando processos relacionais apresentou como
componentes:
59
PROPORCIONANDO
ABERTURA NO
RELACIONAMENTO
CONVIVENDO
PROXIMAMENTE
COM O PACIENTE
CRIANDO LAÇOS
AFETIVOS COM AS
PESSOAS
CONSTRUINDO
UMA RELAÇÃO DE
CUIDADO
percebendo a individua-
lidade de cada paciente
demonstrando interes-
se e cordialidade desde
a internação do pa-
ciente
dando abertura para
que o paciente conte
seus problemas, suas
coisas
dando espaço para que
o paciente exponha
seus medos em relação
ao tratamento
respeitando as limita-
ções do paciente
interagindo com o pa-
ciente
tratando-o como ser
humano
precisando de intera-
ção na Enfermagem e
na vida
estando com o pa-
ciente com os olhos
fechados mas perce-
bendo tudo
convivendo com o pa-
ciente
aproximando-se do pa-
ciente e de suas coisas
demonstrando maior
sensibilidade na convi-
vência com o paciente
demonstrando rece-
ptividade às angustias
e desejos do paciente
percebendo que a
atuação essencial-
mente técnica dificulta
a relação mais afetiva
criando um ambiente
de comprometimento
mútuo enfermeira/
paciente
inexistindo receitas
modeladoras nas re-
lações do cuidado
fazendo as relações
acontecerem de ma-
neira subjetiva e
individual
considerando as pe-
culiaridades de cada
relação
interagindo intensa-
mente
respeitando a indivi-
dualidade do paciente
construindo relações;
evitando modelos
preferindo a relação à
técnica
ESTABELECENDO
LIMITES NA RELAÇÃO
ACONTECENDO
DISTANCIAMENTO
ENTRE AS PESSOAS
EM RELAÇÃO
EQUACIONANDO
DESENCONTROS NAS
RELAÇÕES
respeitando os limites
de cada um
demonstrando transpa-
rência ao colocar
alguns limites na
relação com o paciente
dando maior liberdade
ao paciente
vivendo a relação como
o encontro de duas
vivências, duas rea-
lidades, duas verdades.
reconhecendo a rela-
ção como uma atitude
do cuidado que tem
alguns limites de
ambas as partes
enfermeira/ paciente)
reconhecendo o
distanciamento entre
as pessoas
compreendendo que
muitos homens não
gostam de ser tocados
(machismo, aspecto
cultural).
havendo distancia-
mento normal entre as
pessoas
existindo problemas de
difícil solução na
relação entre
enfermeiro e paciente
podendo acontecer
desencontros entre
profissional e pacientes
buscando resolver os
problemas existentes
com alguns profis-
sionais
procurando amenizar
conflitos existentes no
setor
entendendo momentos
de revolta e agres-
sividade das pessoas
procurando não se
afastar quando exis-
tirem dificuldades nas
relações
fazendo o possível para
resolver problemas de
toda a natureza com o
paciente e familiares
60
ESTABELECENDO
ESTRATÉGIAS DE
COMUNICAÇÃO COM O
PACIENTE
RESPEITANDO DIFE-
RENÇAS NA RELAÇÃO
COM O OUTRO
UTILIZANDO O DIÁLOGO
COMO ESPAÇO DE
PARTICIPAÇÃO DO
PACIENTE
livrando-se de precon-
ceito
evitando criar falsas
expectativas dispondo-
se a olhar um amigo
valorizando gestos, ex-
pressões faciais, olha-
res e outras manifes-
tações
reconhecendo a situa-
ção e as expectativas
do paciente
aprendendo o maior
número de sinais e
símbolos expressos
pelo paciente
considerando as
diferenças na relação
do cuidado
reconhecendo em cada
pessoa um ser
diferente, ser único e
singular, que precisa
ser respeitado
revelando-se capaz de
receber um não do
paciente
respeitando a opinião
do paciente quanto ao
tratamento
entendendo o silêncio
do paciente
percebendo as opi-
niões e manifestações
do paciente
dando espaço para o
paciente expor suas
vontades
discutindo com o
paciente o que é
melhor para ele e para
o seu tratamento
estimulando o paciente
a falar
dialogando com o
respeito e receptividade
prestando atenção no
interlocutor
deixando o diálogo fluir
Bettinelli (2002, p. 78)
A subcategoria capacitando-se para a aproximação respeitosa e dialógica
apresentou como componentes :
DESENVOLVENDO A
CAPACIDADE DE
APROXIMAÇÃO
TENTANDO FACILITAR A
APROXIMAÇÃO
VIABILIZANDO A
APROXIMAÇÃO COM UM
FIM TERAPÊUTICO
agindo com naturalidade
observando o paciente em todas
as suas dimensões
se aproximado do paciente de
várias maneiras e não só quando
for preciso fazer algo
preocupando-se com a primeira
impressão do paciente
cultivando atitudes que promo-
vam aproximação
demonstrando vontade de esta-
belecer uma relação
utilizando empatia no convívio
com as pessoas
procurando conhecer quem é a
pessoa que está sendo cuidada
aproximando-se para saber
coisas sobre a vida do paciente
introduzindo a relação de
maneira descontraída
permanecendo mais tempo ao
lado do paciente para facilitar a
relação
utilizando a criatividade para
facilitar a relação com o paciente
considerando a aproximação
como parte do cuidado
demonstrando experiência e boa
intenção na aproximação
levando o paciente a sentir-se
participante do processo de
cuidado
observando tudo o que possa
guiar e conduzir à ação
tornando a aproximação um
ponto preponderante na
reabilitação do paciente
considerando a aproximação
como uma tecnologia com
finalidade terapêutica
61
UTILIZANDO AS MAÕS
COMO INSTRUMENTO
TERAPÊUTICO
RECONHECENDO O
VALOR DO TOQUE
REFLETINDO SOBRE A
IMPORTÂNCIA DAS MÃOS
utilizando as mãos como forma
de contato
fazendo carinho
articulando gestos
transmitindo calor humano
dando a mão com um elo
perfeito de fazer contato com o
outro
acariciando terapeuticamente
acariciando com delicadeza
trocando energia através do
toque
tocando como uma forma de
aproximação
tocando para quebrar o gelo da
relação
percebendo o significado do
toque
trocando energia com o paciente
vendo no toque um elemento
essencial, primordial na relação
valorizando o uso e
funcionalidade das mãos
utilizando as mãos como
instrumento de trabalho
Bettinelli (2002, p. 79)
O que se pode perceber, através de Araújo (2001) e Bettinelli (2000), ambos
pesquisadores da área da saúde, embora de categorias profissionais diferentes, médico
e enfermeiro, que há vários pontos em comum quanto aos elementos constituitivos de
uma relação promotora de vínculo. Em Bettinelli (2002) assim como em Araújo
(2001) se delineiam papéis pró-ativos para os agentes envolvidos, um modo de se
conduzir do profissional baseado em metas a alcançar e uma intencionalidade
‘profissional’ para a interação.
Destaca-se que em Bettinelli (2002) a menção à necessidade de estabelecer
limites. Tanto em Araújo como em Bettinelli (2002) verifica-se a aceitação e
valorização do toque. Em Bettinelli há também a possibilidade da expressão de
carinho ao paciente, o que poderia ser explicado em função de uma diferença de
proximidade/convivência médica e da enfermagem com os clientes, normalmente
maior na enfermagem. Assim tanto Araújo (2001) como Bettinelli (2000), detalham
um certo ‘conjunto de agires para a produção de algo, evidenciando que se constituem
numa ‘tecnologia leve’ (das relações), conforme proposto por Merhy (1997).
62
3.5.3 EM SANTOS
Santos (2001), psicóloga, realizou um estudo sobre a relação entre os
trabalhadores de uma ESF/PSF e usuários de um serviço de saúde, num município de
São Paulo, focalizando a participação da emoção, na constituição do vínculo. Neste
serviço, profissionais da saúde da área da psiquiatria e psicologia (designados como
da área da saúde mental) integravam a ESF básica.
Para a autora “vincular-se é estar emocionalmente ligado a algo ou a alguém,
sendo que a emoção qualifica este vínculo onde quer que ele aconteça”, ou seja, é a
emoção que permeia e dá qualidade ao vínculo (SANTOS, 2001, p. 6).
Santos (2001) percebeu na prática que a abordagem dos usrios se dava de
forma dicotomizada, que se efetuava a cisão corpo/mente, isto evidenciado na atitude
dos profissionais quando dividiam a clientela e seus problemas. Havia aqueles que
seriam atendidos pelo grupo de profissionais da saúde mental (as pessoas que traziam
uma queixa ou um sintoma tidos com problemas psíquicos, tais como dificuldade de
aprendizagem em crianças, problemas de funcionamento familiar, etc) e os que seriam
atendidos pelos demais profissionais (médicos, enfermeiros, dentistas), por
trabalharem com a saúde física.
Para Santos (2001, p. 15)
mesmo considerando o limite imposto pela estrutura da instituição saúde
pública, as pessoas que recorrem a um serviço de saúde são inteiras, pedem
ajuda para um momento inteiro de sua existência, que pode estar sendo
presentificado por uma dor, uma doença, um desespero, mas que
absolutamente só podem ser compreendidos levando-se em conta todos os
aspectos que fazem parte de suas vidas: levando-se em conta todos os
aspectos sociais, políticos, físicos, emocionais.
Quando se faz um corte, deixam-se muitos outros aspectos de fora da análise e
intervenção. Este distanciamento existe como resultado do paradigma positivista, que
permeia a relação profissional com o paciente, “o qual valoriza a importância da
63
neutralidade do cientista, o afastamento do seu objeto de estudo e a análise
fracionada da realidade como forma de entender o todo” (SANTOS, 2001, p.15).
A autora citada coloca que foi pensada outra lógica de atenção para o PSF, na
qual o profissional de saúde inter-relaciona o contexto da história das pessoas com os
cuidados de saúde física e saúde mental. Mas isto não se dava na prática, nem mesmo
existindo uma equipe que dispunha de profissionais da área da saúde mental. A autora
também evidenciou a dificuldade dos técnicos de lidarem com sentimentos. Explicou
isto em função de suas relações de trabalho estarem sempre sendo traduzidas como
rendimento e competência profissional. Nos serviços o vínculo é visto como algo
alicerçado em bons sentimentos, marcado pela positividade mas (...) “toda e qualquer
emoção qualifica a relação, seja ela agradável ou não (...).De qualquer forma é
emoção que vai dando um significado e um valor subjetivo ao vínculo, passando uma
mensagem que mobiliza imediatamente para uma ação, incluindo a de distanciar-se,
ou de brigar, etc” (SANTOS, 2001, p.59).
A proximidade traz tanto soluções como conflitos. Destes surgem as
contradições, provocando mudanças desejáveis como evitar padronização de ações, a
construção de um sistema de saúde flexível e democrático que propicie a
proximidade entre os diferentes níveis de hierarquia, “do contrário a experiência
rumará, mais uma vez, para a inviabilidade” (SANTOS, 2001, p. 59)
Para Santos (2001), quando as pessoas formam vínculos, se ajudam, se
interessam umas pelas outras, tem a possibilidade de se reconhecerem enquanto
sujeitos oprimidos, em um sistema político que não favorece a vida.
As contribuições de Santos (2001) auxiliam na reflexão sobre dois pontos em
especial, quais sejam: a presença de novos especialistas nas equipes, dotados de
saberes capazes de ampliar a abordagem nas questões psico-sociais, pode gerar efeitos
indesejáveis como a menor responsabilização, por parte dos demais membros das
equipes, frente a estas questões. Ou os demais integrantes das ESF, ao perceberem que
agora os usuários estão atendidos por ‘técnicos qualificados’ poderiam adotar condutas
que reforçariam ainda mais a dicotomização dos usuários, parcelando ainda mais as
ações de saúde. Assim a expansão da equipe não garante por si só a integralidade e
64
contextualização pretendida pelo PSF, sendo necessários também mecanismos
favorecedores da integração.
A outra reflexão suscitada pelo trabalho de Santos (2001) é a ênfase no papel da
emoção e dos sentimentos como veículos do vínculo. Nas referências do PSF se indica
a construção de relações revestidas de um certo caráter técnico, objetivado, do tipo
compromisso e responsabilidade. Evitam-se referências aos sentimentos que poderão
estar envolvidos na construção das relações, aqueles que tem potencial para reforçá-los
(tipo amizade, gostar, simpatizar) como aqueles que tem potencial de produzir
distanciamentos entre profissionais e usuários como no caso de medo, raiva,
impotência, desprezo pelo encontro do ‘diferente’.
3.5.4 EM MATSUMOTO
Matsumoto (1999), enfermeira, estudando a operacionalização do Plano de
Atendimento à Saúde (PAS) na Unidade Básica de Saúde Ermelino Matarazzo/SP,
em sua dissertação de mestrado, enfoca o tema do vínculo.
O PAS se caracterizou como uma experiência de gestão dos serviços de
saúde através de um sistema de cooperativa, implantado pela prefeitura do
Município de São Paulo em 1996. Adotou como princípios básicos a regionalização
do atendimento, a administração e operação das unidades de saúde por gestão
contratada.
Matsumoto (1999) adotou como categorias temáticas, para analisar a
operacionalização do PAS, as provenientes da Taxonomia de Necessidades de Saúde
baseada em Stoz, quais sejam: necessidade de ter boas condições de vida, necessidade
de ter acesso garantido a todas as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida,
necessidade de ter vínculo com um profissional ou equipe e necessidade de adquirir
autonomia no modo de andar na vida.
65
Matsumoto (1999, p. 106) afirma, apoiada nos autores Campos, Schraiber e
Cecílio, que o vínculo do usuário do serviço de saúde com o profissional “é capaz de
transformar a prática diária, valorizando a construção dos sujeitos autônomos”. O
restabelecimento da arte da fala e escuta, existência de profissionais que possam ser
referenciados pelo sujeitos individuais e coletivos são requisitos para que o vínculo se
estabeleça. A autora correlaciona vínculo à direito legal, apoiando-se na lei
estadual/SP 10.241 de 17/03/99, ou seja, o paciente tem direito de receber:
atendimento digno, respeitoso, atencioso e seguro; ter resguardado seus segredos ou
questões que envolvam sigilo; ter respeitado sua privacidade; ser identificado e
tratado pelo nome ou sobrenome; ter como identificar pessoas que lhe prestam
assistência (nomes em crachás por exemplo).
Quando trata da categoria ‘necessidade de ter vínculo com um profissional ou
equipe’ a autora conclui que “o serviço não está organizado para criar vínculos entre
profissionais e usuários, pois estes são pressionados pela grande demanda
(MATSUMOTO, 1999, p. 109). Considera que enfermeiras e assistentes sociais
conhecem mais seus pacientes, sendo capazes de identificá-los e dar-lhes apoio frente
a dificuldades, conseguindo estabelecer algum vínculo através de grupos
programáticos (de tuberculose, de hipertensão, por exemplo).
3.5.5 EM SCHIMITH
Schimith (2002), enfermeira, investigou a produção de acolhimento e vínculo
com usuários no contexto da micropolítica de trabalho de membros de uma equipe de
PSF (médico, enfermeira, auxiliares de enfermagem) de uma unidade de saúde de um
município do Estado do Rio Grande do Sul. Baseou-se em autores da Saúde Coletiva,
especialmente Merhy, tanto para definir micropolítica do processo de trabalho em
saúde, como para definir acolhimento e vínculo. Schimith (2002) refere-se ao vínculo
como sendo uma ligação mais estável e duradoura com os usuários, entendidos como
sujeitos, com finalidade básica de ampliar a eficácia das ações de saúde (aumentar a
produção de cura, promoção e prevenção) e também promover a participação do
66
usuário durante prestação do serviço através do desenvolvimento da sua autonomia. O
aumento da autonomia dos usuários decorre do melhor entendimento sobre seu corpo,
sua doença e de suas relações com o meio social.
Na tentativa de responder a pergunta: acolhimento e vínculo no PSF: realidade
ou desejo? Schimith (2002) constatou que não poderia considerar as alternativas como
excludentes, já que tanto realidade quanto desejo, ou nenhuma das alternativas, foram
constatadas no espaço intercessor entre trabalhador/usuário.
Observou que a produção de vínculo se relacionava ao desenvolvimento de
atividades clínicas e a população referiu estar vinculada ao médico. Encontrou lacunas
na abertura do serviço para a demanda, na responsabilização pelos problemas de saúde
da população e no estímulo à autonomia do usuário. Schimith (2002) coloca que em
várias situações ocorreu negativa de atendimento quando a demanda era para o
médico. A enfermeira também não era chamada para verificar se havia necessidade ou
não de consulta, mesmo quando estava presente na unidade de saúde. Nestes casos a
decisão era efetuada pela auxiliar de enfermagem.
Segundo Schimith (2002), Schimith e Lima (2004), ocorria uma divisão na
organização do trabalho onde o médico efetuava atendimento clínico, apoiado pelas
auxiliares e a enfermeira atuava na promoção e prevenção através de atividade
educativa e atividades intersetoriais. Para as autoras esta forma de trabalho era
responsável pelas dificuldades de acesso da população ao serviço, bem como pela
vinculação dos usuários somente com o médico. E, o trabalho da enfermeira não
evidenciava a integralidade das ações pretendida no PSF já que a mesma
desconsiderava o trabalho de garantir à população o acesso à medicação, exames
complementares, atendimentos, encaminhamentos, optando prioritariamente por ações
preventivas e promotoras ou seja eliminando o atendimento clínico ampliado. A
enfermeira, na maioria das vezes, também não esteve presente nas ações desenvolvidas
no interior da unidade de saúde, acarretando delegação destas às auxiliares de
enfermagem. Por outro lado a enfermeira desempenhava um papel previsto no PSF, de
articulação entre os diferentes setores da comunidade, organizando campanhas ou
atividade definidas pela equipe com outras instituições.
67
A enfermeira referiu desejo de aproximar-se mais da população e justificou com
falta de tempo a não realização desse desejo. Schimith (2002) analisando a
composição da semana normal de trabalho da enfermeira considerou que tal
justificativa não cabia, pois em alguns turnos não havia uma agenda definida ou a
enfermeira executava algumas atividades sem um objetivo claro. Questionou se
realmente a enfermeira desejava mudar seu modo de atuação.
Schimith (2002) e Schimith e Lima (2004), consideraram haver predominância
de uma visão do usuário do serviço como objeto, desconsiderado em suas necessidades
e cidadania. Em algumas situações participou no planejamento de algumas ações, no
entanto, suas necessidades não eram consideradas e ouvidas integralmente. Os
profissionais foram em certos momentos criativos, responsabilizaram-se pelas
necessidades dos usuários, em outros, suas ações foram capturadas pelo trabalho
morto, abandonando o objeto de trabalho à própria sorte.
Como recomendações as autoras propõem que o vínculo deva ser exercido por
toda a equipe de saúde para que seja possível atender de fato as demandas e
necessidades dos usuários. Recomendam que a enfermeira repense seu trabalho e o
torne mais voltado para a clínica, valorizando o acolhimento e o vínculo com o usuário
do serviço e se transforme em um profissional com maior resolutividade.
Consideraram também que a presença da enfermeira na recepção ou na retaguarda para
as auxiliares de enfermagem, qualificaria o atendimento ao usuário do serviço.
Analisando o trabalho de Schimith (2002) e Schimith e Lima (2004), verifiquei
que as autoras abordaram com maior profundidade o estudo do acolhimento e seu
impacto sobre o acesso e o tipo de resposta oferecida aos usuários, sendo tal condição
bastante documentada. Quanto ao tema do vínculo as autoras procuraram evidenciar
os investimentos efetuados pelos profissionais que ultrapassassem o núcleo
queixa/prescrição, ou seja a vigência de aspectos favorecedores da autonomia dos
usuários e da participação destes nas decisões que lhe diziam respeito. Considerei que
houve uma forte valorização da atividade clínica, o que propiciou a conclusão que o
trabalho da enfermeira não gerou vínculo. Mas como a enfermeira mantinha-se em
contato com a comunidade, através das atividades educativas e desenvolvendo ações
68
intersetoriais, certamente estabeleceu relações, e estas não foram
pensadas/caracterizadas em seu potencial/concretude de construção de vínculo.
3.5.6 PARA O MISTÉRIO DA SAÚDE
No relatório produzido pelo MS, de “Avaliação da implementação do
Programa Saúde da Família em dez grandes centros urbanos” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2002 b) são referidos alguns aspectos como promotores potenciais da criação
de vínculos entre ESF e comunidade adscrita quais sejam: atenção à saúde de
qualidade, oportuna, integral, resolutiva e contínua; permanência dos integrantes nas
ESF; percepção dos integrantes das ESF da importância de criação e manutenção de
vínculos com a comunidade; conhecimento das ESF sobre os problemas da
comunidade; Conselho Local de Saúde atuante; e possibilidade dos usuários
apresentarem sugestões e reclamações.
Os dados foram colhidos junto a profissionais de saúde de nível superior (NS),
auxiliares de enfermagem, ACS, gestores e famílias.
As famílias avaliaram, por exemplo, a responsabilidade das equipes em relação
aos moradores do bairro, conhecimento técnico para intervir e facilidades para obter
atendimento.
Os profissionais apresentaram suas percepções acerca da existência de vínculo,
relacionaram vínculo à conhecimento da comunidade e às atividades que percebem ser
valorizadas pelas famílias. No quadro abaixo, constante do relatório citado,
demonstram-se os resultados, ressaltando-se que modifiquei a ordem de apresentação
constante do documento oficial, pois preferi colocar em seqüência as questões dos
profissionais e das famílias; no documento original aparecem intercalados.
69
Percepção dos integrantes das ESF sobre indicadores de vínculo e comparação das
famílias entre serviços prestados na USF e nas unidades básicas (%), oito grandes centros
urbanos, Brasil, 2002
Indicadores
Camaragibe Palmas V. da
Conquista
Vitória Aracaju Goiânia Manaus Brasília
Profissionais de NS
consideram satisfatórios:
estabelecimento de vínculos
com a população da área
92,5 88,5 79,4 71,4 70,2 93,6 78,6 81,1
Profissionais de NS percebem
que a população valoriza
muito: ações desenvolvidas
por meio de vistas
domiciliares de ACS e outros
profissionais
94,3 76,9 90,6 77,8 83,0 85,2 78,6 78,4
Profissionais de NS percebem
que a população valoriza
muito:
a realização de grupos para
acompanhamento e
orientação sobre riscos de
promoção da saúde
67,9 53,8 54,7 49,2 56,4 73,4 37,5 64,9
Famílias consideram
melhores a ESF do que as
UBS: responsabilidade em
relação aos moradores do
bairro
84,6 61,9 75,0 54,0 81,0 39,4 59,7 57,8
Família considera melhor a
ESF do que as UBS:
conhecimento técnico para
interferir nos problemas
76,9
52,3 75,0 54,0 66,8 30,3 46,2 33,1
Famílias consideram
melhores a ESF do que as
UBS: facilidade para obter
consulta
76,9 57,2 50,0 56,6 66,7 72,8 53,7 56,3
Fonte NUPES/DAPS/ENSP/Fiocruz / Relatório de Avaliação da Implementação do Programa Saúde da
Família em dez grandes centros urbanos: síntese dos principais resultados (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b,
p. 201).
Foram ainda avaliadas atividades realizadas pelos integrantes das ESF, a
existência ou não de problemas no atendimento, aspectos positivos e negativos do
PSF. Também foram levantadas propostas de manutenção ou modificação das
atividades realizadas.
Na avaliação de atividades aparecem os enfermeiros das ESF desempenhando
pequeno papel assistencial junto aos usuários. Em Goiânia e em Brasília esses
profissionais realizaram menos de 7% dos atendimentos e em Aracaju e Manaus,
realizaram 16% e 15% das ações assistenciais.
70
Na maior parte dos municípios os enfermeiros ficaram em terceiro lugar na
ordem de profissionais que mais atenderam as famílias, exceto em
Camaragibe e Brasília onde ficaram em quarto lugar, suplantados pelos
auxiliares de enfermagem. Isso sugere ou um pequeno número desses
profissionais de enfermagem ou um baixo papel assistencial desse
profissional (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b, p. 172).
Em todos os municípios, exceto Goiânia, a maioria das pessoas (83% ou mais)
conhecia o profissional que realizou o atendimento. Em Goiânia, município em que a
maior parte das famílias tinha entrado em contato, para atendimento, com o médico
(65%) cerca de 62% dos entrevistados informaram conhecer o integrante da ESF que
prestou a atividade assistencial.
A satisfação das famílias pesquisadas com o PSF foi superior a 70% em todos
os municípios, exceto Goiânia (66%), atingindo seu máximo em Camaragibe (78%).
Os aspectos positivos mencionados foram, dentre outros: facilidade de marcar e obter
consulta ou atendimento quando necessário, tempo de espera reduzido, boa qualidade
do atendimento, comportamento do profissional respeitoso, atencioso, educado.
Mais de 70% das famílias pesquisadas, exceto em Palmas e Brasília,
consideraram que o profissional que prestou o atendimento demonstrara ter
conhecimentos para resolver o problema de saúde apresentado pelo usuário. Em
Palmas, cidade em que a maior parte das famílias recebera atendimento dos ACS
(47%) e médicos (33%), foi observado o menor percentual de avaliação positiva
quanto à capacidade do profissional de resolver o problema apresentado (59%), assim
como em Brasília (61%) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b, p. 171).
Dentre os problemas que se referem aos profissionais apontados no relatório
mencionam-se: profissionais pouco atenciosos, horários de atendimento inadequados
o que incluía dificuldade para marcar a consulta e longo tempo de espera para receber
a consulta, falta de qualidade no atendimento prestado, englobando não examinou
adequadamente, contato muito rápido e não sabia resolver o problema, não forneceu
informações sobre o estado de saúde e outros. O tipo de problema mais mencionado
pelas famílias foi falta de qualidade (77), ocorrido principalmente com os médicos
(45). Em segundo lugar, foi mencionado que os profissionais foram pouco atenciosos
(59), tipo de problema que também ocorreu mais com os médicos (25), mas também
71
em número expressivo com os auxiliares de enfermagem (21). As famílias
mencionaram também horários inadequados envolvendo dificuldades no acesso (45),
preponderantemente com enfermeiros (14), mas também com auxiliares de
enfermagem (13) e médicos (12) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b, p.183).
Entre 12% e 15% das famílias entrevistadas em Camaragibe, Goiânia e Manaus
mencionaram que o que menos gostavam no PSF eram os aspectos relacionados com
os profissionais de nível superior. A falta de humanização foi referida principalmente
em Vitória da Conquista, 11% e Aracaju, 12% (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b,
p.207).
Embora a maioria das famílias pesquisadas afirmasse estar satisfeita com o
PSF, mais da metade e até 76%, em Vitória da Conquista, opinou que deveriam ser
realizadas modificações no Programa, prevalecendo propostas de mudança
relacionadas com os profissionais das ESF e no acesso ao atendimento. As mudanças
relacionadas com os profissionais das ESF envolviam: aumento do número de
profissionais, inclusão de especialistas na ESF (ginecologista, pediatria), mudanças nas
atividades realizadas pelos ACS (ação mais eficaz como aferir pressão, fazer curativos
e outros procedimentos simples), humanizar o atendimento e resolutividade (deveria
resolver realmente o problema, curar as doenças das pessoas).
Em relação ao acesso, as propostas referiram-se à sua ampliação, à marcação de
consultas e encaminhamentos, aos medicamentos e exames laboratoriais e aos serviços
de emergência. Em todos os municípios houve propostas relacionadas com os
profissionais de nível superior das ESF, dentre elas, a inclusão de médicos
especialistas, de outros profissionais (nutricionista e psicólogo) e ampliação da
abrangência de atuação dos profissionais existentes (atendimento odontológico de
adultos).
O que se observa na avaliação apresentada neste relatório é que apesar de
admitir que a avaliação do vínculo se faz de forma qualitativa, os dados foram
apresentados essencialmente na forma quantitativa. E referindo-se à questões como
acesso, se o atendimento é bom, se é resolutivo, do que gostam, do que não gostam, o
que acham importante, os dados não permitem identificar se estão fazendo referência a
um novo modelo de assistência, pautado numa nova tecnologia de relações, dado que
72
as mesmas não se descortinam. Parecem referir-se às relações que se processam no
atendimento pautado no modelo biomédico.
3.5.7 EM FERTONANI
Fertonani (2003), enfermeira, desenvolveu um estudo com onze
trabalhadores de duas ESF de uma unidade de saúde do Maringá-PR, com o intuito
de caracterizar os desafios de construir um novo modelo assistencial em saúde,
analisando as condições de trabalho, as facilidades e dificuldades na implementação
das diretrizes propostas pelo PSF.
O processo de trabalho do grupo mencionado se organizava
predominantemente no modelo biomédico, desenvolvendo ações centradas na
doença e na figura do médico.
Nas relações ‘sujeitos cuidados e sujeitos trabalhadores’ as dificuldades
identificadas decorriam da existência de conflito de entendimento e de expectativa
entre os envolvidos, da existência de pessoas muito exigentes, que atribuíam a
equipe o ‘poder’ e a obrigação de resolver vários problemas, como por exemplo, os
relacionados a consultas com especialistas e medicamentos e do descrédito no PSF
e no sistema de saúde.
Na organização do trabalho foi considerado como dificuldade o excesso de
coisas a fazer, principalmente as burocráticas, que consumiam tempo, e também o
espaço tomado pelo trabalho do ‘posto’. Apareceu ainda a falta de planejamento das
ações, de trabalho interdisciplinar e de integração entre os membros das equipes.
O tema do vínculo aparece como uma das facilidades propiciada pelo PSF.
Os trabalhadores referiram que o vínculo (elo) é alcançado quando se conquista
confiança e esta facilita conhecer aspectos particulares das situações vividas pelos
usuários e o desenvolvimento de orientações pertinentes. Como indicadores de
vínculo foram referenciados: o ser bem recebido, ser aceito, ser procurado, ser
73
escutado. O vínculo foi valorizado como possibilidade de humanização da
assistência, pela escuta dos sentimentos e necessidades dos usuários,
influenciando na mudança do modelo assistencial.
3.5.8 EM ALONSO
Alonso (2003), enfermeira, investigando como se estabelece o processo
relacional entre integrantes de uma ESF de uma unidade de saúde, ligada à rede básica
de saúde, de um município do Estado de Santa Catarina e famílias, na situação
assistencial domiciliar, também evidencia questões relacionadas ao vínculo, no
contexto do PSF.
A equipe estudada por Alonso (2003) estava composta por uma médica, uma
enfermeira, uma auxiliar de enfermagem e seis agentes de saúde. As atividades
assistenciais no domicílio eram predominantemente desenvolvidas pelos ACS.
Alonso (2003) caracteriza princípios a serem alcançados no vínculo
profissional/institucional pelos profissionais da saúde e família quais sejam: da ética,
confiança, sensibilidade, co-responsabilidade, competência, resolutividade e
solidariedade. Esse vínculo se constrói quando os membros da ESF atendem requisitos
tais como: 1) reconhecem a família como cuidadora que exerce sua autonomia, que
possui um saber e um fazer a serem respeitados e valorizados; 2) reconhecem quando e
como devem intervir. Ou, devem intervir quando a família não consegue resultados
favoráveis e/ou pede ajuda. Neste caso os membros da ESF devem estar prontamente
disponíveis, terem uma escuta e observação sensível e serem eficazes/resolutivos.
Para Alonso (2003) o vínculo entre equipe e família se estabelece
processualmente, frente à entrada dos integrantes da ESF no domicílio. Em função
deste adentramento emergem responsabilidades, requerem-se relações de confiança,
envolvimento, comprometimento mútuo e produção de certa proteção da ESF para
com a família, facilitando seu acesso aos caminhos da assistência.
Alonso (2003, p. 234) menciona ainda que:
74
os vínculos entre família e equipe de saúde são construídos, passo a passo,
ao longo da interação que se dá ao longo de todo o processo assistencial. Isto
é um fenômeno que não pode ser delimitado no tempo e no espaço, variando
em intensidade e durabilidade, por ser extremamente susceptível as
intercorrências contextuais.
Para a autora a confiança deve ser gerada através da responsabilidade e abertura
para o outro e esta por sua vez é um dispositivo de proteção no campo da ética. As
relações construídas entre família e equipe estão, por um lado, em conformidade com a
orientação pessoal/social dos atores, e de outro lado, pela sua natureza institucional.
Assim pessoas reais também respondem pela confiança que o sujeito abstrato, o
institucional, produz. “Esta dualidade relacional é extremante, pois o nível de
confiabilidade e credibilidade no plano pessoal pode ser imensamente afetado pela
falta de credibilidade e confiabilidade na dimensão institucional” (ALONSO, 2003, p.
216).
Em seus dados Alonso (2003), evidenciou que a insuficiência de conhecimento
recíproco, acarretou repercussões negativas tanto na comunicação, como na crença das
famílias sobre uma ajuda efetiva e comprometida por parte das equipes/PSF. Para a
autora, as famílias conhecem apenas parcialmente os papéis dos membros da equipe,
além de inexistir uma compreensão clara, por parte da mesma, dos objetivos
assistenciais. Também identificou que havia maior tendência para o estabelecimento
do um convívio social, potencialmente invasor da intimidade familiar, ineficaz no
sentido de provocar um impacto positivo nos cuidados em saúde. Tal convívio social
também estaria revestido de um caráter repetitivo, rotineiro, já que destituído de
elementos importantes do processo comunicativo e da resolutividade
As famílias requisitaram atenção profissional sensível, comunicativa e eficaz
quando recebiam o ACS, conversavam sobre saúde, sobre os problemas, sobre suas
relações e encaminhamentos possíveis e eficazes. O ACS por sua vez, além de não
decodificar tais necessidades, não esteve, do ponto de vista institucional, dirigido, nem
respaldado, nem preparado para tal.
Para Alonso (2003), a convivência das famílias com o ACS no domicílio cria
expectativas de uma melhor assistência. Mas os ACS, que representam a equipe e o
75
sistema de saúde, vivenciam dificuldades como isolamento, já que os profissionais que
atuavam na unidade de saúde tinham pouca disponibilidade para acompanhá-los nas
visitas ao domicílio, para discutir a problemática das famílias e para subsidiá-los
frente às dificuldades operacionais deste trabalho.
O ACS percebe que está despreparado tanto para intervir em grande número de
doenças, como também frente a questões de prevenção, e aqueles decorrentes da
intimidade familiar. Às vezes tenta suprir as lacunas do sistema, adotando condutas
próprias, de filantropia e paternalistas, buscando tanto responder com sentimentos
humanitários, gerados pelas situações vivenciadas pelas famílias, como minimizar
conflitos éticos.
Para Alonso (2003) as configurações de relações como convívio social, se dão
em função da confusão e falta de nitidez nos objetivos assistenciais, produzindo daí a
desfiguração do processo assistencial. No ajudar a pessoa por amizade, no implantar
ações que reforçam carências, necessidades, incapacidades, criam-se relações de
dependência que se subtraem às potencialidades das famílias firmarem-se como
'sujeitos de si'.
O relacionamento também pode assumir outro extremo, do autoritarismo,
pautado num jogo de condições, permissões e exigências, por parte dos ACS e também
por parte das famílias que acompanham a vida do ACS na comunidade.
Manter a confidencialidade é um desafio ético constante nessas relações, dado
que os membros das ESF acabam dispondo de uma gama variada de informações,
muitas vezes sobre a intimidade familiar, sem conexão direta e/ou clara com a saúde.
Conflitos, sofrimentos, indecisões sobre o que e com quem compartilhar são
conseqüências dos dilemas éticos vivenciados principalmente pelos ACS. Já as
famílias estão atentas para a capacidade de confidencialidade dos membros das ESF,
suas possibilidades de estabelecer relações alicerçadas ou não na confiança.
A falta de estrutura adequada para responder aos problemas de saúde das
famílias em nível local, principalmente aqueles que demandam resoluções de maior
complexidade, abala os vínculos estabelecidos, por fragilizarem as relações de
confiança entre ESF, em especial no ACS. Retornar ao domicílio com a resposta
negativa frente demandas geradas em função da presença institucional representada,
76
gera desgaste no relacionamento e necessidade de contínuo re-começo e re-construção
do vínculo (ALONSO, 2003).
Alonso (2003) também reflete sobre o problema da ausência de um projeto
assistencial coletivo da equipe junto às famílias. Em não se construindo uma visão
conjunta do contexto da saúde da família, também não se torna possível a integração, a
continuidade, a definição de papéis no e do processo assistencial. Tais condições
repercutem na construção e manutenção do vínculo profissional, pois interferem na
resolutividade das ações, fragilizam as relações, afetando a confiança, necessária ao
trabalho assistencial.
Há outras condições negativas no PSF, negativas para o estabelecimento do
vínculo no PSF como cansaço e estresse ligados às condições de trabalho,
remanejamentos constantes, desmotivação ligada à baixos salários, proposição de
assistência sem perspectiva de resolutividade favorável, especialmente frente à
problemas de maior complexidade técnica ou especializada. Tanto os ACS como os
demais membros da ESF desejam que a Instituição os ouça, valorize, treine e consulte
mais, além de lhes oferecer oportunidades de preparar-se melhor para o cuidado das
famílias.
Alonso (2003) aponta, com relação ao processo de vinculação, o risco da
apropriação do viver familiar, normatizando-o, disciplinando-o, controlando hábitos, e
até o seu pensar, o que acabaria por mutilar sua autonomia, fragilizar seu potencial
para o cuidado de si. O vínculo social aproxima as pessoas, facilita a passagem do
estranho para o familiar, facilita a comunicação emocional e a abertura. Porém para o
PSF o que se requer é um avanço para o vínculo profissional/institucional, que além
do pessoal/social incorpore a identificação, discussão, encaminhamentos e resolução
das questões da saúde da família.
Para que o encontro assistencial se produza com qualidade os participantes
necessitam de vontade, aderência, e abertura. Nestes termos a família necessita ser
preparada para receber a presença pessoal e profissional da equipe, e também
compreender quem são e a quem representam as pessoas que batem à sua porta, o que
é esperado delas, o que ela espera daqueles que a visitam. Nestes termos a família
poderá se inserir de maneira esclarecida, negociada e participativa no PSF.
77
No trabalho de Alonso (2003) se destaca a importância da conexão entre
vínculo no PSF e ética. Como estudou as relações no ambiente familiar, onde
emergem ‘coisas’ da família em interface com seus problemas de saúde, além de
necessidades e proposições assistenciais, a questão ética se coloca de forma
contundente. Também se faz desafio na e para construção do vínculo no PSF onde
muitas das relações se dão no espaço e viver dos usuários/famílias. Um outro destaque
não visualizado nos trabalhos anteriores é de caracterização de outras naturezas e
mecanismos de vinculação da equipe, de paternalismo e disciplinamento, em especial
quando falta preparo dos envolvidos, respaldo e resolutividade institucional. Santos
(2001) apontou para a emoção e sentimentos envolvidos no estabelecimento de
vínculo, Alonso destaca o papel da sensibilidade. Santos (2001) destaca o risco da
acentuação da dicotomia no cuidado e Alonso (2003) aponta para o risco do
desaparecimento do objetivo profissional, quando o que se constrói mantém-se como
sociabilidade. Como pontos em comum com Araújo, Bettinelli, Campos, Merhy,
Alonso, destaca-se a importância da condição do usuário de estar consciente, de ser
informado, de participar, de ser sujeito na relação e além do destaque da
intencionalidade profissional do vínculo.
Concluindo esta revisão foi possível verificar que os autores dão uma ‘fácies’
ao vínculo, conformam um modo de alcançá-lo e de reconhecê-lo. Alguns trabalhos
apontam certas dificuldades para o estabelecimento de vínculo, mas estas não
impedem que se reconheça que estejam sendo formados. Por exemplo, para
Matsumoto (1999) as enfermeiras e as assistentes sociais têm maior facilidade de
estabelecer vínculo já que desenvolvem seu trabalho sem pressão de demanda, tem
maior facilidade de conhecer as pessoas e suas dificuldades. Schimidt (2002) e
também o MS no Relatório de “Avaliação da implementação do Programa Saúde
da Família em dez grandes centros urbanos” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, b)
referem que quem mais estabelece vínculo são os médicos, em função da sua atividade
clínica. Santos (2001) dá ênfase à emoção para qualificar o vínculo enquanto Alonso
(2003) enfatiza a natureza profissional do vínculo. Em Araújo (2001) e Bettinelli
78
(2002) é possível reconhecer a tecnologia de relações favorecedoras do vínculo o que
não acontece em Fertonani (2003) por exemplo.
Considero que essas diferenças refletem a necessidade da produção de um
corpo teórico mais denso e aplicável ao entendimento conceitual do vínculo, além
daqueles que se relacionam a sua visualização e sua concretização no atendimento em
saúde.
79
CAPÍTULO 4
BASES METODOLÓGICAS
Neste capítulo apresento a forma e a natureza da abordagem da investigação, os
aspectos teóricos do método que orientaram as reflexões e análise de estabelecimento
do vínculo entre médicos e enfermeiras num serviço de saúde com PSF implantado,
qual seja o dialético. Apresenta também: a escolha do local e dos participantes, a
entrada no campo, os procedimentos de coleta dos dados, os cuidados éticos e o
tratamento dos dados.
4.1 FORMA E NATUREZA DA INVESTIGAÇÃO
A investigação acerca do estabelecimento do vínculo, entre profissionais da
saúde (médicos e enfermeiras) e usuários de um serviço de saúde com PSF
implantado, foi efetuada na modalidade de estudo de caso, abordado de forma
qualitativa.
Gil (1999, p. 72) define estudo de caso como “estudo exaustivo, profundo, de
poucos objetos, de maneira a permitir o seu conhecimento amplo e detalhado”. Ludke
e André (1986) ressaltam que se o estudo de caso for desenvolvido numa abordagem
qualitativa permite a obtenção ampla de dados, um planejamento mais flexível e a
focalização da realidade de forma complexa e contextualizada. Estes autores também
se referem a características fundamentais do estudo de caso tais como: visam à
descoberta ou seja o que ainda não está dado; enfatizam a interpretação do contexto de
forma completa e profunda
80
ou o pesquisador procura revelar a multiplicidade de dimensões presentes
numa determinada situação ou problema focalizando-o como um todo (...)
enfatiza a complexidade natural das situações, evidenciando a inter-relações
dos seus componentes (LUDKE E ANDRÉ, 1986, p. 19).
No estudo de caso os dados devem provir de várias fontes; deve revelar
experiências do pesquisador que possam ser replicadas em caso de interesse; e
apresentarem a situação ou objeto considerando oposições, conflitos,
complementaridades.
A escolha da abordagem qualitativa, segue o que refere Minayo et al (2000, p.
21-2) uma vez que esta
preocupa-se com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou
seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo
das relações que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.
A investigação qualitativa assume, por sua vez uma enorme gama de
possibilidade e especificidades, segundo a opção por direções do tipo estrutural-
funcionalista, fenomenológica ou dialética, por exemplo. Minha escolha recaiu sobre a
abordagem qualitativa do tipo dialética.
A opção pelo método dialético esteve assentada no entendimento de que o PSF,
se apresenta como síntese de um processo de transformação das políticas de saúde
brasileira, que ocorreu a partir dos anos 70, já mencionado no item 2.1 do capítulo 2.
Embora o PSF represente conquistas sociais, ratificadas na Constituição de 1988 e
implantação do SUS, se vê perpassado por contraditoriedades, divergências,
insuficiências, conseqüentes à sua inserção social, política e econômica, pautada em
princípios da doutrina neoliberal. Sendo o vínculo como um conceito estratégico do
PSF, pode-se antever que sofra as influências das condições e conjuntura em que o
PSF está imerso. Assim, encontrei no método dialético possibilidades para apreender,
de fazer emergir um conhecimento sobre a concreticidade do vínculo no PSF.
81
4.2 A DIALÉTICA
A história da dialética é longa e sinuosa, configurada por muitos autores,
destacando-se nomes como os de Heráclito, Platão, Plotino, Kant, Proudhon, Hegel,
Feurbach, Marx, Engels, Gramsci, Lukács, Adorno, Horkheimer, Sartre, dentre muitos
outros. As contribuições ocorreram tanto pela introdução de novos elementos,
estruturando um corpo teórico mais denso, como do embate em torno de concepções
diferentes e até mesmo opostas (GURVITCH,1987).
Na história da dialética identificam-se três fases principais:
1) a dialética antiga da Grécia, onde aparecem nomes como Heráclito, Platão,
Aristóteles.
2 ) A dialética idealista dos filósofos alemães (séc. XVIII e XIX) cujo nome central
foi Hegel
3 ) A dialética materialista (sec. XIX e XX) com Karl Marx e Friedrich Engels e
seus seguidores.
O termo dialética provém do grego, dialégomai que origina o termo
dialektikéque (dialética) com significado de discursar, debater.
Heráclito, produziu reflexões que posteriormente integraram a dialética
moderna, como conceber que um objeto poderia ser ao mesmo tempo e sob o mesmo
aspecto, igual e diferente de si, propondo a ‘contradição’. Platão, segundo Gurvitch
(1987), concebia a dialética como uma forma da ascensão penosa das idéias rumo a
contemplação das idéias eternas, com a finalidade de buscar-se a idéia mais elevada,
qual seja a do bem.
Segundo Kopnin (1972, p. 68) a partir do século XVIII a “ciência compreendeu
claramente que o termo ‘lógica’, em essência, já ocultava atrás de si duas disciplinas
científicas possuidoras de objetos diferentes”. Para este autor, foi Kant quem
demarcou o campo de aplicação da lógica geral (posteriormente chamada formal) que
até então desempenhara uma função mais relacionada à qualidade da exposição, que a
produção do conhecimento, definido-a como "uma ciência que expõe detalhadamente
e demonstra com vigor apenas as normas formais de todo e qualquer pensamento”.Ao
delimitar o campo da lógica formal Kant abriu espaço para a nova lógica, a dialética.
82
Enquanto a lógica formal é a lógica da forma, conservadora, das coisas ou dos
fatos imutáveis, da abstração, onde grande parte do conteúdo do pensamento é
reduzido, a lógica dialética tende para um conteúdo, através de um movimento
necessário e interno, uma vez que a forma de per si tornou-se insuficiente; a lógica
dialética é a lógica dos momentos, da processualidade, da mudança (LUKÁCS, 1979;
LEFEBVRE, 1995).
Hegel, ao orientar sua filosofia no sentido de conhecer a sociedade e a história,
deu origem à concepção moderna da dialética. Em Hegel (1968) o finito (elemento
empírico-material, as coisas, o mundo) não é um verdadeiro ser, carece de realidade
própria. O pensamento do homem é separado do próprio homem, tornando-se
independente (a idéia), de maneira que não é mais o indivíduo humano que pensa, mas
a idéia ou Logos que se pensa através dele. O verdadeiro ser é o infinito, a idéia, o
Logos cristão. Daí ter configurado o idealismo.
No idealismo o espírito é eterno, primeiro, e a matéria deriva dele. Os
fenômenos do universo ocorrem pela ação de forças imateriais; o movimento, o
dinamismo, a atividade, o poder criador são unicamente competência do espírito; o
conhecimento não atinge a coisa em si, pois, a matéria é impenetrável ao
conhecimento; a vida espiritual da sociedade determina a vida material.
Para Hegel (1968) o caminho da dialética é marcado pela contradição: posto a
tese como ponto inicial, ela só se desenvolve criando um algo oposto a si, a natureza
ou o mundo privado de consciência (antítese); entre estes dois conceitos manifesta-se à
oposição contraditória que se reconciliam na síntese. A síntese também se revela
contraditória, produzindo sua própria antítese e um novo movimento contraditório,
numa nova síntese superior.
Colletti (apud TAMBOSI, 1999, p. 236) explica que o idealismo requer a
aniquilação do finito em função do finito ser negativo tendo portanto “inscrito na sua
própria natureza ‘ultrapassar-se’, negar a sua negação e tornar-se infinito. O infinito
(...) ‘é a negação da negação’, o afirmativo”
Contrapondo-se a Hegel, Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895) constroem a
teoria marxista, composta por uma filosofia, o materialismo dialético e por uma
teoria científica da história, o materialismo histórico.
83
Marx, partindo das idéias de Hegel efetuou novas proposições acerca da
dialética, chamadas por Engels de materialistas (KOPNIN, 1972; GURVITCH, 1987).
O termo materialismo, é proveniente de ‘matéria’ significando do ponto de vista do
conhecimento “a realidade objetiva, cuja existência é independente da consciência
humana e refletida por esta” (LUKÁCS,1979, p. 222). No materialismo o mundo é
eterno e a matéria é infinita; a matéria é primeira e o espírito deriva dela; os
fenômenos do universo são diversos aspectos da matéria em movimento; o movimento
existe independente da consciência e é uma propriedade fundamental da matéria; a
consciência por sua vez é reflexo da matéria, assim sendo o mundo é cognoscível
(ARANHA, 1993).
Marx (1979, p. 40) também desenvolve proposições acerca do homem
enquanto realidade e ser do mundo material: “o ser objetivo atua objetivamente e não
atuaria objetivamente se o objetivo não estivesse na destinação do seu ser. O ser
objetivo cria e põe apenas objetos porque ele é posto por objetos, porque é
originariamente natureza”.
O homem como ser objetivo não é apenas natural mas humano, porém não está
confirmado de imediato em seu ser e saber, em sua subjetividade e objetividade, e
para confirmá-las ele precisa nascer, possuir em seu ato de nascimento a história, que
para ele é consciente, e por ser consciente “é ato de nascimento que supera
(MARX,1979, p. 41).
Para que a realidade seja autêntica ela requer o homem, não só sua consciência,
mas também sua existência. A realidade é “a realidade do homem que na natureza e
como parte da natureza cria a realidade humano-social , que ultrapassa a natureza e
na história define seu próprio lugar” (KOSIK, 2002, p. 248).
Por sua vez o ‘materialismo histórico segundo Leopardi (2001, p. 103) é
a aplicação do materialismo dialético (filosofia) ao campo da história, ou a
explicação da história por fenômenos materiais. Refere-se às condições
materiais da existência social, as quais definem a história da humanidade
pelo desenvolvimento de formas coletivas de trabalhar ou pelas relações de
produção.
84
Considerando o sentido materialista aplicado por Marx às proposições de Hegel
acerca da dialética, Engels configurou-as sob a forma de leis, expandidas também por
Lenin (KONDER, 1981; SUCUPIRA, 1984; GURVITCH, 1987; RICHARDSON,
1993, SAUPE E NAKAMAE, 1994; LEOPARDI, 2001; LEFEBVRE, 1995). As leis
da dialética (na ótica materialista) conforme os autores mencionados são:
a) Lei da conexão universal dos objetos e fenômenos
É um dos conceitos chaves da dialética materialista. A característica essencial
da matéria é a interconexão entre objetos e fenômenos, sua impossibilidade de
existirem isolados, sua determinação mútua, configurando uma totalidade concreta.
b) Lei do movimento universal
Os objetos e processos (tudo), estão em movimento e mutação contínua. O
desenvolvimento ocorre dialeticamente, através de progressos (desenvolvimento para
uma organização superior) e regressos (sentido inverso). A natureza e a sociedade se
desenvolvem por causas internas, suas contradições, diferentemente de outras
concepções que atribuem a mudança a causas externas.
c) Lei da unidade dos contrários
Todos os objetos ou fenômenos apresentam aspectos contraditórios, e embora
organicamente apresentem-se como uma unidade, estão em perene conflito, condição
que produz a mudança da realidade. A unidade é relativamente temporária, sendo
interrompida constantemente, no curso do desenvolvimento, o que já não ocorre com a
contradição, que é absoluta e constante.
d) Lei da transformação da quantidade à qualidade
Os objetos e fenômenos vão sendo submetidos a mudanças inicialmente
quantitativas, que a partir de um processo cumulativo, vão produzir mudanças
quantitativas. A modificação qualitativa não é lenta e contínua, tampouco conjunta e
85
gradual, como é o caso das modificações quantitativas. Apresenta, ao contrário,
características bruscas, tumultuosas; expressa uma crise interna da coisa, uma
metamorfose em profundidade, através de uma intensificação de todas as contradições.
A mudança aparece quando estão reunidas as condições objetivas, bastando um
pequeno impulso para que o salto se opere.
e) Lei do desenvolvimento em espiral
A renovação constante do mundo decorre da renovação de objetos, fenômenos e
estruturas, obsoletos, indesejáveis, que são substituídos por outros, parcialmente
novos, uma vez que agregam características daqueles a que estão substituindo. A
mudança nega o que é mudado e o resultado, por sua vez, é negado, mas esta segunda
negação conduz a uma mudança e não a um retorno a condição anterior; revela-se
assim uma aspiral crescente de mudanças, sendo a negação o seu elemento propulsor.
Para Lefebvre (1995, p. 240) as “leis da dialética constituem pura e
simplesmente uma análise do movimento. O movimento real com efeito, implica essas
diversas determinações: continuidade e descontinuidade, aparecimento e choque de
contradições; saltos qualitativos e superação”.
As leis da dialética também dispõem de categorias que explicitam propriedades
e relações dos objetos e fenômenos quais sejam:
1º) Interdependência entre - particular – singular – geral
Todo objeto ou fenômeno tem características específicas, próprias, que os
distinguem. É impossível encontrar objetos ou fenômenos iguais, pois, se
distinguiriam em um ou outro detalhe e isto constitui sua singularidade ou
individualidade. Mas os objetos e fenômenos compartilham características comuns,
que os distinguem quando comparadas com outros objetos ou fenômenos,
constituindo a sua particularidade (ex: metal, reunião, visita). O que se repete nos
objetos ou fenômenos, não sendo inerente a um só, mas, a muitos objetos ou
fenômenos, constitui o geral. O singular, geral e o particular são interdependentes,
86
uma vez que o singular contém o geral e o geral existe e tem sua expressão no
particular.
2º) Causa e efeito
Causa e efeito são conceitos correlatos, em conexão, em retro-alimentação, onde
o resultado da causa é o efeito e este por sua vez pode modificar a causa. A causa
engendra, origina, determina o fenômeno. Todo o fenômeno da natureza e da
sociedade tem uma causa, uma possibilidade de explicação. Causa e efeito decorrem,
por sua vez da vigência de determinadas condições.
3º) Necessidade e casualidade
A necessidade é essencial já que deve ocorrer sem falta; desprende-se dos
fenômenos e objetos da realidade e é decorrente do seu desenvolvimento. O casual é
aquele que em condições concretas pode ocorrer ou não, podendo produzir-se de
maneira variada; seu aparecimento provém, na maioria das vezes de fatores não
essenciais, ao contrário da necessidade.
4º) Possibilidade e realidade
A possibilidade pode ser entendida como aquilo que não é mas poderá ser, uma
realidade interna, potencial, que tem existência real mas como propriedade. A
realidade é uma possibilidade concretizada. Assim o processo de desenvolvimento
inclui a unidade dialética de realidade e possibilidade. Para que uma possibilidade se
faça realidade são necessárias condições correspondentes. As condições podem
interferir no processo, acelerando ou refreando a transformação da realidade.
5º) Conteúdo e forma
Na vida prática e social a forma é um aspecto do conteúdo, um elemento
destacado momentaneamente deste conteúdo. O conteúdo quando analisado
sob um certo prisma, torna-se forma. E, reciprocamente a forma volta a ser
conteúdo.(...) Entre forma e conteúdo se opera, assim, uma interação e um
movimento incessante (LEFEBVRE,1995).
87
6º) Essência e aparência (fenômeno)
A compreensão da essência é o principal objetivo do materialismo dialético. O
fenômeno é a revelação externa da essência, é a forma de sua manifestação. A essência
se manifesta tanto numa infinidade de fenômenos como num único fenômeno. Ela é
mais profunda, interna, estável; o fenômeno é mais rico, variável, efêmero, casual. Por
fim, a compreensão da essência requer levar-se em conta todas as distintas formas de
sua manifestação.
Konder (1981) considerou que a estrutura proposta por Engels, à cerca da
dialética, apresenta um caráter fixo, enrijecido, incompatível com o caráter da própria
dialética e alerta para o fato de que isso não significa que as leis da dialética não
devam ser usadas, mas que isto se faça com precauções no sentido de alcançar um uso
dialético efetivo.
Apesar da diferenciação entre dialética idealista e materialista, Tambosi (1999,
p. 11e 12), baseado em estudos de vários autores em especial do italiano Lúcio Collete
identifica no marxismo uma indissociável continuidade do sistema idealista de Hegel,
incompatível com os princípios materialistas que pretendia defender”. Para Tambosi
(1999) uma questão crítica desta condição decorre da impossibilidade de falar de
contradição na natureza e na sociedade, já que isto fere o princípio científico da não
contradição da ciência (algo não pode ‘ser’ e ‘não ser’ ao mesmo tempo). A categoria
da contradição é uma categoria da lógica, do pensamento, da teoria, e nunca do real, já
que não existem contradições objetivas.
Para Colletti (apud TAMBOSI, 1999, p. 186) “a realidade não suporta
contradições dialéticas, mas apenas oposições reais, conflitos de força, relações de
contrariedade. E estas são oposições (...) isto é, não contradições, em vez de
contradições dialéticas”.
Negar e afirmar um predicado de alguma coisa tem como conseqüência o
nada. Já na oposição real ou sem contradição, na qual dois predicados de uma coisa
são também opostos, é possível, ou seja tem algo como conseqüência. Portanto há
88
(...) “negação também na oposição real, mas de um gênero inteiramente diferente da
contradição” (TAMBOSI, 1999, p. 214).
Um outro comprometimento atribuído ao marxismo foi o de que ele não fez
ciência pura mas uma ciência percorrida por elementos ideológicos, finalista,
revolucionário e isto resultou problemático. E, também, que o marxismo propôs um
‘grand finale’ (síntese), uma sociedade perfeita, justa, onde o capitalismo seria
superado cedendo espaço ao socialismo. Nem o capitalismo foi superado, nem o
Estado foi extinto, nem se previu a emergência de classes médias, transformadoras
das relações bipolares de burgueses e proletários. Tal critica ao marxismo também se
voltaram para a dialética materialista (TAMBOSI, 1999).
4.3 MÉTODO DIALÉTICO
Enquanto método a dialética é um caminho para experiências renovadas,
experiências que não se deixam enclausurar em nenhum quadro operatório imóvel. Sua
verdadeira tarefa, considerando que o domínio do método é o da existência social,
consiste na demolição de conceitos adquiridos e cristalizados, cuja rigidez não
conseguem captar as totalidades reais em movimento. E ainda, considerar de forma
simultânea as totalidades e suas partes em condicionamento recíproco (GURVITCH,
1987).
Totalidade concreta como princípio metodológico da investigação dialética
significa, segundo Kosik (2002, p. 44 e 49), a “realidade como um todo estruturado,
dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos)
pode vir a ser racionalmente compreendido (...)”. “Um fenômeno social é um fato
histórico na medida em que é examinado como um momento do todo (...)”. Neste
sentido tanto o fato histórico define a si mesmo como define o todo. Tanto pode ser
revelador quanto determinado. Da conexão e mediação entre todo e parte, surge à
implicação que fatos isolados são abstrações pois a sua concreticidade se dá tão
somente no todo. Já o todo sem momentos diferenciados e determinados é vazio,
abstrato.
89
O pensamento na dialética procura pois destruir a pseudo-concreticidade, ir de
forma processual na direção da concreticidade do real que se acha escondido em
representações deste; tem ainda de destruir a pretensa independência dos fenômenos
(KOSIK, 2002).
O mundo real, oculta pela pseudo-concreticidade, apesar de nela se
manifestar, não é o mundo das condições reais em oposição às condições
irreais, tampouco o mundo da transcendência e oposição à ilusão subjetiva;
é o mundo da práxis humana. É a compreensão da realidade humano-social
como unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênero e
estrutura (KOSIK, 2002, p. 23)
A dialética como método luta contra a simplificação, imobilização do
conhecimento das totalidades sociais, enfatiza complexidades, sinuosidades, tensões
inesperadas, demandando, por vezes, mobilidade dos próprios quadros teóricos de
referência, buscando o aprofundamento sempre renovado dos problemas e assim, o
que realmente faz é preparar quadros de explicação (GURVITCH, 1987).
Para Kopnin (1972) a dialética no sentido da verdade objetiva pressupõe o
emprego das leis do real e do pensamento, respeitando desta forma os princípios da
ciência. Lefevbre (1995) ressalta que tais leis não podem ser aplicadas no sentido
abstrato, metafísico, e sim de forma concreta, permitindo penetrar em todo objeto, em
toda a realidade. Segundo este autor, na aplicação da lei da conexão universal e
interdependência de objetos e fenômenos “isolar um fato, um fenômeno, e depois
conservá-lo pelo entendimento nesse isolamento, é privá-lo de sentido de explicação,
de conteúdo” (LEFEBVRE, 1995, p. 238).
Com relação à lei da do movimento universal, Lefebvre (1995) refere que o
método dialético busca reintegrar fatos e fenômenos em seu movimento interno e de
externalidade, ou busca desvendar o que há de profundo (essencial) que se oculta sob o
movimento superficial. Com relação à ‘contradição dialética’, o que deve ser captado,
segundo Tambosi (1999), são as oposições reais, conflitos de força, relações de
contrariedade, polarizações. Na transformação da quantidade em qualidade a atenção
se volta para a continuidade (o que mantém) e a descontinuidade (o aparecimento do
novo, o fim do antigo).
90
O conhecimento deve se processar num movimento em espiral do qual cada
início é abstrato e relativo, procede do todo para as partes e vive versa, dos fenômenos
para a essência e desta para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das
contradições para a totalidade. Assim o conhecimento “justamente neste processo de
correlações em espiral no qual todos os conceitos entram em movimento recíproco e
se elucidam mutuamente, atinge a concreticidade” (KOSIK, 2002, p. 50).
E por fim
em certas fases do próprio pensamento, este deverá se transformar, se
superar, modificar ou rejeitar sua forma, remanejar seu conteúdo, retomar
seus momentos, superá-los e repeti-los (...). O método dialético, desse
modo, revelar-se-á ao mesmo tempo rigoroso (já que se liga a princípios
universais) e o mais fecundo (....) (LEFEVRE, 1995, p. 241).
Sintetizando as recomendações de Lefebvre (1995) teríamos, quando da
aplicação do método dialético: dirigir-se objetivamente à própria coisa; manter-se
atento para a questão de que tudo está ligado a tudo; apreender o conjunto das
conexões internas da coisa, o seu desenvolvimento e movimentos; aprender a coisa
como totalidade em suas oposições reais, conflitos de força, relações de contrariedade,
polarizações, tendências, transições; manter-se consciente da necessidade de
aprofundamento do conhecimento.
Saupe e Nakamae (1994, p.35) também alertam: “o conhecimento dialético não
se procede por via somatória, acrescentando fatos linearmente, mas se processa num
movimento de correlação em espiral, na qual todos os conceitos mantêm uma
reciprocidade e se elucidam mutuamente”.
Concluindo esta exposição, ao proceder este estudo acerca do vínculo
estabelecido entre profissionais (médicos e enfermeiras) e usuários num serviço de
saúde com Programa de Saúde da Família implantado (PSF), na ótica do método
dialético, busquei analisar seu processo de desenvolvimento, situá-lo na totalidade
histórico social do SUS/PSF com suas múltiplas determinações (como produto de uma
evolução da atenção básica, nas limitações de sua implantação conseqüente às
exigências neoliberais, dentro de sua inserção no trabalho em saúde). Busquei
91
descobrir suas conexões, conflitos, oposições internas, objetivando encontrar sua
essência; captar o concreto real do vínculo; processar a ação do pensamento
reconstruindo uma instância provisória do real. No caminho do pensamento precisei
modificar as conexões teóricas, abandonar o que não dava conta da realidade do
vínculo, o qual demonstrou uma complexidade maior que a intuída, além de ter
adotado um outro foco que priorizava o vínculo em si e não o vínculo com a família,
como definira inicialmente.
4.4 CENÁRIO DA INVESTIGAÇÃO
A investigação foi desenvolvida em um bairro de um município de Santa
Catarina, estado do sul do Brasil. O PSF começou a ser implantado em Santa Catarina
em 1994, viabilizado pelo convênio n 817/94, assinado entre a Secretaria de Estado
da Saúde de Santa Catarina (SES/SC) e Ministério de Saúde, o qual previa a formação
de 28 equipes para o Estado. Em 1995 o PSF foi implantado nos municípios Joinville e
Criciúma e depois em Florianópolis, Blumenau, Ascurra e Lages (ROSA, 2001). A
partir de 1996, em função da definição dos recursos de financiamento da ABS através
da NOB/96, a implantação ganha maior impulso.
O PSF está implantado em 97,6% dos municípios do Estado de Santa Catarina
ou em 286 municípios para um total de 293. A cobertura populacional da população é
de 58,9% ou de 3.146.583 pessoas, efetuada por 998 equipes (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2004).
4.5 ESCOLHA DO LOCAL DA INVESTIGAÇÃO
Consciente de que o trabalho das ESF sofre influências do contexto, as quais
configuram algumas das diferenças entre os PSF, defini que a realidade a ser estudada
deveria minimizar tais diferenças. Desta forma pensei evitar que os dados estivessem
92
demasiadamente impregnados por especificidades, de forma que pudessem dialogar
com um maior número de PSFs da realidade brasileira. Assim, a investigação não seria
desenvolvida em ambientes isolados, predominantemente rurais ou grandes centros
urbanos, favelas ou locais com muitos problemas sócio econômicos, conflitos de terra.
Além disso, esta realidade tinha de ser acessível à pesquisadora. Defini também
proceder à investigação junto aos profissionais médicos e enfermeiras de no mínimo
duas ESF, supondo poder apreender mais sobre o estabelecimento do vínculo com os
usuários. Minha posição respaldou-se em Mazzotti-Alves e Gewandsnajder (2001, p.
162) os quais colocam que nas pesquisas qualitativas a escolha dos campos e dos
participantes é proposital. “Isto é, o pesquisador os escolhe em função das questões de
interesse do estudo e também das condições de acesso, permanência no campo e
disponibilidade dos sujeitos”.
Busquei o local desejado de maneira informal, junto à profissionais da
Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina (SES/SC), da Coordenação Estadual
do PSF, do PÓLO de Capacitação, Formação e Educação Permanente de Recursos
Humanos em Saúde da Família/SC, profissionais da saúde e colegas professores da
área de saúde da Universidade Federal de Santa Catarina.
Localizada a comunidade que atendia os critérios estabelecidos fiz uma visita
ao local. Neste trabalhava uma enfermeira que fora minha aluna no curso de
graduação em enfermagem e de especialização em enfermagem na saúde da família e
com sua ajuda fiz contato com os três médicos e as outras duas enfermeiras das três
ESF que ali trabalhavam. Expliquei brevemente o projeto, consultei-os sobre seu
aceite em participar da investigação e obtendo resposta positiva, iniciei os
procedimentos formais.
Encaminhei a solicitação de autorização para proceder à investigação, uma
cópia do projeto e um pedido de agendamento de entrevista à Secretária de Saúde do
município onde se situava o local escolhido, a qual procedeu a autorização.
93
Tais documentos e outros complementares foram submetidos ao Comitê de
Ética da Universidade Federal de Santa Catarina, para verificação de observância dos
requisitos indicados para pesquisa com seres humanos, e sua aprovação está
demonstrada no anexo B.
4.6 PARTICIPANTES DO ESTUDO
Médicos e enfermeiras, integrantes de 3 (três) ESF, auxiliares de enfermagem e
ACS também integrantes destas ESF, e usuários do CS participaram deste estudo cujo
foco foi o vínculo estabelecido pelos médicos e enfermeiras com os usuários do
serviço de saúde com o PSF implantado.
Optei pelo estudo deste foco e não do vínculo estabelecido pela totalidade da
ESF (dentista, AuxEnf, ACS), considerando os seguintes aspectos: médico e
enfermeira devem ocupar um papel de coordenação na ESF além de se constituir como
referência para os demais membros; médicos e enfermeiras tem maior amplitude e
tempo de preparo no cuidado em saúde; há um número maior de estudos enfocando o
trabalho dos ACS e suas relações com os usuários no PSF; proceder a uma
investigação em profundidade, como recomendado num estudo de caso, junto a todos
os membros das equipes, implicaria numa extensão de tempo não disponível pela
pesquisadora.
Já o vínculo estabelecido entre dentistas e usuários não foi objeto de estudo,
dado que suas ações se davam de forma muito específica,voltada ao cuidado bucal,
dentro do consultório, num trabalho concomitante porém paralelo ao das ESF.
Ressalto que estou ciente de que a concepção teórica/metodológica do PSF prevê que
o dentista seja co-participe do plano de trabalho da equipe.
94
4.7 ENTRADA NO CAMPO
Os primeiros 45 dias (quarenta e cinco) a partir da minha chegada ao campo,
foram reservados para adaptação, tanto da pesquisadora quanto dos funcionários do CS
a presença da mesma ou para: apresentação dos personagens, das atividades, da
dinâmica de atendimento e para exposição do projeto. Percorri também a comunidade
buscando formar a base inicial de compreensão do contexto. No momento em que as
pessoas pareceram não estranhar mais e sabiam das razões de minha presença no
campo iniciei a coleta de dados propriamente dita. Com esta atitude procurei
minimizar a modificação do contexto interacional produzido pela presença de um
investigador em campo, conforme apontado por Mazzotti e Gewandsnajder (2001).
Para estes autores a interferência pode ser minimizada com a permanência prolongada
do pesquisador em campo, levando os sujeitos a se acostumarem com sua presença e a
absorvê-la como acontece em outras relações vigentes na sociedade.
Apresentei formalmente o projeto de investigação aos médicos e enfermeiras,
mas em função de dificuldades de compatibilizar horários, fiz três exposições; após a
apresentação os mesmos assinaram o termo de consentimento. O médico de uma das
ESF não autorizou a observação das consultas.
Os AuxEnf , os ACS e outros profissionais do CS tomaram conhecimento do
projeto de maneira mais informal, nas interações, já que não estava previsto serem
sujeitos da investigação. No desenrolar da mesma percebi que dispunham de dados
significativos acerca do vínculo estabelecido pelos médicos e enfermeiras. Consultei-
os sobre disponibilidade em participar de entrevistas e de algumas observações,
reforcei explicações sobre o projeto e obtive o consentimento por escrito.
Durante esta fase o município mudou de Secretário de Saúde e este visitou o
CS. Além de conhecê-lo, também falei brevemente sobre o projeto.
95
4.8 PROCEDIMENTOS PARA COLETA DOS DADOS
Os dados foram colhidos através de observação de campo, entrevistas e em
documentos, durante os meses de setembro de 2003 a março de 2004.
A escolha pela técnica de observação, foi efetuada em função do vínculo ser um
fenômeno que se expressa nas condutas dos profissionais em interação com sua
clientela, sendo o cenário de prática o local de sua captação. Concretiza-se em ato,
podem/devem persistir apenas seus efeitos e sentimentos gerados. Também responde
a uma contingência da dialética, segundo o qual a construção do conhecimento só se
torna possível no diálogo entre teoria e prática
Para Minayo et al (2000, p. 60) a importância da observação participante
enquanto técnica de pesquisa decorre do “(..) fato de podermos captar uma variedade
de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas uma vez que
observados diretamente na própria realidade transmitem o que há de mais importante
e evasivo na vida real.”
Para estes autores a participação pode ser plena ou constituir-se num
distanciamento total da participação na vida do grupo tendo, neste caso, somente o
objetivo de observação, ou ainda, situar-se entre estes pólos.
A observação efetuada foi com alguma participação, predominando porém a
observação. A participação mencionada consistiu em opinar quando solicitada, trocar
idéias tanto com os membros das ESF, quanto com outros funcionários do CS e com
usuários, fazer algum encaminhamento para as enfermeiras, quando da apresentação
de situações relacionadas a necessidades prementes dos usuários que não haviam sido
consideradas pela recepção.
Observei a dinâmica do CS, as atividades e interações dos médicos e
enfermeiros no CS, no domicílio e na comunidade (durante seus deslocamentos); os
encontros dos ACS no CS, atividades do ‘grupo de sofrimento psíquico’, atividades de
educação em saúde, reuniões das equipes e reuniões do Conselho Local de Saúde.
Normalmente comparecia ao CS num período, ou matutino ou vespertino; em
caso de ocorrência de atividades que julgava interessante observar, efetuei este
procedimento em ambos os períodos. O tempo de observação foi em média de 10
96
horas semanais, normalmente distribuídos em 3 (três) dias da semana. Em todas as
observações buscava e registrava os dados relacionados ao vínculo e/ou ao seu
contexto, descartando os demais dados.
Poucos dados à cerca do vínculo emergiram dos prontuários e após algumas
tentativas, encerrei a busca nesta fonte. O livro de atas do Conselho Local, foi também
consultado e dele extraí um ou outro ponto que guardava relação com o tema do
vínculo.
No CS observei ainda a recepção dos usuários, a interação destes com as
recepcionistas e com membros das ESF, as atividades e o atendimento, as falas em
corredores, as condições da espera do atendimento, as reclamações.
No início das manhãs eram usuais os encontro dos ACS de todas as equipes e
como às vezes não tinha algo específico para fazer, acabava observando o que se
passava nestes encontros. Percebi que nestes espaços se apresentavam dados sobre
vínculo dos médicos e enfermeiras e usuários, além disso, certos diálogos levaram-me
a efetuar alguns ‘insights’.
Quanto aos médicos e enfermeiras observei suas interações com os usuários em
momentos diversos como da sua chegada no CS, em suas estadas no corredor, nos
consultórios e também enquanto dialogavam com os membros de suas equipes ou
entre si. Para dar uma certa direcionalidade às observações, antes de iniciar a coleta de
dados, elaborei um roteiro cujos itens referiam-se às dimensionalidades do vínculo, de
acordo com o referencial teórico adotado, que deveriam ser observadas nas
atitudes/comportamentos dos médicos e enfermeiras (vide apêndice G).
Nas visitas domiciliares observei a recepção da família, dados que indicavam
conhecimento mútuo prévio, como e com quem se processavam as interações, o
conteúdo das mesmas, o contexto. Algumas observações emergiram dos diálogos que
se davam entre ACS e médicos, efetuadas no carro que transportava a equipe, durante
o deslocamento até a casa do usuário a ser visitado. Normalmente os ACS atualizavam
97
os médicos de algumas condições do usuário ou família, ou o médico perguntava algo
procurando se situar.
Para garantir o anonimato das ESF identifiquei-as através de cores básicas ou
verde, azul e amarelo.
Acompanhei um total de 20 (vinte) visitas domiciliares do médico da ‘equipe
verde’ e 01 (uma) visita individual da enfermeira da mesma equipe; 18 (dezoito)
visitas do médico da ‘equipe azul’ e 10 (dez) visitas da enfermeira da ‘equipe azul’
acompanhando o médico de sua equipe, 03 (três) acompanhando os ACS e 01 (uma)
individual; 20 (vinte) visitas do ‘médico da equipe amarela’e nenhuma visita de
enfermeira desta equipe.
Não foi possível estabelecer uma equivalência na observação das visitas
realizadas pelas enfermeiras em função de que usualmente não acompanhavam as
visitas médicas, faziam menos este procedimento (exceto enfermeira da equipe azul) e
ainda realizavam algumas visitas sem agendamento, ao contrário da visita dos médicos
que eram sempre agendadas previamente.
No grupo de sofrimento psíquico observei a condução, a dinâmica da reunião, o
contexto das interações estabelecidas, as repercussões das ausências dos médicos e
enfermeiras e sua interface com o tema do vínculo. Acompanhei 04 (quatro) reuniões
deste grupo.
Nas reuniões dos grupos de saúde observei a presença (ou ausência) dos
médicos e enfermeiras, papel desempenhado, as razões da presença dos usuários, o que
era abordado, a dinâmica da atividade, as interações e reações dos presentes.
Acompanhei 4 (quatro) reuniões do grupo de saúde, 1 (uma) correspondente a ‘ESF
azul’ e 3 (três) correspondentes a ‘ESF verde’.
Nas reuniões do Conselho Local de Saúde observei a presença de médicos e
enfermeiros, o papel desempenhado, as interações, os temas, os aspectos relacionadas
98
à comunidade que pudessem proporcionar dados relacionados ao vínculo. Acompanhei
02 (duas) reuniões deste grupo
Nas reuniões das equipes observei, as relações e interações entre os membros
da própria equipe, suas prioridades, o que colocavam os ACS e como médicos e
enfermeiras traduziam em termos de vínculo tais informações, a forma de planejar o
trabalho e distribuir responsabilidades. Estas reuniões se davam por vezes incluindo
todos os membros da equipe ou incluindo enfermeira, AuxEnf e ACS, ou médico,
AuxEnf e ACS, ou somente médicos enfermeiras. Observei 21 dessas atividades.
Abaixo apresento a totalização do acompanhamento das atividades de
observação de atividades passíveis de serem computadas, quais foram:
QUADRO 1: ATIVIDADES OBSERVADAS NAS ESF
ESF /NÚMERO ATIVIDADES
ESF VERDE ESF AZUL ESF AMARELA
VISITA DOMICILIAR MÉDICA 20 18 20
VISITA DOMICILAR DE
ENFERMAGEM
01 14 0
CONSULTA MÉDICA 0 25 20
CONSULTA DE ENFERMAGEM 06 10 05
REUNIÃO DE EQUIPE 03 02 01
REUNIÃO: enfermeira, AuxEnf e ACS 05 05 03
REUNIÃO: médico, AuxEnf, ACS 0 0 02
QUADRO 2: ATIVIDADES OBSERVADAS DO CONJUNTO DAS ESF
ATIVIDADES NÚMERO
REUNIÃO: médicos e enfermeiras 02
GRUPO DE SOFRIMENTO PSÍQUICO 04
REUNIÃO DO CONSELHO LOCAL DE
SAÚDE
02
99
Foram efetuadas 3 (três) entrevistas com médicos (todos os médicos das ESF),
4 (quatro) entrevistas com enfermeiras (todas as enfermeiras das ESF), 3 (três)
entrevistas coletivas de AuxEnf e ACS (uma para cada ESF; 100% das ESF; 33% do
total de AuxEnf e 75% ACS) e 18 (dezoito) entrevistas com usuários ou 6 (seis)
entrevistas de usuários por equipe. O quadro abaixo apresenta alguns dados referentes
aos membros das ESF:
QUADRO 3: DADOS DOS MÉDICOS E ENFERMEIRAS DAS ESF
ITENS
MÉDICO
ESF
VERDE
MÉDICO
ESF AZUL
MÉDICO
DA ESF
AMARELA
ENFER-
MEIRA (N.1)
ESF VERDE
ENFER-
MEIRA (N.2)
ESF
VERDE
ENFER-
MEIRA
ESF AZUL
ENFER-
MEIRA ESF
AMARE-LA
FAIXA
ETÁRIA
45-50 30-35 30-35 30- 35 25-30 25-30 35-40
SEXO M F M F F F F
PÓS
GRA-
DUAÇÃO
SENSO
LATU
Acupun-
tura
Homeo-
patia
Terapia
Intensiva
Clinica
Médica
- -
Enfermagem
na Saúde
da Família
-
PÓS
GRADUA-
ÇÃO
SENSO
ESTRITO
Mestrado
Antropo-
logia
- - - - - -
TEMPO DE
FORMA-
ÇÃO
> 20 ANOS > 5 ANOS > 5 ANOS
-
> 4 ANOS > 3 ANOS > 5 ANOS > 5 ANOS
TEMPO DE
ATUAÇÃO
NO PSF
ATUAL
> 1, 5
ANOS
2 ANOS < 3
MESES
2 ANOS < 3
MESES
2 ANOS 2 ANOS
TRABALHO
ANTERIOR
EM OUTROS
PSFs
Sim Sim Sim Sim Sim Sim Não
TRABALHO
ANTERIOR
EM
HOSPITAL
Não Sim Sim Não Não Não Sim
As entrevistas efetuadas foram do tipo semi-estruturada, com questões voltadas
para o tema do vínculo. Este tipo de entrevista permite focalizar o tema do estudo sem
no entanto enquadrar repostas ou impedir o desvelamento do objeto (TRIVIÑOS,
1992). “A entrevista semi-estruturada ao mesmo tempo em que valoriza a presença do
investigador, oferece todas as perspectivas possíveis para que o informante alcance a
100
liberdade e espontaneidade necessária enriquecendo a investigação” (TRIVIÑOS,
1992, p.146).
E ainda, segundo o autor referido, este tipo de entrevista parte de certos
questionamentos básicos, conseqüentes às opções teóricas do estudo, oferecendo ainda
a possibilidade de ampliar as interrogações como uma decorrência das respostas do
informante. O informante é, neste processo, um participante na elaboração do
conteúdo. Os pontos escuros, que denotam aspectos conflitivos ou divergentes, podem
ser retomados, adotando-se o princípio da retro-alimentação. O valor das questões
assim formuladas está em abrir perspectivas de análise, sem se constituir em amarras
para o trabalho.
Embora tendo o mesmo foco, o do vínculo, as questões apresentadas aos
médicos/enfermeiras, AuxEnf e ACS, e usuários foram diferentes (vide Apêndice D,
E, F), buscando a composição de uma totalidade.
As entrevistas com médicos, enfermeiras e equipes de AuxEnf e ACS, foram
iniciadas dois meses após o início da observação, considerando que a pesquisadora já
possuía domínio relativo acerca da dinâmica do CS, estava familiarizada com os
membros das ESF e estes com a pesquisadora. As entrevistas com usuários foram
iniciadas no final do terceiro mês da presença da pesquisadora no campo. Este
procedimento permitiu efetuar modificações e ajustes nas questões previstas no projeto
de pesquisa acerca do vínculo e também, contextualizar perguntas e respostas, como
recomenda Triviños (1992).
Nos apêndices D, E e F apresento os roteiros das questões formuladas aos
médicos, enfermeiras, AuxEnf e ACS das ESF e familiares.
A indicação dos usuários a serem entrevistados foi efetuada por membros das
três equipes, incluindo a opinião do médico e/ou enfermeira, em resposta à solicitação
da pesquisadora. Um único critério foi apresentado: que os indicados tivessem vínculo
com o médico e enfermeira de sua equipe. As ESF elaboraram listas com nomes de
101
usuários/famílias das quais selecionei um número arbitrário de seis entrevistados por
equipe.
No quadro abaixo apresento dados dos usuários entrevistados, ressaltando que
em algumas das entrevistas outros membros da família participaram ajudando a
elaborar as respostas. Três usuários foram entrevistados no CS, e os demais em suas
residências.
QUADRO 4: ENTREVISTAS EFETUADAS COM AS FAMÍLIAS
ESF VERDE ESF AZUL ESF AMARELA
USUÁRIOS
Idade
(anos)
SEXO
USUÁRIOS
Idade
(anos)
SEXO
USUÁRIOS
Idade
(anos)
SEXO
Nº1 55 M Nº 1 46 F Nº1 64 F
Nº2 50 F Nº2 17 F Nº2 >60 F
Nº3 17 F Nº 3 > 60 F Nº3 >60 F
Nº4/
outros
familiares
> 40 M/F Nº 4 >50 F Nº4 >50 F
Nº5/
outro
familiar
> 40 M/F Nº5 > 60 F Nº5/
outro
familiar
>50 M/F
Nº6/
outro
familiar
> 60 M/F Nº6 > 60
anos
F Nº6 30 F
4.9 REGISTROS DOS DADOS
As observações geraram relatórios, elaborados ao final das observações,
compostos por anotações descritivas do que se referia ou guardava relação com o
tema do vínculo, incluindo descrição de comportamentos, ambiente e contexto;
reflexivas conseqüentes ao que foi observado; metodológicas incluindo necessidades
de aprofundamentos, reformulações, dúvidas, condutas frentes a novas prerrogativas.
Procurei com tal conduta seguir as orientações de Triviños (1992, p. 155)
quando diz que “a exatidão das descrições dos fenômenos sociais é um requisito
essencial da pesquisa qualitativa”. Para este autor o registro das descrições acuradas
102
permite o acesso aos dados; igualmente anotações de natureza reflexiva, crítica, de
indagação, etc, vão compondo o corpo geral dos dados a serem trabalhados.
4.10 CUIDADOS ÉTICOS
Busquei em todas as fases da pesquisa pautar meu comportamento na resolução
196/96 do Conselho Nacional de Saúde, seguindo princípios como os de beneficência,
não maleficência, justiça e autonomia, além dos princípios do Código de ética
Profissional de Enfermagem.
Tanto junto a Secretaria de Saúde do município, responsável pelo CS, onde se
desenvolveu a investigação, como junto aos participantes, o projeto foi apresentando
em seus objetivos, fundamentos, estratégias e finalidades. Foram formalizados os
procedimentos respectivos de aceite, entrega dos documentos e confirmação através
das assinaturas.
Para cada observação de atendimento médico e de enfermagem em consultório
solicitei também permissão específica (para observar aquela atividade). Quando um
médico não autorizou minha presença nas consultas referindo não considerar adequada
a observação de aspectos privados do usuário, isto foi respeitado.
Antes de cada atendimento em consultório também foi solicitada a permissão
para observação da atividade junto a todos os usuários. Durante o atendimento
colocava minha cadeira no fundo do ambiente, tanto buscando não intervir na
interação como procurando desempenhar efetivamente o papel de observadora.
Nos domicílios, nas atividades de grupo, nas reuniões do Conselho Local de
Saúde fui apresentada aos usuários e familiares pelos médicos, enfermeiras, AuxEnf
ou ACS. Expus brevemente as razões da minha presença e obtive permissão para
acompanhar a atividade.
Todas as entrevistas foram previamente agendadas e realizadas em ambiente
privativo. Solicitei permissão para gravar as entrevistas e após sua transcrição os
entrevistados receberam-nas de volta para conferência e efetuando retificações
desejadas. Todos os nomes reais dos participantes foram representados por ‘cores’ e
103
‘números’, sendo que as ESF foram identificadas apenas por cores, de forma a
preservar o anonimato.
Dei ênfase, quando da entrevista de AuxEnf e ACS das equipes, que o objetivo
do trabalho era o vínculo estabelecido pelos médicos e enfermeiras com os usuários,
mas compartilhava da posição de que o estabelecimento de vínculo no PSF era
atribuição das equipes e que o papel dos ACS era especial/fundamental.
Em observações informais (um encontro casual num corredor, diálogo na rua,
em lanches de confraternização) se ainda não tivesse tomado as providências de
apresentar-me e as razões da minha presença, procurei fazê-lo. E ainda, procurei
interagir com outros funcionários do CS, que não faziam parte das ESF (Pediatra,
Ginecologista, técnicas e AuxEnf).
Quando se aproximou o encerramento da coleta de dados, fui inteirando as
pessoas da proximidade da minha saída, diminuí as horas de permanência no campo,
agradeci a colaboração de todos.
4.11 PROCEDIMENTOS UTILIZADOS VISANDO A CONFIABILIDADE DOS
DADOS
Seguindo as recomendações de Mazzotti e Gewandsnajder (2001), visando a
credibilidade ou a confiança na verdade dos dados, procedi da seguinte forma:
permaneci no campo até constatar a saturação dos dados; observei repetidas vezes às
condições do contexto e a conduta dos médicos e enfermeiras com relação ao vínculo;
modifiquei o plano inicial de coleta de dados, incluindo os AuxEnf e ACS, após o
‘insight’ de que isto ampliaria ‘o olhar’ acerca do vínculo que médicos e enfermeiros
estabeleciam com os usuários. Uma vez que suas condutas de vínculo não estavam sob
investigação, funcionando no caso como ‘elementos externos’ considerei que os
AuxEnf e ACS puderam revelar mais facilmente aspectos essenciais do vínculo
aprendidos da sua convivência com os médicos e enfermeiras.
104
Para as entrevistas adotei a conferência das transcrições pelos respondentes,
dado que a passagem dos depoimentos da forma oral para a escrita poderiam produzir
alterações de sentido/conteúdo/intenção.
Outro cuidado adotado, na fase de análise dos dados, foi a busca da sua
estabilização, submetendo-os a inúmeras leituras e exaustivas revisões da
categorização.
4.12 ANÁLISE DOS DADOS
Sobre os dados obtidos nas entrevistas (transcritas) e registros de campo foi
aplicada a técnica de análise de conteúdo na modalidade de análise categorial
temática, orientada em Bardin (2002).
A análise de conteúdo foi desenvolvida nos Estados Unidos, inicialmente com
objetivo de avaliar material jornalístico, sendo H. Lasswell, o primeiro autor a
empregá-la oficialmente, em 1915. Desenvolveu-se nas décadas seguintes, pelas
contribuições de vários autores, destacando-se nomes como Berelson e Osgood. Hoje é
empregada em inúmeras áreas do conhecimento como a da Lingüística, Política,
Psicologia, Sociologia, Economia, Enfermagem.
A análise de conteúdo é
um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam inferências de
conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis
inferidas) destas mensagens (BARDIN, 2002, p. 42).
A tendência inicial da análise de conteúdo foi a de apresentar uma característica
mais quantitativa, através da busca de inferências a partir da freqüência com que
surgem certas características do conteúdo, o que foi contrabalançado pelo
aperfeiçoamento técnico da abordagem qualitativa. Na abordagem qualitativa “a
tônica é colocada sobre as orientações de valor, afetivas ou cognitivas dos
significantes ou dos enunciados de uma comunicação” (...) ( BARDIN, 2002, p. 21) e
105
as inferências se fundamentam na presença do índice (palavra, frase, tema) e não sobre
a freqüência de sua aparição.
Deve ser adequada ao domínio e objetivos pretendidos, pressupondo assim, que
seja reinventada a cada momento.Não existe o pronto-a-vestir em análise de
conteúdo, mas somente algumas regras de base, por vezes dificilmente transponíveis”
(BARDIN, 2002, p. 31).
Na análise de conteúdo efetua-se um ‘tratamento’ da informação contida nas
mensagens, que pode ocorrer de várias formas, quais sejam de análise categorial
temática, análise de enunciação, análise da expressão, análise das relações, análise do
discurso. A análise categorial temática é uma forma de análise de conteúdo.
Na análise categorial temática, busca-se a análise dos significados e o
tratamento da mensagem segue etapas como:
constituição de corpo de documentos da investigação;
múltiplas leituras do corpo de documentos buscando conhecê-los, captá-lo, deixar-
se invadir por impressões e possibilidades;
definição da unidade base de registro a codificar (segmento do conteúdo que
encerra a unidade de unidade de significação), que pode ser a palavra, frase, tema
(alusão, afirmação, acerca de um assunto que pode estar numa frase ou num
conjunto de frases; unidade de significação que se liberta de um texto de acordo
com os propósitos da investigação). A unidade de registro será usada como guia
para a repartição dos dados.
fragmentação do texto (recorte) segundo a unidade de registro adotada;
condensação da informação para torná-la mais manejável; contagem (quando
adotada)
categorização ou formação de agrupamentos dos elementos constitutivos de
conjuntos (classes de itens de registro) segundo suas analogias e, atribuição de um
título genérico a cada grupo. O objetivo da categorização “é fornecer uma
condensação, uma representação simplificada dos dados brutos” (BARDIN, 2002,
p.119).
inferências (deduções lógicas; causas, conseqüências);
interpretação.
106
Para Bardin (2002, p. 105)
fazer análise temática, consiste em descobrir os ‘núcleos de sentido’ que
compõe a comunicação e cuja presença, ou freqüência de aparição podem
significar alguma coisa para o objetivo analítico. O tema enquanto unidade
de registro, corresponde a uma regra de recorte (do sentido e não da forma)
(...) visto que o recorte depende do nível de análise e não de manifestações
formais regulares.
A categorização pode partir do geral para o particular, sendo que neste caso
determinam-se previamente as categorias e tenta-se arrumar o todo ou seja, projeta-se
uma ‘grade de categorias sobre o conteúdo’ apoiada no referencial teórico (BARDIN,
2002, p. 175). Os dados também podem “se organizar em torno de temas eixo (objeto
ou referente) em torno dos quais se agrupa o que o interlocutor exprime a respeito
dele” (BARDIN, 2002, p. 106).
De outra forma, parte-se dos elementos particulares agrupados por
aproximação, configuram categorias as quais se atribuem títulos.
As categorias devem seguir regras como serem homogêneas (não misturar
elementos diferentes), exaustivas (esgotar todo o texto), exclusivas (cada elemento
está classificado numa categoria), objetivas (codificadores diferentes produziriam
resultados iguais), adequadas ou pertinentes (adaptadas ao objetivo e conteúdo).
Neste trabalho os procedimentos de tratamento dos dados ocorreram da seguinte
foram: construção do corpo de dados (entrevistas transcritas e registros de campo);
adoção das questões formuladas ao entrevistados como pré-categorias (o que é
vínculo, como se constrói vínculo,...), leituras sucessivas, tratamento do material em
separado, entrevistas e diário de campo.
Nas entrevistas, inicialmente, cada conjunto de respostas para cada pré-
categoria recebeu o seguinte tratamento:
recorte adotando-se como unidade de registro frases ou conjuntos de frases com
significados específicos relacionadas ao vínculo;
107
condensação da frase ou frases para se tornarem unidades de registro menores
(descarte de aspectos não pertinentes; substituição de termos por equivalentes;
síntese, mantendo porém o significado presente no texto expandido).
Em seguida, efetuei a junção dos conjuntos de respostas em torno das pré-
categorias das entrevistas. Foram organizados três conjuntos de entrevistas ou
unificaram-se as entrevistas dos médicos e enfermeiras (sete), as entrevistas dos
grupos de AuxEnf e ACS (três) e as entrevistas dos usuários (dezoito). Nesta etapa as
pré-categorias demonstraram necessidade de serem superadas, pois as unidades de
significado demonstravam aspectos novos, diferentes, ampliados ou mesmo não
demonstravam pertinência ao que fora proposto. Os conjuntos receberam novo
tratamento (homogeneidade, exclusividade, ..) e por fim foram nominados. A
estrutura resultante, pronta para a inferência e interpretação dispôs de: componentes
das categorias (ou conjuntos de unidades de significado), categorias (nominação) e sub
temas.
Os relatórios de campo também foram tratados individualmente e
posteriormente unificados, mês a mês, tratados, e por fim todo o conjunto foi unificado
e tratado. Deles foram produzidas algumas unidades de significado destacando-se o
conjunto que deu origem a categoria ‘o vínculo construído também se desconstroi’,
não aventada quando da formulação das questões de entrevista ou no instrumento de
orientação da observação. Porém, o maior aproveitamento dos registros de campo
ocorreu na produção da contextualização do campo, relatada no capítulo 5.
Assim para as entrevistas, seguiu-se o critério do geral para o particular, pois as
questões de entrevista tinham a intencionalidade de produzir respostas em torno de
pré-categorias. Já frente aos registros de campo, adotou-se a seqüência
particular/geral.
108
CAPÍTULO 5
CONTEXTO DAS RELAÇÕES ESTABELECIDAS ENTRE MÉDICOS,
ENFERMEIRAS E USUÁRIOS
Neste capítulo, cuja intencionalidade é demonstrar o contexto no qual se
estabeleceram as relações entre médicos, enfermeiras e usuários (individual e
coletivo), apresento características do município, do bairro e do Centro de Saúde (CS)
onde se desenvolveu a investigação e ainda, discorro sobre aspectos das condições a e
dinâmica de trabalho no CS e das ESF.
5.1 SOBRE SÃO JOSÉ
São José é um município do Estado de Santa Catarina (SC), estando assim
localizado na região sul do Brasil. A base da sua colonização foi açoriana, iniciada em
1750, com 182 casais portugueses. Também foi berço da primeira colonização alemã
no Estado. Em 1833 foi reconhecido como município.
Está localizado na região metropolitana da Grande Florianópolis, distando 10
Km da capital de SC, sendo recortado pela BR-101. Possui uma área de 113,17 K;
limita-se à leste com os municípios de Florianópolis, à oeste com Biguaçú e Antônio
Carlos e ao sul com Palhoça e Santo Amaro da Imperatriz.
Até a década de 70 o município de São José apresentava pouco
desenvolvimento econômico, era uma localidade pacata, cujos habitantes dedicavam-
109
se principalmente à agricultura. Cresceu fortemente a partir de então, em função de
fatores como sua localização, junto à Capital do Estado, pela proximidade da BR 101,
pela existência de áreas de terra desocupadas e pouco valorizadas e como resposta à
política de industrialização. Recebeu importante e contínuo fluxo migratório
proveniente principalmente do oeste e do sul catarinense, do estado do Paraná, Rio
Grande do Sul e até de estados nordestinos (FARIAS, 2001). Passou de uma
população de 42 mil habitantes, em 1960, para 185 mil em 2003, ou seja um aumento
de 300% (DIÁRIO CATARINENSE, 2003).
Atualmente São José possui o maior aglomerado urbano de Santa Catarina, ou
seja: 1.595,16 hab/ K. Cerca de 98,66% da população vive na área urbana e apenas
1,34% reside na área rural. Segundo o senso de 2000 do IBGE, para uma população de
173.559 habitantes havia 84.591 homens (48,73%), 88.968 mulheres (51,27%), 29.801
crianças de 0 a 10 anos (17.17%) e 24.127 pessoas com mais de 50 anos (13,90%).
Noventa e cinco por cento da população acima de 10 anos era alfabetizada (IBGE,
2004).
O setor industrial, que se desenvolveu fortemente, colocou o município na 5°
posição em arrecadação de ICMS e 8°posição no parque Industrial do Estado,
possuindo mais de 15.000 empresas que geram mais de 60.000 empregos. No período
de 1997/2003, o incremento foi de 26,46% para novas indústrias, 50,73% para o
comércio e 37,86% para a prestação de serviços (PREFEITURA MUNICIPAL DE
SÃO JOSÉ, 2004).
O município de São José dispõe de infra-estrutura urbana nos setores de
educação, saúde, segurança, transporte e habitação, porém desigualmente distribuída.
O crescimento rápido e desordenado, favoreceu a ocupação de áreas de mangue,
encostas de morros, abriram-se loteamentos clandestinos sem as condições necessárias
de infra-estrutura, como esgoto, água tratada, disponibilidade domiciliar de banheiro,
de coleta de lixo. O quadro abaixo reflete em números os dados da infra-estrutura de
saneamento do município:
110
QUADRO 5: CONDIÇÕES DE SANEAMENTO DISPONÍVEIS PELO MUNICÍPIO
DE SÃO JOSÉ
ÁGUA TRATADA
São José 99,98% da população atendida
Santa Catarina 85,74% da população atendida
ESGOTO SANITÁRIO
São José 26,16% dos domicílios
Santa Catarina 8,56% dos domicílios
RESÍDUOS SÓLIDOS
São José 98,50% dos domicílios
Santa Catarina 65,30% dos domicílios
Através da Secretaria de Desenvolvimento Social o município desenvolve
programas como: Abrigo/Família Substituta/Apadrinhamento Efetivo; Programa de
Liberdade Assistida/Prestação de Serviços à Comunidade; Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil; Programa Família Cidadã; Programa Anjos da Rua. Dispõe ainda
do Centro Educacional Municipal Cidade da Criança, para adolescentes na faixa etária
de 0 a 18 anos e suas famílias, que se encontram em situação de risco pessoal e social.
Em 1999 São José implantou o PACS, com 8 enfermeiras e 240 ACS e em
agosto de 2001 o PSF, atualmente com 40 ESF, distribuídas em 16 unidades de saúde,
efetuando uma cobertura de 75 % da população. Essas unidades são: Areias, Barreiros,
Bela Vista, Colônia Santana, Ipiranga, Luar, Fazenda Santo Antônio, Forquilhas,
Picadas do Sul, Sertão do Maruim, Procasa, Roçado, Sertão, Serraria, Unidade de
Saúde Santo Saraiva, Jardim Zanelatto. Dispõe ainda de uma Policlínica de Referência
Municipal para os encaminhamentos das unidades básicas de saúde, nas áreas de
Cardiologia, Oftalmologia, Otorrinolaringologia, Mastologia, Urologia, Ortopedia,
Gastro-enterologia, Ginecologia, Obstetrícia, Clínica Médica, Pediatria. Dispõe
também de outros serviços como vacinas, curativos, injeções, eletrocardiograma,
pequenas cirurgias, Raio-X odontológico, teste de esforço e vasectomia.
O município desenvolve outros programas preconizados pelo Ministério da
Saúde tais como: Programa de Tuberculose, de Controle da Hanseníase, da Dengue, da
111
Febre Amarela, da Saúde da Mulher (preventivo de colo de útero e mama, de
planejamento familiar) de pré- natal, SISVAM (Sistema de Vigilância Alimentar e
Nutricional), além de um outro programa do município, o Criança 21 (de recepção e
acompanhamento de bebês nascidos no município e suas mães).
Está habilitado para Gestão Plena da Atenção Básica de Saúde. Em 2003
aplicou 10.06% de recursos próprios em saúde (SIOPS/DATASUS, 2004).
Em São José está instalado o Hospital Regional Dr. Homero de Miranda
Gomes, que pertence à rede estadual de saúde. Este é um hospital geral, público, com
271 leitos, que serve referência nos níveis secundário e terciário de atenção à saúde
do SUS.
5.2 O BAIRRO ‘MARROM’
O bairro ‘MARROM’‘ (esta cor representará o nome do bairro, procedimento
adotado para garantir o anonimato) persegue o contorno da BR 101, sendo que este
posicionamento originou, como ruas principais, aquelas paralelas à BR, que vão
prosseguindo até o limite geográfico de um morro, tendo assim ‘um design’ longo e
estreito. As ruas são relativamente estreitas, asfaltadas recentemente e intensamente
trafegadas.
Chama a atenção de quem circula pelo bairro, a proximidade das casas,
construção predominante, já que o aparecimento de prédios é incipiente, dispostas em
pequenos terrenos, e a pouca disponibilidades de áreas vazias, demonstrando que a alta
densidade demográfica observada no município também está presente no bairro. Uma
parte alta do morro está mais próxima da BR e é ocupada por pessoas de maior poder
aquisitivo (classe média e média alta). A parte mais distante do morro, área onde se
observa expansão do bairro, está sendo ocupada por pessoas de baixo poder aquisitivo,
que fazem construções simples, de madeira, pequenas, de material reciclado. Já na
parte plana do bairro predominam os moradores de classe média baixa, sendo de
menor presença os de classe média e pobre. Há também várias casas grandes porém
112
inacabadas, às vezes envelhecidas, sugerindo que as pessoas não tiveram recursos para
concluí-las. Observa-se com freqüência terrenos que abrigam múltiplas unidades
familiares.
Dispõe de um pequeno comércio e pequenos estabelecimentos de serviços como
salões de beleza, vídeo-locadoras, restaurantes, bares etc. Como infra-estrutura
educacional possui: um educandário que atende 460 crianças de zero a 6 anos, mantido
por doações e pela prefeitura de São José e pela Secretaria de Estado da Educação,
Ciência e Tecnologia; uma escola de primeiro grau e uma de segundo grau, públicas;
uma escola de primeiro e segundo grau privadas, além de uma unidade educacional
estadual voltada a ‘educação especial’. Possui também várias igrejas, das religiões
católica, quadrangular e adventista. Não há áreas arborizadas e jardins nas ruas
principais.
Depoimentos obtidos nas entrevistas de usuários, apresentados a seguir,
descrevem na ótica dos mesmos, o processo de formação e o perfil do bairro:
o ‘Marrom’, foi construído, a princípio, com operários, que vieram de
pequenas regiões do interior do Estado, pedreiros e outros funcionários da
construção civil. Este pessoal construiu bem moradias deles, se vê que não
há favela. E depois, com o desenvolvimento, começou a vir gente de outros
lados e hoje o bairro está cheio de problemas. A diferença é grande pois há
uns 15 anos havia boa convivência, tranqüilidade. O bairro mudou muito,
começou a formar um pouco de bolsão de pobreza. Pra cá veio até gente do
Nordeste, da Bahia, muita gente de outros lugares. Lá não conseguiram nada
e vieram para cá. Assim a convivência não é tão boa mas ainda é um bairro
bom de se morar. Depoimento/Usuário
Considero que este é um bairro bom, mas a infra-estrutura é pequena. Só tem
uma serralheira, a Brahma, um depósito de ferro, dois restaurantes, dois
barzinhos, um centrinho, supermercado, a igreja. Não tem quase nada. Tudo
coisinha. No final das contas o ‘Marrom’ é uma rua. As pessoas que moram
aqui, a maioria é de classe média, média baixa, pouco pobre. Rico eu acho
que não, estão no morro, isolados, mas mesmo assim acho que não podem
ser chamados de ricos, só aparentam ser classe A. No ‘Alaranjado’ (bairro
vizinho) a coisa já muda, é grande, tem de tudo. Depoimento/Usuário
O depoimento a seguir também dá uma idéia do que seja o contexto social do
bairro:
113
dos problemas, eu acho que o maior é o da insegurança. No ‘Marrom’ não
era assim, isto é de agora. Saiu até na TV esses assaltos de moto. Tu podes
estar até com uma sacolinha na mão, que eles vem e levam, assaltam
supermercado, qualquer estabelecimento, salão de beleza, não importa. Tem
desemprego também. Mas aqui não é um bairro que tenha miséria total. As
pessoas trabalham principalmente no Centro e aqui fica quase uma cidade
dormitório. Algumas pessoas trabalham no bairro, em algumas empresas,
lojas, fábrica de bordados. Muitas mulheres são donas de casa até porque
foram acostumadas assim. Poucos jovens ficam aqui. Depoimento/Usuário.
Os moradores também se queixam dos problemas decorrentes da transformação
do bairro em função da instalação de industriais e comércio.
Instalaram indústrias no meio das moradias, ficando este defeito no
bairro.Tem galpão, depósito. Conviver com isto não é fácil, é transtorno para
o morador. Também temos o transtorno da BR. Essas coisas foram um
grande erro das prefeituras, os próprios políticos não viram isso daí.
Inclusive afeta até a saúde: não tem silêncio, o pessoal às vezes não dorme
direito, é caminhão chegando, é caminhão saindo, buzinando, pois os
depósitos estão entre prédios, entre casas. Depoimento/Usuário
Outros depoimentos, de profissionais e de usuários, mencionam problemas de
saúde dos moradores:
a maior clientela do CS são pessoas com diabetes, hipertensão e doenças
crônico-degenerativas. Já os problemas das famílias daqui são idosos
acamados, filhos jovens desempregados, drogas, prostituição, problema com
álcool, de não agüentarem mais alguém dentro de casa, problemas de
relacionamento como ciúme, intolerância, decepção amorosa, angústia,
problemas financeiros, muita depressão e uso de benzo-diazepínicos.
Depoimento/Méd e Enf ESF verde
É a parte social que aflige mais a nossa área, aí considerando a falta de
condições e também a parte afetiva. O financeiro pega bastante porque os
salários são muito baixos, muitos têm financiamento da casa, aluguel, aí
começam a ficar preocupadas. Os idosos que são muitos aqui, são solitários
e carentes de atenção, tem crianças na rua que não estudam, mães solteiras,
relaxamento no cuidado da casa, moradias precárias.Tem muitas mulheres
com depressão quando os filhos crescem, porque agora eles têm interesses
fora da família. Depoimento/ACS
114
Os problemas daqui são de saneamento básico, de esgoto que foi construído
de forma inadequada e aqueles decorrentes da construção de galpões
industriais no meio das residências. Droga tem muito e uma rapaziada vem
de fora, de carro, buscar no ‘Marrom’. Tem bastante problema de depressão
causada principalmente pelo endividamento das pessoas. As meninas aqui
engravidam e vão para prostituição com facilidade. Aqui tem muitas casas
de fachada que são prostíbulos. Depoimento/ Usuário
Para fins de cobertura das ESF o bairro ‘Marrom’ foi dividido em três áreas
gerando três equipes responsáveis ou ESF ‘verde’, ‘azul’ e ‘amarela’ respectivamente.
Os moradores da área mais abastada, adscrita a ESF amarela, por procurarem muito
pouco o CS, podiam ser atendidos por qualquer ESF. Os ACS referiam estarem
percebendo uma mudança da postura dos moradores desta área mais abastada,
conforme mencionado a seguir : ‘várias pessoas que tinham melhor poder aquisitivo
não estão mais podendo pagar seus convênios e têm chamado os ACS para se
cadastrarem no SUS’. Depoimento/ACS.
A primeira divisão, para a definição da cobertura pelas equipes, orientou-se
pelo mapa do bairro mas isto se configurou num problema conforme mencionado nos
depoimentos a seguir:
mais ou menos com um ano de PSF, com o levantamento da realidade, viu-
se que algumas áreas ficaram sobrecarregadas, aí a divisão foi refeita, duas
vezes, pra deixar mais ou menos por igual o número de famílias. Não deu
pra ficar a divisão original feita pelo mapa; algumas áreas têm mais
prédios/apartamentos e outras casas; nos apartamentos há um acumulo de
pessoas, acaba sendo mais famílias pros ACS acompanharem. Depoimento
/Enf ESF amarela
Esta divisão causou até um desconforto na comunidade porque nós já
tínhamos divulgado como ia funcionar mas, de repente, a gente dizia: não a
senhora não pertence mais a essa área; agora é outro médico, outra
enfermeira e outra área. ‘Mas como que pode acontecer isso? eu não quero
mudar’, aquela coisa toda, assim. Com muita conversa e explicando como
funcionava o Programa e o número de famílias, fazendo com que eles
entendessem, as coisas ficaram mais tranqüilas. Hoje em dia ainda tem
pacientes que não aceitam; hoje em dia acho que foi superado pelo menos
80% desse problema. Depoimento/Enf ESF amarela
115
Na área da ‘ESF amarela’ é muito difícil de ser feito o cadastramento já
que ali existem muitos prédios e não depende só do ACS. Nos apartamentos
as pessoas estão ausentes durante o dia ou não aceitam ser visitadas; são
desconfiadas, tem medo de estranhos e para entrar no prédio é preciso
falar/agendar com o síndico. Depoimento/ACS
O cadastramento que a gente faz está sempre inacabado, recomeçando,
principalmente porque aqui tem muita gente que mora de aluguel, sempre
estão se mudando e chegando gente nova. Depoimento/ACS
5.3 O CENTRO DE SAÚDE
5.3.1 O INÍCIO
O Centro de Saúde (CS) do bairro ‘Marrom’ é uma unidade do tipo NIS II
(Núcleo Integrado de Saúde) com atendimento nas especialidades de clínica geral,
ginecologia, obstetrícia, pediatria, atendimento odontológico e de enfermagem. Foi
inaugurado em setembro de 2001, com a proposta de desenvolver o PSF. Foi uma
resposta do poder público municipal às reivindicações da comunidade conforme
expresso a seguir:
a comunidade não tinha unidade de saúde. Então, como eram mais de 4.000
famílias aqui ao redor, eles tinham essa necessidade e foram na prefeitura
atrás de seus direitos, pra construir um CS. Depoimento/Enf ESF amarela
Os depoimentos apresentados a seguir também se referem ao evento de
instalação do CS na comunidade e seu significado:
pra conseguir o posto fizemos muito abaixo assinado, muita reunião. O
terreno onde o Posto foi construído era público, baldio e estava desocupado.
Realmente a gente ter médico, enfermeira, dentista, auxiliar, atendente, isso
é um ponto positivo aqui. Pode ser que tenha algum problema mas isso aí a
gente deixa de lado. Depoimento/Usuário
A construção do Centro de Saúde facilitou pra todo mundo pois antes a
gente ficava perdido, procurando onde se tratar. Depoimento/Usuário
116
O trabalho de organização, de preparação para o funcionamento do CS foi
efetuado principalmente pelas três enfermeiras admitidas para o PSF, seguindo as
diretrizes da coordenação municipal do PSF, já que a conclusão do contrato dos
médicos se deu após a preparação do local. A tarefa desenvolvida pelas enfermeiras
foi desafiadora conforme verificado em seus depoimentos:
o início foi um desafio. Eu me vi quase louca, porque ainda não tinha um
serviço funcionando. O CS tinha acabado de ser construído, não tinha nada
dentro, só sujeira e os pedreiros. Também tinha o problema das pessoas que
vinham pra cá, que não tinham experiência de PSF. Depoimento/Enf ESF
azul
Em três meses montamos o CS, dividimos a área física de outra forma,
equipamos as salas, estruturamos a forma de funcionar enquanto
esperávamos que os agentes e os auxiliares tivessem capacitação, que
chegassem os médicos. O trabalho foi sendo implementado aos poucos. A
gente começou a colocar idéias, a montar, a saber o que a gente ia fazer.
Depoimento /Enf ESF amarela
O início do funcionamento do serviço foi marcado pela imensa demanda de
atendimento conforme mencionado no depoimento a seguir:
quando abrimos o CS os diabéticos e os hipertensos apresentaram uma
demanda impressionante, surpreendente, a fila dava volta no CS. Eles
estavam sem atendimento, totalmente descontrolados, descuidados; outros se
sentiam mal e nem tinham diagnóstico. Hoje a demanda se normalizou e há
outro perfil de problemas: muita depressão, ansiedade, sofrimento.
Depoimento/Enf ESF azul
Além do atendimento no CS as equipes foram divulgando o PSF,
desenvolvendo outras atividades como a formação de grupos de saúde, do Conselho
Local e estruturando o sistema de visitas domiciliares. O depoimento abaixo reflete
sinteticamente os eventos mencionados:
assim que foi inaugurado foi formado o Conselho Local e como se faziam
as reuniões no CS já fomos conversando com os líderes da comunidade
sobre o PSF. Também a gente aproveitou os grupos de saúde que a gente
montou pra poder divulgar o trabalho do PSF. Depoimento/Enf ESF
amarela
117
5.3.2 A ESTRUTURA
O CS está localizado próximo à BR 101, junto à uma estação de processamento
da Central Elétrica de Santa Catarina e em frente ao colégio privado, de primeiro e
segundo grau.
Na frente do CS há uma área livre, ou pequena praça, com alguns canteiros de
grama e áreas de circulação, lajotadas, para a passagem das pessoas. Não há árvores ou
outras plantas no local, o que faz com que o CS pegue sol direto no verão, trazendo
desconforto para profissionais e população. O local dispõe de dois bancos de jardim,
onde as pessoas descansam, conversam e também uma área de estacionamento para
aproximadamente dez carros, usados pelo ‘staff’ do CS e pelos usuários, além dum
abrigo de ônibus. Assim é bastante acessível e visível. Possui uma área 270 m2, tem
estrutura física retangular e as seguintes dependências: hall, que é relativamente
espaçoso, com bancos e que se constitui num dos principais pontos de permanência
dos usuários enquanto esperam ser atendidos. Este é um local movimentado,
especialmente nos dias em que há atendimento pelo pediatra. Nos fundos deste espaço
se encontra o balcão de atendimento/recepção, cadeiras e em seguida um armário onde
ficam os prontuários dos usuários.
A partir do hall, à direita, encontram-se as salas de vacina, consultório médico,
novo espaço de espera, pequeno, com cadeiras, sala de procedimentos (verificação da
pressão, nebulização, injeção, etc.) consultório de ginecologia-obstetrícia, consultório
odontológico, pequeno almoxarifado, banheiro, pequeno espaço para
esterelização/desinfecção de materiais.
À esquerda encontram-se: farmácia, uma pequena sala destinada a pré consulta
infantil, onde as crianças são pesadas, medidas e se realiza o teste do pezinho. A
seguir, outra sala pequena, usada para atividades administrativas com computador,
mesa, cadeira, documentos do CS; consultório médico; banheiro; copa/cozinha;
expurgo; pequena sala com múltiplos usos, seja como consultório pelos médicos,
nutricionista, psicólogo, estagiários, ACS, enfermeiras; pequena sala com uma
máquina de lavar roupa; consultório; outro consultório que depois foi transformado
em sala de pequena cirurgia e sala de curativos. Na estrutura descrita não há ambiente
para trabalho de grupos, reuniões de equipe, e certos ambientes não oferecem
118
conforto principalmente para os profissionais da enfermagem e ACS. A condição
observada gerou a seguinte nota de campo:
os ACS, enfermeira e médica da ESF azul estão desenvolvendo sua reunião
semanal no consultório do médico da ESF azul. Parte dos ACS fica de pé,
parte senta-se na maca. O médico, a enfermeira e a pesquisadora sentam-se
nas cadeiras disponíveis. A sala fica super lotada e o desconforto aumenta
por ser um dia quente. A reunião dura mais ou menos uma hora, sendo parte
destinada ao trabalho da equipe e parte à educação dos ACS. NOTA DE
CAMPO 19/01/2004.
Sobre a estrutura física do CS se posiciona o médico da equipe verde
eu acho que saúde da família tinha de ser uma casa pra cada equipe. Tinha
que ter quartos, cozinha, um lugar pra ver televisão, pra tomar café. Eu acho
que essa construção, arquitetura SUSística de posto de saúde é horrível, né?
Precisava ser uma coisa mais aconchegante, mais colorida, umas plantinhas
e tal, um quadro na parede, seria muito mais legal. Isso aqui fica parecendo
um pronto socorrão. PSF não é esse branco, estéril, com cheiro de éter, nem
o hospital está sendo mais assim. Depoimento/Med ESF verde
Algumas atividades ligadas ao CS são desenvolvidas em outros espaços da
comunidade tais como: na Igreja Matriz do Marrom (grupo de saúde da ESF azul), na
Igreja Nossa Senhora do ‘Marrom’ (grupos de saúde das ESF azul e amarela), no
colégio de primeiro e segundo grau privado (Grupo de Sofrimento Psíquico) e na
escola de primeiro grau pública (atendimento semanal de pré-escolares, pelo médico
da ESF verde).
O CS é campo de estágio de acadêmicos da UNIVALI (Universidade do Vale do
Itajaí) e UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina) e da Escola Geração. Assim
agregam-se aos trabalhos da ESF, atendimento nas áreas de psicologia, nutrição e fisioterapia.
O CS também é procurado para o desenvolvimento de trabalhos acadêmicos de conclusão de
curso e de pesquisa. A agregação citada sofre as interrupções do calendário escolar e a
renovação das pessoas envolvidas.
119
5.3.3 CONDIÇÕES E PROCESSO DE TRABALHO DAS ESF
O horário de funcionamento do CS ocorria das 07:00 às 19:00 e de atendimento
das ESF das 08:00 às 17:00. Os usuários possuíam cartão do SUS preenchido pelos
ACS. Os prontuários eram individuais, guardados em armários específicos, por ordem
alfabética.
No quadro de pessoal do CS encontravam-se membros não ligados ao PSF: 01
(uma) ginecologista, 01(um) pediatra, 02 (dois) odontólogos, 03 (três) técnicas de
enfermagem, 02 (dois) auxiliares de enfermagem e 01(uma) faxineira.
O PSF dispunha de 03 médicos (três), 03 enfermeiras (três) , 06 (seis) auxiliares
de enfermagem e 11(onze) ACS. Os ACS eram concursados e ganhavam em torno de
1 salário mínimo. As enfermeiras foram selecionadas através de prova escrita e
entrevista e os médicos por análise de currículo e entrevista. A forma de contratação
dos médicos e enfermeiros se deu através de Regime Especial Temporário (RET) com
a Secretaria Saúde (SS) do município de São José.
De setembro de 2003 a março de 2004 saíram das ESF o médico da ESF
amarela (setembro de 2003), o médico da ESF azul (março de 2004), a enfermeiras da
ESF verde (outubro de 2003), a enfermeira da equipe azul (março de 2004). Em
outubro foi admitido um novo médico para ESF amarela e uma nova enfermeira para
ESF verde. As razões das saídas foram: uma demissão após conflito com usuários, SS
e colega enfermeira (médico da equipe amarela), uma demissão voluntária por
insatisfação com as condições de trabalho (médico da equipe azul) e duas
transferências para quadros da SS, para contratos ‘mais seguros’ ou estatutário e com
carga trabalho de seis horas/dia (enfermeiras da ESF verde e azul). Destaque-se que
uma enfermeira esteve vários períodos afastada, entre setembro e novembro de 2003,
por problemas de gravidez e posteriormente entrou em licença de gestação, além do
que médicos e enfermeiros tiveram férias no período. No quadro abaixo esquematizo
as mudanças que transcorrem no quadro de enfermeiras e médicos das ESF, dada a
ligação com certos eventos relacionados ao tema do vínculo, que serão posteriormente
120
apresentados, chamando atenção para a presença de um único médico e de uma
enfermeira no CS em parte do mês de setembro e outubro de 2003.
QUADRO 6: ACOMPANHAMENTO DA PRESENÇA DOS MÉDICOS E
ENFERMEIROS NO CS DE SETEMBRO DE 2003 A MARÇO DE 2004
MESES/ SET. OUT. NOV. DEZ. JAN. FEV. MAR.
MÉDICO
DA ESF
VERDE
PRESENTE PRESENTE 1/2FÉRIAS 1/2FÉRIAS PRESENTE PRESENTE PRESENTE
MÉDICO
DA ESF
AZUL
1/2FÉRIAS 1/2FÉRIAS PRESENTE PRESENTE PRESENTE PRESENTE DEMISSÃO
MÉDICO
DA ESF
AMARELA
DEMISSÃO - - - - - -
2 MÉDICO
DA ESF
AMARELA
- ADMISSÃO PRESENTE PRESENTE PRESENTE PRESENTE PRESENTE
ENFER-
MEIRA DA
ESF
VERDE
FÉRIAS
DEMISSÃO
-
-
-- - -
2 ENFER-
MEIRA DA
VERDE
-
ADMISO
PRESENTE PRESENTE PRESENTE 1/2FÉRIAS 1/2FÉRIAS
ENFER-
MEIRA DA
ESF AZUL
PRESENTE PRESENTE 1/2FÉRIAS 1/2FÉRIAS PRESENTE PRESENTE DEMISSÃO
ENFER-
MEIRA DA
ESF
AMARELA
ATESTADOS
ATESTADOS
ATESTADOS
LICENÇA LICENÇA LICENÇA LICENÇA
Até o mês de julho de 2003, uma auxiliar de enfermagem desenvolvia a função
de coordenadora do CS. Daí em diante as três enfermeiras passaram a dividir a
coordenação, uma assumindo a responsabilidade pelo pessoal, outra pelos recursos
materiais do CS e outra pela parte burocrática. Tal situação configurou-se
problemática, tanta na primeira, quanto na segunda condição. Um usuário em sua
entrevista mencionou:
um erro que teve neste ‘Posto’ foi a questão da chefia. As pessoas
ignoravam quem era porque ela não estava na linha de frente, tinha gente
que pensava que eram as enfermeiras. Ela também tratava muito mal as
pessoas. Depoimento/ usuário
121
O problema da segunda condição decorria de haverem várias responsáveis pela
coordenação. Por outro lado isto também acarretava maior integração no trabalho das
enfermeiras que dos médicos. Sobre isto produzi a seguinte nota de campo:
em função da ausência de um coordenador oficial para o CS divide-se o trabalho
burocrático/administrativo mas não o imaterial, o que diz respeito à construção de
um contexto interacional para o trabalho das equipes. Por vezes a enfermeira da
ESF azul assume a liderança, mas a abandona em função de não ser validada
oficialmente; assim condução fica com certos interstícios por não estarem sob
responsabilidade de ninguém. NOTA DE CAMPO 29/10/2003
Os médicos e enfermeiras desenvolvem consultas, visitas domiciliares, grupos
de diabéticos e hipertensos e reuniões de equipe.
O agendamento das consultas médicas era feito por ordem de chegada, desde
que no limite de 11 (onze) consultas/por turno de trabalho. Cada médico ainda
dispunha de 02 (duas) consultas/por turno para atendimento de urgências. Não se
efetuava acolhimento de forma sistematizada e boa parte da triagem era feita pelas
funcionárias de recepção. Dependendo da situação, os usuários eram encaminhados às
enfermeiras que avaliavam as necessidades dos mesmos. Às vezes as enfermeiras iam
até o médico, expunham a situação e encaixavam o nome do usuário na agenda se o
médico concordasse com o atendimento. Outras vezes o médico e enfermeira decidiam
em conjunto o que fazer.
Atividades desenvolvidas pelas enfermeiras, como acompanhamento do
crescimento e desenvolvimento de crianças (ACD), de saúde da mulher, do SISVAM,
da criança 21, eram agendadas conforme procura e de forma programada nos
atendimentos seqüenciais.
No CS os médicos em geral estavam desenvolvendo consultas. Saiam uma vez
por semana, no período da manhã, para as visitas domiciliares e o médico da equipe
verde saía um outro período para consultar crianças em uma escola. Participavam das
reuniões de suas equipes e também das reuniões dos médicos e enfermeiros, estas
iniciadas em novembro de 2003.
No mês de setembro/03 os médicos das equipes azul e amarela estavam
concluindo um curso de Especialização em Gerontologia, nas sextas feiras à tarde.
122
Neste período só se agendavam consultas de urgência, atendidas pelo médico da
equipe verde. A SS não liberava esta carga horária sendo que os médicos tinham de
repô-la durante a semana, o que gerava protestos dos mesmos, que consideravam ser
próprio da SS pensar só na ‘produção’ e valorizar apenas a formação que ela própria
propunha.
Nas consultas médicas observadas (o médico da ESF verde não autorizou a
observação das suas consultas) as atividades desenvolveram-se em torno do eixo
queixa/diagnóstico/tratamento. A contextualização/inclusão de aspectos emocionais,
familiares, culturais, sociais, a instrumentalização dos usuários para tomada de
decisões, era incomum e também não abrangia a totalidade do que era apresentado
pelos usuários. Nas consultas onde emergiam esses aspectos, os médicos
implementavam técnicas para estabelecer um limite na sua apresentação; os usuários
reconheciam os limites colocados e a consulta retomava ao eixo original.
Nas consultas os médicos observados (ESF azul e ESF amarela) constantemente
demonstravam comportamentos tais como: receber o usuário de forma empática
ajudando-o a sentar-se quando apresentava alguma dificuldade, olhar nos olhos,
escutar atentamente, manter a privacidade fechando porta, cobrir com lençol durante
exame físico, resgatar temas anteriores incluindo questões da vida pessoal do usuário e
sua família, demonstrar afetividade abraçando e beijando, criar momentos de
descontração e humor, certificar-se que os usuários entendiam sobre como deveriam
proceder. Partiam dos profissionais as orientações mas havia espaços para negociação
como mudar um remédio já conhecido e de pouco efeito, fazer algo de outra forma,
incluir algo mais. Abaixo apresento registro de consulta observada do médico da ESF
azul, procurando evidenciar alguns aspectos acima referidos:
assisto a consulta de uma usuária de 67 anos, portadora de diabetes melitus.
Por estar obesa entra no consultório caminhando com certa dificuldade. No
início do encontro o médico da ESF azul cumprimenta a usuária, ajeita a
cadeira tornando seu alcance mais fácil e pergunta como ela está. A usuária
começa a desfilar uma série incontável de queixas: aumentara muito de peso,
labirintite, está com falta de ar, tem ardor na vagina, tem problema de
123
intestino demorando dois a três dias para evacuar, sente dor no local de uma
recente cirurgia de hérnia inguinal. Num dado momento, ao verificar o
resultado de um exame, o médico de ESF azul fala dum problema de
corrimento. A mulher diz que não tem relações sexuais há 11 anos, por
causa do problema da cirurgia (O médico de ESF azul fala a pesquisadora,
depois da consulta, que ela fizera uma cirurgia de reconstituição vaginal e
houvera um problema de colabamento, o que estava impedindo a vida sexual
do casal). O médico foi anotando cada problema e prescrevendo algo para
os mesmos. Dava explicações sobre os problemas mencionados e instruções
sobre as medicações prescritas. Também conversaram sobre o cachorro da
usuária. Terminada a consulta se despedem com abraço. O médico da ESF
azul ainda fala à pesquisadora que o marido da paciente também era
poliqueixoso. Durante todo o atendimento o médico de ESF azul falou com
cortesia, escutou com atenção, chamou usuária pelo nome, cobriu-a com um
lençol durante o exame físico e também levou em conta quando a usuária
disse que não dispunha de dinheiro para comprar medicamentos. NOTA
DE CAMPO 20/11/2003
Minha reflexão sobre esta consulta, onde a usuária traz uma enorme gama
de queixas físicas, foi de que esta requeria a contextualização de suas
queixas, em especial com respeito à sexualidade do casal. Pensei sobre
como está se tratando no PSF a potencialidade da dor emocional
transformar-se em problema físico. No atendimento predominou a
focalização nas queixas mas parecia haver outros problemas importantes de
fundo. O médico de ESF azul demonstrou conhecer detalhes da vida
familiar, mas estes não foram usados para ampliar a base do atendimento.
Também apresento registros de uma consulta observada do médico da ESF
amarela.
O médico de ESF amarela consulta uma usuária aparentando ter 40 anos
idade, que entra no consultório com a fácies contrita, parecendo ter muita
dor. Recebe a mulher com cordialidade, demonstrando preocupação com sua
expressão e também demonstrando conhecê-la, já que conversa resgatando
assuntos anteriores. Também se lembra dos problemas de saúde da usuária
sem recorrer ao prontuário. Ela apresenta resultados de exames e o médico
confirma uma infecção do trato urinário; a mulher queixa-se também de dor
de cabeça e fraqueza. O médico questiona sobre a possibilidade de comprar
alguns remédios e frente à resposta negativa vai até a farmácia verificar se
há medicamentos disponíveis para o tratamento. No retorno a usuária faz
perguntas sobre como se pega infecção urinária, se está relacionada com
frio nos pés e o médico dá explicações genéricas. A usuária pede ainda um
atestado referindo que não se sente em condições de trabalhar. O médico sai
novamente da sala para apanhar o impresso específico. Nesta ausência a
usuária vira-se para a pesquisadora que está sentada no fundo do consultório
e se diz aflita por não estar conseguindo trabalhar. Cuida do setor
administrativo de quatro prédios e não consegue alguém para ajudá-la.
Também diz que como o orçamento é apertado e não conseguira compra
botas e circula por áreas molhadas e frias, achando que esta possa ser a causa
para sua infecção. Quando o médico retorna a sala à mulher interrompe a
fala. O médico completa a prescrição, faz anotações; usuária e médico
despedem-se com cordialidade. NOTA DE CAMPO 21/01/20
124
Considerei que a forma do médico acolher a usuária fora muito empática. A
consulta orientou-se no eixo queixa-diagnóstico-tratamento. Quando
perguntou sobre ‘como se fica com ITU’ a usuária já tinha efetuado uma
relação entre sua queixa e condições de trabalho. Como não se criou a
condição de contextualização da queixa, perdeu-se o espaço para ampliar o
atendimento. Nem o acolhimento empático (ou talvez fora a pressa do
médico em dar uma explicação à pergunta da usuária sem ouvi-la ou
questionar o porquê de suas dúvidas) criou as condições para a superação
das inibições clássicas conseqüentes à assimetria presente na relação
médico-paciente. NOTA DE CAMPO 21/01 /2004
No CS o trabalho dos médicos e das enfermeiras estava organizado de maneira
diferente: os médicos trabalhavam no espaço privado, no consultório, pouco
circulando nos corredores e se o faziam era rapidamente. Tinham pouco contato com
as enfermeiras ou com outros funcionários, a não ser quando procurados. Os médicos
das ESF azul e amarela saíam de suas salas e vinham ao corredor chamar os usuários
para consulta; às vezes neste espaço faziam algumas interações. Suas agendas
usualmente estavam preenchidas no limite estipulado. Os médicos eram ‘vigiados’
pela comunidade e quando não chegavam no horário, não estavam consultando, a
reclamação da comunidade era forte; às vezes ligavam para a SS queixando-se. O
médico da ESF azul demorava mais nas consultas, entre 10 e 15 minutos e o da ESF
amarela a metade deste tempo.
Sobre essa rotina de trabalho manifesta-se um dos médicos:
os médicos do bairro ‘Marrom’ atendem prá caramba, o tempo todo. A
maioria das pessoas tem um tempinho pra conversar, pra escrever, pra tomar
café, pra programar a festinha. Eu entro no posto e fico preso o dia todo,
não sei o que está acontecendo na comunidade. Depoimento/ Med ESF
verde
Há dias em que aumenta a demanda dos usuários sobre os médicos, para além
daquelas produzidas em função do eixo queixas/diagnóstico/tratamento, ou seja são
colocadas aquelas decorrentes da interface das doenças com contexto psico-social.
Nestas situações observei que a ‘produção’ das consultas fica ‘comprometida’, tudo se
‘atrasa’ e os médicos passam a demonstrar ansiedade, cansaço, exasperação. Buscando
evidenciar as afirmações efetuadas apresento uma nota de campo gerada sobre o tema:
observo o médico da ESF azul e vejo que tem o rosto tenso, age com
impaciência após vários atendimentos e outros tantos por fazer. Um
momento sai do consultório para tomar água e faz uma observação: ‘ hoje
tem de tudo, pais desesperados por recaída do filho nas droga, depressão por
125
desemprego, medo, câncer....’ Os funcionários do posto do CS reconhecem a
exasperação do médico e falam com cuidado, para não ‘piorar o clima’, com
o receio do médico ‘surtar’. Comento o fato com a enfermeira da ESF
amarela e ela diz que ele é pago para fazer isto, que este é seu trabalho. Não
consegui concordar; havia observado o alto fluxo de usuários, que não havia
tido nenhum respiradouro para o médico, só produção; conseguia entender
sua exasperação. NOTA DE CAMPO 03/11 /2003
Para as enfermeiras apenas parte da agenda estava objetivamente tomada com
ACD, consultas de pré-natal, reuniões com ACS. Elas iam incorporando, construindo a
agenda em ato, conforme demanda da clientela, dos ACS, dos outros funcionários do
CS e da SS (as enfermeiras eram chamadas com freqüência na SS). Investiam ainda
uma boa parte de seu tempo de trabalho dando sustentação na organização e
funcionamento do CS e para fazer a engrenagem do modelo biomédico funcionar ou
seja acolhendo usuários com queixas de saúde, na marcação de exames, abrindo
espaços na agenda de consultas médicas, conseguindo medicamentos, atendendo na
farmácia. Desta forma, uma parcela de trabalho cotidiano das enfermeiras dificilmente
poderia ser nomeado como ‘produção’, como no caso da consulta médica. Ou,
colocando a questão de outra forma: seria possível efetuar um relatório de produção
discriminando: produzidas 02 horas de escuta em corredor, uma hora de teste
equipamento, meia hora de atendimento de visitantes, (autoridades, técnicos, alunos),
20 minutos de mediação de conflitos, etc.? Do próprio telefone havia uma demanda
grande de trabalho das enfermeiras que eram chamadas para orientar, encaminhar algo
que os clientes necessitassem, responder pedidos de apoio, de parecer frente a diversas
situações. Os funcionários do CS e as próprias enfermeiras não triavam as atividades
que iam sendo incorporadas. Como conseqüência observei que duas enfermeiras, da
ESF verde e da ESF azul absorviam muitas atividades, mantendo-se sobrecarregadas,
enquanto que a enfermeira ESF amarela parecia não ter muito a fazer.
A diferença no trabalho dos médicos e das enfermeiras gerava incompreensão
conforme mencionado no depoimento a seguir:
os médicos não compreendem o trabalho da Enfermeira. Enfermeira atende
ACS, faz pré-natal, faz ACD, atende o público. São múltiplas coisas, visita,
atendem telefone. Já a atividade dos médicos varia pouco. Depoimento/
Enf ESF amarela
126
As enfermeiras constituíam-se portanto, nas representantes da ESF no espaço
público do CS, sendo mais facilmente encontradas nele, exceto nos dias de
fechamento de relatórios, quando se recolhiam às salas disponíveis do CS, diminuíam
as interações, demonstravam mais pressa, menos paciência, maior tensão corporal,
facial, na comunicação.
Construindo pois seu trabalho em torno do burocrático-administrativo do CS,
fazendo a sustentação do modelo biomédico de assistência, as enfermeiras sacrificam
as atividades extramuros recomendadas para o PSF, como visitas, atividades
educativas, ações intersetoriais, desenvolvimento de trabalhos sistematizados que
inclussem as dimensões psico-sociais da saúde na assistência ou um apoio mais
substancial do trabalho dos ACS. Não é que nunca o fizessem, mais isto não se
configurava como prática diária, dado a priorização efetuada.
Apesar de investir boa parte de seu trabalho no alcance dos objetivos do modelo
assistencial biomédico as enfermeiras consideram, mais que os médicos, as dimensões
psico-sociais envolvidas nos problemas de saúde-doença. Em geral as enfermeiras das
ESF não desenvolviam de forma sistematizada, orientada metodologicamente a
assistência destas dimensões. As notas de campo apresentadas a seguir buscam
evidenciar as afirmações efetuadas:
a enfermeira da ESF verde tem agendado uma consulta de ACD de um
bebê, filho de uma adolescente. A jovem chega ao CS em pânico pois fora
abordada e seguida por pessoas desconhecidas que insistiam que entrasse no
carro em que estavam. A jovem temeu que pudessem querer seu bebê. A
enfermeira da ESF verde acalma a jovem, oferece cadeira, água, e só efetua
atendimento do bebê quando a mãe parece bem. Ainda conversa com a
jovem sobre a situação de desemprego do marido e se alegra com a
confirmação de que ele estava trabalhando. A enfermeira avisa alguns
funcionários sobre o ocorrido e que irá levar a jovem em casa. A enfermeira
faz o que dissera, levando a jovem em seu carro, após observação cuidadosa
das imediações do CS para certificar-se de que aquelas pessoas não estavam
por perto. NOTA DE CAMPO 26/11 /2003
A enfermeira da ESF verde desenvolveu a parte técnica do atendimento à
criança, deu apoio e proteção à mãe, resgatou questões familiares. Porém
considerei que seria desejável que sua ação assumisse também uma
dimensão social comunitária, envolvendo os outros membros da equipe, com
ações intersetoriais, no sentido de verificar se a comunidade estava sob
ameaça de seqüestradores de criança. NOTA DE CAMPO 26/08 /2003
127
Para a enfermeira da ESF azul observei, em um número maior de vezes, que
além de incorporar dimensões psico-sociais também evidenciava sistematização destas
dimensões na assistência desenvolvida. O exemplo abaixo procura evidenciar esta
afirmação:
a enfermeira da ESF azul refere estar preocupada com um casal que a
procurara no dia anterior. O marido era portador de hepatite B, usuário de
drogas, tinha tentado suicídio em função de depressão intensificada por
desemprego e dívidas. A mulher não trabalhava fora. Estavam sem apoio
familiar tanto por parte da mulher como do marido. A enfermeira da ESF
azul efetua uma visita domiciliar onde, junto com o casal, reflete sobre a
situação e alternativas possíveis, inclusive de trabalho da mulher. Também
se prontifica a imprimir um currículo do usuário para que ele possa entregá-
lo à empresas. Define com o usuário a necessidade de um trabalho
psicoterápico, que é prescrito pelo médico ESF azul, após tomar ciência do
que estava ocorrendo através da enfermeira. NOTA DE CAMPO 14/10
/2003
As visitas domiciliares dos médicos eram semanais e o público alvo eram
usuários acamados ou impossibilitados de irem ao CS. Era comum possuírem várias
complicações decorrentes de sua doença e nestes casos eram também acompanhados
por especialistas. Sobre esta condição pude observar que:
sob certos aspectos as visitas domiciliares médicas repetem o atendimento
produzido no consultório já que seu foco é a verificação das queixas e
continuidade do tratamento da doença. Ou vir ao domicílio não rompe ou
inova o modelo de assistência. O que difere são as interações que se
ampliam, aumenta ‘a amizade’. Também aumentam as demandas sobre o
médico, pois muitas vezes outros familiares solicitam atendimento. Algumas
as vezes se descortinam conflitos ligados ao gerenciamento das situações
que o problema de saúde do familiar acarreta, ou se sabe mais da família,
mas isso não muda o modelo porque este ‘mais’ não vai se constituir num
foco formal, sistemático, continuado da ação dos profissionais médicos ou
da equipe. NOTA DE CAMPO 28/11/2003
Na prática, a falta de contra referência obriga os médicos do PSF a fazer um
‘garimpo’ buscando informações nas cestas ou sacos de medicamentos,
usuais nos domicílios, nos envelopes de resultados de exames e também
questionando as famílias. Esse recurso os mantém de alguma forma situados,
acompanhando o que passa com os usuários, buscando um jeito para poder
manter algum papel sem errar, duplicar. Às vezes a informação é volumosa
e eles concentram-se tentando captar a informações, registrá-las,
configurando um presente ausente. NOTA DE CAMPO 28/11/2003
128
Usuários vistos por vários médicos, com prescrições oriundas destes, nem
sempre permitem ao médico uma maior flexibilidade no atendimento, assim
ficam ‘meio engessados’, atuando como replicadores de prescrições,
gerando alguns de seus protestos. Em certas ocasiões as famílias
questionam prescrições dos especialistas, forçando o médico a adotar uma
posição com implicações éticas. Outras vezes o que ocorre é os médicos não
concordam com o tratamento implementado e neste caso a família fica na
condição de ter de fazer uma escolha sobre ‘quem está certo’ NOTA DE
CAMPO 28/11/2003
Embora a previsão das visitas das enfermeiras sejam também semanal estas
realizavam pouco tal atividade, mais quando havia uma situação premente. As visitas
não eram usualmente realizadas com o médico, exceção feita à enfermeira da ESF
azul, onde foram observadas algumas visitas conjuntas. Numa das visitas elaborei a
seguinte nota de campo:
a enfermeira e médico da ESF azul visitam um casal de idosos, em crise
emocional, decorrentes de uma inesperada invalidez do marido por trauma
de quadril pós acidente de trabalho. Nos momentos que antecedem a visita
os profissionais definem qual será a estratégia de abordagem, acordando
focalizar o auto-cuidado da mulher que estava mais afetada. Conversam com
o casal sobre o que está ocorrendo com eles, enfatizam a necessidade da
mulher cuidar mais dela, para diminuir o estresse, sobre a necessidade do
casal se unir e evitar interferências dos filhos. O médico também faz exame
físico do usuário, faz questionamentos, estimula-o a levantar-se e ele
consegue isto com o apoio da esposa. A enfermeira verifica PA do casal.
Médico e enfermeira demonstram sintonia, conhecimento mútuo,
camaradagem, integração entre si. NOTA DE CAMPO 27/08/2003
Numa outra visita observada, desta feita efetuada pela enfermeira da ESF verde
verifiquei que:
enfermeira da ESF verde se desloca com seu carro para fazer curativo num
domicílio. A usuária era uma senhora idosa, obesa, acamada, hipertensa,
portadora de úlcera em ambas as pernas. A enfermeira faz esse curativo 3 x s
por semana. Na última semana não viera e a perna direita infeccionara. As
condições no domicílio, para fazer este curativo de alta complexidade eram
adversas: a cama era baixa, havia necessidade de várias improvisações. A
enfermeira diz que em certos dias sente dor nas costas. Enfermeira
cumprimenta todos, trata as pessoas pelo nome, demonstra que conhece
bem a família e o clima é de cordialidade. A família e a enfermeira da ESF
verde vão implementando um conjunto de ações e adaptações, fazendo
progredir o curativo; há um diálogo cortês, amigo, mas enfermeira mantém
um foco no aspecto técnico, revendo com a usuária a forma de cuidar da
perna. NOTA DE CAMPO 27/08/2003
129
Considerei que a interação se deu de forma horizontalizada, o cuidado foi
negociado e a enfermeira efetuou orientações sobre o cuidado. Por outro
lado, se a ausência da enfermeira foi o motivo da instalação de
complicações, a usuária e sua família se mantêm dependente de um cuidado
que a enfermeira vem desenvolvendo há meses.
As três equipes colocaram que realizavam mensalmente grupos de saúde
(voltados principalmente para os diabéticos e hipertensos). Observei que isto foi
efetivamente realizada pelo médico da ESF verde; ACS da ESF também compareciam
à atividade.
Destaco que atividades desenvolvidas com pouca freqüência, tais como visitas
domiciliares das enfermeiras, grupos das ESF azul e amarela, nem sempre puderam
ser observadas, em função da impossibilidade de presença contínua da pesquisadora
no campo, no período de coleta de dados. Em função da baixa freqüência das
atividades de grupo da ESF azul, observei apenas uma reunião, a qual foi conduzida
por estagiários de nutrição. Neste dia o médico da ESF azul ficou no CS, envolvido
com as atividades usuais e a enfermeira realizou uma visita domiciliar, atendendo o
pedido de uma família. Já para a ESF amarela não foi observada nenhuma atividade
deste grupo, embora tenha sido informada da ocorrência de uma reunião no período de
coleta de dados (entre set./03 e mar./04).
A observação das atividades do grupo de saúde do médico da ESF verde gerou
notas de campo como a apresentada a seguir:
o grupo educativo de saúde está retomando hoje suas atividades após dois
meses e meio de interrupção, de final de ano. Estão presentes 25 usuários da
comunidade; são idosos portadores de hipertensão e diabetes adscritos as
ESF verde e azul; a maioria são mulheres. Das ESF estão presentes o médico
da ESF verde, uma auxiliar de enfermagem, três ACS e três alunas do Curso
de Nutrição. Há interação de todos com o médico e dos presentes entre si ou
sorrisos, abraços, falas nas quais se busca saber como as pessoas passaram o
período, tanto de ponto de vista pessoal como de saúde. O médico da ESF
verde combina com os presentes a ampliação dos temas de saúde usualmente
abordados no grupo e solicita sugestões. Uma ACS desenvolve uma técnica
de apresentação das pessoas e o grupo ri bastante. As estagiárias de nutrição
iniciam a atividade específica, usando técnica expositiva para tratar da
hipertensão. Médico da ESF verde auxilia o andamento das atividades
traduzindo o conteúdo para uma linguagem mais corrente, promovendo
participação dos presentes e refazendo o clima descontraído que fora
interrompido pela técnica expositiva. Finalizada a atividade as pessoas
130
voltam a circular no ambiente, conversar, brincar. O médico faz isso
também. Por fim fazem um lanche mantendo sempre o mesmo clima.
NOTA DE CAMPO 11/03/2004
Os usuários valorizam as atividades de grupo e o envolvimento do médico da
ESF verde como relatado abaixo:
o meu médico está sempre nos grupos, ri, brinca, fala de tudo, sexo,
família. Ele parece uma pessoa igual à gente e a gente se sente bem com
isso. Ele explica bem o que a gente deve fazer e quem tem vontade muda.
Ele também quer que todo mundo fale, a gente às vezes é que é mais
fechado. Depoimento/Usuário
Eu estou trinta e poucos anos nisso aí, mas cada palestra a gente aprende
mais um pouquinho, às vezes são coisas novas, outras são coisas que a gente
esqueceu. Depoimento/Usuário
Na semana passada, na consulta, ele avisou do grupo: oh, quinta feira vamos lá.
Leva um aparelho de som para gente botar ‘as véias’ pra requebrar.
Depoimento/Usuário
Um outro grupo era desenvolvido quinzenalmente, o ‘Grupo de Sofrimento
Psíquico’. Foi idealizado pela enfermeira da ESF azul e era conduzido por uma
estagiária de Psicologia, da última fase deste curso, e supervisionada por um psicólogo
professor. Foi criado como possibilidade de dar assistência a usuários com diagnóstico
de depressão, problema de saúde freqüente na comunidade. Compareci a quatro
sessões deste grupo. A dinâmica adotada possibilitava as pessoas falarem de seus
problemas, se auto analisarem, se auto apoiarem. O número de pessoas presentes foi
no máximo de 10. Em duas atividades surgiram dúvidas dos participantes relacionadas
à parte clínica e ao tratamento da depressão que a estagiária e o Psicólogo não
souberam responder e pediram apoio da pesquisadora. Nem o médico nem enfermeira
da ESF azul, ou membro de qualquer outra ESF participaram do grupo. Apesar desta
ser uma proposta que objetivamente respondia a uma necessidade da comunidade, a
não participação dos profissionais das ESF, demonstra que não se integraram fazeres e
131
saberes no enfretamento de problemas de saúde. Sobre o grupo de Sofrimento
Psíquico os ACS reclamaram que o nome assustava, discriminava quem participa.
Ouvi vários depoimentos valorizando a atividade, como este colocado a seguir :
tem também a doença que não é só física e você precisa atendimento que
não tem. Esse grupo de sofrimento psíquico que eu freqüento, poucas
pessoas aproveitam e é tão bom. E quanta gente que poderia, ...aí tu pensa, o
grupo te ajudou e acho que outras pessoas também poderiam ser ajudadas.
Depoimento/Usuário
Outro ponto observado no trabalho das ESF foi a integração entre os médicos e
enfermeiras da equipe e entre as equipes. Verifiquei diferentes níveis de integração: na
ESF azul havia um número maior número de práticas de trabalhos conjunto, tanto
dirigido a clientela, como na estruturação do trabalho da equipe. Tal integração
configurou-se como parcial, em especial quando da insuficiência de
compartilhamento de dados das condições psico-sociais dos usuários, de maior
domínio da enfermeira. O registro abaixo se refere à afirmação efetuada:
o médico da ESF azul repassa para enfermeira de sua equipe que tivera
problemas na visita domiciliar com a ‘família X’ que possuía um idoso
acamado em função de um AVC. Discutira com a filha e o genro pois eles
estavam omissos quanto ao cuidado do idoso. Soubera pela esposa de idoso
que ele possuía uma poupança de R$ 40.000,00 reais, que o genro cuidava;
ele também cuidava da aposentadoria do idoso. A discussão acontecera
porque não estavam sendo comprados remédios prescritos, fraldas e até
comida. O médico temia que a filha e genro estivessem se apossando dos
recursos do casal. Após ouvir o relato a enfermeira da ESF azul disse já
conhecer a tal situação. O médico demonstra expressão de desconforto.
NOTA DE CAMPO 27/010/2003
Analisei que esta família necessitava de uma metodologia de atendimento que
englobasse as demandas psico-sociais em interface com a doença. Ao se considerar
somente a doença como elo, como o ponto comum do trabalho da equipe, dava-se
respostas abaixo das necessárias.
Na ESF verde observei um número grande de gestões da enfermeira junto ao médico
buscando prescrições, exames, consultas extras, pedidos de encaminhamentos para
especialistas, quando esta tinha identificado situações urgentes e problemáticas nos clientes
132
que a procuravam. Na ESF amarela havia, entre o primeiro médico e enfermeira, um número
maior de interações de natureza pessoal, o que acabou gerando conflito, resultando na
demissão do médico. Não foi observado trabalho conjunto entre o médico admitido em
outubro e enfermeira da ESF amarela em função de várias licenças de saúde por problemas de
gestação da enfermeira.
Sobre a integração no trabalho das três equipes a observação efetuada está em
acordo com o conteúdo dos depoimentos apresentados abaixo:
não há um projeto de trabalho construído em conjunto pelas três equipes. É
tudo separadinho demais. Depoimento/ Med ESF verde
A possibilidade de construir algo em comum, das três equipes está
aparecendo agora porque a gente está tendo reunião das três equipes; antes
isso não tinha isso, era tudo isolado. Depoimento/ Med ESF azul
Os ACS têm reuniões semanais com as enfermeiras e às vezes os médicos estão
presentes. Nestas, as enfermeiras orientaram novas condutas, reforçaram outras,
discutiram temas, tendo sido observado discussão dos temas amamentação e
tuberculose. Em parte das reuniões são colocados, pelos ACS e às vezes pelas
enfermeiras e médicos, dados de caracterização psico-social da clientela e situação
clinica dos usuários. Também planejam o trabalho das ESF, predominantemente
voltados ao cuidado da doença/tratamento, do tipo: quem vai ter glicemia e PA
controladas, curativos que serão realizados, que doente precisa de visita domiciliar,
quem precisa de orientação sobre medicamentos. Ações ampliadas de assistência, que
considerem as questões psico-sociais relacionadas à saúde-doença, trazidos pelo
grupo, raramente geram planejamentos, mesmo que claramente colocadas, como casos
de negligência de cuidado, violência familiar, dificuldades no manejo de dependentes
familiares, adoecimento de cuidadores exauridos, processo de perda difíceis.
Os médicos e enfermeiros decidiram reunir-se semanalmente, a partir de
outubro de 2003. Até março de 2004 haviam realizado duas reuniões na qual trataram
de temas como: baixas condições salariais dos médicos, questões relacionadas a SS
como mudança de coordenação do PSF, de secretários de saúde, promessas políticas.
Também discutiram como melhorar a qualidade do trabalho dos ACS, delineando um
133
projeto de capacitação para os mesmos que os enfermeiros e médicos desenvolveriam.
Mesmo tendo definido que desenvolveriam reuniões regularmente, estas foram
facilmente suspensas ou ‘boicotadas’. Sobre isto elaborei a seguinte nota de campo:
novamente a reunião de médicos e enfermeiras foi suspensa. Se por um lado
parecem reconhecer a importância de construírem um trabalho conjunto, por
outro lado desmontam isto. Ou, o que significa marcar reuniões nas sextas
feiras, último dia de trabalho da semana, no turno vespertino, depois de uma
certa cota de consultas médicas que se desenvolviam em tempos diferentes,
gerando impaciência e desistência dos que já tinham concluído seu trabalho
e tinham de esperar os que ainda estavam em atividade, senão inviabilizar a
atividade, efetuando uma contribuição negativa para manutenção do status
quo? NOTA DE CAMPO 03/11/2003
As relações das enfermeiras com a SS eram amistosas, de certa parceria, talvez
em função da forte presença numérica destas profissionais nos postos de direção da SS
do município. Já com os médicos as relações com a SS eram mais tensas, uma vez que
se sentiam mal remunerados, queixam-se de serem sobrecarregados pelo esquema de
produção adotado, de não estarem fazendo o PSF. Os depoimentos a seguir buscam
evidenciar as colocações efetuadas:
querem explorar toda a classe da saúde. Isso tem aqui. Este é um dos
municípios que menos pagam o pessoal da saúde no Brasil, é uma
exploração, um desrespeito total. Dizem: ah! você quer morar aqui? é isso
que eu tenho pra te pagar; tenha dó né. E, o que acontece? Ninguém tem
tempo pra estudar, todo mundo trabalha chateado. Acham que com dois paus
e meio você vai sustentar dois filhos? Tem de sair pra dar plantão.
Depoimento/ Med da ESF verde
Eu gosto de trabalhar num determinado lugar mas também quero ganhar
dignamente. Comparado com a maioria da população, parece que a gente
tem um padrão alto de vida mas eu trabalho duro, estudei, luto pra isso. Se
isso é diferenciado a culpa não é minha, é do sistema. O ideal é todo mundo
ter o mínimo necessário. Depoimento/ Med da ESF amarela
134
Já no discurso do Secretário de Saúde do Município aparece a contradição entre
o que se diz do PSF e o que se faz na prática. Sobre isto elaborei a seguinte nota de
campo:
o novo Secretário da Saúde de São José reúne-se com os integrantes das três
ESF, dentistas, fisioterapeuta e outras funcionárias do CS. Coloca que suas
prioridades são: satisfação da clientela, dos trabalhadores e conforto no
trabalho. Para o Secretário um emprego se garante com competência e
dedicação e não com contrato. Diz que o atendimento em saúde deveria ser
ampliado, enfocando novos aspectos, sociais, mentais e emocionais, que
deve ser permeado da solidariedade e compromisso e que está
definitivamente comprometido com o PSF, não como programa mas como
filosofia. NOTA DE CAMPO 17/10/2003
Muitos outros aspectos poderiam ainda serem apresentados para contextualizar
as relações que se estabelecem nesta realidade onde a investigação se desenvolveu.
Porém é preciso priorizar e em nome disso apresento ainda alguns depoimentos de
usuários, que refletem a dupla condição a de conhecer e não conhecer o modo como se
inserem no sistema de saúde:
PSF é assim controle de ‘natividade’..., a idéia é mais ou menos essa, é se
eu não quero ter filhos, como usar o anticoncepcional? Depoimento/usuário
adscrito a ESF verde
Nas reuniões da igreja o representante do Conselho Local de Saúde às vezes
passa alguma coisa, mas é bem rápido. O que é mesmo eu não peguei.
Depoimento/usuário adscrito a ESF verde
É esse programa do SUS. Tem um pouco de prevenção, de programação da
saúde, tratamento melhor dos usuários, controle dos diabéticos, hipertensos,
visitas. Depoimento/usuário adscrito a ESF verde
É se envolver com a comunidade, mas eles não fazem isto.
Depoimento/usuário adscrito a ESF verde
135
CAPÍTULO 6
O VÍNCULO QUE SE PENSA E O QUE SE ESTABELECE
Este capítulo apresenta os temas que emergiram principalmente das entrevistas,
mas também das observações de campo, as categorias que os constituem, os
componentes das categorias e a unidades de significado que os substanciam. As
unidades de significado foram compostas a partir de um intenso trabalho de descarte
de complementos, de sucessivas sínteses, efetuados para fazer emergir a essência dos
dados obtidos. Vários enunciados das unidades de significado resultaram da agregação
das declarações de mais de um entrevistado, procedimento efetuado quando os
conteúdos demonstraram equivalência.
Os resultados representam tanto uma teorização acerca do vínculo, formulada
pelos médicos e enfermeiras (o pensar), quanto o que dizem acerca de sua prática. Os
olhares dos AuxEnf e ACS, dos usuários do serviço de saúde e da pesquisadora,
completam a totalidade alcançada.
Emergiram dois temas da análise das entrevistas (mas não somente destas)
quais sejam: o vínculo que se constrói e o vínculo requerido tem vários obstáculos.
As categorias definidas na constituição do tema ‘o vínculo que se constrói’
foram:
é um pouco injusto pedirem esse vínculo da gente
o vínculo que a gente estabelece não é num PSF mesmo
vínculo se constrói a partir de algumas bases
às vezes a gente consegue
136
As categorias definidas na composição do tema ‘o vínculo requerido tem vários
obstáculos’, foram:
às vezes a gente não consegue
tem coisas que dificultam/atrapalham
o vínculo construído também se desconstrói
o que tem que ter/o que tem de mudar
No quadro abaixo apresento um quadro esquemático da configuração
evidenciada:
QUADRO 7: DOS TEMAS, DAS CATEGORIAS E SEUS COMPONENTES:
TEMAS CATEGORIAS COMPONENTES
Vínculo de compromisso e co-responsabilidade é
É injusto porque a gente não teve preparo
É UM POUCO
INJUSTO PEDIREM
ESSE VÍNCULO DA
GENTE
A prática foi nossa escola de PSF
O que o PSF é
O PSF daqui
O VÍNCULO QUE A
GENTE ESTABELECE
NÃO É NUM PSF
MESMO
Se fosse PSF mesmo
Relacionadas à comunidade
Relacionadas aos profissionais
O trabalho do ACS é primordial
VÍNCULO SE
CONSTRÓI A PARTIR
DE ALGUMAS BASES
Relacionadas ao processo e condições de trabalho
Há várias maneiras de estabelecer vínculo mas
não há receita
Os médicos na construção do vínculo
As enfermeiras na construção do vínculo
O que pode indicar a construção de vínculo
Os melhores espaços para construir vínculo
O
VÍNCULO
QUE
SE
CONSTRÓI
ÀS VEZES A GENTE
CONSEGUE
Pra trabalhar normal não precisa vínculo
do estado e do jeito da gente ser
do perfil da comunidade
da forma como a população vê o SUS e o PSF
de comportamentos dos usuários
ÀS VEZES A GENTE
NÃO CONSEGUE
(EM FUNÇÃO)
de como a equipe se relaciona e se organiza
A política , os políticos, a Secretaria
As condições e o processo de trabalho
TEM COISAS QUE
DIFICULTAM/
ATRAPALHAM
Comportamentos de usuários
Os constantes recomeços
O VÍNCULO
CONSTRUÍDO
TAMBÉM SE
DESCONSTRÓI
Modelo que rompe vínculo produz crise
Na política, nos políticos, na Secretaria
Na questão dos recursos humanos
O
VÍNCULO
REQUE-
RIDO TEM
VÁRIOS
OBSTÁCU-
LOS.
O QUE TEM QUE
TER/O QUE TEM DE
MUDAR
Nas condições e processo de trabalho
137
TEMA I: O VÍNCULO QUE SE CONSTRÓI
1 º CATEGORIA: É UM POUCO INJUSTO PEDIREM ESSE VÍNCULO DA GENTE
Quadro 8: componentes - vínculo de compromisso e co-responsabilidade é
Unidades de significado:
Esse vínculo é assim, todo o mundo no mesmo barco pra não afundar, tendo uma direção,
contemplando o lado dos profissionais, das equipes, da comunidade, do governo
É um elo maior, um compromisso maior da gente de saber o que está acontecendo com as
pessoas, com a comunidade, quais são os problemas, se envolvendo, intervindo aí da forma
como elas querem, ultrapassando o cuidado curativo
O vínculo, aquela coisa da transferência e da contra transferência, tem de ser trabalhado no
dia a dia, progressivamente, podendo tornar-se uma corda cada vez mais calibrosa, pelo
conhecimento e amizade entre as pessoas, pela troca de informação, dando uma ajuda
Vínculo é a gente conseguir construir o trabalho do PSF, que passa a ser uma referência, a
pessoa atendida vai divulgando, motivando outras a procurarem o Programa
Vínculo é um processo que se constrói na interação com o paciente, com a família, e não
pode infantilizar as pessoas, tratar como coitadinhos, que eu vou te ajudar. O vínculo está
além disso
É possível verificar neste conjunto de dados que define o modo de pensar dos
médicos e enfermeiras à respeito do que seja vínculo de compromisso e co-
responsabilidade, um estar consciente e em contato com o que esperam deles os
idealizadores do PSF e outros agentes envolvidos na sua implantação e execução. São
evidências disto as menções da necessidade de agregar esforços de múltiplos sujeitos
para que não se trabalhe em vão; de que é necessário definir os objetivos a serem
alcançados e também considerando o papel atribuído ao vínculo, de facilitador do
acesso ao serviço de saúde. Há uma responsabilidade, que se comparada ao trabalho
anterior, no posto de saúde sem PSF, ficou maior, demanda um conhecer melhor a
comunidade e de um agir ultrapassando os aspectos curativos, na direção dos desejos
e necessidades desta.
Termos como elo, corda que pode se tornar mais espessa, trocas pelo
mecanismo de transferência e contra transferência são representações do vínculo para
os médicos e enfermeiras. O vínculo é visto como processo que se constrói
cotidianamente, não dispensa ou ignora o papel da subjetividade, pois acontece
138
também com envolvimento, amizade, ajuda, ultrapassa compaixão ou a filantropia
seguindo na direção da autonomia.
Um outro aspecto a destacar é a referência da complementaridade da
comunidade e governo para a construção do vínculo; sendo assim, os profissionais não
conseguem construir vínculo apenas com o seu lado. Tal condição não se coloca nos
documentos à cerca do PSF, onde a atribuição de estabelecer vínculo é dada ao
profissional.
O vínculo é relacionado no PSF com a humanização da assistência, sendo que
seus complementos, os termos compromisso e responsabilidade, enfatizam o caráter do
dever. Já os sujeitos envolvidos nas possibilidades de interações construtoras de
vínculo, dão espaço para os afetos, tornando a ‘missão’ mais agradável.
O que se verifica para este elo são atributos e condições, um certo acontecer nas
relações, coincidindo parcialmente com o que está sendo defendido neste trabalho,
onde vínculo se estabelece como relação diferenciada, perpassada pelas
dimensionalidades advindas do PSF.
CATEGORIA: É ATÉ UM POUCO INJUSTO PEDIREM ESSE VÍNCULO DA GENTE
Quadro 9: componentes - é injusto porque a gente não teve preparo
Unidades de significado:
Esse vínculo é exigido da gente até de uma forma arbitrária e um pouco injusta, quase que
forçado, porque a gente não teve preparo
Na Universidade tinha muito pouca coisa sobre PSF, era uma coisa nova e pouco divulgada
Fiz um treinamento introdutório. Eles passaram uma noção geral sobre o PSF
A Secretaria faz treinamentos, mais enfoque no curativo e de prevenção de câncer de
mama, de útero
Eles têm de dar idéia (MS) e a gente tentar seguir as normas. Agora isso daí tem que ser
espontâneo, surgir do teu trabalho diário
Não tem como chegar o secretário de saúde ou a gerência e cobrar que vocês se dêem bem
e passar ameaçando o tempo inteiro, isso não vai funcionar
Daí que a idéia do Ministério é mais difícil: ah! vocês têm de criar vínculo, amiguinho,
adorando todo mundo, mas tem que fazer uma correlação entre a comunidade X ou Y
A população vem pra cá buscar resolver até problema econômico-social do Brasil e as
equipes estão ali, espremidas, pra fazer o que a população quer
139
No quadro acima médicos e enfermeiras associaram o objetivo de
estabelecimento de vínculos no PSF a conceitos como cobrança, norma, fardo,
ameaça, vigilância ou a aspectos negativos.
Enquanto no quadro anterior vimos uma aproximação entre requerido no
projeto do PSF e o que pensam os profissionais, neste conjunto de dados emerge o
sentido de que vínculo é também ‘obrigatoriedade de se dar bem’, de que isso ocorra
em qualquer realidade, sob quaisquer circunstâncias de exigências e características das
comunidades, independente de como os profissionais se sintam posicionados.
O vínculo é referido como algo que é do ‘Ministério’ , coloca-se distante, não
‘apropriado’ pelos executores do vínculo.
Além disso, médicos e enfermeiras referem-se a um preparo insuficiente, na
faculdade e no serviço, o que determina limitação em termos do espaço/tempo para o
aprofundamento/resignificação do vínculo. Sendo o vínculo essencial para transformar
o modelo assistencial, os profissionais desnudam este flanco aberto no PSF
investigado, qual seja: constituir-se numa imposição a ser cumprida, gerando as
‘queixas’ que nestes termos se configurarem como ‘justas’.
Os dados apontam também para a vigência de percepção de que a necessidade
da população é algo que ultrapassa o que se pode resolver, de que a população também
espera muito e isto ‘espreme’ as equipes pela expectativa de que dêem conta, sendo
isto também injusto.
Sendo este um estudo de caso, estando portanto os dados restritos a um dado
PSF, a condição detectada deve ser considerada no mínimo em nível local, apontando
para a necessidade do desencadeamento de estratégias que possam positivar a relação
do projeto do PSF com seus executores.
140
CATEGORIA: É UM POUCO INJUSTO PEDIREM ESSE VÍNCULO DA GENTE
Quadro 10: componentes - a prática foi nossa escola de PSF
Unidades de significado:
Desde que comecei a trabalhar no PSF leio um monte de livros, escrevi trabalhos, pego
referências, discuto, tenho uma biblioteca de Saúde Pública
Aprendi sobre o PSF no dia a dia. O treinamento, o estudo, são necessários, valem pela
teoria mas a essência se aprende na prática
O que fazer, como fazer, se aprende trocando com os colegas, lidando com as pessoas e
famílias, convivendo com as necessidades da tua comunidade
Hoje ainda falta muito para entender mas dá pra tocar o barco
Depois, não é que tu começas a te acomodar, mas começas a perceber que vai além de ti,
depende da Secretaria, depende do Ministério. Tu começas a segurar pra não enlouquecer,
mas tem horas que é barra
Nos dados a importância da prática é ressaltada, ela é o que conta efetivamente
para propiciar ‘fazer o PSF’. O saber desta ‘escola’ constitui-se de forma híbrida,
incluindo experimentação do que dá certo ou não, de compartilhamento entre pares, da
interpretação do que sejam as necessidades da população. Inclui também o esforço de
um aprender autodidata, dado que ‘a gente não teve na faculdade ou teve pouco’ e a
difícil articulação entre teoria e realidade. Por fim, quando a realidade se torna
conhecida, se instala a compreensão de como e porque as coisas se dão de uma certa
forma, vem à adaptação, havendo ainda muito para se aprender mas, se consegue dar
conta.
Cabe questionar se as alternativas adotadas para superar ‘porque a gente não
teve ou teve pouco’ dão conta de uma apreensão satisfatória do projeto de modificar o
modelo de assistência, de fomentar o vínculo favorecedor da responsabilização
profissional por uma dada comunidade, nas dimensões além da curativa, ampliando
também o compromisso dos usuários. Quando desta ‘maior escola’ não emerge um
processo formador compatível com o que se requer, o produto corre o risco de não ser
o desejado. Por outro lado, o poder formador da prática permite que a mesma seja
considerada como possibilidade real de viabilização do projeto pensado. Só que
141
esperar que isto se dê forma espontânea, sem facilitação e apoio, é ingressar no terreno
da idealização, manter-se na retórica.
2 º CATEGORIA: O VÍNCULO QUE A GENTE CONSTRÓI NÃO É NUM PSF MESMO
Quadro 11: componentes – o que o PSF é
Unidades de significado:
O PSF é a grande resposta para os problemas de saúde, é a melhor forma de se organizar o
serviço pra estruturar a saúde
O PSF no papel, na teoria, é lindo, a gente se encanta. Pensaram em tudo, porque faz tudo,
trabalha com a família, faz visita, faz grupo, acompanhamento
É um Programa ótimo e complexo; é uma concepção muito válida
Tem que ter atenção primária, pois o hospital não tem condições de atender toda a
demanda. O caráter preventivo é o que aumenta, a longo prazo, a qualidade e a expectativa
de vida
No PSF não fica aquela coisa do médico muito superior, isolado, a pessoa que vai consultar
parece que está falando com Deus; fica uma coisa mais acessível para a comunidade, o
relacionamento mais próximo
Em cada lugar o PSF é diferente, não tem jeito. A realidade sócio-cultural é diferente em
cada município e até mesmo em cada bairro e isto acaba influenciando a forma como se
estabelecem as relações
Nos dados apresentados neste quadro aparece claramente uma avaliação
positiva dos médicos e enfermeiras sobre o PSF enquanto concepção. A divergência
de situar o PSF enquanto estratégia ou programa também se coloca neste espaço,
refazendo o que se passa em outras esferas da prática, da academia, dos autores. Como
estratégia, médicos e enfermeiras referem que o PSF, organiza, estrutura o serviço de
saúde, tem caráter preventivo, busca a qualidade de vida. Como programa, se viabiliza
através das atividades pré-definidas.
O PSF é visto também como um campo onde se podem produzir relações mais
horizontais, próximas, diferentes daquelas que são atribuídas ao modelo biomédico,
centrado na autoridade e poder do médico.
Os médicos e enfermeiras também mencionam a existência de muitos PSFs.
Local, realidades, cultura, produzem diferenças, apontando para uma certa
especificidade no vínculo frente às especificidades das realidades.
142
CATEGORIA: O VÍNCULO QUE A GENTE CONSTRÓI NÃO É NUM PSF MESMO
Quadro 12: componentes – o PSF daqui
Unidades de significado:
O PSF daqui tem funcionado como programa pela cobrança de números, pela exigência de
produtividade praticamente no curativo
Aqui o PSF é um programa para arrecadar dinheiro do governo federal, ganhar voto político,
não uma estratégia pra fazer mudanças
Aqui no CS a gente consegue fazer pouco de promoção; o investimento é ‘muuuuuuuuuuito
mais no curativo’. O trabalho de prevenção voltado para o coletivo, para as famílias, é o
mais prejudicado
Aqui falta uma proposta, um grupo pra trocar, discutir, aprender, fazer outras coisas além de
só atender, uma concepção, um idealismo, uma perspectiva de resultado
Pela posição e tamanho do Posto alguns acham que isto daqui é um pronto socorro.
Pessoas de outros municípios, funcionários de empresas, vêm consultar aqui e você acaba
atendendo mais gente do que deveria atender
Essa história de um posto grande, três equipes num mesmo lugar, às vezes complica
A comunidade ainda não entendeu o paradigma do PSF; depois que sabe, faz mudança, não
volta mais
Neste quadro podemos caracterizar o conflito vivenciado pelos médicos e
enfermeiras quando confrontam o PSF ‘lindo’ do papel e o PSF da realidade. Nesta
percebem-se aprisionados ao modelo assistencial curativo, com atendimento ainda
voltado prioritariamente ao individuo, assentado sob bases tayloristas
1
.
1
O Taylorismo é um sistema organizativo do trabalho, alicerçado em princípios científicos, que
tratam de planejamento, padronização, especialização, controle e remuneração do trabalho, propostos
por Frederick W. Taylor, americano, nascido na Pensilvânia (EEUU), em 1.856.
No Taylorismo o ‘planejamento’ é separado da ‘execução’ ou o pensar e fazer constituem-se
atividades e atribuições distintas. Impõe que se faça uma gerência (científica) através de um órgão de
planejamento cuja função é tanto pensar antecipadamente, quanto fragmentar e selecionar o saber. No
Taylorismo o controle do trabalho, que se faz através da gerência, ocorre por meio do controle das
decisões, pela fixação de cada fase do processo, inclusive seu modo de execução, pela definição do
tempo investido em cada atividade, efetuado para eliminar qualquer 'tempo ocioso' e aumentar a
produtividade individual. Assim, os trabalhadores são controlados por estarem atados a processos
concretos de trabalho, definidos previamente pela gerência.
143
É um PSF exigido, não entendido pela população, alardeado como ‘fazedor de
saúde’. O fosso entre os dois PSF está no esvaziamento dos sonhos, das idealizações
quando da materialização do projeto; está na impossibilidade de ver reconhecido e
valorizado o pensar, a discussão, a formulação das propostas, onde sujeitos se
retroalimentam, resignificam elementos essenciais.
A estratégia ao ser implantada se faz programa, aprisionado a um ‘modus
operandi’ pré-definido, que deixa pouco espaço para a autonomia das equipes, para o
trabalho criativo, para que se estabeleçam novos processos de relação e negociação
com a comunidade.
Neste conjunto de dados médicos e enfermeiras não vislumbram forças de
mudança em si, no grupo, capazes de provocar rupturas numa dinâmica onde o
trabalho morto captura e subjuga o trabalho vivo (MERHY,1997).
Já a população do bairro, que não conhece outro modelo de atendimento em
saúde, pois o atual esteve vigente desde a abertura do CS, que também não conhece o
PSF ideal e seu compromisso com a mudança, tem dificuldade de defender ou
reivindicar algo diferente. As ESF acabam sendo depositários das contradições dadas,
A padronização propõe que um mesmo sistema de medidas seja adotado ao longo de todo o
processo de produção. A especialização decorre da padronização. Cada trabalhador deve ser um
especialista em sua atividade principal, sob o pressuposto de que faz melhor quem só faz aquilo e a
especialização seria alcançada através de seleção dos trabalhadores, de acordo com a habilidade e
treinamento intensivo. Sob a ótica de Taylor o trabalhador deve receber incentivos salariais e prêmios
de produção, condicionados ao seu desempenho individual.
A aplicação das proposições de Taylor tiveram como conseqüência configurar o trabalho
como “atividades fragmentadas, repetitivas, monótonas e desprovidas de sentido" (Cattani,1999, p.
249), pois levaram o trabalhador a se tornar mero repetidor de atividades isoladas e despersonalizadas,
a perder a visão do todo, passando a desconhecer como está integrado na totalidade da produção,
conhecendo apenas o grau de perfeição do que faz e não a qualidade e o produto final do seu trabalho.
Tendo essas proposições privilegiado o desempenho individual, reduziram a noção de trabalho em
equipe e de solidariedade grupal, vigentes no tempo da produção artesanal.
(CATTANI, 1999; BRAVERMAN, 1891; TAYLOR e o movimento da administração científica.
Disponível em <
http://www.novaadministracao.kit.net/002.htm> acesso em 10 maio de 2005)
144
porque tem referências do que seria um ‘PSF mesmo’, mas atuam num programa
dado, ratificado pela não disponibilidade de outra referência pela população.
CATEGORIA: O VÍNCULO QUE A GENTE CONSTRÓI NÃO É NUM PSF MESMO
Quadro 13: componentes – se fosse PSF mesmo
Unidades de significado:
O PSF é ‘PSF mesmo’ se houver maior liberdade de atuação da equipe, se ela tiver
respaldo para fazer a sua própria estratégia, pra buscar a transformação
Não seguiríamos exatamente o que pedem ou dizem pra fazer, tem de ver a realidade e as
necessidades daquela comunidade, das famílias, da própria equipe, do CS, e isto sendo
definido pela e em equipe
A execução do PSF é construção diária, reformulando, reunindo, recriando, negociando,
não é uma coisa fechada. Trabalha-se ‘a história’ junto com a população
Tem que mudar a concepção das pessoas que dirigem o PSF no município, das pessoas
que trabalham no CS, dos conselheiros, que vêem o PSF só como assistencialista. O PSF é
preventivo também
Temos de parar tudo isso daqui, de brincar de PSF, ver o que está acontecendo em relação
aos problemas da comunidade, o que está coberto, o que não está, o que está aumentando
ou diminuindo
O PSF tem que ser um lugar onde a população goste de ir. A estrutura física tinha de ser
aconchegante, colorida, umas plantinhas e tal, um quadro na parede. Essa arquitetura
SUSística de Posto de Saúde é horrível, nem mais hospital está sendo construído assim
Se fosse feito ‘PSF mesmo’, trabalhasse bem com a comunidade, num ano haveria
mudanças, começaria a dar resultado
Destaca-se neste conjunto de dados, outras condições que não se tem no ‘PSF
daqui’, quais sejam: a flexibilidade, o espaço para estabelecer negociação, parceira,
respaldo e respeito à capacidade das ESF de configurar e gerir seu processo de
trabalho, a continuidade das ações, um trabalho que decorra das necessidades da
comunidade, onde a mesma participe desta definição. Para que o PSF seja estratégia
há que se ter à autonomia no trabalho das equipes, para que desenvolvam seu projeto
de transformação. A autonomia é o que abre espaço para a criatividade, para a busca
145
de resposta às necessidades específicas de saúde da população, para a superação do
trabalho cristalizado, morto.
Médicos e enfermeiras consideraram que os gestores, os gerentes, os conselheiros
locais de saúde são defensores e requisitantes do modelo biomédico, o que se
caracteriza como um importante obstáculo para se fazer o ‘PSF mesmo’. Tal condição
é vista como dificuldades para o estabelecimento de vínculo de compromisso e
responsabilidade, mantém o ‘brincar de PSF’, a descontinuidade das ações, a
ignorância sobre o que se passa com a população e portanto não há mudança na
direção da produção social da saúde.
Vê-se ainda a reivindicação de uma nova estrutura física para apresentar o novo
modo de se proporcionar o cuidado em saúde, ou um lugar agradável, acolhedor, para o
diálogo entre ESF e usuários (individual e coletivo). Na pesquisa de “Avaliação da
implementação do Programa de Saúde da Família em dez centros urbanos”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b) há dados que referem que algumas ESF alugaram
casas e as adaptaram para o desenvolvimento de atividades de saúde, como nas cidades
de Camaragibe, São Gonçalo e Brasília. Vê-se pois que em outras realidades e com
outros atores se compartilha o desejo de repassar uma nova mensagem, através da
mudança da estrutura física onde se desenvolve o PSF.
Assim, para se construir vínculo requerido pelo PSF, se pressupõe a existência
das condições disponibilizadas num ‘PSF mesmo’. Neste sentido, num programa que
se orienta pelo modelo biomédico quando do desenvolvimento do atendimento em
saúde, se pode estabelecer ‘certas relações’ as quais se atribua a denominação de
vínculo, mas por não se desenvolveram num verdadeiro PSF, também não conseguem
ser as relações que deveriam ser. Neste caso à aparência se atribui o papel de essência.
146
3 º CATEGORIA: VÍNCULO SE CONSTRÓI A PARTIR DE ALGUMAS BASES
Quadro 14: componentes – relacionadas à comunidade
Unidades de significado:
Existem componentes sócio-culturais na participação e na adesão individual e coletiva às
ações de saúde
A construção do vínculo também depende das necessidades da comunidade. Se ela precisa
mais do CS, valoriza mais os profissionais, acolhe diferente, aceita trabalhar mais com a
prevenção
Uma parte fundamental da comunidade é o interesse em conhecer o PSF, qual a equipe que
responde por ela, não é só usar o serviço e ir embora. Entender facilita a participação, o
pessoal vem conversar, compartilha coisas, vai-se além da doença
A comunidade tem de agir, reivindicar, pra transformar, pra ter seu direito, mesmo que
demore. Ela tem que entender que tem uma estrutura macro por trás
Seis dos sete entrevistados (médicos e enfermeiras) atuaram no mínimo em
outro PSF antes de ingressarem no atual. Isto lhes confere a possibilidade concreta de
apontar condições relacionadas ao segundo elemento na díade do processo interativo
com potencial de gerar vínculo ou os usuários (individual e coletivo), de considerar
que os aspectos sócios culturais são intervenientes importantes na construção do
vínculo.
A existência da ‘necessidade’ é colocada como facilitadora no estabelecimento
de vínculo, por acarretar maior procura do serviço de saúde, abrir canais para o diálogo
e ação, por parte dos usuários. Isto coloca a questão de que a desvantagem da
população (carências sócio-econômicas, culturais, isolamento geográfico e outras) a
torna mais receptiva, facilitando em certa medida a implantação e execução do PSF, o
que não ocorreria com populações menos dependentes. Mas as comunidades diferem
entre si e veremos, mais adiante, que os médicos e enfermeiros referem dificuldades
de se trabalhar em comunidades que apresentam carência sócio-econômica
exacerbada.
147
Projeta-se neste ponto uma questão desafiadora, de que ao se fazer ‘PSF
mesmo’ haverá que se produzir um trabalho na linha preventiva e neste caso como
auxiliar na criação de outras necessidades que não aquelas marcadamente ‘atendidas’
no modelo biomédico, necessidades que mobilizem aqueles usuários ‘que não
precisam’, não valorizam, que apenas usam, os que não se organizam e reivindicam ?
Os dados ratificam, através dos depoimentos de trabalhadores, que os mesmo
necessitam de uma base, uma ampliação na formação e também apoio no saber/fazer
social já que além de compreender os mundos dos usuários, terão de estar
instrumentalizados para um fazer que inclua estas dimensões.
À referência de que ‘entender o PSF’ facilita as relações entre ESF e os
usuários (individual e coletivo), apontada acima, se coloca como um outro elemento da
construção conjunta. No depoimento abaixo uma enfermeira refere-se à questão do
preparo da população para entender o PSF:
uma médica de São Paulo, com quem eu trabalhei, me disse que pra
implantar o PSF eles ficaram trabalhando um ano, falando com a
comunidade, até a comunidade ficar cansada, até todo mundo entender e
então puderam trabalhar com eles. ENT/Enf ESF verde
A comunidade é considerada, pelos médicos e enfermeiras, no seu direito e
poder de exercer o controle social, mas isto é algo que não está se dando neste local,
porque aqui os componentes sócios culturais não são favoráveis para a reivindicação,
participação e enfrentamento de questões macro que ‘dirigem os destinos da saúde’.
Mais adiante os dados demonstram que os profissionais percebem seu papel na
instrumentalização dos usuários mas se percebem sem tempo/espaço para
desenvolverem um trabalho voltado para tal.
148
CATEGORIA: VÍNCULO SE CONSTRÓI A PARTIR DE ALGUMAS BASES
Quadro 15: componentes – relacionadas aos profissionais
Unidades de significado:
A nossa preparação universitária pode ajudar muito, e também a bagagem de vida que a
gente traz
O profissional deve estar disponível, acolher bem as pessoas, ser uma pessoa amiga,
discreta, ética, ter bom senso e não mudar a postura, o comportamento
Tem-se que ter humildade e a tranqüilidade de esperar que as coisas aconteçam
Gostando do que faz e também entendendo o que é o PSF, aí tu consegues fazer vínculo
É importante cuidar para não criar uma expectativa maior do que a gente e o sistema de
saúde pode oferecer, pra que a frustração não se instale, não se perca o ânimo
Pra estabelecer o vínculo é preciso estar em contato com a realidade da comunidade, das
pessoas, ir interagindo
O vínculo deve ser construído democraticamente, baseado na confiança, pois assim você
pode discutir com o paciente, explicar as opções de tratamento, ver o que ele acha
Todo o trabalho tem seus entraves, um diferente do outro, é preciso ter compromisso maior,
arrumar mais espaço para as prioridades e realizar mesmo
Numa construção de vínculo a abordagem do lado psicológico é importantíssima, o social
também, tanto voltado para os pacientes como para a equipe
Pra estabelecer vínculo a gente tem de divulgar o que está fazendo aqui
Neste conjunto de dados podemos ver que os médicos e enfermeiras evidenciam
pelo menos dois conjuntos de bases para construção de vínculo, relacionadas aos
profissionais. No primeiro conjunto há referência para um ‘modo de se construir/de
ser’ e no segundo, os dados estão mais ligados às tecnologias de relação (MERHY,
1997, 1999, 2003; FRANCO E MERHY, 2003). Ou no primeiro conjunto contam a
formação acadêmica, bagagem de vida, ter bom senso, ter paciência, ter
comportamento coerente, ser discreto, gostar e entender o que faz. No segundo
conjunto, das tecnologias de relação, tem-se um ser/saber subjetivo e técnico através
do qual vai se evitar expectativas demasiadas e frustração, ter ética, estar disponível e
acolher, ter compromisso maior, priorizar, estabelecer relações democráticas, ter
contato com a realidade, abordar o lado social e psicológico no atendimento. Aqui
novamente se define um papel para os usuários (individual e coletivo) que deve
compreender o que o profissional faz ali, com a ajuda do profissional. Estes devem,
149
como o profissional, conhecer os limites do sistema e do profissional, para que não se
instale frustração e desânimo.
A dimensionalidade da ‘humanização da assistência’ do vínculo é referida como
essencial, traz a possibilidade de modificar o que e como se faz, só que deve
contemplar usuários e também a ESF. Nos dados ainda apareceram outras referências
indicando que requerer ‘produção, produção, produção’ produz sentimentos de
frustração. Os trabalhadores requerem a consideração de sua subjetividade,
concomitantemente àquilo que fazem em resposta ao ‘dever’.
CATEGORIA: VÍNCULO SE CONSTRÓI A PARTIR DE ALGUMAS BASES
Quadro 16: componentes – o trabalho do ACS é primordial
Unidades de significado:
O trabalho do ACS é primordial, na verdade é ele que é o elo entre família e CS
O elo do ACS faz crescer o vínculo com os demais membros da equipe porque ele traz o
problema da família pra reunião no CS.
O trabalho dos ACS direciona, identifica o profissional para as pessoas. Elas já vêm
procurar direto o profissional, evita aquele ping –pong
Sobre seu papel na construção dos vínculos entre médicos e enfermeiras assim
se posicionaram os AuxEnf e ACS:
Parte do bom relacionamento entre médicos e enfermeiros é trabalho dos
ACS porque a gente já vai dando uma boa referência do profissional e do
Posto, os pacientes vêm sem barreira, sabendo quem vão procurar. ENT/
AuxEnf e ACS
Muito desse conhecimento se dá através da divulgação do ACS porque eles
falam do profissional para a comunidade, já vão citando nomes, ajudam as
pessoas a aceitarem o jeito deles, principalmente quando não estão ainda
acostumados. ENT/ AuxEnf e ACS
150
Nas colocações acima se evidencia como os ACS intermediam a construção de
vínculos entre médicos, enfermeiras e usuários, no sentido de diminuírem
estranhamentos, facilitarem acessos, captarem informações chaves, tornarem mais
objetiva a procura do profissional desejado e ainda auxiliarem na construção de uma
imagem positiva e ‘acostumada’ dos profissionais junto à população. No depoimento
abaixo o tema também se coloca.
Quando o médico da ‘ESF verde’ chegou às pessoas não gostaram muito
dele, acharam meio jogadão, doidão, parecendo um maconheiro, não se
vestia como médico. A gente foi explicando que era o jeito dele, não se
podia mudar, que seria muito pior se fosse um médico que nem olhasse pra
pessoa, não conhecesse o caso dela, não conversasse. A gente ajudou eles
se acostumarem. Hoje ele conquistou as pessoas. ENT/AuxEnf e ACS
CATEGORIA: VÍNCULO SE CONSTRÓI A PARTIR DE ALGUMAS BASES
Quadro 17: componentes – relacionadas ao processo e condições de trabalho
Unidades de significado:
São necessários recursos humanos preparados para fazer atendimento bem feito, sem
pressa, com ética, respeito, democracia e co-responsabilidade
Autonomia é necessário pra evitar a história de todo mundo se meter. Tem de ser mantidas
as decisões da equipe, do Conselho Local
Construir vínculo depende de tempo e espaço, aí os relacionamentos vão ser aprofundados,
vão ser trabalhados, progressivamente, e isto não ocorre num dia, numa semana, com a
agenda sempre lotada
Só trabalho em equipe permite agrupar as informações e daí sair um trabalho legal. Só a
interajuda consegue manter o nível do trabalho
A possibilidade de construir algo em comum, das três equipes, precisa de condições para
acontecer
Também são necessários recursos materiais, para dar apoio, como por exemplo: estrutura
física para atendimento digno e com privacidade dos usuários, prontuário-família,
medicação, agilizar os exames, ter infra-estrutura pra o encaminhamento
O salário deve ser digno para o profissional. Ele tem de se sentir seguro, saber que no ano
que vem tem dinheiro pra pagar escola do filho; ele não pode ficar dois, três anos num
emprego e depois ir embora, sem nada
151
Observando os dados sob a ótica do vínculo, se pode facilmente encontrar
argumentos para apoiar necessidades referidas pelos médicos e enfermeiras, de
condições de trabalho e para o processo de trabalho.
Na questão condição de estrutura física e de recursos materiais, desprende-se o
alerta dado pelos médicos e enfermeiras sobre suas repercussões no estabelecimento
de vínculo. Esperar que os profissionais possam estabelecer vínculos em serviços sem
uma certa infra-estrutura é apostar de que o trabalho em saúde se faça destituído de
instrumentos materiais, apostando-se basicamente no relacional.
A autonomia é reapresentada, agora como uma das bases para o
estabelecimento do vínculo, porque permite a construção conjunta com os usuários de
um projeto que não está pré-determinado, nem sofre ingerências. Igualmente
valorizada é a necessidade de integração do trabalho da ESF.
A questão salarial, do contrato de trabalho, o vislumbre de uma segurança para
o futuro, alimentam a subjetividade, equilibram, harmonizam, criam condições
favorecedoras no estabelecimento do vínculo.
Outra base destacada, para se estabelecer vínculo, refere-se à equipe em si e
grupo de equipes, que necessitam desenvolver um trabalho integrado. Não é razoável
supor que relações individuais dêem conta de construir os vínculos requeridos, tidos
como decisivos na mudança do modelo assistencial. Nestes termos e resgatando pontos
abordados nos quadros anteriores, o processo de trabalho requer diálogo,
planejamento, compartilhamento para desenvolver ações de saúde no espírito do
modelo que contempla promoção, prevenção e recuperação da saúde mediada pelo
vínculo.
O vínculo como estrutura especial de relação, de caráter multidimensional,
também requer profissionais preparados para lidar com os determinantes emocionais,
sociais, econômicos, políticos, ambientais, da saúde e capazes de
modificar/revisar/abrir mão status e papéis habituais (PICHON-RIVIÈRE, 2000) em
favor da instrumentalização do usuário para ser co-partícipe do cuidado em saúde.
152
Assim os médicos e enfermeiras, neste conjunto, colocam que o
estabelecimento do vínculo está ligado à..., é dependente de..., viabiliza-se através
de...., pressupõe.... Estabelecer vínculo não decorre, neste sentido, de uma
determinação simplificada, que de imediato se coloca em prática, mesmo que tenha
emergido dos princípios filosófico-organizativo do SUS/PSF. O estabelecimento do
vínculo no PSF está pois perpassado pelo embate entre a determinação simplificada e a
complexidade da sua efetivação.
4 º CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE CONSEGUE
Quadro 18: componentes – pode-se estabelecer vínculo de várias maneiras mas
não há receita
Unidades de significado:
Eu tento fazer o que posso apesar das dificuldades. Algumas falhas, daqui e dali, mas num
todo eu acho que tenho tido um sucesso legal, graças a Deus
Eu acho que não tem uma receita para construir vínculo, acho que existem várias maneiras,
assim sigo meu próprio jeito pra conseguir interagir
A interação vai se dando desta forma: o paciente vem procurar atendimento, vai contando
hoje uma coisa, amanhã outra. Tu escuta primeiro, buscando não invadir a privacidade.
Depois já começas a sugerir alguma coisa, dá uma opinião, um conselho, daí ele vai se
abrindo mais contigo, sabendo que pode confiar
Da minha parte o vínculo se constrói tendo tempo para ouvir, a pessoa fala, fala, fala, tira
aquela ansiedade, vai relaxando, perguntando, também falando dependendo do que o
paciente pede
Eu acho que é assim que vai se estabelecendo vínculo: olhando pra pessoa, tentando ouvir,
colocando-se à disposição, pensando, vendo o que faz parte do teu trabalho, se podes
ajudar ou não, tentando uma comunicação legal
Colocar-se à disposição é um bom começo, a pessoa está vendo que tu estás a fim de
ajudar
O vínculo vai se criar se você conseguir dar valor à queixa de alguém que veio te procurar
com problema, mesmo que não seja nada físico
Pra estabelecer o vínculo tu não podes estar desatento, fazendo outra coisa. Às vezes, pela
pressa, tu acabas respondendo coisas diferentes daquilo que a pessoa está querendo
Se estiver no sangue do profissional trabalhar no PSF ele vai conversar, orientar, explicar o
que é o PSF, convidar para as atividades
Quase todas as pessoas dos grupos de idosos são meus pacientes, então eu já falo de
acordo com a história deles, porque eu já sei
153
Tentar, conseguir apesar de falhas aqui e ali, das dificuldades, colocando em
prática seu próprio jeito, coloca em pauta a avaliação do ‘sucesso’ que médicos e
enfermeiros referem ter em relação ao vínculo, qual seja ‘às vezes a gente consegue’.
Na ‘tecnologia das relações’ adotada para estabelecer vínculo com os usuários
são referidas o escutar com atenção, perguntar, olhar, conhecer também aspectos mais
subjetivos e pessoais, de forma gradativa, ao longo do tempo, sem invadir privacidade,
valorizar o que o usuário tem a dizer, responder segundo o que o usuário espera, ver se
pode ajudar, se faz parte do trabalho do profissional, colocar-se a disposição, tentar
uma ‘comunicação legal’.
Como recurso destinado a instrumentalização dos usuários aparece o sugerir,
opinar, aconselhar. Aparece também a comunicação personalizada, que se estrutura
porque se sabe quem são os usuários, qual a sua história.
A perspectiva da bi-direcionalidade, essencial numa relação sujeito-sujeito, é
colocada, ou seja o estabelecimento vínculo é favorecido se você receber a queixa e
conseguir comunicar que deu importância a ela, mesmo que não seja queixa física. O
usuário fica mais relaxado, se abre, pergunta, vê que há disposição de ajuda, vai
sabendo que pode confiar.
Os recursos referidos apontam para o estabelecimento de uma relação
contemplando aspectos da ‘dimensão da humanização da assistência’ especialmente
traduzindo o acolhimento (acesso ao serviço atenção, escuta, valorização dos motivos
da procura, atendimento das necessidades) e da ‘dimensão ética e técnica’ (respeito à
privacidade, continuidade do atendimento).
Numa das referências destaca-se a importância do PSF estar ‘no sangue’,
portanto dentro do profissional, nutrindo-o, criando a energia para que desenvolva
condutas pró-vínculo como conversar, orientar, envolver os usuários no PSF.
Não foram referidos aspectos das dimensões ‘cultural’ (identificação dos
valores culturais e das formas utilizadas pelos usuários para resolverem seus
problemas de saúde); ‘ecológica’ (de atenção às condições do ambiente físico/social
onde vivem os usuários) e ‘política’ (incluindo as ações destinadas a promoção da
cidadania dos usuários, compromisso, participação, incremento do controle social).
154
Na pratica observei que esta ‘humanização da assistência’ era praticada tanto
pelos médicos como pelas enfermeiras, ressaltando-se que para alguns profissionais
isto era muito expressivo como no caso do médico ESF verde, a primeira enfermeira
da ESF verde, o médico e a enfermeira da ESF azul. Tais práticas porém eram
agregadas ao atendimento do eixo queixas/diagnóstico/tratamento e providências
pertinente. Neste caso o que foi referido acima não se traduzia em mudança do modelo
assistencial biomédico praticado pelos profissionais. Nestes termos considero que
aqui se expressa novamente uma questão problemática do PSF que atribui ao vínculo
um papel primordial na mudança do modelo assistencial e nestes termos o que se
colocou como vínculo não produziu mudanças.
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE CONSEGUE
Quadro 19: componentes – o que pode indicar a construção de vínculo
Unidades de significado:
O bom atendimento deixa as pessoas, a comunidade, mais próxima e eles procuram mais
ainda para serem atendidos
O vínculo dos profissionais com a comunidade é visto pelo tratamento que as pessoas dão à
equipe. Eles procuram, ligam, se interessam, porque reconhecem, confiam
É um sinal do vínculo às pessoas chegarem aqui, virem direto conversar, se abrirem,
saberem das coisas, porque tem abertura
Se eu me atrasar confio que não haverá reclamação, que serei compreendido pelas pessoas
porque a gente tem uma boa relação
Nas famílias em que considero ter um vínculo forte, eu me sinto da família, sinto que eles
têm um grande respeito por mim, muita confiança, amizade
No meu caso as pessoas ainda vêm buscar a enfermeira anterior. Primeiro querem saber
dela, pra onde ela foi, porque saiu. Eu explico que estou no lugar dela para atender as
necessidades da comunidade
Já veio a reclamação para o Conselho Local que eles estão sentindo minha falta no grupo de
saúde, que eles querem a minha presença lá
A comunidade sentiu bastante, cobraram bastante a saída do médico que ia na comunidade,
nos grupos
O paciente sabe que é ouvido, conta e confia que suas coisas íntimas não serão reveladas
a ninguém
Ele tem a confiança de falar sobre não ter feito um tratamento que fez mal, que não deu
resultado e busca ajuda novamente. No olhar do paciente já vê se ele vai ou não fazer o
que você indicou
155
Neste quadro vimos médicos e enfermeiras apontarem, tanto o que concebem
como indicadores do estabelecimento denculo, como aqueles que consideram
indicadores do que estão alcançando. Ou seja a existência do vínculo pode ser
evidenciada principalmente no comportamento dos usuários. Assim, o tratamento dado
pelos usuários, a consideração que dispensam à equipe, a atitude de procurar mais
vezes, de demonstrarem saber-se ouvido, de falar mais de suas questões particulares,
de demonstrarem que estão à vontade no CS, de quererem que o profissional esteja nas
atividades, de pedirem explicação e lamentarem as saídas, de sentirem confiança de
falar sobre o que deixaram de fazer no tratamento, de procurarem ajuda novamente,
foram os indicadores referidos. Eles procuram porque confiam e confiam porque
recebem bom atendimento, porque os profissionais vão até eles.
No lado profissional a confirmação referida, da existência do vínculo, foi
relacionada à subjetividade, ao ‘como eu me sinto’, ou me sinto como sendo da
família, que eles tem um grande respeito por mim, muita confiança, amizade, que
compreendem minhas necessidades e não reclamam se houver algum atraso. Por fim
reconhecem que se estabeleceu uma ‘boa relação’.
A partir dos seus próprios indicadores os médicos e enfermeiras se reconhecem
desenvolvendo um bom trabalho, construindo algo junto à população adscrita .
Apesar de tudo, o nosso trabalho está demonstrando alguma coisa. Quando
abrimos o CS, há dois anos, havia uma demanda impressionante de
diabéticos e hipertensos, eles quase não tinham atendimento, estavam
totalmente descontrolados, descuidados e outros nem sabiam o que tinham.
ENT/Enf ESF azul
Tem gente caminhando, diminuiu pressão, com colesterol baixo,
emagrecendo, com diabetes mais controlado e isso no bairro inteiro. Então
quer dizer, os caras começaram a mudar o modo de vida, viram que é legal e
reconhecem nosso trabalho. ENT/Méd ESF verde
O que se poderia ainda destacar neste quadro é que os indicadores apontados
referem-se em grande parte ao vínculo afetivo e em parte tem atributos das
156
dimensionalidades do vínculo de compromisso e co-responsabilidade. Pichon-Rivière
(2000), refere que nas relações não existe só um tipo de vínculo, pois as relações que o
sujeito estabelece com o mundo são mistas gerando, simultaneamente, estruturas
vinculares diversas. Esta referência, de estabelecimento denculo afetivo, foi
retomada neste conjunto, uma vez que já aparecera na categoria ‘é injusto pedirem isso
da gente’.
Recolocando o que disse Coelho (2002), acerca da construção do vínculo
terapêutico psicoterápico, que o processo de sua construção tem de cumprir sua
função de ser o que se propõe ou ser terapêutico, uma vez que poderia não se
constituir. Assim, diria que para o PSF ‘boa relação’ é desejável, nutre, motiva,
gratifica a subjetividade mas ‘boa relação’ não consegue ser o todo do vínculo de
compromisso e co-responsabilidade.
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE CONSEGUE
Quadro 20: componentes – os médicos na construção do vínculo
Unidades de significado:
Versão dos médicos e enfermeiras
O vínculo de compromisso e co-responsabilidade se estabelece principalmente na consulta,
no caso do médico
O vínculo do médico se relaciona muito ainda a parte clínica, isto é enfatizado na sua
formação
O médico da minha equipe é diferente, tem visão do vínculo, de atuar junto à família e não
apenas no indivíduo
Versão dos AuxEnf e ACS
Tanto os médicos como as enfermeiras são mais do tipo amigo, não tem nada de
autoridade, nada de mandar, abordam de forma descontraída
A relação paciente-médico é diferente porque o médico solicita exames, vê raio X, passa o
remedinho que eles querem, coisa que o enfermeiro não pode fazer
O médico não consegue gravar o nome das pessoas, mas conhece os casos, um pouco
menos que a enfermeira
da bastante a relação pois
lá o ambiente é mais descontraído, dá pra fazer um vínculo maior
O nosso médico participa bastante dos grupos de saúde e isso aju
157
Versão dos usuários
À parte do médico é mais saber da doença e dar o tratamento. Ele sempre explica o que
está fazendo
, porque está mudando um remédio, pra fazer dieta também pro tratamento
, dá a receita e pede pra voltar de
novo; a conversa é sobre a doença, coisa particular não
e ainda pergunta: tu não tens nada mais
e não acha isso certo mas respeitou a
minha decisão (referência ao médico da ESF verde)
médico; ele me escuta e dá
quela ciência do atendimento. O meu médico tem isso (referência
ao médico da ESF azul)
sso daí é um ponto positivo, novo, que tem aqui (referência ao
médico da ESF amarela).
fazer efeito
O médico é aquela consulta rápida, examina, conversa
Ele não é só de passar o remédio pra gente. Vai perguntando como eu sou, como vai o
casamento, isso tudo. É bem bom, deixa eu falar
pra dizer? (referência ao médico da ESF verde)
Ele aceita a minha opinião, não impõe, explica quando pensa diferente. Por exemplo, passei
a tomar anticoncepcional pra não menstruar mais, el
Sempre falo dos meus problemas de família com o meu
conselhos, tenta ajudar (referência ao médico da ESF azul)
O que ajuda é que os médicos estão se relacionando melhor com as famílias, o lado
humanitário está melhor, a
Hoje o médico está dizendo bom dia, vem ao encontro da gente, a gente pode dar opinião
sobre o tratamento então i
enção e destaque para a
presença das dimensões humanísticas no atendimento.
comportamento relacional dos médicos. Por exemplo, apontaram para os médicos da
odelo biomédico tradicional, conforme
mencionado no depoimento abaixo:
mos da doença
e às vezes a gente tem bastante informação. ENT/Usuário
Um ponto em comum encontrado nos depoimentos dos médicos e enfermeiras,
ACS e usuários, é que os médico e usuários mantiveram-se interagindo
predominantemente no espaço do consultório, trabalhando principalmente no eixo
queixa/diagnóstico/tratamento. Neste quadro retorna a m
Certos depoimentos de usuários ressaltaram aspectos específicos do
ESF verde e azul uma maior inclusão da dimensão de humanização e para o médico
da ESF amarela a manutenção do m
Tem uma coisa com esse Dr ....(médico da ESF amarela): pela primeira
consulta eu achei muito corrido. Não sei se é porque ele é novo ou porque
tem aqueles que precisam mais do que a gente, tem problemas piores.
Tratou-me muito bem mas eu achei um pouco rápido, só fala
158
O vínculo como estrutura especial de relação, de caráter multidimensional,
também requer profissionais preparados para lidar com os determinantes emocionais,
sociais, econômicos, políticos, ambientais, da saúde e capazes de
modificar/revisar/abrir mão status e papéis habituais (PICHON-RIVIÈRE, 2000) em
favor da instrumentalização do usuário para ser co-partícipe do cuidado em saúde.
O vínculo como estrutura especial de relação, de caráter multidimensional,
também requer profissionais preparados para lidar com os determinantes emocionais,
sociais, econômicos, políticos, ambientais, da saúde e capazes de
modificar/revisar/abrir mão status e papéis habituais (PICHON-RIVIÈRE, 2000) em
favor da instrumentalização do usuário para ser co-partícipe do cuidado em saúde.
Os dados acima apontam também que médico é ainda aquele que explica, orienta,
direciona condutas.
Algum investimento na instrumentalização dos usuários, visando possibilitar o
exercício do compromisso e co-responsabilidade no cuidado em saúde, do controle
social, é feito nos grupos de saúde, do qual participam doentes crônicos, idosos. Como
apenas o médico da ESF verde desenvolve este trabalho com regularidade, o impacto
desta instrumentalização fica limitado àquelas pessoas, ficando a descoberto boa parte
da população adscrita.
Para as demais situações, os usuários que identificam novas possibilidades de
relação, demonstram estarem mais confortáveis para efetuar pedidos, sugerir, solicitar
mudanças no tratamento.
Como síntese, os depoimentos apontam na direção de alguma mudança na
forma de desenvolver o papel profissional médico, porém com pouca mudança
quando se refere a questão do status (o médico é quem detém o saber, define o que tem
de ser feito,..).
159
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE CONSEGUE
Quadro 21: componentes – as enfermeiras na construção do vínculo
Unidades de significado:
Versão dos médicos e enfermeiras
A enfermeira conhece melhor a comunidade, recebe mais informações que o médico, pois
tem contato diário com os agentes que todo dia repassam alguma coisinha, mesmo que
rapidamente
A enfermeira tem uma visão mais holística, de atuar junto à família e não apenas no
indivíduo e isto é enfatizado na sua formação.
O vínculo da enfermeira é diferente do médico, dá uma resposta mais para a parte humana,
de vida, de ajuda geral
Muitas pessoas estão precisando de uma palavra, não estão precisando de remédio e a
enfermeira é mais capaz de fazer isso
Quando as pessoas começam a vir no CS geralmente querem um auxílio, uma medicação,
orientação sobre o funcionamento do serviço e por isso geralmente procuram a enfermeira
Versão dos AuxEnf e ACS
A enfermeira já é mais procurada pra fazer avaliação e o médico mais para a consulta
Quando ligam pro Posto ou os agentes trazem um problema, a enfermeira vai avaliar, ver o
que precisa
O principal atendimento da enfermeira é no Posto
O nosso povo não está conscientizado que o enfermeiro tem essa capacidade, quase ao
nível do médico; eles preferem o médico porque o médico já faz tudo
Versão dos usuários:1º
As enfermeiras fazem a parte da saúde mas também consideram outras coisas que
envolvem cada paciente, procurando minimizar mais os problemas.
No meu caso encaro o nosso médico como amigo, mais o relacionamento sempre é bem
maior com a enfermagem.
As enfermeiras tentam auxiliar a gente de todas maneiras, tentam agilizar exames, por
vontade delas os exames seriam marcados pro dia seguinte
No que se refere à parte familiar, é muito interessante o trabalho que elas vem fazendo, de
conselhos, de ajuda moral, digamos assim
As enfermeiras vêem à pressão e dizem como está, contam novidades, deixam a gente
descansar, se preocupam com uma dor, perguntam se a gente comeu alguma coisa, se está
preocupada, nervosa
A enfermeira atende de uma forma indireta, através dos ACS que vem pra dentro da casa
da gente, elas ficam mais no Posto.
Versão dos usuários: 2º
Pra falar a verdade eu não sei quem é a enfermeira da minha área, todas elas me atendem
Eu conheço a maioria das enfermeiras, conheço a Y (enfermeira da ESF verde), a X
(enfermeira da ESF azul) , a Z (enfermeira da ESF amarela 12) a W*, a J*, a Q*, a K*
Quando eu venho no Posto, as enfermeiras que eu procuro são a K*, a W*, a P*, gosto
muito, me atendem bem
160
Nomes eu não sei porque eu chego lá é querida pra cá, querida pra lá e elas atendem
A X? Uma magrinha que atende na pressão? A Y? Uma magrinha, de cabelo encaracolado,
lourinha? Qual é aquela? E qual é aquela que ninguém gostava dela?
A enfermeira Y era uma pessoa muito querida, super humana, tinha aquele jeitinho meigo
mas era da luta, tinha uma firmeza pra conseguir as coisas (referência à primeira enfermeira
da ESF verde)
A nossa nova enfermeira é a R mais eu não conheço, nunca vi ela (referência à segunda
enfermeira da ESF verde)
No Posto a enfermeira X se destaca. Todo mundo diz que ela é um amor, é maravilhosa,
iluminada, de uma simpatia, de uma atenção fora de série, que vestiu a camisa, é ‘a
enfermeira’, com ‘A’ maiúsculo (referência à enfermeira da ESFazul)
A enfermeira X luta, ela vê quando a pessoa tem uma necessidade, uma emergência, um
especialista, ela corre atrás da coisa.Talvez não faça mais por que limitações da estrutura,
mas ela tenta (referência à enfermeira da ESFazul)
A enfermeira Z é uma pessoa que eu não tenho nada a dizer porque realmente conheci
muito pouco (referência à enfermeira da equipe amarela)
A enfermeira Z o pessoal não conhece, fica mais isolada. Se é boa ou ruim não dá pra dizer
(referência à enfermeira da ESF amarela)
*auxiliares de enfermagem
Nos dados acima destaco referências dos usuários sobre o atendimento prestado
pelas enfermeiras (versão1º) e sobre como as identificam e o que destacam em seu
comportamento relacional (versão 2º).
Frente aos objetivos do PSF, o conhecer a comunidade, conhecer as pessoas e
seus problemas, ter uma mais visão holística, deixa as enfermeiras melhor
posicionadas quanto a disporem de instrumental relevante para estabelecimento de
vínculo. O médico conhece muito menos.
Os dados apontam ainda que a visão das enfermeiras, sobre seu papel no
atendimento em saúde, é muito mais idealizado, abrangente e significativo do que o
referido pelos ACS e usuários.
No CS as interações são geralmente individualizadas, tanto para os médicos
como para as enfermeiras, mas estas desenvolvem um trabalho menos valorizado, na
versão dos ACS, já que o trabalho dos médicos é tido como mais completo, é o que as
pessoas querem.
Os dados demonstram que os usuários valorizam o trabalho de atendimento da
‘parte humana, de vida, de ajuda geral’ e para viabilizar os recursos de tratamento e
acompanhamento da doença/queixa. Mas as enfermeiras concorrem com as auxiliares
161
de enfermagem, que são igualmente amigas, que também os ajudam a obterem o que
precisam. Poucos usuários entrevistados nomearam as enfermeiras de suas áreas,
embora fossem atendidos com freqüência no CS e tenham participado das entrevistas
em função de ‘possuírem vínculo’ como os médicos e enfermeiras (critério de
seleção). Quando os nomes das enfermeiras foram colocados, aí sabiam quem eram e
como eram as pessoas sobre as quais se falava. Os usuários entrevistados não
conseguiram diferenciar o trabalho das enfermeiras do trabalho das demais
funcionárias de enfermagem do CS.
No quadro acima ainda é possível evidenciar ainda que os usuários referiram-se
a duas enfermeiras como especiais para conseguir as coisas, um exame, um
especialista, dar atenção. Uma delas foi referida como pouco conhecida mesmo após o
terceiro mês de trabalho da profissional (o conhecimento do médico se faz de
imediato). A enfermeira da ESF amarela foi referida como tendo pouco contato com
os usuários.
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE CONSEGUE
Quadro 22: componentes – os melhores espaços para construir vínculo
Unidades de significado:
Os médicos consultam diariamente, então sempre estão sendo conhecidos por alguém, há
sempre novas pessoas em contato com eles
Na consulta você atinge uma pessoa só, mas o espaço do consultório é a base, até pra
você levantar os problemas, pra pessoa falar
No consultório o cara entra, senta, fala dos seus problemas, tu ouve, examina e passa a
receita. Faltam coisas que aparecem no grupo, na visita
O Conselho Local é uma maneira legal de estabelecer o vínculo porque podem divulgar
nosso trabalho, pois os conselheiros estão mais perto da comunidade
O grupo é um espaço bem legal para construir vínculo, pode-se brincar, é bem
descontraído, então o pessoal fica super à vontade, eles perguntam tudo o que querem,
participam de tudo, têm intimidade, aumenta o auto conhecimento
Nos grupos você interage, atinge várias pessoas e elas levam isto para suas famílias e para
a comunidade. Tem abrangência, dissemina mais, o impacto é maior que no consultório
Nas visitas o médico sai do consultório, a enfermeira sai do posto, conhecem não só o
paciente mas toda a família
Nas visitas as pessoas conversam mais, contam seus problemas, suas histórias, sua vida.
Isso daí vai fazendo com que o vínculo seja criado de uma maneira mais espontânea
162
Cada espaço visto como possível para se estabelecer vínculos teve alguma
valorização e algum limite, sem alcançar-se unanimidade. Ressalto, conforme descrito
no item 5.3.3 do capítulo 5, que os grupos foram atividades pouco freqüentes das ESF
azul e amarela, que as enfermeiras faziam poucas visitas domiciliares, principalmente
das ESF verde e amarela. Assim parte das respostas não se refere a uma prática mas a
percepção do potencial de cada espaço.
Nas consultas, principalmente os médicos, já que realizam grande número
delas, tem sempre a possibilidade de somar, incluir, ampliar a base de relações na
direção numérica da população adscrita. Por somatória ‘o feixe pode engrossar’. As
limitações disto, colocando-se o PSF como prisma, são de que o modelo biomédico
produz reduzido atendimento ‘dos saudáveis’, dos ‘pré-doentes’ que ainda não
‘fiscalizaram’ a doença, dos não validados como doentes pelo modelo, ‘dos doentes’
que o modelo não consegue atender por falta de instrumentalização e exclui. A relação
individualizada também exclui os demais membros da ESF, não favorecendo portanto
a construção de estratégias compartilhadas de atendimento em saúde. Assim, no
atendimento individualizado, em consultório, sem a aplicação das dimensionalidades
previstas para o vínculo (humanização da atenção, técnica/relacional, sócio-cultural,
ecológica e política), impõem-se sérios limites ao estabelecimento do vínculo
requerido.
Nas visitas domiciliares o que foi mencionado acima pouco se modificou, pois
os usuários que as recebem foram, predominantemente, doentes impossibilitados de
irem ao CS e o foco predominante das interações foi o atendimento da queixa/doença.
Normalmente na situação de visita estabeleceram-se relações de afeto, proximidade,
amizade, maior familiaridade ou sejam se evidenciaram um número maior de
comportamentos de sociabilidade e afetividade. O que ficou faltando foi a
contextualização dos ‘problemas’ na perspectiva do PSF, referidas nas
dimensionalidades do vínculo, que gerariam tanto uma clinica ampliada
(CAMPOS,1997), como um trabalho de promoção e prevenção. Sintetizando, o que se
que se estabeleceu como relação aconteceu frente aos objetivos do modelo biomédico
e não os pretendidos pelo PSF.
163
Os grupos receberam forte valorização, como espaços de estabelecimento de
vínculos, já que aí acontece lazer, descontração, congregação, auto conhecimento,
além do caráter disseminador de comportamentos positivos em saúde. Na prática
quando acontecem, foram conduzidos normalmente pelo médico, em especial da ESF
verde, como já foi colocado.
O espaço do Conselho Local também aparece valorizado por propiciar
conhecimento e divulgação do trabalho da ESF. Nas reuniões do Conselho Local
sempre estiveram presentes o médico e a enfermeira da ESF azul, e os demais
esporadicamente, demonstrando na prática a sub utilização deste espaço para favorecer
o estabelecimento de vínculos, diferentemente do que foi colocado.
Vimos que no conjunto de espaços mencionados para construir vínculos não
foram citadas as instituições da comunidade, nas quais seria possível fomentar o
exercício da intersetorialidade, como escolas, grupos da Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social, igrejas, etc. Também na prática não observei utilização
destes como espaços de trabalho profissional.
Sintetizando, o estabelecimento de vínculo do PSF acontece no conjunto dos
espaços onde se desenvolve o cuidado em saúde, desde que explorados em suas
especificidades e potencialidade, desde que como ‘tecnologia leve’ (MERHY, 1997,
1999, 2003) ultrapasse o modelo biomédico o qual também se vale e se fortalece pelas
‘boas relações’.
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE CONSEGUE
Quadro 23: componentes – pra trabalhar normal não precisa vínculo
Unidades de significado:
Pra trabalhar normal não precisa vínculo. Responsabilidade tem que ter, de exercer tua
função da melhor forma possível, isso aí é teu, é um compromisso até de ética
Aqueles que estão se sentindo mal querem qualquer médico, em qualquer lum, o importante
é ser atendido e saber o que tem
164
Neste conjunto há que se destacar que no pensar deste grupo de médicos e
enfermeiras o trabalho com vínculo ultrapassa o trabalho ‘normal’. Neste, tem de
entrar ética, responsabilidade, compromisso, melhor atendimento possível, mas não
necessariamente vínculo. Então o PSF tem algo mais, tem um diferencial, o vínculo é
algo especial, diferente da produção técnica, mas está aí para ampliá-la.
Além do trabalho ‘normal’ o profissional, referiu-se que há uma condição do
usuário que também dispensa vínculo, a urgência, pois aí o técnico é soberano, direto,
objetivo, dispensando ‘a complexidade’ atribuída ao vínculo
Ao finalizar a apresentação do primeiro tema ‘o vínculo que se constrói’
considero que se possa ainda efetuar uma síntese, a partir dos dados que emergiram
das entrevistas dos médicos, enfermeiras, ACS, usuários e observações da
pesquisadora, sobre a construção de vínculos dos médicos e enfermeiras com os
usuários, nesta realidade de implantação do PSF como programa.
Considero que se configurou a construção de uma estrutura de relação, onde o
primeiro agente da díade (médico ou enfermeira) empregou recursos de sociabilidade,
da efetividade e das dimensões de humanização da assistência (principalmente
acolhimento) e da dimensão técnica do vínculo na consecução das finalidades do
modelo biomédico.
O segundo elemento da díade de relações foi um conjunto de usuários
(incluídos no conjunto por adição) e poucas vezes grupos (idosos, diabéticos e
hipertensos ou famílias) que requereram atendimento que predominantemente
identificasse/tratasse/controlasse doenças. Também procuraram o serviço para
conseguir ajuda frente ao ‘mal estar’ resultante da deterioração de suas condições de
vida emocional, social e econômica, individual e familiar. Como tecnologia de
relações produziram-se amizade, intimidade, confiança, relativa aprovação técnica,
certos acordos e alguma negociação. Faltam ao vínculo ‘que se consegue construir’
algumas dimensionalidades para tornar-se vínculo requerido pelo PSF. Faltaria
165
constituir-se como instrumento para o desenvolvimento de autonomização dos
usuários (individual e coletivo) que nesta condição estaria instrumentalizado em
saúde podendo assumir compromisso e co-responsabilidade, conforme recomendam
Campos (1997, 1999), Merhy (1997, 2003), Merhy e Franco (1999, 2003).
Faltou ainda instrumentalização dos usuários (individual e coletivo) para que
possa validar outro modelo de desenvolvimento de ações de saúde, para adotar novas
condutas de promoção e prevenção em saúde, de estímulo ao desenvolvimento da
cidadania.
Médicos e enfermeiras conhecem paradigmas do PSF, compreendem o que se
espera deles já que foram buscar isto principalmente na forma autodidata e na
experimentação, percebem conflito, traduzem o dilema teoria-prática.
Médicos e enfermeiras se encontram tanto imersos no modelo biomédico, como
numa estrutura gerencial que privilegia a produção, o que se pode nomear, contar,
medir, mostrar, a execução de tarefas pré-definidas num tempo controlado, o
parcelamento do trabalho entre os sujeitos envolvidos visando aumento da
produtividade. Ou o que se encontra é o modelo biomédico fundamentado em bases
positivistas, na lógica taylorista de organização do trabalho e na influência das idéias
neoliberais.
Os profissionais vão conduzindo seu trabalho de acordo com o instituído,
sabendo que o que conseguem é parcial, pois não dispõem das bases necessárias e,
como grupo, imerso numa conjuntura conflitual, não conseguem gerar autonomia,
fazer rupturas libertadoras do trabalho vivo, o qual possibilitaria abrir espaços, gerar
‘um idealismo’, fomentador da paixão por sua obra (CAMPOS, 1997, 1999; MERHY,
1997, 1999, 2003; MERHY et al, 1997; MERHY e FRANCO, 2003).
165
TEMA II: O VÍNCULO REQUERIDO TEM VÁRIOS OBSTÁCULOS
1 º CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE NÃO CONSEGUE
Quadro 24: componentes – em função do estado e do jeito da gente ser
Unidades de significado:
Muitas vezes a gente não consegue, sai fora do nosso alcance, da nossa alçada
Tem dias que a gente também não está inspirado
Às vezes estou agindo como um robozinho, automático, apressado pra fazer as coisas, aí
não consigo estabelecer um diálogo
Às vezes a gente tenta abordar de uma maneira correta e termina abordando de uma
maneira que o pessoal não gosta, isto meio que dá aquela freada
Pelo meu estado agora (gravidez) eu não estou conseguindo fazer o grupo, ir à casa das
pessoas, nas reuniões do Conselho Local
Tem aquilo, de que a relação nunca agrada toda a população. Sempre tem quem reclame
Tem vários modos de agir dos profissionais: uns tem um entrosamento melhor, fazem mais
brincadeiras, outros já são mais reservados
Limitações no estado de saúde, emocionais, excesso de demandas, capacidade
de entrosar-se, comunicar-se, o quanto se agrada, estão listados como obstáculos de
ordem pessoal para se estabelecer vínculo. Alguns aspectos colocados são transitórios,
de certos dias, de certos estados e portanto normais para nosso ‘ser humano’ e desde
que não se apresentem com freqüência, provavelmente terão pouco impacto na
construção de vínculos, que requer múltiplas interações, continuidade, se faz ao longo
do tempo. Mas se a dificuldade é conseqüente a um modo específico ‘de ser’ ela
acompanhará o profissional.
O primeiro médico da ‘ESF amarela’, por exemplo, tinha episódios de
irritabilidade, principalmente quando pressionado pelo excesso de demandas,
entrando em conflito com usuários. Cada situação de conflito deteriorava o clima no
CS, fomentava reclamações, produzia queixas levadas à SS, gerava esforços de
apaziguamento dos colegas. Neste sentido, o que disseram médicos e enfermeiras, que
às vezes não se conseguem estabelecer vínculo em ‘função do estado e do jeito de ser’,
aparece evidenciado na prática.
166
O modo de ser, que poderia ser traduzido na questão do ‘perfil’ é citado de
forma recorrente, como base necessária para se estabelecer vínculo nos vários espaços
onde se faz PSF; se o profissional não gosta de desenvolver atividades como falar em
público, trabalhar em grupo, estar na comunidade, pode realmente ter dificuldade para
estabelecer vínculo. Além disso, pode sobrecarregar o grupo, pela transferência
contínua de parcelas do seu trabalho, gerando-se novas dificuldades se isto não for
aceito.
Estas condições deveriam ser consideradas quando da seleção dos profissionais
para trabalhar no PSF, prevenindo desgastes tanto dos profissionais como dos
gerentes, provenientes do ‘modo de ser’ do profissional. Por outro lado, estratégias
devem ser previstas para o aperfeiçoamento dos potenciais de cada profissional para
estabelecer vínculo, considerando-se também que nossas escolas não ensinam várias
habilidades requisitadas para o trabalho em saúde coletiva, o que leva os profissionais
aprenderem na prática (ou não).
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE NÃO CONSEGUE
Quadro 25: componentes – em função do perfil da comunidade
Unidades de significado:
Em vários locais existem aspectos sérios, como naqueles em que se alia carência e
violência social, que dificultam a implantação do PSF
Numa comunidade difícil, o profissional trabalha com um grau de estresse bem maior do
que aquele que trabalha numa comunidade legal, num posto sem problema, onde tu não
ouve gritaria
Numa comunidade legal não aparece ninguém com arma em punho, não aparece ninguém
gritando, batendo no balcão, querendo bater nos funcionários
Tem lugar que é difícil, ruim de trabalhar, onde as pessoas não se organizam, só exigem,
vem gritar no posto, fica só com a gente
Quando o pessoal exige mais é organizado, tem subsídio, tem uma base, até fica mais fácil
pra conseguir realizar as cobranças deles
O resultado certamente será diferente se a comunidade for mais fácil ou mais difícil de
trabalhar e por isso é interessante estudar vínculo em diferentes contextos
167
Nestes dados, médicos e enfermeiros transcendem sua realidade imediata e
referem outras vivências relacionando-as com o estabelecimento de vínculo
Se por um lado a ‘comunidade mais fácil’ de trabalhar, tipo aquela que tem
necessidade do serviço de saúde mas não busca nele recursos materiais e sociais
elementares, básicos, de sobrevivência, contribui para o estabelecimento de vínculos, a
excessiva carência cria a condição inversa, dificulta.
Nas ‘comunidades ruins de trabalhar’ tais como aquelas que aliam carência com
violência, requerem muita ajuda do ‘posto’ e dos profissionais, não estão organizadas,
exigem o que precisam através da força e a ameaça, construir ‘boas relações’ é um
desafio maior, já que as mesmas estão permeadas pela tensão, são geradoras de
estresse.
Em princípio, o vínculo no PSF, tendo como base à ‘responsabilização por’ ‘o
compromisso com’, colocariam mesmo as necessidades maiores e complexas na
condição de serem objetos de ações de saúde. Porém, neste caso, os profissionais
acabam ‘encarnando’ quando do estabelecimento de vínculo, as dificuldades de uma
realidade que lhes exige por um lado maior competência pessoal (paciência,
compreensão, tolerância, solidariedade, transcendência) e por outro produz desgaste e
sofrimento adicional.
Nestas realidades os profissionais requerem suporte institucional diferenciado
para que atinjam o objetivo do vínculo, seja no sentido de compreender os
determinantes da realidade e em conseqüência solidarizar-se, para compor-se mais
como sujeitos e em conseqüência terem novos recursos para transcender tais
realidades, além do suporte maior em termos de condições de trabalho e maior apoio
no processo de trabalho.
168
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE NÃO CONSEGUE
Quadro 26: componentes – em função da forma como a população vê o SUS e
o PSF
Unidades de significado:
Nem a metade da população conhece o PSF. Como as pessoas não estão ligadas no que é
o nosso trabalho dificulta pra estabelecer vínculo
O PSF aqui foi implantado muito jogado; faltou preparo da comunidade e isso é um ponto
negativo pra estabelecer vínculo
Há muito preconceito, muito descrédito com relação ao atendimento do SUS, tem gente que
considera o SUS uma porcaria
Dificulta quando as pessoas não acreditam no trabalho, falta confiança na resolução dos
problemas
Falta um pouco de interesse, conhecimento, responsabilidade da população em saber o que
é o PSF e em se ajudar. Quando há desinteresse, não que a gente vai desistir, mais aí fica
mais difícil
Os dados acima destacam os obstáculos que a desconfiança, a descrença, o
desconhecimento do SUS e PSF pela população são para estabelecimento do vínculo.
Conhecer ajudaria a rever e equilibrar expectativas, pressupondo-se a melhoria das
relações, desinstalar a alienação da população, recriar seu compromisso, com algo que
existe por e para ela.
Muito se poderia falar sobre as razões da alienação da população, de não ser tão
crítica e reivindicadora como colocam os profissionais, tão participante quanto o
esperado apesar de dispor de instrumentos como controle social, de participação no
Conselho Local de Saúde. Há uma dada história político-social construtora do ‘status
quo’, onde esteve vigente a democratização incompleta, a perversidade da inserção
social e no mercado de trabalho, a baixa escolaridade, a insuficiente proteção social.
Mas na questão vínculo sob prisma do PSF, é fundamental realçar a necessidade
referida pelos profissionais de que há uma comunicação incompleta do/sobre o PSF
que cria dificuldades para a construção da co-responsabilidade, para a mudança de
posição dos usuários, mantendo-se neste caso o fluxo de responsabilidade
unidirecional, que se pretende superar.
169
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE NÃO CONSEGUE
Quadro 27: componentes – em função de comportamentos dos usuários
Unidades de significado:
Nem sempre a gente consegue pois tem gente que tem uma armadura
Tem gente que não quer ter visita domiciliar, que nem recebe o ACS e a gente não pode
forçar
As pessoas às vezes te vêem como polícia, acham que vais ver o que está sujo ou limpo, o
que estão fazendo de errado; a idéia não é servir de polícia, é mais a fim de dar uma ajuda,
uma orientação
Então a gente vai fazer visita, ah: o que estão fazendo aqui? Estão me fiscalizando,
cobrando IPTU, sei lá
As pessoas com plano de saúde se recusam a vir no CS, a gente nem forma vínculo
No serviço público o cara não vem atrás de um médico específico, ele vem atrás do médico,
tem que ter médico
Às vezes você é obrigado a prescrever o que as pessoas querem, ou consultar a qualquer
hora. Se não fizer isso vai ficar ruim, vão se queixar do atendimento; você se sente usado
O que se aborda neste quadro apresenta uma continuidade temática com o
quadro anterior. Trata principalmente da desconfiança de certos usuários no serviço,
no atendimento, nas propostas. Aponta para a situação que mesmo numa comunidade
‘fácil de se trabalhar’ existem usuários que são ‘difíceis’, que se auto-excluem do
atendimento em saúde, porque não confiam, tem medo do julgamento, do ‘jeito de
polícia’ dos profissionais da saúde, as vezes reais, outras imaginárias. Tem também os
que não precisam, tem como buscar ‘atendimentos melhores’, apesar de disporem do
benefício do acesso universalizado do SUS. Desta condição emerge também o desafio
para as ESF, que em se fazendo ‘PSF mesmo’ teriam de buscar conhecer, no mínimo,
as necessidades de saúde dos que se ‘excluem’, ‘transcendendo a rejeição’ daqueles
que precisam de atendimento mas negam isto ou aceitando a auto- exclusão dos que
estão atendidos, se ela for responsável.
Outros comportamentos negativos de usuários, destacados como obstáculos
para o vínculo, foram à exigência de ‘qualquer médico’ e o de gerar no médico a
percepção de estar ‘sendo usado’. Quando se tratou de indicadores do vínculo, na
170
categoria ‘às vezes a gente consegue’ vimos que quando os médicos e enfermeiras se
percebiam aprovados sentiam–se revigorados em sua subjetividade. Nestes dados o
que referem é o contrário, dificultando a construção do vínculo.
Considero importante refletir sobre a percepção referida pelos médicos de
estarem sendo usados. O sentir-se usado seria resultado da mudança da postura dos
médicos na direção de desenvolver o atendimento em saúde incluindo novas
dimensões de cuidado (as humanísticas por exemplo), reduzindo as diferenças de
poder, de autoridade dos médicos? Ou decorrente da disponibilidade de maior
informação em saúde por parte dos usuários que estaria gerando maior ‘consciência
sobre o que precisam’? Ou está sendo produzida uma cultura que inverte a relação
imperando ‘à vontade’ dos usuários? Em várias ocasiões ouvi queixa e irritação dos
médicos de que certos usuários vinham ‘exigir’receitas de medicamentos que sabiam
ser adequado, referiam os exames que precisavam, já tinham definido seus
diagnósticos, estabelecidos a partir da mídia, de amigos e familiares, ‘camuflavam’ as
razões de solicitação da visita domiciliar. Sobre o que foi colocado produzi a seguinte
nota de campo:
O médico, AuxEnf e ACS da ESF amarela visitam um homem de
aproximadamente 50 anos, portador de diabetes avançado, insuficiência
renal e perda parcial da visão. Faz diálise peritonial semanalmente. Apesar
destes diagnósticos sua aparência é boa, anda com desenvoltura, demonstra
boa escolaridade. A família mora numa casa de alvenaria, espaçosa,
confortável, bem decorada, com carro seminovo na garagem. A equipe é
recebida na sala; todos se cumprimentam entre si. A esposa do usuário
convida o grupo para sentar e o atendimento inicia. O usuário queixa-se de
fraqueza, episódios de tontura e sudorese intensa. Tem anemia diagnosticada
por um médico que consultara através do seu convênio mas diz não ter
podido comprar ácido fólico e ferro e pede ao médico que faça as receitas. O
médico faz perguntas, observa exames, preenche requisições de exames,
prescreve frente às queixas colocadas, dá orientações. O casal passa a falar
nos problemas de saúde da esposa do usuário, ampliando as demandas
previstas para a visita. O médico dá explicações rápidas e fala à mulher que
caso queira uma consulta poderá atendê-la no CS. Na saída o médico parece
irritado e diz a ACS que achara a família bastante assistida por especialistas,
que o usuário tem uma boa infra-estrutura podendo ir até o CS e o que ele
queria mesmo eram receitas. Também vira a tentativa de consulta da esposa
como incorreta, já que o atendimento domiciliar está previsto para pacientes
dependentes. NOTA DE CAMPO 22/01/2004
171
Também presenciei queixas dos usuários efetuadas a SS, sobre condutas dos
profissionais, incluindo falta de atendimento de necessidades definidas por eles
(usuários), das quais o médico discordava, que produziram repreensão aos mesmos,
sem investigação e análise da pertinência ou enfrentamento/resolução pelo diálogo.
Considero, em função do que se apresentou, que autonomia dos usuários não
significa substituir um modelo de relação que só inverta posição dos sujeitos que
exercem dominação. Embora isto pareça longe de acontecer, dada a longa tradição da
relação de poder exercida pelos médicos, o estabelecimento de certos
‘direitos/exigências’ de que o médico ‘funcione’ de um certo modo que ‘agrade’ os
gerentes e usuários deve ser considerada, em nível gerencial, dadas as influências na
subjetividade dos profissionais que ‘fica espremida’, subjugada, reforçando a
alienação, dificultando o estabelecimento do vínculo.
Quando ocorriam dificuldades no CS as enfermeiras viviam processo
semelhante àqueles experimentados pelos médicos, ou seja o CS tinha de estar
funcionando bem, caso contrário os usuários se punham a criticar e reclamar do
serviço e das enfermeiras responsáveis, queixando-se a SS. Médicos e enfermeiras
pareciam ficar muito ‘mal’ com as advertências advindas em conseqüência das
‘reclamações’ .
Os dados também apontam para a importância das instrumentalização dos
sujeitos do vínculo, quanto à manutenção permanente do diálogo, de negociação de
conflitos, de manejo de estresse, de construção de parcerias.
Também se recoloca a importância de que os usuários conheçam o que o PSF é
e faz, pois os principais conflitos resultam da expectativa de que o cuidado curativo
funcione, mesmo que as demandas ultrapassem as possibilidades da atenção básica de
saúde, já que profissionais da atenção básica de saúde também estão respondendo
pelo atendimento de usuários com demandas de alta complexidade, expulsos das
instituições hospitalares pela ‘condição de cronicidade e de contenção de custos’.
172
CATEGORIA: ÀS VEZES A GENTE NÃO CONSEGUE
Quadro 28: componentes – em função de como a equipe se relaciona e se
organiza
Unidades de significado:
Os enfermeiros e médicos vêm muito desviados da universidade, sem a visão de trabalho
em equipe, interdisciplinar, de respeitar a área do outro, de apoio mútuo e isso é difícil de
superar
Uma equipe que não consegue estruturar seu trabalho coletivamente, fazer um projeto em
comum, se cada um fica trabalhando na sua, fazendo ações isoladas, fragmentando o
trabalho; assim não faz PSF, fica difícil fazer vínculo, como acontece aqui.
Quando a equipe não tem espaços de troca, reuniões, acaba se conhecendo pouco, não
consegue lavar a ‘roupa suja’, não cultiva as relações de trabalho e pessoais. Aqui faltam
estes espaços para se trabalhar o autoconhecimento, as relações interpessoais, a auto
estima, a auto-valorização
Dificuldades de interação sempre têm e se não receberem atenção não se faz vínculo na
equipe e com os pacientes
Quando os ACS vão pouco nas casas não há como acompanhar a saúde da população
No quadro acima são ressaltados, como impeditivos ao estabelecimento de
vínculos, os desdobramentos da dificuldade de se trabalhar em grupo, que é anterior ao
próprio grupo, já que cada curso da área de saúde tem seu projeto próprio, sem espaços
de comunicação, de troca, de criação e experimentação conjunta. Quando montam as
ESF se espera, conforme apontam Campos (1997, 1998, 1999) Franco e Merhy (1999,
2003), que as pessoas automaticamente consigam trabalhar como grupo.
Reunindo pessoas que desenvolvem trabalhos justapostos, o que se pode esperar
é que grande parte dos esforços se perca nos interstícios destes trabalhos. Além disso
há o risco de perda do entusiasmo, da limitação da criatividade, quando os sujeitos
percebem desenvolvendo algo que não se integra e se complementa no e pelo trabalho
do outro, apesar de se nomearem equipe; quando não se aceitam como pessoas em
suas subjetividades em função de desconhecimentos ou ainda quando competem entre
si. Nesta condição não se avança no sentido da construção de uma plataforma em
comum, onde os trabalhos convergem para concretizá-la; mantém-se o risco dos
173
trabalhos continuarem hierarquizados, justapostos, menos resolutivos e em não se
fazendo PSF, as relações estabelecidas mesmo que nomeadas de vínculo não
conseguem se ‘concretizar’ como PSF.
Enquanto observava os médicos e enfermeiras, considerei que vários deles
tinham o chamado ‘perfil’ para o trabalho em saúde coletiva: conheciam os
fundamentos do PSF e SUS, tiveram outras experiências em outras ESF, gostavam
do trabalho em saúde coletiva, tinham boas relações com os usuários, demonstravam
interesse genuíno pelo bem estar e recuperação da saúde das pessoas. Mas a soma
destes perfis não fazia emergir a equipe, o trabalhar num coletivo, num projeto do
grupo, ou não facilitava a ruptura do modelo biomédico, que se estrutura
hierarquizado e justaposto. Considerei que uma mola propulsora de mudança poderia
ser a definição de um líder escolhido pela equipe, o suporte específico da SS para a
criação e funcionamento do trabalho em equipe e o aval interno e externo das pessoas
e da gerência, para efetuar rupturas no modelo biomédico produtivista instituído.
2º CATEGORIA: TEM COISAS QUE DIFICULTAM/ATRAPALHAM
Quadro 29: componentes – a política, os políticos, a Secretaria
Unidades de significado:
Versão dos médicos e enfermeiras
O vínculo está sempre se fazendo, desfazendo e refazendo
Várias coisas vão minando, vão destruindo aquilo que tu pensou, sonhou fazer. As maiores
dificuldades vêm do sistema
SS do município tenta fazer o PSF conforme a orientação do Ministério da Saúde mas
sempre tem diferenças políticas, divergências, e isso atrapalha
Atrapalha a falta de compromisso do poder público, dizer que vai fazer alguma coisa e não
fazer
Dificulta vínculo a insuficiência de respaldo da SS para que a equipe atue mais livremente
As supervisoras da SS, às vezes nem falam a mesma linguagem, ficam exigindo que as
coisas sejam feitas assim e assado, sem saber como as coisas estão se passando aqui
Se a gente fala que faltam condições de trabalho a resposta que a gente ouve é: se vocês
não querem trabalhar tem gente que quer
A gente faz as coisas, leva pra SS mas não tem um retorno. Muitas vezes as coisas ficam
aqui, com a gente, sem maior apoio e sem saber se está fazendo certo.
174
Versão dos AuxEnf e ACS
Pior coisa que tem é promessa não cumprida, é trabalhar com política
A política está na frente de tudo, tudo tem um propósito político
O Secretário te oferece uma gratificação pensando na próxima candidatura; não é pensando
no bem estar dos trabalhadores da saúde, é o bem estar deles
A filosofia da prefeitura é que todo o trabalho tem que ter retorno, o trabalho de ajuda não
tem retorno
Versão das famílias
Eu me revolto com as promessas desses políticos. Sempre dizem que saúde, educação e
segurança são prioridades mas isso são apenas promessas
Eles prometem que vão melhorar a saúde, cuidar dos descamisados que ficaram um ano na
fila esperando uma cirurgia, exames, especialistas, remédios; melhora coisa nenhuma
As prioridades o governo esquece. Uma obra é mais importante. Esse ano tem eleição pra
prefeito então, com certeza, vamos ter alguma melhoria no Posto
Na época da política divulgam tudo, depois esquecem
Neste conjunto de dados pode-se verificar uma unanimidade, de que várias
questões da política, dos políticos e a da secretaria não estão favorecendo o PSF e o
estabelecimento de vínculo, especialmente não cumprindo o que prometem. Médicos e
enfermeiras apontam para uma falta de concordância na macro esfera, entre o MS e os
gestores municipais. Também se ressentem de uma forma de gerência que consideram
autocrática, que submete e desvaloriza seus recursos humanos pois tem recursos
humanos ‘sobrando no mercado’.
A versão dos ACS destaca como percebem e seu ressentimento sobre como se
faz política, sobre a conduta dos políticos, vistos como fazedores de cena, que usam a
saúde para alcançar seus propósitos eleitorais e só pontualmente estão interessados
nela.
Na versão das famílias ressalta-se o que fica faltando mesmo tendo sido
prometido, dito prioritário.
Para configurar a ‘verdade’ não basta considerar a posição destes envolvidos.
Torna-se-ia excessivamente simplista. A saúde, a política, os políticos, estão imersos
num macro contexto, histórico, social, de regulação neoliberal. Mas é absolutamente
175
necessário ouvir, captar as mensagens, considerar de que ‘alimentos’ estão se nutrindo
a subjetividade dos sujeitos do vínculo.
Presenciei, em várias situações, expressões faciais, verbais e físicas, de
decepção, raiva, de impotência dos membros das ESF frente a decisões dos gestores e
gerentes do PSF do município. Neste caso percebi que a falta de diálogo, a tomada de
decisões sem compartilhamento, sem construção de cumplicidade, sem resignificação
do propósito de mudanças efetuadas, iam produzindo uma conformidade
‘desenergisada’, impotência, cansaço, estresse, que alimentavam fantasias/projetos de
mudar de local de trabalho. Mais tarde pude perceber que este desligamento emocional
se converteu em saída efetiva do profissional. Quando não havia oportunidade real de
saída da instituição, os sentimentos negativos mantinham-se em progressão,
favorecendo conflitos. Sobre o que foi colocado elaborei algumas notas de campo,
como as apresentadas abaixo:
Os médicos estão aborrecidos por terem sido acusados de organizarem uma
campanha salarial clandestina. Entendem que já fizeram vários pedidos,
ouviram várias promessas e não receberam resposta. Acham que em vez de
serem considerado em suas reivindicações são censurados por organizaram-
se. Também colocam que se sentem desmotivados e expressam intenções de
trabalhar num outro lugar. NOTA DE CAMPO 27/11/2003
Ocorreram mudanças no sistema de marcação de consultas que se darão
conforme a demanda, reabertas a cada quinze dias. Os membros das ESF
estão preocupados com a possibilidade de preenchimento das agendas por
um longo tempo, o que consideram trazer mais dificuldades ao acesso dos
usuários. Essas mudanças foram decididas pela gerência, sem consulta dos
trabalhadores.Tais condutas desvinculam os integrantes da ESF do processo
pensante/ decisório, esperando-se que continuem motivados e envolvidos no
trabalho. NOTA DE CAMPO 03/03/2004.
Nestes termos, os personagens deste estudo colocam suas evidências de que a
política, os políticos e a Secretaria de Saúde (Municipal) têm um peso decisivo na
176
relação positiva ou negativa que os membros das ESF tem com seu trabalho e por
conseqüência nas ações destes em direção ao estabelecimento de vínculo.
CATEGORIA: TEM COISAS QUE DIFICULTAM/ATRAPALHAM
Quadro 30: componentes – as condições e o processo de trabalho
Unidades de Significado:
Versão dos médicos e enfermeiras
Várias coisas atrapalham: a falta de medicação, material, recursos. Isso estressa a gente e
os pacientes se estressam
A pessoa fez tudo, a equipe fez tudo e a pessoa está ali, um ano e meio com o nome na lista
pra fazer, por exemplo, um ultra-som, uma fisioterapia
Aí eles dizem: ‘ah porque então,... o que adiantou esse Programa se eu estou com o nome
há um ano e meio na lista, eu chego lá vocês não tem medicação, não tem a fita, o
oftalmologista demora um ano?’. Isso acaba gerando conflitos
Quando tu falas um ‘não’ é diferente do que quando tu falas um ‘sim’ Dizendo não, tu és
antipática, não queres ajudar, estás de má vontade, não quer fazer porque és funcionário
público
O nosso trabalho é de prevenção mas não tem como esquecer os pacientes com a doença
instalada e complicada que necessitam de encaminhamento
Deixamos de atender as pessoas, de fazer uma visita domiciliar, por falta de tempo, de
carro, de material, de tudo
A enfermeira não tem uma sala para atender, tem de procurar um lugarzinho pra conversar
com a pessoa que precisa, na maioria das vezes atende no corredor
Dificulta a carga horária diária desgastante. Durante 8 horas de trabalho atendemos
pessoas diferentes, mas com a mesma exigência, as broncas são as mesmas e no final do
dia os profissionais já estão cheios, cansados, mas ainda tem de dar o melhor possível
Dificulta as cobranças a que os profissionais são submetidos e que nem sempre
correspondem aos objetivos do PSF
No esquema de produtividade falta tempo pra fazer vínculo com paciente, cria-se conflito de
produtividade com qualidade
Fazer superprodução destrói o vínculo, acaba qualquer esquema de ser resolutivo, resta o
encaminhamento
O médico tem de ser tudo, saber tudo, pediatra, ginecologista, saber fazer bem o pré-natal,
saber muita endocrinologia, cardiologia.
Se o Centro de Saúde está sem chefia, tudo fica pras enfermeiras do PSF e também os
médicos são muito dependentes, tudo tem de ser providenciado pela enfermagem,
O excesso de burocracia, ficar cobrindo funcionários do CS de férias, atrapalha a construção
e manutenção do vínculo pelas enfermeiras do PSF, mal dá pra atender as pessoas
177
As enfermeiras deixam de fazer o planejado pelo compromisso com o CS, deixam por
exemplo de conhecer melhor a comunidade, sair com os ACS, visitar os acamados, divulgar
o Programa, organizar melhor os grupos
Às vezes falta resolutividade pelas restrições impostas aos enfermeiros, mesmo para
resolver coisas simples o profissional e o usuário enfrentam uma maratona
Essa falta da política de emprego e salário no PSF gera rotatividade profissional em todo o
lugar, e isto é uma das coisas que mais dificulta o vínculo
Se os recursos humanos forem valorizados em termos de formação e remuneração, vão
estar mais satisfeito, atender melhor, prescrever menos remédio, pedir menos exames e no
final das contas vão se economizar recursos públicos
Se pagam mal o cara ele sai daqui e vai dar plantão, vai pra aqui e vai lá, empurrando com a
barriga, e a população também
A inexistência de vínculo com a instituição, faz o profissional investir menos porque a coisa
não é dele, não tem certeza de que estará ali para tocar o trabalho e também faz ele buscar
algo estável
A falta de educação continuada também atrapalha o vínculo, porque a gente tem que se
preparar para atender os pacientes, aprender a lidar com situações estressantes e interação
com a comunidade, na equipe e entre as equipes
Chega tanta coisa que a gente nem dá conta de ajudar, pois falta uma abordagem de
família, estrutural, social. Além do mal físico eles trazem o mal emocional
Os cursos específicos são ótimos, tem que ter, de saúde da mulher, da criança, DST/AIDS,
mas é sempre esta fragmentação na formação
Destacam-se neste conjunto a similaridade das questões apresentadas com as
referidas por outros autores quando enfocam o PSF (CAMPOS, 1997, 1998, 1999;
MERHY, 1997, 1999; FRANCO E MERHY, 1999, 2003; BERTONCINI, 2000;
PEDROSA E TELES, 2001; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b; FERTONANI,
2003; ALONSO 2003) tais como: a ‘superprodução’, o trabalho que se pauta no
modelo biomédico, as questões relacionadas aos recursos humanos. A parte se reflete
no todo e o todo na parte.
No complexo mosaico que conforma o estabelecimento de vínculo, aparecem as
contribuições negativas decorrentes da falta de medicamentos, de problemas com
exames, com especialistas, falta transporte, uma vez que geram decepção, cobrança,
conflitos, rótulos, exigem explicações nem sempre aceitas. Como o que se nomeia de
‘atenção básica de saúde’ está sendo, no campo pesquisado, um trabalho profissional
178
dedicado ao atendimento de queixa/dignóstico/tratamento e providencias pertinentes,
sobre este trabalho estão projetados os conflitos advindos por um lado das
necessidades dos usuários ‘adoentados’ e por outro do sistema político financeiro
administrativo empenhado na contenção de gastos e no aproveitamento ‘eficiente dos
recursos’.
Quando se adota o modelo biomédico, produtivista, o estabelecimento do
vínculo fica comprometido já que se reduzem outras atividades previstas e necessárias
para que se viabilize o ‘PSF mesmo’ como por exemplo às atividades de planejamento
e os encontros em outros espaços que com suas especificidades dão outras
contribuições mais relacionadas com a promoção e prevenção, como no caso das
atividades de grupo.
Consultas sucessivas dos médicos, atividades administrativas, providencias para
viabilizar o que o cuidado que a doença implica (exames, consultas de especialistas,..),
que compõe a agenda das enfermeiras, vão configurando um cenário restritivo em
termo da contribuição na construção do vínculo de compromisso e co-responsabilidade
com o usuário.
Problemas salariais, de contrato de trabalho, de vínculo institucional, aspectos
determinantes do desmanche das equipes, acabam produzindo desligamento interior e
da motivação dos profissionais, já que a provisoriedade é a constante, requerem
sucessivos recomeços nas configurações do trabalho da equipe, levam a ruptura das
relações com os usuários, repercutindo diretamente no estabelecimento do vínculo
requerido.
É importante destacar que quem não está preparado para desenvolver o
atendimento em saúde na sua perspectiva social, contextualizando os indivíduos na
comunidade, na família, terá dificuldades para estabelecer o vínculo considerado em
suas dimensionalidades pois terá dificuldade de reconhecer as necessidades em
transformá-las em ações de saúde numa base compartilhada. Neste sentido também a
179
formação/atualização aparece ressaltada em sua essencialidade na construção do
vínculo requerido pelo PSF.
CATEGORIA: TEM COISAS QUE DIFICULTAM/ATRAPALHAM
Quadro 31: componentes – as condições e o processo de trabalho
Versão dos AuxEnf e ACS
Dos profissionais eles não reclamam; reclamam da falta de remédio, da demora dos
exames, de não conseguirem ser atendidos por especialistas, do posto ser ruim
Das pessoas que ficam no balcão, na parte burocrática, tem muita reclamação, de mau
atendimento, de atender com a cara amarrada, aquelas coisas
Essa coisa de área, de micro área atrapalha, pois o paciente tem certa dificuldade de ser
visto por outro médico que não seja da área dele, mas a comunidade é a mesma né?
Muita gente tem essa profissão, de médico, enfermeiro, técnico, assistente social, com a
finalidade de ganhar dinheiro, daí ficam fazendo as coisas no sacrifício e aí as coisas não
funcionam
Falta vaga para a assistente social, as pessoas tentam, perdem tempo, não conseguem
nada, ficam frustradas e daí não voltam mais. Desde que eu estou aqui a assistente social
da SS mudou umas três vezes e não se vê trabalho
Tem a coisa do idoso, que tem direito a medicação, a isso e aquilo, ele vai lá, luta,
conversa. É muita burocracia mesmo. Pra conseguir algum benefício à pessoa tem de
cumprir todas as exigências, se não perde. Com isso muitos desistem ou ficam descontentes
Do quadro de respostas dos ACS pode-se ressaltar questões similares àquelas
efetuadas pelos médicos e enfermeiras como a extensão do descontentamento com a
falta remédios, dificuldades com exames, etc.
Como no CS não se desenvolve acolhimento de forma sistemática a recepção é
referida como fonte de interações negativas, com reflexos repassados ao todo do CS e
PSF.
A questão da insatisfação dos usuários, decorrente da impossibilidade de ser
atendido por outro médico que não o responsável pela ‘micro área’, salvo exceções, é
projetada sobre os ACS e sobre o serviço e não diretamente sobre médicos e
enfermeiros, porém não deixam de produzirem alguma repercussão sobre o
estabelecimento do vínculo requerido pelo PSF, conforme colocam os AuxEnf e ACS.
180
Questões ligadas ao ‘modo de agir’ do médico e a forma como certos
profissionais desenvolvem seu trabalho, foram indicados como aspectos negativos para
o estabelecimento de vínculo. Esses dados também apareceram em categorias ‘vínculo
se constrói a partir de algumas bases e às vezes a gente consegue’. As ações dos
outros profissionais de apoio, como assistentes sociais são referidas pelos ACS, já que
determinam formas dos usuários se sentirem: cansam, perdem tempo, ficam frustradas
ou se o atendimento de saúde não se completa, surgem dificuldades na relações com os
usuários.
CATEGORIA: TEM COISAS QUE DIFICULTAM/ATRAPALHAM
Quadro 32: componentes – as condições, o processo de trabalho
Versão dos Usuários
Tem algumas pessoas meio fechadas no atendimento do balcão, atrapalha
Uma vez não trouxe o cartão do SUS, fui tratada tão mal e fiquei tão chateada que fui
embora. Noutra época ela ia quebrar a cara comigo porque eu ia também dar resposta e ia
ser uma encrenca danada
Tem pessoas que a gente tem a impressão que querem marcar a consulta, responder tuas
perguntas e deu. Não tem mais nada; curto e grosso
Tem uma que eu não gosto, não suporto, ela é da recepção. Ela olha pra gente como se a
gente fosse bicho. Ela não olha normal
A gente espera, espera, espera e ainda tem voz alta pra cima da gente.Elas acham que
sempre estão tratando com pobre, ralé, que não tem que ter auxílio de nada
Tem pessoas que tem mais intimidade com elas, levam um pãozinho caseiro, leva isso, leva
uma bolachinha, aí se tornam amigas
A resposta do pessoal da recepção é horrível, principalmente quando a gente está
desesperada
Esses dias aconteceu um problema comigo, de marcação de exame, minha filha foi lá,
meteu a língua nelas e ‘endireitou’.
Hoje eu tive de vir no Posto pra conseguir as minhas receitas, por telefone não me
colocaram na agenda mesmo que eu explicasse que tinha dificuldade de ir ali de muleta
Quando eu cheguei à moça disse que ia falar com a enfermeira, me mandou sentar e
esperar. Esperei né, porque a gente tem de ter paciência, pra poder receber o que
precisa.Se eu pegasse já a falar, já ia acontecer qualquer coisa, já não ia ser mais atendida
Não tem esse jogo de cintura, de ver quem precisa realmente, o que é necessidade
A pessoa pode entrar xingando mas dependendo como foi tratada sai pedindo desculpa.
Quando a gente recebe um tratamento educado tu também queres dar aquilo de volta. Se tu
recebes pedra tu também queres devolver pedra
181
Falta muito treinamento das pessoas, principalmente das que estão na linha de frente e com
isso fazer deslanchar as coisas
Naqueles que atuam na linha de frente são descarregadas os problemas dos que estão
revoltados, com problema em casa, do filho que se perdeu, de outras coisas
Eu escuto falar também que os ACS têm pouca noção das coisas, não entendem o que está
se passando direito com as pessoas e isto eu acho ruim, são eles que mais entram em
contato com elas. Noções básicas, coisinhas, né?
Pra mim, sem explicação boa eu não confio. Os ACS nem sabem direito os serviços do
próprio Posto
Existe muita falta de medicação, inclusive pros programas de diabetes e hipertensão. Tem
gente que briga, xinga, as enfermeiras, ‘as intendentes’; a culpa não é delas e sim de quem
compra o remédio
Tem também essa coisa dos médicos prescreverem remédios que as pessoas não podem
comprar. Outro dia até disse pro médico ‘tu não botou aí nem um remédio de graça; vou te
pedir de joelho pois estou vendo que estás muito esganado’
O que eu não gosto é essa demora. Eu tenho essa consulta do ortopedista, né? Aí tu ficas
esperando, sofrendo. A gente fica decepcionado, desacreditando
A gente não tem muito tempo na consulta, tem de falar rapidinho porque tem um monte de
gente esperando. O que adianta? Então diminua a quantidade de pessoas pra atender por
dia e atenda bem aqueles pacientes
Na medida que se atendem treze pessoas numa tarde vão ser uns cinco minutos pra cada
um, não é que eles queiram assim, tem marcado aquele número de pessoas
Se eu for lá com uma dor de cabeça forte, ao conversar vão aparecendo coisas e em cinco
minutos tu não falas essas coisas, só da dor de cabeça, então nisso daí perde
Na pressa não dá pra construir confiança, que é uma coisa que falta um pouquinho aqui, não
sei se é porque o tempo deles é reduzido pra atender várias pessoas
Na versão dos usuários há muitas respostas vinculadas a recepção, o que aponta
para a sua contribuição significativa na construção de relações. Frieza, indiferença,
resposta pouca solidária em situações difíceis, autoritarismo, há uma multiplicidade de
aspectos negativos colocados. Numa das unidades de significado há referência de que
as funcionárias da recepção, colocadas na linha de frente, são depositárias das
frustrações dos usuários com o sistema, aumentando as tensões e gerando a formação
de mecanismos de defesa. O que não pode ser relevado é que o CS abriga três ESF e a
recepção interfere diretamente no estabelecimento do vínculo no e do PSF, enquanto
produtora de insatisfação.
182
Verifiquei em várias ocasiões que caracterizar a recepção como pertinente ao
CS, enquanto boa parte da sua ‘produção’ era efetuada pelos médicos e enfermeiras do
PSF, prejudicava o atendimento da população adscrita. Sobre isto produzi notas de
campo como as apresentadas abaixo:
Um usuário chega ao balcão de recepção com péssima expressão facial. Diz
estar com dor intensa no peito e no braço esquerdo. A funcionária da
recepção permanece impassível e orienta que o homem vá verificar pressão
numa sala distante. O homem dirige-se ao local indicado encostando-se nas
paredes O médico da ‘ESF verde’ vê o usuário, imediatamente vai ao seu
encontro e inicia atendimento; suspeita de enfarte que depois foi confirmado
NOTA DE CAMPO 03/11/2004.
Uma jovem chega ao CS demonstrando nervosismo, carregando uma
embalagem de medicamento de tarja preta. Diz que sua mãe tomara dois
comprimidos ao invés de um prescrito e que mal conseguia acordar,
desfalecendo direto. As pessoas que atendiam no balcão ouviram a história e
dizem a jovem que procure direto o hospital. A jovem vai embora. Os
médicos e enfermeiras não foram informados do que se passara; assim as
funcionárias da recepção tomaram a decisão de encaminhamento. NOTA
DE CAMPO 16/01/2004.
Nos depoimentos dos usuários vimos que se valem de estratégias para superar
as dificuldades com a recepção: como chamar a filha para ajeitar a situação, esperar/ter
paciência para não perder o direito, não reclamar, levar um ‘pãozinho’.
Se por um lado o usuário reclama por outro percebe que ‘os que estão na linha
de frente’ necessitam de preparo para lidar com ‘as transferências’. Já a falta de
preparo dos ACS repercute ‘na confiança’ sobre a qualidade técnica do trabalho,
estando portanto ligada ao estabelecimento do vínculo.
Os usuários também referenciam, assim como os médicos, enfermeiras, AuxEnf
e ACS, o espraiamento das frustrações para as relações, decorrentes de problemas com
medicamentos, exames, demora para conseguir consulta de especialistas.
Se por um lado ‘a ciência do atendimento’ tem melhorado, as questões como
pressa, falta de espaço para colocar outras questões que não as da doença e também
aquelas que vão sendo lembradas, estão referidas e demonstram o quanto do modelo
biomédico tradicional está em vigência. Certamente construir novas relações onde às
183
pessoas possam aprender mais, compreender mais, fazer mais escolhas e assumir as
responsabilidades por sua saúde na situação de consulta, requerem um tempo maior.
Nada de novo quanto a tais questões porém esperar que se estabeleça vínculo, sem
mudar as condições e processo de trabalho é continuar a pronunciar discursos vazios.
Reduzir a produção se constitui num desafio para os gestores e gerentes; exige
reconhecer, acreditar, acompanhar, garantir que se processe o trabalho vivo,
imaterial, com autonomia, que ocorre na imediaticidade das relações, alimentada com/
por novos objetivos (CAMPOS, 1997, 1998, 1999; MERHY, 1997, 1999, 2003;
MERHY, et al, 1997; FRANCO e MERHY, 2003).
CATEGORIA: TEM COISAS QUE DIFICULTAM/ATRAPALHAM
Quadro 33: componentes – comportamentos de usuários
Versão dos Usuários
Aqui deveria ter uma assistente social ou um psicólogo, pra orientar as pessoas que fazem
exame e não vem buscar o resultado, fica jogado aumentando o gasto
Certas pessoas acham que ‘o SUS paga’ mas não pensam que de repente vai faltar pra
outra pessoa, que tem uma cota e que essa cota pode se esgotar pra eles mesmos
Certas pessoas dizem que pegam remédio porque tem direito de pegar. As pessoas têm
direito mas também tem obrigação
No Posto ninguém cobra se a pessoa usou o remédio que pegou
Volta e meia eu tô aqui e vejo uma pessoa pegar remédio da farmácia e dar pra outra e isso
também ajuda a nunca ter remédio suficiente
Ouvi falar que às vezes as pessoas pegam o remédio que não usam, só para prevenir, pra
não ficar sem, por causa destas faltas
Também, acho que atrapalha é o vício de algumas pessoas virem no Posto mesmo que
tenha sido dada solução pros problemas delas
Tem pessoas que insistem com os médicos para que peçam exames, mesmo aqueles que
eles fizeram há pouco tempo, com outros médicos
Neste quadro os usuários apontam certas condutas de usuários que prejudicam o
conjunto, numa referência de que reconhecem sua parcela de responsabilidade pelo
não funcionamento do serviço a contento. Examinando-se mais de perto, percebe-se
que o próprio sistema favorece as más condutas produzindo o ‘medo da falta’ que faz
aumentar o gasto público e o gasto alimenta a ‘falta’. O desperdício dos exames que
são não ‘pegos’, dos remédios que ficam nos domicílios sem uso, o vício de consultar,
184
foram referências que deveriam ser consideradas no trabalho das ESF, avaliadas em
sua pertinência, dado que cuidar para que o recurso público seja utilizado
adequadamente é tarefa também dos profissionais da saúde. Esse cuidado por sua vez,
teria relação com o estabelecimento de vínculo, pois dispor dos recursos necessários
para o atendimento em saúde diminui frustração, descrédito, afastamento, a falta de
cooperação.
CATEGORIA: O VÍNCULO CONSTRUÍDO TAMBÉM SE DESCONSTRÓI
Quadro 34: componentes – os constantes recomeços
Unidades de significado:
Versão dos médicos e enfermeiras
Quando o trabalho está começando engrenar legal sai um membro da equipe e vem outro,
que é diferente e o trabalho já vai ser feito de outra maneira
Cada profissional constrói seu sistema e não pode passar isto a quem vai ficar no lugar; tem
de começar tudo de novo
O pessoal pergunta porque que falta tanto médico assim? porque sai tanto médico? porque
saiu? porque entrou? Isto é muito complicado, perde a credibilidade
A comunidade fica naquela lamentação: ah mais eu gostava tanto daquele, esse é assim e
assado, não faz isso, não sabe aquilo
Se há rotatividade dos ACS, se várias pessoas chegam na casa das pessoas elas
reclamam: “nossa! mas ontem era fulana hoje já é você”. Demora muito pra aceitar o novo;
tem pessoas que se fecham
A tarefa do enfermeiro de treinar novos ACS é uma das piores porque os agentes saem com
freqüência, perdendo-se o trabalho
Versão dos AuxEnf e ACS
A enfermeiras nova e a antiga são muito diferentes, não deu pra gente se acostumar direito
ainda
A comunidade vai sentir. Eles pensavam que a enfermeira estava de férias, era uma coisa,
mas sair é outra
A gente trabalhou um bom tempo com a enfermeira X. Ela sabia tudo da comunidade, os
problemas das pessoas. A enfermeira nova ainda não foi para a comunidade e assim não
podemos tratar das coisas com a mesma facilidade
Tem pacientes que estão sendo tratados há tempo por um médico, mas às vezes a divisão
muda e ele tem que passar pra outro mesmo sem querer. Eles ficam reclamando por um
bom tempo
Quando tem alguém novo eles têm de repetir as histórias. Eles não gostam porque às
vezes tem coisas que são difíceis de dizer, tem muitos detalhes e eles não sabem ainda se
podem confiar
185
Versão dos usuários
O meu primeiro médico no posto não era homeopata, tive de trocar, fiquei chateada com
isso porque eu já me entendia com meu médico
Médico é que nem amigo; se a gente não confia não funciona.
O meu médico mudou de área e eu tive que mudar de médico também, então não é tudo
como a gente precisa
Agora está saindo um pessoal daqui que é bem bom. A gente não podia ficar assim
perdendo quem é bom
Quando a enfermeira foi embora eu achei ruim porque a gente já tinha aquela amizade,
aquele conhecimento, a gente chega mais fácil quando está acostumada
No quadro acima estão evidenciados impactos que a saída de elementos das
ESF produzem na relação, no trabalho e das ESF entre si e com os usuários. Assim, o
trabalho que não engrena, o jeito diferente do outro ser e fazer as coisas, as diferenças
de nível de conhecimento sobre a comunidade obrigam as ESF a refazer
continuamente seu processo de trabalho. As enfermeiras e os ACS também têm de
lidar com reclamação, lamentação, frustração, tem de dar várias explicações. Os
usuários passam a perceber que ‘nem tudo é como a gente precisa’, e também tem de
recomeçar a colocar sua história, a revelar-se, até poderem, num determinado
momento e mediante certos sinais, terem confiança, construírem vínculo.
A quebra de vínculo acarretada pela saída dos médicos é a que mais gera
protestos dos usuários, situação explicada pela centralidade de sua figura no modelo
biomédico desenvolvido. Já para ACS o que causa mais impacto é a saída das
enfermeiras.
A política de recursos humanos está pois implicada diretamente na constituição
dos vínculos, e seus ‘problemas’ repercutem enquanto quebra explícita do mesmo
quando do desmanche das ESF.
CATEGORIA: O VÍNCULO CONSTRUÍDO TAMBÉM SE DESCONSTRÓI
Quadro 35: componentes – modelo que rompe vínculo produz crise
Unidades de significado:
Versão dos usuários
‘Se iam demiti-lo porque não contrataram outro logo; tem muita gente que não sabe e quem
sabe está ficando bravo’
186
Os componentes desta categoria emergiram principalmente da observação da
pesquisadora. Como já apresentado no item 5.3.3 do capítulo 5, de setembro de 2003
a março de 2004, todas as equipes sofreram desmonte e recomposição. A
recomposição da ESF azul não foi observada por ter recaído após o período de coleta
de dados.
Setembro/03 foi mês de crise gerada pela queda abrupta das consultas médicas,
que se caracterizavam como atendimento em saúde predominante. O CS passou a
intercalar períodos em estava quase deserto e períodos em que estava lotado, com
muitos usuários esperando longo tempo para serem atendidos. No mês de março de
2004, com a saída do médico da ESF azul, a crise se repetiu. Sobre estes eventos
produzi notas de campo como as apresentadas a seguir:
No CS estavam consultando dois médicos, ao invés dos três habituais.
Durante toda semana atendiam uma pessoa após a outra, sem intervalo,
apressadamente. Hoje o médico da ESF azul está com expressão carregada
porque ficara atendendo sozinho, já que o médico ESF verde saíra para
atividades na escola. NOTA DE CAMPO 11/09/03
No CS coloca-se que o médico da ESF azul deixara de atender, fora embora,
‘surtara’ e isto já ocorrera na semana anterior. A Enfermeira ESF amarela
conta que o médico fora até o corredor e avisou que não atenderia pacientes
do médico da ESF amarela. Com o médico ‘surtando’ o clima ficara ruim.
Um usuário telefonou para o SS reclamando. NOTA DE CAMPO 16/09/03
Enfermeira da ESF verde atende um usuário que fala alto na recepção do
CS, descontente pela saída de médico da ESF amarela. ‘E agora como é que
fica? Médico tem que conhecer a gente. Ele explicava as coisas e quando
médico explica a gente entende’. NOTA DE CAMPO 17/09/03.
Pergunto a enfermeira da ESF verde se enfermeiras também ‘surtavam’ e ela
responde: os médicos se dão o direito porque falta médico para o PSF. É
muito difícil quem queira trabalhar 8 horas. Já enfermeiras, auxiliares, têm
sobrando e isto influência bastante. Os médicos não se importam em
agradar, em agir com moderação e há também a questão de personalidade.
NOTA DE CAMPO 17/09/03
O agendamento de consultas médicas é suspenso por dois dias. Às vezes as
pessoas parecem conformadas com a redução abrupta de consultas médicas;
às vezes ocorre confusão e protesto. Uma funcionária conta: ‘hoje cedo deu
confusão, havia fila e uma pessoa começou a se rebelar e daí todos
começaram a mostrar descontentamento. Teve gente que disse que ia chamar
a RBS. A Secretaria foi acionada e respondeu que está providenciando um
novo médico’. NOTA DE CAMPO 23/09/03.
187
O CS está quase vazio, poucas pessoas procuram o atendimento. A
diminuição drástica do número de consultas oferecidas aos usuários faz
emergir algo que fica pouco aparente no cotidiano do CS, ou demandas
decorrentes de problemas emocionais e das dificuldades sociais. Toda
procura recai sobre a enfermeira da ESF azul, que dá sinais de estresse.
NOTA DE CAMPO 23/10/03
Os ACS relatam que continua havendo muitas reclamações pela falta de
atendimento médico e que estão tendo que orientar as pessoas a procurarem
atendimento hospitalar. NOTA DE CAMPO 25/09/03
Enfermeira ESF amarela coloca que atendera um telefonema da Secretaria
de Saúde, após ligação do usuário, reclamando que no CS não tinha
enfermeira. Coloca que a crise está afetando a todos. NOTA DE CAMPO
25/09/03
Enfermeira ESF azul tem expressão de intensa ansiedade no rosto e faz tudo
mais rápido. Há dias demonstra sinais de exaustão. Era a única enfermeira
no CS já que a enfermeira da ESF verde estava de férias e não podia contar
com a enfermeira da ESF amarela às voltas com problemas de saúde. Não
trabalhara no dia anterior porque passara mal e certas atividades ficaram
atrasadas. Precisa terminar atas e preparar o CS para visita do novo
Secretário de Saúde do município. NOTA DE CAMPO 07/10/03
O CS está movimentado, há um burburinho geral. O acompanhante de uma
jovem mulher grávida está irritado porque dera 09:30 horas e o médico não
chegara. Diz que irá telefonar para a SS e fala alto pelos corredores. Instala-
se um clima de desconforto no ambiente, as funcionárias demonstram
inquietação. NOTA DE CAMPO 03/03/04
O médico da ESF azul pedira demissão. Sua saída pareceu-me ‘a crônica de
uma morte anunciada’. Vinha colocando que estava próximo de seu limite
de sentir-se desconsiderado, um tocador de obras, vigiado, com salário
deteriorado. Tomada a decisão o profissional já não parece mais aberto ao
diálogo. As contradições do sistema produziram a ruptura individual,
desmontam toda a relação construída, favorecem a alienação do usuário e
do médico que fica com senso de ser pouco importante, ou ser importante
apenas como força do trabalho médico. Assim o ‘sistema’ deu sua
contribuição na desconstrução do vínculo. NOTA DE CAMPO 03/03/04
Nas duas vezes que houve saída dos médicos desenvolveram-se crises. Houve
maior tensão no ambiente, discussões entre membros das ESF, acirramento de
julgamentos, conflitos sobre distribuição de responsabilidades. A crise se irradiou para
o atendimento, ocorrendo manifestações de descontentamento dentro do CS, denúncias
e queixas da clientela à SS. Por fim o ‘Posto’ invade plenamente o PSF.
188
Volta e meia se ouviam pessoas conversando sobre as faltas e lamentando as
saídas. Apesar das mudanças, parecia haver expectativas de manter-se o mesmo nível
de produção por parte da SS, de usuários e também trabalhadores do CS ou seja, o
‘CS não deveria deixar a peteca cair’. Os médicos presentes, como figuras centrais do
modelo biomédico, ficaram vulneráveis as críticas ao ‘falharem’ em absorção da
demanda/oferta de consultas geradas.
A solução dada para a crise, pela gerência, foi ordenar aos médicos que
permaneceram ‘que redistribuíssem o trabalho’. Profissional que não aceitou aumentar
a produção, que ficou estressado, foi visto como problema, gerando mais tensão, mais
deterioração nas relações. Como este PSF está implantado como programa, assentado
no modelo biomédico se ele entra em crise, as relações e o vínculo entram em crise, se
rompem, alimentando a desconfiança sobre a seriedade do SUS, do PSF, da política,
dos políticos, da SS.
A saída do médico da ESF azul, foi tema de uma reunião do CLS e do grupo de
saúde. Nestes espaços os usuários esboçaram certa reação, mas a atitude principal foi
de conformidade. No registro abaixo apresento eventos que se desenvolveram em parte
na reunião do CLS:
o médico da ESF azul apresenta, na reunião do CLS, as razões de seu pedido
de demissão.Todos os presentes se manifestam protestando sobre o ocorrido,
além de emocionar-se. Dizem considerar que estavam perdendo alguém que
desenvolveu um trabalho abordando tanto o lado médico como o humano, que
demonstrara atenção, carinho, zelo, com os usuários. Conselheiro ‘A’ diz que
está sabendo do fato no momento e se declara muito aborrecido. Gostaria que
tivessem tido a possibilidade de intervir, de modificar o evento. Coloca que a
rotatividade não é boa para a comunidade, que a comunidade batalhou muito
para conseguir uma boa ESF e percebe que isto está sendo dilapidado, dia a
dia, e que está vendo o PSF ser destruído. Conselheiro ‘B’ sugere que o grupo
tome uma posição firme, o que foi ratificado por todos os presentes. Na
continuidade de sua fala diz que até o momento a comunidade era referida
como aquela que cujo atendimento em saúde tinha boa qualidade, tendo
poucas reclamações e ocorrência de problemas. ‘Não é nosso ideal mas é o
melhor CS do município, é o mais elogiado; quanto tempo se vai ainda manter
isso’? NOTA DE CAMPO 03/09/04.
189
4 CATEGORIA: O QUE TEM QUE TER/O QUE TEM DE MUDAR
Esta categoria congrega sugestões referidas pelos médicos, enfermeiras,
usuários, AuxEnf e ACS, para que se dêem as condições que promovam as relações
requeridas pelo PSF, e aí se colocando com seu potencial de serem estratégicas para
mudança do modelo de atenção em saúde. E/ou as sugestões apontam para uma nova
forma de desenvolver o ‘PSF daqui’ e também o ‘PSF oficial’, ressaltando a outra
condição, de caráter bidirecional, onde sem ‘PSF mesmo’ não estão dadas as
condições para o estabelecimento de vínculo. As sugestões estão ligadas ainda ao
atendimento em saúde vigente, pautado no modelo biomédico.
Refletindo sobre tais dados considerei que poderiam ser colocados após a
análise dos dados até aqui apresentados, ou no final do capítulo 7, entendendo que
desta forma a riqueza, pertinência e importância dos mesmos seria destacada.
190
CAPÍTULO 7
DIÁLOGO TEORIA PRÁTICA
A intencionalidade desenhada para este capítulo é efetuar um diálogo teórico
com categorias que emergiram no trabalho, algumas vezes com aspectos específicos
de seus componentes, buscando aplicar o referencial da dialética para desvelar uma
dada totalidade, superar aparências, configurar conflitualidades, acerca do vínculo
numa dada realidade de PSF.
7.1 DIÁLOGO N º1: É UM POUCO INJUSTO PEDIREM ISSO DA GENTE
O primeiro diálogo enfoca aspectos que emergiram das categorias é um pouco
injusto pedirem isto da gente
o vínculo se constrói a partir de algumas bases e da
categoria
às vezes a gente não consegue destacando para as duas últimas o
componente ‘relacionadas aos profissionais’.
Partindo do que coloca Pichon-Rivière (2000), este autor considera que a conduta
exterior do vínculo está ligada ao aspecto interior da vivência, sendo esta
historicamente construída. Interrogando-se possibilidades históricas da constituição de
médicos e enfermeiras enquanto sujeitos, numa dada realidade ocidental, em tempos
de modernidade, num país periférico, impõe-se questionar: estas influências que
‘instituem’ sujeitos são favorecedoras de vínculo de compromisso e co-
responsabilidade?
191
López Gastón (1999) referindo-se às relações médico-paciente considera que não
é possível concebê-las isoladas, já que ocorrem em um contexto cultural, social,
psicológico, científico e técnico, que sempre estão condicionadas por variáveis locais,
regionais, nacionais e ainda supranacionais, na quais a estratificação, as estruturas
econômicas, as bases filosóficas, as crenças religiosas, os valores éticos e morais tem
papel fundamental. Considero que esta referência possa também ser estendida às
relações enfermeira-usuários. Campos (1997) posiciona-se de modo similar, já que
para este autor o ‘ser’ dos profissionais está sendo produzido pelo mercado, pelas
políticas governamentais, pelo saber estruturado em disciplina, pelas leis e pelos
valores culturais vigentes.
Beck (1998) faz uma distinção, aqui também adotada, acerca da modernidade,
dividindo-a em primeira e segunda modernidade. A primeira, a chamada
modernidade industrial, evidencia-se em decorrência de inúmeros avanços científicos,
revolução política e industrial; a segunda modernidade ou modernização da
modernização ou modernidade reflexiva ou ainda pós-modernidade, evidencia-se pela
instalação de vários processos como a globalização (econômica, cultural, política), a
crise do trabalho, a individualização, a revolução dos gêneros, os risco globais da crise
ecológica e das turbulências dos mercados financeiros.
As primeiras mudanças da modernidade ocorreram a partir do século XVI e
assumiram um aspecto revolucionário de ordem tal, que provocaram uma
reestruturação no pensamento ocidental. O pensamento moderno desenvolveu-se com
base na oposição da cultura e ideais da Idade Média (radicalmente religiosa/fé) e
processo de expansão cultural, sócio-política e científica (radicalmente razão),
invertendo-se os pólos de atenção que passam a ser o homem e o conhecimento.
Do século XVIII em diante, tendo a Europa como centro gerador e irradiador, os
paradigmas da modernidade podem ser facilmente identificados em função da sua
consolidação: são os paradigmas da emancipação da ignorância e da servidão pelo
conhecimento e igualdade (iluminismo), paradigma da emancipação progressiva da
razão e da liberdade (idealismo) paradigma da emancipação da exploração e alienação
do trabalho por meio do meio da sua socialização (marxismo) e o paradigma da
192
emancipação da pobreza por meio do desenvolvimento tecno-industrial capitalista
(liberalismo)
Para Foucault (2000) a verdadeira base da modernidade foi o ‘Iluminismo’ o qual
definiu como um conjunto de acontecimentos e de processos históricos que inclui
transformações sociais, de instituições políticas, formas de saber, projetos de
racionalização do conhecimento e da prática, além das mutações tecnológicas.
Também definiu Iluminismo como mentalidade, projeto, desejo, aposta no ser
humano. Para este autor o Iluminismo adotou como ideologia o racionalismo. Assim a
razão adquiriu valor transcendental (poder de discernir, distinguir, de comparar, de
julgar tudo); tornou-se o único meio válido para o conhecimento humano pela
aplicação do principio de que só ‘a razão é capaz de conhecer’.
Foi a partir do século XIX, quando o modelo de racionalidade passa a ser
aplicado nas ciências sociais, que se configura um modelo global de racionalidade,
totalitário, pois negava o caráter racional de outras formas de conhecimento que não
seguiram seus princípios epistemológicos e regras metodológicas. O conhecimento do
senso comum e das humanidades (históricos, filosóficos, jurídicos, literários,
teológicos), além de serem considerados intrusos, eram potencialmente perturbadores
(SANTOS 1987).
A ciência moderna foi se assentando assim na confiança epistemológica e os
seus protagonistas imbuídos de uma nova visão de mundo e da vida, rejeitam
dogmatismos, autoridade e desconfiam sistematicamente das evidências da experiência
imediata. Conhecer significava quantificar; as qualidades intrínsecas do objeto são
desqualificadas. O método científico assentado na redução da complexidade, aspira à
formulação de leis, trabalha com o que se reveste de previsibilidade para poder prever
o comportamento futuro dos fenômenos, em detrimento do agente e da intenção ou
finalidade, estas últimas valorizadas pelo senso comum. A formulação de leis assenta-
se no pressuposto de estabilidade e ordem do mundo, pressupõe a repetição do
passado. A idéia do mundo-máquina configura a hipótese do mecanicismo e do
determinismo mecanicista ou o conhecimento utilitário e funcional.
193
O objetivo da razão instrumental ou/o exercício da racionalidade cientifica,
típica do positivismo, logo se tornou claro: visou antes de tudo a dominação da
natureza para fins lucrativos, colocando a ciência e a técnica à serviço do capital.
A dominação da natureza por sua vez envolve a dominação do homem e se torna
interiorizada. O que a razão oferece é preservar o existente como ele é, evadindo a
esperança de felicidade, aumentando intensamente as pressões. Resistência e repressão
emergem desta subjugação da natureza. Para o homem ao qual interessa somente a
auto conservação, tudo o que está ao seu alcance é transformado em meio para se
chegar a um fim. Manifestações subjetivas e relações não pragmáticas tornam-se
suspeitas de sentimentalismos ou de engodo, tais como a admiração de alguma coisa, a
consideração por sentimentos ou atitudes, o amor pelo outro (HORKHEIMER, 2000).
Para Santos (1987), o conteúdo do conhecimento científico que avilta a natureza,
transformada num autômato, o rigor científico assentado no rigor matemático, que
quantifica e objectualiza os fenômenos (positivismo), têm produzido um
conhecimento desinvestido do encantamento, que acaba por aviltar aqueles que o
produzem. A quantificação, a parcelização e a especialização fizeram avançar o
conhecimento, porém denunciam que o conhecimento das partes não produz o
conhecimento da totalidade orgânica ou inorgânica e que os objetos têm cada vez
menos fronteiras definidas, são menos reais em si mesmo que as relações existentes
entre eles.
Assim em nome da modernidade, pela ênfase dada ao objeto, destruiu-se
distinção entre sujeito e objeto. Tudo virou coisa ‘o eu’ e o ‘não eu’; priorizou-se a
técnica e a tecnologia, a parcelização dos saberes em disciplinas, a divisão do trabalho,
a padronização de condutas; fez-se a primazia do homem sobre a natureza, a
justificação da onipotência e das relações de dominação. Nela, surgiram os ideais de
ganho/lucro e a comercialização do valor da vida, a justificação de imposição do
sofrimento, a divisão do ser humano em corpo e mente. Suspeitou-se da contribuição
da experiência no processo de conhecer, se pregou que ser temido é um valor, se
elegeu o racional como única e insuspeitável forma de conhecimento (SANTOS,
1987).
194
Produzindo desencantamento e decepção pelas promessas não concretizadas e
pelas reduções que provocara, os paradigmas da modernidade passam por um processo
de esgotamento, de crise, de transição. Além disso, os eventos da década de 30 do
século XX evidenciaram, dentre outros, os problemas do liberalismo clássico (livre
mercado, que se auto regula, intervenção mínima do Estado) qual produziu a depressão
econômica (quebra da bolsa de Nova York, desemprego, inflação) e intensificação da
tensão social. Com tais efeitos o liberalismo clássico é forçado a mudar na direção
liberalismo social, mediado pelo Estado, que constituiu o chamado Welfare State.
Dos anos 30 a 70 predominam as idéias de John Maynard Keynes (1883-1946)
que pregava a necessidade de aliar eficiência econômica à liberdade individual, com
justiça social. O liberalismo social por sua vez, ameaçando a lógica de acumulação
(aumento de gastos pelo Estado; aumento do papel do Estado no controle das forças
econômicas e regulação das distorções) vai sendo cada vez mais criticado, com base
no argumento de que aumentava o déficit público, gerava crise fiscal, inflação, e
instabilidade social. A partir dos anos 70 e com mais vigor nas décadas seguintes o
liberalismo social é substituído pelo modelo neoliberal que retoma os princípio do
liberalismo clássico.
Para Santos (2000, p. 236)
a medida que a trajetória da modernidade se identificou com a trajetória do
capitalismo, o pilar da regulação veio fortalecer-se à custa do pilar da
emancipação (...). O desequilíbrio do pilar da regulação consistiu
globalmente no desenvolvimento hipertrofiado do mercado em detrimento
do princípio do Estado e de ambos em detrimento do princípio da
comunidade
Santos (2000) tratando da relação entre subjetividade, cidadania e política coloca
que foi o Estado que acabou integrando os trabalhadores ao capitalismo liberal,
quando por via da concessão de direitos sociais e instituições que os distribuíam,
modificou a obrigação horizontal existente entre cidadão e Estado, transformando-a
em vertical. Os direitos sociais e as instituições estatais que os concediam
195
foram partes integrantes de um desenvolvimento societal que aumentou o
peso burocrático e a vigilância controladora sobre os indivíduos; sujeitou
estes mais que nunca às rotinas da produção e consumo; criou um espaço
desagregador e atomizante, destruidor das solidariedades das redes sociais
de interconhecimento e interajuda; promoveu uma cultura mediática e uma
indústria de tempos livres que transformou o lazer num gozo programado,
passivo, heterônomo, muito semelhante ao trabalho. Enfim um modelo de
desenvolvimento que transformou a subjetividade num processo de
individuação e numeração burocráticas e subordinou o ‘mundo da vida’ às
exigências de uma razão tecnológica que converteu o sujeito em objeto de si
próprio (SANTOS, 2000, p. 245).
A razão tecnológica que preside o desenvolvimento do capitalismo, busca a
docilidade e passividade dos indivíduos, principalmente dos trabalhadores, e o faz
oferecendo formas repressivas de felicidade, ou seja através do consumo. O fazem
desta forma porque, tendo sacrificado a subjetividade individual, são incapazes de
satisfazer as necessidades psíquicas e somáticas e de desenvolver plenamente as
capacidades emocionais do indivíduo.
Por sua vez, cidadania sem subjetividade conduz a normalização, que é forma de
dominação moderna, onde os sujeitos se identificam com “os poderes-saberes que
neles (mais do que sobre eles) são exercidos” (SANTOS, 2000, p. 246).
O dogma neoliberal oficial também cria seu próprio contra paradigma – discurso
altamente moral e ético, que distorce e disfarça os resultados do modelo hegemônico;
não se opõe a ele, não o ameaça, têm aparência de compromisso com reformas
macroeconômicas. Para manter-se hegemônico necessita/recruta o conluio com as
elites políticas dos países, um aparato de segurança para conter conflitos sociais
conseqüentes a processos de recessão, a aceitação/tolerância nas instituições
acadêmicas, junto aos intelectuais e críticos sociais e cria os mecanismos para a
produção de economistas acríticos.
Sá (1999), estudando autores como Enriquez, Castoriades, Lévy, Dejours, define
um panorama para a sociedade contemporânea ocidental, que guiada pelo
racionalismo, chegou ao final do século XX demonstrando uma superioridade de
forças desagregadoras do tecido social, que se manifesta numa problemática do
indivíduo, da sociedade e suas organizações. São sintomas disto à intensificação do
individualismo em detrimento da valorização do sujeito e da sua interioridade, o culto
196
ao corpo, identificado como possibilidade de sucesso, individual e utilidade social,
num narcisismo que inviabiliza a ligação com o outro.
A moldura para o exercício de tal situação é dada pela perda progressiva das
referências ideológicas, esvaziando as sociedades contemporâneas de sua capacidade
de propor ideais elevados, pela prioridade total para o econômico, obsessão pela
modernização, idealização da técnica e da tecnologia, intensificação da produção
inclusive dos afetos. A sociedade ocidental é fascinada pelo que funciona, pelos
instrumentos que podem responder instantaneamente e se possível, automaticamente,
tudo sob o signo da urgência. Esta sociedade não dispõe de referências e
identificações, conseqüentemente não dispõe de possibilidades de interdições
estruturantes (internalizáveis e constitutivas de sujeitos autônomos e responsáveis). As
interdições proibitivas, cada vez mais inócuas, são incapazes de impedir a violência,
agressividade, às tentativas de realização dos desejos de onipotência, enfim dos
desejos perversos. Nesta sociedade tem-se cada vez mais tolerância ao mal, à injustiça,
aos sofrimentos infligidos a outrem. A tolerância funcionaria como defesa da
consciência dolorosa da própria cumplicidade e responsabilidade no agravamento da
adversidade social (SÁ, 1999).
Para Muller (1999) uma das coisas que caracteriza a pós-modernidade é um
estado permanente de crise na sociedade, nos laços, entre e dentro dos seus segmentos,
capaz de retirar dela própria (crise) a possibilidade de aventar novas possibilidades. A
pós-modernidade na realidade herdou isto da modernidade, já que mesmo tendo
efetuado sua crítica não conseguiu substituí-la. Segundo esta autora, o que a pós-
modernidade acrescentou foi a filosofia do ‘niilismo’, do nada, do vazio, da ausência
de valores e de sentido para a vida. Importante é o prazer hedonista do aqui-e-agora,
tão importante para a implementação e manutenção do mercado. Muller (1999) afirma
que a pós-modernidade produziu um ‘sujeito narcísico’ ou um sujeito sem projetos,
desencantado, sem ideais a não ser o de consumir, cultuador de sua imagem, vazio,
apático, indisponível para a solidariedade.
Os argumentos apresentados acima tiveram a finalidade de sustentar o que foi
colocado sobre as forças que estão ‘instituindo’ os sujeitos das sociedades ocidentais
contemporâneas. Deles se pode extrair uma síntese: os sujeitos pós-modernos não
197
são/estão sujeitos para o vínculo. Também é possível identificar, como muitas
condutas dos profissionais no atendimento em saúde se pautam nas influências da
modernidade. Urge questionar como então médicos e enfermeiras estariam se fazendo
sujeitos para o vínculo, uma vez que esta condição não provém da sociedade em que se
inserem? Teríamos como possibilidades de resposta a ‘preparação profissional’ e,
ainda o PSF.
López Gastón (1999) coloca que os eventos da modernidade (primeira
modernidade e pós-modernidade) que mudaram o mundo, a sociedade, também
mudaram a relação do trabalhador de saúde, em especial dos médicos e paciente para
pior: têm se tornado menos sensíveis a queixas de seu pacientes, dado menos
importância a sua dor. Como contra reação os pacientes tem cada vez menos satisfação
com a atenção.
Breilth (1977) refere-se as enormes dificuldades e adversidades daqueles que se
dedicam às causas humanitárias, por estarem inseridos num mundo devorado pela
estratégia de controle global das riquezas e das consciências e pelo colossal egoísmo
criado na sustentação da máquina neoliberal. A ciência hoje está escancaradamente
atrelada aos centros de poder econômico, político e social, que determinam seus
rumos, suas prioridades, seus produtos, e em contrapartida as financiam e legalizam.
Baseado em Fitzpatrik e Glusrber, López Gastón (1999) coloca que até o início
do século XX o êxito do cuidado de saúde dependia do mecanismo placebo. A
abundante tecnologia científica, disponível para a medicina atual, faz os recursos de
atenção emocional, de visualização holística, parecerem arcaicas e não profissionais,
quando empregadas na atenção à saúde; o saber, em geral, foi deslocado pelas técnicas
e a melhora da performance e da atuação passou a constituir-se num novo meta
discurso.
Um outro aspecto apontado por este autor e também por Campos (1994), é o de
que sendo a medicina uma prática, fundamentada na ciência, vê-se envolvida pela
conjunção desta com o mercado, cujos interesses são muito específicos ou sejam o
poder e lucro. Com isso o ensino, a formação, guiam-se muito mais para preencher
postos de interesse do mercado do que com compromissos de guiar a sociedade para a
emancipação. Dos profissionais se exige conformação de seus ideais aos ‘fins do
198
mercado’ não bastando a obediência negativa, a submissão; requere-se a rendição,
porém enganosamente camuflada como livre escolha.
Uma das maiores carências da formação médica, segundo López Gastón (1999)
está em decodificar e unir os aspectos culturais e científicos das enfermidades quando
da produção do cuidado, dado que o sistema de referência dos pacientes são os ‘males’
e dos médicos as enfermidades. Os ‘males’ são experiências de mudanças debilitantes
do estado do ser na função social; enfermidades são anormalidades na estrutura e
função dos órgãos e sistemas do corpo.
Como prática a medicina não pode guiar-se, como no caso da ciência, por leis
gerais. Enfrenta, antes de tudo, casos particulares, dos quais participam inúmeros
fatores não controláveis; dispondo de informações imprecisas deve tomar decisões
precisas e nesta condição a formação torna-se fundamental. A formação profissional,
em função disto, deveria ser a mais ampla possível, passando pelas ciências físico-
matemáticas, biológicas, psicologia, filosofia, história, além de fornecer bases para o
entendimento do caráter social do trabalho médico (LÓPEZ GASTÓN,1999).
Mas as matérias curriculares, destinadas à ‘formação’ do médico, são
consideradas pelos alunos ‘matérias a mais’, dado que não são conceitualmente
incorporadas aos conhecimentos técnicos. E talvez não o sejam em função de quatro
fatores:
a) fatores éticos, sociais e culturais não se encontram identificados como
prioridade clara dentro das matérias técnicas; b) a massificação da matrícula
impede a relação pessoal educando–educador; c) em muitas áreas do
conhecimento são colocados docentes sem formação docente-pedagógica
(muito menos humanística); d) não existe, em muitos casos, compromisso
além daquele de transmitir informações (LÓPEZ GASTÓN, 1999, p.131).
Estabelece-se o discurso entre ‘dever ser’ e ‘poder ser’ cuja resultante é um
ser muito confuso. Os meios de comunicação empregados não melhoram o
ensino. Transmite-se uma enorme quantidade de informações geradas por
uma ‘abrumadora’ tecnologia, porém se fracassa no desenvolvimento de
mentes formadas, pensantes, com capacidade lógica, inferência, síntese e
aplicação (LÓPEZ GASTÓN, 1999, p.131).
Os médicos tornam-se bastante bem informados porém incapazes de enfrentar
e resolver problemáticas mínimas, além de sentirem-se frustrados e ressentidos. A
199
especialização e super especialização, incorporadas a formação desde a década de 60,
com a finalidade de controlar a super tecnologia em marcha e alcançar uma melhor
perspectiva de trabalho, levou os profissionais ao domínio de um minúsculo campo do
conhecimento que acabaram por encarecer a medicina e restringir/comprometer o
diálogo com o paciente. O contra movimento visando à diminuição do incentivo da
especialização não dá sinais de maior aceitação (LÓPEZ GASTÓN, 1999).
López Gastón (1999) também coloca que formação de pós-graduação é cada
vez mais pobre. Nos sistemas de residência o que se observa é a falta de programação
da formação, de docentes apropriados; utilizam-se os residentes como ‘mão de obra
barata’. É principalmente nas residências que se apresenta a carência de elementos
formadores humanísticos e sociais; neste espaço configura-se o incremento do uso da
tecnologia, do pensar e agir através de técnica.
Para o autor citado o que se coloca como síntese e como desafio é que o
médico, com esta formação e ‘modus operandi’, é incapaz de dar uma resposta
assistencial culturalmente aceitável. Na base de sua incapacidade está também a
incapacidade do Estado em dar conta das necessidades de saúde da população e
também, o poder do capital que mais e mais trata a saúde como uma mercadoria.
Para as enfermeiras os problemas são em parte coincidentes aos vivenciados
pelos médicos e em parte são de outra natureza. As enfermeiras se especializam muito
menos em áreas restritas do conhecimento após sua graduação; se especializadas
freqüentemente não atuam apenas com o enfoque restrito como ocorre com os
médicos. As enfermeiras têm em seus currículos mais conteúdos ligados às ciências
humanas como psicologia, sociologia, filosofia, além de disporem de maior
conhecimento empírico do ambiente de trabalho, seja ele ambulatorial ou hospitalar.
Mas as enfermeiras enfrentam vários problemas decorrentes de sua formação e
inserção no processo de trabalho em saúde, que interferem na sua relação com a
clientela.
Em Pires (1998) encontra-se a referência de um primeiro problema: a
enfermagem profissional surge da divisão do trabalho médico. Esta ligação inicial,
aliada a questões como não ter produzido um corpo de conhecimentos próprios e de
compartilhar o trabalho com outros agentes de enfermagem, trazem dificuldades
200
adicionais à concretização do processo de profissionalização. Pires (1998) e Machado
(1999) abordando o tema da autonomia técnica, referem-se a sua forte dependência
ao trabalho do médico, o que produz a redução da autonomia profissional. E ainda,
para aquelas atividades executadas com alguma autonomia, o problema configurado é
o de serem realizadas pelas várias pessoas que integram a equipe de enfermagem. Para
Machado (1999, p. 393-4)
a idéia de que o trabalho do enfermeiro (diplomado) pode ser executado por
ocupações da enfermagem, promove, no imaginário social, a visão de que o
enfermeiro não é tão essencial à sociedade como ocorre com os médicos. A
reivindicação de monopólio e exclusividade no exercício profissional
acaba tornando-se um discurso ideológico de difícil convencimento.
Sobre o corpo de conhecimentos próprio desta profissão, Machado (1999,
p.593) refere que o
vasto e rico campo de prática adquirido ao longo dos tempos, não resultou
no monopólio do conhecimento da realidade. Em outras palavras, a
enfermagem não soube resguardar nichos de saber e prática profissionais
para a obtenção de prerrogativas monopolistas. (....) a profissão de
enfermagem acabou tendo pouca sustentação cognitiva, ou seja, uma
atividade profissional com forte conteúdo prático e pouco conteúdo teórico.
O saber da enfermagem não se constitui em um saber específico, fechado em
si como uma caixa preta, o que a faz muito frágil perante a concorrência no
mercado de serviços de saúde, quando esta reivindica monopólio de
exercício profissional.
Agudelo (1995), Gisi e Zainko (1998), referem-se ao afastamento dos
enfermeiros de parte das atividades práticas, de assistência junto ao cliente, para
desenvolver atividades voltadas para gerência/administração. Sobre isto Agudelo
(1995, p.152) coloca que
a enfermeira, nos atuais serviços de saúde, distanciou-se das atividades que
correspondem ao seu preparo técnico e tem assumido atividades dispersas
em: administração de pessoal, administração de recursos materiais,
alimentação de sistemas de informação, tarefas que não são realizadas por
outros profissionais.
201
Apontam-se ainda como problemas para a enfermagem que em sua trajetória
tem executado modelarmente as diretrizes de saúde do governo ou seja tem se
caracterizado pela adaptação. Ao desvincular a saúde-doença do contexto social, ao
não exercer um papel de transformação da realidade, acaba satisfazendo os interesse
sócio políticos das classes dominantes (PIRES, 1998; NIETSCHE, 1998).
Antes de estabelecer conexões entre as questões mencionadas, sobre
dificuldades no desempenho profissional das enfermeiras que repercutem no
estabelecimento de relações com a clientela, e o processo de formação profissional que
as engendra, embora não seja o único responsável, enumero sinteticamente o que foi
mencionado: reduzida autonomia profissional; execução do trabalho das enfermeiras
também por outras categorias da enfermagem; dificuldade de impor-se como
profissional essencial na saúde e para a sociedade; pouca sustentação cognitiva e
pouca produção teórica específica; distanciamento das atividades para as quais tem
preparo técnico; envolvimento em atividades de administração de pessoal, de recursos
materiais e com alimentação de sistemas de informação; exercício profissional
acrítico, passivo, descompromissado com a transformação da realidade. Impõe-se
nesta conjuntura uma pergunta: quais tem sido as contribuições/responsabilidades do
ensino para este ‘status quo’?
Para Nietsche (1998) o ensino da enfermagem vem percorrendo uma trajetória
de adoção de diferentes tipos de pedagogias ou seja do tipo tradicional, tecnicista e
somente agora começa a utilizar, embora ainda de forma incipiente, uma pedagogia
crítica. Como influência da pedagogia tradicional é possível encontrar ainda: os
currículos de enfermagem que dão ênfase aos aspectos morais, a obediência, a
concepção de que sua missão é servir; a estrutura curricular além de rígida, compõe-se
de disciplinas estanques; a produção de conhecimentos científicos é deficitária;
predomina o ensino de um conhecimento desvinculado da realidade social; o aluno da
enfermagem não é participativo e o professor ainda mantém uma relação verticalizada
mediada pela autoridade.
A pedagogia da escola tecnicista, vigente entre 64 e 78, obedecia aos requisitos
do Estado Policial que se implantou no Brasil. São desta época a departamentalização,
disciplinas com créditos, e a geração de um currículo com enfoque biologicista e
202
mecanicista do processo de saúde-doença, voltado para a assistência ao indivíduo
hospitalizado (NIETSCHE, 1998). Mantêm-se como influências do modelo tecnicista,
na formação e na prática da enfermagem, a determinação biologicista das doenças
desconsiderando aquelas de natureza social; adoção do indivíduo como objeto de
trabalho, ao invés do coletivo, este composto por partes, as quais adoecem. Como boa
parte das disciplinas profissionalizantes neste modelo são desenvolvidas em hospitais,
mantém-se o enfoque na doença e a meta de produzir profissionais competentes para o
mercado o que também significa exercício prático vinculado ao consumo de
equipamentos e materiais sofisticados (NIETSCHE, 1998).
Para Nietsche (1998) a aproximação no sentido da pedagogia da escola crítica
iniciou-se na década de 80. Contemplando esta aproximação, efetuou-se uma revisão
curricular da graduação em enfermagem em 1994 e em 2001; foram produzidas novas
diretrizes Curriculares Nacionais para a Graduação em Enfermagem, desencadeadoras
de mudanças em todos os cursos do País. Pela pedagogia crítica busca-se desenvolver
o ensino sob novos paradigmas como o da produção social da saúde-doença; da
participação, da crítica reflexiva sobre a realidade; da responsabilidade social dos
enfermeiros com as populações e com a produção da saúde, em especial no SUS, além
da busca da competência técnica, científica, política.
Reibnitz (1998) analisa a situação do ensino e da prática dos enfermeiros sob a
perspectiva da criatividade. Coloca que a falta de avanços em direção à mudanças na
formação do enfermeiro (e seus desdobramentos para a prática) se devem ao
desinteresse de algumas escolas em mudar as práticas de saúde; pela indefinição sobre
o tipo de profissional que deverá ser formado; pela ausência de projetos que permitam
a aprendizagem vivencial voltado para as necessidades sociais; pela acomodação das
experiências curriculares à cultura vigente nas instituições; pela fragmentação
curricular, através de seus desdobramentos em disciplinas, acompanhando o modelo
biomédico; pela observação de modelos comportamentais conformistas dos docentes,
restritos ao cumprimento de ordens médicas sem questionamentos e/ou resistências;
pela ausência de trabalhos de investigação durante a formação; pela presença tímida da
dimensão da interdisciplinaridade na formação do enfermeiro.
203
Nesta etapa, onde a intenção foi buscar o apoio dos autores para a produção da
resposta frente à questão colocada ‘os médicos e enfermeiras constituem-se sujeitos
para o vínculo apoiado em suas formações profissionais’?, a resposta possível seria
‘não’, ou ‘nem tanto’. Então os médicos e enfermeiras constituem-se sujeito para o
vínculo apoiados em sua formação no PSF?
O Ministério da Saúde, a partir de dezembro de 1996, desencadeia um processo
para atender necessidades de formação requeridas pelo PSF, quando da publicação de
editais para a seleção de projetos educacionais, visando a criação de Pólos de
Capacitação, Formação e Educação Permanente em Saúde da Família. Apesar desta
iniciativa governamental importante, por constituir-se num investimento visando
repensar o modelo biomédico, o que se observou foi o investimento principalmente em
capacitação introdutória para as equipes e em treinamentos pontuais, relacionados aos
marcadores (diabetes, hipertensão, saúde da mulher); cursos de especialização e
residência em saúde da família tem ocorrido em alguns centros de formação, atingindo
poucos profissionais. Não estão referidas, em trabalhos sobre o PSF, treinamentos/
capacitações/formação que dêem substrato para o estabelecimento de um vínculo que
o PSF requer, ou bases para se fazer o ‘PSF mesmo’
No relatório de “Avaliação da implementação do Programa Saúde da
Família em dez grandes centros urbanos” produzidos pelo MS menciona-se que:
o aspecto mais vulnerável da organização do trabalho de equipe é a
capacitação dos profissionais que compõem a ESF multiprofissional, tanto
por dificuldades do aparelho formador em adequar-se às mudanças
assistenciais pretendidas, quanto pela insuficiência dos pólos estaduais em
atender todas às demandas para a educação continuada dos diversos
profissionais, bem como pela incipiente organização de uma estrutura de
supervisão, que respalde o fortalecimento da nova divisão de trabalho e a
efetivação do processo interativo dos diversos agentes em torno dos
cuidados e da promoção da saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b, p.
169).
Finalizando este diálogo com as categorias é um pouco injusto pedirem isto da
gente e o vínculo se constrói a partir de algumas bases
e da categoria às vezes a gente
não consegue,
como pesquisadora considero que os dados e contribuições dos autores
204
apontam na direção de concordarem com os médicos e enfermeiras do PSF da
realidade estudada. Os profissionais apontam para causas imediatas, ‘porque a gente
não teve’, ‘eles não deram’. Uma análise mais apurada, permite superar o imediato,
revelar essência oculta, pelo diálogo com a multiplicidade de dimensões presentes no
problema em pauta. Aí é possível desvendar-se porque o vínculo requerido não se faz,
pois as condições não estão dadas, espera-se tudo dos profissionais; as causas e seus
efeitos têm a aparência da simplicidade mas a sua determinação decorre da
complexidade da totalidade.
7.2 DIÁLOGO N º2: O VÍNCULO QUE A GENTE CONSTRÓI NÃO É NUM
PSF MESMO
A intencionalidade deste segundo diálogo é dar sustentação aos dados que
emergiram das categorias ‘o vínculo que a gente constrói não é num PSF mesmo’ (em
seus três componentes ‘o que o PSF é’, ‘o PSF daqui’, ‘se fosse PSF mesmo’) e das
observações de campo, fazendo-os ‘confrontar-se’ com aspectos teóricos e
operacionais previstos para o PSF e com a avaliação que se faz sobre o mesmo.
7.2.1 O PROJETO PSF
O PSF estrutura-se em uma unidade de saúde, com equipe multiprofissional ou
equipe de saúde da família (ESF) composta por um médico generalista, uma
enfermeira, uma auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitários de
saúde (ACS), além de um dentista ou técnico bucal. A ESF assume a responsabilidade
pelo desenvolvimento das ações de saúde junto a uma determinada população (600 a
1000 famílias ou no máximo 4.500 pessoas), em um território definido. Deve estar
integrada a uma rede de serviços, de forma que se garanta atenção integral aos
indivíduos e famílias e sejam asseguradas a referência e contra-referência para os
205
diversos níveis do sistema, sempre que for requerida maior complexidade tecnológica
para a resolução de situações ou problemas identificados na atenção básica
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1997; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 a).
Prevê-se que com o PSF entre em vigência uma nova dinâmica de estruturação
dos serviços de saúde, na relação com a comunidade e entre os diversos níveis de
complexidade assistencial. No atendimento à saúde deve haver superação da
fragmentação dos cuidados decorrentes da divisão social e da divisão técnica do
trabalho em saúde. Para o PSF define-se e prioriza-se um novo sujeito da atenção, a
família e seu espaço social. Propõe-se humanizar as práticas de saúde buscando a
satisfação do usuário através do estreito relacionamento da equipe com a comunidade,
com a qual se estabelecerão vínculos de compromisso e de responsabilidade,
compartilhados entre serviço e população. No PSF se requer um olhar
multiprofissional e uma prática multisetorial, a priorização das ações de promoção,
proteção e recuperação da saúde, representando uma mudança substantiva no sentido
da vigilância à saúde. A unidade básica de saúde, sob a ótica do PSF, deve ser a ‘porta
de entrada do sistema local de saúde’, mas a mudança no modelo tradicional exige a
integração entre os vários níveis de atenção (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1997;
PERES, 1999; SOUSA, 2000). São atribuições comuns a todos os profissionais que
integram as ESF:
conhecer a realidade das famílias pelas quais são responsáveis, com ênfase
nas suas características sociais, econômicas, culturais, demográficas e
epidemiológicas; identificar os problemas de saúde e situações de risco mais
comuns aos quais aquela população está exposta; elaborar, com a
participação da comunidade, um plano local para o enfrentamento dos
problemas de saúde e fatores que colocam em risco a saúde; (...) fomentar a
participação popular, discutindo com a comunidade conceitos de cidadania,
de direito à saúde e as suas bases legais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001,
p.75).
Enfim no e através do PSF devem ser concretizados os princípios doutrinários
(universalidade, integralidade e eqüidade) e organizativos do SUS (resolutividade,
hierarquização, participação popular, descentralização e complementariedade)
206
7.2.2 PSF REAIS
É possível verificar num conjunto expressivo de produções contradições,
insuficiências ou ‘áreas de sombra’ do PSF. Pode-se por exemplo encontrá-las em
autores como Merhy (1999), Franco e Merhy (1999, 2003), Mattos (1999), Bertoncini
(2000), Soares (2000), Antunes et al, (2001), Pedrosa e Teles (2001), Alonso (2003),
Fertonami (2003).
Soares (2000) refere como problemas do PSF: ser financiado por capital
externo; desconsiderar a enorme heterogeneidade dos municípios na oferta de serviços
de saúde; não dispor de redes regionalizadas e hierarquizadas para garantir o acesso
universal a todos os níveis de atenção, limitando o atendimento a uma porta de entrada
sem saída; desconsiderar a complexidade do quadro epidemiológico brasileiro; ter
substituídos profissionais qualificados da Enfermagem por pessoas sem qualificação;
gerar contratos precários de trabalho; apresentar limitações importantes na resolução
dos problemas de saúde da população.
Mattos (1999) critica a forma de descentralização implementada no âmbito do
SUS a qual gerou uma multiplicidade de sistemas municipais de saúde, diferentes
entre si quanto à participação no setor privado na provisão de serviços ao SUS, nas
configurações de rede adotada em cada sistema, o que influi enormemente nos
modelos gerenciais e na sua diversidade.
Antunes et al (2001, p . 101) ressaltam a existência da dificuldade em propor e
produzir serviços de saúde de abrangência coletiva; “falta clareza das finalidades e
objetivos da assistência integral a ser desenvolvida em um novo complexo de
produção dos serviços básicos de saúde”
O processo, a organização e infra-estrutura do trabalho das ESF também estão
as voltas com uma série de dificuldades. Nas condições materiais de trabalho podem
ser citadas as dificuldades relacionadas, por exemplo, a heterogeneidade da estrutura
física das Unidades de Saúde da Família (USF). Algumas são inadequadas e
precarizadas em sua infra-estrutura (planta física limitada, insalubre, insegura)
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b).
207
Na questão da infra-estrutura de recursos humanos o destaque pode ser feito
com relação à insuficiência dos profissionais com perfil desejado, o que leva as
instituições de saúde a admitirem os existentes no mercado de trabalho, na grande
maioria especialistas. Os profissionais atuantes no PSF não estão preparados para
desenvolver o trabalho sob enfoque da construção social da saúde; há ausência ou
insuficiência de capacitações, treinamentos e formação continuada para equipe. Há
também instabilidade relacionada às várias modalidades de contrato adotadas e de
remuneração, gerando desmonte de equipes, dificultando os processos de integração
(CAMPOS, 1997; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b).
Outros problemas apontados pelos autores para o PSF, são: sua orientação
pelos princípios da epidemiologia e vigilância à saúde sem rever as dimensões do
enfoque clínico e portanto impossibilitando a reconfiguração do modelo vigente;
apostar que um verdadeiro trabalho em equipe ocorreria quando da alteração do
‘design das equipes’, sem atentar para as necessidades relacionadas aos
microprocessos de trabalho em saúde e para os fazeres cotidianos de cada profissional
(FRANCO E MERHY, 1999, 2003; PEDUZZI, 2001); a influência taylorista no
trabalho das equipes (CAMPOS, 1997; 1999; FRANCO E MERHY, 1999, 2003),
expectativas contraditórias e conflitos com o poder local (CAMPOS, 1997); a
manutenção do modelo de assistência à saúde, hegemônico, médico centrado
(MERHY, 1997, FRANCO e MERHY, 1999; 2003; PEDROSA e TELES, 2001;
SCHIMIDT, 2002; FERTONANI, 2003; ALONSO, 2003),
Alonso (2003) aponta dificuldades ligadas ao excesso de burocratização no
trabalho, à insuficiência da estrutura multidisciplinar que hoje não inclui assistente
social e psicólogo e a demanda, por vezes excessiva, que dificulta sobremaneira o
trabalho das equipes. A autora também reflete sobre o problema da ausência de um
projeto assistencial coletivo da equipe junto às famílias. Em não se construindo uma
visão conjunta do contexto da saúde da família, também não torna possível a
integração, a continuidade, a definição de papéis no e do processo assistencial.
A síntese efetuada por Bertoncini (2000,p. 67) é que "as ESF transitam num
ideário permeado de contradições, espaço de luta no qual os vários projetos dos
atores sociais em situação divergem e convergem". Para a autora há problemas que
208
surgem em função das ESF atenderem uma população maior que a estipulada pelo
PSF, gerando prejuízos de várias ordens no trabalho das equipes. A distribuição dos
trabalhos é heterogênea sendo que para o médico predomina a atividade clínica. O
enfermeiro tem trabalho melhor distribuído entre as várias funções, mas necessita ser o
grande triador da demanda, ‘um bom leão de chácara’. Para a autora
tais condições de trabalho alimentam sentimentos como alienação,
impotência, resignação, medo, insegurança, angústia, estresse, baixa auto-
estima, conflitos, disputa por poder, instabilidade, desorientação, riscos para
as atividades, dificultando as iniciativas para mudar as condições para
garantir a integralidade da assistência (BERTONCINI, 2000, p.103).
7.2.3) O OLHAR DO MINISTÉRIO DA SAÚDE SOBRE O PSF
No item 3.5.6 do capítulo 3 foram apresentados alguns resultados do relatório
de “Avaliação da implementação do Programa Saúde da Família em dez grandes
centros urbanos” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b) mas considero que outros
pontos possam ser destacados, complementando aspectos avaliativos referidos acima.
Um tema abordado no Relatório é o das resistências e temores produzidos pela
implantação do PSF. Segundo o relatório, os profissionais, especialmente os médicos,
demonstraram resistência à nova concepção assistencial em função de requisitar
atuação como generalista, privilegiando a promoção, a clínica ampliada e organização
da demanda, além de exigir diversificação de atividades, atuação extra muros, carga
horária elevada e sem flexibilidade. No setor privado algumas resistências apareceram
quando da implantação, por ter propiciado redução de demanda por internações de
pediatria e de clínica médica, com perda de lucratividade dos prestadores privados e
descredenciamento de leitos do setor privado. Tendo havido entendimento que a
implantação do PSF causava resistências de várias naturezas, que era preciso
conquistar legitimidade, ampliar a base de apoio, alguns municípios desenvolveram
várias estratégias para tal. Assim promoveram debates prévios à implantação
209
envolvendo a comunidade, os gerentes das Secretarias Municipais de Saúde
(SMS), de profissionais de saúde, além de divulgarem em rádio, televisão, jornais. A
participação popular foi incentivada através da execução de atividades pelas
associações de moradores.
Sobre o conhecimento das famílias e sua participação na realização de
diagnóstico de saúde local os melhores índices encontrados foram em Manaus onde
as famílias sabiam que o diagnóstico tinha sido realizado. Em Camaragibe e Manaus
20% das famílias pesquisadas informaram ter participado do diagnóstico. O relatório
coloca que “observou–se o baixo uso do diagnóstico de saúde local na programação
de atividades, indicando tendência de baixa adequação ao perfil local de necessidades
saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b, p. 211).
A identificação da implantação como estratégia se deu verificando a
substituição das unidades básicas tradicionais pelas Unidades de Saúde da Família
(USF), pela garantia de acesso e através da responsabilização das equipes/
profissionais pela saúde da população das respectivas áreas adscritas ou seja, garantia
do acesso à atenção integral e resolutiva nos diversos níveis de complexidade. O
acolhimento foi usado como mecanismo para garantia de acesso e regulação da
demanda dos usuários as USF, desenvolvido por profissionais de nível superior das
equipes, geralmente as enfermeiras.
A identificação da implantação como Programa se deu verificando a
centralidade da realização de atividades preconizadas pelo PSF. Nas cidades de
Camaragibe, Palmas, Aracaju, o PSF foi considerado implantado como estratégia, nas
cidades Campinas, Vitória da Conquista e Vitória caracterizaram-se a coexistência dos
dois modelos e em São Gonçalo, Goiânia, Manaus e Brasília, refere-se que o PSF foi
implantado como Programa.
Menos de 40% dos profissionais de nível superior pesquisados consideraram
que a USF permite atendimento de forma confortável para os usuários e profissionais,
faltando às vezes, espaço físico para atividades usuais, para as reuniões de grupo, ou
tecnologia necessária ao desenvolvimento das ações básicas de saúde. Ou seja, o
espaço físico das USF com freqüência não atende ao conjunto de atribuições das ESF
210
nem permite o atendimento de forma confortável e adequado tecnologicamente para
usuários e profissionais.
No quesito cobertura, em alguns municípios pesquisados como Camaragibe,
Vitória da Conquista, Goiânia, foi verificada a existência mais de 1000 famílias por
ESF. No relatório aparece o alerta de que a adscrição de mais de 1.000 famílias por
ESF sobrecarrega os profissionais de nível superior nas atividades assistenciais,
dificultando tanto a garantia da atenção da demanda programada quanto da
espontânea. O Relatório explica que tal mecanismo pode ter sido gerado em função da
necessidade de um grande número de ESF para se atingir coberturas populacionais
nos grandes centros urbanos, que em função de sua maior densidade demográfica
acabam tendo menor aporte financeiro do que os recebidos por pequenos municípios.
A atividade de supervisão encontrava-se pouco estruturada, ocorrendo algumas
iniciativas em Manaus, Goiânia, Vitória e São Gonçalo, que pretendiam organizar
equipes multiprofissionais para atuar regionalmente. Em Vitória da Conquista a
supervisão era realizada semanalmente pela equipe de coordenação do PSF, com a
finalidade de discutir e apoiar as equipes em questões de estrutura física, relações
interpessoais, nas relações com a comunidade e no desempenho das atividades.
No quesito acesso ao atendimento e atendimento em situação de emergências
as queixas englobaram grande tempo de espera, falta de vagas para consultas,
atendimento precário, dificuldade de atendimento quando encaminhado.
Na questão medicamentos as queixas referiram-se à falta de medicamentos em
quantidade e variedade. Baixa proporção de famílias usuárias recebia geralmente todos
os medicamentos quando atendidas pela ESF, variando entre 40% em Vitória da
Conquista, a melhor situação e 10% em Goiânia, onde se encontrou a mais baixa
proporção.
Os dados também apontaram para dificuldades de realizar exames em tempo
curto ou integralizar o pedido de exames solicitados nos atendimentos pelas ESF em
Vitória da Conquista, Vitória, Goiânia, Aracaju e Palmas. Por exemplo, em Vitória da
Conquista, 50% dos profissionais informaram o tempo máximo de espera de até 30
dias para consultas especializadas e 66% para exames.
211
Com relação aos profissionais e unidades de saúde, as famílias queixaram-se de
falta de médicos especialistas, falta de profissionais no atendimento, falta dentista,
dificuldades dos médicos para realizar diagnóstico, número reduzido de visitas
domiciliares por ACS.
Na questão relacionada aos especialistas, em diversas cidades estudadas foram
referenciadas dificuldades de agendamento de serviços ambulatoriais de média
complexidade, sendo que o tempo médio de espera do paciente, para atendimento
nesses serviços foi abaixo de 30 dias. Para as cidades de Palmas, Brasília, Camaragibe
e Vitória, um terço os profissionais de nível superior informaram que o tempo médio
de espera era superior a 30 dias.
Problemas na realização da contra-referência foram mencionados tanto por
gestores como por profissionais. Cerca de 30% dos profissionais de nível superior das
ESF informaram nunca receber qualquer tipo de contra-referência, em Palmas (44%),
Brasília (39%) e Aracaju (32%). Coloca-se no Relatório que
um grande desafio do PSF é melhorar a comunicação entre profissionais da
Atenção Básica e especialistas e também com os serviços de pronto-
atendimento e emergência. São profissionais com experiências e formações
distintas, exigindo-se a criação de estratégias de comunicação e ampliação
de confiança também para que o especialista promova o retorno do paciente
ao serviço de Atenção Básica. A comunicação com troca de informações
entre profissionais é essencial para que o generalista da ESF possa exercer
sua função de coordenador dos cuidados ao paciente, o que promove
melhora da qualidade assistencial (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b, p.
127).
Nos municípios da Vitória de Conquista houve taxa significativa de queixas
sobre os profissionais da saúde. Em Camaragibe, Palmas, Goiânia e Brasília as taxas
mais significativas recaíam sobre o acesso. Em Vitória, Aracajú, Manaus havia
queixas significativas com relação aos medicamentos
A vinculação institucional (modalidades de contratação) dos membros das ESF,
segundo o relatório de Avaliação da Implementação do Programa Saúde da Família em
dez grandes centros urbanos (MS, 2002), ocorria de múltiplas formas, algumas
precárias, produzindo críticas e conflitos (cooperativa, por regime especial temporário
212
– RET, prestação de serviços, bolsa pesquisa) ou contratação CLT, modalidade que
oferece menor estabilidade do que no regime estatutário. A vinculação institucional
dos recursos humanos do PSF
tem constituído um problema a ser enfrentado na gestão do SUS, pois trouxe
diferença salarial, de cargas horárias, de benefícios sociais e de estabilidade
no emprego entre profissionais que atuam na rede e os profissionais do PSF
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b, p. 152).
O problema de remuneração também é generalizado. A maioria dos
profissionais de nível superior das ESF, não se considerou bem remunerada, exceto em
Manaus, onde mais de um terço dos mesmos considerou sua remuneração compatível
com as atribuições. Os mais baixos percentuais de satisfação foram referidos em
Vitória e Goiânia.
O problema da rotatividade ou não fixação dos profissionais de saúde no
programa, fator importante para sua sustentabilidade, foi encontrado em todos os
locais estudados. Em Camaragibe, por exemplo, foi encontrada uma proporção de 15%
de profissionais de nível superior com atuação de até 12 meses ou menor. Tal
rotatividade foi confirmada pelos gestores, que explicaram a perda em função da
concorrência com outros municípios do Estado que implantaram o PSF e realizaram
concurso para preencher vagas, atraindo muitos profissionais. Em Brasília essa
rotatividade entre os profissionais de nível superior foi de 26% e neste caso as
justificativas dos gestores foi de que médicos e enfermeiras apresentam maior
resistência quanto à realização das atividades singulares do PSF como visita
domiciliar. Os médicos muito jovens e desempregados ou os mais velhos, aposentados,
apresentavam um perfil de difícil adaptação, segundo os gestores locais.
O perfil requisitado para o trabalho em saúde da família, em especial médico,
segue sendo o de médico generalista, que atenda à demanda programada, tenha
capacidade de estabelecer fluxos de encaminhamento resolutivos, que abra mão do
lugar privilegiado na equipe de saúde, valorizando o conjunto dos agentes, interaja
numa relação comunicativa horizontal, realize novos procedimentos voltados para o
213
atendimento de grupos ‘de risco’ e para os problemas sócios- sanitários da comunidade
sob sua responsabilidade, além de aceitar a jornada de oito horas de trabalho.
A falta de médicos com este perfil constitui-se num argumento dos gestores
para não propiciarem vinculações institucionais mais adequadas pela realização de
concurso público e contratação estatutária, alegando que engessariam seus quadros
funcionais, além de argumentarem que não consideram o PSF consolidado. O
Relatório defende a criação de vínculos empregatícios: “vínculos empregatícios
estáveis e legalmente protegidos favorecem a adesão de profissionais e a formação de
vínculos com as comunidades” . Além disso
(...) a criação de incentivos salariais para ESF que atuem em áreas de maior
risco social e epidemiológico possibilitaria maior permanência dos
profissionais nessas áreas. Considerar a possibilidade de incentivos que
apóiem a redução da rotatividade dos profissionais e fixem as ESF
implantadas. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002 b, p. 216).
As atividades de promoção e prevenção, foram avaliadas através das
proporções de realização, na semana anterior, de atividades de educação e atividades
de grupo, informadas por médicos e enfermeiros. E as atividades assistenciais foram
avaliadas através da proporção de consultas realizadas aos indivíduos e para grupos
prioritários. Uma baixa proporção de médicos havia realizado atividades de educação
em saúde na semana anterior à pesquisa, variando entre 53% em Aracaju e 22% em
Brasília. Para os enfermeiras e enfermeiros, a proporção foi de cerca da metade ou
mais dos profissionais que realizaram atividades de educação nas cidades estudadas,
exceto Manaus (38%). .
Nos vários locais estudados se atende à demanda espontânea, exceto Manaus
que prioriza o atendimento à demanda programada, organizada pelos ACS, que
inserem os usuários nas atividades prioritárias do PSF e canalizam para outros serviços
de saúde os atendimentos não previstos, evitando a pressão de pacientes na unidade de
saúde.
Alguns dos centros urbanos implantaram na mesma unidade de saúde um
segundo nível de complexidade de Atenção Básica, constituído por especialistas nas
214
clínicas básicas, aumentando a resolutividade dos casos e possibilitando a
interconsulta.
Foram avaliadas como atividades extra muros a visita domiciliar, com
finalidade assistencial ou de promoção da saúde, realizada pelos profissionais de nível
superior e a reunião com a comunidade, entendidas como trabalho de promoção à
saúde. Os dados indicaram que maior proporção de profissionais realizaram visita
domiciliar do que reunião com a comunidade, o que foi considerado no relatório um
indicativo de que a visita domiciliar foi incorporada à rotina dos profissionais.
As atividades extra–setoriais foram consideradas indícios da execução de
atividades de promoção da saúde, por se realizaram junto a outros órgãos de políticas
públicas pelos profissionais integrantes das ESF; verificou-se que foram realizadas em
baixa proporção.
No quesito trabalho em equipe, em geral as ESF efetuaram avaliações positivas
quanto à organização e processo de trabalho. As ESF foram referidas como ‘sensíveis
e abertas a mudanças e com capacidade rever rotinas’ e tendo um ‘relacionamento
bom e respeitoso’ Esse dado foi de 71% em Camaragibe e 83% e Manaus. No quesito
grau de participação e discussão da programação das atividades da ESF com
regularidade semanal ou quinzenal a freqüência encontrada foi superior a 50%.
Os profissionais de nível superior assumiram a responsabilidade pela supervisão
direta das atividades de auxiliares de enfermagem e ACS. Em metade dos municípios
foram os enfermeiros quem predominantemente desenvolveram esta atividade. Outras
atividades não assistenciais de administração e gerência foram desenvolvidas por
auxiliares de enfermagem (5%) em Vitória e nos demais locais por profissionais de
nível superior (médicos e enfermeiros).
Quando se comparam os dados que emergiram da realidade estudada,
constata-se uma identificação ‘visceral,’ entre a problemática evidenciada no PSF
estudado com uma dada totalidade de PSFs. Poderíamos mencionar, dentre muitas
identificações, algumas tais como: população adscrita maior do que a prevista,
implantação como programa, adoção do modelo biomédico no atendimento em saúde,
cobrança de produtividade, baixa execução das atividades assistenciais comunitárias,
215
na questão das visitas domiciliares, nas dificuldades com relação a medicamentos,
exames, referência e contra referência, problemas na capacitação, na forma de contrato
e na remuneração dos profissionais, na rotatividade dos profissionais.
A identificação também decorre no sentido inverso do desejado, decorre da
dificuldade de fazer o ‘PSF mesmo’ onde muitas coisas seriam diferentes, como por
exemplo, as ESF não se responsabilizariam por uma população além da estabelecida, o
sujeito ‘família seria efetivamente priorizado e se compartilhariam responsabilidades
entre serviço e comunidade que participaria da elaboração do plano local para o
enfrentamento dos problemas de saúde.
Se fosse ‘PSF mesmo’ os profissionais poderiam investir mais na integração
com a rede de serviços de sua comunidade, construindo atendimentos mais
abrangentes, poderiam atuar mais no sentido da referência e contra-referência nos
vários níveis do sistema. O atendimento à saúde não ocorreria de forma fragmentada;
seria efetuado por equipes capazes de lidar com os problemas decorrentes da divisão
social e da divisão técnica do trabalho em saúde, já que atuariam de forma
multiprofissional, não haveria posição hegemônica, a interação e a comunicação se
fariam de forma horizontalizada e as atividades seriam redistribuídas.
Se fosse ‘PSF mesmo’ os profissionais formariam vínculo com a comunidade e
este não seria rompido tão facilmente pois seriam prevenidas as deteriorações das
condições e processo de trabalho. A agenda seria flexível para permitir diversificação
de atividades, a atuação fora do CS, as ações de promoção, proteção e recuperação da
saúde, enfim mudando no modelo tradicional biomédico do atendimento em saúde. E,
se o ‘PSF lindo, que está no papel’, não fosse tudo isso, estariam dadas as condições
para uma verdadeira aproximação.
Finalizando este dialogo é imperativo colocar-se que o PSF tem catalisado
sonhos, esperanças, incluído projetos politicamente comprometidos, mas estando a
serviço ou envolvido com interesses político, financeiros, corporativos, institucionais,
não tem conseguido ser o PSF idealizado/projetado e assim o vínculo que os
profissionais definem estabelecer não ocorre ‘PSF mesmo’.
216
7.3 DIÁLOGO N º3: O PROCESSO E AS CONDIÇÕES DE TRABALHO
A intencionalidade do terceiro diálogo é dar sustentação aos dados que
emergiram das categorias ‘o vínculo se constrói a partir de algumas bases’,‘tem coisas
que dificultam/atrapalham’, ‘o que tem que ter/tem que mudar’ com relação ao
componente presente nas três categorias ‘relacionados ao processo e condições de
trabalho’, à categoria o ‘vínculo requerido tem vários obstáculos’ com relação ao
componente ‘em função de como a equipe se relaciona e se organiza’. Uma teorização
sobre o processo de trabalho em saúde é apresentada inicialmente, e em seguida,
efetua-se um diálogo com dados das categorias/componentes.
7.3.1 O TRABALHO NO SETOR DE SERVIÇOS E EM SAÚDE
Braverman (1981), Mills (1979), Offe (1991) e Pires (1994; 1998; 2000) Merhy
(1997, 1999, 2003) Franco e Merhy, 1999, 2003), Campos (1994, 1997, 1999) são
autores selecionados para tratar deste tema, tanto em função da identificação da
pesquisadora com as posições dos mesmos e como por entendê-las relacionadas ao
tema do vínculo no PSF.
O trabalho em saúde tem identidade com o setor de serviços do qual faz parte
mas também tem especificidades. É hoje, majoritariamente, um trabalho coletivo
institucional, que se desenvolve com características do trabalho profissional e,
também, da divisão parcelar ou pormenorizada do trabalho e da lógica taylorista de
organização e gestão do trabalho (PIRES, 1998).
O conjunto de atividades que não estão diretamente envolvidas na produção
industrial e que não estão no setor primário da economia, tem crescido,
progressivamente, desde a revolução industrial, tendo sido nomeado de setor de
serviços. Tais atividades eram inicialmente executadas no âmbito da empresa e
passaram a ser desenvolvida por serviços especializados fora dela. Também cresceram
as atividades comerciais, de educação, de saúde, de segurança pública, dentre outros,
217
ampliando este setor. Offe (1991) refere que o aumento importante do setor de serviço
nas sociedades ocidentais, a partir das últimas décadas do século XIX, levou-as a
serem chamadas de sociedades de serviços.
Foi no início do século XX que os resultados da aplicação dos princípios da
gerência científica, baseados nas formulações de Taylor, começam a ser conhecidos e
ampliados de forma crescente, influenciando não só o trabalho industrial mas, também
o trabalho no setor de serviços. Surgem estudos sobre o tempo de execução das tarefas,
registros das quantidades de trabalho desempenhado, rotinizações, reorganização física
dos ambientes de trabalho para diminuição dos tempos gastos sem produção, etc. Para
aumentar a produtividade expande-se à divisão parcelar do trabalho e a mecanização
da produção (BRAVERMAN, 1981).
Com o aumento do fluxo de trabalho e a aplicação de novos métodos de gerência,
o processo é dividido em operações mínimas e os trabalhadores perdem a compreensão
da totalidade do processo de trabalho. O tempo empregado na atividade está sob
constante exame e controle. O trabalho pensante fica restrito a um pequeno grupo,
esperando-se da maioria a execução das atividades delegadas de cunho manual
(BRAVERMAN, 1981).
Braverman (1981) participando do debate sobre as características da sociedade
pós-segunda guerra mundial defende a tese de que apesar do grande crescimento dos
setores não envolvidos diretamente com a produção material, a tendência não é de
ampliação de uma outra racionalidade diferente da encontrada no trabalho industrial.
Diz que este grupo, apesar de apresentar certa diferenciação salarial que lhe permite
um afastamento dos piores aspectos da situação do proletariado,
não possui qualquer independência econômica ou ocupacional; é empregado
pelo capital e afiliados; não possui acesso algum ao processo de trabalho ou
meios de produção fora do emprego e deve renovar seus trabalhos para o
capital incessantemente a fim de subsistir (BRAVERMAN,1981, p. 341).
Sua atuação faz aumentar o capital e nesta relação, embora predomine a
subordinação à autoridade e submissão à exploração, esses trabalhadores, têm tanto
218
prerrogativas e privilégios do capital, como comungam características da condição
proletária, avançando porém, na direção do proletariado (BRAVERMAN,1981).
Para Braverman (1981) essas “camadas médias de emprego” incluem, dentre
outros, trabalhadores especializados como engenheiros, enfermeiros, técnicos,
empregados de vendas, da administração financeira e organizacional e assemelhados.
Os trabalhadores deste extrato estão submetidos a variadas condições de trabalho e o
excedente de mão de obra permite tanto diminuir os salários quanto a piora das
condições de trabalho.
Mills (1979), ao estudar a realidade americana dos anos 50, diz que os
profissionais liberais, foram os que mais se modificaram na passagem da antiga para a
nova classe média. Muitos deixaram de exercer suas atividades de forma independente
e passaram a condição de empregados. De possuidores de amplo conhecimento
transformaram-se em especialistas e suas atividades fragmentaram-se passando a
requerer complementaridade de atividades parcelares e rotineiras de outros grupos de
trabalhadores.
No setor saúde, os médicos, majoritariamente, ocupam espaços de decisão e
mantém certa independência no que diz respeito ao seu trabalho, sendo que poucos
dependem unicamente do assalariamento (PIRES, 2000).
O trabalho do médico tem conservado um caráter artesanal que nem mesmo a
incorporação de tecnologia ao setor conseguiu modificar. A divisão do trabalho não
criou interdependência entre os vários produtores, e a especializações vieram adicionar
novos procedimentos para a produção do mesmo produto qual seja, o diagnóstico e
instituição da terapêutica. Com esta condição o médico tem mantido certo grau de
autonomia e independência profissional, destacado dos demais e portanto melhor
remunerado (CAMPOS, 1994; PIRES, 2000).
No que diz respeito aos trabalhadores de enfermagem a maioria é assalariada e
apenas uma pequena parcela de enfermeiros atua de forma independente, fora do
trabalho coletivo institucional (PIRES, 2000).
Offe (1991) ressalta como característica distintiva dos serviços a dificuldade de
planejamento em relação ao custo/benefício uma vez que muitos serviços necessitam
estar à disposição da sociedade e há incerteza de quando as necessidades serão
219
demandadas, como é o caso dos serviços de atenção à saúde, dos serviços de proteção
e os de consumo em redes comerciais, dentre outros. Há incerteza em relação ao
volume, ao tipo, ao momento, e em relação às necessidades do cliente. Isso faz com
que o planejamento conte com dados menos precisos do que na produção material.
Esse mesmo autor destaca, ainda que, diferentemente do setor da produção material
industrial, onde produtos não rentáveis podem deixar de ser fabricados, muitos
serviços não podem parar, mesmo instituições que não são rentáveis economicamente,
como é o caso dos serviços de saúde.
Pires considerando a teorização de Offe (1991), aponta que nos serviços de
saúde, tem sido adotada uma série de medidas de racionalização, em nome da sua
viabilidade como a introdução de inovações tecnológico-organizacionais, a redução
quantitativa da força de trabalho, a redução da força de trabalho qualificada, a redução
de salários, a precarização das condições de trabalho, dentre outras.
Sobre o trabalho em saúde a referida autora coloca que o
trabalho em saúde é um trabalho essencial para a vida humana e é parte do
setor de serviços. É um trabalho da esfera da produção não material, que se
completa no ato de sua realização. Não tem como resultado um produto
material, independente do processo de produção e comercializável no
mercado. O produto é indissociável do processo que o produz; é a própria
realização da atividade (PIRES, 2000, p. 85).
O trabalho em saúde se origina do problema/necessidade apresentado pelo usuário ou
comunidade, gerando um projeto de atendimento, pensado, a qual requer um saber
tecnológico de um certo modo de saber fazer, que transformado em ação permite a sua
confirmação como produto. No trabalho em saúde estão implicados: o trabalho vivo, o
trabalho morto, a tecnologia, a produção, a necessidade, o consumo, a gestão (MERHY,
1997).
Merhy (1997) chama de ‘trabalho morto’ aquele existente em todos os
produtos-meios produzidos num trabalho humano anterior, que de forma cristalizada é
incorporado no trabalho vivo, de uma maneira distinta deste. O trabalho morto é o que
220
já está instituído e em boa parte comanda as atividades produtivas e criativas, que está
em ação, se dando, se instituindo.
O trabalho morto pode tanto ser um saber a operar na produção de bens como se
fazer presente enquanto uma ferramenta requerida no trabalho vivo. Em função desta
tese Merhy (1997, p. 84) entende que trabalho em saúde cria e incorpora uma dada
tecnologia que ultrapassa aquela representada pelo equipamento tecnológico qual seja:
um certo saber fazer e a um ir fazendo que inclusive dão sentidos ao que será ou não
a razão instrumental do equipamento”, tecnologia esta que o autor denominou como
tecnologia leve.
As dimensões tecnológicas que integram o trabalho morto têm uma
essencialidade e em função desta condição podem capturar plenamente o trabalho
vivo. “O trabalho vivo, nesta situação, sofre uma ‘captura’ de sua autonomia por
parte do que está dado, instituído” (MERHY, 1997, p. 85). Mas o trabalhador mesmo
que tenha o seu trabalho vivo capturado pelo trabalho morto, opera com um dado (..)
autogoverno que lhe dá inclusive a possibilidade de privatizar o uso deste espaço,
conforme o modelo tecno-assistencial, sem ter de prestar conta do que e do como está
atuando” (MERHY,1997, p.77).
O trabalho vivo estará sendo não só comandado por uma parte do trabalho
morto, contido no seu universo tecnológico, como também pelo modo como se
constroem socialmente as necessidades e as maneiras sociais de satisfazê-las. Quem
produz saúde o faz predominantemente para outrem, neste caso, fará isto com a
finalidade de troca por algo que então poderá ser usado para seu próprio consumo,
para satisfazer suas próprias necessidades, dinheiro, por exemplo. O usuário, por sua
vez, vai ao serviço de saúde em busca do consumo de algo, que se dá de imediato, ou
ações de saúde, cujo valor de uso fundamental e inestimável é o de permitir que sua
saúde seja mantida ou restabelecida, ‘um bem’ que lhe permite manter-se vivo e com
autonomia para exercer seu modo de caminhar na vida.
Assim, no trabalho em saúde, põem-se em contato produtor e consumidor, um
oferecendo algo como valor de troca e outro buscando algo como valor de uso,
imediato, em ato, diferentemente de um outro trabalho onde o mercado poderia mediar
o processo (MERHY, 1997).
221
E, no espaço intercessor, construído no momento da produção/consumo, entre
usuário e trabalhador, ambos instituem distintos formatos de necessidades que se
encontram, atuam como forças, se põem em jogo, em confronto nem sempre
conflituoso, negociam, expõem processos de captura que estejam sofrendo.
O processo de trabalho, em sua micropolítica (MERHY, 1997, 2003),
configura-se pois como cenário de disputas entre distintas forças instituintes, fixadas
no trabalho morto, e outras que operam no trabalho vivo, como por exemplo, as que
emergem do imaginário social. Micropolítica no/do processo de trabalho em saúde é o
que se instaura nos serviços decorrentes de alianças, acordos, disputas, entre pelo
menos três grupos heterogêneos de atores centrais, no conjunto das ações de saúde, os
usuários, trabalhadores e gestores, atuando ao mesmo tempo, jogando entre si, em
torno de modelos de atenção. Estes processos políticos normalmente se apresentam
como tecnológicos
isto é, são questões políticas que se realizam enquanto modos técnicos de
produzir os atos de cuidar, expressões das muitas possibilidades que os
projetos em jogo podem adquirir e das capacidades dos atores em cena
produzirem acordos e controles, nas situações em foco (MERHY, 2003, p.
18).
Os atores em jogo, frente ao que lhes é definidor no processo, negociam seus poderes,
ou (...) “potências capazes de colocarem e controlarem certos recursos essenciais que os
projetos exigem”. (MERHY, 2003, p. 24). Assim todos os atores governam, e com suas
capacidades de governar e disputar seus projetos, transformam todo o cenário.
Os profissionais de saúde por exemplo, podem estar interessados em si, em ganhos
financeiros e corporativos, mas tem reconhecimento, legitimidade, por se colocarem como
fazedores de atos de saúde. Mas, mesmo sendo detentores de um conjunto de saberes e de
modos de fazer atos em saúde, podem gerar diferentes processos, mais ou menos centrados
nos usuários, e por conseqüência as tensões e negociações serão diferentes.
Num ambiente de fábrica a revolução tecnológica decorre tanto da entrada em cena de
novas máquinas, como da busca ampla, crescente e constante da captura do trabalho vivo,
requerido pelo processo produtivo capitalista, o que implica na atualização e criação constante
de novos modos de gestão que possibilitem tal captura. No trabalho em saúde porém, as
222
questões apontadas acima se apresentam diferentes, em função da ocorrência do processo
‘quase estruturado’ que ocorre no espaço intercessor. Como a dinâmica
produção/consumo/necessidade é muito particular, estando sempre em estruturação, também
há certa incerteza sobre o padrão do produto final e sobre a satisfação gerada. A captura
global do auto governo nas práticas de saúde não é só muito difícil e restrita, mas
impossível pela própria natureza tecnológica deste trabalho (...)” independentemente se
realizada pelo médico ou outro profissional da saúde (MERHY, 1997, p. 98).
Na gestão dos serviços de saúde a atenção sobre as tecnologias do trabalho vivo em
saúde, constitui-se numa rica possibilidade para a gestão do processo de trabalho: encontra aí
a possibilidade de abrir fissuras, desconstruir o que está instituído, de questionar as condições
ético-políticas do que está cristalizado no trabalho morto. É fundamental refletir, questionar,
para enfim interferir nos modos como o trabalho vivo opera uma dada produção concreta.
Na produção teórica de Campos, (1994, 1997) defender a vida é o que assegura o
valor de uso do trabalho em saúde. Este autor trata de questões como autonomia/liberdade e
controle, formas de gestão democrática, trabalho clínico assentado no vínculo para
enfrentamento da alienação vigente nos serviços de saúde e produção efetiva de resultados em
defesa da vida.
Ao tratar da autonomia e responsabilização, Campos (1997) coloca a necessidade da
liberdade-responsável, que requer envolvimento dos agentes com uma dada tarefa. Este
envolvimento tem estado ameaçado, às vezes impedido, ou mesmo estado ausente, por
questões como as da inserção da saúde na lógica de mercado, pela forma de gestão vigente
nos serviços de saúde, por um certo modo de constituição do ‘ser’ profissional decorrente da
formação, a qual também nutre e se nutre daquela conjuntura. O trabalho em saúde degrada-
se, perde a capacidade de produzir qualidade de vida, nas instituições públicas e privadas,
quando a ênfase desloca-se do interesse da clientela para interesses financeiros, para a busca
prestígio e poder ou enreda-se no excesso de burocratização, na corporatização dos
profissionais da saúde.
Campos (1997) considera como uma das questões cruciais do trabalho em saúde a sua
organização parcelar. O profissional executa apenas uma parte do processo terapêutico, o que
acaba produzindo responsabilidades parciais, frente a um ser humano e sua problemática total.
Isto impede que o profissional, o cliente, a sociedade, reconheçam o autor e o resultado do
trabalho.
223
Schraiber et al (1999) ao tratarem da divisão do trabalho na área da saúde, colocam que
esta gerou a condição de complementaridade e interdependência dos diversos trabalhos
especializados. Quando a equipe é multiprofissional e os agentes possuem autoridades
desiguais, a tensão surge do embate entre a complementaridade e a interdependência e busca
da ampliação da autonomia técnica dos profissionais quando o requerido para a eficácia e
eficiência dos serviços seria a autonomia técnica aliada à articulação de ações.
A implementação de diferentes variações do taylorismo constitui uma outra vertente
de críticas relacionadas ao trabalho no setor saúde. Para Campos (1998), considera-se que a
democracia nos serviços de saúde se instala quando se viabilizam Conselhos de Saúde e são
realizadas as oficinas de planejamento. Isto mascara a condição de que no dia-a-dia os
serviços de saúde são governados por lógicas tradicionais de gerência, que implementam
diferentes variações do taylorismo. Ou pode-se encontrar
poder centralizado em chefes, controle direto da realização de
procedimentos técnicos (produtividades médica, etc) e sobre o
comportamento formal de funcionários (cumprimento de horário, relatórios,
etc), elaboração centralizada de programas e de normas reguladoras do
atendimento, e quase ausência de comunicação tanto entre serviços em
regulação horizontal de poder, quanto entre distintos níveis hierárquicos
(CAMPOS, 1998, p.865).
A normatização excessiva, a definição precisa das competências, impõe limites
à iniciativa, a criatividade, a improvisação por parte dos profissionais “cristaliza um
padrão de produtividade e desempenho muito aquém do necessário ou do socialmente
esperado” (CAMPOS 1994, p.118). O planejamento deve ser feito pela equipe,
definindo objetivos estratégicos, modos de alcançá-lo, de controlá-lo e avaliá-lo.
Campos (1997) refere-se ainda à disputa existente nos serviços de saúde entre as
propostas de cuidado/assistência generalista e a baseada na especialização. Considera
que no primeiro caso há o risco da transformação das profissões e dos especialistas em
técnicos polivalentes, com atribuições semelhantes, perdendo, na prática, a
especificidade. De outro lado, a especialidade encarregada de uma parte da
intervenção, não poderia ser responsabilizada pelo resultado global do tratamento. Os
resultados do modelo baseado na especialidade e na diminuição crescente da
224
capacidade de cada profissional resolver problemas, tem sido tratamentos cada vez
mais longos, envolvendo inúmeros especialistas, com custos crescentes, com mais
sofrimento e restrições impostas aos clientes e a uma perda da visão integral do sujeito
que necessita cuidados em saúde. Os compromissos passaram a ser indiretos, com a
saúde em geral, com a população, com o saber, com a coletividade, distanciando-se
dos sujeitos/usuários clientes ou parcela real da população.
7.3.2 CONEXÕES ENTRE O PROCESSO DE TRALHO EM SAÚDE E OS
DADOS
Os componentes das ‘condições e processo de trabalho’ instituído ‘para’ e
‘pelas’ ESFs, estiveram de maneira recorrente, relacionadas à temática do vínculo
no/do PSF. Algumas destas questões já aparecem quando se abordou o ‘PSF daqui’ e o
‘se fosse PSF mesmo’.
O modelo de atenção executado por todas as ESF foi o modelo biomédico.
Embora ‘firme e forte’ em torno dele emergiam as conflitualidades, as pactuações, as
alianças, envolvendo tanto os trabalhadores, quanto os usuários, os gerente e
gestores.
Franco e Merhy 2003 (p. 70), colocam que é certo que aspectos da
macropolítica, sociais, econômicos e políticos, definam em grande medida a estrutura
e organização dos serviços, mas “por outro lado, o funcionamento e o perfil
assistencial é dado pelos processos micropolíticos e pelas configurações tecnológicas
do trabalho, mediante os quais ocorre efetivamente a produção do cuidado à saúde”
(FRANCO e MERHY, 2003, p. 70).
Para Merhy (1997) a criatividade do trabalhador sempre pode ser explorada
para inventar novos processos de trabalho, abri-lo para possibilidades não pensadas,
especialmente quando se configuram fissuras nos processos instituídos, é possível sair
em busca de linhas de fuga. As fugas podem dar-se em direção a lógica que preside o
processo de trabalho, ou na produção das necessidades, na configuração tecnológica
do trabalho, etc.
225
Concordando com Merhy (1997, 2003) e Merhy et al (1997) Franco e Merhy
(2003), sobre uma dada conjuntura, a configuração do trabalho decorrentes de
processos que se instituíram, conseqüentes às disputas instituídas (ou não instituídas)
foi favorável à implantação do modelo biomédico.
Como ponto de partida se constrói um CS adotando uma planta física tipo
‘Posto’que privilegia espaços para consultórios, salas de procedimentos, de vacinas,
farmácia, sala de curativos. Esta estrutura não traz outros espaços, que ajudariam a
veicular a idéia de produção de novas formas de atendimento em saúde. As
enfermeiras por exemplo recebiam os usuários nos consultórios médicos ou em locais
vazios dos corredores, ou seja, espaços disponíveis no momento da procura do
atendimento. O CS não dispõe de espaço para atendimento de grupos (para consultas
coletivas, cuidados de grupos, para encontro com as famílias, grupos de saúde e outras
inúmeras atividades possíveis de saúde).
Em seguida a construção, ocorreu a montagem do CS, o treinamento dos
auxiliares de enfermagem e ACS membros das ESF. A SS do município contrata
primeiro as enfermeiras e lhes atribui estes papéis. Quando os médicos chegaram o CS
estava pronto, certas regras e funcionamento definidas. O trabalho iniciou portanto,
sem o envolvimento dos médicos na estruturação inicial do serviço/atendimento.
Quando o CS é inaugurado, passou a ser procurado por uma ‘multidão’ de usuários
que estavam sem atendimento em saúde (idosos, hipertensos, diabéticos). Os médicos
efetuam um mutirão de consultas, e as enfermeiras propiciam as bases para este
atendimento. Conversar, pensar, conhecer a comunidade, planejar ficou para depois,
quando a demanda acalmasse. Essa configuração inicial instituiu/validou o modelo
biomédico. Os profissionais, os gerentes e os gestores não levaram a cabo resistências
que dariam algum espaço para se fazer o ‘PSF mesmo’. Fechando o circuito que
possibilitou de instalação do modelo biomédico aparece à aprovação dos usuários e
dos políticos. A comunidade ficara feliz (vide capítulo 5, item 5.3) pois tinha agora
tinha um espaço onde podia aliviar seus ‘males’. Não tinha referências para exigir
outro modelo que não estivesse prioritariamente comprometido com ‘as doenças’. Se a
comunidade estava satisfeita também os políticos, que podiam contabilizar como saldo
terem propiciado um recurso tão fundamental para a comunidade.
226
Observei que na chegada de novos médicos e enfermeiras, em função dos
problemas de rotatividade, mesmo que o profissional tivesse o ‘perfil para atenção
básica de saúde’ e a experiência do ‘PSF mesmo’, logo estavam enquadrados nesta
forma de desenvolver o atendimento em saúde.
O grande guardião local do modelo biomédico de atendimento eram as
funcionárias da recepção. Elas tinham poderes ilimitados para expandir as agendas de
consulta médica, principalmente se percebiam alguma ‘ociosidade’ dos médicos, ou
seu envolvimento com ‘atividades pouco importantes’, como reuniões.
Os médicos por sua vez, embora sendo favorecidos pela sua posição
hegemônica tinham toda a obrigação de produzir consultas e se exauridos, como se
apresentavam às vezes, tornavam-se mal humorados, beligerantes, impacientes,
centros de conflito, ‘estragavam o clima’. Nesta condição tornavam-se mais
descontentes por não estarem fazendo o ‘PSF mesmo’.
As enfermeiras em caso de ‘mal’ andamento do atendimento médico (não havia
médico para atender, demorava, havia se instalado conflito impedindo o andamento)
recebiam uma carga maior do descontentamento dos usuários, dos AuxEnf e ACS,
além de ficaram sobrecarregadas com demandas dos usuários. Como seu trabalho
diferia do trabalho médico, já que distribuíam seu tempo entre a tomada de
providencias para viabilizar o diagnóstico e tratamento, para atendimento dos ACS e
dos usuários, para as atividades burocráticas, havia conflitualidades decorrentes da
‘falta do entendimento dos médicos sobre o trabalho das enfermeiras’. Outro ponto de
conflitualidade ocorria quando da ausência do médico (saíra mais cedo ou estava fora)
e a enfermeira não conseguia dar atendimento aos usuários (ex: não podia entregar
anticoncepcional se a receita médica estivesse vencida); as enfermeiras também se
ressentiam da ‘dependência’ dos médicos, já que se percebiam na condição de terem
de tomar todas as providências, arrumar tudo para os médicos trabalharem.
Outro grande guardião do modelo eram os usuários que se valiam de
denúncias, normalmente efetuadas por telefone, caso os médicos não estivessem
atendendo, houvesse algum conflito, ou o atendimento não estivesse fluindo. A SS se
valia de expedientes responder ‘as denúncias’ também por telefone, advertindo, o que
gerava apreensão e desconforto dos trabalhadores.
227
Desta forma a micropolítica do/no processo de trabalho instituído não se
constituía num ‘contorno’ ou conglomerado de situações e fatores humanos e físicos
em permanente interação e exercendo influência sobre o que ocorre), favorável ao
estabelecimento de vínculo (PICHON-RIVIÈRE, 2000).
Sendo o atendimento clínico (freqüentemente focado nas queixas/doença
diagnóstico e tratamento) a atividade predominante dos médicos, seus trabalhos
tinham como característica principal serem comandados pelo trabalho morto, já que
operado pelo saber instituído em resposta a um problema/necessidade biológico que o
usuário trazia. Assim, conseguia como produto diminuir o desconforto físico, prevenir
o aparecimento de novos sintomas ou progressão das doenças. Como o que construíam
eram predominantemente boas relações interpessoais (de valor incontestável) e
acolhimento (dirigido às necessidades produzidas pela queixa/doença) careceram da
abrangência das dimensionalidades previstas para o PSF, as quais permitiriam a
emergência de um trabalho que se cria, institui em ato, cuja meta é produção do sujeito
(individual e coletivo) com maior compromisso e co-responsabilidade na construção
de sua saúde e do sistema de saúde (local, municipal,..).
O trabalho das enfermeiras por ter um ‘núcleo’ menos delimitado, não
conseguia ser operado da mesma forma, com saberes já cristalizados, previamente
dados. O trabalho em ato requereu da enfermeira algo diverso do médico, pois o que se
apresentava era um volume menor de demandas ligado à queixa/doença, porém maior
em relação à viabilização de recursos facilitadores do diagnóstico e as demandas
provenientes dos ‘males’ (da fome em casa, negligência dos cuidado pelos parentes, do
ciúme, da infidelidade, da falta de finalidades na vida, da falta de dinheiro para
comprar os remédios que o ‘Posto não tinha’, da loucura do vizinho que não deixava
ninguém dormir, da tentativa de suicídio pelo desemprego, do filho usando droga, do
marido alcoolizado que batia). Para estas demandas não estavam disponíveis saberes
instituídos, fórmulas científica de pronta aplicação.
A tecnologia das relações que as enfermeiras usavam para operar o trabalho
vivo em ato (boas relações interpessoais, acolhimento prioritários das demandas
conseqüente à atividade médica, mas também a escuta, o aconselhamento,
encaminhamento dos ‘males sociais, da emoção, do espírito) também carecia de
228
dimensionalidades previstas no PSF (por exemplo da dimensão social da saúde,
cultural, política) também deixando de cumprir sua finalidade de construção de um
sujeito mais autônomo e co-responsável, de produzir atendimentos mais resolutivos.
Considero que as dificuldades das enfermeiras, em especial frente às demandas
conseqüentes aos ‘males’ dos usuários, decorriam em parte, porque não os
reconheciam (muito menos os médicos) como necessidades de saúde, em parte por
não estarem instrumentalizadas metodologicamente para tal, mas também em
decorrência de desenvolverem ‘vários processos trabalhos simultâneos’, de cuidado,
de gerência e de educação (LEOPARDI, GELBCKE, RAMOS, 2001) e em função dos
‘males’ não se constituírem efetivamente como foco de trabalho dos saberes e agires
da ESF como um todo.
Um outro aspecto a ressaltar, relacionado ao trabalho dos médicos e enfermeiras
da realidade estudada, decorria de se perceberem limitados em sua autonomia ou até
declararem sua inexistência, o que os impedia de fazer o ‘PSF mesmo’ e em
conseqüência desenvolver o vínculo requerido. Pode-se identificar esta condição em
várias de suas expressões: ‘dizem o que é pra gente fazer’, ‘se a gente tivesse mais
liberdade’, ‘se a gente tivesse maior respaldo’, ‘isso daqui é uma coisa fechada’,
‘tinha-se evitar a história de todo mundo se meter’, ‘tinha-se que respeitar as decisões
do Conselho’, ‘a gente está submetido a cobranças que nem sempre correspondem ao
PSF’, ‘são impostas restrições para a atuação das enfermeiras’.
A explicação desta percepção pode ser encontrada, em parte, nas condições
reais de trabalho, mas seriam tais condições responsáveis pelo todo do perceber-se
impotente, desenergizado, incapaz de se fazer algo além de obedecer? Ou também se
explicaria em função do aprisionamento do ‘sujeito’ construído sócio historicamente
pela modernidade, pelas forças políticas, pelas instituições organizadas sob o
paradigma neoliberal, a espreita da oportunidade de seqüestrar as autonomias ainda
disponíveis, aliadas ao processo de formação profissional e do próprio PSF que não
deu conta de capacitar os profissionais para o exercício de rupturas conforme referem
Merhy (1997, 2003) e Merhy et al (1997).
Nas colocações dos médicos e enfermeiras aparece a idealização de ver
respeitadas as decisões do Conselho Local de Saúde, embora este não tenha tomado
229
decisões capazes de produzir as mudanças desejadas (vide itens 5.3 e 5.3.3. do capítulo
5). Como os médicos e enfermeiras não participavam das reuniões (exceto da ESF
azul) intuíam que o ‘Conselho’ efetuasse tal produção.
A autonomia que reivindicam era plena, o que de certa forma também refletia
uma idealização, já que não tinham alcançado uma condição preliminar, qual seja, de
trabalho integrado, favorecedora do exercício da autonomia. Campos (1998) considera
não atingível o ideal da autogestão pelo risco de conduzir-se por interesses alheios ao
projeto idealizado. Defende o sistema de co-gestão onde todos decidem, neste caso
levando em conta o conjunto de interesses, recompondo desejos, em negociação
permanente com outras instâncias de poder. Controle e autonomia teriam graus sempre
relativos. Liberdade e autonomia existiriam em cotas, viabilizando espaços para
resistência, “para ludibriar ou até vencer imposições externas opressivas” (CAMPOS,
1998, p. 868).
Para Campos (1997, p. 230) o trabalho em saúde possui regularidades e
padrões repetidos mas também está sempre sujeito as imprevisibilidades. Lugares
diferentes, culturas diferentes, clientes diferentes, exigem medidas distintas e
diferentes processos de cuidar, mesmo quando se apresentam questões semelhantes. E
o “trabalho em saúde para ser eficaz e resolutivo dependerá sempre de um certo
coeficiente de autonomia dos agentes responsáveis pelas ações clínicas ou de saúde
pública” Porém a eficácia e resolutividade também requerem algum grau de controle
institucional, e neste sentido mesmo que estejam em posição antagônicas, autonomia e
controle precisam compatibilizar-se para o alcance da autonomia responsável.
Campos (1997) coloca que os trabalhadores de saúde mesmo sendo produzidos
pelo mercado, pelas políticas governamentais, pelo saber estruturado em disciplina,
pelas leis e pelos valores culturais de cada época não se encontram inteiramente
subjugados pois operam com relativa autonomia. São ‘construídos’ mas também
‘constroem’, já que também participam da construção dos saberes e disciplinas do seu
campo, influenciam políticas, participam da estruturação do mercado da doença, são
tradutores dos princípios políticos nos modelos de atenção, além de influenciarem a
sociedade na definição de determinado valor de uso para a vida. Para este autor
230
(...) os trabalhadores de saúde operam com grau relativo de autonomia,
apesar dos constrangimentos a que estão submetidos. Em conseqüência, o
grau de alienação dos trabalhadores em relação ao objetivo (missão), objeto
e meios de trabalho dos sistemas de saúde pode variar conforme a
conjuntura e conforme a sua própria atuação como atores sociais que são. A
alienação não é um dado exclusivamente estrutural. (CAMPOS, 1997,
p.242).
E também para Merhy (1997, p 100)
na micropolítica do processo de trabalho não cabe a noção de impotência,
pois se o processo de trabalho está sempre aberto à presença do trabalho
vivo em ato, e porque ele pode ser sempre atravessado por distintas lógicas
que o trabalho vivo pode comportar (MERHY, 1997, p. 100).
Nesta realidade porém, os trabalhadores parecem não ter identificado como
poderiam exercer sua autonomia, constrangidos pela condução do trabalho no modelo
do ‘Posto’ (de saúde). Ratificam o trabalho como ‘Posto’ quando só conseguem
esboçar resistências ineficazes, de efeito questionável, como ‘surtar’, organizar e em
seguida boicotar os espaços de trabalho conjunto (onde exerceriam o pensar, a crítica,
a criatividade), reunir-se ‘clandestinamente’ para discutir salário, demitir-se.
Poderíamos adicionar um questionamento ao que diz Campos (1997) que os sujeitos
tanto são construídos, como constroem: poderá o ‘contorno’ ser imobilizador? Sendo
a realidade movimento, mudança, como propõe a dialética, as relações de
contrariedade, conflitualidades, de opressão (externa, interna ou ambas) precisarão ser
reconhecidas pelos próprios agentes envolvidos e pelos gerentes e gestores, para que
se dêem avanços qualitativos e não desagregação/deterioração do processo de trabalho.
Uma outra condição a destacar é a da produção da alienação, que inclusive está
ligada à percepção de falta de autonomia e um conseqüente certo modo de ‘sentir-se’.
Os médicos e enfermeiras da realidade estudada não estavam imunes de sofrerem
processos de alienação impulsionados também pela sua inserção num esquema de
trabalho produtivista, de pronto atendimento.
Em suas proposições Campos (1994, 1997, 1998, 1999) também se refere à
condição de alienação do processo de trabalho dos profissionais de saúde do setor
231
público. Para o autor, nos médicos isto se constata pelo desapego e não envolvimento
em relação ao seu local de trabalho, descompromisso com a cura completa e com os
determinantes de saúde e doença, resultando na desumanização progressiva da prática
médica e redução da eficácia. Mas a situação de alienação também se apresenta para
outros membros que compõem a equipe de saúde.
Campos (1994, p. 84) relaciona a produção da alienação à prática do pronto
atendimento e a acumulação de normas administrativas e padronizações técnicas. Ao
referir-se ao modelo de pronto-atendimento, centrado na ‘queixa-conduta’ coloca que
seu objetivo é estender o atendimento a um elevado número de pessoas de baixa renda,
atendendo com baixíssimo custo, dando também legitimidade política aos governantes.
Ou seja combina altíssima produtividade com baixos investimentos, produzindo
uma certa eficácia no alívio imediato do sofrimento individual (dor, febre
etc.) e na resolução de um certo padrão urgências (pequenas fraturas,
ferimentos, crises hipertensivas, etc.). Ou seja, é uma alternativa capaz de
dar conta apenas daqueles problemas passíveis de uma identificação
imediata e de um controle através de combinações tecnológicas de baixa
complexidade (...) (CAMPOS, 1994, p.83).
sendo que esse modelo não consegue utilizar todo o arsenal de noções e de técnicas
acumuladas pela prática clínica propriamente dita.
Já acumulação de normas administrativas e padronizações técnicas, que se por
um lado geram controle e regulamentação, por outro, acabam por retirar
responsabilidade pela criação autônoma e desregulamentada e se constituem como
mecanismos de produção de alienação dos trabalhadores de saúde.
Se o indivíduo não se sente ativo, envolvido, se não é estimulado a exercer
sua criatividade e tenderá a não se responsabilizar pelo objetivo final da
própria intervenção. Ou seja, pela recuperação do paciente ou pela promoção
da saúde de uma comunidade (CAMPOS, 1997, p. 234).
Ainda como expressão da alienação na realidade estudada cito a vigência de
constantes processos de adaptação a demandas dos usuários. Quando ocorriam fortes
232
demandas envolvendo aspectos sociais, emocionais, clínicos, por parte de usuários e
suas famílias em situação de crise, médicos e enfermeiras mobilizavam-se
intensamente, contextualizavam, discutiam, definiam ações numa perspectiva que
ultrapassava o eixo queixa/tratamento/diagnóstico. Com o passar dos dias o
envolvimento diminuía e voltavam-se ao trabalho executado cotidianamente. Como
estes usuários e suas famílias não conseguiam ‘dar conta’ de seus problemas sem
ajuda, voltavam a buscá-la no CS reiniciando o processo.
Outro aspecto importante para a realidade estudada diz respeito ao trabalho em
equipe multiprofissional. Peduzzi (2001) ao tratar deste tema caracterizou a existência
dos tipos de equipe, quais sejam equipe agrupamento e equipe integração. Como
critérios de reconhecimento de um e de outro tipo, a autora coloca que na equipe
agrupamento predomina comunicação do tipo pessoal, externa trabalho, não se
formula um projeto assistencial comum, mantém-se as diferenças técnicas entre os
trabalhos especializados, não há flexibilidade na divisão técnica do trabalho, há
autonomia técnica plena para alguns agentes e enfraquecimento (ou ausência) de
autonomia para outros.
No tipo equipe integração predomina a comunicação intrínseca ao trabalho, a
existência de um projeto assistencial comum, a flexibilidade na divisão do trabalho e a
autonomia técnica é interdependente. Por sua vez especificidades de trabalhos técnicos
especializados e as desigualdades dos trabalhos são constantemente são argüidas.
O padrão de trabalho nas ESF se revelou do tipo agrupamento, já que
predominantemente eram os indicadores deste que se evidenciavam. Várias expressões
de todos os integrantes das ESF se referiam à questão como as seguintes: ‘cada um
fica na sua’, ‘não se estrutura um trabalho coletivamente’, ‘aqui se fazem ações
isoladas’, ‘o trabalho é fragmentado do tipo que faz e acaba’, ‘não se cultivam relações
interpessoais’, faltam outros profissionais’. As ESF reconheciam o impacto destas
dificuldades no estabelecimento do vínculo do/no PSF.
Campos (1994, p.117) aponta que a “autonomia e ascendência do médico sobre
os demais praticamente anula a noção de equipe de saúde ou de trabalho
multiprofissional integrado. Não há integração possível a não ser a da
subordinação”.
233
Para Franco e Merhy (1999, 2003) as mudanças promovidas no setor saúde têm
se concentrado em mudar a forma e estrutura dos serviços, através da adoção de
expedientes gerenciais como a territorialização e adscrição da clientela, porém
mantém o processo de trabalho médico-centrado que opera basicamente na produção
de procedimentos e não no cuidado. Mesmo que adote o modo ‘equipe
multiprofissional centrado’ como núcleo da produção de serviços, o que se apresenta é
a dificuldade dos trabalhadores de construírem um processo interativo, que articule um
‘campo de produção do cuidado’ em comum, onde se troquem conhecimentos. As
equipes estão tanto guiadas por uma conjunção prescritiva, como aprisionados em
seus ‘núcleo específico’ de saberes e práticas. Se ao contrário dispusessem de ‘um
campo do cuidado’ em comum, se construíssem a interação, teriam possibilidades “de
usar todo o seu potencial criador na relação com o usuário, para juntos realizaram a
produção do cuidado” (FRANCO e MERHY, 2003, p.119).
Para os autores citados e com os quais concordo, embora marcadamente os
médicos, todos os envolvidos na produção de serviços de saúde, precisam aprender a
trabalhar dentro de dinâmicas relacionais. É preciso ir além do cognitivo; a
solidariedade no interagir dos saberes e fazeres é condição necessária à constituição de
modelos assistenciais centrados no usuário. O que deve modificar-se são as
referências epistemológicas, destruir-se o núcleo duro de comportamentos
estereotipados, estruturados. Os sujeitos precisam mudar, na direção de novos valores,
de uma cultura e de comportamentos baseados na solidariedade, ética, cidadania e
humanização na assistência, para que possam protagonizar mudanças.
A expressão multidimensional das necessidades de saúde, sejam elas
individuais ou coletivas, o conhecimento e as intervenções sobre o complexo objeto -
processo saúde-doença de indivíduos e/ou grupos, requer múltiplos sujeitos para
darem conta da totalidade das ações, demandando a recomposição dos trabalhos
especializados, com vistas à assistência integral. A mera alocação de recursos
humanos de diferentes áreas não garante tal recomposição. Ações isoladas, ações
justapostas, sem articulação, não permitem o alcance da eficácia e eficiência dos
serviços na atenção à saúde. Para tal é necessário utilizar-se da interação entre os
agentes envolvidos, buscar o entendimento e o reconhecimento recíproco de
234
autoridades e saberes e da autonomia técnica. O trabalho em equipe é o trabalho que se
compartilha, negociando-se as distintas necessidades de decisões técnicas, uma vez
que seus saberes operantes particulares levam à bases distintas de julgamentos e de
tomada de decisões quanto à assistência ou cuidados a se prestar (SCHRAIBER et al,
1999. p. 233).
A solidariedade profissional deve estar (...) “presente na boa prática do
interagir fazeres e saberes e pode se mostrar eficaz na constituição de modelos
assistenciais centrados nos usuários”. Assim a solidariedade interna da equipe e a
sinergia das diversas competências são pré-requisitos para os desafios que as equipes
terão de enfrentar (FRANCO E MERHY, 1999, p.7).
Enquanto os trabalhadores não construírem uma interação entre si, trocando
conhecimentos e articulando um campo de produção do cuidado que é
comum à maioria dos trabalhadores, não se pode dizer que há um trabalho
em equipe (FRANCO E MERHY, 1999, p.7).
Nas questões abordadas acima vimos que é possível apontar para a sua
completa implicação com a gestão. Merhy (1997) explicita que o trabalho vivo em ato
tem dupla repercussão na gestão dos estabelecimentos de saúde (dobras): age tanto
sobre a definição da micropolítica de trabalho (gestão organizacional do processo
produtivo) como sobre a operação da produção de bens (gestão no espaço do
processo de trabalho). Fazer uma intervenção institucional, na direção da mudança do
processo de trabalho e dos sistemas de direção, implica numa complexidade muito
maior que a implicada na implementação de uma programação. Num centro de saúde,
dado a micropolítica do processo de trabalho, configura-se uma dada complexidade a
qual remete a gestão a outros processos ou aqueles que impliquem em
problematizar cabeças e interesses, em um processo institucional que atue
sobre a permanente dinâmica privatização/publicização dos autogovernos
dos trabalhadores (...); que deverão sempre buscar interrogações, no fundo
sempre ético-políticas, para poderem gerar processos de liberação, sobre o
sentido da ‘captura’do trabalho vivo em ato, pelas forças instituintes do
trabalho morto, que está cristalizado nos meios de produção e no processo já
institucionalizado do modo de trabalhar (...) (MERHY, 1997, p. 99) .
235
Merhy (1997), aponta algumas possibilidades decorrentes do exame da gestão
do processo de trabalho em saúde tais como: o trabalho vivo ser considerado como
criador, construtor de processo tecnológicos capazes de enfrentar a temática das
necessidades; o trabalho em saúde ser considerado como lócus de auto- análise do que
se faz, como se faz, quem se faz, e com que finalidade; o trabalho em saúde sob a
ótica do trabalho vivo poder abri-se em seus segredos em torno das tecnologias das
relações, incorporando interrogadores dos espaços intercessores, em direção ao
compromisso com a vida.
Campos (1994, 1998, 1999) defendendo o envolvimento dos profissionais no
processo de gestão dos serviços de saúde, coloca que estes precisam, como pré-
condição, ter garantia de vínculo institucional, de forma que não se sintam subjugados
frente ao risco de demissão por critérios político partidários. Propõe um modelo de
gestão dos serviços de saúde o qual denomina de ‘Gestão Colegiada’, centrada em
equipes de saúde. Neste estilo de trabalho haveria encontros periódicos do coletivo de
trabalhadores, “onde se discutiriam necessidades de saúde, divisão de tarefas e papéis
de cada um, para em seguida, elaborassem-se planos, modelos de atenção, programas
e metas” (CAMPOS, 1999, p. 866).
Neste modo de gestão buscar-se-ia tanto a identificação dos trabalhadores com
sua obra, como também o compromisso com a produção de valores de uso em resposta
a demandas sociais. Para o autor sempre haverá antagonismos entre a missão básica
dos sistemas de saúde e os interesses corporativos das várias categorias profissionais,
entre diretores, coordenadores de unidade e seus colegiados, entre médicos,
enfermeiros, técnicos e usuários do sistema, em torno de modelos e programas de
atenção, divisão de trabalho, atribuições e responsabilidade. Sendo impossível
eliminar conflitos, contradições, polaridades, é possível criar espaços onde isto seja
trabalhado, considerando tanto os vários interesses como as várias racionalidades:
“discussão, negociação, explicitação das diferenças; porém sempre seguidas de
síntese operativas a serem colocadas em prática pelos trabalhadores” (CAMPOS,
1998, p. 869)
236
A supervisão externa teria o papel apoiador e agenciador de mudanças,
desempenhando papéis como analista do grupo, assessor de planejamento, instituindo
a reflexão crítica, a participação e a educação permanente.
Merhy et al (1997) alertam que é preciso ir além na gestão, enfocando-se a
forma de se operar no jogo de disputa dos distintos agentes, inclusive no modo como
conformam o espaço institucional
.
A gestão institucional seria toda a intervenção de governo que possibilitasse
‘publicizar’os processos de disputa e revelar a ‘contratualidade’ que os
agentes instituem entre si, definindo uma certa ‘cara’ instituída para o
serviço (Merhy et al, 1997, p.115).
Neste caso a informação de interesse efetivo teria de revelar para além da
funcionalidade ou teria de ser um a ferramenta que permitisse analisar o novo conjunto
de forças, disputas, o que se produz, como se produz, tanto em termos de relação como
de bens e produtos de saúde.
Os mesmos autores apontam que podem ser tentados arranjos institucionais que
atendam pelo menos três critérios, importantes no enfrentamento da alienação e no
alcance da missão dos serviços de saúde, combinando autonomia e responsabilidade,
atribuída aos profissionais. Esses critérios podem ser às vezes antagônicos entre si,
mas se constituem em aspectos gerenciais importantes. O principal critério para validar
um arranjo institucional é a capacidade de ‘produzir saúde’ do serviço ou da equipe;
um outro critério seria a viabilidade técnica, financeira e política dos projetos ou
arranjos acordados (dinheiro, armação político-institucional, saberes e meios); o
terceiro consideraria realização profissional e financeira dos trabalhadores da saúde.
Do ponto de vista prático seria desejável buscar-se sempre a máxima realização
possível dos três critérios."É necessário reaproximar os trabalhadores do resultado de
seu trabalho" (CAMPOS, 1997, p. 235). Isto pode ser favorecido pela utilização de
mecanismos que permitam o envolvimento/participação em novas formas de
funcionamento institucional, na reinvenção como possibilidade cotidiana,
comprometendo trabalhadores com a missão e os projetos institucionais.
237
Também adquire centralidade o desenvolvimento, a criação de novos
indicadores, avaliadores do desempenho, como possibilidade de dimensionar a
retribuição financeira dos trabalhadores de saúde. Uma fórmula com melhores
resultados, para alterar positivamente a subjetividade dos trabalhadores de saúde
(diminuição de conflitos, aumento do envolvimento com o projeto de saúde,
sentimento de valorização por sua contribuição), seria combinar salários fixos com
outras variáveis de pagamento, como gratificação pelo alcance de metas (CAMPOS,
1997).
Concluindo este diálogo entre dados e autores, que poderia ser ainda muito mais
amplo em função da multiplicidade de nuances e da complexidade que cerca o tema do
processo e condições de trabalho em saúde, é preciso mencionar que embora os
componentes tenham sido mencionados separadamente, eles são interdependentes, se
retro alimentam, configuram um todo num dado ‘contorno’, como no caso da gestão
do estabelecimento de saúde.
7.4 DIÁLOGO N º4: ÀS VEZES A GENTE CONSEGUE ESTABELECER
VÍNCULO
A intencionalidade deste quarto diálogo foi retornar aos autores para compor a
perspectiva do ‘olhar’ para o nculo, confrontando suas posições com os dados que
emergiram das ‘categoria às vezes a gente consegue’ (estabelecer vínculo). Para
facilitar a tarefa elaboro um quadro síntese com tais proposições, destacando no
diálogo aspectos que ainda não foram explorados ao longo do relatório.
Tanto em Pichon-Rivière (2000), como em Campos (1994, 1997, 1998, 1999),
em Merhy (1997, 1999, 2003) e Merhy e Franco (1999; 2003) como no próprio PSF,
foi possível identificar a presença de alguns elementos comuns que permitem
caracterizar posições à cerca do vínculo tais como: um modo de conceber vínculo, a
explicitação de suas finalidades, determinantes do vínculo, processo vigentes. No
quadro abaixo aparecem especificados estas referências.
238
QUADRO 36: SÍNTESE DE PROPOSIÇÕES DO PSF E DE AUTORES
RELACIONADAS AO VÍNCULO
CARACTE-
RIZAÇÃO
PSF PICHON-RIVIÈRE CAMPOS MERHY e
FRANCO
O QUE É
VINCULO
Relacionamento
estreito/laços entre
profissionais de saú-
de e população ads-
crita
Estrutura de relação
especial
esta inclui um sujeito e
um objeto (ou o outro), a
relação do sujeito ante ao
objeto e a relação objeto
ante ao sujeito =
BIDIRECIONALIDADE
forma-se a partir de um
tipo particular de re-
lações.
deve possuir uma
intencionalidade clara
Ligação
deve ser estável,
duradoura
recriada no cotidia-
no,
É tecnologia leve
ou modo relacional
de agir (partir de
certos conheci-
mentos) quando da
produção de atos
de saúde (produção
de algo)
FINALIDA-
DES
Auxiliar na trans-
formação do modelo
assistencial biomé-
dico para o de
produção social da
saúde
auxiliar na trans-
formação do modelo
assistencial na
perspectiva do
alcance da univer-
salidade, equidade e
da integralidade
construção de com-
promisso e co-
responsabilidade
entre profissionais de
saúde e população
ampliar as responsa-
bilidades individuais
e coletivas na
promoção da saúde,
na prevenção, no
tratamento, e
recuperação das
doenças
humanizar as práti-
cas de saúde bus-
cando a satisfação
dos usuários
incrementar a resolu-
tividade no atendi-
mento em saúde
Estabelecer uma rela-
ção particular entre
sujeito e objeto
produzir uma gestalt”
e sua interpretação
produzir a trans-
formação do objeto
através da ação do
sujeito
Modificar os padrões de
relação dos profissio-
nais de saúde e
clientela
habilitar profissionais e
usuários a lidar com
constrangimentos do
contexto, e mesmo com
os limites impostos pela
realidade para cons-
truírem algo de que se
orgulhem
permitir que o paciente
exerça melhor seus
direitos de cidadania,
quando do conheci-
mento do nome, posto e
dos responsáveis por
ele
permitir ao profissional
exercer seu coeficiente
de autonomia em favor
de um projeto capaz de
produzir saúde, de
defender a vida
requalificar o exercício
da clinica voltada ao
eixo queixa/ conduta
permitir ao profissional
identificar sua ‘obra’
promover desalienação
permitir acompa-
nhamento do traba-
lho dos profissionais
tanto da gerência
como pela clientela.
Estabelecer rela-
ções próximas de
modo a favorecer
re-sensibilização
dos trabalhadores
para o sofrimento
do outro (individual
ou coletivo)
instituir um proces-
so de transferência
entre usuários
(individuais ou
coletivos) e traba-
lhador para cons-
truir, aumentar, re-
cuperar graus de
autonomia dos
usuários para ‘vi-
ver a vida’
dar sentido ao
usuário, no interior
do processo de
trabalho
diminuir a inter-
venção burocra-
tizada e impessoal
239
DETERMI-
NANTES
Formação
profissional
perfil dos profissio-
nais
capacidade de mu-
dança dos profis-
sionais
treinamentos, capa-
citações e educação
continuada
Condicionamentos, sim-
bolos, significados, cons-
truídos históricamente os
quais compõe uma pauta
de conduta inconsciente
condicionamentos em
relação aos papéis que o
sujeito desempenha
assumir ou não o papel
(is) de forma consciente
e voluntária
significação atribuída ao
processo
modo de ser do sujeito
campo psicológico favo-
rável (ou não)
Representações
construídas ao longo
de suas trajetórias
pessoais
formação
referencias sociais
pressões e constran-
gimentos das institui-
ções
Modelo tecno assis-
tencial adotado
pelo serviço e pelos
profissionais
micropolítica do tra-
balho em saúde
privatização x
socialização do
autogoverno
relação trabalho
vivo/ trabalho morto
PROCESSO
Cadastramento da
população adscrita
conhecimento da
realidade local
planejamento
segundo realidade e
com a colaboração
da comunidade
atendimento integral
e resolutivo com
apoio intersetorial
É acionada por
motivações psicoló-
gicas que ora são
internas ora externas
está em contínua for-
mação
a conduta relacional se
repete e que tende a
formar um padrão
fluxo em espiral dia-
lética
Relação de trans-
ferência e contra-
transferência contínua,
mediado por uma
representação do outro
presença contínua do
fluxo da subjetividade
pelo contato com as
dimensões físicas e
emocionais do outro
requer que a relação se
dê entre ‘sujeitos’
responsabilização do
profissional por deter-
minado número de
casos
requer autonomia para
criar e desencadear
mecanismos de
cuidados necessários
requer apoio dos outros
membros da equipe ou
de outros serviços de
saúde
Os usuários são
referenciados a
uma dada equipe
de trabalhadores
instala-se o espaço
relacional onde
ocorre fala, escuta,
interpretação acei-
tação (ou não) do
‘problema de saú-
de/necessidade’
confirmação ou ne-
gação da assis-
tência
confirmação (ou
não) da expectativa
assistencial do
usuário
O QUE
ATRAPA-
LHA
A formação profissio-
nal voltada para aten-
dimento da doença
falta de perfil de
alguns profissionais
resistências dos pro-
fissionais e de
alguns
gestores
Quando um papel não
é assumido conscien-
temente
quando o papel não é
resignificado
quando um dos dois
não acusa o impacto
do outro
Hiper valorização das
técnicas de objetivação
das subjetividades dos
clientes
degradação dos
usuários à condição de
objeto
descompromisso do
profissional com a
finalidade resultados de
seu trabalho qual seja à
produção do cuidado em
saúde (individual e
coletiva), da cura, da
defesa da vida
Desacordos, con-
flitos, disputas
permanentes em
torno do que são o
objeto e o sentido
das ações de
saúde pelos
sujeitos que se
colocam como ins-
tituintes nos pro-
cessos instaurados
240
Ao longo da apresentação e análise dos dados procurei traduzir e caracterizar o
alcance, as dificuldades, os impedimentos para o estabelecimento do ‘vinculo’ no/do
PSF. Frente ao conceito adotado as atitudes/comportamentos dos profissionais não
conseguiram evidenciar, quanti-qualitativamente, as dimensionalidades das relações
previstas para o PSF ou as dimensionalidades de humanização da atenção,
técnica/relacional, sócio-cultural, ecológica e política. Também não se produziram
como vínculo do/no PSF, já que não cumpriram as finalidades estratégicas previstas,
no sentido da mudança para o modelo de produção social da saúde.
Não estabelecer o vínculo do/no PSF foi decorrência de múltiplos fatores dentre
os quais:
a não produção de sujeitos profissionais para o estabelecimento do vínculo,
tanto em conseqüência de sua imersão, como sujeitos sociais, no paradigma neoliberal
vigente, como em função da insuficiência desta constituição, de ‘sujeitos do vínculo’,
em sua formação e posteriormente no PSF; por estarem inseridos num processo e
condições de trabalho que não os ‘permitia’ fazer o ‘PSF mesmo’; por não
conseguirem romper com o modelo de atendimento biomédico; por não terem
conseguido exercer sua autonomia e produzir rupturas no instituído.
Mas o olhar do pesquisador tem limitações e neste sentido busco ultrapassá-las
pela instrumentalização em outros olhares, embora ainda se apresente a limitação de
que é a pesquisadora que os interpreta .
Se a avaliação da realidade estudada pautar-se na leitura do que está ‘exposto’,
do que ‘aparece’ poder-se-ia concordar que médicos e enfermeiras estivessem
estabelecendo vínculo, já que implementavam uma tecnologia de relações (vide
quadros de componentes ‘pode-se estabelecer vínculo de várias maneiras mas não há
receita’; ‘o que pode indicar a construção de vínculos’; ‘os médicos na construção do
vínculo’; ‘as enfermeiras na construção do vínculo’; ‘os melhores espaços para
construir vínculo’, no capítulo 6). Quando porém se examina esse vínculo, a partir da
perspectiva dos autores, aspectos não aparentes evidenciam-se.
Pela ótica de Pichon-Rivière (2000), por exemplo, a finalidade do vínculo é a
estruturação de uma relação especial que permita a elaboração de uma ‘gestalt’ a qual
deve passar por uma interpretação. E, neste sentido o problema que se configurou é o
de que as relações estabelecidas não conseguiram ter este alcance, ou seja os sujeitos
241
em uma relação especial teriam de construir um todo (gestalt) voltado para o que
estivesse ocorrendo em termos da saúde do usuário (individual/coletivo) e este
passaria por um processo interpretativo frente a uma intencionalidade claramente
definida. Como na realidade estudada predominava o modelo biomédico, do tipo
‘pronto atendimento’, aliado ao princípio taylorista da produção e a conseqüente
organização parcelar do trabalho em torno da atividade médica, o que se apresentava
no espaço relacional já estava demarcado, isolado, capturado pelos saberes instituídos
(mais para os médicos e menos para as enfermeiras) e nestes termos de longe escapava
a finalidade do vínculo prevista por Pichon-Riviére (2000).
Tampouco o vínculo que os médicos e enfermeiras entendiam estar
conseguindo estabelecer alcançou as finalidades referidas por Campos (1997, 1998,
1999), Merhy (1997, 2003) e Franco e Merhy (2003).
Em Campos (1997, 1998, 1999) aparecem finalidades a serem alcançadas pelo
vínculo relacionadas aos usuários, aos profissionais, implicando ainda o serviço de
saúde. Para os primeiros haveria possibilidades de ganhos seja na questão cidadania,
terem outra forma de clínica, ampliada, humanizada, realizada por profissionais
compromissados com o cuidado, com promoção da sua saúde, com sua vida. Para os
profissionais as finalidades do vínculo referem-se a novas formas de condução das
atividades profissionais, com responsabilizações claras na produção da saúde, ‘re-
encantada’, desalienada. Em Campos (1997, 1998, 1999) as condições para que as
finalidades do vínculo possam concretizar-se não estão dadas, já que se produzem
‘com/a partir de’ uma forma de co-gestão que tanto possibilite participação, quanto a
autonomia e controle do atendimento em saúde.
Considero que a relação vínculo x gestão não tem recebido tratamento especial
nas formulações do MS sobre o PSF, o qual dá demasiada ênfase/peso ao papel dos
profissionais no estabelecimento de vínculo. Na realidade estudada talvez esta tenha
sido uma questão chave, definidora da forma como se construiu uma dada tecnologia
das relações. Ou superando certos constrangimentos oriundos da gerência/gestão, do
processo de trabalho (tais como discurso do modelo de atendimento ampliado x
requerimento de produtividade de consultas médicas e procedimentos, mudanças
introduzidas de forma vertical sem envolvimentos dos profissionais), e porque em
242
geral os médicos e enfermeiras tinham ‘perfil’ para o trabalho em atenção básica,
desenvolveram uma tecnologia de relações mais identificada com boas relações
interpessoais e acolhimento, configurando melhorias incrementais de atendimento no
modelo biomédico.
Em Merhy (1997, 1999, 2003), Merhy et al (1997) e Franco e Merhy (2003) o
vínculo também tem finalidades junto aos usuários, aos profissionais e serviços de
saúde. Estes autores referem-se à possibilidade de leitura do modelo de atendimento
que os serviços adotam, via interrogação das relações estabelecidas, pois estas revelam
aquele. Pode-se interrogar a capacidade de atender a demanda, a consideração pelas
necessidades de saúde, a eficácia e eficiência. Tais proposições permitem caracterizar
uma dada tecnologia de relações que se faça sem atingir as finalidades desejadas, que
não consegue ser o que o vínculo é, e outra tecnologia de relações que viabiliza as
finalidades esperadas, caracterizando-se assim, de fato, como vínculo.
A partir do que foi colocado, considero que os dados obtidos indicam a
impossibilidade da tecnologia de relações, adotada pelos médicos e enfermeiros da
realidade estudada, de poderem se caracterizar como vínculo, na perspectiva de
autores referidos, basicamente em função da ‘incompletude’ das ações indicadas. Ou
os profissionais efetuaram acolhimento, estabeleceram relações que se prolongaram ao
longo do tempo, demonstraram interesse pelo bem estar de sua clientela, empenharam-
se na resolução de questões trazidas pelos usuários. Mas esta tecnologia não consegue
ser vínculo de compromisso e co-responsabilidade já que não atinge parte das
finalidades suas finalidades, embora se pareça com vínculo. Então, não sendo este
PSF o ‘PSF mesmo’, ‘o vínculo que a gente consegue’ não é ‘vínculo mesmo’, pois
não tem potência para realizar a(s) finalidades (s) que se atribuem a ele nem na
perspectiva do PSF, nem na perspectiva dos outros autores envolvidos com esta
temática.
Em defesa do que dizem os profissionais, ‘que às vezes conseguem estabelecer
vínculo’, Pichon-Rivière (2000) coloca que os sujeitos estabelecem, simultaneamente,
relações vinculares diversas. Assim, em meio a um conjunto predominante de relações
que não expressam elementos para serem consideradas ‘especiais’/diferenciadas,
foram estabelecidas outras que permitiram aos usuários tornaram-se mais conscientes,
243
mais autônomos, mais participativos, mudarem, e em função disso estavam
‘caminhando, perdendo peso, estavam entendendo porque não precisavam se manter
dependentes de antidepressivos, estavam se organizando e se divertindo nos grupos
para minimizar a solidão que leva as pessoas à ‘inventarem’ doenças.
Há coincidência na posição dos médicos e enfermeiras e Schimith (2002),
Schimidt e Lima (2004) quando colocam que acolhimento e vínculo no PSF
demonstraram tanto realidade quanto desejo, quanto às vezes não ocorre (vide item
3.5.5 do capítulo 3).
Tendo claro que as realidades estudadas foram diferentes, considero que a
tecnologia de relações adotada pelos médicos e enfermeiras da realidade estudada
além de não alcançar certas finalidades do vínculo, apresentava uma carência de outra
ordem, agora de natureza quantitativa, pois aquele ‘vínculo’ (das finalidades atingidas)
ocorria com ‘poucos’, reduzindo desta forma, a chance ‘deste vínculo’ impor-se como
totalidade significativa.
Assim minha posição frente a esta realidade, difere da Schimith (2002)
Schimidt e Lima (2004) porque o que inferi dos dados produzidos foi a predominância
da parcialidade e por conseqüência a falta de potência da tecnologia das relações
estabelecidas cumprirem as finalidades que o PSF indica para o vínculo.
Considero um erro do MS ao apontar a vigência do vínculo em realidades do
PSF, conforme verificado no Relatório de Avaliação da implementação do
Programa Saúde da Família em dez grandes centros urbanos, já mencionado no item
3.5.6 do capítulo 3, ao fornecer dados que permitem apenas reconhecer uma
tecnologia de boas relações interpessoais. É preciso também considerar que houve um
incremento acentuado no número de ESF em vários municípios de País, resultando
num maior número de interações entre usuários e profissionais da ESF. Neste sentido
pode-se esperar uma maior produção de relações. Na realidade estudada o atendimento
em saúde chegou com as ESF e portanto uma gama de relações novas foi aí
constituída.
Retornando ao quadro apresentado, considero ainda importante destacar certas
questões mencionadas, ‘as determinações’, e ‘processo de estabelecimento do
vínculo’. Nos diálogos anteriores já foram abordados a influência do social e da
244
formação profissional sobre o modo dos médicos e enfermeiras constituírem-se, que
aparece no quadro, apontadas por Pichon-Rivière (2000), Campos (1994, 1997, 1998,
1999) Merhy (1997, 1999, 2003) e Franco e Merhy (2003).
Aspectos referidos por Pichon-Rivière (2000) como determinantes no
estabelecimento do vínculo são a motivação, o papel e status. Pichon-Rivière (2000)
refere que o vínculo é acionado por motivações psicológicas, que adotam um fluxo em
espiral dialética ora interno ora externo, que se alternam em suas posições. No PSF
estudado vimos que o ‘idealismo’, ‘saber o que o PSF quer’, ‘gostar do que se faz’,
‘acreditar que o PSF é lindo’ e ‘tem de ser feito lindo’ constituíram-se aspectos
motivacionais para o vínculo, referidos pelos médicos e enfermeiras. Quando se
confrontaram com as decepções advindas do PSF real passaram a experimentar
também desmotivação, ‘desernegização’; desejo de fuga (expresso na intenciona-
lidade de deixar esse trabalho desgastante); construíam respostas adaptativas frente ‘às
crises’ vivenciadas pelos usuários, tornavam-se mais ‘beligerantes’. As decepções
provenientes de eventos externos se internalizavam e as internalizações se
externalizavam. Pichon-Riviére (2000) coloca ainda a possibilidade de se instalar uma
conduta relacional mais ou menos fixa, com o outro sujeito da relação (usuário), em
função dos fluxos motivacionais vigentes.
Campos (1997) também trabalha com este obstáculo que ronda o vínculo, do
fluxo motivacional interiorizado/exteriorizado, enfocando o que se produz em função
das representações dos usuários e das motivações decorrentes dos condicionamentos
históricos dos profissionais, dos constrangimentos provenientes das instituições e em
função da centralização da gestão. Por certo que a realidade sempre impõe desafios,
reduz as fantasias e certo grau de insatisfação sempre estará presente, mas a realidade
também deve produzir/alimentar a motivação. O que colocam Pichon-Riviére (2000) e
Campos (1999) permitem que se ressalte a importância do papel das instituições na
composição das condições de motivação para se estabelecer vínculo.
Papel e ‘status’ também são determinantes do vínculo segundo Pichon-Riviére
(2000). No PSF os médicos e enfermeiras das ESF devem instrumentalizar o usuário
para o compromisso e co-responsabilidade, reduzindo em função desta nova condição
a assimetria das posições. Mantendo-se desempenhando os papéis tradicionais as
245
relações perseguiram finalidades restritas do modelo biomédico; não se abriram
perspectivas para novos objetivos do atendimento em saúde construídos em parceria
por vários atores. Os papéis mantidos não alteraram o ‘status’, do poder da cura e
tratamento do médico; ou o modelo biomédico manteve-se intocado.
Se usuário por sua vez continua a ‘receber’, ‘ ser conduzido’, ‘ser informado’,
‘orientado a proceder da forma definida’ pelo profissional, a relação de transferência e
contra transferência não se dá entre um sujeito profissional e um sujeito usuário
(individual e coletivo) já que este último mantém-se na posição de objeto (Campos,
1997). Pichon-Rivière (2000) ressalta que o que aparece no ‘outro’ elemento da
relação (que ele nomeia de objeto mas com sentido diferentes de Campos), depende
em boa parte da atitude do sujeito. Também sobre este aspecto Campos (1997) alerta
que quase nunca se inclui a produção de sujeitos sociais como um dos objetivos da
administração ou do planejamento.
E ainda, retomando Pichon-Riviére (2000), este autor aponta a influência do
campo psicológico ou contexto no qual se dão as interações. O contexto da realidade
estudada tanto demonstrou conformar ‘algo que se consegue estabelecer’, como o ‘o
estabelecido’ conformou um dado contexto. Assim, relações que se estabeleceram
ocorreram num contexto tempo/espaço/conteúdo estrurados e ‘quase totalmente
capturados’ na montagem das agendas, pela recepção, pela gerência/gestão, pelos
usuários. Por sua vez, tal captura produziu certa deterioração nos micro processos de
trabalho, denunciado crises, pelo desencantamento, pelo desmanche das equipes. Esse
contexto também compôs o mosaico das condições para que o ‘vínculo estabelecido’
não seja o ‘vínculo mesmo’.
Nestes termos concluo este dialogo efetuando ainda uma síntese do que foi
desenvolvido, onde refutei que médicos e enfermeiras ‘consigam estabelecer vínculo’,
do PSF ou implementar atendimento em saúde no sentido da mudança do modelo
assistencial. Frente à realidade estudada os médicos e enfermeiras não conseguiram
produzir em atitudes/comportamentos as dimensionalidades previstas pelo PSF, e
conseqüentemente não atingirem finalidades que o vínculo deveria alcançar. Os
usuários recebiam atendimentos dentro de enfoques delimitados, uma vez que não
podiam se apresentar com uma dada totalidade de seus ‘males’ (ou se podiam estes
246
não eram reconhecidos como objetos de intervenção ou a intervenção não era
metodologicamente conduzida para ser resolutiva). Assim os usuários foram inseridos
num espaço ‘parcialmente’ intercessor, conduzido por uma tecnologia de relações que
processava ‘parte’ das necessidades apresentadas. Desta forma o que podiam construir
eram compromissos e co-responsabilidades ‘parciais’, alcançar graus de autonomia
‘parciais’. Assim, na perspectiva da dialética, as insuficiências não permitiram que se
produzissem as progressões qualitativas demandadas ou as suficiências se mostraram
insuficientes (admitindo-se que insuficiências sempre se apresentarão).
7. 5 DE VOLTA AOS DADOS: O QUE TEM QUE TER/O QUE TEM DE
MUDAR
Conforme já colocado nos itens 4.2 e 4.3 do capítulo 4 deste relatório, a
dialética, como método, tem a finalidade de examinar uma dada totalidade social,
buscando captar seus movimentos, as implicações entre seus componentes, preparando
quadros explicativos que revelem as complexidades, a sinuosidades, conflitualidades,
envolvidas nesta totalidade. Mas tem também, como conseqüência da revelação da
concreticidade do real (nunca perfeitamente efetuada) e da construção de novas (e
intermináveis) sínteses, contribuir para aperfeiçoamento da práxis e da construção
histórica daquela realidade humano-social.
Muitas vezes não é preciso inventar formas/fórmulas/processos para este
aperfeiçoamento de uma dada realidade humano-social. Não é preciso porque elas já
têm existência, só que estão vagando, soltas, desabrigadas. É que elas não encontraram
escuta, atenção, receptividade, processamento e assim sendo, não conseguiram
constituir-se como possibilidades para o enfrentamento de que já se configura como
superado, para a ascensão a níveis crescentes de qualidade.
Um diagnóstico sobre o que é necessário mudar no CS, no processo e
condições de trabalho, na política, nos políticos e SS, no sentido de favorecer o
estabelecimento do vínculo no PSF ou fazer o ‘PSF mesmo’ já tinha existência e em
247
função disso se expressou nos depoimentos dos atores do vínculo quando se
pronunciaram sobre o que tem que ter/tem que mudar.
II TEMA - 4ª CATEGORIA: O QUE TEM QUE TER/O QUE TEM DE MUDAR
Quadro 37: componentes – na política, nos políticos, na Secretaria
Unidades de significado:
Versão dos médicos e enfermeiras
Transformava o programa daqui em estratégia. Se está implantado o PSF, se tem toda
aquela teoria, então vamos fazer bem feito
Secretário de Saúde, não deveria ser cargo político porque às vezes ele não tem a mínima
noção de saúde. Deveria ser alguém da saúde. Isso evitaria que se façam coisas que não
tem nada a haver com teu trabalho e que te estressam
Colocava as autoridades para aumentar a conscientização da população sobre o programa
Apoiaria todas as formas de controle comunitário. Fortificava as redes, o poder comunitário,
as escolas, as igrejas
Fortaleceria a participação do Conselho Local e Municipal de Saúde nas decisões de
aplicação do orçamento do PSF e fiscalizava a utilização
Um ponto fundamental para o PSF acontecer melhor é a supervisão da Secretaria. Deveria
estar mais perto, dividir mais, ouvir as dificuldades, levar nossas coisas, analisar, trazer de
volta, dar uma resposta. Lógico que eles não vão ter solução pra tudo mas ao menos a
gente saberia que eles estão se empenhando, tentando ajudar
Isso também é uma maneira da gente se sentir mais valorizada, pensar: puxa o pessoal está
preocupado com a gente, senão a gente fica jogada aqui e pronto, cada um faz como quer,
se não quiser não faz
Reduziria o número de famílias por ACS. Duzentas e cinqüenta, trezentas famílias estão
muito além da conta. Com número menor de famílias seria melhor para estabelecerem
vínculos
O PSF é um programa bastante complexo e poderia ter outros profissionais como o
assistente social e psicologia, pra dar uma atenção básica, ajudar a ESF
A Secretaria de Saúde do Município teria que apoiar mais a autonomia das equipes
Versão dos AuxEnf e ACS
Tem também está coisa de salário. Se o PSF é um só e vem lá de Brasília porque esta
diferenciação de salário entre os municípios? Isso não dá pra entender
E outra coisa é essa de vir aqui e falar que a gente não fez o serviço e que será conferido. A
gente quer isso mesmo. Eles acham que nós ficamos dentro de casa, fazendo produções
enganosas, que nós não fizemos nada
A comunidade considera a gente igual a eles. Agora aqui o negócio muda, aqui é da
Secretaria
Eles cobram cadastramento mas faltam fichas; depois a gente tem de fazer o trabalho
acelerado, se a gente não está em dia não é por nossa culpa
248
Não são feitas as coisas que precisam. É tudo política. Correm pra arrumar tudo bonitinho,
pra não ter rolo, pra chegar na hora ganhar um votinho. Essa que é a proposta
Privatizava tudo, o trabalho ia funcionar melhor, remunerava melhor, teriam de dar conta, se
serviço não fosse bem feito, no final do mês o dinheiro não vinha
Versão dos usuários
Mudaria na Secretaria da Saúde, tirando um pouco o pessoal que trabalha lá dentro, que é
bastante, principalmente enfermeira padrão
As enfermeiras na Secretaria estão trabalhando em burocracia e não na linha de frente. As
comunidades estão precisando desse pessoal. É um exagero, muito oficial e pouco soldado
Aumentaria o diálogo da Secretaria com o CS. O médico da ESF amarela saiu por falta disto,
era uma boa pessoa, mas era nervosinho
Na Secretaria a gente fez reclamações, pegaram os nossos nomes, não deram o retorno
que prometeram, então isso aí é o que está falho
Mudaria os políticos, a Secretaria, pra cumprirem suas promessas, serem verdadeiros,
priorizarem a saúde
Destaco que neste conjunto de dados as sugestões de mudança não se
produziram estritamente enfocando aspectos relacionados aos médicos enfermeiras e
usuários. Os AuxEnf e ACS referiram o que tem de ter e mudar também com relação a
eles e sendo membros das ESF são co-construtores de vínculo.
O conjunto aponta que tanto médicos, enfermeiras, AuxEnf e ACS e usuários,
consideram que as mudanças devem ocorrer no macro, no meso e no micro contexto
para que se possa estabelecer e manter o vínculo requerido pelo PSF. Ou vínculo de
compromisso e co-responsabilidade só sendo “PSF mesmo”. Para os médicos,
enfermeiras, AuxEnf e ACS, a mudança básica é que o PSF funcione como estratégia,
saindo da forma engessada, decorrente da implantação como programa.
Alguns obstáculos teriam de ser removidos como falta de condições técnicas
específicas das pessoas que ocupam o cargo de Secretário da Saúde, para que não
prometa o que não possa viabilizar, e não peça coisas ‘nada a ver’.
Outro obstáculo que teria de ser removido seria o ‘não saber’ o que o PSF é,
enquanto condição dos usuários, facilitando a aceitação de uma nova forma de
trabalho em saúde que não siga predominantemente a linha curativa, conhecida,
249
valorizada, reivindicada, pelos mesmos. Que se abram novas possibilidades para
também produzir a saúde.
O desmonte do modelo biomédico produtivista teria de ser feito do topo a base.
Ainda o controle social teria que ser forte, interferindo na gestão financeira, apoiando
o trabalho local das equipes.
A supervisão que está junto, ensinando, apoiando, valorizando o trabalho das
ESF e também garantindo que se faça ‘o certo’, são pontos destacados pelos médicos e
enfermeiras, no que tem que ter/tem que mudar.
Ultrapassar a capacidade dos ACS de cumprir sua agenda de visitas/controles/
acompanhamentos, pelo número excessivo de famílias pelos quais é responsável, não
favorece vínculos e tem de ser corrigido.
Os ACS enfatizaram mudanças que necessitam serem produzidas nas relações
com a SS, hoje negativamente avaliadas por eles. Se de um lado se sentem
valorizados pela comunidade, de outro lado se sentem sob suspeita e ameaça pela SS.
Considero que seja urgente a instauração do diálogo desta díade, pressupondo que os
ACS tem coisas pertinentes a colocar sobre suas dificuldades de trabalho, como de
cadastramento, excesso de famílias por ACS, insuficiência de apoio das enfermeiras
dado seu envolvimento com as funções gerenciais do CS. A SS além prevenir a
deterioração da relação, poderá avançar no sentido de apoiar o trabalho destes
elementos tão fundamentais no estabelecimento de vínculos no PSF.
Nas indicações dos usuários as mudanças priorizadas foram à necessidade de
uma política que assuma compromissos de fato e não de fachada, dando o afetivo
apoio à saúde. Novamente a SS entra em cena mais desta feita porque ‘parece
burocrata’, retêm mão de obra qualificada que falta na ‘linha de frente’, principalmente
enfermeiras.
Os usuários também indicam que a SS aumente o diálogo com os profissionais
e consigo. Vimos que ‘tem que ter diálogo’ (ou a falta de diálogo que tem que mudar)
esteve bastante indicado, mas suas nuances tem especificidades, dependendo de quem
efetuou a indicação.
250
CATEGORIA: O QUE TEM QUE TER/O QUE TEM DE MUDAR
Quadro 38: componentes – na questão dos recursos humanos
Unidades de significado:
Versão dos médicos e enfermeiras
Investiria pesado num Pólo de Capacitação
Os profissionais têm de estudar mais, talvez adotar grupos de estudo, de discussão,
resolvendo conjuntamente os problemas da comunidade, ao invés de particularizar as coisas
Deveria ter mais treinamento principalmente pro enfermeiro, pois com bom treinamento ele
prepara os agentes
Tem de dar abordagem de família porque é Programa de Saúde da Família, sem essa
fragmentação, pois a família chega aqui com suas demandas como um todo
Em política pública poderia ser abordado a social da saúde, o controle social da saúde,
sobre Conselho Local de Saúde
Via a questão salarial. Não é que a gente só pense nisso. É que de repente a gente vê que
poderia ser melhor, pra poder viver com dignidade, não só comer e pagar contas obrigatórias
Tem também a contratação. Trabalhar no PSF não é ruim mas também não tem muita
garantia, até quando tu vais ficar, tu não sabes o que pensar, daí muda a chefia, mudam os
políticos, então é isso, incerteza
Uma carga horária menor seria melhor para o vínculo com a comunidade
Versão dos AuxEnf e ACS
O ACS não tem tempo pra desenvolver a parte educativa com o enfermeiro em função do
problema do PSF segurar o Posto
Quando comecei a trabalhar aqui ouvi dizer que o ACS ia ter apoio psicológico, pela carga
que recebe, que na maioria das vezes é negativa.E esse lado psicológico até hoje não vi
nem comentar
O Secretário, o médico, o enfermeiro, ficam esperando os ACS levarem e trazerem muita
coisa, mas eles não recebem tanta coisa negativa como nós
Mudaria o relacionamento do enfermeiro e ACS pois quando ele está com ‘aquele humor’
descarrega tudo em cima da gente. Isso dá aquela injeção de desânimo na gente, aquela
vontade de pedir as contas
Precisava mais paciência: se a gente não está à altura daquilo que a enfermeira acha que o
ACS tem que ter, deveria ter mais consciência de falar com jeito com a pessoa, não ser
explosivo, não usar termo muito agressivo
A agente em si já se acha a classe mais inferior de todas, em relação ao médico e
enfermeiro, então eu pediria assim, que fossemos tratados com mais respeito, às vezes. E o
trabalho deveria ser um pouco mais valorizado
Versão dos usuários
Deveria ter concurso, ajudaria, ligava mais a pessoa no serviço, ela teria mais aquela
responsabilidade, pois sabe que ficaria trabalhando ali
Teria que ter mais uma motivação, está faltando, está esquecida por parte do poder público
Hoje por exemplo uma enfermeira é jogada num lugar e ali não tem um ambiente, algo de
melhor
251
A formação junto com a atualização e capacitação continuada, reaparece nos
dados agora como o que tem que ter, tem de mudar, considerando-se que foram
referidas como bases para o estabelecimento do vínculo requerido.
Neste conjunto há investimento a ser feito voltado para o ‘constituir-se como
sujeito’, ‘constituir-se em e na equipe’ pois ‘ser grupo’ não é um produto espontâneo
de convivência e, um investimento no modo de relação com os usuários (individual e
coletivo), enfatizando-se o preparo para as demandas da família que se apresentam
como um todo, e também em política pública. Considerar que no trabalho em atenção
básica se produz estresse, principalmente para os ACS, que convivem com as mazelas
advindas dos problemas dos usuários e das suas condições de vida, que também
recebem a carga negativa do estresse da enfermeira e, propiciar as condições para
reduzi-lo.
Tem que ter salário compatível com o trabalho desenvolvido e para se conseguir
pagar as contas da família e dos filhos, segurança no vínculo institucional, pois deixar
isto em aberto, desmotiva, gera sentimentos de ser provisório naquele local de
trabalho, de ficar a descoberta no futuro, quando se envelhecer.
A carga horária do trabalho teria de ser revista pois tem relação com a forma
como se comportam os profissionais quando estão muito cansados, repercutindo no
vínculo.
Os profissionais não podem ser jogados no serviço, sem nenhum conforto, sem
algo melhor.
CATEGORIA: O QUE TEM QUE TER/O QUE TEM DE MUDAR
Quadro 39: componentes – nas condições e processo de trabalho
Unidades de significado:
Versão dos médicos e enfermeiras
Informatizava o Centro de Saúde, tanto pra acesso das pessoas à tecnologia, como para
ajudar o PSF disponibilizando informações para a referência e contra referência
Procuraria não deixar faltar material, pois a gente se estressa com isso, pacientes se
estressam
Construiria uma sala pra enfermeira dar atendimento..., pra reunião
Outra coisa questão é a relação entre hospital e Posto, pra não ficar mandando carta e não
receber resposta do que está acontecendo com o paciente. O interesse é mais deles do que
252
da gente porque se eles fizerem isto vai descarregar o sistema
Colocaria mais especialidades médicas, aquelas menos complexas, dariam mais
resolutividade, evitaria a espera de meses nas filas
Colocava no CS alguém pra ajudar na administração
Não colocaria coordenação e supervisão como papel do enfermeiro, descentralizaria um
pouco a função talvez com o médico. Aqui o médico ajuda bastante, nos grupos, mas não na
supervisão e coordenação
É preciso programar coisas e fazer não é? Dar continuidade, não agir dentro dum faz e
acaba, faz e acaba, como descarga, tal qual feito pelo Ministério
Há coisas que estão começando que tem de continuar, tipo a possibilidade de construir algo
em comum. Agora a gente está tendo reunião das três equipes, discutindo um plano em
comum, isso é super importante, até pra acabar com os atritos internos, lavar a roupa suja,
criar propostas
Tem de se construir uma forma de avaliar junto com comunidade o resultado do nosso
trabalho
Versão dos AuxEnf e ACS
Tem que ter mais PSF e não ficar segurando o Posto. A gente não tem tempo pra debater
um caso, fechar a produção; a prioridade fica pras coisas do Posto
Sendo PSF teria que ter mais prevenção. A gente teria de olhar mais o saneamento básico,
os drogados, os desempregados, se a bebida dos pais está gerando violência, pois às vezes
é isso que causa a doença
Eu acredito que na saúde a gente tem que ter essa preocupação com as coisas da
comunidade, crianças na rua, meninas grávidas
Mudaria também o horário de trabalho da equipe do PSF. Eu colocaria dois turnos, pra ter
um médico das sete e trinta da manhã até as sete horas da noite. Depois das quatro horas é
difícil ter médico e se alguém vem buscar atendimento, nós não podemos fazer nada, a
pessoa sai achando que negaram o atendimento
Uma coisa que eu acho importante, pra melhorar, é que a enfermeira não tivesse que dar
conta do trabalho administrativo do CS e só cuidasse do PSF. Desta forma fica uma coisa
não muito dedicada ao PSF, pode ser porque ela não tem muito tempo
Há coisas que realmente faltam como a fisioterapia e a assistência para o paciente
verdadeiramente acamado
Eu mudaria mesmo é a incapacidade da assistente social de resolver as coisas. Todos da
equipe querem resolver as coisas mas dependem da assistente social
Investigava os casos, via as famílias mais necessitadas ou mais carentes e dava prioridade
Devia funcionar assim, pra consulta de especialidade, tinha de investigar cada caso, os mais
urgentes, aí botava aquela pessoa na frente
Seria necessário rever a farmácia básica do PSF. O essencial devia ter sempre
No quadro acima podemos encontrar vários pontos comuns nas indicações do
que tem que tem de mudar/tem de ter para se possa estabelecer vínculos na perspectiva
do PSF, que na realidade traduzem o desejo de que seja o PSF seja ‘PSF mesmo’.
253
Fazem-se referências aos medicamentos, especialistas e inclusão de novos
membros nas ESF.
Nas indicações dos médicos e enfermeiros destacam-se necessidade do trabalho
conjunto, da continuidade do trabalho, de apoio ao problema da referência e contra
referência e da necessidade de disporem de instrumentos para avaliação de seu
trabalho. As enfermeiras, que se ressentem com a falta de espaço físico para
desenvolver o atendimento em saúde, pelas responsabilidades burocrá-
ticas/administrativas e com a responsabilidade da supervisão da ESF, indicam
mudanças nesta direção, sendo que os AuxEnf e ACS também ratificam esta
indicação.
Se dados anteriores referiram a falta de preparo dos agentes ‘em coisas básicas’
‘pra que se possa realmente confiar’ aqui se aponta que a enfermeira não está
conseguindo dedicar-se ao PSF, não está podendo trabalhar muito com os ACS e seu
preparo, já que está cuidando mais do Posto.
Os AuxEnf e ACS destacam as mudanças que tem de ser feitas para resolver o
problema do ‘Posto tomar o PSF’. Esta condição causa prejuízos ao desenvolvimento
do cuidado em saúde já que não se está respondendo as necessidades globais da
comunidade ou impedindo que se faça ‘PSF mesmo’. A ampliação de horário de
funcionamento do CS, vinculada a presença do médico, seria necessária para evitar a
queixa de que está se ‘negando atendimento’; médico tem de estar presente para
atender. Se por um lado, no discurso, se reivindica atenção para ações na perspectiva
social da saúde, de fazer um PSF diferente, em oposição, para prática, ratifica-se
manutenção hegemônica do modelo biomédico.
Pelas críticas que os ACS fazem à Assistente Social de que o trabalho
‘empaca’, não é resolutivo, é feito no sacrifício, não é feito com base nas prioridades,
se pode perceber que os ACS ‘sofrem’ com a premência surgida na interface do social
dos usuários com a saúde. Considero que aqui também valeria um esforço no sentido
de integração, de conhecimento mútuo e negociação com o serviço social do
município, já que é possível supor que usuários e ACS compartilhem as decepções
pela ausência das respostas desejadas de assistência social. Percebe-se pela posição
254
dos ACS que a assistente social está sendo depositária da expectativa de resolução dos
problemas estruturais e conjunturais da população.
CATEGORIA: O QUE TEM QUE TER/ O QUE TEM DE MUDAR
Quadro 40: componentes – nas condições e processo de trabalho
Unidades de significado:
Versão dos usuários
Não mudava nada. Não tenho nada a reclamar, pra mim tá bom assim, porque todas as
vezes que eu vou lá elas me atendem bem
Aqui no Postinho sempre tem uns que reclamam mas, pra mim, pro meu marido, sempre tem
consulta, curativo, atendimento
Pode mudar,.. por exemplo, o humano.
Olha, pensando bem, o que eu queria era mais atenção, sou bem atendida, mas às vezes,
podia ser mais um ‘cadinho’
Pra ficar mais especial o atendimento, as pessoas deveriam atender com mais entusiasmo,
mais harmonia, com atenção verdadeira, com bom humor.
Eu mudaria a recepção, faria um trabalho com as funcionárias pra elas aprenderem a
trabalhar com as pessoas, começando pelas mais pobres
Mesmo no SUS o médico deveria usar um pouquinho de psicologia com aqueles cuja
doença é mais psicológica do que clínica
Eu não quero um médico só pra passar receita, quando eu converso estou botando pra fora
o que eu sinto e eles vão entender melhor o que eu tenho
Quando eu vou ao médico eu gosto que me escute, olhe pra mim, eu sou assim
Recomendaria que os médicos tivessem uma postura mais cautelosa de não julgarem sem
realmente ver o que se passa
Também tem a questão de privacidade, da porta ser fechada na consulta. As pessoas que
passam pelo corredor podem ouvir e isto é uma exposição. A hora da consulta é um
momento de intimidade, e eu não quero que os meus vizinhos saibam o que se passa
comigo
Eu acho que deveria continuar marcando consulta no dia ou de um dia pro outro. Não achei
boa esta mudança de liberar a marcação. A gente chegava cedinho, marcava até oito horas
se tinha ficha, se não conseguia voltava no outro dia; tava bom antes
Queria que tivesse ficha quando a gente fosse lá. A gente tem muita dificuldade de chegar
no Posto, o ônibus demora e quando chega não tem mais fichas para consulta
Eu acho que também deveria ser feita uma pré-seleção dos clientes, pelo enfermeiro, vendo
o que a pessoa está sentindo, dói o quê, o que tu acha disso ou acha daquilo
Muitas vezes a pessoa está com uma vida muito acomodada, parada, principalmente os
idosos, mas não só eles, aí começam a inventar problemas de saúde
Ajudaria mais ter mais enfermeiras para fazerem esta intermediação, assim não teria essas
coisas de se chegar no médico sem ter nada. Às vezes os médicos podem até tratar mal
porque atendem pessoas que não tem nada, falam nada, se queixam de nada, pedem
remédios que nem tomam pois aquilo nem é verdadeiro
255
A atenção poderia ser diferente: se a pessoa não está com novos problemas seria
importante atender, pra saber o que a pessoa vai querer, às vezes com uma conversinha
resolve
Acharia bom o posto aberto 24 horas, pois quando o posto está fechado acaba indo muita
coisa pra o hospital que não é de emergência
O Posto podia ter alguns serviços como rehidratação, aplicar medicação, lavagem gástrica,
observação. Não tem estrutura agora, mas quem sabe um dia
Deveriam diminuir o número de consultas por médico para que eles ficassem mais tempo
com os pacientes, conhecendo mais, já que é o médico da família, porque às vezes parece
médico da doença.
Se o médico tivesse mais tempo pra trabalhar com cada paciente eu acho que ele teria um
resultado bem melhor no final. Tem muitas pessoas que desistem por isso
Acho que a gente deveria poder escolher o médico e não se pode; sou atendida por médica
mulher mais confio mais em médico homem
Se eu pudesse escolher, não ofendendo os outros, eu queria a médica, ela é muito boa, eu
gosto mais dela, consultei com ela duas vezes
Eles tinham de cadastrar tudo certinho e botar os remédios pros três meses, pra cada
paciente; do jeito que está vem um pega, outro pega e daí acabam
Mudava a farmácia também porquê o problema não é que não tem remédio, eu vejo que tem
na caixinha, mas elas não querem dar mesmo
Centralizar o local de exames evitaria que a gente ficasse indo e vindo pra dar conta do que
foi pedido. Às vezes a gente está sem dinheiro pro ônibus e também perde tempo
E mais especialistas, porque demora demais
Uma vez fui fazer um exame e todos passaram na minha frente porque o meu exame era do
SUS, então isso é uma falta de respeito ao paciente do SUS; tinha de mudar isso
Os ACS poderiam encaminhar mais as coisas pra quem comanda, já que eles ouvem as
necessidades das pessoas e sabem das deficiências do Posto
Aqui o pessoal não faz tratamento direito, mesmo os hipertensos, os diabéticos e o trabalho
de orientação precisa ser muito bem feito
Acho que também tá tendo pouco trabalho na comunidade, deveria ter mais, de todos os
profissionais, principalmente do tipo orientação
No Posto devia ter também esta parte, da juventude. O psicólogo, o enfermeiro e o médico,
podem trabalhar em cima disto
Eu fiquei sabendo que aqui no Posto existe o Conselho Local de Saúde e eu gostaria de
participar, mas as reuniões são pouco divulgadas, tu não vê um cartaz avisando
Uma coisa que deveria ser mais divulgada são os horários das palestras, de encontros, de
coisas assim, que está tendo
Eu até não sabia que tinha um grupo de depressão. A ACS falou sobre isso e vai me
encaixar nele. Eu suspendi o Triptanol e preciso fazer alguma coisa pois já me conheço e sei
que logo a depressão vai chegar, me abala muito
A pessoa tem de ir atrás, sofrer, descobrir, até chegar onde as coisas estão acontecendo e
não precisava ser assim.
Já participei de reuniões; aquelas palestras delas eram uma beleza, eu não perdia uma.
Hoje tão paradas, tinha de voltar
256
Algumas respostas de usuários referem satisfação. Como as respostas foram
condensadas havia várias outras na mesma direção: de sentirem-se bem atendidos e
encontrarem o que precisavam.
A maioria das indicações de mudança dos usuários recaem sobre a forma como
se processam as relações, que se fossem estruturadas de um certo modo, favoreceriam
o vínculo na perspectiva do modelo biomédico. Esta opção pode ser facilmente
entendida porque os clientes deste PSF são os que tem queixas, os que têm doenças e
neste modelo encontram respostas às suas necessidades mesmo que não seja da
maneira como gostariam.
Existe uma relação que é ‘quase boa’ mas onde ‘ainda falta um cadinho’ falta
ser especial, ter mais psicologia, dispor de espaço pra colocar as outras coisas que
incomodam, que tem de ser ditas pra se entender o que se tem, onde não se façam
julgamentos, se aceite também os pobres e se feche à porta pros vizinhos não saberem
o que se passa com a pessoa.
Na mudança indicada os médicos não iriam mais parecer médicos da doença e
sim da família. As pessoas poderiam escolher o médico, ‘sem ofender os outros é
claro’. O médico teria menos consultas pra poder dar tempo pras pessoas e não pra
sair pra outro trabalho.
A enfermeira também deveria consultar, ver o que se passa, às vezes são
problemas de solidão, de não ter o que fazer, da vida estar vazia, aquilo de sempre,
mas que continua incomodando. Mesmo assim essa pessoa seria valorizada e este
atendimento seria tão importante como o da doença. Nesta relação todos os ‘olhares
seriam normais’, não haveria ‘fala pra cima de ninguém’ , não seria necessário ‘botar
a boca’, ou ter de ficar quieto pra poder ser atendido, nem seduzir ninguém com pão
caseiro.
A pessoa com uma dificuldade séria para vir ao posto poderia marcar consulta
por telefone e o nome dela seria colocado na lista, pois afinal, nesta mudança do
relacionamento para melhor, as pessoas e seus problemas seriam conhecidos,
confiariam umas nas outras. Teria ficha, teria remédios, os exames e os especialistas
não demorariam tanto. As pessoas seriam orientadas e acompanhadas pra fazer o
tratamento certo, pegariam só os remédios que iram usar, pra não faltar pros outros.
257
Todos poderiam aproveitar as coisas boas do posto, pois tudo seria bem divulgado,
como os grupos que não podem acabar. A juventude também não seria esquecida. Os
ACS teriam noção das coisas e quem atende no balcão estaria preparado para atender
bem os revoltados, dariam atenção especial aos que chegassem com problemas sérios.
Assim, neste sentido as mudanças seriam feitas pra ‘ser como as pessoas precisam’.
Ao concluir a apresentação do segundo tema ‘o vínculo que se requer tem
vários obstáculos’, considero que muitas questões do primeiro tema foram
recolocadas, numa outra roupagem, agora se referindo as dificuldades, os obstáculos e
as soluções para se estabelecer o vínculo requerido pelo PSF.
A construção do vínculo de compromisso e co-responsabilidade, transcende as
boas relações, inclui aquelas do ‘dever’ que advém do projeto que se assume, as quais
precisam ser resignificadas e somente nesta condição podem retro-alimentar as
subjetividades, reverter à alienação, despertar a paixão dos envolvidos.
O vínculo de compromisso e co-responsabilidade precisa de sustentabilidade
advindas do macro, do meso e do micro contexto. Os profissionais estabelecem o
vínculo mas não são os únicos responsáveis, como disserem os entrevistados: ‘tem a
parte do governo, dos políticos, da Secretaria e da população’. Evidencia-se como
fundamental a perspectiva da bidirecionalidade.
As opções sobre o que tem que ter/tem mudar, apontam caminhos mas é preciso
identificar se realmente o ‘novo’ que substituiu o ‘velho’, novo já permeado por
‘insuficiências, falseamentos, conflitualidades’, dispõe-se na perspectiva da ascensão
para um nível qualitativo ascendente ou ainda, se continuará aprisionado, imobilizado,
pelas forças que também o ‘pariram’ e não tem interesse que ele seja o que se dizem
que ele é.
258
CAPÍTULO 8
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Meu objetivo neste espaço será o de ressaltar ainda algumas nuances de certos
aspectos relacionados ao tema do vínculo e sobre o trabalho da pesquisadora em si,
tentando evitar incorrer na repetição do que já consta do relatório. Estas últimas
colocações não esgotarão o que se poderia produzir sobre o tema, já que é
interminável o processo de desconstruir o que está posto, reconstruí-lo enquanto
síntese, inseri-lo na realidade visando transformá-la.
Alguns conceitos como os de Pichon-Rivière (2000) sobre vínculo ser uma
relação especial com uma estrutura conseqüente, da tecnologia leve e sua possibilidade
de interrogação de Merhy (1997, 1999, 2003), Merhy et al (1997) e Franco e Merhy
(2003), de autonomia de Campos (1997, 1998, 1999) foram decisivos para a
configuração de uma dada totalidade.
Nesta totalidade explicitaram-se condições/bases interdependentes, inter
atuantes, perpassadas de contraditoriedades, de conflitualidades para/no
estabelecimento do vínculo entre médicos, enfermeiras e usuários.
Configurou-se que a tecnologia de relações precisava ser perpassada pelo que o
‘PSF é’, para também poder ‘ser o que deveria ser’ ou seja: um conceito que se
concretizasse estratégico, produzindo nesta condição mudanças na forma como se
oferecia o atendimento em saúde.
Configurou-se que o ‘PSF seria ele mesmo’ se o processo e as condições de
trabalho se dessem de forma a viabilizar o novo modelo de cuidado, ou modelo social
de atenção à saúde. Evidenciou-se que a gerência e a gestão, como integrantes da
259
‘situação’, favorecem o vínculo quando se colocam ao lado, como parceiras, apoiando
e valorizando os recursos humanos do PSF.
A formação profissional e aquela procedida no PSF se revelam implicadas em
suas insuficiências, tanto na construção dos ‘sujeitos’ como dos ‘técnicos’, já que os
médicos e enfermeiras mantinham suas condutas aprisionadas/imobilizadas tanto pelo
trabalho morto como por um trabalho que não consegue se expressar em sua
magnitude como trabalho vivo, pela sua parcialidade em relação às finalidades do
vínculo.
A política, os políticos, o Ministério (da Saúde) e comunidade complementam
o contorno do/no estabelecimento do vínculo dos médicos e enfermeiras com usuários.
Médicos e enfermeiras devem estabelecer o vínculo requerido pelo PSF mas
não são, como eles próprios mencionam, os únicos responsáveis para que ele se
estabeleça. Não podem porém se eximir de sua responsabilidade porque mesmo em
situações ‘hostis’ dispõem de um certo autogoverno no seu processo de trabalho,
conforme apontado por Campos (1997).
Enquanto a queixa/doença for o ‘carro chefe’ do atendimento da ABS, a
posição do médico se manterá hegemônica, o trabalho continuará sendo executado de
forma parcelar, médicos e enfermeiros, Aux Enf, ACS e outros elementos de apoio do
CS se manterão atuando como equipe agrupamento, desenvolvendo mais
procedimentos que construindo resultados, como referem Franco e Merhy (1999,
2003).
O que pareceu ser vitória para a ABS, posicionando-se enfim na condição de
desbancar o hospital (atenção secundária e terciária) do papel de responsável principal
pelo atendimento em saúde, parece não se confirmar quando se observa a realidade. O
modelo biomédico desenvolvido no hospital, mudou de endereço, instalou-se no CS,
na ABS. Tendo sido obrigado a uma certa adaptação para sobreviver, adota uma
versão ‘light’, possível em função da evolução da ciência, da indústria dos
medicamentos e equipamentos e do modo de saber/fazer dos profissionais; neste caso
paradoxalmente imobilizados dentro de antigos modelos de prestar atendimento em
saúde.
260
A ABS não conseguindo dar outra direcionalidade ao atendimento em saúde
mantendo-se aprisionada ao modelo biomédico. Ao mesmo tempo em que responde
aos interesses neoliberais, possui um discurso que justifica a versão do que consegue
ser: está efetuando vastas coberturas populacionais, está espalhado por todos os
municípios do país, diminuiu a internação hospitalar, reduziu a mortalidade infantil.
Mas em suas entranhas estão as contrariedades, as conflitualidades, as negações, os
interesses em jogo, sua incapacidade de dar-se como modelo de produção social da
saúde.
Para justificar o que foi dito considero que se deva voltar ao cotidiano. O
modelo biomédico parece ter êxito quando, por exemplo, os diabéticos, os hipertensos,
as gestantes, as crianças, passaram a ser acompanhadas, as complicações prevenidas,
as seqüelas adiadas, a internação evitada. Mas este brilho se ofusca, quando se observa
que aqueles usuários portadores de diabetes, de hipertensão, por exemplo, vão se
tornar consumidores permanentes de medicamentos por 20, 30, 40 anos. Às vezes, em
função do uso de múltiplos medicamentos, o usuário recebe tratamento do
‘tratamento’. Compareci a visitas domiciliares nas quais os usuários consumiam 10,
15, 18 comprimidos por dia.
A idéia de que o PSF seja um programa/estratégia para pobres, pode se agregar
uma outra, a de que o modelo biomédico seja o modelo de atendimento dos que ‘não
podem’ (por falta de condições econômicas, de formação ou de outro poder), das
massas, validados pelas várias instâncias do poder público cooptadas/subjugadas pelos
interesses das corporações regidas pelo interesses capitalistas, as quais buscam
sustentabilidade e lucros vitalícios no setor público.
Sim, porque mais e mais a saúde está sendo construída/alcançada sob novas
formas, respondendo ao desafio produzido em função das ‘morbidades’ do terceiro
milênio. Hoje a saúde está sendo construída nas academias de ginástica, nos SPAs,
através da terapia ortomolecular, na aplicação da ciência da nutrição, no consumo de
alimentos sem agrotóxicos, no usufruto do belo e harmônico que vem da arte, dos
cheiros, das cores, na harmonização conseguida através do budismo, do yoga, no
consumo da estética, na construção de auto-estima, no desenvolvimento da inteligência
261
emocional. A saúde está sendo produzida e consumida pelos que ‘podem’. A
obesidade é para as massas empobrecidas e trabalhadores que comem apressadamente
sanduíches nas lanchonetes; Aids é para pobres; pobres tem filhos na adolescência e
continuam a tê-los na vida adulta (os que ‘podem’, quando houver gravidez na
adolescência, será só na adolescência); os que ‘podem’ também tem stress mas tem
também recursos para gerenciá-lo. Os que não podem ‘estragam’ e vão para o
‘conserto’, sempre parcial, para toda a vida, já que eles também estão vivendo mais,
em parte como decorrência do arsenal terapêutico aplicado às doenças agudas. Os que
‘podem’ também ‘estragam’ mas estão em vias de alcançar ‘o conserto’ efetivo,
através da aplicação de tecnologias diferenciadas.
Nesta realidade de PSF (seria em outras também?) os médicos e as enfermeiras,
as funcionárias de recepção, os gerentes, os gestores, não validam o atendimento
voltado à saúde e em função disto confirmam a aceitação da missão dada pelo capital,
de oferecer predominantemente o modelo biomédico no atendimento aos que ‘não
podem’. O SUS tem a missão de proporcionar o atendimento segundo certos
princípios, dentre os quais o da integralidade, mas ao não dar conta de construir saúde,
revela-se sua pseudo-concreticidade.
López Gastón (1999) referiu que a tecnologia usada no atendimento em saúde
faz o emprego dos recursos emocionais parecerem arcaicos. Transpondo o que disse o
autor para a realidade investigada, o esforço do médico da ‘ESF verde’ em diminuir a
dependência da população no uso dos antidepressivos e a iniciativa da enfermeira da
‘ESF azul’, em criar um grupo de sofrimento psíquico, pareciam ‘arcaicos’ frente ao
imaginário de solução do tratamento, dos exames, dos encaminhamentos para os
especialistas e, frente à atitude dos outros colegas médicos imersos na tendência de
também ‘medicalizar a vida social’. O que vem a ser isto? Briceño-Leon (2003)
coloca que esta é uma tendência da sociedade contemporânea, de medicalizar toda a
vida social, já que interpreta e trata de atos da cotidianidade com se fossem
enfermidades (por exemplo à tristeza da perda de um familiar, o sofrimento pela
situação de desemprego, para agüentar a tensão em casa).
262
Assim, acredito que só o cuidado da saúde pode reduzir a hegemonia do
modelo biomédico. Num modelo de cuidado em saúde não estaria dada de antemão a
preponderância do médico no atendimento em saúde. Todos os saberes e agires
possíveis, disponíveis no grupo ou transladado de outros setores, teriam de convergir
para a causa ‘saúde’. Se o problema a ser cuidado visasse, por exemplo, à prevenção
da depressão e/ou das recaídas (problema expressivo na comunidade) ao médico não
caberia apenas prescrever, ao enfermeiro encaminhar para os exames solicitados, ouvir
e aconselhar, ao psicólogo buscar e tratar das causas emocionais. Todos os saberes e
agires estariam convocados e o cuidado se daria através de atividade física, da
mudança alimentar, através da criação de novos ‘insights’ acerca do processo vivido,
com cuidados relacionados ao sono, através de atividades de lazer e autovalorização e
se necessário, também teriam medicamentos. Tendo medicamentos nunca se chegaria
à condição que o modelo biomédico propicia hoje ou a facilitação da dependência
química nesta área. O trabalho, além de um atendimento individualizado priorizaria
também o trabalho de grupo e a produção seria igual para cada profissional, ou sejam
20, 30, 40 atendimentos em saúde. Não seria como efetuado na realidade estudada:
enquanto o grupo se desenvolvia sob coordenação de poucos profissionais, os demais
se dedicavam a tocar o trabalho do ‘Posto’. Este trabalho seria prioritário, contaria
como produção (se isto é a forma para se obter recursos); neste espaço não haveria só
autonomia mas também controle/responsabilização.
O que fazer com os que estão doentes? Não seriam atendidos? Esta resposta
teria de ser construída. Por certo ter-se-ia que levar em conta que o modelo biomédico
‘nesses tempos de doenças crônicas' não reduz clientela (ao invés, agrega); não
favorece novas formas de atendimento em saúde, não se mostra tão econômico quanto
alardeado e ainda alimenta a alienação dos profissionais, o antivínculo. Levando em
conta a realidade atual das vidas mais longas, este modelo também tende a
inviabilizar-se social e economicamente. Além da ‘clientela permanente’, agregam-se
novos usuários e então, maior necessidade de remédios, exames, médicos, médicos
especialistas, enfermeiras, burocracia, para fazer o sistema funcionar, sem que isto
263
resulte em incremento da saúde, em mais eficiência no atendimento, mais satisfação
dos usuários ou dos profissionais. Ou seja, percorrer um caminho já conhecido.
Entendo ainda que dois outros aspectos devam ser ressaltados, já que poderiam
ter impacto imediato nos micro processos de trabalho: são o trabalho em equipe e a
resignificação do vínculo. Médicos e enfermeiras chegam ao PSF sem terem aprendido
sobre trabalho em equipe do ponto de vista teórico, metodológico e prático. Porém eles
certamente aprenderam sobre tuberculose, hipertensão, saúde da criança e da mulher e
assim por diante. Então porque nas capacitações, nos treinamentos, se prioriza enfocar
o que já aprenderam (e por ter percorrido este caminho tem maiores condições de
continuarem a aprender por si). Trabalho de/em equipe é uma aprendizagem complexa
e se tem esperado de forma muito, muito simplista, que ocorra espontaneamente; isto
também acontece com relação ao vínculo. Considero que investir neste preparo teria
potencial transformador considerável no cotidiano do trabalho em saúde.
Procurei traduzir que os médicos e enfermeiras, tanto em função das influências
societárias, quando de sua constituição como ‘sujeitos’, quanto de suas formações
acadêmicas, não estão ‘prontos’, salvo exceções (preparo autodidata, forma de ser,
processos vividos), para estabelecer vínculo. Neste caso para que o vínculo do/no PSF
se estabeleça tem de introjetar-se/projetar-se de/como PSF, e esta condição precisa ser
criada tanto nos espaços de formação profissional, como no de atuação profissional.
Para se impor como ‘conceito estratégico’ requer tempo/espaço/condição, permitindo
aproximação, resignificação e apropriação pelos profissionais, envolvendo também
outros agentes que compõem o ‘contorno e a situação’ do estabelecimento do vínculo.
A preparação dos recursos humanos, coloca-se vigorosamente como prioritária
e neste sentido o trabalho do MS, fortalecendo os Pólos de Capacitação, Formação e
Educação Continuada, é essencial e contra-hegemônico. Os profissionais se tornam
sujeitos do vínculo, do atendimento em saúde, da instrumentalização dos usuários para
a autonomização, compromissados com a vida, quando estão se construindo como tal
e não por determinações e expectativas, as quais são frustradas em função de seus
‘alicerces’ terem outras conformações.
264
Tendo os dados apontado para a essencialidade, para o imbricamento da
gerência e gestão no estabelecimento dos vínculos entre ESF e usuários (individual e
coletivo) é importante destacar que estas também estão produzidas na lógica vigente
nos serviços de saúde, que também sofrem a captura do trabalho vivo pelo trabalho
morto, quando se adotam condutas pautadas em modelos superados de condução dos
recursos humanos; também sofrem processo de alienação. Neste sentido necessitam
também exercer sua autonomia, interrogar as tecnologias de relação que adotam, abrir
fissuras, desconstruir o que está instituído, dar novas conformações éticas-políticas ao
trabalho de gerência e gestão, dado sua responsabilidade frente aos recursos humanos
do SUS. Gerentes e gestores não somente ‘dirigem’; são também co-responsáveis pela
conduta, pela ‘nutrição’ da subjetividade e pela formação dos trabalhadores de saúde.
Ferreira e Mishima (2004, p. 213) referem-se à
necessidade de considerar os trabalhadores como sujeitos/objetos do
processo de constituição do SUS, ou seja, agentes que podem construir uma
outra conformação do sistema de saúde brasileiro ou (...) os recursos
humanos em saúde têm função primordial nas transformações possíveis, por
serem os mobilizadores das políticas e projetos institucionais.
As mesmas autoras (p. 219) dizem ainda que
para ocorrerem grandes (e possíveis) transformações é necessário envolver
dois fatores: o desejo, a vontade impregnada de “pulsão”, energia subjetiva
e, também, de um propósito construído conscientemente, domínio vinculado
à razão – a ciência.(...) não basta só a capacitação técnica. Necessário se faz
identificar, na gestão dos serviços, espaços mobilizadores para
transformação e estímulo, o imperativo, mas flexível/moldável às
características do ser humano
Quando os profissionais se sentem sem importância, trabalhando em coisas que
não tem ‘nada a haver’ com o PSF, pressionados pela demanda, guiados por normas
que não ajudaram a construir, estas percepções devem ser consideradas. Minha
posição neste sentido não é a de julgar ‘a verdade’ da realidade, mas apontar para a
265
existência destas percepções, pela magnitude de sua interferência negativa no
estabelecimento do vínculo do/no PSF.
Efetuo também algumas considerações acerca de como se deu o trabalho da
pesquisadora. O referencial teórico metodológico da dialética constituiu-se numa
referência constante, tanto para ‘olhar’ a realidade como para me conduzir na
elaboração deste relatório. As possíveis incorreções na sua aplicação serão certamente
explicadas por insuficiências que possa não ter superado; em nenhum momento
decorrente da não identificação com este referencial.
Como colocado acima, os autores Pichon-Riviére (2000), Campos (1994, 1997,
1998,1999) e Merhy (1997, 2003) Merhy et al (1997) Franco e Merhy (1999, 2003)
foram decisivamente importantes. Mas também em outros autores, que desenvolveram
trabalhos sobre vínculo, pude encontrar apoios importantes, como nos trabalhos de
Araújo (2001) Bettinelli (2002) tão explícitos na apresentação de uma tecnologia de
relações favorecedoras do vínculo. Nos trabalhos de Matsumoto (1999), Schimith
(2002), Fertonani (2003), Alonso (2003) e no relatório de “Avaliação da
Implementação do Programa Saúde da Família em dez grandes centros urbanos do
MS”, encontrei possibilidades de efetuar ‘insights’, de ampliar a compreensão do
tema pelo contato com o que já ‘haviam dado conta’ de identificar a vigência do
vínculo (ou não).
Minha maior dificuldade decorreu da configuração das dimensionalidades; li
inúmeras vezes publicações sobre o PSF e questionava sempre se o produto alcançado
traduzia efetivamente os requerimentos do mesmo.
Uma outra dificuldade que poderia apontar, foi o tempo de espera para
conseguir autorização da Secretária de Saúde do Município de São José para
desenvolver o trabalho, quase dois meses, sendo a agenda lotada a razão apresentada.
Foram enfermeiras, ex-alunas da Graduação em Enfermagem que me auxiliaram no
acesso à autorização.
No campo, a presença de duas enfermeiras, também ex-alunas e o acolhimento
sensível do médico da ESF azul, auxiliaram muito na diminuição do meu
266
estranhamento e dos trabalhadores e até dos usuários acerca da minha presença, no
entendimento da dinâmica do CS e por abrirem-se à investigação.
A negação do médico da ESF verde, de observação das consultas médicas me
deixou desconfortável parte do tempo. Pela convivência e aumento da interação
considerei que esta situação foi superada. De certo modo os dados das suas consultas
apareceram nos depoimentos dos usuários: adotava uma tecnologia de relações muito
valorizada pelos mesmos, ia ‘além da doença’. Foi esta sua justificativa para não
autorizar a observação referida: ‘trato de muitas coisas pessoais com os usuários e
quero garantir sua privacidade’. Os médicos da ESF azul e amarela demonstraram
tranqüilidade quanto a esta situação pois a observação só ocorria após autorização dos
usuários.
Os ACS e de certa forma os AuxEnf, deram contribuições não esperadas, não
planejada. Eles foram me ajudando a descobrir facetas não visualizadas, além dos
seus comportamentos me repassarem a percepção de estar incluída, de ser aceita.
Apesar de ter focado a investigação nos médicos e enfermeiras e isto se
constituir numa limitação do estudo pois o PSF trabalha com equipes, não considero
que os dados se configurariam diferentes, já que a equipe atuava como ‘equipe
agrupamento’, sendo possível de antemão visualizar a impossibilidade de vigência
estabelecimento de vínculo pelo conjunto.
Por fim, sendo este um estudo de caso, não poderia generalizar resultados. Mas,
em função de leituras efetuadas sobre PSF, de eventos científicos assistidos, do próprio
referencial da dialética (o todo está representado na parte e a parte tem de identificar o
todo) considerei que este PSF tem uma identificação importante com outros PSFs
brasileiros. Porém assumir esta posição não quer dizer que entendo que a realidade do
vínculo se configure de forma similar. Creio que o quanto se faça de ‘PSF mesmo’,
nuances do processo de trabalho, nuances das tecnologias de relações adotadas,
nuances na condução da gerência e gestão são o que revelam realmente as
conformações vigentes. Em conseqüência impõem-se para investigação novas
questões, tais como as que dizem respeito às realidades onde o PSF se estabelece
como estratégia. Neste caso como se caracterizaria o ‘ser relação especial do vínculo’?
Quais as rupturas que tendo sido instituídas permitiram que o vínculo fosse
267
estabelecido?. Em que medida uma configuração teórica diferente da adotada neste
trabalho possibilitaria resultados diferentes?. Então, a investigação aqui relatada está
inserida numa, dentre inúmeras possibilidades.
Como parágrafos finais do trabalho, reservo um espaço para destacar o que
colocam Franco e Merhy (2003, p. 83), com os quais concordo
Os trabalhadores de saúde, podem ser potentes dispositivos de mudanças dos
serviços assistenciais, mas para tal é necessário construir uma nova ética
baseada no reconhecimento que os serviços de saúde são, pela sua natureza,
um espaço público, e que o trabalho neste lugar deve ser presidido por
valores humanitários, de solidariedade e reconhecimento de direitos de
cidadania em torno da assistência à saúde. Estes valores deverão guiar a
formação de um novo paradigma para a organização dos serviços. Portanto,
para constituir um novo modelo, isso pressupõe a formação de uma nova
subjetividade entre os trabalhadores, que perpassa seu arsenal técnico
utilizado na produção da saúde. (...) ou acolhimento, vínculo/res-
ponsabilização e autonomização.
E ainda destaco, que é fundamental que se coloque que o vínculo não deve ser
visto à parte, em separado; constituir-se foco de um estudo não tem a intencionalidade
de considerá-lo independente ou de isolá-lo. O vínculo está incluído no conceito de
integralidade, sendo este mais abrangente, um princípio maior, um pilar de sustentação
do SUS, adotado na Constituição de 88, cuja perspectiva é a qualidade de atenção à
saúde.
A integralidade, segundo Campos (2003), requer abrangência de pelo menos
três níveis: de estruturação dos distintos estabelecimentos e organizações do setor
saúde; da garantia do acesso do indivíduo aos diversos níveis de atenção, primário
secundário e terciário (níveis de complexidade) e do modelo assistencial adotado,
propriamente dito.
A garantia do princípio de integralidade, em suma, implica em dotar o
sistema de condições relacionadas às diversas fases da atenção à saúde, ao
processo de cuidar, ao relacionamento do profissional da saúde com os
pacientes. Indivíduos e coletividade devem dispor de um atendimento
organizado, diversificado e humano (CAMPOS, 2003).
268
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APÊNDICE A : TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO MÉDICOS E ENFERMEIRAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
CAMPUS UNIVERSITÁRIO - TRINDADE
DEPARTAMENTO DE ENFERMAGEM
CEP.: 88040-970 - FLORIANÓPOLIS - SANTA CATARINA
Tel. (048) 331.9480 - 331.9399 Fax (048) 331.9787 - e-mail: nr@nr.usfc.br
Ao assinar este documento estou consentido em ser entrevistado (a) e observado (a) pela pesquisadora
Edilza Maria Ribeiro, que está realizando a pesquisa “Concretude e possibilidades do vínculo, estabelecido entre
profissionais da saúde (médicos e enfermeiros) e família, no Programa de Saúde da Família (PSF)”.
Esta pesquisa pretende contribuir dando maior visibilidade às relações que se expressam no contexto de
vínculo estabelecido entre profissionais da saúde (médicos e enfermeiros) e usuários (individual e coletivo), em
realidades do PSF e também, ampliar o instrumental teórico metodológico sobre tema em contextos de saúde.
Declaro na oportunidade que a pesquisadora prestou-me as seguintes informações:
1) Minha participação nesta pesquisa é de caráter voluntário e em caso de desistência poderei retirar este
consentimento em qualquer fase da mesma. Neste caso a pesquisadora compromete-se a destruir os dados
referentes a minha participação
2) Em caso de dúvidas sobre o trabalho, a pesquisadora fará, de pronto, os esclarecimentos necessários
3) Participarei do estudo sem obter benefícios ou ônus financeiros advindos do mesmo
4) Os desconfortos associados com a minha participação serão os relacionados da presença da pesquisadora nos
espaços de interação
5) O uso do gravador em situações de entrevistas e observação, necessárias para que não haja perda de
informação, será realizado após meu consentimento, omitindo minha identificação nominal
6) O material transcrito pela pesquisadora poderá fazer da parte do conteúdo da pesquisa
7) Os dados obtidos pela pesquisadora ficarão à minha disposição para exame e revisão durante todo o processo
de coleta de dados e elaboração do relatório de pesquisa
8) Se desejar interromper minha participação neste estudo poderei telefonar para Vera Lúcia G. Blank, fone 233
10 58/ 3319388 e ou Edilza Maria Ribeiro, fone 2 34 24 54 / 3 31 94 80, ou contatar pelo e-mail
Assino este consentimento livre e esclarecido, do mesmo modo que fazem a pesquisadora e sua orientadora, pois
nos comprometemos, igualmente, a atender as disposições acima descritas.
Florianópolis, ........./........../..........
Pesquisador principal ________________________________________
Pesquisador responsável _____________________________________
Assinatura do participante ____________________________________ RG: ______________
280
APÊNDICE B: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO-USUÁRIOS
Sou Edilza Maria Ribeiro, enfermeira, professora da Universidade Federal de Santa Catarina. Estou
desenvolvendo um projeto de pesquisa intitulado “Concretude e possibilidades do vinculo, estabelecido entre
profissionais da saúde (médicos e enfermeiros) e família, no Programa de Saúde da Familia”.
Esta pesquisa pretende contribuir dando maior visibilidade às relações que se expressam no contexto de
vínculo estabelecido entre profissionais da saúde (médicos e enfermeiros) e usuários (individual e coletivo), em
realidades do PSF e também, ampliar o instrumental teórico metodológico sobre tema em contextos de saúde.
Para conhecer esta realidade necessito observar e entrevistar pessoas que são atendidas no Centro de
Saúde do Roçado. Estou convidando você (s) para participar (em) deste estudo. Caso aceite(m) meu convite,
necessito que faça(m) sua(s) autorização por escrito, assinando este documento.
Assumo com você (s) alguns compromissos quais sejam:
1) Respeitarei a liberdade de aceitar(em) ou não o convite para participar da pesquisa. Caso mude(m) de idéia e
quiser (em) desistir, durante o andamento da pesquisa, os dados relacionados a tal participação serão destruídos.
2) Estarei, durante toda pesquisa, à disposição para responder suas perguntas e esclarecer sua dúvidas.
3) Consultarei você(s) sobre o uso do gravador antes de utilizá-lo. Fitas gravadas e anotações serão destruídas
tão logo os dados sejam colocados como parte da pesquisa.
4) A pesquisa não trará risco para vocês (s), embora minha a presença durante o(s) seu(s) encontros com o
médico e com o enfermeiro possam causar algum incômodo.
5) Os dados referentes a(s) sua(s) participação(coes) serão publicados mas seu(s) nome (s) ou dados que
possam identificá-lo (s) não constarão da pesquisa.
6) Sua (s) participação(ções) será(serão) voluntária(s), não havendo assim, pagamento para a mesma.
7)Solicitarei a você(s) que confira(m) e corrija(m) se julgar(rem) necessário, o que for escrito ou gravado
referente a(s) sua(s) participação(ções).
8) Você(s) poderão fazer contato, para tratar das questões mencionadas acima, por telefone e e-mail: ou
seja com Edilza Maria Ribeiro no telefone 2 34 24 54 /3 31 94 80; e-mail
edilzamr@linhalivre.net e com a
orientadora da pesquisa professora Vera Lúcia G. Blank, no fone 2 33 10 58 /3 31 93 88 e-mail
blank@nfr.ufsc.br.
Confirmando que recebi (recebemos )os esclarecimentos acima mencionados e aceito(aceitamos)
participar desta pesquisa assino(assinamos) este consentimento juntamente com a pesquisadora e sua
orientadora.
Florianópolis......../...../.....
Pesquisador principal __________________________________________
Pesquisador responsável _______________________________________
Assinatura do participante_________________________RG___________
281
APÊNDICE C: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO -
AUXILIARES DE ENFERMAGEM E ACS
Ao assinar este documento estou consentido participar de uma entrevista em grupo, efetuada
pela pesquisadora Edilza Maria Ribeiro, que está realizando a pesquisa “Concretude e possibilidades
do vínculo, estabelecido entre profissionais da saúde (médicos e enfermeiros) e família, no Programa
de Saúde da Família (PSF)”.
Esta pesquisa pretende contribuir dando maior visibilidade às relações que se expressam no
contexto de vínculo estabelecido entre profissionais da saúde (médicos e enfermeiros) e usuários
(individual e coletivo), em realidades do PSF e também, ampliar o instrumental teórico metodológico
sobre tema em contextos de saúde.
Declaro na oportunidade que a pesquisadora prestou-me as seguintes informações:
1) Minha participação nesta pesquisa é de caráter voluntário e em caso de desistência poderei retirar
este consentimento em qualquer fase da mesma. Neste caso a pesquisadora compromete-se a destruir
os dados referentes a minha participação
2) Em caso de dúvidas sobre o trabalho, a pesquisadora fará, de pronto, os esclarecimentos necessários
3) Participarei do estudo sem obter benefícios ou ônus financeiros advindos do mesmo
5) O uso do gravador, necessário que não haja perda de informação, será utilizado após meu
consentimento, omitindo minha identificação nominal
6) O material transcrito pela pesquisadora poderá fazer da parte do conteúdo da pesquisa
7) Os dados transcritos pela pesquisadora serão revisados por mim.
8) Se desejar interromper minha participação, no estudo, avisarei a pesquisadora Edilza Maria Ribeiro,
pelo fone 2 34 24 54 / 3 31 94 80, até o último dia útil de fevereiro de 2004.
Assino este consentimento livre e esclarecido, do mesmo modo como o faz a pesquisadora, pois nos
comprometemos, igualmente, a atender as disposições acima descritas
Florianópolis, ........./........../..........
Pesquisador principal ________________________________________
Assinatura do participante ____________________________________ RG: ______________
Assinatura do participante ____________________________________ RG: ______________
Assinatura do participante ____________________________________ RG: ______________
Assinatura do participante ____________________________________ RG: ______________
282
APÊNDICE D: ROTEIRO PARA ENTREVISTA DE MÉDICOS E
ENFERMEIRAS
1. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
1.1. Nome:
1.2 Faixa etária:
1.3 Categoria profissional:
1.4 Tempo de trabalho no CS do Bairro ‘Marrom’:
2. QUESTÕES
1. Poderia falar um pouco sobre sua trajetória (pessoal/profissional) até chegar ao PSF do
‘Marrom’?
2. Qual é sua avaliação do PSF enquanto concepção?
3. Qual é sua avaliação em termos da operacionalização do PSF no ‘Marrom’?
4. Qual foi o seu preparo para atuar no PSF?
5. No PSF está indicado às equipes que desenvolvam vínculos de compromisso e co-
responsabilidade com a população. O que seria isto para você?
6. Como os profissionais médicos e enfermeiras estabelecem vínculo no PSF?
7. Você consegue agir de acordo com aquilo que considera necessário para o
estabelecimento do vínculo? Poderia justificar sua resposta?
8. O que você citaria como dificuldades e como facilidades para estabelecer o vínculo
requerido pelo/no PSF?
9. Pertencendo a um CS que possui três equipes de PSF considera que estão construindo um
projeto comum de atendimento e vínculo?
10. Se você pudesse modificar alguma coisa no PSF ou nas Secretarias Municipal e Estadual
de Saúde, no Ministério da Saúde, para facilitar o estabelecimento de vínculo com os
usuários (indivíduos, famílias e comunidade) o que modificaria e porque?
11. Gostaria de acrescentar algo sobre o tema abordado?
283
APÊNDICE E: ROTEIRO PARA ENTREVISTA DE USUÁRIOS
1. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
1.1 Nome:
1.2 ESF adscrita:
1.3 Tempo de moradia na comunidade do Marrom:
1.4 Tempo de utilização do CS:
2. QUESTÕES
2.1 Poderia falar um pouco sobre o bairro do ‘Marrom’?
2.2 Em sua opinião, como evoluiu o atendimento em saúde no ‘Marrom’, especialmente com
a instalação do CS ?
2.3 O que é para você Programa de Saúde da Família (PSF)?
2.4 Quais são as necessidades e/ou problemas de saúde que as pessoas/famílias/comunidade
do ‘Marrom’ têm?
2.5 Considera que estas necessidades e/ou problemas que você, sua família e a comunidade
apresentam, estão sendo atendidas no PSF, no que se refere ao atendimento dos médicos e
enfermeiras do PSF? Poderia explicar a resposta?
2.6 Como você descreveria o seu relacionamento (e de sua família, da comunidade) com o
médico e com a enfermeira da sua ESF?
2.7 Hoje se espera que num atendimento em saúde as pessoas possam falar, perguntar, pensar
junto, tomar decisões em conjunto com os profissionais de saúde sobre aquilo que está
relacionado a sua saúde/doença, além de incluir questões ligadas à família e participar das
decisões sobre o serviço. Você considera que isto acontece quando está sendo atendido
pelo ......................(médico ou enfermeira)?. Poderia explicar sua resposta?
2.8 Na sua avaliação, existem diferenças na forma como médicos e enfermeiras atendem e
relacionam com as pessoas/famílias que utilizam o CS? Quais seriam?
2.9 O que ajuda e o que atrapalha o atendimento e o relacionamento entre médicos e
enfermeiras que atuam no PSF, com você, com outras pessoas/famílias?
2.10 O que vocês mudariam no trabalho dos médicos e enfermeiros no PSF do Marrom ou
no Sistema de Saúde para facilitar o atendimento e relacionamento das pessoas/famílias ?
2.11 Gostaria de acrescentar algo sobre o assunto da nossa conversa?
284
APÊNDICE F: ROTEIRO PARA ENTREVISTA (COLETIVA) DE
AUXILIARES DE ENFERMAGEM E AGENTES COMUNITÁRIOS DE
SAÚDE
1. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
1.1. Nome dos participantes:
1.2 Categoria profissional:
1.3 Tempo de trabalho no CS do Bairro ‘Marrom’:
2. QUESTÕES
2.1 O médico e enfermeira de sua área são conhecidos pelas pessoas/famílias da sua área?
Como este conhecimento acontece?
2.2 Quais são as necessidades e/ou problemas de saúde que as pessoas/famílias/comunidade
do ‘Marrom’ têm?
2.3 Consideram que estas necessidades e/ou problemas que os usuários apresentam
(indivíduos, famílias, comunidade) estão sendo atendidas no PSF no que se refere ao
atendimento dos médicos e enfermeiras do PSF? Poderiam explicar a resposta?
2.4 Como vocês descreveriam as relações do médico e da enfermeira do PSF com os usuários
(indivíduos, famílias, comunidade) de sua área ?
2.5 Em que diferem e em que se assemelham as relações estabelecidas entre as
pessoas/famílias/comunidade sendo o profissional médico ou enfermeira?
2.6 O que dizem de positivo sobre eles?
2.7 O que dizem de negativo?
2.8 Vocês recebem sugestões ou pedidos sobre outros serviços que o PSF/CS poderia
oferecer e não o está fazendo?
2.9 O que vocês mudariam no trabalho dos médicos e enfermeiros do PSF do Marrom ou no
Sistema de Saúde do município, do Estado ou no próprio PSF para facilitar o atendimento
e relacionamento com as pessoas/famílias?
2.10 Gostariam de acrescentar algo mais sobre os temas da nossa conversa?
285
APENDICE G: EIXOS ORIENTADORES DA OBSERVAÇÃO DE
CAMPO
Observar dimensões do vínculo do PSF materializadas quando da interação entre médicos e enfermeiras e
usuários ou seja:
Por parte dos profissionais:
expressões da dimensão humanística (escuta/atenção ampliada; aceitação e valorização do
problema/necessidade trazida pelo usuário (individual e coletivo); disponibilização de tempo para expressão do
usuário; possibilidade do usuário identificar a(s) pessoa(s) que prestam assistência (nomes em crachás por
exemplo); ser identificado e tratado pelo nome ou sobrenome; possibilidade de ser conhecido; inclusão dos saberes
do usuário no processo decisório sobre seus cuidados).
expressões da dimensão técnica (relacional): investigação ampliada; troca de informações; comunicação
dos insights, das inter-relações e interpretações emergentes da comunicação; proposição e participação na
construção de planos terapêuticos que inclua novas pautas de conduta para atender/apoiar o usuário em suas
interfaces com o processo de saúde vigente; responsabilização/respostas às necessidades apresentadas,
continuidade/ manutenção da atenção, resolutividade no atendimento.
expressões da dimensão sócio-cultural incluindo contextualização das necessidades de saúde do usuário
nas perspectivas familiar, social e econômica; resposta às necessidades dos usuários incluindo a perspectiva social e
o compromisso com mudança da realidade; reconhecimento do profissional acerca de suas posições, crenças e
atitudes frente ao universo cultural do usuário; abertura para os universos culturais dos usuários; consideração da
pluralidade de concepções sobre o processo de saúde-doença; posicionamento profissional de negociação entre
saberes e práticas culturais.
expressões da dimensão ecológica incluindo a atenção às condições do ambiente físico/social/emocional,
em que vivem os usuários, identificação de conhecimentos e comportamentos dos usuários que melhorem ou
degradem este ambiente, das relações entre ambiente e processo de saúde-doença e, acerca das possibilidades de
mudança que podem ser produzidas neste ambiente.
expressões da dimensão técnica política incluindo o reconhecimento de direitos e deveres dos usuários;
colaboração para que o usuário alcance níveis crescentes de compreensão sobre a inter-relação das condições de
vida e saúde; incluindo ações destinadas a promoção da cidadania do usuário e do seu compromisso com o serviço
de saúde (aumento da conscientização, da participação, do controle social).
Por parte do usuário:
colocação de suas dificuldades, necessidades, experiências, emergentes do processo de saúde-doença, em interface
com dimensões emocionais, sociais e culturais da família; participação na análise da sua situação e da construção
do seu plano terapêutico; envolvimento no processo interacional; apropriação de direito de participação e controle
social.
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