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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
CHOQUE IDEOLOGICO EM UM ESCRITÓRIO MODELO RURAL DE
ANTIOQUIA, COLÔMBIA. RECONHECIMENTO, IDENTIDADE E
SOBREPOSIÇÃO DE VALORES
SILVIA MONROY ÁLVAREZ
BRASÍLIA
MARÇO 30 DE 2006
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
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DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
CHOQUE IDEOLOGICO EM UM ESCRITÓRIO MODELO RURAL DE
ANTIOQUIA, COLÔMBIA. RECONHECIMENTO, IDENTIDADE E
SOBREPOSIÇÃO DE VALORES
SILVIA MONROY ÁLVAREZ
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social
como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Antropologia Social
Banca Examinadora:
Professor Doutor Luís Roberto Cardoso de Oliveira (Orientador), Universidade de
Brasília.
Professor Doutor Roque de Barros Laraia (Presidente Substituto), Universidade de
Brasília.
Professor Doutor Luiz Eduardo de Lacerda Abreu, UNICEUB.
Professora Doutora Ellen F. Woortmann, Universidade de Brasília.
Professora Doutora Kelly Cristiane da Silva (Suplente), Universidade de Brasília.
BRASÍLIA
MARÇO 30 DE 2006
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A Luis Cayón pelo que tem significado a sua existência na minha vida e na minha visão
da Antropologia
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Luis Cayón por todo amor e apoio que tenho recebido durante todos
estes anos. A vida é mais colorida desde que o conheci, e com ele viajei nos
pensamentos mas, sobretudo, nos sentimentos. Ao seu lado cresceu a minha paixão pela
Antropologia e pela vida “do jeito que a gente gosta de viver”. Obrigada porque você
sempre fez suas, com uma generosidade e paciência sem limite, as minhas dores,
minhas alegrias, meus triunfos e meus erros. Minha gratidão e amor serão para o resto
da vida, mesmo agora que estamos separados. Foi um prazer manter nossa maravilhosa
conversa durante tantos anos, durante tantos dias nos quais éramos somente nós dois.
Agradeço aos meus pais por sempre estarem ali, por entenderem as minhas
decisões e por me darem a liberdade de ser quem eu sou. Aos meus irmãos pela força
que me deram no percurso do mestrado, mesmo sendo pessoas de poucas palavras. À
minha avó porque sempre esteve comigo do seu jeito, achando que o Brasil estava tão
perto do seu sítio, como ela estava do meu coração. Aos meus tios por seu interesse nas
minhas vivências... Meu amor para todos eles.
Agradeço ao meu orientador, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, por ter me
acolhido quando cheguei da Colômbia na condição de aluna especial. Por ter tentado
entender as minhas idéias e por sua preocupação pelo meu aprendizado antropológico.
Aos professores da banca examinadora por seus comentários, especialmente à
professora Ellen F. Woortmann, pela sua sensibilidade etnográfica. Também sou grata
aos professores do DAN, especialmente Wilson Trajano e Lia Zannota, pois a clareza
dos seus ensinamentos foi fundamental na minha formação. Agradeço à Adriana
Sacramento e Rosa Cordeiro, pela disposição e por “torcerem” por mim. Não posso me
esquecer de agradecer aos meus professores da Universidad de Los Andes em Bogotá,
principalmente, a Zandra Pedraza, Monika Therrien, Jorge Morales e Carl Langebaek.
Agradeço à Universidad de Antioquia pelo apoio econômico e institucional.
Agradeço a todas as pessoas que fazem parte do Escritório Modelo da Universidad de
Antioquia por terem permitido o desenvolvimento de minha pesquisa, especialmente
Pilar Estrada, Águeda Torres, Luis Alberto Tangarife e o grupo de estagiários.
Agradeço a todas as pessoas de Fredonia que me deixaram conhecer parte de suas vidas
naquele escritório modelo e, no geral, sempre tentaram compreender as minhas
perguntas e a minha curiosidade.
Agradeço aos meus colegas Gloria Ocampo e Robert Dover por terem se
interessado no meu projeto. À Carolina Llanes Guardiola, uma excelente assistente,
porque sua ajuda foi fundamental para o desenvolvimento da minha pesquisa. Agradeço
a minha colega e amiga Aída Gálvez, não só porque ela sempre resolve as questões
burocráticas quando estou longe, mas porque ela tem chorado as minhas mágoas e tem
rido comigo do nosso cotidiano em Medellín. Sou grata por ter aberto as portas da sua
casa com tanta generosidade.
Agradeço à Priscila Calaf, Sônia Hamid e Anna Lúcia Cunha pela amizade. Sempre
me senti à vontade ao lado de vocês e aprendi muito. Vocês sempre estimularam meus
pensamentos com inteligência e sensibilidade. Agradeço pela generosidade,
amabilidade, palavras nos momentos tristes e alegres, conselhos, beleza, doçura e apoio.
O Brasil me conquistou através de vocês. Sou grata também por terem corrigido os
diferentes capítulos da versão da dissertação em português.
Agradeço a Laura Ordoñez pela amizade e pela força que sempre me deu nos
momentos mais difíceis do mestrado. Pelos meses de companhia morando na mesma
casa e, sobretudo, pela sua firme intenção de fazer meu cotidiano mais aconchegante.
Agradeço aos meus colegas de turma e todos os colegas da Katakumba, especialmente a
Carlos Alexandre Barbosa Plínio dos Santos. Agradeço à Cristina Dias porque a nossa
convivência me ensinou muitas coisas da vida.
Agradeço à Dona Maria Lopes, figura única, por ter me deixado morar na sua casa
abrindo um mundo extraordinário para o olhar etnográfico de uma antropóloga
estrangeira. Agradeço a ela, e a toda sua família, pelo carinho e amabilidade. Também
sou muito grata à Maria Lúcia Cardoso pela tradução. Finalmente, minha gratidão a
todos aqueles que não mencionei, mas que apareceram durante minha estadia no Brasil
e fizeram dela uma das aventuras mais fascinantes da minha vida. Obrigada.
RESUMO
Esta dissertação é resultado de uma etnografia realizada no Escritório Modelo
Rural de Fredonia, um município do Estado de Antioquia (Colômbia). A partir de cinco
casos, selecionados pela riqueza dos seus detalhes etnográficos, analiso o choque
ideológico que acontece entre dois sujeitos: o estagiário de Direito e o cliente. O choque
ideológico, que ocorre durante a consulta jurídica in situ e reúne as representações
desses dois atores, é analisado através de uma identificação de valores. Estes valores
podem - ou não - estar mais próximos a algum dos dois pólos ideológicos: holismo e
individualismo, desenhando múltiplas trajetórias nas quais os valores se opõem e
sobrepõem. Por sua vez, estes processos estão relacionados com o reconhecimento das
identidades dos atores, propósito último da consulta jurídica. Em suma, a idéia é ver a
integração dialógica dos valores nas interações complexas dos atores, permitindo
questionar a dicotomia moderno/tradicional. No primeiro capítulo, aparece a etnografia
do Escritório Modelo Rural através dos cinco casos selecionados. O segundo capítulo
começa com uma caracterização da estrutura social da região e segue com uma revisão
teórica sobre campesinato, fundamental para a identificação de valores proposta. Nesse
mesmo capítulo, a ênfase está na representação dos clientes, pois é a partir dela que são
identificados os valores honra, palavra, trabalho, terra, família e esperteza. O terceiro
capítulo fala da construção do perfil profissional do advogado que se manifesta em sua
representação pública - durante a consulta jurídica -. Neste contexto, a explicação da
oscilação entre indivíduo e personagem social é fundamental para entrar no tema do
reconhecimento das identidades complexas. Questiona-se também a transmissão de
valores como igualdade, liberdade e dignidade durante o exercício dos estagiários no
Escritório, o qual está relacionado com a idéia de que não há uma passagem definitiva
de honra para dignidade nos sistemas democráticos modernos.
PALAVRAS CHAVES: Camponeses-Colômbia, Antropologia jurídica, holismo,
individualismo, choque ideológico, valores, reconhecimento e identidade.
ABSTRACT
This dissertation is the product of an ethnographical exercise in the “Consultorio
Jurídico” (legal assistance office) in Fredonia, Antioquia (Colombia). Based on five
selected cases by their ethnographical details, it analyzes the ideological shock between
two subjects: the Law student and the client. The ideological shock happens during the
dialogue in situ and it involves the two actor representation. That shock is analyzed
through previous values identification. Those values are located between two
ideological poles: holism and individualism, and draw many trajectories where they –
values- could be opposed or superposed. Opposition and superposition are processes
linked to the recognition of actors identities, in my opinion, the deep purpose of the
dialogue in the context of the legal assistance office. In short, the idea is to see the
dialogical integration of values in the complex interactions between actors which, by the
way, allow us to criticize the modern/traditional dichotomy. The first chapter contains
the ethnography of “Consultorio Jurídico” based on the five cases selected. The second
chapter starts with the description of the social structure and continues with the
theoretical revision about peasants societies, which is so important to make the values
identification. In this chapter, the focus is the clients representation because is the
necessary step to identify values like honor, sworn/word, work, land, family and
sharpness. The third chapter tries about the construction of lawyer professional profile,
expressed in his public representation. In this context, the explanation of oscillations
between individual and social character is crucial to understand the recognition of
complex identities between social agents. Also, there is a debate about the transmission
–during the practice of legal assistance by Law students- of values such as equality,
freedom and dignity. This discussion is related to the idea that there is not a definitive
passage from honor to dignity in modern democratic systems.
KEYWORDS: Peasants-Colombia, Juridical Anthropology, holism, individualism,
ideological shock, values, recognition and identity.
ÍNDICE
Introdução........................................................................................................................1
Questões gerais e marco metodológico..........................................................................1
Problema geral e marco teórico......................................................................................6
Capítulo 1. Casos...........................................................................................................14
Caso 1: “Os 27 porquinhos”.........................................................................................16
Caso 2: Maria e a falta de consideração de sua patroa.................................................22
Caso 3: A terra de Dario...............................................................................................30
Caso 4: O desejo do divórcio........................................................................................36
Caso 5: A salvação de José...........................................................................................45
Capítulo 2. Ideologia Holista e a Estrutura Social da Região...................................52
Mineração, comércio e café..........................................................................................56
Honra, palavra, trabalho, terra, família e esperteza: valores de
uma ordem hierárquica.................................................................................................62
A performance da consulta e a superposição de valores..............................................69
Capítulo 3. Ideologia Individualista e a prática do Direito........................................93
O estagiário de Direito e os valores associados à sua profissão...................................96
A performance da consulta: indivíduo ou personagem social?..................................110
Reconhecimento, identidade e articulação de valores................................................121
Considerações finais....................................................................................................130
Bibliografia...................................................................................................................138
INTRODUÇÃO
Questões gerais e marco metodológico
Na Colômbia, os estudantes do último ano de Direito devem realizar um serviço
social gratuito que constitui um dos seus primeiros espaços de prática profissional. Os
escritórios modelo das diferentes universidades, públicas e privadas, atendem pessoas
que pertencem a estratos socioeconômicos baixos. Por outro lado, os trabalhos dos
Escritórios Modelo enquadram-se na pretensão universalista do livre acesso à justiça de
todos os cidadãos e, a partir da Constituição de 1991, começaram a ser vistos como
espaços propícios para incentivar os princípios da democracia participativa: equidade,
igualdade e dignidade.
O Escritório Modelo Guillermo Peña Alzate”, da Faculdade de Direito e
Ciências Políticas da Universidade de Antioquia (Colômbia), visa capacitar os
estudantes na prática do Direito, considerando sua função social, isto é, busca-se
estimular o sentido crítico na aplicação das leis em condições sociais próprias da
realidade colombiana e, da mesma forma, enfatiza-se uma projeção comunitária para os
estratos mais baixos. Além do espaço do Escritório Modelo Urbano, que está localizado
dentro do campus da universidade na cidade de Medellín, existe um Escritório Modelo
Rural. O objetivo deste programa é oferecer educação e assistência jurídica gratuita a
comunidades de escassos recursos econômicos em outros municípios. Atualmente,
realizam-se atividades de educação, assessoria, consultoria e trâmite judicial ou
administrativo de processos nas populações de Fredonia, Rionegro, Sepotrãn, El Retiro,
Santuario, Salgar e Liborina, no departamento
1
de Antioquia. Os estudantes de Direito
deslocam-se nos fins de semana para esses povoados e as prefeituras preparam um lugar
onde as pessoas se dirigem para fazer suas consultas jurídicas, o que também faz parte
do convênio com a Universidade que inclui – na maioria dos casos – gastos de
transporte e alimentação dos estagiários.
Esta dissertação é fruto de uma etnografia realizada no Escritório Modelo Rural
de Fredonia
2
, como parte do projeto “O Escritório Modelo e os novos espaços para a
1
N.T: Departamento é a divisão territorial da Colômbia que está submetida a uma autoridade
administrativa. Equivalente a
Estado
no Brasil. Optou-se por manter o termo original, em itálico.
2
Este município faz parte dos 23 que compõem o sudoeste de Antioquia (ver mapas, págs. 15-16), conta
com uma população de 24.000 habitantes, dos quais 8.000 vivem na área urbana e 16.000 na área rural; a
zona rural está formada por quatro
corregimientos
(Marsella, Minas, Palomos e Puente Iglesias) e 34
veredas (Secretaría de Planeación Municipal, 1991). A paisagem é altamente acidentada, destacam-se
montanhas escarpadas e cânions por onde correm diversas fontes de água. No entanto, predomina um
exploração na etnografia”
3
. Em tal projeto, dirigido por mim, propunha-se o
estabelecimento de uma série de “comunidades de conversação” em Fredonia, no
espaço destinado para que os estudantes do último ano de Direito fizessem sua prática
em uma zona rural do departamento. O objetivo principal do projeto era explorar e
analisar as possibilidades metodológicas da etnografia em um escritório modelo,
considerando a proposta de Jackson (1998) com relação ao potencial etnográfico de
contextos relativamente pequenos (minima etnographica) ou microcosmos que, no
entanto, tornam-se universos complexos graças ao poder que é atribuído ao diálogo e à
dimensão da intersubjetividade. A pesquisa realizou-se através das “comunidades de
conversação”, conceito trabalhado por Gudeman e Rivera (1990) entre agricultores e
que se refere a unidades que permitem diálogos entre sujeitos que pertencem a
diferentes grupos sociais – e tradicionais – já que se caracterizam por uma ausência de
limites que as valida como entidades produtoras e impulsoras de espaços de discussão
permanente. Ali, os pesquisadores procuram não se colocar autoritariamente no
contexto de um diálogo que costuma apresentar-se espontâneo e aberto porque,
exatamente, selecionam-se contextos onde acontecem esses diálogos e não se recorre ao
esquema pergunta-resposta que costuma limitar a experiência etnográfica. Isso não quer
dizer que seja um espaço livre de conflito, já que ali também podem ser mostradas,
reforçadas e desafiadas posições sociais através do próprio discurso e dos mecanismos
performativos ligados e ele; este é, justamente, o caso da consulta jurídica.
Gudeman e Rivera (1990) consideram que as conversas atuam, ao mesmo
tempo, como práticas e vozes (versões) que se unem em uma forma mais específica de
prática social. Eles, particularmente, tentaram observar como as falas interculturais
implicam deslocamentos e transformações entre o texto e a voz, o aqui e o lá, e o
passado e o presente. Isso se relaciona com a intenção de romper com a forma
tradicional de produzir um texto “acadêmico”, no qual muitas versões tendem a ser
clima ameno (entre 18 e 24 ºC) que corresponde a uma média de altura de 1500 metros acima do nível do
mar. A principal atividade econômica é a produção de café, que é combinado com outros cultivos
tradicionais como banana, milho e feijão. Também são cultivados cítricos, cacau e tomate como resultado
de diferentes planos de diversificação de cultivos propostos pos entidades do governo frente às crises do
preço do grão no mercado internacional, agravadas no final dos anos oitenta.
3
O projeto ganhou o Concurso do CODI (
Comitê para el Desarrollo de la Investigación
), Universidade
de Antioquia, para projetos de pequeno custo; a pesquisa durou oito meses, entre outubro de 2003 e junho
de 2004, e foi realizada no Centro de Investigaciones de Ciencias Sociales y Humanas (CISH). Por outro
lado, a proposta foi apoiada pelo
Observatorio del Estado y la Alteridad Sociojurídica
, que faz parte do
grupo de pesquisa Cultura, Política e Desenvolvimento Social da Universidade de Antioquia (Medellín,
Colômbia).
excluídas por conta de uma espécie de “congelamento” de todas as circunstâncias que
rodeiam uma aproximação cultural.
Como bem advertem os autores, o pesquisador tem o poder de “textualizar”
processos, reveste-se de sua autoridade como escritor – uma autoridade eminentemente
social – para congelar práticas de interação, o que parece ser inevitável. Assim,
evidenciar as influências dos envolvidos – principalmente o etnógrafo – torna-se uma
questão imprescindível. Neste sentido, Gudeman e Rivera (1990) trabalham os
conceitos de “vozes na terra” e “vozes no ar”; as intervenções dos que estão
conversando e que podem responder a interesses práticos do presente correspondem às
“vozes na terra” (é o conteúdo do dialogado in situ), enquanto as “vozes no ar” estão
relacionadas especificamente com as influências teóricas “textuais” que os próprios
pesquisadores envolvem no contexto da “comunidade de conversação” ao serem
partícipes desse espaço mas, sobretudo, quando fazem a análise da informação gerada.
No fundo, o propósito do projeto era unir dois elementos: “comunidades de
conversação” – metodologia – e Escritório Modelo – mínima ethnographica – em meio
a um experimento antropológico que, considerando múltiplas vozes, pudesse gerar
novas temáticas e perguntas de pesquisa. A fase de campo durou quatro meses – entre
outubro de 2003 e fevereiro de 2004 – e a equipe de pesquisa, composta por dois
estudantes de Antropologia e por mim, deslocou-se para a referida localidade nos fins
de semana, quando os estudantes de Direito atendiam a comunidade do município.
Desta maneira, estabeleceram-se várias “comunidades de conversação”, sendo a célula
básica – que coincide com a consulta jurídica in situ – aquela formada pelo estagiário de
Direito, o etnógrafo e o cliente. Coincidentemente, os estagiários se deslocavam em
grupos de três pessoas, o que permitiu que cada membro da equipe de etnógrafos
estivesse a par das tarefas adiantadas por cada estagiário.
Além da “comunidade de conversação básica”, outros espaços foram
considerados como “comunidades de conversação”, como as reuniões dos estagiários
com seu assessor que ocorriam a cada oito ou quinze dias na Universidade, as conversas
entre o grupo de etnógrafos onde se avaliava os avanços da pesquisa, as conversas com
os diretores e assessores do Escritório Modelo na cidade de Medellín, os diálogos da
“comunidade de conversação acadêmica” integrada por alguns membros do
Observatório do Estado e a Alteridade Sociojurídica – grupo de pesquisa que apoiou a
iniciativa –, e os diálogos realizados com alguns dos clientes do município de Fredonia
que foram considerados e denominados “conversações ampliadas”, já que sempre
dependeram da célula básica.
O grupo de estagiários designado para Fredonia, durante o tempo da pesquisa,
era formado por seis estudantes (dois homens e quatro mulheres) que deviam realizar a
consulta jurídica durante o tempo equivalente a dois semestres acadêmicos; a equipe era
coordenada e assessorada por um advogado titulado com 20 anos de experiência que,
não obstante, nunca foi docente formal. Nesse Escritório Modelo só podem ser levados
casos de pessoas que residem em Fredonia e que possam comprovar – através de recibos
de água e luz e do imposto predial – que pertencem a estratos baixos e, portanto, não
podem pagar um advogado. Os estudantes atendiam na Casa da Cultura do município
aos domingos, dia de feira no qual pessoas das diferentes veredas
4
se deslocavam para a
cidade. Embora atendesse uma média de 30 pessoas, muitas dessas consultas não se
tornavam um “negócio”, nas palavras dos advogados
5
. Depois de realizar uma consulta,
o estagiário emitia um parecer inicial, que logo era debatido na reunião do grupo com o
assessor; ali se decidia se o caso podia ser assumido e, ao ser assim, designava-se a
algum estagiário.
Os quatro meses de trabalho de campo, sob os critérios metodológicos
explicados acima, permitiram obter informação de casos jurídicos em diferentes etapas.
No entanto, é necessário reconhecer que foi impossível ver o desenvolvimento completo
de um caso jurídico (desde a primeira consulta até sua finalização) já que os casos que
se resolvem mais rápido demoram entre seis e oito meses, e outros chegaram a durar até
cinco anos sem atingir instância definitiva. De qualquer forma, é necessário mencionar
que as consultas jurídicas podem ser classificadas da seguinte maneira: (1) aquelas que
se realizam pela primeira vez e que, apesar de possuir a possibilidade de continuar com
algum procedimento jurídico, não passam dessa primeira consulta. Na maioria das
vezes, correspondem a casos que não podem ser assumidos pelo Escritório Modelo
6
; (2)
existem os espaços de consulta em que comparecem as pessoas cujos casos já foram
designados a algum dos estagiários e que se tornam visitantes assíduos, apesar dos
estagiários encarregados de seu caso não irem a cada quinze dias; nesta conjuntura,
4
Vereda é uma divisão territorial de caráter rural anexa ao município.
5
Quando as consultas tornam-se casos que são levados pelos advogados e os quais estão mediados por
procedimentos jurídicos, costuma-se falar de “negócios”. De fato, os estagiários costumam falar dos
negócios que eles estão levando quando se referem aos casos que lhes foram designados.
6
No Escritório Modelo não são tramitados restituições de bens por ativo, contestação de demandas,
litigiosos de menor ou maior quantia, trabalhos especiais, e constituições de partes civis em processos
penais. Tampouco se assume o trâmite de defesas penais perante fiscalizações, julgamentos ou inspeções.
procuram estar a par das mensagens que lhes são enviadas de Medellín. Por outro lado,
encontram-se (3) as consultas que envolvem pessoas que já fizeram sua primeira
aproximação, mas que não receberam uma resposta clara sobre se seu caso será
assumido ou não por algum estagiário. Muitos deles fornecem informação em várias
visitas e, embora considerem que já se iniciou um procedimento jurídico, tal segurança
não existe entre os estagiários.
Durante a fase de campo, levantou-se informação relativa a 51 casos
7
que
estavam em algum ponto de seu desenvolvimento. De uma perspectiva jurídica, os casos
que são presenciados em Fredonia podem ser classificados da seguinte maneira: (1)
questões trabalhistas, (2) questões civis, (3) questões de família e (4) questões
administrativas; não obstante, a maioria dos casos, segundo o próprio assessor dos
estagiários, agrupa-se nas três primeiras categorias; na primeira, destacam-se questões
relacionadas com indenizações, previdência social, associação a plano de saúde e
seguridade social, e jornadas de trabalho. Em questões civis, destacam-se os processos
de usucapião (tanto em zonas rurais como em zonas urbanas do município); nas
questões de família agrupam-se, na sua maioria, divórcios de acordo mútuo, questões
relacionadas com pensões alimentícias e partilha de bens (tanto pela via judicial como
pela via cartorial). Quanto às questões administrativas, ressalta-se a elaboração de
procurações e processos especiais de usucapião (os primeiros ocorrem com certa
freqüência e os outros são casos que se apresentaram em algumas ocasiões e que se
tornaram emblemáticos).
Nesta dissertação analisar-se-á a informação relativa a cinco casos que, apesar de
não apresentarem avanços notórios quanto ao procedimento jurídico, são aqueles sobre
os quais se obteve maiores detalhes etnográficos. Por outro lado, é importante assinalar
que também serão incluídos na análise fragmentos de diálogos que correspondem a
casos não selecionados, além de serem descritas algumas situações presenciadas durante
várias consultas jurídicas. Na introdução do capítulo dos casos estão explicitados, com
maiores detalhes, os critérios de seleção da informação que será analisada. Não
obstante, é necessário assinalar que os casos escolhidos reúnem os elementos
7
Inicialmente, realizou-se a seguinte classificação, com ajuda do assessor do grupo de estagiários: 10
casos de trabalho, 9 relativos a usucapião rural, 11 de partilha de bens, 2 relativos a pensão alimentícia, 2
casos de divórcio e 17 classificados como outros. Dentro dos casos classificados como outros, encontram-
se algumas procurações redigidas pelos estagiários, um mesmo caso consultado por três pessoas sobre
uma tentativa de ação popular que iria ser resolvida através de uma demanda, consultas para responder a
petições, embargos e roubos. Todos estes casos eram consultados e nenhum foi tratado em mais de duas
visitas.
fundamentais que caracterizam as consultas. Foi a riqueza dos detalhes etnográficos,
que se tornou ainda mais evidente durante a primeira textualização da informação, o que
permitiu pensar em um choque ideológico que estava latente nos diálogos entre usuários
e advogados.
De certa maneira, buscava-se entender porque as conversas fluíam em
determinados momentos, dando a impressão de que os atores estavam compenetrados, e
porque em outros era latente a tensão, a presença de um conflito potencial e as falhas na
comunicação entre as partes. Ao mesmo tempo, comecei a pensar que os eixos de
articulação dos discursos de cada ator remetiam a valores, que não podiam ser
entendidos como sendo “modernos” ou “tradicionais”, mas que estavam ligados a um
processo de reconhecimento mais complexo. Isto me levou a autores que possibilitaram
explorar a articulação entre ideologia, valores, identidade e reconhecimento. Para
terminar, é importante ressaltar que, embora a célula básica dialógica que me proponho
analisar seja a instância primária a partir da qual vão se construindo tanto o conflito
como as múltiplas trajetórias que se desenham em busca de sua resolução, esta
dissertação não trata das formas de resolução de conflito entre partes envolvidas em
pleitos jurídicos. Reitero que o foco deste trabalho são as representações e interações –
em muitos casos, conflituosas – entre dois atores sociais específicos – estagiário e
cliente – durante o contexto da consulta jurídica, o que me permite analisar determinado
tipo de relação social – e identidades, que denomino complexas – através da noção de
choque ideológico. Evidentemente, não descarto a possibilidade de que minha proposta
possa chegar a constituir-se um primeiro passo para trabalhar a questão de resolução e
conflitos, assim como tampouco descarto que meu trabalho possa ser entendido, em
outro sentido, como uma forma diferente de se aproximar do problema do camponês.
Problema geral e marco teórico
Como já adiantei, nesta dissertação proponho-me a analisar o choque ideológico
que ocorre no contexto do Escritório Modelo de Fredonia, através de uma identificação
de valores que tem como base fundamental a informação de cinco casos selecionados. O
choque ideológico a que me refiro ocorre especificamente durante a consulta jurídica in
situ e reúne as representações de dois atores: o estagiário de Direito e o cliente. Concebo
tal choque como resultado de uma conversação de conjuntos de valores aos quais
apelam os atores durante a experiência da consulta jurídica, e esses valores podem estar
mais próximos a algum dos dois pólos ideológicos estabelecidos por Dumont (1997)
[1997]: holismo e individualismo. Escolhi este caminho de interpretação, estimulada
pela idéia de ver a integração dialógica dos valores, centrada no que chamo interações
complexas, sob pressupostos teóricos que me permitam um distanciamento da
dicotomia tradicional-moderno. Na minha opinião, essa dicotomia pode se tornar uma
camisa de força quando são analisados fenômenos ligados a uma campesinidade
8
, que
também se torna evidente no contexto do Escritório Modelo Rural de Fredonia.
As noções de ideologia e de choque ideológico foram inspiradas pelas
caracterizações de ideologia de Dumont e Geertz, sendo este o marco teórico geral da
dissertação. Do primeiro autor retomo o conceito de ideologia, a noção de hierarquia e
as idéias em relação à questão dos híbridos que expressam as variações ideológicas. Do
segundo, implemento sua proposta de entender a ideologia como uma conversação –
conclusão que Ricoeur (1985) coloca nesses termos –, a partir da qual se atribui
importância à função de integração da ideologia que, por sua vez, está ligada a
processos de reconhecimento da identidade. Quando resumo o que foi observado na
consulta jurídica como “conjuntos de valores em conversação” refiro-me ao próprio
choque ideológico, onde os valores podem ser entendidos em uma longa duração e que
dão conta de relações sociais em níveis diferenciados, mas tal processo também ocorre
de uma maneira textual e dialógica. Em seguida, especificarei os conceitos e idéias que
retomo desses dois autores.
Dumont (1997 [1977], 2000 [1983], 1994) define ideologia como o conjunto de
valores e idéias que regem um grupo social determinado. Individualismo e holismo
9
constituem-se nos dois grandes sistemas ideológicos – ou configurações de valores
(Duarte, 1986) – nos quais se articulam duplas de categorias, que também são valores,
como, por exemplo, pessoa/indivíduo e honra/dignidade. Nesta ideologia holista, onde o
todo tem precedência sobre as partes, a hierarquia aparece como um princípio social
fundamental que pode ser visto também como uma necessidade universal de classificar
8
Falo de campesinidade no sentido dado por K. Woortmann (1990), isto é, como uma condição que
remete a uma ordem moral determinada. Embora este autor diz que falar de campesinidade pode permitir
ver os diferentes tipos de articulação ambígua com a modernidade, seu mérito radica em que não está
opondo as duas categorias de uma forma radical, mas que tenta ver, centrado nos valores, as dinâmicas
próprias de sociedades que estão “calcadas” em tal campesinidade. Neste sentido é que o próprio autor
assegura que a modernização não impede certa prevalência da tradição – que se manifesta nos valores –,
nem a tradição impede a modernização.
9
Em
German Ideology
, Dumont (1994) esclarece, de uma forma interessante, a diferença entre holismo e
individualismo; holismo expressa ou justifica a existência da sociedade por referência a valores, enquanto
o individualismo localiza os valores, independente da sociedade em que se encontrem. Outras
características do individualismo seriam: a priorização da relação do homem sobre as coisas, a distinção
sujeito-objeto, a segregação de valores diante de fatos e idéias e a distribuição do conhecimento em áreas,
disciplinas independentes, homólogas e homogêneas.
idéias, coisas e pessoas; essa necessidade de classificar e organizar o mundo é
apresentada pelo autor como um aspecto indissociável da vida em sociedade. Assim, a
hierarquia seria uma atribuição de um lugar a cada elemento com relação ao conjunto.
A proposta geral de Dumont (1997) [1977] contida em Homo Hierarchicus pode
ser entendida como um convite a decifrar o ambiente ideológico do próprio
antropólogo. Para Dumont, definir ideologia como um conjunto de idéias e valores
permite que se aprofunde sobre a relação com o outro; negar-se a estudar a ideologia
desta maneira, ou a admitir a existência de concepções holísticas e de princípios
hierárquicos, equivale a uma negativa do pesquisador em colocar a si mesmo em
perspectiva. O que mais chama a atenção em sua proposta é a necessidade de se ter uma
visão antropológica de nossos próprios valores
10
; em outras palavras, poder-se-ia dizer
que Dumont faz uma crítica à naturalização de certos “valores da modernidade” dados
como universais (Leiner, 2003).
De uma perspectiva intelectualista, Dumont mostra que as ideologias têm uma
lógica interna própria e tal lógica está inscrita em conceitos como holismo, hierarquia e
totalidade, igualdade e universalismo. Em Homo Aequalis (2000) [1976], Dumont
refere-se ao holismo como a orientação geral dos valores para um todo e faz um
esclarecimento muito importante, que se constitui numa das diretrizes desta dissertação,
já que afirma que nem todas as sociedades holistas acentuam a hierarquia no mesmo
grau, nem em todas as sociedades individualistas há uma ênfase tão marcada na
igualdade. Em outras palavras, pode-se ser holista e individualista de diferentes formas
porque o individualismo é incapaz de substituir o holismo e, mais ainda, é incapaz de
funcionar sem sua contribuição, em parte, porque o individualismo proporciona uma
teoria utópica da vida cuja implementação é, ao mesmo tempo, seletiva. Esta discussão
está relacionada com a questão das variações ideológicas que, segundo Dumont (1994),
são caracterizadas através de representações híbridas, nas quais valores e idéias
10
Parte desta proposta de Dumont em relação ao propósito e alcance da Antropologia foi amplamente
discutida. Assim, por exemplo, Peirano (1984) diz que para Dumont só é possível uma antropologia,
produto de uma ideologia ocidental e com o distintivo de seguir a tendência do pensamento comparativo
em termos universais. Segundo esta autora, Dumont considera nociva a pluralidade ou diversidade de
antropologias porque isso atentaria contra a referência universalista da disciplina. Não pretendo me
aprofundar nesta polêmica, mas é interessante que, de qualquer maneira, Peirano reconheça que a obra de
Dumont permite refletir sobre a posição do antropólogo dentro de um sistema moderno de valores. Por
isso mesmo, diz que a nação pode se tornar a ideologia do antropólogo, que pode ser encapsulado pelo
“holismo nacional” do qual faz parte. Este último é analisado por Peirano a partir do que ela chama o
“quadro intelectual brasileiro”.
desenham trajetórias particulares entre os dois grandes pólos ideológicos – holismo e
individualismo.
Dumont (1997) [1977] propõe falar de hierarquia e não de estratificação social,
pois é da ótica de uma ideologia individualista que a hierarquia é percebida como
estratificação social que se expressa nas relações de poder (Leiner, 2003). Diferente de
Geertz – em um ponto que não resgato dele –, a noção de hierarquia de Dumont (1997)
[1977] está dissociada do poder
11
. Assim, por exemplo, a hierarquia na Índia implica
uma gradação, mas não de poder nem de autoridade; é um princípio de gradação dos
elementos de um conjunto em relação a esse mesmo conjunto. Em outras palavras, a
hierarquia não é uma ordem linear, mas é produto de uma oposição hierárquica. Além
disso, é necessário considerar que no posfácio de Homo Hierarchicus, Dumont define
hierarquia como englobamento do contrário, o que quer dizer que o princípio da unidade
está fora dos elementos que a compõem e esse princípio hierarquiza um elemento com
relação ao outro. O elemento faz parte do conjunto é, por isso, consubstancial e idêntico
a ele, mas se distingue ou se opõe a ele.
É necessário deter-se neste ponto porque a noção de hierarquia como
englobamento do contrário é uma das grandes contribuições de Dumont, apesar de que
também foi um dos argumentos que mais suscitou polêmica. Dumont (1997) [1977] diz
que o englobante é mais importante que o englobado, da mesma forma que o conjunto é
mais importante que as partes, e esta afirmação levou a confundir a hierarquia como
fator que marca uma diferença absoluta entre inferior e superior. Deve-se ter claro que a
hierarquia supõe a diferenciação de níveis, sendo intrinsicamente bidimensional porque
o princípio da unidade está fora dos elementos que participam dela. É por essa razão
que, na hierarquia, a complementariedade ou a contradição estão contidas na unidade de
ordem superior. Em um nível mais geral, definir ideologia como uma hierarquia de
concepções e operações permite a Dumont insistir na distinção de níveis como uma
diferenciação de caráter universal, apesar de não ser reconhecida abertamente em todos
os casos (Galey, 1982), porque o princípio hierárquico nem sempre é enunciado.
11
O próprio Ricoeur (1985) afirma, considerando a análise de Geertz (1996) [1964], que a ideologia é
sempre um assunto sobre poder. Digamos que a visão de Dumont difere da tendência geral de ligar
ideologia e poder; como exemplo desta tendência, podemos citar a relação entre hegemonia e ideologia
elaborada pelo casal Comaroff (1991). Neste caso, tanto hegemonia como ideologia são apresentadas
como duas formas dominantes através das quais o poder se instala na cultura. Os autores colocam que
existe uma interdependência recíproca entre ideologia e hegemonia, o que explica a naturalização da
visão de mundo dominante; em suma, enquanto a hegemonia homogeneiza, a ideologia se encarrega de
articular.
Como afirma Leiner (2003), Dumont inspira-se na noção durkheimiana de
hierarquia de níveis nas representações para dizer que os termos envolvidos na relação
hierárquica não podem ser localizados em pólos equivalentes. A base da diferenciação
de níveis está no valor que identifica cada um com a totalidade, embora sempre haja um
que se torna residual. Ao final, o que os valores fazem é localizar as relações em níveis
diferenciados. Claramente, para Dumont (2000) [1976], a ideologia não é um resíduo,
mas a unidade da representação que não exclui contradição e conflito. Por esta razão,
decidi falar de um choque ideológico que não necessariamente é percebido como algo
contraditório pelos atores, embora resulte conflituoso em diversas ocasiões, sobretudo,
quando impede as possibilidades de reconhecimento das complexas identidades dos
atores envolvidos na célula de diálogo.
Como mencionei antes, é Geertz quem atribui importância à dimensão dialógica
da ideologia e sua função integradora. Da mesma maneira, e marcando a precedência do
simbólico na sua análise, Geertz (1996) [1964] fala de um componente de participação
da ideologia que se plasma nos símbolos e que ajuda na consolidação de estratégias
simbólicas efetivas. É por esse motivo que chega a afirmar que as ideologias definem e
propagam crenças e valores, o que o aproxima de certa forma ao conceito de ideologia
de Dumont. Em uma aproximação semiótica, Geertz (1996) [1964] define ideologia
como um sistema de símbolos que estão em interação, ou como uma série de estruturas
entretecidas de significação. Sua proposta consiste em “desideologizar” a ideologia com
o propósito de fazê-la novamente um conceito analítico; além disso, propõe que a
ideologia não deve ser tratada como uma entidade em si, mas com relação a um
contexto. Desta maneira, anuncia a chegada de uma concepção não avaliativa nem
despectiva de ideologia, na qual ela é apresentada como falsidade ou como uma forma
de depravação intelectual, nas palavras do autor, ou como uma distorção, segundo
Ricoeur (1985).
Geertz (1996) [1964] procede identificando duas posições principais no estudo
dos determinantes sociais da ideologia. A primeira é a teoria do interesse, onde a
ideologia está relacionada com a luta para conseguir determinadas vantagens, isto é, as
idéias aparecem como armas que permitem se impor politicamente. Já na teoria da
tensão, a ideologia é vista como a saída simbólica para o desequilíbrio social, ou seja, o
pensamento ideológico constitui uma resposta às tensões estruturadas de um papel
social. Segundo Geertz (1996) [1964], na teoria do interesse as raízes dos sistemas
culturais são localizadas na estrutura social, o que demonstraria a existência de um
aparato teórico incapaz de dar conta da interação de fatores sociais, psicológicos e
culturais. Desta maneira, a ideologia fica reduzida a uma arma ou a um jogo de
estratégias e táticas; por este motivo, o interesse é visto como uma deformação, isto é,
um estado de tensão pessoal e de deslocamento social. Quanto à teoria da tensão, Geertz
(1996) [1964] garante que se parte de uma idéia de má integração da sociedade, mas
com essa conjuntura a ideologia é, ao mesmo tempo, sintoma e doença, o que não
permite obter uma explicação sobre o problema que se levanta a respeito da integração
social.
Como já foi mencionado, o foco de interesse de Geertz é mostrar que a ideologia
opera como um sistema de símbolos que estão em interação, que são definidos como
fontes extrínsecas de informação e também como mecanismos extra-pessoais para
perceber, julgar e manipular o mundo. Por isso que o autor afirma que ciência e
ideologia são tanto sistemas críticos e imaginativos como sistemas culturais que
abarcam estratégias simbólicas, embora a diferença justamente estaria nos tipos de
estratégia simbólica e nas situações que elas representam. Geertz (1996) [1964] diz que
a ideologia nomeia a estrutura das situações de uma forma em que tal atitude é de
participação – vívida e sugestiva – e, por isso, objetiva sentimentos morais e motiva a
ação. Apesar de Geertz opor ideologia e religião, e ligar de uma forma estrita aos
processos de modernização e autonomia política, seu interesse por entender a
transformação de sentimentos em significados através da codificação de símbolos em
comum – ponto de partida para um processo de reconhecimento da identidade social – é
um passo fundamental para resgatar o potencial analítico da ideologia, entendida dessa
perspectiva.
Este seria o marco teórico geral em que se situa esta dissertação; não obstante,
ao longo dos três capítulos, utilizo outros autores para analisar situações específicas. O
que foi dito anteriormente ficará mais claro quando o conteúdo de cada sub-capítulo for
explicado. A estrutura do texto foi pensada para que o nível de complexidade fosse
crescente, isto é, o primeiro capítulo é rico em descrição e detalhes etnográficos,
enquanto os seguintes e as considerações finais são capítulos mais analíticos, onde se
encontra minha interpretação. Esta foi uma decisão própria, que considero coerente com
a iniciativa que deu origem ao processo de pesquisa e, posteriormente, a esta dissertação
de mestrado. Sou enfática em ressaltar a importância de se ler os casos, cujos detalhes –
em uma primeira leitura – podem parecer irrelevantes ou sem uma devida justificação
analítica. Devido às próprias condições em que foi feita a pesquisa e o trabalho de
campo é difícil elaborar os casos como se tivessem um começo, um nó ou parte crítica,
e um desenlace. O potencial que têm para serem analisados antropologicamente remete
a detalhes que logo serão sustentados através das leituras de vários autores e dos textos
sobre a região – segundo capítulo –, por exemplo. Esta introdução consiste em um
primeiro itinerário de leitura pois, à luz dos marcos teórico e metodológico, o leitor está
preparado para a exegese que faço nos seguintes capítulos. Evidentemente, isto não
significa dizer que os casos não demonstrem um árduo exercício de escrita etnográfica,
onde se tenta reproduzir o ritmo dos diálogos in situ. É através deles que a etnografia do
lugar foi elaborada; por esse motivo considero que a informação não deve ser
minimizada nem o esforço etnográfico de construção dos casos pode ser ignorado.
No segundo capítulo, começo fazendo uma caracterização da estrutura social da
região onde o município de Fredonia está localizado. Além disto, realizo uma rápida
revisão sobre as diferentes aproximações ao tema do camponês, o que também está
articulado ao marco teórico geral através da identificação de valores, a primeira vista,
característicos de uma ordem hierárquica. Como já assinalei anteriormente, a proposta
de Dumont também permite ver o comportamento de conjuntos de valores em uma
longa duração e é por este motivo que extraio valores e idéias a partir da análise dos
diálogos estagiário-cliente, considerando uma perspectiva histórica. Neste capítulo,
focalizo mais a representação dos clientes, o que me permite identificar os seguintes
valores que eles ressaltam e que estão próximos ao holismo: honra, palavra, trabalho,
terra, família e esperteza. Ao tomar como referência central os cinco casos, analiso esta
configuração particular de valores, onde podem ser localizadas as relações sociais em
níveis diferenciados e relacionadas com os personagens sociais definidos; tal é o caso de
relações como as que ocorrem entre o capataz e o proprietário, o capataz e os
trabalhadores de empreitada, e entre os próprios trabalhadores de baixa qualificação,
etc.
No terceiro capítulo, começo fazendo uma rápida revisão sobre algumas
particularidades do Direito Colombiano e também explico algumas mudanças
introduzidas a partir da Constituição de 1991. Este é um marco a partir do qual
questiono a transmissão de valores como igualdade, liberdade e dignidade através do
exercício dos estagiários do último ano de Direito. Por este motivo, dedico a primeira
parte do capítulo à construção do perfil profissional do advogado, que se manifesta em
sua representação pública, ou seja, durante a consulta jurídica. Nesta parte, uso os
conceitos de representação e interação de Goffman (1959) e utilizo outros autores
(Geertz, 1994; Bourdieu, 2002 [1989]; Villegas, 1993; Felstiner et al., 1980-81) que me
permitem explicar o processo de tradução do advogado e algumas estratégias ligadas ao
que denomino mudança de linguagem. Assim, como no segundo capítulo concentro-me
nos clientes e explico os recursos que empregam durante sua performance, nesta parte
enfoco mais nos estagiários; no entanto, e com o propósito de mostrar como se opõem e
sobrepõem os valores aos quais recorrem os atores, na segunda parte do capítulo me
detenho em um mecanismo performativo fundamental: a oscilação – tanto do estagiário
como do cliente – entre indivíduo e personagem social, e vice-versa. Em grande medida,
esta discussão serve de plataforma para entrar na questão do reconhecimento, que
entendo como o propósito último da consulta jurídica. Na última parte do terceiro
capítulo questiono, através da revisão de autores como Taylor (1994), Berger (1983),
Kymlicka (1995), Honneth (1995), Geertz (1996) [1964] e L. R. Cardoso de Oliveira
(2002, 2004, 2005) a importância não apenas do reconhecimento da singularidade e da
experiência individual do sujeito, mas do reconhecimento do que denomino identidades
sociais complexas. Nesta mesma direção, questiono a idéia de trânsito do mundo da
honra ao da dignidade como característica distintiva dos sistemas democráticos
modernos.
A partir desta análise, e já para concluir, pretendo fazer algumas reflexões sobre
as possibilidades de análise de interações complexas como as observadas no Escritório
Modelo Rural de Fredonia. Com este propósito, retomo Dumont e Geertz, cujas idéias
fusionei para construir o marco conceitual desta dissertação. Entre as questões para
refletir, destaco a dificuldade de continuar limitando nossas interpretações a dicotomias
como tradicional-moderno, cujo maior perigo está em que são utilizadas analiticamente
de forma rasa, superficial. Este é um tema que me interessou desde meus primeiros
trabalhos na Antropologia, que estavam ligados ao estudo do campesinato, mas não
necessariamente em contextos rurais, o que me levou a indagar sobre os valores que
estão mais de acordo com uma campesinidade. Enfim, minha proposta de entender o
choque ideológico, a partir do qual podem ser encontrados vários híbridos, fruto de
determinadas variações ideológicas – expressando nos termos de Dumont –, pode-se
conceber como um exercício que faz repensar, sob outros conceitos, antigas questões,
sendo um exercício que enriquece a Antropologia em geral.
CASOS
Como foi mencionado na introdução, o projeto de pesquisa que deu origem a
esta dissertação esteve fundamentado na idéia de minima ethnographica de Jackson
(1998) que, somada à metodologia das “comunidades de conversação” usada entre
grupos camponeses por Gudeman e Rivera (1990), pretendia explorar o potencial
etnográfico do Escritório Modelo Rural. Minima ethnographica é a unidade que permite
entender a forma como o interpessoal e o intersubjetivo operam em contextos
particulares; constitui-se também uma chamada de atenção ao etnógrafo que esquece
durante os processos de textualização de narrativas – por exemplo – que a etnografia
consiste, basicamente, em descrever em profundidade e com detalhes as dinâmicas da
intersubjetividade sob uma variedade de condições sociais e culturais. É interessante
que Jackson (1998) diga que um primeiro passo para evitar a fetichização do
vocabulário antropológico e dos resultados teóricos é explicar os métodos através dos
quais se chega a determinada interpretação.
No fundo, essa idéia também está guiando a estrutura desta dissertação. Os casos
ocupam um capítulo porque procuro obrigar o leitor a ver a forma como construo minha
interpretação, desde a apresentação da informação em um estado menos depurado até a
exegese que faço à luz de vários autores, e que resumo na idéia de um choque
ideológico que se apresenta de uma forma dialógica durante o espaço da consulta
jurídica. Este último reforça o argumento de que o texto que o pesquisador produz é
apenas uma parte do processo de conversação e, nele, as “vozes na terra” e as “vozes no
ar” das que falam Gudeman e Rivera (1990) tendem a se cruzar e a se sobrepor; as
primeiras relacionam-se com as influências, situações e questões que estão envolvidas
durante a interação dos estagiários nas “comunidades de conversação” e as “vozes no
ar” são as influências teóricas que estruturam e determinam a análise do pesquisador.
De qualquer forma, os cinco casos apresentados a seguir são fruto de um
trabalho de textualização que recorre a diferentes registros e fontes de informação, onde
os dados foram tratados como formando uma fina filigrana, cujos detalhes serão
retomados nos capítulos mais analíticos, onde se desenvolve a discussão teórica.
Oferece-se um segundo caminho de leitura através de resumos sobre os fatos mais
relevantes de cada caso; no entanto, como fica demonstrado na descrição, a análise que
se deriva dos casos só pode ser construída considerando o contexto da conversação ou,
em outras palavras, os detalhes que estão contidos nos fragmentos de cada caso podem
ser entendidos, unicamente, de forma dialógica. É necessário deixar de avaliar a riqueza
de cada caso segundo o avanço do procedimento jurídico porque os casos são reflexo da
lentidão com que atuam os estagiários e a ineficiência de determinadas ferramentas do
próprio Escritório; os casos mais rápidos são concluídos em um período de seis meses e
existem outros que chegam a se estender por anos, passando pelas mãos de vários
estudantes de Direito. Enfatizo justamente as representações que os atores – clientes e
estagiários – levam a cabo no contexto da consulta jurídica, principalmente, e que
permitem realizar uma identificação dos valores que subjazem ao discurso dos atores.
Ressalto que esses valores são expostos de forma dialógica em cada encontro de
usuários e advogados, sendo componentes fundamentais dos cinco casos selecionados.
Essas são as pistas que orientam a leitura dos casos e as quais utilizo para fazer a
exegese. Digamos que os casos poderiam proporcionar diferentes itinerários para serem
lidos e analisados, mas o rumo que escolho me leva a uma identificação de valores.
É preciso ressaltar que cada caso está construído com base na informação
levantada no contexto da célula básica ou consulta jurídica in situ. Além disso, utilizou-
se a informação das “comunidades de conversação” do grupo de estagiários com seu
assessor, coletada durante as reuniões realizadas semanalmente. Da mesma forma,
foram considerados os relatórios e documentos elaborados pelos estagiários – atas de
reuniões e relatórios das saídas – que eram lidos durante tais reuniões, e as conversas
mais longas que se pôde ter com alguns dos clientes. Em suma, os casos foram
construídos recorrendo a diferentes fontes de informação que se teve acesso (orais e
escritas), mas é um propósito consciente tornar essa construção evidente dentro do
texto. Desta maneira, os casos estão construídos para abranger os diferentes recursos
empregados por todos os sujeitos participantes. Tratou-se de reproduzir o que ocorre
nos espaços de diálogo in situ e, por este motivo, é possível dizer que ali estão contidas
as “vozes da terra”, segundo o enunciado por Gudeman e Rivera (1990).
Da mesma forma, minha proposta está do lado do que estabeleceu L. R. Cardoso
de Oliveira (1992) quando diz que os processos de resolução de conflitos devem conter
a análise não apenas de situações ideais, mas que devem ser consideradas três
dimensões contextuais. Estas dimensões seriam: (1) um contexto cultural geral onde as
coisas podem ser localizadas dentro de um universo específico simbolicamente pré-
estruturado; (2) um contexto situacional que torna o significado das ações o tema central
no âmbito de situações ou eventos ideais, e (3) um contexto específico que focaliza a
adaptação dos significados tratados nas duas primeiras dimensões contextuais para a
interpretação de um conflito particular, o que implica uma posição mais reflexiva da
parte do participante. Aqui está implícita uma crítica ao antropólogo que excede em sua
posição relativista e evita emitir uma interpretação sobre o que o ator diz; nestas
situações, o que ocorre é que se aceita como normativamente correto o que o sujeito diz
e não o que isto implica
12
. Considero que as três dimensões das que fala Cardoso de
Oliveira estão presentes neste trabalho e são coerentes com a proposta metodológica e
com a forma como a informação é apresentada. Os casos correspondem à dimensão
situacional, abrindo o espaço justamente para a compreensão da dimensão específica
que vou desenvolver através da identificação de valores implícitos nas representações
dos atores. De certa forma, estou invertendo a ordem de apresentação de tais dimensões,
já que a dimensão cultural, onde explico características sociais e culturais particulares
da região e sua população, está articulada à dimensão específica – a mais analítica, diria
eu. Foi minha opção não deixar a dimensão contextual como um simples marco de
interpretação e sim mostrar de que forma estas duas dimensões, especificamente, se
articulam durante a exegese que parte dos casos, entendidos como o componente
situacional da análise.
Já para finalizar, é necessário esclarecer que os nomes dos usuários foram
mudados e não se utilizam os nomes próprios dos estagiários, que serão nomeados
através de siglas (E1, E2...E6). Este recurso é fruto de uma classificação do grupo de
seis estagiários e a importância do critério empregado para tal classificação será
esclarecida na análise do último capítulo, onde explico as formas de representação dos
advogados e os valores associados a sua profissão. Não obstante, adianto que dentro do
grupo há determinadas hierarquias que estão relacionadas com a experiência de trabalho
anterior dos estagiários, os êxitos acadêmicos, a idade e o desenvolvimento de uma série
de atributos relacionados com o perfil profissional. Estas características foram
necessárias para construir os casos sem perder de vista a classificação dos estagiários, e
esta é outra das finas linhas que deve ser considerada na hora de enfrentar a leitura dos
casos.
Caso 1: “Os 27 porquinhos”
Rogelio trabalhava como capataz de uma fazenda da região e pediu demissão
de seu emprego depois que 27 porcos morreram porque, segundo ele, os donos da
fazenda deixaram de levar alimento para os animais e os insumos necessários para os
cultivos, além de estarem atrasados com o salário dos trabalhadores, inclusive o de
Rogelio, a quem deviam 20 meses de trabalho. Rogelio queixava-se da falta de
12
Cardoso de Oliveira, Luis Roberto. Comunicação pessoal. Abril de 2004.
consideração de seus patrões, especialmente da esposa do dono. Embora sua principal
preocupação fosse reclamar o valor da dívida, também pretendia comprovar, através
de testemunhos, que ele não tinha deixado os animais morrerem de propósito. Durante
o trabalho de campo, presenciou-se o processo através do qual se interpôs a petição,
que foi rejeitada em uma ocasião pelo juiz porque não foi incluída a apresentação
pessoal da procuradora (E2); no entanto, anteriormente, a estagiária já havia
duvidado de que a demanda fosse admitida porque o valor das pretensões de Rogelio
podia superar o teto dos 20 salários mínimos que têm os casos trabalhistas sob a
responsabilidade de estagiários do último ano de Direito. Quando a demanda entrou de
novo, a advogada dos donos da fazenda começou a perturbar a estagiária (E2), falando
sobre o desempenho de Rogelio como capataz e sobre seu suposto alcoolismo.
Os primeiros dados sobre este caso encontram-se registrados em um dos
relatórios realizados pelos estagiários com data de 28 de setembro de 2003. Neste
documento, a estagiária (E2) só apontou que Rogelio era seu cliente e que o atendeu
para dar informação para poder interpor a petição; não se dá nenhuma informação
adicional. Depois desta seca descrição, foi necessário remeter-se às fichas de reunião,
elaboradas pelos membros da equipe de pesquisa, para começar a entender como foram
construídos os fatos neste caso em particular. No contexto da reunião, a estagiária
perguntou sobre o que fazer com o caso dos “27 porquinhos”; não houve referências
sobre o nome do cliente e, apesar de estar relatado desde o mês de setembro, os outros
estagiários não lembravam do que se tratava. Quando os estagiários notaram que os
etnógrafos não entendiam de que se estava falando, um deles lembrou que se tratava de
um senhor que estava “deixando morrer uns porcos”. Já aqui começamos a encontrar
informações contraditórias pois, graças a estes dados descontextualizados, poder-se-ia
entender que será iniciado um processo contra a pessoa que está deixando os animais
morrerem.
Nenhum dos presentes esteve atento ao que em voz mais baixa a estagiária (E2)
perguntou ao assessor e, no caso, não foi tratado mais durante essa sessão. Na visita do
dia 2 de novembro, o etnógrafo registrou a seguinte informação: Rogelio cumprimentou
atenciosamente a estagiária, enquanto fez um gesto ao etnógrafo sem reparar muito na
sua presença. A estudante tratou de ir direto ao ponto, sem se deter em outros temas,
dizendo-lhe que se arriscaria a apresentar a petição, embora existisse a possibilidade de
que o juiz a invalidasse; também lhe explicou que ela trabalhava e era um risco, já que
se os chamassem para audiência, esta aconteceria numa segunda ou terça feira, dentro
de seu horário de trabalho. Advertiu que se arriscaria porque, caso não assistisse a
audiência, poderia perder o caso; sem explicar o conceito, disse que poderiam correr o
risco de que ficasse como coisa julgada (ver glossário). A etnógrafa pediu
esclarecimentos ao advogado sobre o caso pois, até este ponto, os dados oferecidos não
abrangiam as questões gerais do caso e a informação registrada nos documentos
tampouco permitia fazer um esboço do mesmo.
A estudante (E2) sintetizou o caso em uma linguagem estritamente jurídica da
seguinte maneira: “(...) esse senhor pediu demissão com justa causa porque o
empregador não proporcionava os meios necessários para suas funções como capataz
em uma fazenda”. Ao perguntar-lhe pelas implicações de não assistir a audiência e que
o assunto ficasse como coisa julgada, explicou que nesse caso o usuário não podia
apelar, embora tivesse – ou pudesse pagar – um advogado particular. Esses
esclarecimentos foram feitos quando o cliente tinha ido embora e aqui, claramente, mais
que um risco que o estagiário corria, estava-se arriscando a possibilidade de uma
demanda jurídica de Rogelio como ato de reconhecimento social, que é um dos aspectos
fundamentais que está em jogo nestes espaços.
Dentro da mesma comunidade de conversação, mas na ausência do cliente, a
estagiária expressou seu temor por ter que assumir este caso já que, por cumprir
compromissos de trabalho na cidade, seria difícil assistir as audiências; não obstante,
esta preocupação não impediu que o caso continuasse, ignorando o fato de que o cliente
poderia ser afetado. De fato, a estagiária acrescentou que havia feito a indenização do
valor da dívida dos empregadores, e ele bem que poderia ter acesso a mais de 6 milhões
de pesos (quantia máxima autorizada para os casos levados pelos estagiários, advogados
não titulados). Em suma, o caso poderia ser freado pelo juiz, apelando a estas duas
condições que a estudante não explicou com clareza ao usuário. Quando o etnógrafo
insistiu no caso com a estudante, esta respondeu que o melhor seria não “se meter em
problemas” e disse que diria ao usuário que perguntasse a um advogado quanto lhe
cobraria, mas com a petição elaborada pela estagiária. No entanto, esta não foi uma
sugestão dada ao cliente e o caso continuou com pleno conhecimento do risco que
corria.
Durante a visita correspondente ao dia 16 de novembro, Rogelio aproximou-se e
perguntou pela estagiária porque queria saber se lhe havia enviado uma procuração; os
estagiários prometeram transmitir a mensagem, pois E2 não fazia parte da equipe desta
visita. Na Ata correspondente à visita posterior, registrou-se a solicitação do cliente para
que a estudante o chamasse na semana seguinte, mais exatamente na terça-feira entre
6:00 e 6:30 da tarde. A outra visita na que se reporta o comparecimento de Rogelio ao
espaço do Escritório Modelo foi a do dia 30 de novembro – durante a seguinte visita dos
estagiários – quanto foi atendido por outra estagiária (E3), que havia recebido
instruções diretamente da estudante que está levando o caso. A estagiária enviou a
procuração e a petição para que o cliente fosse tramitando-a no tribunal. A estagiária
que estava dando a mensagem disse que, segundo o que ela entendia, era o próprio
Rogelio que tinha que fazer a apresentação pessoal da procuração no cartório para então
apresentar a demanda no tribunal. Ao que parece, não deram à estagiária (E2) uma
declaração que certificasse que é estudante do último ano de Direito, o que era
necessário para fazer os trâmites. A outra estagiária, aceitando não “conhecer muito
sobre o caso”, decidiu chamar a estudante responsável para fazer alguns
esclarecimentos.
Este espaço foi aproveitado pela etnógrafa para tomar as rédeas da conversa, que
perguntou há quanto tempo estava sendo levado o processo: Rogelio disse que havia 5
ou 6 meses. Esta informação era nova, já que não se tinha conseguido estabelecer nada
com relação a este caso depois de várias visitas e apesar de se ter acesso a documentos
elaborados pelos próprios estagiários. O etnógrafo perguntou o que o havia motivado a
recorrer ao escritório. O cliente explicou que ele trabalhava como capataz de uma
fazenda na vereda Los Mangos e o dono deixou de enviar dinheiro e comida. Garantiu
que lhe deviam 20 meses de trabalho “contadinhos”. Acrescentou que tinha sob sua
responsabilidade 80 porcos “e que não tinham o que comer”, passaram-se dois meses e
ele estava alimentando-os com capim porque não tinha alimento e acrescentou que a
pessoas que costumavam vender-lhes os insumos não quiseram voltar a vender-lhes a
ração por causa das dívidas acumuladas. Continuou dizendo que, como resultado, 27
porcos tinham morrido; ele correu à Delegacia de Polícia com a idéia de que o delegado
fosse observar “e que ficasse declarado de que não era sua culpa”. O delegado deu-lhe a
declaração e disse-lhe que vendesse os porcos pequenos para alimentar os grandes, mas
foi ao armazém onde comprava o alimento para os porcos e lá o proprietário do lugar
disse-lhe que não fosse fazer isso porque podia se meter em um problema maior.
Aconselhou-o, então, que fizesse uns buracos e “fosse enterrando os porcos que
morressem”; disse-lhe também que não era sua culpa. Rogelio chamou a esposa do
dono, com a idéia de fazer a entrega oficial da fazenda; no dia que ela foi, estavam
morrendo três porcos e ela filmou. Neste ponto, o cliente é enfático em afirmar que ela
percebeu que era verdade o que ele havia dito; no entanto, garantia o cliente, ela não
queria receber a fazenda. Então, ele insistiu dizendo que “esses porcos estavam
morrendo de fome e iam terminar comendo ele e sua família”, também lhe garantiu que
havia uma epidemia de moscas que ia fazer seu próprio filho adoecer. Rogelio repetiu
que ele insistiu a sua patroa que o deixasse ir e ela aceitou dizendo-lhe que buscasse um
carro para que fizesse a mudança e, enquanto isso, ela ia dar a sua indenização; Rogelio
mandou seu filho buscar o carro e quando colocou todos seus pertences, a esposa do
patrão lhe deu somente 200.000 pesos colombianos
13
. Então, ele pediu-lhe a
indenização completa, a senhora disse-lhe que não tinha dinheiro e Rogelio decidiu ir
embora, apesar de que lhe deviam 20 meses de salário.
Na reunião posterior a esta visita, a estagiária que atendeu Rogelio limitou-se a
dizer que o estudante responsável devia chamar o cliente para lhe esclarecer algumas
coisas e este, por sua vez, disse-lhe que não tinha um telefone onde pudesse ser
localizado. Nesta reunião de relatórios de visita correspondente ao dia 2 de dezembro,
informou-se que como o estudante responsável não fez a apresentação pessoal da
petição, esta não foi enviada ao tribunal nem apresentada ao cartório. Apesar de serem
monitores menos experientes da que está responsável pelo caso (E2), todos pareciam ter
claro que a petição devia incluir a apresentação pessoal. O professor chamou a atenção
da estudante dizendo-lhe que não esperava um descuido assim de sua parte e a estagiária
tratou de desculpar-se.
Rogelio voltou ao Escritório Modelo no dia 14 de dezembro e, ao que pareceu, a
estagiária havia conseguido enviar-lhe a apresentação pessoal da petição e o usuário
havia conseguido apresentá-la no tribunal. Enquanto a estagiária atendia outra pessoa,
chegou Rogelio e disse-lhe que soube que o juiz havia rejeitado a petição; a estudante
repetia sem cessar que não podia ser que a petição tivesse sido “inadmitida”; não
obstante, também garantia que ela suspeitava porque a quantia estava superando o valor
que um estagiário pode assumir. No entanto, mostrou-se com pena do usuário e disse-
lhe que havia agido exemplarmente, pois contava com 5 dias úteis para corrigi-la e
voltar a mandá-la, caso contrário, já não podia voltar a passá-la. O etnógrafo perguntou
o que se podia fazer nesse caso, e respondeu que os estagiários podem assumir um caso
em questões trabalhistas cuja quantia não supere 20 salários mínimos e para finalizar
acrescentou: “Tenho que falar com o professor para ver se ele me nomeia dependente no
processo. Eu imaginei que ia inadmiti-la, mas tomara que seja pela quantia”. Ao que
13
Aproximadamente, 1 real equivale a 1.000 pesos colombianos. Neste caso, a esposa do dono da
propriedade entregou a Rogelioo equivalente a 200 reais.
parece, a estudante corrigiu a petição no tempo estipulado e foi admitida pelo juiz, mas
não há informação clara a esse respeito.
O usuário compareceu ao espaço de consultas no dia 15 de fevereiro e,
imediatamente, a procuradora perguntou se já se tinha feito a citação para a audiência de
conciliação; Rogelio não soube responder e, então, a estagiária reforçou que era
necessário ir ao tribunal para perguntar se já havia data para a audiência e “se já se
cumpriu o requisito de notificação do artigo 315 do Código do Trabalho”. Não deu mais
explicações a respeito. Rogelio apontou que outra pessoa, que também esteve presente,
estava ajudando-o a fazer as coisas porque ele estava trabalhando longe de Fredonia.
Então, a estagiária deu-lhe as indicações pertinentes: explicou-lhe como perguntar e o
que responder, de acordo com o que o juiz dissesse. No meio desta conversa, o usuário
disse que uma égua tinha morrido e que a dona da fazendo estava culpando-o;
imediatamente Rogelio justificou-se dizendo que “a égua caiu e rolou porque a fazenda
é muito montanhosa” e acrescentou que teve que tirar alguns cavalos de seus currais
para colocar os porcos que estavam morrendo. Da mesma forma, foram fornecidos os
dados dos testemunhos para relatar a relação de trabalho de Rogelio e também os fatos
relacionados com a morte dos porcos; os testemunhos eram trabalhadores sob a
responsabilidade de Rogelio. Com relação a eles, acrescentou que cada vez que morria
um porco chamava os trabalhadores para que fossem testemunhos porque ele percebia
que era algo “muito delicado porque eram 27 porcos e quanto pode custar cada um?”.
A última coisa que se soube deste caso está registrada no diário de campo
correspondente ao dia 29 de fevereiro. Ao diminuir o fluxo de pessoas, a estagiária (E2)
começou a falar com o assessor sobre o caso de Rogelio. A estudante disse que a
audiência de conciliação seria realizada no dia 8 de março às 14 hs e, por esse motivo,
teria que se deslocar a Fredonia esse dia; não obstante, enfatizou mais o fato de que a
advogada procuradora dos patrões de Rogelio a havia chamado e lhe havia dito que,
como estudante, “deixava-se levar muito facilmente pelo que diz o usuário” e também
disse que o cliente “havia se tornado muito grosseiro, que era alcoólatra” e que, além
disso, tinham provas do que lhe pagaram com os respectivos recibos. Ao ouvir isto, o
assessor perguntou: “Você acredita no usuário?” A estudante assentiu sem muito
convencimento e reforçou que também acreditava que seu usuário bebia muito. Então, o
professor-assessor reafirmou: “(...) o problema não é que beba, porque muita gente
bebe, o problema está no que isso afeta o seu trabalho”. Nesse instante, a estagiária
disse que a advogada também havia dito que Rogelio deixou morrer uma égua muito
cara, que caiu, e que também deixou os porcos morrerem, porque a fazenda tinha vários
cultivos e ele podia alimentá-los com os produtos. Imediatamente, o assessor-professor
disse que, desta maneira, estavam reconhecendo que não levavam dinheiro e o ideal era
que as testemunhas apoiassem o usuário; neste caso, disse que o senhor onde comprava
o alimento para os animais podia testemunhar que Rogelio não podia alimentar os
animais porque não lhe levavam dinheiro. Também garantiu que o capataz que
trabalhou na fazenda depois da saída do usuário podia testemunhar que os patrões eram
muito descuidados e que não levavam dinheiro para manter a fazenda.
Caso 2: Maria e a falta de consideração de sua patroa
Maria trabalhou como empregada doméstica na casa de uma família na zona
urbana do município de Fredonia; trabalhou neste lugar entre 1999 e 2002, quando
pediu demissão alegando doença. Maria já tinha recorrido à Delegacia do Trabalho da
localidade e ali realizou uma Audiência de Conciliação e fixou-se um valor de
$370.000 que a patroa deveria pagar como Fundo de Garantia por Tempo de Serviço,
juros do Fundo de Garantia e reajuste salarial que não foi pago durante o tempo que
Maria trabalhou. Os ex-empregadores se negaram a pagar tal quantia e, então, por
conselho de vizinhos, decidiu recorrer ao Escritório Modelo. O estagiário (E6) que
recebeu o caso calculou uma indenização do valor da dívida que chegou a $6.000.000.
Depois que o estagiário comunicou a cifra, Maria mudou sua atitude e iniciou uma
troca de insultos com seus antigos patrões fora do Escritório Modelo Rural. Dentro do
Escritório, empenhou-se em conseguir testemunhos e provas que lhe permitissem
continuar com o processo e interpor a demanda. Nas últimas consultas presenciadas,
E6 disse a Maria que não devia insistir no pagamento de uma quantia tão alta como a
que ele inicialmente havia calculado; ela disse que se conformaria com os $370.000
iniciais, mas até o momento em que foi encerrada a fase de trabalho de campo, ela
insistia que não desistiria de continuar com a demanda, em parte porque os insultos e
as “humilhações” se recrudesciam fora do contexto do Escritório Modelo.
As primeiras informações que existem aparecem em um dos documentos
preparados pelos estagiários com data de 28 de setembro, onde se registrou pela
primeira vez o caso de Maria. Nesse documento, a consulta foi resumida da seguinte
maneira: “A usuária Maria [aparece o nome completo] trabalhou como empregada do
serviço doméstico de 1999 a 2002. Trabalhava sem dormir no local, de segunda a
sábado, de 9 às 19 hs. Seu salário em dinheiro no último ano foi de $110.000 mensais.
Demanda fundo de garantia, juros do fundo de garantia e reajuste salarial. Anexa ata de
conciliação em que não conseguiu acordo com a empregadora”. Na Ata correspondente
ao dia 30 de setembro volta a aparecer o caso, mas não são dados detalhes, e se faz a
distribuição oficial, de forma que, a partir deste momento, E6 será o responsável. Não
se faz nenhuma menção adicional. Na ficha de reuniões, preparada por etnógrafos nesta
mesma data, reporta-se à mesma síntese que fizeram os estagiários no relatório de visita
do dia 28 de setembro.
Durante a visita do dia 12 de outubro, a cliente chegou e disse que seu caso já
havia sido atendido em uma sessão anterior. O estudante (E6) perguntou-lhe do que se
tratava e ela disse que era sobre uma indenização. Quando soube do que se tratava,
começou a buscar o nome da usuária no arquivo para encontrar os autos do processo. O
estagiário perguntou se tinha algum pagamento em espécie, Maria não entendeu, então,
perguntou-lhe se lhe davam transporte ou alimentação, ela disse que não lhe davam
ajuda para transporte e que, em muitos casos, tinha que vir a pé da sua casa, localizada
em uma vereda de Fredonia. A casa onde trabalhava como empregada doméstica fica na
zona urbana do município. Logo depois, Maria mostrou ao estagiário alguns recibos
correspondentes a um mês de cada um dos anos que trabalhou nessa casa. Disse que
havia começado a trabalhar no dia 5 de abril de 1999 e que durante esse ano seu salário
foi de $100.000; em 2000 deram-lhe um aumento e seu salário ficou em $105.000, valor
que lhe foi pago também durante 2001; finalmente, em 2002, seu salário foi de
$110.000. Lembrou que trabalhou até o dia 15 de janeiro de 2003 porque estava doente
e queria se dedicar aos filhos. Disse que lhe davam a alimentação e que as férias eram
pagas em dinheiro. O estudante perguntou-lhe se tinha pago fundo de garantia, ou se
haviam feito algum contrato de trabalho. A ambas perguntas respondeu negativamente.
O estagiário também perguntou a respeito do horário de trabalho e ela respondeu que,
no início, chegava às 7 hs, mas depois começou a chegar em torno de 9 hs porque ela
tinha que mandar as crianças para a escola e tinha que chegar a Fredonia a pé; o dia de
trabalho se estendia até as 18 ou 19 hs. Também disse que não tinha sido registrada na
seguridade social porque ela tinha SISBEN
14
e disse que sempre pagaram o salário. Ao
parecer, ela procurou fazer uma conciliação através da Delegacia do Trabalho do
município; ali se declarou que seus patrões deviam pagar-lhe $347.000,00 de
indenização, soma que eles se negaram a pagar. O estagiário insistia em esclarecer a
questão do pagamento em espécie e perguntou se no Natal lhe davam algum presente,
ao qual a cliente disse que só lhe davam $5.000. O estudante disse-lhe que tirasse cópia
dos recibos do salário e também solicitou as cópias dos recibos de água e luz para saber
14
SISBEN é um programa desenhado pelo governo para oferecer serviços médicos e de saúde pública
gratuitos a populações de baixa renda. As pessoas devem comprovar através de recibos de luz, água e
imposto predial que pertencem aos estratos socioeconômicos 0 e 1 – dos 6 existentes. Em grande medida,
este programa abriga pessoas da terceira idade que não contam com aposentadoria ou com um emprego
estável; também abriga mães chefe de família que conseguem comprovar que pertencem aos estratos
socioeconômicos mais baixos e que não têm uma renda mensal fixa.
o local da região em que mora. Ela se despediu e disse que estaria pendente para a
próxima sessão do Escritório.
Quando a cliente já tinha saído, o estagiário dirigiu-se à etnógrafa dizendo que
era provável que ganhasse o caso, principalmente, porque ela tinha recibos que
confirmavam os pagamentos realizados, que estava abaixo do salário legal para uma
empregada doméstica nas condições da cliente (não dormindo no domicílio, com
alimentação e sem auxílio de transporte). Disse que, de qualquer forma, tinha que
consultar sua assessora em questões trabalhistas e que, no caso de que a indenização
fosse maior que 20 salários mínimos, o Escritório estaria impossibilitado de levar o
caso. No relatório correspondente a esta visita, o estagiário relatou o fato ocorrido da
seguinte maneira: “Mostra recibos nos quais consta o salário; diz que lhe davam almoço
e, em algumas ocasiões, comida, mas não consta em nenhum documento. Foi-lhe
informado que leve os originais na próxima viagem para que se abra o processo”.
Posteriormente, na reunião que aconteceu entre o grupo de estagiários e seu assessor,
mas onde também estavam presentes os etnógrafos, fez-se uma discussão do caso. Em
primeira instância, o assessor perguntou aos estudantes pela pertinência do pagamento
de gratificação por serviços nos casos de trabalho doméstico, e a resposta foi que as
gratificações se aplicam às empresas e uma casa de família não é considerada uma
empresa. O estagiário disse que, embora tenha perguntado à cliente em diversas
ocasiões se lhe haviam dado algum pagamento em espécie, a resposta não foi
contundente. Da mesma forma, surgiu uma contradição entre as versões da estagiária
que atendeu na primeira visita (E5) e o estagiário a quem foi designado o caso (E6),
pois não se soube se houve demissão injustificada ou se Maria se demitiu
voluntariamente. A decisão, neste caso, foi de “perguntar mais” porque faltavam
“informaçõezinhas” para construir o caso. Em relação a isto, veio junto a questão da
dificuldade de que o estagiário obtenha informação em aspectos críticos dos casos e
citou-se o caso de uma pessoa que a cada pergunta respondia: “... o que acontece é que
eu quero esquecer do passado”. Os que estavam presente riram e falaram sobre a
dificuldade que é para o advogado lidar com o vocabulário utilizado nas zonas rurais.
Maria recorreu novamente ao Escritório no dia 2 de novembro. O estagiário
disse-lhe que na Universidade de Antioquia (o que significava dizer que havia recebido
ajuda de seu assessor em questão trabalhista), havia sido feita uma indenização com
base nos dados que ela havia fornecido durante as visitas anteriores, e esta chegava a
uma quantia próxima aos $ 7.000.000,00. A cliente surpreendeu-se e não parecia
compreender de onde saía tanto dinheiro. Em comentários posteriores, e dirigindo-se ao
etnógrafo, o estudante garantiu que havia percebido que o olhar de Maria tinha se
iluminado quando disse a quantia, mas esclareceu que, nestes casos, o que geralmente
ocorre é que as pessoas não contam com os recursos para pagar, e tem que se negociar.
Isto não foi dito à usuária no contexto da conversa. Nesse espaço de comentários, o
estagiário mais experimentado (E1) aproximou-se e disse que ele havia tido um caso
similar, onde a “patroa” pertencia a um nível econômico praticamente igual ao da
demandante e, nesse caso, foi impossível exigir que se pagasse de acordo com os
parâmetros legais. Então, a etnógrafa perguntou se, num primeiro olhar, poder-se-ia
dizer que a grande maioria de contratos com empregadas domésticas é feita fora do
estipulado pela lei. Uma das modalidades mais comuns é pagar por dia, sem contrato,
nem férias e muito menos gratificações ou previdência social. Nesse momento, o
etnógrafo também perguntou o caso de sua própria empregada doméstica, que só vai um
dia por semana. Perguntou se, caso ela quisesse, poderia processar e, se isso ocorresse, a
indenização legal seria uma quantia exorbitante. O estagiário (E1 e não E6, quem havia
atendido Maria) afirmou e disse que qualquer empregada em condições similares
poderia processar e acrescentou, tratando o etnógrafo como um usuário, que o que se
poderia fazer era indenizá-la a cada tempo determinado e voltar a contratar depois para
que não fossem apresentados esses inconvenientes.
Voltando à conversa básica com a cliente, ela exclamou, depois que o estagiário
mencionou a quantia: “Se não me pagaram o reajuste da indenização que me fizeram na
Delegacia do Trabalho, que era $347.000, isso muito menos!!”. O estudante (E6)
surpreendeu-se ao ouvir essa quantia e perguntou de que se tratava esse acordo, apesar
de que, na consulta anterior, Maria havia explicado que na Delegacia do Trabalho
tinham tentado fazer uma conciliação com sua antiga patroa por esse valor. O que
parecia surpreender ainda mais o estagiário era a distância entre o valor que ele colocou
na indenização e o valor considerado na Delegacia do Trabalho. Então, perguntou se
tinha o telefone da senhora onde havia trabalhado para chamá-la pessoalmente e
explicar-lhe o que havia sucedido. Logo depois, recebeu cópias dos recibos que
apresentou na visita anterior, mas a usuária esclareceu que esses recibos não lhe eram
dados uma vez por mês, mas uma vez por ano, e que tinha perdido o último. Afirmou
que também tinha guardado o recibo das últimas férias que lhe haviam pago em
dinheiro. Da mesma forma, deu-lhe fotocópias dos recibos de serviços públicos que o
estagiário havia solicitado na vez anterior, mas que não lembrava tê-lo feito. O
estagiário perguntou: “Como fazemos para ligar para essa senhora?” Nesse momento, a
cliente assustada respondeu: “Não!! É que ela, nessa hora, está dormindo. Não entende
que esse é o problema, por isso que eu saía tarde”.
O estagiário explicou: “não podemos ter pretensões tão altas. Eu tento falar com
ela, tente a senhora falar também para ver se, de repente, acontece alguma coisa... a
senhora também pode ceder em algo... o que acontece é que muitos processos não dão
em nada porque a outra pessoa não pode pagar...”. A cliente concordava e voltou a falar
dos $ 347.000 e o estagiário disse que essa indenização não estava bem feita e “dá para
mais”. Maria reafirmou: “Para mim, que paguem mesmo que seja os $347.000... isso
não importa”. Então, o advogado disse-lhe que não era a mesma coisa fazer a tramitação
com uma empresa que com uma pessoa particular. A usuária parecia não entender de
novo e concluiu dizendo: “... essa senhora tinha advogado quando eu fui lhe dizer por
que não tinha se apresentado. Ela me disse que o advogado lhe havia dito que já
estávamos sãos e salvos”. O estagiário comentou que desejava que ela pagasse pelo
menos o reajuste de um dos anos trabalhados, mas a conversa terminou e não ficou claro
se o caso teria continuidade ou se a cliente deve conseguir um advogado por fora, já que
a indenização passou dos $6.000.000,00 autorizados para os casos do Escritório Modelo
da Universidade de Antioquia.
No relatório posterior a esta visita, o estudante anotou o seguinte em relação ao
caso: “Diante das pretensões que chegam a mais de 7 milhões, foi dado um papel onde
fica explicado o que lhe devem e seu consentimento em fazer uma conciliação com o
pagamento de pelo menos um ano de ajuste salarial para que mostre à sua antiga
empregadora. Foi-lhe comentado sobre a possibilidade de ceder em suas pretensões,
lembrando-lhe a situação não empresarial de sua ex-empregadora, ao qual acenou que
era possível. Ficou de falar com a senhora [aparece o nome da antiga patroa] e deixou o
telefone de sua mãe para averiguar a resposta [número do telefone]. Entregou cópia da
carteira de identidade e dos comprovantes de depósito do fundo de garantia. Na reunião
de 4 de novembro, foi lido esse relatório e não foram dados mais detalhes do caso, nem
houve qualquer discussão associada ao que foi informado pelo estagiário.
Maria compareceu de novo no dia 16 de novembro; depois de cumprimentar,
começou a narrar o que, segundo ela, responderam seus patrões quando lhes disse que
no Escritório “estão ajudando-a” para que reconheçam sua previdência social. O esposo
da patroa disse-lhe que podia colocar qualquer demanda, já que eles também tinham
como se defender”, e acrescentou que o que lhe estavam dizendo no Escritório era para
consolá-la. Como o estagiário que está responsável pelo caso não foi à visita, a
estagiária que lhe atendeu (E5) cortou rapidamente a conversa dizendo: “...Sim, é claro
que não querem conciliar. Eu comunicarei ao estagiário. Volte em 15 dias”.
O etnógrafo pediu alguns esclarecimentos para a estagiária e ela disse que o
problema é que, legalmente, a indenização de Maria supera o valor que no Escritório
estão autorizados para fazer conciliação. O que se pretende na conciliação entre a
cliente e sua antiga patroa é baixar o valor da indenização para que os estagiários
possam continuar com o caso. No relatório de visita, a estagiária anotou o seguinte, em
relação à conversa que relatou o etnógrafo: “Maria, usuário do estagiário E6, veio para
lhe explicar o motivo por que não pôde falar com sua ex-empregadora, e que foi
atendida pelo esposo dela”. Não são fornecidos mais detalhes. Na ficha correspondente
à reunião onde foram lidos os relatórios, os etnógrafos relataram que, além da leitura do
relatório da estagiária que falou com Maria, o assessor dirigiu-se a E6 e perguntou-lhe
se será feita a petição; o estudante respondeu afirmativamente e, sem prestar atenção à
resposta, continuou perguntando quem era seu assessor em questões trabalhistas e o
estagiário disse que não lembrava. Não se falou mais do caso e se passou ao seguinte.
Prudentemente, Maria apresentou-se na seguinte visita (30 de novembro de
2003); o estagiário mostrou-se muito amável e se cumprimentaram com familiaridade.
Logo depois, e retomando ao ponto exato onde estava o caso, o estagiário disse-lhe que
havia ligado para a casa de seus antigos patrões e que havia falado com um senhor.
Nesse momento, Maria interrompeu e disse: “Para mim, não abriram a porta; ele disse
que podia processá-lo quantas vezes quisesse, porque ele tinha como se defender”. O
advogado voltou a intervir e apontou: “É que eu tentava dizer, e ele me disse que a
senhora havia aceitado trabalhar com esse salário. Então, eu procurei explicar-lhe a
respeito do salário mínimo e me disse que essa era uma lei muito antiga”. O estagiário
voltou ao esquema usual da conversa da consulta, buscando apaziguar a usuária, e
perguntou: “Em que vereda trabalha? Aqui, novamente, percebeu o desconhecimento de
detalhes da história que no testemunho da usuária estavam claros, e mais ainda depois
de vários encontros; ela respondeu: “Não, é que eu trabalhava aqui na cidade, em frente
ao restaurante ‘Los Violines’”. O estagiário pediu-lhe o endereço exato e como a cliente
não se lembrava, disse que iria à farmácia perguntar o endereço. Não obstante, o
estudante pediu que desse os telefones novamente; ela disse que podia chamá-la na casa
de um vizinho, ou que deixasse recado na casa da mãe que vive em Caldas, um
município vizinho. O estagiário disse que esse era um dado importante para poder fazer
a petição e esclareceu: “(...) a única situação em que se faz notificação na casa das
pessoas é quando é penal, pelo afã da condenação”. Logo que a senhora saiu apressada
para conseguir o endereço exato da casa, o estudante me disse que geralmente se
deparam com casos que dificilmente podem tratar sozinhos. Disse que dias atrás tinha
chegado a ele o caso de um senhor que, sendo proprietário de uma casa, os que moram
nela não deixaram que ele entrasse. O estagiário ficou num dilema, pois não sabia se
acudia à via reivindicatória, pois isso acontece quando há invasão de uma propriedade.
Essa ação proscreve um ano depois de ser emitida; nesses casos, deve-se recorrer a uma
delegacia de política para tirar as pessoas que estão proibindo o acesso da pessoa à sua
propriedade. Recorreu a várias instâncias, conselheiros e inclusive à Diretora do
Escritório Modelo, e ninguém disse com certeza qual caminho deveria seguir para poder
“liberar” o lugar. De fato, comentou que havia recorrido a um professor muito
reconhecido com a intenção de buscar uma saída jurídica e, com suspresa, recebeu sua
resposta: “Não, ali não há nada a fazer, esse é um problema de pantalones
15
. Se ele é o
proprietário, não há nada que possamos fazer, ele tem que ser macho para tirar essas
pessoas dali”.
Maria regressou e confirmou o endereço de seu antigo lugar de trabalho; E6
voltou a lhe perguntar em que vereda morava, a cliente confirmou que morava na
vereda El Zancudo. Já terminando a conversa, se despediram e o advogado colocou: “Se
não a chamo antes, venha de qualquer maneira dentro de 15 dias... e junte os recibos
originais, eu ligo e deixo uma mensagem”. Como tinha visto que o estagiário tinha a
petição pronta para ser assinada, perguntou por que não fazia tal procedimento. Ele
contestou que nesse caso quem devia assinar essa petição era o professor-assessor
porque o valor havia ultrapassado ou estava muito próximo do autorizado para um
estagiário em casos trabalhistas (demandas por valor de até 20 salários mínimos). Esta
também é a quantia que se tem como limite para os processos trabalhistas. Assim,
perguntou-lhe em que casos os estagiários poderiam assinar petições e disse que em
casos trabalhistas de única instância, em casos penais nos órgãos fiscais locais, para
casos como fraude e descumprimento de pensões alimentícias. No relatório de visita, E6
anotou que foi dito à usuária que vai apresentar a demanda já que os patrões não querem
fazer a conciliação; disse, também, que ficam pendentes as assinaturas da procuração e
15
Ao dizer que o assunto “era de pantalones” [calça comprida] faz-se referência a uma forma de exercer
a autoridade masculina no contexto da família, no qual um exercício adequado de tal autoridade não faria
necessária a intervenção dos agentes de justiça do Estado. Como será analisado mais adiante, nesta
afirmação o advogado estava entrando em categorias nativas e na lógica dos valores locais.
os originais dos recibos que a cliente deve fornecer. No contexto da reunião, o estudante
perguntou ao professor-assessor se tinha corrigido a petição que havia redigido junto
com sua assessora trabalhista, já que faltava isso para poder enviar a petição para o
tribunal.
Quinze dias depois (14 de dezembro) Maria chegou e perguntou com uma
maior segurança e confiança se sua filha poderia servir como testemunha; o estagiário
respondeu que o melhor era que fosse um amigo e não um familiar. Então, a usuária
disse que ela tinha pensado em duas pessoas para servirem de testemunhas. O advogado
(E6) insistiu que se necessitava uma pessoa para a questão trabalhista, isto é, para que
dissesse que ela efetivamente trabalhou ali, e outra testemunha para que dissesse que ela
esteve doente, o que motivou seu pedido de demissão. A usuária disse que o médico
podia dar a declaração e se despediu rapidamente prometendo voltar porque ia pegar
uns remédios. Pouco depois, chegou acompanhada por outra mulher, que disse que ia
dar testemunho que ela realmente trabalhava ali. Depois, o estagiário perguntou se tinha
em mente uma testemunha não familiar que soubesse que a usuária esteve doente, ela
respondeu que poderia ser alguém da família de seu marido; também lhe disse que fosse
conseguindo os certificados médicos ou receitas, preferencialmente, dos dias em que ela
trabalhou.
Na reunião posterior à visita, explicou-se que a usuária estava buscando
testemunhas que certificassem sobre sua doença nos dias anteriores à demissão; depois
de explicar isto, o estagiário disse que sua assessora em questões trabalhistas havia
advertido que sem testemunhas, “esse caso cai”. Depois do recesso por período de
férias, a seguinte visita ocorreu no dia 1 de fevereiro, mas Maria só foi ao local de
consulta no dia 15 de fevereiro, levando uma receita médica que mostrou a um dos
estagiários, pois E6 não foi naquela visita. Desta maneira, pretendia comprovar que, de
fato, estava doente antes de pedir demissão e que os custos não foram assumidos pelos
patrões. Da mesma forma, e evidenciando uma segurança nos possíveis resultados do
processo e exibindo uma atitude mais assertiva e dominante (contrária à sua timidez
inicial e insegurança), apresentou as duas testemunhas que o estagiário responsável de
seu caso havia solicitado. A última coisa que se soube do caso, visto que o período de
campo terminou, estava na ficha de reunião do dia 17 de fevereiro de 2004, onde se
registrou que a usuária levou cópia da receita médica e voltou a mencionar a possível
testemunha que havia fornecido seus dados.
Caso 3: A terra de Dario
Dario comprou, há 47 anos atrás, um pedaço de terra que até então havia
pertencido à fazenda onde trabalhava. A transação foi realizada com o dono da
fazenda, que lhe ofereceu facilidades de pagamento; só depois de vários anos
conseguiu pagar o terreno, embora desde o momento da transação – há 47 anos atrás –
foi morar ali com sua família. Diante do aparecimento de um suposto herdeiro dos
antigos patrões, e também impulsionado pelo afã de realizar a partilha de bens, Dario
recorreu ao Escritório Modelo e percebeu que a transação não foi devidamente
legalizada. O cliente considera que ter a escritura basta, mas é necessário que o
terreno esteja registrado no Cartório de Registro de Imóveis e no Cartório de Registros
Públicos. Durante o trabalho de campo, o caso permaneceu estancado na busca do
número de registro da matrícula imobiliária para adiantar o processo de posse,
visando uma posterior partilha de bens. Nos diálogos com a estagiária responsável
(E4), são evidentes questões que remetem ao mundo da honra e dos atos protocolares;
não é em vão a resistência de Dario a assinar qualquer documento e a necessidade de
remeter a narrações prolongadas sobre sua história de vida.
A equipe de pesquisa verificou nos documentos elaborados pelos estagiários, e o
caso de Dario aparece nos relatório de visita de setembro, apesar de não se ter
conseguido estabelecer com certeza quando ocorreu a primeira consulta. Neste caso,
uma das estagiárias (E3) informou que o usuário havia levado aos cartórios as
procurações que a estudante tinha elaborado para fazer uma solicitação no Cartório de
Registro de Imóveis e no Cartório de Registros Públicos. As respostas obtidas foram
definidas como “desfavoráveis” porque não se encontrou o registro do imóvel, dado
requerido para iniciar a sucessão de bens.
Durante a visita do dia 16 de novembro de 2003, a estagiária encarregada (E4)
do caso reconheceu imediatamente Dario, um homem que tem mais de 80 anos, e em
seguida lhe disse: “Necessitamos do número do registro onde estão os limites porque
não figura no Registro de Imóveis nem no Cartório de Registros Públicos”. Aqui é
importante observar que a estagiária tem a escritura original da propriedade, que lhe foi
dada pelo próprio usuário. Dario começou sua narração: “Eu tinha um patrão e o rapaz,
um irmão, foi preso e me disse ‘D. tem um pedaço de terra, se você quer comprar’”.
Imediatamente, a estagiária freou o relato e começou a fazer uma lista da documentação
requerida; disse-lhe que é um caso para fazer um processo de usucapião rural, mas “é
necessário averiguar com os vizinhos para olhar nas escrituras até onde vão os limites,
para averiguar o que era do falecido, e demandar os herdeiros do falecido para que você
possa ficar com isso”. Depois acrescentou: “Pergunte aos vizinhos quem era o dono do
terreno que eles moram, para ver como eles adquiriram esses terrenos, peça que
emprestem as escrituras e você tira cópias para determinar se é o mesmo dono e as
comparamos com sua escritura”. Posteriormente, escreveu em um papel as indicações
para determinar se é o mesmo dono, depois disse que esta era uma “cartinha” para que
mostrasse aos vizinhos para ver se eles podiam ajudá-lo. O cliente afirmou que só tinha
um vizinho e a estagiária insistiu que lhe mostrasse esse papelzinho para ver se esse
senhor podia ajudá-lo a buscar o número de inscrição imobiliária e assim poder
registrar. Da mesma forma, voltou a dizer que falasse com os vizinhos atuais, diante
disso Dario reafirmou que eles já haviam morrido. A insistência da estagiária tinha a
ver com o fato de que ela pretendia que o usuário fizesse a averiguação com os vizinhos
atuais. O etnógrafo ofereceu à estagiária um papel maior para que escrevesse com maior
clareza a razão para o senhor. O cliente esperou pacientemente, olhava o que a
advogada escrevia, colocava a mão na boca, suas mãos tremiam; logo, cruzou as mãos e
tinha uma bolsinha preta, onde trazia uns papéis. A estagiária pediu ao usuário o número
de telefone de sua filha, mas ele não se lembrava; a estudante olhou a bolsa preta onde
tinha os papéis e disse que o chamaria depois, porque ele se esquecia de tudo, enquanto
o usuário repetia que ele já não tinha memória.
No relatório de visita elaborado pela estagiária, foi anotado que a estudante
havia informado a Dario que devia verificar com “os vizinhos que escrituras têm e se
têm número de registro de matrícula imobiliária que permitam estabelecer através deles
se o vendedor dessas propriedades é o mesmo que vendeu o lote onde mora o usuário,
segundo as descrições de tais terrenos”. Já no contexto da reunião onde se fez a leitura
de tais relatórios de visita, foi feita apenas a leitura do fragmento anterior, mas não
suscitou nenhuma discussão.
Dario voltou ao Escritório Modelo no dia 30 de novembro acompanhado de seu
filho, que disse que “a tal estagiária E4” tinha levado a escritura original e acrescentou:
“(...) vocês trabalham com fotocópias e ela levou o original”. Como a estagiária não
estava designada para esta visita, outra estagiária (E3) procurou no “razonero
16
e não
encontrou nenhuma mensagem para Dario; então, começou a escrever uma mensagem
para a estudante responsável, na qual solicitava enviar a escritura original na próxima
visita. O filho de Dario insistia que necessitava da escritura e a estagiária tratava de
tranqüilizá-lo, dizendo que não ia acontecer nada e que se a advogada tinha pedido a
escritura original foi porque necessitava para fazer algum trâmite. Disse que daria o
16
Esta é uma das ferramentas desenhadas no Escritório Modelo para registrar, visita a visita, as
mensagens que os usuários mandam aos estagiários designados para seus respectivos casos, isto em vista
de que os estagiários se deslocam em grupos de três pessoas e podem passar várias semanas sem ir a
Fredonia.
recado à estagiária na terça-feira e que, de qualquer forma, ela estava designada para a
próxima visita. Antes de sair, o filho do cliente disse que eles necessitavam tanto da
escritura pública como das informações com as quais a advogada estava trabalhando
porque estava adiantando “uns negócios”. Ficaram de voltar no domingo seguinte à
mesma hora, despediram-se e foram embora. No relatório correspondente, a monitora da
saída (E3) resumiu a conversa da seguinte maneira: “O usuário Dario perguntou pela
estagiária E4 [aqui cita o nome completo da estagiária responsável] a quem diz ter
entregado cópia autêntica da Escritura Pública de um terreno. O usuário deseja que
devolvam esse documento o mais rápido possível, junto com a informação que tinha
solicitado”. Já na reunião, depois da leitura do relatório onde foi colocada a solicitação
do usuário, a estagiária responsável, que estava presente, comentou que esse senhor é
um “velhinho que vive há vários anos em um terreninho e quer legalizá-lo”. Explicou
que havia feito várias procurações ao Registro de Imóveis e ao Cartório de Registros
Públicos para saber o número de registro da matrícula imobiliária. A estudante disse que
na consulta anterior fez uma “cartinha porque esse senhor se esquece de tudo”.
E4 disse que pediu ao usuário o número da carteira de identidade de quem diz
ser a dona para averiguar no Cartório de Registro de Imóveis, mas o registro não foi
encontrado. O professor perguntou: “Se não conseguimos encontrar o número do
registro, que alternativa temos para garantir o título?” A estudante não respondeu
diretamente a pergunta, mas tratou de explicar o caso: “(...) ele comprou um direito de
herança. A que diz ser a dona, quer tirar dele. Se ela apresenta o número do registro,
então ganhamos o caso”. Sem se referir ao incidente que suscitou a discussão, o
professor-assessor disse que, em outro momento, foi levado um caso parecido e o que
fizeram foi trabalhá-lo pela via de usucapião, processo extremamente lento, que não é
muito custoso, mas que requer uma perícia. O professor-assessor também disse que uma
possibilidade era averiguar com os vizinhos; então, a estagiária disse que ela tinha
escrito uma “cartinha” para que ele mostrasse aos vizinhos e para confirmar o que
estava dizendo; dirigiu-se à etnógrafa e pediu que confirmasse se tinha acontecido
assim. Em outra parte da discussão, a estagiária (E3), que recebeu a reclamação, disse
que Dario tinha ido com um filho e estava aborrecido, parecia questionar o que foi feito
por sua companheira, em vista de que o professor não falou a esse respeito diretamente.
Diante deste comentário, a estagiária disse que o problema era que esse senhor se
esquecia de tudo. Enquanto isso, o professor concluiu dizendo que “enquanto não
apresentar o número de registro de matrícula, não se pode ajudá-lo”.
Durante a visita do dia 14 de dezembro de 2003, a estagiária encarregada do
caso de Dario esteve presente e, graças à pouca afluência de pessoas nesse dia, teve
tempo para uma conversa mais ampla dentro dessa “comunidade de conversação”. A
etnógrafa pôde estabelecer nesta conversa que o cliente tinha recorrido a este espaço
com a esperança de que lhe ajudassem a legalizar uma terra que comprou na Vereda El
Zancudo há 47 anos e na qual mora atualmente. A questão é que um patrão seu, na
realidade, foi quem comprou a terra; ele disse a Dario que fosse morar ali com sua
esposa e que fosse pagando o terreno aos poucos. O cliente garantiu que havia pago ao
patrão até o último centavo e assim criou toda sua família. O problema é que agora
apareceu um suposto herdeiro e desconhece a posse sobre a terra de Dario.
A estagiária elaborou uma nova procuração com os dados e documentos que o
usuário levou na consulta. Enquanto isso acontecia, Dario narrava à etnógrafa que “a
terrinha” era pequena e que tinha cultivos de cana e café, “mas que não são grande
coisa”. Não deixou claro com quem está morando: com uma filha ou uma sobrinha; a
questão é que seus outros filhos moram em Medellin e Cali. Enfatizou que teve que
ajuda a criar seus outros irmãos, por isso trabalha desde os sete anos. A estudante
interrompeu e mandou que ele tirasse cópia da escritura. Antes de sair, o cliente disse
que ele não ia assinar nada porque seu filho advertiu que não o fizesse; diante desta
advertência, a advogada (E4) disse que os filhos são “descarados”, pois deixam que ele
vá sozinho à consulta, sabendo que ele não sabe ler e que se esquece de tudo. Durante a
ausência de Dario, a etnógrafa perguntou mais detalhes do caso e a estudante explicou
que o que se pretende fazer é conseguir o número de registro da matrícula imobiliária
para saber, na realidade, a quem pertence o terreno e qual é seu estado atual. O
problema, segundo a estagiária, é que no Cartório de Registros Públicos não aparece o
número de registro: “(...) pode haver muitas escrituras, mas se não aparece o número do
registro, não podemos fazer nada”. Em certa medida, isto favorece o usuário, pois assim
ninguém poderia demonstrar que não é o dono legítimo. Além disso, e lembrando o que
foi dito pelo assessor-professor na reunião, Dario já tem o tempo que exige a lei para
tomar posse de um terreno abandonado, se esse fosse o caso.
Ao regresso, o usuário continuou relatando à etnógrafa parte de sua história de
vida; falou de sua esposa Maria: disse que um dia ela adoeceu e rapidamente morreu em
uma clínica em Medellin. Seus olhos se encheram de lágrimas e a voz ficou
entrecortada, enquanto falava do quanto gostava dela e a falta que ela fazia. Disse que
sem ela, já não valia a pena viver. Enquanto esta conversa acontecia, a estagiária estava
ali, mas não prestava muita atenção, pois estava redigindo uma procuração; assim,
novamente interrompeu a conversa entre Dario e o etnógrafo. A advogada advertiu que
este e os outros papéis deveriam ser entregues ao Cartório de Registros Públicos.
Imediatamente, o cliente se aborreceu e disse que já tinha ido lá muitas vezes; a
estagiária disse que sabia, mas que era a última vez. Então, disse que fizesse de conta
que ela era a funcionária de Registros Públicos, a quem ele deve entregar os papéis e a
quem devia explicar o que necessita. O cliente começou a rir, mas fez o exercício
pedido pela estudante (E4). Além da simulação, escreveu em um papel o que devia
fazer no Cartório de Registros Públicos. Quando a estagiária pediu que assinasse o
protocolo de que ela entregou-lhe esses papéis, Dario negou-se de novo: “(...) o que
acontece é que meu filho diz que com essa assinatura podem me prejudicar”. Depois
que ambos – etnógrafa e estagiária – explicaram que este era somente um trâmite, que
não o prejudicava, consentiu em assinar o documento. Depois que a advogada terminou
as questões relacionadas com os documentos e tramitações quis, de alguma maneira,
fazer o que a etnógrafa vinha fazendo com o usuário durante a consulta: conhecer sua
história de vida. No entanto, a estudante foi meio imprudente com Dario, pois fez
perguntas como: quantas mulheres o senhor teve? Só tinha relações com uma? O senhor
era muito infiel? A conversa terminou e o caso só voltou a ser tratado na visita do dia 1º
de fevereiro, quando o usuário voltou ao Escritório Modelo.
Quando a etnógrafa chegou à Casa da Cultura – sede do escritório no município
–, o cliente estava dando alguns dados do processo ao professor-assessor. Nada que não
tivesse dito na conversa anterior. Logo que o professor foi embora, E4 continuou
ampliando aspectos relacionadas com sua história de vida. Desta vez, falou de coisas
mais gerais, mas não por isso menos importantes: das pessoas que moram na vereda El
Zancudo, da flora e fauna da região, etc. Disse que as pessoas que moram nesta vereda,
em geral, trabalham ali mesmo cultivando a terra como ele. Falou também do desgaste
da terra e do pouco que produz hoje em dia: “Há trinta anos, a gente tinha que pedir que
nos ajudassem para tirar as raízes que um pé de mandioca produzia; hoje, a duras penas
tiramos três mandioquinhas”. As bruxas, enterros e mitos da região também estiveram
presentes na conversa. Segundo Dario, na sua época de juventude, havia mulheres
“más” que faziam bruxaria para os homens. Ele foi vítima de uma delas: “Eu sentia que
ela ficava em pé sobre meu peito durante a noite e não me deixava ter vida. Um dia
pude ver o rosto dela e isso foi suficiente para que me deixasse tranqüilo”. Os enterros
ou “guacas
17
também eram assuntos quase cotidianos na vida da região: “Muita gente
se enriqueceu com estes enterros; um dia, eu me deparei com uma panela cheia de
carvão com um amigo, mas como não tínhamos medo do diabo, deixamos ela de cabeça
para baixo e nos retiramos do lugar”. Segundo ele “a chave está em não demonstrar
medo ao diabo e enterrar novamente a panela para que o carvão se transforme em ouro”.
Visto que não foram muitas pessoas para consultar, a estagiária acompanhou a
conversa que estava acontecendo, fundamentalmente, entre o usuário e a etnógrafa. Não
obstante, aproveitando que a estagiária se ausentou por um momento da conversa,
Dario se dirigiu à etnógrafa e disse que um sobrinho seu havia sido condenado a 40
anos por assassinar sua mulher. Quando a etnógrafa perguntou por que não havia
comentado o caso com a estagiária, respondeu: “Há coisas em que as mulheres não
ajudam os homens. Por isso não disse diante dela”. A etnógrafa comentou que,
independente de seu gênero, ela tinha uma formação específica e também tinha que
trabalhar na defesa desse tipo de caso. Mesmo assim, Dario insistiu que trataria do
assunto com o “doutor”, o professor dos estagiários. A estudante voltou e pediu ao
cliente o número de telefone de seu vizinho para perguntar sobre o número do registro
de seu terreno e, assim, poder rastrear o número do registro do terreno de Dario. Na
reunião do dia 3 de fevereiro só foi dito que se esperava que o vizinho do usuário
emprestasse a escritura para ver o número de registro de matrícula e, assim, estabelecer
o número de registro da propriedade do usuário. Posteriormente, na reunião dos
estagiários do dia 17 de fevereiro, foi dito que na visita do dia 15 de fevereiro, o usuário
não tinha deixado as escrituras. Não foram dados mais detalhes nem se discutiu nada
mais a respeito.
No dia 29 de fevereiro, Dario foi novamente ao Escritório Modelo, mas não
encontrou a advogada que assumiu seu caso; dirigiu-se à outra estagiária (E2) e ela
disse que não sabia se a estudante responsável (E4) havia lhe mandado alguma
explicação porque ela esqueceu o “razonero”, mas disse que ele ligasse para ela.
Visivelmente incomodado, o usuário disse que vive no campo e não pode ligar para a
estagiária depois das 20 hs, que é a hora em que pode encontrá-la. Por último, o que se
soube do caso, na reunião do dia 2 de março – última reunião que os etnógrafos
17
Na Colômbia, as “
guacas
” são tesouros que permanecem enterrados ou ocultos durante séculos. Dizem
que eles avisam para serem desenterrados através de luzes e ruídos, mas sobre quem os encontra pode cair
uma maldição ou pode adoecer gravemente. Existe uma associação entre as “
guacas
” e os restos
arqueológicos dos grupos pré-hispânicos; de fato, os saqueadores de sítios arqueológicos são chamados
guaqueros
”.
compareceram – foi que o usuário compareceu à visita e perguntou pela estagiária. Não
foi dito nada mais a respeito.
Caso 4: O desejo do divórcio
O propósito inicial de Andrés ao recorrer ao Escritório Modelo era de se
divorciar de sua esposa, da qual estava separado há vários anos. Tanto a esposa de
Andrés como ele têm novas uniões, apesar de que só no caso de Andrés existe uma
filha dessa nova união. O estagiário (E6) que fez a consulta pela primeira vez,
esclareceu que só podem ser levados casos de divórcio por acordo mútuo, que são
resolvidos através de Audiências de Conciliação; este não era o caso de Andrés pois,
claramente, sua esposa não estava de acordo com o divórcio. Digamos que o caso deste
cliente pode se resumir como um nó de processos. Nas primeiras consultas, Andrés
manifestou sua preocupação pela separação de bens, alguns conseguidos por ele
depois da separação. Posteriormente, o caso foi se orientando para a redução da
pensão alimentícia, o que suscitou polêmica entre o grupo de estagiários –
especialmente por parte de E1 e do assessor – que consideraram baixa, por si, a
pensão fixada no juizado. Mais adiante, o caso foi redirecionado devido à nova
demanda de alimentos, apresentada pela esposa de Andrés no município de Segovia,
contíguo a Fredonia, mas onde os estagiários não podem atuar, pois sai de sua
jurisdição. A esse fato, há que somar a trombose e o posterior acidente sofridos por
Andrés e que, ao final, tornaram Carmen – sua atual companheira – um eixo
fundamental do processo, mas que também modificaram a postura do estagiário (E6).
A fase de trabalho de campo terminou, e em quatro meses nenhum dos possíveis
processos havia começado nem se havia detectado o rumo a tomar.
Neste caso, os etnógrafos estiveram presentes durante a consulta que Andrés fez
pela primeira vez. O cliente cumprimentou, sentou-se e, imediatamente, começou a
contar sua história, não olhava o estagiário nem o etnógrafo, dizendo que há 10 anos
que sua mulher o havia abandonado e que queria se divorciar dela. Imediatamente, o
estagiário (E6) perguntou pela data, pelo menos o ano do casamento, e o cliente disse
que não se lembrava. Depois, perguntou se o casamento era católico e ele respondeu
afirmativamente; em seguida, perguntou pela certidão de casamento e Andrés disse que
não sabia se tinha e se contentava em repetir: “Eu criei os 5 filhos e ela foi embora com
outro”.
Mais adiante, disse que a questão era que ele “já tinha outro compromisso”,
embora continuasse respondendo pelos filhos de sua primeira união. Disse que seus
filhos iam e vinham, que passavam temporadas com ele e temporadas com a mãe.
Seguidamente, tornou a reiterar: “Tenho descuidada a que mora comigo, e eu agora
passo a ter outra obrigação”. Com isto, referia-se a uma filha que tinha com sua nova
companheira, com a qual está há mais de um ano. E6 parecia não reparar muito nestas
partes do testemunho e, constantemente, interrompia fazendo perguntas que buscavam
respostas concretas. Perguntou, então, quantos filhos da primeira união são menores de
idade; o cliente disse que dois eram maiores de idade (18 e 19 anos), e que três ainda
eram menores (12, 14 e 16 anos). Nesse momento foi quando o cliente disse que sua
mulher o havia processado por pensão alimentícia, processo que abriu no município de
Segovia, onde ela reside. Novamente, voltou a se justificar com a questão do abandono
do lar: “Ela me processou em Segovia porque aqui sabem que foi abandono de lar... e
até meteu o amante dentro de casa”. E6 interrompeu perguntando se a mulher estaria de
acordo com o divórcio e respondeu: “Ela tem que ceder. Eu ia procurar um advogado,
mas me falaram de vocês”.
A estagiária perguntou sobre o lugar onde mora e o cliente disse que no
corregimiento
18
Los Palomos, e perguntou, também, o nome da esposa. Apesar do
testemunho ter sido bastante detalhado quanto à explicação da composição de sua
família, o estagiário voltou a perguntar quantos filhos e filhas tinha (dois homens e três
mulheres). O estagiário continuou com a questão do processo por pensão alimentícia em
Segovia e perguntou se lembrava se tinha sido em um juizado de família e o cliente,
sem se deter muito em sua resposta, disse que achava que sim. Depois de uma pausa,
comentou: “O que acontece é que eu agora passo a ter 16 hectares de carvão e eu não
quero que ela esteja me perturbando”. Então, o estagiário perguntou se a propriedade
pertencia a ele e respondeu que não, mas que a tinha há um ano e meio. Nesse instante,
houve silêncio, então E6 explicou que quando uma “sociedade conjugal se divide, as
propriedades também devem se dividir”. O cliente parecia não prestar atenção à
explicação e repetia um pouco exaltado: “Não, tenho que buscar uma forma porque
devo isso à menina... é que foi ela quem foi embora há anos”. Mais adiante, e diante da
pergunta das propriedades, disse que o terreno da casa na qual mora com sua nova
companheira e com a filha, e que fica próximo à estrada de ferro, no setor Los Palomos,
é de propriedade de Ferrovias, uma empresa do estado. O estagiário intercedeu para
uma tentativa de acordo, mas o cliente foi enfático ao dizer que essa casa ele tinha
conseguido depois de ter sido abandonado, e que não ia permitir que a tirassem dele: “...
prá que? Prá ela se meter com um amante... eu não vou permitir isso!!!”. Nesse ponto,
foi dando informações, que é sua forma particular de construção da história, que não
havia mencionado. Disse que estava inscrito no Comitê de Habitação do Município e
18
N.T.
Corregimiento
é a menor entidade territorial do município, equivalente a distrito no Brasil.
que já havia pago muitas cotas e que as coisas pareciam que estavam saindo, um motivo
a mais para querer o divórcio imediatamente.
O estagiário insistiu de novo que o Escritório Modelo não trabalha com casos de
divórcio se não é de acordo mútuo e através de uma Audiência de Conciliação. Então, o
cliente colocou novamente: “Mas é que eu tenho uma casa há um ano e meio e temos
que encontrar uma solução”. O estudante perguntou sobre seu salário e disse que não
tinha um salário fixo, que havia quinzenas que chegava mais dinheiro, de acordo com os
trabalhos desempenhados, mas que tinha quinzenas em que a cota baixava
ostensivamente. Nesse ponto, voltou a falar do processo de pensão alimentícia e disse:
“Ela está pedindo $100.000 e eu agora estou mandando o que posso, $60.000, $70.000.
No início, eu dava entre $80 e 90 mil, mas é que antes eu devo fazer um processo por
abandono de lar. É que se eu fosse um maconheiro, um irresponsável. Eu não joguei os
filhos para a perdição... é que ela inclusive chegou a dormir com o amante na própria
casa”. O estagiário insistiu na conciliação e o usuário disse que ele preferia ficar com os
cinco filhos em lugar de ter que ceder diante de sua mulher, com propriedades e tudo.
Quando a etnógrafa perguntou sobre sua nova união, disse que seus filhos
haviam aceitado sem nenhum problema e acrescentou: “Eles sabem que eu ainda sou
um homem íntegro e ela é a mulher ideal para mim, sabe me servir... tiro uma calça
comprida e logo em seguida ela lava”. Para finalizar, o cliente terminou dizendo que,
apesar dele mandar uma pensão mensal, sua esposa cobra a alimentação para o filho de
16 anos que, embora viva com ela, já trabalha e tem um salário. Também acrescentou
que o problema é que ela dá dinheiro para sua mãe e outros familiares. Nesse momento,
o estagiário interrompeu e perguntou pela data do processo de pensão alimentícia;
Andrés disse que tinha sido no ano anterior (2002). Já nesta parte final da consulta, o
estagiário perguntou se o casamento tinha sido na Igreja, um dos primeiros dados que o
cliente havia dado, a resposta foi afirmativa. Logo, perguntou se já tinham adiantado
trâmites para a separação de bens, e com toda a informação anterior era óbvio que não
havia feito, portanto, a resposta foi negativa. Novamente, E6 procurou enfatizar a
importância de se colocarem de acordo e de fazer um divórcio mediado por uma
Audiência de Conciliação. O cliente disse que procuraria falar com ela, ligar para ela em
Segovia, município onde reside, para tratar de chegar a um acordo. Nesse momento, o
advogado solicitou o endereço de ambos e o telefone (no caso de Andrés, este disse que
podia se comunicar por meio de rádio-telefone). Quando o cliente disse que sua “ex-
mulher” morava em Segovia, o estagiário se surpreendeu e exclamou: “Ah, ela mora em
Segovia”, quando este também foi um dos dados proporcionados e reafirmados durante
o testemunho do usuário.
Antes de ir embora, Andrés perguntou ao estagiário: “Quanto é o salário
mínimo de um rapaz? E ele respondeu, sem vacilar que o salário mínimo legal equivale
a $332.000,00. Nesse momento, ficou evidente uma ruptura na comunicação entre as
duas partes e aí interveio o etnógrafo esclarecendo que, provavelmente, o que queria
perguntar o cliente era: “Quanto equivale a pensão alimentícia oficial para um menor de
idade?” Então, o estagiário explicou que isso dependia do salário, e que era um conceito
que podia ser revisado em qualquer momento. Nesse instante, também ficou evidente
um acordo não oficial (um arranjo informal) que fizeram Andrés e sua ex-mulher com
relação à pensão. Apesar dele ter podido pedir que voltassem a estudar a pensão que
tinha que passar para seus filhos, fixada em $100,00, sua ex-companheira aceitou que
lhe mandasse “o que pudesse mensalmente, o que conseguisse juntar. Ela me disse:
tranqüilo que sua pensão é de $50.000... é que ela está cobrando um salário mínimo
muito grande”. Foi aí que o estagiário perguntou qual era sua idade e ele disse: “Tenho
53 anos e eu já passo a ser um homem doente, olhe, ultimamente dói por debaixo de um
pé...” E6 disse que em caso de que chegasse a um acordo com sua mulher, e entrassem
em uma Audiência de Conciliação, tinham que ter clareza sobre a pensão alimentícia
para os filhos menores, a custódia dos filhos menores e os bens.
Neste relatório de visita, E6 informa sobre o caso da seguinte maneira: “Usuário
novo. Solicita parecer para divórcio e liquidação da sociedade conjugal. Ficou de falar
com a cônjuge, que atualmente não vive com ele e é ela quem está encarregada dos
filhos, no que concerne a um acordo com a esposa. Sobre o regime dos filhos e do bem
imóvel construído durante o matrimônio em um terreno que não é dele”. Na reunião
posterior só se fez uma leitura do relatório do estagiário e não se abriu um espaço para
uma discussão mais ampla.
Andrés voltou ao Escritório Modelo no dia 2 de novembro e teve que esperar
enquanto o estagiário atendia outro usuário. Aguardou um bom tempo e parecia
impaciente para falar com o advogado. Apenas conseguiu cumprimentar quando disse:
“Me dei mal com ela. Esteve em Fredonia esta semana e disse que tenho que dar a ela
25% do salário que tenho... eu não sei por que diz isso. Eu queria saber de onde ela tirou
isso”. O estudante interrompeu e solicitou que voltassem a falar da casa que se encontra
no terreno de Ferrovias: “Eu comprei isso há três anos, mas estava em posse de outro
senhor: Carlos S... ele era proprietário da casa porque o lote continua sendo da ferrovia.
Ele morou lá há dois anos, a casa foi ele quem construiu”. Logo em seguida, E6
perguntou a respeito da pensão alimentícia e, sem lembrar o que foi dito na visita
anterior, perguntou quanto era o que lhes passava. Andrés disse que a pensão foi fixada
em $100.000,00 e acrescentou: “Eu quero buscar a forma de baixá-la porque foram duas
quinzenas onde juntei $250.000,00 porque estive doente e como eu estou em vários
trabalhos. O que quero é que ela me dê o divórcio, então, se fica difícil para ela com os
filhos que...”. Sem deixar que termine, o estagiário disse que divórcio e pensão eram
duas coisas muito diferentes e acrescentou: “Se o senhor quiser, podemos revisar o
processo?” O cliente parecia desesperado e respondeu que sim e disse: “... eu falei com
ela de tudo, bens, divórcio... de tudo, mas é que a casa ainda não tem os papéis porque
devo $70.000,00 embora já tenha pago 1.130.000,00... acabando de pagar isso...”. O
estagiário voltou a interromper e perguntou se tinham construído sem autorização de
Ferrovias e a resposta foi um sim, em um tom muito baixo. Sem se deter nesta última
pergunta, o cliente insistiu: “O que acontece é que ela está desgostosa pela mulher que
tenho agora... ela não quer me deixar nada... nesta casa eu coloquei água, fiz um
corredor...”. E6 refletiu durante um momento e disse que podia fazer uma revisão do
processo de pensão alimentícia. Também disse que lembrava que o Escritório só podia
levar casos de divórcio de acordo mútuo e, pela primeira vez na conversa, Andrés se
viu praticamente obrigado a dizer que ela sim tinha aceitado o divórcio.
Nesta parte da conversa interveio o estagiário E1 e, em seguida, o estagiário
responsável pelo caso resumiu o assunto em termos puramente jurídicos, onde fez
alusão tanto à pensão alimentícia como ao divórcio. E1 perguntou rapidamente ao
cliente: “Onde o senhor assinou essa petição?” Andrés respondeu que tinha sido em
Segovia. Perguntou se era possível conseguir uma cópia e o cliente só conseguiu
responder diante da rajada de perguntas “... é que as coisas sempre vão a favor das
mulheres...”. O cliente perguntou qual era o salário e quanto chegava a pensão
alimentícia. Andrés respondeu a mesma coisa que reiterou durante as duas visitas: que
seu salário é variável e que a pensão imposta equivale a $100.000; neste caso, não falou
do arranjo informal que tinha feito com sua esposa para passar menos dinheiro devido à
não estabilidade de seu salário. Quando o cliente tentou dizer algo, E1 interveio dizendo
que por ser uma pensão para três filhos menores estava “muito baixa” e parecia surpreso
de que o salário fosse muito menor que o mínimo. E1 mostrou certa desconfiança com o
testemunho do cliente, desconfiança que o outro estagiário não tinha mostrado (E6). E1
confirmou sua desconfiança quando disse: “... mas é que o senhor está me dizendo que o
que lhe pagaram nestas quinzenas é menos que o mínimo”. Imediatamente, Andrés
colocou que o que acontecia era que ele tinha estado doente. O estagiário refletiu e
perguntou se havia uma forma de conciliar com ela e perguntou se tinha algum telefone
para se comunicar com ela; também perguntou por que não a chamava. Andrés afirmou
que ele tinha o número do celular do atual marido, o que causou risos por parte de todos
os presentes, mas insistiu em não querer chamá-la: “Por que eu não dou uns $15.000
para vocês e vocês falam com ela?”. Enquanto E6 permanecia calado, E1 disse que essa
não era a razão e que eles, da Universidade, podiam chamá-la. Perguntou rapidamente
como era a relação com sua nova companheira e se tinham filhos (já nesse ponto, a
conversa avançava a cada frase a grandes passos); o cliente disse que tinham uma filha,
mas que ela já tinha outros 2 filhos que também moram com eles.
Imediatamente, E1 disse ao cliente que propunha fazer o procedimento em dois
passos: (1) fazer o divórcio e não tocar na pensão alimentícia e (2) negociar os bens.
Pediu que trouxesse os papéis que tivesse “e pronto”. O estagiário concluiu dizendo:
“Façamos o negócio”. Só nesse instante, E1 pediu o nome da esposa da qual iria se
divorciar. Também perguntou se ela tinha filhos com o novo companheiro, pergunta
que o estagiário responsável não tinha feito, e o cliente colocou: “Não tem mais filhos
porque ela, do meu lado, saiu operada... Palomos está impressionado com o que esta
mulher está fazendo. Eu saía do trabalho para lavar bacias de roupa; eu lutei muito para
criar estes filhos e agora ela leva eles!!”. E6 interveio e interrompeu dizendo que, então,
iniciaria o processo de divórcio, mas o importante era conseguir uma procuração onde a
mulher aceitasse o início dos trâmites. E1, tratando de tornar o final da conversa mais
“amável”, perguntou ao usuário o que fazia o novo companheiro de sua mulher, e ele
respondeu que também era mineiro. O estagiário riu e disse que se notava que ela
gostava dos mineiros. Andrés concluiu dizendo: “A gente gosta muito do evangelho...
então, queremos nos divorciar. Eu cheguei e disse a minha mulher que tinha falado com
vocês e que, de cara, o dela também se fazia tranqüilamente. O que acontece é que
quem era marido dela antes matou o pai – dela – por uma dívida de $20.000 e por isso
foi que se deixaram”.
Na reunião correspondente, o estagiário (E1) explicou o caso – além de ler seu
relatório –, disse que tinha se lembrado de citar a senhora para falar do divórcio já que
deve ser de acordo mútuo e que se tinha acertado que logo depois tratariam da questão
dos bens. E1 complementou dizendo que ele sugeriu fazer primeiro o divórcio de
acordo mútuo para “desatar um pouco o caso”.
Para terminar, e a propósito do salário “variável” de Andrés, E1 assinalou,
incrédulo: “Dever ser que está metendo cana com a questão do salário”
19
. O assessor
interveio dizendo que não iam diminuir essa pensão; depois, junto com E1, garantiu que
isso era “muito pouco dinheiro e que se desse por satisfeito”. Ao dirigir-se para o
estagiário responsável pelo caso (E6), o professor-assessor disse que “ficasse quieto
com a questão da pensão alimentícia” e pediu para citar a esposa para falar do divórcio.
E1, e não o estagiário responsável, comprometeu-se em falar com o cliente durante a
próxima visita. Como o usuário deixou o número do telefone celular da esposa, E1 disse
que ele “dava de presente a ligaçãozinha”. O professor colocou que isso correspondia ao
cliente, pois era ele quem tinha que dizer à sua “esposa” que fosse ao Escritório
Modelo. Ele também perguntou: “Se o filho de 17 anos trabalhava, eu posso demandar
para que me tirem ou diminuam a pensão alimentícia?”. Nesse momento, todos tentaram
dar uma resposta. Uma das estagiárias (E5) respondeu afirmativamente e o professor
confirmou que esta era a resposta porque a questão se mede de acordo com a relação
capacidade-necessidade. Nessa medida, se um filho trabalha e ganha muito, um pai
pode demandar pensão alimentícia a seu filho, já que a relação de capacidade-
necessidade se dá ao contrário (filho-pai). Ao final, o próprio professor concluiu
dizendo que é um caso ainda não definido, e pediu para tê-lo em conta, mas sem
começar a preparar um processo propriamente.
A próxima informação que se tem do caso está registrada no relatório de visita
do dia 30 de novembro; infelizmente nenhum dos etnógrafos esteve nesta consulta,
embora o estagiário E6 tenha anotado o seguinte em seu relatório: “Trouxe papéis para
seu divórcio e para a possível diminuição da pensão alimentícia. Disse que há 15 dias
sofreu um derrame (nota-se que está muito mal na parte esquerda de seu rosto). Diz que
não lhe deram o remédio para sua doença porque o POS (Plano Obrigatório de Saúde)
não cobria e, então, ele decidiu comprar o remédio por sua conta. Pediu-se a ele outros
dados: o endereço de sua esposa [inclui-se o nome completo]; faltou a certidão de
nascimento de uma das filhas [anota-se só o nome, sem o sobrenome]. Para o caso da
pensão alimentícia tem que continuar averiguando a respeito da cópia do acordo que
tinha chegado com sua esposa. Volta a dizer que trabalham a filha mais velha, seu filho
de 16 anos e seu filho de 18, e que os únicos que não trabalham são: a menina [dá o
nome] e o menino”. Na reunião, fez-se uma leitura desse relato e, visivelmente
19
Esta expressão significa que o dinheiro do salário é gasto em bebidas alcoólicas.
aborrecido, o professor perguntou se o cliente tinha levado os papéis, quando o
estagiário explicou que sim, mas que não estavam completos, o assessor respondeu que
se não são suficientes que não recebam e acrescentou: “(...) os usuários acham que por
que nos entregam um papel e uma fotocópia, já estão encaminhando o caso”. Enquanto
o estagiário lia seu relatório, mencionando o derrame sofrido pelo usuário, E3
perguntou o que tudo isso tinha a ver com o caso, e o estagiário disse que havia incluído
isso porque Andrés tinha lhe contado durante a consulta.
O cliente não voltou ao local de consulta até que, no dia 1º de fevereiro de 2004,
compareceu com sua atual companheira, Carmen. Ela procurou o estagiário
responsável pelo caso (E6) e se apresentou; apareceu com seus filhos menores, uma
menina de um ano e um menino de seis. A menina é a filha de Andrés. A etnógrafa fez
um comentário sobre as crianças que permitiu perguntar-lhe quantos filhos tinha e se
surpreendeu quando disse que tinha seis filhos pois, segundo o que foi dito até o
momento, pensava que só tinha uma filha com Andrés e outros dois filhos de sua união
anterior. Ela explicou ao estagiário que desde que Andrés tinha sofrido o derrame, “a
vista estava falhando”, por essa razão foi vítima de um acidente de trânsito: “Está
perdendo essa vista e, em meio a essa incapacidade, teve o acidente. E como pode ser
que ele tenha que trabalhar para um dos filhos [os filhos da primeira união] que já está
trabalhando”. O estagiário perguntou quanto estavam pagando durante a incapacidade e
ela disse que $165.000, mostrando o recibo do banco. O estagiário recebeu-o mas se
negou a vê-lo com detalhe e a mulher continuou com o testemunho: “O que acontece é
que ela [a companheira anterior de Andrés] tornou a processá-lo, a citação era no dia 16
de janeiro: eu mandei umas declarações para dizer por que ele não ia... é que nas
condições em que ele estava. A citação foi em Segovia no dia 16 de janeiro: chegou a
citação para ele em casa”. O estagiário perguntou pela gravidade das lesões e a mulher
disse rapidamente: “Aqui tenho a radiografia para que veja; o que acontece é que estão
renovando a incapacidade dele a cada mês... o acidente foi em Amagá... Advogado, o
senhor sabe que o processo começa quando ela voltar, e ela mudou os papéis de juizado,
e Andrés me mandou dizer que ela não quis lhe dar esse papel que o senhor pediu; além
disso, faltava a certidão de uma das filhas e não se conseguiu ninguém para trazê-la”.
Depois desta intervenção, E6 disse: “Vai precisar fazer uma procuração para
pedir o papel ao juizado, porque necessitamos ter cópia do documento onde se fez o
acordo inicial de pensão alimentícia”. A cliente voltou a perguntar se, então, nesse caso,
se tratava de um novo processo, informação que ela mesma tinha proporcionado, e o
estudante respondeu que podia aproveitar esse novo processo e pediu para guardar toda
a documentação, “embora fosse bom que ele continuasse pagando, mesmo que sejam
$5.000, o que puder, e guardar esses recibos. É que o que os juízes vêem é que as
pessoas não se separaram por completo de sua obrigação”. Para finalizar, Carmen
acrescentou: “(...) é que quando ela percebeu que vocês tinham o número do celular,
mudou... mas já temos os novos. Olha, eles são...”.
Na reunião posterior a esta visita, o estagiário comentou o caso e voltou a falar
da redução da pensão alimentícia; E4 interveio dizendo que se quer fazer isso tem que
voltar a fazer a conciliação para que reduzam a pensão. Como foi dito que a esposa
morava em Segovia, dado que foi fornecido ao estagiário desde a primeira visita e que
anotou em um dos relatórios, foi só neste encontro que se reparou nisso. Disse, então,
que eles “não tinham competência” em tal município. Apesar do caso ter sido
mencionado em diversas ocasiões, só se lembraram quando o estagiário mencionou que
o usuário mora em um terreno que é de Ferrovias. O estudante (E6) disse que Andrés
tinha uma filha com sua atual companheira e que ela tinha um filho com outro homem;
diante desse comentário, E4 mencionou: “(...) que famílias tão disfuncionais”. Ao final
da reunião, foi aconselhado ao estagiário que dissesse a Andrés que continuasse
pagando a metade da obrigação e falou-se em escrever ao juiz uma carta para solicitar o
documento da demanda.
Carmen voltou ao Escritório no dia 15 de fevereiro de 2004; nesta ocasião, foi
acompanhada de sua filha mais velha, de aproximadamente 16 anos e apresentou-a tanto
ao estagiário como ao etnógrafo. Vale a pena dizer que ela, ao não ver o estagiário
designado, dirigiu-se ao lugar onde se encontrava o etnógrafo que tinha estado presente
na visita anterior e que também tinha falado com Andrés. Quando Carmen apresentou
sua filha, E1 não reparou nem respondeu; parecia ocupado em terminar cada consulta
no menor tempo possível. Ao ver esta atitude do estagiário, Carmen disse que queria
mandar uma mensagem ao estagiário E6 porque a esposa de Andrés tinha dito que o
documento relativo ao primeiro processo de pensão alimentícia estava no juizado de
família em Segovia, junto com a nova demanda instaurada. A usuária limitou-se a dar a
mensagem, mas claramente se sentiu intimidada pela atitude do estagiário E1.
Rapidamente, despediu-se enquanto o estagiário, sem responder, chamava o seguinte.
Na reunião posterior, durante a leitura do relatório, foi dito que o estagiário encarregado
do caso podia ter acesso a uma cópia da nova citação para a demanda.
Caso 5: A salvação de José
José foi ao Escritório Modelo com a idéia de se divorciar de sua primeira
esposa, com quem se casou pela Igreja Católica em 1957, embora a união tenha
durado menos de um ano. O cliente tem outra união há 25 anos. Apesar de existirem
dois motivos suficientes para se rejeitar o caso – que fosse um divórcio litigioso e não
de acordo mútuo, e que José não vivesse em Fredonia –, os estagiários e o assessor
decidiram “ajudar” José porque ele apresentou argumentos religiosos – morais, nas
palavras dos próprios estagiários – como a principal motivação para recorrer ao
Escritório Modelo Rural. E1 foi quem interveio para fazer uma exceção a José e
conseguiu o consenso entre seus companheiros. O caso não avançou durante quase três
meses porque o cliente não conseguiu o registro cartorial da certidão de casamento.
Aos poucos, foi-se tornando evidente o desgaste de José pelas demoras do caso e pela
angústia gerada pelos trâmites solicitados pelos estudantes, assim como também foi
marcante a perda de entusiasmo dos estagiários diante de um caso que, num princípio,
mobilizou-os.
Este caso foi presenciado pelos etnógrafos desde a primeira consulta, atendida
pelo estagiário E1, que acrescentou às perguntas iniciais uma onde indagava a razão de
José ter ido ao Escritório Modelo Rural da Universidade de Antioquia. A resposta foi
que outra pessoa, oriunda do município de Venecia, tinha recomendado que fizesse isso.
Com relação ao seu lugar de residência, o cliente disse que morava na vereda Villaluz.
Novamente, o estagiário perguntou o que havia acontecido. José disse que era casado
mas que, desde 1957, tinha se separado de sua mulher e explicou que com sua outra
companheira já estavam juntos há muito tempo, pois já tinham filhos de 23 e 21 anos.
Nesse momento, José perguntou se era preciso que sua mulher estivesse
presente e E1 ficou em dúvida, embora recorrendo ao seu carisma disse que não havia
nenhum problema e, em seguida, ofereceu-lhe uma cadeira. Ao voltar para o cliente,
perguntou se sabia onde podia estar sua esposa. O usuário respondeu: “É que esse é o
problema, porque desde esse tempo [1957] não sabemos nada”. O estagiário,
remetendo-se ao léxico jurídico, disse, sem entrar em detalhes, que pelo que entendia,
esse seria um litigioso e lembrou que eles (sem mencionar diretamente a Universidade)
não cobravam nada. Logo, voltou a solicitar detalhes da história e perguntou se tinha
filhos com a esposa, e respondeu negativamente, e explicou que não duraram muito
tempo juntos. E1 parecia perplexo diante do caso e, embora na consulta anterior tivesse
perguntado pelo lugar de procedência do cliente, como critério de eliminação, nesta
ocasião fez caso omisso quando o cliente esclareceu que eles moram em uma vereda do
município de Venecia. O estagiário fez uma série de perguntas, todas elas visando
esclarecer alguns detalhes sobre a vida da esposa desaparecida; José disse que a única
coisa que lembrava era que ela era de Amagá, outra localidade de Antioquia, e que
tentou ir procurá-la ou procurar a família dela, mas ninguém achou que ele devia ir.
Ao tentar manter cobertas todas as frentes, E1 dirigiu-se à companheira de José
e perguntou-lhe há quantos anos estava ao lado dele. Ela disse que estavam juntos há 25
anos. O estagiário fez uma pausa, refletiu e disse: “(...) mas é que a vida não vai mudar
muito... é que procurá-la vai custar dinheiro. Se eu estivesse na mesma situação, ficaria
assim...”. E1 viu que o cliente tinha uma Bíblia debaixo do braço e, novamente,
procurando tirar o peso do que havia dito antes, perguntou ao cliente que era o que
levava. Imediatamente, a conversa tomou outra direção e José foi mostrando os motivos
“ocultos” atrás da consulta: “...veja, é que a gente neste mundo pode estar bem, mas
diante de Deus não se pode ficar assim”. O estudante mudou sua posição, embora
parecesse insistir na dificuldade do caso, o que era traduzível em termos do preço alto
que podia resultar o processo, já não recorrendo a razões de conveniência, como tinha
feito inicialmente. Quando falou em termos econômicos, o cliente disse que ele
reconhecia que era um pouco difícil, porque um advogado havia lhe pedido $400.000 ou
$500.000 para tramitar o processo e que eles não contavam com esses recursos, por isso
também tinham recorrido ao Escritório Modelo. O estagiário lançou a seguinte pergunta
com o ânimo de emitir o parecer: “Que outra saída prática temos para isso?”. Então,
disse que o ideal seria uma conciliação de acordo mútuo, mas neste caso o que teria que
fazer é processar a mulher, publicar um edital e nomear um curador. O estagiário
acrescentou: “Para não despachá-lo de uma vez, eu lhe digo o que vamos fazer dentro
de quinze dias, depois da reunião que tivermos”. Depois disso, o estagiário pediu o
nome da primeira mulher, José duvidou e disse que achava que se chamava Ana. E1
perguntou em que igreja tinha se casado e o usuário disse, com certa vacilação, que
achava que tinha sido na paróquia de São José do município de Venencia. Depois disso,
acrescentou que suas dúvidas estavam fundamentadas no fato de que eles só tinham
morado juntos por um ano. Quando o cliente percebeu que a consulta estava chegando
ao fim, concluiu dizendo: “(...) eu sou evangélico e, por isso, tenho que resolver esse
problema porque Deus nos quer limpos...”. Quando E1 estendeu a mão para se despedir,
José colocou: “Tomara que Deus permita e nos dê a salvação”. O estagiário sussurrou
uma frase onde respondia à afirmação do cliente, mas com relação ao desejo de que se
pudesse levar o caso.
Ao saírem os clientes, E1 dirigiu-se à etnógrafa dizendo que não entendia
porque faziam isso se, muito provavelmente, “assim como estão, vivem bem”. Refletiu
e acrescentou: “(...) a Corte [Suprema de Justiça] já tirou uma sentença e essas pessoas
têm muitas coisas reconhecidas, além do mais eles, que estão há mais de 20 anos juntos.
São uma união marital de fato. É que os evangélicos são muito apegados à norma...
bem, embora com o curador o processo seja mais lento, mas pode ser feito... eu creio
que se tem que ajudá-los”. No relatório feito pelo estagiário E1 o caso é descrito da
seguinte maneira: “José, [telefone, endereço]. Diz que se casou em 1957 com a senhora
Ana na paróquia ‘São José’ de Venencia, mas que no ano seguinte, isto é, há 45 anos,
separou-se de fato da mesma e até o momento não sabe de seu paradeiro, não
procriaram filhos, não conseguiram bens em comum. Há 23 anos vive em união livre
com a senhora [aparece o nome completo da atual companheira de José] com a que tem
quatro filhos, dois deles maiores de idade atualmente e outros dois menores. Solicita,
com veemência, que lhe ajudemos a tramitar o divórcio, pois o advogado com quem
falou cobrou $400.000 e ele não tem esse dinheiro. Reitera a ajuda do Escritório, dado
que milita em uma das igrejas evangélicas e diz que deseja estar em paz com Deus. A
esse respeito, foi-lhe explicado que não há muita segurança de que se possa prestar um
serviço efetivo já que, por política interna, não são levados processos de divórcios
litigiosos e, além disso, ele reside em Venencia e nosso serviço está dirigido a pessoas
residentes em Fredonia. Diante da insistência do usuário, indiquei que na próxima visita
seria dada uma resposta definitiva a ele, já que este caso seria colocado para
consideração do professor”.
Na ata elaborada pelos estagiários do dia 18 de novembro de 2003 foi dito o
seguinte com relação ao caso de José: “Este usuário solicita que se faça seu divórcio;
casou-se há 45 anos, só conviveu um ano com a esposa, desde então não sabe nada dela.
Decidiu-se que se fará o caso, mas que se deve advertir o usuário sobre o pagamento
dos custos de publicação do edital e de curador ad litem [para o processo]”. Durante a
reunião, o estagiário leu seu relatório e explicou as generalidades do caso, mas quando
estava explicando comentou: “(...) melhor dito, esse senhor colocou a salvação de sua
alma em nossas mãos... ele chegou com sua Bíblia na mão e eu perguntei se era
evangélico e aí começamos a falar... quer resolver a situação com sua primeira esposa
para ficar em paz com Deus”. O estudante prosseguiu, enfatizando que José havia
comentado que expôs o caso a um advogado, que lhe cobrou $400.000 e ele não tinha
com que pagar. O professor-assessor, depois de ouvir a exposição do estagiário, colocou
em consideração de todos o fato de ajudar o “velhinho” e perguntou: “Vocês já
conhecem a sentença sobre união matrimonial de fato?” Os estagiários presentes
disseram que tinham lido no jornal; E1 assinalou que o problema era moral e que se
podia ajudar o cliente. Então, o professor perguntou: “Nesse caso, qual seria a causal?”.
E5 disse que a causal era uma separação de fato, superior a dois anos; o professor disse
que era correto, mas insistiu em decidir se todos estavam de acordo em ajudá-lo. Todos
concordaram em ajudar José, que voltaria 15 dias depois ao Escritório Modelo.
Terminada a discussão, o professor-assessor lembrou que tinha que lhe pedir a certidão
de casamento e também disse que ele não teria nenhum problema em assinar esse caso,
sempre e quando o usuário assumisse os gastos do processo.
No dia 30 de novembro, José fez sua segunda visita e, quando chegou, um dos
estagiários (E6) – não quem o havia atendido durante a visita anterior – apressou-se em
procurar o nome do cliente e não o encontrou registrado no “razonero”. Então, insistiu
em perguntar ao usuário se era a primeira vez que vinha à consulta. Nesse momento, a
etnógrafa se sentiu obrigada a intervir, dizendo ao estagiário que esse senhor tinha sido
atendido por E1 durante a visita anterior e que se tratava de um divórcio. Ao mesmo
tempo, E3 também interveio: “É que se vai assumir o caso desse senhor...”. Nesse
instante, E6 voltou e perguntou pelo nome da esposa; um pouco mais desenvolto que
nas ocasiões anteriores, perguntou se tinha tido filhos com ela; diante desta pergunta, o
cliente deu uma informação que não havia dado na sessão anterior: “Tive um, mas aos 8
dias morreu”.
E6 tirou uma lista onde aparece a documentação para tratar processos de
divórcio e pediu a José que averiguasse na paróquia sobre certidão de casamento
religioso; o estudante insistia que deveria trazer a certidão de casamento civil que
deveria ter sido feita em um cartório; enquanto isso, o cliente reiterava que “(...) nesse
tempo era diferente, agora tudo é muito moderno”. E6 perguntou se sabia alguma coisa
dela e José disse que, embora ele achasse que ela era de Amagá, tinha ido a esse
município, mas não havia encontrado ninguém, nem sequer algum familiar. Mais
adiante, o cliente perguntou: “Se o padre me dá a certidão, então, o que tenho que fazer?
Como a coisa continua?”. O estagiário explicou: “Se me traz esse papel, veremos o que
se tem que fazer”. O cliente perguntou se era necessário trazer testemunhas, como lhe
havia dito E1 na consulta anterior. Diante dessa pergunta, o estagiário colocou: “É que
se o caso puder ser documental, não são necessárias testemunhas, porque a prova está
ali... depois que trouxer esse papel, já se pode fazer o resto...”. Sem dar maiores
detalhes, diferentemente da conversa que tiveram com o outro estagiário (E1), José e
sua esposa saíram e disseram que iam conseguir a certidão de casamento. No relatório
de visita do dia 2 de novembro, mencionou-se o seguinte com relação à conversa com o
usuário: “Processo de divórcio litigioso no qual se tinha ficado de lhe ajudar.
Desconhece o paradeiro de sua esposa, não tem nenhum filho com ela. Foi-lhe dito que
averiguasse a respeito da certidão de casamento religioso do lugar onde se casou”.
No dia 14 de dezembro, E2 estava responsável como monitora da saída; não
esperava que as pessoas procurassem o estagiário que os havia atendido nas visitas
anteriores, que é exatamente o que as pessoas tendem a fazer. E2 apressou-se em
atender as pessoas e também se localizou em um lugar chave dentro do espaço, chave na
medida em que era visível para os que chegavam e, ao mesmo tempo, dali se podia
observar tanto a porta de entrada como os outros setores desse salão. Quando José
entrou, o estagiário o interceptou e, apesar de buscar E6, este não fez nenhum esforço
para atendê-lo. José, novamente, procurou na etnógrafa alguma cumplicidade pois tinha
estado presente durante suas consultas anteriores, quando tinha sido atendido por dois
estagiários diferentes. O cliente mostrou-se incomodado pela confusão que houve entre
os estagiários, pois a estagiária não lembrava de seu caso e voltou a perguntar se era a
primeira vez que vinha e fez as outras perguntas de praxe. Nesse momento, José olhou a
etnógrafa, que interveio resumindo o motivo da consulta do usuário, que novamente foi
acompanhado por sua mulher. Ao mesmo tempo em que a etnógrafa explicava à
estagiária, E3 aproximou-se e disse que lembrava que se tratava de um litigioso; além
disso, indicou que o professor-assessor tinha dito que iria ajudar essas pessoas, apesar
de que residirem em Venecia e não em Fredonia. O incidente se esclareceu desta
maneira, mas José mostrava-se impaciente e nervoso, ao contrário da atitude serena que
tinha exibido nas sessões anteriores.
Posteriormente, José mostrou a E2 uma cópia da certidão de casamento religiosa
e, com veemência, esclareceu que nessa época não se “usava” o civil. A estagiária
recebeu o papel e o leu com cuidado, como tinha feito com os papéis que recebeu na
consulta anterior, e perguntou por que, nesse caso, o sobrenome se escrevia
ortograficamente dessa maneira. Depois disso, perguntou com que fim queriam se
divorciar e, apesar dela ter dito que já se lembrava do caso, continuava se referindo à
atual companheira de José como se ela fosse uma das partes envolvidas no divórcio. O
cliente já estava visivelmente incomodado e respondeu que queria o divórcio porque
“queria começar uma vida nova”. Mostrou-se incômodo pela pergunta porque, na
primeira consulta, que E1 atendeu, explicou que queria o divórcio por razões
relacionadas à sua religião. O interessante é que nesta oportunidade não disse nada a
respeito, talvez buscando uma resposta mais ágil, mas o irônico é que foram os motivos
“iniciais” expostos por ele que “mobilizaram” os membros do Escritório Modelo para
assumir o caso e não tomá-lo como uma simples consulta.
José insistiu que já tinha as testemunhas e E2 perguntou para que; então, a
etnógrafa interveio e disse que E1 havia dito que podiam chegar a precisar de
testemunhas para provar que eles tinham se separado desde 1957. Ao mesmo tempo,
José afirmou: “É que as testemunhas são para provar que ela não está comigo há muito
tempo”. A estagiária aceitou copiar os nomes e perguntou se eram amigos, o usuário
disse que eles o conheciam desde a época em que se casou. Depois disso, E2 explicou:
“Nós fazemos divórcio de acordo mútuo, mas este divórcio é levado a um juizado e é
necessário mais um tempinho. Nós voltamos no dia 1 de fevereiro, mas por agora
recebo este papel; depois, tem que nomear um curador que a represente e tem que fazer
uma publicação de edital. O processo é oneroso”. O cliente disse que ele queria
economizar gastos porque não tinham dinheiro e voltou a argumentar o fato de que um
advogado tinha pedido $500.000 para fazer o processo. José despediu-se com frieza e
disse que regressaria no próximo ano. Ao sair, a etnógrafa perguntou à estagiária o que
opinava do caso e ela disse que era possível fazê-lo, mas que sairia caro e esses custos o
“usuário” tinha que assumir; também pareceu surpresa porque José não tinha dito nada
com relação aos motivos “iniciais” de sua solicitação de divórcio. A etnógrafa insistiu e
perguntou o que se podia fazer no caso de pessoas com tão poucos recursos
econômicos, e ela, sem vacilar, disse que podia solicitar um “amparo de pobreza”. Sem
explicar este novo termo, a estagiária concluiu: “(...) ao contrário, achei muito barato o
que o advogado cobrou”. Na reunião posterior do grupo de estagiários, foi lido o
relatório do estudante; o professor observou com detalhe a cópia da certidão religiosa de
casamento e o relatório de visita; logo, sentenciou: “(...) desde 1938 os atos civis têm
que estar registrados civilmente em cartório”, razão pela qual era preciso dizer a José
que levasse a certidão civil do casamento.
No dia 1 de fevereiro, José foi o primeiro a chegar e procurou E6; este o
cumprimentou rapidamente e disse que devia pedir a certidão de casamento na paróquia
para então registrá-la no cartório. Sem se despedir, José saiu e não voltou. Na visita
seguinte, José voltou e já estava completamente desfigurado; já não luzia como nas
primeiras visitas, nas quais sempre ia com roupa muito limpa e bem arrumado. Chegou
com a roupa suja e notava-se que estava bastante ansioso e falava com incômodo com
relação a todos os trâmites que tinha tido que realizar sem resultados importantes. Não
cumprimentou, mas disse que o tabelião não queria registrar a certidão de casamento.
E1, que se encarregou da consulta, adotou uma posição de autoridade e o cliente
colocou que o que acontecia era “que esse tabelião tem um gênio muito ruim”.
Imediatamente, E1 retrucou: “Isso foi que o senhor não soube dizer... porque esse é um
serviço público. O senhor tem direito e se não, fazemos uma reclamação ao juiz ...
façamos uma coisa: espere e fazemos um bilhetinho”. Efetivamente, o estagiário
escreveu um bilhete onde solicitava sua deferência para atender a José, lembrando que
era um caso de divórcio e que era necessário registrar a certidão de casamento nesse
cartório. O cliente saiu um pouco mais tranqüilo e disse que faria o trâmite o mais
rápido possível. Não voltou até o dia 29 de fevereiro e disse que o tabelião insistia que
devia ver a identidade da esposa para assinar o documento. Infelizmente, os etnógrafos
não conseguiram presenciar a visita que José fez no dia 29 de fevereiro e a última coisa
que se soube do caso foi registrada na ficha de reunião correspondente ao dia 2 de
março de 2003, onde justamente se falava da negação do tabelião em fazer o registro.
IDEOLOGIA HOLISTA E A ESTRUTURA SOCIAL DA REGIÃO
“... a advocacia serve para tirar de um precipício os ignorantes, que não sabem entender a esperteza e a
astúcia das pessoas, o negócio das pessoas (...)”.
Roberto
.
Como já ficou evidente desde a introdução, quando se explicou o marco
metodológico que guiou o levantamento das informações da pesquisa e a própria
construção dos casos, esta dissertação remete a um exercício etnográfico realizado no
Escritório Modelo de Fredonia, onde foi enfatizada a consulta jurídica in situ, que pode
ser tomada como uma encenação que envolve um choque ideológico, e onde se
evidenciam as representações dos atores envolvidos – falamos inicialmente de cliente e
advogado. Já foi dito também que tal choque ideológico pode ser compreendido através
de dois pólos: holismo e individualismo, entendidos no sentido dado por Dumont (1997)
[1977]. Na minha opinião, este propósito geral pode ser realizado através de uma
identificação de valores a partir da informação dos casos, que foram construídos
tentando reproduzir as condições dialógicas da própria consulta jurídica. Os valores que
identifico como correspondentes a uma trajetória que tende mais para o pólo holista são
honra, palavra, trabalho, terra, família e esperteza.
Como afirma Gringrich (1998), uma das grandes contribuições de Dumont é que
sua noção de ideologia, como algo integrado e internamente heterogêneo, abre a
possibilidade de pensar valores centrais para determinada sociedade em uma longa
duração. Embora a identificação dos valores parta do que foi observado durante as
consultas, ela também deve ser feita à luz de uma série de particularidades históricas do
departamento de Antioquia e da região à qual pertence Fredonia. Desta maneira, e em
vista de que o Escritório Modelo de Fredonia está localizado em uma região rural,
epicentro nacional da economia cafeeira, é necessário analisar os valores hierárquicos
que ali operam e que estão relacionados com uma campesinidade que subjaz a uma
ideologia holista. Isto nos leva, em primeiro lugar, a uma breve revisão sobre a teoria
clássica do campesinato para desembocar na proposta de K. Woortmann (1990),
coerente com a que orienta esta dissertação e que está relacionada com a exegese dos
valores presentes no que chamei de choque ideológico. Em segundo lugar, e dado que o
exercício etnográfico centrou-se na dinâmica das consultas, é necessário fazer um
esboço da estrutura social da região, valendo-se de diferentes referências e autores.
Trata-se de ter um marco histórico relativamente amplo para entender as dinâmicas
sociais às quais os valores identificados têm estado ligados.
Em geral, a teoria clássica sobre sociedades camponesas poderia se agrupar em
três grandes blocos (Durston, 1982; Jaramillo, 1987): no primeiro, o campesinato é visto
sob uma ótica puramente econômica; no segundo, há uma marcada reiteração de seu
caráter de classe social e, em um terceiro grupo, fala-se dele como uma espécie de
unidade sociocultural. Embora esses enfoques proporcionem ferramentas de análise e
conceitos úteis para o estudo de grupos camponeses, apresentam sérias limitações
porque tendem a ver tais sociedades de um ponto de vista estático, no qual se opõe
drasticamente o camponês ao urbano. É como se o camponês só pudesse se encontrar no
rural. Assim, por exemplo, de acordo com essas visões, o Escritório Modelo, localizado
na zona urbana do município, não seria um objeto privilegiado de análise que permitisse
entender aspectos e dinâmicas de indivíduos que fazem parte de grupos camponeses.
Para contextualizar teoricamente o que foi dito no parágrafo anterior, farei uma
revisão rápida destes enfoques. De uma perspectiva economicista, os camponeses são
entendidos como uma categoria de pequenos produtores agrícolas, com capital limitado
e cuja estratégia econômica de “auto-exploração”
20
é a família, mas cujos excedentes
são transferidos para um grupo dominante (Wolf, 1971). Neste grupo, poderíamos
incluir autores como Chayanov, Shanin, Galeski (1972), Tepicht (1973) e Mendras
(1978). Para Chayanov, a família é o fundamento da economia camponesa (Heyning,
1982): terra, trabalho e meio de produção se combinam seguindo o processo natural do
desenvolvimento do grupo doméstico. O eixo fundamental de sua teoria está no
equilíbrio necessário entre o consumo da família e a auto-exploração do trabalho
(Archetti, 1978), o que faz com que dentro da família exista – em diferentes momentos
– uma diferenciação de consumidores e produtores. Galeski (1972) analisa a parcela
camponesa como uma unidade de produção que é resultado da fusão da economia
doméstica e da empresa, na medida em que herda da primeira a ênfase na produção de
valores de uso e, da segunda, a geração de valores de troca. Então, a unidade camponesa
reúne e idealmente deveria satisfazer as necessidades de autoconsumo e lucro. Tepicht
(1973), por sua vez, analisa a divisão entre forças plenas e marginais, as primeiras
transferíveis e as outras intransferíveis, o que está relacionado com o custo de
oportunidade ou possibilidade dos membros da família de vender a força de trabalho em
outras atividades. Para E. Woortmann (1995), a visão destes autores enfatiza a produção
20
Neste ponto é importante considerar a reflexão de K. Woortmann (1990: 52): “(...) Que sentido há em
qualificar as relações familiares como exploração? Pode ser uma projeção sobre o universo camponês da
subjetividade do autor com uma consciência localizada num universo individualista no plano da
ideologia”.
econômica da família e não a produção social da mesma; além disso, a família se
constrói como uma unidade de análise isolada, inclusive, de relações de parentesco mais
amplas. Também é problemático que muitos destes autores considerem que as
transformações na economia estão determinadas pelo sistema econômico como um todo
e, de fato, falem de uma ruptura no sistema de obrigações nos grupos camponeses,
ocasionada pela introdução do mercado (Polanyi, 2000 [1944]), desconhecendo, assim,
a preeminência de uma ordem moral em transações que, a primeira vista, seriam
definidas como econômicas.
Quanto ao campesinato como classe social, a preocupação central responde à
pergunta sobre quem controla a produção e a distribuição. O debate acerca de considerar
os camponeses como classe social remonta ao estabelecido por Marx (1979) visto que,
segundo ele, o campesinato não poderia ser considerado como classe porque carece de
uma unidade de interesses – de ação e de consciência de grupo –, o que o levaria a
buscar outros para ser representado: o proletariado urbano, por exemplo. Aqui, tratar-se-
ia mais de uma dialética de conflito e unidade. Por outro lado, para Marx, os
camponeses poderiam formar uma classe social por ser uma forma produtiva específica
subordinada a outras classes sociais constituídas por latifundiários, agiotas, funcionários
e comerciantes. Este argumento, que também estimulou o debate campesinistas vs.
descampesinistas (Heyning, 1982)
21
, leva-nos novamente à discussão da família
camponesa como unidade de produção e consumo; estas últimas categorias entendidas
de uma perspectiva economicista que, em alguns casos, antepõe a idéia de pobreza e
atraso do camponês (Foster, 1964), visão onde há uma preocupação maior em entender
a dependência externa do que a organização social e econômica interna (Ortiz, 1979).
No terceiro bloco de autores, e sob uma perspectiva mais antropológica, a ênfase
recai novamente na família como unidade de análise fundamental, mas em relação às
redes de parentesco e outros nexos da comunidade local (Ortiz, 1979). Segundo esse
enfoque, procura-se entender a diversidade de valores e sistemas cognitivos dos grupos
camponeses que, em muitos casos e apesar dos diversos processos de monetarização,
modernização e proletarização, não necessariamente remetem a um homo economicus
primitivo que poderia dar o salto para sua inserção “completa” em uma lógica
21
Na teoria econômica camponesa de Chayanov fala-se de uma economia familiar ou uma exploração
doméstica independente, que seria uma forma de produção não capitalista onde não há lucro, salário nem
renda, pois só se produzem valores de uso destinados ao autoconsumo. Chayanov apostava no
fortalecimento da produção camponesa familiar visando a sobrevivência do campesinato – visão
campesinista –, enquanto os descampesinistas, onde se destaca a figura de Lenin, sentenciavam a
proletarização do campesinato e sua conversão em uma massa de assalariados sem terra (Heyning, 1982).
capitalista com os devidos estímulos individualizantes (Foster, 1964; Wolf, 1971;
Redfield, 1971 [1956]).
Ortiz (1979), que trabalhou com camponeses no sudeste colombiano, garante
que se poderia falar de uma cultura camponesa compartilhada por diversos grupos
sociais, na medida em que seu comportamento econômico pode ser explicado em
termos de suas atitudes e valores. Na minha opinião, não se deveria falar de
comportamento econômico, mas de ideologia, pois se trata de um conjunto de idéias e
valores (Dumont, 1997 [1977]). Mais exatamente, deve-se falar de uma ideologia
hierárquica – holista – que responde a uma necessidade universal de hierarquia para
organizar idéias, coisas e pessoas. Uma ideologia holista expressa ou justifica a
existência da sociedade por referência aos valores, enquanto uma ideologia
marcadamente individualista localiza os valores independente da sociedade em que se
encontrem (Dumont, 1994). Se a hierarquia é concebida como a atribuição de um lugar
a cada parte com relação ao conjunto, é possível deduzir que a hierarquia pode englobar
tanto os agentes sociais como as categorias sociais.
No enfoque de K. Woortmann (1990), o conceito de campesinidade abre novas
perspectivas para entender os valores camponeses, demarcados por uma ideologia que
tende para o pólo holista; o autor define campesinidade como uma condição que ocorre
em diferentes graus com relação a uma articulação ambígua com a modernidade. Desta
maneira, busca ressaltar a importância de uma aproximação diferente ao camponês, que
permita entender o fenômeno fora do contexto estritamente rural para ligá-lo a um tipo
de ideologia. Isto é, os valores relativos a uma ética camponesa englobariam os
tradicionais objetos de estudo da Sociologia e Antropologia Rural: camponeses
particulares limitados em tempo e espaço. Considero que falar de campesinidade nos
distancia do beco sem saída com relação ao que já advertia Firth (1964): a categoria
camponês é descritiva, mas não crítica. Isto também nos leva a questionar a noção de
quebra (Duarte, 1986) empregada para pensar o trânsito do rural ao urbano e que reduz
fenômenos de modernização ao argumento da abertura de um mundo particularista. Isto
impede que se perceba a continuidade de idéias, princípios e valores que estão por trás
de comportamentos entendidos como discrepantes. Em suma, pode-se ser tradicional de
muitas maneiras e, em alguns casos, a tradição pode ser suspendida, apelando a valores
individualistas (por exemplo), para poder ser restaurada posteriormente (E. e K.
Woortmann, 1997). Da mesma forma, pensar em termos de valores fazendo parte de
sistemas ideológicos mais amplos permite sair de outra tendência recorrente, a de
elaborar “detalhadas” tipologias de camponeses, centradas na combinação de variáveis
econômicas e ecológicas, principalmente (Wolf, 1971; Foster, 1964; Galeski, 1972). Em
outra direção, permite articular a discussão sobre grupos camponeses a debates mais
amplos como os relacionados com cidadania, direitos, identidade e ideologia, sem
perder de vista as manifestações que ocorrem em contextos particulares, para onde esse
trabalho aponta, baseado na etnografia de um Escritório Modelo Rural.
Mineração, comércio e café
A conquista do território do que hoje em dia é o departamento de Antioquia
22
esteve marcada pela busca de minas de ouro. Por isso, a lógica de fundação foi formar
pequenos povoados nos vales dos rios, onde os indígenas eram recrutados como mão-
de-obra. Os caminhos foram construídos seguindo a rota da exploração mineral, o que
permitiu o desenvolvimento de circuitos comerciais importantes (Trujillo, 1993). É
necessário destacar que os autores que trabalharam sobre a história colonial da região
(Twinam, 1985; Uribe e Álvarez, 1998) enfatizam o caráter complementar da
agricultura, isto é, a atividade agrícola foi significativa apenas na medida em que se
constituiu uma espécie de dispensa para a mão-de-obra mineira. Este é um aspecto
questionável, mas fundamental na hora de entender por que há uma articulação entre
valores relativos ao comércio e aos negócios (esperteza, palavra) e outros relativos às
atividades agrícolas (trabalho, terra, honra), que estão englobados em uma
campesinidade, entendida como ideologia hierárquica que se torna evidente no
momento da consulta jurídica e que vai se misturar com valores de caráter individualista
que se transmite a partir do Direito.
A época de mineração durante a Conquista (1540-1670) em Antioquia
fundamentou-se na modalidade de exploração de veios de ouro, sendo Buriticá a mina
mais importante. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se a mineração de aluvião nas terras
baixas dos rios Cauca e Nechí (Londoño, 2001). Os dois tipos de mineração (de mina e
de aluvião) contavam com mão-de-obra indígena e, por volta de 1550, foram
incorporados escravos negros (Twinam, 1985). Naquela época. destacavam-se as
seguintes cidades, fruto do auge mineiro: Santafé de Antioquia (onde ficava a fundição
de ouro), Cáceres, Remedios e Zaragoza. Por volta de 1620, a mineração de aluvião
tomou força dado à decadência das minas, segundo a informação obtida nos relatórios
22
O departamento de Antioquia está localizado no extremo noroeste da Colômbia e tem uma extensão de
64.000 km
2
; em 1569 surgiu a
Gobernación
de Antioquia por ordem do rei da Espanha (Londoño, 2001).
da fundição de Santafé de Antioquia. Aqui, os próprios autores (Twinam, 1985;
Uribe e Álvarez, 1998) alertam sobre o perigo de fazer inferências baseadas nos
registros da fundição, o que mostra a esperteza dos próprios mineiros, já que uma
grande porcentagem do ouro não era enviado para a fundição
23
e os falsos registros
eram um assunto corriqueiro, mais ainda quando existia uma aliança estreita entre
mineiros e comerciantes.
Uribe e Álvarez (1998) são enfáticos ao afirmar que o que entrou em decadência
em finais do século XVII foi a mineração legal, que contribuía majoritariamente ao
erário real. Assim, consolidou-se a mineração de aluvião, onde se destacou a figura do
mineiro independente, ligado à atividade do “mazamorreo
24
, isto é, a busca do ouro nas
partes baixas dos rios e não em veios ou minas. Estes mineiros pequenos e médios
possuíam pequenas parcelas de autoconsumo, onde cultivavam milho, feijão, cana-de-
açúcar, mandioca e banana. Aqui, como já disse antes, questionaria o caráter secundário
da agricultura (como parecem ressaltar os autores mencionados): não descartaria o valor
atribuído à terra por esse tipo de mineiro “independente” que contava com parcelas
destinadas ao autoconsumo mas que, não obstante, mantinha relações comerciais com
intermediários e comerciantes. Neste caso, a terra não seria considerada como
mercadoria, mas como patrimônio que permite outro tipo de atividade econômica, como
a mineração, e que possibilita a sobrevivência do núcleo familiar.
Por outro lado, é importante destacar que no final do século XVII e começo do
século XVIII a agricultura concentrou-se no Valle de Aburrá, onde atualmente está
localizada a cidade de Medellín (ver mapas, págs. 15-16); o que coincidiu com um
deslocamento da mineração para Santa Rosa de Osos, San Pedro, Guarne, Yarumal e o
vale do rio Negro (Lodoño, 2001). De acordo com Uribe e Álvarez (1998), estes foram
os mineiros deslocados pela decadência da grande empresa mineradora. Novamente,
23
Twinam (1985) explica o processo oficial que as autoridades coloniais impunham aos comerciantes
ligados à mineração e que os levou a descobrir maneiras de evitar as normas tanto das alfândegas como
da fundição: (1) o comerciante vendia as barras de ouro em Bogotá; (2) comprava as mercadorias
geralmente importadas; (3) ia à Alfândega onde preenchia uma espécie de formulário que devia
apresentar nos postos de vigilância ao longo da viagem, e (4) durante o percurso passava por vários
postos da alfândega. Se o carregamento era avaliado em 1000 pesos, o comerciante se comprometia em
devolver esse valor em ouro à fundição de Santafé de Antioquia em um prazo de 3 anos; o ouro devia ser
entregue em pó.
24
Mazamorreros
” é uma categoria local que agrupa mineiros independentes, dedicados à busca de ouro
em partes baixas dos rios, atividade conhecida como “
mazamorreo
”. São estes mineiros que alternam
atividades agrícolas com a busca de ouro.
N.T. Embora a categoria de
mazamorrero
assemelhe-se à de garimpeiro, utilizada no Brasil, optou-se por
manter o termo original, em itálico, por guardar peculiaridades que o diferenciam do termo brasileiro,
como a alternância com atividades agrícolas, explicitado nessa nota.
colocaria em dúvida se esse desenvolvimento da agricultura no vale de Aburrá não tem
a ver com o deslocamento de mineiros independentes que combinavam os dois tipos de
atividade ou, então, com camponeses que tinham como atividade complementar a
mineração?
25
Em outro sentido, os mineiros reconhecidos e considerados ricos
monopolizavam os títulos legais sobre as terras onde havia veios de ouro e, inclusive,
possuíam extensões de terra que compreendiam os leitos de rios onde se podia achar o
metal. Em grande parte dos casos, as terras monopolizadas eram subexploradas; por
esse motivo, muitos desses grandes mineiros recorriam ao arrendamento de terra a
mineiros mais pobres que faziam suas parcelas ou enclaves de autoconsumo.
Provavelmente, estes grandes mineiros e comerciantes careciam de nexos com relação
ao valor terra, mas eram os “mazamorreros” e mineiros pobres que tinham um vínculo
mais estreito. Como aponta Twinam (1985), uma das características da elite de
Antioquia era a ambivalência a respeito do valor e do prestígio outorgados à posse de
terras. Nesta direção, deve-se apontar também que, no caso de Antioquia, as instituições
características das épocas da Conquista e da Colônia, como a Encomienda, o
Repartimiento e o Concertaje
26
, todas ligadas principalmente ao trabalho agrícola, não
se desenvolviam com êxito na região; a única exceção seria a mita
27
mineira que
garantiu que os primeiros exploradores agrupassem sob seu mando mão-de-obra
indígena.
Com a presença do visitador
28
Mon y Valverde, no final do século XVIII, à
província de Antioquia, a qual percorreu durante três anos, buscou-se estimular a
agricultura através da formação de povoados (Uribe e Álvarez, 1998). De certo modo,
25
Neste sentido, vale a pena incluir o enunciado por Ramírez Bacca (2004: 54): “El oro es el principal
medio de transacción en las relaciones comerciales a mediados del siglo XIX. Los antioqueños, que
llegaban al norte del Tolima motivados por la colonización de tierras baldías, también lo hacen con el
propósito de explorar vetas y yacimientos de oro”.
26
A
encomienda
é uma instituição jurídica característica da colonização espanhola na América, que
consistia em um direito outorgado pelo monarca em favor de um súdito espanhol ou encomendero com o
objetivo de que este recebesse os tributos ou os trabalhos que os súditos índios deviam pagar à
monarquia. O
repartimiento
ou
concertaje
é um sistema de trabalho organizado sob princípios
econômicos racionais. Antes de 1542 não havia diferença entre os termos
encomienda
e
repartimiento
,
mas depois de 1542 a
encomienda
começou a se referir ao tributo pago pelos índios, enquanto o
repartimiento
passou a significar especificamente o trabalho assalariado desenvolvido pelos índios. Com
a figura do
repartimiento
, o trabalho indígena foi colocado sob o controle da Coroa Espanhola. Em suma,
o repartimiento consiste na força de trabalho assalariada sob supervisão real.
27
A
mita
é um serviço público obrigatório de algumas sociedades pré-hispânicas, como o caso do Império
Inca; os espanhóis adaptaram e utilizaram o mesmo sistema, mas como uma forma de prover a força de
trabalho necessária para as minas de prata e ouro.
28
Visitador era um funcionário da Coroa Espanhola, enviado diretamente pelo Rei, para fazer visitas às
colônias e informar sobre o desempenho de outros funcionários, sobre as finanças e sobre as dinâmicas
das diferentes regiões, este último com a finalidade de implantar medidas a partir da metrópole.
procurava-se a criação de colônias agrícolas com a idéia de remediar as crises
periódicas da agricultura. No fundo, o objetivo desta medida era aglutinar os mineiros
“independentes” para convertê-los em contribuintes porque, até então, não havia
nenhuma regulamentação com relação aos “mazamorreros”, que, de qualquer forma,
foram os responsáveis por três quartos da produção de ouro entre os séculos XVIII e
XIX
29
. O êxito da proposta do visitador está no fato de que atuou como um mecanismo
através do qual foram canalizados diferentes interesses dos diversos setores que
compunham aquela sociedade. Por esse motivo, os mineiros e comerciantes assumiram
esta proposta como uma alternativa para abrir novos mercados, ainda que com o tempo,
os membros da elite comercial da Antioquia tenham comprado terras, mesmo que estas
não fossem o fruto de seu bem-estar econômico. Segundo Twinam (1985:236): “as
elites da Antioquia manifestavam um interesse mínimo em canalizar para a aquisição de
terras a maior parte de seus lucros do comércio e da mineração. Este tipo de
transferência significava na Antioquia uma mobilidade para baixo, pois em Medellín
eram os mineiros e comerciantes que estavam na cúspide das pirâmides econômica e
social”. É interessante cotejar os conflitos entre camponeses e mineiros e comerciantes
– médios e grandes – que ocorreram nas administrações municipais de cidades como
Medellín. Vejamos:
Las cosechas de 1799 estuvieron por debajo del promedio, y la escasez resultante
hizo subir los precios del grano. Cuando el Cabildo actúo para regularlos, dos
bandos surgieron. El primer grupo, encabezado por Don Nicolás de Ochoa,
defendía la causa de los labradores, mientras que Don Manuel Jaramillo
representaba el bando de los mineros. El conflicto se intensificó debido a la
enemistad personal entre estos dos hombres (Twinam, 1985: 169).
[As colheitas de 1799 estiveram abaixo da média, e a escassez resultante fez subir
os preços do grão. Quando o Prefeito atuou para regulá-los, dois bandos surgiram.
O primeiro grupo, encabeçado por Don Nicolás de Ochoa, defendia a causa dos
lavradores, enquanto Don Manuel Jaramillo representava o bando dos mineiros. O
conflito intensificou-se devido à inimizade pessoal entre estes dois homens
(Twinam, 1985: 169).]
Este tipo de disputa era propiciada pela alta no preço dos produtos agrícolas,
especialmente o milho que era a base da dieta da região e, portanto, dos grupos de
trabalhadores mineiros. Os comerciantes e mineiros importantes alegavam que os
produtos agrícolas não eram equiparáveis às mercadorias importadas. Em outro sentido,
este conflito nos permite observar, uma vez mais, que uma das características da
29
Nesta época falava-se de uma revitalização do setor mineiro da Antioquia: entre 1750 e 1779 a
produção triplicou e, entre 1780 e 1880, quadruplicou (Twinam, 1985).
mineração em Antioquia foi a dupla residência de mineiros médios e “mazamorreros
que, por exemplo, tinham suas parcelas no Vale de Aburrá e alternavam a agricultura
em campos como os de Santa Rosa, Rionegro e Titiribí. De qualquer forma, embora a
elite estabelecida em Medellín não parecesse interessada na terra como meio de
acumulação nem como patrimônio que articula os valores terra e trabalho, os
comerciantes, sim, pretendiam controlar o mercado de produtos agrícolas como o milho
e o feijão. É só a partir de 1820 que os comerciantes deixam de depender do capital
criado pelos mineiros e apresenta-se uma diversificação de seus investimentos; um deles
foi o café, introduzido nas últimas décadas do século XIX.
Fredonia surgiu a partir dos processos migratórios que ocorreram desde o final
do século XVIII e durante o século XIX; faz parte, junto com Venecia, Titiribí,
Angelópolis e Amagá, dos territórios ocupados na primeira etapa da colonização – nas
últimas décadas do século XVIII –, que logo continuou pela bacia do rio Cauca (Henao,
1931). Em 2 de outubro de 1830 foi elevado à categoria de distrito municipal e, em 4 de
novembro desse mesmo ano, foi decretada a fundação da paróquia. Cristóbal Uribe
aparecia como o dono da maior parte da terra onde está localizado o município e por
isso foi considerado seu fundador (Trujillo, 1993). Ao redor de 1860 estavam assentadas
várias famílias colonas que cultivavam milho, feijão e cana-de-açúcar, mas que
exerciam outras atividades como mineração e extração de madeiras. O cultivo do café
foi introduzido por volta de 1890 e é importante deixar claro que a colonização desta
região foi dinâmica porque contou com o apoio da burguesia comercial de Medellín.
De fato, pode-se falar de uma “zona empresarial” cafeeira com um forte
predomínio da grande propriedade e onde se contava com bons sistemas técnicos de
exploração, como é o caso das fazendas de Fredonia, Jericó, Támesis e Titiribi. A mais
extensa das fazendas cafeeiras foi La Loma, localizada exatamente em Fredonia, e cuja
extensão era de 900 hectares (Londoño, 2001). Nesta região, também coexistiam a
pequena e a média propriedade, mas em um grau inferior ao que ocorria na zona
denominada “democrática” (Ochoa, 1993), onde colonos pobres puderam ter acesso à
propriedade através da divisão de terras. A região de Fredonia está caracterizada pelo
predomínio da pequena e média propriedade, e por uma economia de subsistência unida
a uma exploração cafeeira menor. Nesta zona reúnem-se os municípios de Andes,
Bolívar, Concordia e Jardín. De qualquer forma, há de se ressaltar que em torno de
1930, por exemplo, dois terços da produção de café em Antioquia correspondiam à
produção de fazendas com menos de 35 hectares.
Nas fazendas cafeeiras da chamada zona empresarial, que corresponde a
Fredonia, as relações de trabalho estiveram organizadas em torno da divisão entre
trabalhadores permanentes e trabalhadores transitórios. No primeiro grupo encontramos:
o proprietário, o administrador, o capataz e a mão-de-obra permanente. Fora dessa
população de trabalhadores permanentes, encontra-se uma gama de peões que
apresentam um caráter heterogêneo; alguns permanecem pouco tempo no lugar de
trabalho, como o peão de empreitada, os contratados e os colhedores de café (Ochoa,
1993; Palacios, 1979).
Como herança de seu passado na mineração e em coerência com suas atividades
comerciais, os fazendeiros da região vivem na cidade, de onde conduzem as redes de
comercialização do grão e participam de outros circuitos econômicos. Claramente, os
proprietários não têm vinculação com a terra como os agricultores; por esse motivo,
delegam funções de inspeção, contabilidade e ajuste de salários ao administrador,
enquanto que o conhecimento do processo produtivo recai na figura do capataz, que tem
sob sua responsabilidade a massa de trabalhadores.
O administrador deve realizar uma inspeção geral dos trabalhos, levar a
contabilidade e ser “juiz de paz” nos conflitos entre a fazenda e os trabalhadores, ou
entre estes. Nas épocas de colheita, tem autonomia para definir o nível de salários
oferecidos e está em condições de tomar decisões relacionadas com a fazenda, pois goza
da confiança do dono e desfruta de alguns privilégios outorgados por ele. Até meados
do século XX, procurava-se para administrador uma pessoa que fosse de uma região
diferentes da fazenda e que tivesse um título profissional como veterinário ou
agrônomo; isto continua acontecendo e pode-se dizer que a formação do administrador é
basicamente urbana.
De forma diferente do administrador, o capataz é quem está mais a par dos
problemas da população trabalhadora; está encarregado de transmitir as ordens da
administração, designa e organiza grupos de trabalhadores para tarefas específicas,
supervisiona a qualidade e rendimento do trabalho, impõe normas de conduta entre os
operários e faz com que se cumpram os regulamentos da fazenda. Em outras palavras, o
capataz é o vínculo entre os trabalhadores e a fazenda (Palacios, 1979); isto ocorre, em
parte, porque sua origem é rural, embora não necessariamente da mesma localidade, e
opera os códigos culturais, realizando uma espécie de tradução das disposições gerais
do proprietário e do administrador para serem executadas na prática.
O sistema de agregados predominou na zona de colonização cafeeira,
especialmente em Antioquia e Caldas, durante a primeira metade do século XX. O
agregado fornecia quase todo o trabalho masculino e se encarregava de desmatar,
semear, limpar e podar os cafezais. Durante as duas colheitas anuais, as mulheres e os
filhos da família do agregado eram uma fonte de mão-de-obra, embora nesta parte do
processo produtivo – assim como ocorre atualmente – integravam-se muitos
trabalhadores sazonais, como é o caso dos colhedores de café, que eram alojados nas
fazendas ainda que, em geral, não lhes fosse proporcionado habitação nem alimentação.
Hoje em dia, são os capatazes que vivem com suas famílias dentro da fazenda –
como antes acontecia com os agregados –, além dos trabalhadores, alguns sem terra, que
vivem na fazenda sem suas famílias, outros participantes são pequenos proprietários que
trabalham por contrato para complementar a renda do que é produzido em sua própria
terra ou do que produzem outros membros do núcleo familiar, empregando-se em
trabalhos não necessariamente agrícolas. As tarefas diárias dos trabalhadores dependem
do programa de trabalho disposto pelo administrador ou pelo capataz. Os peões são um
grupo bastante heterogêneo
30
; nele podem ser encontrados desde pequenos proprietários
que se empregam ocasionalmente ao longo de todo o ano, até artesãos que se
encarregam das tarefas de construção, necessárias para a manutenção do beneficiadero
de café
31
, da casa da fazenda e do lugar de moradia dos peões, entre outros.
Honra, palavra, trabalho, terra, família e esperteza: valores de uma ordem
hierárquica
No caso de Antioquia, parece não existir uma transição marcante de uma ordem
moral a uma econômica (processo que explica K. Woortmann (1990) para o
campesinato do nordeste e sul do Brasil), mas, como tratei de mostrar, os valores
ligados ao comércio e à agricultura costumam aparecer combinados, e ocorrem ou se
encarnam em estruturas sociais como a que é observável na região cafeeira com as
características de Fredonia. É importante assinalar que, quando o café foi introduzido na
região, ele foi assumido mais como um negócio que como um cultivo adaptável às
condições sociais e ecológicas da região. Em certo sentido, a visão da fazenda cafeeira
30
Não obstante, deve-se considerar que em 1967 – por exemplo –, os diaristas e trabalhadores de
empreitada passavam de um milhão de pessoas nas zonas cafeeiras do país, e eram o grupo majoritário
nas épocas de colheita (Ramírez, 2004).
31
O
beneficiadero
é o lugar da fazenda onde se despolpa e se lava o café, antes do processo de secagem.
como uma estrutura agrícola-comercial procurava transformar o estereótipo
32
da
sociedade rural; acreditava-se que a cafeicultura modernizaria ou transformaria as
relações de trabalho e de produção, estabelecendo uma forma de gerência administrativa
que tinha como principal objetivo a comercialização do grão (Ramírez, 2004).
Para continuar com esta identificação de valores é preciso considerar a marcada
separação de classes que durante a Colônia e nas primeiras épocas da República
concentrou os grandes mineiros e comerciantes em uma elite burguesa que foi se
estabelecendo paulatinamente na cidade de Medellín; por oposição, encontramos uma
classe de mineiros e agricultores que tinha uma forte raiz rural, mas o importante é não
desconhecer que faziam parte de redes comerciais locais e nacionais e, portanto,
compartilhavam valores como a esperteza e a palavra que operavam no contexto das
transações comerciais. No meu modo de ver, o mineiro-agricultor – assim como o
pequeno proprietário cafeicultor atual – é uma figura chave para entender a articulação
de valores que poderiam parecer opostos ou contraditórios; este personagem se
fundamenta no valor trabalho que, articulado com a importância dos negócios e do
comércio, dá como resultado o valor da esperteza. Por sua vez, essa esperteza – que de
fato é exaltada pelos grandes comerciantes e que vários autores trabalharam sob o rótulo
de “espírito empresarial” – é um valor que está unido à palavra e à honra, que também
estão ligados a valores camponeses como terra e trabalho. No entanto, a esperteza se
desdobra e se expressa, em sua versão mais extrema, através do engano e do exagero
(Vasco, 1970), e é por tais sinalizações que podem ser identificados os atentados e
insultos contra a palavra e a honra. Isto ficará mais claro quando se mostrar como isto
opera no contexto da consulta jurídica. Para vários autores (Twinam, 1985; Londoño,
2001), o trabalho independente do garimpeiro de ouro, do aventureiro, do comerciante
ou do colono fomentou um marcado individualismo entre as pessoas de Antioquia. Da
minha perspectiva, esta é uma leitura superficial porque, embora o comércio e os
valores associados ao negócio possam ser entendidos como parte de uma ideologia
individualista (ou, pelo menos, como tendo fertilizado o terreno, historicamente, para a
entrada de uma ideologia individualista ligada a práticas capitalistas), deve-se
32
Com relação aos estereótipos, Londoño (2001: 60) aponta:
“A comienzos del siglo XX, los citadinos
consideraban a los campesinos como cursis, ñadangos y mazamorrones (…) los más acicalados eran
conocidos como dandys y filipichines (…)”
[N.T.
Ñandango
significa brega,
mazamorrones
é um termo
pejorativo para quem desempenha a tarefa de procurar ouro nas partes baixas dos rios,
dandys
e
filipichines referem-se a pessoas vaidosas que chegam a ser bregas ou que têm um visual exagerado]. A
autora mostra que no censo de 1938, no qual pela primeira vez classificou-se a população rural e a
população urbana, sete de cada dez habitantes de Antioquia residiam em zonas rurais, e já na década de
oitenta, sete de cada dez habitantes estavam vivendo em centros urbanos.
reconhecer que uma ideologia possui diferentes níveis operativos e que, entre eles, não
ocorrem relações igualitárias: pelo contrário, eles se distribuem com relação à totalidade
social graças a um critério hierárquico. Desta maneira, pode ser que, por exemplo, o
valor família marque a diferença em uma relação hierárquica, englobando o valor
esperteza e o valor trabalho
33
.
De qualquer forma, é importante deter-se um pouco na explicação desse
“espírito empresarial da Antioquia” porque nos permite entender valores como a honra,
a esperteza, o trabalho e a família. O “espírito empresarial antioquenho” foi o foco de
vários trabalhos acadêmicos que procuram identificar a razão de ser esta uma atitude
distintiva de Antioquia, mais ainda quando se compara com outras regiões do país. A
pergunta que se deve fazer é por que Medellín – em particular –, cidade localizada em
um vale cercado por montanhas como resultado da união das Cordilheiras Central e
Ocidental e, portanto, considerada uma zona pouco apta para um processo de
industrialização, tornou-se um dos centros industriais mais importantes do país. Assim,
por exemplo, ao redor de 1945, 24% do total da população industrial da nação era
gerada em Antioquia, que abrigava, nessa época, apenas 14% da população nacional. De
fato, nos anos sessenta, Antioquia foi colocada como um exemplo de como se poderiam
romper as barreiras que impediam a modernização e o progresso, e que perpetuavam o
atraso dos países latino-americanos (Twinam, 1985).
Autores como Hagen (citado por Twinam, 1985) postularam que entre os
séculos XVII e XIX os antioquenhos foram rejeitados pelo resto do país, especialmente
pela elite de Bogotá por serem considerados caça-fortunas atrasados, ordinários e
ambiciosos; esta seria a razão que motivou uma exacerbação dos valores ligados ao
comportamento empresarial que só tiveram eco em âmbito nacional no final do século
XIX e durante o século XX, com a diversificação de investimentos dos grandes
comerciantes – em sua maioria já desligados da mineração –, entre as quais estavam o
café, o tabaco, o gado, o comércio internacional e a indústria têxtil. Da mesma forma,
originou-se um mito étnico que procurou explicar a gênese desse conjunto diferenciado
de valores antioquenhos. Hagen (citado por Twinman, 1985), baseado no catálogo
telefônico da cidade de Medellín nos anos cinqüenta, estabeleceu que a maioria dos
33
Esta discussão lembra o que estabelece Dumont (1997 [1977]) com relação à análise de Tocqueville
sobre várias democracias. Dumont diz que uma democracia individualista não é viável a não ser por sua
condição de estar englobada em uma ideologia de um tipo mais tradicional, que seria o que ocorre na
democracia americana, onde acontece uma aliança entre o espírito de liberdade e o espírito da religião, e
onde o poder parece ser edificado como religião ou englobado pela religião.
sobrenomes eram de origem basca e pretendia provar que essa origem étnica estava
relacionada com o caráter empreendedor do povo “paisa
34
. Alguns refutaram dizendo
que os bascos constituíam apenas 22% do total do contingente de espanhóis que chegou
a Antioquia. Da mesma maneira, fala-se da origem judia sefardi dos espanhóis que
colonizaram a província; dizem que os primeiros povoadores da região eram judeus
convertidos que vieram se aventurar no Novo Mundo, mas que tinham uma estreita
relação com o comércio e, portanto, com o dinheiro. De fato, chegou-se a dizer que o
povo “paisa” é uma das tribos perdidas de Israel. É importante ressaltar que o mito
sobre a origem judia foi utilizado para legitimar duas posturas antagônicas: de um lado,
os paisas” se agarraram à idéia de uma raça superior no contexto colombiano, mas
enquadrando neste conceito de “raça” valores como o impulso, o trabalho, a honra e a
esperteza; por outro lado, de fora, engendrou-se uma espécie de rejeição e uma
estereotipação que acusava o ethos paisa de atípico frente ao resto do país. Assim, por
exemplo, no jornal El Día de Bogotá em 1844 apareceu:
¿Ves a esos solícitos y activos usureros, de rostro hebráico y corazón
empedernido, amigos de su conveniencia y enemigos de la ajena, incapaces de
complacer a nadie, ni aún a su misma familia? Pues reparádlos y apostad mil
contra uno que descienden por línea recta de los descendientes de esa raza
deicida que perseguidos por Felipe II, vinieron polizontes a América ocultando su
verdadero nombre y su origen, y cuyos descendientes son el tormento de cuantos
individuos... (citado por Zuleta, 1929:19). [Vê esses solícitos e ativos usuários, de
rosto hebraico e coração tenaz, amigos de sua conveniência e inimigos da alheia,
incapazes de comprazer a qualquer pessoa, nem mesmo à sua família? Pois os
dividais e apostais mil contra um que descendem por linha direta dos
descendentes dessa raça deicida que, perseguidos por Felipe II, vieram
clandestinos à América ocultando seu verdadeiro nome e sua origem, e cujos
descendentes são o tormento de tantos indivíduos]
Talvez se nos adentrássemos na historiografia do mito judeu poderíamos
entender o conjunto de valores e idéias, tanto dos que o alimentam de dentro, como
aqueles que perpetuam de fora. Neste ponto, é importante ressaltar novamente que
desde épocas coloniais, os antioquenhos foram os principais comerciantes do país e, em
sua maioria, os capitais se formaram como resultado da bonança do ouro e graças ao
investimento de tais lucros na diversificação de indústrias. O café foi um dos
investimentos realizados pelos comerciantes que se transformaram em latifundistas de
34
O termo para as pessoas oriundas desta região é antioquenho; não obstante, e dado o famoso processo
de colonização antioquenha ocorrido no final do século XVIII e durante o século XIX, o
ethos
estende-se
aos departamentos de Caldas, Risaralda e Quindío. Neste sentido, é melhor referir-se a “os paisas” e a “o
paisa
” por ser, além disso, uma categoria nativa fundamental.
um momento para o outro, para coexistirem em meio de um estrato de camponeses,
pequenos e médios proprietários, que claramente têm a terra como um valor
estruturante. O que ocorre, como já se disse, é que em Antioquia os direitos mineiros
tiveram precedência sobre os direitos agrícolas (López, 1970) e, em parte por isso, o
conceito de riqueza não está vinculado diretamente a valores camponeses como a terra,
mas ao trabalho e à esperteza. Por isso, existe a imagem do antioquenho como bom
negociante e possuidor de uma enorme malícia. Como afirma López (1970:99):
Si en Antioquia, la estructura de poder de la sociedad hubiese estado centrada en
unos pocos terratenientes de tipo tradicional; si el concesionario territorial
hubiese sido una personalidad sedentaria y no un inquieto minero (...) y si no se
hubiese pasado el control político local a manos de una élite burguesa, la presión
demográfica hubiese sido resuelta por medio de la expansión horizontal del
sistema agrario tradicional. [Se na Antioquia a estrutura de poder da sociedade
tivesse estado centrada em alguns latifundiários do tipo tradicional; se o
concessionário territorial tivesse sido uma personalidade sedentária e não um
inquieto mineiro (...) e se não se tivesse passado o controle político local para as
mãos de uma elite burguesa, a pressão demográfica teria sido resolvida por meio
da expansão horizontal do sistema agrário tradicional.]
De uma maneira ou de outra, as famílias antioquenhas fazem parte de uma
ordem patriarcal onde se destaca a figura do pai como dono do saber e detentor do
patrimônio familiar (Woortmann, 1990). É ele quem determina os ofícios que serão
exercidos pelos filhos durante a vida adulta. Apesar de uma marcante migração, os
filhos continuam sujeitos à autoridade do pai e à opinião dos familiares que
permanecem na região. Aqui, a família é um valor fundamental, na medida em que
opera como uma unidade de interesses recíprocos (Carneiro, 1998) e regula, por
exemplo, os efeitos do valor esperteza, que tem como lado negativo o engano. É nesse
sentido que Uribe e Álvarez (1998) garantem que a família em Antioquia – ainda no
contexto dos pequenos agricultores que também exaltam valores ligados aos negócios e
ao comércio – é entendida pelos atores como uma sociedade de negócios, que depende
dos laços parentais para articular os agentes econômicos que são seus membros. Uma
racionalidade diferente que opera através dos valores da honra, da palavra, do trabalho e
da esperteza está unida a uma estrutura parental – onde se ressalta o valor família – para
garantir o cumprimento dos compromissos adquiridos socialmente.
No caso do compadrio, ele pode ser vertical ou horizontal: muitos dos filhos dos
capatazes e agregados são afilhados do dono da fazenda; no entanto, em boa parte dos
casos, trata-se de proprietários ausentes. Os vínculos sociais mais significativos são
estabelecidos entre as hierarquias mais altas – depois do proprietário –, onde
encontramos administradores e capatazes, e as camadas mais baixas de trabalhadores e
operários. No compadrio horizontal, reforça-se a forte solidariedade existente dentro dos
grupos sociais. Aqui é fundamental entender o compadrio como uma relação entre
personagens sociais – e não entre indivíduos – e tais figuras são definidas por uma
totalidade que se sobrepõe ao indivíduo (E. Woortmann, 1995), o que reafirma a
preponderância do todo sobre as partes – característica de uma ideologia holista.
Na maioria dos casos, os personagens sociais do “patrão” – dono da fazenda – e
do administrador são referências gerais e ambíguas dentro do discurso dos habitantes da
região; em muitos casos, e a respeito das disputas pela terra, os implicados não
conhecem o nome do dono da terra, só de seu encarregado. De fato, há trabalhadores
que estão há vinte anos trabalhando em uma mesma fazenda e nunca viram o
proprietário, menos ainda sua família. Na região, é comum falar de um código de honra
que opera entre trabalhadores e operários – muitos deles pequenos proprietários, apesar
de trabalharem nas fazendas, como já expliquei –, e cujos efeitos recaem na figura do
capataz. É fato que nos últimos tempos a figura do administrador e do capataz parecem
ter se fundido, e é sobre este personagem – mediador entre as relações dos extremos da
estrutura social – que recaem os diferentes efeitos das sanções sociais. Os relatos de
assassinatos de capatazes são repetitivos; opera a solidariedade do grupo dos
trabalhadores de categorias mais baixas, porque muitos desses crimes ficam impunes ou
permanecem ocultos sob o espectro da frase: “Foi justo. Esse desgraçado merecia, já
não vai humilhar mais ninguém”.
O capataz é quem administra o processo produtivo. Se entendemos que a honra
está relacionada com o acesso ao trabalho através do acesso à terra – que produz o
econômico, mas também reproduz o social, qual seja, a família –, as disposições do
capataz que atentam contra este valor são consideradas como humilhação. De outro
lado, embora a exaltação da esperteza seja um valor fundamental entre os habitantes da
região, “a palavra” atua como um instrumento que regula as transações comerciais que
são freqüentes na região, como legado do próprio esquema da economia cafeeira e como
herança da origem negociante de muitos dos componentes da estrutura agrária. Mas a
palavra não constituiria um valor básico se não estivesse ligada ao valor família que, em
muitas ocasiões, se transfere para a camada social à qual se pertence, como no caso dos
capatazes, os administradores e os próprios trabalhadores de empreitada. Também se
transfere através das relações de compadrio horizontal, como já expliquei.
Toda esta discussão nos leva a questionar a existência de uma incisiva divisão na
ideologia camponesa entre negócio e trabalho, enunciada por K. Woortmann (1990).
Este autor diz que com a introdução do dinheiro em uma comunidade que se reproduz
pela reciprocidade, ocorre um processo de desmoralização. Por esta razão, recorre ao
discurso aristotélico, em que a arte da aquisição opõem-se à de enriquecer. Eu diria que,
em certos contextos onde opera uma ideologia hierárquica, as transações com dinheiro
também são moralizadas pela preeminência de determinados valores. Da mesma forma,
discutiria a oposição entre o valor trabalho, ligado à honra e ao moralmente legítimo, e
o negócio como negação da moralidade que se resume no estigma de que quem negocia
sempre está ocultando informações e negando as hierarquias existentes. Atrever-me-ia a
dizer que o valor da esperteza atravessa a estrutura social antioquenha, embora seja um
valor que poderíamos situar do lado do negócio – e de uma ideologia individualista,
como já expliquei – e, por isso, toca desde os industriais que compõem a elite, até os
trabalhadores de empreitada que tentam resolver seus conflitos diante da intervenção
dos estagiários de Direito. Neste sentido, estaria de acordo com Sigaud (1979), na
medida em que trabalho e negócio são consideradas atividades que podem ser alternadas
e que podem ser até complementares, dependendo das estratégias que vão sendo
desenhadas em vista da própria reprodução social. É claro que a autora trabalha o caso
de grandes engenhos de açúcar em Pernambuco, onde se poderia falar de uma
proletarização dos trabalhos agrícolas; não obstante, é interessante notar que, da
perspectiva dos atores, negócio e trabalho são valorizados positiva ou negativamente, de
acordo com a época do ciclo produtivo - o negócio, por exemplo, torna-se a atividade
mais importante no inverno –, ou em relação a outras categorias que entrem em
comparação – o trabalho da cana é avaliado como negativo quando se opõe ao trabalho
na agricultura, e pode chegar a ser considerado como não trabalho, em um sentido
pleno
35
.
Insisto que honra e palavra estão articuladas ao valor esperteza que, na sua face
negativa, apresenta-se como exagero e engano, mas tal articulação não costuma ser
entendida pelos atores sociais como algo contraditório. Como afirmam Uribe e Álvarez
35
Este ponto pode recordar o debate entre Moacir Palmeira (1976) e Otávio Velho (1977) com relação à
existência de uma burguesia camponesa, como sustentou Velho sem seu livro Capitalismo Autoritário e
Campesinato
(1976). Apesar de ser uma leitura economicista de trajetórias sociais, como o próprio autor
reconhece, é interessante que seja uma aposta teórica na possibilidade de um campesinato ascendente ou
que se articula a lógicas capitalistas para desenhar trajetórias ascendentes. Também está implícito um
questionamento à noção de auto-subsistência como impedimento para a ascensão social ou para a própria
reprodução social do campesinato, justamente porque, em muitos casos, a reprodução social implica a
manipulação de recursos que estejam ao alcance, ligados a determinadas modalidades de capitalismo.
(1998), quando se busca “um bom negócio” são lícitas atividades delituosas como a
evasão e a falsidade. K. Woortmann (1990) afirma que o lucro gerado pelo negócio
escapa do controle do grupo, o contrário do que ocorre com o ganho gerado na
agricultura. Quando há uma ideologia que combina, da forma como venho explicando,
valores relativos ao comércio e ao trabalho da terra, a família é encarregada de regular
os projetos individuais de seus membros e os projetos coletivos dela como totalidade (E.
Woortmann, 1995). Neste ponto, concordo com a explicação de que a família patriarcal
atua como um indivíduo coletivo ou entidade hierárquica que controla os dois tipos de
lucro por meio de redes de alianças entre famílias mais amplas ou entre localidades. E é
justamente neste sentido que entendo a rede local de conselhos – como quis denominá-
la – que opera em Fredonia como um fator fundamental na dinâmica do Escritório
Modelo.
O negócio não é considerado imoral e não atenta contra a honra do pai de
família; ele continua controlando o trabalho e o tempo dos membros de seu núcleo.
Existe uma moralidade doméstica que determina o lícito e o ilícito sob duas estratégias
de controle: a obediência filial e a proteção paternal. Como afirmam Uribe e Álvarez
(1998), a estrutura parental é o fundamento constitutivo e reprodutivo não só da elite
antioquenha, mas também é o elemento estruturante do povo histórico antioquenho.
Tais estratégias se manifestam em dois fenômenos estudados na região: o localismo e o
coronelismo. Não vamos nos aprofundar nessa discussão, mas é fundamental apontar
que o localismo está relacionado à formação de redes locais que tomam como modelo a
família patriarcal, entendida como sociedade de negócios. Assim, por exemplo:
No es extraño encontrar en un mismo tronco parental alianzas de grandes
mineros con comerciantes y mercaderes de larga distancia con distribuidores
locales; así como tampoco es raro que el dueño de una cuadrilla de esclavos para
la explotación de una mina tenga intereses mediados por parentescos con un
productor de maíz (Uribe e Álvarez, 1998: 220).
A performance da consulta e a superposição de valores
Após fazer esta identificação dos valores, pertencentes a uma ordem hierárquica,
que considero plenamente identificável no caso do município de Fredonia, procederei
mostrando como esses valores são colocados em cena durante a consulta jurídica. Já
foram explicados os critérios metodológicos que guiaram a escolha dos cinco casos
apresentados; no entanto, não é demais dizer que tais usuários do Escritório Modelo
representam personagens sociais da região e, através deles, é possível fazer um
panorama sobre dinâmicas atuais na região. Trata-se aqui de explicar e analisar a forma
como em cada caso se reforçam, se sobrepõem e se manifestam os valores honra,
palavra, trabalho, terra, família e esperteza através da representação dos clientes,
especificamente. Da mesma forma, na parte final do capítulo será mostrado como os
usuários apelam a uma identidade dissociada, até certo ponto, do grupo ao que
pertencem, apelando à sua condição de cidadãos ou indivíduos com direitos. De
qualquer forma, esta última discussão será aprofundada no capítulo seguinte, onde será
enfatizada a forma como valores que tendem ao pólo individualista são tratados durante
a consulta jurídica.
Dario (caso 3) e José (caso 5) são pequenos proprietários – Dario, em
particular, pretende resolver a questão em torno da propriedade de seu terreno, passada
a ele através de um acordo de palavra com seu antigo patrão – e se dedicaram ao cultivo
do café; seus filhos migraram para a cidade de Medellín (principalmente) e são eles que
enviam dinheiro para ajudá-lo em sua subsistência. No caso de José (caso 5), ainda tem
filhos menores de idade e outros já maiores que trabalham com ele na agricultura.
Ambos os clientes trabalharam na qualidade de diaristas nas fazendas da região,
atividade que combinaram com o trabalho em suas próprias parcelas. Maria (caso 2)
vive em uma vereda próxima à zona urbana de Fredonia e, embora nos últimos 7 anos
tenha trabalhado como empregada doméstica, esteve ligada ao café como colhedora,
trabalho sazonal que nas épocas de colheita tornava-se uma fonte de renda fundamental.
Devido à crise cafeeira e ao desgaste físico, Maria (caso 2) não pôde trabalhar mais
nessa atividade. Por esse motivo, recorreu à estratégia de trabalhar como empregada
doméstica na área urbana do município. Os filhos de Maria também migraram para a
cidade de Medellín; ela está ao cuidado de uma filha e de alguns netos. Rogelio (caso 1)
é um homem de idade madura – 40 anos aproximadamente –, trabalha como capataz e
sempre trabalhou em fazendas como capataz. Freqüentou a escola e não é analfabeto, ao
contrário de Dario e José. Por sua vez, Andrés (caso 4) vive na vereda Palomos, onde
várias empresas exploram minas de carvão, e trabalha em uma dessas empresas; como
já advertimos, o fato de falar de uma ideologia hierárquica – e de uma campesinidade –
não nos impede de considerar indivíduos que atuem em trabalhos diferentes dos
agrícolas, mas que, de qualquer forma, fazem parte dessa estrutura social. Neste caso,
também permite entender a articulação e a sobreposição de valores como palavra, honra,
trabalho e esperteza. Acrescentarei o seguinte diálogo que envolve os dois capatazes de
fazendas da região (Carlos e Roberto) e que contém uma riqueza etnográfica que o
torna um objeto de análise extremamente valioso
36
.
P6: Cómo es su nombre?
Roberto: Roberto José H. M. Supuestamente se va a exponer un caso porque
necesitamos una pequeña orientación; si hay que actuar, se actúa… resulta que
se laboraron dos años para cierto patrón
P6: Usted trabajó con él dos años?
Roberto: No, éste aquí… [señalando a Carlos]
P6: Y qué clase de trabajo?
Roberto: Oficios varios, lo que se llama en agricultura responsabilidad como
mayordomo
P6: ¿Como mayordomo?
Roberto: Como encargado
P6: Oficios varios
Roberto: Sí, oficios varios, entonces este hombre [señalando a Carlos] laboraba
el día completo y después se le recargaba un horario hasta las 9, 10, 11 de la
noche, hasta 12 de la noche
P6: Día completo!!! También dormía allá?
Roberto: Si, él vivía allá, pero después se le reforzaba con mucho trabajo ya en
horas de la noche para secar café y todas esas bobadas
P6: ¿Le daban alimentos?
Roberto: No, yo no vivía allá, es él [vuelve a apuntar hacia Carlos]
P6: Usted vivía allá. Y había otras personas que le ayudaban a recoger? O usted
vivía con su familia? [mira al consultante Roberto y no a Carlos, que es el
interesado en el caso]
Roberto: Vivía con la familia
P6: Con su esposa? Y cuántos hijos?
Roberto: Cinco hijos
P6: Trabajó dos años y...
Roberto: Fue retirado, lo retiraron… sin justificar las normas de 45 días de
preaviso por ley. Sin subsidio familiar, sin vacaciones, sin reconocerle las horas
nocturnas de la noche, o sea horas extras…
P6: Cuando usted entró a trabajar, firmó un contrato?
Roberto: Ahí es donde está la cosa peligrosa…
P6: Y ¿usted cuánto ganaba?
[En este momento, Roberto comienza a entablar una conversación con una joven
y no responde al practicante]
P6: O sea que usted es mayordomo? Usted recibía órdenes de su patrón?
[Dirigiéndose por fin a Carlos]
Carlos: Pues de todas maneras me tocaba trasnochar en el beneficio ayudando a
despulpar café, ayudando a hacer las labores
Roberto: Y por el mismo sueldo!!!
P6: Le tocó trasnochar durante los dos años?
36
Este diálogo é fundamental para a construção de meu argumento; foi uma consulta realizada pela
primeira vez, mas o trabalho de campo terminou e os dois clientes não voltaram ao Escritório Modelo.
Carlos
foi despedido de seu trabalho e pretendia iniciar um processo jurídico.
Roberto
também trabalha
como capataz, mas em uma fazenda diferente da que
Carlos
era empregado, e foi ele quem teve a
iniciativa de ir ao Escritório Modelo, liderando a conversa.
Carlos: Claro!!
P6: Inclusive cuando era mayordomo?
Carlos:
Roberto: Y por el mismo sueldo… Ave María!!!! Qué belleza!!!!
P6: ¿Cuánto ganaba?
Carlos: 68 [$ 68.000 pesos colombianos]
[En este instante, Roberto comienza de nuevo una conversación alterna]
P6: Recibía ese salario cada mes o semanalmente?
Roberto: Así que ustedes como estudiantes de abogacía tienen que sentirse de un
gran apoyo, no es?
P6: Cada cuánto recibía esa suma?
Roberto: Es que eso es lo importante de tener la capacidad de defenderse
P6: Cuál es el nombre de su patrón? Cómo se llama la persona que lo contrató?
Carlos: Gabriel Vélez
P6: Todavía sigue siendo el dueño?
Carlos: No los dueños son los que viven en Medellín... yo no sé los nombres de
ellos, tendría que preguntar...
Roberto: La abogacía sirve para sacar de un precipicio a los ignorantes, que no
saben entender la viveza y la astucia de la gente, el negocio de la gente…
P6: Alguna vez tuvo vacaciones?
Carlos: Ah, no!!!... yo trabajaba derecho
P6: Entonces él fue el que le dio el trabajo a usted, y cuando usted ya estaba
manejando empleados ¿quién era el jefe, él?
Carlos: Sí señor.
P6: Y cuando usted ya era el mayordomo?
Carlos: No, es que él era administrador. Es que administrador es uno y
mayordomo es otro
P6: Entonces, usted cuando dejó de ser mayordomo?
Carlos: Ah, él consiguió otro
Roberto: O sea que le quitaron el poder
Carlos: A mí me quitaron el poder de manejar empleados
Roberto: Disimuladamente
Carlos: Es que hubo un problema muy bobo y ahí me retiraron
P6: Cuénteme, cuál fue el problema?
Carlos: Es que ese hombre se está haciendo el bobo con la liquidación (ver
glosario)
[Roberto habla de nuevo en primer plano y deja a un lado la conversación con el
practicante]
Carlos: A mí no me han liquidado
P6: Bueno porque es que yo le digo, si a usted lo echaron de su cargo, tienen que
pagarle su dinero, pero si usted causó el problema, no tiene derecho a que le
paguen. Por eso dígame cuál fue el problema que usted tuvo?
Roberto: El hombre pudo haberlo desubicado [despedido] por cuestión de
deshonradez… pero la verdad es que uno a veces da con patrones muy
estúpidos…
P6: Hay que analizar eso de las horas extras, las cesantías y las vacaciones (ver
glosario)
Roberto: Es que yo le dije que él tiene derecho a los 45 días de preaviso y a las
vacaciones
Carlos: No… lo que pasa es que el hombre es muy rabioso, llegaba a la finca y
ponía mucho trabajo, si o no? Y como era trabajo, había que hacerlo.
P6: Es necesario saber cuál fue el problema que usted tuvo con él. Cuénteme
porque es importante para ver si se puede pedir la indemnización por despido
injusto o no. Así lo hayan despedido justamente tiene derecho a que le paguen las
cesantías…
Roberto: El problema fue que él lo iba desvinculando del trabajo hasta que
llegó…
P6: Yo necesito que usted me diga la verdad para poderle ayudar… Será que un
día él le dijo que hiciera alguna cosa y usted no la hizo?
Carlos: No, yo trataba de hacerlo pero me dejaban tantos trabajos que no podía
hacerlos, me entiende?
P6: Usted tiene gente que pueda atestiguar eso?
Carlos: No, no, no
Roberto: Pueden ser los empleados de la misma finca, trabajadores que se daban
cuenta en la forma como lo iba disminuyendo hasta que lo echó… aunque los
trabajadores de la finca pueden ser testigos, pero pueden ser enemigos para él
mismo…
P6: Como el contrato es verbal, necesita testigos. Trate de conseguir testigos que
digan, primero, que usted trabajó allá, y segundo, cómo fue el despido…
Roberto: Sin cualquier motivo. Ese señor dio pleito porque comenzó a disminuirle
tareas hasta que llegó al final y lo sacó. Eso era porque ese hombre le estaba
buscando un pleito
P6: Hace cuánto que lo echaron?
Carlos: Un mes larguito
Roberto: Va para un mes
P6: Bueno de ahí corren tres años, todavía hay tiempo, pero le vuelvo a decir:
como el contrato fue verbal se necesitan testigos, de que usted trabajaba allá y de
que este señor le ponía mucho trabajo… aunque, pensándolo bien, vaya primero
a la Inspección de Trabajo (ver glosario) porque la mayoría de estos procesos
van allá primero
Roberto: A usted como abogado no le daría mucha lástima que este hombre
quedara totalmente en la ruina sabiendo que en esta época de navidad se necesita
mucho, pequeños detalles para sus hijos... no le daría mucha tristeza?
P6: Usted va y dice que quiere tener una audiencia para intentar una
conciliación. Inténtelo en la Inspección de Trabajo; haga eso antes de una
posible demanda. Puede que allá citen al señor y ahí usted le dice que quiere
conciliar. Eso es lo que hay que hacer.
Roberto: Es que sinceramente estamos en un mundo donde sólo hay vivos y
bobos... los bobos somos nosotros los esclavos, cierto? Nosotros nos matámos
por aquella gente que no laboran ni saben nada de la vida, ni saben qué es un
árbol, cómo resiembra y cómo produce… A ellos sólo les gusta que se les lleve la
plata al bolsillo, pero no saben lo suficiente. Un tipo de esos es astuto, es un tipo
consciente de sus actos… él le estaba buscando un pleito
P6: Entonces, lo que hay que ver es si lo echó con justa causa o no…
Roberto: Eso, ya hay dos parámetros… él no le pagó los 45 días de preaviso. Por
eso digo, que ese hombre le estaba buscando problema. Entonces si llaman los
testigos, como dice el doctor, será que ellos van a aceptar después de trabajar
para él… será que ellos van a aceptar después de que fue usted el que los hizo
trabajar allá y los manejó, y todo eso...
[E6: Qual o seu nome?
Roberto: Roberto José H. M. Em princípio, vai ser exposto um caso porque
necessitamos uma pequena orientação; se tem que agir, se se age... a questão é que
trabalharam dois anos para um certo patrão
E6: O senhor trabalhou com ele dois anos?
Roberto: Não, este aqui... [mostrando Carlos]
E6: E que tipo de trabalho?
Roberto: Vários serviços, o que se chama na agricultura responsabilidade como
capataz
E6: Como capataz?
Roberto: Como encarregado
E6: Vários serviços
Roberto: Sim, vários trabalhos, então, este homem [mostrando Carlos]
trabalhava o dia inteiro e, depois. sobrecarregavam ele até às 9, 10, 11 da noite,
até meia noite.
E6: O dia inteiro!!! Também dormia lá?
Roberto: Sim, ele morava lá, mas depois enchiam ele com muito trabalho, até
altas horas da noite, para secar café e todas essas bobagens
E6: Te davam alimento?
Roberto: Não, eu não morava lá, é ele [volta a apontar para Carlos]
E6: O senhor morava lá. E tinha outras pessoas que o ajudavam a colher? O
senhor morava com sua família? [olha o cliente Roberto e não Carlos, que é o
interessado no caso]
Roberto: Vivia com a família
E6: Com sua esposa? E quantos filhos?
Roberto: Cinco filhos
E6: Trabalhou dois anos e...
Roberto: Foi despedido, despediram ele... sem cumprir as normas de 45 dias de
aviso prévio, por lei. Sem subsídio familiar, sem férias, sem reconhecer as horas
noturnas da noite, ou seja, horas extras...
E6: Quando o senhor começou a trabalhar, assinou um contrato?
Roberto: Aí é onde a coisa está perigosa...
E6: Quanto o senhor ganhava?
[Neste momento, Roberto começa uma conversa com uma jovem e não responde
ao estagiário]
E6: Quer dizer que o senhor é o capataz? O senhor recebia ordens de seu patrão?
[Dirigindo-se finalmente a Carlos]
Carlos: Bem, de qualquer modo eu tinha que passar a noite no armazém de
beneficiamento ajudando a descascar o café, ajudando a fazer as tarefas.
Roberto: E pelo mesmo salário!!!
E6: O senhor ficou trabalhando de noite os dois anos?
Carlos: Claro!!!
E6: Inclusive quando era capataz?
Carlos: Sim
Roberto: E pelo mesmo salário... Ave Maria!!! Que beleza!!!!
E6: Quanto ganhava?
Carlos: 68 [$68.000 pesos colombianos]
[Neste momento, Roberto começa de novo uma conversa paralela]
E6: Recebia esse salário por mês ou semanalmente?
Roberto: Vocês, como estudantes de advocacia, devem sentir que dão um grande
apoio, não é?
E6: A cada quanto tempo recebia essa quantia?
Roberto: É que isso é que é importante, ter a capacidade de se defender
E6: Qual é o nome de seu patrão? Como se chama a pessoa que o contratou?
Carlos: Gabriel Vélez
E6: Ainda continua sendo o dono?
Carlos: Não, os donos são os que moram em Medellín... eu não sei os nomes
deles, teria que perguntar...
Roberto: A advocacia serve para tirar de um precipício os ignorantes, que não
sabem entender a esperteza e a astúcia das pessoas, o negócio das pessoas...
E6: Alguma vez teve férias?
Carlos: Ah, não!!! ... eu trabalhava direto
E6: Então, foi ele quem deu o trabalho para você e quando você já estava
conduzindo os empregados, quem era o chefe, ele?
Carlos: Sim senhor.
E6: E quando o senhor já era o capataz?
Carlos: Não, é que ele era administrador. É que administrador é um e capataz é
outro.
E6: Então, quando o senhor deixou de ser capataz?
Carlos: Ah, ele conseguiu outro
Roberto: Ou seja, tiraram o poder dele
Carlos: Me tiraram o poder de chefiar os empregados
Roberto: Dissimuladamente
Carlos: É que houve um problema muito bobo e aí me tiraram
E6: Conte-me, qual foi o problema?
Carlos: É que esse homem está se fazendo de bobo com a indenização
[Roberto fala de novo no primeiro plano e deixa de lado a conversa com o
estagiário]
Carlos: Não me indenizaram
E6: Bem, porque é o que eu lhe digo, se tiraram o senhor do cargo, têm que pagar
o seu dinheiro, mas se você causou o problema, não tem direito a que lhe paguem.
Por isso, diga-me, qual foi o problema que o senhor teve?
Roberto: O homem pode ter despedido ele por questão de desonradez... mas a
verdade é que às vezes a gente se depara com patrões muito estúpidos...
E6: Tem que analisar essa questão das horas extras, do fundo de garantia e das
férias.
Roberto: É que eu lhe disse que ele tem direito aos 45 dias de aviso prévio e às
férias
Carlos: Não... o que acontece é que o homem é muito raivoso, chegava à fazenda
e colocava muito trabalho, sim ou não? E como era trabalho, tinha que fazer.
E6: É necessário saber qual foi o problema que o senhor teve com ele. Conte-me
porque é importante para ver se se pode pedir a indenização por demissão injusta
ou não. Mesmo que o tenham despedido justamente, o senhor tem direito a que
paguem o fundo de garantia...
Roberto: O problema foi que ele ia desvinculando-o do trabalho até que chegou...
E6: Eu preciso que o senhor me diga a verdade para poder ajudá-lo ... Será que
um dia ele disse que fizesse alguma coisa e o senhor não fez?
Carlos: Não, eu procurava fazer, mas me deixavam tantos trabalhos que não
podia fazer tudo, me entende?
E6: O senhor tem gente que pode testemunhar isso?
Carlos: Não, não, não
Roberto: Podem ser os empregados da própria fazenda, trabalhadores que
percebem a forma como iam diminuindo o senhor até que o colocaram para fora...
mesmo os trabalhadores da fazenda podem ser testemunhas, mas podem ser
inimigos para ele mesmo...
E6: Como o contrato é verbal, necessita testemunhas. Procure conseguir
testemunhas que digam, primeiro, que o senhor trabalhou lá e, segundo, como foi
a demissão...
Roberto: Sem qualquer motivo. Esse senhor queria briga porque começou a
diminuir suas tarefas até que chegou ao final e o tirou. Isso porque esse homem
estava buscando uma briga
E6: Há quanto tempo o demitiram?
Carlos: Quase um mês
Roberto: Vai dar um mês
E6: Bem, daí correm três anos, ainda há tempo, mas volto a dizer: como o
contrato foi verbal, é necessário testemunhas, de que o senhor trabalhava lá e de
que este senhor exigia muito trabalho... embora, pensando bem, vá primeiro à
Delegacia de Trabalho, porque a maioria destes processos passam primeiro por lá
Roberto: Ao senhor, como advogado, não lhe daria muita pena que este homem
ficasse totalmente na ruína, sabendo que nesta época de Natal se precisa de muito,
pequenos detalhes para seus filhos... não lhe daria muita tristeza?
E6: O senhor vai e diz que quer ter uma audiência para tentar uma conciliação.
Tente com a Delegacia de Trabalho; faça isso antes de um possível processo. Pode
ser que eles citem esse senhor e aí o senhor diz que quer fazer uma conciliação.
Isso é o que tem que fazer.
Roberto: É que, sinceramente, estamos em um mundo onde só há vivos e bobos...
os bobos somos nós, os escravos, certo? Nós nos matamos por aquela gente que
não trabalha nem sabe nada da vida, nem sabe o que é uma árvore, como se planta
e como produz... Eles só gostam que lhes mande o dinheiro para o bolso, mas não
sabem o suficiente. Um cara desses é astuto, é um cara consciente de seus atos...
ele estava buscando uma briga
E6: Então, o que tem que ver é se o despediu com justa causa ou não...
Roberto: Isso, já tem dois parâmetros... ele não pagou os 45 dias de aviso prévio.
Por isso digo, que esse homem estava buscando problema. Então, se chamam as
testemunhas, como diz o doutor, será que eles vão aceitar depois de trabalhar para
ele... será que eles vão aceitar depois de que foi o senhor que fez eles trabalharem
lá e os levou, e tudo isso...]
A dramatização é um elemento fundamental das consultas jurídicas e esta
performance envolve os atores envolvidos: estagiários e usuários; no entanto, nesta
parte vou concentrar-me especificamente nos clientes. Muitos comparecem – na
primeira visita ou em um pronto crucial do processo – com esposos, esposas, filhos,
familiares e amigos de confiança. Outros clientes vão com crianças de colo ou em
companhia de filhos pequenos que, em algum ponto da narração do caso pessoal são
apresentados como uma evidência que dá realce ao próprio relato, mas que também
servem para ganhar a confiança do estagiário. Em outras situações, as pessoas vão
armadas de documentos que não só remetem à questão jurídica por resolver, mas
também ao panorama geral onde se enquadram seus relatos: pobreza, humildade e
doença – como no caso 4, por exemplo. Assim, mostram feridas, cicatrizes, receitas
médicas, exames, radiografias, etc. para ir encadeando e construindo os fatos de sua
própria história. Comparecer com outras pessoas ao Escritório Modelo e iniciar
conversas paralelas quando o interessado está falando com o estagiário – como é
evidente no diálogo citado – são recursos que remetem a uma solidariedade dentro da
camada social a que pertencem os clientes. No caso da consulta dos dois capatazes,
Roberto começava uma conversa com pessoas que passavam ou mesmo com o
etnógrafo para tratar de proteger a informação que Carlos estava fornecendo ao
advogado, e que remete aos conflitos entre personagens que ocupam diferentes posições
na estrutura social, como será detalhado mais adiante.
Outro aspecto fundamental da performance da consulta que deve ser considerado
é o ato da denúncia – “falar mal do outro com o advogado” –, cujo espectro vai se
ampliando à medida que o procedimento vai chegando a instâncias maiores: a
elaboração de uma demanda, a chegada da citação ao juizado e a própria audiência.
Chamar testemunhas também é recorrente, visto que muitos dos contratos de trabalho e
das transações de terras e propriedades são feitos através de acordos de palavra. Assim,
por exemplo, em todos os casos apresentados falou-se em algum ponto em chamar
testemunhas. Em outras situações, foram elaborados documentos escritos a mão que só
contêm a assinatura das partes e o número da carteira de identidade. A grande maioria
destes papéis não tem o devido registro e terminam sendo inválidos. É interessante
porque, embora no diálogo citado a convocação de testemunhas demonstre a tensão
existente entre, por exemplo, o capataz e os trabalhadores sob sua responsabilidade –
que podem chegar a agir como “inimigos”, nas palavras de Roberto –, este é um dos
aspectos que, em geral, estimula mais os usuários a continuar com seus processos.
Enquanto muitos deles consideram difícil fazer as tramitações que os estagiários
solicitam nas repartições públicas da localidade, a busca de testemunhas é estimulante
porque envolve outras pessoas do grupo social do qual se faz parte, o que parece ser
assumido como um mecanismo de reinstauração do valor da palavra, que está ligado à
honra. É necessário destacar de novo que, em uma ordem hierárquica, a pessoa existe
através de suas relações (Da Matta, 2002) e, por isso, busca ferramentas – que re-
significa holisticamente – para desafiar ou reestabelecer as hierarquias existentes.
Recorro a Da Matta (2002) levando em conta que sua análise está centrada mais em
uma sociedade urbana, mas creio que esse tipo de idéia pode ser integrada em minha
análise na medida em que, justamente, pretendo mostrar que continuar recorrendo a uma
ruptura analítica para apreender fenômenos rurais e urbanos é teoricamente
insustentável. Da Matta (1971) está interessado em analisar o que denomina dilemas da
cidadania brasileira, mostrando que no Brasil se apresenta uma combinação de lógicas
hierárquicas e individualistas, que se manifesta nas oscilações de pessoa e indivíduo às
quais apelam os sujeitos em espaços públicos e privados. Como esclarece Barbosa
(2001:56) em relação ao dilema da cidadania enunciado por Da Matta: “Poderíamos
dizer que no Brasil enquanto o indivíduo é o sujeito normativo das instituições, a
pessoa, em vários domínios, é o sujeito normativo das situações, neutralizando o
impacto das leis e critérios universalizantes”.
Até este ponto, falou-se dos valores trabalho, terra, honra, palavra, esperteza e
família; em grandes linhas, foi dito que os valores trabalho, terra e honra estão do lado
das atividades agrícolas, e os valores esperteza e palavra podem situar-se do lado do
negócio e do comércio. Discutiu-se, além disso, a dificuldade de manter essa divisão do
ponto de vista de uma desmoralização pela adoção de práticas relativas ao capitalismo e,
por esta razão, é possível dizer que, no caso tratado, o valor esperteza atravessa a
estrutura social da região, ou suas manifestações são mais visíveis. Não obstante, o
valor esperteza é englobado pelo valor família, que também engloba o valor trabalho,
marcando assim a diferença em uma relação hierárquica. Isso demonstra que, como
assinala Dumont (2000) [1983], em determinadas ocasiões um valor é concretamente
afirmado e, assim, ele subordina seu contrário, embora possa se abster de dizer isso, ou
não se apresentar como uma relação evidente. Disse também que a honra e a palavra
estão ligadas ao valor esperteza, mas considero que a honra está conectada com as
dinâmicas próprias da estrutura agrária, enquanto a palavra é um valor que ajuda a
intermediar as transações comerciais. O importante é ter claro que os isolo apenas por
razões de ordem analítica, mas é difícil pensá-los como entidades separadas. A
esperteza, por sua vez, reúne o valor trabalho, apesar de estar ligada a uma categoria
mais geral, a de negócio. Falo de terra como valor na medida em que, junto com o valor
trabalho, formam uma idéia de patrimônio (E. e K. Woortmann, 1995) que, conforme o
que foi presenciado no Escritório Modelo de Fredonia, é indissociável do valor família,
que adquire a forma de uma sociedade de negócios.
No caso 1, Rogelio abriu um processo jurídico porque seu patrão – o dono da
fazenda – estava lhe negando o valor trabalho, ligado neste caso ao desenvolvimento
das atividades agrícolas que permitem a reprodução da família. Em várias ocasiões, o
usuário expressou que o descuido de seus patrões em prover os meio necessários para
cuidar dos cultivos e dos animais estava fazendo com que ele e sua família estivessem a
ponto de morrer de fome ou em grave risco de contrair alguma doença pela
contaminação gerada pela morte dos porcos. É interessante que, embora Rogelio, na sua
qualidade de capataz, pretendesse desafiar a posição social de seu patrão “diminuindo”
a distância entre os dois através de uma ação concreta como a instauração de um
processo, sempre fazia referência à esposa do dono, e não a este, ao relatar as situações
mais “humilhantes” que vivera durante seus últimos dias na fazenda. De fato, uma das
situações mais marcantes do caso – quando lhe disseram que fosse buscar um caminhão
para levar suas coisas, enquanto iam trazer o dinheiro que lhe deviam – tem a esposa do
dono como protagonista e, assim, a figura do patrão se mantém limpa de certa maneira,
o que poderia ser entendido como um resquício da obediência filial da qual falávamos
antes. Talvez possamos dizer que o patrão continua ileso graças à sua própria ausência.
Foi a esposa do dono quem enganou Rogelio, pois só lhe pagou $200.000 de uma dívida
que chegava a vários milhões de pesos, faltando com sua palavra, e o fez utilizando-se
de uma armadilha. O que a patroa fez representa a cara negativa da esperteza – um
antivalor – que é o engano, e essa sanção também recai sobre ela porque, ao ser quem
dava as ordens diretamente sobre Rogelio, estava atentando contra a honra que
caracteriza uma estrutura marcadamente patriarcal. É também por essa razão que, no
caso 3, Dario comentou com o etnógrafo que um sobrinho seu tinha sido condenado 40
anos de prisão por assassinar sua esposa. O usuário recusou-se a relatar o caso ao
estagiário (E4), garantindo que havia coisas nas quais “as mulher não ajudavam os
homens”, reforçando assim a precedência de determinados laços parentais.
Quando os porcos começaram a morrer, Rogelio recorreu a várias testemunhas –
o Inspetor de Polícia foi o primeiro deles – para que confirmassem que não tinha sido
sua culpa a morte dos animais. O usuário pretendia demonstrar que não tinha falhado no
desempenho de suas funções de capataz, deixando os animais morrerem de propósito;
estava salvaguardando sua honra, mas reforçando sua palavra através de testemunhas. É
interessante que, por iniciativa própria, tenha acudido à Delegacia de Polícia, aos
vendedores de insumos e aos operários sob sua responsabilidade – isto quando a
estagiária (E2) disse que, para continuar com o processo, era necessário a presença de
testemunhas. Chamar testemunhas remete à restituição da honra e à ratificação da
palavra, mas é como se os mecanismos para fazer isso estivessem relacionados, em
grande medida, com o valor esperteza. Por este motivo, por exemplo, o cliente recorreu
a três tipos de testemunhas diferentes durante os diálogos com a estagiária – o delegado
de polícia, o dono do armazém de insumos e, por último, os trabalhadores. Isto permitiu
que ele introduzisse na disputa pessoas que não estavam sob sua responsabilidade nem
em uma posição social inferior, o que poderia evidenciar os reiterados conflitos entre
capatazes e trabalhadores. Basta lembrar o diálogo reproduzido páginas atrás, em que
Roberto diz ao estagiário (E6) (que insistia na necessidade de buscar testemunhas em
vista de que o contrato de Carlos tinha sido verbal) que os trabalhadores sob a
responsabilidade de Carlos podiam testemunhar sobre a forma como o patrão – que,
neste caso, é o administrador e não o dono da propriedade, e seu nome também não foi
mencionado – ia “diminuindo seu trabalho até que o mandou embora”; não obstante, foi
o próprio Roberto quem reconheceu que os trabalhadores podiam agir como inimigos.
No caso 1, é provável que o descontentamento de Rogelio como capataz, e a
negação do acesso aos recursos que permitem a expressão plena do valor trabalho, fosse
o elemento chave para admitir, e até propor como testemunhas trabalhadores sob sua
responsabilidade. Por outro lado, a advogada dos donos da fazendo quis persuadir E2,
dizendo que Rogelio “tinha se tornado muito grosseiro”, que era alcoólatra e que tinha
deixado os animais morrerem, apesar de ter vários cultivos para alimentá-los; assim,
estava novamente desafiando tanto a honra como a palavra do usuário. A honra de
Rogelio é questionada na medida em que se tenta demonstrar que foi negligente no
desempenho de suas funções como capataz, com pleno conhecimento que dentro da
estrutura agrária o capataz é o detentor “oficial” do conhecimento dos ciclos produtivos.
Falar de uma negligência em suas funções é negar tal conhecimento e, portanto, colocar
em dúvida sua honra. Neste ponto, vale a pena considerar o seguinte testemunho da
esposa de um capataz de uma fazenda da região – também usuária do Escritório Modelo
– que sintetiza algumas das características do ofício e dos conflitos ligados a ele:
(...) la relación con los patrones es buena, ya llevamos 14 años en esa finca y
ellos dicen que en cualquier momento venden y entonces... no sé, depende del
patrón, pero de pronto llega otro bien querido, uno hace al patrón y el patrón lo
hace a uno, y si uno es bien malito pues él también se aburre con uno (...) En esa
finca hay 4 obreros fijos con mi esposo, tres obreros fijos y él, son cuatro. La
relación es buena, lo que pasa es que de todas formas siempre a veces llega el
patrón y pregunta por qué tal trabajo no rindió, pregunta qué hizo fulanito
porque allá se lleva un diario. Entonces, en el diario se apunta que un obrero está
en el establo, que otro está jardineando, y que otro recolectando el café. Mi
esposo tiene que apuntar todo y entonces a veces se pone a mirar y dice “ay!!
pero fulanito estuvo haciendo tal cosa toda la semana y sólo esto fue lo que hizo”.
Muchas veces a ellos no les parece lo que les toca hacer, o a veces el trabajador
no da el rendimiento completo. Para él [su marido] es muy molesto porque el
trabajador dice “no, yo no puedo trabajar más de lo que usted me asignó” (...)
entonces a veces uno se incomoda y es por eso que de todas formas se los echa de
enemigos muy fácil. Lo peor del cuento es que el trabajador puede pensar que es
cosa de uno, que es que uno le está lambiendo al patrón pero es que si uno no lo
hace, va a venir el patrón y también va a reclamar. En otros tiempos que había el
administrador, únicamente estaba en la finca, llevaba cuentas y vigilaba los
trabajadores, pero a mi marido no le toca así, a él le toca trabajar parejo:
trabaja con las bestias, en el establo, en la semilleta, herra las bestias, mantiene
los cultivos, mantiene los marranos y los peces. Está pendiente del café, si hay
que lavar, si hay que secar, él sabe qué hay que traer a vender, sabe cuando hay
que comprar abono. Él está pendiente de todo (...)
(...) a relação com os patrões é boa, já estamos há 14 anos nessa fazenda e eles
dizem que em qualquer momento vendem e, então... não sei, depende do patrão,
mas de repente chega outro bem querido , a gente agrada o patrão e o patrão
agrada a gente, e se a gente é bem ruinzinho então ele também se aborrece com a
gente (...) Nesta fazenda tem 4 operários fixos com meu esposo, três operários
fixos e ele, são quatro. A relação é boa, o que acontece é que de qualquer forma
sempre às vezes chega o patrão e pergunta por que tal trabalho não rendeu,
pergunta o que fulaninho fez, porque lá eles têm um diário. Então, no diário se
anota que um operário está no estábulo, que outro está fazendo jardinagem, e que
outro está colhendo o café. Meu esposo tem que anotar tudo e, então, às vezes fica
olhando e diz “ah!!! mas fulaninho esteve fazendo tal coisa toda a semana e foi só
isto que fez”. Muitas vezes eles não sabem o que têm que fazer, ou às vezes o
trabalhador não dá o rendimento completo. Para ele [seu marido] é muito chato
porque o trabalhador diz “não, eu não posso trabalhar mais do que você me
atribuiu” (...) então, às vezes, a gente se incomoda e é por isso que, de qualquer
forma, tornam-se inimigos muito facilmente. O pior da história é que o
trabalhador pode pensar que é coisa da gente, que a gente está puxando o saco do
patrão, mas é que se a gente não faz, vai vir o patrão e também vai reclamar. Em
outros tempos, em que tinha o administrador, só estava na fazenda, controlava as
contas e vigiava os trabalhadores, mas meu marido não tem que fazer assim, ele
tem que trabalhar do mesmo jeito: trabalha com os burros, no estábulo, na
sementeira, ferra os burros, mantém os cultivos, mantém os porcos e os peixes.
Está atento com o café, se tem que lavar, se tem que secar, ele sabe o que tem que
trazer ou vender, sabe quando tem que comprar adubo. Ele está atento a tudo (...)
O caso de Dario (caso 3) permite ver a articulação entre os valores terra,
trabalho, palavra e honra, fundamentalmente. O cliente pretendia legalizar uma terra que
havia comprado de seu patrão há 47 anos, por meio de um acordo de palavra, apesar de
a transação ter sido selada simbolicamente com a entrega das escrituras originais. Dario
foi pagando a dívida com os lucros obtidos durante várias colheitas, isto é, a terra
tornou-se patrimônio graças ao trabalho dedicado do cliente. O problema foi que a
transação não foi registrada no Cartório de Registro de Imóveis nem no Cartório de
Registros Públicos e, portanto, não tinha validez legal. Dario só teve conhecimento
deste problema quando quis iniciar o processo de partilha de bens e, para ele, a questão
mais grave era o fato de se estar duvidando de sua palavra e da palavra de seu patrão,
por isso se remetia freqüentemente ao relato do momento original da transação. Sua
honra como pai de família também estava sendo colocada em dúvida e isto está
relacionado justamente com o questionamento de seu papel como dono de uma terra
(onde trabalhou desde os sete anos de idade; inclusive antes de ser o proprietário legal),
graças à qual “criou seus filhos e ajudou seus irmãos menores” diante da morte
prematura de seus pais.
Além disso, todo esse processo estava atentando contra a possibilidade de realizar
sua partilha de bens entendida, em termos sociais e não só materiais, como meio de
transmitir a terra e o conhecimento para seus sucessores. Claramente, estaria se falando
de um atentado contra a honra do pai de família. Isso também explica a rejeição de
Dario em falar com seus vizinhos atuais para tentar localizar o número do registro do
imóvel e o temor em assinar qualquer documento, inclusive aqueles que E4 usava para
simular determinados trâmites. Quando a estagiária propôs falar com seus vizinhos,
Dario limitou-se a responder que todos estavam mortos. E4 enfatizava que devia fazer
contato com os proprietários atuais dos terrenos vizinhos, mas o usuário não parava de
pensar no momento histórico da transação. Dario falava do que tinha plantado em sua
terra, da colheita, dos preços dos grãos, dos animais, mas em todos estes assuntos era
enfático em atribuir ao trabalho o lugar mais importante, o que também deve ser visto à
luz do agravante mais complicado do caso de Dario: o surgimento de um suposto
herdeiro de seu patrão que desconhecia sua posse, mas, sobretudo, o cumprimento de
sua palavra e o trabalho investido durante tantos anos naquela terra. Isto ressalta a
importância do valor trabalho com relação à posse da terra, pois é o trabalho que
permite a verdadeira produção e reprodução da família. Como assinalam K. e E.
Woortmann (1997:177): “O processo de trabalho, além de produzir alimentos, produz
relações sociais e reproduz, a cada ciclo anual de atividades agrícolas, hierarquias. A
maneira de trabalhar é um modo de produzir pessoas”.
No caso de Dario, apresentou-se uma situação que nos remete ao valor esperteza;
a estagiária (E4) pediu ao usuário a escritura original para fazer um trâmite. Uma das
normas do Escritório Jurídico é que os estagiários devem sempre solicitar fotocópias
dos documentos fornecidos pelos usuários, mas a estagiária não foi a Fredonia durante
várias visitas e procurou adiantar alguns trâmites por conta própria, devido aos
constantes esquecimentos de Dario e ao fato de este ser analfabeto. Este incidente fez
com que o filho do cliente fosse pedir de uma forma agressiva a escritura, afirmando ser
de pleno conhecimento que os estagiários só trabalham com cópias, e manifestasse sua
desconfiança em relação aos estudantes dizendo que eles estavam se aproveitando de
Dario. Disse também, que necessitava falar pessoalmente com a estagiária porque
queria ter certeza de que não estavam enganando seu pai. De qualquer forma, o filho de
Dario sugeriu que seu interesse em saber como andava o caso se dava à sua necessidade
de adiantar alguns negócios. É como se o filho de Dario estivesse ocultando sua própria
esperteza, pois estava contando com parte de sua herança para pagar algumas dívidas,
através da reafirmação do engano como antivalor, relacionado com os valores esperteza
e palavra.
O caso de Andréscaso 4 – também tem vários elementos que contribuem para
entender o valor esperteza e sua relação com a honra. Para Andrés, o divórcio –
independente da condição de acordo mútuo ou não – estava plenamente justificado pelo
fato de que sua mulher tivesse ido com outro homem. Por esse motivo, quando o
estagiário (E6) insistia em perguntar se sua esposa estava de acordo com o divórcio, ele
respondia que ela tinha que aceitar porque havia tido o descaro de colocar o amante
dentro de casa e na presença de seus filhos. Aqui é inegável que a honra de Andrés
como pai de família – está sendo questionada, apesar de o mais interessante ser que isso
o autoriza a usar estratégias que acentuam o valor da esperteza. Por essa razão, Andrés
disse a E6 que “tinha que buscar uma forma” de dividir de uma maneira diferente as
propriedades, principalmente porque ele estava a ponto de receber um lote e estava
entrando em uma cooperativa de habitação popular para fazer uma casa própria, que sua
companheira atual, ela sim, merecedora de seus bens, pela dedicação e cuidado que
tinha com ele – ratificação de sua honra como pai de família.
Assim como vários usuários que fazem consultas trabalhistas, evitando
perguntas relativas à quantia do salário, ao nome do dono da fazenda e à duração da
jornada de trabalho, entre outras, e graças à ajuda de seus acompanhantes, Andrés disse
que não tinha um salário fixo, mas um “salário variável”, em suas palavras, já que este
variava de acordo com os trabalhos realizados. Isto suscitou dúvidas em E1, que
interveio em uma das consultas apesar de o caso estar sob a responsabilidade de E6,
insinuando que o cliente estava apelando à esperteza (“sendo vivo”) porque a pensão
alimentícia era baixa e ainda tinha três filhos menores de idade. De fato, em uma das
reuniões de estagiários, E1 disse que era provável que “como todo bom minerador”,
Andrés estivesse gastando o dinheiro em bebida; é como se, de antemão, o estagiário
supusesse que Andrés optou pela via do engano. Enquanto E1 estava vendo a quantia
em termos dos filhos menores do casal (além de estar guiado pela desconfiança porque
não acreditou que o salário de ele fosse tão baixo e tão inconstante como ele estava
argumentando), o cliente usava o fato de seu filho de 16 anos estar trabalhando para
justificar a diminuição de sua obrigação. O que é mais interessante é que, embora
possamos dizer que Andrés parte da idéia de que seu filho é um sujeito pleno – adulto –
pelo fato de estar trabalhando (mesmo sendo menor de idade) o que remete a
considerações sobre a pessoa social no universo rural, Andrés também se vale da
obrigação no sentido definido pela lei para reclamar do fato de a pensão alimentícia,
concernente a sua obrigação para com seus filhos menores de idade, estar sendo
distribuída entre os familiares de sua esposa, incluindo sua sogra, distribuição esta que
obedeceria às concepções locais de família e ajuda.
O valor esperteza também aparece no acordo informal realizado entre Andrés e
sua esposa. Segundo o cliente, a pensão alimentícia estava fixada em $100.000 (que E1
considera uma quantia muito baixa), embora ele não depositasse exatamente este o
valor, posto que sua ex-mulher havia dito a ele que depositasse “o que pudesse”. Não
obstante, Andrés disse que tinham fixado um máximo de $50.000, resposta motivada
mais pelas perguntas do advogado que exigiam cifras precisas. Digamos que, da
perspectiva do usuário, a pensão podia variar tanto quanto seu próprio salário,
dependendo mais dos efeitos sociais da humilhação; daí que o usuário falasse
freqüentemente do espanto que a situação estava causando em sua localidade; “Palomos
[nome do corregimiento] está impressionado com o que essa mulher está fazendo. Eu
saia do trabalho para lavar bacias de roupa; eu lutei muito para criar estes filhos e agora
ela vai embora com eles”.
Andrés reconhece que faltou com sua palavra porque, em diversas ocasiões, não
cumpriu com o valor determinado, diminuindo a quantia a cada ocasião, mas em
seguida se justifica dizendo que foi humilhado porque sua esposa tinha um amante com
o qual “dormiu dentro de sua própria casa”. Daí que Andrés dissesse que preferia ficar
com os cinco filhos da primeira união, mais os filhos de sua união atual e os de sua
companheira, ao invés de ter que dar suas propriedades ou ter que admitir um reajuste
da pensão alimentícia, o que seria muito mais humilhante – a negação da honra. Esta
negativa e o recrudescimento do conflito através de ligações, cartas e piadas,
culminaram em uma nova demanda de pensão – à qual se somou o grave estado de
saúde de Andrés depois que sofreu um acidente –, mas o importante a ser destacado é
que ambos os atores apelaram ao valor esperteza para compensar os atentados à palavra
e à honra, e suas outras faces: engano e humilhação.
Dentro da performance que os clientes fazem a cada visita, e que no caso de
Andrés envolveu a sua atual companheira – que se tornou uma figura central do caso –,
os panoramas gerais das histórias pessoais, como pobreza e doença, estão relacionados
também com a sobreposição de valores. Assim, por exemplo, quando o usuário disse ao
advogado que tinha outra relação, justificou-se afirmando que ainda era um “homem
inteiro” e, por isso, seus filhos aceitavam a união, apesar de sua esposa não o fazer; no
entanto, quando falou de seu descumprimento a respeito do acordo informal que fez
com a esposa, Andrés colocou que já tinha 53 anos e “passava a ser um homem
doente”, dizendo ao estagiário que tinha uma forte dor no pé. Este último acontecimento
encadeou-se a outras circunstâncias – o derrame cerebral e o acidente de trânsito
sofridos posteriormente pelo usuário – que, de qualquer forma, comprometeram o
estagiário (E6), e foram confirmados pela atual esposa de Andrés através de exames,
radiografias e testemunhos desesperados. Na primeira situação, dizer que ainda é um
“homem inteiro” proporcionou-lhe ferramentas para restituir a honra como pai de
família, e apelar ao cansaço e à doença permitiu operar através da esperteza para
justificar que não cumpriu com sua palavra, quando não fez o que foi decretado pelo
juiz em relação à pensão alimentícia e ao acordo informal – e os sucessivos ajustes –
realizado com sua mulher. No diálogo citado páginas atrás, também é possível observar
como os clientes costumam recorrer ao panorama geral para tratar de persuadir o
estagiário em algum ponto crucial da consulta; indo um pouco mais longe, os
panoramas gerais são elementos constituintes da representação, mas se deve entender
que, necessariamente, estão articulados ao valor esperteza.
Em tal diálogo, Roberto estava tratando, desesperadamente, de persuadir E6
para que o caso fosse assumido pelo Escritório Modelo, pois o estagiário estava
remetendo-os à Delegacia do Trabalho da localidade. Nas palavras de Roberto,
dirigindo-se ao estagiário e ao etnógrafo: “(...) Ao senhor, como advogado, não lhe daria
muita lástima que este homem ficasse totalmente na ruína sabendo que nesta época de
Natal necessita-se muito, pequenos detalhes para seus filhos... não lhe daria muita
tristeza?”.
Em geral, as pessoas que vão fazer uma consulta pela primeira vez chegam
acompanhadas por outros moradores da localidade, os quais lhes recomendavam
recorrer ao Escritório porque eles ou pessoas próximas (familiares e amigos) conhecem
a forma como opera e resolveram algum conflito graças à intervenção dos estagiários.
Podemos dizer que, na localidade, existe uma espécie de rede local de conselhos, mas
esta ou suas ramificações operam dentro de um mesmo nível hierárquico. Trabalhadores
de empreitada recorrem ao Escritório porque outros trabalhadores de menor qualificação
acudiram a esta mesma instância – com ou sem êxito em seus respectivos processos. As
empregadas domésticas chegam por recomendação de suas vizinhas de calçada – como
aconteceu com Maria (caso2) –, muitas das quais também foram empregadas
domésticas em algum momento, estratégia comum na região que permite aumentar a
renda para o grupo familiar.
No diálogo, vemos que um capataz recorre por recomendação de outro, mas é
Roberto que lidera a conversa. Poder-se-ia dizer que ele encarna o valor da esperteza.
Diz ter conhecimento da lei e, por isso, tenta desafiar a autoridade do jovem estagiário
falando dos 45 dias de aviso prévio, das férias, do subsídio familiar e do
reconhecimento das horas extras, mas claramente está buscando uma reivindicação a
partir de sua própria posição de capataz. Em parte por isso, e apelando à esperteza, é
que somente na metade da conversação Carlos disse com clareza que seu cargo na
fazenda era de capataz. No início da consulta, Roberto agiu como cúmplice, tentando
confundir o estagiário, dizendo que Carlos trabalhava em vários ofícios, como capataz e
como encarregado. Atrás dessa solidariedade que opera dentro do mesmo nível social,
está presente uma articulação dos valores esperteza, trabalho, palavra e honra; o
problema fundamental do cliente foi a humilhação que sofreu diante de seus
trabalhadores por parte do administrador que, paulatinamente, foi diminuindo o seu
trabalho; de fato, durante muito tempo fez com que trabalhasse em tarefas que não
correspondiam a seu status de capataz. Voltamos a encontrar a humilhação como
negação da honra do capataz, que é detentor do conhecimento dos ciclos produtivos.
Aqui é preciso esclarecer que a reclamação ia contra o administrador e não contra o
dono da fazenda, o que reafirma a idéia de que o conflito opera entre as camadas sociais
mais próximas, e a figura do proprietário radicado na cidade e ausente das dinâmicas
sociais de sua propriedade não é questionada, até certo ponto. É interessante notar que
quando o estagiário solicitou o nome dos donos da fazenda, que Carlos disse não
conhecer, Roberto falou explicitamente da esperteza em um dos comentários que
tinham no etnógrafo o principal receptor.
O que parecia afetar mais Carlos era a diminuição do trabalho e a perda de
poder ante seus trabalhadores, ofensas que compõem um atentado contra a honra e a
palavra. Aí se justifica a fala de Roberto: se a questão tivesse sido por um ato de
desonradez, a demissão poderia ser justificada, mas não pela armadilha que o
administrador armou para Carlos, primeiro designando-lhe trabalho em excesso e, logo,
acusando-o de negligência e, portanto, diminuindo-lhe tarefas. Novamente, encontramos
o conflito associado ao pólo negativo do valor esperteza, do engano, que implica a
negação do trabalho e que afeta os valores palavra e honra. Acima foi dito que na
reclamação de Carlos é possível ver a forma como os valores se sobrepõem e operam
em uma situação de conflito e, por isso, Roberto era enfático em afirmar que o
administrador “estava buscando briga” com Carlos:
É que, sinceramente, estamos em um mundo onde só há vivos e bobos... os bobos
somos nós, os escravos, certo? Nós nos matamos por aquela gente que não
trabalha nem sabe nada da vida, nem sabe o que é uma árvore, como se planta e
como produz... Eles só gostam que lhes mande o dinheiro para o bolso, mas não
sabem o suficiente. Um cara desses é astuto, é um cara consciente de seus atos...
ele estava buscando uma briga.
É como se na dramatização, tanto Roberto como Carlos estivessem oscilando:
se situam na sua posição na estrutura, ligada ao papel específico de capataz, mas
buscam uma reivindicação apelando à condição de indivíduos com direitos. Daí a
insistência de Roberto no pagamento do aviso prévio e da indenização. O estagiário
também responde e se vale da posição social dos usuários para “negociar” a informação
baseado na negação momentânea dos direitos de Carlos como indivíduo. É evidente
que o estagiário precisava saber a causa da demissão para estabelecer o procedimento
apropriado a seguir, mas sua insistência – inclusive chegou a perguntar-lhe se havia
batido no administrador – fez com que recorresse a um estereótipo relativo à figura do
capataz para dizer que não tinha direito a receber nada se ficasse comprovado que a
demissão tinha sido justa. Desta maneira, conseguiu uma resposta ambígua de Carlos,
que apelou para a humilhação a que foi submetido quando o administrador começou a
tirar-lhe trabalho e perdeu poder ante os trabalhadores.
No início da conversa, Roberto disse que Carlos era capataz, encarregado e
empregado de vários ofícios, sem fazer diferença entre tais categorias; é como se ao
princípio da consulta tentasse diluir o peso da hierarquia de um personagem social como
o capataz. O propósito era o de apelar para uma identidade dissociada, até certo ponto,
do grupo social ao que pertence: há um deslocamento para o campo do indivíduo, mas
logo volta para o campo da pessoa quando, por exemplo, Roberto diz que o patrão –
administrador – estava “buscando briga” com Carlos. Neste aspecto, reforça-se a
solidariedade da própria camada social, pois o conflito de dois sujeitos particulares é
contextualizado em uma rivalidade entre “pessoas” que fazem parte de grupos sociais
determinados.
Roberto e Carlos estavam procurando “evadir” os sistemas de autoridade
próprios da estrutura social do lugar para se situarem em uma posição superior à do
administrador. Em muitas ocasiões, só pelo fato de abrir o processo as partes agredidas
consideram que conseguiram transgredir, por um instante, a ordem dominante. O
advogado remeteu Carlos à Delegacia do Trabalho e ali foi cortado o processo de
reconhecimento e a possibilidade de questionar determinadas hierarquias ligadas à
estrutura, o que termina por reafirmá-la. Em outro sentido, também se poderia pensar
que não se trata tanto de questionar e desafiar certas posições sociais, mas que a questão
está relacionada com um inconformismo diante da forma como as parte agem, muitas
vezes transgredindo as funções correspondentes a determinado papel social
estabelecido. Isto está demonstrado na reclamação de Roberto quando o advogado
começou a sugerir a possibilidade de recorrer à Delegacia de Trabalho; nesse instante
falou-se de assimetrias entre o mundo dos donos e o mundo dos trabalhadores, e da
humilhação implícita na negação do conhecimento que seu trabalho implica. Este não é
um caso isolado, pois a mesma reclamação é ouvida nos pleitos que envolvem diaristas
e capatazes, e empregadas domésticas e patrões.
Vejamos rapidamente o caso 2. Maria trabalhou como empregada doméstica
entre 1999 e 2002 em uma casa da zona urbana de Fredonia e recorreu ao Escritório
Modelo para exigir reajuste salarial, fundo de garantia e ajustes do fundo de garantia
que lhe deviam desde que pediu demissão em janeiro de 2002. Ela tentou fazer uma
conciliação através da Delegacia do Trabalho do município; ali foi declarado que seus
patrões deveriam pagar-lhe $347.000 de indenização, quantia que eles se negaram a
saldar. O estagiário estabeleceu a indenização, que chegava a $7.000.000. A partir desse
momento, Maria mudou totalmente sua atitude, passou de uma postura tímida e
insegura para outra assertiva e até agressiva. O valor dito pelo estudante, a elaboração
da demanda e a citação para uma audiência no juizado dotaram a cliente de ferramentas
para se sentir em uma posição relativamente superior à de sua patroa, o que a estimulou
a entrar em uma cadeia de insultos sucessivos. Foi o mesmo intercâmbio de insultos que
devolveu Maria a sua posição inicial, pois terminou aceitando negociar pela cifra que
tinha sido fixada na Delegacia de Trabalho e não a indenização estabelecida pelo
estagiário, de acordo com a lei. Não obstante, Maria concentrou-se, compulsivamente,
em conseguir testemunhas e na busca de fórmulas e certificados médicos que lhe
permitissem seguir adiante com o processo.
Algo similar aconteceu com Josécaso 5 –, cujo processo esteve estancado
durante quase três meses porque não conseguiu o registro civil de casamento para
iniciar o processo de divórcio de sua esposa, da qual não tinha notícias desde 1957. O
usuário alegava que naquele tempo tudo era diferente, e esse tipo de registro não existia
porque só se entregava a certidão de casamento expedida pela Igreja Católica. Desta
forma, em uma das reuniões, o assessor explicou aos estagiários que, desde 1938, os
atos civis como o casamento deviam ser registrados em cartório. Durante a primeira
consulta, na qual E1 mostrou-se disposto a fazer várias exceções – levar um caso de
uma pessoa que vive em um município diferente de Fredonia, por exemplo –, para
“ajudar” José com o divórcio, o estagiário explicou ao cliente que se poderia fazer um
divórcio litigioso para o qual era necessário buscar testemunhas que dissessem que seu
casamento tinha durado menos de dois anos, que não tiveram filhos e que tinham
perdido contato há 46 anos atrás. Durante as visitas seguintes, José perguntava aos
estagiários quando tinha que dar o nome das testemunhas ou quando podia chamá-los
para fazer sua declaração; os estagiário – E1, E2 e E6 – insistiam que, sem a cópia do
registro civil do casamento, não se poderia dar início ao processo. Aqui, novamente,
vemos que recorrer a testemunhas está relacionado com a ratificação da palavra e a
restituição da honra do pai de família.
Isso também explica por que José sempre ia acompanhado de sua atual
companheira e de alguns de seus filhos, o que pode ser entendido como uma
representação ou encenação onde se articulam os valores família, honra e palavra. No
caso de José, particularmente, a honra está relacionada com sua possibilidade de tornar
oficial – através do rito evangélico – sua atual união de mais de 20 anos; em diversas
ocasiões, o cliente falou da necessidade de “consertar as coisas neste mundo” pela
proximidade da morte ou, mais especificamente, em vista da eminência de seu processo
de partilha. A insistência de José nas testemunhas diante da impossibilidade de
conseguir o documento solicitado pelos estagiários, confirma a inter-relação dos valores
honra e palavra que, desta forma, está englobada pelo valor família.
Por outro lado, é importante ressaltar que, ao contrário do estimulado para os
clientes, qual seja, a busca de testemunhas, conseguir documentos em repartições
públicas é algo que gera angústia; basta lembrar o caso de Dario (caso 3), que se
negava a assinar, por temor a que lhe prejudicassem e também se negava a falar com
seus vizinhos atuais, que não foram testemunhas da transação histórica. Em determinada
ocasião, um cliente desesperado porque não conseguia reunir todos os papéis solicitados
pelos estagiários para iniciar um processo de partilha de bens exclamou com desespero:
“Vocês tem que ir lá, para ver o terreno com seus próprios olhos... de que adianta eu
trazer todos esses papéis se vocês não sabem como é minha parcela... é que o papel, o
papel só serve para se tornar água”. Por oposição, encontramos o que foi dito à
etnógrafa por E1 sobre o que podemos denominar a “eficácia simbólica dos
documentos” ou sobre como os papéis são ferramentas de controle dos clientes: “(...) a
petição fica muito bonita e se o professor a qualifica, ele dá a nota máxima, mas daí a
que uma petição tenha efeito... difícil!!!... no entanto, as pessoas ficam tranqüilas e vão
tranqüilinhos para casa porque acham algo foi feito”.
No diálogo citado, quando E6 pergunta ao Carlos se ele tinha assinado algum
contrato, é Roberto quem responde dizendo: “Aí é onde a coisa fica perigosa” e,
imediatamente, inicia uma conversa com uma mulher que estava esperando para ser
atendida. Esses comentários e as conversas paralelas também podem ser entendidas
como uma expressão do valor esperteza e uma das outra faces que até agora se
mencionou pouco, a evasão. As perguntas comprometedoras, cuja resposta pode
implicar uma consulta a pessoas que compõem a rede local de conselhos, são evitadas.
Como já foi dito, estas perguntas têm a ver com o nome do dono da fazenda, o valor do
salário, a jornada de trabalho, o tipo de contrato, os pagamentos em espécie, etc.
A esperteza que Roberto encarna também pode ser entendida como uma forma
de malandragem, seguindo Da Matta (1997) [1971], pois é um mecanismo que eu
qualificaria como performativo e que permite – ou facilita – a transformação do
indivíduo em pessoa. Assim, laços pessoais – os existentes e os que podem ser
estabelecidos – aparecem como instrumentos de solução de problemas. É por isto que as
pessoas não recorrem sozinhas ao Escritório, precisam dessa instrumentalização – e da
ficção de acharem que “sabem de Direito” – porque, caso contrário, serão ainda mais
marginalizadas por carecerem de relações. Como bem diz Da Matta (1991), em
situações de conflito personaliza-se ou humaniza-se para ajudar a hierarquizar as
pessoas envolvidas. Peirano (1986) faz uma análise similar para uma zona rural do
Brasil, onde ter o título de eleitor é comparável com a possibilidade de recorrer ao
Escritório Modelo. Esta autora ressalta a importância que tem, nestas áreas, a
personalização das relações sociais, onde a pessoa é o valor fundamental e não o
indivíduo. De alguma maneira, Peirano (1986) está explicando a cidadania como uma
forma de construção da identidade nacional; ter os documentos ou recorrer ao Escritório
– independente de que se possa ganhar um caso ou sequer iniciá-lo – são fenômenos
transcendentais, na medida em que permitem ver outras dimensões da identidade social
e as diversas fontes a partir das quais se pode construir a cidadania. A autora (Peirano,
1986: 56) afirma: “O que Rio Paranaíba sugere é a possibilidade de termos uma nação
constituída de indivíduos que não se vêem como iguais, mas que, ideologicamente
hierarquizados no nível local, transpõem esta hierarquia para o nível nacional”.
Concordo com Berger (1983) quando afirma que a categoria honra pode articular
outros valores correspondentes a uma outra ordem hierárquica. Neste contexto
trabalhado, esta categoria – entendida como valor – está ligada aos valores palavra e
esperteza. Berger esclarece um ponto muito importante que me permite entender outras
questões sobre a performance de advogados e clientes, ao dizer que no mundo da honra
a identidade está firmemente unida ao passado através de uma dramatização de atos
protocolares. Por oposição, no universo da dignidade, o indivíduo deve se liberar da
história – e suas mistificações – visando obter sua autenticidade. O caso de Dario (caso
3), por exemplo, remete ao mundo da honra, da memória e dos atos protocolares. Em
cada visita, Dario explicava seu caso da seguinte maneira: “Eu tinha um patrão e o
rapaz, um irmão, foi preso, e me disse: Dario, tem um pedaço de terra, se você quer
comprar. Vá morar com sua mulher e vai me pagando aos poucos... eu paguei a ele até o
último centavo e, agora, aparece esse herdeiro e quer me tirar...”. Como já foi dito,
Dario se negou a falar com seus vizinhos atuais – alternativa proposta por E4 – pois,
para ele, era inconcebível perguntar a pessoas que não tinham estado presentes no
momento exato – histórico – da transação e que não tinham conhecido pessoalmente seu
patrão.
Por situações como esta, considero importante insistir em que o passo da honra à
dignidade não é absoluto da forma em que Taylor (1994) parece colocar; para ele, a
busca do ideal da autenticidade do homem contemporâneo ofusca possíveis
manifestações da honra ou da hierarquia. Este último não remete exclusivamente a uma
falta de reconhecimento da singularidade, o que nos situa de uma maneira mais ou
menos excludente no terreno do indivíduo e não da pessoa. O que quero dizer é que há
situações nas quais se exige singularidade, apesar de o propósito ser o de questionar
determinadas posições sociais – embora apenas momentaneamente – como pretendi
demonstrar; mas em outros casos, recorrer ao Escritório Modelo serve para ratificar
valores hierárquicos e isso não exclui a queixa pela experiência “individual”. Esta
discussão será retomada nas próximas partes, depois de explicada a representação dos
estagiários e a própria sobreposição entre os valores aos quais eles apelam e aqueles que
pretendem transmitir.
IDEOLOGIA INDIVIDUALISTA E A PRÁTICA DO DIREITO
Não é possível compreender o que ocorre no Escritório Modelo de Fredonia,
mais ainda quando colocamos o foco no olhar dos estagiários de Direito, sem explicar
algumas características do sistema jurídico colombiano, determinadas particularidades
da Constituição de 1991 e o projeto de democracia participativa. Não pretendo
aprofundar as discussões, certamente amplas, que suscitaram as diversas contradições
entre estes elementos. Não obstante, o que foi observado durante a pesquisa com relação
aos estagiários e seu trabalho no contexto específico do Escritório em Fredonia permite
entender como se manifestam tais contradições no plano da interação social. É por esse
motivo que insisto que em uma escala micro – ou minima ethnographica – devem ficar
evidentes os valores implícitos nos diálogos dos atores. Somente assim é possível
explicar a maneira como operam determinados conflitos na realidade social, uma vez
que quando analisados em uma escala macro, perde-se de vista o plano das interações
sociais.
O sistema jurídico colombiano é tributário da tradição romano-germânica, tendo
assim permanecido, até certo ponto, alheio ao debate entre o eqüitativo e o legal,
preponderante dentro do Direito Anglo-saxão (Cepeda, 2002). Foi com a Reforma
Constitucional de 1991
37
que se começou a trabalhar em torno de elementos que
pudessem introduzir a eqüidade no Direito Colombiano. Partiu-se da perspectiva de que
a eqüidade é um conceito que, no Direito, opõe-se ao de legalidade; dar uma sentença
em eqüidade seria fazê-lo sem referência às leis, ou seja, tendo como base o princípio de
que aquilo que indica seria o mais justo, a partir das circunstâncias concretas de um
caso. Assim, a eqüidade seria uma manifestação de justiça na resolução de um
conflito
38
. Em certo sentido, a eqüidade melhora a lei já que parte do princípio de que
toda lei é geral e, assim, a especificidade não seria possível tendo como base essa
generalidade. E seria um problema inerente ao trabalho normativo (Villegas, 1993).
A ação de tutela (acción de tutela), por exemplo, é uma das ferramentas que
convida os juízes a agirem em eqüidade, isto é, a decidirem os casos com base em
37
A Assembléia Nacional Constituinte esteve formada por 70 constituintes. Durante o século XX e até
1991 só existiu, na Colômbia, uma constituição, a de 1886. A Constituição foi ignorada durante o golpe
militar de quatro anos (1953-1957); sofreu 67 reformas constitucionais e esteve sob regime de exceção
ininterrupta durante 30 anos.
38
Villegas (1993) esclarece a diferença entre justiça e eqüidade; a primeira é uma proporção de termos
iguais e a eqüidade é apresentada como um valor que corrige os defeitos das leis, e que consiste na falta
de previsão adequada de todos os casos possíveis.
princípios, chamados direitos constitucionais fundamentais
39
, e não em regras legais que
estariam em um nível inferior a tais princípios. A ação da tutela propiciou uma
participação cidadã sem precedentes, pois os indivíduos começaram a invocá-la sem a
necessidade de recorrer a linhas de jurisprudência mais complexas (Gaviria, 2002). De
fato, os juizados foram invadidos por este tipo de ação, com o agravante de que os
juízes foram obrigados a dar a sentença em um prazo de 48 horas, quando era
comprovada a violação do direito fundamental.
Uma das mudanças mais significativas da Constituição de 1991 foi a
importância dada à igualdade, a qual implicou uma mudança de prioridades no âmbito
constitucional; enquanto a Constituição de 1886 estava fundamentada na idéia da
proteção da liberdade individual dentro da ordem, a de 1991 fala de uma “igualdade
real” que deve ser a base de um conjunto de direitos sociais e econômicos que visassem
a realização da justiça social (Cepeda, 2002). Tal igualdade real foi erigida como um
dos fundamentos do novo esquema democrático: a democracia participativa, que supõe
a existência de cidadãos iguais, capazes de decidir sem intermediários sobre os assuntos
de interesse para toda a comunidade. Com a eleição popular de prefeitos e governadores
em 1988, já se tinha dado um passo fundamental para o estímulo à participação cidadã;
pórem, foi com a Constituição de 1991 e com a declaração da Colômbia como uma
nação pluriétnica e multicultural
40
que os elementos para uma transformação no
exercício da cidadania se desenvolveram. É necessário não perder de vista a relação que
existe entre democracia participativa e a chamada descentralização participativa (Gros,
2004); isto é, a introdução de uma autonomia a partir do Estado, através da promoção
dos princípios da democracia participativa, não implica, necessariamente, uma
transferência de poder e responsabilidade para a comunidade. Em geral, o que acontece
é um reconhecimento de uma autoridade local relativa e um deslocamento –
descentralização – de funções administrativas para comunidades locais.
39
Na Constituição de 1991, os direitos fundamentais são derivações da original Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, que têm uma pretensão universalista (Gaviria, 2002).
40
Kant de Lima (2002) menciona os modelos que se aplicam ao sistema judicial brasileiro: o da pirâmide
e o do paralelepípedo; o primeiro, que é hierárquico, corresponde ao Código de Processo Penal e, o
segundo – o democrático – está representado na ordem constitucional. Do modelo do paralelepípedo são
garantidos os direitos individuais, enquanto no modelo da pirâmide ocorre uma aplicação particularizada
da regra por determinadas autoridades (
delegados
,
promotores
e
juízes
). Na Colômbia, existe uma
acusação similar à que Kant de Lima faz, visto que a Constituição de 1991 promove a igualdade, a
eqüidade e a dignidades, mas nas palavras dos próprios estagiários “o Código de Procedimento Penal é
feito para os ricos com todo tipo de benefício e exceções... e recai, com todo seu peso, sobre os menos
favorecidos. Na Colômbia, o Código Penal é só para os pobres”.
Os trabalhos dos Escritórios Modelo das universidades do país se enquadram na
pretensão universalista do livre acesso à justiça de todos os cidadãos, sendo vistos
também como espaços para o estímulo da participação cidadã. Não foi em vão que, ao
lado dos serviços gratuitos de consultas, processos e trâmites jurídicos, as faculdades
passaram a cumprir programas de educação e informação que propagassem os
princípios da democracia participativa: eqüidade, igualdade e dignidade.
O que foi analisado anteriormente seria um lado da moeda que permite entender
de que forma espaços como os escritórios modelo estão articulados a esse novo ideal da
democracia colombiana. Não obstante, o papel dos estagiários deve ser visto à luz de
determinadas características gerais do Direito Colombiano e não apenas em relação às
especificidades da “Nova Constituição”
41
. Como assinala Macía (2003), o
pertencimento do sistema jurídico colombiano à tradição continental européia
42
, por
oposição à tradição do common law anglo-saxão, constitui um fator decisivo para a
importância especial designada ao trabalho dos advogados. E é nos países do
denominado “Direito Continental Europeu” onde se predomina um pronunciado
formalismo ante as normas, por parte dos juristas; estes atribuem propriedades formais
ausentes em tais sistemas, como precisão, univocidade, coerência, completude, etc.
Como fruto da tradição continental, decisões não são tomadas por um jurado e, por isso,
o intercâmbio de narrativas entre advogados e clientes constitui uma interação
obrigatória e uma prática que se mantém vigente. As audiências públicas orais
tampouco possuem a mesma importância; são discursos mais técnicos, e o curso do
processo é determinado fundamentalmente pelo que o advogado consigue extrair do
diálogo com o cliente. Como esclarece Villegas (1993), o Direito Colombiano, além do
poder impositivo que lhe outorga a dogmática jurídica, possui um poder simbólico
fundamental para o desenvolvimento da atividade política.
Estes constituem motivos adicionais que ressaltam a importância das interações
cliente-advogado em espaços como um escritório modelo. Por outro lado, como tal
interação é crucial, esse se torna o lugar propício para a transmissão de determinados
41
Não quero perder o foco da discussão, mas, de qualquer forma, deve-se considerar de uma perspectiva
crítica o “revisionismo constitucional” dos países latino-americanos. Como afirma Gros (2004), as
reformas constitucionais que ocorreram na última década do século XX em vários países devem ser
interpretadas em função da busca de soluções institucionais a questões como a reforma do Estado, a
renovação da democracia, a abertura para a economia mundial, o reconhecimento e “institucionalização”
dos “atores étnicos”, etc.
42
Assim, por exemplo, o Código Civil foi redigido por Andrés Bello em 1873 sob a influência do Direito
Romano, Germânico, Espanhol e Francês – especialmente o Código Civil de Napoleão de 1804 (Macía,
2003).
valores de cunho individualista como igualdade, liberdade, eqüidade e dignidade. Isso
ocorre somente à primeira vista, e é o que pretendo demostrar nas próximas partes
porque, antes, é necessário mostrar como o estagiário vai expressando uma série de
valores associados à sua profissão ou a um determinado perfil profissional, que são
exibidos durante sua representação pública – na consulta jurídica, especificamente. O
interessante é que alguns desses valores também se aproximam ao pólo holista e ali
ocorre um processo de reconhecimento das identidades entre advogado e cliente; algo
similar acontece quando se consegue uma fusão entre as formas de compreender valores
e determinados critérios de caráter individualista dos atores envolvidos.
O estagiário de Direito e os valores associados à sua profissão
A consulta jurídica in situ pode ser analisada como uma representação
(Goffman, 1959)
43
na qual os estagiários de Direito vão modelando qualidades
fundamentais que remetem a um ideal de advogado, onde se destacam valores que
remetem ao perfil de sua profissão. Nesta perspectiva, devem ser consideradas a
aparência, a atitude e a linguagem como aspectos constitutivos da fachada profissional
que os estudantes vão construindo e que, posteriormente, torna-os advogados. Tal
representação está ligada a determinadas relações sociais ou interações que ocorrem
com os usuários e com o seu assessor.
Como já se mencionou antes, o grupo designado para Fredonia está composto
por seis estudantes (dois homens e quatro mulheres) que devem realizar a consulta
jurídica durante o tempo equivalente a dois semestres acadêmicos. Dentro do grupo
existem três subgrupos diferenciados de estagiários: em um nível hierárquico superior
encontram-se E1 e E2. E1 possui 35 anos, e começou trabalhando nos juizados como
office-boy até chegar a ser secretário de um fiscal, função que ocupou após iniciar o
curso de Direito. E2, 25 anos, detém o histórico escolar mais destacado dentro do grupo,
tendo trabalhado em projetos de pesquisa jurídica. As estagiárias E3 e E4, 25 e 27 anos
respectivamente, situam-se em um nível intermediário: têm experiência de trabalho e
contam com um currículo aceitável. Elas exercem certa autoridade sobre E5 e E6 por
cursarem um semestre mais adiantado no estágio rural. E5 e E6, ambos com 22 anos,
43
Retomo os conceitos de representação e interação de Goffman (1959). Na representação, o indivíduo
desempenha um papel, solicita aos observadores que acreditem no personagem que vêem e que aparenta
ter uma série de atributos ideais que fazem parte de sua fachada. A interação, por sua vez, é definida
como a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações de uns e de outros quando há uma presença
física imediata.
estão iniciando o estágio jurídico obrigatório e enfrentam pela primeira vez a assistência
aos usuários. Eles nunca trabalharam na área.
E1 é o estagiário que mais se destaca: respeitado e admirado dentro do grupo, é
o mais requisitado pelos que recorrem ao escritório. Para E2, E1 é o único que já está
formado na “malícia do advogado”, algo que nenhum dos outros parece ter alcançado,
pois continuam agindo como se os problemas contados pelos clientes fossem
enunciados acadêmicos a serem resolvidos. Custa-lhes muito sair da linguagem jurídica
durante a interação com os usuários. Traduzo a “malícia” como a capacidade de
flexibilizar e improvisar no que se refere a procedimentos e normas. No caso dos
procedimentos, sempre se encontram caminhos, apesar da rigidez dos esquemas padrão,
e no caso das normas, sempre há acordos informais com os diversos agentes que
intervêm em um processo jurídico para provocar mudanças insuspeitadas nas disputas.
Essa improvisação de princípios, teoricamente rígidos, é uma característica do Direito
como disciplina centrada no mundo da experiência que, não obstante, tem a pretensão
de se apresentar como algo puramente lógico (Moore, 1978).
Diante dos usuários, E1 emprega termos jurídicos em excesso para não dar
explicações, não cair em contradição. Não reconhecer que tem dúvidas ou que
desconhece as respostas que lhe estão solicitando. Procura entrar e sair da história
pessoal do cliente com facilidade, combinando o uso de uma linguagem estritamente
jurídica com outra coloquial e cotidiana
44
. Um advogado litigante desenvolve essa
capacidade de subir e descer de hierarquia de acordo com domínio de diferentes
linguagens e dependendo do contexto e dos atores envolvidos
45
. Um reflexo disto é
justamente o assessor dos estagiários, que consegue exemplificar conceitos,
procedimentos e casos jurídicos com uma simplicidade impressionante, mas
fundamentada em uma aguda percepção do interlocutor. Aqui, saber e poder se
conjugam na medida em que um saber situa quem o detém em uma posição estratégica
44
Isto coincide com os efeitos de neutralização e de universalização da linguagem jurídica enunciados por
Bourdieu (2002) [1989); no primeiro, predominam as construções passivas e frases impessoais que
marcam a imparcialidade do enunciado normativo e fazem de quem fala um sujeito universal e, no efeito
de universalização, enunciam-se normas sistematicamente, fala-se em presente intemporal e futuro
jurídico para transmitir valores transubjetivos que pressupõem a existência de um consenso ético.
45
Macía (2003:32) faz o retrato de um dos advogados do Escritório Modelo que ela pesquisou, e coincide
em alguns aspectos com as qualidades desenvolvidas por
E1
: “(...) Fala muito pouco de si mesmo. Ao
mesmo tempo, de todos os advogados é o menos dado a utilizar termos técnicos, especialmente com os
clientes; costuma falar com palavras coloquiais e utiliza muito os gestos – levantar os ombros, torcer os
lábios – para se comunicar (...)
apesar de ser o que parece ser o que menos se relaciona com os
clientes no nível pessoal, também é o que na interação se aproxima mais a eles na forma de falar e
de ser
” (grifo meu).
diante dos outros que o permite controlar o alcance desse conhecimento (Foucault,
1983), mais ainda quando esse poder é dramatizado para conseguir dirigir a atividade do
outro para determinada direção. Como indica Villegas (1993:83): “La realidad social
del Derecho también debe ser entendida como un proceso de comunicación entre
instancias dotadas de un poder que se ejerce a través de la interpretación de una
determinada representación de las palabras”.
Dentro do grupo de estudantes, E1 e E2 são os mais adiantados nesse
treinamento. São eles que atuam como autoridade perante os usuários: fazem as
perguntas chave, não esquecem os dados, fazem registros escritos melhores, controlam a
conversa e, com algumas palavras, como é o ideal (Robert, 2002 [1929]), podem
lembrar do que se trata e em que ponto está todo o processo. A autoridade que detêm
permite que sejam complacentes, mas é E2 quem consegue o equilíbrio de ser
convincente sem seduzir demais. E1 se excede em suas promessas, talvez por possuir
interesse em conseguir clientes para o momento em que for advogado titulado. Ao
contrário, E4, E5 e E6 esquecem detalhes fundamentais dos casos, perguntam
informação já esclarecida pelo usuário e hesitam quanto aos procedimentos que devem
ser seguidos.
E5 e E6 não preestabelecem com clareza as perguntas básicas – e a ordem de
questionamento – como requisito para iniciar e manter a consulta sob seu controle. Eles
não transmitem a mesma autoridade de E1, E2 e E3 diante dos usuários que, quando
necessário, improvisam na ordem e na estrutura das perguntas obrigatórias sem deixar
de obter a informação desejada. E5 e E6 não “sabem se impor” diante dos clientes,
permitem que se prolonguem em seus relatos e não conseguem discernir com rapidez,
em meio a toda informação recebida, se há um caso ou não. Esta atitude é penalizada
pelos outros estagiários nas reuniões do grupo. Os que estão nas duas categorias
superiores, ao invés de manter em um padrão diferente de expectativa ou tratamento
para cada cliente, começam a desenvolver um jogo de fachadas (Goffman, 1959) através
do qual mobilizam experiências estereotipadas de casos e procedimentos anteriores para
classificar os novos dados.
E1 e E2, junto com E3, explicam conceitos e procedimentos em uma linguagem
mais familiar para os clientes, exceto quando se vêem obrigados a se escudarem no
rebuscamento da linguagem para não evitar cair em contradição nas famosas lacunas da
lei (Bourdieu, 2002 [1989]; Alchourrón e Bulygin, 1974), que são discutidas no âmbito
privado dos diálogos com o assessor
46
. São eles que fazem dramatizações para usuários
analfabetos com o objetivo de lhes ensinar como solicitar recibos e assinaturas em
cartórios, juizados e outras repartições. Têm o trabalho de desenhar os limites das terras
em disputa e também fazem cartas em uma estrita linguagem jurídica para que os
clientes cumpram de maneira mais simples com o trâmite. No entanto, estes eventos são
fortuitos porque é muito mais freqüente a reclamação pelas demoras e não
cumprimentos para com seus usuários; é claro que a dedicação a um caso é diretamente
proporcional ao seu potencial de chegar a uma instância de decisão. É nos momentos de
decisão judicial que se evidencia com maior força a eficácia simbólica do Direito, já que
a arbitrariedade da construção dos fatos é ignorada em favor da legitimação do
veredicto (Bourdieu, 2002 [1989]). Por outro lado, deve-se ressaltar que a eficácia
simbólica constitui-se um elemento que serve de equilíbrio e coordenação entre o ideal
comunitário e as necessidades de dominação política e econômica (Villegas, 1993).
Se for feita uma leitura superficial, recorrendo-se a um estereótipo, poder-se-ia
dizer que o advogado é aquele sujeito que só pode falar na linguagem rebuscada do
Direito (Robert, 2002 [1929]) e que é excessivamente rígido na hora de cumprir com
determinados procedimentos. Na realidade, o ideal é um sujeito claro, eloqüente,
conciso, concreto, esperto, recursivo, persuasivo, rápido mentalmente, possuidor de um
vocabulário rico, bom conversador, convincente e culto
47
. O estagiário deve construir o
papel pessoal do advogado com essas características porque a tradição de sua
corporação requer a perpetuação das impressões que são geradas em público (Goffman,
1959). Deve saber falar de todos os assuntos porque detém uma espécie de
conhecimento enciclopédico que envolve uma memória eficaz e exercitada. A
preocupação pelos “dados curiosos” revela outra característica de sua profissão: a de ser
especialista em sutilezas capciosas das questões jurídicas. O valor do trabalho é outra
qualidade das quais os advogados se orgulham, pois empenham-se em demonstrar em
público que seu “tempo é ouro”, que não podem se permitir ouvir uma história de vida
completa quando há centenas de “necessitados” esperando por eles, embora, na
46
Estas seriam rupturas da representação, segundo o estabelecido por Goffman (1959), que incluem
incidentes no contexto da manipulação da impressão como gestos involuntários, intromissões inoportunas
e atos que destroem a imagem da própria equipe.
47
É interessante comparar este perfil com o ideal de cidadão que González (1994) analisa, baseado nos
“manuais de boas maneiras” que surgiram durante o século XIX em países como a Venezuela e a
Colômbia. Nessa época, o cidadão ideal era aquele que sabia calar, que não tinha direito a réplica, que
não via o outro, que não comia nem bebia de forma natural, que desconhecia seu próprio corpo e o dos
outros, e que estava obrigado a ocultar seu eu – afetos, sensibilidades e pensamentos.
realidade, estejam em busca de dados concretos que possam agilizar o trabalho e lhes
permitir abarcar casos com possibilidades de êxito.
E1 cumpre agilmente os três passos fundamentais da construção do caso
jurídico: avalia as possibilidades de êxito do processo (Felstiner et al., 1980-81), evoca
as decisões judiciais em casos análogos e realiza uma formulação normativa das
considerações e petições que o usuário deverá fazer (Robert, 2002 [1929]). A habilidade
de E1 contrasta com a dificuldade que evidenciam E5 e E6, que sempre se remetem a
folhas de procedimentos padrão para traduzir e iniciar um caso (ver caso 5), mostrando-
se nervosos e inseguros de sua própria capacidade de improvisação, o que é interpretado
pelos usuários como uma falta de preparação e de conhecimento.
Todos os estagiários constroem os casos à medida que filtram a informação dos
usuários com a idéia em mente de encontrar um procedimento a seguir. Em grandes
linhas, nisso consiste a tradução do advogado
48
, onde há uma primeira interpretação que
irá acompanhada pela criação de fatos (Festiner et al., 1980-81) que formam diagramas
fechados de realidade (Geertz, 1994). Como afirma Goffman (1959), o indivíduo que
está preocupado com a impressão que causa não se mantém ligado aos fatos e pode
inventá-los em uma improvisação veloz; a questão é que não se deve notar que está
improvisando, deve-se dar a impressão de que a representação foi resultado de uma
preparação profundamente cuidadosa do caso ou de que é fruto da experiência e do
talento do advogado (Robert, 2002 [1929]). Posteriormente, a passagem da linguagem
do fato para o plano da decisão colocará à prova a capacidade do advogado de manter a
coerência do processo que não se apoia só nas provas, como também na imaginação e
reafirmação de toda uma realidade (Geertz, 1994). Macía (2003), em sua etnografia
sobre um escritório modelo na cidade de Bogotá, faz uma análise interessante do
processo de tradução do advogado, relacionado por ela com a diferenciação
48
O processo de tradução contém dois dos três passos estabelecidos por Felstiner et al. (1980-81) em
relação à transformação de disputas:
naming
e
blaming
; o primeiro refere-se à enunciação do conflito ou
possível situação de disputa que requer a tradução do advogado, e o segundo está relacionado com a
atribuição do prejuízo a outro indivíduo ou entidade social. Neste último passo, existe um desejo ou uma
petição de compensação; os advogados definem as pretensões de seus clientes que, geralmente, não
sabem como podem ser materializadas as reclamações, mais ainda quando os processos dependem do
curso dos acontecimentos e o motivo original vai se transformando por ações e sujeitos que vão entrando
na disputa. A tradução do advogado também está relacionada com um dos processos de transformação de
disputas enunciado por Mather e Yngvesson (1980-81):
narrowing
, onde se impõem categorias
convencionais já estabelecidas a determinadas situações, o que permite um manejo do caso jurídico
através de procedimentos igualmente convencionais. Este processo também foi analisado sob a
denominação “redução a termo” (Cardoso de Oliveira, 2005). Os autores falam de uma manipulação das
definições para conseguir fins particulares, sendo que este é o principal fator para a restrição do conflito
ou de seu espectro para aqueles que entendem, usam ou atuam em nome dessa linguagem especializada.
illness/disease; isto significa dizer que os casos vividos, entendidos como doença
vivida, são transformados em doença médica, ou seja, em casos jurídicos através do
processo de diagnóstico, tradução e interpretação do advogado.
E1 é quem mais se aproxima do perfil do advogado litigante: um sujeito
imaginativo que sabe administrar seu poder simbólico, compreendido como um poder
de construção da realidade onde há uma homogeneização do tempo, espaço e lugar que
lhe permite fazer ver e fazer crer (Bourdieu, 2002 [1989]). Nos casos onde E1 interveio,
conseguia-se envolver os usuários em um ritmo vertiginoso, eufórico, combinando
conceitos e termos jurídicos com frases de apoio moral, solidariedade e reconhecimento
da situação vivida pelo cliente. Desta forma, obtinha-se satisfação imediata dos
usuários, convencendo-os dos procedimentos a serem seguidos. Assim, por exemplo, no
caso 4, interrompeu para interrogar Andrés e criar, ao mesmo tempo, duas situações
opostas: de um lado, provocou desconfiança em E6 devido ao baixo valor da pensão
alimentícia para três filhos e à ambigüidade das respostas de Andrés sobre o valor de
seu salário. Por outro lado, conseguiu levar o cliente a um pico de euforia, colocando a
possibilidade de resolver seu caso facilmente em dois passos: o divórcio e a divisão de
bens. Nenhum dos dois pôde sequer considerar a negativa da esposa em fazer um
divórcio de acordo mútuo e a instauração de um novo processo no município de
Segovia, e não em Fredonia.
A capacidade de persuasão de E1 também era utilizada para ratificar sua
autoridade na “comunidade de conversação” básica visto que, como é evidente no caso
2, interveio para envolver a etnógrafa em uma espécie de paranóia em relação à
possibilidade de não estar oferecendo as condições de contratação ideais ou, em termos
da lei, a sua empregada doméstica. Da mesma forma, em várias ocasiões E1 consegue
convencer seus companheiros e assessor a continuar com casos que, por jurisdição,
entre outras razões, não poderiam ser assumidos, mas que poderiam constituir-se um
objeto de controvérsia, fruto de um primeiro choque com a estrutura de percepção e
apreciação dos conflitos do advogado (Bourdieu, 2002 [1989]). Por esse mesmo choque,
fatos polêmicos constituem um material idôneo para serem transformados através da
construção jurídica. Assim aconteceu com o caso de José (caso 5), cuja consulta inicial
foi atendida por E1; o cliente casou em 1958, mas a união só durou um ano, depois,
cada um tomou um rumo diferente. Ele tem uma segunda união de 25 anos de
convivência com sua atual companheira, da qual nasceram cinco filhos. O problema é
que só agora, depois de 45 anos, procurou se divorciar da primeira esposa para legitimar
a segunda união. E1 buscou fazê-lo desistir, apelando para o fato de que depois de dois
anos de convivência já seria uma união matrimonial de fato, reconhecida legalmente;
argumentou que a vida não mudaria significativamente e que com a herança não haveria
problema já que não tem filhos da primeira união. No entanto, o caso tornou-se um caso
de controvérsia quando o estagiário descobriu as razões que obstinavam o usuário em
seu propósito: era evangélico e sentia que devia acertar todos seus assuntos porque
tendo em vista a proximidade da morte. A controvérsia pautava-se nos desafios aos
preceitos de E1 e, embora o cliente vivesse em um município vizinho e não em
Fredonia – motivo suficiente para não receber seu caso –, o estagiário conseguiu um
acordo unânime na reunião do grupo, alegando não ser esse um problema jurídico, mas
moral, porque “alguém tinha colocado em suas mãos a salvação de sua alma”. Não
obstante, semanas depois, era o próprio E1 que tratava José com displicência diante da
impossibilidade de conseguir o registro civil de casamento, acusando o usuário de
negligência: “Com certeza, o que aconteceu é que o senhor não soube explicar ao
tabelião”.
Durante a consulta, os estagiários se escudam na fachada pessoal
49
. Sua forma
de vestir é informal, em sua maioria usam jeans, mas combinados com camisas,
jaquetas, sapatos e penteados que lhes dão um toque de formalidade; E1, E2 e E3
utilizam maletas de couro onde levam uma quantidade enorme de papéis, além de não
se distanciarem do celular, que usam com freqüência nos intervalos das consultas. E1
destaca sua posição de entrada: não se limita a ficar sentado na mesa esperando que
cheguem os clientes – algo que os outros fazem –, ele dá voltas, fala com os
funcionários públicos que passam, sai para a porta para cumprimentar os usuários e
consegue manter conversas informais com eles onde trocam brincadeiras. Os estagiários
se deslocam para Fredonia em ônibus ou táxi e E1 é quem mais reclama do fato de
chegar de ônibus em Fredonia, fazendo todo o possível para voltar para a cidade de
Medellín de táxi. Às vezes, enquanto os outros estagiários voltam de ônibus, ele
regressa com o assessor do grupo, que vai em seu carro particular uma vez por mês para
ver o desempenho dos estudantes. Aqui, voltam a marcar as hierarquias dentro da
equipe, mas todos os esforços de E1 em manter a fachada são bem recompensados, pois
criam a impressão desejada nos usuários. Isso fica comprovado na seguinte frase de uma
49
Goffman (1959) define a fachada pessoal como um equipamento expressivo intencional ou
inconsciente empregado pelo indivíduo durante sua representação. Aqui são considerados vestuário, sexo,
idade, características raciais, altura, aparência, atitude, padrões de linguagem e expressões faciais.
usuária quando mostrou sua inconformidade com o desempenho de E5: “Não tenho
confiança nas meninas [as estagiárias], eu prefiro falar com o doutor [E1] porque ele me
ajudou a abrir um processo no juizado e foi muito bom...”.
Sem os esforços para manter a fachada, a representação não teria o mesmo
efeito, pois o estagiário não encarnaria – ainda que em diferentes graus – as qualidades
ideais acima enunciadas. Em outro sentido, a representação em público do advogado
sustenta o processo de criação da verdade jurídica já que, como afirma Kant de Lima
50
,
esta se manifesta como se fosse uma espécie de revelação que permite ao advogado
evadir a responsabilidade dos fatos que ele mesmo cria. O cânone jurídico é um
reservatório de autoridade que garante a autoridade dos atos jurídicos singulares; o
advogado adota uma postura profética ao ser leitor desses textos canônicos e, assim,
dissimula o processo de criação jurídica (Bourdieu, 2002 [1989]) em que, em um
primeiro momento, são calculadas e examinadas as conseqüências da obediência e da
transgressão da regra. Os advogados chegam a criar versões da realidade tão complexas
que incidem na perda de identidade momentânea dos clientes, os quais não conseguem
se reconhecer nessa configuração de fatos e sujeitos inventados na exegese jurídica. Daí
a célebre história do cliente que, depois de ouvir a exposição de seu advogado em uma
reconfiguração dos fatos de sua história de vida, exclamou comovido: “Ah, eu não sabia
que eu tinha sido tão feliz” (Robert, 2002 [1929]) ou quando, em meio a processos
simulados, um cliente de Fredonia, envolvido em um processo de redução de pensão
alimentícia, disse que já não sabia quem era, em meio a tantas mentiras inventadas pelos
advogados das duas partes. Enquanto isso, os estagiários aprendem a lógica de seu
ofício e demonstram que essa é sua preocupação fundamental, com frases como a
pronunciada por E4 em uma reunião dos estagiários: “Eu não vejo nada difícil nesse
caso, é cortar e colar: pura jurisprudência!!!”.
No entanto, a categoria de estagiário ocupa uma das categorias mais baixas nas
escalas de ascensão na profissão, segundo os próprios parâmetros dos advogados. O fato
de ser um serviço gratuito e obrigatório redunda em certo descaso pelos estagiários;
assim, por exemplo, E1, E2, E3 e E4 têm outros trabalhos remunerados e, no final da
fase de campo, E5 já havia conseguido emprego como assistente de um advogado e já
mostrava um desinteresse notório pelos casos de Fredonia. Robert (2002) [1929]
50
Conferência sobre “Estado de Direito, pluralismo jurídico e práticas institucionais”. Seminário O
Estado Brasileiro e Políticas da Diferença. 12 de maio de 2004. Escola do Ministério Público da União.
11-13 de maio. Brasília, DF, Brasil.
observa que o estágio jurídico implica um esforço sem proveito a não ser de maneira
hipotética, indireta e distante, no qual há um desgaste e uma falta de reconhecimento do
cliente pois este não sente consideração por um advogado ao qual não pagou honorários.
Este aspecto é interessante, visto ser freqüente os usuários levarem presentes,
oferecerem dinheiro ou fazerem convites aos estagiários, os quais rejeitam todas essas
ações com veemência. Aqui poderíamos aplicar o estabelecido por Mauss (1971
[1923]), quando diz que nas transações cuja finalidade é moral deve-se cumprir com as
três obrigações de dar, receber e devolver. Os usuários, ao não devolverem, ao não
pagarem os serviços prestados pelos estagiários, sentem-se rebaixados e sentem não ser
possível exigir mais do que lhes é dado. Isto também está relacionado com o que L. R
Cardoso de Oliveira (2004) compreende quando afirma que participar das três
obrigações implica um reconhecimento mútuo da dignidade das partes. Como diz
Mauss, o donatário fica a expensas do doador e começa a depender de seu estado de
ânimo; no caso dos estagiários, esta característica se manifesta em uma despreocupação
com os processos, o que marca a inferioridade do usuário. Os clientes desconfiam do
que possa fazer o advogado, atitude que Mauss relaciona com uma noção de honra que
se manifesta no ato de receber uma doação e, como prova disso, os usuários sempre
estão à procura de outras opiniões ou se apóiam nas redes locais de solidariedade e
conselhos.
Os estagiários, por sua vez, sentem que estão dando algo de si que não é
recompensado; no entanto, não podem aceitar outra compensação que não seja a de
cumprir com o requisito para se formar ou a de levar casos que se apresentem como
“exercícios acadêmicos interessantes”. O fato de que o estagiário imprime algo de si no
que dá, também cria uma série de paradoxos morais e, além disso, deve assumir os
custos pessoais de sua postura pública como tradutor, o que implica uma contenção de
emoções e sentimentos.
Na consulta, vista como representação pública, os estagiários se debatem entre a
posição do ator profissional e o cínico (Goffman, 1959), já que o ator pensa que a
impressão da realidade em cena é uma realidade verdadeira, enquanto o cínico não
acredita na sua própria atuação e não se interessa no que está criando. Os estagiários
devem mobilizar esforços e realizar determinados sacrifícios para manter sua fachada e
as impressões que, a partir dali, criam. Não só porque a impressão que se cria é uma
representação frágil e tem que se ganhar o direito de representar o papel que se
representa, mas porque o ator disciplinado deve ser capaz de suprimir seus sentimentos
com o objetivo de manter uma mesma linha emocional. Neste sentido é que situo o
advogado do lado do ator, pois deve procurar estar emocionalmente dissociado de sua
representação; cumpre com a função de manter o controle sobre os fatos, procedimentos
e clientes, mas também deve controlar a si mesmo (Felstiner et al., 1980-81). Robert
(2002) [1929] afirma que um advogado deve saber ouvir, sorrir e calar sem deixar de
vigiar a forma em que expressa sentimentos e paixões. É por isto que nas conversas com
os etnógrafos, E5 admitia que era difícil representar um papel diante de pessoas muito
mais velhas que ela ou estabelecer uma relação de advogada-cliente com pessoas que
estavam reparando na sua juventude e em seu tom de voz infantil e, portanto, pouco
convincente. No entanto, conseguia agir como autoridade diante de sujeitos que
pertencem a hierarquias baixas dentro da estrutura social da região e conseguia o
objetivo de “saber se impor” graças a uma infantilização de seu interlocutor.
Neste caso, o que acontece é uma ratificação das hierarquias sociais através do
exercício do próprio advogado, que também passa a atuar como um personagem social.
Assim aconteceu em um diálogo de E5 com Juan, um trabalhador diarista da região que
acusava o capataz da fazenda onde trabalhou de não ter indenizado-o justamente quando
foi despedido. O caso concluiu com a decisão de que o próprio Juan deveria apresentar
sua a demanda no juizado de Santa Bárbara, um município vizinho de Fredonia, onde o
usuário mora. Esta informação foi a que permitiu descartar o caso – porque os
estagiários não têm competência em tal jurisdição – mas, como acontece com
freqüência, isso só foi esclarecido várias visitas depois, quando já se tinha criado a
expectativa de que os estagiários iam assumir o caso. Vejamos fragmentos desta
conversa (31 de novembro de 2003):
P5: Usted sabe que yo quedé de hacerle la demanda. Vea esta demanda tiene que
mandarla pasar a computador para que le quede bien bonito... eso le va costar
muy poquito
José: Bueno
P5: Vea yo le voy a dar una buena noticia: como le parece que esta semana usted
solo puede presentar la demanda, sin necesidad de abogado!!
José: Ay!!!!
P5: Pero bien juicioso... espere y verá que le voy a decir todo lo que tiene que
hacer
José: Ah, eso es importante!!
P5: Si, usted va a ir a Santa Bárbara, hágalo por lo menos cada ocho días pero
de lunes a viernes
José: En semana, cada ocho días
P5: Sí señor, para que eso se mueva muy rápido.
José: Ah, sí, sí.
P5: Entonces, ¿por qué tiene que ir cada ocho días?
José: En semana.
P5: Sí porque el juez atiende en semana, o la juez... yo no sé si será doctor o qué
(...) Dígale al juez que usted no sabe firmar, para que él le tome la huella digital.
José: Sí, sí.
P5: Entonces lo va a pasar en computador primero, segundo va a ir al juzgado...
como usted no sabe leer, mire aquí dice juez promiscuo municipal. Si a usted se le
olvida, le pregunta a cualquier persona y entonces usted va allá
José: A Santa Bárbara?
P5: Sí señor a Santa Bárbara, pero lo pasa a computador primero!! Si usted va
aquí a Fredonia a entregar esto se lo rechazan, tiene que ser en Santa Bárbara.
Lo entrega a donde dice acá, no lo vaya entregar en el juzgado penal.
José: Ah no, no, no
P5: Si se le olvida, pregunta y listo. Entrega la demanda allá, pero antes le saca
una fotocopia. No se le olvide!!! Mejor saque dos copias y lleve el papel de la
conciliación que hicieron acá
José: ¿Yo tenía esos papeles?
P5: Usted me pasó una fotocopia, entonces usted debe tener el original, usted lo
busca y lo lleva (...) Pide el favor allá de que le colaboren mucho. Tiene que
decir: “yo voy a estar viniendo aquí cada ocho días para que me digan qué hay
que hacer”
José:
P5: Como usted no va a tener abogado, va a estar un poquito perdido. Entonces,
hágase amigo de la juez o del juez, o de la secretaria y pregúnteles si hay que
corregir alguna cosa. Hágase bien amigo de esa gente!!
José: Bueno
P5: Y tampoco es que vaya a diario, pero sí con buena frecuencia (...) Para que
no se vea en angustia, pregunte cómo se hacen las cosas. Esté bien pendiente el
día de los testimonios, esté pendiente de lo que pregunte el juez, no le vaya a
ofrecer plata al juez, como ya lo hizo conmigo la otra vez!!!
José: No, no, no!!!
P5: No le vaya a ofrecer plata al juez porque se pone bravo. Ni a la secretaria,
nada de eso. No vaya a cometer esa brutalidad
José: Sí, sí
P5: Entonces, atención a nuestro acuerdo. A ver, repítame lo que le dije, cuántas
copias tiene que sacar?
José: Dos
P5: Y ésta la va a pasar a computador, sí o no?
José:
P5: Entonces, quedamos ya listos (...) no se vaya a ilusionar mucho de que esto lo
hagan en quince dias. Eso se demora y hay que tener mucha paciencia...
José: No!! Listo muchacha. Entonces, chao y muchas gracias
P5: Pórtese bien... yo veré, bien juicioso!!!
[E5: O senhor sabe que eu fiquei de fazer a demanda. Olha, tem que mandar
passar esta demanda para o computador para que fique bonita... isso vai custar um
pouquinho.
José: Está bem.
E5: Olha, vou lhe dar uma boa notícia: o que o senhor acha de esta semana o
senhor apresentar a demanda sozinho, sem necessidade de advogado!!
José: Ah!!!
E5: Mas com muito cuidado... espere e verá que vou dizer tudo o que tem que
fazer.
José: Ah, isso é importante!!
E5: É, o senhor vai a Santa Bárbara, e vá pelo menos a cada oito dias, mas de
segunda a sexta-feira.
José: Toda semana, cada oito dias.
E5: Sim senhor, para que isso ande mais rápido.
José: Ah, sim, sim.
E5: Então, por que tem que ir a cada oito dias?
José: Toda semana.
E5: Sim, porque o juiz atende toda semana, ou a juíza... eu não sei se será doutor
ou o que (...) Diga ao juiz que o senhor não sabe assinar, para que ele tire a
impressão digital.
José: Sim, Sim.
E5: Então, primeiro vai passar para o computador, segundo, vai ao juizado...
como o senhor não sabe ler, olhe, aqui diz juiz de família municipal. Se o senhor
se esquece, pergunta a qualquer pessoa e então o senhor vai lá.
José: A Santa Bárbara?
E5: Isso, a Santa Bárbara, mas passa primeiro para o computador!! Se o senhor
vai aqui em Fredonia, e entrega tudo isso, rejeitam, tem que ser em Santa Bárbara.
Entrega onde diz aqui, não vai entregar no juizado penal.
José: Ah, não, não, não.
E5: Se o senhor esquece, pergunta e pronto. Entrega a demanda lá, mas antes tira
uma fotocópia. Não se esqueça!!! É melhor tirar duas fotocópias e leve o papel da
conciliação que fizeram aqui.
José: Eu tinha esses papéis?
E5: O senhor me passou uma fotocópia, então, deve ter o original; o senhor
procura e leva (...) Peça o favor lá, que lhe ajudem muito. Tem que dizer: “eu vou
estar vindo aqui a cada oito dias para que me digam o que tem que fazer”.
José: Sim.
E5: Como o senhor não vai ter advogado, vai estar um pouquinho perdido. Então,
fique amigo da juíza ou do juiz, ou da secretária e pergunte a eles se tem que
corrigir alguma coisa. Fique bem amigo dessa gente!!
José: Está bem.
E5: E também não é para ir todos os dias, mas sim freqüentemente (...) Para que
não fique angustiado, pergunte como as coisas são feitas. Fique atento ao dia dos
testemunhos, fique atento ao que pergunta o juiz, não vá oferecer dinheiro ao juiz,
como já fez comigo da outra vez!!!
José: Não, não, não!!!
E5: Não vai oferecer dinheiro ao juiz porque fica bravo. Nem à secretária, nada
disso. Não vai cometer essa besteira.
José: Sim, sim.
E5: Então, atenção ao nosso acordo. Vamos ver, repita o que eu lhe disse, quantas
cópias tem que tirar?
José: Duas.
E5: E esta, vai passar para o computador, sim ou não?
José: Sim.
E5: Então, estamos certos (...) não vai se iludir muito achando que farão isso em
quinze dias. Isso demora e tem que ter muita paciência...
José: Não!! Pronto, moça. Então, tchau e muito obrigado...
E5: Comporte-se... vou ver, bem cuidadoso!!!]
E6 também mostrava que a contenção de emoções e sentimentos exigida durante
a consulta jurídica representava para ele um esforço adicional. Apesar de seus
constantes esquecimentos e imprudências, sentiu-se obrigado moralmente com o caso
de Andrés (caso 4), que recorreu com a finalidade de se divorciar, apesar de terminar
sendo direcionado para a redução da pensão alimentícia. Andrés sofreu um derrame
cerebral, ficou com a metade do corpo paralisada e depois foi atropelado, sofrendo
fraturas graves. Sua companheira atual – Carmen – informava sobre o que aconteceu a
E6, que se mostrava comovido com a situação. Já nas últimas visitas, E6 negava-se a
ver os exames médicos como sinal de uma inusitada confiança no que era narrado pela
usuária e prometeu ajudá-la na redução da pensão alimentícia, assunto que se agravava
em vista de uma nova demanda colocada pela primeira esposa. Na reunião dos
estagiários, E6 leu seu relatório incluindo a informação sobre o estado de saúde do
cliente, e o fato de se mostrar compassivo foi censurado, não pelo assessor, mas por
uma de suas próprias companheiras (E3), que o recriminou ao perguntar-lhe o que tinha
a ver essa informação com o caso, e pediu que fosse mais concreto e que não caísse no
sentimentalismo.
Por outro lado, o advogado se aproxima do cínico quando mantém um
espetáculo em que não acredita, e na contenção de suas emoções sofre uma alienação de
si, manifestando uma forma de cautela diante dos outros. Aqui é possível considerar o
caso dos “27 porquinhos” – caso 2 – sob responsabilidade de E2, lembremos que este é
o caso de Rogelio, o capataz de uma fazenda a quem deviam 20 meses de salário e
previdência social. O mais grave era que os porcos da fazenda estavam morrendo
porque os donos deixaram de enviar dinheiro para a alimentação; de 80 porcos, 27 já
tinham morrido. A estagiária foi diligente com o caso, abriu o processo depois de
superar vários obstáculos e só nesse momento a advogada da outra parte apareceu para
exercer uma forte pressão sobre E2. Disse que ela ainda era muito jovem e inexperiente
e, por isso, acreditava no usuário, que era alcoólatra, irresponsável e mentiroso.
Alterada e nervosa, como nunca demonstrou, a estagiária recorreu ao assessor, que lhe
perguntou se acreditava em seu cliente. Ela respondeu que já não sabia o que pensar
porque, semanas atrás, o cliente tinha chegado com feridas no rosto e com freqüência
sentia cheiro de bebida. Ele disse que se tranqüilizasse porque o importante era acreditar
na versão construída por ela, que estaria confrontada com a versão da outra parte e,
nessa situação, acreditar no cliente era o menos importante, pois o caso seria ganho se
se conseguisse encontrar uma contradição na outra versão para fortalecer a própria.
Desta maneira, o assessor trata de tirá-los do dilema de acreditar que o que foi dito pelos
clientes é um passo necessário para acreditar na própria representação. Procura evitar
que tenham o sentimento de alienação e frustração e, em certo sentido, estimula-os a se
deslocarem para os extremos dos tipos de representação onde encontramos o ator. O
assessor estimula-os a pensar que o importante é encontrar a verdade ou estar seguros
do que dizem os clientes, pois o fundamental é acreditar na encenação da versão dos
fatos criados, que idealmente devem ser configurados para não deixar lugar a dúvidas.
Quando um indivíduo faz uma representação esconde mais que prazeres ou
condutas impróprias, também oculta os indícios do trabalho sujo (Goffman, 1959) e isto
implica um sacrifício privado para conservar a fachada. Nas reuniões com o assessor,
são discutidas as possibilidade reais dos casos e trabalha-se sobre a base de confissões
íntimas dos usuários, o que agrava o dilema moral que a tradução de reclamações e a
criação da verdade jurídica traz para o estagiário. A isto há que se acrescentar o fato de
que os espaços jurídicos estão cheios de uma expressão de emoções que faz parte do
jogo de reconhecimento de dignidades em disputa, no que corresponderia a uma
dimensão performativa – dramatização – do reconhecimento (Cardoso de Oliviera, L.
R., 2004; Peirano, 2002). As piadas sobre os casos, o uso de termos pejorativos e a re-
enunciação do que foi dito pelos clientes no contexto das reuniões dos estagiários não
tira o peso da representação criada, mais ainda quando se trabalha com partes que estão
ressentidas e cheias de indignação. Este é um tratamento dos ausentes na região de
bastidores (Goffman, 1959), tratamento este que simplesmente atua como um
mecanismo que permite manter a moral e a solidariedade do grupo ao que se pertence.
Como exemplo, pode-se citar uma situação que aconteceu no contexto da reunião de
estagiários, quando se estava discutindo o problema do acordo informal que Andrés
(caso 4) tinha realizado com sua esposa para determinar uma pensão alimentícia. E1
disse que o mais provável é que Andrés não estivesse cumprindo com sua obrigação
por “estar bebendo muito” e acrescentou que os trabalhadores das minas gostam muito
de bebida e de mulheres. Os outros estagiários e o assessor reagiram a esse comentário
com risos; o mesmo aconteceu quando foi explicado o caso de Jesus, um homem
oriundo de uma cidade do caribe colombiano, mas que vive em Fredonia há mais de 13
anos. Estava tentando solicitar em um juizado uma redução da pensão alimentícia para
os filhos que teve em uma relação anterior à atual e que já eram maiores de idade. Como
Jesus teve filhos com três mulheres diferentes, E1 disse: “tem que entender a situação,
o que acontece é que o homem é da costa e eles gostam de deixar família espalhada por
todo lado”. De novo, as pessoas presentes riram e continuaram especulando sobre a
situação de Jesus. Da mesma forma, pode-se citar o seguinte fragmento de uma
conversa que ocorreu em uma reunião dos estagiários com seu assessor sobre o caso de
um inventário, cujos interessados – segundo os advogados – contavam com recursos
suficientes para pagar seu próprio procurador e, portanto, não necessitavam recorrer ao
Escritório Modelo:
E5: Mas é urgente porque o esposo da senhora que faleceu está dilapidando os
bens, é jogador. O que foi o que o outro disse? Não, que está gastando tudo.
Professor: E quais são os bens que deixou?
E5: Casa, um lote... e disse que era muito grande, não? [buscando apoio dos
outros estagiários]. Ela disse que era muito grande... Também têm uma moto,
animais, um carro, algo assim... e porquinhos!!...
Professor: Em todo caso, percebia-se que era um inventário de valor elevado?
E5: Sim, porque eu lhe perguntava se o terreno era muito grande e ela uffffff dizia
que era muito grande.
Professor: Tão belos quando vão caindo na mentira!!!
A performance da consulta: indivíduo ou personagem social?
Villegas (1993) afirma que, de uma perspectiva crítica do Direito, considera-se
que valores entram em conflito quando são comparadas diferentes classificações
utilizadas. Na minha opinião, a partir do problema que levanto, a afirmação de Villegas
pode ser entendida como uma espécie de ponto de partida, uma vez que os valores não
devem ser entendidos unicamente a partir de uma classificação jurídica dos mesmos,
mas também em espaços de interação. Torna-se necessária uma certa relativização dos
valores padronizados em exercícios políticos ligados ao próprio Direito, proposta
também esboçada nesta dissertação. Por que não pensar nos processos de re-
semantização e relativização de valores como igualdade, liberdade e dignidade pelos
advogados e clientes, por exemplo? E por que não pensar na relativização de valores
camponeses pelos habitantes de zonas rurais como Fredonia e pelos estagiários de
Direito que não desconhecem a existência de tais valores já que, em determinados
momentos, também operam sob seus efeitos?
Discordo de Villegas (1993) quando afirma que a confrontação de valores em
situações concretas criaria uma necessidade política de se estabelecer uma classificação
hierárquica para definir em que casos concretos determinados valores entram em
contradição. Isto poderia derivar em uma perspectiva hegemônica e seria uma proposta
insustentável na prática, justamente porque os atores apelam a valores cujas tradições
“de origem” divergem. Tais valores recebem um tratamento contextual e se valem de
ferramentas que denominei performativas – entre elas, a que mais destaco é a
transformação de personagem em indivíduo e vice-versa –, e cujo funcionamento
pretendi mostrar tanto no caso dos estagiários como no dos clientes. Além disso, é claro
que os valores passam pelo filtro do lugar de onde se enunciam e se recobrem as
particularidades desse lugar de fala. Neste ponto, concordo com Kant de Lima et al.
(2003) quando afirmam que as regras jurídicas são uma expressão cristalizada dos
valores sociais e, embora sejam a expressão de valores fundamentais na realidade social,
não deixam de ser uma expressão congelada.
Segundo Villegas (1993), um discurso que pretende ser eficaz verifica o
conjunto de valores que costumam ser aceitos pelo auditório. Aqui, ele está falando
sobre a construção do discurso jurídico; no entanto, na minha opinião, esse mesmo
processo ocorre de forma espontânea no Escritório Modelo de Fredonia. Uma vez mais
quero chamar a atenção que não busco estereotipar a interação e o conceito de choque
ideológico dizendo que os estagiários procuram transmitir valores ligados a sistemas
democráticos individualistas, tampouco pretendo afirmar que os clientes encenam
valores hierárquicos o tempo todo. O fenômeno é muito mais rico e complexo que isso.
Já foi dito, o cliente oscila entre uma posição de personagem social – ligado a um grupo
determinado – e indivíduo posição da qual reclama por seus direitos. Da mesma
maneira, o estagiário oscila entre o personagem social, que está procurando adotar um
perfil definido por uma corporação profissional onde deve articular a linguagem técnica
com o conhecimento de uma linguagem coloquial e local, e o indivíduo, em que se abre
uma brecha para a expressão de emoções e sentimentos.
Os processos híbridos resultantes dos movimentos entre holismo e
individualismo constituem o quadro geral que permite entender as oscilações, entre
pessoa ou personagem social e indivíduos, das quais estou falando. Em ditos processos
determinados valores são estrategicamente integrados. Por esta razão, é necessário fazer
alguns esclarecimentos teóricos em relação a pessoa e indivíduo. Dumont (1997 [1977],
2000 [1983], 1985), inspirado em Weber, distingue entre um indivíduo biológico –
espécie – e o indivíduo como valor do Ocidente; neste último caso, compreende-se
como o sujeito normativo das instituições e como indivíduo auto-referente (Barbosa,
2001). Ao indivíduo como valor de uma ideologia individualista, se reconhece sua
autonomia frente aos demais e uma capacidade de autoconsciência de sua própria
existência.
Por sua vez, Mauss (1985 [1938]) vê o indivíduo como uma forma moderna da
pessoa, como uma variação empírica (Barbosa, 2001). Este autor ilustra um percurso
que vai desde a noção de pessoa absorvida pelo clã até a noção de indivíduo como ser
psicológico e altamente individualizado. Assim, fala da personalidade “sobreposta”
correspondente aos clãs, em que um papel social é desempenhado, entendendo também
a pessoa latina como um fato de lei e não apenas como um fato organizacional.
Posteriormente, fala da pessoa como fato moral e garante que ali começa a se configurar
a autoconsciência como atributo da pessoa moral. Com relação a tal pessoa, fruto do
Cristianismo, é importante destacar que esta começa a ser aplicada a entidades legais,
corporações e fundações religiosas. Mauss (1985 [1938]) acusa os cartesianos e pietistas
de sentar as bases para a concepção de pessoa como substância racional indivisível e
humana. As idéias de Kant de “ser um sacerdote de si mesmo” e de “ter um Deus
interior” estão em relação direta com a perspectiva da consciência individual como o
caráter sagrado da pessoa.
A noção de pessoa de Taylor (1985) distancia-se da de Dumont; porém, poder-
se-ia dizer que se situa do lado do indivíduo altamente psicologizado, último degrau na
escala proposta por Mauss (1985 [1938]), já que é definida como um agente com
propósitos, desejos e aversões, que faz planos de vida, que possui valores e que tem
capacidade de escolha. Na perspectiva de Taylor, a tradição da “pessoa” como
personagem social ligado a seus papéis institucionais corresponderia somente a uma
parte da história do indivíduo. Por oposição, nas visões de Mauss e Dumont, o indivíduo
seria uma parte da história da pessoa.
O que foi observado em Fredonia durante as consultas obedece a uma espécie de
recombinação passageira de experiências, seguindo Da Matta (1997) [1971], que abarca
diferentes valores, mas onde os atores – clientes e estagiários – agem como personagens
ligados a uma série de papéis sociais e onde o grupo de pertença teria precedência. Ao
mesmo tempo, as referências a propósitos, sentimentos, emoções e planos de vida
remetem a uma expressão do indivíduo como agente com as características que assinala
Taylor (1985). A aprtir dessas idéias, buscarei responder à seguinte pergunta: quando e
como clientes e estagiários atuam como personagens sociais, e quando e como o fazem
como indivíduos? Ao responder também procuro mostrar de que forma estes mesmos
atores apelam a determinados valores, próximos ou não a alguns dos dois pólos
ideológicos.
Falei, anteriormente, da representação dos estagiários de Direito tomando como
extremos o ator e o cínico. O ator corresponderia ao personagem social porque sua
atuação faz parte de um exercício profissional, cujo desempenho está baseado em uma
série de estratégias que seu grupo possui, enquanto o cínico corresponderia ao terreno
do indivíduo, na medida em que há uma margem na qual o sujeito não acredita em sua
própria atuação e ali surge uma certa reflexão pessoal, na qual se sublima a expressão de
emoções e sentimentos, correspondente ao que denominei região de bastidores,
inspirada em Goffman (1959).
A classificação do grupo de estagiários corresponde com o desenvolvimento das
qualidades do perfil profissional e isto significa que se deve ratificar o pertencimento a
uma corporação que tem uma determinada tradição. Os valores ligados à profissão -
como ser recursivo, persuasivo, saber falar e ser convincente - se agrupam em um valor
que é colocado como ideal pelos próprios estagiários: a malícia do advogado. Digamos
que não é um valor que diz respeito somente ao talento e à experiência de um sujeito
específico, sendo também um valor que fundamenta o processo de diferenciação dentro
do grupo ao qual se pertence, e que também ajuda a diferenciar, igualar ou hierarquizar
o interlocutor, com base em categorias e valores locais. É através da malícia do
advogado –anteriormente definida como a capacidade de flexibilizar e improvisar no
que se refere a procedimentos e normas -, que os clientes, em certas situações, sentem
haver um reconhecimento da situação por eles vivida e, conseqüentemente, um possível
caminho de resolução. Este caminho fica evidente nas intervenções de E1 e E2,
principalmente; recordemos que E1 interveio nos casos 2, 3, 4 e 5 para favorecer os
usuários ou para encontrar alternativas aos procedimentos padronizados ou aos
procedimentos acordados com o assessor nas reuniões do grupo de estagiários. No caso
de Dario (caso 3) aconteceu uma situação que não foi descrita na apresentação do caso
– capítulo 1 – mas que, não obstante, retrata a forma como E2 consegue modificar com
destreza as condições de interação com os usuários. Em uma das últimas consultas
presenciadas em que Dario compareceu, mas E4 – a estagiária responsável por seu caso
– não foi esse dia ao Escritório, o usuário dirigiu-se imediatamente a E2. Visivelmente
incomodado pelo descumprimento de E4, ele se negou a sentar e não quis estender sua
conversa com E2; no entanto, antes que Dario saísse furioso, E2 perguntou pelo
problema que havia tido em relação ao reconhecimento de uma nascente de água que
passava pela propriedade em disputa. Nesse momento, Dario mudou seu semblante,
sorriu e começou a contar a história que, minutos depois, foi interrompida pela chegada
de outro cliente.
A malícia do advogado está relacionada com a alternância entre uma linguagem
estritamente jurídica e outra linguagem na que são utilizados os próprios termos dos
clientes. É fundamental assinalar que a importância atribuída à linguagem e à mudança
de linguagem pelos advogados permite afiançar uma capacidade para forçar pontos de
encontro valorativamente
51
. Novamente, são E1 e E2 que sabem manejar essas
oscilações entre destreza para ganhar a confiança dos usuários, mas também para
ratificar sua posição dentro do grupo, garantindo as possibilidades de um
reconhecimento futuro dentro da corporação. Assim, por exemplo, E4 comentou com a
etnógrafa, em alguma ocasião, que o cuidado de E1 com os usuários obedecia ao seu
interesse de garantir clientes quando fosse advogado titulado, além da busca por ganhar
confiança do professor-assessor, que já lhe atribuía tarefas em casos que este levava fora
do contexto do Escritório Modelo Rural.
A possibilidade de uso de categorias e valores dos clientes através da mudança
de linguagem permite aos clientes reforçar determinadas hierarquias e ratificar valores
que estariam mais próximos ao pólo holista como família, palavra, honra, trabalho e
terra. No meu ponto de vista, durante alguns momentos da consulta jurídica, a malícia
do advogado, entendida como valor, sobrepõe-se à esperteza, que analisei como um dos
valores centrais para os habitantes da região. Neste sentido, poderíamos dizer que o
estagiário atua como personagem social e opera sob valores hierárquicos que coincidem
com os dos usuários. De fato, em certos momentos, é como se os estagiários homens – e
especialmente E1 – recebessem o tratamento dado ao patrão por parte dos usuários que
trabalham como diaristas e como capatazes. Para as estagiárias mulheres, é mais difícil
manter o tipo de tratamento esperado – o de controle sobre o espaço da consulta – e, por
isso, são elas que constantemente mudam a forma de se dirigir aos usuários; isto inclui
todas as estagiárias mulheres (E1, E3, E4 e E5), embora seja E5 quem manifesta a
dificuldade de manter sua posição de autoridade. É ela que cai com maior freqüência em
uma “infantilização autoritária” de determinados usuários – trabalhadores analfabetos
e/ou de baixa qualificação. Apesar disso, também trata com respeito excessivo pessoas
mais velhas que, por sua vez, a tratam apelando a valores como a honra, ligada a outros
51
L. R. Cardoso, comunicação pessoal, 2005.
valores como trabalho e terra, mas que, como já adverti, estão englobados pelo valor
família. Nesta direção, é válido mencionar que E5 realizou a Audiência de Conciliação
com três irmãos que apresentavam conflito pelos direitos de um posto de venda em uma
praça de mercado em Medellín e por algumas terras em Fredonia. Por acordo mútuo,
decidiu-se que um dos irmãos – o mais novo – cederia seu direito ao posto na praça de
mercado em troca de um terreno e uma quantia em dinheiro. A ata de conciliação foi
assinada e os usuários não retornaram. Esta audiência ocorreu no final de setembro de
2003 – na primeira visita de campo – e, quatro meses depois – durante o último dia de
trabalho de campo –, apareceu um dos irmãos – o que ficou com a terra e era acusado
pelos seus irmãos de esperto (valor esperteza), mas desorganizado (negação do valor
trabalho) –. Perguntou por E5 em um tom agressivo e depreciativo, dizendo que ela
“como mulher” o tinha enganado, já que propiciara a assinatura de um acordo
desvantajoso. Lembremos que o engano é a cara negativa da esperteza e a negação da
palavra em uma transação; o interessante é que o cliente insatisfeito – que era o irmão
mais novo – não reclamou aos seus irmãos mais velhos, dando precedência aos laços
familiares de uma ordem patriarcal, mas obedecendo a esta mesma lógica desprestigiou
o trabalho da estagiária.
A malícia opera como um valor holista que se une à representação do estagiário
como pessoa ou personagem social; não obstante, também pode ratificar valores
individualistas. Apesar de o estagiário poder manejar discursivamente os valores da
região, há uma característica implícita em seu ofício que pode se estender como uma
característica de um paradigma individualista e igualitário. Neste tipo de paradigma, não
há ordem que permita articular sociedade e mundo; esta articulação só se apresenta no
campo de indivíduo, o que abre a possibilidade de estabelecimento de uma relação entre
sua representação e sua própria ação (Galey, 1982). Aqui estaríamos, novamente, no
que Goffman (1959) nos diz sobre o extremo do cínico na representação em público,
aquele que não acredita no papel que está representando. Neste caso, o estagiário busca
o sentido de sua representação na avaliação de sua atuação; assim, recorre a sentimentos
e questiona a corporação da qual faz parte. Além disso, a expressão de emoções opõe-se
à contenção
52
exigida durante a representação de um personagem social como o
52
A respeito do tema da contenção de emoções, é válido considerar o seguinte fragmento de uma
conversa entre o assessor e
E5
– no contexto da reunião de estagiários – sobre sua participação em um
programa de rádio sobre educação jurídica, emitido em Fredonia:
Assessor
: Estava nervosa?
E4
: Normal, não?
advogado; embora em defesa de valores individualistas, a meta é que o advogado
apareça diante do auditório como um sujeito imaginativo, cuja improvisação é
preparada, mas de tal forma que não perca uma linha emocional capaz de derrubar sua
fachada. É interessante lembrar o que aconteceu com E2 a partir do questionamento da
advogada dos patrões do capataz Rogelio (caso 1). Essa cautela diante dos demais,
gerada pela outra parte, permitiu que E2 – a estagiária mais reticente à presença dos
antropólogos – espontaneamente tivesse uma conversa com a etnógrafa – não na
presença dos usuários, evidentemente – na qual disse que ninguém costumava medir os
custos emocionais de estudantes aos quais, como a ela, além do estágio jurídico rural,
eram designados três presidiários na prática de Direito Penal; cada um com histórias
dolorosas e isto sem contar “tudo o que se pode sentir em cada visita à prisão”, que
ocorre pelo menos uma vez por mês.
Já vimos que no contexto da consulta jurídica, infantiliza-se o cliente. É tratado
autoritariamente, lhe são negados direitos até que ele diga a “verdade”, pressionado por
mecanismos ligados a valores como honra e palavra, desconfia-se da versão de
trabalhadores por empreitada e de capatazes, apelando ao conhecimento da estrutura
social da região, etc. Aqui, hierarquias locais são reforçadas pelos advogados, valendo-
se dos próprios valores estimados na região. O que acontece é uma ratificação das
hierarquias, através do exercício do próprio advogado, o qual passa a atuar como
personagem social. Este processo, claramente, não coincide com o propósito de dar um
tratamento igual a todos os clientes.
Quando os estagiários utilizam uma linguagem estritamente jurídica também
estão transmitindo uma idéia de desigualdade já que os termos empregados passam a
idéia de que o conhecimento que detêm é inalcançável. O pior é que os clientes
começam a acreditar que a impossibilidade de entender a linguagem é inerente a eles, e
tal impossibilidade começa a ser vista como uma incapacidade de compreender o
sistema e, em última instância, de pertencer a ele. Pretende-se transmitir a noção de
igualdade de todos os cidadãos no momento do acesso aos recursos de justiça; porém,
em uma parte do processo, o uso da linguagem jurídica própria de um saber
especializado – característica do próprio individualismo, onde o conhecimento é
distribuído por áreas e disciplinas – cria a percepção de uma incapacidade diante das
formas legais de resolver um conflito e, ao mesmo tempo, reproduz a idéia de
E5
: Mas não se notou!!!... escutando a gravação não se percebia que estava nervosa, notava-se a
espontaneidade, com a exceção de pequenas partes, em que se esquecia o que ia dizer, mas nada grave...
desigualdade diante do Estado. Assim, perpetuam-se práticas de personalismo e
informalidade, as quais não deixam de ser estimadas pelos estagiários, especialmente
por E1
53
. Neste sentido, pode-se afirmar que em sociedades onde operam valores
hierárquicos, há uma dificuldade, experimentada pelos atores, em naturalizar o valor da
igualdade como princípio norteador da ação na vida cotidiana
54
. Por outro lado, retomo
uma conclusão que Kant de Lima (2002) estabelece, a partir de sua análise sobre três
tipos de verdades – judicial, policial e do jurado – produzidas durante o processo penal
no Brasil. Considero o efeito gerado entre os cidadãos bastante próximo ao que analiso
em relação ao trabalho dos estagiários em Fredonia: as pessoas – os clientes, neste caso
– terminam vendo as regras e processos como instrumentos do Estado para atacá-las,
para ir contra elas, e não como instrumentos de defesa de seus direitos e interesses ou
como possíveis falhas do próprio aparelho estatal.
Neste sentido, dou razão a Villegas
55
já que, segundo ele, valores como
liberdade e igualdade coexistem facilmente na teoria, mas dificilmente na prática. Algo
similar aparece na obra de Dumont (1997) [1977], quando afirma que a igualdade é,
sobretudo, um ideal que foi introduzido na política para compensar as desigualdades, o
que também está relacionado com a transformação, na arena jurídica, do direito natural
em direito positivo. A igualdade termina sendo, então, uma exigência ideal para mostrar
que se fez o trânsito de valores do homem coletivo para o homem individual, mas que,
como ideal, não permite ver que, na realidade social, esse trânsito nunca é definitivo.
53
Aqui, vale lembrar o caso de um usuário que chegou ao consultório com a idéia clara do que ia
demandar, pois já estivera envolvido em um processo jurídico por uma demanda de pensão alimentícia
realizado há 20 anos atrás. Estava à procura de uma redução de 10% da pensão dos filhos de sua primeira
união, aumentada sem nenhuma justificativa. Não obstante, uma das primeiras reações do cliente foi
buscar a solidariedade de
E1
e acreditou tê-la conseguido quando o estagiário propôs a simulação de uma
conciliação através de uma demanda “fictícia” iniciada por sua atual companheira em relação à pensão
alimentícia de outro filho do usuário – com os quais convive e proporciona tudo que necessitam. Este
procedimento, além dos marcos estabelecidos, foi transformando a disputa e confundiu ainda mais o
conflito, à medida que o usuário adquiriu novas obrigações legais que lembravam as implicações morais
da primeira demanda, com a qual se iniciou um conflito que tem mais de vinte anos.
54
Para o caso do Brasil, estabelece-se com precisão o seguinte: “(…) surge daí o desprestígio da
obediência literal à lei e a sua aplicação coletiva e universal –igualmente a todos- por parte de autoridades
e da população, por esta prática se identificar com uma injustiça: sobrepor um sistema explicitamente
igualitário a um sistema implicitamente hierárquico. Em troca, vivemos o prestígio da autoridade
interpretativa, sempre fluida e contextual, seja do síndico, seja do guarda de trânsito, do delegado ou do
juiz. É como se a um paralelepípedo desenhado em linhas cheias se sobrepusesse uma pirâmide tracejada”
(Kant de Lima et.al., 2003).
55
Nas palavras do autor (Villegas, 1993:24): “No sólo no existe la posibilidad real de una sociedad
totalmente libre e igualitaria a la vez, además, el mayor grado libertad y de igualdad posibles, se traduce
en los hechos, en una atenuación del alcance de estos valores en relación con las situaciones en las
cuales uno de ellos es dominante”.
Os advogados falam em “dar dignidade” aos clientes, o que também foi
identificado por Macia (2003) em um escritório modelo urbano na Colômbia. Dar
dignidade é traduzido como dar aos usuários a possibilidade de atuar de uma maneira
que não contrarie seus próprios interesses, isto é, seus interesses como indivíduo.
Assim, são negadas as intervenções da coletividade na re-semantização de idéias como
a dignidade que, nos casos apresentados, estão relacionadas com a negação de valores
holistas como trabalho, família, honra e palavra.
Falta a resposta à segunda parte da questão que levantei em parágrafos anteriores
e que remete à forma como os clientes oscilam entre personagens sociais e indivíduos
durante a consulta jurídica, apelando a valores específicos. Não pretendo aprofundar na
explicação dos valores hierárquicos e suas inter-relações, visto que isso foi explorado no
segundo capítulo; no entanto, antes de mostrar as formas como os atores atuam como
indivíduos, é importante ressaltar o que denominei rede local de conselhos. Detenho-me
neste ponto já que, quando os clientes se colocam como personagens, sempre existe a
referência à coletividade, que toma a forma dessa rede.
Vale lembrar que a rede local de conselhos opera dentro e fora do contexto da
consulta jurídica. Dentro, tem-se como representantes os atores que acompanham os
clientes e que se tornam parte fundamental da dramatização; para citar um exemplo,
basta lembrar o diálogo entre E6 e os capatazes Roberto e Carlos. Como a pesquisa
concentrou-se nas interações dentro do espaço do Escritório Modelo, é difícil descrever
a forma como opera fora dele; porém, é possível ter uma idéia tendo como base o que os
próprios clientes manifestam. Nos cinco casos apresentados, as pessoas recorreram por
recomendação de outros que já tinham ouvido falar do trabalho dos estagiários, ou que
tinham feito alguma consulta. Tal rede opera por níveis hierárquicos; os capatazes
recomendam a outros recorrer aos estagiários – como no caso de Carlos e Roberto –, as
empregadas domésticas que também trabalham na agricultura de forma sazonal, como é
o caso de Maria (caso 2), passam a informação entre elas, e os vizinhos de rua e
compadres dão conselhos uns para os outros, como no caso 3 – de Dario.
De certa maneira, recorre-se ao Escritório Modelo só quando a palavra dos que
pertencem a esse mesmo nível hierárquico ratifica a ação. Ao mesmo tempo que são
questionadas as hierarquias da região, como já foi explicado nos casos como os de
Rogelio (caso 1) e Maria (caso 2) em relação a seus patrões, ou quando se reclama
porque os compromissos estabelecidos entre personagens sociais não são cumpridos e
se atenta contra valores tradicionais como a honra, o trabalho e a família – como é
evidente no diálogo entre Roberto e Carlos –, também muitas das hierarquias são
ratificadas pelo próprio devir dos processos e pela intervenção dos estagiários, quando
atuam como personagens sociais – principalmente – visto que terminam compartilhando
alguns valores com os clientes.
Já tinha falado da eficácia simbólica que papéis e fotocópias têm entre os
clientes quando são solicitados pelos estagiários; no entanto, em diversas ocasiões, tanto
os estagiários como o assessor comentaram que o problema é que os usuários acreditam
que levando uma fotocópia o processo já está em curso, quando, na maioria das
situações, nem sequer foi avaliado seu potencial como um caso que pode ser assumido
pelo Escritório Modelo Rural. No entanto, a eficácia simbólica, ligada à linguagem
jurídica, também abarca o próprio espaço da consulta jurídica; não foi por acaso que, em
uma ocasião, chegou um morador de Fredonia que trabalha como pedreiro, embora já
tivesse trabalhado como capataz nas fazendas da região, solicitando ajuda dos
estagiários porque acreditava que era a única forma de fazer frente aos efeitos da
bruxaria que a ex-mulher tinha lançado contra ele. Sua iniciativa havia recebido a
aprovação de seus vizinhos.
Sobre a questão das variações ideológicas, Dumont (1994) diz que a combinação
de holismo e individualismo, a qual dá origem ao que ele chama de híbridos, pode ser
entendida como uma forma de modernizar a cultura. Ressalte-se que, para ele, o
individualismo está impossibilitado de proporcionar um princípio único e suficiente
para a vida social. Essa impossibilidade está relacionada com o fato de que o
individualismo, através de seus valores fundantes, proporciona uma teoria utópica da
vida. No entanto, por essa mesma razão, constitui-se um fermento de mudança
extremamente poderoso. Nas primeiras visitas ao Escritório Modelo, tive a impressão
que este operava como agente de mudança; esta era uma idéia ainda crua que, agora,
relaciono mais com essa força de transformação que deriva de valores como liberdade,
igualdade e dignidade, enquadrados em uma perspectiva individualista, mas que chocam
com uma perspectiva holista.
Embora o papel da rede local de conselhos seja fundamental para que as pessoas
se “arrisquem”, busquem a ajuda dos estagiários e tomem a iniciativa, também é
percebido como uma espécie de “perda da inocência”
56
que permite uma nova
56
Um cliente que resolveu um conflito de terras com ajuda de um dos estagiários disse o seguinte em
relação ao papel que cumpre o Escritório Modelo em Fredonia: “O Escritório Modelo serve quando se
tem um problema jurídico, como no caso da morte de meu pai; nós perdemos esse dinheiro porque
abordagem dos valores apreciados na região, de um ponto de vista centrado no
indivíduo. E, como já expliquei no primeiro capítulo, o valor esperteza é o caminho que
permite articular os “benefícios da justiça” – nas palavras de alguns clientes – com uma
re-semantização de valores como dignidade e igualdade, promovidos pela política do
próprio escritório. Assim, por exemplo, “ter direito” é uma expressão usada com
freqüência pelos clientes, mas se analisamos o contexto no qual é empregada, pode-se
concluir que esse “ter direito” remete a questões como o pleno desenvolvimento da
família através da articulação de valores como honra, trabalho e terra ou, em muitos
casos, remete à conservação de determinados modelos de família patriarcal – valor
família. Este último ficou retratado em uma consulta, na qual Jesus – o usuário –
pretendia iniciar o processo de inventário das terras de seu pai, recentemente falecido,
mas ele insistia em reivindicar seu direito às terras com o argumento de que era ele que
as tinha trabalhado durante toda a vida, pois foi o único filho que não migrou e que
ficou ajudando seu pai. A estagiária que atendeu a consulta (E2) perguntou várias vezes
qual era o número de irmãos; Jesus evadia a pergunta e só depois de uma hora de
conversa E2 disse que se ele não desse a informação solicitada, seria impossível
continuar com a consulta. O usuário disse que tinha 5 irmãos. Dias depois, a esposa de
Jesus procurou a estagiária para perguntar o que tinha resolvido na reunião com o
assessor sobre assumir ou não o caso. E2 não tinha uma resposta, pois ainda faltavam
informações; de novo perguntou pelo número de filhos do pai de Jesus e se surpreendeu
quando ela disse que eram 8 irmãos. Para Jesus, apenas 5 irmãos teriam direito à
herança, pois os outros 3 eram irmãs – mulheres – e elas, da sua perspectiva, não
entravam na partilha.
Entre pessoas com um grau de escolaridade maior, menores de 40 anos e que
vivem na zona urbana do município é notório que esse “ter direito” está ligado à
percepção de que conhecem seus direitos como indivíduos – entre eles, o de ter acesso à
justiça através de espaços como o Escritório – para resolver determinados conflitos.
éramos muito inocentes, nesse caso. Faz alguns anos que contei o problema para um advogado, amigo de
minha cunhada e, então, tomando esse relato, investigou e me disse que nós tínhamos perdido muito
dinheiro pelo pagamento do assassinato de meu pai, porque foi assassinado ali, na fazenda onde ele
trabalhava. O advogado disse que a fazenda tinha que ter pago a ele, e toda essa coisas, mas o que
acontece é que venceu o prazo... passou muito tempo e sobre isso já não se pode reivindicar nada. Eu me
lembro que quando mataram meu pai, o patrão só me deu a indenização e pronto, que foi muito pouco, e
nunca se falou de que a fazenda tinha que pagar. Lá ocorreram várias mortes dessas e indenizaram a
família do último que mataram... a família ficou com muito dinheiro pelo pagamento do outro capataz que
também assassinaram (...) nós éramos muito inocentes e não iniciamos uma briga... para isso é que serve
o Escritório Modelo”.
Neste sentido, podemos citar o que ocorreu com Adriana, uma jovem de 18 anos e
estudante secundária, que foi consultar os estagiários sobre um roubo que aconteceu em
sua casa. O caso não podia ser assumido pelos estagiários e ela entendeu as razões
explicadas por E1; no entanto, iniciou uma conversa com ele e disse que conhecia os
Direitos Humanos e os Direitos das Crianças, mas não sabia se havia os direitos dos
jovens. E1 disse que esse tipo de direito não existia, mas Adriana insistia que este seria
importante para pessoas como ela, cujos pais se esforçavam para educá-la reproduzindo
a lógica de uma família patriarcal, a qual entrava em contradição com os objetivos que
ela tinha para sua vida. Aqui se juntavam duas características que remetem ao indivíduo
que se eleva como valor no contexto de uma ideologia individualista: a busca por
espaços próprios onde se consigam desenvolver metas e objetivos particulares – a auto-
realização – e a necessidade de se usar e de se assegurar a capacidade de escolha.
Pessoas como Adriana, que consideram que “sabem de Direito”, são mais
concretas e solícitas com as perguntas dos estagiários, entendem com facilidade os
trâmites e reconhecem a importância atribuída aos documentos – que sempre levam
autenticados e com várias fotocópias, por exemplo. Em muitos casos, é esse tipo de
cliente que recorre aos estagiários apenas para confirmar conceitos dados por advogados
particulares; não sentem medo de iniciar processos nem de estar envolvidos em trâmites
jurídicos e burocráticos. Aqui, poder-se-ia falar de um incipiente processo de
“juridificação das relações sociais” (Kant de Lima et al., 2003), já que os usuários vêem
sentido nesse “ritual burocrático” e, a partir dali, buscam pontes entre normas e regras
que vão aprendendo e uma nova re-significação das relações sociais efetivas de seu
entorno. Ressalto que são estes usuários que têm consciência de sua própria capacidade
de escolha, como característica ligada ao indivíduo e não à pessoa e, em certo sentido,
buscam satisfazer determinados interesses pessoais - o que não quer dizer que não
compartilhem valores próximos a um pólo holista e que possam chegar a se comportar
como personagens sociais em determinado momento.
Reconhecimento, identidade e articulação de valores
Macía (2003) realizou uma etnografia em um Escritório Modelo na cidade de
Bogotá e, embora existam dinâmicas que coincidam com o que foi observado por mim
em Fredonia, no enfoque dado a seu trabalho a prática jurídica é vista como um ritual e
as leis são entendidas como um mito jurídico. A análise é interessante, sobretudo porque
fala de um campo de poder que está constituído pelas diferentes interações entre mito e
rito. Eu optei por estabelecer uma discussão sob outros pressupostos teóricos; no
entanto, parece-me interessante assinalar que a autora assegura que, apesar de encontrar
“elementos modernos” na dinâmica do Escritório, também estão presentes “elementos
sagrados e míticos que convivem com os outros”. Evidentemente, eu não colocaria a
questão nesses termos, mas creio que o que foi encontrado por Macía (2003) corrobora
o que chamei de choque ideológico, onde se sobrepõem, opõem e coincidem valores,
próximos a alguns dos dois pólos ideológicos.
Em todo caso, considero que o Escritório Modelo Rural de Fredonia não pode
ser entendido como um cenário de marginalização, exclusão e violência, como conclui
Macia, baseando-se em sua pesquisa em um Escritório Modelo Jurídico Urbano.
Tampouco se pode dizer, simplesmente, que é um cenário potencial de empoderamento
e emancipação, como afirma a mesma autora; isto é, para vê-lo como tal ou para dizer
que, a longo prazo, ali podem ser gerados discursos de auto-entendimento (Habermas,
1994)
57
, é necessário entender quais são as dinâmicas que acontecem em tal espaço.
Conseguir identificar séries de valores e a forma como estes agem a partir de uma
pretensão de reconhecimento das identidades pelos atores constitui-se um primeiro
passo para a avaliação de um verdadeiro potencial político
58
. Aqui, vale a pena fazer
uma reflexão sobre o que é estabelecido por Honneth (1995), que afirma haver dois
padrões de reconhecimento: o amor e os direitos. Em relação ao reconhecimento legal,
existiria um potencial moral que poderia ser desenvolvido por meio de lutas sociais que
tenderiam ao aumento de condições de generalidade e sensitividade contextual; estes
seriam os requisitos para a auto-realização e a autonomia do sujeito. O que me parece
complicado na proposta de Honneth (1995) é a ligação do reconhecimento de direitos à
necessidade imperativa de uma espécie de institucionalização da pessoa legal como
agente moral responsável. O que quero dizer é que também existe um potencial de não-
57
Neste caso, guio-me pela seguinte afirmação de Habermas (1994:245-246): “A medida que a formação
da opinião e da vontade dos cidadãos orienta-se pela idéia da efetivação de direitos, ela certamente não
pode ser equiparada a um auto-entendimento ético-político, como bem sugerem os comunitaristas, mas o
processo da efetivação de direitos está justamente envolvido em contextos que exigem discursos de auto-
entendimento como importante elemento da política, discussões sobre uma concepção comum do que seja
bom e sobre qual forma de vida é desejada e reconhecida como autêntica”.
58
Neste sentido, é interessante trazer o conceito de reconhecimento de Zambrano (2004:235), que avalia,
mais de 10 anos depois, os efeitos de transformação social e política da Constituição de 1991; como o
próprio autor reconhece – e o que justamente o distancia de minha análise –, concebe-se o
reconhecimento como além de uma dimensão moral, situando-o no campo da luta social e política: “El
reconocimiento es una relación social entre dos o más individuos –colectivos o individuales- que
producen efectos de identificación a partir de los cuales se generan comportamientos regulados entre las
partes que se reconocen
”.
reconhecimento quando se diz que uma pessoa sem direitos é a forma incompleta da
agência, autonomia e auto-respeito do sujeito.
Desde o início da dissertação, anunciei que os clientes recorrem ao Escritório
esperando serem reconhecidos em sua complexa identidade social. Da mesma forma,
esclareci que o conceito de choque ideológico me permite ver a forma como se
articulam e se opõem conjuntos de valores que são evidenciados durante a encenação da
consulta jurídica. Nela é possível ver como os atores envolvidos apelam a combinações
de elementos de diversas origens, holistas e individualistas, atuam como “pessoas” e
indivíduos, simultaneamente, e, portanto, demonstram não ter ocorrido um trânsito
definitivo da honra à dignidade.
Em relação a este último ponto, discordo de alguns argumentos de autores como
Berger (1983) e Taylor (1994), que consideram o trânsito da honra à dignidade como
uma das características da modernidade e das democracias modernas. O primeiro autor
fala de um declive da concepção de honra como resposta a uma espécie de decadência
da ordem hierárquica da sociedade, o que marca o nascimento de novas moralidades,
cuja ênfase é a preocupação com a dignidade e com os direitos individuais. No ancient
regime, no qual operava a honra, esta era a encarregada de unir o indivíduo com a
comunidade e com as normas idealizadas que a definiam. O conceito de honra, segundo
o autor, implica que a identidade está ligada a papéis institucionais – recordemos aqui a
pessoa unida ao clã de que nos falava Mauss (1985 [1938]) – enquanto o conceito
moderno de dignidade significa que a identidade é relativamente independente de papéis
institucionais. Taylor (1994), por sua vez, garante que a dignidade é o único conceito
compatível com uma sociedade democrática porque é percebida como inerente a todos
os seres humanos, isto é, seria uma questão intrínseca ao humano e, por isso, estaria
ligada à identidade individual ou autenticidade. Desta forma, a preocupação
fundamental do indivíduo moderno, relacionada com a identidade e o reconhecimento, é
resultado do colapso das hierarquias sociais que costumavam ser a base da honra. No
meu modo de ver, o potencial de espaços como o Escritório Jurídico Rural consiste,
exatamente, em que ali podem ser observadas interações complexas nas quais não se
pode falar de um declínio da sociedade hierárquica.
No que concordo com Taylor (1994) é que a identidade é moldada pelo
reconhecimento ou por sua ausência, sendo esta uma necessidade humana vital. Pode
ser que o reconhecimento da identidade seja uma preocupação moderna, mas não creio
que possa ser concebido somente como uma meta ou como uma utopia do
individualismo. O que acontece, como esclarece o próprio autor, é que a democracia
introduziu uma política de reconhecimento que assumiu diferentes formas com o
transcorrer do tempo. Embora Taylor enfatize no reconhecimento como o equivalente à
compreensão da identidade individual ou o ideal da autenticidade, eu também chamaria
atenção para a busca de reconhecimento de identidades sociais complexas; busca, na
qual, uma das diversas faces pode corresponder à do sujeito que clama por autenticidade
como ideal moderno, mas também está a face de um personagem social que apela para
sua condição de indivíduo para ser reconhecido como parte de determinado grupo
social. Esses são alguns dos fenômenos que a consulta jurídica permitiu mostrar ao
longo deste texto.
Em relação ao que vinha expondo sob o rótulo de choque ideológico, o
reconhecimento seria a condição primordial de tal encontro de valores. A questão é que
enquanto Taylor (1994) fala de uma identidade interior, para a qual se dirige a política
da dignidade que tende ao reconhecimento da especificidade em que, em todo caso,
todos têm o mesmo potencial humano e são dignos de respeito, eu estou pensando o
reconhecimento ligado também à identidade social expressa em valores que, por sua
vez, são usados contextualmente, inclusive a dignidade em sua acepção “moderna”
59
.
Kymlicka (1995) trabalha a questão do reconhecimento da identidade de grupos
minoritários, o que implica processos de reacomodação de diferenças culturais. Em
oposição a Taylor (1994), não desenvolve um reconhecimento da identidade verdadeira
ou autenticidade, o que se relaciona com a incorporação dos sujeitos a comunidades
políticas. Coincidindo com minha crítica a Taylor (1994) e Berger (1983), a proposta de
Kymlicka (1995) abre um espaço ao problema do pertencimento a um grupo cultural
como o elemento que proporciona um contexto inteligível de escolha e um sentimento
de identidade que, de qualquer forma, não está isento da confrontação. Este autor fala
do conflito que surge a partir do choque entre valores e projetos coletivos, e entre
valores e projetos pessoais. Em suma, Kymlicka está mostrando algo similar ao que
propus: a forma como o processo de reconhecimento das identidades implica uma
confrontação de valores de diversa índole.
Por outro lado, entender as complexas interações entre clientes e estagiários de
Direito como um choque ideológico pressupõe que há conjuntos de valores interagindo;
59
Neste sentido, é necessário destacar que, na perspectiva de L.R. Cardoso de Oliveira (2005), a
importância do caráter dialógico do reconhecimento radica em que, por seu intermédio, articulam-se
dignidade, identidade e sentimentos. Neste sentido, o que poderíamos chamar de caráter dialógico do
reconhecimento não é outra coisa senão que uma dimensão da própria alteridade.
a questão é que tal interação toma forma dialógica e envolve a relação entre ideologia –
no sentido dado por Dumont –, reconhecimento e identidade. Neste aspecto, considero
que o que Geertz (1997) [1964] propõe une-se e complementa a orientação teórica de
Dumont. Apóio-me na leitura que Ricoeur (1985) faz porque considero que ele
consegue extrair todo o potencial do texto “A ideologia como sistema cultural” (Geertz,
1997 [1964]). Apesar de estar de acordo com determinados pontos, como quando diz
que, para Geertz, a religião engloba a divisão tradional-moderno, também questionaria
se, na realidade, Geertz distingue diferentes tipos de ideologia, incluindo alguns não
políticos.
Segundo Ricoeur (1985), a ideologia foi estudada a partir de três enfoques: (1)
como distorção, o que significa que desta perspectiva a ideologia não pode existir antes
do surgimento da sociedade de classes e opera na relação superestrutura–infra-estrutura;
(2) a ideologia como legitimação, onde se trabalha o problema da autoridade e não se
fala de causalidade, mas de motivações, e não se fala de forças e estruturas, mas em
termos de tipos ideais de exigências de autoridade. Na ideologia como distorção,
situam-se autores como Marx e Engels (“A Ideologia Alemã”) e, no segundo grupo,
encontra-se Weber; (3) Geertz seria o representante da perspectiva da ideologia como
integração ou identidade.
Concordo com Ricoeur (1985) quando diz que a ideologia é a retórica básica da
comunicação e, nesse sentido, parece-me que a proposta de análise simbólica de Geertz
ganha todo sentido já que ressalta o problema da linguagem relacionada ao poder e aos
processos políticos. Assim como a cultura para Geertz deve ser vista como contexto, a
ideologia pode ser entendida como uma conversação, onde as partes têm uma atitude
interpretativa que permite codificar séries de símbolos. Daí ressaltar que a retórica
constitui um elemento integrador que não necessariamente distorce e que, por esse
motivo, não conduz a um conceito pejorativo de ideologia. A chave do assunto está no
fato que a ideologia como integração não pode ser pensada sem confronto e, em muitos
casos, esse confronto adquire uma forma dialógica. O que a ação simbólica – que
contém símbolos intrínsecos e extrínsecos – permite em uma conversação é o
reconhecimento de valores dos grupos aos que se pertence. Seguindo Ricoeur
(1985:254): “If we want to recognize a group´s values on basis of its self-understanding
of these values, then we must welcome these values in a positive way, and this is to
converse”.
Trabalhar a ideologia do ponto de vista da integração, tratá-la como uma
conversação, permite entender que não há destruição do adversário; ao contrário, está
implícito o propósito de reconhecimento. Geertz (1997) [1964] define reconhecimento
como uma percepção consciente de um ato no qual um objeto, um ator ou uma emoção
são identificados ao serem comparados com um símbolo apropriado. No entanto, é
Ricoeur (1985) quem aponta que, em termos hegelianos, seria uma luta pelo
reconhecimento, e não pelo poder; este último constitui uma das características da
utopia de Ricoeur e que ele mesmo equipara ao conceito de ideologia de Geertz.
O reconhecimento, entendido deste modo, articula as lógicas dos sistemas
ideológicos que se enfrentam, embora as expectativas de reconhecimento possam
corresponder a conjuntos de valores diferentes e são expressadas através de linguagens
diferentes, como ocorre no caso de usuários e estagiários. Neste sentido, o pleno
reconhecimento ocorre quando conseguem compartilhar, em algum sentido, os mesmos
valores, e isto só pode ocorrer durante um exercício dialógico no qual ocorre uma fusão
de horizontes.
Evidentemente, um primeiro passo seria o reconhecimento no sentido dado por
Geertz (1997) [1964], onde existe uma codificação de símbolos que trazem
significações comuns às partes envolvidas. O passo seguinte seria um reconhecimento
efetivo da identidade do interlocutor. Taylor (1994) garante que no universo da
dignidade, que se oporia ao da honra de uma forma mais ou menos definitiva, o discurso
do reconhecimento da identidade peculiar tornou-se familiar – tanto em uma esfera
privada como em uma pública – e aí os papéis das instituições jurídicas e do Direito são
primordiais, porque através deles busca-se a equiparação de direitos e reclamações,
(muitas das quais de identidade, não só de direitos). É interessante que se chame a
atenção para isso, apesar do discurso do reconhecimento da identidade e da
singularidade do sujeito – autenticidade, segundo Habermas (1994) – não pode ser
contextualizado unicamente em sociedades que deram um passo ao mundo da
dignidade, nem em sociedades onde há um declive da honra e onde se abrem a novas
moralidades, como sugere Berger (1983).
Neste sentido, considero que minha proposta identifica-se mais com a análise de
L. R. Cardoso de Oliveira (2002, 2004), quando afirma que, embora na ideologia
individualista ocidental tenha ocorrido uma institucionalização da cidadania que trouxe
consigo as demandas por direitos, articuladas à solicitação de reconhecimento das
identidades, o valor intrínseco do reconhecimento pelo reconhecimento é equiparável ao
valor que contém a honra. É muito evidente que o autor não está falando de uma
substituição da noção de dignidade pela de honra; de fato, em um texto anterior (L. R.
Cardoso de Oliveira, 1996) assinalava que, para o caso do Brasil, poder-se-ia falar de
uma concepção de dignidade “fortemente contaminada” pela perspectiva da honra.
Assim, por exemplo, no Escritório Modelo de Fredonia apresentaram-se práticas
personalistas que operam através de valores hierárquicos como honra, palavra e família,
nos quais há um reconhecimento da identidade que, não obstante, vai contra os direitos
do indivíduo. Como afirma Cardoso de Oliveira (2002), nestas práticas há um
reconhecimento da identidade através de um ato de consideração dos interlocutores e,
deste modo, o personalismo pode ser lido como uma transmissão da substância moral de
pessoas “dignas”.
Cardoso de Oliveira (2002, 2004, 2005) veio trabalhando o tema do
reconhecimento, opondo-o como categoria ao insulto moral, definido como: (1) uma
agressão objetiva a direitos que não pode ser traduzida materialmente, apesar de os
atores considerarem necessária a reparação, e (2) como uma agressão que implica uma
desvalorização ou negação da identidade do outro. O propósito deste autor é o de
visibilizar o insulto, atribuindo importância à dimensão dos sentimentos. Embora esse
pudesse ser um caminho interessante para entender alguns aspectos implícitos na
consulta jurídica que retratei e, de fato, o próprio Cardoso de Oliveira adverte que em
uma situação de reconhecimento o que se compartilham são sentimentos, eu me inclinei
a falar em termos de valores que se compartilham (e não em determinado momento de
um diálogo), que se expressam através da linguagem, e que são dramatizados durante a
representação dos atores.
Segundo Cardoso de Oliveira (2005), existem três dimensões temáticas
envolvidas nas causas judiciais: (1) a dimensão dos direitos; (2) a dimensão dos
interesses, onde se realiza uma avaliação dos danos gerados e se atribui um valor
monetário – indenização – ou se estabelece uma pena como forma de reparação, e (3) a
dimensão do reconhecimento, onde se espera uma reparação moral que, no entanto,
tende a ser excluída dos processos judiciais. É evidente que aqui há uma crítica
implícita aos que analisam os conflitos que se resolvem com intervenção da justiça
estatal, limitando-se às duas primeiras dimensões, onde os direitos individuais são
concebidos como princípios absolutos. Embora este não seja o foco da minha análise, há
uma parte da crítica de Cardoso de Oliveira (2005) a estes enfoques utilitaristas que está
presente na noção de reconhecimento com a qual estou trabalhando e que está
relacionado com o que autor denomina “a precedência do elo social”. Isto quer dizer
que, por exemplo, no contexto da consulta jurídica os clientes atribuem uma
importância maior à restituição da relação social, da interação social, deixando em outro
plano a reparação material – monetária. Como já disse, o foco deste trabalho não está
em analisar os conflitos entre as partes envolvidas em processos judiciais; não obstante,
as representações de advogados e usuários, e suas interações, ressaltam a importância
atribuída a essa dimensão dialógica das relações sociais que pode ser explicada através
do reconhecimento que, do meu ponto de vista, deve ser entendido através da
identificação de valores, como uma primeira estratégia metodológica. De certa forma, o
que fiz foi descrever e analisar uma série de dinâmicas do que poderia ser denominado
um contexto de relações sociais. Talvez, um passo seguinte seja o de analisar – como
propõe o próprio Cardoso de Oliveira (2005), desde uma perspectiva não utilitarista, na
qual justamente se dê relevância à dimensão do reconhecimento – se a dádiva é uma
lógica mais valorizada neste tipo de contexto jurídico, diante de ideais de certeza e
controle, característicos do contrato e da perspectiva que orienta boa parte das práticas
vigentes do sistema judicial.
Para finalizar, considero importante insistir que a passagem da honra para a
dignidade não é absoluta e, portanto, a busca do ideal da autenticidade do homem
contemporâneo não ofusca as possíveis manifestações da honra ou da hierarquia.
Concordo com Taylor (1994), quando diz que a identidade é dialógica e não monológica
e, por isso, a própria identidade depende do reconhecimento da dos outros, mas discordo
quando diz que no mundo da honra as identidades não dependiam do reconhecimento
porque não eram problematizadas. Como já se disse, há situações nas quais se pretende
questionar determinadas posições sociais ou o correto desempenho de compromissos
morais entre personagens sociais através de uma exigência de singularidade; mas em
outros casos, por exemplo, recorrer ao Escritório Modelo serve para ratificar valores
hierárquicos dos próprios estagiários, mesmo no contexto da queixa pela experiência
“individual” dos clientes ou da reclamação por direitos individuais. Em ambos os casos,
se buscaria conseguir a integração moral das identidades. Na minha opinião, volto a
repetir, o reconhecimento é o propósito último da consulta jurídica e, neste sentido, L.
R. Cardoso de Oliveira (2005) está correto ao defini-lo como uma atitude ou um direito
que necessita ser permanentemente cultivado, já que as demandas associadas a ele
nunca podem ser contempladas de forma definitiva, e, tampouco, há garantia de que o
problema possa reaparecer futuramente. É por esta razão que os valores e idéias
identificados em um choque ideológico não podem ser pensados como desprovidos de
uma dimensão dialógica. É como se fosse apresentada uma sobreposição de dois planos,
no qual há pontos – idéias e valores – que coincidem e outros que não. De certo modo,
aqueles pontos que não coincidem são valores que se interpõem no campo de visão do
outro e que tornam complexo o processo de reconhecimento das identidades dos atores
envolvidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No marco teórico desta dissertação mostrei de que forma os conceitos de
ideologia de Geertz e de Dumont podem se fundir para entendermos processos de
choque ideológico, como decidi chamá-los. Os casos, cheios de sutilezas, permitiram a
identificação de valores próximos ao pólo holista como honra, palavra, trabalho, terra,
família e esperteza, e também foi mostrada a forma como são ressignificados valores de
caráter individualista como igualdade e dignidade, principalmente. Foram analisados os
valores que fundamentam o perfil profissional dos advogados e, entre eles, destaca-se a
malícia, como aquele valor que determina as mudanças de linguagem dos estagiários e
que permite articular, na representação, valores compartilhados com os usuários. Da
mesma forma, procurou-se ressaltar a importância de que os valores identificados não
fossem desconectados do seu próprio contexto de enunciação. Por tudo isto, é possível
dizer que se abarcou um processo complexo de interações entre sujeitos – cliente e
estagiário. Graças a mecanismos como a oscilação de indivíduo a pessoa – e vice-versa
–, onde se condensam outros mecanismos ligados à busca de reconhecimento tanto da
identidade social como da identidade singular do sujeito, cliente e estagiário conseguem
dialogar tendo como base valores que correspondem a movimentos desenhados pelas
trajetórias entre holismo e individualismo.
Da mesma forma, espero ter demonstrado que a partir de uma minima
ethnograhica, como a consulta jurídica, podem ser problematizadas questões centrais da
Antropologia. De fato, poderíamos contextualizar a integração dialógica dos valores que
ocorrem no Escritório Modelo através da divisão tradicional/moderno, mas minha idéia
é justamente a de evitar enquadrar o que foi observado em tal dicotomia, tendo em vista
que esta reproduziu uma profunda divisão de dois universos nas pesquisas em contextos
rurais, por exemplo. No fundo, minha inquietação, que permanece como uma questão
aberta, é a de refletir sobre algumas “ataduras” da Antropologia ante a apreensão de
fenômenos que não podem ser classificados estritamente à luz dessas dicotomias. É
também neste ponto onde oponho os dois autores que inspiraram idéias básicas desta
dissertação: Geertz
60
e Dumont.
60
Na entrevista realizada por R. Handler (1991:612), Geertz diz que, atualmente, a Indonésia empreende
um batalha interna pela auto-representação e existem três temas polêmicos centrais: o conflito entre Java
e outras ilhas, a oposição high culture-low culture e a oposição moderno-tradicional. Estes são os eixos
que o autor considera fundamentais na política cultural e na política em geral da Indonésia, mas me
atreveria a dizer que é uma constante em sua obra, visto que em Negara (Geertz, 2000) também se
explora a questão da autonomia política através da congruência não sistemática de
desa
e
negara
que,
Da minha perspectiva, o conceito de ideologia de Geertz poderia ser entendido
como uma parte do conceito de Dumont, que é muito mais amplo e facilita o trabalho de
comparação. Por quê? Para Geertz, a ideologia é um sistema simbólico, mas difere das
orientações culturais gerais – ou tradição – e também se diferencia das orientações
pragmáticas – ou religião. Na minha opinião, Geertz é claro no contraste dos três
conceitos, apesar de chegar a separá-los, tanto que fica difícil vê-los como instâncias da
vida social que estão estreitamente inter-relacionadas. No conceito de Dumont, e a
respeito da explicação da ideologia holista no sistema de casta da Índia, a religião
englobaria o político, mas jamais poderia opor-se teoricamente ao conceito geral de
ideologia; o que a religião faz em determinada ideologia é definir se o tipo de hierarquia
é puro ou não.
Em Homo Hierarchicus (1997) [1977], Dumont diz que o problema da casta, por
muito tempo, foi enunciado usando a oposição essência religiosa–essência social. Para
ele, o princípio ideológico do sistema de castas é a oposição puro-impuro, e a noção de
pureza funda o estatuto – e a própria hierarquia da pureza engloba seu contrário. Em
outro fragmento do texto, Dumont diz que embora a oposição puro-impuro seja ritual e
ritualista, a forma ideal da hierarquia – hierarquia pura – aparece quando ocorre a
separação estatuto-poder, sendo o poder inferior ao estatuto – o rei se subordina ao
sacerdote. Não obstante, para que a hierarquia atue separando, é necessário que o poder
seja inferior ao estatuto; digamos que a hierarquia é pura unicamente quando há uma
precedência da religião sobre o político e sobre o social. Assim, poder-se-ia dizer que
um estado secular, mas não estritamente individualista, está fundamentado em uma
hierarquia de tipo puro que se manifesta na classe social, por exemplo. Como conclusão,
parece que, na visão de Dumont, o holismo requer uma base religiosa englobante, o que
não descarta a presença da religião em ideologias de caráter individualista. Esta
discussão lembra o que foi estabelecido por Dumont (1997) [1977] em relação à análise
de Tocqueville sobre várias democracias, onde afirma que uma democracia
individualista não é viável a não ser por sua condição de estar englobada em uma
ideologia de um tipo mais tradicional. Isso seria o que acontece na democracia norte-
americana, onde ocorre uma aliança entre o espírito da liberdade e o espírito da religião,
e onde o poder parece ser edificado como religião e englobado pela religião. Por
sintomaticamente, Geertz se esforça em esclarecer que não devem ser pensadas como categorias
contextualizadas na divisão rural-urbano, mas que, em todo caso, poderiam explicar historicamente
particularidades de processos de modernização mais recentes.
oposição, estaria o caso do “fracasso” da democracia na França, onde há um divórcio
entre homens religiosos e homens apaixonados pela liberdade e onde a igualdade é,
antes de qualquer coisa, um ideal introduzido na política.
Por sua vez, Geertz (1996) [1964] considera que a ideologia oferece imagens de
processos políticos e nasce de uma perda de orientação ou de uma incapacidade de
compreender responsabilidades e direitos públicos. É como se relacionasse a ideologia
com o surgimento de estados autônomos politicamente e onde o exercício da política
está separado do domínio da religião. De certo modo, situa a ideologia no campo das
variações que contempla a definição de Dumont, pois esta abarca as possíveis
oscilações e trânsitos entre os dois grandes pólos ideológicos – individualismo e
holismo –, onde é evidente que podem ocorrer processos de mudança e modernização,
mas onde também podem permanecer valores de índole religiosa, por exemplo. Não é
que Geertz deixe de fora a questão dos valores, simplesmente não aprofunda nisso, mas
não está longe de algumas idéias de Dumont, quando garante que a ideologia pode ser
entendida também como uma dimensão justificativa e apologética da cultura que está
interessada em estabelecer estruturas de crença e valor. Da mesma forma, quando cita
exemplos como o da Indonésia, reconhece que os valores e os sistemas cognitivos
mudam e entram em conflito, mas também é enfático em afirmar que nessas situações
de conflito aberto com a modernidade é quando certos grupos buscam formulações
dogmáticas e esquemáticas do bem político, ressaltando a importância da divisão
tradicional-moderno para estudar a ideologia.
Dumont (1997) [1977] também explora a divisão entre sociedades tradicionais-
sociedades modernas, mas sua visão é muito mais complexa, visto que há uma distinção
de dois planos, o dos fatos e o do pensamento. As sociedades tradicionais justapõem
identidades particulares no plano dos fatos, enquanto vêem a totalidade coletiva no
plano do pensamento; por sua vez, as sociedades modernas acentuam no conjunto no
nível dos fatos, mas pensam a partir do indivíduo no plano do pensamento.
Contrariamente a Geertz, a definição de ideologia de Dumont abarcaria a oposição
tradicional-moderno, o que é muito mais evidente quando vai analisar o individualismo.
Já em Homo Hierarchicus, Dumont (1997) [1977] estava tratando o problema da
mudança e da introdução de valores característicos do individualismo; isto explica a
importância atribuída ao “indivíduo fora do mundo”, aquele que abandona a sociedade e
renuncia a um papel concreto dentro dela, assumindo outro que é ao mesmo tempo
universal e pessoal. A seita que propaga a religião individual na Índia – a seita dos
renunciantes – relativiza valores de casta e, assim, a pureza, por exemplo, é negada
diante da igualdade. Não obstante, como diz Dumont (1997 [1977]: 266): “(...) a adesão
a uma religião monoteísta e igualitária não é suficiente para fazer (...) desaparecer
sentimentos profundos sobre os quais repousa o sistema de castas”. Para Dumont (1977
[1977], a introdução da idéia de igualitarismo no sistema de castas produziu a passagem
da estrutura para a substância ou uma substancialização da casta, isto é, a casta começou
a prover uma série de interesses individualistas; no entanto, segundo este autor, a
inserção de um subconjunto igualitário no nível jurídico-político não necessariamente
altera o quadro hierárquico global. Outro aspecto que merece ser destacado, e que foi
uma idéia que contribuiu na concepção desta dissertação, é que Dumont esclarece a
diferença entre mudança dos valores e a mudança como valor, este último é
fundamentalmente moderno e remete a um conceito de hierarquia linear que tem como
meta a ascensão social e exagera o alcance da própria mudança. Optei por não ver o
Escritório Modelo como um espaço de mudança ou onde se transmitem valores
“modernos” porque era justamente reduzir o potencial de análise dos diálogos in situ,
sublimar a oposição moderno-tradicional diante de outros conceitos com um alcance
explicativo maior e perpetuar a noção de hierarquia linear.
Agora voltemos a Geertz (1996) [1964], que anuncia desde o início do texto “A
ideologia como sistema cultural” que sua pretensão não é a de ver a ideologia
unicamente como um sistema ordenado de símbolos culturais, mas com relação a
determinados contextos culturais particulares. É por esta razão que fala de ideologias no
plural e, assim, parece estar esboçando o que Ricoeur (1985) chama – a propósito do
artigo de Geertz – ideologia como integração ou identidade; no entanto, o texto dá um
giro quando, a partir da exposição de exemplos como o da Indonésia, o autor começa a
ver a ideologia com relação a processos políticos específicos e, por essa razão, afirma
que ela nasce de uma perda de orientação ou de uma incapacidade de compreender
direitos e responsabilidades. Aqui, o que está fazendo é falar da ideologia atada a um
mapa particular de uma realidade social problemática, isto é, as crises dos novos
estados. De acordo com Burke, nas sociedades tradicionais o papel da ideologia é
marginal, enquanto nas sociedades que transitam para a modernidade seu papel é
fundamental para criar e consolidar conceitos de autoridade. Parece-me que Geertz está
dizendo que tais conceitos não existem em sociedades tradicionais, à medida que não
precisam de legitimação ideológica porque, de certa forma, estão abarcados ou pela
tradição ou pela religião. Além de reduzir o potencial de comparação entre diferentes
sociedades ou entre grupos que possuem conjuntos de valores diferenciados, mas que
interagem, também deixa no ar outra pergunta: será que a ideologia, como integradora e
propulsora da identidade, remete exclusivamente a sociedades que pretendem adotar o
modelo estado-nação?
Em um texto anterior, Geertz (1996b) [1963] analisa alguns casos de
reconstrução de nações jovens em processo de modernização, como é o caso da Índia,
Marrocos, Líbano, Nigéria, Malásia e Birmânia. O projeto de modernidade destes países
se fundamenta no que Geertz chama de “apegos primordiais” – língua, raça, parentesco,
religião e costumes –, elementos que pertencem a uma ordem civil que se opõe à
integridade civil fundamentada em sentimentos civis. A questão é que os apegos
primordiais são apresentados como impedimentos comunalistas para o desenvolvimento
de um projeto moderno, próprio de uma ideologia individualista, nos termos de
Dumont. Neste caso, o que conseguiu Geertz (1996b) [1963] foi evidenciar as diferentes
formas de ser moderno – algo próximo aos híbridos
61
de que fala Dumont – através da
exposição de vários processos de naturalização do ser moderno, embora não tenha
deixado de estar limitado por opor tais fenômenos à tradição.
Na minha opinião, o mérito de Dumont está em ver a ideologia não como algo
estático, internamente homogêneo, nem como um aspecto externamente isolado, mas
em chamar a atenção sobre a possibilidade de pensar em uma longa duração os valores
centrais para determinada sociedade (Gringrich, 1998), sem apelar a um excessivo
particularismo, como poderia fazer Geertz. Para Dumont, os valores articulam os
conteúdos das relações sociais de diferentes sociedades (Leirner, 2003), mas dispõem
tais relações em níveis diferenciados. Falar da hierarquia como englobamento do
contrário permite pensar que em toda sociedade, que pode estar mais próxima a algum
dos dois pólos ideológicos, há sempre um componente ideológico e um componente
residual. É dessa maneira que se produz um esquema de sucessivos englobamentos que
constituem relações hierárquicas (Leiner, 2003). Esta seria outra forma de explicar o
comportamento contextual dos valores – individualistas e holistas – durante a
representação pública, tanto de estagiários como de clientes.
61
Aqui vale a pena considerar o seguinte fragmento de “A ideologia como sistema cultural”, onde Geertz
(1996 [1964]: 197) fala de um sincretismo do pensamento indonésio: “Lo que los remplazó es algo muy
parecido al viejo esquema del centro-ejemplar. Sólo que se funda en una base doctrinaria consciente y no
en una convención religiosa instintiva, forjada en el idioma del igualitarismo y progreso social, más que
en el de la jerarquía y la grandeza de los patricios (…)”. [O que os substituiu é algo muito parecido ao
velho esquema do centro-exemplar. Só que se funda em uma base doutrinária consciente e não em uma
convenção religiosa instintiva, forjada no idioma do igualitarismo e do progresso social, mais que no da
hierarquia e da grandeza dos patrícios (...)]
As interações que ocorrem no Escritório Modelo Rural de Fredonia podem ser
entendidas a partir de vários enfoques; desde uma perspectiva tradicional e enfatizando
o tema do camponês, poderia ser pensada como fazendo parte de um trânsito do
tradicional ao moderno e, em termos mais discutíveis, a questão poderia se reduzir às
oposições rural-urbano, campo-cidade. O problema com essas categorias e pares é que,
geralmente, são usados como equivalentes. Justamente, a leitura crítica que faço de
Geertz me leva a pensar até que ponto a oposição tradicional-moderno – mesmo que
esteja enquadrada em um tema mais amplo como o da ideologia – dificulta pensar
problemas etnográficos concretos de uma perspectiva comparativa, demandando uma
recomposição teórica dos marcos dos quais os vemos. Tal oposição, em minha opinião,
pode ser entendida como formulada desde uma perspectiva individualista que limita a
análise de concepções culturais que marcam diversas direções quando entram em
conversação. Minha visão coincide com a de Herzfeld (2004) quando analisa o
fenômeno da cultura e ética; segundo este autor, os discursos essencializados tomam a
cultura como posse e condensam a idéia de um conjunto universal de valores e, por isso,
a tradição pode ser vista como uma invenção modernista. Desta maneira, a ironia da
tradição é que esta só existe em relação ao conceito de modernidade.
Os diálogos entre advogados – estagiários – e usuários fazem parte de interações
complexas e, por isso, não podem ser analisados apelando a categorias como tradicional
e moderno, ou pensando na hierarquia como estritamente ligada ao poder político –
como faz Geertz e não Dumont –, nem sequer pode-se pensar em termos de fluxos
contínuos e descontínuos entre o tradicional e o moderno. O conceito de ideologia de
Dumont permite entender esse tipo de interação porque ali é possível reconhecer que a
combinação de tradições nunca é sistematicamente isolada. É exatamente Dumont
(1997) [1977] quem adverte que a vida nas cidades, em muitas ocasiões, continua sendo
rural em seu conteúdo e em seu espírito; é interessante que construa a idéia dessa
maneira e não dando maior ênfase às influências do urbano no rural, como essa questão
foi colocada tradicionalmente. O trabalho dos estagiários de Direito em Fredonia não
pode ser entendido como a abertura de um mundo particularista e tradicional a
determinadas concepções modernas; exatamente porque, ao mesmo tempo em que há
rupturas, também há continuidade de idéias e valores que se manifestam em
comportamentos que são, a primeira vista, discrepantes.
O pesquisador pode fazer uma identificação de valores e idéias, e pode isolá-los
usando holismo e individualismo como os dois grandes sistemas ideológicos, mas
considerando que a inter-relação entre tais conjuntos toma vários caminhos, trajetórias
diferentes. Essa é, em linhas gerais, a proposta que está contida nesta dissertação. Como
já disse, durante a própria consulta jurídica é possível ver como os atores envolvidos
apelam a combinações de elementos de diversas tradições, atuam como “pessoas” e
indivíduos simultaneamente, e se apresenta uma oscilação entre a pessoa – personagem
social, que responde a um determinado status – e o indivíduo, dissociado de seu grupo
62
.
Isso demonstra que não ocorreu um trânsito definitivo da honra para a dignidade, que
foi catalogado por vários autores (Berger, 1983; Taylor, 1994) como uma das marcas
dos sistemas democráticos “modernos”. Espero ter deixado claro que o processo não é
tão simples como dizer que os estagiários desconhecem os valores hierárquicos através
dos quais os clientes atuam, falam e pensam, já que sabem usar o conhecimento de tais
valores e a forma como operam localmente e, durante a encenação, é uma das metas do
treinamento de um advogado com êxito. Tampouco se pode dizer que os advogados
transmitem de uma forma estereotipada idéias de valores como dignidade e igualdade; o
que quero dizer é que a representação dos estagiários também pode ser vista à luz de
uma sobreposição de valores, entre aqueles que tendem pelo acesso de todos os
cidadãos à justiça em igualdade de condições e aqueles que apelam durante a interação
com os usuários. O estagiário se insere nas hierarquias sociais da região e seu exercício
como advogado também fica, em boa parte, sujeito a elas e aos valores que englobam
determinados tipos de relação social. É por isso que costumam ocorrer fenômenos como
a negação momentânea dos direitos, a infantilização de usuários analfabetos e a cautela
diante de determinados personagens sociais como o capataz. Por outro lado, os clientes
também clamam por singularidade, a partir da narração de experiências individuais que,
por momentos, costumam dissociar-se de experiências coletivas do grupo a que
pertencem.
Embora da perspectiva de Dumont as sociedades tradicionais ignorariam
igualdade e liberdade como valores, enquanto estes seriam valores próprios da
sociedade moderna individualista, onde o indivíduo é edificado como valor, é
necessário considerar o esclarecimento de Duarte (1986), que diz que a ideologia
igualitária não implica individualismo. De fato, poder-se-ia afirmar que o
individualismo opõe-se ao holismo em um determinado nível, mas em outro faz parte
dele. Duarte (1986) está preocupado com a presença diferencial da ideologia
62
Há que se reconhecer Dumont como o responsável por uma relativização da noção moderna de pessoa
graças a sua definição de hierarquia.
individualista em sociedades modernas, estudando especificamente o caso da cultura
trabalhadora. O problema que eu estou levantando é similar, mas o traduzo como a
presença diferencial de valores holistas no Escritório Modelo de Fredonia, um espaço
criado para estimular valores próprios do individualismo como liberdade, igualdade e
dignidade, o que – na minha opinião – é radicalmente diferente de buscar rupturas entre
o tradicional e o moderno.
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