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Carmen da Silva: nos caminhos
do autobiografismo de uma
“mulheróloga”
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KELLEY BAPTISTA DUARTE
Carmen da Silva: nos caminhos do
autobiografismo de uma mulheróloga
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras
Mestrado em História da Literatura da
Fundação Universidade Federal do Rio
Grande, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Letras.
Orientadora: Prof.ª D.
ra
Nubia Jacques
Hanciau
Rio Grande
Julho 2005
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Dedico este trabalho aos meus pais, Eliza e Oscar, e meu irmão, Klei,
por quem tenho amor e imenso orgulho.
Agradecimentos
Esta dissertação representa para mim a escolha por um caminho, talvez
o mais difícil a percorrer: a busca do saber. Quero continuar esta caminhada,
mesmo sabendo que jamais chegarei ao final. No longo percurso que ainda me
espera, quero poder encontrar pessoas amigas que me estendam a mão,
assim como estas a quem carinhosamente agradeço:
À Sylvie Dion, professora e amiga querida que me iniciou na pesquisa
científica, dando-me a chance de começar a trilhar este caminho;
Ao Prof. Carlos Baumgarten, pessoa admirável que me instigou com
seus elogios e suas “alfinetadas” (construtivas) a aprofundar minhas idéias;
Ao Prof. Artur Vaz, que sempre me incentivou e contribuiu para este
estudo;
Aos queridos amigos da FURG, do CLE, em especial as queridas Denise
Dumith e Daniela Espíndola, pelo forte apoio recebido;
À Maria Alice Espíndola (in memoriam), pelos ensinamentos, pela
“herança recebida” (CLE), a quem serei sempre grata;
Meu agradecimento especial a duas pessoas especiais:
Nubia Hanciau, pessoa singular, querida professora e amiga que sempre
me inspirou pelo seu conhecimento e pelo exemplo de dedicação ao trabalho.
Obrigada por ter me confiado a “Carmenzinha”; por ter respeitado meus limites;
por ter aceitado minhas opiniões e idéias.
Lauro Leal, meu noivo e amigo, que se mostrou incansavelmente
tolerante e sereno diante de meus momentos de conflito. Agradeço o amor, a
paciência e as palavras de conforto nas horas necessárias.
“Nasci sob os melhores auspícios, filha legítima de boa família.
Como costuma acontecer nos lares onde há comida abundante e
papai médico, saí gordinha, sadia, com um par de bochechas
rosadas que exerciam absoluto fascínio sobre as ternas comadres
da vizinhança. Só me livrei dos beliscões e dos benza-a-Deus
quando aprendi a botar a língua para escandalizar e afugentar as
comadres. Acredito que essa aprendizagem espontânea e precoce
já prenunciava alguns de meus futuros desafios e rebeldias”.
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................7
RÉSUMÉ ............................................................................................................8
1 –
INTRODUÇÃO..............................................................................................9
2 – CARMEN DA SILVA ...................................................................................18
2.1 –
Cruzamento de fronteiras.........................................................................20
2.2 –
Repatriamento: uma identidade híbrida....................................................31
2.3 –
Caminhos para uma escrita feminista ......................................................35
3 –
HISTÓRIAS HÍBRIDAS DE UMA SENHORA DE RESPEITO (1984)
A narrativa do eu nos prenúncios do fim.................................................42
3.1 –
Autobiografia declarada............................................................................45
3.2 – Autobiografia de gênero feminino.............................................................54
4 –
SANGUE SEM DONO (1964)
A narrativa do eu nos recônditos da vida................................................78
4.1 –
Diálogos de uma escritura engajada........................................................79
4.2 –
Autobiografismo implícito..........................................................................88
4.3 –
Autobiografia, romance autobiográfico ou autoficção?.............................93
4.4 –
Inovação na produção de gênero feminino...............................................99
4.5 –
Escrita da agentividade...........................................................................104
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................110
REFERÊNCIAS ..............................................................................................117
RESUMO
A feminista rio-grandina Carmen da Silva (1919-1985), mais reconhecida no
âmbito jornalístico, tentou consolidar o talento de escritora por meio de sua
produção literária. O romance Sangue sem dono (1964) apresenta parentesco
íntimo com a narrativa autobiográfica e revela a influência da feminista Simone
de Beauvoir. As adversidades, as barreiras e os preconceitos que Carmen da
Silva enfrentou na sociedade rio-grandina serão relatados na autobiografia
Histórias híbridas de uma senhora de respeito (1984). Ao considerar o
autobiografismo prenunciado em Sangue sem dono, constata-se que a
escritora iniciou sua produção literária sob os novos parâmetros da escrita
feminina. A crítica literária canadense contemporânea contribuirá para se
comprovar a possibilidade de revisitar a produção de Carmen da Silva. Esta
pesquisa propõe recuperar sua trajetória de vida, a partir da análise das
“narrativas do eu”, e trazer à luz a escritora rio-grandina no âmbito da
academia.
RÉSUMÉ
La féministe Rio-Grandine Carmen da Silva (1919-1985) surtout reconnue
dans les milieux journalistiques, tente de consolider son talent d’écrivain par le
moyen de sa production littéraire. Le roman Sangue sem dono (1964) présente
un rapport intime avec le récit autobiographique et révèle l’influence de la
féministe Simone de Beauvoir. Les adversités, les barrières et les préjugés que
Carmen da Silva a affronté dans la société rio-grandine seront relatés dans
l’autobiographie Histórias híbridas de uma senhora de respeito (1984).
Considérant le récit autobiographique annoncé dans Sangue sem dono, nous
ne pouvons que constater que l’écrivain a commencé sa production littéraire
sous les nouveaux paramètres de l’écriture féminine. La critique littéraire
canadienne contemporaine contribura ici à revoir la production de Carmen da
Silva sous cet angle. Cette recherche se propose de récupérer la trajectoire de
vie de l’auteure à partir des «résit du moi» tout en dévoilant une écrivaine rio-
grandine oubliée des milieux académiques.
1 – Introdução
A produção literária da rio-grandina Carmen da Silva (1919-1985) é
marcada pela preocupação com questões político-ideológicas, em especial
aquelas que concernem à mulher brasileira. Ela foi uma das pioneiras de sua
geração a ousar falar publicamente, por meio de seus textos, do problema da
opressão feminina e do comodismo de algumas mulheres que optavam por
uma vida matrimonial em total dependência. Logo, o conjunto de sua obra
desempenha um papel importante na conscientização e na mudança de
pensamento de várias gerações.
De acordo com o Dicionário mulheres do Brasil, a primeira onda do
feminismo brasileiro é marcada pela luta do direito ao voto, que ocorre no final
do século XIX e início do XX. A segunda onda surgiria nos anos de 1970, para
então marcar o feminismo contemporâneo, que se apoiava principalmente nas
idéias de Simone de Beauvoir, expressas em seu livro O segundo sexo (1949).
O primeiro grupo feminista de que se tem notícia foi organizado em São Paulo
em 1972, formado notadamente por professoras universitárias recém-chegadas
dos EUA (Women’s Lib) e da Europa (Mouvement pour la Libération des
Femmes), onde o movimento de mulheres havia explodido com muita força
(Schumaher; Brazil, 2000). Carmen da Silva, quando regressa à pátria após ter
vivido aproximadamente vinte anos fora do Brasil, é portanto uma das
vanguardistas da segunda fase do feminismo, ao iniciar seu trabalho isolado
e/ou solitário em 1963. Embora seja difícil avaliar o quanto essa gaúcha
influenciou as mulheres de seu tempo, Ana Rita Duarte (2002) afirma que
muitas das primeiras mulheres que participaram e organizaram o movimento
feminista no Brasil o fizeram também por terem lido Carmen da Silva.
Os ideais de libertação e o desejo de mobilizar as brasileiras na luta
contra o pensamento atávico de seu tempo eram propagados por meio dos
artigos que Carmen da Silva escrevia na revista feminina Claudia, que, voltada
à mulher do lar, dirigia-se à dona-de-casa, à mãe-de-família. Paradoxalmente,
é nesse contexto que ela se insurge para influir no pensamento da leitora que,
por tradição moral ou comodidade, encontrava na domesticidade sua única
opção de vida.
Em 2001, Nubia Hanciau, professora titular desta Universidade,
dedicada também aos estudos da mulher, propôs ao CNPq o projeto de
pesquisa intitulado “Carmen da Silva: uma rio-grandina precursora do
feminismo”, no qual atuei como pesquisadora.
Inicialmente, o projeto previa a apresentação da vida e produção de
Carmen da Silva, a partir da análise de Histórias híbridas de uma senhora de
respeito (1984), e estabelecia o contraponto dessa autobiografia com a de
Simone de Beauvoir, Memórias de uma moça bem-comportada (1958). Assim,
instigada e curiosa para descobrir a produção de Carmen da Silva, as leituras
que me eram sugeridas no decorrer da pesquisa levaram-me às obras da
escritora francesa, tornando-se possível estabelecer comparações entre
ambas. Com o levantamento bibliográfico das obras de Beauvoir chegou-se ao
romance O sangue dos outros (1945), que apresenta um título semelhante ao
primeiro romance brasileiro de Carmen da Silva, intitulado Sangue sem dono
(1964). Em uma segunda etapa do projeto, decidiu-se por estabelecer a
comparação entre ambas as obras a partir de elementos intertextuais e
dialógicos que apontam para a influência que a feminista francesa exerce sobre
Carmen da Silva e que serão ressaltados ao longo deste trabalho.
Embora as duas escritoras partam de perspectivas culturais distintas e
contextos sociais diferenciados, tanto Beauvoir como Carmen sustentam o
mesmo projeto: desvelar uma nova visão da mulher enquanto personagem
literária e agente social. Dessa forma, elas se aproximam da afirmação de Ana
Godoy quando esta diz que “a literatura feminina tem sido um importante
espaço de afirmação da mulher como sujeito atuante nas sociedades” (1999:
61).
Na condição de aluna da pós-graduação, optei por continuar o trabalho
de pesquisa iniciado três anos. Por duas vezes consecutivas o projeto foi
contemplado com o prêmio Jovem Pesquisadora, primeiro lugar na Iniciação
Científica. No entanto, mais do que isso, a premiação contribuiu para a
valorização que se opera no estudo da escrita feminina, um dos veios do
Mestrado em História da Literatura da FURG, agora ao promover a leitura das
obras de Carmen da Silva. Outrora ignorada e/ou esquecida em sua
indiscutível atuação militante pelo feminismo brasileiro, ela vem sendo
paulatinamente reconhecida na academia a partir de trabalhos tais como os
que foram e estão sendo realizados no âmbito do referido projeto de pesquisa.
Na graduação, em nossa Universidade, inscrevem-se as primeiras resenhas de
minha autoria: Carmen da Silva, uma escritora feminista avant la lettre (2002);
Sangue sem dono (1964) e O Sangue dos outros (1945), uma questão de
intertextualidade (2003) ambas premiadas. Mais tarde, Beauvoir e Carmen da
Silva: dialogia à luz das relações humanas (2003). A abrangência do projeto,
inscrito no Programa de Pós-Graduação em Letras Mestrado em História da
Literatura –, resultou nos seguintes trabalhos: O melhor de Carmen da Silva
(2003), por Ana Lúcia Milano Olinto; Setiembre: Fuga em setembro, de Carmen
da Silva (2003), por Maria Helena Fuão; Carmen da Silva: protagonista de sua
própria existência (2004), por Jaqueline Koschier; Carmen da Silva: uma escrita
pela agentividade (2004), e Carmen da Silva e a escrita feminina pós-moderna
(2004), os dois últimos de minha autoria. No ano passado foi defendida a
primeira dissertação de mestrado, denominada Uma leitura da ficção e da
história na escrita de Setiembre, de Carmen da Silva (2004), de autoria de
Maria Helena Fuão. A coordenadora do projeto, Prof.ª Nubia Hanciau, publicou
por sua vez Carmen da Silva: episódios históricos e literários da vida de uma
exilada (2003) e O conceito de entre-lugar e as literaturas americanas no
feminino (2003), onde focaliza a obra da escritora rio-grandina.
Uma das propostas nesta dissertação é a de traçar a trajetória de vida
dessa mulher, Carmen da Silva a “Carmenzinha-do-doutor Pio”, como era
conhecida em Rio Grande –, que foi educada conforme as tradições
burguesas, e buscou pela “fuga” da cidade natal sua realização pessoal e
profissional, escapando assim do inevitável destino que lhe era reservado o
casamento. Essa mulher/escritora vislumbra outras possibilidades para “existir”
além do matrimônio e testemunha, no registro de sua vida e experiências, estar
à frente do seu tempo. Moderna ou pós-moderna, ela luta com a arma do
trabalho contra uma série de [pré]conceitos instaurados e arraigados no
entorno do mundo feminino. A forma como os enfrenta com a arma do texto, no
âmbito da ficção e nas relações entre ficção e realidade social, histórica,
cultural, econômica e política, tendo como cenário o país em que se re/insere
após transitar entre fronteiras do Prata (territoriais, lingüísticas, culturais) será
igualmente objeto de investigação nesta dissertação.
Durante o trabalho na revista Claudia, Carmen abordou diversos temas
tabus: o machismo, o casamento, a infidelidade, o sexo, a maternidade, o
aborto, entre outros. No entanto, a abordagem ou tópico recorrente em seus
artigos sempre foi a luta contra os preconceitos, a tradição, os medos, a rotina
e o acomodamento mental, sempre em defesa do empenho em atingir a
autonomia do pensamento e da ação, do esforço para alcançar uma autêntica
liberdade. Foi ela uma das acirradas combatentes da opressão feminina e da
comodidade de algumas mulheres que optavam por uma vida de total
dependência emocional e financeira. Seus ideais de libertação e seu desejo de
mobilização das brasileiras na luta contra o pensamento retrógrado,
manipulado, eram veiculados por meio dos artigos que escrevia naquela
revista.
De um modo geral, Carmen da Silva atribuía a causa da insatisfação das
mulheres ao fato de elas não serem donas de suas vidas, ou seja, de terem
uma existência traçada, destinada ao casamento, ao lar, à maternidade e à
domesticidade. Ela denuncia esse tipo de existência gerenciada pelos homens
que, parte interessada, na maioria das vezes suspeita, são os autores das leis
que regem os direitos, os comportamentos, e limitam a ação social da mulher.
A legislação e a rígida moral que lhes impõem normas, limites, repressões e
tabus de toda ordem, impede as mulheres de também serem donas de seu
próprio corpo e de sua sexualidade.
A frase bordão que sintetiza a militância de Carmen da Silva promove a
idéia de as mulheres assumirem o papel de “protagonistas e não espectadoras
da própria existência” (Silva, in Civita, 1994: 17). Protagonizar a vida, segundo
a escritora, consiste em toda mulher optar, resolver e conquistar as coisas por
ela mesma; aceitar-se sem ser cúmplice de seus defeitos e, ao mesmo tempo,
lutar contra as próprias falhas e pontos fracos, sem tomá-los como deficiências.
Incisiva na defesa dos ideais que preconiza, Carmen da Silva perseguiu
“com garra” o objetivo nada modesto de modificar a mentalidade da sociedade
na qual vivia. Incitava para tanto suas leitoras a tomarem consciência de si
mesmas e da própria condição de vida, pois acreditava que a solução para o
problema era “sacudir” a passividade, desprender-se de falsos rótulos e agir,
ou seja, definir-se, assumir-se, deixar de ser um simples “barco à deriva” para
ser protagonista da própria vida (id.: 19). Carmen via o mundo tal qual uma
planície lisa, onde cada uma deveria construir o edifício de seus ideais e de
suas aspirações. A própria palavra “construir” trazia em seu bojo para ela a
idéia da tarefa, sendo oposta à atitude passiva de esperar que as coisas
acontecessem naturalmente.
Ao sublinharmos a temática de sua produção literária acerca da
problemática feminina, a denúncia da não-inserção da mulher em discussões
de cunho político-social, é possível afirmar que Carmen da Silva se inscreve
em uma literatura cujos moldes apontam para um novo paradigma da escrita
de gênero feminino. Isso se deve ao fato de ela apresentar uma narrativa que
demonstra preocupação e envolvimento com as questões sociais de modo
geral, diferenciando-se do estereótipo daquelas que relatavam problemas
íntimos e/ou temas domésticos femininos. Tais características permitem que
sua produção seja relida na perspectiva da contemporaneidade, o que
possibilitará a ampliação dos horizontes da crítica literária brasileira, ao mesmo
tempo em que poderá trazer à luz e ao nosso contexto produções literárias de
outras mulheres que, assim como ela, mantêm-se desconhecidas ou muito
pouco trabalhadas no âmbito da academia nacional.
Por outro lado, ao lidar com um temário inovador nos estudos literários,
tradicionalmente caracterizados pelo predomínio da autoria masculina, Carmen
da Silva também estaria subvertendo a convenção canônica, na medida em
que comprova, pela qualidade de sua produção, que o sucesso de uma obra
não se deve ao fato de sua escrita ser ou não masculina.
No estabelecimento do recorte da produção da autora rio-grandina para
a composição do corpus desta dissertação, selecionou-se o romance Sangue
sem dono e a autobiografia Histórias híbridas de uma senhora de respeito.
Além do fato de Sangue sem dono ser o registro de suas expectativas no
retorno ao seu Brasil, marcando a iniciativa de consolidar uma carreira artística,
e Histórias híbridas, o balanço final das conquistas, espaço textual da
revelação dos obstáculos enfrentados ao longo da vida, a escolha dessas duas
obras justifica-se pelo fato de elas conterem elementos autobiográficos que se
assemelham e/ou complementam e que são fundamentais na recuperação da
vida e obra de Carmen da Silva. A característica autobiográfica que se aponta
nos referidos romances está intrinsecamente ligada à afirmação de uma
identidade feminina, bem como de uma literatura de produção feminina, que
tentam ganhar o reconhecimento dominando um gênero literário o
autobiográfico –, que fora essencialmente de domínio masculino, mas que é
usado por Carmen da Silva como um fórum de manifestação e protesto
feminista.
Na estrutura desta dissertação propõe-se, na tentativa de comprovar o
anunciado, a inversão cronológica na apresentação/análise das duas obras,
pois se acredita que é possível identificar o que é supostamente real e
ficcional em Sangue sem dono, e compreender a intencionalidade de Carmen
ao construir seu romance com elementos do autobiografismo, depois de
conhecer o percurso de vida da escritora narrado em suas Histórias híbridas. É
evidente que uma obra autobiográfica pode ser questionada quanto ao seu
grau de veracidade. No entanto, ao ir além na recuperação da produção da
escritora, igualmente se leva em conta o depoimento de familiares, as
entrevistas dela própria concedidas a jornais e revistas e registros históricos.
Apesar de ter publicado alguns contos, artigos, novelas, peças de teatro
e um romance de sucesso no período em que viveu no Uruguai e na Argentina,
e de ter sido premiada com a Faixa de Honra da Sociedade Argentina de
Escritores, Carmen sofreu com o fato de ser estrangeira, com a não-aceitação
da autoria feminina de suas obras e, principalmente, ao retornar ao Brasil,
enfrentou a inércia comodista de muitas mulheres brasileiras. Foi na produção
literária que encontrou espaço para instigá-las, incitá-las à luta, e, assim
operando, foi construindo a afirmação de sua(s) identidade(s) de mulher-artista.
Confirma-se assim a afirmação de Ana Godoy de que “toda literatura constrói
imagens, idéias, histórias, personagens [e] mais do que isso, constrói
identidades” (1999: 61). Pois quando em suas reminiscências Carmen da Silva
analisa sua condição de mulher, ela certamente está investigando a condição
de outras mulheres, não notórias, as distanciadas dos meios midiáticos e das
peripécias do exercício do poder.
A escolha de um referencial teórico eminentemente canadense, da
escrita feminina de expressão francesa, está ligada à minha trajetória de
acadêmica e pesquisadora, sempre voltada aos estudos da francofonia. Por
outro lado, considerou-se importante nessa seleção bibliográfica a posição de
ponta do Canadá no que diz respeito aos estudos feministas e de gênero
feminino que podem ser aproximados da postura vanguardista adotada nos
anos de 1960 no Brasil pela gaúcha Carmen da Silva, embora menos
preocupada com teorizações formuladas por algumas poucas acadêmicas do
seu tempo, bem mais voltada à militância em prol da transformação do
pensamento retrógrado estabelecido.
Assim, na esfera deste trabalho que propõe apontar Carmen da Silva
como precursora de uma produção feminina e feminista inovadora, serão
relacionadas, na tentativa de sustentá-lo, teorias a respeito do gênero
autobiográfico, que vão desde um estudo mais clássico/tradicional, no qual
desponta o incontornável Philippe Lejeune (1975), que estabelece três
categorias narrativas embora apenas uma, em sua concepção, seja
essencialmente autobiográfica –, estendendo-se à América do Norte, onde
encontram-se teorias mais recentes elaboradas pela crítica canadense, em
sintonia com os tempos que correm, as quais promovem o autobiografismo e
seus subgêneros e ressaltam a narrativa do eu como espaço de auto-afirmação
identitária e de inovação da literatura de gênero feminino. Nesta abordagem,
Barbara Havercroft (2001), Lori Sant-Martin (2002), entre outras, são figuras de
destaque.
No que diz respeito à produção literária de Carmen da Silva e seu
caráter inovador, avant la lettre, a respeito do qual se tem desejado reforçar, se
consideramos que as duas obras em análise podem ser revisitadas à luz de
teorias contemporâneas, ela poderia estar inserida na pós-modernidade
literária, visto que a crítica canadense, ao que se verá, aponta a narrativa
autobiográfica e suas subdivisões como uma das características da produção
feminina pós-moderna.
Contemplar estudos dessa natureza é fundamental para a compreensão
da construção da escrita autobiográfica de Carmen da Silva, que inicialmente
deve observar os caminhos traçados pela concepção tradicional, em que o
sujeito autobiográfico pressupõe uma figura pública a ser reverenciada e
imitada. Mas na verdade, quando Carmen da Silva relata suas experiências de
vida em Sangue sem dono e em Histórias híbridas, ela se aproxima bem mais
da agentividade termo cunhado por Barbara Havercroft para designar as
narrativas em que o relato subjetivo mostra-se propício às mudanças políticas e
sociais do que da narrativa autobiográfica propriamente dita, mesmo estando
tanto o romance quanto a autobiografia enquadrados nos moldes do que
Lejeune define a partir do pacto autobiográfico.
Estudos críticos organizados pelas professoras Eurídice Figueiredo e
Márcia Navarro servirão também de apoio à análise por induzirem a reflexão
quanto à literatura de gênero feminino, outrora considerada inferior, mas que
oferece, na representação de Carmen da Silva, o exemplo de uma escritura
engajada, ligada ao social, ao coletivo, para buscar por meio da literatura
transgredir o status quo, filiando-se à ideologia de luta que propõe modificar a
sólida e enraizada
mentalidade de supervalorização do patriarcado.
Além de transgredir os arcaicos valores proclamados e denunciados em
sua obra, Carmen subverte a tradição hegemônica usando e abusando de uma
ironia crítica bem-humorada, de pinceladas de erotismo para narrar as
experiências pessoais. Esse discurso irônico, constante em sua produção,
entende-se como um instrumento empregado para negar e/ou criticar a
tradição pátria no contexto contemporâneo. Quando afirma que “a cultura pós-
moderna usa e abusa das convenções do discurso” (1991: 15), Linda Hutcheon
refere-se também à ironia, que, para ela, é indissociável do contexto pós-
modernista. O humor em Carmen da Silva apresenta-se como sinal de
vitalidade, uma vez que tal postura situa-se do lado oposto da vitimização.
Quanto ao erotismo literário, o crítico Edilberto Coutinho o como uma
revolução prenunciadora da evolução social. Na seleção de excertos de
romances para ilustrar Erotismo na Literatura Brasileira (1978), o autor não
esqueceu de inserir passagens do romance Sangue sem dono, de Carmen da
Silva.
No que diz respeito ao engajamento literário, característica que demarca
grande parte da produção de Carmen da Silva, o mesmo comprometimento
encontra-se na base das obras da feminista Simone de Beauvoir, cuja postura
social e profissional, inerentes à própria condição de “mulher-agente”, servem
de inspiração e referencial à rio-grandina. Para o estudo da literatura engajada,
a que se recorrerá na análise, será necessário pensar a respeito de sua
conceituação. A proposta de Benoît Denis ao traçar os caminhos do
engajamento virá ao encontro da pretensão desta dissertação, pois ela aponta
a literatura como um dos meios para que ele se realize.
A tentativa de ultrapassar os padrões convencionais da literatura
feminina, do autobiografismo, entre outros, são questões desafiadoras que se
buscará responder com a leitura de Carmen da Silva, escritora que reverte com
sua arte a tradição literária privilegiadamente masculina. As demais leituras
propostas na bibliografia deste trabalho serão complementares às citadas
acima.
Ao explorar conceitos teóricos de autoria canadense contemporânea,
aplicando-os ou usando-os como instrumento para a releitura das obras
autobiográficas de Carmen da Silva, está se pretendendo a valorização da
produção literária da escritora na medida em que todo(a)s aquele(a)s que a
desconhecem serão conduzido(a)s a (re)pensar a respeito do quanto essa rio-
grandina é representativa no panorama da historiografia literária brasileira.
2 – CARMEN DA SILVA (1919–1985)
Meu vocabulário falado é de uma estrondosa falta de recato:
uso todos os termos que ficam-mal-em-boca-de-mulher.
Quanto a habilidades domésticas, levo nota zero:
não gosto, não sei e me recuso a aprender. (...)
Também a mim, como a Drummond de Andrade,
alguém me ensinou a ser “gauche” na vida.
Carmen da Silva (1984, p. 120)
Nascida em 31 de dezembro de 1919, em Rio Grande, extremo sul do
Rio Grande do Sul, Carmen da Silva, originária da “burguesia média” (Silva,
1984: 189) e oriunda de uma família de prestígio na sociedade local, é filha
caçula da porto-alegrense Celina Daniel e do rio-grandino Pio Ângelo da Silva
Filho
1
, este, herdeiro do pai da dedicação e da devoção às causas médicas.
Além de leitora curiosa, desde muito cedo Carmen manifestava sua
precocidade na arte literária: desde os sete anos escrevia obras de teatro, as
quais representava com os amiguinhos; dos quatorze aos dezesseis produziu
algumas poesias e, mais tarde, contribuiria para os jornais locais com algumas
laudas escritas (Diário de Notícias, 31 maio 1964). Sua família, embora
respeitasse e não interrompesse os momentos em que se trancava no
escritório que fora do pai, “munida de termos [garrafas térmicas] de café [...] até
horas relativamente tardias” (id., ibid.), não dava tanta importância a um talento
que se prenunciava, chegando mesmo a chamá-la de “literatona” epíteto,
segundo a escritora, nem um pouco elogioso. Analisando a formação dessa
palavra, é possível entendê-la a partir da junção do radical literat- de literata e o
sufixo -ona, que marca o grau aumentativo e dá à palavra um efeito hiperbólico.
Ambos, radical e sufixo reunidos, além de reforçarem o caráter pejorativo para
qualificar a escritora, revelam a não-legitimação e/ou aceitação da atividade
1
Na ordem cronológica de nascimento, são os seguintes os filhos do casal: Celina Daniel da
Silva (19/11/1905), Maria Pia da Silva (01/7/1907), Pio Ângelo da Silva Neto (23/8/1908),
falecido pouco antes de completar 19 anos; Maria Isabel da Silva (27/01/1912) e Carmen da
Silva (31/12/1919). Cf. Neves, 1989: 96-97.
literária de Carmen da Silva que pode estar na origem de sua não-inserção
no meio leitor preconceito inicialmente manifestado na instância familiar, mas
que se perpetuou no âmbito do domínio público local.
Seu avô, o renomado Dr. Pio, conhecido também como o “Pai dos
Pobres” por seus atos de caridade, retornou a Rio Grande em 1856, após
graduar-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e doutorar-se na
Sorbonne, em Paris, para aqui se dedicar ao combate firme e eficiente do
cólera-mórbus
2
, doença que naquela época espalhou o terror e causou a morte
em grande parte da população rio-grandina (Neves, 1989: 94). Hoje se
perpetua o nome e a história desse ilustre benfeitor na nomenclatura do “Largo
Dr. Pio”
3
, onde se localiza o histórico eucalipto e a Catedral de São Pedro, uma
referência ao Dr. Pio Filho, vulto local também presente na memória rio-
grandina pela hereditariedade de caráter e benevolência.
Embora cercada de grandes homens, carregando o legado de um avô
benemérito e de um pai autodidata, Carmen da Silva, conhecida na cidade
como a “Carmenzinha-do-doutor Pio”, tem a infância e a adolescência
marcadas pelo conservadorismo da burguesia rio-grandina, que determinava o
destino de toda adolescente de seu tempo: ser bem-educada, prendada, para
então “arranjar” um bom casamento.
A presença do pai em sua vida não é descrita na autobiografia Histórias
híbridas de uma senhora de respeito (1984). Provavelmente isso se deve ao
fato de ele ter falecido quando Carmen tinha apenas cinco anos
4
. Mesmo
distanciadas, algumas lembranças são, porém, marcantes. Em entrevista ao
jornal Diário de Notícias, por exemplo, Carmen faz uma breve descrição da
figura paterna: “interessante que guardo dele a imagem de um homem que
acreditava em mim, acreditava no futuro da criança que eu era, com uma
que não era o simples otimismo paternal, mas sim com confiança” (9 ago.
1964).
2
Doença epidêmica e contagiosa transmitida por contágio direto ou indireto (água poluída).O
prognóstico, na maioria das vezes, é muito grave e freqüentemente ocasiona a morte. no
século V a. C. se descrevia essa doença em Atenas; é endêmica na Índia, China e outros
países do Oriente. Cf. Enciclopédia Delta-Larousse, 1963: 6913.
3
Primeiramente nomeada “Praça Dr. Pio”. A atribuição do nome deve-se também ao
reconhecimento da doação desse terreno, pertencente ao médico, para a construção do prédio
que abrigaria a sede dos serviços postais-telegráficos do Rio Grande.
4
Dr. Pio Ângelo da Silva Filho nasceu na cidade do Rio Grande, em 03/7/1878, e faleceu na
mesma cidade, em 27/9/1925.
Em suas memórias, ela dedica poucas linhas à mãe, figura que pode
estar na origem da reflexão a respeito do ostracismo da mulher-dona-de-casa e
da mulher respeitadora da moral e dos bons costumes, e que, na concepção de
Carmen, comprometem a relação mãe e filha e impedem o diálogo aberto entre
elas.
Embora seja a figura materna o primeiro referencial positivo ou
negativo na vida de uma jovem, Carmen revela que seu primeiro “vislumbre
iníquo” (1984: 13) da condição feminina aconteceu muito cedo, ainda jovem, a
partir dos exemplos marcantes de duas adolescentes uma delas, sua amiga
de escola que sofreram privações e punições com a imposição moralista e o
radicalismo da sociedade rio-grandina. Essas duas meninas, cujas histórias
ganham destaque no primeiro capítulo de sua autobiografia, tiveram fins
diferentes: uma se torna prostituta em conseqüência da rejeição social e da
recusa de trabalho por ter saído para divertir-se à noite com alguns rapazes; a
outra se torna uma “senhora-de-respeito” para redimir-se do escândalo que
causou quando foi vista aos beijos com o namorado em praça pública, atitude
considerada imoral. Esses dois acontecimentos, na opinião de Carmen,
aproximam-se levando em conta um único aspecto: ambas passaram a existir
para a sociedade rio-grandina, a primeira por sua queda, a outra por sua
ascensão. E para escapar desses dois caminhos que podiam levar “à
perdição” ou “à salvação” é que Carmen traça, em sua vida, uma terceira via.
2.1 – Cruzamento de fronteiras
O Rio Grande dos anos de 1940 não respondia mais às expectativas
de uma jovem que se tornou mulher aprendendo a rejeitar o título de “rainha do
lar” mas que também fugia dos rótulos de “solteirona” ou “prostituta”. Foi com a
morte de sua mãe, em 1941, que Carmen, aos 21 anos, solteira, tendo
passado “ilesa” pela idade do casamento, “fecha os olhos, tapa o nariz e
mergulha no mundo” (Silva, 1984: 43), optando por uma vida boêmia e
independente na capital do Uruguai.
Essa escolha não significa, porém, a rejeição ao seu país. Passados
quarenta anos da tomada de decisão de sair do Brasil, ela vai registrar no texto
autobiográfico, em tom confessional, o desejo que teve de ir para o Rio de
Janeiro. Explicará sua atitude colocando-se no papel do leitor e respondendo à
pergunta que certamente ele formularia: “Por que o Uruguai? Simplesmente
porque não me alcançava a audácia para tentar o Rio de Janeiro. O Rio era o
desconhecido total, outro universo, outro clima, outros hábitos [...]” (id., ibid.).
Ao reforçar sua postura, Carmen aproveita para acrescentar outras
convincentes argumentações: “o Uruguai era próximo, quase familiar, o salto
que não cobria distâncias temerárias nem grandes riscos” (id., ibid.). Além
dessas convicções, da crença de ter feito a escolha certa no momento certo,
ela declara ter-se sentido atraída pela democracia daquele país que facilmente
a conquistara:
O Uruguai dos anos 40 era um belo país democrático, com
excelentes espetáculos de arte e governantes que não tinham
medo do povo. Uma vez, no cinema, ao acender a luz, percebi
que estava sentada ao lado do Presidente da República. Mais
democrático do que isso, se ele me houvesse bolinado (id.:
43).
Irreverência e ironia são marcas textuais relevantes nas citações que se
sucedem, características da escrita de Carmen da Silva. O uso recorrente da
ironia pode aproximá-la da proposta de Linda Hutcheon, que atribui à mulher a
capacidade de usá-la como um meio especialmente poderoso de crítica ou
resistência às restrições patriarcais sociais; ou ainda a possibilidade de ela se
apropriar dessa figura de linguagem “para decodificar em termos positivos o
que o discurso patriarcal como uma negativa” (2000: 57). Considerada por
muitos críticos característica marcante dos trabalhos de mulheres artistas, a
ironia – nem sempre manifesta de forma humorística torna-se um modo
familiar de expressar o protesto contra a exclusão das mulheres no que diz
respeito às estratégias representativas da sociedade patriarcal (Hutcheon, in
Hanciau; Campelo; Santos, 2001: 245). Tanto a escrita como também a
postura de Carmen são reveladoras do recurso de linguagem do qual a
escritora se apropria para ridicularizar e denunciar a hipocrisia das normas
tradicionais da sociedade. Da mesma forma, sua autobiografia pode ser
considerada uma versão parodística bem-humorada (ou de um humor
sarcástico) daquelas autobiografias tradicionais e egocêntricas pela eterna
primazia do “eu” das grandes personalidades masculinas de nossa Grande
História Social.
O referido desejo de ir para o Rio de Janeiro é ainda revelado e
concretizado na construção da protagonista de mesmo nome da autora do
romance Sangue sem dono (1964), cuja grande aventura de infância foi sair da
cidade de interior em que vivia, Rio Grande, para ir com a família para a
“cidade maravilhosa” lugar que a personagem descreve como “a novidade, a
aventura, o prestígio capital” (Silva, 1964: 9).
Enquanto viveu no Uruguai, Carmen levou a vida que idealizava e
sempre quis ter no Rio Grande: sem medo de ser reprimida por suas atitudes,
afinal optara por instalar-se em um país aparentemente liberal. Por isso se
sentia à vontade em freqüentar certos lugares não tão comuns às mulheres, a
tomar atitudes consideradas ousadas, aos poucos ir marcando sua presença e
conquistando seu espaço:
Indo almoçar com os amigos no restaurante da Bolsa de
Comércio, onde a presença feminina era rara e chamativa,
aceitei o charuto que um deles me ofereceu no fim da refeição:
ia perder essa chance? Fui bastante esperta para fumar sem me
engasgar, caprichei no modo de segurar o charuto entre os
dedos de unhas que eu conseguia manter longas e bem
tratadas, apesar dos dois empregos e da máquina de escrever.
Voltei aí várias vezes, consumi certo número de havanas, tornei-
me uma figura notória no restaurante da Bolsa (Silva, 1984: 46-
47).
Embora tenha sido curta essa experiência em Montevidéu, onde residiu
em um apartamento da calle Florida próximo à casa do governo e trabalhou
pela manhã no Comitê para a Defesa Política do Continente e à tarde no
Escritório comercial do Brasil, pode-se depreender do trecho acima que, além
dos dois empregos, ela ainda mantinha uma atividade paralela: a escrita.
Mas foi seguindo o namorado Re que Carmen, dando continuidade
aos avanços territoriais e conseqüentemente às novas conquistas, transfere-se
para a Argentina. Tal mudança é justificada na invocação de dois motivos:
Havia duas boas razões para que eu fosse atrás dele. A
primeira, aliás dupla, eram seus belos olhos que exerciam sobre
mim o mais absoluto fascínio. E junto com os olhos todo o resto
[...]. A outra razão era o emprego vantajoso que ele me oferecia
como subdiretora da firma francesa da qual ele era sócio-titular
na Argentina (id.: 47).
Em Buenos Aires, a escritora vai morar novamente sozinha,
independente, em um pequeno apartamento na calle Córdoba, que também
servia para seus encontros amorosos com René. A adaptação na Argentina foi
difícil. Tratava-se de um outro ambiente, de pessoas que a olhavam com
arrogância e de homens que não deixavam de lançar um galanteio às mulheres
que, como ela, transitavam sozinhas: “nas ruas de Buenos Aires, depois que
escurece, mulher nenhuma transita sem pagar pedágio ao Excelso Garanhão.
[...] Era um ataque maciço, um assalto avassalante e brutal que nada tinha a
ver com galanteria, homenagem, tentativa de conquista [...]” (id.: 38-39).
Para uma capital considerada civilizada e que se orgulhava de parecer
européia, não haveria, em seu entendimento, razão para que as mulheres
fossem impedidas de sair, de ter a liberdade de andar desacompanhadas.
Certa vez, tendo sido abordada com um previsível “Mamita!” – vocabulário
comum aos paqueradores –, Carmen causa espanto no irreverente galanteador
devido à atitude nada comum às mulheres da época de responder à “agressão”
sofrida. Sua costumaz ousadia, movida pela indignação, faz com que
empregue um vocabulário de baixo calão. Possivelmente, segundo o que ela
mesma afirma, essa sua irreverente postura prenunciava o começo de uma
“revolução feminina”:
– “Mamita es la puta que te parió” – [respondi] com ênfase, com
raiva, escandindo as sílabas. O insulto explodiu como uma
bomba. Aquilo era a revolução, as mulherinhas tímidas e
encolhidas punham os manguitos de fora, apropriavam-se do
palavrão, ousavam desafiar Sua Majestade o Macho, iam tomar
a bastilha, guilhotinar, cortar gargantas salve-se quem puder!
O indivíduo recuou siderado: “Señorita, usted no tiene
derecho! gaguejou. [...] Andando nas ruas com modos
corretíssimos eu era tratada como prostituta; xingando com uma
desenvoltura de mulher vulgar, eu passava a merecer respeito,
ser tratada de “señorita, usted”. Agora o intimado era ele, o
feitiço virava contra o feiticeiro e eu triunfante, encarniçada,
tripudiando: Tenho sim! Tenho direito e tenho razão!
Mamãezinha é a puta que te pariu! (id.: 41)
5
.
Quanto à relação que mantinha com René, embora ele fosse casado,
Carmen alimentava sempre a idéia de poderem viver juntos em um futuro muito
próximo. No entanto, passado algum tempo nesse relacionamento que não
lhe parecia promissor, sentiu-se impelida a sair da empresa onde ambos
trabalhavam e a mudar de vida mais uma vez: “Quando a mulher que havia em
mim se decepcionou de todo com René, e o ‘homem’ em que eu me tornara foi
desmascarado, deixei o mundo dos negócios e fui tratar de me virar noutra
freguesia” (id.: 86). Em seguida ela conquista um emprego bastante vantajoso
na Embaixada do Brasil, onde passa a exercer a função de secretária do adido
militar. Paralelamente a essa atividade, atuará como auxiliar dos jornalistas
brasileiros que iam a Buenos Aires em missão de cobertura (Meira, 1960). Na
esteira de tantas mudanças, troca de endereço e passa a morar na calle
Montevidéu em um pequeno apartamento de celibatária.
Foi na capital argentina, onde viveu até 1962, que Carmen da Silva
conquistou um espaço intelectual como escritora, embora limitado. Sua
produção literária surgirá concomitante ao trabalho na Embaixada. Tão logo
que sentiu dominar a língua espanhola, tratou de escrever um conto que
envia para um suplemento literário, cujos colaboradores mantinham
correspondência com ela. Esse conto foi publicado e elogiado pelo titular da
seção, que fez o seguinte comentário: “agudo ingenio, fina ironia, bueno estilo”
(Diário de Notícias, 31 maio 1964). Tratava-se de sua primeira publicação em
espanhol, intitulada “Candombe”, uma versão rioplatense uruguaia do nosso
candomblé, que lhe abria espaço para a criação de outros contos. Dentre os de
sua preferência estão “Domingo” e “Huelga”, o único traduzido para o
português, sob o título de “Greve”. Carmen também destaca: “La risa de Abel”,
conto de cunho psicológico e o que atingiu maior sucesso, e ainda “La cita”, no
qual aborda questões da metafísica (Leitura, 1964: 39).
Raríssimas vezes a escritora menciona ter estudado Psicanálise
6
. No
entanto, quando fala de sua vida, ela propõe uma divisão em duas etapas:
5
Em virtude das transferências e proximidades entre as línguas portuguesa e espanhola,
optou-se por manter todas as citações do espanhol no seu original.
anterior e posterior à psicanálise. Em entrevista à revista Leitura (1964), ela
menciona que após se deixar analisar devido a problemas neurológicos,
conflitos emocionais e insônia, ela quis passar de objeto à condição de sujeito
desse campo que ela considera tão fascinante. Acaba estudando e
especializando-se, e desde então se manteve sempre em contato com grupos
da Associação Psicanalítica (cf. Silva, 1984: 95). Com o olhar duplo e o
embasamento de psicóloga e de mulher independente, soube muito bem
aproximar esses dois campos do conhecimento
7
. Ficava assim bem mais fácil
analisar a situação feminina e ao mesmo tempo refletir e escrever sobre ela.
Chegou a publicar alguns artigos dedicados às mulheres nas revistas Atlântida
e El Hogar, nos quais as incitava a saírem de casa, lutar e se realizar.
Certamente começava o seu papel de “mulheróloga(id.: 120), uma junção
de mulher e psicóloga, denominação que lhe é atribuída, mais tarde, pelas
leitoras e admiradoras brasileiras.
Se por algum tempo Carmen da Silva foi desconhecida, pois jamais
havia assinado uma publicação argentina apesar das esporádicas produções
jornalísticas –, tal situação se transforma no dia em que resolve escrever um
livro “sem pieguices de linguagem ou de conteúdo” (id.: 93): Setiembre, uma
primeira produção em prosa, inspirada no conflito social pelo qual a Argentina
passou com a queda de Perón
8
. A ação do romance transcorre durante os três
dias da revolução que derrubou esse governante argentino. Segundo a
escritora, o romance teria sido produzido em apenas dezesseis dias (Meira,
1960), o que aconteceu porque ela passou a encarar o idioma com seriedade,
um instrumento expressivo (Diário de Notícias, 9 ago. 1964). Com o sucesso
de Setiembre, a crítica não economizou epítetos masculinizados associados à
obra, entre eles “cabeça de homem”, que lhe eram atribuídos por aqueles que
6
Segundo o depoimento da sobrinha Alice Barreto del Fresno à revista Claudia (maio de 1987),
Carmen trabalhou na revista da Associação Psicanalítica da Argentina. Em virtude dessa
atividade leu e estudou muito. Chegou mesmo a fazer um curso de Psicodiagnóstico.
7
Carmen da Silva declara que na elaboração de seus artigos sua proposta era a de
“transformar o consultório sentimental em consultório de orientação psicológica” (Duarte, 2002:
59).
8
A escritora aproxima a obra temporalmente a setembro de 1955 para recuperar e reconstruir
os episódios ocorridos naquela data e publicar o romance dois anos depois, em 1957. Carmen
da Silva assume o papel de romancista-historiadora para relatar o acontecido e entrecruzar
com sabedoria os dois gêneros narrativos (cf. Fuão, 2004: 23-25).
não admitiam ser um romance assim tão bom um produto feminino. Essa
atitude que atravessa os séculos leva Carmen a reagir:
Todas as virtudes são no masculino. [...] Coragem, inteligência,
determinação, integridade, numa mulher, “elevam-na” à
categoria de homem. [...] Nascer homem garante o monopólio
de todos os dons, todas as belas qualidades: a ausência delas é
um mero caso, mantido no plano individual (Silva, 1984: 92-93).
Mesmo tendo ouvido comentários do tipo “Carmen da Silva, cuyo
pseudónimo debe ocultar uma pluma masculina...” (La Razón), ou ainda “Toda
literatura feminina é supérflua” (Rodolfo Mitre, de La Nación), a publicação e a
repercussão do romance deram-lhe aquilo a que mais aspirava: o direito de ser
reconhecida pelo seu próprio nome, conquista que a leva a desabafar: “No Rio
Grande, eu sempre fora a ‘Carmenzinha-do-doutor Pio’ e, por mais que me
orgulhasse de meu pai, irritava-me a falta de identidade própria” (Silva, 1984:
99). Foi nesse momento que ganhou notoriedade entre os escritores argentinos
mais renomados, que foi convidada a participar de debates, mesas-redondas,
homenagens, entre outras múltiplas solicitações. Logo seu apartamentinho de
celibatária viria a ser o ponto de reunião da Buenos Aires literária e jornalística.
Na Embaixada do Brasil, apesar do sucesso que obteve com o romance,
Carmen manteve-se sempre discreta, principalmente quando se tratava de
suas relações amorosas. Chegou até mesmo a ganhar fama de virtuosa por
optar em mantê-las fora do “clã”:
[O] prato forte da Embaixada eram as tramas amorosas. Todo
mundo, dentro, transava com todo mundo, a diplomacia
brasileira compõe a tribo mais ferrenhamente endógama de que
se tem notícia. [...] Vez por outra explodia um bafafá e uma
esposa que se considerava lesada trocava puxões de cabelo
com alguma jovem itamaratiana [...]. Mas tudo bem, a coisa
ficava em casa, numa boa: família que trepa unida permanece
unida (Silva, 1984: 91).
Por não concordar que um ambiente de alta diplomacia apresentasse
nos seus bastidores uma conduta antagônica à moralidade esperada, e ao
mesmo tempo compromissada a o criticar essa postura, Carmen rompe o
silêncio vinte anos depois para denunciar a verdadeira imagem hipócrita e
promíscua da Embaixada Brasileira, sem mesmo se preocupar com o quão
comprometedora essa revelação poderia ser.
Naquele ambiente, diante dos colegas, manteve a imagem de virtuosa
até o dia em que escreveu um pequeno conto erótico, intitulado “La nina, el
capullo y el retrato” (25 jan. 1961), a respeito das “primeiras emoções sensuais
de uma adolescente” (id., ibid.). Publicado na revista feminina Damas y
Damitas, o teor desse conto foi porém o que bastou para que a Comissão
Honorária de Moralidade da Prefeitura de Buenos Aires recolhesse a edição da
revista. O conto suscitara tanto interesse blico que ela, como sempre,
resistente e corajosa, usou o mimeógrafo da própria Embaixada do Brasil para
reproduzir novos exemplares, a fim de satisfazer a demanda (Leitura, 1964).
Indo além, em resposta às censuras, até mesmo àquela que sofreu por parte
de alguns colegas de trabalho, escreveu o artigo “El elefante en el vestíbulo”,
decidida a defender-se e apontar publicamente a repressão sofrida. Uma das
críticas mais contundentes circulou na gazeta local.
La moralina es ridícula, pero en tanto que sintoma grave.
Representa el fracaso de la verdadera moral. El ahogo de la
cultura, la asfixia de la razón, la subversión de la axiología, el
imperio del absurdo kafkeano, el desquicio. El elefante muerto
en medio del vestíbulo.
No pretendamos una ética con anteojeras; no hay que
equivocarse, la que lleva la venda es la justicia (Gaceta de
Tucumán, 12 março 1961).
Na sucessão das críticas e da repercussão em torno de Setiembre o
romance ganha destaque a na imprensa francesa e estadunidense
Carmen foi premiada com a Faixa de Honra pela Sociedade Argentina de
Escritores (SADE), tornando-se reconhecida pelas instâncias legitimadoras,
fato que comprovava a qualidade da obra, garantia seu conseqüente sucesso e
a sobrepunha aos preconceitos em relação ao sexo e à nacionalidade da
autora (Diário de Notícias, 31 maio 1964).
Carmen da Silva foi membro atuante da SADE, onde era tratada com
igualdade e onde sua presença parecia ser algo estável. Até mesmo votar
pelas eleições internas lhe era permitido, e não se discutia o fato de se tratar
de uma estrangeira, uma brasileira que havia escrito um romance argentino:
A SADE era a minha pátria, eu me esbaldava à vontade,
soltava o verbo inflamado nas reuniões, congressos, simpósios
e assembléias, votava e varava a noite esperando o resultado
do escrutínio enquanto conversávamos, bebíamos vinho [...]. Na
SADE só lembravam que eu era estrangeira para emprestar-me
galas folclóricas: queriam que eu cantasse, dançasse,
rebolasse, fizesse “unos pasitos” de samba (Silva, 1984: 108).
Em verdade, nossa “Carmenzinha” sentia-se cidadã no país vizinho. O
êxito do seu romance era a prova mais concreta da imersão social e cultural
que se refletia na familiaridade com o idioma:
“Setiembre”, do ponto de vista idiomático, representava minha
lua-de-mel com o linguajar portenho, aquelas páginas escritas
em gírias e expressões coloquiais traduziam o primeiro
momento em que senti Buenos Aires “de dentro” e não como
uma estrangeira que olhava de fora, separada e com o nariz
franzido de reprovação (Silva, 1984: 83).
Após Setiembre, ela escreverá um segundo romance intitulado El
séptimo invitado. Tratava-se de uma versão local e atualizada de O Banquete
de Platão. Embora pronto para ser editado, surpreendentemente ela suspende
a publicação por considerar que havia problemas de técnica e de estilo.
Percebeu que teria de reescrever alguns capítulos, mas faltava-lhe entusiasmo:
“a relação mágica entre mim e o livro se dissipara e não gosto de escrever a
frio” (Rio, 1964). Mas logo em seguida entrega à editora Claridad um livro de
contos, El diablo y otras soledades. Nesse mesmo período produz sua primeira
obra de teatro, El aprendiz de genio, uma farsa dramática que chamou a
atenção do grupo Santelmo para encená-la, e do editor Ricardo Letras para
então publicá-la. Sempre muito autocrítica, pensando em modificar o final,
Carmen voltou ao Brasil com o único exemplar da obra. Ainda na Argentina,
escreve, na seqüência, outra peça teatral, Prohibido pisar el césped.
Constituído de um único ato, o drama é produto de uma inspiração nascida nos
momentos de angústia da escritora: o processo de renúncia do presidente
Jânio Quadros no Brasil, no ano de 1961
9
, que ela acompanhou ainda da
Argentina (Diário de Notícias, 31 maio 1964). Essa peça viria a ser uma de
suas últimas produções antes do retorno ao Brasil. Nela reflete-se não apenas
9
Jânio da Silva Quadros (1917-1992) assume a Presidência da República em 31 de janeiro de
1961 e renuncia sete meses depois, em 25 de agosto. Em 1964, surge a ditadura militar, que
se estende no Brasil até 1985.
a preocupação com a crise política nacional daquele momento, mas também
sua postura diante do fato enquanto cidadã brasileira.
Foi em 1962 que tomou a decisão de retornar. Em suas memórias,
Carmen da Silva vai justificar a renúncia a uma vida consideravelmente
privilegiada, de conquista do reconhecimento artístico, movida por
circunstâncias que aponta como decisivas. Primeiro sua condição de
estrangeira começava a lhe pesar. Após a publicação do conto censurado em
Damas y Damitas, recebeu um contra-ataque da mídia impressa de Buenos
Aires, através do qual é convidada a retirar-se do país se não estivesse
disposta a obedecer aos padrões de moralidade localmente estabelecidos:
Algo que parece no saber Ud., es que todo grupo humano
organizado tiene derecho a defender su patrimonio formado
para nosotros [...]. Si este derecho es eventualmente ejercido
en forma desmedida [...], eso no justifica ni autoriza a ningún
individuo disconforme a atacar esa sociedad, en la que vive
porque quiere hacerlo con altura, pues... de este país es tan fácil
salir, como, lamentablemente entrar a él (Usted, 1961).
Carmen continuava a sofrer as limitações de sua “extraterritorialidade
(Silva, 1984: 108), mas não queria aceitar restrições as suas ações e sua
participação social. A exclusão veio associada ao sentimento de culpa por
“viver entre parênteses, sem qualquer compromisso visceral com o país que a
abrigava” (Silva, 1984: 109).
Eu não podia assinar manifestos, participar de passeatas,
malhar e desancar publicamente o que quer que fosse [...]. Em
dia de eleição, eu acompanhava os amigos até quase a boca da
urna, pegava os conhecidos vacilantes e ia tentando fazer sua
cabeça até o último minuto e depois me retirava com o rabo
entre as pernas, remoendo a mágoa da exclusão (id., ibid.).
A extraterritorialidade à qual refere, cujo prefixo extra- remete a
“externo”, “exterior”, associa-se a outros dois processos: desterritorialização e
reterritorialização. O primeiro, Teixeira Coelho define como um “fenômeno em
que modos culturais desvinculam-se de seus espaços e tempos originais e são
transplantados para outros espaços e tempos nos quais mantêm
aproximadamente os mesmos traços iniciais” (1997: 125); o segundo, embora o
prefixo re- pressuponha um retorno, entende-se como a volta a um território
qualquer após o deslocamento, não àquele de origem. É o que ocorre nesse
transitar territorial de Carmen da Silva, que sai de um ponto litorâneo ex-center,
Rio Grande, para inserir-se sucessivamente em dois grandes centros hispano-
americanos: Montevidéu e Buenos Aires. Ela finaliza seu ir-e-vir retornando às
origens culturais que manteve ao longo dos processos e com as quais se
identifica mas não territoriais, pois o espaço-geográfico será outro, o Rio de
Janeiro, considerado um pólo de atração para onde tudo convergia na época.
Uma outra situação resultante desse processo foi a cobrança que lhe
faria a imprensa portenha acerca dos detalhes da renúncia de Jânio Quadros.
Nem mesmo os amigos pouparam-na dos interrogatórios, o que desencadeou
em Carmen uma reação de caráter patriota, uma decisiva tomada de
consciência:
[A] curiosidade de meus amigos representou para mim mais um
fator de repressão: de algum modo, equivalia a apontar-me o
dedo do dever: você é brasileira, é parte do que está
acontecendo, está envolvida, tem de saber mais do que nós [...].
Sem perceberem, sem proporem, meus amigos de certa forma
me estavam expulsando de seu convívio ao fazer-me sentir
cada vez mais comprometida com meu país (id.: 112).
Embora jamais tenha pensado em voltar ao Rio Grande, por questões de
dissonância mental e cultural, ela relata: “A idéia era o Rio [de Janeiro]: o
centro dos acontecimentos, o coração do Brasil. E por que não confessar?
o lugar para onde meu próprio coração me chamava. Eu estava tentando e
não conseguindo esquecer um carioca” (id.: 10). Eis um outro motivo,
pessoal, íntimo mas confesso, que determina a decisão de instalar-se no Rio
de Janeiro.
O desengajamento em relação à situação nacional por estar afastada do
país torna-se o obstáculo de maior relevância. Também encarado como
decisivo para sua escolha, ele vem reforçar a tomada de consciência da
escritora para as questões de cidadania e participação social: “Morro de
vergonha de confessar que um dos fortes motivos de meu regresso foi a
sensação de marginalidade política, o cansaço dos golpes e contragolpes
militares, o desejo de participar das decisões e votar: vou levar fama de ser o
maior pé-frio da história!” (id.: 109).
2.2 – Repatriamento: uma identidade híbrida
Diante de tantos fatores que a impulsionavam a “olhar para trás”,
Carmen da Silva chega à conclusão: “lugar de brasileiro é no Brasil” (1984:
112). Fugindo de um status marginal dos limites da ação social que lhe
impunha a Argentina e territorial que lhe imporia Rio Grande –, ela se instala no
Rio de Janeiro para “lançar raízes no seu país” (Diário de Notícias, 9 ago.
1964) e iniciar nova etapa da vida trabalhando como tradutora freelancer em
alguns congressos. Após várias tentativas malsucedidas de empregar-se, ela
então receberá uma proposta de trabalho em um escritório.
O choque cultural foi inevitável com o retorno, e a adaptação no
processo que denomina repatriamento foi igualmente necessária no plano da
linguagem: “A gaúcha meio argentina em lua-de-mel com seu próprio idioma,
recuperando-o aos poucos, falando devagar, em parte para saborear as
palavras, em parte para ter tempo de encontrá-las porque o vocábulo justo lhe
escapava, tropeçando nos coloquialismos, na gíria, exumando expressões em
desuso há vinte anos [...]” (Silva, 1984: 114).
Em 1963 inicia-se a produção do primeiro romance escrito no Brasil,
Sangue sem dono, editado no ano seguinte pela Civilização Brasileira.
Refletem-se nessa segunda ficção as primeiras impressões do repatriamento,
bem como as limitações ante o próprio idioma. A crítica avaliou o romance
como inovação de estilo, uma vez que, no seu desenrolar, a narrativa
ressaltava “a utilização profusa de adjetivos a qualificar um só substantivo”
(Rio, 1964). Comentários rebatidos por Carmen explicavam que não se tratava
de nenhuma tentativa de renovação. Apenas não estava habituada a escrever
em português, tendo por isso o cuidado de refrear qualquer tendência
“inovadora” [aspas dela] que poderia significar uma cilada (id., ibid.).
Acrescentam-se outras características ao referido romance, tais como a
tentativa de incorporar seu idioma como instrumento expressivo assim como
fazia quando escrevia em espanhol. Segundo ela,
Em espanhol posso situar um personagem através de uma
linha de diálogo: o leitor logo percebe em que bairro ele mora,
como se veste, que clube freqüenta, que jornais lê, que pensa
da vida; em português, ainda não me sinto capacitada para
revelar tanto através de tão pouco e é por isso que “Sangue sem
dono”, praticamente, não tem diálogos (Diário de Notícias, 9
ago. 1964).
A construção de Sangue sem dono chegou a ser definida pela crítica
argentina como uma inspiração do estilo narrativo de Henry Miller (1891-
1980)
10
, escritor estadunidense cuja produção literária foi marcada pela defesa
de posturas contrárias aos padrões sociais vigentes. Quanto a essa
aproximação, Carmen comentara: “Não posso dizer que devo a Miller ou a
qualquer outro autor um estilo que não é apenas literário, mas também
pessoal. Ajo e sinto por catadupas; meu contato com a realidade se processa
em borbotões” (Rio, 1964).
O que se observa na representação de Sangue sem dono é a tentativa
de adaptação de uma mulher que não é mais aquela que viveu na Argentina,
nem mesmo a que fugiu para o Uruguai, tampouco a nascida no Rio Grande.
Essa nova mulher, que é o produto da soma das experiências vividas por todas
as três, vem resgatar o compromisso visceral com seu país. Avaliando as
próprias transformações, ela assim definirá seu segundo romance:
“Sangue sem dono” é o resultado da decantação disso tudo. Do
lento despetalar-se das “tradições liberais herdadas”. Da
assunção de uma posição, um compromisso que não é
intelectual mas sim vital, total. De minha reintegração ao meu
país, após 19 anos de ausência; de minha desalienação
geográfica e humana. É o livro que eu poderia ter escrito
hoje, porque ele é soma e síntese (Diário de Notícias, 31 maio
1964).
Considerando a multiplicidade de fatores que determinam a nova fase de
Carmen da Silva, tanto no âmbito pessoal quanto profissional, a escritora
apresenta uma identidade resultante da hibridação cultural, que também se
10
Antes mesmo de ser publicado nos Estados Unidos, Henry Miller era um autor
reconhecido, de raro talento e originalidade, destacado entre os escritores americanos. Foi
aclamado como uma figura fundamental na luta pela liberdade literária e individual. Sua
determinação em dizer a verdade com honestidade e coragem o condenou a trinta anos de
censura oficial no seu próprio país. Cf. Henry Miller, biografia, disponível em:
<www.klickescritores.com.br/pag_mundo/ eua_escrit/henry_bio.htm
>.
reflete na produção de caráter híbrido. Para Zilá Bernd, a hibridação cultural é o
resultado final de um processo de transculturação, pois “o sujeito da
transculturação [na ocorrência, Carmen da Silva] situa-se entre, pelo menos,
dois mundos, duas culturas, duas línguas e duas definições da subjetividade,
realizando vaivéns constantes entre elas” (2003: 23). No lugar de
transculturação, no Quebec, Jocelyn Létourneau privilegiaria o termo
“reatualização cultural”, visto que nela: “há mutação de um patrimônio sem a
aniquilação de uma herança, conversão de uma identidade sem a negação
de uma personalidade, emancipação de um eu sem alienação desse eu”
(2002: 42).
Ambas as concepções, apesar de suas particularidades, podem
adequar-se ao perfil que se quer traçar de Carmen da Silva, que se constrói em
decorrência de seu trânsito. Isto porque ambas subordinam-se, em primeiro
lugar, aos processos de desterritorialidade e reterritorialidade pelos quais a
escritora passou. Em segundo, porque inicialmente, quando retorna ao Brasil,
Carmen transita entre duas culturas, duas línguas, mantendo o nculo com a
Argentina por meio das constantes viagens que faz para encontrar o grupo de
amigos escritores ou mesmo para preservar o espaço artístico, aproveitando as
propostas, por exemplo, a de publicar Sangue sem dono em espanhol. No
entanto, no processo de repatriamento e de readaptação ao contexto brasileiro,
aos poucos, e de forma progressiva, devido às atividades literárias das quais
começa a participar, ela se afasta daquela antiga referência, dos seus
resquícios e influências na formação de sua personalidade, que se demarca e
impõe por ser uma composição identitária híbrida e heterogênea.
Em virtude das inúmeras influências e transferências culturais que estão
na base desse perfil híbrido de Carmen da Silva, Sangue sem dono também
poderia ser caracterizado como tal, ou seja, uma obra híbrida. Para Sherry
Simon
11
, o texto híbrido “manifesta um vocabulário díspar, uma sintaxe não
11
Professora titular no Departamento de estudos franceses da Universidade de Concórdia e
membro da equipe de pesquisa Le soi et l’autre, ela consagra suas pesquisas à análise literária
e à sócio-históric
a dos mecanismos de tradução e de hibridação na literatura e nas práticas
multilíngües. Seu campo de pesquisa engloba a teoria da tradução e as questões de contato
cultural na literatura, no Canadá e na Índia. Autora de diversos artigos científicos que tratam
dos problemas da tradução, da hibridação cultural ou de cultura em transição, Sherry Simon
assina com muita freqüência artigos em jornais e revistas de grande difusão. Todos os anos ela
participa de numerosos colóquios nacionais e internacionais, assim como conferências
seminários e mesas-redondas.
habitual, um despojamento desterritorializante, interferências lingüísticas e
culturais, uma certa abertura ou fragilidade no plano do domínio lingüístico ou
do tecido de referências” (in Porto, 2004: 13). Além de revelar, ao que se
observou, particularidades na construção sintática atribuindo inúmeros
adjetivos a um único substantivo –, ou ainda a fragilidade no domínio lingüístico
que justifica a quase ausência de diálogos no romance –, Sangue sem dono
apresenta hibridação no que se refere às influências e inspirações de outros
escritores, tais como o citado Henry Miller, ou Simone de Beauvoir, cuja
interferência será analisada mais adiante neste trabalho. Pode-se destacar
ainda a hibridação de gênero, pois o romance é uma mistura de ficção,
biografia e autobiografia que configura no resultado dessa mistura um
subgênero da autobiografia, o qual será apresentado no último capítulo da
presente dissertação.
Associados, esses elementos apontam para uma estrutura de
construção híbrida – o que justifica a crítica definir Carmen da Silva como
detentora de um estilo inovador. Para Sherry Simon, a validade da noção de
hibridação seria a de “designar e descrever um certo número de fenômenos
[inovadores] largamente presentes no romance contemporâneo e em particular
nessa literatura que [se] pode chamar de ‘escrituras das fronteiras’” (id.: 14).
Referenciando Bakhtin, Simon declara que a hibridação, para aquele
teórico, além de seu caráter descritivo, é também a expressão de um valor
moral, uma vez que ela “afirma a multiplicidade das identidades, opõe-se ao
monopólio da Verdade única” (id., ibid.). Tendo como base essa afirmação,
Simon defende que a hibridação é ao mesmo tempo um estado e um lugar, o
“terceiro espaço” no qual se produz uma cultura “transnacional”. É o espaço
“entre” que se torna o lugar de criação cultural para exprimir o caráter
inacabado e transitório das identidades (id.: 14-15).
Em sua reflexão e estudo do “entre-lugar”, Nubia Hanciau afirma que
uma das figurações-símbolo desse termo seria a literatura migrante. Ao citar
outras escritoras para bem ilustrar tal afirmativa, ela as aproxima de Carmen da
Silva pelo fato de que, após um vaivém carregando heranças culturais, elas se
situam num entre-lugar, construído a partir do olhar para uma e outra margem,
que se inscreverá em suas respectivas textualizações (2003).
Se for assim, Carmen da Silva apresenta-se como uma escritora que
reflete em sua produção uma absorção cultural heterogênea, sem identidade
definida, que faz do seu trabalho um instrumento de difusão de idéias e
pensamentos inovadores em um território completamente novo [Rio de
Janeiro], situado também no “entre”-lugar, pois se diferencia, geográfica e
culturalmente, das extremidades: Rio Grande [margem] e Montevidéu e Buenos
Aires [grandes centros latino-americanos].
2.3 – Caminhos para uma escrita feminista
A repercussão de Sangue sem dono no Brasil foi semelhante àquela de
Setiembre na Argentina. A reação do público provocou a mesma dúvida: seria
“Carmen da Silva” o pseudônimo de um homem? Mais uma vez a escritora se
posiciona e manifesta sua opinião para reafirmar a identidade da autoria de seu
livro, embora considere que a arte literária ultrapassa a referência do gênero de
produção. Segundo ela, esse não é um fator que determina a qualidade de
uma obra: “Será que meu nome não funciona como nome? Terei algo de
masculina no modo de escrever? É possível: creio que a literatura não tem
sexo. Contudo, foi divertido ter de afirmar a muita gente: ‘Ela existe, é um ser
de carne e osso, é mulher, sou eu’” (Diário de Notícias, 9 ago. 1964).
A crítica manifestou-se tanto de forma construtiva quanto destrutiva em
relação à narrativa de Sangue sem dono. Apontou na construção do romance
uma “audácia” em certas cenas, “desinibição” e “falta de recalques” por parte
da escritora, ao que ela contra-ataca dizendo:
Ora, inibição e recalque, numa definição estritamente científica,
são zonas de bloqueio involuntário, pontos cegos, inacessíveis à
consciência; neste sentido, alegro-me infinitamente de não os
ter. Contenção e autodomínio são outra coisa: freios
deliberados, barreiras lucidamente auto-impostas; creio que
ninguém me pode acusar de carecer delas, seja pessoal, seja
literariamente. Quanto à audácia, naturalmente, se refere ao
sexo; ninguém se escandaliza com os piores atropelos aos
direitos humanos, sempre que os protagonistas do atropelo
estejam convenientemente vestidos (Diário de Notícias, 9 ago.
1964).
Quando a crítica se manifesta dizendo que o romance satisfazia “o lado safado”
de quem o lia, por meio de um olhar psicanalítico de mulher que acima de tudo
sabe o impacto de sua obra, ela responde:
Pois bom proveito lhe faça. O lado safado de cada um é tão
variável dependendo do seu grau de normalidade que até a
descrição de um poente pode ser muito excitante para certas
pessoas. Tenho muitos anos de estudo de psiquiatria e sei que
o “lado safado” dos inibidos e recalcados está nos lugares mais
insólitos; não é culpa minha (id., ibid.).
No jornal Correio de Minas, lançava-se um ferrenho comentário:
Sangue sem dono [...] não me pareceu mais que um romance
pornográfico. Carmen da Silva, a autora, como tantos outros que
têm primado pelo “realismo”, não perde oportunidade de realçar
os detalhes supostamente escabrosos, “esquecendo-se” de que
outros aspectos da realidade envolvida na ficção poderiam e
deveriam ser tratados com igual minudência (1964).
Em oposição aos comentários “desabonadores” quanto ao estilo da
narrativa de Sangue sem dono, por extensão à autoria feminina e suas
particularidades, contrapõe-se a manifestação da crítica defensiva, que aprecia
e reconhece a qualidade artística de uma obra cuja ausência de parâmetros de
linguagem convencional e/ou tradicional não ferem a integração tema-
linguagem-construção:
Carmen da Silva tem, na verdade, teses audaciosas. Pode ser
combatida, pode ser criticada e que estabelece a polêmica,
coloca-se em situação de aceitar a discordância de quem não
assina suas premissas e não comunga com seus ângulos de
visão. Mas nenhum leitor ou crítico inteligente poderá deixar de
lhe dar o valor que merece, como romancista segura e hábil,
amadurecida como raros em nosso país. “Sangue sem dono”
pode ser considerado, por sua forma, estilo, linguagem e
objetividade, um dos romances mais bem realizados que o
Brasil publicou este ano (Diário de São Paulo, 28 junho 1964).
A polêmica gerada em torno do romance favoreceu o seu sucesso e
despertou um olhar crítico mais atento por parte de escritores do meio literário
e jornalístico. Nesse período Carmen da Silva havia iniciado seu trabalho
junto à Editora Abril, onde assumiu o cargo de redatora na coluna “A arte de
ser mulher” da revista Claudia em setembro de 1963.
Paralelamente ao trabalho jornalístico, Carmen seguimento a outras
produções literárias
12
, publicadas na seguinte ordem cronológica: Dalva na rua
Mar (Novela 1965); Guia de boas maneiras (Ensaio 1965); A arte de ser
mulher (Ensaio 1966); O homem e a mulher no mundo moderno (Ensaio
1969); A revolução sexual (Ensaio – 1970)
13
; Fuga em setembro (Trad. do
romance Setiembre realizada pela própria autora 1973) e Histórias híbridas
de uma senhora de respeito (Autobiografia – 1984).
O historiador rio-grandino Décio Vignoli das Neves, na relação que faz
das obras publicadas por sua conterrânea (1989: 244), atribui-lhe outras duas
produções, das quais não se encontrou nenhuma referência anterior. Seriam
elas: Livro de cabeceira da mulher e A cigarra não é um homem tão feliz,
ambas de 1969. Talvez a falta de referências e pesquisas que dêem conta
dessa produção literária seja a conseqüência de uma atividade jornalística que
se destacava muito mais, se superpunha e começava a suprimir a literária.
Considerando o maior acesso do público leitor, que se identificava mais com os
artigos mensais que publicava na revista, Carmen passou a privilegiar essa
produção de massa. O que pode ser observado na seqüência cronológica de
suas publicações literárias: de 1964 a 1970 elas se sucedem, mas de 1970 a
1984 registram-se apenas duas publicações em um intervalo temporal de onze
anos.
Os artigos proporcionavam algo que as demais obras não lhe
ofereceriam de imediato. Verificava-se após sua circulação uma grande
repercussão e reciprocidade entre escritora e leitoras: as manifestações
positivas ou negativas a respeito do que escrevia eram instantâneas e os
diálogos com as leitoras, constantes. Carmen chegava a receber de suas
leitoras por volta de 500 cartas por mês. Muitas eram respondidas
pessoalmente, outras através dos artigos que se sucediam. Até que ela fez jus
a um outro espaço na revista, intitulado “Carmen responde” (Duarte, 2002).
12
Sem a pretensão de discutir as questões de estilo e linguagem que particularizam ambas as
produções, estabelece-se aqui uma diferenciação no que diz respeito ao processo de difusão:
a jornalística tem produção e circulação periódicas, é veiculada de forma mais abrangente,
atingindo inúmeros leitores, cujo acesso é facilitado por ser de baixo custo; a literária é restrita
a um público que integra uma classe social mais favorecida cultural e financeiramente. Na obra
literária, o escritor não tem o comprometimento de uma criação seqüencial. Ele aqui pode
respeitar os limites de sua inspiração.
13
Seus ensaios são uma organização dos artigos publicados na revista Claudia.
Será a jornalista Helle Alves que, em seu comentário crítico a favor de
Sangue sem dono, observará a intencionalidade da produção de Carmen da
Silva: “Ela quer pregar. Quer atingir o leitor, fazendo-o sentir o quadro social
em que vive”
(Diário de São Paulo, 28 junho 1964)
. Carmen passaria, assim, a
adotar esse veículo de massa na tentativa de destruir velhos valores para a
construção de novos. Foram seus artigos, ao proporem a valorização da
mulher, que colocaram a revista Claudia no mesmo patamar das revistas
americanas e européias, tornando-a pioneira ao tratar de assuntos tabus que
então não apresentavam um viés feminista (cf. Claudia, 2001).
Seu primeiro artigo na revista, intitulado “A protagonista”, sintetiza a
proposta de instigar a tomada de consciência daquelas que leriam seus textos
e com eles se identificariam. Ao mesmo tempo, não deixa de advertir que suas
intenções não pressupunham ações e atitudes heróicas:
Falei em protagonizar e não “viver a vida”. [...] Porque “viver”
exprime apenas uma condição vegetativa: também vivem os
átomos, as plantas, os animais. O ser humano exige mais do
que isso para ter a sensação de plenitude: quer participar
ativamente do processo, dirigir seu destino, aferrar solidamente
o leme da existência em suas mãos. [...] [Mas,] não é necessário
sair à rua desfraldando bandeiras; não se trata de heroísmos
nem de grandes façanhas. Cada mulher pode e deve
protagonizar sua vida dentro do âmbito que escolheu, seja ele
vasto ou reduzido [...]. O problema não consiste em fazer coisas
espetaculares, mas sim em tomar consciência de seus objetivos
e aceitar a tarefa que sua consecução impõe (Silva, in Civita,
1994: 19-20).
Com o propósito de enfatizar a importância da afirmação identitária e da
autonomia da mulher, ela também tratou de temas tabus, tais como o aborto e
o divórcio, nunca se furtando a discutir outros temas polêmicos no âmbito
social, como “Bebês de proveta”, em 1978, e “Abertura política”, em 1984.
À medida que os artigos de Carmen ganhavam dimensão nacional,
surgiam os convites à autora para promover palestras e participar de
seminários e conferências, entre eles o de Edna Savaget, para comparecer em
um espaço semanal em seu programa de televisão (cf. Silva, 1984: 120). Ela
registra nesse mesmo período sua participação na imprensa alternativa, no
jornal Mulherio
14
, que circulou entre as décadas de 70 e 80, juntamente com
Brasil Mulher e Nós Mulheres. Tais publicações não chegaram porém a atingir
um mero considerável de leitoras no país e logo suas edições seriam
canceladas (Koshiyama, s/d: 5).
Em 1984 a escritora faz um balanço de sua vida, de suas experiências,
de seus amores e as conseqüentes perdas e ganhos ao longo das travessias.
Reunindo todas as lembranças, ainda a tempo de não esquecer as mais
relevantes ou importantes, ela publica então suas memórias, Histórias híbridas
de uma senhora de respeito. No ano seguinte ao lançamento do livro, em 1985,
Carmen participará da memorável passeata em homenagem ao Dia
Internacional da Mulher. Um mês depois, enquanto realizava uma palestra a
respeito da condição feminina em Resende (RJ), sentiu-se mal. Ao ver seu
ventre crescer, brincalhona, Carmen exclamou: “Fiquei grávida nessa idade!”.
Em verdade, fora vítima de um aneurisma abdominal fulminante (Schumaher;
Brazil, 2000: 132). Em 29 de abril de 1985, com ela se encerrava a coluna “A
arte de ser mulher”. Na compreensão de Thomaz Souto Corrêa
15
, “Não se
substitui uma Carmen da Silva. Ela foi importante demais. E é assim que nós,
seus colegas e companheiros de Claudia, queremos conservá-la: insubstituível”
(apud Civita, 1994: 6).
Carmen da Silva jamais pretendeu reforçar os padrões conservadores
de mulher ou ser partidária daqueles que os defendiam; não pretendia
tampouco ser dogmática na apresentação e na defesa de suas idéias. Vale
lembrar Alice M. Koshiyama, em pesquisa que propõe investigar a influência da
produção jornalística de Carmen da Silva na construção da cidadania:
Inteligentemente [ela] não entrou em colisão radical com as
mulheres acomodadas, conformadas/anestesiadas pelo peso da
tradição. Procurou levantar, inicialmente, zonas de insatisfação
individuais, apontar algumas situações que ela, Carmen-mulher,
sabia que eram problemas da maioria. Mas sempre teve a
14
Alguns exemplares do jornal Mulherio foram reunidos, juntamente com outros documentos
que reconstroem a memória do movimento feminista, para compor o “Acervo Carmen da Silva”,
assim denominado em homenagem à escritora gaúcha. Criado em 8 de março de 1992, o
acervo localiza-se atualmente no Centro de Documentação Social da UFRGS, mas
infelizmente não goza do cuidado que mereceria, tampouco pode ser visitado regularmente,
pois deve ser feito um agendamento prévio, tarefa nem sempre facilitada.
15
Nos primeiros anos de circulação da revista, anos de 1960, atuava como redator-chefe.
Atualmente é Vice-Presidente Executivo e Diretor Editorial do Grupo Abril.
habilidade e o respeito pelas limitações das suas interlocutoras,
escutava-as (s/d, p. 8).
A coletânea que reúne a seleção de artigos, intitulada O melhor de
Carmen da Silva (1994), apresenta em sua primeira página pequenos
comentários, opiniões de amigos, colegas, simpatizantes e/ou leitores notórios,
entre eles Hebe Camargo e Marta Suplicy, que se manifestam tanto para
expressar a validade do trabalho desenvolvido pela escritora rio-grandina como
para elogiar o seu caráter e profissionalismo, ela que sempre evitou empregar
palavras e idéias como arma agressora àquelas mulheres que se sentiam
realizadas (e não “conformadas”) no espaço doméstico e familiar. Lê-se nesse
sentido o depoimento de seu colega Carlos Alberto Fernandes:
Era impressionante a atenção especial que dava a cada uma
das leitoras que lhe despejavam seus problemas em narrativas
quilométricas. Lembro-me de uma delas que, bem casada, de
bem com a vida, mãe de cinco filhos que lhe davam alegria,
exímia cozinheira, realizada como dona-de-casa, angustiava-se
e reclamou dos empurrões de Carmen, que não se perturbou e
respondeu-lhe mais ou menos assim: “Minha filha,
evidentemente não falo de você, que é dona-de-casa e está
feliz. Fico preocupada é com as outras, que reclamam e não
reagem. Como fico preocupada com qualquer pessoa que não
esteja satisfeita em sua profissão: médicas, engenheiras,
secretárias. Aproveite o seu estado de felicidade, respire fundo e
me convide para o jantar” (apud Civita, 1994: 1).
O perfil de uma figura híbrida que a autora representa, sua tentativa de
criar uma nova mentalidade/identidade feminina, desvinculada dos padrões
tradicionais, sustenta a produção de Carmen da Silva, lado a lado à temática
da interação coletiva. Ou seja, Carmen sempre se mostrou ligada ao povo,
quer fosse ele uruguaio, portenho ou brasileiro, e fez de sua produção o veículo
de manifestação dos seus anseios, problemas, uma tribuna de defesa de sua
opinião. Acreditando no compromisso social do escritor, chegou a declarar na
revista Leitura (1964) o distanciamento que observava por parte dos colegas da
Argentina: “o escritor argentino não procura se aproximar do povo. Mesmo os
que se declaram marxistas, dizem ‘sou marxista teórico’; evitando qualquer
contato com os sindicatos, vivem em suma encastelados nas suas torres”.
Posicionando-se com coragem ante determinadas circunstâncias, sentia
que estava de alguma forma contribuindo para melhorar a sociedade e para
construir uma cidadania sem fronteiras de classe social, de cultura e de
espaços geográficos. Quando lhe perguntaram a respeito da recepção de sua
obra, na tentativa de esclarecer se ela escrevia para o povo ou para uma elite
intelectual, Carmen da Silva, com muita tranqüilidade, ofereceu a seguinte
resposta:
Uma coisa não exclui a outra. A necessidade de criar pode
obedecer a um impulso quase físico – que é o meu caso –, mas
o conteúdo da criação está determinado pela cosmovisão de
cada escritor. uma compulsão subjetiva de dizer” e uma
seleção subjetiva de “o que dizer”, que reflete uma posição
filosófica [ou ideológica]. Escrevo para o povo e pelo povo,
aspiro ser ouvida por ele e pretendo que isso é absolutamente
possível sem sacrificar as exigências estéticas (Rio, 1964).
Nesse mesmo período, em que se sucedem inúmeras entrevistas com a
escritora, Wania Filizola, redatora da Leitura, proclama: “Carmen cumpriu a
etapa que vai do ‘eu’ ao ‘nós’, fazendo, da sua arte, ponte onde se abre como
asa à sua insubornável lucidez” (1964).
3 – Histórias híbridas de uma senhora de respeito (1984)
A narrativa do eu nos prenúncios do fim
Senhora-de-respeito (...) porque não encontrei nos dicionários
qualquer
outro rótulo mais ou menos honroso que me fosse aplicável:
mulher na
minha faixa de idade, ou é respeitável ou não existe.
Existamos, pois. Com todo respeito
16
.
Autobiografia declarada da escritora rio-grandina, publicada no ano
anterior à sua morte, Histórias híbridas de uma senhora de respeito é o registro
da história de uma vida marcada pela transgressão à tradição moral e social
que sempre subjugou a mulher.
Relato íntimo que ocupa 189 páginas subdivididas em 14 capítulos,
narrado em primeira pessoa e enunciado pela voz de Carmen da Silva, essa
obra apresenta uma cronologia regular, que inicia com a narrativa do
nascimento, passando pela infância, adolescência, para chegar à maturidade
da escritora. Por vezes a seqüência narrativa é interrompida por pequenas
digressões, nas quais ela insere detalhes que não foram ditos anteriormente
não respeitando a linearidade dos fatos, mas o fluxo da memória. Como todo(a)
escritor(a) confrontado(a) à escritura de uma vida, ela hesitará por vezes entre
a norma tranqüilizadora, que remete a algo que existia, e o desvio, que lhe
permite escrever a singularidade e a originalidade de sua vida.
Em sua autobiografia, Carmen narra experiências pessoais, misturadas
às histórias alheias que contribuíram para a formação do “eu” múltiplo e que
muitas vezes a impulsionaram a tomar decisões importantes, as quais
16
SILVA, Carmen da. Histórias híbridas de uma senhora de respeito. São Paulo: Brasiliense,
1984. Todas as referências a esta obra serão indicadas pelas iniciais Hh, seguidas do número
da página.
mudariam o curso de sua história. Lílian de Lacerda, no estudo a respeito da
memória recuperada por meio da escrita autobiográfica, defende que “as
lembranças apóiam-se em fatos, acontecimentos históricos, e ao mesmo tempo
ampliam e informam aspectos da história social brasileira. Descrevem,
detalham, precisam e explicitam os cenários pouco iluminados pelos grandes
refletores históricos” (2000: 90). Com o apoio dessa afirmação, revela-se aqui a
justificativa da própria escritora por ter adotado o termo “Histórias” para o título
de sua obra que, mais do que uma “história” pessoal, vai revelar o diálogo entre
a memória individual e a coletiva:
“Histórias” porque recuso o anglicismo estórias”, com sua
intenção marota de traçar uma linha divisória entre o pessoal e o
coletivo, desvinculando os sucessos individuais do curso da
História. A grafia com agá-i enfatiza minha convicção de que o
privado é político (Hh, Contracapa).
O termo “híbrido”, do título, conceituado no capítulo anterior, pode
igualmente apresentar aqui uma interpretação dicotômica. Longe de esgotar as
inúmeras teorizações a respeito do termo e suas numerosas conotações, opta-
se pela definição de Zilá Bernd e a ela se incorporam outras dicionarizadas. De
acordo com Ferreira (1986: 892), entende-se o híbrido por miscigenação ou
mistura de espécies diferentes, que viola as leis naturais. Na complementação
do termo, Houaiss (2001: 1526) o define como a composição de elementos
diferentes, heteróclitos, disparatados. No âmbito dessa definição o “híbrido”
que compõe o título da autobiografia estaria relacionado às múltiplas histórias
privadas de homens e mulheres de diferentes classes sociais relatadas
para elucidar suas idéias, as teorias que defende e também denunciar
preconceitos. Zilá Bernd, no entanto, interpreta esse termo como o ultrapassar
das fronteiras, ato que outrora exigia punição (1995: 10). Híbrida também pode
ser a composição de dois elementos diversos, reunidos de forma anômala,
para originar um terceiro, que terá as características dos dois primeiros
reforçadas ou reduzidas
17
.
17
Ao trazer à tona este conceito, enfatiza-se acima de tudo o respeito à alteridade e a
valorização do diverso. Ao destacar a necessidade de pensar a identidade como processo de
construção e desconstrução, o híbrido estaria subvertendo os paradigmas homogêneos da
modernidade, associando-se ao múltiplo e ao heterogêneo.
Além das fronteiras territoriais ultrapassadas, Carmen rompeu também
com os limites do “permitido ou tolerado socialmente” e teria tido como
“punição” nem um pouco penosa, diga-se de passagem, o exílio, que será
abordado e justificado ao longo da narrativa. Uma outra interpretação nos
levará a relacionar o terceiro elemento, ou seja, a escolha de Carmen em
lançar-se no mundo, de ser escritora e jornalista voltada às idéias e causas
femininas e feministas, resultado da junção/composição de elementos diversos:
preconceitos, tabus, histórias vividas associadas àquelas que a escritora
presenciou de perto, entre outros.
Quanto aos termos feminina e feminista mencionados no parágrafo
anterior, para melhor focalizá-los opta-se pela definição apresentada pela
própria autora autoridade no assunto em um de seus artigos publicados em
Claudia. Nessa ocasião ela propõe a diferenciação dos termos, elucidando que,
para ela,
Ser feminista é não aceitar que a mulher, pelo simples fato de
ser mulher, deva ocupar uma posição subalterna, depender do
homem, obedecer-lhe e submeter-se a ele, como a criança ainda
incapaz de raciocínio se submete à autoridade de seus
responsáveis adultos. [...] Ser feminista é não aceitar que o amor
entre os sexos seja uma relação desigual em que um exerce
poder sobre a outra, mesmo que se trate de domínio sutil,
disfarçado de proteção. [...] Não queremos o casamento que nos
converte em servas domésticas ou prisioneiras do lar. Queremos
estar junto de nosso homem, podendo nos orgulhar dele e de
nós mesmas como de duas pessoas completas [...]. Queremos
que a maternidade, se optarmos por ela, nos proporcione alegria
e senso de plenitude, em vez de nos condenar ao confinamento
e à auto-abdicação. Reconhecemos e assumimos todas as
responsabilidades que ela acarreta e pretendemos que seu
desempenho, em lugar de nos limitar, nos enriqueça como seres
humanos (in Civita, 1994: 83-84).
Opondo o “ser feminista” ao “ser feminina” Carmen acreditava – e muitos
ainda hoje pensam assim que definir esse último termo não é tão fácil. Isso
porque a feminilidade também é um construto que a sociedade tradicional
inventou para a mulher, ao que reforça a escritora:
A imagem da mulher “feminina” está nos sermões e
ensinamentos das mães antiquadas que nos transmitem lições
de recato e hipocrisia com vistas a atrair e reter um homem.
Está nos textos escolares, onde invariavelmente mamãe faz o
almoço ajudada pelas filhas, enquanto o pai e os filhos
consertam o automóvel de preferência ao ar livre, porque o
espaço externo pertence ao homem ou se divertem jogando
pelada. Está na indústria de brinquedos que fabrica bolas,
trenzinhos e aviões para os garotos, bonecas, fogõezinhos e
aparelhos de chá para as meninas. Está na legislação, que
há muito pouco tempo deixou de equiparar a mulher ao menor e
ao silvícola, mas continua estabelecendo que o homem é o
chefe do casal e detentor do pátrio-poder apesar do caráter
inevitavelmente conjetural da paternidade (id.: 85).
Em sintonia com o que afirmam hoje autoras contemporaneíssimas, tais
como as que estão sendo apresentadas neste trabalho, Carmen da Silva é o
exemplo de que o feminino está além do plano familiar, e que a literatura
feminina hoje rompeu com as barreiras sociais de uma tradição masculinizante,
que impunha limites quanto à atuação social da mulher, o que reduzia sua
escrita a simples relatos de alcova.
3.1 – Autobiografia declarada
No que diz respeito ao gênero autobiográfico explícito em Histórias
híbridas, em primeira instância pode-se defini-lo de acordo com a clássica
teoria de Philippe Lejeune (1975), sem esquecer, no entanto, que se trata de
uma autobiografia de gênero feminino, escrita por uma feminista. Nas
considerações desse teórico, para que uma obra seja considerada
autobiográfica, é preciso que o autor(a), narrador(a) e a personagem principal
correspondam à mesma pessoa. Lejeune acrescenta ainda que o
autobiográfico, ou o que ele denomina “pacto autobiográfico”, é o resultado da
combinação de elementos de quatro categorias: “a forma da linguagem
[narrativa ou prosa]; o assunto tratado [vida individual; história de uma
personalidade]; a situação do autor [identidade do autor e narrador] e a posição
do narrador [identidade do narrador e da personagem principal; perspectiva
retrospectiva da narrativa]” (1975: 14).
Essa conjunção de elementos do autobiografismo, na perspectiva de
Lejeune, está presente em Histórias híbridas, cujas características, para
Raquel Souza, diferenciam o autobiográfico do romance. O primeiro reflete um
discurso personalizado de valor referencial, com a primazia do eu, que se
assemelha ao historiográfico por informar determinados acontecimentos do
passado (Souza, 1999). A poeta e professora nos remete novamente em sua
tese ao autor francês, para quem a narrativa autobiográfica acontece quando
“uma pessoa real [...] atribui importância a sua vida individual, em particular
sobre a história de sua personalidade” (Lejeune, 1974: 14). Mais do que atribuir
importância a sua vida, Carmen da Silva escreve sua história para compartilhar
experiências, contar seus encantos e desencantos, perdas e conquistas,
estabelecendo assim uma relação dialógica com o público leitor.
Nos dois primeiros capítulos que abrem o memorial, Carmen narra os
acontecimentos de sua infância e da adolescência em Rio Grande e os motivos
pelos quais foi impulsionada a abandonar a cidade natal e o Brasil. Para ela,
[em Rio Grande] as pessoas morriam de outras mortes. De tédio
provinciano, de falta de perspectivas, dos eternos passeios
dominicais em torno da praça depois da missa. Ou assassinadas
pelos preconceitos: ficavam “faladas”, eram empurradas ao
ostracismo, à aridez, à solio (Hh: 11).
Retrata ela ainda as dificuldades em [sobre]viver junto aos padrões de
“boa conduta femininaestabelecidos em sua cidade e conta o que acontecia
com aquelas que neles não se enquadravam:
Ser mulher numa cidade pequena nas décadas de 30 e 40 era
mais do que difícil, era dramático: havia que escolher entre a
fuga, o martírio e o heroísmo. Confesso que escolhi a fuga. [...]
Penso que é graças a essa atitude covarde que ainda estou
aqui. [...] Outras permaneceram e conseguiram sobreviver,
elas sabem o que custou: a gaúcha é antes de tudo uma forte.
Mas também houve as que ficaram e foram esmagadas. Como
piolhos, como baratas (Hh: 11).
A opção pela fuga de Rio Grande, de uma sociedade que, segundo ela,
“castigava com a crítica e o ridículo as moças oferecidas” (Hh: 25), ocorre
quando Carmen se conscientiza do papel desempenhado pela mulher, cujo
exercício lhe seria exigido pela educação que recebera. É nesse momento que
decide fugir de um possível destino de “jóia e flor”:
Ninguém me dissera até então que mulher é para ser gente,
mesmo ao lado de um homem: haviam-me levado a crer que
quando ela tem sorte e certo é jóia e flor, se errado é
bagulho (Hh: 65).
Dentro de mim soavam campainhas de alerta, eu começava a
compreender que um destino de jóia e flor tem um preço: a jóia é
trancada no cofre, a orquídea fica encerrada na estufa:
segurança é cadeia (Hh: 69).
No terceiro capítulo é descrita a vida em Montevidéu, a mudança para
Buenos Aires e seu furtivo romance com René, o homem casado. Nos
capítulos seguintes, quatro, cinco e seis, em meio a digressões que retomam a
vida em Rio Grande ou em Montevidéu, mescladas a reflexões sobre o “ser
mulher”, a escritora relata sua vida na Argentina e a participação na
manifestação contra o governo peronista. É no sexto capítulo que Carmen
registra o início de sua carreira de escritora naquele país, onde escreve o
primeiro romance, intitulado Setiembre, que nasceria da inspiração causada
pela manifestação antiperonista, em 16 de setembro de 1955, considerada por
ela uma “explosão de liberdade” (Hh: 81):
Dezesseis de setembro ficou trabalhando-me a cabeça, como
uma data decisiva, um marco. Poucos meses mais tarde,
acordei-me um sábado de manhã [...] tomei um café, bobeei um
pouco pelo quarto, querendo algo que não sabia bem o que era.
Até que dei com um bloco de papel vagabundo para anotações,
um lápis. Sentei-me e comecei: “Haría falta un sereno, el
movimiento no cesa en toda la noche.” [...].
Após algumas semanas frenéticas [...] escrevi a palavra “Fime
fiquei ali toda trêmula, trepidante numa exaltação misturada com
angústia, susto, cansaço, sensação de irrealidade: tinha
acabado de escrever “uma coisa” que parecia um romance (Hh:
82).
Esse acontecimento, marco na história do povo argentino, contribuiu
para o nascimento do que ela define como “o primeiro vislumbre de consciência
coletiva, o sentimento de ser plural” (Hh: 82). Esta identificação com o coletivo
é verificada com recorrência em muitas de suas produções – o que será
apontado nas obras aqui trabalhadas. Finalizando esse capítulo, Carmen
menciona, embora sem citar títulos, produções – referenciadas no primeiro
capítulo –, as quais ela não concluiu ou não chegou a publicar por autocrítica.
No capítulo seguinte, o de número sete, a escritora narra peculiaridades
do dia-a-dia de trabalho na Embaixada do Brasil, em Buenos Aires, e faz
menção ao conto publicado na revista feminina Damas y Damitas, que resultou
em reprovações e comentários maldosos por parte da crítica e dos próprios
colegas de trabalho, que preconceituosamente rejeitaram o cunho erótico
apresentado:
Escrevi uma historinha sobre as primeiras emoções sensuais de
uma adolescente: impossível pensar algo mais edulcorado e
ingênuo. Mas Buenos Aires nessa época vivia mergulhada numa
onda de puritanismo à ultrança, comum às ditaduras [...] Não
deu outra: o conto foi censurado, a tiragem da revista apreendida
(Hh: 91).
No oitavo capítulo, Carmen da Silva retrata seu círculo de amizades com
escritores que se reuniam em sua casa, os questionamentos com relação a
pensamentos machistas. Cita O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, que,
conforme suas palavras, “surpreendentemente” lhe foi trazido da França por
René. Nesse capítulo ela menciona os artigos que escreveu na imprensa local,
dedicados às mulheres submissas, fazendo questão de sublinhar sua diferença
por meio do seu próprio discurso:
Cheguei mesmo a escrever, em Atlântida e El Hogar, alguns
artigos dedicados às mulheres, incitando-as a sair da casca,
lutar, realizar-se. Esses trabalhos destinavam-se às “outras”: eu
supunha que as havia, pacatas, mergulhadas na imanência e no
marasmo por vontade própria, perdendo as oportunidades e
esquivando os desafios da existência por mera falta de fibra e
disposição. Sobre elas eu despejava toneladas de saber e
suficiência: quanto a mim, era uma iluminada vivendo entre
iluminadas. Cabotinismo, teu nome é Carmen da Silva! (Hh: 95).
Nesse período ela reconhecia a existência de uma segunda categoria
de mulheres. Considerava as “outras” todas aquelas que, diferentemente dela,
deixavam-se subjugar e, principalmente, viviam acomodadas. Era para esse
perfil de mulher, contra sua postura e permanência que Carmen começava
então a escrever.
No capítulo seguinte, o nono, a escritora retoma a questão da
pluralidade ao descrever a situação que lhe proporcionou esclarecer e
solidificar essa idéia de senso de coletividade, ou melhor, essa ideologia,
considerando que a definição filosófica da palavra pressupõe um “pensamento
teórico que pretende desenvolver-se sobre seus próprios princípios abstratos,
mas que, na realidade, é a expressão de fatos principalmente sociais e
econômicos que não são levados em conta ou não reconhecidos como
determinantes daquele pensamento” (Ferreira, 1986: 913). É a partir de uma
exaustiva e solitária reflexão que, enfim, Carmen compreende ter traçado seu
próprio destino:
Eu estava sentada na minúscula cozinha do meu apartamento
[...] bebericando devagar e dedicando-me ao vago devanear que
a gente chama “pensar na vida” [...].
Posso viver cem anos e tenho certeza de que não esquecerei
esse dia. [...] Contei antes como me veio, uma vez, por acaso, o
sentimento de ser plural. Pois bem, nesse momento compreendi
que ser plural não é apenas um sentimento que pode até ser
passageiro e sim uma escolha de vida, uma exigência ética, um
destino inescapável (Hh: 106-107).
O “ser plural”, tema que se apresenta com freqüência em suas
produções, propiciou o rompimento da escritora com os últimos elos que a
ligavam à “Carmenzinha-do-Rio-Grande”; a singularidade de sua vida, marcada
pelos bons princípios, lugar a uma nova vida cercada de ideais ligados ao
coletivo. É nesse momento que Carmen inicia a refletir a respeito do seu
comprometimento social e, em conseqüência, a respeito de sua condição de
estrangeira na Argentina. Limitada em muitas atividades sociais, essa situação
começava a lhe pesar.
Seu retorno ao Brasil, à cidade do Rio de Janeiro, bem como seu
processo de readaptação, serão focalizados no décimo capítulo da
autobiografia. Em meio às dificuldades encontradas na busca de um espaço no
país de origem, onde o reconhecimento intelectual adquirido na Argentina era
até então desconhecido, Carmen recebe uma proposta de trabalho em um
escritório que lhe proporcionou recuperar parte de sua pluralidade, ou seja,
parte dos ideais que a levaram a tantas mudanças, mas que se perderam em
meio às dificuldades que envolveram esse retorno. Tal recuperação se deve a
uma grande descoberta:
Para não ficar de todo à margem do circuito laboral, aceitei um
inexpressivo emprego num escritório, sob a chefia de um homem
sumamente inteligente e sensível [...].
Foi nesse escritório, entre moças ótimas porémnormais”
pequena classe média típica, aspirações convencionais –, sem o
talento e a personalidade de minhas amigas argentinas, que
finalmente descobri a mulher. E, graças a essa descoberta,
recobrei pelo menos uma parte de minha pluralidade (Hh: 117).
Na finalização desse capítulo, a escritora descreve de que forma se
aproximou da Editora Abril, responsável pela revista Claudia, logo após a
publicação do primeiro romance no Brasil, Sangue sem dono (1964). É também
nesse capítulo que fala do início de seu trabalho na revista, na função de
redatora de assuntos femininos na coluna “A arte de ser mulher”.
O capítulo seguinte, em que conta justamente desse trabalho que a
torna renomada, ela o inicia descrevendo sua relação com as leitoras de seus
artigos:
Entre mim e as leitoras o vínculo se estreitava num calor de
briguinhas, desafios e reconciliações que me ajudavam a por a
nu os seus [os nossos] medos e ambivalências, eu malhava em
ferro quente, ia devagar mas sem recuo, sem fazer concessões
nas idéias mas evitando termos que podiam chocar e criar
anticorpos (Hh: 123).
Ainda no mesmo capítulo Carmen relatará sua transformação em mulher
pública no Brasil, após estrear em Goiás, proferindo algumas conferências e
palestras, nas quais fazia bem mais sucesso quando seus discursos e
comunicações eram improvisados. Foi então que ela assumiu um título que
conota honroso: “Após Goiânia, foi Porto Alegre, onde Erico Verissimo teve a
generosidade de ser o primeiro a apresentar-se na fila dos cumprimentos [...].
Depois de Porto Alegre, prossegui em várias outras cidades do Brasil minha
carreira de mulheróloga itinerante [...]” (Hh: 128-130).
No capítulo de número doze, Carmen da Silva comenta o clima político
da ditadura militar no Brasil e declara abertamente o sentimento de impotência
misturado à covardia que a impedia de agir. Compara ainda essa situação com
a que vivenciou em Buenos Aires durante o peronismo:
lá, minha condição de estrangeira permitia algum distanciamento
e, até certo ponto, justificava a omissão. Aqui era meu país,
minha gente, [...]. Tudo me tocava de perto, eu estava envolvida
até a medula dos ossos e, ao mesmo tempo, presa nas malhas
de uma impotência fácil de confundir-se com covardia. [...] A
ditadura faz todo o mundo viver esmagado de culpa: o terror
acusa as pessoas até pelo que elas não fizeram, a consciência
as acusa de tudo que estão deixando de fazer (Hh: 135-136).
Deve-se aqui remontar à ditadura militar, que iniciou em março de 1964
e se estendeu até 1985, marcando um período de autoritarismo, supressão dos
direitos constitucionais, perseguição policial e militar, prisão, tortura dos
opositores e também de censura prévia aos meios de comunicação
18
. Embora
Carmen estivesse com sua gente, em sua terra, seu país, sentia-se impotente
como cidadã e, principalmente, limitada no seu papel de artista porta-voz das
angústias do povo.
Outro aspecto relevante desse capítulo, no qual Carmen volta a abordar
a condição da mulher, é a descrição da trajetória das mulheres ao saírem do
casamento. Muitas delas, em busca do companheiro certo, acabam sendo
“pássaros tontos condicionados à gaiola”, pelo fato de não conseguirem viver
na independência:
Nos primeiros tempos [da separação], ela se torna confusa e
desamparada, com uma sensação de perda de identidade: não é
mais ela, não se reconhece fora da imagem distorcida que o
espelho conjugal lhe devolvia a cada instante, fora da identidade
plural do “nós”, da costela de Adão, da cara-metade que não é
cara nem metade: em geral não passa de um mísero dezesseis-
avos sem direito à correção monetária (Hh: 142).
Embora a situação vivenciada seja de modo geral a da mulher que
busca a segurança em um novo relacionamento, Carmen revela-se otimista
quanto àquelas que passam por um processo que ela denomina autogestação.
Isso porque a mulher seria capaz de se recriar, de renascer, sem a
necessidade da presença masculina:
é como se engravidasse de “eu” e se pusesse a gestar, num
ritmo lento, elaborado, penoso, um ser humano de verdade que
é ela própria. Um ser que sabe usar a cabeça e ousa exprimir
18
“31 de março de 1964”, disponível em: <www.unificado.com.br/calendario/03/golpe64.htm>.
suas opiniões, capaz de tomar decisões e realizá-las, uma
pessoa que atingiu por si mesma altura e velocidade de cruzeiro
(Hh: 143).
A metáfora do cruzeiro faz alusão a outras duas metáforas apresentadas
no primeiro artigo de Carmen em Claudia, “A protagonista”, em que a escritora
apropria-se de uma linguagem “náutica” para comparar as mulheres que não
determinam a direção de suas vidas com “barquinhos flutuando à deriva”. Em
oposição ela apresenta o “transatlântico” que, de maior porte e mais bem
equipado para enfrentar as eventualidades, lança-se ao mar para protagonizar
a travessia (Silva, in Civita, 1994: 19).
A opção por viver sozinha, aos olhos da sociedade, não era considerada
uma escolha da mulher, pois ela era ou viúva, divorciada ou jogada-fora. A
respeito desses aspectos, Carmen da Silva discorre no penúltimo capítulo:
Tendo descoberto já na juventude a diferença abismal entre
sozinha e solitária, só agora a experiência meuma ótica mais
aguda e abrangente da imagem social da mulher só, vista como
uma aberração da natureza. No caso, “só” significa sem homem.
[...] Não me surpreendi quando o dono, ou empregado, da banca
de jornais me perguntou: “Desculpe, a senhora é viúva ou
divorciada?” Homenagem: cara de jogada-fora eu não tinha. Mas
me surpreendi, isso sim, quando a pergunta veio de alguém que
se julgava infinitamente mais capacitado para compreender o
lance (Hh: 166).
A finalização de sua última obra, no décimo quarto capítulo, é
demarcada pela preocupação e revolta de Carmen contra o momento social, no
início da década de 1980, que considera mais ameaçador do que o da ditadura
militar dos anos de 1960
19
. Assim, na introdução de seu último capítulo,
Carmen diz:
Época: negra. Isto é, a atual: ano da desgraça de 1983.
Também chamada a Era da Abertura. Efetivamente, abriram os
cofres e saquearam o conteúdo. Abriram as janelas para o
19
O crescimento da oposição nas eleições de 1978 acelera a abertura política. O general João
Baptista Figueiredo, que governa de 1979 a 1985, concede anistia aos acusados ou
condenados por crimes políticos. O processo, porém, é perturbado pela linha dura. Figuras
ligadas à Igreja Católica são seqüestradas e cartas-bombas explodem nas sedes de
instituições democráticas, tais como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O episódio mais
grave é um malsucedido atentado terrorista promovido por militares no centro de convenções
do Riocentro, no Rio, em 30 de abril de 1981. Nesse contexto destaca-se a forte crise
econômica. Em 1983, inúmeros supermercados são saqueados. (Cf. nota anterior).
mundo e resolveram copiar os métodos da Máfia. Abrir as
pernas às multinacionais, aos bancos estrangeiros e ao F.M.I.
e, com isso, eles se entusiasmaram tanto que agora estão
enrabando cento e trinta milhões de brasileiros. [...] estamo-nos
afogando na pura merda, em confronto com a qual o famoso
mar-de-lama dos tempos de Vargas parece baba-de-moça feita
por mãos de freira (Hh: 172).
No encerramento de suas memórias, ao refletir a respeito da velhice
sem deixar transparecer a preocupação com sua condição atual de mulher aos
64 anos, ela se declara uma “sessentona que tem medo de bisturi e paga na
cara o medo da covardia” (Hh: 174), mas confessa que nunca viveu do aspecto
físico.
Na comemoração de 8 de março de 1983 – registrada nas últimas
páginas de Histórias híbridas –, ela participa de uma passeata iniciada com um
pequeno grupo de mulheres fantasiadas com os estereótipos femininos mais
persistentes em nossa cultura: a doméstica, a mãe, a bruxa, a amante, entre
outras. No final da marcha, calculavam-se mais de três mil mulheres reunidas,
dentre as quais Carmen “reinava”, soberana, com uma coroa na cabeça para
representar o modelo feminino que ela mais repudiava: a “Rainha do lar”
20
.
Ao finalizar sua produção autobiográfica, Carmen está com 64 anos. É
natural que, após tantas barreiras superadas, metas atingidas, perdas e
desilusões, ela tenha sentido a necessidade de fazer uma retrospectiva de sua
vida. Percebendo que este seria o momento de olhar para trás, ela examina
sua trajetória, suas escolhas; em conseqüência impõe-se fazer o balanço de
sua vida, uma auto-avaliação, ou seja, tenta compreender que a Carmen da
Silva de 1983 é o resultado das escolhas e decisões da Carmenzinha de 1944
aquela que teve a coragem de sair de sua cidade para enfrentar os desafios
do mundo. Toma forma assim a idéia da narrativa da própria vida.
Quando Raquel de Souza estuda as teorias que concernem ao gênero
autobiográfico, ela conta de que essa produção memorial acontece sob o
impacto da proximidade da morte no autobiógrafo e aproxima-se da reflexão de
Madeleine Ouellette-Michalska
21
ao considerar que a produção autobiográfica
20
Na passeata do 8 de março de 1985, mês anterior a sua morte, Carmen desfilou com a
fantasia de estátua da liberdade. Com uma das mãos segurava a tocha, com a outra uma
tábua de cortar carne.
21
Educadora, jornalista, crítica literária no jornal Le Devoir, ela colabora com a Radio-Canada,
assinando alguns documentários e textos dramáticos. Também desenvolveu ateliês de
apresenta uma relação de desejo de transcendência à morte que se revela
notadamente na idade avançada, momento de concretização do ato
autobiográfico, conforme se verifica na seguinte afirmação da canadense:
“Através de seus simulacros, no coração mesmo de seus exageros e de suas
aproximações, a escrita autobiográfica é a história de um eu assustado pelos
signos anunciadores de um fim possível, que repete obstinadamente: ‘eu não
quero morrer’” (Ouellette-Michalska, apud Souza, 1999: 119).
Embora Carmen da Silva tenha falecido no ano seguinte à publicação de
Histórias híbridas, ela não demonstrava preocupação com a morte. Ao invés de
nostalgicamente prenunciar sua proximidade, a autobiografia que escreve
registra o sucesso de uma carreira que, além de se mostrar muito promissora,
permitia-lhe ainda o relato de situações e/ou acontecimentos
comprometedores: “Não me sinto ainda próxima da morte (quem jamais se
sente, estando com saúde?) para permitir-me o luxo de narrar experiências que
a prudência manda reservar para as memórias póstumas” (Hh: 86).
Carmen sustenta ter vivido exatamente como sempre desejou. Guiada
pela intuição que ela afirma nunca a ter traído. Nas últimas linhas de suas
memórias, revela não pensar em pendurar as chuteiras: “quem me garante que
o mais belo gol de minha carreira ainda não está por ser feito? Até lá, vou
tocando para diante, sem bumbos nem charangas, enquanto trato de cumprir
até o fim, com a possível galhardia, meu Destino de Mulher. Jóia e flor: pois
sim!” (Hh: 189).
3.2 – Autobiografia de gênero feminino
Apesar de não ser referenciada entre as grandes personalidades das
letras brasileiras, sem ter experimentado o devido reconhecimento como
escritora de seu tempo, Carmen publica suas memórias no auge da carreira
jornalística, iniciada no Brasil em 1964 nas páginas de Claudia, revista
considerada ainda hoje a maior da América Latina destinada à mulher.
Redatora de assuntos femininos, ela inaugura a coluna “A arte de ser mulher”,
escritura na Universidade de Montreal. Sua obra foi coroada com os prêmios Gouverneur
Général e Prix Molson da Academia canadense-francesa.
ocupando um importante espaço que até então era preenchido por assuntos
direcionados à mulher do lar, à esposa, à mãe de família. Essa inclusão nada
aleatória objetivava atingir um público específico de mulheres que certamente
encontravam nessa revista a única fonte de informação ou até mesmo de
leitura
22
. A atriz brasileira Regina Duarte, em artigo comemorativo aos quarenta
anos da revista, testemunha o quanto a leitura dos artigos de Carmen da Silva
influenciou o seu pensamento. Ao recordar 1968, ano em que obtém a
aprovação no vestibular para Comunicação, em que também se casa aos vinte
e dois anos, a atriz comenta:
A essa altura já havia descoberto os artigos de Carmen da Silva
em CLAUDIA. O que ela dizia fazia sentido. Eu lia e pensava:
“Quero para mim a independência que ela defende, o casamento
que descreve, quero ter opinião”. Em 1970 a Globo me contrata.
Deixo a faculdade, mas continuo desejando moldar um destino
diferente do das mulheres que não conseguem ter espaço e voz
(Claudia, 2001: 26).
Reconhecida também pelos papéis marcantes de mulheres fortes e
determinadas, a exemplo de Malu, no seriado Malu mulher (1978), e a
memorável viúva Porcina, na novela Roque Santeiro (1985), Regina Duarte
marcou com suas representações momentos inesquecíveis da televisão
brasileira. A atriz afirma que a coragem de deixar de lado a personificação de
mulheres inferiorizadas deve-se também à influência da escritora rio-grandina:
“Havia um novo tipo de mulher surgindo na vida real que a ficção não retratava.
De novo me lembro de Carmen da Silva: ou bancava uma virada ou morreria
esperando alguém acreditar que podia interpretar mais do que uma virgem
frágil e submissa” (id.: 26).
O impacto causado pela proposta inovadora lançada em Claudia, por
meio dos textos de Carmen, que instigavam à mudança do pensamento
daquelas leitoras, foi logo percebido e admitido pela própria escritora.
22
Segundo a pesquisa de Ana Duarte, em Dissertação de Mestrado, servindo-se da estratégia
de abarcar diversos assuntos de interesse feminino, a revista Claudia transformou-se em
pouco tempo na segunda maior fonte de renda publicitária entre as revistas do Grupo Abril.
Cinqüenta por cento de sua tiragem destinava-se aos estados do Rio de Janeiro e São Paulo
(Cf. Duarte, 2002).
Meus artigos caíram como UFOs incandescentes no marasmo
em que dormitava a mulher brasileira naquela época. Logo
comecei a receber uma avalancha de cartas de todos os tons:
desesperados apelos, xingamentos, pedidos de clemência:
deixe-nos em paz, preferimos não saber! Consciência dói olé
se dói, mais do que “patadas em los huevos” (Hh: 119-120).
Carmen da Silva sempre foi consciente quanto à recepção de seus
artigos pelo público leitor que pretendia atingir. Em uma das entrevistas que
concede ela deixa registrado o seu comprometimento:
Comecei a escrever pensando no tipo de mulher que eu
tinha encontrado aqui. A mulher que trabalha ou dona-de-
casa que está completamente amarrada pelas
limitaçõezinhas burguesas; seu papel feminino. A mulher
que tem família no Norte ou Nordeste e está no Rio
trabalhando, morando sozinha ou com uma colega, mas
com toda aquela carga de preconceitos na cabeça. Agindo
como livre porque mora só, não tem controle direto, mas se
sentindo horrorosamente culpada e sonhando com a saída
tradicional: o casamento. Comecei a escrever para abrir
uma brechazinha nesse tipo de mulher (apud Duarte, 2002:
67)
Preocupada em manter uma boa relação com as leitoras às quais se
dirigia, Carmen não ousou sequer citar o nome que qualificaria sua produção:
Foi assim que levei oito anos de aparente indefinição antes de
empregar a palavra-bicho-papão: feminismo. E escrevi, preto
no branco, quando não escandalizava ninguém exceto as
pessoas, e, não são poucas, que continuam escandalizadas até
hoje – mas essas não têm jeito mesmo, azar o delas (Hh: 123).
Deve-se levar em conta que nos anos de 1960 ainda não se consolidara
nenhum movimento feminista no Brasil. Mais do que uma peregrinação
solitária, Carmen da Silva sentia a rejeição por parte daqueles que
condenavam seu trabalho.
Por quase uma década estive praticamente sozinha no campo
da pregação feminista no Brasil e, com isso, meu nome
despertava reações extremas em certos grupos, sobretudo em
casais do meio burguês que, em raras ocasiões, eu
freqüentava [...]. As mulheres me recebiam como se eu fosse o
próprio Messias, mas entre seus homens, eu não gozava do
mínimo prestígio: muito pelo contrário, contraíam as
mandíbulas e espumavam pela boca: tinham diante de si, em
carne e osso, a vândala que estava tentando desencaminhar
suas honestas esposas, virar a cabeça de suas filhas, destruir
seus lares e subverter a sagrada instituição familiar (Hh: 180).
Com o firme propósito de promover a emancipação da mulher, Carmen
da Silva aproxima-se de uma das mais importantes romancistas da América
francesa, a quebequense Gabrielle Roy
23
(1909-1983), que, embora tenha sido
considerada feminista postumamente, reivindicava que as mulheres fossem
tratadas como seres humanos
24
. No estudo de Lori Saint-Martin
25
, no qual as
obras de Gabrielle Roy são analisadas numa perspectiva feminista, a crítica
aproxima a escritora canadense da francesa Simone de Beauvoir no que diz
respeito à semelhança de suas trajetórias de vida. Cabe salientar que no
paralelo estabelecido entre a autora de O Segundo sexo (1949) e Carmen da
Silva, é possível inserir Gabrielle Roy para compor o triângulo América do
Norte, Europa, América do Sul, pois essas três feministas, precursoras de uma
literatura emancipadora do sujeito feminino, “rejeitaram o modelo maternal e o
da maternidade em benefício de uma vida livre, uma vida voltada à escritura”
(Saint-Martin, 2002: 43).
Simone de Beauvoir no seu referenciado ensaio filosófico, escreve que a
mulher tem de escolher entre o papel de objeto e o de Outro que lhe são
propostos, ou seja, em relação ao homem e a reivindicação de sua liberdade
(Beauvoir, 1949: 95). Segundo Houaiss (2001: 2041), o objeto é definido como
23
Nasceu em Saint-Boniface (Manitoba), onde viveu até 1937. Após duas estadas na Europa,
instala-se definitivamente no Quebec. Sua obra, que compreende dezenas de romances,
ensaios e contos infantis, é reconhecida como uma das mais importantes da literatura
canadense do século XX.
24
No que diz respeito às leis de seu estado, foi somente com o projeto de lei 89 que, em
1980, o Código Civil quebequense rompe definitivamente com o espírito do Código Napoleão
para iniciar a reconhecer as mulheres como seres humanos integrais. Diane Lamoureux,
Fragments et collage. Essai sur le féminisme québécois des années soixante-dix, Montréal:
Remue-ménage, 1986: 73. Apud Saint-Martin, 2002: 12.
25
Professora de literatura e de estudos feministas do Departamento de Estudos Literários na
Universidade de Quebec em Montreal (UQÀM). Dentre numerosos trabalhos sobre escritura
feminina e teoria feminista, divulgados em edições quebequenses e estrangeiras, ela publicou
o ensaio intitulado Malaise et Revolte des femmes dans la littérature québécoise depuis 1945
(1989), que lhe rendeu o prêmio Elsie-McGill; uma coletânea de novelas, Lettre imaginaire à la
femme de mon amant (1991), com a qual ganhou o prêmio Edgar-Lesperance. Com Paul
Gagné, publicou traduções para o francês de quatro romances anglo-canadenses, uma das
quais, Un parfum de cèdre [do original Fall on your kness, de Ann-Marie MacDonald], ganhou a
mais alta distinção literária do Canadá, o Prêmio Governador Geral, na categoria tradução, em
2000.
“coisa material; artigo de comércio, mercadoria” e outro como sendo “algo ou
alguém [...] que se contrapõe, implícita ou explicitamente, a algo ou alguém
definido, conhecido, distinto, diferente; [é] o segundo entre dois, o restante” (id.:
2093). Entende-se que o objeto pressupõe dominação e manipulação; o Outro
se entende pelo não-masculino, ou seja, o que é contrário, estranho,
secundário e, mais do que isso, inferior: o feminino. Ambos os termos se
opõem à mulher que não se deixa subjugar. Escolhido o seu papel, o de uma
mulher independente, para fugir de um destino de jóia e flor, Carmen da Silva
denuncia em sua autobiografia o descaso da sociedade com relação às
preferências femininas:
Mulher foi feita para quê? Para casar e ter filhos. O que é que
toda mulher quer da vida? Casar e ter filhos. De que modo uma
mulher se sente realizada? Casada e com filhos. Dogma: fora do
casamento não há salvação. Falou tá falado.
Ninguém pergunta o que ela realmente é, ninguém quer saber
de seus sonhos, suas fantasias, suas ambições, ninguém lhe
a mínima chance de olhar em torno e vislumbrar outras
possibilidades, outros caminhos. [...] No momento em que a
mulher começar a meter o bedelho em campos que os homens
reservaram para si, o mundo vira de pernas para o ar [...]. Cada
macaco no seu galho, e galho de mulher é rasteiro feito de
abóbora, que só dá fruto rente ao chão (Hh: 64).
O fato de muitas mulheres não terem sido grandes artistas em razão de
uma educação que as limitou, e não por questões biológicas, remete ao que é
consenso entre Lori Saint-Martin e Germaine Greer
26
: “o condicionamento da
feminilidade impede nas mulheres a eclosão dos traços próprios de uma artista,
entre eles a independência, a integridade, um firme egoísmo e uma inabalável
confiança em si” (Saint-Martin, 2002: 267). Não nenhuma dúvida de que a
definição de arte e de artista sempre privilegiou os homens e determinou a
hegemonia masculina no domínio cultural.
O primeiro registro concreto que se tem de manifestações feministas,
isoladas, expressas na literatura é o trabalho de Nísia Floresta Augusta (1810-
1885), considerada a primeira mulher a defender publicamente a emancipação
26
Professora de Literatura Comparada, escreve sobre a literatura e a arte, a sexualidade e a
fertilidade/infertilidade, o aborto e a menopausa, a biodiversidade e a análise de imagem.
Colunas, programas de TV, ensaios e scripts: ela não está limitada a nenhum gênero ou mídia.
Com as discussões que propõe em De vrouw als eunuch, Overgang e We hebben je nauwelijks
gekend, ela provoca reações tão furiosas quando amáveis da crítica literária. trinta anos
Germaine Green expõe sua opinião sobre o papel social da mulher no mundo.
feminina no Brasil, ainda no século XIX. Contrariamente à apresentação do
Dicionário Mulheres do Brasil, referida na introdução deste estudo, que
desconsidera movimentos isolados como os de Nísia e Carmen, considera-se
nesta pesquisa a atuação de Nísia Floresta Augusta
27
como a “primeira onda
do feminismo no Brasil. A “segunda onda” demarca-se pelo Movimento
Sufragista, que, em 1917, mobilizou 84 mulheres a saírem em passeata nas
ruas do Rio de Janeiro em prol do voto. Esse movimento é considerado pelo
referido dicionário a “primeira onda”. Denominar-se-á “terceira onda” o trabalho
de Carmen da Silva que, no ano de 1963, escreve em defesa da mulher de seu
país
28
, cuja atuação é anterior à segunda onda proposta pelo Dicionário,
demarcada a partir do ano de 1975. No período em que Carmen exerce a
militância, ela enfrenta sozinha não apenas o preconceito e a resistência de
uma tradição masculinista arraigada, mas sobretudo uma ditadura puritana que
censurava as manifestações de livre expressão.
A ousadia da linguagem com a qual Carmen da Silva trata seus temas
tornou-se marca inconfundível. A cena literária nacional não mais poderia
ignorar essa personalidade forte, tampouco seu valor artístico na sociedade.
Uma outra característica de sua produção é, sem dúvida, a desconstrução dos
falsos ideais e valores que, segundo ela, poderiam impedir uma existência
plena. Para alcançá-la Carmen narra, tanto nos artigos quanto nas duas obras
aqui apresentadas, suas experiências enquanto jornalista e mulher sempre
resistente aos obstáculos, incisiva e corajosa. Nas primeiras linhas da
autobiografia, ela vai parafrasear a célebre frase de Beauvoir “Não se nasce
mulher, torna-se mulher”, afirmando:
Nasci mulher. Sem a “petite différence”. Já de saída o enfoque
falocrático: mulher não nasce com tais ou quais características
próprias, tendo isso e aquilo – vagina, ovários, útero, seios,
27
Pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, brasileira do Rio Grande do Norte, que ficou
conhecida como precursora dos ideais de igualdade e independência da mulher no Brasil, por
ter traduzido e publicado em 1832 a obra Vindication of the rights of Woman, da feminista
inglesa Mary Wollstonecroft. Sob o título Direitos das mulheres e injustiça dos homens, sua
tradução foi editada três vezes consecutivas no Brasil. Nísia foi também fundadora e diretora
do Colégio Augusto (RJ), no qual propôs um projeto inovador voltado à educação das meninas.
Além de educadora, tradutora e escritora feminista, Nísia Floresta Augusta foi uma grande
defensora das causas abolicionistas. Sempre envolvida em atividades humanitárias, em 1855,
quando o Rio de Janeiro foi atingido por uma epidemia de cólera, ela atuou como enfermeira
voluntária (Cf. Schumaher; Brazil, 2000: 453).
28
Na retrospectiva dos quarenta anos da revista Claudia, anuncia-se que em 1979 foi criada no
Brasil a Frente de Mulheres Feministas (Outubro, 2001 – Caderno Especial).
glândulas mamárias e o resto da parafernália que não é pouca
nem de escassa utilidade. Ela nasce sem. Seu sexo não é uma
característica, é uma carência (Hh: 9).
Apesar de Beauvoir estar na base da formação intelectual de Carmen da
Silva, esta se mostra contrária à afirmação da feminista francesa ao lançar a
sua própria definição do “ser mulher”. O fato de iniciar sua autobiografia com
uma teoria contrária àquela tradicional, em que o feminino caracteriza-se pela
ausência, serve para ratificar seu pensamento de que toda e qualquer mulher
se define de per si, tendo em vista todos os elementos formadores do seu
sexo, inexistentes no masculino. Quanto à referência à teoria falocrática
freudiana, que define a mulher pela ausência do pênis, embora não se
pretenda explorá-la, ela serve para demonstrar o quanto aquele pensamento foi
reducionista ao caracterizar o feminino pela incompletude com relação ao
homem. A mulher seria em conseqüência um ser inferior por “não ter” um
elemento que o totaliza.
Enquanto autobiógrafa, narradora de sua própria história, para Lori
Saint-Martin a mulher deixa de lado uma posição neutra para assumir uma voz
feminina que, sem ser de forma alguma autoritária, é portadora de uma
autoridade tranqüila. De fato, a narradora que diz “eu” impõe uma consciência
individual e se apropria tanto da capacidade de ver quanto daquela de
escrever, o que se comprova nas palavras de Michelle Riot-Sarcey
29
,
referenciadas por Saint-Martin: “O poder de dizer ‘eu’ é também uma luta
contra as formas de servidão contra a submissão da subjetividade das
quais as mulheres são particularmente vítimas” (2002: 91-92 ).
Para Lecarme e Lecarme-Tabone, no estudo do autobiografismo de
mulheres, as autobiógrafas que acreditam em uma “natureza feminina” – a
exemplo de Carmen da Silva atribuem as diferenças psicológicas e morais
entre sexos à educação, às limitações sociais ou ainda às representações
culturais dominantes. No entanto, essas escritoras manifestam uma consciência
29
Professora de História Contemporânea da Universidade Paris VIII. Especialista em história
do século XIX, particularmente em gênero e em utopia. Autora de várias obras, dentre as quais
tem-se La democratie à l'épreuve des femmes (1998), Le réel de l'utopie (1998) e L'histoire du
féminisme (2002). Dirigiu vários livros, dentre eles o Dictionnaire des Utopies, publicado em
2002.
precisa de sua pertença a um sexo regido por modelos conhecidos e específicos
(1997: 103).
Por acreditar que o problema é cultural e educacional que limita as
mulheres ao domínio do lar e as impede, na maioria das vezes, de ter acesso à
leitura –, é que Carmen da Silva utiliza-se de potentes instrumentos, a literatura
e o jornalismo, para tentar reverter o pensamento retrógrado. Na
contemporaneidade, Lori Saint-Martin compartilha com Carmen o mesmo ponto
de vista. Após refletir a respeito da opinião de inúmeros pensadores acerca da
importância da educação na formação do caráter, ela afirma que “a opressão
da mulher vem da cultura, da situação que lhe é imposta” (Saint-Martin, 2002:
177). Além disso, quando Carmen da Silva se refere à vida na sociedade rio-
grandina, ela descreve ter sido capaz de perceber, já na adolescência, as
injustiças sociais com relação ao comportamento das mulheres num período
em que ninguém ousaria manifestar-se em desacordo: “Numa época em que
nada se questionava, [seria] preciso muito mais maturidade do que a que eu
tinha para desmascarar a hipocrisia das Verdades Absolutas” (Hh: 13-14).
Essa consciência, que reconhece os preconceitos e as diferenças entre
os sexos, manifesta-se sob a forma de denúncia, traço distintivo das
autobiografias femininas. Voltando ainda a Lecarme e Lecarme-Tabone, a
denúncia, associada à construção da identidade, caracterizaria sua
especificidade com relação à autobiografia masculina. Para os teóricos, “a
mulher escritora encontra com mais freqüência sua verdadeira identidade na
construção de sua vida afetiva e intelectual, o que designa as etapas de uma
progressiva emancipação” (1997: 97). Torna-se evidente na construção de
Histórias híbridas que Carmen da Silva reconstrói sua vida servindo-se da
escrita, instrumento que lhe possibilita apontar os aspectos positivos de suas
conquistas profissionais e pessoais. No balanço final de sua vida, após
conquistar o reconhecimento público enquanto militante pelos direitos da
mulher, Carmen escreverá suas memórias levando o(a) leitor(a) a acreditar na
idéia de um “renascimento pela escrita”, em que a narradora procede à análise
do eu, que funciona como auxiliar na busca das suas múltiplas identidades
presentes.
Outro elemento determinante para o(a)s teórico(a)s, no que diz respeito
à construção da identidade feminina, seria as relações estabelecidas no seio
familiar, mais precisamente entre mãe e filha no período da infância desta
última. Além de implicar uma adesão aos valores que a mãe representaria,
essa relação se estabelece de forma especular (id.: 98). Ao recordar sua
infância, Carmen da Silva descreve – embora de forma muito breve – seu
vínculo com a mãe, do seu ponto de vista um espelho que reflete uma imagem
negativa com a qual ela não quer se identificar.
Minha mãe era uma figura muito especial. Uma das pessoas
mais reprimidas do mundo – e pode botar repressão . [...]
Quando algum conhecido a via na rua, perguntava logo quem
estava doente na família, pois a doença de parentes a
arrancava de seu confinamento. Se encontrasse um de seus
irmãos ou irmãs no passeio oposto, cumprimentava com um
discretíssimo aceno de cabeça, sem sorrir: não achava correto
uma senhora abanar a mão na rua e arreganhar os dentes para
quem quer que fosse (Hh: 21).
O exemplo negativo do comportamento reservado da mãe contribuiu
para a construção da identidade da escritora. Carmen da Silva ao menos sabia
o que não queria ser. O retorno por meio da narrativa ao nculo maternal, o
qual se estabeleceu desde a infância, comprova que para ela, a mãe, embora
amada, sempre foi o antimodelo, pois representava a situação de opressão e
contenção opressora que não queria para si.
Retomando o contraponto do contexto quebequense, na literatura de
Gabrielle Roy as mães oprimidas simbolizam as “prisioneiras”, enquanto as
filhas emancipadas representam as “desertoras” ou as “viajantes”. O que se
verifica no universo royano é que toda viajante nasce de uma prisioneira que a
ajuda a se evadir (Saint-Martin, 2002). Embora viajante, Carmen da Silva
encarnaria a simbologia da desertora. Em sua autobiografia fica clara a fuga
aos compromissos natos: o casamento, a domesticidade e a maternidade. Sua
mãe, primeira referência a eles atrelada, foi o melhor exemplo – ou anti-
exemplo –, o impulso para a evasão. Poderia Carmen ser considerada uma
escritora “matrifóbica”. Este termo, empregado por Lori Saint-Martin para definir
uma das personagens do romance Bonheur d’occasion (1945), de Gabrielle
Roy, designa, na moça, “o medo de se tornar uma réplica de sua mãe, de ter
que reproduzir sua vida” (id.: 44).
Lecarme e Lecarme-Tabone (1997) também fazem alusão à relação da
autobiógrafa com os outros, que a mulher escritora atribui maior importância
ao seu semelhante, tanto na definição de sua identidade quanto no plano
afetivo. Poucas se limitam à singularidade do “eu” individual, aspecto típico das
autobiografias femininas onde o “eu” se define a partir da relação com a
comunidade e em conseqüência dessa interdependência
30
. Premissa
igualmente característica das obras de escritoras do século XIX, visto que elas,
segundo definem os teóricos, eram muito mais memorialistas [na produção de
uma narrativa que se constrói a partir do narrador em sua relação com as
demais personagens] do que autobiógrafas [na produção de uma narrativa
subjetiva] (id., ibid.). Carmen confirma assim, pela prática da escritura, a
atualização desse postulado, aplicando-o tanto em suas Histórias híbridasem
que a adoção do termo híbrido é justificada pela mistura do relato de
experiências individuais e alheias quanto em Sangue sem dono, estudado no
próximo capítulo. Além de conservar essa estratégia estético-narrativa de
rememoração, um de seus temas norteadores será a pluralidade. O caráter
memorial nas duas obras justifica a inserção de relatos diversos; suprime-se
nesses momentos a subjetividade, dando destaque às inter-relações que
contribuem para a formação e afirmação identitária do “eu” feminino Carmen da
Silva.
Para diferenciar a escritura feminina daquela produzida por homens, é
agora Josette Féral
31
quem adota a metáfora irigariana do espelho
32
, na qual a
representação do discurso feminino seria o espelho côncavo que dissemina e
deforma, em oposição ao espelho plano que oferece uma representação única
e plana, escrita do discurso dominante. Mais uma vez recorre-se ao efeito
especular para referenciar uma imagem que reflete o anti-exemplo: o espelho
côncavo apresenta a ruptura e deformidade de uma tradição narrativa intimista
que outrora se atribuía a personalidades masculinas. O espelho plano estaria
diretamente ligado ao reflexo da imagem perfeita, à representação plena do
30
Aspecto relacionado também àquele de certas feministas francesas dos anos de 1970 que
recusavam os valores masculinos fundados na competição e na conquista (Lecarme; Lecarme-
Tabone: 1997).
31
Professora do Departamento de Teatro da Universidade do Quebec em Montreal (UQÀM).
Foi nos anos de 1970 e 80 que ela abraçou as causas feministas e publicou uma série de
artigos sobre o assunto, editados em diferentes revistas nos Estados Unidos e no Canadá.
32
Cf. Irigaray, Luce. Ce sexe qui n’en est pas un. Paris: Minuit, 1977.
sujeito social. Mas quando se pensa no primeiro espelho, o côncavo, pensa-se
na deformidade da imagem, o que logo resulta em rejeição, ou seja, na
marginalização do discurso feminino por encontrar-se fora do padrão
dominante. Josette Féral irá mostrar ainda que os elementos constitutivos
dessa diferença, que perturba o sistema de representação dominante, seriam a
pluralidade e a multiplicidade: “encontrar-se, para a mulher poderia significar
a possibilidade de não se identificar a ninguém em particular, de jamais ser
simplesmente uma; a mulher permaneceria sendo sempre várias(Féral, 1994:
48). Essa multiplicidade de “eus” vem ao encontro do caráter híbrido,
constitutivo de Carmen da Silva, que pode ser vista como representação da
soma ou síntese de todas as experiências, de âmbito cultural e social, vividas
ou tidas como exemplo. Ela consegue se definir a partir de sua relação com
o mundo. Não se pode entendê-la senão conhecendo e/ou associando sua
história com as histórias alheias.
Para Mary Jean Green
33
(1992), a descoberta da identidade das
autobiógrafas teria relação com os “outros”, os quais, diferentemente das
autobiografias masculinas, seriam aqueles que povoam o mundo privado e
pessoal da escritora. Isso explicaria o porquê da marginalização dessas
produções, enquanto a masculina referencia o vasto campo da história política.
No primeiro capítulo de sua autobiografia, Carmen da Silva relata um fato
ocorrido em Rio Grande com uma jovem balconista da livraria que freqüentava.
A moça, chamada por ela de Veneza, fora vítima da imposição moral daquela
sociedade. Por ter saído com um grupo de rapazes, perdeu o emprego e foi
rejeitada pelas pessoas da cidade, que lhe viravam o rosto. Ela encontrou
saída para a difícil situação moral e financeira em que se encontrava e para a
conseqüente rejeição que sofreu, entregando-se à prostituição. Esse
acontecimento foi marcante para Carmen, que, em plena adolescência,
formava seu caráter e buscava afirmar sua identidade.
33
Ocupa a cadeira de Francês no Darmouth College, no estado de New Hampshire (EUA). Seu
interesse pela escrita feminina e pela identidade nacional quebequense vem refletido em seu
livro Women and narrative identity: rewriting the Quebec national text (2001). Seu ensaio a
respeito da escritora quebequense Marie-Claire Blais (1995) foi a primeira obra em forma de
livro publicada sobre a autora. Também trabalha no amplo campo da literatura francófona como
editora da coletânea de ensaios Postcolonial subjects: francophone women writers (1995) e da
antologia Écritures de femmes (1996).
A queda! Foi meu primeiro vislumbre da condição feminina como
algo iníquo. Os alegres rapazes podiam divertir-se todas as
noites na Mangacha [um cabaré nos arredores da cidade] sem
perder nada: para eles, tudo continuava igual. Veneza não. Ela
se divertira eu não sabia como uma noite e isso bastara
para precipitá-la na abjeção. Uma abjeção ostensiva, agressiva,
gritante. [...] De qualquer modo, a figura de Veneza me comoveu
e me fez pensar (Hh: 13).
Veneza é apenas uma dentre outras mulheres que têm sua história
narrada na autobiografia e que influenciam a vida pessoal de Carmen,
contribuindo para sua tomada de consciência quanto à situação real da mulher.
Nessa ocasião, ela investe contra a hipocrisia de algumas pessoas do Rio
Grande, pois os mesmos homens que viraram o rosto para Veneza na
companhia das esposas compunham a lista de fregueses na nova “profissão”
da moça (id.: 12). Esta hipocrisia, entre outros, certamente foi um dos motivos
pelos quais Carmen da Silva sentiu-se estimulada a se lançar mais adiante nos
caminhos da escrita feminista.
Quanto às teóricas feministas em sua maioria, uma das maiores e mais
constantes preocupações que manifestam em suas reflexões é a de saber a
proveniência da dominação masculina, sua origem. Simone de Beauvoir, a
esse respeito, rejeita qualquer explicação oferecida pela biologia, psicanálise
ou materialismo histórico, preferindo adotar uma opinião formulada por ela e
fundamentada na filosofia existencial, que vai defender nas páginas de O
segundo sexo, aqui resumida:
[As mulheres,] ocupadas em dar a vida e a cuidar do cotidiano,
não puderam participar da invenção das ferramentas, da
dominação progressiva do mundo natural, em suma, da
transcendência. Atraídas como todo ser humano pela
transcendência, mas tendo o “malefício” de serem condenadas
antes a reproduzir a vida, elas reconhecem espontaneamente o
homem como “soberano” (Beauvoir, 1949: 114).
Na interpretação das considerações de Beauvoir, é possível entender
que a mulher, de certa forma, contribui para que o pensamento atávico
permaneça. Isso se deve ao fato de ela ter sempre aceitado a maternidade
como uma obrigação imposta ao seu sexo e jamais ter reivindicado sua
participação social concomitante às atividades maternas.
Saint-Martin reconhece as múltiplas semelhanças entre a opinião de
Gabrielle Roy e a de Simone de Beauvoir. Sem entrar no longo debate
proposto pela feminista francesa, ela salienta que para ambas a maternidade
representa em primeiro plano a subordinação da mulher com relação ao
homem (2002). Em segundo, tanto Beauvoir como Roy atribuem à maternidade
a inferioridade social da mulher. Para ambas, “a maternidade opõe-se à
transcendência [de sua condição passiva] e condena a mulher a caminhar
docilmente atrás do homem” (id.: 174).
Nancy Huston
34
, sabendo que Beauvoir rejeita a maternidade por
considerá-la “a negação por excelência da liberdade e da livre escolha do
sujeito por ele mesmo” (Huston, 1990: 138), vai lembrar ainda que a feminista
francesa define a gestação como “um trabalho cansativo, que não apresenta à
mulher nenhum benefício individual” (id., ibid). Para Beauvoir, a mulher, “da
puberdade à menopausa, é a base de uma história que se desenrola nela e
que pessoalmente não lhe diz respeito” (id., ibid). Huston, no Journal de la
création (1990), discute justamente essas mesmas questões inerentes à
criação artística e nos leva a O segundo sexo, onde se lê a esse respeito:
[A] gravidez é principalmente um drama que se desenrola na
mulher entre si e si; ela a sente ao mesmo tempo como um
enriquecimento e uma mutilação; o feto é uma parte de seu
corpo e um parasita que a explora; ela o possui e é por ele
possuída; ele resume todo o futuro e, carregando-o, ela sente-se
ampla como o mundo, mas essa própria riqueza a aniquila; ela
tem a impressão de não ser mais nada. O que de singular na
mulher grávida é que, no mesmo momento em que transcende,
seu corpo é apreendido como imanente: encolhe-se em si
mesmo, em suas náuseas e seus incômodos; deixa de existir
para si só; é que se faz mais volumoso do que nunca
(Beauvoir, s/d: 262).
Nancy Huston, que estaria grávida no momento da escritura do seu
Journal, atualiza o citado posicionamento de Beauvoir para dialogar com o
34
Canadense da província de Alberta, Nancy Huston mudou-se para Paris em 1973, onde vive
desde então. Prolífica autora em língua francesa, tem como recente publicação Les
professeurs de désespoir (2004). Reconhecida também como romancista de expressão inglesa
e tradutora, reescreveu ou traduziu a maioria de seus títulos. Garantiu a reputação de escritora
não apenas de ficção, mas também de provocadores e ecléticos ensaios, em coletâneas como
Dire et interdire: éléments de jurologie (1980), Mosaïque de la pornographie: Marie Thérèse et
les autres (1982), Lettres parisiennes: autopsie de l’exil (1986), Journal de la création (1990),
Tombeau de Romain Gary (1995), Désirs et réalités (1996), Nord perdu (1999), entre outros,
que lhe valeram vários prêmios e a colocaram como um nome reconhecido na cena literária.
pequeno ser que cresce em seu ventre. Dessa maneira ela pôde compreender
o sentido da maternidade e o quanto ela pode interferir positiva ou
negativamente na produção artística da mulher escritora. O segundo sexo de
acordo com Huston é um livro tão profundamente dividido quanto sua autora.
Cada vez que Beauvoir considera a experiência feminina do exterior, ela
retoma o discurso uniformizante que faz do homem um ideal para os dois
sexos e descreve a gestação como um “trabalho cansativo que não apresenta
nenhum benefício individual para a mulher”, afirmando ainda que, de toda
maneira, “da puberdade à menopausa a mulher é o centro de uma história que
se desenvolve nela, mas não a concerne pessoalmente”. Ao que Nancy Huston
contra-argumenta no diálogo com o filho que está gestando:
Eu repito [...] esta frase pensando em ti, [...], tu que me
acompanhas e me fazes sentir tua presença nos momentos
incongruentes; eu falo e estás aqui, me dás forças, humor,
distância, trazes tudo na medida exata, tu me devolveste o
apetite e acima de tudo o sono que me faltava tão crucialmente
nestes últimos meses, acalmaste minhas lágrimas de raiva no
meio da noite, restituíste meu equilíbrio no mundo, devolvido a
mim antes mesmo de nascer, fizeste tudo isso e seria eu neste
momento o centro de uma história que se desenrola em mim e
que, pessoalmente, não me diz respeito? (Huston, 1990: 138).
Observa-se que para Huston – ao contrário de Beauvoir – o estado
maternal é muito mais uma inspiração à produção literária do que uma barreira.
De certa forma, ela concebe que somente a experiência de gestação pode
proporcionar a valoração da produtividade e a inspiração artística femininas.
Na concepção de Carmen da Silva, manifestada em um de seus artigos
publicados em Claudia, a independência de uma mulher, casada ou solteira, o
seu feminismo, podem estar associados à maternidade, na medida em que for
uma escolha e não uma obrigação
35
. Em Histórias híbridas, ela não se
manifesta quanto a essa questão, apenas indica que não teve filhos, ou melhor,
optou por não tê-los. Quando anuncia sua escolha, aproveita para reforçar por
meio de sua peculiar ironia e não sem o tempero do humor o infortúnio
social que representava na época ter um filho do sexo feminino.
35
Cf. Artigo de Carmen da Silva: Maternidade não é uma obrigação. É uma escolha. In: Civita,
1994, p. 201.
Filha mulher é golpe falho: insista até acertar [...]. Mulher passa
a vida inteira tratando de fazer-se perdoar o fato de ter nascido
com o sexo errado: eis o verdadeiro pecado original. Menina
é bem-vinda quando existe pelo menos meia dúzia de
machinhos infernizando a casa e inflando o ego paterno com o
orgulho da continuidade do nome: o meu nome! Mesmo que seja
Gomes ou Santos. De minha parte, um dos melhores motivos
que tenho para gostar de ser mulher é que eu jamais serei
responsável por mais um da Silva (Hh: 151)
36
.
Na produção de gênero feminino, pode-se aproximar ainda a
autobiografia de Carmen da Silva do estudo de Julie LeBlanc
37
. Ao analisar a
produção íntima de Madeleine Ouellette-Michalska, LeBlanc (1996) revela que
a escritura autobiográfica no feminino estaria fundada em uma dinâmica
recíproca da identidade e da alteridade, que ocorre pela ruptura instaurada
entre estas e as narrativas autobiográficas canônicas, ou seja, aquelas de
gênero masculino que seriam representativas da teoria clássica proposta por
Philippe Lejeune. Tal ruptura verifica-se na concepção do sujeito em Ouellette-
Michalska. Assim como no texto da rio-grandina, ele não é unívoco nem uno,
mas múltiplo e difuso. Com isto se justifica o que pensa Mary Mason, para
quem um dos temas recorrentes e um dos princípios estruturais das narrativas
autobiográficas de mulheres é a autodescoberta da identidade feminina, que
parece reconhecer a presença real e o reconhecimento de uma outra
consciência (apud Le Blanc, 1996); ou, como se inscreve em Carmen da Silva,
a manifestação de muitas consciências oprimidas e adormecidas. Michalska e
Carmen propõem desmistificar uma concepção humanista e essencialista da
feminilidade para colocar em evidência as causas do poder exercido sobre as
mulheres e reverter as ideologias veiculadas pelo sistema patriarcal. Em suas
36
Uma recente reportagem de capa da revista Planeta anuncia que, na contemporaneidade,
após tantas conquistas femininas, tantos obstáculos ultrapassados, o preconceito em ter uma
filha mulher ainda é um infortúnio para algumas sociedades. Apenas na Índia são mais de 40
milhões de casos de aborto seletivo ou de infanticídio de fetos femininos que se justificam por
desejo e tradição de se ter filhos homens (Planeta, abr. 2005: 43). Países como a Índia, China
e Coréia do Sul têm em comum o fato de serem sociedades patrilineares. Paradoxalmente são
os seus Estados mais desenvolvidos no campo econômico e educacional que eliminam as
meninas. Isso porque somente os mais afortunados dispõem de recursos para pagar as ultra-
sonografias e os abortos (id.: 45).
37
Professora adjunta no Departamento de Estudos Franceses da Universidade de Toronto, ela
preparou a edição crítica de Masques, de Gilbert LaRocque. Seus domínios de pesquisa
compreendem a literatura quebequense contemporânea, as teorias da enunciação, a genética
textual e a semiótica visual. É autora de inúmeros artigos publicados em revistas e obras
conjuntas quebequenses, canadenses e internacionais.
autobiografias, estas escritoras “não acentuam sua própria existência, sua vida
individual, e não conseguem contar sua própria história” (id.: 59).
Barbara Havercroft
38
considerará que jamais a identidade-mulher será
construída isoladamente, sem a presença de outras mulheres. Para elucidar
sua afirmação ela refere o estudo realizado no Journal intime
39
(1984) de
Nicole Brossard
40
. Pode-se aproximar esses postulados à reflexão que se
propõe acerca da autobiografia de Carmen da Silva, pois a identidade textual
do sujeito no Jornal íntimo de Brossard, assim como em Histórias híbridas de
Carmen da Silva, revela-se plural, heterogênea, elaborando-se na referência
freqüente a outras mulheres (Havercroft, 1996).
Havercroft acrescenta ainda que a pluralidade é ressaltada pelas
numerosas evocações intertextuais, títulos de textos e o número de leituras que
cercam e influenciam o “eu” diarista (idem). Mas, por que não o “eu”
autobiógrafo? Carmen da Silva faz ver direta ou indiretamente a suas leitoras a
influência de Simone de Beauvoir desde a composição do título da
autobiografia, que se assemelha àquela da francesa, intitulada Merias de
uma moça bem-comportada (1958). A importância intelectual de Beauvoir na
construção da mulher-artista Carmen da Silva e sua conseqüente identificação
com o trabalho daquela feminista tornam-se visíveis quando, diante do
resultado positivo de suas primeiras conferências e palestras públicas, Carmen
autonomeia-se “Simone de Beauvoir-dos-pobres” (Hh: 125), aludindo o gênero
de sua produção.
Deve-se também considerar que a rio-grandina refere constantemente
outras escritoras e psicanalistas famosos; cita o nome de algumas obras que já
38
Professora no Departamento de Estudos Franceses e no Centro de Literatura Comparada da
Universidade de Toronto. Publicou numerosos artigos abordando os escritos autobiográficos
(em particular no feminino), as teorias da enunciação e o encontro literário entre feminismo e
pós-modernismo na prosa contemporânea quebequense, francesa e alemã. Foi diretora (1993-
1996) e redatora adjunta (1990-1993) da revista internacional Recherches Sémiotiques /
Semiotic Inquiry..
39
Havercroft classifica o diário íntimo dentro da categoria “literatura pessoal”, juntamente com a
autobiografia, as lembranças e as memórias. Segundo ela, o que diferencia a autobiografia do
diário íntimo é que neste último ocorre a presença constante de datas; também o tempo do
enunciado e da enunciação é reduzido, podendo variar entre alguns minutos, algumas horas ou
alguns dias (Havercroft, 1996: 24).
40
Nascida em Montreal, é co-fundadora das revistas La Barre du Jour (1965) e La Nouvelle
Barre du Jour (1977). Publicou mais de vinte obras, bem como numerosos artigos e textos.
Colabora regularmente para revistas quebequenses, canadenses e estrangeiras. Por duas
vezes mereceu o prêmio Gouverneur General por Mécanique jongleuse (1975) e Doublé
impression (1984). Suas obras, além do inglês, foram traduzidas para o alemão e o italiano.
leu, tais como o Complexo de Cinderela, de Colette Dowling, O segundo sexo,
de Beauvoir, e intertextualiza algumas passagens célebres de obras escritas a
respeito das mulheres ou para elas. Se essas referências intertextuais
contribuem para a multiplicidade da subjetividade e da identidade no feminino,
Havercroft (1996) dirá que a evocação de numerosas mulheres, conhecidas,
menos conhecidas e até mesmo anônimas, a exemplo da jovem Veneza,
confere riqueza, movência e hibridação à narrativa dessa identidade plural.
Isto vem corroborar o que Estelle Jelinek, citada por Green, diz a
respeito do que pensa ser uma autobiografia de qualidade. Para ela, em vez de
ser um auto-retrato, a autobiografia deve ligar-se à sociedade, pois é um
testemunho, o reflexo de uma época (Green, 1992). Quando Carmen escreve
Histórias híbridas, ela oferece o testemunho vivo da experiência em quatro
sociedades distintas: sua cidade natal, Rio Grande; Montevidéu; Buenos Aires
e Rio de Janeiro. Em meio ao registro de cada recordação, com o reflexo da
época em que viveu, é possível notar sua preocupação em revelar que a
situação da mulher não se modificou ao longo de 40 anos que se estendem
da adolescência, nos anos 30 do século passado, ao seu retorno ao Brasil, na
década de 1960. Quando recorda a vida em Buenos Aires, cidade considerada
um dos grandes centros culturais da América Latina, ela registra que lá a
mentalidade coletiva, com relação à mulher, não era muito diferente.
Às vezes, [eu] saía para comer [...] ou trazer um jantar [...],
renovar o estoque de vinho ou de cigarros, comprar a edição
vespertina de La Razón. E mal dava o primeiro passo sozinha
na rua, caía-me em cima o enxame furioso e zumbidor [de
homens]. [...] Eu me sentia envolvida por uma violenta onda de
agressão, tanto mais indignante porque gratuita [...] (Hh: 39-40).
Na época, apesar desse testemunho, a situação da mulher começava
a ser questionada e debatida. No retorno ao Brasil, ela se espantou com o
desinteresse em abordar e rever certos conceitos que ainda mantinham a
mulher em uma posição inferior em relação ao homem. No registro dessas
primeiras impressões, Carmen nos conta:
Aqui [no Brasil] ainda se rezava pela antiga cartilha: mulher era
aquilo mesmo, feita para tal-e-qual, destinada pela natureza
para estas-e-aquelas funções e biologicamente inapta para
tantas outras, glorificada por cumprir a missão sublime de
esposa e mãe e ameaçada de perder a feminilidade supremo
castigo! se tentasse ampliar seu campo de ação (Silva, in
Civita, 1994: 58).
No Rio de Janeiro, Carmen percebe logo, no contato com as mulheres
do escritório onde começa a trabalhar, que, embora independentes, solteiras,
ganhando seu próprio sustento, algo além disso lhes faltava para que tivessem
uma existência plena. E era desse algo mais que Carmen, julgando-o
essencial, tentava conscientizá-las – elas e todas as mulheres daquela época.
Enfrentavam sozinhas, com uma plácida coragem inconsciente
de si, todos os desafios da existência, exceto o mais
compensador: o desafio de ser. O direito de dizer eu gosto, eu
quero, eu faço, eu desejaria, eu pretendo, sem copiar gestos,
quereres, desejos e pretensões condicionados por séculos de
lavagem cerebral: a vontade masculina, a exigência masculina,
os padrões masculinos, os preconceitos masculinos ditavam a
lista completa de suas possibilidades e aspirações (Hh: 117-
118).
Ainda a respeito do caráter memorialista das autobiografias femininas
ao pensarmos nessa citação verifica-se na escrita de Carmen o que Estelle
Jelinek defende como “memória”, termo que segundo ela, seria mais adequado
para definir as autobiografias de autoria de escritoras; em sua concepção, o
termo engloba formas menos estruturais, isso porque a narrativa autobiográfica
feminina, se for destacada uma dentre suas principais características,
apresenta ausência de estrutura e o respeita, em geral, a ordem cronológica
ou a progressão, sendo freqüentemente fragmentada (apud Green, 1992).
Embora Carmen da Silva não organize sua narrativa obedecendo uma
cronologia linear na obra em questão, ao ler Histórias híbridas percebe-se logo
que a escritora somente respeitará a linearidade temporal nascimento,
infância, adolescência e maturidade na escrita para mostrar ou comprovar
uma progressiva construção identitária, resultado dos acontecimentos vividos
e/ou presenciados. Ao iniciar sua autobiografia narrando o nascimento, Carmen
não estruturou esse relato obedecendo a cronologia dos acontecimentos, visto
que seria impossível recordar aquela situação, considerando as limitações da
memória, mas serve-se daquele momento inicial muito mais para politizar e
polemizar, suscitando assim o questionamento a respeito dos métodos
arcaicos adotados no parto. Aproveita ao mesmo tempo para criticar a tentativa
de superioridade masculina que se manifesta até mesmo nessas horas.
Como todo mundo, nasci encarquilhada e roxa. Fui recolhida por
mãos capazes, pendurada de cabeça para baixo e levei a
clássica palmada que, segundo a ciência provou, não traz
nenhum benefício ao bebê. Serve, isto sim, para que um homem
castigue um alguenzinho que virá usurpar ao outro homem o
pai oficial uma parte do tempo, do afeto e do interesse da
mulher que ele considera como sua propriedade exclusiva. Um
bebê recém-nascido e um adulto disputando a supremacia
dentro de casa, ambos querendo mamar da mesma mãe,
costumam dar muita alteração (Hh: 9).
As atitudes e os mecanismos empregados no nascimento levam à
introspecção do “eu”, desde a vinda ao mundo, passando pelas suas múltiplas
etapas para chegar às questões da pertença, às interrogações a respeito do
papel social. O olhar que Carmen da Silva dirige às questões identitárias é
múltiplo, às vezes irônico, outras crítico, mas deixando entrever sempre uma
visão que, em mais de uma perspectiva, é engajada e crítica ao mesmo tempo.
A identidade no domínio da criação literária contemporânea é por ela tratada
com originalidade e exemplos concretos, vividos ou presenciados que
permitem apreender as nuances inerentes a sua problemática histórico-social.
A autobiografia tradicional, que representa a expressão coerente e
unificada de uma vida, para algumas críticas feministas é uma forma
androcêntrica e reprodutora do sistema patrilinear e de suas ideologias a
respeito do gênero sexual. Barbara Havercroft vai lembrar que quase total
ausência de textos autobiográficos de mulheres nos estudos das histórias da
autobiografia. O próprio estudo de Lejeune, O pacto autobiográfico (1975), e
outros que o seguirão, comprovarão o postulado de que o escritor analisa
narrativas que compõem um corpus exclusivamente masculino (Havercroft,
1996).
A inovação na literatura, ocorrida com a inserção da produção de gênero
feminino sob a forma de narrativas autobiográficas e seus demais subgêneros,
manifesta-se em diversas escritoras quebequenses nos anos que sucedem a
década de 1970, o que nos mostra quão inovadora foi Carmen da Silva na
produção de sua autobiografia feminista em 1984 se levarmos em conta o
descompasso da literatura sul-americana e brasileira na ocorrência, no que diz
respeito ao acompanhamento dos avanços das teorias feministas.
Na América do Norte, no âmbito dos estudos canadenses, os textos
considerados inovadores da literatura refletem a construção histórica, política e
social dos sujeitos femininos. A presença de uma pluralidade e hibridação de
vozes femininas faz com que as obras referenciadas participem resolutamente
de um feminismo literário pós-moderno. Da mesma forma pode-se dizer que a
gaúcha Carmen da Silva participa dessa pós-modernidade literária com sua
produção reveladora de um caráter híbrido, no que se refere às questões da
pluralidade e da identidade híbrida da autora, cuja multiplicidade de histórias de
outras mulheres, enunciadas pela sua voz, tem o intuito de modificar os
parâmetros culturais e reconstruir o papel histórico, político e social da mulher.
Essas narrativas, para Patricia Smart
41
(1996), além de revelarem uma
evolução em direção à liberdade e à autonomia tão desejadas e, sem dúvida,
em direção à vocação de escritora, traduzem a urgência de um discurso que
tem sede em ascender à expressão escrita para comunicar a importância
ardente de coisas que precisam ser ditas mas que jamais o foram
anteriormente.
É sabido que por longo período a mulher esteve descartada da cena
pública/literária. Lecarme e Lecarme-Tabone consideram que todas aquelas
que ousaram publicar seus escritos e falar de si mesmas transgrediram normas
arraigadas e tabus invioláveis. A transgressão própria do texto de escritoras em
suas mais recentes variações é relacionada por Barbara Godard
42
. Ela aponta
a ousadia das mulheres em subverter a convenção literária de uma
feminilidade passiva: “elas assumiram sua sexualidade e manifestaram
41
Professora na Universidade Carleton, publicou Hubert Aquin agent doublé (1973) e Écrit
dans la maison du père: l’émergence du féminin dans la tradition littéraire du Québec (1988),
que lhe valeu o prêmio Gouverneur Général. Esse ensaio, traduzido para o inglês pela autora
[Writing in the father’s house: the emergency of the feminine in Quebec literary tradition, 1991],
concedeu-lhe os prêmios Gabrielle Roy, da Associação das Literaturas Canadense e
Quebequense, e Marion-Porter, do Instituto Canadense de Pesquisa sobre a Mulher, na
categoria de melhor artigo feminista publicado em 1986.
42
Professora de Inglês, Francês, Pensamento Social e Político e Estudos Feministas na
Universidade de York, tem muitas publicações a respeito das culturas canadense e
quebequense e das teorias feminista e literária. Tradutora e autora, Godard também é co-
editora fundadora do periódico de teoria feminista Tessera, membro do corpo editoral de Open
Letter e editora e revisora de livros de Topia. Em 1997-98, recebeu o prêmio Gabrielle Roy da
Associação das Literaturas Canadense e Quebequense, a Honra ao Mérito da Associação de
Estudos Canadenses (1995) e o Prêmio Vinay-Darbelnet da Associação Canadense de
Estudos de Tradução (2000).
livremente seus desejos. Assim fazendo, elas transgrediram” (in Saint-Martin,
1992: 85). A inscrição de Carmen da Silva na literatura, por meio de sua
produção literária e jornalística, em que ela se insere como protagonista ou
coadjuvante, é um exemplo que marca, no Brasil, a partir de 1960, o início de
um novo contexto que, para Barbara Godard, permite à mulher sair de seu
isolamento pela possibilidade de, enquanto escritora, encontrar leitoras e
leitores cuja compreensão poderia liberá-la do silêncio e do esquecimento (id.:
95). Após um ano vivendo no “semi-anonimato”, Carmen da Silva emerge de
seu isolamento intelectual com a publicação do seu primeiro romance escrito
no país, Sangue sem dono, e com o trabalho junto à Editora Abril:
Como cheguei lá [na revista Claudia]? [...] Eu acabara de
escrever meu primeiro romance, Sangue sem Dono, que
marcava o amoroso reencontro com meu idioma, meu país [...].
Ante um parecer sumamente generoso de Geir Campos, a
Editora Civilização Brasileira resolvera editá-lo [...]. E foi com
essa sensação de ter os deuses ao meu lado que me aproximei
da Editora Abril e consegui uma coluna à qual, Deus me perdoe,
a direção deu o nome de “A arte de ser mulher”. Bem, está
certo, se você acha que acrobacia é arte. [...] Proposta auto-
assumida: mexer em abelheiro: no meu e nos alheios. Mexi (Hh:
119).
Quanto à problemática da crítica que jamais permitiu receber ou apreciar
obras de mulheres e que, por isso mesmo, conseguiu excluí-las, enquanto
agentes ativos, dos domínios da literatura e cultura, Louise Forsyth
43
, de forma
otimista, sustenta que a transformação que se efetua ao longo da última
década – 1990 – até os dias de hoje, é devida à tomada de consciência
coletiva das mulheres e graças à apropriação da linguagem por meio da qual
falam de suas experiências (in Saint-Martin, 1994).
Quando Carmen apropria-se de uma nova linguagem via seu discurso
literário e jornalístico, ela tem o firme propósito de reverter as mentalidades
sufocadas pelos valores dominantes de uma sociedade essencialmente
patripotestal. Assim, no desenvolver do seu trabalho, quando relata suas
experiências e as de outras mulheres, ela vai conquistando um público
43
Professora no Departamento de Estudos Franceses e membro decano do Colégio dos
Estudos Avançados e das Pesquisas da Universidade de Saskatchewan. Escreveu vários
artigos e apresentou diversas comunicações sobre escritoras e teóricas canadenses, sobre a
teoria feminista e sobre o teatro feminista no Quebec e no Canadá.
considerável de seguidoras, leitoras, feministas, jornalistas que encontram na
rio-grandina Carmen da Silva a porta-voz de seus direitos e seus lamentos e da
denúncia dos preconceitos e injustiças contra a mulher:
[À] medida que lia aquela aflitiva enxurrada de depoimentos [que
chegavam à redação da revista Claudia], [à] medida que refletia
sobre eles para responder às cartas e redigir os artigos, ia-me
enfronhando cada vez mais nos problemas, nas contradições,
nas perplexidades da condição feminina e “fazendo” a minha
própria cabeça. [...]. E quando dei por mim, havia ganho o título
de “mulheróloga”[...]. E, pior ainda, me havia tornado feminista.
Assumida e desbragadamente feminista. Com perdão da palavra
(Hh: 120).
O feminismo de Carmen da Silva, longe da conotação pejorativa que
transforma as feministas em figuras de paródia, machonas, “axilas floresta
amazônica”, briguentas e mal-amadas, consiste em instigar a mulher a não
ocupar uma posição de dependência com relação ao homem, a o aceitar
uma relação conjugal baseada no sacrifício unilateral, na indulgência ilimitada e
na auto-renúncia. Carmen da Silva é feminista porque traçou seu próprio
destino, porque denuncia escrevendo abertamente a respeito dos problemas e
frustrações das mulheres, uma Mulher com M maiúsculo que, ao finalizar sua
autobiografia, oferece a seguinte revelação:
Escolhi o feminismo como forma específica de luta, porque é o
terreno onde piso com mais segurança, maior conhecimento de
causa: branca, alfabetizada, originária da burguesia média no
tempo em que isso existia no Brasil –, a opressão sexista é a
que mais intensa e diretamente senti na própria carne (Hh: 189).
No entanto, de acordo com Marguerite Duras, falar ou escrever
livremente significa alinhar-se ao lado das loucas e das bruxas, é escrever nas
chamas que consomem suas palavras
44
. Embora as bruxas tenham sido
mulheres banidas das sociedades, vítimas do ódio coletivo, perseguidas e
queimadas pelas leis dos homens, existem hoje estudos que contribuem para
reverter a imagem distorcida desse estereótipo feminino. Nubia Hanciau, em A
44
Marguerite Duras em conversa com Xavière Gauthier, Les Parleuses. Paris: Minuit, 1974
(Apud. Godard, 1992: 85).
feiticeira no imaginário ficcional das Américas (2004)
45
, presentifica a
personagem da feiticeira, partindo de uma epígrafe extraída da obra de
Madeleine Ouellette-Michalska para sublinhar que essa mulher outrora
estigmatizada está nas origens das mulheres emancipadas, entre elas Carmen
da Silva:
Migração simbólica. A feiticeira evade-se do círculo doméstico e
empurra a fronteira cultural além do permissível, do conveniente,
do adequado. Essa mulher ultrapassa as margens! Fala, age,
mistura os filtros, as ervas, os excrementos, os cozimentos. [...]
Tatua-se com o sangue de suas próprias regras, transborda
seus fluxos conforme o prazer de seus fantasmas e apelos. É
delírio, ameaça, tentação. [...] É inapreensível. Fora de si
mesma. Fora de seu papel. Caminha sobre as brasas jogadas
no seu percurso [...] (apud Hanciau, 2004: 7).
Se todas as mulheres são de certa forma feiticeiras em suas horas,
Carmen também o foi em seu tempo. Mexeu com fogo, por vezes se
queimando, foi transgressora, ousou romper fronteiras, aproximando-se ainda
dessa figura histórica por sua relação afetiva com os gatos seus verdadeiros
amigos e eternos companheiros. Em Histórias híbridas ela justifica a
preferência por esse animal doméstico; associa os gatos que cercam às
bruxas, aproveitando a ocasião para entendê-las.
Compreendo por que as bruxas são sempre figuras na
companhia de um gato: a bruxa é a mulher que se pertence e se
mantém inteira. O gato da bruxa é mbolo de sua
independência, sua feminilidade não humilhada, não sujeita a
nenhum imperialismo corruptor. Maligna porque sua inteireza é
um desafio, temível porque fortaleza de mulher, integridade de
mulher só pode provir de pacto com demônio (Hh: 162).
De certa forma, a nova visão da bruxa resgatada via voz de feministas
como Ouellette-Michalska e Hanciau, reforçada por Carmen da Silva em 1984,
fazem desta escritora rio-grandina uma feiticeira migrante, transgressora dos
padrões morais, que decide re/traçar sua vida para fugir da predestinação. Por
isso representou uma forte ameaça à tradição dominante. Mulher/artista/bruxa,
a Carmenzinha ousou ultrapassar as fronteiras do permitido para consolidar
45
Prêmio ABECAN/ Air Canadá de melhor tese em estudos canadenses em 2003 e Prix Pierre
Savard 2005.
seu talento, com trabalho, atingindo os resultados que pouco a pouco ele lhe
proporcionaria.
As aspirações de Carmen da Silva se assemelham às de Gabrielle Roy,
que dizia sonhar com um mundo verdadeiramente justo para todos, onde os
homens não seriam privilegiados em detrimento das mulheres, nem o inverso,
mas onde todos pudessem realizar-se, exprimir-se, viver harmoniosamente em
sociedade. Este é o verdadeiro humanismo evocado por Saint-Martin (2002),
em benefício do qual o projeto feminista participa plenamente.
Ao observar a foto que ilustra a coletânea de Laura Civita e também a
capa desta dissertação –, vê-se que foi na companhia de seus gatos, diante de
sua máquina de escrever que esta rio-grandina, buscando concretizar suas
aspirações, cumpriu seu destino de “Ser Mulher”.
4 SANGUE SEM DONO (1964)
A narrativa do eu nos recônditos da vida
As mulheres têm a obstinação heróica: enquanto
puderem
aferrar algo – um grão de areia, o eco duma promessa,
um pedaço de vidro colorido, uma cintilação moribunda
não desistirão
46
Romance publicado logo após o retorno de Carmen da Silva ao Brasil,
Sangue sem dono é narrado em primeira pessoa e apresenta a personagem
homônima protagonista da obra Carmen da Silva, que ora se confunde com a
escritora. Tão logo a invenção narrativa sobrepuja a vida estritamente vivida,
fica explícito o exemplo de que a ficção começa a invadir o campo do
biográfico. A fortuna crítica contemporânea encontrada a respeito de tal obra
aponta para essa característica peculiar do romance. Nelly Novaes Coelho, ao
incluir a autora rio-grandina em seu Dicionário crítico de escritoras brasileiras,
afirma que “[n]o romance Sangue sem dono [...] se confundem ficção e
memória, ambas amassadas com o barro fecundo da paixão pela vida e da
lucidez crítica que peculiarizam a personalidade da autora. [...] Trama em que
se cruzam os tempos da infância, adolescência e maturidade” (2002: 106).
Nessa história de vida contada em 114 páginas sem subdivisões,
demarcadas por capítulos, a personagem Carmen traz ao presente
acontecimentos da infância na cidade do Rio Grande, conforme os padrões
moralistas-tradicionais dentro dos quais ela e todas as moças eram criadas.
Assim, na reminiscência do cotidiano dominical, Carmen nos faz saber que
46
SILVA, Carmen da. Sangue sem dono. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 1.
Todas as referências a essa obra serão indicadas pelas iniciais Ssd, seguidas do número da
página.
As moças do Rio Grande passeavam pela Praça Xavier Ferreira,
após a missa das onze, com as coxas apertadas, as nádegas
pudicamente contraídas por causa do sermão, por causa dos
cento e vinte mil olhos da cidade – olhos dos parentes, amigos e
conhecidos da família, olhos astutos, ubíquos e insubornáveis
(Ssd: 74-75).
A protagonista descreve o seu percurso de vida a partir da infância em
Rio Grande, a mudança para o Rio de Janeiro com a família quando ainda
muito pequena, a vida no Uruguai e na Argentina, e o retorno ao Brasil após
quase vinte anos de um exílio in/voluntário. A linearidade dos acontecimentos é
por vezes interrompida por digressões, reminiscências que como se
pressupõe em todo relato de uma história de vida ocorrem num fluxo de
consciência
47
. No entanto, o que prevalece na quebra do fio narrativo é a
constante comunhão que a escritora estabelece consigo mesma e com os
anseios da humanidade.
Ao retratar o cotidiano do trabalho e da vida privada, a personagem
Carmen descreve sua luta pela auto-afirmação enquanto mulher e escritora.
Ela revelará ainda seu engajamento social quando descobre que sua
identidade está associada à coletividade, pois “junto do povo, irmanada com
sua ira, sente por fim [...] que seu sangue, sendo de todos os oprimidos do
mundo, não tem dono
é o sangue de um ser livre” (Ssd: contracapa).
4.1
Diálogos de uma escritura engajada
Leitora e sucessora de Simone de Beauvoir, embora ainda se encontre
à margem de nossa literatura pelo esquecimento e não-reconhecimento por
parte da Academia, Carmen da Silva merece ser apontada como precursora
dos movimentos feministas no Brasil, que datam do século passado. No que
concerne ao feminismo de Beauvoir, é oportuno ressaltar que ela só será
47
Em Stream of Consciousness in the Modern Novel, 1954. O primeiro a definir o stream of
consciousness foi William James, em The Principles of Psychology. Segundo ele, esse tipo de
ficção, cuja ênfase principal é colocada na exploração dos níveis de consciência, antecipa o
falar com o objetivo de revelar, antes de mais nada, o estado psíquico da personagem. Para
ele, stream of consciousness não possui uma técnica definida; ao contrário, as mais diferentes
técnicas são utilizadas para apresentá-lo, todas elas tentando melhor analisar a alma humana
(cf.: Humphrey, 1976).
consagrada escritora feminista a partir da polêmica em torno de sua obra O
segundo sexo
48
, publicada em 1949. Até então ela tinha sido vista à sombra de
seu companheiro, o filósofo Jean-Paul Sartre. No entanto, diferentemente de
Carmen, ela jamais foi questionada quanto à autoria de sua obra, e o seu
reconhecimento artístico foi imediato, assim como a contribuição social de sua
produção. Beauvoir escrevia para um público feminino que tinha acesso à
literatura; Carmen da Silva conseguiu fazer de sua produção artística um
instrumento de mudança social quando investiu na escrita de massa: o
jornalismo.
A produção literária “pré-feminista” de Simone de Beauvoir, ou seja,
anterior ao seu reconhecimento como escritora feminista e autônoma, tem um
forte cunho político-social, que se desenvolve na esteira do existencialismo
sartriano e evidencia em sua produção as marcas do pensamento
existencialista a partir do engajamento social. Exemplar dessa fase em que o
engajamento também se reflete através da produção artística da escritora
francesa, situa-se Le sang des autres (1945), traduzido no mesmo ano por O
sangue dos outros
49
. A partir da construção do próprio título, o romance é
revelador da influência que Simone de Beauvoir exerceu sobre Carmen da
Silva, principalmente no que diz respeito à temática de Sangue sem dono, que
se verá neste capítulo. Em relação à intertextualidade explícita dos títulos das
obras em estudo, contempla-se uma das interpretações do termo.
“Dialogismo”, como se sabe, é termo cunhado por Mikhail Bakthin, mais tarde
atualizado por Julia Kristeva, que vai denominá-lo “intertextualidade”; este
último, Marc Angenot interpretará como “todo texto [que] se situa na junção de
vários textos dos quais ele é ao mesmo tempo a releitura, a acentuação, a
condensação, o deslocamento [territorial, temporal e cultural França/Brasil] e
a profundidade” (1983: 125).
Confrontar as duas obras na tentativa de evidenciar os elementos que
as aproximam poderá ser o caminho para “minimizar” a dificuldade apontada
por Laurent Jenny quanto à “determinação do grau de explicitação da
48
A respeito da polêmica em torno dessa obra, que lhe rende intencionalmente o título de
feminista, segundo declarações da própria Beauvoir, ver o dossier “Génération Beauvoir”
publicado na revista Le Français dans le Monde, n. 304, 1999.
49
BEAUVOIR, Simone de. O sangue dos outros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1945. Todas
as citações extraídas desta obra serão referenciadas pelas iniciais Sdo, seguidas do número
da página.
intertextualidade nesta ou naquela obra, excetuando o caso limite da citação
literal” (1976: 6). Em Sangue sem dono não ocorrem citações extraídas do
romance de Beauvoir; no entanto, a intertextualidade, que ultrapassa a do
título, dá-se no plano do pensamento ideológico centrado no engajamento
literário.
O romance O Sangue dos outros, de Simone de Beauvoir, é ambientado
no período da Segunda Guerra Mundial e traz como protagonista Jean
Blomart, um rapaz de família burguesa que abre mão de seus privilégios para
se tornar um operário comum e assim engajar-se na luta do proletariado sem
desigualdades de classe social: “Blomart filho; ocupava, portanto um lugar
sobre a terra, um lugar que não havia escolhido. [...] mas estava prestes a
cortar suas raízes e a criar-se de novo” (Sdo, 1945: 20).
Da categoria de líder político, Jean passa a ser um dos membros da
Resistência Francesa nos anos que sucedem à guerra, alimentando ideais e
esperanças de uma mudança social, que viria a partir de um engajamento
coletivo:
[...]“Nós transformaremos o mundo! [...] nessa época, tudo
parecia tão simples! [Jean] Brandia o punho, cantava em coro:
“A Internacional, amanhã, será a espécie humana”. Acabou-se a
guerra, e o desemprego, e o trabalho servil, a miséria. Morte aos
homens de má vontade e alegria sobre a terra. Reduzia, em
pensamento, o velho mundo a e, com os fragmentos,
reconstruía um universo novo, como uma criança que ajusta as
peças de um quebra-cabeça (Sdo: 16).
No entanto, no decorrer das atividades político-sociais, Jean deixa-se
possuir pelo sentimento de culpa, julgando-se responsável pela morte de sua
companheira Hélène e do amigo Jacques, que se envolvem em manifestações
e conspirações contra os nazistas por seu intermédio. Seu conflito interior o
levará a optar pelo dever pessoal – afastar-se na tentativa de evitar mais
mortes ou pelo engajamento social seguir na liderança da luta em defesa
do povo. Por um momento Jean tenta recusar qualquer envolvimento,
encarnando uma profunda crise existencial: “Primeiro Jacques, e agora
Hélène. Porque não a amei e porque a amei; [...] Porque eu existo. [...] minha
presença, sua morte. Porque eu estava, opaco, inevitável, sem razão. Teria
sido preciso não existir jamais. Primeiro Jacques, agora Hélène” (Sdo: 8).
Embora reticente nas suas idéias, os desafios da guerra o obrigam a refletir e a
fazer uma nova escolha.
Na tentativa de redimi-lo da culpa que o atormentava, Hélène, em seu
leito de morte, assume suas ações reforçando que elas têm origem em sua
vontade e são de sua livre escolha: “Eu fiz o que queria. Você foi apenas uma
pedra. É preciso que existam pedras para se fazerem estradas; sem isso,
como se poderia escolher um caminho?” (Sdo: 239). Nas palavras que a
escritora empresta a Hélène, nota-se o quanto a existência do outro é
determinante na vida de cada pessoa, o que explicaria o sentido de
coletividade para Jean Blomart e a necessidade de unificar o povo na luta
pelos ideais.
Quanto ao romance Sangue sem dono, a narração é conduzida pela
personagem/protagonista homônima Carmen da Silva e revela a trajetória de
uma escritora que, ao retornar ao Brasil após ter morado durante alguns anos
na Argentina, sente as dificuldades do repatriamento e assume os desafios de
reconquistar seu lugar:
Cheguei um pouco estrangeira, perdida, desorientada até com
meu próprio idioma. [...] “Buenos días mi patria de domingo
vestida”, eterna festa, pátria que eu ainda não reconquistei de
todo, quinze anos longe de ti, como é que pude, e este mar e
estas montanhas e esta gente [...] (Ssd: 13-21).
De volta à pátria, em um momento político adverso que marcou o Brasil
pela opressão da ditadura militar, a personagem lutará para conquistar sua
auto-afirmação como mulher e escritora. Perseguindo a afirmação identitária e
uma autêntica liberdade, ela prioriza “a auto-afirmação antes do amor” (id.: 11).
Também preocupada com o próximo, essa escritora exprime o compromisso
de engajar-se: “Quando penso na humanidade e no canto de seu coração, não
posso realizar atos gratuitos” (id., ibid.), revelando, com isso, plena consciência
de sua responsabilidade neste novo desafio:
Eu me despedi do céu numa noite gelada de Buenos Aires e
tomei o peso do mundo sobre meus ombros. Desde então tudo é
busca. [...] eu sacudo punhos ferozes contra o mundo, quero
violá-lo, fendê-lo com minhas unhas, obrigá-lo a derramar sobre
minha cabeça, sobre todas as cabeças, seu sumo dourado (Ssd:
58).
Nesse novo contexto social em que se [re]insere, a personagem se
depara com a situação de submissão e de acomodação da mulher. No entanto,
ela acredita que a solução para os conflitos, os problemas e a comodidade da
mulher está na união, no seu trabalho engajado frente a essas questões, no
senso de coletividade: “não estamos sós, ninguém está só, [...] basta estender
um braço e estaremos todos entrelaçados, ombro a ombro, peito a peito, o
sangue confundido com o sangue [...]” (Ssd: 44). É na união com o povo que
Carmen da Silva “conquista seu rosto”. É junto ao povo, é identificando-se com
ele que a heroína do romance sente, por fim, que sua identidade é múltipla :
“[...] eu, eu Nora, eu Carmen, eu Brunilde, eu João Teimoso, eu múltipla e una,
eu resposta lançada ao desafio, eu consciência que quer se fazer canção [...]”
(Ssd: 88). Assim, na primazia do eu, entendido como um todo comum, o povo,
a humanidade e também, especificamente, a mulher, é que ela acorda para a
realidade:
Zero na gramática, professorinha: eu é sempre o sujeito da
oração, uma oração de paz, amor, comunicação, fraternidade
[...] eu é o sujeito do verbo trabalhar, do verbo viver. Desperta,
professorinha, arranca as calças de brim e a resignação, veste
uma consciência, uma vontade áspera e rebelde, queima as
cartilhas que não ensinam o sujeito da oração, e vai pregar pelo
mundo uma letra ardente, uma letra de fogo que acenderá nos
olhos das crianças uma chispa divina que os teus nunca tiveram
[...] (Ssd: 89).
No mesmo ano de publicação de O sangue dos outros (1945), Beauvoir,
juntamente com Sartre, funda a revista literária e política Les Temps Modernes,
com o objetivo de transformá-la em “um meio de expressão da ‘literatura
engajada’” (Valette, 1989: 638). Isso aconteceu em decorrência da situação
político-social vivida na França com a ocupação nazista no período da
Segunda Guerra Mundial. Sartre, que participou da Resistência Francesa, após
ter sido prisioneiro dos alemães, deixou que esses acontecimentos
influenciassem sua concepção política de engajamento, voltando-se, a partir de
então, para o conceito de responsabilidade social. É nesse momento pós-
Segunda Guerra que o pensamento existencialista, tido como o mais radical a
respeito do homem na época contemporânea e surgido em meados do século
XIX com o pensador dinamarquês Kierkegaard, alcança seu apogeu com Jean-
Paul Sartre. A noção de engajamento significaria na época
a necessidade de um determinado pensador estar voltado para
a análise da situação concreta em que vive, tornando-se
solidário aos acontecimentos sociais e políticos de seu tempo.
Pelo engajamento, a liberdade deixa de ser apenas imaginária e
passa a estar situada e comprometida na ação
50
.
No que diz respeito às escritoras Simone e Carmen, ambas, em suas
respectivas obras, demonstram a partir de seus protagonistas [Jean e Carmen]
a incessante busca da liberdade coletiva por meio da ação. A ação de Jean
Blomart implica a militância, o seu embate contra os nazistas pela conquista da
igualdade entre as classes trabalhadoras e a liberdade dos franceses ante a
ocupação alemã. Carmen da Silva tem como centro da ação sua produção
literária, através da qual denuncia os problemas da sociedade em defesa da
“liberdade condicional” (Ssd: 1), que implica libertar-se dos preconceitos, dos
valores morais e sociais, da repressão e submissão que sufoca a mulher.
Deve-se considerar ainda, na leitura de Benoît Denis, que “engajar-se é
desde então tomar uma certa direção, fazer a escolha de se integrar numa
empreitada, de se colocar numa situação determinada” (2002: 32); essa
escolha que, para o teórico, antecede a ação do engajamento, é observada na
trajetória das personagens Jean e Carmen.
A ação que se preconiza no engajamento é um dos pontos em comum
entre Simone de Beauvoir e Carmen da Silva. Ambas se comprometem, via
literatura, a lançar um grito pela liberdade de seu povo, de seu país a França
sufocada pelo domínio de uma guerra, o Brasil por uma ditadura que reprime e
censura e por um legado patriarcal que já não fazia mais sentido no século XX.
Assim como Beauvoir, que reflete em sua obra os acontecimentos vivenciados
no momento da produção do romance, Carmen também demonstra em
Sangue sem dono sua concepção do compromisso com o social por intermédio
da escritura, construída com acentuadas passagens autobiográficas,
misturando realidade e ficção. Deve-se no entanto frisar que a obra de
50
“Jean-Paul Sartre”. Biografia disponível em: <www.antroposmoderno.com/biografias/sartre>.
Beauvoir reflete um engajamento ligado às questões filosóficas existencialistas,
enquanto a produção de Carmen da Silva aproxima-se de uma definição bem
mais abrangente do termo, a qual Houaiss (2001) interpreta como a
participação ativa de um indivíduo em assuntos e circunstâncias políticas e
sociais, passível de ocorrer por meio de manifestação intelectual pública, de
natureza teórica, artística ou jornalística
51
.
Por outro lado, a aproximação dessas duas obras também pode ser
estabelecida a partir das características que definem o pensamento
existencialista. Dentre os postulados desta corrente filosófica, os quais se pode
relacionar com os romances aqui apresentados, é possível perceber (1) o ser
humano enquanto indivíduo; com isso uma preocupação com o sentido ou o
objetivo das vidas humanas
52
; Jean Blomart, que se constitui como sujeito na
relação de igualdade com os outros operários e no seu engajamento social
ligado à preocupação com o sentido de sua própria existência enquanto
cidadão que defende os interesses de seu povo e ainda enquanto responsável
pelas mortes que causa vidas que estariam subordinadas a sua existência,
como as de Hélène e Jacques –; Carmen da Silva, que busca uma identidade
e somente a encontra integrando-se ao povo. Tornando-se múltipla, sente as
ansiedades da coletividade e “encontra seu rosto” no engajamento por meio do
processo literário; (2) o homem e a mulher não foram planejados por alguém
para uma finalidade, a exemplo dos objetos que ele cria, mediante um projeto.
O homem e a mulher se fazem em sua própria existência; Jean, que escolhe
determinar sua vida “cortando suas raízes e criando-se de novo” (Sdo: 20), ou
seja, abandonando a vida burguesa para abraçar um destino humanitário de
lutas e reivindicações, ele se torna um líder, para com isso se construir como
indivíduo em sua ação militante; Carmen, que decide voltar ao Brasil e
“carregar sobre os ombros o peso do mundo”
(Ssd: 58),
quando poderia
escolher não se engajar na luta contra os problemas do seu país, tampouco
contra a preconceituosa mentalidade patriarcal e o comodismo da mulher.
Agindo assim, ela se constrói como indivíduo por meio da “tarefa”
(Ssd:
51
Relacionado à filosofia existencialista, o termo está assim dicionarizado: o empenho ético e
político na realização das escolhas absolutamente livres e impreteríveis, por meio das quais o
ser humano inventa a si mesmo e o seu mundo” (Houaiss, 2001: 1147).
52
Para informações a respeito do existencialismo, ver: <www.cobra.pages.com.br/
existencial.html>.
62)
/ação de escrever. Sob esse aspecto, ambos, Jean e Carmen,
desconsideram uma existência predeterminada e acreditam na livre escolha
53
;
(3) a ameaça permanente de sofrimento, a descrença em si mesmo e o
desespero; ênfase na liberdade dos indivíduos como sendo ela sua
propriedade humana distintiva; o sofrimento que advém das mortes é
constante na vida de Jean, fato que o faz mergulhar em uma profunda crise
existencial. Ele se distingue porém por sua liberdade de escolha, de decidir, e
assim o faz quando opta por
dar continuidade a suas ações político-
humanitárias, mesmo se sentindo ainda culpado pelas mortes. Carmen não
enfrenta uma crise existencial, nem mesmo desacredita em si ou sofre em
conseqüência disso. Seu sofrimento será o sofrimento coletivo. A liberdade que
irá distingui-la será, acima de tudo, sua liberdade como mulher, que escolhe ou
rejeita o amante ou que expulsa o feto indesejado
54
(Ssd: 26).
O conflito identitário, comum entre as obras, revela-se nas personagens
e está, em ambos os romances, subordinado ao “outro”, que, segundo a linha
filosófica sartriana, “é o ‘mediador indispensável entre mim e mim mesmo’;
precisamos de outrem para conhecer plenamente a nós mesmos”
55
.
No rol dos aspectos relevantes que circundam as obras, é fundamental
relacionar o engajamento proposto pelos textos com a comunicação que
ambos estabelecem não apenas entre si, mas principalmente com o mundo
exterior. Aqui faz-se necessário aludir à teoria pedagógica autobiográfica
muito defendida por George Sand, sob as influências do humanitarismo de
1848, em que o ato autobiográfico ou modelo testamental repousa sobre a
comunicação de uma vida exemplar, na qual o leitor deve retirar de sua leitura
um proveito moral e político. Ele não é guiado por um desejo de identificação,
mas por um sentimento de solidariedade, que implica a troca de experiências
vividas (Lecarme; Lecarme-Tabone, 1997). A comunicação estabelecida entre
escritor e leitor ocorrerá no plano da influência de uma narrativa que pode
53
O dinamarquês S. A. Kierkegaard (1813-1855), ao firmar seu pensamento filosófico
existencialista, insurge-se contra posições aristotélicas remanescentes na filosofia, opondo-se
assim à filosofia de Hegel (1770-1831) ao rejeitar seu determinismo lógico, em que tudo está
logicamente predeterminado para acontecer, sustentando a importância suprema do indivíduo
e das suas escolhas lógicas ou ilógicas (idem).
54
De acordo com o artigo 124 do Código Penal brasileiro, o aborto praticado pela gestante ou
com o seu consentimento é crime e pode acarretar pena de deteão de 1 a 3 anos (Cf. Pinto,
2003: 78).
55
Ver nota 53.
mobilizar quem a ela tem acesso, muito mais pelo exemplo de vida nela
descrito do que pelo discurso. É o que ocorre em Sangue sem dono, onde, na
aparente intenção de produzir um romance, Carmen constrói uma narrativa de
cunho testamental para “intencionalmente” influenciar o[a] leitor[a] com o
registro de suas ações e com suas experiências de vida. Embora o romance de
Beauvoir aqui apresentado não tenha sido analisado quanto às possíveis
influências autobiográficas, abordagem para outro trabalho, é relevante citar
que George Sand, quando explicita sua teoria, relaciona-a imediatamente com
a produção literária de Simone de Beauvoir (Id.: 83).
Na análise proposta neste subcapítulo, destaca-se o constante diálogo
estabelecido de maneira subjacente às narrativas, embora os aspectos
externos – tempo, espaço, contexto social – as distancie. Dessa forma, é
pertinente retomar o que Laurent Jenny definiu como problemático quanto ao
grau de explicitação da intertextualidade entre obras. Tomou-se essa
contradição como desafio para comprovar a relação dialógica implícita entre as
obras sem que nelas haja citações literais que possam evidenciar tal relação.
De acordo com Eva Kushner, “o texto é sempre um local das relações
entre sujeito e objeto”. Pensando dessa forma, “o leitor, longe de ser uma
entidade fixa, e assim uma fonte objetiva e única, é também o produto de uma
comunidade interpretativa (in Carvalhal, 1997: 94), visto que Carmen, na
interpretação de Beauvoir, dentre outras influências, reproduz a teoria feminista
e a proposta de engajamento literário da escritora francesa a partir de uma
recriação e/ou adaptação ao seu contexto social. A comparação entre as obras
das escritoras aqui apresentadas vem também a confirmar o postulado de Julia
Kristeva de que “qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é
absorção e transformação de um outro texto” (1969: 85). O que fica registrado
com a aproximação das obras de Carmen da Silva e Simone de Beauvoir é a
validade de um estudo comparado ante as múltiplas possibilidades de
exploração de um texto a partir de sua relação com outros textos. Na
concepção de Jean-Marie Carré, a literatura comparada, vista como um ramo
da história literária, seria o estudo das relações espirituais entre as nações, ou
seja, relações que de fato existiram entre Byron e Púchkin, Goethe e Carlyle,
Walter Scott e Vigny; entre obras, inspirações e até entre vidas de escritores
pertencentes a várias literaturas (in.: Carvalhal, 1992), o que justificaria
aproximar Carmen da Silva e Beauvoir por intermédio de suas obras Sangue
sem dono e O sangue dos outros.
Embora a influência do americano Henry Miller tenha sido revelada no
primeiro capítulo deste trabalho, quanto ao estilo do romance, a aproximação
com o romance de Beauvoir foi estabelecida antes mesmo de se ter o
conhecimento de tais revelações. O que vem reforçar e validar a proposta de
Sangue sem dono ser lido a partir de sua relação com O sangue dos outros é a
declaração da própria Carmen da Silva em entrevista ao jornal Rio (1964) e
que serve para que se pense a respeito das múltiplas leituras e referências de
uma única obra:
Sou contra o sistema do manifesto esclarecedor da obra; a obra
é em si o manifesto. O leitor intui a autenticidade, capta as
correntes subterrâneas, é receptivo ao que pulsa, vibra, tem
calor vital. Lê através das palavras [...]. É pois o público que, em
última instância, define a mensagem de uma obra .
4.2 – Autobiografismo implícito
Romance que registra as impressões da escritora em um novo contexto
geográfico, social e cultural, Sangue sem dono conta ainda da renúncia a
uma vida intelectual conquistada na Argentina e antecipa uma prolongada
luta que, além de almejar reconhecimento artístico, propõe a conquista da
autonomia para a mulher brasileira de seu tempo. Carmen da Silva considera
que essa obra marca “o amoroso reencontro com o [seu] idioma, [seu] país,
com as esperanças que ele permitia nutrir em 1963” (Ssd: 119). Mas, quais
seriam as esperanças alimentadas no reencontro após o repatriamento?
A construção de Sangue sem dono, obra ficcional e memorial, apresenta
características do gênero autobiográfico, visto que Carmen da Silva, autora,
evoca, servindo-se da personagem-narradora homônima, aspectos de sua vida
de escritora que busca o reconhecimento artístico e luta pela igualdade de
direitos entre homens e mulheres como resposta às suas esperanças. O
caráter retrospectivo do romance pode ser interpretado como a antecipação
das memórias de Carmen da Silva em Histórias híbridas de uma senhora de
respeito (1984).
Além de o romance e a autobiografia dialogarem entre si, fica claro que
em Sangue sem dono também ocorre o que Philippe Lejeune denomina “pacto
autobiográfico”, visto que autor, personagem e narrador correspondem a uma
mesma pessoa
56
. Isso se confirma quando ela recupera via memória as
lembranças da vida na Argentina, onde a personagem, ao reagir contra as
críticas ao trabalho e à sua liberdade de expressão, revela angústia mas
também anuncia seu nome:
rapazes [...] que fazem jornalismo enferrujado em “La Prensa” e
nunca assinaram um artigo, me consideram troço: um romance
de sucesso [Setiembre], outro no prelo, jamais uma linha sem
assinatura, retrato nos jornais, mesas-redondas, televisão [...]
nenhuma possibilidade de lançar ao público a única resposta
cabível: a quem importa o que eu penso do romance francês?
Carmen da Silva é troço. Carmen da Silva tem todos os poros da
pele transpassados da angústia de não ser nada mais do que
uma liberdade desesperada e vazia (Ssd: 41).
No momento em que a narradora-protagonista informa seu nome e
sobrenome, a relação que o leitor estabelece entre a personagem e a autora da
obra é imediata. Começa-se então a pensar com maior convicção na
possibilidade de se estar diante de um romance autobiográfico.
Philippe Lejeune, em suas considerações a respeito do autobiografismo,
ainda aponta duas outras instâncias narrativas: o “pacto romanesco”, que se
opõe ao “pacto autobiográfico” ao apresentar o autor e a personagem
protagonista com identidades diferentes, e o “pacto fantasístico”, que se pode
entender como um extremo intersticial entre os dois pactos anteriores, no qual
ficção e autobiografia dialogam. Para Lejeune, o “pacto fantasístico” é a forma
indireta do “pacto autobiográfico” (1975: 27-42). O conhecimento/leitura do
conjunto de obras de um determinado autor é fator fundamental para que o
leitor possa fazer o seu julgamento dos elementos verídicos e fictícios. Nesse
paralelo que será estabelecido pelo leitor, Lejeune afirma que a leitura da
autobiografia é o critério que serve à comparação (id.: 42). Tal aspecto justifica
a inversão da apresentação das obras de Carmen da Silva neste trabalho, pois,
56
Lê-se, então, nas palavras de Lejeune: “Pour qu’il ait autobiographie, il faut qu’il y ait identité
de l’auteur, du narrateur et du personnage” (1975:15).
para o leitor que desconhece a escritora, é fundamental ter acesso à sua
história de vida, nem que por meio de sua autobiografia, para que ele possa
identificar os elementos que aproximam Sangue sem dono de uma narrativa
memorial e assim entender o que se anuncia no seguimento deste capítulo.
Lejeune acredita ainda que um romance pode ser tão revelador da
verdade pessoal, individual, íntima do autor quanto a autobiografia. Assim, “o
leitor é convidado a ler os romances não somente como ficções que remetem a
uma verdade da ‘natureza humana’, mas também como fantasias reveladoras
de um indivíduo” (id. ibid.). Seria possível então afirmar que um[a]
determinado[a] autor[a], Carmen da Silva, por exemplo, em uma narrativa-
ficcional-romanesca que não se compromete com a veracidade dos
acontecimentos narrados visto que o gênero autobiográfico é fundado na
confiança de ser um relato verídico (Lejeune, 1975) –, tem maior liberdade em
revelar suas experiências. Esta seria uma justificativa viável para entender o
porquê de Sangue sem dono conter relatos mais reveladores,
comprometedores e íntimos do que a autobiografia propriamente dita. É
pertinente, neste momento, referenciar as palavras de André Gide: “talvez
aproximemo-nos bem mais perto da verdade no romance” (apud Lejeune,
1975: 41). Em nosso contexto, tal reflexão se reforça nas palavras do escritor e
crítico Assis Brasil ao dizer em conversa informal acerca do suicídio de Mme.
Bovary: ninguém tem dúvida de que foi por envenenamento, ao passo que,
quando se pensa na morte de Napoleão em Santa Helena, inúmeras e
contraditórias versões. O que muda? O(A) leitor(a) sabe que está se iludindo
ao acreditar em uma “história real”, mas vale o prazer estético da leitura.
Ainda, para exemplificar o critério de veracidade, Carmen-personagem
relata sua iniciação sexual quando criança, seu envolvimento com um homem
negro na maturidade e o aborto resultado de uma relação proibida com um
homem casado, relatos que não aparecem explicitados em Histórias híbridas.
Seria possível considerá-los verídicos? Alguns acontecimentos podem ser
confirmados no confronto do romance com a autobiografia da escritora, a
exemplo do envolvimento com René o homem casado (Silva, 1984: 49);
outros, através do relato de familiares, que contribuíram para que se
recuperassem passagens importantes e pouco claras de sua vida
57
.
Embora seja a própria Carmen da Silva a declarar que Sangue sem
dono é uma recriação tão veraz que chega a confundir realidade e ficção
(Jornal do Comércio, jul. 1964), ela logo explica que “todo autor é todos os
seus personagens, até mesmo quando os copia da vida real; nada mais
pessoal do que a fantasia criadora ou recriadora” (id., ibid.). Verdadeiros ou
não, os fatos narrados nesse romance remetem mais uma vez às palavras de
Philippe Lejeune ao afirmar que somente o fato de o nome do personagem ser
o mesmo do autor exclui a possibilidade da ficção (1975: 30).
Por outro lado, no que diz respeito à definição proposta por Lejeune para
a escrita autobiográfica, é preciso levar em conta que no estudo sobre o
gênero, o teórico privilegia um corpus masculino de personalidades, tais como
Rousseau, Sartre, entre outros, reafirmando um estudo tradicional
androcêntrico, que põe sempre em destaque “‘o homem representativo’ em seu
papel de poeta, de sábio, de cidadão, de político e de herói” (Havercroft, 1996:
7).
Nas considerações feitas pela crítica feminista, que aponta o
autobiográfico como “a forma privilegiada do texto ideológico”, aquela que
exige um sujeito masculino “coerente e reconhecido”, Barbara Havercroft
exterioriza o dilema inerente às mulheres: “como uma mulher, ‘percebida na
cultura como um Outro, representa a si própria? Como compreender o sujeito
falante [a mulher] situado fora da ordem simbólica dominante?’(1996: 7). Ela
afirma ainda que o texto autobiográfico por ser na tradição um espaço de
representação masculina foi escolhido como território de representação
desse sujeito feminino, considerando também que a diversidade e a pluralidade
dos relatos íntimos no feminino, encontrados em diversos países, como no
Brasil com Carmen da Silva, são testemunhas do desejo feminino de responder
ao desafio (id.: 7), ou seja, de romper com o poder pátrio que se manifesta
57
Em 22 de outubro de 2002, a sobrinha de Carmen da Silva, Alice Barreto del Fresno, filha de
Maria Pia da Silva e do historiador Abeillard Barreto, concedeu no Rio de Janeiro, em seu
apartamento, uma entrevista à professora Nubia Hanciau, coordenadora do projeto “Carmen da
Silva”. Nela, Alice esclareceu passagens e aspectos até então desconhecidos da vida da
escritora.
também no nero autobiográfico. Nada melhor para romper a tradição do que
invadir um território no qual a mulher pouco teve espaço.
Pensar na produção autobiográfica feminina faz com que se recorra
igualmente aos estudos de Patricia Smart, que vê a autobiografia produzida por
mulheres diferenciada daquela escrita por homens. Segundo ela, a escrita
autobiográfica pode representar para as mulheres “uma entrada na escritura
antes do balanço de uma vida perfeita, uma forma de se construir uma
subjetividade de encontro aos obstáculos que reduzem a mulher ao silêncio ou
a um status marginal na cultura” (apud Havercroft, 1996: 12).
No que diz respeito a Carmen da Silva, na posição de autobiógrafa em
Sangue sem dono, ela não tem a pretensão de recuperar o eu do passado para
assim transcender à morte (Souza, 1999) aos 44 anos, nem mesmo atribuir
uma importância à sua própria história de vida (Lejeune, 1975), mas sim,
pretende utilizar-se desse relato como um espaço de revelação e auto-
afirmação da mulher/artista, bem como do registro de experiências formadoras
de um caráter, de um ser autônomo, de acordo com sua própria definição, de
um ser “livre, livre sem amarras” (Ssd: 38), em oposição aos obstáculos
impostos pelo status quo.
Conforme foi visto, é com o romance, Sangue sem dono, que Carmen da
Silva faz sua entrada na literatura no Brasil e constrói o sujeito feminino por
meio de seu relato subjetivo. O balanço final, aquele de uma vida “perfeita”
no âmbito do trabalho militante que realizou junto à mulher de seu tempo
aconteceria em Histórias híbridas, publicado no ano anterior a sua morte.
Certamente, as esperanças nutridas quando do retorno ao Brasil
inscrevem-se nessa narrativa subjetiva para revelar o grande desafio que se
propunha a escritora:
Eu me despedi do céu de Buenos Aires e tomei o peso do
mundo sobre meus ombros. Desde então tudo é busca. [...] eu
sacudo punhos ferozes contra o mundo, quero violá-lo, fendê-lo
com minhas unhas, obrigá-lo a derramar sobre minha cabeça,
sobre todas as cabeças, seu sumo dourado (Ssd: 58).
4.3 – Autobiografia, romance autobiográfico ou autoficção?
A narrativa intimista do “eu”, que surgiu na França com Lejeune, em
1971, foi assim definida naquele primeiro estudo: “narrativa restrospectiva em
prosa que alguém
58
faz de sua própria existência”. Em 1975 essa conceituação
encontrou-se levemente corrigida, sendo nesse momento interpretada:
“narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real
59
faz de sua própria
existência” (Lecarme; Lecarme-Tabone, 1997: 22-23). Quando esses autores
apontam tal diferença, salientam que, embora mínima, ela é fundamental para
a interpretação do campo semântico das duas palavras. Enquanto “alguém”
possui o mérito da indeterminação do “não importa quem”, a “pessoa real
segunda introduz duas dimensões que o crítico considera importantes ao ato
autobiográfico:
É preciso um ser humano constituído enquanto pessoa
psicológica, moral, social e, talvez, religiosa e política para que
uma autobiografia seja enunciada; de um outro lado, o princípio
mesmo da autobiografia será o princípio do real [...] e não o
princípio do prazer, que melhor convém ao romance (id.: 23).
No fluxo dessas considerações, a “pessoa real” de Sangue sem dono
reforça-se no momento em que o leitor associa a personagem Carmen da Silva
à autora homônima que assina o romance. Ao longo da narrativa o “princípio do
real”, ou seja, o comprometimento com a narrativa de fatos verídicos,
anunciado pelos autores franceses, constrói-se pouco a pouco nas referências
de espaço quando a escritora recorda Rio Grande, e nas experiências de vida
na cidade natal e na Argentina, onde conquista seu lugar como escritora.
Entretanto, o “prinpio do prazer” também se mostra presente nessa obra,
considerando que, em um primeiro momento, ela é categorizada como
romance. Quanto aos relatos que correspondem à família, à descrição das
“personagens” que a compõem, estes são fictícios.
58
Grifo meu.
59
Grifo meu.
Na afirmativa de Jean-François Plamondon
60
em dissertação de
mestrado a respeito do autobiográfico, nesse gênero “não se pode mentir
impunemente e a invenção de acontecimentos é condenada. O autor tem a
liberdade na interpretação [...], mas os acontecimentos [...] devem respeitar a
realidade” (1999: 39). Mesmo estando Sangue sem dono recheado de
personagens ficcionais, no que diz respeito à relação do universo dos
acontecimentos que giram em torno da personagem Carmen, essa obra
também se aproxima do princípio do real – o que se confirma no confronto com
a narrativa autobiográfica –, opondo-se portanto à personagem imaginária e
fictícia.
O fato de conter elementos ficcionais na obra e o título não permitir
entrever tratar-se de uma autobiografia a exemplo do que ocorre naquelas
que seguem os pressupostos tradicionais de Lejeune exclui a possibilidade
de enquadrar Sangue sem dono na categoria de gênero autobiográfico.
Caberia pensá-lo como “romance autobiográfico”? Poderia ele estabelecer uma
ligação entre elementos ficcionais e verídicos, e ser considerado uma narrativa
de fatos reais?
Para Lejeune, a categoria romance autobiográfico ou “romance pessoal”
refere-se à narrativa em primeira pessoa que sugere a presença de uma
pessoa real no texto de ficção, pois a personagem narradora em primeira
pessoa não “assina” a identidade do autor/autora da obra. Para Lecarme e
Lecarme-Tabone (1997: 24), quando o leitor quer identificar o caráter
autobiográfico de um romance de ficção, ele deve estabelecer uma correlação
entre a história narrada no romance e aquela que ele sabe, ou acredita saber,
da vida do autor. Induzida apenas pela leitura de Sangue sem dono, ou por
acreditar conhecer a vida de Carmen da Silva ou por julgar a veracidade dos
relatos, Nelly Novaes Coelho atribui passagens fictícias à vida de Carmen da
Silva na pequena biografia que compõe seu Dicionário crítico de escritoras
60
Doutorando em Literatura na Universidade de Laval (Quebec), membro do Centro
Interuniversitário de Pesquisas de Literatura e Cultura Quebequenses (CRILQ) e da ABECAN,
desde que realizou um estágio de ensino na Fundação Universidade Federal do Rio Grande
(FURG), de 2004 a 2005. Foi bolsista do Commissariat General des Relations Internationales
da Bélgica para estudar sociologia na Université Libre de Bruxelles (2002). Completou seu
mestrado na Universidade de Paris III, sob a orientação de Philippe Lejeune. Inscrito no
Tableau d’honneur da Universidade Laval por ter obtido tripla menção “excelente” em sua
dissertação de mestrado A autobiografia como ato ilocutório, tema que aprofunda em sua tese,
cujo título provisório é A autobiografia quebequense: história e evolução de um gênero.
brasileiras. Ela oferece a seguinte informação: “Ainda menina muda-se com a
família para o Rio de Janeiro [...]. Com quinze anos muda-se para o Uruguai e,
seis anos depois (1950), para a Argentina, onde permaneceu até 1961, quando
volta a residir no Rio de Janeiro” (Coelho, 2002: 105). Ao que se sabe,
conforme as próprias reminiscências da escritora, ela jamais residiu no Rio de
Janeiro com a família. Para comprovar a imbricação de relatos, lê-se em
Sangue sem dono as lembranças da infância da personagem Carmen:
De repente fui tomada de pânico. Deixara o Rio Grande com um
sentimento de gloriosa exaltação: o Rio era a novidade, a
aventura, o prestígio da capital. Abandonara sem pesar nossa
casa, a escola, os companheiros, Félix, as galinhas, a gata
Mimosa. Fora me despedir dos patos no lago da Praça
Tamandaré: adeus, seus bobalhões, fiquem por aqui mesmo que
eu vou para o Rio (Ssd: 9).
A escritora, em sua autobiografia, confirmará sua residência em Rio
Grande no período da adolescência ao relembrar a experiência do primeiro
baile. Naquela ocasião, estava com dezesseis anos:
Eu não fizera “debut” social: uma das poucas frescuras que
minha família não endossava, talvez porque minha condição de
órfã de pai não permitia tais extravagâncias. [...] Exatamente às
23h eu estreava o mais belo vestido de baile que jamais possui.
Não era vaporoso e engraçadinho como costumavam ser os
trajes de gala das mocinhas do Rio Grande: era elegante (Hh:
29-30).
Embora influenciada por esse detalhe ficcional, Nelly Novaes Coelho
extrai do romance uma referência relevante da trajetória literária de Carmen
que seria a autoria de uma peça teatral intitulada Prohibido pisar el césped
[Proibido pisar a grama]. Nelly Coelho diz no referido dicionário que, por se
tratar de uma peça de engajamento político, na noite de sua estréia a
apresentação foi interrompida pelo vandalismo de jovens da Tacura, uma
organização de extrema direita (Coelho, 2002). Em Sangue sem dono, lê-se a
respeito do episódio a seguinte alusão:
Hermes, Álvaro, Miguel e eu mastigávamos a fúria de boteco em
boteco, esperando os jornais que nada diriam da obra porque os
críticos não se ocupam duma peça interrompida na metade;
esperando os jornais onde meu nome aparecia
incidentalmente numa notícia policial de quatro linhas Buenos
Aires também tem sua imprensa sadia e “Prohibido pisar el
césped”, de Carmen da Silva, tinha sofrido um contratempo”
(Ssd: 98).
É notório que Nelly Coelho avalia a obra como autobiográfica. Isso se
reforça pelo fato de tais informações ou mesmo o tulo da peça sequer
constarem em Histórias híbridas. Quando essa produção teatral foi
referenciada no segundo capítulo da presente pesquisa, buscou-se
informações para confirmar a autoria da obra junto à crítica jornalística. Nela
encontram-se apenas comentários acerca do nascimento dessa obra teatral,
que podem ser lidos no artigo que a própria escritora produziu para o Diário de
Notícias, em seu retorno ao Brasil:
Durante os dias angustiosos da renúncia de Jânio Quadros,
quando na Embaixada do Brasil em Buenos Aires passávamos
os dias agarrados aos receptores de rádio numa dolorosa
expectativa, nasceu-me outra obra espontânea como
“Setiembre”, irreprimível como um espirro: “Prohibido pisar el
césped”, peça teatral em um ato (31/5/1964).
Esse breve comentário de Carmen da Silva, muito mais enfático em relação à
inspiração da produção do que à recepção da obra, configura mais um
elemento que aproxima Sangue sem dono de um romance de características
autobiográficas.
Nos casos mais explícitos de romances pessoais, em que se estabelece
o pacto romanesco, Lecarme e Lecarme-Tabone fazem referência às
autoficções, nero moderno em que o autor e o narrador-protagonista portam
o mesmo nome. Essa homonímia seria nessa acepção a regra geral para as
três instâncias do autor, protagonista e narrador pressupostas no pacto
autobiográfico. Fica evidente assim que em Sangue sem dono ocorre o pacto
romanesco, na medida em que se mantém na obra a relação identitária nas
três instâncias propostas no pacto autobiográfico. Ou ainda, complementando
com o pensamento do teórico Thomas Clerc
61
, o pacto autobiográfico é
61
Doutor em língua francesa estilística pela Universidade de Paris-IV Sorbonne, recebeu
menção honrosa por unanimidade com sua tese Le journal d'écrivain dans la littérature
française du XXe siècle: sémiostylistique d'un genre. Atuou como professor de Literatura
Francesa na Universidade de Versailles-Saint Quentin, em Yvelines, e lecionou Literatura
desmentido pelo aspecto fictício do pacto romanesco, no entanto a mistura
destes dois gêneros antitéticos resulta um “monstro teórico”, um gênero
ambíguo: a autoficção (Clerc, 2001: 71).
A autoficção está associada a um progresso geral da literatura
autobiográfica no âmbito de seu renascimento, expansão e diversificação, que
Lecarme e Lecarme-Tabone apontam ocorrer na sucessão de duas ondas: de
1975 até um segundo e importante momento datado no decênio de 1990, no
qual o termo autoficção relaciona-se à frase inaugural de Roland Barthes em
sua autobiografia, que teria desencadeado uma nova visão do autobiografismo:
“Tudo isso deve ser considerado como dito por um personagem de romance”
(Barthes, 1975: 1). Para Lecarme e Lecarme-Tabone (1997), a autoficção,
lançada em 1977 pelo francês Serge Doubrovsky em Fils, não é uma oposição
à autobiografia, mas sim um sinônimo ou, ao menos, uma variante.
Em Sangue sem dono, o título responsável pela identificação da obra
quanto à sua categoria “romance” ou autobiográfica” não nos qualquer
indício de uma narrativa intimista. Ao contrário, o caráter de romance é
reforçado na contracapa do livro, na qual o comentarista, ao escrever a
sinopse, não revela a identidade da personagem-protagonista Carmen da Silva,
deixando deliberadamente vago, intencionalmente suscitando a dúvida para
criar uma certa ambigüidade peculiar à narrativa ficcional:
A história de uma mulher que, educada dentro das mais sadias
tradições burguesas, busca a sua própria realização e
integridade. A protagonista luta pelo pão cotidiano, pela auto-
afirmação pessoal e literária, pela plena comunicação entre os
indivíduos (Ssd, Contracapa).
Diferentemente desse romance autoficcional, a narrativa autobiográfica
da escritora está prenunciada em seu título Histórias híbridas de uma senhora
de respeito. A idéia de ser uma autobiografia será reforçada na contracapa da
obra, na qual é a própria autora, desta vez, quem explica o que se viu no
capítulo anterior, cada palavra que compõe o título de sua obra.
Francesa do século XX na Universidade de Paris-X Nanterre. Dentre seus inúmeros trabalhos,
publicou também Ramuz diariste? (2001), La métatextualité dans le journal d'écrivain (2000) e
Les lieux rhétoriques du retour dans les journaux de voyage de Michaux, Gide et Leiris (1999).
Para Thomas Clerc, a presença do nome próprio em narrativas
autoficcionais é elemento determinante para aproximá-las do relato
autobiográfico. Ele afirma que “a autoficção tenderia mais em direção do
romance, mas apresentada com os nomes próprios cuja força referencial é
automática, ela se inclina igualmente para o lado da autobiografia” (Clerc,
2001: 71). É o que se constata em Sangue sem dono, de Carmen da Silva,
quando ela anuncia uma personagem-protagonista com o seu mesmo nome e
sobrenome
62
, cuja significância é reafirmada por Clerc, para quem
A identidade garantida pelo nome próprio é de fato incontestável:
não graus na identidade (exceto para utilizar o termo em um
sentido metafórico); como diz Philippe Lejeune, “uma identidade
é ou não é”. A razão é de ordem lingüística e social: os nomes
próprios são “designadores rígidos”, eles remetem não a um
conceito ou a um sentido, mas a um indivíduo único ao qual eles
se referem imediatamente na realidade (id.: 21-22).
Regine Robin
63
(1997)
enuncia sua crença em alguma coisa que
impulsiona a autobiografia contemporânea em direção à autoficção, ou seja,
algo impele os escritores a enredar pacto romanesco e pacto autobiográfico, a
confundi-los, a juntá-los, a superpô-los. Assim, como definir a leitura de Sangue
sem dono? E se o único aspecto que diferencia esses dois gêneros é a
veracidade e a ficcionalidade dos fatos narrados, o que seria então verdade
neste retrocesso da memória? Não se deve ignorar e tampouco negligenciar a
possibilidade da reconstrução de uma vida, de alguns acontecimentos por meio
da “mentira”, pois, segundo a sabedoria popular, uma mentira contada muitas
vezes toma forma de verdade. Do mesmo modo, uma história registrada à
posteridade sob um caráter confessional, quem dela poderá provar ao
contrário? Consideram-se ainda as palavras de Clerc ao dizer que
à noção de verdade, relativizada pela subjetividade que lhe é co-
relativa, acrescentam-se as falhas inevitáveis do sujeito: a
62
Cf. segunda citação referente a Sangue sem dono no subcapítulo intitulado “Autobiografismo
do anonimato”.
63
Professora no Departamento de Sociologia da Universidade do Quebec em Montreal
(UQÀM). Além de socióloga, é também historiadora, lingüista, interessada em literatura, línguas
e tradução. Especialista do realismo socialista, foi ganhadora do prêmio Governeur Général em
1987, com a obra Le réalisme socialiste: une esthétique impossible. Preocupada com as
questões do multiculturalismo e da mestiçagem cultural, desenvolveu muitas pesquisas ligadas
a tais assuntos. Robin está também voltada às questões do pós-modernismo.
ausência de memória, o inconsciente, a insinceridade, a
autocensura e o embelezamento retórico são como armadilhas
ao projeto de se contar, admitidas pelos próprios escritores
(Clerc, 2001: 29).
Não se poderia ter a pretensão de responder aos questionamentos,
preferindo-se adotar a categoria “autoficção”, a partir das postulações
anteriores, para definir e referenciar o romance Sangue sem dono.
4.4 – Inovação na produção de gênero feminino
Carmen da Silva constrói Sangue sem dono em um período demarcado
pelo surgimento da crítica feminista pós-moderna ou feminismo acadêmico.
Este, para Susana Funck, estaria pautado por dois princípios básicos:
“denunciar o teor masculinista da produção intelectual e propor um
revisionismo que propiciasse a visibilidade da mulher na cultura e na
sociedade” (Funck, s/d: 1). Márcia Navarro (1995) acredita que a literatura
produzida por mulheres foi sempre considerada “feminina”, isto é, inferior,
preocupada somente com problemas domésticos ou íntimos e, por isso
mesmo, não merecendo ser colocada na mesma posição da literatura
produzida por homens.
Opondo-se a tal pensamento, Carmen da Silva relata nesse romance,
por intermédio da personagem homônima, a história de uma escritora em
busca do seu espaço, do reconhecimento profissional, e denuncia, por meio do
trabalho, o problema enfrentado pelas mulheres enquanto parte de um sistema
de relações desiguais entre sexos. Nessa linha de pensamento, ela dialoga
com Márcia Navarro quando esta define a ideologia patriarcal como sistema de
dominação do homem e subordinação da mulher que se instala através da
socialização. Carmen assume a autoria e a autoridade discursiva de seu
romance, narrando-o em primeira pessoa, assumindo a voz e a identidade da
protagonista para assim desafiar o processo de socialização ou segregação
entre sexos e transgredir os padrões culturais. Ela assim procede ao relato
de experiências sexuais, amorosas, tornando publicamente conhecidos a
opressora situação da mulher de seu tempo e os preconceitos contra ela.
Nas primeiras páginas da autoficção, quando a personagem narra os
acontecimentos de sua infância, toma-se conhecimento da iniciação sexual de
Carmen menina, inspirada em uma cena na qual “flagra a tia e suas
intimidades com o namorado:
Uma tarde entrei na saleta à procura de minha boneca [...].
Encontrei tia Adelaide quase deitada na poltrona com a saia
levantada e a cabeça de Tônio entre suas pernas. Quando eu
apareci pularam de modo tão brusco que a poltrona gemeu;
então achei que comício relâmpago devia ser aquilo. No dia
seguinte Félix veio brincar comigo. Levei-o para o quintal e
tratamos de fazer um comício relâmpago (Ssd, p. 3).
Tratar a sexualidade na infância com tal naturalidade é ao mesmo tempo
afrontar e revelar a repressão da sociedade que se opõe às atitudes
consideradas pela psicologia como formadoras da vida sexual do indivíduo. A
descrição da cena na qual surpreendera a tia demonstra a liberdade e o direito
ao prazer feminino, proporcionado pelo parceiro direito esse que sempre foi
negado às mulheres.
Quanto às lembranças da maturidade, a personagem descreve de forma
ousada, erótica e sem pudores a forte atração que tinha por homens negros:
Eu os olhava onde quer que os encontrasse, geralmente
seminus, pegando no pesado, os músculos ondulando e
marcando um impressionante jogo de luz e sombra na pele
escura e cálida. Pouco a pouco, minhas mensagens ováricas
foram se tornando cada vez mais definidas; eu tinha que
conhecer um negro, biblicamente falando (Ssd: 14).
Sua ousadia é reforçada quando revela, nas páginas seguintes, o
envolvimento com um ministro africano chamado Aruna por ocasião de um
Congresso Internacional no Rio de Janeiro com quem passa exatos sete
dias, os quais assim descreve: “Foi muito mais que o oceano de prazer em que
eu mergulhava, os gritos de gôzo que eu ouvia, desconcentrada, saírem de
meu próprio lábio, o rio de lava incandescente que me brotava das entranhas.
Suponho que foi amor” (Ssd: 16).
Para Edilberto Coutinho, em Erotismo na Literatura Brasileira (1978),
nossa literatura do século XX é caracterizada pelo cunho moralista que traz em
sua essência. No entanto, o autor aponta o erotismo literário brasileiro como
sendo uma revolução que prenuncia uma evolução social. Mais do que
contribuir para esse avanço, levando em conta o pensamento de Coutinho, a
rio-grandina Carmen da Silva rompe com os “bons costumes”, subvertendo e
revelando com naturalidade certas condutas sexuais, tratadas outrora com
moralismos ortodoxos pela sociedade. Não é aleatório que o escritor, na
organização de excertos de romances brasileiros para ilustrar sua produção,
tenha inserido na seleção uma passagem de Sangue sem dono justamente
aquela que descreve o envolvimento de Carmen com Aruna. Na introdução,
Coutinho revela que em romances a exemplo do de Carmen da Silva, onde o
erotismo se mostra em maior ou menor escala –, é quase sempre evidente a
influência freudiana, e uma de suas principais características está na narrativa
autobiográfica ou semibiográfica, pois se supõe que os autores relatam
experiências pessoais ou vivenciados por seus amigos ou conhecidos em meio
à trama ficcional. Esta afirmação nos leva a retornar às questões
autobiográficas na caracterização do romance Sangue sem dono. Sylvia
Molloy
64
, em seu estudo sobre a escrita autobiográfica na América Hispânica,
também nos leva a pensar na proximidade entre os textos autobiográfico e
ficcional. Na introdução de Vale o escrito (2003), Molloy vai dizer que os
autobiógrafos hispano-americanos mapeiam silêncios que apontam para o
inenarrável, pois freqüentemente narram aquilo que consideram impróprio de
ser contado autobiograficamente em outros textos menos comprometedores.
Embora Sylvia Molloy afirme restringir seu estudo ao âmbito da América
Hispânica, excluindo o Brasil, não se deve esquecer que Carmen iniciou sua
vida literária no Uruguai, logo dando continuidade na Argentina, onde se nutriu
da inspiração que os grandes escritores hispânicos entre eles certamente os
autobiógrafos – lhe causaram.
64
Nascida em Buenos Aires, vive mais de 30 anos nos Estados Unidos, onde exerce
atualmente o cargo de professora catedrática na área de humanidades da Universidade de
Nova York. Sua brilhante trajetória acadêmica inclui ainda a docência na Universiadede de
Princeton e na Universidade de Paris, bem como sua destacada atuação como professora de
literatura hispano-americana na Universidade de Yale. Dentre suas publicações, destacam-se:
La diffusion de la littérature hispanoaméricaine en France (1972), Las letras de Borges (1979),
En breve cárcel (1981), Hispanism and homosexualities (1998), e os romances El común olvido
(2002) e Varias imaginaciones (2003).
Considerando ainda a citação anterior da autoficção de Carmen da Silva,
a descrição do relacionamento amoroso com um negro não é inocente como
não o foi sua autora. O que se verifica nesse relato é uma dupla transgressão:
além do erotismo empregado na linguagem e escolhido para a construção do
texto a fim de descrever o seu tórrido envolvimento amoroso, ela aponta
também com ironia para o preconceito que o negro enfrenta na sociedade:
Não podia deixar de olhá-los [os negros] e os achava
maravilhosos: carregando caixotes, levantando peso, limpando
as ruas ou jogando pelada na praia. Incidentalmente nunca os vi
nos restaurantes caros, nas boates, nos bons hotéis a não ser
como porteiros ou serventes. Menos mal que não somos
racistas; até que somos bons e generosos e permitimos que
eles andem pela mesma calçada, viajem nos mesmos ônibus e,
inclusive, nos mesmos automóveis como “chauffeurs”,
naturalmente (Ssd: 13).
Questões políticas são igualmente discutidas nesta “autoficção de
autoria feminina”, quando, por exemplo, Carmen fala dos impostos, das taxas e
das contribuões que são rigorosamente cobrados de todo o cidadão e que, de
certa forma, são mal utilizados pelos governantes:
Faço questão de pagar as escolas que não há, as obras que
não são feitas, os dourados ócios civis, militares, eclesiásticos e
parlamentares. Vou pagando e anotando na coluna respectiva.
Um dia sairei à rua a cobrar tudo junto, a ferro e fogo; estou
comprando futuros direitos, pelo crediário (Ssd: 21).
Ela encontra espaço e motivação para falar de aborto quando, em uma
das passagens de Sangue sem dono, a personagem homônima lembra do ato
que cometera quando, grávida de seu amante, descobriu que ele era casado:
“Para pior, descobri que estava grávida: os êxtases o é nisso. Fui ao
matadouro. Creio que me extraíram todo o sangue: voltei transformada em
estátua de sal” (Ssd: 26). Nesse trecho fica claro, por um lado, que Carmen da
Silva é defensora não do aborto ato ainda considerado criminoso –, mas da
liberdade de escolha da mulher em ter ou não filhos. Do outro, a escritora
revela a corajosa subversão que ousa fazer dos dogmas imputados pela Igreja,
quando anuncia às mulheres pela escrita crítica e acirrada um novo paradigma,
diferente daquele que lhes foi incutido, uma característica inovadora no âmbito
da escrita feminina, o que faz com que seja paradoxalmente notada e
rechaçada.
Carmen da Silva, além de se inserir no projeto de construção de uma
literatura de gênero feminino, prenuncia desde os anos de 1960 uma escrita
feminina pós-moderna, não no Brasil, mas também no âmbito da América
Latina. Quando Márcia Navarro refere-se às escritoras latino-americanas que
ousaram romper as “regras de silêncio”, ela afirma que as “obras, publicadas
durante os anos 80
65
, se caracterizam pelo resgate da força da mulher, que
emerge com a habilidade de fazer sua própria história” (1995: 15). A produção
feminista de Carmen da Silva é, portanto, precursora daquelas que
ganharam o conhecimento do público leitor nos anos de 1980.
Ainda nas considerações de Márcia Navarro, quando ela aponta as
características das obras daquelas escritoras que, no contexto latino-
americano, lançam o desafio de inovação do sujeito feminino, lê-se:
Na maioria das vezes, a mulher que é a personagem principal e
narradora da história, adquire um papel preponderante, uma
função específica na narrativa: o de escritora. Ela, através da
palavra oral ou escrita, reescreve – literalmente – a história. Não
importa que espécie de escritura ela produz. Pode ser escritora
a partir da experiência pessoal que se abre ao social e do
jornalismo [...]; romancista [...]. O que importa é a forma como
essas mulheres adquirem voz para escrever suas histórias; uma
voz, várias vozes, que subvertem os todos-poderosos relatos
ficcionais de orientação masculina (id., ibid.).
Se assim é, Carmen da Silva, entre elementos ficcionais e verídicos que
compõem sua autoficção, adquire voz no romance em primeira pessoa e
múltiplas vozes quando narra sua história e a de outras mulheres.
Dentre as características da nova escrita de nero feminino apontadas
por Navarro, Carmen da Silva descreve na autoficção, por intermédio da
Carmen personagem, tanto seu trabalho literário quanto sua veia jornalística
desenvolvida na Argentina: “Resolvi procurar meus amigos em ‘La Prensa’. [...]
Me instalei, acendi um cigarro. Corri o dedo sobre a pesada armação do
teletipo. [...] A tira de papel vai me confiando, letra por letra, segredos que não
me interessam [...]” (Ssd: 40).
65
Grifo meu.
A junção de autobiografia e ficção é uma característica que demarca a
inovação da produção feminina na pós-modernidade, pois nela, segundo
Béatrice Didier
66
, a mulher fala de si própria através de personagens femininas
fortes (in.: Figueiredo, 1995). Eurídice Figueiredo reforça essa tendência: “as
romancistas contemporâneas sentem a necessidade de relatar suas
experiências pessoais, considerando que cada vida é única e exemplar,
portanto digna do interesse do público” (id.: 30).
Carmen da Silva é inovadora em sua produção autoficcional na medida
em que se vale do relato de sua própria experiência narrado pela forte figura
feminina que representa a personagem Carmen da Silva para mobilizar o
público-alvo: a mulher brasileira, ou ainda, todo aquele leitor, homem ou
mulher, marcado(a) por uma mentalidade repressiva e por valores atávicos.
Com Sangue sem dono ela consegue ainda comprovar o valor da produção de
gênero feminino, quando aborda aspectos sociais, políticos e ideológicos e
registra que a literatura produzida por mulheres pode sim estar vinculada às
questões sociais de modo geral e expor tabus de modo particular.
4.5 – Uma escrita pela agentividade
Sangue sem dono apresentará uma faceta especular em sua construção
na medida em que Carmen da Silva reproduz sua trajetória de vida. Ela pensa,
nessa obra, sobre sua ação como escritora, aquela que busca reverter os
parâmetros tradicionais da condição feminina: “Não é fácil ser heróica
enfrentando a lentidão [...] Mas algo deve haver nessa luta aparentemente sem
objeto, pressinto uma subterrânea intencionalidade no impulso a que obedeço,
faço-me dócil, expectante, disponível: eis-me aqui” (Ssd: 30).
Verifica-se que, ao considerar esse romance um relato subjetivo no
feminino, Carmen da Silva insere-se no que Barbara Havercroft define hoje
como narrativa de agentividade. Esse termo designa aqueles textos em que a
narrativa do eu mostra-se propícia às mudanças políticas e sociais (in:
66
Professora na Escola normal superior. Autora de L'Ecriture-femme, Stendhal autobiographe,
La Musique des Lumières, Alphabet et Raison. Dirige as Presses Universitaire de France, a
coleção "Écriture" e o Dictionnaire Universel des Littératures.
Hanciau; Campello; Santos, 2001). Assim, deve-se pensar na construção da
autoficção Sangue sem dono como reveladora de uma experiência de vida que
reverte os padrões tradicionais da mulher na sociedade em geral, mas que
acima de tudo é um exemplo que a instiga a conquistar sua liberdade de ação
e expressão.
Para Havercroft (2001), a agentividade é inerente às narrativas
autobiográficas em suas diversas instâncias, venham elas na forma de diário
íntimo, autoficção, poesia autofictícia, romance autobiográfico ou pelo relato
autobiográfico propriamente dito. Essas variantes do relato intimista na América
do Norte, que ganham maior relevância nos anos de 1980, seriam um exemplo
da dificuldade da mulher em se tornar sujeito, da mesma forma que
demonstram a importância da escritura autobiográfica na representação dessa
busca. Seria assim, a escritura literária, para Barbara Havercroft, o espaço
onde as escritoras descrevem suas experiências, criticam e as reformulam, ao
mesmo tempo em que se constroem como sujeito na e pela escritura, e o texto
autobiográfico no feminino, “centrado como o é na vida, no pensamento e na
subjetividade, no devir sujeito da mulher, presta-se bem a uma reflexão sobre
as normas e sua contestação em resumo, à inscrição da agentividade” (id:
154). É pertinente destacar aqui que o termo agentividade, proposto por
Havercroft, aplica-se perfeitamente à autobiografia de Carmen da Silva. No
entanto, propõe-se elucidá-lo a partir de Sangue sem dono para reforçar o
caráter memorial desse romance autoficcional.
Sangue sem dono reverbera normas patriarcais no plano das idéias e
ideais que concernem à mulher de seu tempo. Carmen da Silva descreve o
caminho trilhado para a sua construção como sujeito-feminino-mulher; ela é o
sujeito-agente de sua produção, a artista que age por intermédio da escrita.
Para France Théoret, “a escritura [possui] um dinamismo capaz de renovar e
sacudir as certezas” (apud Hanciau, 2001: 156). Se para ela a escritura tenta
agir sobre a linguagem, Havercroft acrescenta, por outro lado, que “as
estratégias narrativas [do eu, neste caso, o romance autobiográfico] contribuem
para desatar o patriarcal e desfazer seu domínio tirânico sobre o sujeito”
(id., ibid.).
Se por um lado Carmen da Silva atua pela defesa da mulher em sua
reivindicação de igualdade de direitos com relação ao homem, por outro ela
também faz referência àquelas que optam por permanecer no ostracismo pela
comodidade de não ter de ir à luta: “o mundo de valores [de algumas mulheres]
se compõe de dois elementos: dinheiro e marido. Na maioria dos casos,
integrados num só: o marido é conforto, é não ter que trabalhar” (Ssd: 20).
A ação de Carmen por meio da escritura transparece também no plano
político-social, quando ela sublinha o limite da impunidade e da corrupção – um
dos flagelos contemporâneos da sociedade para questionar a indiferença e o
descaso do cidadão brasileiro:
É o começo do fim. A sociedade capitalista apodrece, se
desintegra, basta um sopro para deitá-la por terra.
Uma lufada de violência varre a cidade, os crimes se sucedem
com regularidade quase burocrática, as investigações conduzem
à polícia e, da polícia, aos proprietários do destino, [...] impera a
falcatrua, negociata e o contubérnio, o olho sinistro do
desemprego espia as fábricas, as oficinas;
Pois é, [...] basta um sopro. E quem o dá? Supõe-se que
seremos nós. Ou vamos delegar nossa tarefa ao vento? Por que
estamos de braços cruzados? (Ssd: 62).
O termo agentividade significará “uma interação complexa entre o sujeito
feminino e a sociedade, na medida em que suas ações são suscetíveis de
operar transformações no plano das normas e dos obstáculos” (Havercroft,
2001: 150). A ação que compreende o sujeito feminino pode ser manifestada
individualmente ou em grupo. Explica-se a preocupação revelada no fragmento
acima quanto à ação coletiva que coloca Carmem versus sociedade, no que diz
respeito à situação política que enfrentava o Brasil nos anos de 1960. A
complexidade da ação desse sujeito feminino revela-se no questionamento
expresso, quanto à indiferença do cidadão diante dos problemas sociais, que
se estende (in)diretamente ao leitor(a) da autoficção que ela escreve.
Diante da situação de indiferença dos compatriotas e na esperança de
mobilizá-los com o relato de suas experiências, a escritora recorda um dos
momentos-marco na história da Argentina, no qual ela tem orgulho de relatar
sua participação, nutrindo a esperança de também vivenciar e compartilhar a
mesma ação social em seu país:
Saio alvoroçada, com a absurda esperança de encontrar as ruas
palpitantes, fraternas, como aquela vez na Argentina quando
todos sacudíamos lenços brancos sob a chuva e as mãos se
apertavam espontaneamente, os olhos se encontravam em
límpida cordialidade, a gente se apinhava nos carros, dez,
quinze pessoas amontoadas rodando sem rumo pela cidade
molhada e cinzenta aos gritos de “libertad, libertad” [...]
Setembro de 1955 em Buenos Aires. Quantos desconhecidos
abracei [...].
Mas as ruas de Copacabana ainda não revelam nada (Ssd: 91-
93).
Nos estudos de Théoret apontados por Havercroft, o ponto de partida da
ação deve estar centrado no aspecto coletivo a partir de uma troca verbal, um
diálogo. No entanto, podeacontecer de o sujeito da enunciação, neste caso,
Carmen da Silva, não ser um agente, o ser capaz de desencadear
mudanças sociais (Havercroft, 2001). Assim, na relação Carmen da Silva-
escritora versus leitor(a), não se deve excluir seu caráter de agente na medida
em que seu instrumento de ação, a palavra escrita, pode ou não estabelecer
uma identificação ou servir de reflexão a quem a ela tem acesso. Para France
Théoret, existe uma reciprocidade entre o texto e o fora-do-texto, pois ambos
detêm sobre si o poder de transformação e esclarecimento; em suas palavras,
“a ficção ilumina a realidade” (id.: 153). Além disso, não se deve ignorar o fato
de o texto poder provocar uma imprevisível identificação das leitoras com a
personagem principal, fato este que Havercroft como uma forma de
agentividade. Entretanto, no processo de identificação de leitora versus
personagem, haverá agentividade no texto se a vida, a personalidade, as
experiências e ações da leitora forem opostas àquelas da personagem.
Diferenças que podem se dar no plano das atitudes comportamentais, mas não
no desejo inconsciente de cada leitora que se sente reprimida devido às
questões moralistas incrustadas na sociedade.
Ainda sobre a agentividade, Havercroft lança uma proposta de
engendrar outras formas que compreendam esse termo, uma sondagem que
abranja a relação entre o sujeito individual e a identidade coletiva, o que pode
ser observado nas obras de Carmen da Silva tratadas nesta dissertação. A
relação entre Carmen-sujeito e o coletivo anteriormente observada
prenuncia-se no título da autoficção Sangue sem dono e da autobiografia
Histórias híbridas de uma senhora de respeito. Segundo a autora, o título
Sangue sem dono implica o comprometimento da personagem com o coletivo.
É ela própria quem declara: “Quando penso na humanidade e no canto de seu
coração, não posso realizar atos gratuitos” (Ssd: 11); quanto à autobiografia
Histórias híbridas de uma senhora de respeito, o termo híbrido
que quebra a
expectativa de uma narrativa tradicional do eu evita qualquer dúvida junto ao
leitor(a), pois vem esclarecido na contracapa da obra: “Híbridas porque
misturam experiências minhas e alheias, narração e reflexão, memórias e
mexericos”. As histórias alheias rememoradas e narradas em ambas as obras
serviram de anti-exemplo para a escritora, na medida em que muitas delas são
reveladoras do modelo estereotipado feminino, situado no universo de uma
sociedade machista e preconceituosa, alvo da luta da escritora.
Considerando o seu forte comprometimento coletivo nos relatos
autobiográficos, é pertinente afirmar que Carmen da Silva não se preocupa em
produzir uma narrativa narcisista nos moldes da autobiografia tradicional
propostos por Philippe Lejeune (1975), por meio dos quais o autobiógrafo é
uma figura pública a ser reverenciada e imitada, um sujeito exemplar. Ao
contrário, sem a pretensão de ser um exemplo de vida, mas sim de luta,
Carmen estaria ligada ao que Havercroft denomina narrativa do self-
empowerment (auto-empoderamento), que quer dizer uma narrativa centrada
“na descoberta de si, múltiplo(a) e dividido(a), a despeito das ciladas do
patriarcado”. Nela, o sucesso do feminino autobiográfico reside “na aquisição
de uma voz que lhe seja própria, e na capacidade de agir em sua vida, de
realizar seu potencial, apesar das dificuldades sociais, familiares e culturais”
(2001: 149). É nesse romance autoficcional que a escritora destaca o difícil
acesso do povo brasileiro à literatura, que se torna restrita a uma classe social
mais elevada, ao passo que revela o quanto essa produção pode ser
influenciadora do saber e das idéias representando assim uma ameaça aos
padrões sociais vigentes:
aqui [no Brasil] podemos escrever porque escrevemos para os
doutores. A massa não nos lê: porque não sabe ler, e ainda que
soubesse, sua realidade mais imediata, mais premente, é a
fome. Na Argentina não se pode escrever porque a palavra
teria eco (Ssd: 63).
Além da massa popular a que Carmen se refere, deve-se considerar o
grupo de leitoras no Brasil. Sendo supostamente o público-alvo, na década de
1960, não tinha um largo acesso a determinadas leituras, fato que justificaria a
empreitada de Carmen da Silva de lançar-se no jornalismo concomitantemente
à produção e publicação de Sangue sem dono. É a partir de seu trabalho na
revista Claudia que ela consegue, de forma incisiva e astuciosa, atingir o
público feminino com suas considerações a respeito de uma política
emancipatória, que prenunciara em sua autoficção.
É evidente que Carmen se vale de suas produções como um espaço de
manifestações e protestos no âmbito dos assuntos femininos, políticos e
sociais de um modo geral, reafirmando o que pensa Havercroft: “a escritura
literária constitui um lugar privilegiado de agentividade no feminino” (2001:
153). Enfatiza o funcionamento do texto literário enquanto lugar de
“contestações das formas e das totalidades, [que] opera sua problematização e
contribui [...] para criar novas figuras do espaço social” (id. ibid), figuras que
podem ser entendidas como sujeitos iguais a mulheres mais atuantes
socialmente, reivindicadoras e militantes a favor de seus benefícios.
Em 1964, Carmen da Silva seguia seu instinto criador, resumindo em
poucas palavras a expectativa depositada em seu trabalho de escritora: o
desejo de mudança de postura e a ânsia pela liberdade de ação e atuação
social da mulher. Para ela, “a literatura, sendo interpretação, diagnóstico e
denúncia, representa, em última instância, o desejo de um mundo melhor” (Rio,
1964).
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma velha teoria veiculada na América do Norte que diz: “quando
um[a] escritor[a] morre, entra em uma espécie de purgatório que pode durar
dez, vinte ou até mesmo cinqüenta anos. Se consegue sair, sua imortalidade
está garantida. Caso contrário, ficará para sempre na sombra do
esquecimento” (Le Devoir, le 13 oct. 1996, p. D 1). Com Carmen da Silva,
parece ter sido assim. Por muito tempo foi reconhecida apenas como jornalista,
colunista da revista Claudia, sendo recente sua descoberta pela Academia,
para alegria das feministas.
A sociedade local foi dura com Carmen da Silva, que desconcertava
quando se sentava na amurada de sua casa, numa das principais vias da
cidade, balançando as pernas, fumando muito à vontade em sua piteira
ostensiva e declarando para o frisson geral: “Faço absoluta questão de não
compactuar, de preservar intacta a capacidade de escândalo e indignação dos
meus 18 anos; obrigo diariamente a consciência a fazer seu cooper para
mantê-la ágil e afiada: para mim a verdadeira noite negra da alma é o
conformismo”.
Sabe-se que é difícil fazer sucesso na própria cidade. Associada ao
preconceito, esta certamente é uma das causas de a “Noiva do Mar”
praticamente até hoje ignorar que Carmen da Silva é pioneira do feminismo
brasileiro. Tivesse ela rejeitado na juventude a tentação e o desejo de
experimentar o “além” em Montevidéu, logo após na cultural e cosmopolita
Buenos Aires, preferido viver e envelhecer na pacata sociedade rio-grandina,
talvez não tivesse descoberto esse je une autre ilustrado pelo poeta Rimbaud,
nem as paisagens de sonho e liberdade que marcam indelevelmente sua arte.
Se escolhi escrever sobre as auto-bio-grafias da rio-grandina em minha
dissertação de Mestrado, Carmen da Silva: nos caminhos do autobiografismo
de uma “mulheróloga”, foi porque essa abordagem permitiria que se
alcançasse o objetivo do projeto proposto e ao qual estava vinculada:
presentificar a memória da escritora e divulgar sua obra seguindo o fio condutor
de sua vida. Definido estava então meu objeto de estudo, restando responder à
questão (des)norteadora. Para fazê-lo, impuseram-se os textos e as inegáveis
influências exercidas pelas feministas canadenses que estiveram nesta
Universidade, cujas reflexões teóricas estão na base da sustentação proposta.
A pergunta, agora, é resposta: é possível ler as produções autobiográfica e
autoficcional de nossa ilustre conterrânea à luz de teorias feministas que
estudam o autobiografismo na contemporaneidade.
Embora produzida no século passado, a produção de Carmen da Silva,
além de abordar questões pontuais em momentos datados, tais como a
ditadura militar dos anos de 1960, os movimentos em prol da libertação da
mulher na década de 70, a crise econômica de 1980, manifestações sociais
que, entre outras, estão na base do engajamento que reflete no texto literário,
ela registra notadamente um problema atemporal: o pensamento
tradicional/reducionista com relação à mulher, que se encontra na origem da
passividade feminina. Seria esta uma das maiores, senão a maior justificativa
para reler a produção selecionada, sustentada pelas experiências de vida da
própria autora. Pouco discutido e muitas vezes abafado no discurso em
circulação no Brasil, esse problema secular ganha, com a produção da
literatura engajada no amplo sentido do termo de Carmen da Silva, defesa
e porta-voz.
Em paralelo, a escritura de uma vida engaja também a autora, pois a
obriga a fazer escolhas, a adotar estratégias, a compor em função das regras
que fixa ou recusa. Nenhum testemunho pode ser totalmente neutro. Embora
refute a complacência, embora se queira próximo da observação etnográfica,
embora use da distância humorística ou irônica, o esquecimento, a
deformação, a mentira são sinais de um inevitável engajamento daquel(e)a que
conta sua vida. Ao escrever Sangue sem dono e Histórias híbridas, Carmen da
Silva engaja-se vis-à-vis ela própria, da mesma forma que Simone de Beauvoir
engajara-se em suas moires d’une jeune fille rangée.
Respaldada por leituras de teorias e filosofia, Carmen deixou no entanto
as teorizações de lado e partiu para o corpo-a-corpo literário, apresentando
uma literatura caracterizada pela linguagem direta, simplificada, por intermédio
da qual almejava chegar às suas leitoras e com elas dialogar para interferir em
seu pensamento. Ela obteria assim, de forma mais imediata, o resultado
pretendido para o seu grande “projeto feminista”: modificar a postura da mulher
ante a vida. Foi com esse pensamento que abraçou o jornalismo e se manteve
com sucesso na redação de Claudia por vinte e dois anos ininterruptos. Essa
revista caracterizava-se pela diferença dos jornais feministas dos anos 70 e 80,
que tiveram pouco tempo de circulação devido ao fracasso em número de
leitoras.
A partir da segunda etapa da pesquisa, na qual recupera-se a trajetória
da escritora, foi possível compreender o quanto foram estratégicas as decisões
que ela tomou ao longo de sua vida. A saída de Rio Grande, a decisão de viver
no Uruguai e posteriormente na Argentina, tudo convergiu para que, experiente
e ciente da grande tarefa” que a aguardava, retornasse à pátria pronta a
assumir o desafio de reconquistar o seu lugar. Instalada no coração do Brasil,
empenhava-se em ramificar seus ideais em âmbito nacional, primeiro por meio
da autoficção, a seguir através dos textos publicados em Claudia e, finalmente,
em sua autobiografia.
Embora descreva em suas reminiscências a pasmaceira provinciana de
Rio Grande, península varrida pelos ventos fortes que traziam “cheiro de peixe
e odor de cebola” (Hh: 190), dependendo do quadrante de onde sopravam; o
quanto destoava das outras debutantes dos bailes de sua época no Clube do
Comércio, defronte ao cais, em meados dos anos 30, quantas inquietudes tinha
e quanta fome de mundo! Embora destoasse da tradição moral da cidade,
Carmen da Silva não nega suas origens. É a terra natal que ela contempla em
Sangue sem dono e canta em Histórias híbridas de uma senhora de respeito,
dois momentos em que registra sua história pessoal, desde o passo gigante
sobre o “charquito” o Rio da Prata, e o outro atrás no tempo, para encontrar-
se em Montevidéu, na flor dos seus vinte e poucos aninhos, que “ai [dela], o
gato comeu” (Hh: 60).
É tocante seu esforço em entender o que acreditava e o que devia
deixar de acreditar, em racionalizar e converter em figuras de linguagem sua
ânsia em descobrir outras coisas, aguçada pela leitura de Stendhal, Flaubert,
Machado de Assis, Nietzsche, clássicos que lia em paralelo às obras de
Thomas Mann e Aldous Huxley, as quais, de acordo com seu conterrâneo
Renato Modernell, deviam formar uma espécie de underground no Rio Grande
do Sul daquela época (Claudia, out. 1990: 54).
Na terceira parte, depois da introdução e da apresentação, propôs-se
apresentar Histórias híbridas, invertendo a ordem cronológica da análise das
obras, para dar continuidade ao projeto de desvelamento da trajetória pessoal
e literária da escritora. Isso porque é nessa autobiografia que se encontram os
detalhes, as particularidades que complementam as informações avançadas
inicialmente e presentificam as motivações psicológicas, as justificativas para
as decisões que a Carmenzinha tomou no passado, as negociações para
decidir entre ficar e partir do lugar em que estava e o não-lugar que procurava.
De uma margem à outra da existência à escritura, do passado ao presente,
do vivido à narrativa da vida ver-se-á a escritora traçar o caminho que liga
dois pontos, dois instantes, dois lugares, dois seres e suas manifestações de
presença no mundo, revelando-se a escritura um meio graças ao qual se
realiza a recapitulação, capítulo após capítulo, buscando as causas do “eu” no
presente.
Tratando-se de uma narrativa do eu, buscou-se nas bases desse gênero
comprovar a categorização da obra. Dentro dos moldes tradicionais, fica
evidente que Histórias híbridas é uma autobiografia que respeita as
insinuações do tempo, pressente os limites do ser e registra os prenúncios do
fim, um ano antes de a morte chegar. Leitura e análise levam ainda a
compreender de que maneira a autobiografia responde a uma produção de
gênero feminino, que rompe com a tradição masculina, para inscrever a
retrospectiva da vida de Carmen da Silva, que assume o papel de testemunha
ocular do seu tempo, para relatar fatos ocorridos e histórias alheias. Justifica-se
então a escolha de se tornar escritora feminista e desvela-se a composição de
um panorama social da mulher Carmen abrangendo cinco décadas, em quatro
contextos distintos – Rio Grande, Montevidéu, Buenos Aires e Rio de Janeiro.
Fiel à proposta de inversão cronológica, analisa-se por fim Sangue sem
dono com base em uma leitura induzida, na qual o(a) leitor(a), saberdor(a)
das origens de Carmen da Silva, seu percurso de vida, conseguirá interpretar o
romance como uma narrativa que apresenta elementos autobiográficos.
Comprova-se a inovação da obra à medida que as definições e categorizações
a respeito do autobiografismo são trazidas à análise, encaminhando para que
se defina o romance como autoficção. Nas teorias apresentadas dessa
subcategoria do gênero autobiográfico o(a) leitor(a) que desconhece ou não
tem acesso às informações acerca da vida do(a) autor(a) não poderia
identificar a autoficção senão a partir da leitura da autobiografia explícita,
notadamente ao levar em conta o comprometimento (relativo) com a
veracidade que todo relato autobiográfico pressupõe.
Ao categorizar-se Sangue sem dono dentro dos parâmetros da
autoficção, não se pode deixar de salientar mais uma vez o pioneirismo de
Carmen da Silva ao publicar nos anos 60 do século passado uma obra
feminista que se consolida como espaço de denúncia dos preconceitos, de
questionamento dos valores tradicionais, de auto-afirmação do “eu” feminino, o
que se aplica perfeitamente às mudanças sociais propostas pela agentividade.
Por outro lado, ao privilegiar a busca identitária individual da
protagonista em paralelo à problemática coletiva, Sangue sem dono irá
precocemente ao encontro das narrativas de uma geração de feministas – anos
1970 e 80 – que articulariam a história pessoal/privada à história social e
política. Esse tipo de escrita se manterá vinte anos mais tarde em Histórias
híbridas, e o termo híbridas, em definição da própria autora, reforça tais
características.
Foi possível aproximar Sangue sem dono de O sangue dos outros, de
autoria de Simone de Beauvoir, cuja intertextualidade e diálogo são
indiscutíveis com obra a de Carmen da Silva, desde a composição do título.
Ambos, título e obra, apresentam em seu bojo uma mesma ideologia de
engajamento, veiculado pelo social das personagens protagonistas, o que
reafirma o engajamento literário das duas escritoras. O distanciamento
temporal entre as obras e a diferença dos cenários que ambientam e ilustram,
o idealismo de Carmen e de Simone, vêm provar que a primeira exerce um
certo “canibalismo” da filosofia beauvoirista, na medida em que se nutre das
reflexões a respeito da condição feminina propostas pela segunda, as recria e
adapta ao contexto social e à realidade da mulher brasileira, num tempo em
que as mulheres feministas e emancipadas somavam um número
considerável na França.
Não houve a preocupação de explorar ou verticalizar a natureza
paradoxal da autobiografia, não era objetivo fazê-lo. Em vez disso procurou-se
analisar temas que são basicamente culturais e históricos em sua natureza,
notadamente a partir de duas formas diferentes de autofiguração, para delas
extrair estratégias textuais, atribuições genéricas e a percepção de si que
informa o texto de Carmen da Silva. Assim procedendo, procurou-se descobrir
o que o “eu” estava tentando fazer, quais as fabulações a que recorreu, em que
espaço e tempo, e o que de certa forma isto nos diz a respeito da literatura e
da cultura a que pertence. Emblemáticas do autobiografismo feminista, ambas
as narrativas atuam como romances exemplares desse gênero, traduzindo, na
manipulação dos mecanismos e estratégias empregados nas análises, nas
quais se reconhece nos dois romances representações simbólicas que
justificam o ato de revisitação da identidade da escritora gaúcha, sua
aproximação a outras escritoras que escrevem além das fronteiras nacionais.
O desconhecimento da autobiografia e da autoficção de Carmen da Silva
por parte de leitore(a)s e críticos no Brasil talvez aconteça por uma questão de
atitude. Embora haja uma boa quantidade de obras nesse gênero, nem sempre
elas têm sido lidas como tal. Filtradas pelo discurso dominante, são saudadas
como história ou ficção, raramente se lhes atribui um espaço próprio. O que é
significativo, pois, ao negar ao texto autobiográfico a recepção que merece,
o(a) leitor(a), conforme atesta Sylvia Molloy, estará apenas refletindo um
desconforto que o próprio texto acolhe, “às vezes bem escondido dos olhos,
outras mais aparente. A angústia de ser traduz-se em angústia de ser em (e
para a) literatura” (2003: 15).
Buscou-se apontar a possibilidade conforme foi visto de estabelecer
convergências com outros autores, notadamente escritoras da América do
Norte, preocupadas com o mesmo tema. No Novo Mundo, mais ou menos na
mesma época, elas revelam sua ânsia de definir-se a partir de um lugar de
enunciação americano, que vem ao encontro dos processos de autonomização
literária e de transculturação verificado nas Américas. Ao privilegiarmos a
escrita autobiográfica, colocamos em perspectiva comparatista autoras como
Barbara Havercroft, Barbara Godard, Lori Sain-Martin, Régine Robin, entre
outras, expandindo as fronteiras nacionais e colocando o Brasil de Carmen da
Silva em interlocução com outros textos produzidos na América. Comprovar-se-
á assim, que na textualidade literária das Américas do Norte e do Sul, transitam
construções culturais dimensionadas pela partilha de experiências no processo
da formação do “eu” feminino, que apontam manifestações a partir da década
de 60, tendo como marco momentos contundentes dos processos históricos
nacionais.
O desdém ou a incompreensão com que têm sido recebidas as
formações discursivas de nossa escritora torna-as um campo ideal para
investigação. Acredita-se que este estudo consegue recuperá-las da posição
mal definida e marginal a que têm sido relegadas e comprovar a possibilidade
de revisitar sua obra à luz de teorias não apenas contemporâneas, mas
inovadoras, transgressivas do modelo estético padrão das construções
discursivas ocidentais. A obra da escritora gaúcha continua a oferecer
inúmeros caminhos e pistas a serem percorridos, livres para revelar suas
ambigüidades, suas contradições e a natureza híbrida de sua composição, que
se reforça mais ainda quando ela consegue unificar de forma tão lúcida as
instâncias vida e obra, inscritas na historiografia literária.
Carmen da Silva foi uma jovem interiorana que morou nas grandes
capitais e enfrentou o estranhamento das cidades grandes. É o esboço das
mulheres fortes que viriam aparecer e comandar a visão de mundo de muitas
leitoras. Mulheres que desafiam a mentalidade de uma sociedade, com
persistência e determinação. É mãe espiritual de Rita, Susana, Zahidé, e por
que não, da Nubia e da Kelley... Uma precursora.
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