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Universidade Federal de Juiz de Fora
ICHL
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
A BÉGUINE E AL-SHAYKH:
Um estudo comparativo da aniquilação mística em
Marguerite Porete e Ibn’Arabī
Tese de Doutorado
Sílvia Schwartz
Juiz de Fora
Março de 2005
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A béguine e al-Shaykh:
Um estudo comparativo da aniquilação mística em
Marguerite Porete e Ibn’Arabī
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Silvia Schwartz
A BÉGUINE E AL-SHAYKH:
Um estudo comparativo da aniquilação mística em Marguerite Porete
e Ibn’Arabī
Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de doutor.
Orientador: Prof. Dr. Faustino Teixeira
Juiz de Fora
Março de 2005
Sílvia Schwartz
A BÉGUINE E AL-SHAYKH:
Um estudo comparativo da aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’Arabī
Tese submetida à Universidade Federal de Juiz
de Fora como requisito parcial para a obtenção
do grau de Doutor em Ciência da Religião e
aprovada pela seguinte banca examinadora:
Prof. Dr. Faustino Teixeira (orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora
Profa. Dra. Maria Clara Luccetti Bingemer
Pontifícia Universidade Católica – RJ
Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé
Pontifícia Universidade Católica – São Paulo
Profa. Dra. Vitória Peres de Oliveira
Universidade Federal de Juiz de Fora
Prof. Dr. Luís Henrique Dreher
Universidade Federal de Juiz de Fora
Juiz de Fora
04/03/2005
Minha sincera gratidão
À minha família, Rodrigo, Carolina e, em especial, ao Renato, que, ao longo de todo
esse percurso, mesmo em meio às minhas ausências, aos maus humores e às depressões
rotineiras de todo esse processo, me deu o suporte emocional e a ajuda para que eu chegasse
ao final.
Ao Prof. Dr. Faustino Teixeira, que mais que um orientador tornou-se um bom amigo
nesses cinco anos de mestrado e doutorado. Sem seu incentivo, sua orientação dedicada e sua
generosidade, nada teria sido possível.
Aos professores Dra. Vitória Peres de Oliveira e Dr. Luís Henrique Dreher, do
Departamento de Ciência da Religião da UFJF, que contribuíram com sugestões e críticas
valiosas para este trabalho.
Ao Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé, que, com seus artigos, suas palestras e sua
“insistência implicante” nos Simpósios de Mística do Seminário Floresta, sinalizou o que
acreditei ser a abordagem mais correta do tema desse trabalho.
Aos amigos e colegas de Juiz de Fora, com quem durante esses anos partilhei
conhecimento e informações, uma convivência carinhosa, longas conversas, lágrimas e boas
risadas.
Na cadeia infinita do mistério
Não há elo final. De haver um deus
De deus a deus (noção), todos mais
A mais que Deus
de ser ou mais que ser
D’esse pensar (...) (...) não é já mais
Que ser, o abismo é abismo num abismo.
Cerca o infindável infinito, centro
Do inexistente.
Fernando Pessoa (Primeiro Fausto)
RESUMO
O período entre a metade do século XII e o começo do século XIV constituiu o
florescimento, quase simultâneo, da mística apofática nas tradições islâmica, judaica e cristã.
O tema da aniquilação mística, veiculado dentro de uma linguagem apofática, aparece na obra
de Marguerite Porete, que pertence à tradição béguine do século XIII, e no sufismo de
Ibn’Arabī, nascido em 1165 no al-Andalus, império islâmico ocidental, e foi o objeto de
comparação no presente trabalho.
Partindo dos distintos universos religiosos, culturais e lingüísticos de cada um deles, é
possível estabelecer como suas linguagens apofáticas – que negam qualquer delimitação,
nomeação ou predicado a Deus – são complementadas por uma antropologia igualmente
apofática que ressalta a radical pobreza ontológica humana e o suporte existencial da criatura
em Deus. A apófase do desejo, da vontade e do conhecimento realizada dentro dessa prática
da antropologia negativa conduz à aniquilação do criatural na alma, que pode então atualizar
seu verdadeiro eu, oculto no mais profundo recôndito da alma, na profundeza abissal onde
Deus reside. Ambos os autores postulam uma união de indistinção e a equiparam à theosis, a
deificação da alma, que agora retornou ao estado de preexistência em Deus. Eles também
mostram que, em última análise, a criatura humana é uma imagem incompreensível do Deus
incompreensível.
PALAVRAS-CHAVE: mística, linguagem apofática, aniquilação, união de indistinção,
theosis.
ABSTRACT
The period from the mid-twelfth to the beginning of the fourteenth century constituted
the almost simultaneous flowering of the apophatic mysticism in the Islamic, Jewish and
Christian traditions. The theme of mystical annihilation, vehiculated within an apophatic
language, appears in the work of Marguerite Porete, who belongs to the Christian beguine
tradition of the thirteenth century, and in the Sufism of Ibn’Arabī, born in 1165 in al-Andalus,
the Islamic Western Empire, and was the object of comparison in the present work.
Beginning from their distinct religious, cultural and linguistic universes, it is possible
to establish how their apophatic languages – which prevent God from any delimitation,
naming or predicate – are complemented by an equally apophatic anthropology which
underlines the radical ontological human poverty and the existencial support of the creature in
God. The apophasis of desire, will and knowledge accomplished within this practice of
negative anthopology leads to the annihilation of everything created in the soul, now able to
actualize its true self, hidden in the deepest place of the soul, in the abissal depths where God
dwells. Both of them claim an union of indistinction, equalized to the theosis, the deification
of the soul, which now has returned to the state of preexistence in God. They also show that,
ultimately, the human creature is an incomprehensible image of the incomprehensible God.
KEY-WORDS: mysticism, apophatic language, annihilation, union of indistinction, theosis.
Tabela de transliteração das letras árabes
Safa Jubran, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), propõe uma romanização
padronizada de termos árabes em textos de língua portuguesa.
1
Decidimos, contudo, manter a
transliteração utilizada por William Chittick em suas traduções das seções do Futūhāt al-
makkiyya de Ibn’Arabī, uma de nossas principais fontes primárias neste trabalho.
ا ā ذ UUd ظ z ن n
ب b ر r ع ˓ h
ت t ز z غ g و ū / w
t س s ف f ي ī / y
ج ğ ش š ق q ء ٫
ح h ص s ك k
خ j ض d ل l
د d ط t م m
1
Safa Abou-Chahla JUBRAN, “Para uma Romanização Padronizada de Termos Árabes.” Revista de Estudos
Árabes e das Culturas do Oriente Médio, vol. I, São Paulo: USP, 2004.
CAPÍTULO I
A BÉGUINE E AL-SHAYKH: Contextualização
1.1 – A espiritualidade cristã no final da Idade Média
De acordo com os historiadores medievalistas, o século XII marcou o início de um
novo período político e social na história da Idade Média. Contudo, a partir da perspectiva da
história da mística cristã, o século XIII teve um impacto mais importante, marcando um novo
estágio na história da mística ocidental cristã
1
e, em especial, uma revivificação religiosa que
se traduziu tanto no estabelecimento de novas ordens religiosas quanto no florescimento de
movimentos religiosos, por vezes rotulados como heréticos.
Na passagem para o século XIII, a Europa já havia se tornado uma sociedade
politicamente menos fragmentada e mais eficientemente organizada e administrada. Reinos
poderosos como a França, a Inglaterra, a Sicília Normanda e o Império Germânico já estavam
delineados. Economicamente, a maior parte do Ocidente europeu se achava em período de
expansão, e o aspecto mais significativo da expansão demográfica e econômica para a vida
religiosa foi a crescente urbanização, encorajada pelo aumento do comércio e a gradual
transição de uma economia de doação e troca, característica dos primeiros séculos da Idade
Média, para uma economia de lucro, baseada em dinheiro.
Segundo McGinn, o monasticismo beneditino, que havia dominado a vida religiosa no
Ocidente europeu desde o século VIII e se adaptava perfeitamente à vida rural e à estrutura
feudal da sociedade medieval anterior, não se adequava ao mundo de crescente urbanização
da Idade Média mais tardia, o que levou ao surgimento de novas respostas religiosas, tanto
1
Bernard McGINN, The Flowering of Mysticism: Men and Woman in the New Mysticism –1200-1350, 1998: 1.
16
institucionais quanto espirituais, para as necessidades de uma sociedade urbana em rápida
transformação.
2
Outra grande diferença que marcava a Europa do ano 1200 em relação ao século que
terminava foi a mudança nos métodos da educação avançada e o aumento da literatura,
especialmente nos vernáculos europeus antigos. Ao longo do século XIII, o escolasticismo,
surgido ao final do século XI como uma modalidade cientificamente organizada de buscar a
compreensão da fé, se firmava como teologia dominante. Essa nova forma de teologia
contrastava com a antiga modalidade de teologia praticada nos monastérios e, pouco tempo
depois da fundação da Universidade de Paris, em 1215, passou a ser a modalidade teológica
dominante.
3
Por essa altura, a educação superior estava firmemente colocada sob o controle
da Igreja e o estudo teológico reservada ao clero.
Outra característica desse período foi o aumento da população letrada entre os leigos.
Ainda que não se possa saber que percentagem da população era capaz de ler, com certeza a
aristocracia e a alta burguesia eram letradas. Esse fator foi particularmente importante no
desenvolvimento da teologia “vernácula”
4
que veio a ser desenvolvida por vários místicos daí
em diante.
O movimento de reforma eclesiástica liderado por Gregório VII, na metade do século
XII, havia completado a estrutura da Igreja hierárquica, reforçando o poder dos padres e o
sacramento da eucaristia, por eles controlada. Todo esse processo expandiu o serviço e o
controle dos clérigos sobre a população laica. O status do clérigo foi cada vez mais definido
como o direito de pregar e praticar com exclusividade a cura animarum, em contraposição ao
início do século XII, quando a palavra clericus significava simplesmente “ordenado” ou
“letrado”.
5
Contudo, o ideal central da espiritualidade nesse período da Idade Média era o da
2
Bernard McGINN, The Flowering of Mysticism: Men and Woman in the New Mysticism –1200-1350, 1998: 3.
3
Ibid.
4
Bernard McGINN, op. cit.: 4
5
Caroline Walker BYNUM, Jesus as Mother: Studies in the Spirituality of the High Middle Ages, 1984: 11.
17
vita apostolica, ou seja, viver como Cristo e os apóstolos viveram, ideal que embora louvado
por bispos e papas em documentos oficiais, emergiu “de baixo”, de monges e padres, mas
especialmente de pessoas laicas. Muitos começaram a se perguntar se a ordenação eclesiástica
de um padre deveria ser o único requisito para levar a cabo o trabalho de salvação cristã, e se
cada cristão não poderia ser chamado pelo comando dos evangelhos e pelo exemplo dos
apóstolos a modelar sua vida sobre esses padrões. Outra questão que então surgia, devido ao
fausto e à corrupção moral que grassavam no clero, era se alguém ordenado pela Igreja, mas
que não vivia de acordo com os Evangelhos e o modelo dos apóstolos, podia ser um padre
verdadeiro.
6
Os componentes essenciais da compreensão da vida apostólica eram a penitência, a
pobreza e a pregação. Surgiu um debate entre a visão dos monges, que até então viviam uma
vida apostólica assentada sobre o modelo de uma comunidade interna estável de oração e da
propriedade comum dos bens, e daqueles que insistiam que a pregação e a evangelização eram
componentes essenciais de uma verdadeira vita apostolica, que deveria se voltar para um
encontro com o mundo.
Com a fundação das novas ordens religiosas dos frades dominicanos e franciscanos,
no início do século XIII, foi criado um novo papel religioso, apoiado numa combinação de
pregação evangélica e de renúncia radical aos bens materiais. Com isso, embora os
monastérios tenham continuado a exercer um papel importante na vida religiosa, econômica e
intelectual, o antigo objetivo monástico de salvação pessoal através do recolhimento e da
salvação da sociedade através da oração foi eclipsado. Os maiores líderes filosóficos,
teológicos e espirituais da Europa no século XIII passaram a ser os franciscanos e os
dominicanos, que personificavam o ideal de vida apostólica e “pobreza cristã”.
7
Ao mesmo
6
Herbert GRUNDMANN, Religious Movements in the Middle Ages, 2002: 7.
7
Caroline Walker BYNUM, Jesus as Mother: Studies in the Spirituality of the High Middle Ages, 1984: 13.
18
tempo, segundo McGinn, o novo estágio na compreensão da vita apostolica estava
inseparavelmente ligado ao crescimento da heresia popular nos séculos XII e XIII.
8
Todas essas mudanças nas idéias sobre a Igreja, o clero e a vida apostólica foram
acompanhadas por mudanças fundamentais na piedade religiosa. Os escritores do século XII
começaram a enfatizar mais a humanidade de Cristo, as respostas afetivas ao evangelho e
cada vez mais o drama religioso passou a se localizar dentro do eu, na forma de uma jornada
até Deus. As hagiografias passaram a retratar com maior freqüência as mulheres e os leigos,
enfatizando agora as virtudes internas e as experiências, acompanhadas de fenômenos
externos como transes, levitação e estigmas. A teologia mística ressurgiu, e os escritos
religiosos mostravam um aumento da devoção às figuras femininas, o uso crescente de
metáforas femininas e de admiração por características como lágrimas, fraqueza, e compaixão
ou “irracionalidade ética”, consideradas na época como estereótipos femininos.
9
Nesse período, os historiadores medievalistas registram uma mudança de orientação na
concepção de subjetividade. Bynum coloca a questão do surgimento da noção de indivíduo no
século XII. A autora comenta que nos últimos anos tem havido a argumentação de que o
século XII “descobriu o indivíduo” – na política ele passou de sujeito a cidadão, na literatura,
passou a autor ou a figurar como o herói da poesia e do romance. No pensamento religioso,
essa passagem foi marcada por uma nova preocupação com a auto-descoberta e com o auto-
exame psicológico, por uma sensibilidade ampliada para os limites entre o eu e os outros e por
um crescente otimismo em relação à capacidade do indivíduo para as conquistas.
10
Contudo,
Bynum enfatiza que esse novo senso de busca individual acontecia dentro de um processo de
pertencimento a grupos, da atuação segundo papéis determinados e da conformidade a
modelos.
8
Bernard McGINN, The Flowering of Mysticism: Men and Woman in the New Mysticism – 1200-1350, 1998: 6.
9
Caroline Walker BYNUM, Jesus as Mother: Studies in the Spirituality of the High Middle Ages, 1984: 16/17.
10
Caroline Walker BYNUM, op. cit.: 83.
19
Bynum prefere colocar que nesse século houve uma “descoberta” ou “redescoberta do
eu”, um movimento de internalização que enfatizava o mistério e a paisagem interna de cada
um, mas também uma descoberta do grupo enquanto órgão de afiliação e de estabelecimento
das regras de pertencimento. Para a autora, esse novo senso de eu estava ligado à necessidade
de escolher entre a diversidade de papéis e grupos religiosos agora disponíveis e à
necessidade de um modelo de comportamento, fossem os apóstolos, a igreja primitiva, os
santos ou a vida terrena de Cristo.
11
Não se pode deixar de sinalizar que a noção de indivíduo nesse momento não pode ser
interpretada a partir de posições individualistas modernas, fundadas na autonomia do
indivíduo, mas a partir da relevância da experiência comunitária na vida social. O
aprofundamento da consciência de si, implicado no movimento de interiorização, deve ser
compreendido num contexto onde a “aspiração por realização pessoal confundia-se com a
busca de identificação interior com Deus.”
12
Também por essa época é registrada uma mudança na ênfase teológica: do
arrependimento-ressurreição e último julgamento para a criação e a encarnação. Tanto a idéia
de humanidade criada à semelhança de Deus quanto a de Cristo assumindo a nossa
humanidade passaram a ter um destaque teológico. Ao mesmo tempo, foi reforçada a idéia de
que a humanidade possui a “capacidade para Deus” por sua própria criação e pela encarnação
de Cristo, e de que cada ser humano deve abrir seu caminho individual para Deus por meio da
graça fornecida pelos sacramentos e pela prática das virtudes. Tanto a mística baseada na
piedade afetiva dos cistercienses e franciscanos quanto a mística com raízes filosóficas no
neoplatonismo passaram a enfatizar a presença de um fundamento de “semelhança” a Deus na
alma humana.
13
11
Caroline Walker BYNUM, Jesus as Mother: Studies in the Spirituality of the High Middle Ages, 1984: 107.
12
Sínval C. M. GONÇALVES, “... Na medida do Impossível: o cavaleiro além da cavalaria nos romances de
Chrétien de Troyes (1165-1191)”. Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2004.
13
Caroline Walker BYNUM, op. cit.: 17.
20
Por trás das muitas mudanças na religião dos séculos XII e XIII há, portanto,
um paradoxo: o período viu o poder dos clérigos aumentado bem como ondas
de heresia anti-sacerdotal e religiosidade laica; isso produziu um novo sentido
de Deus como pai/mãe/amante/amigo bem como uma crescente ênfase no padre
como intermediário necessário entre a alma e Deus. Como a graça estava mais e
mais estreitamente confinada aos momentos sob o controle do padre, foi dado
um significado religioso maior aos papéis e ações comuns ... Enquanto o padre
se tornou mais distante, Deus se tornou mais acessível; como o padre foi
“divinizado”, Deus se tornou “humano”.
14
Já no século XII, após a reforma gregoriana, prenunciando a nova consciência
religiosa que eclodiria com mais vigor no século seguinte, novas ordens religiosas que
buscavam a pobreza evangélica e uma vida apostólica de serviço haviam sido fundadas, como
os cistercienses, os agostinianos e outros. Essas novas ordens deram aos homens a
possibilidade de viver de acordo com seus ideais religiosos mas, por essa época, poucas
oportunidades eram reservadas às mulheres.
Nos séculos XII e XIII, a busca por uma vida apostólica atraiu tantas mulheres para
uma vida religiosa especializada que os cronistas da época registraram o fato, uns com
admiração, outros com consternação e espanto. O número de conventos cistercienses e
premonstratenses para mulheres cresceu numa velocidade tão espantosa que alarmou as outras
ordens. Os premonstratenses foram os primeiros a fechar as portas e a interromper esse
crescimento, seguidos pelos cistercienses, que emitiram um decreto proibindo a incorporação
de mais mulheres à ordem. Contudo, mesmo com o decreto, ao longo do século XIII, os
conventos cistercienses femininos continuaram a proliferar nos Países Baixos e no baixo
Reno.
15
Esse era o quadro no início do século XIII: as principais ordens se esforçando em
14
Caroline Walker BYNUM, Jesus as Mother: Studies in the Spirituality of the High Middle Ages, 1984: 19.
15
Caroline Walker BYNUM, op. cit.: 14.
21
fechar as portas para as mulheres e um número cada vez maior de mulheres e homens
buscando viver uma vida religiosa de pobreza e serviço apostólico nas cidades.
Ao longo do século XIII, os conventos femininos dos cistercienses, dominicanos e
franciscanos, embora surpreendentemente numerosos, estavam superlotados e não tinham
mais condição de abrigar todas as mulheres que buscavam uma vida religiosa institucional.
Por essa época, apenas em circunstâncias especiais era possível para as comunidades
religiosas femininas ganhar o reconhecimento como um convento autônomo e ter acesso a
uma ordem. As ordens aceitavam somente casas e comunidades ricas o suficiente para manter
todos os seus membros numa clausura estrita e com rendimentos seguros, sem depender de
doações. Somente as comunidades que conseguiam um doador que lhes desse terra suficiente
ou aquelas que recebiam uma mulher rica e suas propriedades podiam almejar o
reconhecimento como um convento e ingressar numa ordem já existente.
16
Essas condições deixaram de fora muitas mulheres que não possuíam as condições
necessárias e viram barradas suas pretensões quanto a uma vida religiosa em alguma ordem.
Apesar do decreto conciliar de 1215, que baniu a criação de novas formas de vita apostolica
17
,
em 1216 Honório III permitiu que essas mulheres se agrupassem em comunidades pias, e a
Igreja continuou a tolerar as comunidades religiosas de mulheres que nem eram reguladas
pelos conventos, nem pertenciam a uma ordem aprovada. Em torno do ano de 1230, o nome
dado a essas mulheres, aceito por toda a Europa, era béguines.
18
16
Herbert GRUNDMANN, Religious Movements in the Middle Ages, 2002: 139.
17
O Concílio de Latrão de 1215 foi liderado por Inocêncio III principalmente para “combater ao máximo e com
todos os meios as heresias obstinadas e incorrigíveis”, e também para tentar reintegrar na Igreja os grupos que
haviam caído na heresia, reconciliando-os com a cúria e cuidando, por meios eclesiásticos selecionados, para que
não fossem novamente levados aos braços da heresia. O concílio também baniu a criação de novas ordens
religiosas ou “a invenção” de novas formas das ordens. Quem quer que quisesse se tornar um monge deveria se
colocar sob as regras de uma das ordens aprovadas. Cf. Herbert GRUNDMANN, op. cit.: 58/60.
18
Herbert GRUNDMANN, op. cit.: 139.
22
1.1.2 – As béguines: esboço de um movimento
O movimento das béguines nunca representou uma forma de vida religiosa planejada.
Foi principalmente um fenômeno de uma sociedade urbana em expansão, resultado do
movimento religioso das mulheres à medida que elas não encontravam aceitação nas ordens
religiosas existentes. Esse movimento constituiu uma forma transicional entre as ordens
eclesiásticas da época, pois, embora não pertencessem à comunidade monástica dos
religiosos, já que não eram uma ordem aprovada, também não pertenciam ao mundo laico.
Elas se organizavam de forma semi-secular e semi-religiosa e não seguiam nenhuma regra
comum, embora seguissem uma vida apostólica.
Num primeiro momento, o movimento se constituiu de mulheres que viviam vagando
pelas cidades, levando uma vida estritamente religiosa, mas permanecendo no mundo secular.
Era um movimento espontâneo, sem fundador ou legislador, e essas mulheres eram
conhecidas simplesmente como mulheres santas (mulieres sanctae).
19
Como elas não seguiam
nenhuma regra autorizada, os detalhes de suas vidas variavam consideravelmente de acordo
com o lugar onde viviam, algumas com suas famílias, outras em grupos pequenos ou mais
amplos. Somente no início do século XIII muitas dessas mulheres santas começaram a se
organizar em congregações centradas na disciplina individual e em tarefas comuns, os
béguinages, geralmente ligados às ordens mendicantes. Lá elas se organizavam sob a direção
de uma mestra, levando uma vida de austeridade, caridade e de atividades dentro e fora dos
muros da casa comunal, cuidando de doentes e se sustentando por meio de todo tipo de
trabalhos manuais. Contudo, os béguinages não só variaram ao longo do tempo, mas eram
diferentes em diferentes lugares. O fato de haver uma regra para um béguinage em
19
Elizabeth Alvilda PETROFF, Body and Soul: Essays on Medieval Women and Mysticism, 1994: 54.
23
Estrasburgo, por exemplo, não dá informações sobre o modo como as béguines viviam na
Antuérpia ou em Magdeburg.
O movimento se originou em grupos de mulheres dos Países Baixos e da Alemanha, se
espalhando de Flandres à Alemanha, ao vale do Reno e ao nordeste da França. A maioria das
béguines eram mulheres de origem nobre ou de classe média que haviam renunciado aos bens
e prazeres do mundo, ao casamento e à família para levar uma vida de humildade, pobreza e
castidade, ainda que não fossem recebidas como freiras em alguma ordem, mas gradualmente
os béguinages se tornaram um lugar de refúgio para as mulheres pobres. De qualquer forma,
enquanto muitas se organizavam dessa maneira, outro grupo permanecia vagando de um lugar
a outro, mendigando e pedindo o seu pão em nome de Deus (Brot für Gott).
20
Estas
angariaram má reputação e suscitaram reclamações, pois vagavam sem nenhuma restrição,
preferindo esmolas ao trabalho.
Gradualmente, os béguinages se tornaram mais estabelecidos, e, embora uma béguine
fosse livre para deixar a comunidade a qualquer momento, não poderia levar consigo as
propriedades que havia trazido. Em geral, os béguinages se estabeleciam próximos a igrejas
ou casas religiosas. As béguines eram particularmente ligadas aos cistercienses e, pouco
depois, às ordens mendicantes dos franciscanos e dominicanos. Os membros dessas três
ordens, principalmente os dominicanos, assumiram as obrigações pastorais e a orientação
espiritual das béguines, ouvindo confissões, pregando para elas, conversando e trocando
cartas com elas e angariando doações que lhes repassavam, o que acabou por gerar atritos
com os clérigos paroquiais.
Ao mesmo tempo que os béguinages estavam se estabelecendo, os vernáculos
europeus também se emancipavam e se estabeleciam. Essas línguas “vulgares” – o flamengo,
o alemão e o francês – encontraram nos escritos das béguines as suas primeiras composições
20
Emilie ZUM BRUNN & Georgette EPINEY-BURGARD, Women Mystics in Medieval Europe, 1989: intr.
XXI.
24
no campo espiritual. A obra da béguine Metchild de Magdeburg, Das Fliessende Licht der
Gottheit, relato de suas visões, foi o primeiro grande trabalho na literatura religiosa alemã em
prosa, embora não sobreviva em sua forma original, mas numa edição do século XIV.
21
Do
mesmo modo, o Mirouer de Marguerite Porete foi uma das primeiras obras escritas em
francês. Por conta de sua aspiração espiritual, as béguines representaram um papel
incontestável na revolução que viria a permitir que os leigos se familiarizassem com os textos
sagrados e com o conhecimento teológico, não mais por meio de sermões e livros de oração,
mas graças às traduções e aos escritos em suas línguas maternas.
Foi exatamente do meio dessas “mulheres santas” que surgiu um surpreendente
número de obras místicas, nas quais é possível encontrar a origem de certas expressões dos
trabalhos de Eckhart e de Ruysbroeck que se pensava não terem precedentes até a
redescoberta das obras dessas mulheres místicas. No livro As sete maneiras do amor, de
Beatrice de Nazareth, prioresa cisterciense educada pelas béguines que partilhava a sua
espiritualidade, pode ser encontrada pela primeira vez a expressão “sem um porquê”,
retomada por Hadewijch de Brabante, por Marguerite Porete, por Catherine de Gênova e
finalmente por Eckhart, que a tornou famosa.
22
Para algumas béguines representantes da mística renano-flamenga, que une a
Minnenmystik ou Mystique Courtoise – ramo da mística que funde as convenções do amor
cortês com as aspirações espirituais – com a mística do Ser (Wesenmystik) ou mística
especulativa ou ainda mística da Essência,
23
e responsáveis por muitos dos mais belos textos
de poesia mística desse período, o amor era a categoria central de suas obras místicas, mas a
compreensão dele variava de acordo com suas visões sobre a união. Seus escritos tinham em
geral tendência à alegoria, e elas relatavam suas revelações em imagens dramáticas e
21
Herbert GRUNDMANN, Religious Movements in the Middle Ages, 2002: 198.
22
Emilie ZUM BRUNN & Georgette EPINEY-BURGARD, Women Mystics in Medieval Europe, 1989: intr.
XXXI.
23
Emilie ZUM BRUNN, Le Miroir des simples âmes anéanties, 2001: intr. 11.
25
freqüentemente eróticas. Todas ao menos indicavam a existência de alguma parte incriada da
alma que partilha uma profunda e total união com o divino.
Segundo Grundmann
24
, a dicotomia em relação ao termo béguine, usado para dois
fenômenos distintos – mulheres semi-laicas que levavam uma vida apostólica, organizadas em
comunidades, e mulheres que erravam em liberdade, pedindo esmolas – se mostrou fatal na
história das béguines. Combinada com a falta de uma divisão organizacional fundamental
entre os dois tipos, essa dicotomia impôs às béguines “regulamentadas” a mesma catástrofe
das béguines itinerantes e “não-regulamentadas”, contra as quais a Igreja terminou por
determinar sanções.
Contudo, ao termo béguine sempre foi dada uma conotação ambivalente, pois, desde o
início, as béguines e os beghards, como eram chamados os homens que pertenciam também a
esses movimentos religiosos, foram vistos com hostilidade. A própria palavra “béguine
inicialmente era um apelido para as hereges, originando-se de uma abreviação de “albigen-
ses”, e mais tarde passou a designar as semi-religiosas que buscavam uma vida apostólica.
25
Se por um lado seu estilo de vida era louvado e admirado por teólogos e figuras religiosas
influentes, elas sempre estiveram sob a suspeita de heresia por seus excessos místicos e o
nome “béguines” era indiscriminadamente utilizado tanto para grupos ortodoxos como para
heterodoxos. Ao longo do século, a santidade das béguines começou a ser questionada, e a
semelhança de seu estilo de vida com o de grupos heréticos como os cátaros e albingenses as
deixou expostas à acusação de heresia.
Nesse período, o fervor religioso renovado tanto em suas formas ortodoxas quanto
heterodoxas foi entusiasticamente abraçado pelas mulheres, e é possível encontrar entre elas
representantes de todas essas tendências.
26
Segundo Robert Lerner, o fato não é
24
Herbert GRUNDMANN, Religious Movements in the Middle Ages, 2002: 148.
25
Robert LERNER, The Heresy of the Free Spirit in the Later Middle Ages, 1972: 37. Cf. também, Elizabeth
Alvilda PETROFF, Body and Soul: Essays on Medieval Women and Mysticism, 1994: 53 e Saskia MURK-
JANSEN, Brides in the Desert: The Spirituality of the Beguines, 1998: 26/27.
26
Katharina M. WILSON (ed.), Medieval Women Writers, 1984: intr. XIII.
26
surpreendente, pois o autor observa que a maioria das heresias medievais não eram anomalias
culturais, mas estavam relacionadas ao movimento místico ortodoxo do final da Idade Média
e se desenvolveram a partir “da preocupação por uma vida de perfeição espiritual” e do desejo
premente de seguir uma vida apostólica.
27
As béguines, enquanto “especialistas” da
experiência mística, tinham por objetivo final transcenderem a si mesmas e se “fundirem com
Deus” numa união sem intermediários (sine medio). Daí sua tendência a minimizar a
necessidade de recorrer à hierarquia eclesiástica e a reduzir o exercício das virtudes morais à
condição de um estágio preliminar e imperfeito.
28
É bom lembrar que as mulheres escritoras da literatura mística estavam
freqüentemente sujeitas a uma desvantagem adicional pois não só enfrentavam a dificuldade
natural da comunicação da experiência mística mas, como mulheres, não tinham a autoridade
nem a linguagem autorizada para comunicar as verdades espirituais.
29
As proibições contra o
ensino por parte de mulheres sempre estiveram presentes, e as restrições aumentaram
consideravelmente do século XII ao século XIV.
Como não tinham a autoridade da educação teológica formal, das ordens clericais e do
gênero masculino, a única justificativa dessas mulheres para escrever era o fato de serem um
instrumento do Criador. Como legitimação, elas utilizavam principalmente as afirmações de
experiências especiais da divindade, normalmente experiências de caráter visionário,
garantidas somente a elas e muitas vezes autenticadas por alguém de alta posição eclesiástica.
Muitas recorriam ao seu status feminino “inferior” para explicar, de forma paradoxal, porque
Deus as havia escolhido como receptáculos de seus ensinamentos.
30
Referiam-se a si mesmas
com descrições humildes que eram parte de uma necessária auto-desvalorização, uma fórmula
de modéstia obrigatória para as mulheres medievais escritoras. Outra forma de legitimação era
27
Robert LERNER, The Heresy of the Free Spirit in the Later Middle Ages, 1972: 3.
28
Emilie ZUM BRUNN & Georgette EPINEY-BURGARD, Women Mystics in Medieval Europe, 1989: intr.
XVIII.
29
Elizabeth Alvilda PETROFF, Body and Soul: Essays on Medieval Women and Mysticism, 1994: 4.
30
Amy HOLLYWOOD, The Soul as Virgin Wife, 2001: 202.
27
o sofrimento. A dor da mística e os ferimentos que infligia a si mesma lhe garantiam a
autoridade para falar e ser ouvida, ter seguidores e agir como conselheira espiritual, curar os
doentes e fundar conventos e hospitais. Seu corpo portava as marcas, os sinais de seu poder
espiritual.
31
Segundo Grundmann, o fato de não se encaixarem em nenhuma categoria eclesiástica
se tornou um problema para as béguines e as deixou mais vulneráveis aos ataques.
32
Uma
mulher que decidisse viver em castidade fora do compromisso religioso e se negasse a ser
seduzida por um clérigo, portanto implicitamente criticando os padrões morais da Igreja e se
colocando acima deles, era facilmente acusada da heresia albigense e queimada, como conta
um cronista cisterciense da época.
33
Por ironia, alguns anos mais tarde, as béguines foram
acusadas de uma heresia diferente, a do livre espírito,
34
que tem entre suas características
31
Laurie A. FINKE, “Mystical Bodies” in Maps of Flesh and Light: The Religious Experience of Medieval
Women Mystics, 1993: 42. Para um estudo mais detalhado das questões ligadas ao gênero e às escritoras
místicas medievais, ver também Grace M. JANTZEN, Power, Gender and Christian Mysticism, 2000; Caroline
Walker BYNUM, Holy Feast and Holy Fast: The Religious Significance of Food to Medieval Woman; Idem,
Fragmentation and Redemption: Essays on Gender and the Human Body in Medieval Religion, 1992; Idem, “...
And Woman His Humanity: Female Imagery in the Religious Writing of the Later Middle Ages” in Gender and
Religion: On The Complexity of Symbols, 1986: 257; Kari Elizabeth BORRENSEN (ed.), The Image of God:
Gender Models in Judaeo-Christian Tradition, 1991; Linda LOMPERIS & Sarah STANBURY, Feminist
Approaches to the Body in Medieval Literature, 1994; Juliette DOR, New Trends in Feminine Spirituality: The
Holy Women of Liège and Their Impact, 1999.
32
Herbert GRUNDMANN, Religious Movements in the Middle Ages, 2002: 140.
33
Herbert GRUNDMANN, op. cit.: 79/80.
34
Lerner examina a heresia do livre espírito tal como surgiu nessa época e conclui que era mais típica da busca
por Deus carcterística desse momento medieval do que foi normalmente suposto. Os livres-espíritos acreditavam
que podiam atingir a união com Deus na terra, mas que só poderiam alcançar esse estado por meio da
austeridade corporal e da abnegação espiritual. A obtenção desse estado resultava no distanciamento das
preocupações diárias e não no envolvimento com elas. Robert LERNER, The Heresy of the Free Spirit in the
Later Middle Ages, 1972: 3. Considera-se uma heresia descoberta ao final do século XII na Suábia, diocese de
Augsburg, como um caso inicial da heresia do livre espírito. Algumas cópias de documentos que a descrevem a
chamam de “heresia do novo espírito”, um termo variante de livre espírito, e as descrições se assemelham a
relatos posteriores sobre a heresia do livre espírito. Um dos documentos que relatam o acontecimento,
provavelmente escrito entre 1262 e 1280, é um texto de Alberto Magno, o grande teólogo escolástico, que
classifica e refuta as crenças em questão. Alberto Magno introduz 97 artigos e, comparando-os com heresias
antigas, como a pelagiana, os rejeita com base nas escrituras e nas obras dos Padres da Igreja. Entre os temas
listados, três grupos de erros foram depois associados com os hereges do livre espírito: a crença de que podiam
se tornar unos com Deus por meio da deificação da alma, dispensar as ministrações da Igreja e violar, sem pecar,
a lei moral. Cf. op. cit.: 14/16.
28
centrais (pelo menos tal como descrito nas confissões extraídas sob tortura) uma extrema
licenciosidade sexual.
35
O fato é que a linguagem de devoção mística que as béguines usavam em sua “mística
do amor” – a idéia da alma da pessoa pia como noiva, o sentido do desejo por Deus
intensificado como uma união eroticamente experienciada da alma com Deus, a experiência
de deificatio, a alma que se torna divina em sua união com Deus – fez com que as autoridades
eclesiásticas acreditassem que eram devotas da heresia do “livre espírito”, que promulgava
doutrinas sobre a união com Deus e cujos adeptos viviam licenciosamente, acreditando
estarem isentos de todas as leis.
36
Contudo, Robert Lerner
37
mostrou conclusivamente que
esse grupo, o qual se acreditava tão amplo, de fato não existiu como uma seita ou como uma
organização homogênea, mas o nome “heresia do livre espírito” permaneceu ligado a vários
grupos, especialmente às béguines, dificultando seus esforços para viver uma vida cristã em
face da crescente suspeita e hostilidade.
Esse era, portanto, o clima vigente ao final do século XIII: ações hostis ao movimento
das “mulheres religiosas pobres”, artigos contra certas béguines que, invadindo um domínio
reservado ao clero, haviam traduzido a Bíblia para o francês e que, além do mais, estavam
lendo comentários nas línguas vernáculas em praças públicas. A tudo isso se somava um
crescente zelo contra as heresias antinomianas.
35
Saskia MURK-JANSEN, Brides in the Desert: The Spirituality of the Beguines, 1998: 26.
36
Edward PETERS, Heresy and Authority in Medieval Europe, 1980: 237.
37
Robert LERNER, The Heresy of the Free Spirit in the Later Middle Ages, 1972: 229. Lerner afirma também
que o número de mulheres envolvidas com a heresia do livre espírito era maior do que o de homens e que a
29
1.2 – Marguerite Porete e o seu Mirouer
Mais entre tous j’en vis d’une femme,
Depuis cent ans écrit, rempli de flamme
De charité, si trés ardentement
Que rien qu’amour n’était son argument,
Commencement et fin de son parler.
38
Dentro desse contexto, no início do século XIV, surgem as primeiras notícias sobre
Marguerite Porete. Na verdade, há poucas informações disponíveis sobre a autora, exceto por
seus últimos anos de vida, já que constam nos autos de sua condenação. Segundo relatado,
Porete era natural da região de Hainaut, no norte da França, mas não se tem idéia de onde e
quando nasceu. Referia-se a si mesma como uma “mendiant creature”, e era chamada de
béguine por tantas fontes independentes que essa designação pode ser considerada como
certa. Talvez essa auto-designação seja de fato literal pois tudo indica que Porete tenha levado
um estilo de vida béguine, de mendicância e errância. De qualquer forma, o que prevalece é a
incerteza dos dados históricos disponíveis.
Segundo McGinn, Marguerite Porete teria alto nível de educação, o que indicaria uma
origem nas altas classes. Diz McGinn que qualquer um que leia seu capítulo sobre a Trindade
não pode deixar de apreciar o quão profundamente a autora estava fundamentada na teologia
latina tradicional, especialmente em santo Agostinho, nos cistercienses (Bernard e Guillaume)
e em Richard de Saint-Victor.
39
De qualquer modo, é sabido que, em algum momento entre
heresia era encontrada em centros urbanos – Estrasburgo, Mainz, Colônia, Bruxelas – e em cidades médias, em
todas as classes sociais, inclusive na aristocracia. Cf. op. cit.: 230/231.
38
Marguerite de NAVARRE, Le Prison, 1978: 179 apud Emilie ZUM BRUNN, Les Miroir des simples âmes
anéanties, 2001: intr. 24. Essa é uma estrofe de um verso de Marguerite de Navarre, num livro escrito em seus
últimos anos de vida, no qual ela menciona elogiosamente o Mirouer entre os livros que “seguem apenas a
intenção da Biblia sagrada”.
39
Bernard McGINN, The Flowering of Mysticism: Men and Woman in the New Mysticism – 1200-1350, 1998:
244. Max Huot de LONGCHAMP sugere que Porete poderia ser natural de Valenciennes, cidade citada nos
autos de seu processo de Inquisição, ressaltando também sua proximidade geográfica e histórica tanto do mundo
germânico quanto do mundo latino. Longchamp comenta que se pode encontrar no Mirouer inúmeros
“flandricismos”, indícios de uma fronteira lingüística vizinha, e, que o excelente conhecimento da mística
30
1296 e janeiro de 1306, Porete escreveu um livro, o Mirouer, que foi condenado e queimado
em sua presença na praça de Valenciennes pelo bispo de Cambrai, Guy II, que a advertiu para
não disseminar mais suas idéias ou escritos sob pena de ser entregue ao braço da autoridade
secular.
40
Como já vimos, a maioria dos textos compostos por ou sobre as místicas medievais
ancoravam sua autoridade, ao menos em parte, em visões diretamente dadas por Deus. A
maioria das mulheres medievais, incluindo Metchild de Magdeburg e Hildegard de Bingen,
utilizam o topos da fraqueza feminina: Deus escolhe as coisas fracas – as mulheres – para
confundir os fortes – os homens.
41
Isso não ocorre no Mirouer de Marguerite Porete, que não
contém nenhum recital visionário, chegando mesmo a ser hostil às visões. Além disso, em
nenhum momento Marguerite Porete se desculpa por ser mulher e dá à sua obra a autoridade
de uma nova forma de evangelho. Porete explicitamente resiste ao masculino, ao latim e ao
escolástico, ao domínio das instituições eclesiásticas e mesmo à faculdade da razão.
42
E fala
em sua própria voz, com a autoridade das almas aniquiladas, pois não tinha amparo
eclesiástico algum para sua proteção.
Ce livre”, como o Mirouer freqüentemente se refere a si mesmo, mostra de início as
ambigüidades da autoria. Inicialmente, é uma imagem divina inscrita na alma e, então, é
escrito como imagem-livro pela alma, mostrando que tanto Deus como a alma são seus
autores. A alma é uma das interlocutoras e ao mesmo tempo o palco onde se desenrola a
transformação de consciência que é o assunto do livro. Todo o processo pode ser descrito
como a criação de uma identidade mística,
43
ainda que, paradoxalmente, se dê por meio da
dissolução do eu na aniquilação.
flamenga contemporânea que Porete mostrava, sugere que a autora tinha conhecimentos da língua flamenga. Cf.
Le Miroir des âmes simples et anéanties, 1997: intr. 22.
40
Robert LERNER, The Heresy of the Free Spirit in the Later Middle Ages, 1972: 71.
41
Bernard McGINN, The Flowering of Mysticism: Men and Woman in the New Mysticism – 1200-1350, 1998:
247.
42
Jane CHANCE, “Speaking in Propria Persona” in New Trends in Feminine Spirituality, 1999: 274.
43
Bernard McGINN, op. cit.: 248.
31
O Mirouer é uma obra inclassificável, uma prosa tanto poética quanto didática, uma
conversação envolta em lirismo, com diálogos complexos e várias transições de narrativa.
Inspirando-se na tradição do amor cortês, Marguerite Porete passa da prosa rítmica para
passagens rimadas e para formas totalmente poéticas, como seu prólogo em forma de canzone
e o rondeau, próximo ao final do livro, que é a mais perfeita cristalização de seu
pensamento.
44
A maior parte do texto toma a forma de um debate entre várias figuras
alegóricas, todas femininas à exceção de LoinPrés, o amado próximo e distante, que não fala.
Dame Amour e Raison são as personagens principais, em companhia da Âme (Alma), da qual
elas traduzem o conflito interior. A conversação gira em torno da união mística da Âme com
Deus e do próprio Mirouer, que elas comentam. Como indicado no título, o assunto do livro é
a aniquilação da alma, isto é, a morte da vontade própria e de tudo que se relaciona ao seu eu.
Marguerite Porete formula o itinerário espiritual da alma, delineando sete estágios
pelos quais a alma deve passar para se transformar no espelho cristalino de Deus, os quais
culminam na aniquilação do eu e na vida clarificada em Deus e por Deus. Nessa aniquilação
ontológica, a alma cai na certeza de nada saber e nada querer, de viver sem um porquê. Nesse
abismo de humildade, a alma verdadeiramente aniquilada, nobre e livre perde sua própria
natureza enquanto algo criado por meio da dádiva do amor divino, retornando ao abismo do
ser primordial, onde não há mediação ou diferença entre ela e Deus.
Ao longo do Mirouer, Porete junta a linguagem do amor cortês, transformada pelas
béguines místicas do século XIII numa linguagem de êxtase, com os paradoxos apofáticos da
união mística. A apófase do desejo que a autora realiza resulta numa reconcepção radical do
amor abnegado, da deidade como amor e da autenticidade como atos que são fins em si
mesmos e não meios, não estando escravizados à vontade. Em sua hierarquia de ascensão
mística, está implícita uma crítica às formas medievais de piedade monástica – a vida de
44
Peter DRONKE, Women Writers of the Middle Ages, 1996: 218.
32
jejuns, orações, devoções, sacramentos, práticas ascéticas e martírios – que Marguerite Porete,
através de Dame Amour, chama de “vida infeliz” (vie marrie). Dentro dessa crítica está o
paradoxo da vontade, pois essa vida ainda tem suas origens no desejo, mesmo que seus
objetos não sejam as coisas temporais, mas a desonra, as tribulações e a vida futura.
45
O Mirouer, marcado pela dialética apofática e enfatizando a aniquilação, luta
continuamente por negar a si mesmo. Escrito para as secretas almas livres que realmente não
precisam dele, é ao mesmo tempo necessário e impossível de ser escrito. A Alma admite que
foi tola e que se aventurou em algo que “não se pode fazer, nem dizer, nem pensar”.
46
Num
dado momento, a Alma que fez o livro ser escrito se desculpa frente às damas nunca
conhecidas (as outras almas aniquiladas) por tê-lo feito muito longo em palavras, já que ele
parece curto e breve para as almas que, por meio do amor, residem no nada.
47
Tendo alcançado o reino do amor, onde o “coração” é “mais livre e mais feliz” em
meio à paz verdadeira e ao abandono de si, Marguerite Porete renuncia às palavras. Ainda que
anuncie a necessidade do silêncio, a autora continua, agora usando a poesia em vez da prosa,
tentando expressar o inexprimível na canção final da alma.
Um dos aspectos ousados do Mirouer pode ser observado nos diálogos entre a Razão e
o Amor. Alma e Dame Amour tentam fazer com que Raison entenda as verdades mais
elevadas, mas, chocada com seu aspecto paradoxal, Raison termina morrendo no contexto
teatral do texto. Dessa maneira, o entendimento humano dá lugar a uma compreensão mais
profunda de Deus, o entendimento do amor. Em seu chamado central à liberdade e à pobreza
da alma, Marguerite Porete dispensa a exigência de virtudes, perfeição, obras ascéticas e
místicas e de qualquer mediação entre a alma e Deus.
45
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 122.
46
Mirouer: 97: 32-36.
47
Mirouer: 119: 7-11.
33
Ao falar do amor divino e de como o experiencia, a linguagem de Porete evoca o amor
que pode ser provocador e deliberadamente chocante. Em seu texto, Marguerite Porete
“castiga” todos aqueles do clero que falham em entender sua visão. Falando em nome das
almas “simples” e desenvolvendo de seu próprio modo as idéias que estavam no ar,
48
cria seu
mito da santa Igreja, a pequena, regida pela razão, e da santa Igreja, a grande, regida pelo
Amor. A Igreja maior de Porete, ou a Igreja do Espírito, é a reunião ideal das almas livres que
amam divinamente e realizaram a theosis, estando, portanto, unidas a Deus. Essa Igreja maior
não só nutre e ensina, mas sobrepuja e julga a Igreja menor, a assembléia cristã na terra. Para
Marguerite Porete, é como se as duas Igrejas coexistissem, e a ideal devesse medir e corrigir
as afirmações da Igreja empírica, que desconhece essas almas nobres e aniquiladas, abrigadas
na corte divina, pois:
Por que, diz Amor, a santa Igreja conheceria essas rainhas, filhas, irmãs e
esposas do rei? A santa Igreja só poderia conhecê-las perfeitamente se estivesse
dentro de suas almas. E nenhuma coisa criada entra em suas almas, exceto
Aquele que as cria. Assim, ninguém conhece essas almas senão Deus, que está
dentro delas.
49
Em seus polêmicos diálogos entre a Razão e o Amor, implicitamente entre a pequena
Igreja e a grande Igreja, Marguerite Porete combate a racionalidade patriarcal que prevalecia
na igreja hierárquica
50
, a qual, em todas as oportunidades, a autora mostra como inadequada e
estúpida. Nesses diálogos, Porete antecipa o fracasso da comunicação entre esses universos de
linguagem e teológicos, fracasso tão grande que, em seu próprio processo de inquisição, a
48
Segundo Dronke, essas idéias se corporificaram ao final do século XII, com as formulações de Joachim del
Fiore sobre a Ecclesia Spiritualis. Cf. Peter DRONKE, Women Writers of the Middle Ages, 2001: 222.
49
Mirouer: 19: 37-43.
50
Maria LICHTMAN, “Marguerite Porete and Meister Eckhart” in Meister Eckhart and the Beguine Mystics,
2001: 69.
34
autora respondeu apenas com o silêncio. Por ironia, Porete acabou tendo de submeter seu
livro à corte da razão, a qual sabia que não poderia entendê-lo.
1.2.1 – A pseudomulier de Hainaut
A advertência que Marguerite Porete recebeu e a condenação de seu livro pelo bispo
de Cambrai em 1306 não surtiram efeito. Porete continuou seus esforços para disseminá-lo e
conseguir aprová-lo. Após a condenação de seu livro, Marguerite Porete o enviou a três
autoridades que o aprovaram.
51
O primeiro era um franciscano chamado John de Quaregnon,
o segundo um cisterciense, dom Franco, da abadia de Villers, monastério famoso por sua
direção e suporte às béguines, e o terceiro, o teólogo secular Godfrey de Fountains, um dos
mais importantes filósofos escolásticos de Paris, de 1285 a 1306.
52
Na condição de renomado
doutor da Universidade de Paris, Godfrey de Fountains aprovou o livro, mas com ressalvas.
Sua preocupação dizia respeito à leitura do livro por almas mais fracas que, tentando alcançar
o nível da perfeição, poderiam ser enganadas. Para o filósofo, de acordo com Porete, tais
práticas só poderiam ser alcançadas por espíritos fortes e destemidos.
53
Em algum momento do ano de 1308, Marguerite Porete foi levada frente ao novo
bispo de Cambrai, Philip de Marigny, e ao inquisidor de Lorraine, cuja jurisdição se estendia
sobre Hainaut e Cambrésis. Agora estava sendo acusada de haver enviado seu livro ao bispo
Jean de Châlons-sur-Marne e de propagá-lo entre os beghards e o povo simples. Porete foi
conduzida a Paris, onde ficou presa sob a custódia do inquisidor dominicano Guillaume
Humbert de Paris. Lá, a pseudomulier, assim mencionada com desprezo na crônica de
51
Essa informação vem do aprobatio que consta nas versões do Mirouer em latim, em italiano e no inglês
medieval.
52
Robert LERNER, The Heresy of The Free Spirit in the Later Middle Ages, 1972: 72.
53
Mirouer: 140: 25-37.
35
Nangis,
54
se recusou a responder a qualquer questão e mesmo a prestar os juramentos
necessários para a sua inquirição, permanecendo na prisão por quase um ano e meio, enquanto
Guillaume Humbert se mantinha ocupado com o caso dos templários.
55
Ao longo desse período, Porete foi várias vezes exortada a jurar e a responder, e o
próprio inquisidor lhe ofereceu os benefícios da absolvição, mas Porete, de forma obstinada e
rebelde (como consta nos autos), se recusou a colaborar. Dadas as circunstâncias, Guillaume
de Paris juntou os canonistas, que a julgaram rebelde e merecedora da condenação de herege.
No dia 3 de abril de 1310, foi apresentada a primeira deliberação contra Porete, que deveria
ser entregue à autoridade secular, a menos que se arrependesse imediatamente antes ou depois
da sentença.
56
No dia 11 de abril, Guillaume Humbert extraiu do livro de Porete quinze
artigos suspeitos e os entregou a 21 teólogos da Universidade de Paris, fora do contexto geral
do livro, para que o julgassem e, unanimemente, eles o consideraram herético.
57
Após essa condenação, os acontecimentos se precipitaram. No dia 9 de maio, foi
apresentada a segunda deliberação contra Porete, segundo a qual ela havia se recusado a
prestar juramento e a responder às questões do inquisidor, além de não ter obedecido às
advertências do bispo de Cambrai, proibindo-a de falar novamente sobre seu livro. Porete foi
condenada como herege relapsa e entregue às autoridades seculares, que a sentenciaram no
54
Muito do que se sabe sobre o caso de Porete vem dessa crônica, cujo autor, um monge beneditino anônimo da
abadia de St. Denis, se refere a Marguerite Porete como uma certa pseudomulier (quaedam pseudomulier).
Assim o monge reporta a inquisição de Porete: “Em torno da festa do Pentecostes aconteceu que em Paris uma
certa pseudomulier de Hainaut, Marguerite por nome, chamada Porete, compôs um certo livro, que, pelo
julgamento de todos os teólogos que cuidadosamente o examinaram, continha muitos erros e heresias, entre
outros, o de que a alma aniquilada no amor de seu criador pode e deve dar à natureza o que quer que ela queira e
deseje, sem culpa ou remorso de consciência – o que soa manifestamente herético.” Cf. Michael SELLS,
Mystical Languages of Unsaying, 1994: 117.
55
Robert Lerner acha que como pano de fundo do julgamento e da condenação de Porete está a questão da
extinção dos templários e a política de Felipe IV, rei da França. Para maiores detalhes ver The Heresy of The
Free Spirit in the Later Middle Ages, 1972: 76/77 e Ellen BABINSKI, The Mirror of Simple Souls, 1993: intr.
17/18/19. Em última análise, Babinski afirma que mesmo que não se tente explicar a condenação de Marguerite
Porete em termos dos esforços para extinguir os templários, ela foi morta porque simbolizava uma ameaça, real
ou percebida, à ordem estabelecida conectada com o fortalecimento do poder real. Cf. op. cit.: 24/25.
56
Ellen BABINSKI, The Mirror of Simple Souls, 1993: intr. 21.
57
Ellen BABINSKI, op. cit.: intr. 22.
36
dia 31 de maio e executaram a sentença de morte na fogueira no dia 1° de junho na praça de
Grève, em Paris.
A crônica do acontecimento registra como a multidão que assistia à execução ficou
sensibilizada, a ponto de chorar, em virtude do comportamento de Porete durante o seu
ordálio. É notório que a Inquisição temia que o comportamento corajoso do herege pudesse
transformá-lo em mártir aos olhos da multidão. Assim, o cronista, um partidário da Inquisição
francesa, credita a mobilização da audiência aos sinais de arrependimento de Porete, o que é
contradito por várias evidências. Nesse período, qualquer sinal de arrependimento era
suficiente para deter o processo, e muitos foram retirados do fogo ao primeiro sinal de que
estavam arrependidos.
58
O herege que não se arrependia, contudo, era uma derrota para a
Inquisição, e, no caso de Porete, seu comportamento foi sempre consistente. Em nenhum
momento, as ameaças, a prisão, o conhecimento do destino que a esperava a fizeram
retroceder em suas convicções originais. Em nenhum momento, Porete se deixou intimidar
pela santa Igreja, a pequena. Manteve-se até o fim, tal como as almas aniquiladas, fiel aos
ensinamentos de Dame Amour:
Mas aquelas que são leais a ele (Loinprés), estão sempre sourprin d’amour, e
aniquiladas por amor, e desnudadas por Amor, e com nada se importam fora do
Amor, nem em sofrer e suportar sempre os tormentos, mesmo que eles sejam
tão grandes como Deus é grande em bondade. A Alma não ama finement
ninguém que duvide que isso seja verdade.
59
58
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 140/141. Sells reproduz o texto do cronista: “Tantos
foram os sinais de arrependimento, nobres e devotados, que ela mostrou em sua partida da vida, que muitos que
testemunharam o evento afirmaram que a multidão foi movida por uma piedosa e chorosa compaixão visceral
por ela.” “Multa tamen in suo exitu poenitentiae signa ostendit nobilia et devota, per quae multorum viscera ad
compatiendum ei pie ac etiam lacrymabiliter fisse commota testati sunt oculi quei viderunt.” Cf. op. cit.: 141.
59
Mirouer: 88: 53-56.
37
Pouco tempo depois, no Concílio de Viena de 1311, o decreto Ad Nostrum
excomungava e bania todas as béguines e os beghards na Alemanha sob a acusação de
estarem sob a influência da heresia do livre espírito. O documento continha uma lista de oito
erros “de uma abominável seita de homens malignos conhecidos como beghards e mulheres
sem fé conhecidas como béguines no reino da Alemanha”, erros que, de forma geral, foram
considerados a essência da heresia do livre espírito. O erro central descrito no decreto era que
o homem podia atingir um tal grau de perfeição em sua vida terrrena que era incapaz de pecar.
O segundo ponto mencionado dizia que tal homem não precisava jejuar ou orar porque, em
seu estado de perfeição, a sensualidade estava tão subordinada à razão que ele poderia garantir
livremente ao seu corpo tudo que lhe dava prazer. O terceiro ponto era que tal homem não
estava sujeito à obediência humana e a nenhuma lei da Igreja, pois “onde o espírito do Senhor
está, lá há liberdade”.
60
As outras proposições eram elaborações ou conseqüências das três
primeiras.
Segundo Lerner, a única fonte que pode ser estabelecida para o Ad Nostrum é a lista de
artigos extraída do Mirouer de Marguerite Porete, os quais, tomados fora do contexto, podiam
ser interpretados como conduzindo à idéia de que os seres humanos que atingem a perfeição
são incapazes de pecar e podem levar uma vida de perversão e licenciosidade. O sexto artigo
do Ad Nostrum, sobre a alma liberada que abandona as virtudes é quase literalmente o mesmo
artigo extraído da obra de Marguerite Porete. Os artigos do Ad Nostrum se referem também à
dispensa de jejuns e orações e à justificativa do ato sexual quando exigido pela natureza, o
que corresponde às afirmações de Porete, registradas pelo cronista de Nangis, de que a alma
aniquilada pode dar à natureza tudo o que deseja sem remorso de consciência.
61
Obviamente, o que Marguerite diz é que a alma completamente unida à vontade divina
faz as coisas de acordo com o amor e a vontade de Deus. Em nenhum momento a autora
60
Robert LERNER, The Heresy of The Free Spirit in the Later Middle Ages, 1972: 82.
61
Robert LERNER, op. cit.: 83.
38
ensina que a alma perfeita pode pecaminosamente enveredar por um caminho de imoralidade,
pois tal alma possui uma natureza tão bem ordenada que não pede nada que seja proibido.
Nesse sentido, é bom lembrar que Marguerite Porete nunca foi acusada por seus oponentes de
comportamentos imorais, pois provavelmente tais acusações não se manteriam.
De qualquer modo, ainda segundo Lerner, o Ad Nostrum teria sido o certificado de
nascimento da heresia do livre espírito, já que o decreto se refere especificamente aos hereges
que falavam de seu “espírito de liberdade”. Contudo, Lerner acrescenta que, embora houvesse
místicos radicais entre as béguines e beghards, não havia nenhuma seita definida, “nenhuma
criança” ligada a esse certificado de nascimento. Lerner acredita que a inveterada hostilidade
contra o movimento das béguines e os medos irreais da heresia antinomiana foram os fatores
que moldaram a condenação. Lerner afirma também que o Ad Nostrum foi mais um
documento de enorme importância nas perseguições futuras do que uma descrição acurada de
uma heresia que estava florescendo.
62
Alguns anos depois, os 28 artigos de Eckhart, postumamente condenados na bula In
Agro Dominico, de 1329, pelo papa João XXII, podem ser compreendidos (ou “mal-
compreendidos”), da mesma forma, como uma heresia do livre espírito. Suas doutrinas do
“puro nada” das criaturas que por Deus “abandonam” as virtudes e as boas obras dificilmente
soam diferentes das proposições extraídas para a condenação do livro de Porete.
63
Em última
análise, independentemente de sua ortodoxia ou heterodoxia, que não nos interessa discutir no
contexto do presente trabalho, tanto no Mirouer quanto em alguns dos Sermões Alemães de
Eckhart é possível encontrar uma transposição paradoxal, ousada e original da dialética da
teologia apofática para a esfera de uma “antropologia apofática”, que certamente colocou um
desafio teológico a seus contemporâneos.
64
62
Robert LERNER, The Heresy of The Free Spirit in the Later Middle Ages, 1972: 84.
63
Herbert GRUNDMANN, Religious Moviments in the Middle Ages, 2002: 244.
64
A obra de Eckhart tem sido tradicionalmente lida à luz de sua relação com a teologia escolástica, patrística e
neoplatônica, que antecedem a mística do final da Idade Média, com a teologia pastoral da ordem dominicana,
que estava se desenvolvendo, e com as tradições da mística germânica. Porém, já em 1935, Herbert Grundmann
39
1.3 – A tradição sufi no século XIII
O sufismo é reconhecido como a espiritualidade ou mística da religião islâmica.
Abarca o esoterismo e a iniciação, hagīqa e tarīqa, a doutrina e o método. Em árabe, o
sufismo é chamado de tasawwuf, palavra que se origina de sūf (lã), numa referência à
vestimenta de lã usada pelos primeiros sufis. A palavra sufi era também ligada a sūfiya
(purificado ou escolhido como amigo por Deus). Estritamente falando, a palavra árabe sūfi,
como o sâncrito yogi, refere-se apenas ao indivíduo que atingiu o objetivo, sendo também
aplicada, por extensão, aos iniciados que ainda estão avançando pelo caminho místico. A
própria palavra “iniciado” indica que, para embarcar no caminho espiritual, há um pré-
requisito, um rito especial de iniciação.
65
afirmava que as inovações teológicas e místicas centrais na obra de Eckhart surgiram primeiro no movimento
religioso feminino das mulheres do século XIII, em particular nos escritos das béguines. São vários hoje os
estudos que estabelecem as semelhanças entre a obra de Marguerite Porete e a de Eckhart. Denys Turner assinala
as probabilidades de que Eckhart conhecesse o trabalho de Porete e de que, mesmo não o aprovando
integralmente, ainda assim, tivesse tomado de empréstimo dela algumas idéias centrais e algumas modalidades
de expressão características. Segundo Turner, Marguerite Porete foi queimada em 1310, e seu inquisidor, o
dominicano Guillaume Humbert, estava vivendo na casa dominicana de St. Jacques, em Paris, em 1311, quando
Eckhart juntou-se à comunidade em sua segunda estada como professor de teologia na universidade. TURNER
acha impossível que Eckhart pudesse não ter tomado conhecimento da obra de Marguerite Porete nessa época.
Cf. The Darkness of God, 1999: 138, nota 3. Robert LERNER afirma que um dos colegas de Eckhart no
convento dominicano em Paris, onde residiu de 1311 a 1313, foi Berengar de Landora, um dos teólogos
encarregados de examinar o Mirouer e que participou também do Concílio de Viena. Cf. The Heresy of The Free
Spirit in the Later Middle Ages, 1972: 183. Kurt Ruh afirma que os estudos sobre o Mirouer têm repetidamente
assinalado a vizinhança cronológica e espiritual de Eckhart com Marguerite Porete e que até mesmo para o leitor
superficial é impossível deixar de notá-la. RUH acrescenta que, em 1981, num congresso sobre Ruysbroek, o
tradutor de Eckhart, Edmund Colledge, tentou demonstrar que Eckhart devia ter conhecido o livro de Porete,
direta ou indiretamente. Cf. Meister Eckhart: Teologo – Predicatore – Mistico, 1989: 144. Bernard McGinn
também ressalta a proximidade entre a mística de Porete e a de Eckhart, que estava ensinando em Paris logo após
a execução da autora. McGinn acrescenta que pesquisas recentes assinalam que uma das mais profundas
afirmações da noção de Eckhart relativa à unitas indistinctionis, encontrada em seu Sermão 52, em alemão,
mostra um contato direto com Le Mirouer. Entre os vários paralelos, próximos no pensamento e na expressão,
encontrados na obra da béguine e de Eckhart, McGINN enfatiza a aniquilação da vontade da alma, que a leva de
volta para um estado preestabelecido de união com Deus, no qual não há distinção entre a vontade da alma e a
vontade de Deus, já que a alma retorna ao estado em que estava antes de ser criada. Cf. “Love, Knowledge and
Unio Mystica in the Western Christian Tradition” in Mystical Union and Monotheistic Faith: An Ecumenical
Dialogue, 1989: 74. Outros estudos que enfatizam os paralelos entre a espiritualidade das béguines, em particular
a de Marguerite Porete, e a de Eckhart podem ser encontrados em Bernard McGINN (ed.), Meister Eckhart and
the Beguine Mystics, 2001; Michael SELLS, “Porete and Eckhart: The Apophasis of Gender” in Mystical
Languages of Unsaying, 1994: 180; Amy HOLLYWOOD, The Soul as Virgin Wife, 2001.
65
William STODDART, Sufism, 1985: 20/21. Enquanto a palavra tarīqa significa o Caminho, a palavra
tasawwuf, embora etimologicamente possa ter sido derivada de sūf (lã), tem o significado metafísico de
sabedoria divina (al-hikmat al ilāhiyyah) que é preservada e propagada dentro da tarīqa. Na ciência do
40
A palavra sufismo, na realidade, designa diversos ensinamentos e fenômenos que
foram identificados ao longo da história. Para Chittick, há algo na tradição sufi que rejeita a
domesticação e a definição. O autor sugere a existência de uma semelhança de família com
outras tradições, como a cabala, a mística cristã, a yoga, o vedanta e o zen. Em sua opinião, a
própria palavra sufismo já é problemática, mesmo na civilização islâmica. Num sentido
positivo, está conectada com um amplo espectro de idéias e conceitos relacionados à
aquisição da perfeição humana, tendo como modelo o profeta Muhammad. Num sentido
negativo, está associada a várias distorções dos ensinamentos islâmicos. O sufismo é
considerado por diversas pessoas, tanto muçulmanos quanto não-muçulmanos, como algo
estranho ao Islã, tal como este se encontra definido. Porém, já os primeiros mestres que se
designavam sufis, por ocasião do século IX (terceiro século islâmico), sempre afirmaram falar
a partir do coração e do cerne da tradição islâmica. Eles acreditavam que o sufismo é
equivalente à "experiência religiosa autêntica", reflete o espírito vivificador da tradição
islâmica e impede que ela se torne ressequida e estéril.
66
No sufismo, o órgão que permite o conhecimento de Deus não é o cérebro, mas o
coração. O coração é o órgão que produz o verdadeiro conhecimento e a intuição abrangente.
Corbin nos lembra que não se trata do órgão de carne situado do lado esquerdo do peito,
embora de forma inexplicada tenha alguma relação com ele. Trata-se de um órgão "psico-
espiritual" que opera num “corpo sutil”. Para o sufismo, o coração é um dos centros da
fisiologia mística, possuindo uma função teândrica, pois é o "olho" que permite a visão da
simbolismo numérico conectada com o alfabeto árabe, tasawwuf é numericamente equivalente a sabedoria
divina. Aquele que participa da tasawwuf é chamado faqīr, ou pobre, no sentido da compreensão de que
metafisicamente ele não é nada, Allah é o único Ser. Os sufis são também chamados de "povo do Caminho",
"povo que aprende através da alusão", "povo do coração" e outras denominações sempre relacionadas a algum
aspecto da realidade do sufismo. Cf. Seyed Houssein NASR, Ideals and Realities of Islam, 2000: 126.
66
William CHITTICK, Sufism: A Short Introduction, 2000: 2/3. Muitas vezes, os ensinamentos dos sufis
pareciam estar em contradição com o aspecto exotérico da tradição. Entretanto, mesmo quando estes
ensinamentos pareciam negar a sharī‘a, como por exemplo quando Ibn'Arabī diz que seu coração é um templo
para os idólatras, tal afirmação não pretende negar a Lei divina praticada por toda a comunidade, mas sim
convidar os homens a transcenderem o mundo das formas e a penetrarem no sentido interno ou esotérico da
sharī‘a. Cf. Seyed Houssein NASR, Ideals and Realities of Islam, 2000: 119.
41
forma de Deus. "Quando se erguem os véus, o coração do gnóstico é como um espelho no
qual a forma microscópica do Ser Divino é refletida."
67
O caminho real do sufismo é um processo de transformação interna no qual os poderes
da alma se voltam para Deus. Esse processo acrescenta exercícios devocionais e espirituais às
práticas estritas da shar'īah. O mais importante deles é a lembrança (dhikr) de Deus, ordenada
pelo Corão.
No Corão, e no Islã em geral, a ordem para a constante lembrança de Deus também
significa mencionar Deus, de tal forma que o verdadeiro meio de lembrar-se de Deus é a
menção de seus Nomes. O Nome é considerado uma manifestação direta do divino ao nível
humano. Por meio de um processo gradual de transformação, o Nome preenche a mente e a
consciência, não deixando espaço para mais nada que não seja Deus.
O foco constante em Deus acaba por conduzir à meta do caminho sufi, que é a "união"
com Deus, à completa realização da perfeição humana ou à concretização da imagem divina a
partir da qual os seres humanos foram criados. Uma vez que a perfeição seja alcançada, a
separação entre divino e humano é superada, ao menos a partir de um certo ponto de vista. O
eu ilusório é negado, e somente Deus é afirmado.
68
Essa meta, a união com Deus, é
geralmente concebida em termos de uma crescente purificação do coração e da obtenção das
várias virtudes espirituais que conduzem ao estado de aniquilação (fanā) e subsistência
(baqā) no divino.
69
A doutrina da unidade, ou tawhīd, forma o eixo de toda a metafísica sufi. Em função
da distorção dessa doutrina primordial, muitos orientalistas acusaram o sufismo de panteísmo.
Entretanto, a doutrina sufi não afirma que Deus é o mundo e sim que o mundo, à medida que
possui alguma realidade, não pode ser outro mas Deus. Se fosse outro, tornar-se-ia uma
67
Henri CORBIN, Alone with the Alone: Creative Imagination in the Sufism of Ibn'Arabi, 1997: 221/222.
68
William CHITTICK, Sufism: a short introduction, 2000: 2/3
69
Seyed H. NASR, Three Muslim Sages, 1997: 114.
42
realidade totalmente independente, uma outra deidade, e destruiria o caráter de absoluto e a
unicidade que pertencem somente a Deus.
70
Nasr afirma que não se pode propriamente falar de uma história do sufismo, já que, em
sua essência, o sufismo não possui uma história, mas considera possível falar de distintos
padrões da tradição sufi em cada período.
71
Passaremos esquematicamente pelos distintos
períodos do sufismo, no intuito de localizarmos Ibn'Arabī dentro dessa trajetória.
Pouco se sabe sobre o surgimento das primeiras tendências ascéticas no Islã, que
parecem ter se iniciado como uma reação aos excessos de impiedade e ostentação das cortes
omíadas. Annemarie Schimell cita Hasan al-Basri (642-728), conhecido como o "patriarca da
mística muçulmana", um dos primeiros ascetas e crítico dos excessos do poder, e também
Abū Hāshim, da cidade de Kufa, o primeiro a ser chamado as-Sūfi. Os ensinamentos dos
primeiros ascetas sufis eram de ordem mais devocional, enfatizando a renúncia ao mundo, e
não incluíam o interesse no pensamento especulativo. No século VIII, um dos principais
nomes do sufismo é Rābi'a (713-801), ex-escrava, reconhecida como a pessoa que introduziu
o elemento do amor incondicional nos ensinamentos austeros dos ascetas sufis, fornecendo ao
sufismo o matiz da verdadeira mística, o amor absoluto a Deus.
72
Em torno do século IX, surgem vários autores sufis, cujos ensinamentos são
considerados manuais clássicos, dando lugar à consolidação do sufismo e ao concomitante
desenvolvimento das escolas. Entre os autores desse período destacam-se Junayd, o grande
mestre dos sufis de Bagdá, que enfatiza a majestade, a unicidade divina e o amor místico.
Junayd também era conhecido por enfatizar o estado de sobriedade (sahw), que prioriza as
virtudes, em oposição ao estado de intoxicação (sukr), que, sem desprezar as virtudes,
70
Seyed H. NASR, Sufi Essays, 1999: 45.
71
Seyed Houssein NASR, Three Muslim Sages, 1997: 85.
72
Annemarie SCHIMMEL, Mystical Dimensions of Islam, 2000: 30/36.
43
caracteriza-se pelos êxtases e iluminações e pela "aniquilação da alma" (fānā) que é
absorvida em Deus.
73
Outro nome significativo desse periodo é Bistāmi (801-874), representante da via
extática, conhecido por suas locuções teopáticas, paradoxos e pela experiência da fanā, com
a completa extinção dos traços do eu. O nome mais representativo da via extática neste
período é o de Ḥallāj (858-922). De origem persa, foi discípulo de Junayd e demonstrou "as
conseqüências do amor perfeito e o significado da submissão à unidade com o amado divino –
não com o objetivo de atingir qualquer tipo particular de santidade mas para pregar seu
mistério, viver nele e morrer por ele",
74
falando abertamente sobre a união com Deus e sobre a
habitação de Deus no homem. Em virtude de suas colocações arrebatadas, Ḥallāj sofreu a
censura de outros sufis e a oposição da ortodoxia. Terminou preso e condenado à morte, para
a qual se dirigiu em êxtase, antecipando sua união definitiva com Deus.
75
Após o episódio,
vários outros sufis tiveram destino semelhante em função da reação da ortodoxia contra a
mística.
Os séculos X e XI foram marcados por uma nova geração de sufis que tentava
harmonizar os ensinamentos místicos com os ensinamentos da ortodoxia muçulmana.
Registrou-se um florescimento da literatura mística, sistematizando os ensinamentos
anteriores em novos manuais didáticos e introduzindo comentários místicos do Corão. Um
nome marcante foi o de Ghazāli, professor de teologia que terminou por se consagrar à
mística, tentando infundir uma nova vida aos dogmas e ritos clássicos do Islã. Com isso, ao
mesmo tempo que a maior parte da mística começa a ser aceita pela ortodoxia, segundo
Caspar, "ela se priva da tensão ilimitada para Deus".
76
73
Annemarie SCHIMMEL, Mystical Dimensions of Islam, 2000: 58.
74
Annemarie SCHIMMEL, op. cit.: 65.
75
R. CASPAR, Cristianismo/Islamismo, 1991: 159/160.
76
R. CASPAR, op. cit.: 164.
44
No século XIII, o sufismo muda de orientação, passando a enfatizar a unidade
ontológica com Deus ou o que é conhecido como "unidade da existência". O expoente desta
tendência é Ibn'Arabī. Schimmel insere Ibn'Arabī (1165-1240) no que chama de sufismo
teosófico, ao lado de outro grande místico persa, Suharawardī, que trabalhou principalmente a
mística da luz. Suhrawardī, também estudado por Henri Corbin,
77
é conhecido como o mestre
da filosofia da iluminação, na qual descreve em lendas, em narrativas místicas e em belos
símbolos toda uma angeologia e a viagem da alma na direção da iluminação do Oriente.
Enquanto o legado espiritual de Suhrawardī permaneceu restrito ao mundo persa,
Ibn'Arabī influenciou a maioria dos sufis depois do século XIII. Ainda assim, a ortodoxia
nunca deixou de atacá-lo e suas obras chegaram a ser proibidas em alguns países
muçulmanos, como no Egito. Em sua doutrina monumental, que inclui a metafísica, a
cosmologia, bem como a psicologia e a antropologia, pode ser identificado um ponto de
mudança dentro da tradição sufi. As doutrinas do sufismo, que até então se limitavam a
instruções práticas para os seguidores do Caminho e a narrativas de vários sufis, expressando
o estado de realização obtido, são explicitamente formuladas. "Por meio de Ibn'Arabī, aquilo
que sempre tinha sido a verdade interna do sufismo foi formulado de tal maneira que, desde
então, dominou a vida espiritual e intelectual do Islã."
78
Nasr destaca que a doutrina metafísica de Ibn'Arabī não é exatamente uma filosofia, já
que ele não tenta englobar toda a "realidade" num sistema e fornecer uma exposição
sistemática de suas várias dimensões, embora partilhe com os filósofos o uso da linguagem
humana e o tratamento das questões últimas. Porém, Ibn'Arabī escreve sob inspiração direta e
não tem por objetivo fornecer uma explicação mentalmente satisfatória ou racionalmente
aceitável, mas uma theoria ou visão da realidade cuja realização depende da prática de
métodos apropriados. Sua linguagem é essencialmente simbólica, e o uso de símbolos
77
Cf. Henri CORBIN, The Man of Light in Iranian Sufism, 1994.
78
Seyed Houssein NASR, Three Muslim Sages, 1997: 90/91.
45
relaciona-se ao princípio de ta'will, uma hermenêutica espiritual, que literalmente significa
levar algo de volta à sua origem ou começo. Para Ibn'Arabī, todo fenômeno implica um
numen ou, em termos islâmicos, todo exterior (ẓāihr) deve ter um interior (bātin).
79
Depois de Ibn'Arabī, vários outros sufis se destacaram, entre eles Jalaluddīn Rumī,
cujos poemas são bem conhecidos no Ocidente. Rumī foi o fundador da tarīqa Mawlawīya
cuja característica original era a dança, samā, que rendeu a seus membros o nome de
dervixes dançantes.
80
Não é, porém, nossa intenção delinear todo o desenvolvimento do
sufismo, mas apenas marcar o lugar ocupado por Ibn'Arabī nesta trajetória.
1.4 – Al-Andalus
A obra de Ibn'Arabī exige um grande esforço de compreensão para nós que vivemos
num mundo cuja perspectiva e pressupostos diferem profundamente do contexto medieval da
Espanha islâmica do século XII, onde Ibn'Arabī nasceu e viveu parte de sua vida. Tentaremos,
de forma breve, esboçar as principais características desta civilização marcada por
componentes interétnicos e interconfessionais, islâmicos, cristãos e judaicos, no intuito de
permitir uma maior compreensão do ambiente que influenciou os anos de formação de al-
Shaykh.
A Espanha islâmica era conhecida pelos árabes como al-Andalus, termo que se referia
à área da península ibérica que ficou sob o domínio islâmico por quase oito séculos (711-
1492). As fronteiras do domínio árabe se alteraram durante estes séculos, porém, no período
de maior expansão, incluíam a maior parte do território que hoje é a Espanha e Portugal. Na
época em que Ibn'Arabī lá viveu, as fronteiras de al-Andalus se estendiam entre Portugal e
79
Seyed Houssein NASR, op. cit.: 102/103.
80
Eva de Vitry MEYEROVITCH, Rûmi and Sufism, 1987: 35.
46
Espanha, praticamente dividindo em duas partes a península ibérica, e seu centro estava
localizado na área conhecida hoje como Andaluzia.
Os árabes que lá se estabeleceram herdaram um antigo reino fundado pelos romanos e
que teve continuidade com os visigodos. No período de domínio árabe, estabeleceu-se o que
se conhece como cultura moura, embora o termo mouro derive do espanhol moros, que
significa "da Mauritânia ou do norte da África". Toda a área que se estendia da Espanha à
Tunísia era vista como uma única unidade cultural, o Magreb, ou a parte ocidental do mundo
islâmico. Os árabes que primeiramente se estabeleceram na Espanha e que formavam a elite
dominante eram originários dos povos árabes que haviam emigrado da Síria, da Arábia e do
Iêmen. Os que se estabeleceram mais tardiamente eram principalmente berberes, do norte da
África, em sua maioria analfabetos.
81
Durante os oitocentos anos de domínio muçulmano, enquanto a região que hoje
conhecemos como Europa vivia a chamada “idade das trevas”, floresceu na Espanha uma
civilização marcada por uma profunda mudança que não só acentuou o desenvolvimento e
progresso econômico da região, mas afetou a cultura, a linguagem e a perspectiva intelectual.
Tendo-se tornado um país predominantemente muçulmano, que não se encontrava
necessariamente vinculado ao Islã oriental, este lugar desenvolveu uma cultura diferenciada,
uma nova fusão que incorporava elementos do antigo Império Romano, do reino cristão dos
visigodos e de imigrantes de diferentes origens, atraídos pelo seu brilho e dinamismo. Embora
houvesse uma independência política em relação ao Islã oriental, os sucessivos governantes
encorajavam os contatos transculturais, trazendo professores do Oriente para a Espanha e
enviando estudantes para lá. Desse modo, a região acabou por se tornar um dos maiores
centros intelectuais do mundo muçulmano.
81
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier,1999: 9.
47
À medida que os árabes se tornavam a maioria da população e como dirigentes das
minorias, desenvolveram a tolerância e a aceitação, embora com algumas restrições que
veremos mais adiante, em relação aos povos de diferentes confissões religiosas, que traziam
outros antecedentes e outros hábitos. Os omíadas, primeiros governantes do al-Andalus, “a
partir da confrontação aquisitiva de um universo de línguas, culturas e povos, definiram sua
versão do Islã como a de uma cultura que se comprazia em dialogar com as outras.”
82
. Como
dirigentes, os mouros não suprimiram as línguas dos povos do al-Andalus, não tornaram
ilegais seus costumes sagrados ou seu sistema legal e não os destituíram de seus direitos
políticos. Até as mulheres na Espanha moura desfrutavam de um grau de liberdade muito
maior do que nas outras nações islâmicas e nem mesmo a prática do purdah (véu) era
obrigatória.
83
Pode-se dizer que no al-Andalus estabeleceu-se uma sociedade pluralista, tanto em
termos religiosos quanto raciais e culturais, que figura como uma das "épocas de ouro" tanto
da civilização islâmica quanto da judaica. Os seguidores das três tradições monoteístas
abraâmicas, que conviviam em relativa paz, puderam estabelecer uma fertilização
transcultural que resultou num grande e singular desenvolvimento das artes e das ciências.
Alguns historiadores espanhóis chamaram a interação de judeus, cristãos e muçulmanos na
península ibérica de convivencia. Essa palavra, também definida como coexistência, traz a
conotação da interpenetração mútua e da influência criativa entre esses grupos, embora, ao
mesmo tempo, abarque os fenômenos de fricção, rivalidade e suspeita mútuas.
84
Os povos da Idade Média, tanto cristãos como muçulmanos e judeus, entendiam a
filiação étnica sobretudo em termos de afiliação religiosa. A maioria muçulmana de al-
82
María Rosa MENOCAL, O ornamento do mundo: como muçulmanos, judeus e cristãos criaram uma cultura
de tolerância na Espanha medieval, 2004: 34.
83
Ivan Van SERTIMA, “The Moor in Europe: influences and contributions” in The Golden Age of the Moor,
1999: 13.
84
Thomas GLICK, “Convivencia: an introductory note” in Convivencia: Jews, Muslims and Christians in
Medieval Spain, 1992: 1.
48
Andalus dividia-se em três grandes grupos: os árabes, que constituíam a poderosa elite
política dominante, os berberes, que eram numericamente superiores e constituíam uma
potência militar, e os neo-muçulmanos que, com o tempo, passaram a constituir a maioria da
população. As minorias não-muçulmanas mais numerosas eram constituídas pelos cristãos e
pelos judeus.
É preciso assinalar que, para os muçulmanos, o cristianismo e o judaísmo não eram
religiões estranhas, pois essas religiões ocupavam um lugar definido dentro do pensamento
islâmico, que vê a revelação islâmica como parte de uma revelação única, continuada,
iniciada a partir da primitiva doutrina abraâmica. Essa doutrina comum às três religiões
monoteístas enfatizava a fé num Deus único incondicionado, incomparável em sua essência e
que, por outro lado, se manifesta continuamente tanto no mundo criado por Ele como em
mensagens sagradas enviadas a todos os povos por meio de seus enviados e profetas. Por
conta dessa crença, os muçulmanos não achavam lícito forçar a conversão de cristãos e
judeus, pois eram vistos como "povos do Livro", que podiam continuar a praticar sua própria
religião sob a condição de reconhecer a proteção do Islã. Além do mais, o Corão estabelece
que "não há coação na fé". Judeus e cristãos, portanto, tinham que aceitar o Islã unicamente
como lei.
85
Sob a soberania muçulmana, os cristãos puderam conservar suas igrejas, e os judeus,
suas sinagogas, além de manterem a maior parte de suas propriedades. Muitos se livraram da
condição de escravidão ao se converter ao Islã, pois um cristão ou judeu não podia ter um
escravo muçulmano, ou se emanciparam, pagando um resgate, o que não era permitido pela
legislação anterior. Embora judeus e cristãos fossem obrigados a pagar um imposto adicional,
85
Thomas GLICK, Cristianos y musulmanes en la España medieval (711-1250), 1994: 32. Ainda assim, o Islã
criticava o judaísmo e o cristianismo por terem esquecido em parte as mensagens recebidas de Deus e por
hostilizarem o Islã, não tendo reconhecido nele a herança abraâmica. Esse fato teria dado ao Islã o direito de
empunhar as armas contra eles. Em relação aos pagãos, contudo, a conversão ao Islã era imperativa, caso
contrário eram punidos com a morte.
49
mantinham sua própria jurisdição autônoma e seus representantes frente às autoridades
muçulmanas.
86
Apesar da interação geralmente harmoniosa entre os grupos religiosos, os dhimmis ou
povos protegidos (judeus e cristãos) sofriam algumas restrições civis e legais em comparação
aos muçulmanos. Eram normalmente excluídos do poder político e sua única possibilidade de
ascensão social se dava através da conversão ao Islã. As relações entre cristãos e muçulmanos
estavam muitas vezes marcadas por imagens estereotipadas, em detrimento de uma maior
investigação da realidade, e por polêmicas relacionadas aos costumes de ambas as partes.
Parece que existiram algumas fronteiras internas em al-Andalus entre cristãos e muçulmanos,
além das fronteiras externas que separavam os reinos árabes dos reinos dos príncipes cristãos
ao norte da Espanha.
87
No que concerne aos judeus, tais fronteiras internas não foram tão marcadas e eles
desfrutaram uma vantagem maior sob a proteção do Islã. As possibilidades de aculturação
eram maiores para eles no mundo islâmico do que no mundo cristão, já que o traço semita da
língua e da cultura árabe era mais próximo do judaico. Contudo, embora a teologia judaica
tenha sido estimulada pela doutrina islâmica da unidade de Deus, houve reações contra uma
possivel “arabização”, que resultaram no destaque do aspecto histórico da Divindade,
relacionado ao destino do povo escolhido, em contraste com o Deus platônico dos filósofos
árabes.
88
O domínio árabe acabou por transformar a península ibérica numa das economias mais
bem sucedidas de seu tempo. Alinhando a ciência e a religião, os árabes conseguiram
extraordinárias aquisições na agricultura, nas técnicas de irrigação e na pesquisa científica. Na
arquitetura, a mesquita de Córdoba e o palácio de Alhambra atestam o esplendor dessa
86
Thomas GLICK, Cristianos y musulmanes en la España medieval (711-1250), 1994: 33.
87
Richard FLETCHER, Moorish Spain, 1992: 94.
88
Thomas GLICK, op. cit.: 39.
50
civilização, que teve em Córdoba e Toledo o centro de uma grande explosão cultural.
Estudiosos árabes foram buscar e traduziram todo o conhecimento que havia se originado na
Índia, na China e no mundo helenístico, refinando-o e ampliando-o nos vários centros de
aprendizado que se espalhavam pela Pérsia, Bagdá, Cairo e depois Córdoba e Toledo, de onde
o mesmo se disseminou pela Europa ocidental.
89
Para que se tenha uma idéia acerca da
cultura e da opulência intelectual de al-Andalus, na altura do século X, a biblioteca do califa
em Córdoba somava por volta de quatrocentos mil volumes, enquanto a maior biblioteca do
mundo cristão não possuía mais que quatrocentos manuscritos.
90
A posição geográfica de al-Andalus permitiu sua atuação como uma ponte entre o
Oriente e o Ocidente, tornando disponíveis os textos das antigas Grécia e Roma e da cultura
mediterrânea em geral. Talvez, a longo prazo, tenha sido este um dos legados mais evidentes
dos árabes para o mundo, a tradução de trabalhos científicos e filosóficos para o latim, os
quais haviam ficado perdidos para o mundo cristão após a queda do Império Romano. A
recuperação de todo esse legado permitiu uma mudança radical na evolução intelectual da
humanidade.
Grandes figuras marcaram esse período. Na filosofia destacam-se: Averróes (1126-
1198), chamado Ibn Rushd em árabe, um dos maiores pensadores muçulmanos, que
influenciou a filosofia ocidental com seus comentários sobre Aristóteles; também
Maimônides, filósofo judeu nascido em Córdoba (1135), autor do "Guia dos perplexos";
Miguel de Leon, rabino espanhol a quem foi atribuído o Zohar – o "Livro do Esplendor" –,
suma da cabala, o qual viveu em Guadalajara no século XI; Ibn Gabirol, outro filósofo místico
judeu, que nasceu em Málaga em 1021. Entre os sufis, pode-se citar Ibn Masarra, de Córdoba,
Abu Madyan, de Sevilha, e Abud Abbas, de Murcia, o primeiro mestre da confraria de
89
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier, 1999: 11.
90
María Rosa MENOCAL, O ornamento do mundo: como muçulmanos, judeus e cristãos criaram uma cultura
de tolerância na Espanha medieval, 2004: 45.
51
Shadiliya, uma das mais influentes no mundo islâmico até hoje, e Ibn'Arabī, também de
Murcia.
É importante ressaltar que, já durante o domínio dos almorávidas (1086-1145), grupo
muçulmano ascético que controlava o norte da África, teve início a preocupação em relação à
interpretação que a população andaluza estava dando ao Corão e à tradição islâmica. A
intolerância dos fuqahas, sua ortodoxia e literalismo, foram gradualmente matando a cultura
andaluza e fossilizando o pensamento do Islã. A ortodoxia manteve seu poder durante o breve
domínio dos almôadas que, instituindo as conversões forçadas de judeus e cristãos, contrária
aos princípios corânicos, agravaram mais a situação, forçando ao exílio nomes como
Maimônides e mesmo Ibn'Arabī.
Embora al-Andalus tenha sido marcado em alguns períodos por guerras e vicissitudes,
é inegável a extraordinária interação cultural entre muçulmanos, cristãos e judeus, a qual
forjou muitas das idéias que mais tarde surgiram na Europa, com o Renascimento, ajudando a
romper com a visão de mundo tradicional, e propiciou muitas experimentações que
forneceram subsídios para o desenvolvimento da ciência ocidental. Não resta dúvida de que, a
partir de al-Andalus, a Europa começou a receber as idéias revolucionárias da filosofia
aristótelica e da pesquisa científica que estabeleceriam as fundações para um novo mundo.
91
A mudança da cultura moura para o Império Espanhol foi lenta, mas dramática, e a
coexistência não mais predominaria. Os cristãos nunca se reconciliaram de fato com o Islã,
fosse aceitando-o como legítimo ou aceitando seu fundador como profeta. Em março de 1492,
os reis Fernando e Isabel proclamaram um edital, banindo os judeus de Castela e Aragão, três
dias depois de assinarem um contrato real, autorizando Cristóvão Colombo a atravessar o
Atlântico em nome da cristandade e da Espanha. Os mouriscos – muçulmanos convertidos –
foram expulsos um século depois.
91
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier: The Spiritual Life and Thought of Ibn’Arabi, 1999: 12.
52
1.4.1 – Al-Shaykh al-Akbar.
Maravilhei-me frente a um Oceano sem margem
E a uma Margem sem Oceano,
Frente a uma Luz da Manhã sem escuridão
E a uma Noite sem aurora,
Frente a uma Esfera sem nenhum local
Conhecido por tolos ou sábios,
Frente a uma Abóboda, suspensa no alto, girando,
Seu centro um Poder que a tudo submete,
E a uma esplêndida Terra sem abóboda ou local,
O Mistério oculto.
92
Ibn'Arabī, cujo nome completo era Abū Bakr Muhammad ibn al-'Arabī al Hātimī al-
Ta'ī e que foi apelidado de Muhyī al-dīn (O Vivificador da Religião), nasceu em Murcia, no
sudeste da Espanha, ao que tudo indica na noite de segunda-feira, 17 de ramadã de 560, que
equivaleria ao dia 27 ou 28 de julho de 1165 da era cristã, no período final do florescimento
de al-Andalus. Sua vida incomum foi marcada pelas preces, pela invocação, pela
contemplação, por visitas a vários sufis e também pela visões teofânicas do mundo espiritual,
nas quais a hierarquia invisível lhe foi revelada.
Sua família, originária do Iemên, estava há tempos estabelecida na Andaluzia, para
onde emigrou por volta do ano 712. Seu pai era militar e servia na guarda do sultão almôada.
A família fazia parte da khāssa, ou alta sociedade da Andaluzia, e tinha acesso às
personalidades importantes da época.
93
92
IBN'ARABĪ, The Book of the Fabulous Gryphon (Kitāb ‘Anqā’ Mughrib), Parte I: 319 in Gerald T. ELMORE,
Islamic Sainthood in the Fullness of Time, 1998.
93
Claude ADDAS, The Quest for the Red Sulphur: The Life of Ibn’Arabi, 1993: 18.
53
Em 1172, a família mudou-se para Sevilha, na ocasião a capital da corte omíada na
Espanha. Na condição de maior e mais próspera cidade da Andaluzia, Sevilha possuía um
caráter cosmopolita e era o centro de convergência de várias raças e culturas. Lá conviviam,
lado a lado, poetas e filósofos, cantores e teólogos, santos e pecadores, judeus, cristãos e
árabes. Foi essa atmosfera repleta de idéias científicas, religiosas e filosóficas que marcou o
período de crescimento de Ibn'Arabī.
O episódio mais precoce de sua vida sobre o qual existe registro foi uma doença que o
acometeu por volta dos doze anos e que parece ter prenunciado sua vocação mística. O relato
de sua doença, feito por ele mesmo, possui uma curiosa analogia com vários relatos de
"doenças iniciáticas", espécie de morte e renascimento, que acometem xamãs e místicos por
todo o mundo e que normalmente precedem experiências espirituais visionárias.
Um dia tornei-me seriamente doente e mergulhei num coma tão profundo que
acreditaram que eu estava morto. Naquele estado vi pessoas de aspecto horrível
que tentavam me fazer mal. Então, tornei-me cônscio de alguém – generoso,
poderoso e exalando uma deliciosa fragrância – que me defendia contra eles e
que conseguiu derrotá-los. Perguntei: Quem és tu? O Ser me respondeu: Eu sou
a Sura Yā Sīn; sou seu protetor! Nesse momento, recobrei a consciência e vi
meu pai, Deus o abençoe, de pé, em lágrimas,
ao lado de minha cama; ele
havia acabado de recitar a Sūra Yā Sīn.
94
Hirtenstein diz que essa Sūra é normalmente recitada para os moribundos ou mortos,
indicando que realmente o pai de Ibn'Arabī pensava tratar-se de doença terminal. O autor
chama também a atenção para a capacidade visionária mostrada por Ibn'Arabī ainda numa
idade precoce, o que já mostra sua abertura para as questões espirituais. Esse padrão
visionário vai se repetir por toda a sua vida, em que significados extraordinários vão se
94
IBN'ARABĪ apud Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier, 1999: 36.
54
apresentar numa forma visual, por meio de visões imaginalizadas ou de sonhos. Também esse
episódio de morte e renascimento por intermédio da graça divina, na forma de um Ser de
poder e perfumado, se repetiria duas vezes em sua vida.
95
Por pertencer a uma família rica e nobre, seus anos de adolescência foram pacíficos e
descuidados. Ao que tudo indica, Ibn'Arabī não frequentou a escola, mas teve professores
particulares em casa. É certo que estudou o Corão com “um homem do Caminho”, Abū Abd
Allāh al-Khayyāt, a quem foi sempre profundamente ligado.
96
Um de seus principais
companheiros na juventude foi um tio paterno, Abū Muhammad 'Abdallāh, que vivia em
Sevilha com a família e era conhecido como exemplo de piedade. Esse tio havia
experienciado uma conversão súbita e já tardia como resultado de um encontro com um
menino que, ao que tudo indica, parecia tratar-se do próprio Ibn'Arabī. Foi por intermédio
desse tio que Ibn'Arabī conheceu vários sufis.
Embora parecesse destinado a seguir os passos do pai, pois serviu por algum tempo no
exército do sultão, Ibn'Arabī se refere a esse período como o "tempo de sua jāhiliyya", termo
que é tradicionalmente utilizado no mundo islâmico como referência ao período de
ignorância, de paganismo, que precedeu o advento do Islã. Ibn'Arabī parece estar se referindo
ao período de sua vida no qual sucumbiu às "irresistíveis atrações de Sevilha". Esse tempo
terminou a partir de uma experiência de iluminação (fath), em relação à qual existem apenas
algumas alusões nos escritos de seus sucessores. Tudo indica que foi uma experiência súbita e
dramática. Parece também que, no caso de Ibn'Arabī, não houve, antecedendo tal experiência,
nenhuma preparação ou estudo formal, nenhum treinamento ou mestre espiritual.
97
O termo fath ou iluminação, em seu sentido etimológico, significa "abertura", mas é
utilizado no vocabulário técnico do sufismo para indicar a abertura espiritual, ou iluminação,
95
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier, 1999: 36.
96
Claude ADDAS, The Quest for the Red Sulphur: The Life of Ibn’Arabi, 1993: 30.
97
Claude ADDAS, op. cit.: 17.
55
que marca a aquisição de uma "estação" mais elevada na jornada espiritual do indivíduo e
que, normalmente, é atingida após longo período de treinamento iniciático. O próprio
Ibn'Arabī adverte contra os perigos de uma fath prematura, reconhecendo que somente em
casos excepcionais a iluminação precede o treinamento iniciático. Em seu caso, parece ter
acontecido o que é conhecido como jadhba, experiência de transcendência de si mesmo
mediante um êxtase, e não o que é conhecido como sulūk, avanço metódico, passo a passo,
pelo Caminho que conduz a Deus.
98
O autor era ainda adolescente, embora não se possa determinar com precisão a sua
idade, quando uma súbita transformação lhe aconteceu, que o fez deixar o exército e entrar no
Caminho. Ibn'Arabī conta que, um dia, havia saído em Córdoba na compania do príncipe Abū
Bakr Yūsuf b. Abd al-Mu’min, e entraram na grande mesquita. Ibn’Arabī ficou observando
enquanto o príncipe se inclinava e se prostrava humildemente para rezar. Pensou, então,
consigo mesmo que se o soberano do país se mostrava tão submisso e humilde frente a Deus,
esse mundo aqui não era nada. Essas considerações fizeram com que ele no mesmo dia se
engajasse no Caminho.
99
Esse incidente constituiu o ponto de ruptura em sua trajetória e
marcou sua escolha por Deus. Ibn’Arabī deixou tudo e se retirou do mundo. O lugar que
escolheu foi um cemitério fora da cidade de Sevilha, onde encontrou um túmulo que parecia
uma gruta. Ali permaneceu durante meses, praticando o dhikr, a constante relembrança de
Deus, e saindo apenas na hora das preces.
A marca principal dessa experiência consistiu na visão de três grandes mestres
espirituais da tradição ocidental – Jesus, Moisés e Muhammad – e esse fato já prenuncia um
dos grandes temas do trabalho de Ibn'Arabī: o significado singular de toda a tradição
profética. "Os três componentes de sua visão, fundidos de forma única, são um sumário do
98
Claude ADDAS, The Quest for the Red Sulphur: The Life of Ibn’Arabi, 1993: 35.
99
Claude ADDAS, Ibn’Arabî et le voyage sans retour, 1996: 19/20.
56
grande ensinamento semítico sobre o significado do monoteísmo, que foi primeiramente
articulado por Abraão."
100
De acordo com seu relato, Jesus, que Ibn'Arabī encontrou novamente em visões
posteriores e com o qual sentia possuir um forte laço, recomendou-lhe a prática da renúncia e
do desligamento, premissas e pré-requisitos da vida espiritual. Claude Addas reforça a tese de
que Jesus foi o primeiro mestre de Ibn'Arabī e do relacionamento especial entre os dois, pois,
para Ibn'Arabī, Jesus é o Selo da Santidade, enquanto o próprio Ibn'Arabī seria o selo da
profecia muhammadiana. O contínuo encorajamento recebido de Jesus fez com que Ibn'Arabī
redobrasse seus esforços e finalmente renunciasse ao luxo a que estava acostumado, livrando-
se de todos os seus bens, que retornaram a seu pai. Esse gesto marcou uma reviravolta em seu
destino já que, a partir daí, escolheu o caminho da renúncia e da pobreza, do qual nunca mais
se afastou. Até o final de seus dias, o único meio de subsistência de Ibn'Arabī foram os
presentes e a ajuda que recebeu de seus companheiros de Caminho e de algumas famílias
ricas, quando já estava estabelecido no Oriente.
101
O segundo encontro de Ibn'Arabī foi com Moisés, o qual lhe anunciou que Deus lhe
daria diretamente o conhecimento, o que lembra a tradição islâmica do Khidr, arquétipo da
inspiração Divina direta. A terceira figura com a qual Ibn'Arabī se encontrou foi Muhammad,
que lhe apareceu num sonho, assim salvando-o de um grupo de homens que queria matá-lo.
Para Ibn'Arabī, é o Profeta quem melhor exemplifica o perfeito equilíbrio da vida espiritual e
o conhecimento espiritual propiciado por Deus.
102
100
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier, 1999: 53.
101
Claude ADDAS, The Quest for the Red Sulphur: The Life of Ibn’Arabi, 1993: 9/40.
102
Ibn'Arabī, assim como outros sufis, afirma a hāgiqa muhammadiyya, a realidade muhammadiana primordial,
da qual todo profeta, desde Adão, é apenas uma refração parcial num momento particular da história humana e
que teria sido a primeira coisa no al-hāba (pó primordial) a ser dotada de existência. Embora esse conceito tenha
surgido mais tardiamente, representa, em termos abstratos, um dos conceitos mais tradicionais do Islã, o da "luz
de Muhammad" (nūr muhammadī), que mostra a associação do Profeta com o simbolismo da luz. Esse conceito
implica a luz da pré-eternidade da qual Deus criou todos os seres e que Ele propiciou a Muhammad. A realidade
muhammadiana antecede a história, embora só se torne totalmente ativa e constituída com o aparecimento no
mundo da pessoa chamada Muhammad. Cf. Michel CHODKIEWICZ, Seal of the Saints: prophethood and
sainthood in the doctrine of Ibn'Arabī, 1993: 60/68. Por isso Ibn'Arabī diz, no último capítulo do Fusūs: "...Ele é
57
Em função das revelações espirituais que teve durante esse retiro, Ibn'Arabī começou a
estudar o Corão e os hadiths, e também iniciou seu contato com vários mestres espirituais.
Durante esse período de sua vida, duas mulheres, Yāsamīn de Marshena e principalmente
Fātimah de Córdoba, exerceram profunda influência sobre o autor. Fātimah, senhora já idosa,
atuou como sua guia espiritual por dois anos e se considerava sua mãe espiritual. Ibn'Arabī
logo começou a se destacar de seus companheiros de estudo em virtude de sua visão
espiritual. Mesmo na ausência de seu mestre al-Kūmī, Ibn'Arabī era capaz de contactá-lo no
plano imaginal.
103
Para Ibn’Arabī, a renúncia total era a forma de realizar a “servidão pura” (‘ubūdiyya
al-mahda), a qual exige que o walī, ou santo, abandone todos os direitos e possessões que
possam manter viva nele a ilusão de soberania (rubūbiyya), pois aquele que não possui nada
não é possuído por nada, exceto por Deus. O próprio Ibn’Arabī escreve: “desde o momento
em que obtive essa estação (de servidão pura), não possuí mais nenhuma criatura viva e nem
mesmo as roupas que uso, pois uso apenas aquelas que me são emprestadas e que sou
autorizado a usar.”
104
É também digno de registro o encontro entre Ibn'Arabī, ainda um jovem de vinte
anos, e Averróes, narrado pelo próprio Ibn'Arabī. O encontro deixa Averróes profundamente
abalado e, de alguma forma, simboliza os caminhos que seriam seguidos no futuro pelos
mundos cristão e islâmico. Averróes representa a primazia da razão, tendo-se tornado o mais
influente dos pensadores muçulmanos no Ocidente latino. Ibn'Arabī, por sua vez, representava
um conhecedor para quem o conhecimento significava primariamente "visão" e que veio a se
a mais perfeita criatura da humanidade, por essa razão as coisas começam com ele e serão seladas por ele. Ele já
era um profeta quando Adão estava ainda entre a água e o barro e, por meio da sua forma elemental, é o Selo dos
Profetas". Cf. IBN'ARABĪ, The Bezels of Wisdom (Fusūs al-Hikām), 1980: 27.
103
Seyed Houssein NASR, Three Muslim Sages, 1997: 92.
104
Claude ADDAS, The Quest for the Red Sulphur: The Life of Ibn’Arabi, 1993: 40/41.
58
tornar uma figura dominante no sufismo, influenciando a subseqüente vida intelectual do
Islã.
105
Ibn’Arabī deixa transparecer uma profunda veneração por seus mestres andaluzes, que
a seus olhos representavam o sufismo em seu aspecto mais nobre e autêntico. Contudo, em
seu caso, a relação mestre-discípulo era um pouco mais complexa e ambígua do que de
costume. Isso se devia não só aos talentos excepcionais com os quais al-Shaykh havia sido
favorecido ainda em idade precoce, mas também era resultado da função que foi chamado a
exercer na esfera da santidade ou walāya. Apesar de sua grande capacidade espiritual, todo
“conhecedor de Deus” tem de se submeter à educação e à iniciação por mestres que, no caso
de Ibn’Arabī, ele superava. Ibn’Arabī também teve a revelação de ser um dos Pilares
106
, o que
o impedia de se identificar com seus mestres.
Para al-Shaykh, nada impedia um discípulo de ter vários mestres. Nesse período
particular no Islã ocidental, era normal seguir simultaneamente os ensinamentos espirituais de
vários mestres sufis. A companhia espiritual, ou suhba, era ainda uma prática informal e não
tinha adquirido as características de instituição estruturada e regulada que iria começar a
assumir no Oriente ao final do século XII e mais definitivamente no século XIII, quando se
organizou num sistema mais rígido que recebeu o nome de tarīqa. Esse fato significava uma
certa discrepância entre o sufismo oriental e o sufismo andaluz. Na Andaluzia, a busca por
Deus permaneceu em grande escala um empreendimento puramente individual, livre e
105
Seyed Houssein NASR, Three Muslim Sages, 1997: 93.
106
Sobre essa hierarquia de iniciação, Ibn’Arabī relata que no ápice da pirâmide estão os quatro Pilares (awtād):
em primeiro, o Pólo (qutb), seguido pelo “Imân da Esquerda”, então o “Imân da Direita” e finalmente o quarto
Pilar. Os verdadeiros detentores dessas funções são os quatro profetas considerados pela tradição islâmica como
eternamente vivos: Idrīs, Jesus, Elias e Khadir. Idrīs é o Pólo, Jesus e Elias são os dois Imāns, e Khadir é o
quarto Pilar. Cada um desses profetas tem um susbstituto no mundo aqui embaixo, um homem que realiza a
função em questão. Os Pilares, tanto os titulares quanto os substitutos, pertencem à categoria dos afrād, ou
“solitários”. Ninguém tem autoridade sobre os Pilares. Eles conhecem e reconhecem somente a Deus, que se
encarrega de ensiná-los. Portanto, quando Ibn’Arabī declara que seu estado é equivalente ao “Imān da Esquerda”
(na verdade, sendo o substituto que exercia essa função naquele momento particular), estava sugerindo que
pertencia à categoria dos solitários. Isso explicaria a advertência por ele recebida de não se identificar com
nenhum mestre, “pois Deus se encarrregava dele”. Cf. Claude ADDAS, The Quest for the Red Sulphur: The Life
of Ibn’Arabi, 1993: 65/66.
59
flexível, o que terminou por gerar desentendimentos recíprocos e, por vezes, uma atitude
desdenhosa por parte dos orientais em relação ao povo do Magreb e da Andaluzia.
107
Em 1193, Ibn’Arabī realizou sua primeira visita ao norte da África, detendo-se
particularmente em Túnis, onde permaneceu durante um ano na companhia de dois mestres.
Durante esse período, completou sua permanência na estação da "pura servidão" e da herança
muhammadiana. Com isso, encerrou o primeiro estágio de seu treinamento espiritual.
Por essa ocasião, al-Shaykh via todo o processo de desenvolvimento espiritual e
santidade em termos de sabedorias particularizadas de profetas e mensageiros. Para ele, essas
sabedorias eram expressões da sabedoria integral e integradora de Muhammad, e essa herança
profética forma a base de todos os seus escritos. Ibn’Arabī começou como seguidor de Jesus,
enfatizando a renúncia, passou pela herança espiritual de Moisés, recebendo a luz da
revelação, e chegou ao que considerava a herança abrangente de Muhammad, quando
"penetrou, por assim dizer, no coração do próprio sol, cuja luz é tão intensa que eclipsa a luz
das outras estrelas no céu."
108
Ibn'Arabī é um dos poucos que parece ter sido iniciado por Khidr, o arquétipo da
inspiração Divina direta. O primeiro encontro aconteceu em terra firme, numa rua da cidade
em plena luz do dia. Nesse encontro, Khidr enfatizou a necessidade da submissão externa a
um mestre terreno. O segundo encontro ocorreu na água, num barco sob a lua cheia, e o
terceiro, numa mesquita durante uma prece, demonstrando, segundo al-Shaykh, o poder do ar,
sinal distintivo dos herdeiros de Muhammad.
Nessa época, Ibn'Arabī começou a escrever, registrando suas inspirações e
partilhando-as com seus companheiros. Em 1194, escreveu um de seus maiores trabalhos,
Mashāhid al asrār (A contemplação dos mistérios).
107
Claude ADDAS, The Quest for the Red Sulphur: The Life of Ibn’Arabi, 1993: 69.
108
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier, 1999: 92.
60
Esse período de dez anos, no qual Ibn'Arabī viajou pelo Caminho "que Deus me
estabeleceu e do qual não me afastei", marca o tempo de instrução na sabedoria
profética. Ele começou como isawī, tornou-se mūsawī e após ter encontrado
Hūd e todos os outros profetas, finalmente chegou à herança muhammadiana,
que marcou sua ascensão como luz pura."
109
Novamente em visita à África, em Fez, Ibn’Arabī começou a experienciar estados de
revelação que correspondiam aos estados interiores dos profetas. Esse período culminou na
maior jornada de todas, a ascensão espiritual que espelhava a famosa viagem noturna do
profeta Muhammad. Os primeiros relatos dessa experiência estão registrados no Kitāb al-Isrā
(O livro da viagem noturna), e outros relatos aparecem em alguns capítulos do Futūhāt. Como
Ibn'Arabī explica, enquanto a ascensão do Profeta aconteceu fisicamente, a dos santos ou walī
"são ascensões de seu espírito e a visão de seus corações, a visão de formas no mundo
intermediário e de realidades espirituais materializadas. Eles realizam uma jornada espiritual
na terra e no ar, sem nunca terem colocado os pés sensíveis nos céus." Nessa jornada, a
geografia física se metamorfoseia em topografia espiritual. Ibn'Arabī ainda acrescenta que sua
jornada foi realizada à noite, pois "as ascensões dos profetas sempre acontecem à noite,
porque a noite é o momento do mistério e do ocultamento". Além disso, "a noite é o momento
mais amado pelos amantes, pois é quando eles se unem, e a reclusão com o amado é realizada
à noite."
110
A estada de Ibn'Arabī no norte da África terminou de forma tumultuada em virtude da
ameaça de perseguição por parte dos regentes almôadas. Estes suspeitavam que as ordens
sufis estariam fomentando a resistência ao seu regime, tentando usurpar a autoridade islâmica
legítima e ofendendo a Lei sagrada. Nessa ocasião, Ibn'Arabī chegou mesmo a ser preso e,
assim que foi libertado, retornou a Andaluzia.
111
109
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier, 1999: 92.
110
Stephen HIRTENSTEIN, op. cit.: 116.
111
Ralph W. J. AUSTIN, The Bezels of Wisdom (Fusûs al-Hikam), 1980: intr. 6.
61
A viagem de Ibn’Arabī a Túnis marcou o início de um longo período de errância
através de dār al-islam, o mundo muçulmano, que duraria em torno de trinta anos. Uma visão
que lhe foi conferida nessa época enfatiza a importância da passagem de uma vida sedentária
para uma vida nômade, e lhe mostra o seu destino de peregrinação pela “vasta Terra de
Deus”.
112
Outro episódio visionário lhe revela que seus ensinamentos estavam destinados a se
estender sobre “os dois horizontes, o do Ocidente e o do Oriente”. Daí em diante, após os
trinta anos, sua vida seria dedicada a transmitir oralmente e por escrito o que lhe havia sido
revelado.
1.4.2 – Entre o Ocidente e o Oriente
No ano de 1200, Ibn'Arabī inicia sua longa jornada em direção ao Oriente. Passando
por Marrocos, Fez e Túnis, chega ao Egito em abril de 1202, viajando em seguida para a
Palestina e visitando todos os locais mais importantes, onde estão enterrados os grandes
profetas: Hebron, onde Abraão e outros patriarcas estão enterrados, Jerusalém, a cidade de
Davi, e Medina, onde está o Profeta Muhammad.
Seu destino final nessa viagem foi a peregrinação à Meca, onde chegou aos 38 anos de
idade e onde alguns episódios marcantes provocaram uma guinada em sua vida e em sua obra.
Um deles aconteceu durante a circum-ambulação da caaba, quando, numa visão, encontrou
uma jovem "de beleza e conhecimento marcantes que lhe lembrou, num momento de dúvida,
que para um místico a realidade das teofanias não depende da fidelidade às leis da lógica, mas
da fidelidade ao serviço do Amor."
113
Ibn'Arabī veio a encontrar novamente essa jovem, agora no plano físico, num grupo de
eminentes cidadãos de Meca, e soube tratar-se de Nizām, filha de um rico comerciante. O
112
Claude ADDAS, Ibn’Arabi et le voyage sans retour, 1996: 62/63.
113
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier, 1999: 148.
62
amor que Nizām lhe despertou e seu relacionamento com ela parecem ter tido algo da
qualidade do amor de Dante por Beatriz e servem para ilustrar sua grande apreciação do
feminino, ao menos no aspecto espiritual. Para ele, Nizām tornou-se a personificação de
Sofia, a Sabedoria e a imagem da própria Beleza. Doze anos mais tarde, Ibn'Arabī celebrou
esses sentimentos numa coleção de poemas intitulada Tarjumān al-Ashwāq, "O intérprete dos
desejos ardentes". Nessa obra, Ibn’Arabī louva não só a graça física de Nizām, mas também
sua nobreza de alma. Al-Shaykh compreendeu essa paixão como uma conseqüência natural do
Amor Divino e não, como muita gente da época pensou, como um despertar erótico para o
amor sensual. Sua atração por mulheres manifestou-se por volta desse momento, quando
recebeu o hadith da tradição profética de que Deus fez as mulheres merecedoras do amor de
Seu Profeta. Logo depois, Ibn’Arabī casou-se e teve seu primeiro filho, Imād al-Dīn.
114
Parece que, de 1204 em diante, Ibn'Arabī iniciou um longo período de viagens que
durou doze anos, cruzando todos os países muçulmanos do Oriente, escrevendo e
encontrando-se com outros mestres. Tudo indica que essa fase se originou num sonho
altamente significativo, acontecido durante sua estada em Meca, no qual seu verdadeiro
destino lhe foi mostrado por Deus. Outra razão para suas viagens foi o encontro com um
homem que seria seu amigo e companheiro nos próximos vinte anos de sua vida, al-Shaykh
Majduddīn Ishāq b. Yūsuf da Anatólia – mestre espiritual de um grupo que havia organizado
várias irmandades islâmicas preocupadas com o bem-estar moral e espiritual da população e
que se tornaram a base para várias ordens sufis posteriores.
115
114
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier, 1999: 149. Há, contudo, controvérsia quanto ao
relacionamento de Ibn'Arabī com as mulheres. Asín Palacios, em seu livro L’Islam Christianisé: Étude sur le
Sufisme d’Ibn’Arabi de Murcie, 1982: 28, afirma que Ibn'Arabī teria se casado primeiramente ainda na
Andaluzia, com uma jovem de nome Maryām. Contudo, Addas e Hirtenstein, autores das biografias mais
recentes de Ibn'Arabī, não confirmam o fato. Addas, aliás, diz que Palacios faz esta afirmação sem a menor
referência e que tal fato não está afirmado ou sugerido em nenhuma fonte e nenhum texto de Ibn'Arabī. Ao
contrário, Ibn'Arabī afirma no Futūhāt que durante os primeiros dezoito anos após sua entrada no Caminho havia
fugido das mulheres. Cf. Claude ADDAS, The Quest for The Red Suphur, 1993: 40.
115
Stephen HIRTENSTEIN, op. cit.: 173.
63
Em 1215, Ibn'Arabī estabeleceu-se em Seljuk, na Anatólia. Com a morte de
Majduddīn em 1221, Ibn'Arabī encarregou-se da educação de seu filho Sadruddīn e, aos 58
anos, teve também seu segundo filho, Sa’d al-Dīn. Em 1223, mudou-se para Damasco, onde
passou os últimos dezessete anos de sua vida. Ibn'Arabī desejava vivê-los em quietude e paz,
dedicando-se aos seus escritos e aos seus discípulos. Sadruddīn tornou-se um de seus
discípulos, e seus escritos posteriores forneceram importantes informações sobre a vida de
Ibn'Arabī nesse período. Ele conta, por exemplo, que Ibn'Arabī tinha o conhecimento do
segredo da predestinação e, portanto, nunca rezava por nada a menos que estivesse destinado
a acontecer.
Ibn'Arabī recebia a inspiração para seus livros normalmente acompanhada de visões.
De todos os trabalhos que escreveu, incluindo o monumental Futūhāt al-makkiyya
(Revelações de Meca), aquele que serve de síntese de seu pensamento e é considerado como
sua quintessência é o Fusūs al-Hikām (A sabedoria dos profetas). São 27 capítulos, cada um
dedicado a uma sabedoria particular, que é identificada com um dos profetas. Um capítulo
trata da sabedoria da divindade na palavra de Adão, outro, da sabedoria da elevação na
palavra de Jesus, outro ainda, da sabedoria da singularidade na palavra de Muhammad, e
assim por diante. Usando como referência o texto corânico, Ibn'Arabī explica o ensinamento
espiritual e a realidade de cada profeta que, para ele, são como engastes de um anel,
segurando a jóia de uma sabedoria particular. Do mesmo modo que as facetas do homem
perfeito, os capítulos mostram os vários lados da sabedoria divina. Os 27 profetas aos quais se
referem representam as diferentes comunidades da humanidade, todas sob a jurisdição
espiritual de Muhammad.
116
Nesse último e criativo período de sua vida, Ibn'Arabī escreveu
vários livros e completou o Futūhāt, em 1238.
116
Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier, 1999: 214.
64
Al-Shaykh se cercava de grandes precauções para divulgar seus ensinamentos
esotéricos, em especial obras como o Fusūs ou o Anqā al-Mughrib ou ainda as obras que
tratavam das ciências das letras, que eram lidas apenas por discípulos mais próximos, em
geral dois ou três. Ibn’Arabī decerto sabia que poderia sofrer o mesmo destino de outros
contemporâneos, como al-Shaykh al-Harrāli, que, acusado de heresia, foi expulso de Damasco
em 1235.
Finalmente, em 9 de novembro de 1240/638, aos 75 anos de idade, al-Shaykh veio a
falecer. Segundo Hirtenstein, uma estranha tradição oral que corria pelo Oriente Médio
contava que Ibn'Arabī teria sido tragicamente assassinado. Embora não haja relatos sobre isso,
segundo Hirtenstein, parece haver um fundo de verdade, pois, assim como al-Shaykh tinha
companheiros e defensores leais, também suscitava muito antagonismo por parte daqueles que
não aceitavam nada que não se encaixasse em suas crenças. Pela estória que se conta, ao
passar pela casa de um rico comerciante de Damasco que se encontrava ali reunido com
amigos, Ibn'Arabī teria sido abordado por ele para contar os segredos divinos que Deus lhe
havia revelado. Ibn'Arabī teria então respondido: "O Deus que vocês adoram está sob meus
pés." Essa resposta aparentemente blasfema teria suscitado uma reação violenta dos homens,
que o atacaram com intuito homicida. Ibn'Arabī teria falecido em virtude dos ferimentos
sofridos. Segundo se conta, os homens foram punidos, e o comerciante faleceu também,
pouco tempo depois. Mais tarde, durante um trabalho de reconstrução, os herdeiros do
comerciante escavaram o lugar onde Ibn'Arabī pronunciara tais palavras e encontraram um
baú repleto de ouro que lá estava enterrado.
117
Contudo, Addas afirma que essa estória não é verídica, trata-se de uma lenda. Segundo
ele, há vários relatos da morte e do funeral de Ibn’Arabī, inclusive de Abū Shāma, seu
contemporâneo, e nenhum deles menciona qualquer incidente desse tipo. Em seu sóbrio
117
Cf. Stephen HIRTENSTEIN, The Unlimited Mercifier,1999: 219. Cf. também Claude ADDAS, The Quest for
the Red Sulphur: The Life of Ibn’Arabi, 1993: 287/288.
65
relato, Abū Shāma informa que al-Shaykh teve um belo funeral, de acordo com seus próprios
desejos expressos em algumas linhas do Futūhāt: “Peço a Deus, tanto para mim como para
meus irmãos, que quando nossas vidas alcancem o seu término, a pessoa que venha a realizar
a oração dos mortos para nós seja um servo cuja ‘audição, a visão e a fala’ são Deus.”
118
Ibn'Arabī foi enterrado em Sālihīyah, na base do monte Qāsiyūn, ao norte de
Damasco. Esse lugar, que já era venerado anteriormente como santificado por todos os
profetas, passou a ser um centro de peregrinação ainda maior. No século XI, o sultão Salim II
construiu no local um mausoléu que ainda permanece e que, até hoje, é um centro de
peregrinação, especialmente para os sufis.
119
1.5 – Considerações sobre a influência do neoplatonismo
Tanto a corrente da tradição mística cristã marcada pelos escritos do Pseudo-Dionísio
quanto a mística islâmica, o sufismo, receberam a influência dos mundos grego e helenístico,
em especial do neoplatonismo, estabelecido como uma escola de pensamento por Plotino
120
,
no século II d.c. O termo neoplatonismo porém só começou a ser utilizado a partir da metade
do século XIX por pesquisadores alemães, para distinguir o pensamento de Plotino e de seus
sucessores das formas de platonismo.
121
118
Claude ADDAS, The Quest for the Red Sulphur: The Life of Ibn’Arabi, 1993: 288.
119
Seyed Houssein NASR, Three Muslim Sages, 1997: 97.
120
Plotino nasceu no Egito no ano 205 e estudou em Alexandria com Amônio Sacas durante onze anos. Após a
morte de seu mestre, já aos 39 anos, juntou-se ao exército do imperador romano Marco Antônio Górdio para
combater os persas no Oriente. Com o fracasso da expedição e o assassinato do imperador, refugiou-se
primeiramente na Antioquia e em seguida foi para Roma, onde se estabeleceu e fundou uma escola de filosofia
na qual lecionou até sua morte, em 270. Seu discípulo Porfírio conta que Plotino nunca revelou o mês ou o dia de
seu nascimento, que era capaz de ler o caráter e o futuro das pessoas pela fisionomia e, possuindo um caráter
gentil e agindo como árbitro em vários conflitos durante os 26 anos em que viveu em Roma, nunca fez nenhum
inimigo. Cf. “On The Life of Plotinus and the Arrangement of his Work” in Stephen MacKENNA (trad.),
Plotinus: The Enneads, 1992: 2/9.
121
R. Baine HARRIS, “A Brief Description of Neoplatonism” in The Significance of Neoplatonism, 1976: 2. O
mais importante documento do neoplatonismo são as Enéadas, tratado de 54 ensaios dispostos em seis divisões,
cada uma com nove ensaios. A obra foi composta por Plotino entre os anos de 254 e 267 e depois organizada por
Porfírio (233-304), seu discípulo. O trabalho, escrito em grego, só se tornou acessível ao Ocidente latino após a
tradução feita por Marcilo Ficino em 1492.
66
Não vamos nos deter em nenhuma análise extensa da obra de Plotino e de outros
autores das correntes neoplatônicas que desembocam na Idade Média. Queremos apenas
ressaltar alguns temas neoplatônicos que nos pareceram mais pertinentes à nossa questão e
que ressurgem, como veremos ao longo desse trabalho, aliados a outros elementos, nas obras
de Marguerite Porete e de Ibn’Arabī. Três temas, particularmente, nos chamaram a atenção: o
tratamento do Uno, a dialética de transcendência e imanência em Plotino – que pode ser
considerada como sua linguagem apofática – e a questão do eu ou da alma e do auto-
conhecimento.
Plotino estabelece três hipóstases ou três níveis transcendentes da realidade, além do
universo visível: o Uno, Nous ou Intelecto, e Psyché ou Alma. Esse esquema é de fato mais
complexo por sua distinção da Alma em dois níveis, o superior e o inferior, a Alma Universal
(Psyché) e a Natureza (physis), ou a alma encarnada na matéria. Essas hipóstases são
normalmente interpretadas como uma estrutura hierárquica, um mapa dos níveis ontológicos
da realidade no qual os estágios mais baixos fluem dos mais elevados, por um processo
atemporal de emanação ou processão e de retorno através da conversão (epistrophé). Assim,
do Uno emana o Nous, o Intelecto Divino, no qual estão contidas as Idéias que causam e
ordenam o mundo. Do Nous emana a Psyché, a Alma Universal que é a origem das almas de
todos os seres e da qual, finalmente, emana o mundo sensível. Essas múltiplas gradações não
são planos separados num sentido temporal ou espacial, mas são distintos níveis do ser
atemporalmente presentes em todas as coisas.
Nesse contexto ontológico no qual tudo procede do Uno, onde nada lhe é contraposto,
é conseqüentemente possível um “retorno” ao Princípio, que resulta numa reunificação plena
e total e que está ao alcance do ser humano ainda em vida, na união mística e no êxtase. O ser
humano pode desprender-se do mundo externo e, reentrando em si mesmo, pode tomar posse
67
do seu eu verdadeiro que é a alma. Como a alma deriva do Espírito e o Espírito procede do
Uno, o ser humano pode, portanto, retornar ao Uno.
122
O Uno plotiniano pode ser entendido no sentido pitagórico da unidade básica de toda
multiplicidade. É o princípio que contém os fundamentos de todos os princípios. É o
responsável pelo ser no nível em que ele se diferencia, o Nous. Plotino se recusa a atribuir
predicados ao Uno, o qual descreve como “ além do ser” e além do conhecimento.
O Uno é todas as coisas e nenhuma delas; a origem de todas as coisas não é
todas as coisas; e ainda assim é todas as coisas num sentido transcendental ...
... É precisamente porque não há nada dentro do Uno que todas as coisas vêm
dele: Para que o Ser possa surgir, a origem não deve ser nenhum Ser mas o
gerador do ser ... Não buscando nada, não possuindo nada, nada lhe faltando, o
Uno é perfeito e, em nossa metáfora, transbordou, e sua exuberância produziu o
novo: esse produto voltou-se para seu gerador e, sendo preenchido, tornou-se
seu contemplador e, assim, o Princípio Intelectual.
123
Para Plotino, “ser” implica forma e, portanto, uma entidade delimitada. O ilimitado
deve, então, estar “além do ser”. Porém, não é somente o ser que implica delimitação, já que o
próprio ato de nomear delimita. Nem mesmo o nome “Uno” ou “além do ser” podem se
referir ao ilimitado, pois à medida que fazem referência, eles delimitam.
124
Em seu discurso
sobre o Uno, e na “agonia” que a busca por uma expressão verdadeira lhe provoca, Plotino
utiliza então uma linguagem paradoxal, com expressões qualificadas pela partícula hoion
125
(quase, por assim dizer), para sugerir a realidade do Uno sem tentar circunscrevê-lo ou
objetificá-lo de algum modo.
122
Giovanni REALE, História da filosofia antiga, vol. IV, 1994: 426.
123
Stephen MacKENNA (trad.), Plotinus: The Enneads, 1992: V.2.1, 436.
124
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 15.
125
Bernard McGINN, The Foundations of Mysticism, 2002: 49.
68
Sua definição, de fato, poderia ser apenas “o indefinível”: o que não é uma
coisa não é uma coisa definida. Ficamos em agonia por uma expressão
verdadeira; estamos falando do que não se pode falar; nós nomeamos, da
melhor forma que podemos, apenas para indicar para nosso uso. E esse nome, o
Uno, não contém nada mais do que a negação da pluralidade ... Se somos
levados a pensar positivamente sobre o Uno, nome e coisa, haveria mais
verdade no silêncio: a designação, mera ajuda à nossa investigação, nunca
pretendeu mais do que uma afirmação preliminar de absoluta simplicidade a ser
seguida pela rejeição até mesmo dessa afirmação: é o melhor que se oferece,
mas permanece inadequada para expressar a natureza indicada.
126
O Uno em Plotino, sendo livre, não emana nem por um ato da vontade, nem impelido
pela necessidade de sua própria natureza, “ele é como quis ser”, ou seja, projeta na existência
o ser, “o que” ele quis ser.
127
Com essa “desontologia”, miticamente representada por essa
projeção, seu discurso tenta alcançar uma liberação das limitações da predicação e das
referências representadas por “isso” ou “não isso”.
128
Geradora de tudo, a Unidade não é nada; nem coisa, nem quantidade, nem
qualidade, nem intelecto, nem alma; não está em movimento, não está em
repouso, não está num lugar, nem no tempo; é auto-definida, única em forma,
ou melhor, sem forma, existindo antes que a Forma ou o Movimento ou o
Repouso, que pertencem ao Ser e fazem do Ser o múltiplo que ele é.
129
... De nada aquele Princípio está ausente e ainda assim de tudo: presente, ele
permanece ausente exceto para os que estão preparados para recebê-lo,
disciplinados em alguma harmonia, capazes de tocá-lo de perto em virtude de
sua semelhança e em virtude daquele poder análogo dentro deles que,
permanecendo como era quando veio a eles do Supremo, lhes permite ver, à
medida que Deus pode ser visto.
130
126
Stephen MacKENNA (trad.), Plotinus: The Enneads, 1992: V.5.6, 469.
127
Bernard McGINN, The Foundations of Mysticism, 2002: 50.
128
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 20.
129
Stephen MacKENNA (trad.), Plotinus: The Enneads, 1992: VI.9.3, 701.
130
Stephen MacKENNA (trad.), op. cit.: VI.9.4, 702.
69
Essa coincidência de opostos é uma forma de lógica dialética que opera sobre a lógica
linear da referência delimitada. Em sua teologia negativa, Plotino utiliza a afirmação de
predicados mutuamente exclusivos para indicar a simultânea natureza
transcendente-imanente
do Uno e explora os aspectos positivos e negativos da “constante presença-na-ausência do
Uno”. Como, para ele, o objetivo místico e filosófico da alma individual é distanciar-se do
mundo sensível, regressando à Alma do Mundo, daí elevando-se ao Nous, até se reunir com a
origem da emanação, o Uno, a alma individual deve se despir de todas as formas e atributos
para alcançar essa “comunhão transcendente”. É assim que Plotino apresenta uma dialética
mística cujo propósito é conduzir a alma para a sua liberação última.
Em Plotino o amor erótico possui um amplitude mais cósmica e mais transcendental
do que em Platão. Plotino chama o Uno de eros, e embora esse eros transcendente não tenha
nenhuma preocupação com o que está abaixo dele, pois Plotino nega que Deus ame o mundo,
esse Uno erótico permanece a origem de tudo que existe. Todo o universo é também
essencialmente erótico no sentido de estar marcado por um esforço apaixonado para retornar à
Origem, e o papel do amor no retorno da alma à sua origem é um dos principais temas
plotinianos.
131
Para Plotino, nós somos apenas aquela parte específica da alma que não desceu e
portanto, está sempre “lá”, em seu lar natal, por isso: “Quando a alma começa novamente a
subir, ela não vai para algo estranho, mas para seu próprio eu; assim distanciada, não está em
nada, mas em si mesma; reunida, não está mais na ordem do ser; está no Supremo.”
132
Para
ele, o conhecimento do eu é também conhecimento para o eu, no sentido de ser um
procedimento que é instrumental na tarefa de ascensão, do movimento de elevação e de
interiorização, que constitui o nosso verdadeiro destino e a realização de nosso eu verdadeiro.
131
Bernard McGINN, The Foundations of Mysticism, 2002: 48.
132
Stephen MacKENNA (trad.), Plotinus: The Enneads, 1992: VI.9.11, 709.
70
Plotino assinala também o contraste entre os vários aspectos da alma e a liberdade necessária
para realizarmos nosso potencial mais elevado, que nos torna tanto quanto possível
semelhantes ao Uno, que em si é Liberdade.
133
Para que possamos conhecer nosso ser real, Plotino advoga uma jornada de
progressivo crescimento intelectual e purificação, na qual a alma deve gradualmente
ultrapassar as virtudes inferiores e se distanciar de tudo que é “estranho” e mundano. Para
Plotino, todos temos a parte da alma que é livre e não “desceu”, que permanece no Supremo,
assim como todos temos também, naturalmente, a aptidão para sabermos o que é preciso saber
para a ascensão, embora a tenhamos em graus variáveis, o que explicaria a facilidade maior
que alguns têm em realizá-la.
134
Porém, para Plotino, a possibilidade da “união” com o Uno é
um evento natural, não uma graça sobrenatural. Essa “união” tem suas raízes naturais na
identidade potencial da alma com seu fundamento divino, e na lei geral de que todas as coisas
tendem a reverter à sua origem. Trata-se da atualização de algo que estava apenas esperando
para ser realizado, a revelação momentânea de um dado eterno.
135
Os requisitos dessa jornada incluem uma outra forma de “ver”, uma forma de noesis
intuitiva, não-discursiva, não-racional, que ultrapassa o intelecto. A ascensão plotiniana para o
verdadeiro eu é um progressivo abandono da multiplicidade e de qualquer forma de
dualidade, num esforço continuado para nos tornarmos mais e mais semelhantes ao Uno pelo
qual ansiamos. Suas considerações finais nas Enéadas nos mostram o resultado da jornada:
... Não havia dois; o contemplador era um com o contemplado; não era uma
visão alcançada, mas uma unidade apreendida. O homem formado por essa
fusão com o Supremo deve – se apenas se lembrar – portar Sua imagem
impressa nele: ele se tornou a Unidade, nada dentro ou fora dele induzindo a
133
Laura WESTRA, “Self-Knowing in Plato, Plotinus and Avicenna” in Neoplatonism and Islamic Thought,
1992: 94.
134
Laura WESTRA, op. cit.: 98.
135
E.R. DODDS, Pagan and Christian in an Age of Anxiety, 1996: 88.
71
nenhuma diversidade; nenhum movimento agora, nenhuma paixão, nem
perspectiva de desejo, uma vez que essa ascensão seja alcançada; a razão está
suspensa, e toda Intelecção e mesmo, ousando a palavra, o próprio eu:
capturado, preenchido com Deus, em perfeito repouso, ele alcançou o
isolamento; com o ser acalmado, não se volta para esse ou para aquele lado,
nem mesmo para dentro de si; descansando completamente, ele se tornou o
próprio repouso. Ele não pertence mais à ordem do belo; elevou-se acima da
beleza; ultrapassou até mesmo o coro das virtudes; ele é como alguém que,
tendo penetrado no santuário interno, deixou para trás as imagens do templo
...
136
Após a morte de Plotino, Porfírio, Jâmblico e principalmente Proclo foram os maiores
canais de comunicação das tendências do neoplatonismo tanto para o pensamento cristão
quanto para o pensamento islâmico, exercendo profunda influência na mística especulativa
ocidental. Em suas obras, Proclo formula um complexo mundo hierárquico de níveis da
realidade baseado nas hipóstases plotinianas, que se desenvolvem de acordo com a lei
dinâmica da permanência na origem (moné), na processão a partir dela (proodos) e no retorno
a ela (epistrophé). Se Plotino afirma que o Uno está acima do Ser, do Intelecto e da Vida, e
Porfírio usa essa tríade de poderes para descrever de modo genérico as atividades do Nous,
para Proclo essa primeira e mais elevada tríade que interpenetra todas as coisas não é o
Primeiro Princípio, mas o produto da incognoscível Unidade do Uno.
137
Proclo postula a
doutrina das Énadas, que se situam entre o Uno e o primeiro plano do inteligível (que é o Ser).
As Énadas não são os primeiros entes, mas estão acima do ser e possuem características
análogas ao Uno, são Unidade e Bondade, enquanto o Uno é Uno e Bem. Só depois delas, que
são “superessenciais, supervitais e superintelectuais” é que se seguem as hipóstases do mundo
do Espírito.
138
136
Stephen MacKENNA (trad.), Plotinus: The Enneads, 1992: VI.9.11, 708/709.
137
Bernard McGINN, The Foundations of Mysticism, 2002: 58.
138
Giovanni REALE, História da filosofia antiga, vol. IV, 1994: 582.
72
Em seu sistema metafísico, Proclo estabelece um apofatismo radical. Para ele “as
afirmações cortam a realidade em pedaços”, e as negações, embora possam prover algum
acesso aos planos superiores de emanação, não permitem qualquer penetração no Uno
derradeiro, o qual está além do Uno que de certa forma produz o que está abaixo. Proclo
distingue o Uno que participa do Ser do Uno exaltado que não participa dele. É a nossa
ligação com o primeiro que torna possível o retorno ao Uno Supremo, sobre o qual mesmo as
negações não expressam nada. A única forma de negação que pode se aproximar do Uno
Supremo é a “negação da negação”, “um misterioso movimento transcendental para outra
dimensão”.
139
McGinn diz que embora possamos encontrar implicitamente em Plotino textos
que afirmam a negação da negação em relação ao Uno, Proclo é o primeiro pensador
ocidental que dá à negação da negação um papel central em sua obra.
140
Ainda que não afirme que o Uno Supremo seja eros, como faz Plotino, Proclo
incorpora a visão do amor providencial (eros pronoetikos) em sua visão do universo, dando a
eros um papel cósmico consistente. Eros não é uma simples expressão da necessidade
humana, mas uma força universal que liga todos os níveis da realidade conduzindo-os ao Uno.
Para Proclo, em sua origem, eros não é um estado passivo, algo causado pela visão de um
objeto belo, mas primariamente uma atividade que vem de cima para baixo e também o que
torna possível o retorno (eros epistreptikos), por meio da ativação da imagem do Uno dentro
de nós, elemento divino na alma (anthos nou) que forma o ponto de contato para a união com
o Uno incognoscível.
141
139
Bernard McGINN, The Foundations of Mysticism, 2002: 59.
140
Ibid.
141
Bernard McGINN, op. cit: 60/61.
73
1.5.1 – O neoplatonismo e a mística islâmica
No ano de 529 d.c., o imperador bizantino Justiniano fechou a escolas filosóficas de
Atenas, recusando a influência da especulação helenística pois, como defensor da fé ortodoxa,
considerava-a uma ameaça ao cristianismo. Assim, a filosofia, que já havia começado sua
migração para o leste com a fundação de Alexandria no ano 332, avançou em direção ao
Oriente. Vários dos mais ilustres professores da escola ateniense seguiram para a Pérsia, onde
foram bem recebidos por Chosroes I, grande admirador da ciência e da filosofia gregas, que
logo em seguida, em torno do ano 555, fundou a Escola de Jundisshâpûr, um importante
centro de estudos helênicos.
142
Por outro lado, a tomada de Alexandria pelos árabes, em 641, colocou-os em contato
com as culturas da Grécia e do Oriente Médio, pois Alexandria havia se tornado o ponto de
encontro do pensamento especulativo grego, de religiões orientais e de tradições místicas,
egípcias, fenícias, persas, judaicas e cristãs. O neoplatonismo, enquanto tentativa de síntese
das maiores correntes do pensamento clássico grego, suscitou grande interesse entre os
filósofos árabes muçulmanos. O primeiro grande texto filosófico traduzido para o árabe no
século VIII foi uma paráfrase dos últimos três livros (IV, V e VI) das Enéadas de Plotino.
Chamado de Kitāb al-Rubūbiyyah (Livro da divindade), foi erroneamente atribuído a
Aristóteles por seu tradutor, ficando também conhecido como Ūthūlūjīah Aristātālīs, A
teologia de Aristóteles.
143
Essa paráfrase estabeleceu as fundações para o neoplatonismo islâmico. Outra obra
erroneamente atribuída a Aristóteles e traduzida para o árabe foi o Liber de causis,
compilação de 31 proposições selecionadas da obra Elementos de teologia, escrita por Proclo
e traduzida anonimamente antes do século X. Esse pequeno tratado filosófico teve grande
142
Majid FAKHRY, A Short Introduction to Islamic Philosophy, Theology and Mysticism, 1997: 1.
143
Majid FAKHRY, op. cit.: 7.
74
influência nos escritos de alguns proeminentes pensadores islâmicos, que representaram um
papel importante na configuração do pensamento metafísico de filósofos e teólogos ocidentais
desse período da Idade Média. As proposições se relacionavam à causalidade, à Primeira
Causa (entendida como Allah – Deus) e à hierarquia das entidades criadas que se originam da
Primeira Causa. O Kalām fī mahd al-khair (Discurso sobre o bem puro), como também ficou
conhecido, forneceu aos árabes uma concisa descrição do cosmos originado ou criado, seu
Originador ou Criador e as relações entre eles.
144
No Ocidente latino, essa obra funcionou como uma parte integrante do corpus
aristotélico após a sua tradução do árabe para o latim no século XII. Os filósofos e teólogos
cristãos, que no século XII e XIII estavam se confrontando com um grande influxo de
literatura filosófica e científica traduzida do árabe e do grego para o latim, receberam a
doutrina da criação de todas as coisas por Deus tal como expressa no Liber de causis como
um relato filosófico aristotélico sobre a dependência de todas as criaturas do Criador revelada
nas escrituras.
145
Esse pequeno tratado neoplatônico representou uma influência abrangente na
formação da compreensão do conjunto de obras de Aristóteles e no pensamento islâmico
aristotélico que se estendeu até depois do século XIII.
Para os muçulmanos, Platão, Aristóteles e Plotino são parte da tradição islâmica, da
mesma maneira que Abraão é visto como um profeta do Islã. Os muçulmanos apreciaram o
profundo pathos religioso e místico da visão de mundo neoplatônica e a preocupação de
Plotino com o conceito de unidade e transcendência do Ser Supremo. Contudo, tinham uma
religião que deviam considerar e que influenciou suas doutrinas. O Deus do Corão é uno,
144
R.C. TAYLOR, “A Critical Analysis of the Kalâm fî mahd al-khair (Liber de causis)” in Neoplatonism and
Islamic Tought, 1992: 11.
145
R.C. TAYLOR, op. cit.:12. Segundo Taylor, a importância do Liber de causis na formação do pensamento
ocidental nesse período é mostrada (1) pelas muitas referências ao Liber de causis encontradas nas obras dos
maiores filósofos e teólogos do século XIII; (2) por sua adoção pela Universidade de Paris como requisito
curricular para a complementação da leitura da metafísica de Aristóteles; (3) pelos muitos comentários que a
obra suscitou entre os maiores filósofos do período, como Alberto Magno, Roger Bacon, Tomás de Aquino,
Siger de Barbant, Giles de Rome e outros; (4) pela existência de quase 230 manuscritos latinos que contêm o
texto do Liber de causis. Cf. op. cit.: 13.
75
eterno, onipotente e criador de todas as coisas e, assim, os filósofos árabes defrontaram-se,
antes dos cristãos, com o problema de conciliar uma concepção grega do ser e do mundo com
a noção da criação contida em seu livro sagrado.
146
O termo neoplatonismo islâmico pode ser útil principalmente para a distinção entre
aqueles que adotaram o emanacionismo e os que seguiam a teoria da criação ou da co-
eternidade. Na filosofia árabe, foi al-Fārābī (+ 950 d.c.) quem primeiro elaborou a teoria das
emanações, que permite a conexão do mundo sensível com o intelígível criado. Ele
estabeleceu dois princípios fundamentais em sua teoria: o primeiro diz respeito ao ser
perfeitamente uno do qual pode proceder apenas um ser, pois a unidade e a simplicidade do
ser necessário não permitem a multiplicidade, ou seja, supor que dele podem proceder
diversos seres seria introduzir a multiplicidade na sua essência. Seu sistema concebe a
primeira emanação como simultaneamente una e múltipla, porque, separada do uno
primordial, nela se introduz a multiplicidade dos seres.
147
Ibn Sina (ou Avicena
148
, como ficou conhecido no Ocidente), baseando-se em al-
Fārābī, desenvolve os temas neoplatônicos fundamentais delineados por seu predecessor. Para
Avicena, a unidade absoluta é o Ser Necessário, livre de qualquer modalidade de
multiplicidade ou composição, não tendo nenhuma essência exceto Sua existência, com a qual
ele é idêntico. Ele é indefinível, livre de quantidade, qualidade, posição ou qualquer outra
propriedade acidental.
149
Ele é, mas não há resposta possível para “o que ele é”. Em distinção,
Avicena estabelece os seres possíveis, que podem existir, mas que nunca existirão se não
146
Etienne GILSON, A filosofia na Idade Média, 2001: 427.
147
Rosalie Helena de Souza PEREIRA, Avicena: a viagem da alma, 2002: 57.
148
Avicena nasceu em 980 e faleceu em 1037, aos 58 anos. Teve uma considerável influência na filosofia
ocidental no século XIII, quando suas obras, que combinavam a doutrina de Aristóteles com o neoplatonismo,
foram traduzidas para o latim. Seu texto foi a primeira grande obra filosófica recebida no Ocidente, antes que a
obra de Aristóteles estivesse integralmente traduzida, sendo utilizada nas formulações de filósofos e teólogos
cristãos do século XIII, como Alberto Magno e Tomás de Aquino. Cf. Rosalie Helena de Souza PEREIRA, op.
cit.: intr. xxvii.
149
Majid FAKHRY, A Short Introduction to Islamic Philosophy, Theology and Mysticism, 1997: 51.
76
forem produzidos por uma causa. Se os possíveis existem, é porque existe também um
necessário, causa da existência daqueles, e esse necessário é Deus.
150
Existe uma perspectiva semelhante entre a descrição do Ser Necessário de Avicena e o
Uno de Plotino: a divisão entre o uno e o múltiplo, o emanacionismo e o retorno, a não-
substancialidade do Ser Último, a identificação do Uno com o Belo e o Bem e como o
sustentáculo de tudo criado. Entretanto, o conceito do Uno em Plotino é totalmente
independente do conceito de ser, enquanto, no sistema de Ibn Sina, o ser antecede
sintaticamente o Existente Necessário.
151
Como não é nosso interesse traçar o percurso da filosofia islâmica, vamos apenas
sinalizar alguns pontos mais relevantes para a compreensão do que é conhecido como
neoplatonismo islâmico, em especial ligado à doutrina mística islâmica, o sufismo, que muitas
vezes faz uso da terminologia neoplatônica para expor suas doutrinas metafísicas e
cosmológicas. Contudo, é importante sinalizar que o sufismo é antes de tudo um caminho
espiritual e apenas em sentido secundário se apresenta como uma perspectiva intelectual,
mesmo que, sob outro ponto de vista, a perspectiva preceda o caminho.
A primeira preocupação do sufi é voltar a totalidade de sua atenção para Deus. A
disciplina espiritual que segue é islâmica, já que todos os seus elementos essenciais estão
baseados no Corão, na Sunnah do Profeta e nos ensinamentos de seus companheiros. Toda a
prática sufi começa com a observância da lei divina revelada, a Sharī‛a. Os sufis intensificam
sua consciência de Deus com a prática do dhikr e por isso, não importa a que atividade
externa se dediquem, estão sempre repetindo um Nome de Deus em suas mentes ou no
coração. Seus centros de estudo e atividades externas tinham sempre uma dimensão religiosa,
e os estudos estavam sempre relacionados ao Corão e aos hadiths.
150
Etienne GILSON, A filosofia na Idade Média, 2001: 435.
151
Parviz MOREWEDGE, “The Neoplatonic Structure of Some Islamic Mystical Doctrines”, in Neoplatonism
and Islamic Thought, 1992: 56.
77
Levando esses aspectos em conta, Chittick assinala que os sufis pensavam
principalmente em termos islâmicos e escreviam ou falavam com uma modalidade de
pensamento estabelecida pelo Corão e pela Sunnah. Além disso, a natureza de suas
experiências estava baseada no “desvelar” (kashf) e na percepção mística (dhawq), ou seja, na
apreensão intuitiva das realidades que estão acima da apreensão dos sentidos ou da razão.
152
Quando os místicos islâmicos falam sobre o Uno, sobre a emanação de todas as coisas
a partir dele e sobre seu retorno a ele, estão expressando o resultado do “desvelar” a eles
propiciado, fruto do trabalho espiritual ao qual se dedicaram. Eles não “aprenderam” essas
coisas com neoplatônicos, mas provavelmente encontraram nos esquemas conceituais
neoplatônicos uma confirmação de suas próprias visões e uma formulação adequada do
conhecimento que alcançaram em sua prática espiritual.
153
De forma geral, o esquema conceitual neoplatônico está presente na mística islâmica
em três linhas básicas, tal como Morewedge delineia:
154
(1) O Uno como o Ser Último. Em cada um dos sistemas metafísicos
cosmologicamente orientados há um Ser Último que gera, contém, sustenta ou é a
causa final dos indivíduos, ou dos processos no sistema. O Uno é a entidade mais
importante no neoplatonismo, e o Existente Necessário é a origem da união
mística na mística islâmica.
(2) Os processos no continuum da emanação e da ascensão. Como não há no
neoplatonismo substâncias ou algo semelhante, os processos ou “fases de
emanação” são as unidades básicas. O sistema de Proclo, com sua cadeia de
152
William CHITTICK, “The Circle of Spiritual Ascent According to Al-Qûnawî” in Neoplatonism and Islamic
Thought, 1992: 181.
153
Ibid. Chittick diz que se perguntássemos a um sufi se Plotino tinha a mesma visão da Verdade, ele
provavelmente responderia que sim e que Plotino a teria alcançado por meio de sua prática espiritual derivada de
outra revelação diferente do Islã, mas em essência semelhante a ela.
154
Parviz MOREWEDGE, “The Neoplatonic Structure of Some Islamic Mystical Doctrines”, in Neoplatonism
and Islamic Thought, 1992: 53.
78
causas, explicita a natureza contínua da gama de entidades na linguagem de causa
e efeito. Da mesma forma, os estágios de auto-realização na mística islâmica não
são “substâncias”, mas mostram um processo de auto-realização.
(3) O lugar das normas na metafísica. Tanto no relato metafísico oferecido pelo
neoplatonismo quanto no da mística islâmica, as normas representam um papel
duplo: primeiro, toda entidade, incluindo o Ser Último, tem sua Bondade
relacionada à sua essência, ou realização; segundo, o objetivo da filosofia, longe
de ser uma metafísica descritiva, é uma auto-realização pessoal; seu objetivo é a
união mística, um encontro autêntico com o Ser Último do sistema.
Um dos maiores problemas da adoção do neoplatonismo para os muçulmanos era
permitir a distinção logicamente necessária entre os inteligíveis discursivos e os contínuos
sensíveis sem admitir a dualidade, que viola a marca básica da unidade do ser (al-wahdat al-
wujūd). A fórmula por eles aplicada seguiu o esboço geral da teofania e da teologia simbólica,
na qual é feita uma distinção entre o mundo oculto e o mundo aparente. O mundo aparente
recebe a sua legitimação por ser um sinal, sombra ou reflexo do mundo oculto.
Conseqüentemente, a mística islâmica adota a linguagem de processo do neoplatonismo e
modifica a metafísica neoplatônica do dualismo entre os planos sensível-inteligível,
substituindo-a por uma correspondência entre os dois mundos, seguindo o método da teologia
simbólica.
155
Ibn’Arabī fez uso da terminologia neoplatônica para expor as suas doutrinas
metafísicas e cosmológicas. A noção de wujūd, existência, tal como ele a desenvolve, se
estende da Essência de Allah (Dhāt Allah), se aplicando, por metáfora, aos diferentes graus
que Ela assume. Ainda que Uno, a Wujūd de Deus comporta as auto-determinações em nomes
155
Parviz MOREWEDGE, “The Neoplatonic Structure of Some Islamic Mystical Doctrines” in Neoplatonism
and Islamic Thought, 1992: 63/64.
79
infinitos e parece se desdobrar, por superabundância, em toda a manifestação universal, nas
formas mais diversas e segundo estruturas perfeitamente ordenadas.
Al-Shaykh também utiliza os recursos da teologia negativa como o melhor meio para
se falar da Deidade, elabora sobre a natureza do Uno e dos vários graus de existência que dele
derivam, e discute como a alma humana deriva do Uno e para ele retorna. Sua versão da
descida e da reascensão da alma fornece um exemplo de como certos ensinamentos corânicos
foram exposto em termos paralelos às categorias neoplatônicas.
156
1.5.2 – O neoplatonismo e a tradição mística cristã
O sistema intelectual que muitos dos primeiros pensadores cristãos utilizaram foi a
filosofia platônica na forma eclética em que ela foi compreendida e ensinada nos primeiros
séculos da era cristã, e em particular na estrutura dada a esse platonismo eclético por Plotino e
seus seguidores mais influentes – Porfírio, Jâmblico e Proclo.
157
O neoplatonismo cristão se originou em Roma e Milão, por volta do ano 350, em
círculos pagãos organizados em torno do pensamento de Plotino. Uma das figuras centrais
desse período foi Marius Victorinus, filósofo do norte da África que possuía grande
conhecimento de Plotino e Porfírio e traduziu alguns tratados das Enéadas, além de obras de
Porfírio, para o latim. Tendo-se convertido ao cristianismo em 355, Victorinus escreveu um
conjunto de tratados em que ataca a heresia ariana e nos quais se encontra a primeira teologia
trinitária especulativa, além de uma série de comentários sobre as epístolas de Paulo.
Como seu pensamento estava profundamente marcado por Plotino e por Porfírio,
provavelmente Victorinus veio a incorporar dois princípios fundamentais do neoplatonismo
156
William CHITTICK, “The Circle of Spiritual Ascent According Al-Qûnawî” in Neoplatonism and Islamic
Thought, 1992: 179.
157
Dominic J. O’MEARA, Neoplatonism and Christian Thought, 1982: intr. ix.
80
na teologia cristã: a identificação do Uno com a existência verdadeira (esse) e o uso da tríade
Ser-Vida-Intelelecto (esse-vivere-intelligere) como instrumento para a compreensão da
trindade consubstancial. Victorinus também absorveu uma profunda teologia negativa de suas
fontes neoplatônicas, pois o esse que é identificado com o Deus Pai é tão diferente de toda a
existência conhecida que podemos sinalizá-lo melhor como não-existência.
158
Porém, foi por
meio do Pseudo-Dionísio, com sua adaptação da compreensão de Proclo sobre esses dois
temas, que ambos vieram, mais tarde, a representar um papel na mística especulativa do
Ocidente.
Pouco se sabe sobre esse escritor monástico que viveu na Síria por volta do ano 500 e
adotou o nome de Dionísio, o Aeropagita. O centro teológico de sua obra é a exploração de
como o Deus incognoscível se manifesta na criação para que todas as coisas possam atingir a
união com a Fonte imanifesta. Em seu programa cósmico, o Eros divino se refrata em
múltiplas teofanias no universo que, por sua vez, eroticamente, se esforça para ultrapassar sua
multiplicidade e retornar à unidade simples. Utilizando a tríade procleana (moné, proodos,
epistrophé) e considerando a tríade Ser-Vida-Sabedoria (sua versão da tríade neoplatônica
Ser-Vida-Intelecto), Dionísio estabelece sua visão dialética de como o Deus desconhecido
permanece supraeminentemente sempre idêntico a si mesmo, transborda na diferenciação em
seus efeitos e recupera a identidade pela reversão.
159
No sistema dionisiano, os vários tipos de teologia e sua interação são compreendidos
em relação ao grau de apreensão. Elas constituem formas diversas de se falar de Deus. A
teologia simbólica depende do conhecimento dos sentidos; a catafática opera no nível da
razão, enquanto as modalidades de apreensão que ultrapassam a razão são usadas na teologia
apofática e na teologia mística.
160
Uma terceira perspectiva no sistema de Dionísio é a
158
Bernard McGINN, The Foundations of Mysticism, 2002: 199.
159
Bernard McGINN, op .cit.: 162.
160
Bernard McGINN, op. cit.: 163. No capítulo III de nosso trabalho se encontra uma visão mais detalhada da
teologia negativa e da teologia mística de Dionísio.
81
distinção fundamental entre o Deus oculto, “além do ser” e o Deus revelado. Como não há
acesso ao Deus oculto exceto por meio do Deus manifestado na criação, toda teologia começa
com a consideração da relação Deus-mundo, que Dionísio apresenta, utilizando as categorias
neoplatônicas, mas modificando-as a serviço da compreensão cristã da criação.
Utilizando noções prévias que podem ser encontradas em Orígenes – o qual afirmava
que Deus é eros – e na tendência de Plotino e de Proclo de ampliar o papel de eros, Dionísio
cria uma teoria de eros como cósmico e divino, a qual foi uma das grandes contribuições para
a teologia cristã.
161
Dionísio mantém a igualdade de eros com o termo bíblico ágape,
afirmando que os termos podem ser utilizados intercambiavelmente pois significam a mesma
realidade divina, mas prefere o primeiro. Para Dionísio, o “Eros Real” não se encontra na
atração física, que é uma mera imagem, mas “na simplicidade do Eros divino uno”. No
universo hierárquico, eros é qualquer “capacidade de efetuar uma unidade, uma aliança, e
uma fusão particular no Belo e no Bem.”
162
Essa capacidade preexiste na Thearchia – o novo
termo de Dionísio para o Deus uno-trino – e a partir dela se comunica para a criação no
processo cósmico de processão e reversão.
Na visão de Dionísio, só Deus pode sair totalmente de si num êxtase completo
pois só ele é capaz de permanecer totalmente dentro de si, completamente
transcendente a todas as coisas. Ele se ama em todas as coisas pelo mesmo
fundamento e razão que ele se ama fora de todas as coisas. Enquanto Dionísio
partilhava uma visão dialética de Deus com seus predecessores neoplatônicos,
ele é o primeiro a expressar essa compreensão dialética primariamente em
termos de Deus como Eros.
163
A visão de Dionísio sobre a união mística estava ligada à capacidade de ultrapassar as
afirmações positivas e negativas sobre Deus e à theosis ou deificação. Ao identificar a união
161
Bernard McGINN, The Foundations of Mysticism, 2002: 166.
162
Bernard McGINN, op. cit.: 167.
163
Ibid.
82
com a deificação, sua doutrina estava de acordo com a de seus predecessores cristãos na
questão central de separar a teoria mística cristã das teorias pagãs contemporâneas, nas quais a
alma era naturalmente divina. Os místicos cristãos insistiam que a divindade da alma não
pertencia a ela por natureza, era uma dádiva de Deus, Pai do Redentor.
164
Em suas descrições
do retorno da alma a Deus, davam ênfase maior à necessidade da intervenção divina, da
dádiva ou graça, do que os autores pagãos. O mesmo procedimento é encontrado no sufismo,
como dimensão mística de uma religião revelada. Outro ponto importante entre os místicos
cristãos foi situar o amor, concebido como eros-ágape, no centro de seu pensamento, de uma
maneira que ultrapassava as colocações dos filósofos gregos místicos.
165
No século IX, João Escoto Erígena
166
traduziu a obra de Dionísio para o latim e
desenvolveu sua própria obra, baseada no neoplatonismo de Jâmblico e de Proclo – já em sua
transformação cristã efetuada por Dionísio – e na herança latina de Marius Victorinus,
Ambrósio e, principalmente, Agostinho. Erígena desenvolveu a tradição dionisiana da
dialética de imanência e transcendência de acordo com a qual “Deus é tanto tudo em tudo
como nada em coisa alguma, é nomeado infinitamente e infinitamente sem nome, está em
todo lugar e em lugar algum, iluminando tudo e além de tudo, numa escuridão brilhante.”
167
Essa dialética, depois desenvolvida por Eckhart e por Nicolau de Cusa, busca indicar que
Deus é distinto precisamente por sua indistinção, diferente em virtude de sua indiferenciação,
ausente em sua presença, em suma, transcendente através de sua incompreensível imanência.
164
Bernard McGINN, The Foundations of Mysticism, 2002: 184.
165
Bernard McGINN, op. cit.: 185.
166
Erígena, considerado uma das grandes mentes especulativas da baixa Idade Média, nasceu na Irlanda,
provavelmente em 810, mas não se sabe ao certo em que centro monástico irlandês estudou e nem mesmo se era
padre, monge ou leigo. Em torno de 845 já estava na corte de Carlos, neto de Carlos Magno, que se tornou seu
patrono. Sua maior obra é o Periphyseon, ou De Divisione Naturae, relato sistemático de toda a realidade. Cf.
Bernard McGINN, The Growth of Mysticism, 1999: 82.
167
Thomas A. CARLSON, “Locating the Mystical Subject” in Mystics: Presence and Aporia, 2003: 212.
83
Contudo, Erígena desenvolve mais sistematicamente que Dionísio a dinâmica entre
uma cosmologia mística, ou apofática, e uma correspondente antropologia apofática, ou
mística, que Dionísio deixa mais implícita. Erígena busca elucidar a lógica da auto-criação
teofânica, na qual aquilo que podemos saber da criação emerge da auto-negação do “Nada”
divino, que não podemos conhecer, da mesma forma que não podemos conhecer a nossa
verdadeira natureza humana. Com isso, Erígena utiliza uma antropologia apofática que
complementa sua teologia apofática, nas quais nem Deus nem o sujeito humano criado à Sua
imagem podem compreender o que são.
168
Essa tradição mística cristã vai ressurgir, aliada a outros elementos, nos movimentos
religiosos das mulheres no século XIII. Marguerite Porete é uma representante da mística
renana-flamenga, a qual encontra em Guillaume de Saint-Thierry
169
um de seus precursores
no século XII. Guillaume reintroduz na teologia latina importantes temas patrísticos gregos
que haviam sido esquecidos ou negligenciados, apesar dos esforços de Erígena no século IX.
O tema mais importante é o da deificação (theosis): a alma não está simplesmente destinada a
se tornar semelhante a Deus, mas “a se tornar o que Deus é”. Trata-se de uma reinterpretação
mais radical da tradição agostiniana do retorno da alma à sua realidade original em Deus, que
então prevalecia.
170
Como outras béguines que pertenciam à espiritualidade renano-flamenga, Marguerite
Porete expressa o abandono a Deus na linguagem do Amor, mas também como o resultado de
um dilema ontológico. Ao aniquilar tudo que é criatural e, portanto, separado de Deus, é
possível recobrar em Deus e, por Sua graça, o ser verdadeiro, “incriado”, não separado. Essa
identificação total à vontade divina não é alcançada somente pelo esforço natural do místico e
168
Thomas A. CARLSON, “Locating the Mystical Subject” in Mystics: Presence and Aporia, 2003: 215/216.
169
Guillaume de Saint Thierry, amigo de Bernard de Clairvaux, nasceu no final do século XI em Liège. Foi
abade do monastério beneditino de Saint Thierry e depois monge da casa cisterciense de Signy. Cf. Bernard
McGINN, The Growth of Mysticism, 1999: 225.
170
Emilie ZUM BRUNN, Les Miroir des simples âmes anéanties, 2001: intr. 11/12.
84
pela prática do “nada querer”: é dada por Deus-Amor num momento súbito, como uma
centelha.
171
Para Marguerite Porete, Deus não só é o “amante, amado, amor”, mas também o único
Ser verdadeiro, pois a criatura não é, exceto através dele. Contudo, ainda que afirme que Deus
é Amor, esse é o aspecto cognoscível do Absoluto. Dentro da tradição do Pseudo-Dionísio,
que se inspira em Proclo e Plotino, há além disso o aspecto incognoscível e absolutamente
transcendente de Deus, do qual não se pode participar. Esse aspecto possui um lugar de
destaque na obra de Porete, que mostra como a alma, continuamente ultrapassando seus
próprios limites, não é capaz de compreender a transcendência divina. Em sua obra, Porete
mostra um nível de dialética que simultaneamente manifesta a total transcendência e a perfeita
imanência da natureza divina. Para ela, os dois pólos do Uno, ambos envolvendo momentos
positivos e negativos, não podem ser separados, mas estão indissoluvelmente ligados numa
coincidência de opostos.
172
Esses temas – a dialética de transcendência e imanência divinas, a teologia apofática e
mística, a afirmação de Deus como único Existente verdadeiro, a visão teofânica do cosmos, o
amor como categoria central ou princípio cósmico criador por excelência – vão estar presentes
nas obras de Marguerite Porete e de Ibn’Arabī, marcados pela concepção da aniquilação como
via para a verdadeira existência em Deus, e são os mesmos que agora nos dedicaremos a
explorar.
171
Emilie ZUM BRUNN, Les Miroir des simples âmes anéanties, 2001: intr.13.
172
Bernard McGINN, “Meister Eckhart on God as Absolute Unity” in Neoplatonism and Christian Thought,
1982: 129.
85
CAPÍTULO II
A MÍSTICA DO AMOR
O amor é, em suma, a visão da alma para as coisas invisíveis ... Em última
análise, é o amor que constitui a unidade interior da alma.
1
Tanto na mística cristã quanto no sufismo, a noção do amor tem um papel
preponderante no caminho e na compreensão da união mística. Em certo sentido, toda mística
cristã é vista como mística do amor. Contudo, em certo momento, o amor foi igualado à
essência mesma da vida espiritual no Ocidente, quando a contemplatio veio a ser definida
como amor, movimento que começou mais claramente com Bernard de Clairvaux.
2
Freqüentemente os místicos tentam mostrar as interações entre o amor e o conhecimento em
sua jornada, determinando o papel de cada um no processo que conduz à união e muitas vezes
considerando o amor como uma forma de conhecimento.
Marguerite Porete, em seu Miroir (e como as outras béguines), insiste na superioridade
do amor e o faz numa linguagem por vezes erótica, influenciada pelas convenções do amor
cortês da literatura do fim da Idade Média. Para Marguerite Porete, o progresso real na
direção dos estágios superiores da vida mística só começa quando a alma consegue “eliminar
a razão com o amor”. Em sua obra, amour é associado a uma forma de conhecimento superior
que ela chama de entendement d’amour, algo que se assemelha à intelligentia amoris,
3
uma
interpenetração do amor e do conhecimento num plano mais elevado da vida mística ou o
amor como forma de conhecimento. Embora mencione a compreensão (cognoissance) como a
1
Julia KRISTEVA, Tales of Love, 1987: 110.
2
Louis DUPRÉ & James A. WISEMAN (eds.), Light from Light: An Anthology of Christian Mysticism, 2001:
10.
3
Cf. Bernard McGINN “Love, Knowledge and Unio Mystica in the Western Christian Tradition” in Mystical
Union in Judaism, Christianity, and Islam, 1999: 60.
86
faculdade da alma capaz de apreender as coisas que pertencem ao plano divino, sua utilização
desse termo se assemelha ao uso de intellectus, que se contrapõe a ratio, indicando uma
consciência intuitiva para além do conhecimento conceitual.
Para mostrar a importância da linguagem do amor, o Miroir apresenta o diálogo de
duas figuras alegóricas, Amor e Razão. Algumas outras personificações são colocadas como
diferentes facetas do amor divino (Verdade, Luz da Fé, Cortesia, Justiça, Trindade etc.) e
como discípulas da Razão (Tentação, Ansiedade, Santa Igreja – a pequena). A voz da Razão é
unívoca, de acordo com o sentido literal que defende, enquanto a figura do Amor, encarnando
a divindade, mostra a riqueza e a complexidade que refletem o divino.
A Razão nunca é exaltada no Miroir, mas, pelo contrário, é denegrida e humilhada,
vítima de todo tipo de ironia
4
. Sua presença no Miroir tem função puramente pedagógica, pois
suas perguntas levam o ouvinte a uma compreensão mais profunda do texto. Ela, contudo,
encarna a negação da verdade, a insuficiência humana e sua impossibilidade de compreender
Deus senão com a ajuda do amor divino.
A mesma controvérsia encontrada na mística cristã sobre o papel desempenhado pelo
amor e pelo conhecimento na jornada mística, sobre qual faculdade desempenha o papel
principal, também é encontrada na mística islâmica. A estrutura geral do Islã, fundamentada
na doutrina da Unidade (al-tawhīd), predispõe a uma orientação intelectual e nela, a primazia
do conhecimento é indiscutível.
5
Contudo, o sufismo é de maneira geral a dimensão do Islã
4
“Alma: Ah, entendimento da Razão, diz a Alma aniquilada, como discernis bem! Vós tomais a palha e deixais
o grão, pois vosso entendimento é muito pobre, motivo pelo qual não podeis perceber tão elevadamente quanto
necessário para aquele que deseja perceber o ser do qual falamos. Mas o entendimento do amor divino, que
permanece e está na Alma aniquilada e que é livre, o apreende sem hesitação, pois ela mesma é isso.” Cf.
Mirouer: 12:28-35. “Alma: Ah, Razão, diz a Alma, quão entediante sois, e como têm dor e sofrimento aqueles
que vivem sob o vosso conselho.” Cf. Mirouer: 35: 25-27. “Razão: Ah, Dama Alma, diz a Razão, vós tendes
duas leis, uma para vós e outra para nós: a nossa para crer, e a vossa para amar. Dizei-nos vosso desejo sobre
isso, e por que chamastes nossas crianças de bestas e asnos. Alma: Essa gente, diz a Alma, a quem chamo asnos,
busca Deus nas criaturas, em monastérios para rezar, em um paraíso criado, nas palavras dos homens e nas
Escrituras. ... Parece aos iniciados que tal gente, que O busca em montanhas e em vales, insiste que Deus esteja
sujeito aos sacramentos e obras deles.” Cf. Mirouer.: 69: 31-43. Cf. também outras críticas e ironias à Razão, nos
capítulos: 36: 13; 43: 24-25; 53: 8-15; 68: 12-21 e 74: 5-6.
5
Titus BURCKHARDT, “A natureza do sufismo” in Islã – o credo é a conduta, 1990: 154.
87
conhecida como a religião do amor. Para os sufis, o conhecimento de Deus sempre engendra o
amor, e o amor pressupõe um conhecimento, ainda que indireto, do objeto amado. No
sufismo, as últimas estações da jornada mística são o amor e a gnose, mahabba e ma’rifat.
Embora essas duas vias sejam por vezes consideradas como complementares, em certos casos
o amor é visto como superior e em outros a gnose possui esse privilégio. A ma’rifat é o
conhecimento que não é alcançado por meio da razão discursiva. Trata-se de uma
compreensão mais elevada dos mistérios divinos.
6
Uma das modalidades da mística sufi e de sua linguagem de união resulta da interação
com a poesia amorosa, que é um veículo para a expressão da união mística. Assim como as
béguines fizeram posteriormente em relação à tradição cortês, os sufis adaptaram e
transformaram o tema do amor e todos os motivos, convenções e imagens da poesia amorosa
clássica.
Alguns estudiosos vêem Ibn’Arabī somente como um dialético árido e seco,
representante da mística especulativa em oposição à mística do amor exemplificada por
Rumī.
7
Contudo Ibn’Arabī não coloca em oposição as duas vias, promovendo antes uma
espécie de síntese. Na obra de al-Shaykh, profundamente ancorada dentro da tradição islâmica
que enfatiza o conhecimento, o amor tem um papel central. Ibn’Arabī escreveu sobre o amor
tanto em textos líricos como o Tarjumān al-ashwāq, o Dīwān al-ma’arif e outros, que dão um
testemunho sobre sua própria experiência nesse domínio, quanto em textos discursivos de
exposição doutrinária, como o capítulo 178 do Futūhāt – “Sobre o conhecimento da estação
do amor e seus segredos”.
Ibn’Arabī considera o amor como a estação suprema da alma e a ele subordina
qualquer outra perfeição humana possível. O conhecimento, ou gnose, não é para al-Shaykh
6
Annemarie SCHIMMEL, Mystical Dimensions of Islam, 1999: 130.
7
Cf. a crítica feita a Massignon em “A experiência e a doutrina do amor em Ibn’Arabi” por Claude ADDAS.
Disponível em <
http/www.ibnarabisociety.org/> Acesso em: 23 de junho de 2003.
88
uma estação, pois em sua perfeição já não tem nada de humano, uma vez que se identifica
com seu objeto que é a Realidade Divina. Esse amor a que se refere Ibn’Arabī é o amor
integral, a completa absorção da vontade humana pela atração divina – o estado de “louco de
amor”.
Nossa intenção é mostrar como a literatura dita profana sobre o amor influenciou as
concepções da béguine e de al-Shaykh e como, a partir da apropriação de temas amorosos
profanos, cada um deles construiu sua noção sobre o amor e a aniquilação como via para a
união mística. A mística do amor, tal como pode ser compreendida em Marguerite Porete e
em Ibn’Arabī, nos mostra a profunda experiência do amor, que implica o êxtase e a dissolução
do eu no insondável. Deus e a/o amada/o não são outra coisa além de maneiras intransferíveis,
mas equiparáveis, de registrar a emoção partilhada do inconcebível que resulta na aniquilação.
2.1 – Notas sobre a tradição do amour courtois
Entre o século XI e o século XIII foi desenvolvido e praticado, na vida e nas cortes
medievais, um tipo de prática social à qual foi dado o nome de amor cortês. Essa tradição, que
aos poucos foi se forjando, desenvolveu-se principalmente no século XII entre os trovadores
do sul da França, mas logo se espalhou por países vizinhos e influenciou, de uma forma ou de
outra, a literatura da maior parte da Europa ocidental por séculos.
Ao que tudo indica, essa tradição tem suas raízes em Ovídio, poeta romano que viveu
no tempo do imperador Augusto e cujos poemas lidavam com o tema do amor (Ars Amatoria,
Remedia amoris, Amores). Ainda que para Ovídio o amor fosse decididamente sensual, sem o
conteúdo romântico e sacrificial que mais tarde seria a tônica do ethos cortês, uma de suas
idéias influenciou a concepção de amor cortês: a idéia de que o amor é uma espécie de guerra,
e todo amante, um guerreiro ou soldado sob as ordens de Eros ou Cupido. Logo abaixo do
89
“grande general” estariam as mulheres, cujo poder sobre os homens é absoluto. Ovídio
argumenta que um homem pode enganar uma mulher, mas nunca deve parecer se opor ao seu
menor desejo. Para agradá-la, ele deve permanecer em vigília por toda a noite em frente da
sua porta, deve submeter-se a todo tipo de dificuldade, realizar todo tipo de ação absurda. Por
amor a ela deve tornar-se pálido, magro e insone. Não importa o que ele faça ou por que o
faça, ele deve convencê-la que tudo é feito por causa dela.
8
A influência de Ovídio tomou um caráter especial entre os trovadores do sul da
França, que combinaram suas idéias sobre o amor com outros elementos e com um novo
espírito. Essa nova combinação, que se espalhou pela Europa em canções, poemas e
romances, foi designada amour courtois. Nela, o amor era encarado como uma arte e tinha
suas regras: os amantes se submetiam a Eros e nesse “serviço” se consumiam; não deveriam
amar suas próprias mulheres, mas a esposa de algum outro homem, pois o amor não pode
existir sem o ciúme. Agora, porém, o amante e sua domna não estavam mais envolvidos num
jogo apenas sensual de engano mútuo, pois ela era sua senhora feudal, a quem ele devia
lealdade, e tinha um status muito mais elevado que o dele. Embora o amor nivelasse as
desigualdades, o amante raramente ousava presumir a igualdade e se dirigia à sua domna com
a mais profunda humildade. Cogita-se que outros elementos modificadores da doutrina de
Ovídio sejam devidos à influência da cultura da Espanha moura, na qual muitos desses
elementos podem ser encontrados antes de aparecerem entre os cristãos.
9
Nesse período final da Idade Média, tanto o mito do amor cortês quanto o mito do
santo apareciam na literatura popular. O mito do santo, no século XIII, impelia ao abandono
do mundo em favor da vida religiosa, ao amor a Deus, à pobreza, à vida pura e sem mácula e
ao serviço e ao cuidado para com os pobres, doentes e sofredores. Já no mito do amor cortês e
8
Andreas CAPELLANUS, The Art of Courtly Love, 1990: 4.
9
Andreas CAPELLANUS, op. cit.: 6/7.
90
na poesia dos trovadores, encontra-se a exaltação do amor, do amor infeliz, perpetuamente
insatisfeito.
10
Esse mito delineava a mulher ideal como nobre e arrogante, “a bela que sempre diz
não”
11
, desejável, mas inatingível, exigente e imprevisível. Embora a domna fosse o foco
central da busca e da provação amorosa, seu papel era amplamente passivo, pois cabia ao
homem tentar ganhar o seu amor por meio de serviços desinteressados e atender lealmente aos
seus menores desejos, ser o seu servo. Cabia à figura da amie no romance cortês um papel
mais ativo. Como parte reconhecida de um casal, ela se submetia a testes paralelos de lealdade
e devoção para se tornar merecedora do amor do cavalheiro.
12
Em todos os casos, os amantes
se encontravam unidos pela lei da cortezia: o segredo, a moderação e, se não a castidade, ao
menos a retenção da consumação do desejo.
2.2 – Notas sobre a teoria do amor profano entre os árabes
No mundo islâmico também se desenvolveu a tradição de um gênero literário de
escrita sobre o amor dito profano – o amor humano, sua natureza, causas e vicissitudes. Além
dos dīwāns, ou poesias e lendas sobre o amor, há um número significativo de obras sobre a
teoria do amor. Contudo, uma vez que no Islã a motivação religiosa é mais relevante do que
outras no que concerne à produção literária, não só as obras sobre a teoria do amor místico
são mais numerosas, mas também as considerações religiosas e místicas têm um lugar nos
escritos sobre o amor profano.
O Islã havia surgido no deserto com a convicção e a determinação de criar uma nova
sociedade, mas trazia também uma sofisticada bagagem poética árabe que continuaria a ser
10
As estórias de Tristão e Isolda e de Abelardo e Heloísa são alguns dos mais conhecidos exemplos desse tipo de
amor fati.
11
Denis de ROUGEMONT, História do amor no Ocidente, 2003: 102.
12
Saskia MURK-JANSEN, Brides in the Desert: The Spirituality of the Beguines, 1998: 44.
91
recitada e cultivada, apesar de seu teor e suas origens notoriamente pagãs e pré-islâmicas. Ao
mesmo tempo, os árabes têm uma reverência incomum por sua língua, que, para os
muçulmanos, assim como o hebraico para os judeus, é uma língua sagrada, a língua na qual o
próprio Deus se expressou. Ainda que a mensagem do Profeta se afastasse do universo pagão
das antigas odes, optando pelo campo espiritual, isso jamais implicou repúdio às virtudes da
poesia. A língua da religião nunca silenciou totalmente os poetas seculares árabes que a
antecederam, os quais continuaram a recitar seus poemas de amor e de desejo, bem como de
heróis e de batalhas.
O ideal cavalheiresco que abarca as atitudes varonis e o culto à mulher tem, no Islã,
segundo Burckhardt, caráter muito mais amplo que no cristianismo, além de antecedentes
mais antigos, que derivam do exemplo pré-islâmico do cavaleiro e guerreiro do deserto.
13
Segundo esse ideal, a atitude cavalheiresca frente à mulher tem origem islâmica derivada
tanto dos cavaleiros do deserto, que além de guerreiros valentes eram também poetas e
freqüentemente grandes amantes, como do valor que de maneira geral o Islã atribui à relação
entre o homem e a mulher.
14
A tradição pré-islâmica e os poetas islâmicos falam
incansavelmente sobre os mutayyamīn, os escravizados por amor, que sofrem com ‘ishq
15
– o
amor apaixonado evocado nos homens pelas mulheres e por nada mais – ou com hawā – o
amor apaixonado que queima sem cessar, só compreendido por aqueles que são capazes de
amar assim.
16
No século X, já estava delineado um código de conduta baseado no amor civilizado e
cavalheiresco, embora não se possa chamá-lo de amor cortês, termo cunhado posteriormente
para designar um fenômeno europeu. A palavra zarf designava um amplo ideal de conduta
13
Titus BURCKHARDT, La civilización hispano-árabe, 1999: 115.
14
Ibid. O próprio profeta Muhammad afirmou: “O matrimônio é metade da religião” e pessoalmente deu
exemplo de máxima bondade e indulgência em relação às mulheres.
15
O termo‘ishq passou a ser utilizado num sentido místico em vez do termo corânico mahabba para significar a
“reciprocidade vital do amor” ou “uma atração entre Deus e a alma”. Cf. Lois Anita GIFFEN, Theory of Profane
Love among the Arabs: The Development of the Genre, 1971: 86.
16
Lois Anita GIFFEN, op. cit.: 13/18.
92
elegante e civilizada, e as qualidades mais essenciais do comportamento amoroso e polido
eram o adab (cortesia) e murūwa (honra masculina). O ideal zarf
-adab estabelecia padrões de
decência, de maneiras e de comportamento emocional.
17
O tema do amor infeliz, ou do amor e da morte, era de extrema importância, como dão
testemunho as várias lendas sobre os amantes infelizes, vítimas do amor fati.
18
Esse tipo de
amor foi chamado de ‘udhrī , nome de uma tribo da Arábia à qual alguns poetas pertenciam, e
expressava a idéia de um amor casto, em geral contrariado porque a mulher já era casada ou
prometida a um outro homem ao qual não amava. Nessas condições, os sentimentos se
espiritualizavam e terminavam por provocar a morte dos amantes, que não viam outra
solução, pois os que amam verdadeiramente não podem alcançar nenhuma satisfação aqui na
terra.
19
Esses elementos da cultura islâmica se uniram mais claramente, determinando um
estilo de vida cavalheiresco que floresceu com vigor na Espanha muçulmana no século XI.
Depois da queda do califado de Córdoba em 1031, o território dos mouros foi dividido entre
vinte reis e, como vimos, esse período foi marcado por uma convivência relativamente
pacífica entre muçulmanos, judeus e cristãos. Além de ter sido uma época de fausto e
grandeza, foi também um período de grande desenvolvimento cultural e literário, no qual cada
corte tinha seus poetas, assim como as pequenas cidades. Esses poetas eram treinados na
tradição árabe clássica, embora tenham substituído os campos do deserto pelos jardins da
Andaluzia.
20
O amor cavalheiresco já havia tomado a forma de uma ars amatoria, em que não
17
Lois Anita GIFFEN, Theory of Profane Love among the Arabs: The Development of the Genre, 1971: 14.
18
Uma das mais famosas lendas é a de Qays, mais conhecido como Majnūn Layla (“louco por Layla”), que se
consome, vagando de estação em estação pelos vales secos da Arábia, em busca de Layla. Majnūn perde o juízo,
fala com os animais e com as rochas, torna-se magro e maltrapilho. Como um verdadeiro mutayyamīn, tem
anseio amoroso infinito e, como sugere a etimologia do nome Majnūn, está tomado pelos jinns, os gênios do
deserto, que são as musas da poesia árabe, semi-espíritos do amor e da loucura.
19
Roger ARNALDEZ, A La Croisée des trois monothéismes, 1993: 166.
20
John Jay PARRY, The Art of Courtly Love, 1990: intr. 7.
93
bastava somente a atitude varonil do guerreiro, mas era preciso combiná-la com um estilo de
vida refinado, muito tato e uma acentuada sensibilidade para o belo.
O tipo de civilização desenvolvido na Espanha islâmica pode muito bem ter fornecido
o ímpeto para desenvolvimentos semelhantes na Provença, pois até o caráter estrutural da
poesia árabe-espanhola é análogo ao que é encontrado na poesia provençal.
21
Todavia, o que
nos importa são as semelhanças de conteúdo, à medida que podemos ver na cultura do Al-
Andalus elementos que, quando combinados com as idéias de Ovídio, resultam no amour
courtois.
Podemos encontrar, nos poemas e tratados sobre o amor entre os árabes, duas atitudes
diferentes em relação à questão do amor. Por um lado há uma tradição sensual, talvez nativa e
que se assemelha às idéias de Ovídio, e outra tradição mais espiritual, que parece estar
baseada na obra de Platão, tal como transmitida por comentários de estudiosos árabes. O
poeta andaluz Ibn Hazm, em sua obra “O colar da pomba”
22
(1022), expressa sua
familiaridade e concordância com algumas idéias de Ovídio, mas seu conceito de amor difere
em muitos aspectos, aproximando-se do de Platão. Ibn Hazm define o amor como a reunião
de partes de almas que foram separadas na criação. O amor seria normalmente provocado por
uma forma bela, “pois a alma é bela e deseja apaixonadamente algo belo, e se inclina na
direção de imagens perfeitas”. O verdadeiro amor não ignoraria o aspecto físico, mas a união
de almas é infinitamente mais refinada que a dos corpos. Em seu sistema, o amor e a nobreza
caminham juntos, pois o verdadeiro amor enobreceria o caráter.
23
21
Peter DRONKE, The Medieval Lyric, 1996: 86.
22
“O Amor, Deus seja louvado, é uma enfermidade cujo tratamento deve ser de acordo com a aflição. Deliciosa
doença, maravilhoso mal bem-vindo. Quem dele não sofre não quer ser-lhe imune, e quem dele sofre não quer
vê-lo findo. Minha doença, os médicos não curam. Inexorável, arrasta-me à destruição. Consinto em fazer dela
um sacrifício e, impaciente, bebo o vinho e o veneno. Minhas noites de amor foram sem pejo. Minh’alma as
amou, porém, acima das paixões.” Cf. María Rosa MENOCAL, O ornamento do mundo, 2004: 119.
23
Cf. John Jay PARRY, The Art of Courtly Love, 1990: intr. 10/11 e também Roger ARNALDEZ, A La Croisée
des trois monothéismes, 1993: 167.
94
“O colar da pomba” tornou-se um espécie de manual que permitia o acesso aos
elaborados códigos do amor de sua cultura e aos momentos de tortura e êxtase que dele
resultam. Nele, Ibn Hazm traça os contornos do amor apaixonado tal como ele era
compreendido na sociedade árabe de al-Andalus, contornos que haviam sido perscrutados
num vasto corpus de poesia amorosa, mostrando as diferentes maneiras de se acender a chama
do amor, suas diferentes maneiras de terminar e suas muitas formas de tornar-se uma doença
sem cura, que consome a própria vida do amante.
24
O culto à dama e a idéia da morte por amor, do amor que por essência permanece
insatisfeito e que se exprime como aspiração à morte, são traços que parecem constituir um
ponto comum entre o amor árabe e o amor provençal. O amor-morte dos árabes parece
corresponder ao tema da morte-por-desejo dos trovadores. Além disso, uma das hipóteses
etimológicas da palavra trovador (em provençal, trobador) remonta à raiz árabe T-R-B (Ta Ra
B = “música, canção”) que, com a terminação -ador, sufixo espanhol de agente (como em
conquistador), significa aquele que faz uma canção ou música.
25
Há fortes indicações de
conexão entre as duas tradições.
Ainda que aceitemos a teoria de que o amor cortês e idealizado é uma fusão de
elementos latinos e mouros, e essa teoria não alcançou consenso, não podemos responder por
que e como tal sistema se desenvolveu e teve tão ampla receptividade coletiva nesse
determinado período histórico. O que nos interessa é verificar como essa linguagem e ethos
foram apropriados pela mística e se expressaram nos escritos e nas concepções de Marguerite
Porete e de Ibn’Arabī.
24
María Rosa MENOCAL, O ornamento do mundo, 2004: 123.
25
Joseph CAMPBELL, Creative Mythology, 1991: 62.
95
2.3 – La mystique courtoise
O Love, were I but Love,
And could I but love you, Love, with love!
O Love, for love’sake, grant that I,
Having become love, may know Love wholly as Love!
26
Uma das características centrais da mística das béguines é a sua proximidade da
literatura do amor cortês e a constante utilização da palavra minne (amor) para se referir a
Deus. Muitas vezes, a mística das béguines é descrita como “mística nupcial”, já desenvolvida
no Ocidente especialmente por beneditinos e cistercienses. Essa tradição recebeu uma grande
influência da obra clássica de Bernard de Clairvaux
27
, “Sermões sobre o Cântico dos
Cânticos”, na qual ele utiliza o erotismo do texto sagrado para exemplificar a relação da alma
com Deus.
28
Contudo, embora as béguines tenham recebido uma influência cisterciense e
possam por vezes recorrer a esse conjunto de imagens, essa não é a característica básica de
seu pensamento.
A mística das béguines foi reconhecida como uma categoria à parte e foi cunhado o
termo Minnenmystik para descrevê-la. Esse termo, análogo ao do amor cortês, minne lyriek,
aponta para o caráter distinto dos textos. Todavia, recentemente foi cunhado outro termo que
evidencia mais claramente o elemento cortês da espiritualidade béguine, a Mystique
26
HADEWIJCH, The Complete Works, 1980: 352.
27
Bernard, abade de Clairvaux (1090-1153), é visto como o guia supremo das delícias da contemplação extática.
Os místicos do fim da Idade Média, que elaboraram a simbolização erótica da experiência de Deus vivida pela
alma, repetidamente utilizaram seu Sermões sobre o Cântico dos Cânticos. como inspiração, ainda que tenham
começado a se distanciar do comentário direto sobre o texto dos “Cânticos” como a via mais adequada para
expressar a união com Deus. Cf. Bernard McGINN, The Growth of Mysticism, 1999: 223. No Sermão III, por
exemplo, Bernard comenta a frase do “Cântico dos Cânticos”: “Beija-me com o beijo de tua boca” e a remete ao
beijo espiritual dado na boca do “sereníssimo Esposo”, Cristo. Segundo Bernard, o primeiro beijo é dado nos
pés, o segundo nas mãos e o terceiro na boca de Cristo. Cf. Sermoni sul Cantico dei Cantici, 1996: 53.
28
E. Ann MATTER, The Voice of My Beloved, 1992: 123.
96
Courtoise
29
. Nos escritos das béguines, o simbolismo do amor cortês se mescla com a
expressão metafísica da união com Deus, graças à sua cultura tanto profana quanto religiosa.
As “troibairitz de Deus” fundiram o discurso monástico da mística nupcial com o discurso
secular dominante sobre o amor – o fin amour dos trovadores e poetas românticos – para
revelar novas possibilidades para a alma em sua transformação.
30
Contudo, paralelamente a
esse aspecto extremamente importante da Mística do Amor, há outro aspecto que não pode ser
negligenciado para a compreensão da obra das béguines – a mística do Ser, Wesenmystik, ou
Mística da Essência, também conhecida como mística especulativa, na qual a experiência de
união é o retorno da alma ao seu ser virtual em Deus. Na Idade Média, a mística do Ser se
funda sobre a teologia mística de Pseudo-Dionísio e foi reintroduzida no século XIII pela
escola de são Víctor. Esse tema da passagem da alma para além de si mesma é expresso numa
linguagem que alterna termos positivos e negativos, o vocabulário do ser e do não-ser, de algo
e do nada, o que veremos com mais detalhes no próximo capítulo.
Analisando o movimento religioso renovador e caracteristicamente feminino das
béguines, Newman cita a pergunta perplexa feita por um poeta alemão que escreveu sobre a
mística dessas mulheres, por ele denominada Kunst – conhecimento ou arte: “O conhecimento
em nossos dias espalhou-se entre as mulheres de Brabante e da Bavária. Senhor Deus, que
conhecimento é esse que uma mulher idosa compreende melhor que um homem letrado?”
31
Sobre isso diz Newman:
Para os contemporâneos, a sofisticação de escritoras como Hadewijch,
Metchild de Magdeburg e Marguerite Porete era tão desconcertante quanto
sedutora, pois aqui estavam “celibatárias com uma vida amorosa real, ...
mulheres religiosas que conheciam o desejo e sua realização” e tinham a
29
Saskia MURK-JANSEN, Brides in the Desert: The Spirituality of the Beguines, 1998: 46.
30
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 12.
31
Barbara NEWMAN, op. cit.: 137.
97
grandeza de uma domna cortês. Foi esse conhecimento engenhoso, não o mero
desejo, que as fez criaturas perigosamente sutis, “béguines clergesses”.
32
Uma regra que sobreviveu num béguinage em Paris, Le Régle des fins amans,
composta por um padre francês no final do século XIII, ilustra o contexto literário do fin
amour
33
e a apropriação dessa forma de discurso na mística das béguines, que o usavam para
expressar os movimentos contrastantes e contraditórios de seu amor total e consumidor. Na
Régle, ocorria uma síntese entre eros e ágape sob a rubrica do fin amour. Nela, o fin amant é
exortado a pensar freqüentemente em seu amor, a descobrir seus retiros favoritos e a receber
com alegria as dádivas que ele lhe manda, ainda que consistam em “pobreza, doenças e
tribulações”.
Um dos padrões que conectam a Régle com a prática da mística cortês é um novo
colorido romântico atribuído ao topos monástico da vida terrena como exílio de Deus por
meio do paradigma do amor de lohn ou amor distante. Ansiando constantemente por seu amor
distante, a fin amant béguine tem apenas encontros breves e furtivos com ele, os quais
constituem seus momentos de êxtase. Esses momentos eram qualificados como ravissement,
termo que originariamente significava estupro mas, nesse período, se referia tanto à exaltação
espiritual quanto ao prazer sexual.
34
A Régle sugere que as béguines eram encorajadas a
pensar em si mesmas como corteses, e as escritoras se utilizavam de romances existentes para
ilustrar os pontos que queriam enfatizar sobre a vida espiritual.
“A mera arte do amor”, expressão utilizada por Hadewijch e tomada de empréstimo à
literatura cortês, servia de orientação às béguines. O ideal nela proposto era o da alma nobre e
orgulhosa, que aceita todas as provas impostas por Deus – sob o nome de Dama Amor – da
mesma maneira que o cavalheiro no romance cortês aceita as provas impostas por sua domna.
32
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 137
33
Saskia MURK-JANSEN, Brides in the Desert: The Spirituality of the Beguines, 1998: 47.
34
Barbara NEWMAN, op. cit.: 141.
98
Porém, na mística cortês, em seu anseio pelo Amor incriado, a alma não deseja mais nada
finito.
2.3.1 – O caráter polivalente do “eu amante” e do amado divino
Já vimos que as béguines se apropriaram tanto do discurso da mística nupcial quanto
do discurso do romance cortês, o que resultou num discurso próprio, dotado de um dinamismo
característico, que ampliava os recursos para expressar o “eu amante” em sua gama de
respostas ao Outro inefável. Na mística nupcial, como já dissemos, a construção é feita sobre
uma relação erótica entre o Deus masculino e a alma feminina, o que permitia aos monges,
dentro da tradição do “Cântico dos Cânticos”, variar os papéis de gênero. Contudo, para as
mulheres, esse discurso oferecia apenas raras expressões da subjetividade feminina. Já a
linguagem do fin amour, o ethos que prevalecia no romance cortês, possibilitava às mulheres
maior experimentação dos papéis ligados ao gênero. Em combinação, os dois discursos
conferiam um caráter dual tanto ao amante quanto ao amado divino.
35
Essa é uma das características que a mística béguine apresenta: a variedade de
posições que o “eu amante” pode ocupar vis-a-vis o amor ou o amado divino, em sua tentativa
de expressar as vicissitudes da turbulenta experiência amorosa de amar Deus e de fornecer os
ensinamentos mostrando todas as fases e graus do amor. É possível discernir um “eu nupcial”
e um “eu cortês” e, como variantes do último, um fin amant masculino e uma amie feminina.
O “eu nupcial” retrata a mulher apaixonada tal como imaginada por gerações de
monges e como retratada no “Cântico dos Cânticos”, segundo a leitura de Bernard de
Clairvaux. Ela é a noiva que alterna desejo e realização, encontro e partida, mas não tem
dúvidas quanto a ser amada. Muitas vezes expressando frustração, momentos de abandono,
35
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 139.
99
ela contudo não expressa desespero. Seu amor é alegre, confiante e retribuído por seu noivo.
Mesmo sabendo da distância entre Criador e criatura, seu amor é tão grande que, em certos
momentos de êxtase, ela esquece a diferença entre eles e se percebe uma igual. Quando o
amado está ausente, ela anseia por ele e o busca em suas preces, mas sua atitude básica é a de
espera, ainda que não se trate de uma espera passiva. Antes de tudo ela busca a felicidade que
resulta da crescente intimidade alcançada no “casamento espiritual”.
Sua união é vista como frutífera: ela se torna “mãe” para as virtudes e para os
filhos espirituais, que podem incluir os pobres e doentes dos quais ela cuida, os
discípulos que confiam em sua orientação e os beneficiários de suas preces.
Embora anseie constantemente pela união (êxtase), ela se contenta em se
ocupar, na ausência de seu noivo, com suas obrigações “maternais” (obras de
caridade).
36
O “eu cortês”, por outro lado, pode ser expresso através do fin amant masculino
tradicional ou de sua parceira feminina, a amie. O fin amant, tal como os trovadores
expressam, vive um amor não-realizado e atormentado pelo desejo. Idealizando seu objeto de
amor, ele a vê como infinitamente superior, mas inclinada a ser emocionalmente distante e
caprichosa, o que o faz sempre duvidar da reciprocidade de seu amor. Seu discurso é
pontilhado por uma ambivalência circular: em seu lamento, ele alterna a adoração sem limite
e a abjeta submissão à amada com momentos de ódio e rebelião para novamente expressar o
amor melancólico que o subjuga. O fin amant, ao contrário da “noiva”, não espera
simplesmente por sua amada, mas a corteja, oferecendo seus serviços, em geral dolorosos,
humilhantes e prolongados. Em relação ao amante divino, esses serviços abarcam as mesmas
experiências já descritas da “maternagem nupcial” acrescidos de exercícios ascéticos. A
grande diferença é que tais serviços são, nesse contexto, um meio de obter o amor e não a
36
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 144.
100
expressão de um amor realizado. Sua compensação não se encontra na esperança de
recompensa, mas no reconhecimento de ser um dos poucos nobres corteses capazes de
cumprir as altas exigências do fin amour.
37
Enquanto nos poemas e canções a dama é apenas um ponto focal para a retórica
amorosa do poeta, estando ausente como sujeito, a figura da amie mostra algumas mulheres
amantes que não são meros prêmios para o herói masculino. Elas também devem conseguir a
devoção do amado, submetendo-se a testes paralelos de fidelidade e sacrifício. Até certo
ponto, seu amor é realizado, mas seu papel é mais heróico e incerto, menos “maternal” e
protetor que o da “noiva” e possui o colorido do mundo cortês do fine amour.
Assim como o “eu amante” na mística cortês oferecia maior variedade de posições de
sujeito, o amado divino também apresentava várias opções de representação. Cristo e o Noivo
são já figuras familiares utilizadas na Brautmystik. Deus Pai, o Espírito Santo e a Trindade
também aparecem, mas a figura de destaque introduzida na mística béguine é Minne
38
, ou
Dame Amour, figura literária de origem complexa. O latim medieval tinha três nomes para o
amor: amor, substantivo masculino, dilectio e caritas. Tanto os trovadores quanto os autores
místicos do século XII escolhiam personificar o amor como uma figura feminina, Caritas,
com base no texto bíblico “Deus caritas est (1 João 4:8). A figura representava Deus como
mãe e rainha. Na poesia popular, contudo, o amor era personificado como Cupido. Da figura
clássica do deus pagão se originou o figura do Amors ou Dieu d’Amors que tem papel
preponderante nos romances da tradição cortês. Porém, o amour do francês antigo, como o
37
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 144.
38
Hadewijch, que viveu como béguine na primeira metade de século XIII, provavelmente nas proximidades da
Antuérpia, tem Minne como seu tema central. Como ela mesma coloca, Minne é tudo, o verdadeiro sentido da
existência e o poder divino que permeia o universo. Cf. Bernard McGINN, The Flowering of Mysticism: Men
and Women in the New Mysticism – 1200-1350, 1998: 201. De forma semelhante, Metchild
de Magdeburg
(1208-1282), nos sete livros que compõem sua obra em prosa e verso, Das fliessende Lichte der Gottheit,
traduzido para o inglês como The Flowing Light of the Godhead, utiliza o termo minne de várias maneiras:
referindo-se a Deus ou à personificação da Dama Amor e como força ativa através da qual participamos em
Deus e para Ele retornamos. Ela usa descrições eróticas de forma clara e direta para expressar a mutualidade do
desejo, central em sua experiência. Cf. op. cit.: 236.
101
amors provençal, é geralmente feminino e por isso, nos poemas, o Amor personificado e a
Dama amada eram intercambiáveis.
39
Na mística cortês, na qual o sagrado e o secular se encontraram, as figuras
originalmente profanas de Amour e Minne deram lugar a Frau Minne ou Dame Amour como
representação divina. Em geral, essa figura se encontra numa relação de especularidade com a
escritora, espécie de alter-ego, projeção do ideal ao qual todo fin amant aspira, embora
permaneça suficientemente distinta para se engajar num diálogo com o eu da autora. Ela pode,
por vezes, ser percebida como hostil e destrutiva mas, ao final, o amante sempre a ela se
submete.
Essa Minne especular, ou Amor, é uma força irresistível que engole o frágil eu,
“terrível e implacável, devoradora e ardente, flagelo da segurança, origem de
toda alegria e fonte de toda dor.” Minne nunca é a libido crua distanciada de seu
objeto. Se a Alma é possuída pelo Amor, é no ato de se tornar Amor, pois ela
ontologicamente é Amor, espelho do único, ubíquo e voraz Amor. Como força
criadora, Minne separa sujeito e objeto apenas para efetuar uma união mais
consciente.
40
2.4 – A mystique courtoise de Marguerite Porete
Entre as béguines, Marguerite Porete foi a mais crítica em relação à Brautmystik, pois
sua compreensão do crescimento espiritual diferia da de Hadewijch e da de Metchild. É
possível notar em sua obra mística uma tensão considerável entre os elementos béguines e
dionisianos, que resultam numa dialética específica. A própria Marguerite Porete, num verso
quase ao final do livro, reconhece a dificuldade que suas companheiras béguines também
39
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 153.
40
Barbara NEWMAN, op. cit.: 155.
102
poderiam ter para compreender a liberdade da alma aniquilada em sua obra
41
. Ainda assim,
em seu diálogo duplo com a literatura sagrada e profana, Porete mistura a exegese dos textos
sagrados com uma reapropriação original dos principais elementos da tradição cortês,
utilizando o canto e o romance cortês para ilustrar sua definição do Amor, cuja supremacia no
Miroir é incontestável. Já na canção de abertura, Marguerite Porete assinala o papel do Amor
em seus ensinamentos e como chave para a leitura de sua obra:
Theologiens ne aultres clers,
Point n’en aurez l’entendement,
Tant aiez les engins clers,
Se n’y procedez humblement;
Et que Amour et Foy ensement
Vous facent surmonter Raison,
Qui dames sont de la maison.
... Humiliez donc voz sciences
Qui sont de Raison fondees,
Et mettez toutes vos fiances
En celles qui sont donnes
D’Amour, par Foy enluminees.
Et ainsy comprendez ce livre
Qui d’Amour fait l’Ame vivre.
42
No prólogo do Miroir, utilizando-se de um romance cortês famoso na época, o Roman
d’Alexandre, Marguerite Porete compara a sua experiência do fin amour com a aventura da
41
Amis, que diront beguines, et gens de religion, / Quant ilz orront l’excellence de votre divine chançon? /
Beguines dient que je erre, prestres, clers, et prescheurs, / Augustins, et carmes, et les freures mineurs, / Pource
que j’escri de l’estre de l’affinee Amour. / Non fais sauve leur Raison, / Qui leur fait a moy ce dire.” Cf.
Miroeur: 344.
42
Mirouer: explicit, página 8. Teólogos e outros clérigos, vós aqui não tereis o entendimento ainda que tenhais
as idéias claras, se não avançardes humildemente; Amor e Fé conjuntamente vos farão superar a Razão, pois são
as damas da mansão. ... Tornai humildes todas as vossas ciências que pela Razão estão asseguradas; Colocai
sobretudo vossa confiança naquelas que o Amor vos pode dar, e que a Fé sabe iluminar: Assim compreendereis
esse livro que, por Amor, faz a alma viver.
103
nobre princesa que se apaixona pelo rei Alexandre, ao qual não conhecia e que vivia em um
reino distante. Para se consolar de sua dor, a princesa manda pintar o retrato do rei – seu
espelho imaginário desse amor distante.
... Por agora, compreendei com humildade um pequeno exemplo do
amor mundano e aplicai-o paralelamente ao amor divino:
Era uma vez uma donzela, filha de um rei de grande e nobre coração, e
nobre coragem também, que vivia num reino distante. Aconteceu que essa
donzela ouviu falar da grande cortesia e da grande nobreza do rei Alexandre e
logo passou a amá-lo em virtude do grande renome de sua gentileza. Contudo
essa donzela estava tão distante de seu grande senhor, em quem fixou seu amor,
que não o podia ver ou ter. Estava então inconsolável, pois nenhum amor exceto
esse a satisfaria. Quando viu que esse amor longínquo, tão próximo dentro dela,
estava tão distante externamente, a donzela pensou consigo mesma que poderia
confortar sua melancolia imaginando alguma figura de seu amor, que
continuamente teria em seu coração. Ela mandou pintar uma imagem que
representava o semblante do rei que amava, a mais próxima possível daquela
que se apresentava a ela em seu amor por ele e no afeto amoroso que a havia
capturado. E por meio dessa imagem e de outros artifícios, ela sonhava com o
rei.
43
Em resposta ao exemplo do fin amour citado por Amor, a Alma que escreve o Miroir
diz:
Eu vos direi uma coisa: ouvi falar de um Rei de grande poder, que era por gentil
cortesia, por grande cortesia de nobreza e generosidade, um nobre Alexandre.
Mas ele estava tão distante de mim, e eu dele, que não sabia como me consolar.
E para que eu me lembrasse dele, Ele me deu esse livro que representa de
alguma maneira o seu amor. Contudo, ainda que eu tenha a sua imagem, não
estou menos num país estranho, distanciada do palácio onde vivem os mais
43
Mirouer: Prólogo: 16-33.
104
nobres amigos desse Senhor, que são completamente puros, perfeitos e livres
graças aos dons desse Rei com quem permanecem.
44
É evidente que mesmo que Marguerite Porete não conhecesse a Régle, certamente
conhecia o mundo do romance cortês e o grand chant courtois. A imagem do amado distante
é freqüente nos romances corteses, bem como a exaltação do estado de anseio. O Amor, Rei,
Deus, é o sujeito doador do livro, e a expressão “il me donna ce livre qui represente en
aucuns usages l’amour de lui mesmes
45
sugere o amor da alma pelo Rei divino, do Rei pela
alma e do Rei por si mesmo. Contudo, a analogia entre os dois textos é parcial. Tanto a
donzela quanto a alma vivem longe do rei, que jamais viram e começam a amar por ouvir
falar. Ambas, infelizes em sua solidão, buscam meios de se aproximar de seu Senhor. Porém,
enquanto a donzela, da qual Alexandre ignora a existência, faz com que seja pintado um
retrato dele segundo a representação de seu amor por ele, a alma recebe a sua “imagem”
diretamente do Rei, sob a forma de um livro, o que mostra a reciprocidade do amor divino.
46
A alma se mostra confiante de que sua experiência subjetiva do amor é retribuída e de
que o Rei lhe deu uma imagem de seu amor. Na teologia mística de Porete, assim como no
pensamento cristão tradicional, Deus está identificado com o amor, portanto uma
representação de seu amor é uma representação do próprio Deus. Com isso a autoria do livro
torna-se também ambígua, pois ora é a Alma que o escreve ora é Deus ou Amor que dá à alma
a imagem interna que é externalizada no livro e que, em certos momentos, chama para si a
autoria do mesmo
47
. Qualquer deficiência que transpareça na obra é atribuída à distância entre
o amante e o amado, que torna necessária a representação ou imagem. Por outro lado, desde o
44
Mirouer: Prólogo: 34-44.
45
Mirouer: 1: 39-40.
46
Catherine M. MÜLLER, Marguerite Porete et Marguerite d’Oingt de l’autre coté du Miroir, 1999: 77.
47
Mirouer: 2: 3-4.
105
início fica clara a identificação de Dame Amour com Deus: “Amor: Eu sou Deus, diz Amor,
pois Amor é Deus e Deus é amor e essa Alma é Deus por condição do Amor”
48
No Miroir, Marguerite Porete mostra a pertinência do fin amour como ilustração do
amor perfeito entre a alma e Deus. A própria locução de fine amour
49
aparece várias vezes no
texto: “Ficai certa, Razão, pois ninguém o compreende senão somente aqueles a quem o fine
amour chama.”
50
Os temas principais da literatura cortês e os atributos do fin amour são
encontrados em seu livro. Porete enfatiza a cortesia ou nobreza de origem e de coração do
amante, que inclui sua boa reputação, sua liberdade, sua generosidade, sua devoção total e sua
humildade totalmente sincera. Ela apresenta ainda o enamoramento da Alma, no prólogo, sua
doença de amor causada pela ausência do Amado (a) e a criatividade inspirada pelo amor.
51
O
ideal de Marguerite Porete, a alma livre e aniquilada, dá tudo o que é e tem ao seu Amado,
sans nul pourquoy. Espelhando os atributos da domna cortês, que por vezes é cruel e
ciumenta, Porete chega a chamar Deus de “Treshault Jaloux”, já que ele toma da alma até seu
próprio eu para lhe dar em troca uma “magistrale franchise”, a verdadeira liberdade
52
.
Porete também utiliza as imagens do ravissememt, referindo-se à “Centelha e Luz
arrebatadora que se junta a ela, segurando-a bem perto”
53
ou ao “Mais elevado Arrebatador
que a toma e se junta a ela na essência do Amor divino no qual ela se funde.”
54
Embora as
regras do amor cortês e da cortezia exijam a discrição e a mezura, que evitam o excesso de
sentimento e de comportamento, muitas vezes o amante cortês violava esses parâmetros,
comportando-se de maneira excessiva. Para Marguerite Porete, a alma abandona toda
48
Mirouer: 21: 44-47.
49
Em francês moderno a expressão utilizada é fin amour, porém, no francês antigo do Mirouer se escrevia fine
amour, forma que mantivemos ao citar Porete.
50
Mirouer: 9: 34-35.
51
Catherine M. MÜLLER, Marguerite Porete et Marguerite d’Oingt de l’autre coté du Miroir, 1999: 122.
Müller também assinala a utilização que Porete faz do vocabulário cortês, ao qual atribui um valor religioso.
Entre as palavras que freqüentemente aparecem na linguagem poretiana estão os termos doux, vilain, lignage e
joy utilizadas no discurso cortês.
52
Mirouer: 71: 7-11.
53
Mirouer: 68: 7-8.
54
Mirouer: 80: 35-37.
106
discrição, pois “Esse é Amor, e o Amor pode fazer o que ela quiser. Medo, discrição e Razão
nada podem dizer contra o Amor.”
55
A linguagem cortês de Porete se funde com a linguagem
apofática da união mística, na qual a união com o Amor e dentro do Amor é um êxtase que
inclui imagens como o desnudar-se, a nudez, a perda da discrição, a perda da vergonha e o
abandono. A alma abandona sua honra, despindo-se de sua vontade, e a união com o amante
divino acontece em nudez total.
Na concepção das outras béguines citadas, a união nupcial acontecia no início da
jornada mística, mas apenas como prenúncio da consumação futura. Após a união inicial,
Deus ou Minne seduz a alma, aliciando-a para um compromisso total que, mais tarde, se
mostra amargo e doloroso. Minne ou o Noivo então se retiram e só resta à amante provar sua
lealdade por meio de um longo período de sofrimento que, para ela, equivale à “humanidade
de Cristo”.
56
Para Marguerite Porete, esse doloroso serviço e as mortificações que
compreende são apenas os primeiros estágios da alma distanciada da corte divina. No quarto
estágio, inebriada de Amor, a alma abandona as obras e as virtudes.
No quarto estágio, a Alma é absorvida por elevação do amor em deliciosos
pensamentos graças à meditação, e abandona todas as obras externas e a
obediência aos outros graças à elevação da contemplação; isso torna a alma tão
desdenhosa,
57
tão nobre e tão deliciosa que ela não suporta ser tocada por nada,
exceto pela pura delícia do Amor, que a torna singularmente feliz e fascinada, e
55
Mirouer: 95: 16-18.
56
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 151.
57
No Mirouer, o termo usado por Marguerite Porete é dangereuse. Na tradução de Huot de Longchamps
encontramos fragile; em Luis Combet, vulnerable; na tradução de Ellen Babinski para o inglês, impenetrable; e
no texto de Barbara Newman, disdainful. Segundo Catherine M. MÜLLER, este último termo parece traduzir
melhor o sentido que reveste a palavra danger na tradição cortês, na qual se liga ao termo dongier que, no
vocabulário feudal, designa o suserano e, por extensão, aquele que exerce um certo poder sobre o seu vassalo. O
amante vivia em amereus dangier, do qual tentava escapar para se tornar hors dangier (tornar-se livre).
Catherine acredita que, no contexto do Mirouer, o termo dangereuse denota ironia, sugerindo que a alma
acredita ter chegado ao cume de sua busca, quando ainda faltam dois estágios para atingi-lo. Esse atributo
designaria sua nobreza, sua superioridade e poder, mas também o desdém que vem a reforçar o adjetivo
orguilleuse utilizado em seguida. Marguerite Porete estaria, assim, de modo irônico, mostrando a experiência
ilusória da alma que ainda não está aniquilada e que portanto, não é inteiramente livre, cortês e digna do fine
amour. Cf. Marguerite Porete et Marguerite D’Oingt de l’autre coté du Miroir, 1999: 124/125. Essa
argumentação nos levou a manter a tradução original de Newman.
107
orgulhosa da abundância do amor que a faz senhora da resplandecência, isto é,
da radiância de sua alma ...
58
Esta não é, contudo, a meta final. Nesse estágio, a alma está tão inebriada pela doçura
e pelo brilho do Amor que é enganada pela ilusão do amor perfeito, o qual na realidade é um
amor-próprio, não vendo mais nada além de seu amor. Em seu orgulho pela abundância de
amor e ao se ver como a senhora da resplandescência, a alma se encontra totalmente
enganada. Porete diz que o amor, ou seja, os movimentos afetivos e psicológicos que a alma
partilha com o amor cortês, “mantém a alma enganada pela doçura do prazer.”
59
Ela não
percebe que há outros dois estágios mais “nobres” e “elevados”.
60
Quando se espera uma imersão nas delícias da Brautmystik ou do amor cortês,
Marguerite Porete vai além desse estágio. A alma ainda não se tornou livre, pois para isso é
preciso que se despoje dos últimos traços de auto-referência. Refletindo sobre esse estado de
amor psicológico, que ela associa com a vida do espírito, Porete comenta que “ela (a alma)
pensa que possui esse amor por Deus, por quem ela é ferida; mas, na verdade, é a si mesma
que ela ama, sem o saber ou perceber.”
61
A alma que é chamada para a vida verdadeiramente
nobre e livre, ao atingir esse estágio de inebriação no Amor, não retorna para os exercícios
anteriores: oração, jejum, missas, sermões e obras de virtude. O próprio Amor diz: “Como há
uma grande diferença entre a dádiva do bem-amado para a bem-amada por meio de um
intermediário e o que é dado do bem-amado à bem-amada sem intermediário!”
62
A alma,
portanto, abandona as virtudes e segue adiante, passando por uma “morte do espírito” e
“caindo do amor no nada”, onde se encontra num estado de permanente união com Deus.
58
Mirouer: 118: 66-73.
59
Mirouer: 118: 88-89.
60
Mirouer: 118: 87-88
61
Mirouer: 133: 9-12.
62
Mirouer: 5: 23-25.
108
“Seus dias como fin amant ou como amie terminaram, pois ela própria se tornou o fin amour.
Daqui em diante ela é una com a Trindade, Deus, por direito do amor.”
63
Contrariando a tradição do grande canto cortês no qual a domna é inatingível e o culto
amoroso é permanente, Marguerite Porete mostra uma alma cujo serviço cessa após os três
primeiros níveis de elevação espiritual, pois ela se transforma naquele/a que ela ama, por
meio de uma união de amor.
Agora ouvi, Razão, diz Amor, para melhor entender vossa questão. Aquilo que
queima não tem frio, e o que nada não tem sede. Assim uma tal Alma, diz
Amor, está tão inflamada na fornalha do fogo do Amor que se tornou
propriamente fogo, daí porque ela não sente nenhum fogo. Pois ela mesma é
fogo através do poder do Amor que a transforma no fogo do Amor. ... E ela é
comum a tudo pela generosidade da caridade perfeita, e está só em Deus através
da iniciativa divina do fine Amor.
64
2.4.1 – A abjeção em Marguerite Porete
Segundo Newman, um dos mais influentes teóricos do amor foi Richard de St.-Victor,
contemplativo vitorino do século XII. Seu último trabalho, que as béguines provavelmente
conheciam, foi um estudo sobre a obsessão erótica, “Sobre os quatro graus da caritas
violenta”, no qual afirma que, embora a “caritas violenta” seja o oposto da paixão sexual
indomada, ambas são psicologicamente idênticas. Central em ambas é a descida do amante
para a abjeção, que termina com a mais completa negação do eu.
65
Independentemente de seu objeto, de acordo com Richard de St.-Victor, todos os
amantes experimentam o mesmo conjunto de sentimentos dolorosos enquanto progridem no
63
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 152.
64
Mirouer: 25: 9-28.
65
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 159.
109
“amor que fere” ao longo dos vários graus de obsessão. Começando com o desejo, o amor
progressivamente paralisa o pensamento e a ação até o ponto em que o amante se torna
totalmente incapacitado e não pode mais se satisfazer nem mesmo na presença do amado.
Nesse ponto, o desejo torna-se infinito e muitas vezes se transforma em seu contrário,
envolvendo o desespero e o ódio, pois nada pode satisfazer o desejo amoroso mútuo. O mito
de Tristão e Isolda, citado por Denis de Rougemont como paradigmático da experiência
erótica ocidental, enfatiza o anseio místico dos amantes pelo infinito e também o caráter anti-
social e a busca da morte implícitos em seu amor.
66
O amante de Deus também deve enfrentar
esse amor sem esperança de paz e que impele para a morte nos mais altos estágios da vida
mística.
Para Richard de St.-Victor, assim como para as béguines Metchild e Hadewijch, após
o estágio de arrebatamento e êxtase, há uma descida ao “amor humilde”, à semelhança de
Cristo, expresso em trabalhos de compaixão e em penitências em prol dos pecadores. Entre a
maioria das místicas do fim da Idade Média, era aceito que qualquer forma de dor servia para
moldar o corpo do amante à imagem do Cristo crucificado. Toda experiência corporal podia
servir a essa finalidade. Assim como o corpo ferido de Cristo tornou-se a marca da presença
de Deus no mundo criado e sua redenção, as mulheres santas, com seus corpos sofredores,
partilhavam o sofrimento e a redenção de Cristo. Por meio de seu ascetismo corporal extremo,
jejuns, flagelações e seus feitos paramísticos, entendia-se que elas não só santificavam seus
próprios corpos, mas também curavam, santificavam e ajudavam os outros, particularmente os
homens.
67
66
Denis de ROUGEMONT, História do amor no Ocidente, 2002: 31/32.
67
Caroline BYNUM cita as mais bizarras formas de ocorrências corporais associadas às mulheres: estigmas,
incorruptibilidade do cadáver após a morte, acontecimentos miraculosos, lactações e gravidez mística, transes
catatônicos, sangramentos extáticos, comer e beber pus etc. Cf. Fragmentation and Redemption: Essays on
Gender and the Human Body in Medieval Religion, 1992: 194. Os exemplos mais extraordinários da santificação
da carne através do ascetismo e da flagelação extrema são os de Marie d’Oignies, que cortou um porção
considerável de sua própria carne, e de Christina, a Extraordinária, que se atirou em fornos, em rios congelados,
em água fervente, entre outras coisas. Mesmo assim, seu corpo permaneceu intacto. Cf. Amy HOLLYWOOD,
“Suffering Transformed” in Meister Eckhart and the Beguine Mystics, 2001: 90, nota 6.
110
O objetivo final era destruir qualquer senso de ipseidade, qualquer eu exceto o divino.
Era amplamente reconhecido que o mais efetivo meio de união era o mais doloroso, pois esse
foi o meio escolhido por Cristo. Tanto a pobreza quanto a perseguição eram intensamente
buscadas. Além disso, já que o amante não podia ter nenhuma alegria exceto em seu amado, o
sacrifício supremo estava na escolha da ausência sobre a presença.
Os escritos das três béguines, Metchild, Hadewijch e Marguerite Porete, mostram uma
intensa consciência da abjeção amorosa expressa por meio da dor, da humilhação, da
perseguição, da auto-abnegação e do exílio.
68
Porém, em Marguerite Porete encontramos uma
nova variante desse tema. Ao invés de “abraçar a ausência do Amado como uma união mais
perfeita, Porete escolhe estar ela mesma ausente. Ela desocupa o espaço psicológico que
ocupava de uma vez e para sempre, fazendo nele uma corte para o fine amour.”
69
Esse
“suicídio metafísico”
70
é expresso por ela em duas versões, uma filosófica e outra cortês.
Neste momento, nos ocuparemos desta última.
Ao atingir o quarto estágio do êxtase amoroso e perceber seu engano, a Alma se dá
conta da necessidade de extinguir toda vontade e também o seu amor para atingir o estado de
união que aspira. Para se tornar verdadeiramente livre, a alma dispensa as obras, as virtudes e
as mortificações, mas imagina uma série de “demandes d’amour” cruéis, para avaliar o quão
68
Barbara Newman assinala dois tipos de pensamento sobre o status da abjeção das místicas. De acordo com a
maioria das interpretações teológicas, o que elas experimentam é de fato o infinito hiato ontológico entre o
Criador e a criatura, transposto somente pelo amor divino. As percepções do nada, da alienação e da união são
descritas metaforicamente em termos variáveis, mas são em certo sentido literalmente verdadeiros. A maioria
dos intérpretes, seguindo as normas pós-medievais para a verificação da experiência mística, se sentem mais
confortáveis com as formulações de Hadewijch e de Metchild, que podem ser assimiladas aos conceitos místicos
clássicos como a infusão de graça e “a noite escura da alma”, do que com as formulações de Marguerite Porete –
aniquilação e deificação da alma. Já os intérpretes psicanalíticos, menos inclinados a lerem os místicos em seus
proprios termos, vêem em seus textos uma auto-diminuição de mulheres masoquistas frente ao masculino
dominante ou uma forma de narcisismo feminino. Newman acrescenta que as místicas não buscavam uma
espécie de auto-destruição, mas realização, e que desejavam a meta estabelecida pelos teóricos do amor de seu
tempo: “a condição na qual amante e amado não são mais dois eus separados, mas um só.” Essa compreensão do
amor como fusão requeria que elas negassem tanto o corpo quanto o eu individual, separado e, para esse fim,
eram mantidos tanto a dor quanto o prazer, tanto o exílio quanto o êxtase. Cf. From Virile Woman to
WomanChrist, 1995: 158/159.
69
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist, 1995: 163.
70
Ibid.
111
completa é a sua submissão ao seu Amado, demandes que visam uma mortificação do desejo
e que a levam a abandonar o seu amor humano. É apenas ao consentir no impensável e após a
rendição incondicional às provas impostas pelo Amado que ela pode receber dele uma
recompensa incondicional.
71
Nesse sentido, Marguerite Porete tanto utiliza quanto desconstrói
a tradição cortês, retratando provas de amor nas quais a alma é de tal maneira desafiada por
Amor que termina por ser levada à aniquilação.
Considerei em minhas reflexões como se Ele próprio estivesse me
perguntando como eu faria se eu soubesse que lhe agradaria mais se eu amasse
outro mais do que a Ele. Frente a isso meus sentidos me falharam, e eu não
sabia o que responder, nem o que querer, nem o que negar; mas respondi que
ponderaria sobre isso.
Então Ele me perguntou como eu faria se Ele amasse outra mais do que a
mim. E aqui me falharam os sentidos e eu não sabia o que responder, ou querer,
ou negar.
E novamente Ele me perguntou o que eu faria e como eu lidaria se soubesse
que Ele queria que algum outro me amasse mais do que Ele. E novamente meus
sentidos falharam, e eu não sabia o que responder, não mais do que antes ...
72
É dessa maneira que a vontade da alma chega ao fim, pelo martírio tanto de seu desejo
quanto de seu amor e ela cai no nada. O Amor exige que a alma aniquile o próprio amor.
Tudo o que é próprio da alma, tudo o que é criatural, deve ser destruído para a obtenção do
estado de liberdade para o qual o Amor a chama. Não é à toa também que Porete nomeia seu
amado de LoinPrés, significante que é em si uma contradição, indicando uma presença que é
também uma ausência. Ele permanece com um desejo de presença que nunca é totalmente
satisfeito, um desejo indefinidamente adiado, que se tornaria insaciável se não fosse pela
apófase do desejo presente no texto. A narrativa nomeia o desejo no prólogo, desejo que o
71
Peter DRONKE, Women Writers of the Middle Ages, 1996: 219.
72
Mirouer: 131: 78-90.
112
diálogo desconstrói ao final da obra. De certa forma, mantendo a coerência com seu programa
apofático, Marguerite Porete apresenta uma crítica sutil à mística do amor, que ela utiliza, mas
que subverte ao longo de sua obra. Embora descreva os estágios de ascensão ou, de fato, de
descida até Deus, utilizando uma linguagem erótica – o afogamento no mar de amor –, ela o
faz apenas para marcar a inadequação do amor como último estágio. Porete acreditava que
muitos de seus contemporâneos permaneciam aprisionados a esse estágio de inebriação
apaixonada. Essas são as “almas perdidas”, que ao invés de aceitarem a ausência como uma
parte intrínseca da união com Deus, tentam trazer de volta a experiência desse encontro por
meio do sofrimento, do ascetismo, das obras e da contemplação.
Ao final, os termos que permitem uma relação psicológica com Deus são queimados,
afogados e aniquilados precisamente por esse amor que se torna nesse momento o Amor do
único Amante que permanece: Deus. Explicando à Razão qual a vontade que trabalha na alma
aniquilada, Dame Amour diz:
Não é a sua vontade que deseja, mas é a vontade de Deus que deseja nela.
Porque essa alma não permanece no amor que impulsiona sua vontade para
algum desejo. É o Amor que permanece nela, que a privou de sua vontade e,
portanto, o amor realiza sua vontade com ela, e o amor trabalha nela sem ela,
por isso nenhuma ansiedade permanece nela.
73
A abjeção de Marguerite Porete é, num sentido ontológico, absoluta. Porete exige que
a alma se aniquile por meio da destruição de sua vontade. A “mendiant creature”, como ela se
auto-intitula, que ansiava por Deus nessa vida e não o encontrava, torna-se uma alma
aniquilada e como tal ela não mais existe. A alma aniquilada e o Fin Amour não são mais eus
separados, mas permanecem indistintos em tranqüilidade. Em contraste com o estado
precedente de amor violento e de luta com sua vontade, a transformação da alma em Amor
73
Mirouer: 7: 20-26.
113
nesse estágio é acompanhada de paz. “A relação erótica de uma espiritualidade menos
madura, agora tornou-se o Uno”.
74
Por isso, para Porete, não há a necessidade de tormentos
corporais e demonstrações públicas de humilhação, comuns nas vidas dos santos e de outras
béguines.
Em seu relato dos movimentos místicos, Porete repetidamente reduz o papel do corpo,
tão central nas descrições da santidade feminina durante o século XIII. Ela claramente ignora
e desenfatiza o papel do corpo e das práticas corporais no movimento de aniquilação, pois
estabelece a neutralidade moral da corporeidade. Porete rejeita os caminhos do sofrimento do
corpo e da alma. Em contrapartida, exige a renúncia de tudo que é criatural. Só assim é
possível para a alma superar o sofrimento causado pela aparente ausência de Deus – por meio
da aniquilação que torna a presença divina aparente. Quando a alma reencontra seu
fundamento incriado no divino, o sofrimento e a alienação são suplantados, e ela é
transfigurada no amor.
75
É somente dessa forma que a alma recebe asas, como os serafins
76
ela pode deixar o “étrange pays” e retornar à corte de seu amado Rei, pois a aniquilação é
uma “terra” para onde as almas tristes e caídas podem retornar. Nessa “terra”, a alma não tem
mais nenhuma “relação” com Deus, nem mesmo de amor. Esse é o resultado final de todo o
seu amor.
2.5 – O sufismo, o amor e a linguagem de união
No sufismo, a linguagem de amor utilizada para expressar a busca por Deus resulta da
interação com a herança cultural pré-islâmica. Embora os escritores islâmicos se refiram à
cultura pré-islâmica como a
Jāhiliyya (período ou condição de ignorância moral), o Corão se
74
Maria LICHTMAN, “Marguerite Porete and Meister Eckhart: The Mirror of Simple Souls Mirrored” in
Meister Eckhart and the Beguine Mystics, 2001: 81.
75
Amy HOLLYWOOD, “Suffering Transformed” in Meister Eckhart and The Beguines Mystics, 2001:108.
76
Mirouer: 5: 17-20.
114
autodenomina um Corão árabe, marcando assim sua imanência dentro do mundo cultural-
lingüístico que se desenvolveu absorvendo a influência da tradição oral da poesia pré-
islâmica, cujos padrões simbólicos mais profundos foram preservados e apropriados. A poesia
amorosa passou a ser um veículo para a expressão do evento de união mística. Nessa
linguagem, os temas da relembrança da amada, da loucura amorosa, da perplexidade, dos
paradoxos que envolvem a identidade das duas partes são recorrentes, bem como os temas da
embriaguez e do amor, sempre ambíguos nas alusões ao amado.
77
A ode, ou qasīda, utilizada na poesia amorosa, legou sua linguagem, temas e estrutura
à literatura sufi. A qasīda foi dividida pela crítica literária medieval em três movimentos
principais que incluíam o nasīb ou relembrança (dhikr) do amor perdido, a jornada, que de
alguma forma prefigura a principal jornada islâmica, a Hajj do Profeta, e a louvação
78
Segundo Sells, o nasīb clássico originou dois gêneros independentes. O primeiro deles é o
ghazal, que contribuiu para a literatura sufi com um conjunto de temas (o namoro insincero e
o olhar mortífero da amada, por exemplo) e o sofisticado uso de duplos sentidos. O segundo é
o poema de amor ‘udhrī, tradição que já mencionamos, no qual a conjunção de eros, loucura e
inspiração é intensificada, e que retrata o poeta-amante que enlouquece (majnūn), vaga sem
destino e perece. Majnūn Layla se tornou o modelo para os sufis, por seu anseio amoroso
infinito.
Em geral, a tradição poética se inspira no caso de amor que iniciava quando as tribos
de beduínos se encontravam nos campos e se rompia quando as tribos se separavam no
esforço anual para buscar outras pastagens. As ruínas abandonadas do acampamento da
amada tornam-se o símbolo que evoca a lembrança da união com ela e de sua ausência atual,
símbolo que origina o poema inteiro. O poeta lembra as estações da jornada da amada em seu
77
Michael SELLS, “The Semantics of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in Judaism, Christianity and
Islam, 1999: 88.
78
Michael SELLS, op. cit.: 90
115
afastamento e as lista como se fossem estações de sua peregrinação. A memória da amada
conduz por fim a um devaneio lírico, com imagens de fontes, de oásis, de animais em
placidez, enfim, do jardim edênico que simboliza a amada perdida.
79
A busca ou “jornada noturna” começava no momento em que o poeta rompia seu
devaneio e se aventurava sozinho através do deserto, seguindo o caminho da amada. Aqui são
evocados o implacável calor do dia, o terror da noite, a fome, a privação, a desorientação da
jornada e o confronto com a mortalidade. O desvanecimento do eu do poeta era
freqüentemente simbolizado pela emaciação do camelo que ele usava como montaria.
Finalmente, a última seção do poema, a louvação, mostrava a reintegração do poeta em sua
tribo e o canto dos valores tribais de generosidade e de coragem na guerra e frente à morte.
80
A poesia amorosa sufi, analogamente, reflete a impotência do sujeito para apreender a
amada, para abarcá-la. A relembrança da amada é fonte inspiradora tanto para o poeta quanto
para o sufi. O poeta que repete, implorando, o nome da amada, chave simbólica da totalidade
que deseja apreender, se reflete no dikhr, a constante relembrança do nome de Deus a que se
dedica o sufi. No nasīb, a infinitude do desejo é modulada pela inabilidade do poeta em
controlar o fluxo de emoção, memória e associação. Uma única referência a um aspecto da
amada perdida – o perfume de seu cabelo, o gosto de sua boca, o brilho de seus dentes ao
sorrir – era o suficiente para originar longas digressões, nas quais se encontra uma
sensualidade velada, mas intensa.
81
Essa infinitude do desejo origina uma retórica digressiva
de descrição da amada, que mascara a inabilidade do poeta em capturar a amada por meio de
qualquer definição de suas características. Quanto mais fala da amada, mais e mais o poema
percorre uma cadeia associativa que se distancia de qualquer imagem dela, até que finalmente
ela é descrita como o jardim perdido.
82
79
Michael SELLS: Approaching the Qu’rán: The Early Revelations, 2002: intr. 8/9.
80
Ibid.
81
Michale SELLS, “The Infinity of Desire: Love, Mystical Union, and Ethics in Sufis” in Crossing Boundaries:
Essays on the Ethical Status of Mysticism, 2002: 199.
82
Michael SELLS, op. cit. 201.
116
Tanto na literatura poética quanto no sufismo, o desejo tende ao infinito. À medida
que a amada se encontra próxima, o poeta fica desorientado ou perde a consciência pela
intensidade da proximidade. O desejo do amante é tão intenso que se e quando se encontra na
presença da amada, ele perde a consciência, ou desmaia, e nunca a vê de fato. Porém, se ela
está distante, o poeta se encontra igualmente num estado de anseio. Ela é “tanto a cura quanto
a doença”. Ao mesmo tempo, esse anseio infinito faz do atlāl - os vestígios do acampamento
da amada - um símbolo do exílio. Em meio à civilização islâmica e no sufismo, as ruínas do
acampamento da amada tornam-se os traços da terra natal perdida. O tema central do Corão,
do deslocamento humano, é espelhado no anseio e no exílio do poeta-amante.
Sells apresenta uma lista das convenções e temas do nasīb que foram apropriados e
transformados na literatura sufi: os traços da permanência da amada perdida; a recriminação à
amada perdida por seu humor e forma continuamente mutáveis; as estações (maqām) da
jornada que a distancia do poeta; as imagens de fertilidade e tranqüilidade provocadas por sua
lembrança nas ruínas desoladas de seu acampamento.
83
Não há para a amada inscrição num
código inteligível. Ela é retratada como constantemente mudando de forma (uma qualidade
atribuída ao jinn), aparecendo ao amante em miragens que o desencaminham e o conduzem à
destruição. Para o amante, a amada encarna esse outro que é silêncio, que é sentido irredutível
a um significado.
A poesia árabe tradicional possui vários termos que podem ser traduzidos por “amor”,
“desejo” ou “paixão”. Os escritores religiosos classificaram as diferentes formas de desejo
segundo o objeto do desejo, utilizando diferentes termos para o objeto terreno e para o objeto
espiritual. Contudo, na poesia amorosa, essas categorias não se sustentam, já que é uma
característica primordial do desejo romper todos os limites, inclusive o limite entre categorias
de objeto. Alguns místicos, Ibn’Arabī entre eles, usam esses termos de um modo que
83
Michael SELLS. Approaching the Qu’rán: The Early Revelations, 2002: intr. 9.
117
confunde as divisões entre o terreno e o espiritual.
84
Além disso, a tradição poética e a
tradição sufi compartilham o adab
85
, a cortesia, o conjunto de regras de comportamento, a
sensibilidade ou discrição que não deve ser violada com a divulgação do segredo da relação
entre amante e amada. Divulgar ou descrever o segredo entre o amante e a amada seria uma
traição ou violação do adab.
86
A natureza central e secreta da união é retratada na qasīda, criando uma semântica
alusiva. A união com a amada, nunca descrita e transcendendo todas as formas de referência
direta, é imanente ao longo de suas seções, que são governadas pela relembrança da união. Se
a ode tradicional começa com a perda da união, a que se segue o ordálio, a jornada, o encontro
com a morte e a reintegração na sociedade, a poesia sufi promove uma relocação teológica da
união que cria um reverso na direção, com a união alcançada ao final da jornada.
As estações (maqāmāt) da jornada da amada que a distancia do poeta tornam-se
as estações (maqāmāt) da jornada do sufi para o amado divino. Os humores e
estados (ahwāl) flutuantes da amada também se tornam as “graças” flutuantes
do amado divino e os estados espirituais alternantes do sufi. A relembrança que
guiava o poeta distante da amada torna-se a relembrança que guia o místico para
84
Michael SELLS, “Tres seguidores de la religión del amor: Nizâm, Ibn’Arabi y Marguerite Porete” in Mujeres
de Luz, 2001: 138.
85
Dentro da tradição islâmica e árabe, o termo adab, traduzido como cortesia, implica a atitude correta em
qualquer situação, seja em questões de doutrina, no caminho da iniciação, na prática religiosa ou no
comportamento relativo a qualquer ser. O adīb é aquele que conhece e respeita o adab. Ibn’Arabī distingue
quatro tipos de adab: (1) adab da lei (adab al-sharī‘a) – o adab que Deus nos ensina por meio da revelação e da
inspiração; (2) adab do serviço (adab al-khidma) – que tem como modelo a etiqueta real, mas dirigido a Deus;
(3) adab da verdade – que procede da noção corânica de haqq, e que pode ser traduzido como o certo, obrigação,
justiça, coisa verdadeira ou verdade; (4) adab da realidade essencial (adab al-haqīqa) – esta última forma do
adab só leva Deus em conta e. à medida que pressupõe a dualidade, o adab deve ser renunciado. O adab requer
o outro, mas segundo Ibn’Arabī, há uma estação na qual o outro desaparece; o adab então cessa, pois não há
mais nenhum outro. Cf. Denis GRIL, “Adab and Revelation” in Muhyiidin Ibn’Arabi: A Commemorative
Volume, 1993: 228/229.
86
Ainda que os valores e a vida dos poetas e dos sufis fossem diferentes, eles se recusavam a manter certo tipo
de questionamento sobre o relacionamento com o amado. Um exemplo disso é a relação entre Rumī e Shams,
“ambos são recíproca e simultaneamente amante e amado, e cada um é para o outro a personificação do Amado
por excelência”. Cf. José Jorge de CARVALHO, “Introdução” in Jalal ud-Din RUMI - Poemas Místicos: Divan
de Shams de Tabriz, 1996: 28. SELLS cita o início de uma ode do poeta pré-islâmico ‘Aqama para ilustrar a
natureza do segredo restrito aos amantes, partilhado por poetas e sufis: “Aquilo que sabias, dado em confiança, é
ainda um segredo? Ou foram os laços dela contigo cortados, no dia em que ela te deixou?” Cf. “The Semantics
of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in Judaism, Christianity and Islam, 1999: 91.
118
ele ou ela. Similarmente, a intenção e a motivação (himma), que conduziam o
poeta para fora da relembrança, para longe da amada e de volta à vida tribal,
conduzem o sufi para a união com o amado divino. ... O poeta louco de amor,
vagando e perecendo no deserto, torna-se o sufi, enlouquecido pelo amor
divino, transcendendo o aprisionamento da razão, da sociedade e do ego.
87
Ao final da jornada, quando descrevem a fase da união mística, os sufis a comparam
ao apagamento dos traços do eu individual e evocam os traços da permanência da amada nos
acampamentos, cuja descrição inicia a qasīda. O poeta, que perde a razão em virtude da união
e da separação da amada, se confronta com o mesmo paradoxo, pois a união envolve a perda
dos limites normais do eu. De forma semelhante, o sufi, em sua fanā, não encontra mais um
sujeito humano individual a quem se possa referir como alguém que alcançou a união.
88
2.6 A dialética do amor em Ibn’Arabī
Já mencionamos a importância do conhecimento no caminho místico islâmico e no
pensamento de al-Shaykh. Sua obra enfatiza o gnóstico
89
ou o conhecedor como aquele que
87
Michael SELLS, “The Semantics of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in Judaism, Christianity and
Islam, 1999: 92
88
Junayd, famoso místico sufi, diz: “O Amor é a aniquilação do amante em Seus atributos e a confirmação do
Amado em sua essência.” Cf. Annemarie SCHIMMEL, Mystical Dimensions of Islam, 2000: 134.
89
Em sua obra, Ibn’Arabī usa o terno ‘arif, que muitas vezes é traduzido como gnóstico. Pablo BENEITO diz
que a palavra gnóstico se deriva do verbo latino gnoscere, “conhecer, significando aquele que realiza a gnose ou
sabedoria suprema”. Nesse sentido a tradução de ‘arif como gnóstico estaria correta. Contudo, Beneito lembra
que, no castelhano, assim como normalmente acontece no português, o termo se refere ao adepto do gnosticismo,
ou como relativo ao gnosticismo, diferindo de seu sentido no árabe e podendo gerar confusões históricas. Por
isso, Beneito recomenda traduzir o termo por “conhecedor” para se referir aos que atingem o conhecimento
divino. Cf. “Acerca del conocimento de las alusiones” in No limiar do mistério: Mística e Religião, 2004: 28,
nota 73. Na Conferência de Messina sobre as origens do gnosticismo, em 1966, estabeleceu-se em primeiro lugar
uma distinção entre gnose e gnosticismo. O termo gnose foi definido como “um conhecimento dos mistérios
divinos reservado a uma elite”, o que, segundo Roelof van den BROEK, implica que pode ser usado para vários
tipos de doutrinas esotéricas e para experiências místicas, ainda que tal definição tenha tornado o termo muito
vago. O colóquio de Messina reservou o termo gnosticismo (cunhado na França do século XVIII, com conotação
pejorativa) para os sistemas gnósticos cristãos dos séculos II e III d.C. Broek usa o termo gnosticismo para
indicar as idéias ou sistemas coerentes que se caracterizam por uma visão totalmente negativa do mundo visível
e de seu criador e pela suposição de uma centelha divina no homem, seu eu interno, que se tornou aprisionada
dentro do corpo material como resultado de um trágico evento no mundo pré-cósmico, e que só pode escapar
para sua origem divina por meio da gnose salvífica. Cf. “Gnosticism and Hermetism in Antiquity: Two Roads to
119
obtém o conhecimento mais perfeito de Deus. Contudo, esse conhecimento é desvelado por
Deus, sem a intermediação da reflexão ou de qualquer outra faculdade.
O verdadeiro conhecimento não é dado pela reflexão, nem por aquilo que os
pensadores racionais estabelecem por meio de seus poderes reflexivos. O
verdadeiro conhecimento é apenas aquilo que Deus lança no coração do
conhecedor. ... Aquele que não tem o desvelar, não tem conhecimento. ... Não
há nenhum conhecimento exceto o que vem de Deus, pois só Ele é o
Conhecedor.
90
Ainda assim, Ibn’Arabī foi um dos sufis que mais analisou o fenômeno do amor, tanto
como parte de sua doutrina, quanto como místico-poeta, ele mesmo atingido pela paixão que
canta em seus versos.
Eu mesmo experimentei a infinita sutileza que se pode encontrar no amor.
Sentes um afeto intenso (‘ishq), uma paixão penetrante (hawā), um desejo
ardente (shawq), um poder do amor (gharām), um esgotamento total (nuhūl),
uma impossibilidade de conciliar o sono e de saborear a comida. Não sabes em
quem e por quem ocorre. Teu Amado não se mostra a ti de maneira clara. Essa é
a graça mais deleitável que senti por experiência própria.
91
Utilizando-se de uma dialética muito pessoal, Ibn’Arabī tenta responder o que
significa e como é possível amar Deus. Uma das noções fundamentais do ensinamento
akbariano é a de rahma, palavra que dentro do contexto do Futūhāt se traduz por “amor” e
por “compaixão”. É de rahma, na forma do suspiro do Omnicompassivo
92
que o universo
Salvation” in Gnosis and Hermeticism: From Antiquity to Modern Times, 1998: 4. Nesse sentido, o termo
gnóstico ou gnose, utilizados por Ibn’Arabī, refletem a definição dada à gnose e se distanciam das definições de
gnosticismo.
90
IBN’ARABĪ, Futūhāt (I 218.19) in The Sufi Path of Knowledge, 1989: 170.
91
IBN’ARABĪ, Tratado del amor, 1988: 29.
92
Cf. capítulo 3, no qual o mito de criação akbariano é examinado em maiores detalhes.
120
nasce, é por ele que subsiste e é a ele que retorna. Portanto, para Ibn’Arabī, o amor é o
princípio cosmogônico por excelência.
Dois hadiths
93
são fundamentais na discussão de al-Shaykh sobre o amor, já que o
autor sempre cita o Corão ou os hadiths no início de um capítulo para mencionar o que chama
de “as raízes divinas” da discussão. O primeiro deles é o hadith qudsī
94
do tesouro oculto: “Eu
era um tesouro, mas não
era conhecido, e eu amaria ser conhecido. Eu criei as criaturas e me
fiz conhecido para elas, e assim elas vieram a me conhecer.”
95
No nível macrocósmico, a
criação se origina do amor divino. Do ponto de vista iniciático, o amor e o conhecimento, os
termos fundamentais desse hadith, são distintos, mas inseparáveis e portanto não há razão
para contrastá-los.
96
Uma das características do Amante, possuísse ele uma forma, é
suspirar, já que nesse suspirar é encontrada a fruição do que é buscado. O Sopro
emerge de uma raiz, que é o Amor pelas criaturas, às quais Ele desejou se fazer
conhecido, para que elas pudessem conhecê-lo. Por conseguinte, a Nuvem veio
a ser; ela é chamada o Real Através de Quem a Criação Acontece. A Nuvem é a
substância do cosmos, assim ela recebe todas as formas, os espíritos, e as
naturezas do cosmos; é um receptáculo ad infinitum. Essa é a origem de Seu
amor por nós.
Quanto a nosso amor por Ele, sua origem é a audição e não a visão. São
as suas palavras para nós – enquanto estávamos na substância da Nuvem –
93
Os hadiths são ditos, reflexões ou comentários atribuídos a Muhammad e autenticados como tais por uma
cadeia de testemunhos auditivos diretos.
94
Os hadith qudsī (dizeres sagrados) são categorias especiais de hadith, ditos do Profeta, nos quais Muhhammad
cita as palavras de Deus. A fórmula de referência então é “Muhammad disse que Deus disse”. Cf, Sachiko
MURATA & William CHITTICK, The Vision of Islam, 1994: XXIII.
95
William CHITTICK, The Self-Disclosure of God, 1998: 21. Chittick nos informa que esse dito, que nos textos
sufis é atribuído ao Profeta, é mais conhecido na forma “Eu era um tesouro oculto, então eu amaria ser
conhecido. Por conseguinte, criei as criaturas para que eu pudesse ser conhecido.” Ainda de acordo com
Chittick, os estudiosos dos hadith o consideram forjado. Embora Ibn’Arabī tenha ciência disso, em seu entender
a autenticidade desse hadith foi provada pelo “desvelar”, ou visão do Profeta no mundo imaginal. Portanto, ele
escreve que esse dito “é verdadeiro com base no desvelar, mas não foi estabelecido por meio da transmissão
(naql)”. Cf. The Sufi Path of Knowledge, 1989: 391, nota 14.
96
Claude ADDAS, “A experiência e a doutrina do amor em Ibn’Arabi” por Claude ADDAS. Disponível em
<
http/www.ibnarabisociety.org/>. Acesso em: 23 de junho de 2003: 6.
121
“Seja!” Portanto a Nuvem deriva de seu Sopro, enquanto as formas do que é
chamado de cosmos derivam da palavra “Seja!”
97
O outro hadith reflete a idéia da beleza que modula o pensamento de Ibn’Arabī sobre o
amor divino do início ao fim: “Deus é belo e Ele ama a beleza.” Aqui fica explícito o
princípio de que cada coisa bela é inerentemente passível de amor. A beleza é o que atrai o
amor, assim como o amor é atraído por tudo que é belo.
98
O amor vem da epifania do nome
al-Jāmil. Deus, que é belo, ama a Si mesmo.
O Profeta disse, “Deus é belo e Ele ama a beleza”, esse é um hadith
estabelecido. Ele então Se descreveu como beleza amorosa, e Ele ama o mundo,
portanto não há nada mais belo que o mundo. E Ele é belo, enquanto a beleza é
intrinsicamente passível de amor; por conseguinte todo mundo ama Deus. A
beleza de Sua configuração permeia sua criação, enquanto o mundo é seu
loci
de manifestação. Então o amor das diferentes partes do mundo uma pela outra
derivam do amor de Deus por Si mesmo. Porque o amor é um atributo da coisa
existente, e não há nada na existência exceto Deus.
99
97
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 331.23) in The Sufi Path of Knowledge, 1989: 128. É essa a razão fundamental pela
qual Ibn’Arabī vai dizer que o objeto de amor não existe, que ele é inexistente num sentido relativo, pois o amor
de Deus toma as coisas não existentes como seu objeto, está voltado para as entidades imutáveis, que são as
coisas do universo tais como conhecidas por Deus por toda eternidade. Elas adquirem a existência, que não lhes
pertence, mas a Deus, a partir da ordem divina: “Seja.” Segue-se que o amor, por definição, é dirigido ao não-
existente, toma o não-existente por objeto. Todo o amor e os desejos das criaturas seguem esse padrão do amor
de Deus, estão dirigidos ao não-existente. Cf. William C. CHITTICK, “The Divine Roots of Human Love”.
Disponível em <http/www.ibnarabisociety.org/>. Acesso em: 23 de junho de 2003: 3. Ibn’Arabī diz ainda em
relação ao amor: “Muitos enganos ocorrem no amor. O primeiro deles é que as pessoas imaginam que seu objeto
de amor é uma coisa existente ... De fato, o objeto do amor permanece para sempre inexistente, mas a maioria
dos amantes não sabe disso, a menos que sejam conhecedores das realidades.” Al-Shaykh explica que, quando as
pessoas amam, desejam a proximidade ou união com seu objeto de amor. Ao conseguirem a intimidade desejada
com o ser amado, descobrem que seu amor persiste. Ele acrescenta que, de fato, o objeto ainda não existe,
porque o objeto de amor mudou. Ele é agora a continuidade do que foi obtido, que não é algo existente, mas que
significa a chegada gradual, momento a momento, do objeto de amor não-existente. Cf. Tratado del Amor, 1988:
40.
98
William C. CHITTICK, “The Divine Roots of Human Love”. Disponível em <http/www.ibnarabisociety.org/>.
Acesso em 23 de Junho de 2003: 4.
99
IBN’ARABĪ, The Meccan Revelations (Futūhāt, 114.8), 2002: 47.
122
O que o al-Shaykh entende por “amor divino” tem, então, dois aspectos. Por um lado é
o desejo de Deus pela criatura, o suspiro apaixonado de Deus em sua essência (o tesouro
oculto), ansiando por se manifestar em seres para ser revelado para eles e por eles; por outro
lado, o amor divino é o desejo da criatura por Deus, ou como diz Corbin, “o suspiro de Deus
epifanizado em seres e ansiando por retornar a ele.”
100
Para Ibn’Arabī, Deus, em seu amor
pelas criaturas, na realidade ama apenas a Si mesmo, no sentido em que não há nada na
existência exceto Ele. Por outro lado as criaturas não amam nada além de Deus, saibam ou
não disso. Deus é o Amado real e Deus é também o único Amante.
... É Ele que ama mediante os seres existenciais. É Ele então que se manifesta
em todo o ser amado e que se mostra aos olhos do amante. Portanto, há somente
um Amante na Existência Universal (e é Deus) de tal modo que o mundo inteiro
é amante e amado. ... Sucede o mesmo com o amor: ninguém ama senão o seu
criador, que nos está oculto sob o véu do amor que se sente por Zaynab, Su’ad,
Hind ou Layla, por exemplo ... Assim pois, o objeto de amor, sob todos os seus
aspectos é Deus. O ser verdadeiro, ao se conhecer, conhece o mundo de si
mesmo que Ele manifesta conforme a sua Forma. De modo que Deus não ama
senão a Si mesmo. ... É por essa razão que, de uma forma geral, a conformidade
é a causa do amor e conformar-se à forma de Deus no espelho de Deus é
também causa de amor já que Ele vê somente a Si mesmo.
101
Os seres humanos que têm a capacidade de olhar as formas manifestas com a visão
teofânica, a visão do coração, podem unir o amor natural e o amor espiritual e são capazes de
amar um ser do mundo sensível no qual amam a manifestação da/o amada/o divina/o. É nessa
imagem que o místico contempla a total perfeição da/o Amada/o e que experiencia sua
presença dentro de si mesmo. É nessa figura teofânica que a/o Amada/o real se manifesta, em
100
Henri CORBIN, Alone with the Alone, 1997: 147.
101
IBN’ARABĪ, Tratado del Amor, 1988: 37/38.
123
uma figura que, ao mesmo tempo, a/o revela e oculta, mas sem a/o qual Ela/e estaria privada/o
de toda a existência concreta, de toda possibilidade de relação.
2.6.1 O Tarjumān: a paixão amorosa, a perplexidade e o coração receptivo
... Those are their ruins.
These are the tears
In memory of those
Who melt the soul forever ...
102
Ao mencionar os quatro estados do amor
103
, Ibn’Arabī se refere ao ‘ishq, a paixão
envolvente que cega o amante a tal ponto que só lhe permite enxergar a/o amada/o. Ele aqui
se refere ao amor integral, o estado do “louco de amor”. Quando o amante místico não pode
mais manter seu eu ou seus pensamentos, quando se esvazia de suas palavras e argumentos, a
amada se revela. A loucura amorosa de Majnūn, para Ibn’Arabī, é análoga à perplexidade
mística que ocorre quando os limites normais da identidade, da razão e da vontade são
dissolvidos. Contudo, na poesia amorosa de Ibn’Arabī, o verdadeiro amor conduz a um estado
de aniquilação no qual não se deseja possuir mais nada, pois na consumação do desejo, na
união, já não há mais um eu que tenha a experiência.
Em seu livro, Stations of Desire, Sells diz que o poeta de amor é uma espécie de
tarjumān no Oriente Médio, um intérprete e guia que em vários pontos nos mostra as ruínas
do acampamento da amada, as estações de sua jornada que a afastaram, os traços daquela que
conhecemos um dia. Os poemas de Ibn’Arabī, especialmente em seu Tarjumān Al-Ashwāq (O
102
IBN’ARABĪ in Stations of Desire: Love Elegies from Ibn’Arabi and New Poems, 2000: 65.
103
Os quatro estados indicados por al-Shaykh são hawā (desejo súbito, inclinação amorosa); wadd (constância
ou “persistente fidelidade no amor”); hubb, (“amor original” ou o amor puro, despojado de toda vontade própria)
e ‘ishq. Cf. IBN’ARABĪ, Tratado del amor, 1988: 88
124
intérprete dos desejos), mostram imagens do deserto, de cidades, de santuários e de fontes,
que estão sempre mescladas às imagens da amada, cuja beleza ele descreve com intensidade
apaixonada
104
: “Ela é uma rosa que floresce das lágrimas ... O sol se eleva quando ela sorri ...
A noite surge quando ela solta seus negros cabelos, luxuriantes e entrelaçados ... Ó Senhor,
quão doce é aquele frescor!”
105
O próprio Ibn’Arabī relata que durante a sua hajj, ao circundar a caaba, foi acometido
por uma série de dúvidas sobre o amor, que se refletem no poema que recitava:
Gostaria eu de saber se eles sabem
De quem é o coração que levaram
Ou que meu coração soubesse
Que senda de montanha atravessaram.
Crês que estão a salvo,
Ou crês que pereceram?
Os senhores do amor na paixão
Estão fascinados, perplexos.
106
Ele teve, então, a visão de uma jovem, a quem posteriormente foi apresentado e veio a
saber tratar-se de Niz
ām, que o instruiu e evocou a infinitude do desejo, mostrando-lhe a
impossibilidade de possuir o amado ou a amada e o caráter totalmente consumidor do amor,
lembrando-lhe ainda que ao verdadeiro amante não resta mais nenhum eu que possa ficar
perplexo. Anos depois, al-Shaykh escreve o Tarjumān, dedicando-o a Niz
ām, que havia se
tornado para ele uma figura tanto de inspiração poética quanto de manifestação divina.
107
104
IBN’ARABĪ in Stations of Desire: Love Elegies from Ibn’Arabi and New Poems, 2000: 17/18.
105
IBN’ARABĪ, The Tarjumān Al-Ashwāq, (Reynold Nicholson, trad.) poema XXX, 1978: 111. Um problema
com o qual me defrontei foi o fato de que as traduções dos poemas de Ibn’Arabī diferem em pequenos pontos
nos três tradutores: Michael Sells, Maurice Gloton e Reynold Nicholson (os dois últimos traduziram o Tarjumān
completo, enquanto Sells traduziu alguns poemas do mesmo em seu Stations of Desire, além de alguns poemas
de outras fontes). Tomei a liberdade de traduzir os poemas para o português de acordo com a versão que mais me
satisfazia em nosso idioma, sem a preocupação de trabalhar somente com um tradutor.
106
IBN’ARABĪ in Stations of Desire: Love Elegies from Ibn’Arabi and New Poems, 2000: 51.
107
Após ser criticado por escrever poesia erótica, Ibn’Arabī escreveu um novo prefácio para o Tarjumān, no qual
deixou de fora a prévia dedicatória a Nizām e acentuou o significado alegórico de seus poemas, por meio de
125
Contudo, Ibn’Arabī sabe que os poemas constituem apenas um aparato descritivo, que
embora pareçam oferecer imagens, são símiles que “dissimulam” pois, quando se tenta
descrever a amada, “qualquer imagem dela nos escapa como a água entre os dedos da
linguagem.”
108
Como vimos, a noção de que o amor implica abandonar qualquer esforço para
possuir a amada está presente na teoria do amor na poesia árabe e no sufismo. Em seu
Intérprete dos desejos, Ibn’Arabi discute as aparições divinas dentro do contexto do motivo
poético dos jinn, que a amada mimetiza em suas manifestações cambiantes. A natureza
efêmera das aparições da amada se reflete na vida daqueles que vivem apenas por meio da sua
presença e é uma contínua fonte de halāk (o perecimento do amante), de hayra (a
perplexidade) e também da loucura amorosa.
109
Ibn’Arabī assinala que os famosos poetas-
amantes foram afligidos por Allah pelo amor como uma lembrança para aqueles que afirmam
amá-lo, mas não enlouquecem de maneira semelhante aos primeiros, que vão além se si
mesmos na contemplação da amada na imaginação.
Os poemas de Ibn’Arabī são qasīdas no sentido em que contêm elementos da jornada
do poeta e de sua louvação, mas esses elementos estão sempre contidos dentro do nasīb. A
jornada retratada por al-Shaykh não é nunca para longe da amada na direção de uma
integração num mundo desprovido dela, mas retrata sempre uma circum-ambulação em torno
dela. Os poemas foram inspirados por sua hajj, mas Ibn’Arabī complica a identificação com a
hajj por meio de sua intensa evocação das estações da poesia amorosa árabe. Assim, o
poeta/místico/amante segue o caminho da amada e incorpora suas estações originais em sua
própria peregrinação.
110
comentários que ligavam os elementos eróticos de sua poesia aos vários aspectos de seu pensamento mais amplo.
Sells salienta que ao se focar exclusivamente na teologia mística, seus comentários silenciam outras áreas de
significado – tais como as profundas e constantes alusões à tradição clássica da poesia árabe dentro dos poemas.
Cf. Michael SELLS, Stations of Desire, 2000: 34.
108
Michael SELLS, “Tres seguidores de la religión del amor” in Mujeres de Luz, 2001: 138.
109
Michael SELLS, “The Semantics of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in Judaism, Christianity and
Islam, 1999: 93.
110
Michael SELLS, Stations of Desire, 2000: 30.
126
Sells explica que essa mudança na trajetória interior da qasīda começou com Majnūn-
Layl
a, cuja lenda remonta ao tempo de Muhammad, mas cuja historicidade permanece
envolta em controvérsia e mistério. Segundo Sells, o louco de amor Majnūn nunca conseguiu
se libertar da relembrança da amada. Os poemas a ele atribuídos fizeram da nasīb,
originalmente parte da qasīda, um poema independente, um poema de amor ou ghazal (estilo
conhecido como escola ‘udhrī
).
111
Sells diz ainda que uma outra tradição de ghazal
112
, mais
leve e mais erótica, constituiu uma fonte contínua de alusão para Ibn’Arabī. Nesse tipo de
ghazal, a ênfase é na busca erótica dos amantes, em seus esforços para escapar da vigilância
da família e superar os obstáculos, em sua sexualidade alegre, em suas tentativas de conseguir
um encontro secreto e em seu ocasional sucesso.
Se o que ela me diz é verdade
E ela sente por mim
O desejo obsessivo
Que sinto por ela;
Então, no cálido calor do meio-dia,
Em sua tenda, em segredo,
Nos encontraremos
Para realizarmos completamente a promessa.
113
Outro tema recorrente nos poemas de Ibn’Arabī, à semelhança do ghazal de Umar, é a
face fatal da beleza. O amante é morto pelas setas dos olhos da amada, golpeado pelo lampejo
cintilante de seus dentes, atingido pelo arco de suas sombrancelhas. Ao mesmo tempo, no
Tarjumān, não há fim para a discussão sobre ser a amada humana ou divina. Para Ibn’Arabī,
ela a quem amamos está além do mundo, mas dentro de tudo. Embora o gênero feminino da
amada seja herdado da tradição clássica, Ibn’Arabī é particularmente ousado em sua
111
Michael SELLS, Stations of Desire, 2000: 30.
112
Segundo Sells, o mais famoso membro dessa escola é Umar Ibn Abi Rabi Cf. op. cit: 31.
113
IBN’ARABĪ, L’Interprète des Désirs (The Tarjumān Al-Ashwāq), (Maurice Gloton, trad.),1996: 432.
127
disposição de representar a deidade como a amada feminina. Ainda que suas formas estejam
sempre mudando, algumas coisas contudo são claras: ela move-se constantemente de estação
em estação, mostra-se em diferentes humores, ora áspera ou terna, fiel ou infiel, enquanto se
transforma em meio aos estados. Subitamente, al-Shaykh desliza para o plural e fala dela
como “elas”, ou então “ela” pode se tornar “ele” dentro de um único poema. Com isso,
Ibn’Arabī transmite a impossibilidade de aprisioná-la em uma forma ou de possuí-la, o que
seria uma violação do adab, a polidez necessária que rege o amor.
114
No poema a seguir,
podemos ter uma idéia de como Ibn’Arabī junta os temas acima mencionados, aliando-os à
sua peregrinação:
Quando toquei a pedra
Fui rodeado por damas
que circundavam a caaba
Com as faces veladas.
Elas baixaram seus véus
Revelando o sol em sua glória.
Me advertiram: a morte está no olhar.
Deixamos para trás muitos homens mortos
Em Muhássab em Mina,
115
Almas vêm buscando o túmulo de pedras ...
... Encontre-nos na fonte de Zámzam,
116
depois da circum-ambulação,
114
Michael SELLS, Stations of Desire, 2000: 37.
115
Aqui, Ibn’Arabī utiliza a analogia arcaica entre as estações da jornada da amada para longe do poeta e as
estações da peregrinação pré-islâmica. Mina, o lugar do sacrifício dos carneiros realizado pelos peregrinos em
memória de Abraão, torna-se o símbolo do amante morto por amor, o mártir do amor, perdido na fanā ou
aniquilação do eu. Cf. Michael SELLS, “The Infinity of Desire: Love, Mystical Union, and Ethics in Sufism” in
Crossing Boundaries: Essays on the Ethical Status of Mysticism, 2002: 208.
116
Ainda seguindo essa analogia arcaica, Zámzam é a fonte perto da caaba e que, de acordo com a tradição,
Deus abriu para Hagar e Ismāīl quando eles estavam prestes a perecer no deserto. Al-Shaykh mostra Zámzam
128
perto da tenda central,
próximo aos cantos rodados.
Lá, um homem consumido
pelo transe do amor
é curado pelo aroma das mulheres
que lhe suscitaram o anseio.
Quando inquietas
Elas soltam os cabelos
e os deixam cair
envolvendo-se em vestes de escuridão.
117
Nos poemas de Ibn’Arabī, transparece sempre a idéia da morte por amor, refletindo a
noção do poeta-amante mártir do amor. A loucura amorosa se equipara à perplexidade mística
quando o eu, na estação final, afunda em seu amor até que não tenha mais o sentimento de si
ou mesmo de seu amor. Nesse momento de aniquilação (fanā), sua identidade se funde à da
amada, e o divino cobre as faculdades humanas com sua atividade perceptiva. O divino se
revela nas faculdades obliteradas e divinamente ocupadas do sufi na fase de retorno ou
permanência (baqā). Aproximar-se da presença divina é perder a consciência de sua própria
proximidade na “aniquilação da aniquilação”, ou seja, na aniquilação da consciência de estar
passando pela aniquilação. Esse movimento é entremeado pela poética de separação e de
união com a amada, de uma forma que lembra a dinâmica do amor cortês de Porete, com seu
amado LoinPrés. No diálogo sufi entre o divino e o humano, a união mística é rodeada por
extremos de tensão psicológica e semântica, havendo oscilações entre estados de paz e êxtase
e estados de terror e dissolução. A oscilação está relacionada ao paradoxo de que, no
como o locus poético onde as amadas (ou amada, se a interpretamos como falando na primeira pessoa do plural)
oferecem um encontro ao amante. Cf. Michael SELLS, op. cit.: 207.
117
IBN’ARABĪ in Stations of Desire: Love Elegies from Ibn’Arabi and New Poems, 2000: 63. Esse poema faz
parte do Tarjumān, (poema VII, página 61), mas a tradução feita por Michael Sells difere das traduções feitas
por Reynold Nicholson e por Maurice Gloton. No caso, optei por traduzir a partir da versão de Sells em Stations
of Desire.
129
momento que antecede a união, o mais próximo é o mais distante. A peregrinação que ocorre
nos poemas retrata a oscilação dinâmica entre a existência do indivíduo fora da união,
existência que provoca a consciência da separação, e a extinção do indivíduo na união.
118
É assombroso! Como, para alguém cujo coração foi ferido pelo amor,
Permanece qualquer remanescente do eu que fique perplexo?
O caráter do amor é a tudo consumir. Ele nubla os sentidos, afasta o intelecto,
assombra os pensamentos, e envia o enamorado junto com os outros que se
foram.
Onde está a perplexidade e quem permaneceu para ficar perplexo?
119
Num poema do Tarjumān, em especial, quatro temas centrais transparecem: a perda da
amada e as estações de sua jornada que a afastam do poeta; a morte do amante mostrada na
linguagem da aniquilação mística (fanā); as estações do peregrino pré-islâmico e islâmico na
jornada para a caaba (como paralela às estações da amada na jornada para longe do poeta); o
coração do sufi como a verdadeira caaba, um coração que pode tomar qualquer forma, em
torno do qual as várias estações circulam.
... Eu respondo a ela, no crepúsculo,
na aurora,
com o anseio de ternura,
com lamento do amor desolado ...
... Hora após hora
Elas circundam meu coração
em êxtase, em tormento,
E tocam meus pilares com um beijo.
118
Michael SELLS, “The Semantics of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in Judaism, Christianity and
Islam, 1999: 113.
119
IBN’ARABĪ, in Stations of Desire: Love Elegies from Ibn’Arabi and New Poems, 2000: 3.
130
... Elas juraram, tão freqüentemente!
que nunca mudariam – empilhando juras.
Ela que se tinge de hena vermelha
É infiel.
Uma gazela velada
é uma visão maravilhosa,
sinalizando um arbusto,
Pálpebras aludindo,
Pastagem entre ossos
E vísceras.
Que maravilha!
Um jardim entre as chamas!
Meu coração se tornou capaz de qualquer forma:
Um pasto para as gazelas,
Um claustro para os monges,
Um templo para os ídolos,
A caaba do peregrino,
As tábuas da Torah,
O livro do Corão.
Sigo a religião do amor.
Para onde quer
que sigam seus camelos,
essa é minha religião e minha fé.
Como Bishr,
Hind e sua irmã,
O louco de amor Qays e sua Layla perdida,
E a afeição de Ghayl
ān por Māyya.
120
120
IBN’ARABĪ, L’Interprète des Désirs (The Tarjumān Al-Ashwāq), 1996: 116-118.
131
No poema, al-Shaykh menciona os votos insinceros da amada, o lamento do amante
em relação ao abandono e a sua própria incapacidade para esquecê-la. O cabelo da amada,
tingido pelo vermelho profundo da hena, simboliza nesse contexto a morte do amante pela
amada, uma imagem que os sufis utilizam para expressar a morte do eu na experiência de
aniquilação
121
. O paralelo entre a aniquilação do sufi na união mística e a do amante a partir
da intensidade de seu amor, um dos motivos centrais da cultura medieval islâmica, é
sinalizado por meio do poema. O tratamento da questão amorosa é o mesmo, tanto na tradição
poética quanto na teologia sufi. Em ambos os casos o amor é erótico, menos no sentido
popular do sexual do que na fenomenologia psicológica – a perda da razão, da identidade e do
sentido do eu. Ao evocar a tradição lírica árabe e ao identificar o amante pasmo e aniquilado
por amor com o místico sufi em sua perplexidade, aniquilado na fanā, Ibn’Arabī evoca a
tristeza essencial dessa tradição, na qual a/o amada/o está sempre já perdida/o.
Nas alusões e desvios poéticos, Ibn’Arabī condensa o sentido das estações, que não só
representam os pontos de descanso da amada em sua jornada, mas também as estações de
peregrinação até a caaba, e as expande interculturalmente em várias tradições e modalidades
culturais. A teoria do coração capaz de qualquer forma é um ponto central no pensamento de
al-Shaykh, que liga o coração à perpétua transformação. Nessa teoria está implícita a crítica
ao “atamento” da mente às imagens, que dá lugar ao Deus das crenças.
122
No momento da
121
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 109.
122
Por meio de uma brincadeira epistemológica, Ibn’Arabī relaciona o intelecto (‘aql – cujo significado raiz é
corda) à definição de “atamento” (taquīd) do real em categorias ou formas fixas e limitadas. Essa função é
necessária à medida que o totalmente indeterminado não pode ser conhecido ou manifestado. Contudo, para al-
Shaykh, essa função torna-se um erro fundamental quando as categorias parciais e formas individuais são
tomadas como fixas e totais, erro que conduz a um mundo de crenças conflitantes, cada uma negando a outra e
também, à fixação individual num determinado ponto de vista, concepção ou experiência particular. Em ambos
os casos, o erro é sério, pois uma crença que nega todas as outras nega a raiz comum de todas, e o indivíduo que
não está em um estado constante de mudança não mais conhece ou reflete a constante mudança das
manifestações do real. Portanto, a crítica de Ibn’Arabī ao erro intelectual do “atamento” vai além de uma crítica
à filosofia racionalista e ao escolasticismo dogmático e se estende a qualquer contexto no qual uma forma ou
imagem (sūra) do real apareça: religiosa, científica, estética ou mesmo mística. Os próprios sufis são culpados de
taquīd quando param em uma estação ou experiência particular, por mais exaltada que seja, e amarram o real a
ela. Ao realizarem esse atamento, confundem o sentido polivalente e dinâmico com o exterior das formas que ele
irradia. Cf. Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 91. Na noção do coração receptivo a toda
forma, Ibn’Arabi implicitamente fala do processo de taqallub (transformação perpétua).
132
aniquilação mística, quando o coração é preenchido com a visão, a audição e a fala divinas, o
místico atinge a “estação de nenhuma estação” e com isso, a capacidade de transformação do
coração, que pode não só abraçar qualquer imagem como uma nova manifestação do divino,
mas também desistir de toda imagem e de todo “atamento”. Aqui, a voz não pode mais ser
identificada com o eu do autor do poema, pois Allah se tornou sua voz, sua audição e sua
visão.
Ibn’Arabī sutilmente critica até mesmo os “amantes” (muhhib) de Deus, que
permanecem enlevados por Sua beleza, contrastando-os com o conhecedor ou homem
perfeito, que permanece sóbrio em face da maior auto-manifestação de Deus, já que nele
nenhum nome domina sobre o outro, refletindo o nome Allah.
123
Os últimos versos do poema se referem às varias formas que o coração pode abraçar e
aos mais famosos amantes da tradição da poesia árabe. É dentro do mundo de linguagem da
poesia amorosa que a apófase mística de Ibn’Arabī atinge sua configuração mais distinta. Para
Ibn’Arabī, que vê a amada divina como transcendente e como imanente em cada
manifestação, a única afirmação verdadeira da unicidade divina é a afirmação da realidade
una em cada uma de suas manifestações, junto com a recusa a confiná-la em qualquer delas.
O poema aqui alude ao processo de taqallub (transformação perpétua), termo que
remonta à raiz Q-L-B, que significa tanto coração como mudança, flutuação. É essa noção do
coração como sede da sabedoria transformadora, oposta ao conhecimento analítico do
aql,
que está no centro do verso.
124
Tanto o amante quanto o místico devem ter o coração aberto a
toda forma. No contexto da poesia amorosa, o coração em perpétua transformação reflete a
mudança das manifestações e da personalidade da amada, que aprisiona o amante num fluxo
contínuo de emoção, imagem e perplexidade. Nesse poema, essa noção possui uma interseção
123
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 615.22,34) in The Sufi Path of Knowlwdge, 1989: 370.
124
Michael SELLS, “The Semantics of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in Judaism, Christianity and
Islam, 1999: 122.
133
explícita com uma expressão teológica. Aqui, o sufi afundou tanto em seu amor que não
possui mais o sentimento de si ou mesmo de seu amor, e seu coração aberto a todas as formas
é receptivo às diferentes manifestações da beleza e aos diferentes sistemas de crença, podendo
testemunhar a beleza do Uno ao testemunhar a pluralidade de imagens desse e do outro
mundo. “O coração que está vazio de diversidade está preenchido por Deus, possuindo a
amplitude e a generosidade para receber a Realidade em qualquer forma que ela se revele.”
125
2.7 – O espelho como metáfora
Na Europa da Idade Média, nos séculos XII e XIII, várias obras continham em seu
título o termo Speculum ou seu equivalente nos vernáculos, o que de certa forma testemunha a
importância do espelho como metáfora nesse período. A literatura medieval apresenta
inúmeros “Espelhos”, de todos os tipos, como o Miroir de Marguerite Porete, que visavam
refletir algum aspecto da realidade, ao mesmo tempo que funcionavam como um reflexo
daquele que olha.
A fascinação com o espelho remonta à literatura da Antiguidade grega e latina. Dentro
do mundo cristão, já os Padres da Igreja haviam proposto, à luz da fé cristã, uma compreensão
do espelho como instrumento de retorno oferecido pelo Criador às suas criaturas para que elas
pudessem regressar a ele. Essa concepção do espelho repousa sobre uma idéia neoplatônica
do cosmos que, em sua teoria da emanação, estabelece uma hierarquia de reflexos que fluem
em cascata do Uno original até a matéria. A alma seria um reflexo da emanação do Uno e, ao
possuir a imagem divina no espelho de sua alma, o ser humano poderia chegar ao
conhecimento das realidades superiores através da introspecção. Para os neoplatônicos, o
125
Cecília TWINCH, “The Beauty of Oneness witnessed in the emptiness of the heart”. Disponível em
<
http/www.ibnarabisociety.org/> Acesso em: 23 de junho de 2003: 13.
134
espelho era também um instrumento de retorno que permitia à alma se elevar até o Uno para
reencontrar-se, num sentido contrário à dispersão, com a origem da fonte de luz.
126
Dentro da tradição que passa por Gregório de Nissa e por Agostinho, os teólogos
cristãos da Idade Média acolhiam o espelho como um símbolo ideal do conhecimento de si e
da visão indireta de Deus. Pelo caminho da introspecção, era possível ver na alma um reflexo
da imagem trinitária que seria vista um dia, no pós-vida, com os próprios olhos. Por outro
lado, o espelho era considerado um instrumento de retorno do qual Deus se serve para chamar
a si as almas eleitas e restituir nelas sua imagem original. Além disso, as Escrituras e seu
corpo exegético eram também considerados um espelho que permitia o acesso ao exemplo de
Cristo, o verdadeiro espelho de Deus, ensinando uma via de purificação e de
transformação.
127
No início do século XII, surgiu uma obra que teve grande influência na mística
medieval e que levou os cistercienses e as béguines a multiplicarem a utilização da metáfora
do espelho. Trata-se do Speculum Virginum, tratado destinado a preparar as almas para a
união com Deus. Essa obra desenvolve uma metáfora dupla do livro-espelho como
instrumento de purificação e como instrumento de descoberta de si e de Deus. A obra lida
com três aspectos da reflexibilidade: “o livro como espelho socrático que visa à correção por
meio da contemplação das faltas e imitação das virtudes; o livro como speculum Scripturae
que contém um reflexo dos mistérios divinos; e finalmente a alma como um espelho, que deve
ser polido para reenviar o brilho do esplendor divino.”
128
Para que possamos de fato apreciar a imagem do espelho na literatura medieval em
geral e na de Marguerite Porete e Ibn’Arabī em particular, é necessário fazermos uma
abstração de nossa visão moderna do espelho para nos colocarmos dentro da realidade do
126
Marie BERTHO, Les Miroir des Âmes Simples et Anéanties de Marguerite Porete: une vie blessé d’amour,
1993: 55.
127
Catherine M. MÜLLER, Marguerite Porete et Marguerite d’Oingt de l’autre cotê du Miroir, 1999: 26.
128
Ibid.
135
século XIII. Para o leitor medieval, a qualidade enganosa dos espelhos possuía um papel
preponderante na compreensão do termo. Como resultado da baixa qualidade dos espelhos
antes da Renascença, estava sempre implícita nessa imagem a idéia de que o mesmo oferecia
somente uma ilusão da realidade e que o reflexo visto nele era deformado. Segundo
Longchamp, “o espelho antigo se apresenta como um objeto de metal polido e cintilante, raro
e caro também, com reflexos múltiplos e variados, muito distantaciado dos espelhos
modernos e de sua funcionalidade límpida.”
129
Tais espelhos serviam para ilustrar melhor os problemas metafísicos com os quais os
místicos lidavam. Muito diferentes de nossos espelhos atuais, o metal dos espelhos medievais
precisava ser mantido polido para preservar suas qualidades reflexivas e, mais do que isso, era
necessária grande habilidade dos artesãos para fazer uma superfície perfeitamente plana.
Nesses espelhos, portanto, havia sempre a possibilidade de deterioração e distorção da
superfície. Enquanto o espelho estivesse perfeitamente polido e plano, o sujeito observador
podia ver sua imagem ou forma perfeitamente refletida em sua superfície e, nesse caso, a
alteridade do espelho em si era reduzida ao mínimo para a consciência do observador, ou se
apagava completamente. Caso o espelho refletisse uma imagem distorcida ou apagada, ele
manifestava sua própria alteridade e prejudicava a identidade da imagem e do sujeito. Na
realidade, a imagem distorcida apresenta algo estranho ao sujeito, que pode então se esforçar
para melhorar e aperfeiçoar o espelho para que este alcance uma capacidade de reflexão mais
perfeita. No espelho temos, portanto, um símbolo adequado para a polaridade divino-
humana.
130
129
Max Huot de LONGCHAMP, Les Miroir des âmes Simples et Anánties, 1997: intr. 16.
130
Ralph AUSTIN, The Bezels of Wisdom (Fusūs al-Hikām), 1980: intr. 48.
136
2.7.1 – O Miroir de Marguerite Porete
Ainda que nomeie a obra, a palavra espelho aparece poucas vezes no Miroir.
131
Porém,
ao longo do texto, encontramos numerosos termos que denotam a visão e o olhar, a luz e os
reflexos, a imagem e sua representação. A alma é descrita como uma fonte pura, emitindo
raios de luz;
132
a união da alma com Deus é representada pela conjunção de dois olhares, tanto
de um para o outro, como de cada um para si mesmo. O próprio livro é composto de capítulos
que remetem uns aos outros, criando entre eles múltiplas refrações, como múltiplos pequenos
reflexos.
O título Miroir reflete a metáfora do conhecimento de Deus e de si. Amour dá à alma
um livro-espelho que representa “l’amour de luy mesmes”. Ele é, portanto, espelho tanto de
Deus quanto da alma. Ao ler o livro-miroir, o leitor
133
vê uma alma que funciona como um
espelho para sua própria alma, que deve ser contemplado e imitado, e também como um
reflexo de Deus. No início de sua busca, a alma “damoyselle” está distante de seu rei amado e,
como símbolo especular, é ambivalente, um espelho que reflete uma visão dupla e de retorno,
pois reflete a imperfeição humana e a perfeição divina, refletindo também a luz da presença
divina e as considerações para alcançá-la. Para se tornar um espelho simples que reflete a
simplicidade do Uno, a alma deve se despojar sistematicamente de todas as imagens de si
mesma que ocultam a luz e velam o reflexo divino. Ela deve sacrificar seu amor-próprio, sua
vontade, sua individualidade distinta, seu amor criatural, enfim, todos os seus reflexos
próprios para se tornar o reflexo de Deus. Só assim ela pode compreender que originalmente
ela é a imagem de Deus e reencontrar, na imagem divina refletida, a sua origem perdida.
131
A palavra espelho aparece lembrando o título do livro (Mirouer, 13: 18) e duas vezes em referência a Jesus
Cristo como modelo exemplar a ser seguido (Mirouer, 63: 21 e 109: 41-42).
132
Mirouer: 120: 11-13.
133
Na verdade, a obra de Marguerite Porete se dirige tanto aos leitores quanto aos ouvintes: “Vous qui en ce livre
lirez” (Mirouer: explicit, página 8) e mais adiante: “Or oyez et entendez bien, auditeurs de ce livre” (Mirouer,
12: 3). Embora se utilize do masculino, Porete várias vezes se dirige à sua audiência/leitores utilizando o
vocativo “Dames”.
137
Ainda que Porete se inspire na utilização da metáfora do espelho pelos Padres da
Igreja, ela transforma esse símbolo para seus próprios fins, mostrando a diferença do seu
caminho frente à tradição que a precede. Contrariando os teólogos cristãos que afirmavam a
impossibilidade de uma visão direta de Deus nessa vida, Marguerite Porete, por meio da
aniquilação, concebe a possibilidade de transgredir o espelho para alcançar uma contemplação
direta de Deus, uma visão face a face,
134
que o texto chama de olhar simples. A consequência
dessa transgressão é a metamorfose do eu que se torna igual a Deus. A alma entende que seu
eu deve desaparecer para dar espaço ao desejo de Deus. Ao atingir a aniquilação, a alma não
vê nem a si nem a Deus, “mas Deus se vê nela em sua majestade divina, que o clarifica nessa
alma.”
135
A alma e Deus são espelhos um do outro graças à “clarificação” da alma: “Os olhos
pelos quais vejo Deus são os olhos por onde ele me vê.” O espelho é simples porque é um
auto-reflexo.
Já mencionamos que a idéia de uma possibilidade infinita de imagens sucessivas, de
uma hierarquia de reflexos a partir de um original único remoto, remonta aos neoplatônicos,
notoriamente a Plotino. Depois, Dionísio, o Aeropagita, em sua Hierarquia celeste e seu
Nomes divinos, desenvolve uma doutrina segundo a qual os anjos da ordem superior seriam
espelhos sem mácula,
136
refletindo a luz divina que contemplam diretamente, difundindo-a e
transmitindo-a aos anjos inferiores e, por meio deles, às almas.
134
O medo do facie ad facien se origina da ameaça de morte, no Êxodo 33: 18-23, frente ao pedido de Moisés
para ver Deus. Na tradição islâmica, a impossibilidade de ver a face de Deus também se estende para todas as
criaturas: “Os olhos não o alcançam. E Ele alcança os olhos.” (Corão 6: 103) Contudo, esses versos são
interpretados de diversas maneiras, de tal forma que seja salvaguardada a possibilidade da visão. Cf. Michel
CHODKIEWICZ, “The Vision of God”. Disponível em <
http/www.ibnarabisociety.org>. Acesso em 23 de
junho de 2003: 1.
135
Mirouer: 118: 177-178.
136
Dionísio, que parece ter inventado a palavra hierarquia, dividia tudo em tríades hierárquicas. Em sua
“Hierarquia Celeste” ele estabelece três tríades hierárquicas para os anjos. A primeira e mais elevada tríade é
formada pelos serafins, querubins, que possuem muitos olhos e muitas asas, e tronos. Os serafins, que
encabeçam a tríade, são os anjos que estão sempre em torno de Deus, em uma proximidade não igualada por
nenhum outro e pemanentemente unidos a ele sem nenhum intermediário. Cf. “The Celestial Hierarchy” in
Pseudo-Dionysus – The Complete Works, 1987: 160/161.
138
O pensamento dionisiano, nos comentários dos vitorinos e cistercienses, influenciou
fortemente a mística medieval.
137
Ao longo do Miroir, Marguerite Porete utiliza a noção de
ascensão através de graus ao estabelecer os sete estágios da alma, as sete contemplações, os
doze nomes da alma e os dois tipos de almas, nobres e vilãs. Ela também faz alusão à
hierarquia de anjos várias vezes, insistindo particularmente nos querubins e serafins, por sua
capacidade de ver Deus. A alma aniquilada, segundo ela, tem o privilégio de se elevar mais
alto mesmo que os serafins, “em cujas asas ela voa”.
138
No texto poretiano a alma aniquilada torna-se o espelho cristalino de Deus. Ela é um
“sol puro” e sem “mácula” pois é um espelho do sol divino. Ela é uma “lua plena” e irradia a
luz recebida, que procede de seu “rei divino”.
139
Em última análise, essa alma é necessária a
Deus, à medida que é um exemplo para todos e um espelho para a glória de Deus, pois ela é o
instrumento de irradiação da bondade divina para as outras criaturas.
140
2.7.2 – O espelho polido de Ibn’Arabī
Para os místicos sufis em geral, a imagem do polimento do espelho simboliza uma
mudança de perspectiva que indica a superação das distinções entre sujeito e objeto. Ao olhar
um espelho embaçado, quem olha vê o vidro. Contudo, se o espelho é polido, torna-se
invisível, e apenas a imagem refletida de quem se contempla permanece, a visão se torna
auto-visão. Essa imagem é especialmente utilizada por Ibn’Arabī. Em seu livro Fusūs al-
Hikām, no capítulo dedicado a Adão, a metáfora do espelho polido se mescla à idéia do
137
Hildegard de Bingen, por exemplo, descreveu os anjos como “um espelho de água límpida” que reflete Deus
diretamente. Ela vê o rosto dos arcanjos como um”espelho da imagem do Filho do Homem” e descreve os olhos
dos querubins e as asas dos serafins como espelhos, respectivamente dos mistérios divinos e da hieraquia da
Igreja. Cf. Catherine M. MÜLLER, Marguerite Porete et Marguerite d’Oingt de L’Autre Cotê du Miroir, 1999:
33.
138
Mirouer: 23: 48-49. Cf. também outras referências aos serafins, caps. 5, 98, 122 e 129. Cf. também a nota 5.3
de Max Huot de Longchamps em sua tradução do Miroir, Les Miroir des Âmes Simples et Anéantie, 1997: 239
139
Mirouer: 121: 7-12.
140
Mirouer: 117: 4-9 e 36-52.
139
homem perfeito cujo modelo paradigmático é Adão,
141
que representa a consciência humana
capaz de realizar o polimento do espelho do cosmos e refletir para Deus a imagem do
“tesouro oculto”, sua própria imagem.
No relato corânico da criação de Adão, Deus anuncia que vai criar um califa ou
regente na terra e cria Adão com suas “duas mãos”, soprando-lhe o rūh (espírito). Deus é
então questionado pelos anjos por criar uma criatura que “derramará sangue e corromperá a
terra” enquanto eles, anjos, são perfeitamente obedientes a Deus. Nesse ponto, Deus lhes
pergunta se eles conhecem os “nomes”. Ao responderem negativamente, são ensinados por
Adão e recebem a ordem divina para se prostrarem frente a ele. Todos obedecem, exceto Iblis,
que é afastado da presença divina (Corão 2: 30-33). Para Ibn’Arabī, Adão tem um lugar de
destaque no cosmos por ter sido criado com as duas mãos de Deus. Iblis, que se recusa a
prostrar-se frente a Adão, mostra a sua ignorância, partilhada com os outros anjos que
protestaram contra a criação de Adão, do lugar e do papel que o ser humano perfeito ocupa.
Um hadith diz que Deus criou Adão “à sua imagem” e a interpretação de Ibn’Arabī é ver
Adão como o modelo da união mística. Ele é a imagem do divino e, por seu conhecimento dos
nomes divinos, é mais completo do que os anjos.
Ibn’Arabī ilustra a função adâmica com a imagem do espelho. Nessa imagem há dois
elementos, o espelho em si e o sujeito observador que vê sua própria imagem refletida no
espelho como um objeto. Adão é o fator de ligação no processo de reflexão e do
reconhecimento do reflexo. Ele tanto reflete quanto é a forma refletida.
141
No Islã, Adão era considerado um verdadeiro profeta, de fato mais elevado que os anjos e incapaz de pecar.
Essa idéia, que agora é difícil de retraçar, tem por trás uma tradição da gnose judaica antiga, talvez oral, que viria
a florescer na Provença medieval e na cabala espanhola. Essa visão de Adão, preservada mais tarde no
hermetismo e nos textos cristãos heterodoxos, foi chamada a doutrina do Homem-Deus, o Antropos primevo. Cf.
Harold BLOOM, Omens of Millenium, 1997: 160. “Uma das especulações do gnosticismo judaico dizia respeito
ao Adão original e primordial, o Antropos ou Homem, como os judeus de língua grega o chamavam, um ser que
era ao mesmo tempo Adão e Deus, cujo corpo enorme tomava o cosmos inteiro, mas que de fato transcendia o
cosmos. Nosso mundo (mesmo antes da criação do Gênesis I) estava contido dentro de Adão, Antropos, Homem,
que era indistingüível de Deus”. Cf. op. cit.: 236.
140
A Realidade queria ver as essências de Seus Mais Belos Nomes ou, para colocar
de outra forma, ver Sua própria Essência, num objeto inclusivo que abrangesse
o Comando (divino) completo, o qual, qualificado pela existência, lhe revelaria
Seu próprio mistério. Pois a visão de uma coisa, em si, por si, não é o mesmo
que a visão dela em outra coisa, como se fosse num espelho ... Portanto o
Comando (divino) requisitou a característica reflexiva do espelho do Cosmos, e
Adão foi o princípio de reflexão para aquele espelho e o espírito daquela forma,
enquanto os anjos eram apenas certas faculdades daquela forma que era a forma
do Cosmos, chamada, na terminologia do Povo, o Grande Homem.
142
Para al-Shaykh, o cosmos é um espelho não-polido. Para que o espelho brilhe e para
que os nomes divinos adquiram realidade, é necessário o Ser Humano Perfeito, o Eixo, o
Vice-Regente ou o Califa de Deus na terra. O cosmos e o coração humano são o espelho do
divino, mas esse espelho está nublado. Na fanā, o eu do místico que nubla o espelho é
obliterado e o coração se torna um espelho polido, refletindo a imagem divina, ou um prisma,
a partir do qual a luz indiferenciada da unidade divina é refratada nos vários atributos. Nesse
momento, o místico individual realiza a natureza primordial de Adão. É nessa refração e
reflexão que o verdadeiro referente da palavra “sua” em “sua imagem” é revelado, pois al-
Shaykh encontra na união mística a lógica paradoxal na qual o termo se refere tanto ao
humano quanto ao divino. Os atributos divinos, rejeitados enquanto predicações
instrumentais, são resgatados como realizações dentro da união do divino e do humano.
143
A
constituição da imagem divina se dá dentro do coração do homem perfeito, no momento da
união mística, simbolizada pelo espelho polido que constitui a “Sua /sua” imagem, ou melhor,
a imagem de ambos.
144
142
IBN’ARABī, The Bezels of Wisdom (Fusūs al-Hikām), 1980: 50/51.
143
Michael SELLS, “The Semantics of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in Judaism, Christianity and
Islam, 1999: 99/100.
144
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 66.
141
Na imagem do espelho polido, Ibn'Arabī junta o aspecto cosmogônico do ser humano
completo, capaz de refletir todos os atributos divinos, com a aniquilação (fanā) do eu na
união mística. Diz Sells:
É na interseção do cosmogônico e do místico que a imagem divina aparece no
espelho polido. A perspectiva cosmogônica é mítica; ela ocorre fora do tempo,
na criação do cosmos (do qual o tempo é um elemento). A perspectiva mística
ocorre num momento do tempo que Ibn'Arabī acredita ser continuamente
reencenado. A imagem ocorre no espelho polido num “eterno agora" no qual a
distinção entre o eterno e o temporal é deslocada.
145
O Real cria o mundo como um espelho não-polido. Para completar o processo, é
necessária a consciência humana para o polir o espelho e assim revelar o mistério através do
espelho polido. Os Nomes só têm relevância ou significado no contexto da polaridade
Divindade-Cosmos, e o homem perfeito representa o princípio que, ao mesmo tempo, medeia
e resolve toda a experiência dessa polaridade, pois é o elo vital sem o qual a auto-consciência
divina total não seria possível. Entretanto, Sells apresenta um dilema na noção de espelho
polido. O aspecto mítico do dilema, ou seja, o cosmos criado para refletir para o Real a sua
própria imagem sugere que, para refletir, o espelho deve de algum modo se tornar invisível. O
aspecto místico sugere que, para que o espelho seja polido, o humano (aquele que está polindo
o espelho) deve ser "aniquilado". Em termos místicos, os Nomes são concretizados no cosmos
quando o eu humano é aniquilado e os Nomes aparecem no espelho polido do coração
humano.
146
De certa forma, as ambigüidades marcam todo esse processo. O Real, enquanto aquele
que revela, não tem uma existência anterior à sua própria formação no espelho, mas é
145
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 70.
146
Michael SELLS, op. cit.: 73
142
constituído por essa formação e por esse reflexo. Enquanto preexistente ao polimento do
espelho, o Real está além de distinções entre criador e criação, entre sujeito e predicado. É
exatamente no polir do espelho que o homem perfeito – ou completo como prefere Sells - e a
deidade manifesta estão unidos. O Real como sujeito de predicação é concretizado dentro do
ser humano completo, e o mistério é revelado com o polimento do espelho no qual o ser
humano completo e a deidade manifesta estão unidos.
147
Nesse ponto, o divino se vê no
humano e o humano se vê no divino; o divino se vê no espelho polido, o qual, na medida em
que é polido, está vazio do humano qua humano.
2.8 – Do amor, da aniquilação e do espelho...
Ao longo deste capítulo mostramos como a béguine e al-Shaykh se apropriaram dos
temas amorosos da literatura profana, característicos dos contextos culturais de cada um, para
veicularem suas retóricas amorosas de aniquilação.
Marguerite Porete utiliza a criação européia do século XII, o fin amour, com sua
apoteose do gozo amoroso, seus códigos de amor, sua ênfase sentimental e erótica, sua
coloração de soberania e vassalagem do serviço amoroso e cria um discurso que busca
testemunhar o irrepresentável. Esse discurso não só traz em seu cerne os sinais da intensidade
do amor e as marcas da canção cortês, na qual a dama raramente é definida e desliza entre a
presença e a ausência, mas também a glorificação da aniquilação do eu no amor de Deus, um
fogo tão intenso que consome o próprio amor criatural. A inebriação no amor dá lugar, no
texto poretiano, a uma crítica das “delícias espirituais”, embora a autora reconheça que elas
representam um estágio necessário no caminho para a aniquilação.
147
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 75.
143
Ibn’Arabī, por sua vez, se utiliza de um mundo de linguagem característico da poesia
amorosa profana pré-islâmica e islâmica, em que o tema do amor e da aniquilação se
mesclam. De forma semelhante ao discurso poretiano, a Amada é retratada como não-
possuível e irrepresentável à medida que sua imagem é flutuante. O amante alterna o êxtase
de sua presença com a agonia de sua ausência, numa poética de separação e união, e a união
erótica dos poetas é utilizada para descrever a união mística do sufi. No discurso akbariano, a
dissolução da alma na conversação dos amantes reflete o apagamento dos traços do eu que o
místico vivencia por meio da loucura do amor divino.
Em ambos, Marguerite Porete e Ibn’Arabī, Deus é o único amante e amado que
permanece. A exaltação amorosa vai gradualmente conduzindo a um estado que envolve a
aniquilação do criatural na alma, em que o vazio da alma e do nada divino se encontram numa
experiência que pode ser descrita em termos de uma absoluta realização e uma absoluta
privação, de pobreza e plenitude que refletem o enigma do Simpósio de Platão relacionado ao
nascimento de Eros/Amor.
148
Embora Marguerite Porete ofereça no prólogo o exemplo de um amor “mundano” para
traçar sua analogia, não encontramos em sua narrativa qualquer menção a um amado humano.
Ela é mais ambígua que Ibn’Arabī em relação ao mundo e ao corpo. Porete repete que a
perfeição final não pode ser alcançada até que o corpo e o mundo sejam deixados para trás,
mas ainda assim afirma que uma absoluta inocência pode ser alcançada pela alma aqui na
terra. Embora para a béguine o pecado seja espiritualizado e não identificado à corporeidade,
o que livra o corpo dos sofrimentos e das mortificações, ela não lhe atribui maior estatura ao
admitir sua inocência. É possível registrar em seu texto uma rejeição do corpo como uma
parte intrínseca do ser humano, evidenciada em sua atitude com relação à figura histórica de
148
No Simpósio de Platão, Eros é retratado como filho do Deus Plenitude e da Deusa Pobreza o que sugere que o
amor é infinitamente pleno e infinitamente necessitado.
144
Jesus Cristo, à Igreja visível e seus sacramentos. Provavelmente, ainda que libere o corpo da
via do ascetismo e dos sofrimentos, que recomende dar à natureza o que ela precisa e que
utilize a linguagem erótica para ilustrar o relacionamento entre a alma e Deus, Porete parece
em algum nível partilhar o ethos cristão de suspeita, rejeição e negação de Eros que distorceu
a reflexão teológica cristã sobre a sexualidade e a natureza do prazer.
149
Ibn’Arabī, por sua vez, utiliza a poesia erótica e os temas eróticos profanos para
analisar e exprimir a natureza do amor espiritual. Sua fenomenologia amorosa engloba a
loucura amorosa, a servidão amorosa, a melancolia, o langor, o ardor, a consternação, o
abatimento, a insônia, o estupor, enfim, toda uma gama da psicologia amorosa que está
presente tanto no amor profano quanto no amor místico. Porém, dentro do panorama teológico
islâmico, al-Shaykh não só se recusa a definir se a amada é terrestre ou divina, mas,
audaciosamente, afirma que é Deus que se manifesta a todo amante, sob o véu de sua amada,
que ele não a adoraria se ela não representasse a divindade. Para Ibn’Arabī, Deus se disfarça
para nós, sob a aparência de todas as belas jovens cantadas pelos poetas e, ao louvá-las em sua
adoração, estes estão sempre falando de Deus, única beleza digna de amor, oculta sob o véu
das formas corporais. Por isso, para al-Shaykh, o amor sexual, entendido como a junção do
amor natural e espiritual, serve de símbolo para o amor místico e é a maior manifestação de
Deus que o conhecedor pode ter enquanto aqui na terra.
150
Para ambos os autores, é o Amor que ao final liberta a alma de todo desejo e de toda a
vontade, permitindo que ela se torne novamente unida à Deidade. A experiência da alma no
149
Cf. Peter BLACK, “The Broken Wings of Eros: Christian ethics and the denial of desire”. Journal of
Theological Studies, vol. 64, 2003: 1.
150
Ibn’Arabī diz que o ato sexual fornece a ocasião para que se experimente o que considera a “maior
manifestação” de Deus na perspectiva da similaridade. Ele afirma que o cosmos e tudo dentro dele é uma
manifestação de Deus, mas o maior ato de auto-manifestação divina é o ato sexual. Al-Shaykh não partilha a
perspectiva cristã de negação e demonização do corpo, mas fala a partir da perspectiva islâmica que considera o
relacionamento sexual como um dos maiores prazeres do paraíso, um prazer em si mesmo e não para a geração
de filhos. Os profetas e os “amigos de Deus”, capazes de atingir um nível espiritual de união, experimentam esse
estado paradisíaco nessa vida, embora dentro dos limites da sharī’a. Cf. Sachiko MURATA, The Tao of Islam,
1992: 186.
145
êxtase do amor deve ser superada, o próprio amor deve ser abandonado para que ela
experiencie a constante presença da divindade. Ao se tornar o espelho de Deus, pode-se dizer
que a alma experiencia Deus somente porque Deus é tudo que existe para ela e nela – de tal
forma que ela não é nada, é somente Deus se experienciando nela. Tal alma nada mais deseja
e não mais ama: ela dissolveu-se, fundiu-se na infinitude divina. O Amor e a alma tornam-se
um só. Em seu poema final, Marguerite Porete se aproxima do poema de Ibn’Arabī sobre a
perplexidade, citado acima. Nele, Porete sugere que a realidade do amado divino foi
encontrada e que toda a exaltação amorosa foi resolvida em serena absorção:
J’ay dit que je l‘aymeray.
Je mens, ce ne suis je mie.
C’est il seul que ayme moy:
Il est, et je ne suis mie:
Et plus ne me fault,
Que ce qu’il veult,
Et qu’il vault.
Il est plain,
Et de ce suis plaine
C’est le divin noyaulx
Et amour loyaulx.
151
Aniquilada, a alma pode espelhar perfeitamente o nada divino para o qual não há
nome, por meio da pobreza radical que a despoja de todas as imagens tanto de Deus quanto do
eu. Em seu Miroir
, Marguerite Porete busca criar um espelho ou “imagem” que refletiria ou
representaria aquilo que derradeiramente não tem imagem: a alma que está além da presença
151
Mirouer, 122: 131-141. “Eu disse que o amarei. Menti, não sou Eu. É Ele só que me ama: Ele é, e eu não. E
nada mais me falta que aquilo que ele quer e que ele deseja. Ele é pleno, e com isso estou plena. Esse é o núcleo
divino e o amor leal.”
146
de qualquer representação.
152
O livro, a alma, o amor e o amante são todos espelhos que se
auto-refletem. De maneira semelhante, em sua metáfora do espelho, Ibn’Arabī mostra o
indivíduo que abriu mão de suas próprias imagens e se tornou uno com e na imagem divina
refletida no espelho polido. Esse espelho polido é o coração do sufi, polido à medida que está
vazio de suas próprias imagens e nomes projetados. Esse coração flutuante reflete o nada que,
como um prisma, se pluraliza em múltiplas imagens, não podendo ser confinado por
nenhuma.
Tanto a alma aniquilada quanto o homem perfeito são necessários a Deus, que se
conhece e é conhecido por meio deles, sendo até mais elevados que os anjos – a alma livre e
aniquilada é o modelo que espelha a bondade divina para as outras criaturas e a glória divina,
e o homem perfeito, com o polimento do espelho, reflete e refrata a luz divina em múltiplos
nomes. Sem ele, o mundo seria um espelho sem polimento. Para a béguine e para al-Skaykh
também, o jogo de espelho abissal mostra um Deus que permanece além de qualquer imagem,
152
O espelho é uma imagem moderna associada à vaidade e ao narcisismo. Em certas interpretações psicológicas
ele é visto como uma imagem associada à alienação da auto-consciência e à dualidade sujeito-objeto. O mito de
Narciso é freqüentemente mostrado como um exemplo da subjetividade que espera retornar reflexivamente a si
mesma por meio da auto-imagem que busca em qualquer outro. Narciso falha em ver que o reflexo nas águas é o
seu próprio, não tem consciência de si como a origem do reflexo e, ao amar um reflexo que não sabe ser o seu,
não sabe quem é. Porém, na literatura mística, o espelho se transforma num símbolo da honestidade e
profundidade do eu verdadeiro, e da unicidade e liberdade da alma simples e aniquilada. O eu alienado de si, dos
outros e de Deus é substituído por sua própria ausência, que então se torna presença. Cf. Maria LICHTMAN,
“Marguerite Porete and Meister Eckhart: The Mirror for Simple Souls Mirrored” in Meister Eckhart and The
Beguine Mystics, 2001: 76. Contudo, Thomas Carlson cita Maurice Blanchot, para o qual “a água na qual
Narciso vê o que não deve ver não é o espelho capaz de uma imagem distinta e definida. O que ele vê é o
invisível no visível, o não-figurável na figura, o desconhecimento instável de uma representação sem presença, a
representação que não se refere de volta a um modelo ...” Para Blanchot, “Narciso não se encontra em seu
reflexo como um sujeito que retornaria a si em e por meio de cada outro semelhante; ao contrário, em seu
‘próprio’ reflexo ele encontra uma imagem do invisível que o desfaz, uma representação do que não pode ser
trazido à presença e, assim, devasta a auto-presença do sujeito. ...” Diz Carlson: “De forma semelhante, na
mística, quando o sujeito radicalmente passivo espelha o Deus radicalmente incognoscível, os dois se encontram,
em um nada para o qual ‘morte’ seria um termo auto-derrotador.” Cf. “The Poverty and Poetry of Indiscretion:
Negative Theology and Negative Anthropology”, Christianity and Literature 47, N. 2, 1998: 174/75. Já no texto
hermético, o Poimandres, a utilização da metáfora do espelho está ligada a uma queda narcísica. O divino olha
para baixo, para a natureza, e vê sua imagem refletida nela. Apaixonando-se por essa imagem, o divino tenta
abraçá-la e acaba preso dentro de seu abraço mortal. Sells assinala que Ibn’Arab
ī de certa forma se apropria e
reverte esse motivo, ainda que o paralelo não seja completo, pois al-Shaykh não aceita a valoração negativa da
natureza e do corpo que está presente no Poimandres. Para ele, a metáfora do espelho forma o paradigma central
tanto para a queda quanto para o retorno, e nos momentos mais intensos de união, a processão e o retorno se
revelam como uma coisa única. Cf. “The Semantics of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in Judaism,
Christianity and Islam, 1999: 119.
147
incompreensível e inefável e, ao mesmo tempo, a alma que, de maneira análoga, deve
permanecer além de qualquer linguagem e representação. Tanto para Marguerite Porete
quanto para Ibn’Arabī, os movimentos do amor e da morte transformam a alma num espelho
cristalino no qual o nada divino é refletido no nada do eu.
2.9 – A alma aniquilada e o homem perfeito, uma nobre elite
A idéia da alma aniquilada está vinculada ao tema cortês da nobreza, e a idéia do
homem perfeito está ligada aos poucos conhecedores capazes de atingir a mais alta estação na
jornada espiritual. Nos dois casos, esses conceitos se mesclam também com a noção de graça
divina ou eleição, gerando a idéia de uma “aristocracia espiritual”
153
que, para nossa
sensibilidade contemporânea democrática e “politicamente correta”, pode gerar críticas
indignadas ou a suposição de uma “inflação egóica” patológica.
Essa noção de uma elite ou hierarquia espiritual nada tem a ver com qualquer posição
social. Se entendermos o discurso místico como um modus loquendi e, se nos lembrarmos de
que o adjetivo “místico” se refere ao que está oculto, podemos ver que discursos dessa
natureza, que giram em torno do mistério, tentam proteger o segredo e preservá-lo de
leitores/ouvintes que não tenham a capacidade de compreendê-lo. De forma geral, os místicos
entendem que os seres humanos têm diferentes disposições e não são iguais em sua
“capacidade” para Deus. Normalmente, o místico cifra a sua mensagem mais profunda em
uma série de conceitos, escreve indireta e alusivamente em vários estilos e formas, de tal
maneira que só os que partilham de sua compreensão, seja por sua predisposição para o
mistério ou por já o haverem experienciado, tenham acesso ao cerne dela. Outras pessoas
entenderão dela somente aquilo que suas capacidades permitirem.
153
Luiz Felipe PONDÉ, “Nomen Inominabile: a mística de Meister Eckhart” in No limiar do mistério: mística e
religião, 2004: 152.
148
Contrariando a concepção cristã tradicional da natureza aviltada da humanidade caída,
Porete afirma a nobreza e a liberdade de certas almas individuais. A alma, deificada pela
transformação no amor, pode, enquanto alma terrena, alcançar uma união permanente com
Deus. A especulação teológica poretiana baseia-se numa classificação e hierarquização das
almas em nobres e não-nobres ou vilãs, hierarquia que repousa sobre o status inato dado por
Deus.
154
Sua mensagem era basicamente dirigida a essas almas nobres, bem nascidas e de
“boa linhagem”, capazes de entender os segredos da corte divina: “Ó bem nascida, diz Amor a
essa preciosa marguerite,
155
seja bem-vinda à franca maneira, na qual ninguém entra se não for
de sua linhagem, sem bastardia.”
156
Certas almas podem, então, realizar suas verdadeiras identidades como descendentes
diretas da Trindade. Elas são receptáculos para a eleição divina. A eleição, o chamado ou a
escolha são confirmados na aniquilação: “E do mesmo modo fazem as almas das quais
falamos; que são recipientes de tal eleição: Loinprés lhes representa esse nobre dom.”
157
Marguerite Porete sabe que as outras almas nobres e aniquiladas e aquelas que se
encaminham para esse estado reconhecerão as suas palavras. Seu livro torna-se um espelho
simples para aquelas que são da mesma “linhagem”. Elas reconhecem as outras almas
154
Joanne Maguire ROBINSON, Nobility and Annihilation in Marguerite Porete’s Mirror of Simple Souls,
2001: intr. XI.
155
Embora Marguerite Porete não se nomeie ao longo do texto, aqui ela pode estar discretamente assinando sua
obra. Nas traduções em francês moderno, a palavra marguerite é traduzida como pérola e, assim, se perde
totalmente a referência ao nome da autora. A imagem da “marguerite” era um topos na Idade Média e aparecia
na poesia da século XIV como flor, simbolizando por suas cores a feminilidade, a pureza, a alegria e a modéstia;
como pérola, ela traduzia a excelência e a virtude da mulher plena de graça divina. “Sua utilização em
Marguerite Porete revela uma propensão à polissemia que, embora corrente na literatura mística da Idade Média,
é multiplicada pela tendência auto-interpretativa do texto. A exploração do sintagma “precieuse marguerite” é
um exemplo de um discurso onde a interpretação é tanto oculta quanto revelada por toda uma rede de referências
intra-textuais. Os diferentes níveis de interpretação não são nunca hierarquizados, mas, ao contrário, estão
simultaneamente presentes. A utilização de “precieuse marguerite” é ao mesmo tempo metafórica e literal. A
alma é ao mesmo tempo comparada à pérola e designada como tendo seu nome (Marguerite) e sua identidade
própria” que, ao final, ela perde. Cf. Catherine M. MÜLLER, Marguerite Porete et Marguerite d’Oingt de
l’autre cotê du Miroir, 1999: 86/87.
156
Mirouer: 52: 3-5. Na poesia cortês, a locução “de boa linhagem” designa o grau nobre que a dama possui por
nascença. No mundo feudal, a linhagem, ou seja, a família, a raça, a descendência, criava obrigações para o
cavalheiro. Além da linhagem de seu pai, um homem devia respeitar a linhagem de sua mãe ou de sua esposa,
que lhe traziam novas obrigações. O valor da noção feudal foi mantido na poesia cortês. Consciente do respeito
devido à família da dama, o trovador assinalava a sua ascendência ilustre.
157
Mirouer: 73: 40-42.
149
aniquiladas e se reconhecem nas palavras do Mirouer, da mesma maneira como vêem Deus e
Deus se vê nelas na união de amor.
Entre vós, senhoras, a quem Deus, em sua bondade divina, deu essa vida
abundantemente e sem retorno – e não somente aquela da qual falamos, vós
reconhecereis nesse livro o vosso exercício. Quanto às almas que não o são,
nem o foram, nem o serão, elas não sentirão ou reconhecerão esse estado. Elas
não o podem fazer, nem o farão. Elas não pertencem à linhagem da qual
falamos, tal como os anjos da primeira ordem não são os Serafins, nem o podem
ser, pois Deus não lhes deu o estado de Serafim. Mas as que não o são – mas
que são em Deus, porque o serão – reconhecerão esse estado e sentirão, ainda
mais fortemente, por força da linhagem à qual pertencem e pertencerão, aquilo
que não conheceram e sentiram. As pessoas sobre quem falamos, que já são e
serão, vão reconhecer aquilo que vão entender, a saber, a linhagem à qual
pertencem.
158
Em seu diálogo com a Razão, a alma se refere à gente mesquinha, rude e
inconveniente que vive sob o seu conselho, “bestas e asnos” que a fazem dissimular sua
linguagem por sua grosseria. Para esses, ela não fala, com medo de que eles não encontrem a
“morte no estado de vida”. É por isso que ela precisa usar uma linguagem cifrada para
expressar o que aprendeu em segredo na “corte secreta do doce país”.
159
Com certeza, para
Porete, tais almas destituídas de nobreza e cortesia não fazem parte da elite do amor divino e
da Igreja invisível que, para ela, sobrepuja a visível, mas que ainda assim serão salvas.
Amour continuamente avisa a alma para que ela não dissemine seus segredos entre
aqueles que não são dignos e que vivem de acordo com a Razão.
160
Essas outras almas devem
158
Mirouer: 98: 13-27.
159
Mirouer: 68: 9-18.
160
Je vous prie chere fille, Ma seur et la moye amie, Par amour, se vous voulez, Que vous ne vuillez plus dire
les secrez, que vous savez: Les aultres s’en dampneroient, La ou vous/vous sauverez, Puisque Raison et Desir les
gouvernent, et Crainte et Voulenté. Sachez pourtant mons eslite fille, que paradis leur est donné.” Mirouer: 121:
55-65.
150
decifrar a alegoria ou a visão mediada das palavras, simbolizada pela secrete closture, que
funciona como um véu que protege o mistério e o silêncio divinos.
Ao longo do texto, Marguerite Porete explora a aristocracia do amor simbolicamente,
em sua forma cortês e em suas conotações sociais. Ela, que na prisão se recusou a responder a
seus inquisidores, diz:
Essa Alma, diz Amor, é livre, mais que livre, libérrima, transcendentemente
livre ... A herança dessa Alma é a mais pura liberdade, cada uma de suas partes
tem o seu brasão de nobreza. Essa alma não responde a ninguém a menos que
queira, se ele não é de sua linhagem; pois um nobre não se digna a responder a
um vilão que o chama ou intimida no campo de batalha. Portanto, quem chama
uma tal Alma não a encontra; seus inimigos não conseguem dela nenhuma
resposta.
161
Na perspectiva akbariana, de forma análoga à de Porete, se todas as criaturas são o
receptáculos de Deus, elas não o são de maneira igual. É a sua “predisposição” essencial, a
qual têm por toda a eternidade, que determina a sua capacidade de refletir, de modo mais ou
menos amplo e fiel, o que se epifaniza. Segundo Ibn’Arabī, a água toma a cor do recipiente
que a contém, e só o verdadeiro
conhecedor transcende essa situação. Só o coração do homem
perfeito, polido, é restituído à sua transparência original, sendo assim receptivo ao fluxo
incessante das teofanias.
Todas as coisas existentes (outras que Deus e o homem) recebem sua perfeição.
Deus é perfeito e o homem está dividido em dois tipos: um não recebe a
perfeição ... Um segundo tipo de homem recebe a perfeição. Dentro dele torna-
se manifesta a receptividade para a Presença Divina em sua perfeição e em
161
Mirouer: 85: 3-11.
151
todos os seus nomes. Deus designou esse tipo o vice-regente e o vestiu com um
manto de perplexidade (hayra) em relação a Ele.
162
O homem perfeito serve a Deus sob o nome Allah, o não-delimitado, e sob nenhum
outro nome. Ele acompanha Allah em cada uma de suas auto-manifestações. Em outras
palavras, o servo perfeito, por meio de seu esvaecimento e de seu nada, manifesta todos os
nomes divinos. Outros amigos de Deus, cujo status
é mais baixo, embora realizem o nome
Allah em alguma extensão por serem humanos, manifestam na prática apenas alguns nomes.
Os mortais comuns assumem vários traços dos nomes em desequilíbrio, o que os conduz ao
desvio das normas humanas e os impede de se elevarem além do nível de “homem animal”.
Ibn’Arabī estabelece três tipos entre aqueles que chama de Homens de Allah: os
cultuadores, dominados pela renúncia, devoção constante e atos puros, que não vêem nada
além dos trabalhos que realizam; os sufis,
163
que além de mostrar os traços dos cultuadores
vão além, vendo todos os atos como pertencentes a Deus (estes também vão além nos estados,
estações, ciências, mistérios, desvelamentos e dons carismáticos); e finalmente o terceiro tipo,
que ele denomina o Povo da Culpa, sobre o qual diz:
Eles não se distinguem dos fiéis que realizam as obrigações de Deus por
nenhum estado extra pelo qual possam ser conhecidos. Eles andam nos
mercados, falam com as pessoas, e nenhuma das criaturas de Deus vê nenhum
deles se distinguindo das pessoas comuns por uma única coisa ... Eles estão sós
com Deus, firmemente enraizados, não se afastando de sua servidão nem por
um piscar de olhos ... Eles estão velados para as criaturas e permanecem ocultos
delas pelo disfarce de gente comum. Pois são servos sinceros e devotados de
seu Mestre. Eles O testemunham ao beber e ao comer, ao acordar e ao dormir, e
162
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 307.11,29,35) in The Sufi Path of Knowledge, 1989: 296.
163
Freqüentemente, em sua obra, Ibn’Arabī emprega o termo “sufi” não como um termo genérico que designa os
que buscam e encontram Deus, mas como uma designação de um tipo particular de espiritualidade que engloba
uma certa medida de exibição e auto-satisfação, denotando com isso certos walī ou amigos de Deus que são
menos perfeitos. Cf. William CHITTICK, The Sufi Path of Knowledge, 1989: 373.
152
ao falar com Ele entre as pessoas ... Eles mantêm para si externamente e
internamente o nome pelo qual Deus os nomeou, isto é, “os pobres”.
164
A via da culpa ou os homens da culpa, os malāmyyia, são o povo da servidão absoluta.
O que os distingue é haver neles uma consciência permanente de sua indigência ontológica,
que neles não é mascarada por nada. Eles renunciam a qualquer pretensão de autonomia.
Esses são, para al-Shaykh, os mais perfeitos conhecedores, que aparentam ser totalmente
comuns e permanecem desconhecidos. Eles são como uma árvore ou um pássaro, seguindo o
desejo divino para onde quer que ele os leve, em completa serenidade. Contrariamente aos
ascetas, que não medem esforços para alcançar a renúncia, o que mostra que a seus olhos o
mundo ainda tem um valor, contrariamente a certos sufis cujos carismas são muito visíveis, os
malāmyyia se esvanecem no anonimato mais obscuro, que constitui o epíteto de todo ser
humano: “servo de Deus”. E mesmo ao reconhecerem os atributos de soberania dentro de si,
eles preservam a cortesia.
Entre os amigos de Deus há aqueles que são conhecidos como nobres (al-
kurmā), tanto homens como mulheres. Deus se torna amigo deles por meio da
nobreza da alma ... Em outras palavras, eles não olham para aquilo que Deus
condenou olhar ... Mas essas são as almas que recusam todas as qualidades vis,
já que são as almas dos nobres entre os servos de Deus.
165
164
IBN’ARABĪ, Futūhāt (III 34.28) in The Sufi Path of Knowledge, 1989: 374. Ibn’Arabī explica a razão do
nome Povo da Culpa: “Eles são chamados ‘Povo da Culpa’ por duas razões. A primeira é que o termo é adscrito
a seus estudantes porque eles nunca cessam de culpar a si mesmos perto de Deus. Eles nunca realizam um
trabalho que os faça felizes, como parte de seu treinamento. Pois ninguém pode ficar feliz com trabalhos até que
eles sejam aceitos e isso não é visto pelos estudantes. Quanto aos grandes entre eles, o nome lhes é adscrito
porque eles ocultam os estados e sua posição com Deus quando vêem que as pessoas criticam seus atos porque
elas não os vêem como vindo de Deus ... Então, elas culpam e criticam seus atos. Mas se o véu fosse removido, e
se elas vissem que os atos pertencem a Deus, nenhuma culpa se ligaria a ele em cujas mãos eles apareceram ... É
como se sua própria posição os culpasse porque não é manifesta.” Cf. op. cit.: 375.
165
IBN’ARABĪ: Futūhāt (II 38.33), in The Sufi Path of Knowledge, 1989: 320
153
No Futūhāt, Ibn’Arabī também trata do “Verdadeiro Conhecimento das Alusões”,
explicando porque o sufi nem sempre expressa seus ensinamentos na mais clara das
linguagens. Segundo ele, Deus criou as criaturas em vários estágios. Há o conhecedor e o
ignorante, o justo e o obstinado, o líder e o seguidor, o rei e o súdito, o invejoso e o invejado e
assim por diante. Contudo, ainda segundo al-Shaykh, Deus não criou ninguém tão difícil e
problemático para o “Povo de Allah” quanto os estudiosos exotéricos, que, “em relação ao
Povo de Allah, são como os faraós em relação aos mensageiros de Deus.”
166
Ibn’Arabī diz
então que os conhecedores se protegem nomeando as realidades com “alusões”, já que os
exotéricos não negam as alusões. A esse propósito, Ibn’Arabī cita um pequeno verso que
alude ao dia da ressurreição: “Quando o pó clarear, você verá se monta uma égua ou um
asno.” Al-Shaykh diz também que os conhecedores não empregam alusões entre eles, mas o
fazem somente quando alguém que não é um deles se senta entre eles ou quando a situação
emerge espontaneamente dentro deles.
Inegavelmente, tanto Marguerite Porete quanto Ibn’Arabī estabelecem uma hierarquia
das almas humanas, uma aristocracia que por nobreza inata e graça divina é capaz de atingir o
mais alto nível espiritual de união com o divino. Inegavelmente também, ambos cifram suas
mensagens, protegendo-as das bestas e dos asnos da Santa Igreja, a pequena, e dos exotéricos
que montam asnos em vez de éguas, bem como das “almas mercadoras” e daqueles que não
passam do nível de “homem animal”. Porém, de certa forma, a apófase que percorre o texto
de ambos termina por destruir as hierarquias que estabelecem. Em Porete, é somente à medida
que a alma se tornou nada, que desceu ao mais baixo dos baixos e aniquilou sua vontade,
reconhecendo sua maldade total, é que ela é tudo, que recebe em si a total bondade divina. Em
Ibn’Arabī, paradoxalmente, a realeza só se concretiza no homem perfeito quando ele atinge a
servidão completa, quando, como “servo puro” e totalmente “pobre”, a possibilidade de uma
166
IBN’ARABĪ, Futūhāt (I 279.7), in op. cit.: 247.
154
escolha desapareceu, e Deus deseja por meio de sua vontade sem que ele saiba que aquilo que
deseja é a mesma coisa que Deus deseja. É somente na mais completa aniquilação que a alma
aniquilada e o homem perfeito realizam a sua nobreza.
155
CAPÍTULO III
A IMAGEM DE DEUS:
O Deus uno-trino, o Deus uno-múltiplo e o“nada” divino
A palavra que acolhe o silêncio não se funda em um ato voluntário. Ela é, ao
contrário, fruto de um arrebatamento. É vocação, é resposta a um chamado.
Impõe-se, sobretudo, como inapelável necessidade, a quem depois a organiza
como um enunciado.
1
É relativamente comum no Ocidente que nos estudos de mística seja assumida a
validade inter-religiosa e a inteligibilidade filosófica do termo Deus. Contudo, num estudo
comparativo de mística, o termo apresenta alguns problemas. Hoje, é amplamente aceito que
o significado e a referência são gerados por meio da linguagem, de tal forma que um
determinado termo – como Deus, Brahman, Eyin Sof, al-Haqq, Filho ou Logos – adquire
significado e definição por meio do relacionamento com outras palavras do mundo da
linguagem religiosa do qual faz parte.
2
Numa ampla variedade de contextos, a utilização do termo Deus de modo
interconfessional é defensável ou mesmo indispensável, à medida que acentua valores ou
propósitos comuns, sugere a base comum e a compreensão mútua de reverência e crença.
Entretanto, em parte, cada religião definiu sua identidade contra a identidade das outras. No
caso das três religiões abraâmicas, é comum ouvir que as três reconhecem "o mesmo Deus",
mas, ainda que seja assim, esse mesmo Deus tem um filho ou não tem um filho, tem uma
dinâmica interna trina ou é absolutamente uno e, nesse caso, há diferenças na imagem divina
formulada dentro de cada tradição. A utilização genérica do termo Deus pode ser aplicável ou
1
Santiago KOVADLOFF, O sSilêncio pPrimordial, 2003: 11.
2
Michael SELLS, “Comments” in Mystical Union and Monotheistic Ffait in Judaism, Christianity and Islamh:
Aan Ecumenical Dialogue, 19989: 163.
156
problemática nos estudos comparativos de mística e depende do exame dos sistemas
lingüístico-culturais de cada tradição. Cada imagem de Deus tem uma configuração diferente,
relacionando-se ao restante do universo religioso de forma diferente. Segundo Sells, chamar
as duas formas de Deus pode implicar ou implica que as formas devem ser a mesma ou que
apenas uma delas é válida ou única.
3
Tratando do tema da pluralidade de formas religiosas, John Hick se refere a uma
quinta dimensão de nossa natureza, o transcendente dentro de nós – uma dimensão espiritual –
que nos permite responder a uma quinta dimensão do universo, o transcendente fora de nós.
“Nesse aspecto de nosso ser, somos – de acordo com diferentes versões do grande quadro
religioso – contínuos ou semelhantes ou estamos em sintonia com a realidade última que
subjaz, interpenetra e transcende o universo físico.”
4
O termo “O Real” é utilizado por Hick para se referir ao transcendente, à realidade
última. Segundo Hick, esse termo é alusivo, metafórico, um termo que aponta ao invés de
definir. Os místicos das grandes tradições quase unanimemente afirmam que o Real, o
fundamento de tudo, em linguagem metafórica, está além das concepções humanas, que é
inefável ou transcategórico. A linguagem humana pode somente descrever as várias formas do
impacto do Real sobre nós, mas não o Real em si. Entretanto, no contexto das religiões
ocidentais, falar do objeto último é falar de Deus. Embora as descrições da realidade última
ou de Deus nas diferentes religiões não possam ser literalmente aplicadas ao Real, essas
diferentes imagens ou formas, bem como as práticas espirituais a elas associadas foram
desenvolvidas dentro das grandes tradições religiosas históricas.
5
Marguerite Porete e Ibn’Arabī falam das imagens de Deus formuladas em suas
respectivas tradições religiosas. Marguerite Porete claramente coloca-se dentro da tradição
cristã, mas de certa forma promove uma espécie de desconstrução dessa mesma tradição a
3
Michael SELLS, “Comments” in Mystical Union in Judaism, Christianity and Islam: Aan Ecumenical
Dialogue, 19989: 164.
4
John HICK. The Fifth Dimension: Aan Eexploration of the Sspiritual Rrealm, 1999: 2.
5
John HICK, op. cit.: 8/9.
157
partir de dentro dela. A obra de Ibn’Arabī, por sua vez, ainda que profundamente ancorada na
tradição islâmica, promove uma visão bastante particular da mesma, a ponto de sua leitura ter
sido proibida em alguns países muçulmanos. Enquanto místicos, os dois autores não apenas
beiram a heterodoxia como também expressam a necessidade de ir além das imagens e
recorrem à linguagem apofática, constantemente desdizendo suas afirmações sobre o Real. É
exatamente nessa tensão entre proposições duplas que se pode apreender, ainda que de
maneira sutil, a imagem divina “sem imagem”, o “nada divino” que perpassa os textos dos
dois autores. Em última análise, ambos falam do silêncio, de um fundo irredutível que não
encontra nem pode encontrar equivalência nas palavras a não ser por uma aproximação
indireta e alusiva, mas que ainda assim, pode ser reconhecido.
Na jornada mística por eles descrita, a alma progride mais profundamente para dentro
da escuridão divina. Por meio da linguagem de perplexidade, do paradoxo e da ambigüidade,
eles expõem a consciência da aniquilação ontológica na qual as fronteiras entre o eu e Deus se
dissolvem. Na “morte” que ocorre, a alma se livra das construções teológicas e da opressão
espiritual, descobrindo uma verdade que desafia a verbalização. Aqui ela encontra a Deidade
que se descarta de propriedades e nomes, partilhando a mesma nudez.
A vivência do “nada” descrita nos textos resulta na consciência mística de um novo
estado de ser. Essa experiência abissal normalmente descrita como união ou aniquilação
mística, mostra a exaustão de todas as teorias e visões. Em certos tipos de experiência mística
aniquilatória, não se está mais delimitado por estruturas que definem um paradigma particular
de revelação, como tão bem formula Ibn’Arabī num de seus mais conhecidos poemas.
6
Os
que experimentam essa travessia de limiar e penetram o vazio tanto do eu quanto da Deidade
parecem adquirir uma dimensão de consciência capaz de manter os paradoxos – divino-
6
Meu coração se tornou capaz de qualquer forma: um pasto para as gazelas e um convento para os monges
c
Cristãos, um templo para os ídolos e a cCaaba do peregrino, as tábuas da Torah e o livro do Corão. Sigo a
religião do amor: para onde quer que sigam seus camelos, o amor é minha religião e minha fé. Cf. L’Interprète
des d
Désirs (The Tarjumān Al-Ashwāq), 1996: 116-118.
158
humano, infinito-finito, um-muitos – e uma liberdade lingüística e ontológica distinta. Para
além da verdade da própria tradição que os distingue, há lugar para uma abertura ilimitada.
Com o intuito de facilitar nossa exposição, artificialmente dividimos aquilo que
podemos chamar da linguagem catafática de Porete e de Ibn’Arabī, na qual transparece
claramente a imagem de Deus da tradição teológica e doutrinária de cada um e a maiêutica
negativa que ambos utilizam, o momento apofático no qual desdizem o Deus formulado em
suas tradições e deixam transparecer o Deus despido de propriedades e atributos, o Deus sem
imagens, o nada divino. É óbvio que esses momentos estão interligados ao longo dos textos de
ambos, tal como se pode esperar de místicos eminentemente apofáticos.
3.1 – A teologia trinitária em Marguerite Porete
Jesus lhe disse: mulher, por que choras; a quem buscas?
Marguerite Porete não oferece uma grande especulação teológica e cosmológica em
sua obra. Contudo, algumas referências esparsas podem ser encontradas no Miroir como base
para sua doutrina da aniquilação. Em sua teologia mística, assim como no pensamento cristão
tradicional, Deus está identificado com o amor. Na verdade, seu trabalho gira em torno de
uma meditação sobre Deus personificado como Amor e como Bondade. No pensamento de
Marguerite Porete, como também na tradição cristã mais ampla, a absoluta imanência de Deus
é contrastada com sua absoluta transcendência, como fica evidenciado nas fábulas que a
autora utiliza na abertura de seu Miroir e na metáfora do amor cortês que assinala a dupla
noção de presença e ausência. Os motivos expressos nessas passagens revelam a concepção
de Porete do dilema das almas caídas, ou perdidas, como ela prefere dizer, ao mesmo tempo
longe e inevitavelmente próximas de Deus.
159
Para Marguerite Porete, Deus é o bom, o magnânimo e o superabundante fundamento
do ser. Tanto as almas quanto o mundo material são resultado do fluxo divino, o que significa
que todas as coisas participam em alguma medida da essência divina. Sua doutrina delineia o
Espírito Santo como a bondade de Deus, a vontade de Deus e o amor de Deus, e nele vê o
elemento chave para a compreensão da jornada de aniquilação da alma.
Muitas das descrições positivas que Marguerite Porete faz de Deus são análogas às
formulações tradicionais. Deus é eterno e ama eternamente as almas. Ele é Uno, expresso
como três, uma trindade de poder, sabedoria e bondade intimamente ligada às criaturas por
laços de amor.
Isso significa que tal Alma Aniquilada tem uma compreensão tão grande dentro
de si em virtude da fé, e que está tão ocupada dentro de si com o suporte que a
Fé administra a ela do poder do Pai, da sabedoria do Filho, e da bondade do
Espírito Santo, que nada criado, que passa brevemente, pode viver em sua
memória...
7
As almas humanas têm uma marca própria que as diferencia de todas as outras
criaturas, a marca da Trindade que habita dentro delas. Por meio dessa imagem, certas almas
nobres podem, durante a vida terrena, atingir o paradoxal estado de “nada”, a aniquilação. A
natureza trinitária desse Deus ao mesmo tempo imanente e transcendente é central na doutrina
de aniquilação de Marguerite Porete.
8
A autora delineia sucintamente o papel de cada uma das
pessoas da Trindade na criação:
7
Mirouer: 11: 31-36.
8
Porete, assim como outras béguines, utiliza uma fonte doutrinal agostiniana, porém enriquecida e transformada
pela adição da espiritualidade cisterscience, principalmente pela obra de William de Saint Thierry, que re-
introduziu a teologia aAlexandrina na tradição lLatina. William de Saint Thierry desenvolveu uma nova teologia
tTrinitária inspirada na tradição aAlexandrina, mas enfatizou ainda mais o laço próximo entre a vida tTrinitária e
nossa própria vida espiritual. Essa integração de nossas relações com Deus de tal forma que “Deus ama a Si-
Mesmo através e por meio do coração humano” tornou-se uma marca característica da espiritualidade béguine.
Cf. ÉEmilie ZUM -BRUNN e Georgette EPINEY-BURGARD, Women Mystics in Medieval Europe, 1989: xxvi.
160
... Essa retidão está escrita na essência do livro da vida. Está portanto com esse
livro e comigo, diz essa Alma, como estava com Deus e com as criaturas
quando Ele as criou. Ele a quis por Sua divina bondade, e tudo isso foi feito no
mesmo momento por Seu poder divino, e tudo foi ordenado nessa mesma hora
por Sua sabedoria divina.
9
Marguerite Porete não enfatiza o papel da segunda pessoa da Trindade como
mediadora da criação. Cada pessoa da Trindade é igual e indispensável ao ato da criação.
Contudo, há no texto de Marguerite Porete pistas que sugerem ser o Espírito Santo, como a
bondade, a vontade e o amor de Deus, ao menos tão importante quanto o Filho na criação e no
destino da alma humana e do mundo.
Amor: Essa é a verdade, pois Deus o Pai possui o poder divino em Si, sem
recebê-lo de ninguém. O que Ele possui emana de seu poder divino e dá a Seu
Filho o mesmo que possui em Si, e o Filho o recebe do Pai, se bem que o Filho
nasce do Pai e assim é igual a Ele. E do Pai e do Filho é Espírito Santo, uma
pessoa na Trindade. Ele não é nascido, mas Ele é, pois uma coisa é que o Filho
nasce do Pai, outra coisa que o Espírito Santo seja do Pai e do Filho.
10
Para Marguerite Porete, Deus o Pai possui o poder que é somente seu e que só de
maneira derivada o Filho e o Espírito Santo recebem, ainda que sejam iguais a Deus. Tal
concepção fica mais clara no caso do Filho, que Porete descreve como concebido pelo Pai,
“herdando” Dele sua natureza divina. Contudo, o Espírito Santo é explicitamente “não
9
Mirouer: 101: 30-34. Joanne Maguire ROBINSON assinala a ênfase agostiniana dessas concepções.
Especificamente em relação aà essa passagem, comenta as conotações polivalentes que a palavra ordonné
(ordener, ordonner) pode assumir no fFrancês aAntigo. Uma delas seria “consagração” ou “santificação”, o que
garantiria ao Filho o papel de santificar a criação de Deus. Outro sentido seria “decretar” ou “ordenar”, o que
faria do Filho, referido como a sabedoria de Deus, a força racional do universo, ou o Logos. Uma outra
interpretação possível estaria relacionada a
à “conhecimento prévio” – o pré-conhecimento do Filho em relação à
criação. Esses diferentes níveis de significado podem fornecer diferentes níveis de autoridade à pessoa do Filho e
diferentes compreensões sobre o papel da s
Segunda pessoa da Trindade na criação. Outras passagens do texto
afirmam a existência de todas as coisas na sabedoria divina. Cf. Nobility and Annihilation in Marguerite
Porete’s Mirror of Simple Souls, 2001: 55
10
Mirouer: 67: 13-20.
161
nascido”, procede misteriosamente tanto do Pai quanto do Filho, o que entretanto não diminui
o seu status na Trindade e sua centralidade no Miroir. O Pai é a “substância eterna”, origem
de tudo. Essa substância encontra sua “fruição” na pessoa do Filho. O Espírito Santo é a união
da substância eterna e da fruição – o encontro do Pai e do Filho no amor. Porete utiliza ora a
designação tradicional do Pai como poder, do Filho como Sabedoria e do Espírito Santo como
bondade, ora a tríade de substância, fruição e conjunção.
Porete exalta a filiação divina. A pessoa do Filho, além da natureza divina, possui
também a natureza humana, composta de corpo e alma. Contudo, ela frisa que a filiação
“adotiva” das almas aniquiladas, efetuada pela graça e aliada ao abandono da vontade, se
iguala a ser “concebido” pelo Pai e permite que as mesmas ascendam aos céus.
11
A Verdade me disse que ninguém ascenderá exceto aquele que de lá desceu,
isto é, o próprio Filho de Deus. Isso quer dizer que ninguém ascenderá até lá,
exceto aqueles que são Filhos de Deus pela graça divina. E porque o próprio
Jesus Cristo disse que aquele é meu irmão, minha irmã e minha mãe, que fazem
a vontade de Deus, meu Pai.
12
Para Porete, a graça é explicitamente trinitária. A alma, criada pela Trindade por meio
da efusão do amor divino, é por Ela eternamente amada. Ao ser criada, a alma recebe um
imprint da imagem da Trindade, mas a doutrina de Porete é uma doutrina de imagem
recíproca – a alma também está gravada e mantida em Deus por obra do Amor, que é o
Espírito Santo, e mantém uma imagem da Trindade dentro de si. A maior parte da alma existe
sempre em Deus. É importante frisar que, para Porete, é o Amor – o Espírito Santo e não a
11
Joanne Maguire ROBINSON, Nobility and Annihilation in Marguerite Porete’s Mirror of Simple Souls, 2001:
55/56.
12
Mirouer: 128: 23-29.
162
Sabedoria –, o Filho, que mantém a imagem da alma dentro de Deus. A alma está na
Trindade, e a Trindade está dentro da alma, eternamente, por obra do Espírito Santo.
13
Essa Alma está impressa em Deus, e tem sua verdadeira marca mantida por
meio da união do Amor. E da maneira como a cera toma a forma do selo, assim
também essa Alma tomou a forma de seu verdadeiro exemplar.
14
Para Marguerite, o mais alto ponto de perfeição espiritual é alcançado apenas pelo
poder do Espírito Santo, a quem cabe o papel principal na dinâmica de crescimento espiritual.
No vazio que se segue a aniquilação da vontade há o preenchimento divino pelo Espírito
Santo, cujo trabalho permite que alma seja transformada de maneira radical. É nesse momento
que, de acordo com a teologia de Marguerite de processão das Pessoas dentro da Trindade, a
alma recebe toda a Trindade, pois o Espírito Santo possui completamente o que as outras duas
Pessoas possuem. É nesse momento que a imagem da Trindade impressa na alma torna-se
propriamente o “tesouro” da Trindade, tornando essa alma idêntica à Deidade.
3.1.2 – A dimensão cristológica e a salvação
Porete mantém muito da doutrina cristã tradicional, mas promove uma reconcepção
baseada em sua doutrina da alma aniquilada. Em função dessa doutrina, Porete se afasta da
soteriologia tradicional, da salvação mediada por Cristo, e afirma dois tipos de salvação. Ela
não parece estar particularmente interessada no destino da massa da humanidade e sim no
destino de certas almas individuais eleitas. Reconhecendo o papel de Cristo como salvador e
redentor da humanidade por seu sofrimento no corpo e na alma, Porete diminui a importância
de sua natureza humana para as almas que buscam a aniquilação e enfatiza seu papel como
13
Joanne Maguire ROBINSON, Nobility and Annihilation in Marguerite , 2001: Porete’s Mirror of Simple Souls
61/62.
14
Mirouer: 50: 3-6.
163
aquele que faz a vontade de Deus. Cristo é o modelo exemplar da capacidade de querer o que
Deus quer. Marguerite Porete invoca o Filho de Deus encarnado como “meu espelho nisso”,
referindo-se à total obediência à vontade do Pai. Ela insiste que aqueles que verdadeiramente
amam Cristo não se fixam em sua humanidade e que o sacrifício de Cristo é secundário em
relação ao papel que ele representa no caminho da aniquilação da vontade.
O Filho de Deus é meu espelho nisso, pois Deus, o Pai, nos deu Seu Filho para
nos salvar. Ele não tinha nenhuma outra intenção ao nos dar esse presente a não
ser a nossa salvação. E o Filho nos redimiu ao morrer, prestando obediência a
seu Pai. Ele não tinha nenhuma outra preocupação ao fazê-lo do que a vontade
de Deus, seu Pai. E o Filho de Deus é exemplar para nós e assim devemos
segui-lo quanto a isso, pois devemos querer em todas as coisas apenas a vontade
divina. E assim seremos filhos de Deus Pai de acordo com o exemplo de Jesus
Cristo, Seu Filho.
15
Porete afirma que as tristes almas presas alcançam a salvação pela graça de Cristo,
mas permanecem escravas das virtudes e do exemplo de Cristo em seus sofrimentos
corporais. Essas almas, que não seguem as mensagens do Amor e escolhem a salvação por
meio das obras, podem ser salvas pela obra redentora de Cristo, porém nunca alcançarão o
status espiritual mais elevado, reservado àquelas que abandonam a vontade e atingem a
aniquilação.
16
Porete acha que o sacrifício de Cristo, como pagamento do débito da humanidade para
com Deus, redime o pecado original e atenua a profunda alienação humana, mas não é
suficiente para certas almas que buscam a aniquilação e que devem ser responsáveis por seu
próprio caminho de salvação. Essas são as almas que devem ultrapassar o estágio da vida de
15
Mirouer: 109: 41-50.
16
Joanne Maguire ROBINSON, Nobility and Annihilation in Marguerite Porete’s Mirror of Simple Souls, 2001:
71.
164
perfeição evangélica e das obras, que é suficiente para retribuir a Jesus Cristo seu sacrifício.
17
Em última análise, a redenção de Jesus Cristo tem um papel crítico, mas não definitivo, no
caminho para a aniquilação. É uma graça que permite que todos os seres humanos alcancem a
salvação a despeito do pecado de Adão, mas as almas aniquiladas vão além dessa graça.
É importante assinalar que Porete não vê o corpo como o agente da queda. Seu foco
não é na tentação, em Eva ou na serpente ou mesmo na árvore do conhecimento do bem e do
mal, mas na obstinação no uso da vontade e na ignorância. Em última análise, não importa se
a serpente ou a mulher ou as tentações do corpo causaram a queda de Adão e ele nem mesmo
precisaria ser tentado a partir de uma situação externa, pois sua queda foi causada pelo
exercício de sua vontade, que o compelia internamente e o afastou de Deus.
Porete utiliza a palavra Paraíso em duas acepções diferentes. Por um lado, Paraíso não
é senão a visão de Deus. Por outro, é o reino dos que são salvos, o lugar onde Adão foi criado
e de onde “caiu”, para o qual muitos cristãos, guiados pela razão, lutam para retornar. Em
contraposição ao plano terrestre, onde os pecados são escondidos por vergonha, o Paraíso é
um lugar de conhecimento, onde tudo é conhecido e até mesmo os pecados se tornam
gloriosos. Embora o Paraíso seja o lugar onde as almas tristes e presas alcançam a mais alta
visão de Deus, não é a destinação das almas aniquiladas, pois ainda é um lugar que se deseja
alcançar. A destinação última das almas nobres é coisa alguma, nada.
18
Na visão de Porete, a segunda pessoa da Trindade redime o débito de Adão
consignado à humanidade, o que não apaga o débito que cada alma humana ainda tem com
17
Muitos itinerários místicos anteriores e contemporâneos Porete eram profundamente cristológicos, no
sentido de serem explicitamente ligados ao amor de Jesus, o homem-Deus, tanto como o caminho quanto como a
meta da união mística. No século XIII, o fundo cristológico da mística c
Cristã começou a tomar um matiz cada
vez mais passional. Porete, contudo, constitui uma exceção. Embora haja em seu trabalho uma significativante
dimensão cristológica para a aniquilação, ela não depende da usual meditação contemplativa do sofrimento de
Jesus, tão central em f
Franciscanos como Angela de Foligno e também encontrada nas outras béguines,
Hadewijch e Metchild. Para Porete, Jesus não é o Noivo Divino como para muitas mulheres místicas. A Alma
Aniquilada é a noiva do Espírito Santo ou de toda a Trindade e não de Cristo. Cf. Bernard McGINN, The
Flowering of Mysticism: M
men anda Wwomen in the Nnew Mmysticism, 1998: 260.
18
Joanne Maguire ROBINSON, Nobility and Annihilation in McargueritePorete’s Mirror of Simple Souls, 2001:
66.
165
Deus em razão de cada movimento da vontade que a distancia Dele. Portanto, embora Porete
medite sobre o sofrimento de Cristo, por ela e por toda a humanidade, e sobre a necessidade
de tomar Cristo como modelo para os trabalhos e sofrimentos, “não devemos entender isso
como uma fixação nas feridas sangrentas do Senhor em agonia mas como uma teofania da
verdadeira kenosis, o esvaziamento da vontade pela aniquilação.”
19
Na visão de Porete, a verdadeira imitatio Christi é o ato de abandonar a vontade
humana à vontade de Deus. Ela dispensa as imitações corporais de Cristo como caminho para
a união com Deus, pois a alma somente alcança a paz através do repouso na Trindade, sendo
para isso necessária a aniquilação da vontade.
Para Porete, a vontade humana é livre para escolher entre o bem e o mal em sua vida
terrena. Porete afirma que as almas aniquiladas, que reconheceram sua pecaminosidade e se
esvaziaram totalmente, de tal forma que a bondade divina pudesse nelas habitar, tornam-se
também salvadoras. Elas foram “plantadas pelo Pai” e vieram ao mundo, descendo da
perfeição para a imperfeição, a fim de obter maior perfeição. Embora a dimensão cristológica
permaneça, essas almas totalmente humildes tornam-se co-redentoras com Cristo. Mais uma
vez o foco principal de Marguerite Porete é a liberdade que certas almas têm frente a Deus,
baseada na existência virtual da alma na Trindade.
... E por meio disso sou um exemplar da salvação. Mais ainda, sou a salvação de
toda criatura e a glória de Deus. E vos direis como, por quê e em quê. É porque
sou a soma de todo mal, pois contenho em minha própria natureza aquilo que a
maldade é, e portanto sou a maldade total. E ele que é a soma de todo bem
contém em si, por sua própria natureza, toda a bondade ... Já que sou a maldade
total e ele é a bondade total, é necessário que eu tenha a totalidade de sua
bondade antes que minha maldade possa ter fim ... Da mesma forma vos digo,
diz essa Alma, que Deus o Pai derramou em mim e me deu toda sua bondade.
Aquela bondade de Deus é dada a conhecer para a linhagem humana por meio
19
Bernard McGINN, The Flowering of Mysticism: Men and Women in the New Mysticism 1200-1350, 1998:
261.
166
de minha maldade. Daí fica claro que sou permanentemente a glória de Deus e a
salvação da criatura humana ... Portanto eu sou a causa da salvação de toda
criatura, pois é através de mim que eles conhecem a bondade de Deus.
20
Sintetizando, fica claro que Porete acreditava em dois tipos de salvação: a salvação de
modo “não-cortês” (mal courtoisement) das almas mercadoras, que apenas cumprem os
mandamentos e as doutrinas da santa Igreja, a pequena, e das almas tristes, que mesmo em
estágios mais elevados do amor não atingem a liberdade; e a verdadeira salvação, alcançada
pelas almas nobres e aniquiladas que, abandonando qualquer vontade, atualizam o tesouro de
suas verdadeiras naturezas.
Espírito Santo: Ó santa Igreja, gostaríeis de saber o que essa alma (aniquilada)
sabe e o que ela quer? Eu vos direi o que ela quer. Essa alma sabe apenas uma
coisa, isto é, que ela nada sabe. E assim ela quer apenas uma coisa, isto é, ela
nada quer. Esse nada-saber e esse nada-querer lhe dão tudo, e permitem que ela
encontre o tesouro enterrado e oculto que está eternamente encerrado na
Trindade; não através da natureza divina, pois isso não pode ser, mas através da
força do Amor, como é necessário que seja.
21
3.2 – Wahdat al-wujūd: a doutrina da unidade do Ser em Ibn’Arabī
Em nome de Deus, o Omnicompassivo e Misericordioso.
O princípio da unidade (al-tawhīd) é o cerne da mensagem islâmica e determina sua
espiritualidade em todas as suas múltiplas dimensões e formas. O objetivo último do Islã é
revelar a unidade do princípio divino e integrar o mundo da multiplicidade à luz dessa
unidade. As duas afirmações, "Não há deus exceto Deus" (lā ilāha ill'Allāh) e "Muhammad é
20
Mirouer: 117: 7-14; 16-20; 34-41; 48-50.
21
Mirouer: 42: 3-13.
167
o seu profeta" (Muhammadun Rasūl Allāh) constituem o primeiro pilar da fé islâmica. A
primeira afirmação anuncia o princípio cardinal do monoteísmo islâmico, o de que não há
deus exceto o Deus (Allah), nome próprio que designa um único ser. A segunda afirmação
refere-se à fé muçulmana na autenticidade de Muhammad como o enviado, a manifestação e o
símbolo da divindade, e na validade do Corão, livro por ele transmitido.
De acordo com a doutrina islâmica, Deus afirma-se por sua unidade. Ele não
encarna em virtude de uma distinção interna, nem redime o mundo. Ele o
absorve através do Islām. Ele não desce em manifestação. Ele projeta a Si
mesmo nesse lugar, como o Sol se projeta através de sua luz; e é essa projeção
que permite que a humanidade participe Dele.
22
A doutrina básica do sufismo, baseada na tawhīd, tal como interpretada por Ibn'Arabī,
é a da wahdat al wujūd – a "unidade do ser" ou "unidade da existência". Embora essas
expressões não sejam encontradas em seus trabalhos, essa é uma noção fundamental, que
permeia toda a sua obra.
O termo wujūd, que normalmente é traduzido por existência, se origina da raiz verbal
W-J-D cujos significados principais são: encontrar, reencontrar o que se busca, recuperar o
que se perdeu e, também, sentir, perceber. Essa raiz tem também um significado
complementar, o da emoção, atração.
23
Para al-Shaykh, o termo tem um significado
polissêmico que vai da Essência Divina inqualificável, incondicionada, absoluta e infinita, à
Existência Universal e à existência das realidades particulares nas diferentes ordens
hierárquicas da Manifestação.
Ibn’Arabī usa o termo “Ser Absoluto” (al wujūd al-mutlaq) ou “Ser Total” (al wujūd
al-kulli) para se referir à Realidade, que é a essência de tudo o que existe. A Realidade é una e
fonte de toda existência limitada. Para ele, há apenas uma Realidade existente, que é vista por
22
Frithjof SCHUON, The Transcendent Unity of Religion, 1!993: 111.
23
Maurice GLOTON (trad.), La Production des cCercles, 1996: intr. xvii.
168
nós a partir de dois ângulos diferentes, ora como Haqq (O Real), quando a vemos como a
Essência de todos os fenômenos, ora como Khalq (Imanência, Criação), quando a vemos
como os fenômenos manifestos da Essência. Assim, Haqq e Khalq, Realidade e Aparência, o
Um e os Muitos, são apenas nomes que designam dois aspectos subjetivos de uma Realidade:
trata-se de uma unidade real, mas de uma diversidade empírica. Essa Realidade é Deus.
24
Em sua ontologia, al-Shaykh afirma não só a unidade de toda a existência, mas
também a multiplicidade da realidade. Por conseguinte, refere-se a wujūd em sua totalidade
como o Um/Muitos, o que resulta numa noção difícil e aparentemente paradoxal em sua obra.
A Unidade não possui outro significado que o de duas (ou mais) coisas sendo
realmente idênticas, mas conceitualmente passíveis de distinção uma da outra;
assim, num sentido um é o outro, em outro sentido, não é. A multiplicidade é
devida a diferentes pontos de vista, não a uma divisão de fato na Essência
Única.
25
O Absoluto ou al-Haqq é aquele Algo que se encontra velado, por trás do fenomênico,
e torna a chamada "realidade" uma grande rede de símbolos a apontar para aquilo que se
encontra além dela. A realidade é uma aparência particular da Realidade Absoluta, uma forma
particular de sua teofania (tajallī). Para Ibn’Arabī, a realidade é um sonho que tem uma base
metafísica, uma “fábrica de fantasia e imaginação”, que não indica nada além do que a
Realidade é para aquele que sabe ver essas formas e propriedades não em si mesmas, mas
como as muitas manifestações do Real, como é o caso do conhecedor que atingiu os mais
profundos mistérios do Caminho (tarīqa).
26
24
A .E. AFFIFI, The Twenty-Nine Pages: Aan Iintroduction to Ibn'Arabi's Metaphysics of Unity, 1998: 11.
25
A .E. AFFIFI, The Twenty-Nine Pages: an introduction to Ibn'Arabi's Metaphysics of Unity, 1998op. cit.: 12.
26
Toshihiko IZUTSU, Sufism and Taoism: Aa Ccomparative Sstudy of Kkey Pphilosophical Cconcepts, 1984: 8.
Em seus trabalhos, Izutsu afirma que os traços principais da concepção da Unidade da Existência ou Wahdat-al-
Wujūd, que caracterizam a e
Escola iIslâmica iIraniana e a obra de Ibn’Arabī, podem ser re-encontrados nas
grandes tradições do pensamento oriental, não só no bBudismo mMahayana e no hHinduísmo vVedanta, mas
também no tTaoísmo e no cConfucionismo. Frithjof Schuon, em seu livro The Eye of the Heart, 1997: 13, faz
uma ressalva importante numa nota de pé de página em relação à concepção da Unidade do Ser. Segundo ele,
todas as coisas são Deus,
e o sábio vê a Face Divina em cada coisa, embora com diferentes relacionamentos, ou
169
Na concepção de al-Shaykh, os planos do ser se iniciam no Ser Absoluto e
transcendente, imerso em sua natureza abissal e em seu silêncio, que constitui um mistério
insolúvel para a mente do homem comum. Nesse plano mais elevado do ser, não há
manifestação. A tajallī do Absoluto começa apenas no estágio seguinte, o da unidade, que
significa já a unidade dos muitos. A palavra Allah ou Deus não designa o Absoluto nesse
estado abissal, pois já indica um estado de determinação. O verdadeiro Absoluto (Haqq) é
algo que nem mesmo pode ser chamado Deus. Quando nos referimos a Allah ou Deus, já
estamos falando da teofania do Mistério, embora em sua forma mais perfeita. Todos as
qualidades atribuídas a Deus não se aplicam à Essência, que é sem atributos. Do ponto de
vista do crente e de sua fé, todavia, o Ser Absoluto só pode tomar a forma de Allah ou Deus,
uma vez que a Existência per se não pode ser um objeto de crença religiosa. A única maneira
de se ver o Absoluto é por intermédio de seus aspectos de automanifestação.
27
Pode-se ver que, na teosofia
28
mística de Ibn’Arabī, é mantida a noção dupla de Theos
agnostos, o Deus incognoscível, e do Deus revelatus. Há “‘Aquilo que origina’; para além do
ser, ‘que é’, há o ‘Deus que não é’, isto é, o Theos agnostos, o Deus incognoscível e sem
predicados, e há o Deus revelado, Seu Nous que pensa e age, que mantém os atributos divinos
mais exatamente, ele vê a Face Divina através de cada coisa. Essa afirmação é imperativa para que
não se sejaser
tentado a ver o panteísmo numa concepção que, na verdade, está muito longínqua do mesmo. O erro do
panteísmo resultaria da incapacidade de ver Deus nas aparências, de onde a confusão – para ele, ateísta e idólatra
– entre o mundo e Deus. Para Schuon, o panteísmo consistiria no erro de admitir uma identidade material e não
essencial, entre o Princípio e a manifestação. Dentro da concepção sufi, a atribuição de um aspecto divino à
criação tem
possui um sentido metafísico, nada tendo de material ou quantitativo. Na obra de Ibn'Arabī, o
conceito de wahdat-al-wujūd não envolve uma continuidade substancial entre Deus e a criação, pois ele mantém
uma transcendência através das categorias que inclui a substância. Deus está acima de todas as qualidades e se
manifesta apenas por meio dos nomes e não por sua essência. No plano da essência, Ele é inconcebível e
incognoscível, transcendendo até mesmo a cognição não-racional. Isto significa que,
em suas existências, as
criaturas não são idênticas a Deus, apenas reflexos de seus atributos., Aa criação é um espelho para Suas
manifestações, é ambiguamente Ele/Não Ele.
27
Toshihiko IZUTSU, Sufism and Taoism: Aa Ccomparative Sstudy of Kkey Pphilosophical Cconcepts, 1984:
27.
28
A palavra teosofia aqui pode ser compreendida como um conjunto de doutrinas filosófico-religiosasreligioso-
filosóficas que têm por objeto a progressiva união do homem com a divindade, mediante a elevação progressiva
do espírito até a iluminação. Na Idade Média, o termo teósofo tinha o sentido de “autor inspirado (por Deus)”. O
termo teosofia, já utilizado por alguns autores platônicos, é também encontrado nas obras de Jacob Boehme e na
tradição neoplatônica, nas quais parece distinguir-se, por seu caráter “místico” e “intuitivo”, da teologia,
caracterizada pelo caráter racional e argumentativo. A teosofia é uma sabedoria de Deus, mas insuflada por Deus
no espírito do teósofo. Daí a relação entre a teosofia e o que veio a ser chamado de teologia mística. Cf. J.
Ferrater MORA, Diccionario de Filosofia, tomo IV, 1994:
3.478.
170
e é capaz de relacionamento.”
29
Para al-Shaykh, a Existência ou o Ser é Deus, o divino não-
qualificado em sua total indeterminação e total indistinção: dhāt ou essência, ankar al-
nakirāt, “o mais indeterminado de todos os indeterminados”.
O Real é existente através de sua própria Essência, por sua própria Essência,
ilimitada em wujūd, não limitada por outro senão Ele mesmo. Ele não é causado
por nada, nem Ele é a causa de nada. Ao contrário, Ele é o Criador dos efeitos e
das causas, o Rei, o sagrado que sempre foi.
Nós não o fazemos a causa de nada, porque a causa busca o efeito, tal como
o efeito busca a causa, mas o Independente não se qualifica por buscar. Portanto
não é correto dizer sobre Ele que Ele é a causa.
30
Por um lado, o Ser é não-dual, é uno ou a Unidade, no seio da qual há vários níveis de
diferenciação progressiva. Ao estágio de Unidade absolutamente indiferenciada se sucede o
estágio de Unidade que se diferencia interiormente, no nível dos nomes divinos, e, no estágio
seguinte, se dá a criação. Deus em si mesmo é incognoscível, embora possa ser conhecido
quando se manifesta. Contudo, essas automanifestações partilham da incognoscibilidade
divina à medida que nunca se repetem.
Ibn'Arabī estabelece um eterno paradoxo: tanto as coisas do mundo material como do
mundo imaginal são, por um lado, as muitas formas de teofania divina, mas, por outro, agem
exatamente como véus que ocultam uma completa automanifestação de Deus. O mundo todo
é um véu que oculta o Absoluto
.
Quando fala da Essência, Ibn'Arabī menciona o hadith "Ninguém conhece Deus,
exceto Deus". Esse é o Deus incognoscível, que escapa ao relativo, Deus sob uma perspectiva
da incomparabilidade (tanzīh), uma noção central dentro do pensamento teológico islâmico.
Essa perspectiva transcendentalista enfatiza a não-existência das criaturas e a wujūd ou
29
Henri CORBIN, Alone with the Alone: Creative Imagination in the Sufism of Ibn’Arabi, 19987: 112.
30
IBN’ARABĪ, Fut t (I 90.12) in Thūhā e Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmologye,
1998: 17
171
Existência do Real. No contexto da práxis islâmica, a resposta à Realidade de Deus e à
irrealidade humana é conhecida como servidão, ou a observância dos requerimentos da Lei
revelada, a sharī'a. Ainda assim, uma perspectiva de similaridade (tashbīh) afirma que nós e o
cosmos estamos relacionados a Deus por meio dos nomes divinos que mostram seus traços na
existência cósmica. Não podemos conhecer Deus em si mesmo, apenas Deus como se
manifesta através do cosmos. Essa segunda perspectiva significa que Deus, enquanto
possuidor de nomes, estabelece um relacionamento com o cosmos.
No que concerne a si mesma, a Essência não possui nenhum nome, já que não é
o locus dos efeitos, nem é conhecida por ninguém. Não há nenhum nome para
denotá-la, não há relacionamento, nem nenhuma afirmativa (tamkim). Pois os
nomes agem para tornar conhecido e distinguir mas essa porta (o conhecimento
da Essência) está proibida para qualquer um exceto para Deus, já que "Ninguém
conhece Deus senão Deus". Portanto, os nomes existem através de nós e
tornam-se manifestos em nós. Suas propriedades estão conosco, seus objetivos
são na nossa direção, suas expressões são nossas e eles se iniciam a partir de
nós.
Se não fosse por eles,
Nós não seríamos.
Se não fosse por nós,
Eles não seriam.
31
Tashbīh deriva da raiz S-B-H que significa similar ou comparável. Remete à idéia de
que uma certa similaridade pode ser estabelecida entre Deus e a criação. Essa posição
teológica, que afirma a tashbīh “assemelhar Deus às coisas criadas” – tende a um
antropomorfismo e se opõe, dentro da teologia tradicional, à posição da incomparabilidade ou
tanzīh. Contudo, do ponto de vista de Ibn'Arabī, as duas posições são compatíveis e
complementares, além de igualmente necessárias para um conhecimento adequado de Deus.
ūhā
31
IBN' ARABĪ, Fut t, (II 69.34) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 62.
172
Sob condições normais, tanzīh é o produto da razão e tashbīh é o produto da
imaginação. As duas devem ser harmonizadas e unidas para o conhecimento perfeito de Deus,
embora Ibn'Arabī mantenha a primazia da imaginação. Para al-Shaykh, incomparabilidade e
similaridade derivam necessariamente da Essência que, por um lado, é incognoscível e
incompreensível e, por outro, já em seu processo de tajallī, como Deus, assume todo o tipo de
relacionamento com as criaturas. Esses relacionamentos, conhecidos como nomes e atributos,
só podem ser apreendidos por meio de nosso conhecimento da criação. É o conhecimento
desses relacionamentos que nos permite um real conhecimento de Deus, ainda que parcial e
incompleto.
32
O Corão repetidamente afirma que todas as coisas são sinais (āyāt) de Deus, ou seja,
tudo fornece informações sobre a natureza e a realidade divinas. Ibn’Arabī vê tudo no
universo como um reflexo dos nomes e atributos divinos. Um conhecido hadith atribuído ao
Profeta explica por que Deus criou o cosmos: “Eu era um tesouro oculto e desejava ser
conhecido.” Conseqüentemente, para al-Shaykh, o mundo é o locus onde o Tesouro oculto é
conhecido pelas criaturas. Ele utiliza o termo tajallī (automanifestação ou, como utilizamos,
teofania
33
) para explicar o relacionamento do mundo com Deus. Através do cosmos, Deus se
revela às suas criaturas e as próprias criaturas são manifestações dos nomes e atributos
divinos. Suas qualidades, em última análise, são as qualidades de Deus.
O símbolo das duas mãos também pode ser compreendido como descrevendo a
Realidade divina que se manifesta no cosmos por meio de atributos opostos e conflitantes. O
próprio cosmos pode ser visto como uma ampla coleção de opostos, a cada momento recriado
pela ação das duas mãos divinas. O conceito de recriação contínua é central no pensamento
cosmológico islâmico. A constante interação dos nomes pode ser percebida através da
32
William CHITTICK, The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination, 1989: 69.
33
Teofania é a manifestação de Deus em algum lugar, acontecimento ou pessoa. No contexto sufi e em especial
na obra de Ibn’Arabī, toda a criação é teofania, e em tudo que existe é possível ver a manifestação de Deus
quando se enxerga através da visão teândrica, a visão do coração, órgão da fisiologia mística do sSufismo,
responsável pelo conhecimento intuitivo de Deus.
173
mudança (haraka) e da transmutação (istihāla). Nada permanece constante na criação por dois
momentos sucessivos. A todo momento Deus recria o cosmos. A cada instante, a compaixão e
a gentileza divinas criam todas as coisas no universo, aí afirmando sua similaridade e sua
presença. A cada novo momento, também, a severidade divina destrói o cosmos. Cada
momento sucessivo representa um novo universo, semelhante ao precedente, mas também
diferente. Cada novo universo representa uma nova teofania, tal como expresso no axioma
teológico “As teofanias de Deus nunca se repetem”, já que Deus é infinito.
3.2.1 – O Deus das teofanias: os nomes divinos
Vários autores chamaram a atenção para a importância fundamental dos nomes
divinos nas doutrinas de Ibn'Arabī, pois, em sua visão, os nomes resumem o conhecimento do
Deus revelado à humanidade, são a maneira básica de se apreender algo da natureza divina.
Tanto o Corão como os hadiths estabelecem vários nomes divinos, o Misericordioso, o Sábio,
o Generoso, o Clemente, o Vingador etc.
Já vimos que, para al-Shaykh, o conhecimento mais perfeito de Deus inclui tanto a
perspectiva da incomparabilidade quanto a da similaridade – esta última relaciona-se à
compreensão de Deus por meio de seus nomes. Tudo o que podemos saber sobre Ele está pré-
figurado em seus nomes.
O princípio da tajallī ou manifestação, ao qual já nos referimos, significa uma
disposição ontológica por parte do cosmos e, do ponto de vista do Absoluto, é constituído
pelos nomes divinos. Os nomes são, na verdade, relacionamentos e não entidades ou coisas
existentes. Cada um deles denota tanto a Essência como também um significado peculiar
específico que Ibn'Arabī chama de “realidade ou raiz”. A realidade de um nome determina
seus efeitos ou propriedades dentro do cosmos.
174
Num determinado sentido, cada nome é igual à Essência, cada um deles é uma
barzakh ou ponte entre a Essência e o cosmos, mas à medida que a Essência é incomparável,
sem atributos e está além de todos os relacionamentos, os nomes divinos mostram as relações
que a Essência mantém com o mundo. Eles representam a Essência a partir do ponto de vista
das várias relações especiais causadas pelo fenômeno da automanifestação.
34
Os nomes divinos nos permitem entender as muitas realidades de óbvia
diversidade (irlifaf). Os nomes são atribuídos apenas a Deus, pois Ele é o objeto
nomeado por eles, mas Ele não se torna múltiplo (takaththur) por meio deles. Se
eles fossem qualidades ontológicas (umur wujdyyia), subsistindo
independentemente dentro, eles O tornariam múltiplo... Deus conhece os
nomes, pois Ele conhece todo o objeto de conhecimento, enquanto nós
conhecemos os nomes por meio da diversidade de seus efeitos dentro de nós.
Nós o nomeamos tal e tal a partir do efeito daquilo que encontramos em nós
mesmos. Assim, os efeitos são múltiplos dentro de nós, enquanto Deus é
nomeado por eles. Por conseguinte eles são atribuídos a Ele, mas Ele não se
torna múltiplo em Si-Mesmo por meio deles.
35
Os nomes, enquanto voltados para a Essência, são definitivamente um, são redutíveis
ao Absoluto. Todavia, enquanto voltados para a multiplicidade – diversidade, eles são
diferentes do Absoluto e cada um mantém sua realidade peculiar que o distingue dos outros.
Os "muitos" são formas do Absoluto, concretizadas de acordo com o requerimento dos
nomes, são o Absoluto tal como Ele aparece em imagens particulares, isto é, o Absoluto
"imaginalizado" sob a forma particular dos nomes. Na verdade, é o mundo criado que
necessita dos nomes, e não o Absoluto.
34
As relações que o Absoluto pode manter com o mundo são infinitas ou, como coloca Ibn'Arabī, as formas de
auto-manifestação dDivina são infinitas e conseqüuentemente, os nNomes são infinitos, pois tudo que existe no
cosmos pode ser reconduzido aos nNomes ou à realidade dDivina. Contudo eles foram classificados e reduzidos
a
um certo número básico, como está explicitado no Corão, que estabelece 99noventa-e-nove nNomes de Deus.
35
IBN'ARABĪ, Fut t (III 397.8) in The Sufi Path of Knowledgeūhā : Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 36.
175
A Unidade de Deus no nível dos nomes divinos requer nossa existência (i.e., o
mundo fenomênico), é a Unidade da multiplicidade (ahadiyah – al - kattrah). E
a Unidade de Deus no sentido de ser completamente “independente” de nós e
mesmo dos nomes é a Unidade da Essência (ahadiyah -al'-ayh). Ambos os
aspectos são chamados pelo mesmo nome: “Uno”.
36
Ibn'Arabī adota uma posição na qual reconhece a multiplicidade existindo in potentia
no Absoluto que é essencialmente uno. Tudo neste mundo é uma atualização de um nome
divino ou uma teofania do Absoluto por meio de um aspecto relativo chamado nome divino.
Tudo no cosmos pode ser traçado de volta às realidades ou nomes divinos. Allah é o nome
mais abrangente, que inclui todos os outros nomes, denotando também a Essência
incognoscível. Al-Shaykh também nos lembra que tudo no cosmos criado é também Ele/não
Ele, enfatizando a ambigüidade como um fato ontológico inerente à natureza do cosmos e, ao
mesmo tempo, a absoluta transcendência divina. O que define cada coisa particular no cosmos
é a “privação do ser” que lhe é própria e em razão da qual ela é uma coisa delimitada (um
cavalo, ou uma flor ou um homem) e não o Ser puro. Dessa forma, visto como uma entidade
autônoma distinta do Ser Absoluto, o universo é uma quimera, pois não possui ser próprio. É
nesse sentido que Ibn’Arabī diz que o universo é uma ilusão, não possui existência real, o que
é característico da imaginação. Por meio de imagens, símbolos e analogias, al-Shaykh
reafirma seu tema básico: “o universo em sua infinita multilplicidade não é nada mais que a
manifestação externa dos nomes de Deus, que são as faces de Deus voltadas para a criação e
que fornecem as chaves que destrancam as portas do mundo invisível.”
37
Cada nome divino significa ou denota portanto duas realidades: a Essência divina e
uma qualidade específica que o separa ou distingue de outros nomes divinos. Ibn’Arabī faz
apud
36
IBN'ARABĪ Toshihiko ITZUTSU, Sufism and Taoism: A Comparative Study of Key Philosophical
Concepts, 1984: 102.
37
William CHITTICK, Imaginal Worlds: Ibn'Arabi and the Pproblem of Rreligious Ddiversity, 1994: 123.
176
uma distinção teológico-ontológica entre Allah e o Senhor (Rabb). O Senhor é o Absoluto tal
como manifesto através de um nome concreto particular, ou seja, limitado e determinado por
um nome ou atributo. Allah é o Absoluto que nunca cessa de mudar e se transformar a todo
momento, de acordo com os nomes. Daí resulta uma relação particular entre o Senhor e o ser
humano. Este, ao rezar a Deus, dirige-se ao seu Senhor naquele momento da prece; o nome
Senhor denota um relacionamento pessoal entre cada homem individual e Deus.
Você diz “Allah”. Esse nome junta as realidades de todos os nomes divinos,
portanto, é impossível que ele seja dito num sentido delimitado ... Com relação
ao que o nome Allah denota, isso não pode ser descrito, já que ele junta coisas
contraditórias ... Conseqüentemente, aquele que deseja uma resposta de Allah
nos assuntos deve solicitá-lo apenas nos termos do nome específico para aquela
coisa.
38
Quando o Absoluto se manifesta em cada coisa individual, pode apenas fazê-lo por
meio de um nome particular, em virtude da limitação estabelecida pela “predisposição”
específica desta coisa. A idéia de receptividade (qabūl) e de “prontidão” ou predisposição
(isti'dād) está ligada à idéia de automanifestação (tajallī). Quando Deus se manifesta, a
recepção desta manifestação por uma coisa ou entidade é determinada por sua predisposição
para recebê-la, e a predisposição é por sua vez determinada pela própria realidade da coisa em
questão, já em seu estado de preexistência no conhecimento divino. A receptividade não se
dá, portanto, apenas no nível cognitivo, mas também existencial. Um nome, para se
concretizar, requer necessariamente um ser particular que nesse sentido é o locus da teofania
do nome.
39
Aqui não está somente implícita a relação pessoal entre o homem e o Senhor que se dá
no momento da prece, mas também um aspecto ontológico da relação pessoal entre os dois.
ūhā
38
IBN’ARABĪ, Fut t (II 541:5) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 66.
39
Toshihiko ITZUTSU, Sufism and Taoism: A Comparative Study of Key Philosophical Concepts, 1984: 11.
177
Isso significa que a correlação entre o Senhor divino e o seu servo não se origina com a
existência do servo no tempo, mas se realiza no estado de preexistência do servo, na essência
virtual desses dois seres.
Cada ser manifesto é a forma (sūra) de um nome do Senhor (ism rabbānī), o
nome do Deus particular que o governa, por quem ele age, para quem ele apela.
O rabb, ou Senhor, não tem nenhuma realidade essencial em si mesmo, mas
torna-se uma realidade em relação ao ser que é designado na forma passiva
correspondente.
40
3.3 – A dinâmica de gênero na Deidade
É amplamente reconhecido, embora tal fato venha recebendo críticas e novas
formulações de setores feministas religiosos ou não, que os monoteísmos tradicionalmente
mostram uma clara predominância da linguagem masculina sobre Deus.
41
Referindo-se ao
cristianismo, Barbara Newman diz que “pelo clima prevalecente de misoginia, o feminino
divino permaneceu na escura penumbra do sol monoteísta”.
42
Muitos cristãos hoje lamentam,
como uma interpretação errônea, inadequada e sintomática da misoginia, essa tradição
histórica na qual Deus é descrito exclusivamente numa linguagem do gênero masculino. No
Islã, de maneira semelhante, a linguagem sobre o divino exibe as mesmas características.
Os seres humanos sempre encontraram maneiras de imaginar a divindade em ambos os
sexos, não importa quantas barreiras sejam colocadas pela religião formal. Para qualquer base
que se tenha para descrever Deus como masculino, há outra para descrevê-lo como feminino.
40
Henri CORBIN, Alone with the Alone: Creative Imagination in the Sufism of Ibn’Arabi, 19987: 122.
41
Cf. Barbara NEWMAN, God and the Goddesses: Vision, Poetry and Belief in the Middle Ages e From Virile
Woman to WomanChrist: Studies in Medieval Religion and Literature; Peter SCHÄFER, Mirror of Her Beauty:
Feminine Images of God from the Bible to the early Kaballah; Kari Elisabeth BORRESEN (ed.), The Image of
God: Gender Models in Judaeo-Christian Tradition; Linda LOMPERIS & Rarah STANBURY (eds.), Feminist
Approaches to the Body in Medieval Literature; Amy HOLLYWOOD, Sensible Ecstasy: Mysticism, Sexual
Diference, and the Demands of History; Luce IRIGARAY, Speculum of the Other Woman e This Sex Which Is
Not One.
42
Cf. Barbara NEWMAN, God and the Goddesses: Vision, Poetry and Belief in the Middle Ages, 2003: 326.
178
O uso exclusivo de descrições masculinas é uma descrição errônea de Deus por exclusão, já
que elimina a atribuição a Deus de nomes característicos de metade de sua criação.
43
Por
outro lado, descrever Deus como masculino é inapropriado pois é perfeitamente óbvio que
Deus não é o tipo de ser que possa ter um gênero. Porete e Ibn’Arabī fazem descrições
contraditórias de gênero em relação a Deus, descrevendo-o como masculino e feminino, o que
força o colapso da linguagem de gênero enquanto tal, pois se ele é descrito de ambas as
maneiras, não pode ser nem masculino, nem feminino. Ao atribuir a Deus atributos
incompatíveis, eles reforçam a transcendência divina sobre toda linguagem.
3.3.1 – LoinPrés e a dinâmica de gênero na Deidade
Todo o Miroir está impregnado da dialética que expressa a ausência e a presença do
Amado, a imanência e a transcendência divinas. Marcando essa dialética e seu senso da
centralidade da fusão de opostos na consciência imediata de Deus dentro da alma, Porete
inventa um novo nome para o Deus trinitário em sua relação com a alma humana, o LoinPrés,
que é Deus sob o disfarce do amor de lonh dos trovadores. A aparente distância da alma em
relação a Deus mascara uma real proximidade, tornada manifesta pelo LoinPrés, que resolve a
dialética de presença e ausência, de imanência e transcendência, ilustrada nas fábulas iniciais
do Miroir. O termo envolve a combinação de duas qualidades sem substantivo, sugerindo que
Deus não é uma “coisa”, mas que deve ser visto como um “relacionamento” dialético ou
“presença”, infinitamente distante e desconhecida e por essa mesma razão, “próximo” em sua
ausência. É a ação do LoinPrés que propicia a transformação do amor que conduz a alma do
nada criado à vida divina – ao estágio de pré-criação no qual ela estava, antes de fluir da
bondade divina.
44
43
Denis TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1999: 26.
44
Bernard McGiNN, The Flowering of Mysticism: Men and Women in the New Mysticism 1200-1350, 1998:
256.
179
E a distância dessa bondade é na realidade a maior proximidade para essa alma,
pois ela conhece em si mesma esse LoinPrés que a coloca continuamente na
união de seu desejo, sem a interferência de qualquer outra coisa que possa lhe
acontecer. Tudo lhe é igual, sem nenhum porquê, e ela mesma é nada nessa
igualdade. Assim, essa alma nada mais tem a fazer por Deus do que Deus por
ela. Por quê? Porque Ele é, e ela não é.
45
Em algumas passagens, o LoinPrés é descrito como o Espírito Santo, que flui para a
alma nobre no sexto estágio do caminho da aniquilação ou como a Trindade. Ele também é
“arrebatador”, gentil e nobre, no sentido cortês dos termos, além de ser “muito doce” na paz e
na liberação que traz para a alma. Porete, porém, não tenta descrevê-lo ou defini-lo, mas fala
sobre seus efeitos na Alma Aniquilada.
... Mas não me perguntem quem é esse LoinPrés, e quais são as obras que Ele
realiza e suas operações quando ele mostra a glória à Alma, pois não se pode
dizer nada exceto que o LoinPrés é a própria Trindade, e essa manifestação que
ela opera para a alma, nós a chamamos “movimento”, não porque a Alma ou a
Trindade se movam, mas porque a Trindade opera para essa alma a
manifestação de sua glória.
46
No Miroir, em toda a sua complexidade, Deus é também retratado como o feminino
Amour e como a feminina Bonté, que ultrapassam todas as barreiras. “Há uma bondade eterna
que é amor eterno, que tende, pela natureza da caridade, a dar e a derramar sua total
bondade.”
47
A atribuição do gênero feminino aos principais personagens do livro, com exceção de
LoinPrés, uma figura do amor cortês, deve ser posta em evidência. Porete se refere à Dame
45
Mirouer: 135: 230/231. No Mirouer, esse capítulo se encontra em inglês antigo e, nesse caso, optamos por
traduzir diretamente da versão de Max Huot de Longchamp, em francês moderno.
46
Mirouer: 61: 25-31.
47
Mirouer: 112: 1-2.
180
Amour com um pronome feminino, embora o substantivo amor seja masculino em francês. O
gênero feminino do Amor é acentuado por seu epíteto, “Mãe” e “Senhora do
Conhecimento”.
48
A alma é descrita em termos relacionais femininos como a “Rainha das
Virtudes, irmã da Sabedoria e noiva do Amor”. Dame Amour aparece numa variedade de
contextos, refletindo o jogo especular característico do Miroir. Ela surge como um duplo da
própria Marguerite, seu “eu” transcendente, como um duplo para Cristo, o Amado e, também,
como o Absoluto, no qual Amante e Amado são um.
Segundo Maria Lichtman, “Marguerite afirma o escândalo da particularidade do
gênero feminino como uma opção política viável para suas irmãs béguines, para a ‘grande
Igreja’ e mesmo para a Deidade.”
49
Lichtman chega a afirmar que há na obra de Porete uma
“teologia” do feminino divino.
50
Michael Sells, por outro lado, acha que a linguagem apofática utilizada por Porete não
só desdiz o “ser”, a “substância” ou a “essência” da realidade transcendente afirmando que tal
realidade está para “além do ser” ou é “nada”, como também desdiz o Deus masculino,
48
Barbara NEWMAN, From Virile Woman to WomanChrist: Studies in Medieval Religion and Literature, 1995:
156.
49
Maria LICHTMANN, “Marguerite Porete and Meister Eckhart” in Meister Eckhart and the Beguine Mystics,
1994: 73. Em relação Marguerite Porete, Lichtmann não concorda com a apófase de gênero que Michael Sells
registra. Ela acredita que o fato de todos os personagens do Miroir serem femininos, à exceção do LoinPrés, é
significativo e mostra uma diferença importante para Porete. Ela chega a afirmar que foi em parte por conta
dessa diferença que Marguerite Porete
deu sua vida. Segundo Lichtmann, “desdizer o gênero ao ponto de
desdizer a natureza evidencia um desrespeito pela materialidade e pelo corpo do qualque Marguerite não
partilhava”. (Cf. op. cit.: 75, nota 29). Lichtmann sugere que embora a teologia mística de Porete não esteja
ancorada na materialidade e nas experiências do corpo como a teologia de outras místicas medievais, nem seja
particularmente afetiva, extática ou visionária,
e nem mesmo se pareça com a piedade eucarística e ascética de
muitas mulheres místicas, ela é profundamente enraizada no gênero, no feminino. Embora a ênfase de Porete na
dimensão física seja sutil em comparação com
a outras místicas suas contemporâneas, como Cataherina de Siena,
ainda assim seus inquisidores lhe impuseram o rótulo de antinomiana. Lichtmann acha que a integração corpo-
alma presente na obra de Porete é feminina, bem como sua rejeição da busca da “virtude” e afirmação da busca
da simplicidade e do nada, resultando n
em uma visão que representava um desafio às categorias patriarcais
tradicionais cuja ética de renúncia derivava de um dualismo da experiência física e espiritual.
Outras autoras também enfatizam o ato político de Marguerite Porete de falar por si mesma,
enquanto sujeito feminino, num período histórico e cultural em que, onde a prática literária hegemônica era
determinada pelas tradições masculinas de escrita. Esse ato político teria sido confirmado quando sua voz foi
literalmente emudecida por meio de sua condenação clerical. Cf. Jane CHANCE, “Speaking in Propria
Persona” in New Trends in Feminine Spirituality: The Holy Women of Liège and their impact, 1999: 272/277.
50
Maria LICHTMANN, op. cit.: 75.
181
monótipo, e assinala na Deidade a abertura para uma poderosa dinâmica de gênero. Traçando
um paralelo entre Porete e Eckhart, Sells afirma:
Para ambos os escritores, a “obra” divina dentro da alma transforma o “Ele-
Deus” monotipicamente masculino da tradição onto-teológica numa série aberta
e dinâmica de relações de gênero. Ao mesmo tempo, Porete e Eckhart desdizem
os essencialismos de gênero, tanto medievais quanto modernos, que ligam o
caráter do texto ao sexo biológico do autor.
51
Sells chama a atenção para o relacionamento da Trindade com os personagens da corte
de Dame Amour, que ele entende como a maior inovação teológica de Porete. Ela identifica
LoinPrés com a Trindade, tanto implicitamente, como o agente que trabalha dentro da alma,
como explicitamente. Apesar do cuidado de Porete em repetir a formulação tradicional do
credo da Trindade, outra Trindade surge dentro do Miroir, embora nunca seja denominada
como tal – a de Dame Amour, LoinPrés e Alma aniquilada – os três principais personagens na
corte do amor, cuja interação forma a dinâmica central do Miroir.
52
A partir de seu discurso
apofático, Marguerite Porete cria uma corte do amor que, apesar de abrigar a Trindade
tradicional, a desloca com essa nova tríade divina – Dame Amour, LoinPrés e a Alma
aniquilada. Uma nova configuração de gênero é atribuída à Deidade que é retratada em termos
tanto masculinos como femininos. Dame Amour, a oradora divina, é feminina e, enquanto
Mãe e Senhora, superior a tudo e a todos. Também a Alma Aniquilada é feminina e divina,
“filha da Deidade” – “Essa alma é a senhora das Virtudes, filha da Deidade, irmã da
Sabedoria, e esposa do Amor.”
53
Juntas, elas formam os dois elementos femininos da
Trindade poretiana. LoinPrés, o único personagem masculino, permanece silencioso.
51
Michael SELLS, “Porete and Eckhart: Tthe Aapophasis of Ggender” Mystical Languages of Unsaying, in
1994: 195.
52
Michael SELLS, “The Pseudo-Woman and the Meister” i Meister Eckhart and the Beguine Mystics, 1994:n
131.
53
Mirouer: 87: 3-4.
182
Dame Amour e LoinPrés são divinos por natureza e estão identificados um com o
outro (Amor e Espírito Santo ou Amor como expressão da Trindade). A Alma aniquilada que
nasce da morte do espírito é divina dentro deles ou dentro da obra que eles realizam dentro
dela. Após a morte da Razão, Dame Amour anuncia que a Alma aniquilada nada mais é que
“A Filha da Deidade”. Por meio dessas três pessoas, que na verdade são uma, desenvolve-se a
reconcepção de Porete da Deidade dentro do cristianismo, uma Deidade do gênero masculino
e feminino e que fala através da voz feminina.
Marguerite Porete se coloca clara e “ruidosamente” à margem da teologia institucional
e das categorias da razão, que para ela constituem a “santa Igreja, a pequena”. Ainda que a
tríade dos personagens citados não seja a Trindade no sentido formal e que a alma não seja
divina por natureza, mas por obra da graça do Amor, essa tríade é sugestivamente colocada
numa posição análoga à da Trindade dos padres da Igreja. Cada um deles possui uma
personalidade particular e ainda assim são idênticos como agentes da obra e do movimento
divinos. O resultado dessa reconfiguração é uma nova visão de equilíbrio de gênero na
Deidade.
54
3.3.2 – Ibn’Arabī e a compaixão divina criadora
A palavra árabe para útero (rahim) deriva da mesma raiz das palavras compaixão
(rahma) e Omnicompassivo (al-Rahmān). A raiz R-H-M relaciona-se à delicadeza, à piedade,
à benevolência e à ternura.
55
Daí resulta uma compreensão do feminino divino
56
enquanto
54
Michael SELLS, “Porete and Eckhart: Tthe Aapophasis of Ggender” i Mystical Languages of Unsaying, n
1994: 197.
55
Pablo BENEITO, “The Presence of Superlative Compassion., pág. 2. Disponível em<http/www.ibnarabi
society> Acesso em 23 de julho de 2003: 2.
56
O feminino aqui não pode ser entendido como sexo biológico, mas como um grande princípio cosmológico
que interage com o princípio masculino na expressão da dualidade que permite a manifestação. Sachiko
MURATA afirma que Ibn’Arabī mostra uma percepção da dinâmica de gênero na divindade e estabelece um
paralelo entre seu pensamento e a percepção t
Taoísta da realidade. Cf. The Tao of Islam: A Sourcebook on
Gender Relationships in Islamic Thought, 1992: 196.
183
condição criativa no plano metafísico, compreensão expressa no hadith “o útero é um ramo
(shajana) do Omnicompassivo”. Na compreensão de al-Shaykh, a realidade última é
visualizada como feminina, pois a essência de Deus recebe todas as formas. Ainda que a
Essência transcenda toda distinção, Ibn’Arabī a concebe como Ela.
Ibn’Arabī expandiu as referências corânicas e proféticas à compaixão divina e a seu
relacionamento com a criação, desenvolvendo a imagem do “Suspiro do Compassivo” (nafas
rahmāni), um termo encontrado no acervo dos hadiths. O “Suspiro do Compassivo” é a
substância da criação, pura compaixão ou pura existência. Em outras palavras, o
Omnicompassivo é Deus considerado como realidade feminina, à medida que é a matriz
dentro da qual as coisas tomam forma e adquirem existência.
57
Ibn'Arabī faz um interessante
relato mítico que mostra os atos da eterna cosmogonia. Nesse relato, os nomes divinos, no
estado de virtualidade dentro da Essência, recorrem a Allah em tristeza, ansiando por
manifestar suas propriedades em alguma coisa criada, daí o hadith “Eu era um tesouro oculto
e desejava ser conhecido. Por isso criei as criaturas, para que eu fosse conhecido.”. Movido
por compaixão pela angústia dos nomes, Allah instrui o Compassivo para soprar a existência
do mundo e assim o significado dos nomes se concretiza, livrando-os da “tensão”.
A raiz do suspiro é a propriedade do amor. O amor tem um movimento (haraka)
dentro do amante, enquanto o “suspiro” é um movimento de anseio (shawq) na
direção do objeto de amor, e através desse suspirar é experienciado o prazer. E
Deus disse, como foi reportado, “Eu era um tesouro mas não era conhecido, e
desejava ser conhecido”. Através desse amor, o suspirar acontece, e assim o
suspiro torna-se manifesto, e a Nuvem adquire existência.
58
A criação, portanto, não é senão teofania. Um suspiro cósmico resolve a tensão
intradivina que simboliza o desejo amoroso de ser conhecido do “tesouro oculto”.
ūhā
57
Sachiko MURATA, The Tao of Islam: A Sourcebook on Gender Relationships in Islamic Thought, 1992: 207.
58
IBN’ARABĪ, Fut t (II 310:17) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 126.
184
A partir da tristeza e do amor do Ser divino por seus nomes se origina o sopro
divino que é compaixão e poder existencializador, o “Suspiro de Compassivo”,
que emancipa os seres. Esse suspiro gera a “Nuvem”, uma massa “sutil” e
primordial de existência, na qual Ele está. Dentro da “Nuvem”, o cosmos, em
sua totalidade, toma forma.
59
A “Nuvem”, “Amā, recebe todas as formas e ao mesmo tempo dá aos seres as suas
formas, efetivando a diferenciação dentro da realidade primordial do ser, que termina na
diversidade do mundo empírico. Como tal, o “Suspiro do Compassivo” ou a “Nuvem” é
imaginação ilimitada absoluta. “Tanto o termo nuvem quanto o termo imaginação chamam
atenção para o esvaecimento de toda existência criada.”
60
Ibn’Arabī também diz que o
“Suspiro do Compassivo” gera as kalimāt, palavras cuja soma constitui o universo.
A partir da inescrutável profundidade da Deidade, surge a tristeza que pede esse
Suspiro de Compaixão, Nafas Rahmānī. Esse suspiro da compaixão divina expressa “a pathos
divina, libera os nomes divinos, emancipa os seres de sua virtualidade na qual estavam
confinados e estabelece o pacto de ‘simpatia’ que une a Deidade e seu servo num diálogo
compassivo.”
61
A partir do mito acima descrito podemos ver a concepção de Ibn’Arabī dos atos da
eterna cosmogonia: um Ser divino só em sua essência incondicionada, do qual conhecemos
apenas a tristeza da solidão primordial que O faz ansiar por ser revelado em seres que O
manifestam para Ele, à medida que Ele se manifesta para eles. Segundo Corbin, essa é a
revelação que apreendemos. O leitmotif da criação é uma tristeza fundamental. Em outras
palavras, a origem é determinada pelo Amor, que implica um movimento de desejo ardente
por parte daquele que ama. Esse desejo ardente é aplacado pelo suspiro divino.
62
59
Henri CORBIN, Alone with the Alone: Creative Imagination in the Sufism of Ibn'Arabi, 1998: 184.
60
Henri CORBIN, op. cit.: 184/185.
61
Henri CORBIN, op. cit.: 115.
62
Henri CORBIN, op .cit.: 184.
185
Corbin assinala na obra de Ibn’Arabī uma intuição da Sophia aeterna que também está
presente no xiismo ismaelita e na obra de Rumī.
63
Há na obra de al-Shaykh a intuição do ser
feminino como imagem da criatividade divina e da preeminência do feminino criador como
epifania da beleza divina
64
. Ibn’Arabī se utiliza de uma filologia bastante pessoal ao tratar de
fatos gramaticais não como questões inofensivas de linguagem, mas como símbolos de uma
realidade metafísica mais elevada. No último capítulo do Fusūs al-hikām, a partir de um
hadith do Profeta, no qual, desconsiderando uma regra fundamental de concordância, o
feminino predomina sobre o masculino na sentença, Ibn’Arabī faz uma interpretação do
simbolismo implícito no gênero gramatical, compreendendo que ao desconsiderar a regra
gramatical, o Profeta estaria aludindo à perspectiva da predominância da imagem do feminino
criador. O hadith em questão diz: “Três coisas desse mundo foram feitas amadas por mim:
mulheres, perfume e a prece.”
65
Então o Profeta fez o gênero feminino predominar sobre o masculino, já que
queria dar grande importância à mulher. Pois ele disse “três coisas” na forma
feminina, não na forma masculina. Mas ele mencionou “perfume” que é
masculino, e é hábito dos árabes fazer o gênero masculino predominar sobre o
feminino. Você diz: “As Fátimas e Zayd vieram”, usando um verbo plural
masculino.
66
Você não usa o feminino plural. Portanto, os árabes fazem o
63
Henri CORBIN, Alone with the Alone: Creative Imagination in the Sufism of Ibn'Arabi, 1998: 159/160.
Segundo Corbin,
“Os iIsmaelitas vêem na figura de Fátima, considerada como a ‘“Virgem-Mãe’”, o nascimento
da linhagem dos Imāns Sagrados e percebem nela uma teofania da Sophia aeterna, a mediatriz da criação
celebrada nos livros de sabedoria, e acrescentam ao seu nome a qualificação demiúrgica no masculino: Fátima-
Criador.
. Cf. op. cit: 160. Já a intuição de Rumī pode ser percebida nem um de seus versos: Woman is a beam of
the Divine Light. She is not the being whom sensual desire takes as its object. She is Creator, it should be said.
She is not Creature. Cf. Mathnawī, Livro I, verso 2.
437. ÀNa medida em que a bBeleza é percebida como
teofania e como o ser feminino é contemplado como a iImagem da sSabedoria ou como Sophia cCriadora, não se
encontra nesses autores o tema da queda de Sophia tal como formulado em outros sistemas gnósticos. A
conjunção do divino e do humano não surge da idéia da queda, mas corresponde a uma necessidade imanente da
cCompaixão dDivina que aspira revelar o seu ser.
64
A tradição freqüentemente lembra que a bBeleza é teofania por excelência como exemplificado no hadith:
“Deus é belo e Ele ama a beleza.” O Sufismo está principalmente relacionado à dimensão da religião do Islã
conhecida como ihsān (fazer o que é belo).
65
IBN’ARABĪ, The Bezels of Wisdom ((Fusūs al-hikām), 1980: 275.
66
De maneira geral, na gramática áÁrabe, a regra é que se houver um único substantivo masculino entre as
coisas enumeradas, o todo é tratado como gramaticalmente masculino e o numeral é usado na forma masculina.
Ibn’Arabī acha que nesse hadith o Profeta intencionalmente usa uma forma feminina, simbolicamente sugerindo
que todos os fatores básicos que participam da criação são melhor expressos numa terminologia feminina.
186
gênero masculino predominar sobre o feminino, mesmo que o masculino seja
um e o feminino sejam muitos. E o Profeta era um árabe. Assim, ele observou
aqui o significado que queria passar. Pois aquilo que não estava exercendo um
efeito sobre seu amor foi feito passível de ser amado por ele. Deus ensinou-lhe
algo que ele não sabia e a benevolência de Deus para com ele era grande. Assim
ele fez o feminino predominar sobre o masculino com suas palavras “três
coisas”. Que grande conhecimento tinha ele das realidades! Quão grande era
sua observância dos direitos!
Então ele fez o fim (de suas palavras) corresponder ao início no gênero
feminino, enquanto colocou o masculino entre as duas. Pois ele começou com
“mulheres” e terminou com “preces”, e ambas as palavras são femininas.
Perfume permanece entre as duas, do mesmo modo como o masculino
permanece entre dois femininos na existência. Pois o homem está colocado
entre uma Essência a partir da qual se torna manifesto e a mulher que se torna
manifesta a partir dele. Assim, ele está entre dois femininos: o gênero feminino
da Essência e a real feminilidade da mulher. De maneira similar, “mulheres” é
um feminino real, enquanto prece é um feminino irreal. Entre as duas,
“perfume” é como Adão entre a Essência, da qual se origina, e Eva, que se
origina dele.
Se você quer dizer (que ele não se originou da Essência, mas) de um atributo
divino, “atributo” {sifāt} é também feminino. Se você quer dizer (que ele se
originou) do poder divino, “poder” {qudrah} também é feminino.
67
Tome
qualquer posição que queira. Você não encontrará nada exceto o feminino tendo
prioridade, mesmo no caso daqueles que clamam que Deus é a “causa” do
cosmos, pois “causa” {‘illah} é feminino.
68
Aqui, al-Shaykh ressalta que a Essência (dhāt), o fundo original do todo o Ser, é um
substantivo feminino, que o fundo ontológico imediato das formas dos seres (os atributos
67
A Essência dDivina (dhāt), que é o fundamento original de todo Ser, é um substantivo feminino. O fundamento
ontológico imediato das formas dos seres, ou seja, os Atributos Divinos, sifah, é um substantivo feminino. O
poder criador de Deus, qudrah, é também um substantivo feminino. Portanto, a partir de qualquer aspecto que se
olhe o processo de criação, nos deparamos com um substantivo feminino.Os filósofos que seguiam a filosofia
grega, afirmavam que Deus é a “causa” (‘illah) da existência do mundo. Para Ibn’Arabī, essa é uma visão
errônea, mas ainda assim significativa, pois, para ele, mesmo nessa opinião errada sobre a criação, é utilizado um
substantivo feminino, ‘illah, para denotar o fundamento último da criação do mundo. Cf. Toshihiko IZUTSU,
Sufism and Taoism: A Comparative Study of Key Philosophical Concepts
, 1984: 203.
68
IBN’ARABĪ, The Bezels of Wisdom ( Fusūs al-Hikām), 1980: 277.
187
divinos) é um substantivo feminino e que o poder criativo de Deus é também um substantivo
feminino. Mesmo os que dizem que Deus é a “causa” (‘illah) da existência do mundo, o que
para Ibn’Arabī é uma opinião errônea, usam a palavra ‘illah, que também é substantivo
feminino.
69
Embora o texto em questão faça parte de uma discussão complexa, podemos
concluir que Ibn’Arabī introduz e salienta a imagem feminina da Deidade enquanto raiz a
partir da qual tudo recebe existência, tanto no plano da natureza quanto no plano da criação
cosmológica:
O homem se encontra situado entre uma essência (i.e. a essência divina) que é
sua origem (ontológica) e uma mulher (i.e. sua própria mãe) que é sua origem
(física). Conseqüentemente, ele está situado entre dois substantivos femininos,
ou seja, entre a feminilidade da essência e a real (i.e., física) feminilidade.
70
Essa é a razão pela qual Ibn’Arabī vê no feminino uma conciliação de atividade e
receptividade, ou seja, tanto o feminino quanto a mulher reúnem em si tanto o receptivo
quanto o ativo e por isso ele diz: “... A contemplação de Deus na mulher é mais perfeita, pois
trata-se de Deus naquilo que Ele é de ativo e passivo que é contemplado, enquanto na
contemplação puramente interior, o homem O contempla de modo apenas passivo.”
71
3.4 – O “nada” divino: a linguagem mística apofática
Let that quiet darkness be your whole mind and like a mirror to you. For I want
your thought of self to be as naked and simple as your thought of God ....
72
69
Toshihiko IZUTSU, Sufism and Taoism: A Comparative Study of Key Philosophical Concepts, 1984: 203.
70
Toshihiko IZUTSU, op. cit.Sufism and Taoism, 1984: 203. Essa citação adaptada por IZUTSU se encontra
originalmente no Fusūs al-Hikām (The Bezel ), 1980: 277. s of Wisdom
71
IBN’ARABĪ, The Bezels of Wisdom (Fusūs al-Hikām), 1980Fusūs al-Hikām (The Bezels of Wisdom):, 1980:
275.
72
William JOHNSTON (ed.), The Cloud of Unkowing, 1996: 150.
188
A palavra apófase ou proposição negativa é originária de um neologismo grego,
apophasis, utilizado para indicar a ruptura do discurso, que fracassa frente a
incognoscibilidade de Deus. Por outro lado, a palavra “teologia”, também de origem grega,
significa “discurso sobre Deus”, o que gera uma curiosa questão lingüística à medida que
“teologia apofática” ou negativa deve significar algo como “o discurso sobre Deus que é o
fracasso do discurso”.
73
A linguagem mística apofática de uma variedade de tradições partilha algumas
características centrais. Ela começa com o dilema da inefabilidade, com a aporia da
transcendência. Ao dizermos que o inefável está “além dos nomes”, somos enredados numa
aporia, num dilema irresolúvel, pois à medida que está além dos nomes, está também além do
nome “inefável” utilizado para afirmar o seu ser para além dos nomes. Porém, não podemos
afirmar a inefabilidade sem usar algum nome e assim a afirmativa da inefabilidade volta-se
sobre si mesma e se desfaz, configurando uma espécie de retorno lingüístico. Qualquer
pronunciamento que se faça, seja positivo ou negativo, necessita de contínua correção. O
pronunciamento corretivo, por sua vez, deve também ser corrigido, ad infinitum. “O autêntico
sujeito do discurso continuamente escorrega de volta para além de cada esforço para nomeá-lo
ou mesmo para negar sua nomeabilidade.”
74
Esse esforço resulta então num novo tipo de
linguagem.
Em certo sentido, a tradição apofática busca por meio do discurso passar ao silêncio. O
apofático é aquilo que é alcançado, seja por meio do discurso afirmativo ou negativo, quando
a linguagem se rompe. “O apofático é o reconhecimento de como esse ‘silêncio’ jaz em torno
do perímetro da linguagem. O místico apofático sabe perfeitamente bem que o indizível não
pode ser colocado ao alcance do discurso. Ainda assim ele utiliza o discurso, necessariamente
quebrado, contraditório, absurdo, paradoxal, para evidenciar a inefabilidade de Deus.”
75
Em
73
Denys TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 19995: 20.
74
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 2.
75
Denyis TURNER, op. cit. op. cit.: 151.
189
última análise, o místico usa uma linguagem que busca não funcionar, que busca se desfazer
para falar – sem falar – o que não pode ser falado.
Ao utilizarmos o termo apófase, imediatamente nos ocorre o termo oposto, catáfase –
afirmação, dizer. Qualquer ato de desdizer ou negar pressupõe ou exige uma afirmação
prévia. A apófase pode então ir crescendo em intensidade até o ponto em que nenhuma
proposição única relativa ao transcendente pode ser mantida em si mesma. Nesse tipo de
discurso, qualquer dizer, ainda que uma negação, exige uma proposição corretiva, um
desdizer.
76
Contudo, essa proposição corretiva que desdiz a proposição prévia é também um
“dizer” que por sua vez deve ser “desdito”. Para que possamos ler corretamente a tradição
apofática medieval é importante frisar esses dois níveis nos quais a dialética apofática opera:
um momento do uso catafático de imagens afirmativas-negativas e outro da negação apofática
da negação. É nesse movimento que a alma transcende e ultrapassa a contradição entre
afirmação e negação, transcendendo assim a distinção entre “semelhança e diferença”, e
alcança, para além da linguagem, a unidade com Deus.
As próprias metáforas de “interioridade” normalmente utilizadas na linguagem que
descreve o caminho do progresso espiritual como interiorização, em contraposição à vida
vivida na “exterioridade”, resultam numa espécie de dialética da “interioridade”, já que a
própria linguagem serve como uma crítica dessa distinção que é transcendida na pessoa
verdadeiramente interiorizada, “para quem não há mais a distinção entre o ‘exterior’ e o
‘interior’, uma vez que tal pessoa não vive ‘dentro’, mas em ‘lugar algum’ que é ‘todo
lugar’”.
77
Em certos escritores, o esforço para afirmar a transcendência conduz a uma contínua
série de retrações, a um discurso propositadamente instável e dinâmico no qual nenhuma
afirmação pode se manter por si mesma como verdadeira ou falsa ou mesmo como
76
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 3.
77
Denyis TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism,, 19995: 253.
190
significativa. Em seus escritos, há passagens em que o discurso místico volta-se
incansavelmente sobre suas próprias proposições gerando paradoxos que incluem um ampla
quantidade de transformações radicais, particularmente na área dos relacionamentos espaciais
e temporais.
Sells acredita que os paradoxos, as aporias e as coincidências de opostos que ocorrem
no discurso apofático não são meramente contradições aparentes. Ele argumenta que
contradições reais ocorrem quando a linguagem se ocupa do transcendente inefável, mas acha
que essas contradições não são ilógicas. Para o escritor apofático, a regra lógica da não-
contradição funciona para as entidades objetivas. Quando o sujeito do discurso é um “não-
objeto” e uma “não-coisa” ou nada, não é irracional que uma tal lógica seja suplantada.
78
A unidade semântica básica da linguagem apofática é a “sentença dupla” ou
proposição dupla, em que há uma justaposição de proposições mutuamente contraditórias. A
contradição é uma técnica lingüística utilizada para “chocar” a mente e levá-la a um outro
nível de compreensão, como pode ser visto no zen budismo que utiliza os koans para liberar a
mente dos padrões racionais comuns de pensamento. Esse tipo de técnica é uma das formas
usadas para falar do outro sem falar, para trazer o inefável para a linguagem sem reduzi-lo à
lógica dessa linguagem.
79
Ainda segundo Sells, a tradição apofática ocidental clássica partilha três padrões
básicos: o primeiro é a metáfora do transbordamento ou “emanação” que está sempre numa
tensão criativa com a linguagem da criação intencional, demiúrgica; o segundo, o esforço
discursivo de desontologização para evitar a reificação do transcendente como uma
78
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 4.
79
A apófase abarca também um amplo número de textos orientais, a começar pelo Tao Te Ching taoísta, que
começa com a afirmação: “o tao do qual se fala não é o tao”. Pode ser vista também no Vimalakirti Sutra do
b
Budismo mMahayana que afirma que “todos os construtos são vazios” e, depois, jocosamente, gira essa
afirmação sobre si mesma com outras afirmações que dizem: “o construto de que todos os construtos são vazios
é vazio”, e “o construto de que o construto de que todos os construtos são vazios é vazio”. Cf. Michael SELLS,
op. cit.op. cit.: 4/5.
191
“entidade” ou “ser” ou “coisa”; finalmente, uma dialética distinta de transcendência e
imanência na qual o totalmente transcendente revela-se como totalmente imanente.
80
Esse estilo de discurso acaba por fundir em paradoxos os dualismos sobre os quais a
metáfora de emanação está baseada, tal como a distinção entre o recipiente que recebe o fluxo
e o conteúdo que ele recebe. O paradoxal é que o recipiente é o conteúdo à medida m
que a
apófase revela sua premissa inicial sobre a origem da emanação: a origem ou fonte não é
absolutamente um ser supremo, não é um ser ou entidade, mas é nada ou coisa alguma.
81
No Ocidente, vimos como a tradição apofática remonta a Plotino
82
, que estabeleceu a
negação como uma espécie de atributo divino, pois o Uno não possui predicados já que se
encontra excluído do plano do discurso. A maiêutica negativa de Plotino influenciou místicos
e filósofos medievais cristãos, muçulmanos e judeus. Na tradição cristã, a primeira grande
influência em relação à teologia negativa foi exercida por Dionísio o Aeropagita ou Pseudo-
Dionísio. Dionísio estabeleceu o que se tornaria um esquema clássico de três modalidades
para a linguagem teológica: a modalidade afirmativa ou catafática, a modalidade negativa ou
apofática e, finalmente, a modalidade mística, que opera mediante uma segunda forma de
negação, uma negação redobrada, que vai além da própria alternativa de afirmação e negação.
Dionísio foi responsável pela introdução do termo “teologia mística” e enfatiza a negação de
todas as interpretações e conceitos, que devem ser abandonados na aproximação final e
silenciosa do Deus inefável.
... Essa é a razão pela qual não devemos ousar recorrer às palavras ou às
concepções no que concerne à divindade oculta que transcende o ser ... Já que o
80
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994Ibid: 6.
81
Michael SELLS, op. cit.: 7.
82
SELLS inicia seu estudo da linguagem apofática com Plotino, que em certas passagens mostra não só uma
negação, mas um processo interminável e aberto do apófase: “O nome ‘O Uno’ é meramente uma negação da
multiplicidade. Os p
Pitagóricos o significaram simbolicamente [symbolicós] através do termo Apolo [a-pollón:
não-muitos], pela apófase dos muitos. Se o uno é tomado como pressuposto [thésis], nome [onoma], e referente
[déloumenon], nos expressaríamos mais claramente se não falássemos seu nome absolutamente. Nós o falamos
para começarmos nossa busca com aquilo que significa o mais simples, terminando com a apófase até mesmo
daquilo.” Cf. op. cit. : 17.
192
desconhecimento do que está além do ser é algo acima e além do discurso, da
mente, ou do próprio ser, devemos atribuir a ele uma compreensão além do ser.
83
Em seu poema de abertura da “Teologia mística”,
84
Dionísio utiliza a mesma imagem
para primeiro dizer algo sobre Deus e depois para desdizer o que disse. A luz divina é uma
“escuridão brilhante” e os mistérios da palavra de Deus são proferidos num “silêncio oculto”.
Ao primeiro momento da afirmação “Deus é luz” se contrapõe a negação “Deus é escuridão”
e finalmente a “negação da negação” entre escuridão e luz: “Deus é uma escuridão brilhante”.
A negação da negação não é um terceiro proferimento adicional à afirmação e à negação ou
uma síntese inteligível da afirmação e da negação; trata-se da linguagem teológica que
esticada ao máximo, natural e espontaneamente toma a forma de uma linguagem paradoxal e
desordenada.
85
Para além tanto da afirmação quanto da negação, a segunda negação não é,
paradoxalmente, nem afirmação nem negação. Tal “nem ... nem” constituiria a lógica mística,
uma forma de negação que não é o simples reverso da afirmação, mas que efetiva a lógica
sinalizadora da irredutível prioridade da causa transcendente em relação à oposição binária da
alternativa categórica entre afirmação e negação.
Na modalidade tripla da linguagem teológica dionisiana, a estrutura do cosmos
e os movimentos da alma se mostram como essencialmente extáticos, dirigidos
como são pelo dinamismo erótico divino. A linguagem catafática corresponde
primariamente ao transbordamento divino para fora, no cosmos, e nesse sentido
sinaliza um “êxtase” do divino. A linguagem apofática, por sua vez, articula e
promove o movimento de retorno da alma criada para além de si, na direção da
transcendência do divino e, nesse sentido, corresponde a um êxtase da criatura.
Finalmente, a modalidade mística de linguagem
articula a consumação inefável
83
Cf. Pseudo-Dionisius: Tthe Ccomplete Wworks, 1987: 49
84
Trinity! Higher than any being, any divinity, any goodness! Guide of Christians in the wisdom of heaven! Lead
us up beyond unknowing and light, up to the farthest, highest peak of mystic scripture, where the mysteries of
God’s Word lie simple, absolute, unchangeable in the brilliant darkness of a hidden silence. Amid the deepest
shadow they pour overwhelming light on what is most manifest. Amid the wholly unsensed and unseen they
completely fill our sightless minds with the treasures beyond all beauty. Cf.
op. cit..: 135.
85
Denyis TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1995: 22.
193
de uma reunião na qual o ser criado se abandonaria no Deus para além do Ser,
sinalizando portanto o momento no qual o êxtase divino que chama as coisas
criadas a serem e o êxtase humano que responde a tal chamado finalmente e
mais completamente se encontrariam.
86
Essa tradição continua com João Escoto Erígena que traduziu para o latim a obra de
Dionísio. Erígena aplica o termo nihil a Deus, tendo a intenção de expressar não a privação,
mas a transcendência do ser. Sua obra mais importante é o Periphyseon, trabalho no qual o
autor utiliza o discurso apofático
87
e apresenta sua visão dialética da Deidade. Outro texto
medieval fortemente influenciado por Dionísio, escrito por um autor anônimo inglês é The
Cloud of Unknowing, que teve ampla circulação nos vernáculos europeus.
Em torno do século IX, também as tradições judaica
88
e islâmica estavam
desenvolvendo suas próprias variedades de discurso apofático. Já vimos que, no Islã, a
doutrina de Plotino tornou-se amplamente conhecida sob o título de “Teologia de Aristóteles”,
uma obra árabe de cunho neoplatônico baseada nas Enéadas e nos ensinamentos de Porfírio,
86
Thomas A. CARLSON, Indiscretion: Finitude and the Naming of God, 1999: 159.
87
Cf. Bernard McGINN, The Growth of Mysticism : Gregory the Great through the 12
th
Century, 1999: 101.
Embora Deus seja chamado de Essência ou Ser, para Erígena, estritamente falando, Ele não é “Ser”, pois o Ser
surge em oposição ao não-Ser e não há oposição no Absoluto ou em Deus. “Deus é a totalidade de todas as
coisas que são e não são, que podem ser e não podem ser. Ele é a similaridade do similar, a oposição dos
opostos, e o contrário dos contrários. Todas as discórdias são resolvidas quando são consideradas como partes da
harmonia universal.”
Cf. William Ralph INGE, Christian Mysticism, 2003: 134. Em Dionísio e em Gregório de
Nissa, Erígena encontrou uma alternativa para a visão substancialista de Ddeidade proposta nos concílios da
Igreja, que consistentemente aplicavam o termo ousía às naturezas de Cristo e da Trindade. Erígenale integrou
em seu discurso apofático tanto a afirmação de Dionísio de que a Ddeidade estava “para além do ser” quanto a
sugestão de Gregório de que o “nada” na doutrina da criação a partir do nada (creatio ex nihilo) era o nada
divino de onde procedem todos os seres. Cf. Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 36. De
maneira muito semelhante a Ibn’Arabī, Erígena considera que Deus nunca age fora de si, a não ser para se
manifestar. Esse ato de auto-
manifestação é o que ele chama de uma “teofania”. A produção dos seres por Deus
não é outra coisa que uma teofania, já que para Deus criar é revelar-se. Cf. Etienne GILSON, A fFilosofia nda
Idade Média, 2001: 254.
88
Além das tradições cCristã e iIslâmica, a tradição mística jJudaica também mostra um retrato do “nada” em
seu conceito de ayin, que na cCabala medieval funcionava como um símbolo teosófico, parte de um elaborado
sistema de sefirot, os estágios da manifestação divina. Tudo que tem alguma existência emerge das profundezas
de ayin e eventualmente para lá retorna. Dentro desse contexto, a palavra “nada” conota negatividade e não-ser,
mas o que o místico pretende expressar com o nada divino é que Deus é maior do que qualquer coisa que
possamos imaginar, não é coisa alguma, embora a existência seja Deus. Cf. Daniel C. MATT, “Ayin: T
the
Cconcept of Nnothingness in Jewish Mmysticism” The Problem of Pure Consciousnessin : Mysticism and
Philosophy, 1990: 121.
194
discípulo de Plotino, em que Deus é considerado o nada de onde a criação deriva. Esse nada
não está fora de Deus, mas é a manifestação de sua essência oculta de onde tudo emana.
Contudo, foi o período de 150 anos entre meados do século XII e o início do século
XIV que constituiu a época de maior florescimento da mística apofática, quando os mais
importantes trabalhos do discurso místico apofático surgiram simultaneamente nas três
tradições. Esses trabalhos incluem as obras de Ibn’Arabī, Rumī, Abraham Abulafia, Moses de
Léon e das místicas béguines dos séculos XII e XIII, culminando com Hadewijch, Marguerite
Porete e Eckhart. Após esse período, a apófase ainda pode ser vista na cabala de Isaac Luria,
nos místicos espanhóis, em Jacob Boehme
89
e na tradição islâmica, porém não manteve mais
o lugar central na linguagem mística.
90
Em última análise, em sua leitura da apófase, Sells diz:
A apófase clássica pode ser vista como religiosa ou como anti-religiosa; como
teísta, panteísta e ateísta; como pia e libertina; como ortodoxa e herética. Em
seu ponto mais intenso, a linguagem apofática não tem como sujeito nem o
divino nem o humano, nem o eu nem o outro. Ela pode ser lida como uma
crítica incansável das tradições religiosas ou como uma compreensão da mais
profunda sabedoria dentro dessas tradições. Ela pode ser lida como ancorada
nas íntimas especificidades de tradições particulares ou como uma abertura à
89
Num pequeno estudo no qualonde busca estabelecer os autores que podem ter influenciado Lacan em sua
concepção do estágio do espelho, Dany-Robert DUFOUR cita Jacob Boehme. Em Boehme, a Deidade é pensada
como o Undgrund, um termo inventado por ele, que “designa a ausência total de determinação, de causa, de
fundamento, de razão (Grund), e que seríamos tentados a traduzir por Abismo, se Boehme não continuasse a
empregar, ao mesmo tempo, o termo Abgrund, abismo sem fundo. O Abgrund
, longe de designar a ausência
pura e simples de todo o fundamento e de toda determinação no Absoluto, indica apenas a falta de fundamento
da existência e do centro de realização nos seres que perderam seu próprio Grund. O Abgrund, o abismo, designa
assim o próprio nada dentro do ser ... Ele designa igualmente o abismo ardente da natureza e do mundo do
primeiro princípio.
” Cf. Alexandre KOIRÉ, La Philosophie de Jacob Boehme, 1929: 244 apud Dany-Robert
DUFOUR, Lacan et le Miroir Sophianique de Boehme, 1998: 38. A noção de Boehme do Undgrund
corresponderia exatamente à do Nada divino da mística alemã clássica tal como ela existiu depois de Eckhart. O
espelho também está no centro da obra de Boehme. Nela se encontra uma teoria do “espelho sofiânico”: “ é ao
sair desse Undgrund indizível que Deus se concebe como sujeito. Com efeito, Deus não pode se conhecer senão
se opondo a Si
-mesmo. Assim, Deus se exprime no homem, criado à sua imagem, e isso num movimento jamais
terminado, infinito, de revelação a Si -mesmo. O meio desse engendramento em queonde se passa do Uno,
indizível e invisível, ao múltiplo visível do mundo não é outro que o espelho, esse olho da sSabedoria dDivina,
que contém as imagens de todos os seres individuais.” Cf. op. cit.: 39.
90
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 5
195
conversação intercultural e inter-religiosa. Essas possibilidades podem não ser
mutuamente exclusivas.
91
3.4.1 – A noção de abyssus
What if everything were already so intimately specularized that even in the
depths of the abyss of the “soul” a mirror waited her reflection and her light.
Thus I have become your image in this nothingness that I am, and you gaze
upon mine in your absence of being.
92
A jornada mística é muitas vezes descrita como uma progressão cada vez mais
profunda da alma na escuridão divina. Mediante a linguagem da perplexidade, do paradoxo e
da ambigüidade, o místico é levado à experiência de aniquilamento ontológico em que as
fronteiras entre o eu e Deus se dissolvem, em que a Divindade também se descarta do nome,
partilhando a mesma nudez. Nessa espécie de “morrer antes de morrer” ou desconstrução que
ocorre, a alma se liberta das construções teológicas para descobrir outra verdade que desafia a
verbalização. Ao atentarmos para o estado de consciência do místico por meio de seus textos
é possível estabelecer uma hermenêutica do abismo, ou seja, uma interpretação da teologia
mística do ponto de vista do abismo ou do nada divino.
Embora a noção do “nada” seja normalmente associada ao budismo
93
, esse termo tem
importância simbólica na maioria dos caminhos místicos, e a imagem do abismo é sugestiva,
já que muitos estudos comparativos estão centrados sobre os temas do nada, da metanoia, da
kenosis, da escuridão e do vazio. Esse “nada” está implicado na experiência do satori, moksha
91
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 12/13.
92
Luce-López IRIGARAY, Speculum of the Other Woman, 1985: 197.
93
No zZen bBudismo, o nNada exclui qualquer afirmação e determinação conceitual, e não é aquele aspecto do
nada que “na expressão ‘ser e não-ser' se põe de encontro ao ser, mas exclui totalmente uma definição que
recorre ao esquema ser ou não ser”. Também não implica n
o niilismo, é coisa alguma, na qual sujeito e objeto
estão inseparavelmente unidos. A vacuidade não é o ser nem o não-ser, nem um nem outro e nem a ausência dos
dois. A Realidade Última é nomeada, ou melhor, aludida por denominações metafóricas, mas enquanto a
nomeamos estamos ainda no plano do conhecimento comum. Cf. Hôseki Schinichi HISAMATSU, La Pienezza
del Nulla: Sull’essenza del buddismo Zen, 1993: 13/15.
196
ou da salvação e, em seu aspecto mais radical, expressa a ruptura com modalidades anteriores
de consciência, refletindo uma nova consciência da divindade em sua modalidade de não-
diferenciação.
94
Bernard McGinn faz uma análise da imagem do abismo, tal como utilizada na
concepção da união mística cristã no período final da Idade Média, enfocando especialmente
a contribuição de mulheres místicas. Segundo McGinn, a palavra abyssus é de etimologia
grega – a-byssos, sem fundo – e indicava o mundo subterrâneo, a moradia dos mortos,
domínios de Hades. A palavra mantém esse sentido em certo número de passagens do Novo
Testamento, sendo usada em tentativas de expressar o inexprimível.
95
Agostinho, escrevendo em 410, interpretou a frase abyssssus abyssum invocat (Salmo
41:8), o abismo que invoca o abismo, como o impenetrável coração humano que invoca a
morte e o julgamento. O abismo que invoca o abismo se refere, então, aos pregadores que, já
tendo experimentado sua pecaminosidade, invocam os outros pecadores, lembrando-lhes os
julgamentos divinos, também por ele considerados como “abismos”.
96
Escrevendo quase novecentos anos depois, Joham Tauler faz uma leitura totalmente
diferente da mesma frase. Ele fala do abismo mútuo, o abismo da própria alma que, em sua
profundidade, invoca o abismo divino, falando também dos quatro estágios do amor
agonizante e insano - amor vehemens ou caritas violenta -, que realiza a fusão do abismo
criado e do abismo incriado. Segundo McGinn, essa mudança de concepção do abismo em
Agostinho para a concepção de Tauler foi intermediada pelas mulheres escritoras – as
mulheres místicas do século XIII, que compreendiam a união mística como uma união
94
Na mística oOcidental, a linguagem do “nada” permanece nem um relacionamento dinâmico com as noções de
Ser e Deus. Já na espiritualidade oOriental se encontra uma forma mais radical de “nada” e a subversão da
tendência de adscrever nome e identidade à realidade. Cf. Beverly J. LANZETTA, The Other Side of
Nothingness: Toward a Theology of Radical Openess
, 2001: 7.
95
Cf. Bernard McGINN, “The Abyss of Love” i The Joy of Learning & the Love of God: n Eessays in Hhonor of
Jean Leclercq, 1995: 95.
96
Bernard McCGINN, op. cit: 97.
197
indistinta entre dois abismos igualmente incompreensíveis, união promovida pelo poder de
um amor violento e mútuo.
97
Fazendo um breve esquema dos antecessores das místicas do século XIII, McGinn cita
Bernard de Clairvaux que, no século XII, utiliza o termo abyssus 63 vezes em sua obra, na
maioria delas indicando a profundidade da capacidade de pecado humana ou dos inescrutáveis
julgamentos divinos. Contudo, ele introduz a noção do abyssus divinae pietatis, do abyssus
luminis ou abyssus aeternitatis. Sua leitura do abismo que invoca o abismo é também a do
abismo da luz e da sabedoria divinas que invoca o abismo de escuridão e pecado do coração
humano – o abismo luminoso invocando o abismo da escuridão, o abismo da misericórdia
invocando o abismo da miséria. Há já uma conotação que expressa a relação entre Deus e a
pessoa humana, mas ainda não há uma relação mútua baseada no amor, apenas dois abismos
com polaridades opostas: luz versus escuridão.
98
Com outros autores cistercienses do século XII se introduz uma dimensão erótica na
linguagem do abismo – um abraço que é um abismo, o abraço do Espírito Santo, mas no qual
ainda se mantém uma diferença entre a experiência do abismo do amor possível nessa vida e a
experiência do abismo do amor na vida celeste. Ainda assim, cada vez mais a noção de
abismo vai adquirindo uma qualidade afetiva e o termo começa a ser utilizado para expressar
uma relação pessoal entre Deus e o amante humano.
Pode-se constatar que os autores masculinos do século XII começaram a fazer uso da
linguagem do abismo para descrever a relação da alma com Deus e desenvolveram a noção do
amor violento e insano envolvido no encontro místico, mas ainda como duas trajetórias
separadas. Foi com as mulheres místicas do século XIII que as duas trajetórias lingüísticas se
juntaram numa nova linguagem sobre a união mística. Contrastando com a compreensão de
união como unitas spiritus de tradicional origem paulina, cada vez mais a união com Deus
97
Bernard McCGINN, “The Abyss of Love” in The Joy of Learning & the Love of God: Essays in Honor of
Jean Leclercq, 1995op.cit: 98.
98
Bernard McGINN, op. cit.“The Abyss of Love” in The Joy of Learning & the Love of God: essays in honor of
Jean Leclercq, 1995 : 99/100.
198
veio a ser descrita como uma unitas indistinctionis ou unio sine differentia, que subtendia a
convicção de que a alma, em seu nível mais profundo, era e pode novamente se tornar uma
realidade com Deus por meio da intensidade do amor.
99
O potencial metafórico das imagens de profundidade sem fim e de vastidão sem fim
nos textos místicos medievais sugere algo sobre a natureza de Deus e da alma e descreve um
processo pessoal de transformação, uma fenomenologia da experiência mística. A topografia
da vastidão e da profundidade abissal fornecem imagens que iluminam o território tanto da
natureza divina quanto da paisagem da alma. Também não é incomum a utilização da
linguagem do deserto e do oceano na tarefa de descrever Deus e os estados de absorção do
humano em algum tipo de identidade com Deus.
100
Autoras como Beatriz de Nazareth, cisterciense, a béguine Hadewijch e Angela de
Foligno
101
enfatizam a dor e a insanidade do amor e utilizam a linguagem do abismo para
descrever sua experiência de Deus. Hadewijch utiliza principalmente imagens que mostram
símbolos aquáticos do abismo para expressar a incomensurável profundidade e o poder
esmagador da minne divina.
Minha alma se dissolve
Na loucura do Amor
O abismo no qual me lança
É mais profundo que o mar
Pois o profundo novo abismo do Amor
Renova meus ferimentos.
102
99
Bernard McGININ, “The Abyss of Love” The Joy of Learning & the Love of God: in Ees Hsays in honor of
Jean Leclercq, 1995: 103.
100
Bernard McGGINN, “Ocean and Desert as Symbols of Mystical Absorption in the Christian Tradition”,
Journal of Religion 74, 1994: , pg. 156.
101
Angela de Foligno (1248- 1309), franciscana terciária, descreve a alma e Deus como abismos mútuos. Em
sua mística apofática, ela se refere ao seu encontro com Deus “em e com a escuridão” e descreve a alma como
um abismo – “Compreendo que nenhum anjo e nenhuma criatura tem a capacidade de compreender esses
trabalhos divinos e aquele abismo profundo.. Cf. Bernard McGINN, The Flowering of Mysticism: Men and
Women in the New Mysticism 1200-1350, 19989: 148.
102
HADEWIJCH, The Complete Works, 1980: 352.
199
Em Marguerite Porete, fica evidenciado o crescente uso da linguagem do abismo para
expressar a natureza divina e também como um meio de apresentar a relação entre Deus e a
alma. Porete faz várias referências a abyssus, abyssale e abyssata em sua obra, o que indica a
importância que dava aos temas “abissais”, de aprofundamento num lugar sem fundo, para a
apresentação de sua linguagem mística. Ao longo do Miroir, a principal mensagem do Amor é
permitir que a Alma se torne “abismée en humilité” e empauvreté”.
Em quantos momentos de uma hora fui vã, e em quantas faltas caí, eu que estou
no abismo da total pobreza!
103
... Agora tal Alma é nada, pois vê o seu nada
através da abundância da compreensão divina, que a torna nada e a coloca no
nada. E assim ela é tudo, pois vê através da profundidade da compreensão de
sua própria maldade, que é tão profunda e tão grande que ela aí não encontra
nem começo, nem meio, nem fim, apenas um abismo abissal sem fundo ...
Agora essa Alma repousa nas profundezas sem fundo, e as profundezas são as
mais baixas ... e esse abaixamento lhe faz ver claramente o Sol da altíssima
bondade ... Assim essa Alma caiu do amor no nada, sem o qual ela não pode ser
Tudo. A queda é tão profunda, ela está tão completamente caída, que essa Alma
não pode erguer-se de tal abismo. E também não deve fazê-lo, mas ao contrário,
deve permanecer sempre lá ... No sexto estágio, a Alma não vê a si mesma por
conta de tal abismo de humildade que tem dentro de si, nem vê Deus, qualquer
que seja a sua altíssima bondade.
104
No Miroir, o paradoxo do aniquilação é traduzido pela metáfora do “abîme abissal et
sans fond”, onde a alma, “abismo de maldade”, tomba. Nessa profundeza de humildade e
pobreza, ela se torna aniquilada para acolher em si o abismo de bondade que é o tudo divino.
Essa alma, colocada no abismo “sem medida, abaixo de menos que nada”, é elevada por seu
amante divino e se torna semelhante a ele. A idéia do abismo da alma nas profundezas do
abismo de Deus sugere que a penetração da alma no âmago divino reflete uma união que,
103
Mirouer: 38: 14-16.
104
Mirouer: 118: 130-135; 147-149; 159-162; 175-177.
200
mais do que um centro, é um infinito. Mesmo que Marguerite Porete não identifique Deus
explicitamente com o abismo, ainda assim, o abismo da alma é o lugar onde Deus se vê, pois
“Quando tal nada é, então Deus se vê em tal criatura, sem nenhum impedimento de sua
criatura”
105
e, se ele se vê nessa alma, ele é esse abismo na forma de uma identidade que se
fundiu ou, em outras palavras, “o abismo do qual invoco a Deus é o mesmo abismo do qual
ele me chama.”
106
Embora Ibn’Arabī não faça muitas referências explícitas ao abismo, sua noção de
aniquilação e união também pressupõe a idéia de uma queda ou de profundidade. O
conhecedor só atinge a perfeição, como veremos com mais detalhes adiante, quando, incapaz
de qualquer vontade, destituído de tudo e na mais completa pobreza “cai no mais baixo do
baixo” (Corão 95:5), onde se realiza a theosis, a reciprocidade total entre o homem perfeito e
Deus. Ibn’Arabī fala de estações mútuas (munāzala)
107
, que são estações do desvelar e da
propiciação de conhecimento divino nas quais há uma descida mútua.
Saibas – Deus te confirme e a nós – que aqui uma “estação intermediária
mútua” é o ato de dois atores. Cada um deles desce buscando o outro de tal
maneira que cada um pode descer até o outro ou através do outro – digas o que
quiseres. Assim eles chegam juntos a um caminho num determinado lugar, e
isso é chamado “estação intermediária mútua” em virtude da busca de ambos.
Na realidade, por parte do servo, essa “descida” é uma ascensão. Nós a
nomeamos “descida” apenas porque ele busca através dessa ascensão descer no
Real ... Na realidade através de nós descemos até Ele, e através de nós Ele desce
até nós. Se não fosse assim, nós não saberíamos o que Ele nos diz quando se
105
Mirouer: 92: 21-22.
106
Bernard McGIINN, “The Abyss of Love” in The Joy of Learning & the Love of God: Essays in Honor of Jean
Leclercq, 1995: 112.
107
Cf. William CHITTICK, The Self-Disclosures of God: Pprinciples of Ibn al-‘Arabi’s Ccosmology, 1998: 114.
Chittick argumenta que traduziu munāzala por estação intermediária mútua, o que pode não ser a melhor
tradução, mas que sugere o que Ibn’Arabi
Ibn’Arabī tinha em mente. Diz ele: “Literalmente o termo significa
‘descida mútua’. Ele deriva da raiz n.z.l., da qual temos nuzūl e tanazzul, ambos habitualmente traduzidos como
‘descida’. Nuzûl também significa descer da montaria, e isso implica numa parada em alguma habitação para
descansar. Portanto o termo manzil ou ‘estação intermediária’ é o lugar onde se desce da montaria para descansar
durante uma jornada. N
Em uma ‘estação mútua’, tanto Deus quanto o servo ‘descem’ para encontrarem um ao
outro, da mesma maneira que viajantes podem descer de suas montarias para se encontrarem em um campo.”
201
dirige a nós, pois Ele é o Independente, o Digno de Louvor (C. 35:15). Mas na
realidade da realidade, através Dele descemos até Ele e através de nós Ele desce
até nós. Seja isso uma estação intermediária mútua ou uma completa descida
onde Ele é o que fala e o que ouve, Ele sabe o que diz ...
Tivesse Eu para Ti um caminho,
Não teria nada para Te significar.
Pois Tu és um Senhor elevado
E eu , o servo humilhado.
Fico maravilhado frente a um Deus e a um servo
Numa alta estação que aterroriza.
Essa é uma correlação, pois minhas palavras implicam
Que Ele e eu somos iguais
Deus o disse – nenhuma coisa criada o disse.
Eu o disse porque Ele o disse.
108
Podemos ver que, assim como Marguerite Porete usa a imagem do abismo como lugar
ao mesmo tempo o mais profundo e o mais elevado, pois a descida da alma e sua elevação a
Deus são consideradas uma única e mesma coisa, e a união da alma com Deus é descrita
como o abismo da alma no abismo de Deus ou vice-versa, Ibn’Arabī também utiliza a idéia
teológica de que o mais baixo é o mais elevado. Também de maneira semelhante a
Hadewijch, al- Shaykh utiliza a imagem do oceano como metáfora para a profundidade e a
imensidão sem fim do conhecimento tanto do “eu” quanto de Deus.
109
I am the Quran and the seven repeated;
Spirit of the Spirit, not the spirit of time.
My heart resides with That which is known for me,
Witnessing Him whilst my tongue is with you.
108
IBN’ARABIIBN’ARABĪ, Fut t, (III 523:18) in The Self-Disclosure of Godūhā : Principles of Ibn al-‘Arabi’s
Cosmology, 1998: 114.
109
Segundo McGinn, as raízes literárias da linguagem do oceano entre os místicos oOcidentais podem ser
encontradas na mística filosófico-religiosa gGrega, especialmente na tradição pPlatônica. Cf., “Ocean and Desert
as Symbols of Mystical Absorption in the Christian Tradition”, Journal 74, 1994 of Religion :, pg. 158. As
imagens do mar e do oceano vão aparecer em alguns textos místicos cCristãos, ora com uma tonalidade negativa
que reflete o turbilhão dessa vida (Agostinho) ora como símbolo do caráter imenso e ilimitado da natureza divina
(Erígena).
202
Look not with your eye upon my corporeal form,
But rather regard the delights of being rich beyond need.
Be reduced to nothing in the ocean of the Essence of God –
And you will see wonders that no eye has seen before
And mysteries appearing in view unknown,
Covered with the spirits of meanings.
110
Porete também vai utilizar a imagem dos rios que perdem seu nome ao fluirem para o
mar, como veremos na próxima seção, e da alma que nada em um mar de alegria. Contudo,
como já vimos, ela também utiliza a linguagem do abismo sem qualquer conotação aquática
para descrever a alma e Deus.
Ao usar a imagem do oceano, Ibn’Arabī fala do mar insondável e do mergulhador que
nele se atira em busca das “pérolas e jóias”.
111
Para se referir ao conhecimento da Essência
divina, o autor fala de uma “pérola hermafrodita num abismo obscuro”.
112
Também se refere a
uma vastidão que mostra simultaneamente a natureza primária do eu, uma condição de
imensidão e de vazio para além do tempo e do espaço que é o locus da união não mediada
com o abismo ou oceano da Deidade em sua natureza primária.
A raiz da existência do conhecimento de Deus é o conhecimento do eu. Portanto,
o conhecimento de Deus possui a propriedade do conhecimento do eu, que é a
raiz. Na visão dos que conhecem o eu, o eu é um oceano sem margem, portanto
o conhecimento dele não tem fim. Tal é a propriedade do conhecimento do eu.
Por conseguinte, o conhecimento de Deus, que é um ramo desta raiz, junta-se a
ele nesta propriedade, pois não há fim para o conhecimento de Deus. Essa é a
razão pela qual em todo estado o conhecedor diz, "Meu Senhor, me aumente em
of the Muhyiddin Ibn’Arabi Society
110
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II: 348) in Journal , vol. XXIX, 2001. “Eu sou o
Corão e os sete repetidos; Espírito do espírito, não o espírito do tempo. Meu coração reside com O que é
conhecido para mim, testemunhando-O enquanto minha língua está contigo. Não olhes com o olho sobre minha
forma corpórea, mas contemple as delícias de ser rico para além da necessidade. Sejas reduzido a nada no
oceano da Essência de Deus – e verás maravilhas que nenhum olho viu antes e mistérios desconhecidos surgindo
à visão, cobertos com os espíritos dos significados.”
111
IBN’ARABĪ, Kitāb ‘Anqā’ Mughrib in Islamic Sainthood in the Fullness of Time: Ibn al-Arabī’s Book of the
Fabulous Gryphon
, 1999: 246.
112
IBN’ARABĪ, op. cit.: 328.
203
conhecimento". Então Deus o aumenta no conhecimento de si mesmo para que
ele possa aumentar o conhecimento de seu Senhor. Isso é dado pelo desvendar
divino.
113
3.4.2A teologia mística negativa em Marguerite Porete e Ibn’Arabī
O toi qui cherche le chemin qui conduit au secret. Reviens sur tes pas: car c’est
en toi que se trouve le secret tout entier.
114
Marguerite Porete também nos diz que de Deus não se pode falar. Para ela, Deus é
completamente estranho à linguagem. Nenhum conceito humano ou forma material podem
descrevê-lo. Falar de Deus é diminuí-lo, limitá-lo a construções humanas: “Pois Deus não é
outro senão aquele sobre quem nada podemos conhecer perfeitamente. Pois só Ele é meu
Deus, sobre o qual não se pode dizer nenhuma palavra.”
115
Afirmar qualquer coisa sobre Deus
seria mentir, pois “Tudo que podemos dizer, escrever sobre Deus, ou o que podemos pensar,
que é mais que dizer, é portanto mais como mentir do que como falar a verdade.”
116
Futūhā
113
IBN'ARABĪ, t, (III 121.25) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of
Imagination, 1989: 345.
114
IBN’ARABĪ, Les Illuminations de Mecque, 1988: 41.
115
Mirouer: 11: 114-116.
116
Mirouer: 119: 20-22. Thomas CARLSON assinala a atenção que a teologia apofática da tradição cCristã tem
atraído por parte de alguns teóricos contemporâneos, que escrevem depois da “morte de Deus” e depois da
crítica da concepção “moderna” da subjetividade, em especial Maurice Blanchot e Jacques Derrida. Carlson
Ele
acha que o ponto de interseção desses contextos, que em outros aspectos podem parecer radicalmente diferentes
um do outro, é um ponto de “indiscrição, onde a pobreza da linguagem sobre a morte e a pobreza da linguagem
sobre Deus podem se mostrar indistingüíveis. O discursos
sobre a morte e o discurso apofático se assemelham,
pois assim como “não posso estar ‘lá’ onde minha morte ‘ocorreria’, uma vez que a morte me desfaz enquanto o
ser que sou, da mesma forma não posso estar ‘lá’ para ver o Deus que permanece invisível ou ‘dizer’ o Deus que
permanece indizível.” Tanto morrer quanto ver o invisível e dizer o indizível são algo igualmente paradoxal ou
impossível, que pode estar ligado ao pensamento e à linguagem de Deus como incognoscível e inefável. Cf.
“The Poverty and Poetry of Indis
cretion: Negative Theology and Negative Anthropology”, Christianity and
Literature 47, No. 2, 1998:, pg. 170. Maria LICHTMAN também assinala a semelhança entre os temas de uma
teologia pós-moderna, tal como delineada por Mark C. Taylor, e a tradição teísta da teologia negativa no
Ocidente. Lichtman sublinha os problemas críticos da desconstrução delineada por Taylor e acha que muitos
deles “especialmente o ‘desaparecimento do eu’, ‘o interjogo de ausência e presença e do silêncio e discurso’, ‘a
insaciabilidade do desejo’, ‘a subversão da autoridade’ e o ‘advento da escrita’” estão presentes na versão pré-
moderna da teologia de Porete. Cf. “Negative Theology in
em Marguerite Porete and Jacques Derrida”.
Christianity and Literature, 47, No. 2, 1998:, pg. 213.
204
Ao longo do Miroir, a Alma afirma que não conhece Deus ou a si mesma, apenas
Deus conhece essas coisas. Ela não sabe de onde Deus vem, só o poder divino conhece isso,
não sabe o que Deus é, somente a sabedoria divina sabe isso e não sabe quem Deus é, só a
bondade divina sabe isso. Da mesma maneira, só Deus compreende o que e quem a Alma é.
Para Marguerite, a única forma de se aproximar de Deus é negar tudo que é exterior a ele, é se
tornar ela própria negação para poder se unir a ele. Essa condição é descrita como a
aniquilação: a alma que nada deseja fazer, aprender, querer, perder, ganhar ou saber. Porém
essa alma, que nada pode dizer sobre si ou sobre Deus, não cessa de falar, encarnando o
paradoxo da linguagem.
Tais criaturas não podem mais falar de Deus, pois assim como não podem dizer
onde está Deus, não podem dizer quem Deus é. Com efeito, quem quer que fale
de Deus quando quer, a quem quer e onde quer falar, deve saber sem nenhuma
dúvida, diz essa Alma, que jamais sentiu o verdadeiro âmago do amor divino.
117
no Miroir de Marguerite há uma transposição paradoxal da dialética da teologia
apofática para a esfera da prática ascética, uma transposição que alguns autores chamam de
uma “antropologia apofática”.
118
Com isso, um novo tema emerge, o do “eu”, em particular o
da nadificação do “eu” ou, como ela afirma, o da aniquilação da alma. Porete repetidamente
menciona a radical pobreza da Alma, que abandona obras e virtudes. Numa verdadeira
apófase do desejo, essa alma se esvazia de toda vontade e termina por cair do amor no nada. É
nessa queda profunda que ela se torna “nada” no abismo onde encontra o “nada” divino, e
volta a “ser o que era” antes de sua criação. Agora, somente a vontade divina age nela através
da união realizada por obra do Amor. A alma é agora menos que nada e nada pode fazer senão
a vontade de Deus e assim ela é nada e tudo.
117
Mirouer: 18: 3-8.
118
Cf. Denyis TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1995: 139.
205
... essa Alma possui tudo e não possui nada, sabe tudo e não sabe nada, deseja
tudo e não deseja nada. ... Não deseja nem despreza pobreza nem martírio nem
atribulações, nem missas ou sermões, jejuns ou preces e dá à Natureza tudo que
ela lhe pede sem remorso de consciência.
119
Como podemos ver, a apófase do desejo realizada por Marguerite Porete inclui a
recomendação de dar à natureza tudo que ela deseja, mas isso se aplica à alma aniquilada na
qual a natureza, a vontade e o espírito morreram e que se encontra numa união tão total com
Deus que não pode desejar nada que contrarie a vontade divina. Embora a Alma Aniquilada
dispense as virtudes, à medida que essas são forças externas de dominação, elas permanecem
como uma expressão natural de seu ser transformado. Porete faz uma inversão da linguagem
cristã sobre a queda, juntando os opostos ao afirmar que uma “descida” no pecado é
necessária para a “ascensão” até a união. Reconhecendo sua total pecaminosidade, num
abismo de humildade, “essa alma tornou-se nada e menos do que nada em todos os aspectos”
e sua miséria total lhe garante a total bondade divina.
A alma aniquilada já não possui um nome, exceto o daquele com o qual se fundiu.
Porete utiliza a imagem do rio que flui para o mar e perde seu nome – essa alma foi conduzida
para o Pai, a origem sem origem da Trindade, onde recebe sua existência virtual, perdendo
“seu nome”, que denota um ser distinto. Porete utiliza também a metáfora do ferro no fogo – o
ferro que se torna ele próprio fogo em virtude da força do fogo. Esse fogo, sinal da presença
de Deus, consome na alma tudo que não se origina dele, promovendo uma transmutação
divina e permitindo que a alma se torne um espelho teofânico. Tanto nessa metáfora quanto
na imagem do rio que perde seu nome está implicada a idéia de que há algo incognoscível
sobre o eu e que espelha a incognoscibilidade divina na teologia apofática. Em seu lugar mais
profundo o fundamento da alma é idêntico ao fundamento de Deus.
119
Mirouer: 13: 25-30.
206
E se ela é liberada em todos os aspectos, ela perde seu nome, pois se ergue em
soberania. E portanto ela perde seu nome nele com o qual se funde e se dissolve
através dele e nele por ela mesma. Assim ela seria como um corpo de água que
flui do mar, que tem algum nome, como se poderia dizer Aise ou Sene ou
qualquer outro rio; e quando essa água ou rio retorna ao mar, perde seu curso e
o nome com o qual fluiu em muitos países realizando sua tarefa. Agora ele está
no mar onde repousa, tendo perdido tal trabalho. O mesmo se dá com essa
Alma. Aqui você tem um exemplo para entender como essa Alma veio do mar e
tinha um nome, e de como ela retorna ao mar e assim perde seu nome e não
mais possui um nome, exceto o nome daquele em quem ela está perfeitamente
transformada ...
120
Portanto, a alma vem do mar com um nome e retorna ao mar, perdendo seu nome
como rio ou, em outras palavras, como algo criado, ganhando o nome daquele no qual se
transformou, ou seja, mar ou Deus, do qual não mais se distingue. Essa concepção é
complementada pela idéia da preexistência eterna da alma na Deidade, que antecede a criação
e que veremos com mais detalhes no próximo capítulo. Contudo, embora tais imagens estejam
presentes em seu texto, pois são necessárias a qualquer discurso, Marguerite Porete
claramente enfatiza o uso apofático da linguagem. Ela dispensa a modalidade visionária e
somática da mística ou qualquer outra experiência extraordinária da presença de Deus. Na
verdade, perder Deus e o caminho para Deus é ser conduzida ao nada-em-Deus. Seu texto
enfatiza a refiguração ou o processo de auto-transformação da Alma – fênix que, aniquilada,
se torna unida com e dentro do divino sem distinção.
121
Porete mostra que a expansão da compreensão da alma começa quando ela
verdadeiramente compreende que nada sabe sobre si mesma ou sobre Deus, e que o que ela
entende de si é o que ela entende sobre Deus. Ela utiliza o termo nada de duas formas distintas
120
Mirouer: 82: 37-50.
121
Amy HOLLYWOOD, The Soul as Virgin Wife, 2001: 23/24. Hollywood estabelece a semelhança entre
Marguerite e Eckhart em suas críticas explícitas ou implícitas ao sofrimento espiritual e corporal como
modalidade de salvação e na
para a rejeição de ambos das experiências extraordinárias da presença de Deus. A
experiência de Deus, para ambos, se dá dentro do contexto da vida comum.
207
para indicar o relacionamento da alma com Deus. O termo “nada” é utilizado para mostrar o
estado da alma no estágio da queda, do aprofundamento no abismo, onde permanece na mais
extrema humildade sem qualquer desejo próprio, quando só Deus deseja nela. Esse “nada”
está relacionado ao “nada” a partir do qual Deus criou tudo, à sua existência virtual em Deus
antes que ela fosse criada. Ao ser criada, a alma que não era nada passa a ser algo, pois passa
a desejar independentemente de Deus, tornando-se outra coisa. O “nada” também se refere à
natureza divina, que é tudo e nada. Contudo, Porete também utiliza o termo “nada” no sentido
de algo que é menos que Deus. Existência é Deus, o único que é, “Deus é aquilo que é;
porque ele é aquilo que é por si: amante, amado, amor.”
122
Comparada com a natureza divina,
a natureza criada da alma é “nada”.
Sim, Amor, diz essa Alma, a sabedoria do que foi dito reduziu-me a nada, e esse
nada sozinho me colocou num abismo sem medida abaixo de menos que nada.
E a compreensão do meu nada deu-me tudo, e o nada desse tudo levou de mim
orações e preces, e não oro mais por nada.
123
Essa é a dialética de nada e tudo esboçada por Marguerite Porete. Nesse vazio
ontológico, a alma caiu na certeza de “nada saber” e “nada querer”, de “viver sem um
porquê”, pois aniquilou a vontade e também o amor. É nesse abismo de humildade que ela
perde seu nome. É aí que se dá a interseção do divino e do humano dentro do humano e a
identidade não pode mais ser encontrada na escolha entre eles. Na dialética apofática-
catafática mantida através do Miroir, a aniquilação da alma é paradoxalmente a sua liberação.
A alma nobre e livre e Deus são agora espelhos um do outro graças à “clarificação” da alma
propiciada pela graça divina.
122
Mirouer: 113: 15-16.
123
Mirouer: 51: 7-11.
208
(Amor): ... Seu prazer (da Alma) é nossa vontade, em virtude da pureza da
unidade da vontade da divindade que a envolveu. Sua vontade é nossa, pois ela
caiu da graça na perfeição da obra das Virtudes, e das Virtudes no Amor, e do
Amor no Nada, e do Nada na Clarificação por Deus, que se vê com os olhos de
Sua majestade que aqui a clarificaram por Si mesmo. Ela está tão dissolvida
nele que não vê nem a si nem a Ele, e assim Ele vê somente a Si, em virtude de
sua bondade divina.
124
Já o discurso de Ibn’Arabī se assemelha a um caleidoscópio em contínuo giro, e nele
as configurações mudam antes que possamos absorvê-las. Se Porete usa a metáfora do
espelho, oferecendo a possibilidade de passar para o outro lado do espelho e ver Deus face a
face, os místicos sufis utilizam a imagem do polimento do espelho como um símbolo do
desvio para além da distinção entre sujeito e objeto, entre o eu e o outro. A linguagem de al-
Shaykh funciona continuamente na direção do polimento do espelho, revelando e velando,
apresentando sempre uma obscuridade ou um novo paradoxo.
Ibn’Arabī apresenta em seu discurso uma dialética entre duas modalidades de
linguagem, onde o termo al-haqq – o absoluto, o real – que denota a absoluta unidade além
das estruturas dualísticas da linguagem e do pensamento, bem como de toda relação, se
diferencia do nome pessoal da Deidade, Allah. Essa segunda modalidade consiste nos nomes
divinos, nos atributos divinos que correspondem ao plano catafático no qual o Real pode ser
nomeado e colocado em relacionamento com o mundo.
125
A questão da visão de Deus para Ibn’Arabī é inseparável do axioma central de sua
doutrina expresso pelo hadith da criação: “Eu era um tesouro oculto e desejava ser conhecido,
por isso criei as criaturas para que eu fosse conhecido.” Deus é conhecido porque deseja ser
conhecido e só ele determina a forma e a extensão desse conhecimento. O termo chave da
experiência espiritual para al-Shaykh é tajallī, que de acordo com o contexto pode ser
124
Mirouer: 91: 8-16.
125
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 64.
209
traduzido por epifania ou teofania. Tajallī é um ato divino e é em virtude desse ato divino que
o homem pode alcançar uma percepção direta de Deus, qualquer que seja o grau ou a forma
que ela tome.
As teofanias são incessantes e tudo no universo é teofania dos atributos divinos. Elas
podem aparecer numa forma sensível ou imaginal ou podem ser uma manifestação que
transcende toda forma. Ao contrário de Porete, Ibn’Arabī enfatiza as experiências visionárias
e o mundo imaginal, o ālam al-mithal, no qual os “espíritos tomam corpo e os corpos tornam-
se espíritos”. Contudo, o mundo imaginal não constitui para ele o ponto máximo. Ele não
reduz o campo das percepções do divino ao domínio das teofanias formais, pois isso seria
uma limitação que interditaria o acesso à absoluta nudez da Essência. Al-Shaykh admite a
possibilidade das teofanias sem forma, que revelam a Essência divina em sua simplicidade
absoluta, para além de toda forma e de toda imagem.
126
As formas, tangíveis ou imaginais,
são criadas e não podem confinar o incriado. O mais alto conhecimento está além de toda
imagem.
... Pois Ele – glorificado seja – não se assemelha a nada, e nada se assemelha a
Ele. Pois como poderia ele que é semelhante às coisas conhecer Aquele ao qual
nada se assemelha e que não é semelhante a nada? Assim seu conhecimento
Dele é apenas que “Nada é como Ele” (Corão 42:10) ...
127
Já vimos que para Ibn'Arabī, o cosmos é um espelho não-polido. Para que o espelho
brilhe e para que os nomes divinos adquiram realidade, é necessário o homem completo ou
perfeito, que em sua aniquilação (fanā) do eu é capaz de refletir todos os atributos divinos.
Há um hadith da tradição livre, no qual quem fala é Allah, que é paradigmático para a
compreensão sufi da união mística como aniquilação. Nele, Deus diz que quando ama
seu
servo torna-se seu ouvido, sua visão, suas mãos, seus pés e sua fala. Entende-se que quando o
126
Claude ADDAS, Ibn Arabî et le voyage sans retour, 1996: 60.
127
IBN’ARABĪ, Meccan Revelations, 2002: pg. 32, 118:35.
210
eu é aniquilado na experiência mística da fanā, o divino vê, ouve, caminha, toca e fala por
meio das faculdades humanas.
128
Essa é a experiência de amor apaixonado que Ibn’Arabī
chama de hawā e define como a “total aniquilação da vontade no Amado”. Esse amor implica
na renúncia da vontade, na pobreza radical e na theomorfosis mencionada no hadith, ou seja,
na identificação com o Amado a ponto de assumir seus atributos.
Os que retornam a Deus estão “destituídos “ de qualquer coisa outra que Deus.
Um homem rico que vê o Real em toda forma não alcança o nível daquele que
O vê em coisa alguma (lā shay’), pois este último O vê livre de todo
relacionamento, não-delimitado, e sem qualquer delimitação.
129
Quando o discípulo inicia o caminho (sulūk), ele se considera autônomo, não escapa
da ilusão voluntarista. Ele não sabe que é murīd (desejante) porque na verdade é desejado
(murād) por Deus, que ele espera alcançar por seus próprios poderes.
130
Quando algo é alcançado através do esforço, não há nada de dádiva gratuita
nisso. Buscar é um esforço, enquanto que a visão é uma dádiva gratuita ... Uma
vez que tenhas entendido o que eu digo, saberás que a visão de Deus não
acontece através da busca e não é alcançada por recompensa, em contraste com
as bençãos dos Jardins.
131
Segundo al-Shaykh, poucos eleitos são capazes de atingir a mais alta estação que
resulta na mais completa pobreza, a estação de nenhuma estação, onde estão aniquilados,
despojados de si e mesmo de Deus, tendo abandonado qualquer idéia de possuí-lo.
ūhā i Path of Knowledge
128
IBN’ARABĪ, Fut t (II 553.5) in The Suf , 1989: 176.
129
IBN’ARABĪ, Fut t (III 105ūhā .: 8), in The Sufi Path of Knowledge, 1989: pág. 378.
130
Michel CHODKIEWICZ, “The Vision of God”, p.45. Disponível em <http/www.ibnarabisociety.org.>
Acesso em: 23 de junho de 2003, 45.
131
IBN’ARABĪ, Fut t (III 464.27) in The Self-Disclosures of God, 1998: 57. ūhā
211
O Legislador
132
disse: “Ele que conhece a si mesmo conhece o seu Senhor”,
Esse conhecimento de Deus adquirido depois do conhecimento do eu pode ser
um conhecimento da incapacidade de obter o conhecimento de Deus. Chega-se
ao conhecimento de que há Alguém que não pode ser conhecido. A falta de
marca é uma marca, pois Ele se distingue de suas criaturas através da negação
dos atributos (salb), não pela afirmação (ithbāt) ... Os mais elevados de todos os
seres humanos são os que não tem nenhuma estação ... Eles não são
determinados por propriedades. Eles são os divinos (al-ilāhiy-yūn), já que o
Real é idêntico a eles ...
133
Em seu distanciamento, eles voltam ao estado em que eram sem saber que eram, ao
nada do estado de preexistência quando se encontravam envoltos no “tesouro oculto”.
O conhecedor perfeito reconhece Deus em todas as formas enquanto os outros homens
o reconhecem apenas na imagem mental que fazem dele, mas é no vazio criatural que
Ibn’Arabī explicita o paradoxo da visão de Deus, dizendo que “é o olhar de Deus que alcança
Deus e O vê, não o seu” ou “Ele é o único que vê, que é visto e Aquilo através do qual é
visto”. Apenas aquele que perdeu tudo, cuja contemplação está livre de todas as formas,
alcança o absoluto.
O povo da perfeição realizou todas as estações e estados e foi além deles para a
estação acima da majestade e da beleza, de tal forma que eles não possuem
nenhum atributo e nenhuma descrição. Foi dito a Abū Yazīd. “Como estás esta
manhã?” Ele respondeu, “Não tenho nem manhã nem noite; manhã e noite
pertencem aos que se tornam delimitados por atributos, e não tenho nenhum
atributo.”
A raiz desse conhecimento de Allah é a derradeira estação alcançada pelo
gnóstico, isso é, “nenhuma estação”, à qual Deus alude no verso “Ó povo de
Yathrib, não tens nenhuma estação” (Corão 33:13) ...
134
ūhā n
132
Aqui Ibn’Arabī se refere ao Profeta Muhammad.
133
IBN’ARABĪ, Fut t (II 506: 30) i The Sufi Path of Knowledge, 1989: 345.
134
IBN’ARABĪ, Fut t (II 646: 27)ūhā , in The Sufi Path of Knowledge, 1989: 376.
212
Já vimos que é exatamente no polir do espelho que o homem perfeito e a Deidade
manifesta estão unidos e o mistério é revelado. Para Ibn’Arabī, assim como Deus se move
incompreensívelmente entre a automanifestação e o auto-retraimento, também o ser humano
está divido entre a sua imersão no imaginal e seu movimento na direção do inimaginável. A
automanifestação e o auto-ocultamento do divino dentro da relação Deus-cosmos é o ponto de
partida de sua teologia. A partir desse ponto, no que concerne a Deus, sua teologia se move
entre uma interminável proliferação de imagens e nomes e uma impossibilidade final de
representação e nomeação. Michael Sells sintetiza bem a questão:
Qual é o mistério que é revelado? Num nível é a identidade não-manifesta que
se revela através dos nomes divinos e do ser humano completo. Contudo, à
medida que se revela, ela é delimitada dentro de uma manifestação particular.
Ainda assim o verdadeiro mistério não pode nunca ser revelado, nem para si
mesmo. Ou podemos dizer que a própria questão ‘Qual é o mistério?’ é
enganosa. O mistério é um mistério porque está além da entificação ou da
qüididade. Embora se revelando num fluxo contínuo de imagens e
manifestações, não está confinado a nenhuma.
135
Ainda segundo Sells, a apófase mística é uma modalidade de discurso transcultural,
que emerge de uma variedade de tradições religiosas e partilha alguns padrões semânticos
centrais. Embora a maioria dos escritos místicos empreguem as modalidades catafática e
apofática, em Marguerite Porete e em Ibn’Arabī a tendência apofática é mais acentuada e está
ancorada nos contextos culturais particulares das tradições de cada um deles. Para Porete, a
união mística se dá através do trabalho da Trindade na alma que culmina numa união
indistinta da alma com Deus. Ibn’Arabī, por sua vez, baseia-se na afirmação básica do Islã, o
princípio da tahwīd, a radical unicidade de Deus e na atualização da fitra, que desvela a única
Existência. O contraste das posições doutrinárias põe em relevo o trabalho do pensamento
135
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 89.
213
apofático através das barreiras culturais e religiosas e, em ambos os casos, a linguagem
apofática emerge do esforço do escritor com os princípios básicos de sua própria tradição
teológica e mística.
136
Nesse ponto voltamos à questão colocada no início desse capítulo em relação ao uso
genérico e à hipertrofia da palavra Deus, quando separada de uma tradição e de uma
linguagem determinadas, o que leva à interpretação errônea da apófase clássica nos autores
medievais. O nome genérico pressupõe um “o que”, e boa parte da discussão sobre união
mística e mística comparada baseia-se numa linguagem substancialista – que se refere ao
“que” e à qüididade. Sobre as questões suscitadas nessas discussões vale a pena citar Sells
integralmente:
... Aderentes de tradições diferentes “reverenciam o mesmo Deus”,
“acreditam na mesma coisa” – i.e., o que alguém da tradição X experimenta ou
acredita é o mesmo ou é diferente do que é experimentado ou acreditado por
alguém da tradição Y. A questão do que se reflete na questão do
condicionamento: “o que” o místico experimenta é condicionado ou
incondicionado?
137
A compreensão não-substancialista do transcendente comum aos místicos
apofáticos não se encaixa nas premissas de tais questões. Nas palavras de
Plotino, não há isso ou não-isso. Nas palavras de Erígena, o transcendente é
nada, i.e., coisa alguma, além de toda entidade ou qüididade. A linguagem
apofática da desontologia, ao se mover continuamente para a remoção do “o
que” (uma remoção que não é nunca alcançada, sempre em progresso), sugere
uma modalidade diferente de comparação, menos propícia a reduzir as
particularidades das diferentes tradições a um “o que”, a um conjunto
homogêneo de doutrinas, proposições, ou descrições de experiência.
A “teologia negativa” de Plotino, Pseudo-Dionísio e de Eckhart foi
acusada de estabelecer um “ser” além do ser, uma espécie de meta-ser, que é
somente uma outra forma de entidade, um Deus além de Deus, um Deus oculto.
136
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994op.cit.: 206.
137
Aqui Sells está se referindo às questões básicas colocadas nas discussões epistemológicas sobre a mística,
tanto pela posição essencialista quanto pela crítica contextualista.
214
Essa acusação está fundada sobre a concepção comum de que a união mística
apofática é uma união “com Deus” ... Não há união com Deus; ao contrário, a
união ocorre dentro e além da Deidade. Eckhart escreve sobre a Deidade que
tem de desistir de suas “propriedades” para nascer na alma na união mística. Ele
escreve sobre uma religião baseada no eigenschaft como uma religião de
mercadores e vendedores. Pode ser que o “Deus” moderno seja em algumas
circunstâncias um tipo de propriedade, permitindo uma negociação fácil sobre o
significado das tradições religiosas, uma negociação que pode ser usada para
descartar posições e eliminar fronteiras.
138
Ainda que Ibn’Arabī não utilize a linguagem da “Deidade para além do ser”, que
caracteriza a corrente mística cristã influenciada pelo neoplatonismo, ele concebe um
primeiro grau da de existência (Dhāt ou Dhāt Allah), a Essência absoluta ou o mistério
absoluto (ghayb mutlaq) ou o mistério do mistério (ghayb al-ghayb), que transcende toda
relação, toda manifestação e toda determinação e que permanece inacessível, incognoscível e
indizível. Só se pode falar dela em termos negativos e, segundo Gloton, mesmo o termo
Wujūd a Ela aplicado não convém, pois estando além de todo nome e de tudo que é nomeado,
está além da Existência e do Ser puro.
139
Somente num outro grau de existência é que a
Essência é vislumbrada como o princípio da primeira teofania essencial, a Unicidade ou
Unidade plural, que é o princípio de toda multiplicidade e a origem do desdobramento das
possibilidades contidas no interior do “tesouro” oculto no Uno. É essa Unicidade plural que
comporta uma infinidade de propriedades e de realidades que o amor, em sua força de
expansão, vai desdobrar e propagar na existência universal, na manifestação que constitui o
“Suspiro do Omnicompassivo”.
140
Portanto, na concepção de al-Shaykh, Dhāt parece
corresponder ao Uno plotiniano e à Deidade em Eckhart, no sentido de estar além de todo
dualismo, todo nome e toda qüididade, ainda que, como os outros sufis, ele não se refira à
138
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 11/12.
139
Maurice GLOTON, La Production du cCercles, 1996: intr. XXVI.
140
Maurice GLOTON, op. cit.: intr. XXVII.
215
Deidade como nada, o que contrariaria o adab. Porete, por sua vez, não faz uma distinção
clara, mas dá indicações do Uno que antecede a Trindade.
Ainda que inseridos em diferentes tradições, tanto Porete quanto Ibn’Arabī incluem
em sua linguagem um momento anárquico: Porete, com a aniquilação do eu e de sua vontade
de fazer qualquer coisa ou evitar qualquer coisa por Deus, Ibn’Arabī com o contínuo
abandono de toda imagem do eu e da Deidade. Explicar esse momento anárquico – em que a
Deidade é nada, em que a alma é livre e em sua perplexidade nada sabe – é transformar a
linguagem apofática em teologia convencional, ainda que sustentá-lo implique riscos. Tanto
Porete quanto Ibn’Arabī apresentam a relação da alma humana com o Deus inefável numa
retórica de pobreza e de aniquilação, retórica em que se evidencia a ligação entre a teologia
negativa e a antropologia negativa, figurada em termos de uma “aniquilação da alma”, que
nem sempre é compreendida ou aceita por setores religiosos ortodoxos.
Ambos os autores, em seus esforços para expressar e afirmar a transcendência, são
conduzidos à afirmação de uma radical imanência, na qual o que está além está dentro, o que
é outro é não-outro. Em seus discursos místicos, ambos buscam articular a relação entre os
seres criados e o Deus transcendente, que é compreendido em termos de causa. Essa
articulação oscila entre uma infinita nomeação de Deus, baseada na imanência de Deus em
toda criação, e um anonimato radical de Deus imposto pela excessiva transcendência divina
em relação ao mundo criado. Nomear Deus de acordo com esse paradoxo é tanto nomeá-lo
com “os nomes de tudo que há” quanto aceitar que “ele é corretamente inominável”. O
momento apofático ocorre dentro do contexto original de afirmação da transcendência. Na
verdade, o elemento original catafático na afirmação da transcendência (a utilização do nome
x para afirmar que x está para além de todos os nomes) é necessário para começar a crítica
apofática do nome. Quanto mais afinada a racionalidade do contexto catafático, mais bem-
sucedido será o paradoxo apofático.
141
141
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 212.
216
Tanto Porete quanto Ibn’Arabī mostram que o transcendente não pode ser conhecido
como um objeto por um sujeito criatural. Para ambos, o transcendente só pode ser conhecido
através de si mesmo e só é conhecido naquele ponto de interseção no qual as dicotomias
sujeito-objeto, eu e outro são desfeitas.
142
Ambos os autores entendem que a Existência ou Ser
é Deus e combinam o negativo e o positivo – Deus simultaneamente imanente às criaturas
como sua existência real e, por esse mesmo fato, absolutamente transcendente a elas como o
Ser Absoluto. Como o ser de todas as coisas, Deus em si é totalmente incognoscível e
transcendente e, ainda assim, como o ser de qualquer coisa, Deus é também totalmente
próximo e presente.
A partir de um certo ponto de vista, ambos vêem a alma como incriada e de outro
ponto de vista como criada. Porete e Ibn’Arabī compreendem o Uno como indistinto, o que
significa que abarca todas as coisas sem distinção dentro de si. Nesse sentido, Deus e os seres
criados são originalmente idênticos. Por outro lado, precisamente por ser totalmente
indistinto, ilimitado e indefinido, o Uno se distingue de todo ser distinto. Todo ser finito e
toda criatura é também não-ser, pois fora do Uno não há nada. Em si mesmas, as criaturas são
em certo sentido, nada. Qualquer coisa diferente de Deus como ser não é um ser, pois nada
pode ser sem ser, e já que nada que é pode ser sem ser e já que o ser não exclui nada, tudo que
é não é outra coisa que Deus.
Sou o que sou pela graça de Deus. Sou portanto somente aquilo que Deus é em
mim e nada mais; e Deus também é aquilo mesmo que é em mim. Pois, nada é
nada. O que é, é. Portanto eu não sou, se eu sou, exceto o que Deus é; e
ninguém é, senão Deus; por isso onde quer que eu penetre só encontro Deus,
pois na verdade ninguém é, exceto ele.
143
142
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994 op.cit.: 207.
143
Mirouer: 70: 5-11.
217
A maneira como Deus, o ser que não exclui nada, origina os seres de tal forma que
eles não são sem ser e ainda assim são totalmente distintos dele em si, forma a dialética na
qual é dito que Deus flui para todas as criaturas, mas permanece intocado por elas e que tudo
flui de Deus, mas ainda assim permanece dentro dele.
144
Embora ambos os autores afirmem que só Deus é, tanto para a béguine quanto para al-
Shaykh, Deus não é propriamente um “tipo” de ser, já que o ser que abarca e realiza todos os
tipos de seres não pode ser definido como um tipo de ser entre os outros. Infinito e sem
medida, ele é também sem modalidade. Ele nada tem em comum com nada, não partilha
gênero ou espécie, categoria ou tipo. A unidade absoluta da Deidade, para eles, não é Deus,
não é nada que possa ser nomeado. Como tão bem formula Ibn’Arabī, chamar Deus de
“criador” é marcá-lo em termos das criaturas; chamá-lo causa é defini-lo fora dos efeitos e
assim por diante. Cada um desses atributos “absolutos” é relativo a outra coisa na cadeia
discursiva. Como ser que inclui todos os nomes dentro de si de forma indistinta, Deus não tem
nenhum nome. Portanto ele é igual a nada, e nele não há imagem ou forma. Deus é nada no
sentido em que é um “não sei o quê”, para além de todo “algo” que pode ser concebido. É a
negação da negação, que ao mesmo tempo é pura afirmação, plenitude e superabundância.
Esse nada é oposto ao nada das criaturas, caracterizado pela condição de seu ser como
limitado pelo não-ser ou pela não-existência fora da existência em si. Já o ser divino é nada
porque não é “isso” ou “aquilo”. É coisa alguma, sem predicados e totalmente obscuro à
compreensão. Caso a existência ou o ser seja concebido como aplicável às criaturas, então
Deus não é, pois o nome “ser” aplicado às criaturas não pode ser aplicado a Deus. Nesse
sentido, Deus está além do ser e não é um ser.
145
Para conceber apropriadamente esse Deus
despido de atributos, a alma deve se tornar o nada que é em seu fundamento, entrando na
144
Sonya SIKKA, Forms of Transcendence: Heidegger and Medieval Mystical Theology, 1997: 114.
145
Sonya SIKKA, op. cit.: 115.
218
escuridão em que nada é visível. É dentro desse nada que Deus nasce. É aí que se dá o
encontro e é aí onde Deus é verdadeiramente Deus, quando as criaturas terminam.
Apesar de sua eloqüência, Marguerite Porete e Ibn’Arabī sabem também que a
resposta mais apropriada à verdade divina, que corresponde genuinamente à natureza de Deus
e à unidade da alma com Deus, é o silêncio. Contudo, em suas teologias místicas, eles não
cessam de falar, tanto como uma resposta aos que desejam conhecer quanto em obediência a
um comando interno. Seus escritos, pontilhados pela expressão e pelo inexprimível, podem
adquirir um significado mais profundo para aqueles que buscam uma mudança de orientação
consciente e um caminho de união com Deus. É dentro dessa lógica paradoxal da interação
entre o pensamento e a linguagem afirmativos (a teologia catafática) e o pensamento e a
linguagem negativos que suas teologias místicas tomam forma. Essas modalidades
interdependentes de teologia articulam a relação da alma criada com Deus e dentro dessa
relação, a alma tende a transcender a si mesma e ao seu mundo em direção a Deus. Por um
lado, eles negam os proferimentos e os pensamentos afirmativos sobre Deus, baseados
analogicamente no conhecimento dos seres criados e, por outro, negam a segurança de suas
próprias negações, o que leva a alma a um movimento extático de transcender todos os seres.
“Essa função extática da negação responde à radical auto-doação de um Deus que permanece
‘tudo em tudo’ (como a causa criadora) e finalmente ‘nada em nada’ (como causa
transcendente).”
146
Em última análise, Porete e Ibn’Arabī afirmam que a existência virtual em Deus é
idêntica a Deus e concluem que eles são tudo o que Deus é – infinito, para além de descrições,
inominado. Concluem que são um Eu eterno criado por Deus para existir temporal, finita e
contingentemente. A béguine e al-Shaykh convergem ao promover uma desontologização e
entendem que o que verdadeiramente são, em sua existência criada e contingente, é o que
146
Thomas A. CARLSON, Indiscretion: Finitude and the Naming of God, 1999:16.
219
eram em sua origem, não um algo ou substância, mas sim, de maneira idêntica à Deidade,
coisa alguma, nada.
É dentro dessa tradição negativa que Eckhart
147
vai orar a Deus para que o livre de
Deus. Essa é uma oração que deve ser permanente para que não fiquemos atados às imagens
fixas, mesmo à imagem de estarmos além das imagens. Quando Ibn’Arabī insiste no
“desatamento dos nós no coração”, no abandono de toda imagem do eu e da Deidade, está
falando na manutenção do eterno fluxo de imagens e, como na oração de Eckhart, insistindo
para não nos ligarmos a nenhuma criatura, ainda que seja a Deidade mística, para mantermos
o discurso aberto, sem os fechamentos que transformam em ídolos as suas melhores criações.
Eu oro a Deus – isto é, Ele que é todas e nenhuma das coisas que esse
significante nomeia, nomen omninominabile et nomen inominabile – para me
livrar de “Deus”, quer dizer, de todos esses efeitos nominais que tentam nos
manter em submissão, todos esses efeitos lingüísticos-culturais históricos que
estão reunidos sob a palavra Deus.
148
147
Émilie ZUM BRUNN comenta a semelhança de algumas concepções da Wahdat-aWujūd, a “Unidade da
Existência” proposta por Ibn’Arabī e que caracteriza a e
Escola iIslâmica iIraniana, com a ontologia eckhartiana.
Ela cCita a como uma primeira semelhança a proposição fundamental de Eckhart: Esse est Deus, que no
pensamento de Ibn’Arabī é expressa como: Existência é Deus. O Esse ou a Existência correspondem à Essência
ou à Gottheit, em sua total indeterminação e total indistinção. Zum Brunn c
Cita também a união estreita entre
mística e metafísica, a concepção do Ser como actus essendi, que é a substância de todas as coisas, a Unidade
que se diferencia progressivamente do interior ao exterior, o retorno ao Uno por uma via mística que é ao mesmo
tempo uma via de conhecimento e o Nada do Ser absolutamente incondicionado em que
onde “o mistério é total
plenitude de afirmação. Cf. “L’Onthologie de Maîitre Eckhart et la Philosophie Comparée” in Maître Eckhart:
Métaphysique Du Verbe et Théologie Negative, 1984: 226/231.
148
John D. CAPUTO, “Mysticism and Transgression: Derrida and Meister Eckhart” in Derrida and
Deconstruction, 1989: 34.
220
CAPÍTULO IV
ANIQUILAÇÃO E UNIÃO
Da minha idéia do mundo
Caí.
Vácuo além de profundo,
Sem ter um Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que não se pode ver...
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão do Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...
1
4.1 – Estágios e estações na jornada mística
Em todas as tradições, o momento final da jornada mística, a união com Deus, é a
culminação de um itinerário espiritual que, de acordo com a tradição envolvida, depende ou
não da iniciação de um mestre, tem diferentes fases e estados que são incorporados à
consciência ou ao estado de ser do sujeito como conquistas definitivas, ou superados e
deixados para trás no caminho de elevação da alma. As jornadas descritas por Marguerite
Porete e por Ibn’Arabī, que retratam a ascensão da alma até a união com Deus, mostram
diferentes concepções e etapas, características de seus contextos religiosos e culturais, e
1
Fernando PESSOA, Ficções do interlúdio, 2003: 45
221
utilizam elementos já validados dentro de suas respectivas tradições religiosas, ainda que eles
reconfigurem e reinterpretem esse mesmos elementos segundo uma visão bastante pessoal.
Mesmo que o itinerário místico retratado por cada um deles seja diferente, interessa-nos
ressaltar o padrão de aniquilação que gradualmente vai se delineando nas etapas finais de
ambas as jornadas.
4.1.1 – Os sete estágios
2
da alma no Miroir de Marguerite Porete
O intuito básico do Miroir aparece já no início do diálogo. Embora o livro seja um
retrato de Deus, é também um retrato da alma simples que alcançou uma unidade quase
transparente com Deus através do itinerário que o texto espelha para outras almas
leitoras/ouvintes. No capítulo 118, a alma fornece uma descrição detalhada dos estágios que
deve passar para alcançar a simplicidade e a liberdade. Esses estágios incluem o ascético, o
eclesial e as práticas contemplativas advogadas pela maioria dos religiosos do século XIII. Ao
longo do capítulo, Porete mostra os graus de “elevação”, do vale ao cume da montanha, este
último tão isolado que aí só vemos Deus. Cada um desses estágios está estabelecido num
estado particular.
No primeiro estágio, no qual a alma se detém por algum tempo, a alma tocada por
Deus busca com todas as suas forças obedecer aos mandamentos da lei divina. A alma ama
porque esse é um mandamento divino. Contudo, se ela tem um coração “pequeno” e lhe falta
a “nobre coragem”, ela não se elevará e não encontrará Deus.
2
De maneira semelhante, as sete estações de realização espiritual eram parte da maioria das escolas sufis. Uma
das obras sufis mais conhecidas no Ocidente é a de Farīd ud-Dīn ‘Attār, nascido na Pérsia em 1120. Em sua
narrativa alegórica do sufismo, “A linguagem dos pássaros”, ele mostra o tema do amor e da busca pela unidade
divina na forma de uma jornada dos pássaros que atravessam sete vales, os quais retratam diferentes estados, até
alcançarem a presença do Simorg. Os vales de ‘Attār, em sua delineação geral e em algumas descrições
específicas, mostram algumas semelhanças marcantes com os sete estágios de Porete. São eles: a busca, o amor,
o conhecimento, a independência, a unidade, a perplexidade e a aniquilação, cuja essência é o esquecimento, o
mutismo, a surdez e o esvanecimento.
222
No segundo estágio, a alma reflete sobre o que Deus aconselha a seus amigos
especiais, o que difere de seus mandamentos. Aqui, a alma tenta abandonar a criatura que há
nela, por meio de obras que mortificam sua natureza e do desprezo por riquezas, prazeres e
honras, para atingir a perfeição aconselhada nos evangelhos, cujo exemplo é Jesus Cristo.
Nesse estágio, a alma não lamenta a perda do que tem.
No terceiro estágio, a vontade e o amor da alma ainda estão ligados às obras de
bondade e a alma começa a considerar o martírio que representaria o abandono de tais obras.
Esse estágio é mais difícil que os anteriores, pois “é mais difícil derrotar as obras da vontade
do espírito do que derrotar as obras da vontade do corpo ou fazer a vontade do espírito.”
3
Nesse estágio se inicia o processo do sacrifício das virtudes e das obras, que a alma ama
ternamente, mas que distorcem sua percepção das prioridades espirituais, “pois nenhuma
morte seria martírio (para a alma no terceiro estágio) exceto a abstenção das obras que ela
ama, a delícia de seu prazer e a vida da vontade que disso se nutre.”
4
Porete considera a servidão às obras e às virtudes como empobrecedora. Já no início
do livro, a alma nobre e aniquilada conta como foi libertada dessa servidão por cortesia do
amor.
5
Porém, é só ao passar pelo quarto estágio que a alma abandona completamente a
obediência às obras e às virtudes. Esse estágio, que já mencionamos anteriormente, no
Capítulo II, é decisivo e traiçoeiro na jornada de elevação da alma. Aqui a alma se encontra
submersa na contemplação de Deus e nas delícias e doçuras do amor divino, o que a faz
acreditar ter atingido o ápice de sua jornada. Inebriada pelo brilho do amor e tendo deixado
3
Mirouer, 118: 59-61.
4
Mirouer: 118: 51-53.
5
Vertuz, je prend congé de vous a tousjours, Je en aurais le coueur plus franc et plus gay; Voustre service est
troup coustant, bien le sçay. Je mis ung temps mon coueur en vous, sans nulle dessevree; Vous savez que je
estoie a vous trestoute habandonnee; Je estoie adonc serve de vous, or en suis delivree. J’avoie en vous tout mon
coueur mis, bien le sçay, Dont je vescu un tandis en grand esmay. Souffert en ay maint gref tourment, mainte
paine enduree; Meiveilles est quant nullemente en suis vive eschappee; Mais puis que ainsi est, ne me chault: je
suis de vous sevree, Dont je mercie Dieu d’en hault; bonne m’est la journee. De voz dangers partie sui, ou je
esté enn maint ennuy. Oncques mais franches ne fui, fors de vous dessevree; Partie suis de voz dangers, en paix
suis demouree. Mirouer: 6: 10-24.
223
para trás as coisas do mundo, a ascese, as obras e as virtudes, livre de ansiedade, a alma atinge
o que lhe parece representar a perfeição humana. Contudo, ainda não abandonou a vontade do
eu e do espírito que a guiou nesses primeiros estágios. A alma deve morrer para o espírito e
para o eu a fim de se mover desse estágio para a vida verdadeira do quinto e do sexto estágios.
No quinto estágio, a alma considera que só Deus é, e que todas as coisas só são por
Ele; ela por si não é. A alma vê que Deus é a bondade total que colocou nela uma vontade
livre, nela que não é exceto como “maldade total”. Ela, que é a “maldade total”, ao aniquilar a
sua vontade, recebe de Deus a vontade livre do ser divino. Essas percepções elevam a alma, e
a percepção da luz divina a arrebata e nela resplandece. Ela compreende que só pode ser ao se
separar de sua vontade própria, que a reduz a menos que nada. Esse estágio é o lugar mais
baixo, um abismo de pobreza e de humildade ou simplesmente um “vale”. Em essência, a
alma deve atingir o fundo antes de ascender. Dessa maneira, ela retorna a seu estado original,
sem reter nada de si, e passa a realizar a perfeita vontade divina. Ela é transformada na
natureza do amor por esse dom que nela opera e não precisa mais lutar contra a sua natureza.
É nesse estágio que a alma cai do amor no nada, sem o qual ela não pode ter tudo. Todo o
orgulho e o sentimento de amor possessivo do quarto estágio são eliminados.
Até esse momento, a metáfora espacial da ascensão mística é consistente, porém aqui
há uma súbita inversão, e a ascensão é mostrada como uma queda, pois a alma “cai” das
virtudes no amor e do amor na aniquilação e na liberdade. Em contraste com os que
permanecem no quarto estágio, da vida do espírito, e que lutam com sua sensualidade e com
sua vontade,
Esses que são livres fazem tudo ao contrário. Pois assim como lhes convêm na
vida do espírito fazer tudo ao contrário de sua vontade, se não querem perder a
paz, assim, em contraste, as almas livres fazem tudo o que querem, se não
224
querem perder a paz, pois elas atingiram o estado da liberdade (franchise), quer
dizer, caíram das Virtudes no Amor, e do Amor no nada.
6
Os que atingem o quinto estágio são levados em êxtase até o sexto, onde não
permanecem, retornando ao quinto, onde permanecem. No sexto estágio, é completada a
aniquilação. Nele, a alma não vê mais a si mesma, nem vê Deus. É Deus que se vê nela por
sua majestade divina. O espelho torna-se absolutamente cristalino, pois a alma, agora liberada
e iluminada, é somente o que Deus é. “Deus se vê por si mesmo nela, por ela, sem ela,”
7
pois
não há nada fora dele. A alma aniquilada realiza, sem o trabalho de sua vontade, a glória
eterna de sua existência dentro da Trindade e da Trindade dentro dela, retornando à sua
origem e “lá” se estabelecendo, embora continue a se mover segundo a vontade de Deus.
Periodicamente, tais almas são levadas em êxtase pela Trindade para uma “visão” de absoluta
paz e glória, um vislumbre do que a alma desencarnada irá usufruir eternamente no sétimo
estágio. Esse estágio, de glorificação, “Amor o guarda para nos dar na glória eterna”, e só
quando a alma deixa o corpo é que podemos atingi-lo.
De todo esse processo fica claro que o itinerário espiritual da alma aniquilada em
Porete não elimina completamente o caminho tradicional da salvação por meio da obediência
aos mandamentos. Porete insiste que a graça e a imitatio Christi são passos preliminares no
processo de readquirir a existência anterior da alma. O mundo criado, suas virtudes e falhas
são uma parte necessária do caminho da aniquilação, e a liberdade da alma aniquilada é obtida
apenas por meio da obediência prévia às virtudes. Porém, na aniquilação, as virtudes passam a
servir à alma, que agora se tornou mais rica e sábia do que elas. A alma serve às virtudes até
que as ultrapasse e não tenha mais necessidade delas, e então a situação se inverte. Aniquilada
6
Mirouer: 90: 31-37.
7
Mirouer: 118: 186-188.
225
e perfeitamente alinhada com a vontade divina, a alma pertence agora a Deus e não às
virtudes.
4.1.2 – Estados e estações no sufismo de Ibn’Arabī
No sufismo, de maneira geral, a tarīqa, ou o caminho, tem um simbolismo baseado na
noção de passagem, itinerário e peregrinação. Nele, o sufi vagueia por diferentes estações
(maqâmat) até que gradualmente atinja a tawhīd perfeita, a confissão existencial de que Deus
é um. O iniciado começa a distinguir os diferentes estados (hâl) e estações pelos quais deve
passar. O estado é algo que vem de Deus para o coração humano, sem que o homem, por meio
de seus esforços, seja capaz de repeli-lo ou de atraí-loatravés
quando ele se vai. Já as estações
representam um estado permanente que o homem alcança, até certo ponto, por seus próprios
esforços. Pertencem à categoria dos atos, enquanto os estados são dons da graça.
As estações representam os graus pelos quais se deve passar para a aquisição de um
novo nível do ser ou os diferentes graus de consciência necessários para a transformação do
ser. De certa forma, elas definem os diferentes estados que o viajante obteve em sua disciplina
ascética e moral. Espera-se que ele cumpra as obrigações que pertencem às respectivas
estações. Por exemplo, ele não deve agir na estação do respeito como se estivesse ainda na
estação do arrependimento e também não deve deixar a estação na qual se encontra, antes de
cumprir todos os seus requerimentos. Os estados que lhe advêm variam de acordo com a
estação na qual ele está no momento. Assim, a qabd
8
(contração) de alguém na estação da
pobreza é diferente da qabd de alguém na estação do anseio.
9
Há várias estações classificadas,
8
A qabd significa a compressão da alma, “um deserto opressivo de solidão no qual o místico permanece dias e
por vezes, meses de sua vida.”.
Pode ser comparada à “noite escura da alma”, a partir da qual a luz da
experiência unitiva pode subitamente surgir, como o “sol da meia-noite”. Cf. Annemarie SCHIMMEL, Mystical
Dimensions of Islam, 2000: 129.
9
Annemarie SCHIMMEL, op. cit.: 99.
226
mas os passos principais são sempre o arrependimento
10
, a crença em Deus e a pobreza, que
conduzem ao contentamento, aos diferentes graus do amor ou à gnose, de acordo com a
predileção mental do viajante.
Para entrar no caminho espiritual, o adepto (murīd) precisa sempre de um guia para
conduzi-lo pelas diferentes estações e para sinalizar o caminho que conduz à meta. O adepto é
submetido a vários testes que exigem uma confiança absoluta em seu mestre. No sufismo,
sempre foi e ainda é uma regra a existência de uma afinidade preestabelecida entre mestre e
discípulo. Muitos sufis vagueiam anos através do mundo islâmico em busca de um mestre a
quem possam se render totalmente.
11
O mestre observa todo o crescimento espiritual do discípulo, interpreta seus sonhos e
visões, lê seus pensamentos, seguindo todos os movimentos de sua vida consciente e
subconsciente. Sob a direção do mestre, o murīd pode prosseguir nas estações do caminho. O
mestre lhe ensina como se comportar em cada estado mental e prescreve períodos de reclusão,
se necessário. É amplamente difundido o fato de que os métodos não podem ser iguais para
todos e que o líder místico genuíno tem que possuir uma grande compreensão psicológica,
para reconhecer os diferentes talentos e as diferentes personalidades de seus discípulos e
treiná-los adequadamente. Assim, dada a diversidade de caráter e as diferentes capacidades
individuais dos homens, os sufis dizem que há tantos caminhos individuais quanto o número
de homens que buscam Deus.
10
O arrependimento ou contrição é o termo muçulmano para conversão e marca o início de uma nova vida. Cf.
Reynold A. NICHOLSON, The Essence of Sufism, 1985: 14.
11
Annemarie SCHIMMEL, Mystical Dimensions of Islam, 2000: 100/101. O mundo sufi de Ibn’Arabī está
baseado numa cadeia hierárquica de mestres – shaykhs – que guiam o sufi através de várias estações na ascensão
mística, tomando um cuidado especial para que nenhuma estação seja pulada ou inadequadamente realizada.
Mover-se de uma estação para outra mais elevada antes de dominar a inferior pode resultar num desastre moral,
psicológico e social. A tradição judaica da cabala, contemporânea de Ibn’Arabī, era ainda mais enfática sobre os
perigos da prática e do pensamento místico e sobre a necessidade de uma cuidadosa preparação. Quando
Ibn’Arabī fala da “estação de nenhuma estação”, uma estação na qual o movimento linear “de – para” é
transcendido, ele o faz dentro de um contexto de movimento linear. Quando, por exemplo, os sufis falam da
estação da pobreza e em seguida de uma pobreza tão total que se desiste da própria pobreza, a vivência da
estação da pobreza é a pré-condição contextual essencial para o abandono significativo da estação da pobreza.
Cf. Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 303, nota 8.
227
A palavra hâl ou estado se deriva da raiz H-W-L, que origina também a palavra
tahawwul, auto-transmutação. O significado básico dessa raiz é mudar de uma situação para
outra ou de um estado para outro. Num sentido não-técnico, um estado pode significar
situação, condição, qualquer coisa que mude, o momento presente e ainda, em termos amplos,
a situação presente de qualquer coisa existente. Todavia, os sufis classificaram os estados
psicológicos e espirituais particulares que os viajantes experimentam em várias categorias,
geralmente como pares de opostos. De acordo com a raiz citada, os estados são por definição
efêmeros e, para Ibn’Arabī, são um sinal de imaturidade e instabilidade. Para al-Shaykh, os
verdadeiros mestres vão além das propriedades dos estados, sempre mantendo a “cabeça fria”
não importa o que estejam experimentando internamente, ampliando sua capacidade de
receber esses estados de tal forma que não sejam afetados por eles. Os mestres viajam dentro
das estações, que são adquiridas permanentemente e não possuem a natureza instável e
flutuante dos estados.
12
Um estado é para você estar subsistente ou aniquilado, sóbrio ou embriagado,
concentrado ou disperso, ausente ou presente ... Foi também dito que o estado é
a mudança de atributos do servo. Uma vez que eles se tornem estabelecidos e
fixos, isso é uma estação.
13
Ibn’Arabī também usa a palavra estado em outro sentido técnico, para indicar certas
dimensões da realização espiritual que diferenciam os sufis mais avançados dos indivíduos
comuns. Nesse sentido, o termo denota os poderes especiais
14
que lhes vêm como resultado da
estação em que se encontram. Embora normalmente Ibn’Arabī contraste o termo estado com o
12
William CHITTICK, The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination, 1989: 263/264.
13
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 133.25) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination.
1989: 264.
14
Os poderes a que Ibn’Arabī se refere são feitos extraordinários ou milagres que os amigos de Deus podem por
vezes realizar, como produzir efeitos no mundo externo mediante concentração. Ainda assim, al-Shaykh salienta
que esses poderes devem estar subordinados ao comando divino e às regras da cortesia.
228
termo estação, aqui o estado não significa uma graça efêmera, mas o poder para um tipo de
atividade que é adquirido quando o viajante vem a possuir uma estação e que lhe permite
manifestar sua estação para o mundo externo nas circunstâncias apropriadas.
Em ambos os sentidos técnicos do termo, Ibn’Arabī entende que os estados
apresentam certos perigos para a pessoa que os experiencia. Ainda que sejam graças divinas,
há sempre o risco de levá-los muito a sério, de acreditar tê-los merecido e se tornar orgulhoso,
perdendo o equilíbrio mental. Por isso, al-Shaykh raramente fala dos estados como positivos,
mas sim como testes que o viajante deve enfrentar.
Quando os viajantes são tomados por estados, eles se tornam como loucos, e
como resultado não mais respondem à Lei (enquanto experienciam o estado).
Portanto, eles perdem muito do bem. Por essa razão, nenhum dos grandes (al-
akābir) jamais busca estados. Eles buscam apenas estações.
Quando o amante de Deus possui conhecimento, ele é mais completo nesse
aspecto do que no fato de que ele é possuidor de um estado. Nesse mundo um
estado é uma imperfeição (naqs), enquanto que no próximo mundo ele é uma
perfeição (tamān). Mas o conhecimento é uma perfeição nesse mundo,
enquanto que no próximo mundo ele é uma perfeição mais perfeita.
15
Já vimos que enquanto os estados ou a situação espiritual presente do indivíduo é
transitória, as estações, que podem ter os mesmos atributos dos estados, representam uma
qualidade fixa da alma, são aquisições permanentes que não se perdem quando o murīd
alcança estações mais elevadas. Os sufis, de maneira geral, aplicaram o termo estação às
atitudes espirituais, tais como o despertar, o arrependimento, a recordação, a tristeza, a
esperança, a sinceridade, a constância, a paciência etc. Ibn’Arabī as classifica segundo vários
pontos de vista. Nos capítulos do Futūhāt dedicados a elas (462-558), ele fala de estações, de
15
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 527.26 e II 358.3) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of
Imagination, 1989: 266.
229
estações do caminho (manazīl), de “estações do caminho mútuas”, de interações (mu’malāt) e
acrescenta que vários estados são também estações. Em última análise, elas representam todos
os atributos positivos que o murīd luta por adquirir.
No caminho místico, certos sufis enfatizam os benefícios da “renúncia” ou do
“ascetismo” (zuhd). Ibn’Arabī porém considera a renúncia útil apenas nos primeiros estágios
do caminho, já que não a vê como um sinal de perfeição. Em sua visão, para renunciar a esse
mundo é preciso renunciar às causas secundárias (asbāb), que são nosso meio de conhecer
Deus. A afirmação “ter renunciado a tudo exceto a Deus” serve a um propósito retórico e
sinaliza a direção a ser seguida, mas tal renúncia é impossível e indesejável, já que renunciar
ao cosmos é renunciar à possibilidade de aumentar o conhecimento de Deus.
Renúncia às coisas pode ocorrer apenas por ignorância e falta de conhecimento
daquele que renuncia e através do véu que cobre seus olhos, isto é, a falta do
desvelar e do testemunhar ... Se ele soubesse ou testemunhasse o fato de que o
cosmos inteiro fala glorificando e louvando o seu Criador e que O testemunha,
como poderia ele renunciar ao cosmos, à medida que ele possui esse atributo?
16
Da mesma maneira, para Ibn’Arabī, a prática espiritual do retiro ou reclusão do mundo
para uma cela ou qualquer outro tipo de lugar isolado, associada ao ascetismo, pode ser útil
como um meio de aproximação de Deus, mas não é importante em si mesma. Em sua doutrina
da unidade da existência, não há nada na existência senão Deus e uma vez que a estação
espiritual do retiro seja alcançada, ela não mais se apaga.
Todo aquele que busca o seu Senhor deve estar só consigo com seu Senhor em
sua mais interna consciência, já que Deus deu ao homem uma dimensão externa
(zāhir) e uma dimensão interna (batīn) apenas para que ele possa estar a sós
com Deus em sua dimensão interna e testemunhá-lo em sua dimensão externa,
16
IBN’ARABĪ, Futūhāt (51.51) in The Sufi Path of Knowledge, 1989: 157.
230
nas causas secundárias, depois de ter olhado sobre Ele em sua dimensão interna,
para que possa discerni-lo dentro do meio das causas secundárias. De outra
maneira ele nunca O reconhecerá. Aquele que entra no retiro espiritual (khalwa)
com Deus o faz apenas por essa razão, já que a dimensão interna do homem é a
cela de seu retiro.
17
Essa cela de retiro é uma presença constante dentro do conhecedor, uma espécie de
distanciamento que permite compreender a verdadeira natureza das coisas e dos discursos do
mundo. Por isso, al-Shaykh diz: “Para aquele a quem Deus deu a compreensão, a reclusão e a
sociedade (khalwa e jalwa) são o mesmo. Além disso, pode ser que a sociedade seja mais
completa para uma pessoa e maior em benefício, já que por meio dela, a cada instante, ela
aumenta o conhecimento das ciências sobre Deus que não tinha.”
18
A jornada ascensional dos místicos sufis pode ser ainda vista sob outro ângulo. Eles
localizam a união mística no cume da ascensão cujo modelo paradigmático é a Mi’rāj de
Muhammad, a jornada noturna através das sete esferas até o trono divino.
19
O mesmo cosmos
mítico foi apropriado pelos sufis, e a jornada até o trono divino tornou-se um paradigma da
jornada em direção à união mística.
20
Tomando por base a sua jornada, Ibn’Arabī aconselha
ao viajante que evite parar em qualquer nível da ascensão.
21
Após receber os segredos dos
17
IBN’ARABĪ, Futūhāt (III 263.16, 35, 265.1) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of
Imagination, 1989: 158.
18
IBN’ARABĪ apud Cecilia TWINCHecilia TWINCH, “The Beauty of Oneness witnessed in the emptiness of
the Heart”. Disponível em <http/www.ibnarabisociety.org.> Acesso em: 23 de junho de 2003.
19
O mundo islâmico herdou uma cosmologia e mitologia gnóstica e hermética ou proto-mística, que incluía
tanto um ser humano primordial caído na mortalidade e sofrimento quanto um cosmos de esferas concêntricas,
através do qual esse ser humano primordial teria caído e que lhe permitiria ascender para de novo se reunir ao
mundo divino. Nesse mundo de linguagem, as estrelas e esferas planetárias, os minerais, as formas geométricas,
as letras e seus equivalentes numéricos, os membros e humores do corpo, os quatro elementos primordiais, as
figuras religiosas e míticas como anjos e profetas e vários estados psicológicos eram parte de um intrincado
sistema de correspondências interativas. Um exemplo anterior e semelhante da viagem ascensional pode ser
encontrado nos textos hebraicos do Hekhalot em que a imagem do trono ou merkavah é encontrada. Cf. Michael
SELLS, “The Semantics of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in Judaism, Christianity and Islam,
1999: 101/103. Ibn’Arabī utiliza esse mundo de linguagem principalmente em algumas obras como “La
Production des cercles”, “A alquimia da felicidade perfeita”,” e “Journey to The Lord of Power”.
20
Vários sufis, como Ibn Ishaq, Abū Yazīd al-Bistāmi, Farīd al-Dīn ‘Attār e Ibn’Arabī fazem o relato de suas
Mi’rāj.
21
IBN’ARABĪ, Journey to the Lord of Power (Risalat al-anwar), 1989: 32.
231
mundos mineral, vegetal e animal, o sufi passa progressivamente por estágios mais intensos,
dos momentos de terror em que as formas fixas da realidade delineada se fundem umas nas
outras, à ternura e compaixão por todas as coisas. O prelúdio à “união” é a aniquilação, o mais
elevado dos estados, a visão do seu eu pré-criado e o reconhecimento do seu Senhor.
22
4.2 – Aniquilação – Fanā e Baqā: uma antropologia apofática
Deus (al-haqq: a Realidade Suprema) – seja Ele exaltado! – me disse, “Tu
sabes quem és?” Eu respondi, “Sim, eu sou o não-ser que é manifestado
através da Tua manifestação; eu sou a escuridão que a Tua luz ilumina.”
23
Já sabemos que para figurar a relação da alma humana com o Deus inefável em seus
discursos místicos, Marguerite Porete e Ibn’Arabī utilizam uma retórica que liga a teologia
negativa e a antropologia negativa, em que a impossibilidade de conceber ou nomear a
Essência divina força uma despossessão do eu, descrita em termos de aniquilação. A
aniquilação é a maneira de atingir aquela profundeza sem nome e sem aspectos dentro do eu
que é idêntica à da Deidade e que é também, de uma outra forma, a própria identidade. Como
resultado da aniquilação do eu ilusório, os místicos adquirem um outro senso de identidade,
retratado na vida clarificada de Porete e na baqā’ de Ibn Arabī.
4.2.1- A alma aniquilada e a vida clarificada no Miroir
Marguerite usa todos os meios lingüísticos a seu dispor, particularmente os do
paradoxo e da contradição, para aniquilar tanto na linguagem como na realidade todo o
22
IBN’ARABĪ, Journey to the Lord of Power (Risalat al-anwar), 1989: 47.
23
Michel CHODKIEWICZ, The Spiritual Writings of Amir ‘Abd al-Kader, 1995: 77.
232
conhecimento, a vontade, o amor e o próprio eu. Logo nos primeiros capítulos do Miroir, ela
especifica as condições da alma aniquilada:
Uma Alma
que se salva pela fé sem obras,
que é apenas no amor,
que nada faz por Deus,
que nada deixa de fazer por Deus,
a quem nada pode ser ensinado,
de quem nada pode ser tomado
nem dado
e que não possui nenhuma vontade.
24
Tal alma passou por sete estágios marcados por três “mortes”: a morte para o pecado,
no primeiro estágio, a morte para a natureza, no segundo, e a morte para o espírito, que ao
aniquilar a vontade, libera a alma e a leva para o nada onde ela e Deus se encontram. Esse
nada permanece além e acima do alcance da razão, é alcançado apenas através de um amor
totalmente consumidor, mas essa aproximação marca uma impossibilidade, à medida que a
alma nunca pode estar ela mesma presente em tal amor.
Essa alma, diz Amor, nada em um mar de alegria, no mar das delícias que fluem
e correm da Divindade, e assim ela não sente nenhuma alegria, pois ela mesma
é a alegria, ela nada e flui na alegria, sem sentir nenhuma alegria, pois ela reside
na Alegria e a Alegria reside nela; ela mesma é a alegria em virtude da Alegria
que a transformou em si.
25
24
Mirouer: 5: 6-14.
25
Mirouer: 28: 2-7.
233
Esse caráter impossível
26
é sublinhado no Miroir pela nomeação apofática da alma,
que reflete a nomeação apofática do Deus em cuja imagem invisível e impossível a alma é
criada. Ao mencionar os doze nomes dados por Amor à alma aniquilada, Porete diz: “Seu
derradeiro nome é Esquecimento”
27
. Este é seu nome apofático, que aponta para a perda de
todos os nomes, para o nada onde a alma se relaciona com Deus pois “essa Alma, diz Amor,
tem seu nome correto no nada no qual repousa. E já que ela é nada, não se preocupa com
nada, nem consigo mesma, nem com seus vizinhos, nem mesmo com Deus
28
... E esse nada,
do qual falamos, diz Amor, lhe dá tudo ...”
29
Porém, ainda que Marguerite Porete pressuponha uma espécie de “santa indiferença”
passível da acusação de quietismo
30
, à medida que a alma e o divino são unos, a alma passa a
ser o lugar onde Deus opera no mundo. Mesmo que em sua obra Porete enfatize mais o lado
da experiência libertadora da alma, o trabalho da alma está implícito em seu texto pois,
“Ainda assim – diz Amor – a piedade e a cortesia não a deixam quando o tempo e o lugar o
requerem.”
31
Ainda que ela não se prenda mais às coisas passadas ou criadas,
Se essa alma, que está sentada tão alto, pode ajudar a seus próximos, ela os
ajudaria com todo seu poder em sua necessidade.
32
... E se essas almas tivessem
alguma coisa ... e se soubessem que outros teriam mais necessidade que elas,
elas não a reteriam de forma alguma, ainda que estivessem certas de que a terra
nunca mais traria o pão, o trigo ou outras subsistências. Tal é sua natureza por
pura justiça, e essa justiça é a justiça divina, que a essa alma deu sem medida.
33
26
Thomas CARLSON, “The Poverty and Poetry of Indiscretion: Negative Theology and Negative Antropology”.
Christianity and Literature 47 N. 20, Winter 1998: 186.
27
Mirouer: 10: 19.
28
Mirouer: 81: 3-5.
29
Mirouer: 81: 11
30
Amy HOLLYWOOD, The Soul as Virgin Wife, 2001: 85.
31
Mirouer: 79: 28-30.
32
Mirouer: 16: 47-49.
33
Mirrouer: 17: 25-32.
234
A alma aniquilada de Porete, que “morreu de amor”,
34
encontra Deus quando “perde”
tanto a si mesma quanto a Deus e nada mais ama exceto por meio do amor de Deus.
Tal alma não ama mais em Deus coisa alguma e nem amará, tão nobre é ela,
senão somente por Deus e porque ele o quer; e (ama) Deus em todas as coisas, e
as coisas pelo amor dele. E por tal amor essa Alma está somente no puro amor
do amor de Deus. Seu conhecimento é tão claro, que ela não vê nada em Deus e
Deus nada vê nela.
35
Para Marguerite Porete, a alma aniquilada nada mais busca. Ela compreende que
qualquer coisa criada que acreditava possuir nunca foi verdadeiramente dela, pois não há nada
senão Deus. Ela é tão pobre e cai tão fundo no abismo da humildade que “nada sabe”, “nada
quer” e “vive sem um porquê”. Embora ela não tenha perdido seus sentidos e seu corpo, de
certa forma perdeu o uso que fazia deles, pois essa alma
...
está morta para todos os sentimentos de dentro e de fora, à medida que tal
alma não realiza mais nenhuma obra, nem por Deus nem por ela, e assim a
todos os seus sentidos perdeu nessa prática a ponto de não saber como buscar
ou encontrar Deus, nem como a si mesma conduzir.
36
Em outra passagem, Marguerite Porete descreve a alma aniquilada, que transcendeu os
opostos, em termos que lembram a coincidentia oppositorum que o conhecedor de Ibn’Arabī
expressa, como veremos adiante:
...Essa Alma não se importa nem com vergonha nem com honra, nem com
pobreza nem com riqueza, nem com alegria nem tristeza, nem com amor nem
com ódio, nem com inferno ou com paraíso ... E com isso se diz que essa Alma
34
Mirouer: 41: 24.
35
Mirouer: 26: 3-9.
36
Mirouer: 41: 6-10.
235
tem tudo e não tem nada, que ela sabe tudo e não sabe nada, que ela quer tudo e
não quer nada ...
37
Nem os dons de Deus nessa vida ou as recompensas e castigos na outra podem
intimidar ou atrair essa alma:
... Quem quer que pergunte a essas Almas livres, seguras e pacificadas, se elas
iam querer estar no Purgatório, elas diriam que não; se elas iam querer estar
nessa vida certas de sua salvação, elas diriam que não; ou se iam querer estar no
paraíso, elas diriam que não. Mas então, o que elas quereriam? Elas não têm
mais nenhuma vontade. E se elas quisessem alguma coisa, se separariam do
Amor.
38
A aniquilação é necessária para expandir o espaço onde o Amor passará a estar e como
um processo que transforma a vontade e o conhecimento em nada, libera a alma e permite que
Deus seja de fato Deus.
Ele é, diz essa Alma, e nada lhe falta; eu não sou e portanto nada me falta; e
assim Ele me deu paz e vivo apenas da paz, que nasceu de seus dons em minha
alma, sem pensamento; nada posso, se não me é dado. É meu tudo e meu
melhor. E tal estado (de ser) faz existir um amor e um desejo e uma obra em
duas naturezas. A aniquilação pela unidade do direito divino tem esse poder.
39
A aniquilação para Marguerite Porete desfaz a alma de si mesma, deixando-a sem fala
e sem nome, desfazendo-a também de Deus, que similarmente é também inominável. Ela
consome a alma no “fogo da caridade”, oferecendo-a em holocausto. Após a deflagração
37
Mirouer: 7: 3-5 e 14-16.
38
Mirouer: 9: 3-9.
39
Mirouer: 52: 30-37.
236
desse fogo, o que permanece são apenas cinzas daquilo que uma vez foi nomeado, mas que
agora se encontra dissolvido no abismo de um oceano sem nome:
Essa Alma, diz Amor, foi despelada em mortificação, e queimada por ardor do
fogo da caridade, e suas cinzas jogadas em alto mar pelo nada da vontade. Ela é
gentilmente nobre na prosperidade, e elevadamente nobre na adversidade, e
excelentemente nobre em todos os lugares, quaisquer que sejam.
40
Já vimos que quando a alma, criada para desejar a vontade divina, atinge a
aniquilação, Deus se vê na alma como num espelho. Essa “clarificação”, que permite que
Deus se veja na alma, representa o ápice da aniquilação e seu corolário. Seguindo-se à
dissolução do sujeito humano, a “morte” mística figurada como aniquilação tem como seu
reverso indissolúvel a vida simples e clarificada da alma nobre e gentil que, tendo se tornado
o espelho sem mácula de Deus, agora repousa em paz.
A linguagem dessa vida vivida no divino é o silêncio secreto do amor divino.
Ela aqui chegou depois de um longo tempo, se assim quis por um longo tempo.
Não há mais aqui outra vida do que sempre desejar a vontade divina.
41
O estado da vida aniquilada e clarificada está, por definição, além da descrição
humana. Ainda assim, para descrevê-lo, Marguerite escolhe metáforas que privilegiam a
permanência em oposição à mudança, o repouso em oposição à busca incansável, e metáforas
que descrevem a nudez e a liberdade em oposição ao velamento e ao aprisionamento, que se
referem à paz, à suficiência, à nobreza e à generosidade (largesse), pois ela habita e repousa
no desejo divino. Falando da vida da alma “clarificada”, Porete diz:
40
Mirouer: 85: 15-19.
41
Mirouer: 94: 1-5.
237
Eu a chamo clara pois ela ultrapassa a cegueira da vida aniquilada ... Ela não
sabe quem ela é, nem Deus nem humanidade; pois ela não é; mas Deus o sabe
de si mesmo em si mesmo, para ela mesma, por ela mesma. Tal Dama não mais
busca Deus. Ela não tem “de que” (de quoy), e não tem que fazê-lo. Ele não lhe
falta; portanto, por que ela o buscaria?
42
4.2.2Fanā e Baqā: aniquilação e subsistência
“Tudo o que está sobre a terra é aniquilado, e subsiste apenas a face de seu
Senhor, o possuidor da majestade e da generosidade”.
43
Ibn’Arabī não fornece uma definição exata do termo “aniquilação”. Em seus
comentários sobre a aniquilação no capítulo 369 do Futūhāt, Ibn’Arabī se baseia
principalmente no dito sufi: “A aniquilação (fanā) é a aniquilação dele que não era”,
enquanto a subsistência (baqā) é “a subsistência Dele que sempre foi”.
44
Esse dito expressa
de maneira sintética a visão de Ibn’Arabī sobre a Existência e sobre a condição ontológica
humana. Aqui fica claro que a fanā sufi, em sua manifestação, não tem efeito ou ação
negativos; trata-se da extinção de tudo contingente, de tudo o que não é Deus, seja na forma
de ação, atributo ou essência, e que implica num estado em que o indivíduo tem um perfeito
controle de si mesmo.
Ibn’Arabī sempre assinala que o termo fanā é invariavelmente utilizado no sentido
técnico com o pronome ‘an (de). Dentro da terminologia sufi, a aniquilação é sempre
aniquilação de algo, e o termo baqā é sempre empregado com o pronome bi (por meio de), é
42
Mirouer: 100: 27-33.
43
Ahmed ALI (trad.), Al –Qur’ān, 1994, 55: 26/27. Para a utilização do verbo fanà – perecer, ser aniquilado, e
do verbo baqiya – ser eterno, subsistir – nessa passagem corânica, cf. Hannah E. KASSIS & Karl I.
KOBBERVIG, Las Concordancias del Corán, 1987: 177 e 121.
44
IBN’ARABĪ, Futūhāt (III 395.20) in The Self-Disclosure of God: Principles of Ibn’al-Arabi Cosmology, 1998:
84.
238
sempre a subsistência por meio de algo e é sempre superior à aniquilação, pois representa a
vida com Deus, por meio de Deus, em Deus e por Deus.
Fanā e baqā são dois aspectos complementares de uma única e mesma
experiência, na qual o Real é “visto” como permanecendo e o fenomênico como
sendo extinto. Fanā é característica de tudo que é “outro que Deus”; baqā, de
Deus somente. Em cada um desses estágios um dos “véus” – i.e. as
características do assim chamado mundo fenomênico tal como o conhecemos,
tudo o que é chamado outro que Deus – é removido, e o místico é levado um
passo mais próximo da Verdade. Quando todos os “véus” são levantados, a
Realidade aparece em sua absoluta nudez, e a absoluta liberdade da alma é
alcançada. Diz-se então que o místico chegou à sua meta, onde se encontra sua
felicidade. Essa meta não é Deus, pois como poderia ser Deus, diz Ibn’Arabī,
quando Ele é aquele que chegou à meta?... A suprema felicidade do místico está
em compreender, por meio da intuição mística, sua unidade essencial com
Deus.
45
Já vimos que no sufismo em geral e para Ibn’Arabī em particular, o “conhecedor” é
um servo ou, mais literalmente, um “escravo” (‘abd)
46
e não um senhor, pois só Deus existe
verdadeiramente. Para al-Shaykh, esse termo é intercambiável com o termo “criatura” (khalq),
tal como se lê no verso corânico: “Não há ninguém nos céus e na terra que não venha ao
Compassivo como um servo.” (19:93) Nesse sentido o termo ‘abd corresponde à expressão
filosófica “coisa possível” e ilustra o caráter da pobreza e da necessidade de toda a criação
frente ao “Ser Necessário”. Por conseguinte, ser um servo significa fundamentalmente uma
situação ontológica, na qual a existência e os atributos da criatura são apenas emprestados por
Deus.
45
A. E. AFFIFI, The Twenty-Nine Pages: An Introduction to Ibn’Arabi’s Methaphysics of Unity, 1998: 63.
46
William CHITTICK, The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination, 1989: 310
239
A meta do “conhecedor” é portanto aniquilar todas as reivindicações de independência
e se tornar o servo perfeito. Ele luta por retornar a sua origem, o estado de não-existência,
enquanto entidade imutável no conhecimento divino. Ele deve aderir ao seu próprio nada, ao
fato de que, em ultima análise, ele permanece para sempre não-existente. Nada lhe pertence,
exceto os atributos que manifestam a não-existência, o mal e a ignorância.
47
Tudo o que
manifesta o Ser pertence a Deus e para se proteger do orgulho ele deve fugir de todos os
atributos ontológicos, já que são propriedade de Deus.
A perfeição essencial, que difere da perfeição acidental, é que nenhuma
soberania (rabbāniyya) de qualquer tipo deve contaminar o fato de que o
homem perfeito é um servo. Portanto, ele é uma existência enquanto não-
existente, uma afirmação enquanto negado. Foi para isso que o Real o trouxe à
existência.
48
Ao compreender que não é nada em si, o místico compreende também que não há
servo algum, há apenas a teofania de Deus colorida e modelada pelas propriedades da
entidade do servo. Nesse momento ele não possui um eu próprio e não testemunha nada
exceto Deus, interna e externamente. Como no hadith de união, Deus é a sua visão, sua
audição, seus pés e suas mãos, e a aniquilação é retratada como um “queimar”.
Ao ser unido ao Real (ittisal), o homem é aniquilado (fanā) de si. Então o
Real se manifesta de tal forma que Ele é sua audição e sua visão. Isso é o que é
chamado um conhecimento do “provar”. O Real não é nada desses órgãos até
que eles sejam queimados por Seu Ser, de maneira que Ele está lá, não eles.
Eu provei aquilo e senti a queima no nível sensorial durante minha
invocação de Allah por meio de Allah. Lá estava Ele, e eu não estava. Senti
minha língua queimando. Sofri a dor daquela queima com um sofrimento
47
William CHITTICK, The Sufi Path of Knowledge, 1989: 309.
48
IBN’ARABĪ, Futūhāt (57:19) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 366.
240
sensorial, intenso no órgão. Naquele estado, continuei a invocar Allah por meio
de Allah por aproximadamente seis horas. Então Deus fez minha língua retornar
e eu O invoquei por meio da presença (hudūr) com Ele, mas não por meio Dele.
O mesmo é verdade para todas as faculdades: O Real não será nenhuma
delas até que Ele queime aquela faculdade, e Ele está lá, seja qual for a
faculdade. Isso é indicado por Suas palavras, “Eu sou sua audição, sua visão,
sua língua, e suas mãos”. Aquele que não testemunha e sente esse queimar em
suas faculdades não tem o provar; é apenas sua ilusão (tawahhum) Esse é o
significado das palavras de Deus relativas aos véus divinos, “Fossem eles
removidos, as glórias de Sua Face queimariam [tudo o que é percebido pela
visão das criaturas].”
49
Nesse momento é importante ressaltar o conceito de walāyah ou santidade no Islã
50
,
santidade que o homem perfeito expressa por excelência. Esse conceito implica um
conhecimento perfeito da verdade última concernente ao Real e da relação entre o Real e o
mundo. Um homem que tenha alcançado o grau de santidade tem consciência clara de que ele
é essencialmente uno com o Real e que de fato, ele é o Real em si. Ele também sabe que toda
multiplicidade fenomênica é uma auto-manifestação do Absoluto e, nesse sentido, una com o
Absoluto.
A meta final e o derradeiro retorno dos gnósticos – embora suas entidades
permaneçam imutavelmente fixas –é o Real ser idêntico a eles, enquanto eles
49
IBN’ARABĪ, Futūhāt (III 298.17) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 328.
50
Para um estudo detalhado do conceito de santidade ou walāya na obra de Ibn’Arabī, ver o estudo de Michel
CHODKIEWCZ, Seal of the Saints: Prophethood and Sainthood in the Doctrine of Ibn’Arabī, 1993. O termo
walî, termo corânico e um dos nomes divinos, é normalmente traduzido por santo. Ele se origina da raiz W-L-Y,
cujo significado primário é o de proximidade ou contigüidade e leva a outros dois significados. Um deles é "ser
amigo de" e o outro é "dirigir", "governar". O walī é, propriamente falando, "o amigo", o que está próximo e
também o que auxilia, o que dirige. A palavra santo, em sua tradução habitual, tem conotações cristãs específicas
de pureza que não se aplicam ao contexto islâmico. Cf. op.cit.: 21. Para Ibn’Arabī, o conceito de Santidade
compreende o de Profeta e o de Apóstolo. O Santo por excelência é o Homem Perfeito, o mais alto “conhecedor”
de Deus e conseqüentemente da estrutura essencial do Ser.
241
não existem ... Portanto o gnóstico é conhecido apenas por meio do fato de que
ele junta os opostos, pois tudo dele é o Real.
51
Essa consciência da Unidade da Existência, o conhecedor consegue apenas ao ser
“aniquilado” e ao se encontrar totalmente imerso em Deus. Nesse sentido, a aniquilação é
essencial para que ele se transforme no “interior” do Real e de lá veja a realidade de todas as
coisas por meio do “provar imediato”. De acordo com al-Shaykh, al-fanā é o mais elevado
dos estados, enquanto al-baqā é o mais elevado dos domicílios.
52
Ibn’Arabī, como outros sufis, vê a aniquilação como um processo gradual, com vários
estágios. Em geral três graus se distinguem aqui: a fanā dos atributos, da essência e dos
atos.
53
Na aniquilação dos atributos, o místico sofre a aniquilação de todos os seus atributos
humanos e, em seu lugar, assume como seus os atributos divinos. Na aniquilação de sua
“essência” na Essência Divina, ele compreende ser uno com o Real. Aqui o místico
compreende a não-existência do seu eu fenomênico e a subsistência daquilo que é sua
essência imutável e não-perecível.
54
O outro estágio corresponde ao que mais freqüentemente
é conhecido por baqā, o estado de subsistência, em que de certa forma o místico recupera o
seu eu que foi aniquilado. Porém, ele o recupera não em si mesmo, mas no seio da Essência
Divina. Em sua consciência iluminada não há mais nenhum vestígio de seu antigo eu pessoal.
Após ter sido extinto, ele agora subsiste na Essência Divina e portanto, não é ele que existe,
mas o Real em si. O que quer que ele faça, não é mais ele que o faz, é Deus. Isso corresponde
à aniquilação de suas ações nas ações
de Deus. Contudo é importante frisar que para cada grau
51
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 512.9) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 375.
52
Os estados, as estações e os domicílios (manāzil) ou permanências são os componentes do Templo da Walāya.
“Os domicílios são os lugares espirituais da Esfera Divina, oásis de luz onde os homens do Caminho alcançam
refúgio e encontram o conhecimento e a alegria da santidade.” Cf. Osman YAHYA,“Theophanies and Lights in
the Thought of Ibn’Arabī”. Disponível em <
http/www.ibnarabisociety.org.> Acesso em: 23 de junho de 2003: 7.
53
Ibid: 8.
54
A. E. AFFIFI, The Twenty-Nine Pages: An Introduction to Ibn’Arabi’s Metaphysics of Unity, 1998: 62.
242
de fanā corresponde um grau de baqā, no qual o fenomênico perece e o que permanece é o
Real.
Subsistência é um relacionamento que não desaparece ou muda. Sua
propriedade está imutavelmente fixada tanto no Real quanto na criatura. Ela é
um atributo divino. Mas a aniquilação é um relacionamento que desaparece. É
um atributo da existência gerada e não toca a presença do Real. Todo atributo
que é assinalado a ambos os lados é mais completo e mais elevado que o
atributo específico do lado criado ...
... Tu podes dizer: “Bem, então a aniquilação retorna à servidão e se agarra a
ela.” Nós respondemos: A aniquilação não pode ser como a servidão, já que a
servidão é um atributo imutavelmente fixo que nunca é erguido da existência
criada. Mas a “aniquilação” pode aniquilar o servo de sua servidão e de si
mesmo. Conseqüentemente, sua propriedade difere da propriedade da servidão.
Se alguma questão faz com que uma coisa deixe sua raiz e a oculte de sua
própria realidade, isso não é uma eminência na visão da Tribo, já que te dá a
situação em contradição com o modo como a coisa é e, portanto, faz de ti um
ignorante. Mas a subsistência é um estado imutável do servo que nunca
desaparece, já que é impossível para sua entidade imutável cessar de existir, tal
como é impossível para sua entidade ser descrita como sendo idêntica à
existência, uma vez que existência é sua descrição depois que ela não era. ... A
entidade do servo subsiste na imutabilidade, enquanto sua existência é imutável
em sua servidão, sua propriedade permanecendo para sempre naquela. “Não há
ninguém nos céus e na terra que não venha para o Todo-Misericordioso como
um servo.” (19:93)
55
Para al-Shaykh o “conhecedor” é um servo e não um senhor, pois apenas Deus possui
o atributo do Ser, enquanto que o atributo do servo é a inexistência. O servo perfeito é aquele
que realiza seu próprio nada, entra na presença de Deus em seu nada e retorna iluminado. Por
meio da aniquilação, atributo que depois desaparece, o servo retorna e subsiste no estado
55
IBN’ARABĪ, Futūhāt (19:93) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 321.
243
original de sua entidade imutável, um estado anterior à criação. Em seu relato da viagem
contemplativa ascensional até Deus, Ibn’Arabī se refere ao momento posterior à visão do
“primeiro intelecto”, quando o viajante é aniquilado e depois retorna, subsistindo em Deus
como o conhecedor perfeito:
E se tu não paras nisso, tu és erradicado, e removido, então extinto, e
aniquilado, e obliterado.
Quando os efeitos da erradicação e do que se segue terminam, tu és
afirmado, então és tornado presente, e feito permanecer, então és animado, e
designado. E os mantos de honra que [teu grau] requer são conferidos a ti, e eles
são muitos.
56
O homem perfeito não está delimitado por qualquer atributo específico, já que ele
abrange todos os atributos. Ele também assume o atributo apropriado a cada ocasião, do
mesmo modo como Deus sempre se manifesta de acordo com o receptáculo. Dessa maneira,
por não estar definido por nenhum atributo específico, o “conhecedor” perfeito é capaz de
manifestar atributos conflitantes e contraditórios, bem como é capaz de acreditar em toda
crença. Para al-Shaykh também, o conhecimento é o testemunhar e o desvelar da realidade
mais profunda das coisas, e esse desvelar opera simbolicanente através da abertura do coração
sob a
influência das teofanias divinas. Nesse sentido, o segredo do coração representa algo
incriado
57
, por meio do qual o ser humano tem acesso ao mundo divino.
O nome abrangente Allah, que reúne em si todos os outros, concilia os atributos
contrários. O conhecedor perfeito, que é o locus de auto-manifestação para esse nome, Allah,
concilia todos os opostos. Esse é o resultado de seu caminho espiritual, da jornada de estação
em estação, em cada uma delas assumindo os traços dos nomes divinos. Ao atingir a mais alta
56
IBN’ARABĪ, Journey to the Lord of Power (Risalat-anwar), 1989: 48.
57
Osman YAHYA, “Theophanies and Lights in the Thought of Ibn’Arabī”. Disponível em
<
http/www.ibnarabisociety.org.> Acesso em: 23 de junho de 2003: 5.
244
estação, a “Estação de Nenhuma Estação”, o conhecedor manifesta então o nome Allah que
não designa nada específico, mas tudo, do mesmo modo que o homem perfeito não é nada
específico, já que ele é todas as coisas. Nessa estação ele não se encontra mais delimitado por
nada.
Essa estação não se torna delimitada por qualquer atributo. ...“Manhã”
pertence ao sol oriental e o anoitecer ao sol ocidental. O sol oriental pertence à
manifestação, ao mundo do reino (mulk), e ao visível, enquanto o sol ocidental
pertence ao velamento, ao mundo do invisível, e ao domínio (malakūt). Nessa
estação o gnóstico é “a oliveira que não é nem do leste nem do oeste” (24: 35),
já que nenhuma descrição determina as propriedades dessa estação, nem ele se
torna delimitado por ela.
... Isso não pertence a nenhum ser humano exceto apenas aos
Muhammadianos, como uma solicitude divina já dada a eles. ... Na realidade
eles são mantidos longe das estações. Portanto os possuidores das estações são
aqueles cujas aspirações (himma) se tornaram limitadas a certas metas e fins. ...
Mas os Muhammmadianos não possuem tal propriedade e não testemunham
nenhuma meta. Sua vastidão é a vastidão do Real, e o Real não tem nenhuma
meta em Si que Seu Ser possa finalmente alcançar. O Real é testemunhado pelo
Muhammadiano, então ele não possui nenhum fim último em seu testemunhar.
58
No auge desse estado espiritual, a consciência do conhecedor perfeito é idêntica à
consciência divina que ainda não começou a se dividir em uma infinidade de determinações.
Esvanecido e perdido na contemplação do divino, o conhecedor não sabe mais quem ele é:
Quando o servo é despojado de todos os seus nomes, os que lhe conferem sua
servidão ontológica e os que lhe concedem seu teomorfismo original, não lhe
resta mais que sua essência sem qualidade e sem nome. Então ele é um dos
58
IBN’ARABĪ, Futūhāt (III 105.8) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 378.
245
Culpados (malāmiyya) ... Nada se manifesta nele, através dele, que não seja
Deus.
59
A contemplação das teofanias sem forma, que revelam a Essência em sua nudez
radical, exige a extinção da criatura que ignora que vê Deus no próprio momento em que O
vê, pois ela não sabe mais que ela é. Não lhe é possível ver Deus à medida que permanece um
traço da condição de criatura no olhar que contempla. É somente em seu “retorno” a si que lhe
é possível manter os traços da felicidade inefável que a manifestação do Ser divino lhe
proporcionou.
60
E aqui não é demais insistir na primazia que Ibn’Arabī atribui ao coração
receptivo
61
do homem perfeito, que simboliza a experiência total da unidade do Ser, incluindo
não só “o processo criativo e sua resolução na unidade, mas também o inalienável e
inalterável aspecto da Realidade que nada sabe do devir cósmico.”
62
Segundo al-Shaykh
“Deus se manifesta de duas formas: numa manifestação invisível e numa manifestação
visível. O coração é propiciado com o primeiro tipo, que é a auto-manifestação essencial, a
natureza mesma do que é invisível.”
63
É esse coração polido que permite ao conhecedor a
constante flutuação de acordo com as sempre novas manifestações divinas:
59
IBN’ARABĪ, Futūhāt (IV 13) apud Claude ADDAS, Ibn’Arabī et le voyage sans retour, 1996: 42.
60
Claude ADDAS, Ibn’Arabī et le voyage sans retour, 1996: 61.
61
Luce-López BARALT faz um análise interessante do coração simbólico na mística islâmica. Ela diz que, no
sufismo, o coração simbólico não tem uma qualidade corpórea e se relaciona com a estilização espiritual da
mística oriental. “As tradições místicas egípcia, hermética e alquímica, o taoísmo chinês, o tantrismo hindu e
mesmo o budismo tibetano concebem o órgão místico do coração interno como uma função dinâmica que serve
como ponto de convergência entre a alma mais interna e o cosmos ... No taoísmo chinês, o coração espiritual ou
xin admitia os sentidos simultâneos de coração, espírito, sede da inteligência e da afetividade. O budismo
vajrayana chamava esse coração metafórico de citta, que em sâncrito significa tanto coração como espírito. Esse
órgão sutil para a espiritualidade tibetana era a sede da natureza ‘búdica’, ou seja, a essência divina que todos
temos dentro de nós ... Portanto, na espiritualidade oriental, o coração é interpretado como o locus da
manifestação mística, o órgão sutil da recepção mística.” A mística islâmica, segundo ela, em sintonia com essas
tradições, forneceu suas próprias nuances ao símbolo do coração, aí interpretado como o receptáculo cristalino e
sempre mutável capaz de refletir as teofanias divinas – as infindáveis manifestações da Divindade no estado de
união. Cf. “Saint John of the Cross and Ibn’Arabī: The Heart or Qalb as the Translucid and Ever-Changing
Mirror of God” in Journal of the Muhyiddin Ibn’Arabi Society, vol. XXVIII: 70/71, 2000.
62
R.W.J. AUSTIN, The Bezels of Wisdom, 1980: cap. XII, intr.145.
63
IBN’ARABĪ, The Bezels of Wisdom (Fusūs al-hikām), 1980: 149.
246
Ele não se torna designado por uma estação que seja atribuída a ele. Pelo
contrário, em cada respiração, a cada momento, e em todos os estados ele toma
a forma que é requerida por aquela respiração, momento e estado. Pois as
propriedades divinas são diversas a todo momento, e ele é diverso de acordo
com sua diversidade. Deus está “cada dia em uma nova tarefa” (55:29), e
também o Muhammadiano.
64
A perplexidade é uma característica fundamental do conhecedor, e essa perplexidade
não significa que ele esteja perdido, mas sim,
que se encontrou. Ele não é nada, mas ainda
assim é tudo, libertou-se de todas as delimitações, mas é capaz de assumir todas elas, é
conhecido e desconhecido, afirmado e negado, existente e não-existente, Ele/não-Ele. Seu
“lugar” é também paradoxal, é um “lugar” ao mesmo tempo de infinitas flutuações e de uma
serena fixidez.
Na visão da Tribo, “lugar” é uma estação no tapete de Deus e pertence ao
Povo da Perfeição, que foi além das estações e dos estados, da majestade e da
beleza. Eles não têm nenhum atributo, e nenhuma estação como Abū Yazīd.
... Eles estão perpetuamente em equilíbrio, fixidez e repouso. Contudo, eles
têm movimentos rápidos em sua dimensão interna a cada respiração. “Tu verás
montanhas, que supunhas serem fixas, passando como nuvens” (27:88).
... Portanto eles permanecem entre a não-delimitação e a delimitação.
Nenhuma estação determina suas propriedades, pois não há nenhuma ... Em
relação ao seu rank eles passam por uma variação constante, e em relação ao
seu lugar eles estão fixos.
65
4.2.3 – A theosis da alma e o estado de preexistência.
... at the still point ... there the dance is,
64
IBN’ARABĪ, Futūhāt (IV 76.27) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 377.
65
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 389.19) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination,
1989: 379.
247
But neither arrest nor movement. And do not call it fixity,
Where past and future are gathered. Neither movement from nor towards,
Neither ascent nor decline. Except for the point, the still point,
There would be no dance, and there is only the dance.
I can only say, there we have been: but I cannot say where.
And I cannot say how long, for that is to place it in time ...
T.S. Eliot, “Burnt Norton”
66
Tanto a obra de Porete quanto o sufismo de Ibn’Arabī apresentam uma versão da
identidade última da alma com Deus. Em certo sentido, o fundo da alma é tão idêntico ao
fundo de Deus que existia com a Deidade antes de toda a criação e, assim, eternamente. Em
suas teologias místicas há um aspecto de unificação com o Deus que é absolutamente,
simplesmente uno. Esse momento unificador equivale à theosis ou deificação da alma e
requer um movimento que efetua a remoção ou negação de todas as imagens e conceitos
relativos ao divino.
Em sua obra, ocasionalmente, Porete utiliza fórmulas mais tradicionais para retratar a
união da alma com Deus, afirmando que eles têm duas naturezas ainda que tenham um só
desejo. Porete também distingue entre o ser humano que se torna Deus por meio da graça e
Deus que é divino por natureza, enfatizando o amor, o agente que transforma os dois em um.
67
Contudo, apesar da utilização da linguagem tradicional, sua proposta de união por meio do
amor encerra a descoberta da união do fundo da alma com o fundo divino ou a existência
virtual da alma dentro da fonte divina. Para Marguerite Porete, a aniquilação representa a
libertação das limitações do ser criado e seu retorno a um estado de preexistência, sugerido
66
T.S. ELIOT, Poesia, Obra Completa vol. I, 2004: 336. “No imóvel ponto ... lá a dança está, / Mas nem pausa
nem movimento. E não se chame a isso fixidez, / Pois passado e futuro aí se enlaçam. Nem ida nem vinda, / Nem
ascensão nem queda. Exceto por esse ponto, o imóvel ponto, / Não haveria dança, e tudo é apenas dança. / Só
posso dizer que estivemos ali, mas não sei onde, / Nem quanto perdurou esse momento, pois seria situá-lo no
tempo ...”
67
Cf. Mirouer: 21: 44-47
248
por Amor e pela Alma ao longo do Miroir, já que Deus amou a alma desde sempre. Quando a
autora expressa os pedidos da alma, ela diz:
A primeira coisa que ela pede é se ver sempre (se é que ela vê alguma coisa) lá
onde ela estava quando, do nada, Deus fez tudo, e assim estar certa de que ela
não é outra coisa que isso – quando ela é – eternamente ...
68
Esse ponto é explicitado no penúltimo capítulo, em que Porete descreve a
transformação da alma de sua natureza tripla até a absoluta simplicidade da união com Deus
como um retorno ao seu “primeiro ser”.
69
Despojada de tudo, a alma “sem ser” é reconduzida
para lá “onde estava antes de ser”.
Assim o estado dessa alma agora é o de seu primeiro ser que é seu estado
próprio, e ela deixou o três, e fez de dois um. Mas quando esse uno é? Esse
estado existe quando a alma é abrigada na Deidade simples, é um estado
simples de fruição transbordante, em conhecimento pleno, sem sentimento e
para além do pensamento. Esse estado simples realiza por caridade na alma o
que quer que a alma faça, pois a vontade se tornou simples ...
70
Para Porete, o longo caminho do país das virtudes ao país dos esquecidos e
aniquilados resulta no retorno à pura passividade e à receptividade da alma em seu estado pré-
criado, na origem de toda criação e da Trindade. Ao aniquilar sua vontade e “cair” no nada e
no momento da clarificação divina, a alma não tem nenhum porquê, pois “a verdadeira
liberdade não tem nenhum porquê”
71
e reflete o ato da Deidade de dar sem um porquê. Essa
noção está ligada à noção de Deus como uma causa absolutamente livre, um fundamento do
68
Mirouer: 107: 2-6.
69
Mirouer: 138: 3-13.
70
Mirouer: 138: 3-9.
71
Mirouer: 134: 15.
249
ser que não tem um fundamento externo a si. Sendo o começo e o fim de todas as coisas, Deus
não tem um “porquê”, é um porquê, de tudo e para tudo. A alma está assim tão livre de seu
desejo criado como quando não era nada. Porete aqui combina o paradoxo neoplatônico de
emanação, de processão e de retorno com sua própria inversão da linguagem da queda.
72
Ao
cair no nada, a alma reencontra sua identidade divina e por meio dessa unificação sem
distinção, ela se torna o lugar no qual o divino opera no mundo.
No Miroir, encontramos o uso da linguagem espacial para descrever a união de Deus e
da alma mesclado ao uso das imagens corteses. A aniquilação da alma que dá lugar à obra da
“nobre centelha” leva essa alma para uma “preciosa clausura”, onde, clarificada, ela repousa
em amor e paz. Porete coloca o território do nada num lugar para o qual se pode ir, mas que é
tanto nenhum lugar como todo lugar. A alma que é totalmente liberada e aniquilada não tem
nenhum lugar próprio, é reconduzida para a corte longínqua de Deus, onde estava antes de vir
da bondade divina, para o doce país onde ela encontra seu lugar e seu verdadeiro ser no
divino.
Lá, ela não ora mais do que orava quando ela não era ... Ela é de uma
profundidade sem fundo e portanto não tem um lugar próprio; e se ela não tem
um lugar próprio, não tem também amor-próprio. Toda palavra, toda obra lhe
estão proibidas no ser simples da divindade ...
73
A reversão ao estado de pré-criação formulada por Porete tem uma concepção
semelhante no sufismo dos séculos XII ao XIV. Para Junayd (morto em 911), um dos mais
renomados sufis que antecederam Ibn’Arabī, a meta que o místico deve alcançar é o estado no
qual ele é “como ele era quando ele era antes de ser.”
74
Essa meta se baseia na teoria de um
72
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, 1994: 131.
73
Mirouer: 136: 1-10.
74
Michael SELLS, op. cit.: 133. Sells é o único autor no qual podemos encontrar uma argumentação da possível
influência do pensamento sufi na mística de Porete. Ele acha que, embora Porete estivesse inserida na longa
tradição do conjunto de imagens do espelho em seu Miroir, “a combinação de três temas específicos dominantes
250
sufi anterior a ele, Sahl al-Tustari, na qual esse estado pré-criado era identificado a uma
passagem corânica na qual as almas preexistentes da humanidade prometem submissão a seu
Senhor.
Como já vimos, na fanā
e baqā, o conhecedor compreende sua não-existência
essencial e assim retorna ao estado original de sua “entidade imutável”. Esse termo designa,
na obra do al-Shaykh, as criaturas tal como encontradas em Deus “antes” ou “depois” de sua
existência no cosmos. De maneira ambígua, cada criatura que Deus ainda não levou à
existência é não-existente, embora exista de certa forma como um objeto no conhecimento
divino. Ela é “encontrada” em Deus e Ibn’Arabī as chama “objetos do conhecimento de
Deus” ou “coisas não-existentes” ou “entidades imutáveis”.
75
Contudo, ainda que passem a
existir (ou a serem encontradas) no cosmos, essas coisas nunca deixam o conhecimento
divino, sendo ao mesmo tempo um “objeto não-existente de conhecimento”. As coisas ou
entidades imutáveis nunca mudam, tal como o conhecimento divino nunca muda. Deus as
conhece por toda a eternidade. Falando sobre o servo perfeito, al-Shaykh diz:
... O exílio (ghurba) do gnóstico de sua terra natal é sua partida de sua
possibilidade. A terra natal (watan) da coisa possível é a possibilidade. Então é
desvelado para ela que ela é o Real. Mas a terra natal do Real não é a
possibilidade. Então a coisa possível parte de sua terra natal em virtude desse
testemunhar. Quando a coisa possível estava em sua terra natal, isto é, a não-
existência – embora sua entidade estivesse imutavelmente fixa – ela ouviu a fala
na literatura sufi de seu tempo – a aniquilação da alma (que não aparece em nenhum outro lugar na literatura
cristã prévia), a reversão da alma ao estado pré-criado, e a mudança da visão para a auto-visão (que acontece no
momento de clarificação) – levanta questões sobre o relacionamento da mística de Porete com o pensamento
sufi” e mostra uma afinidade com o sufismo que, segundo ele, não pode ser considerada pura coincidência.
Ainda segundo Sells, a questão não é saber se Marguerite Porete tomou emprestados esses conceitos de escritos
influenciados pelo sufismo ou se os desenvolveu a partir de sua própria tradição do amor cortês, pois, segundo
ele, essa tradição em si estava envolvida com a cultura árabe e islâmica. Ainda assim, ele acredita que a
originalidade de Porete testemunha a culminação simultânea das tradições apofáticas no judaísmo, no
cristianismo e no Islã e sugere que nesse momento da história da mística ocidental, o sufismo e a mística
européia cristã eram parte de uma entidade cultural multirreligiosa mais ampla. Cf. Mystical Languages of
Unsaying: 133/134.
75
William CHITTICK, The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination, 1989: 11/12.
251
do Real para ela, “Seja!”, e então correu a adentrar na existência. Por
conseguinte ela foi de sua terra natal para o exílio a partir do desejo de ver
Aquele que lhe disse “Seja!” Quando ela abriu os olhos, o Real fez com que ela
testemunhasse suas próprias semelhanças entre as coisas temporalmente
originadas. Ela não testemunha o Real, por quem adentrou correndo na
existência. ...
Mas os conhecedores perfeitos não têm nenhum exílio. Eles são entidades
imutavelmente fixas em seus lugares; nunca deixam sua terra natal. Já que o
Real é seu espelho, suas formas se tornam manifestas dentro Dele, exatamente
como as formas se tornam manifestas num espelho. Essas formas não são suas
entidades, já que as formas se tornam manifestas de acordo com a forma do
espelho. ...
... Eles são o povo do testemunhar (shuhūd) na existência (wujūd). Eu apenas
adscrevo existência a eles em virtude da origem temporal das propriedades que
não se tornam manifestas exceto num ser existente (mawjūd). Portanto o nível
do exílio não é uma das estações dos Homens ... Os grandes (al-akābir), eles
nunca vêem nada fora de sua terra natal.
76
Num sentido amplo, a jornada espiritual descreve uma progressão linear no tempo que
pode simultaneamente ser vista como um constante processo de retorno à origem e de
recriação a cada “nova respiração”. O resultado do processo da fanā e baqā, a aniquilação e
a subsistência em Deus, é semelhante ao processo de “descriação” ou do retorno ao estado
incriado e, ao mesmo tempo, à possibilidade de fluir na “existência” de acordo com a nova
76
IBN’ARABĪ, Futūhāt in The Sufi Path of Knowledege: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination, 1989: 322.
É bom ressaltar que Ibn’Arabī toma de empréstimo o termo wājib al-wujūd, o Ser Necessário, usado por Avicena
e por outros muçulmanos peripatéticos. O Ser Necessário, por sua própria natureza é e não pode não ser – é o
Ser. Nesse contexto, as entidades são chamadas “as coisas possíveis” (mumkināt), já que podem ou não existir no
cosmos. Uma “entidade imutável” é uma coisa possível não existente. Quando Deus prioriza o lado da existência
sobre a não-existência, ela se torna uma entidade existente, uma coisa existente possível. Portanto, o status
ontológico de uma coisa possível tem de ser especificado. Cf. op. cit.: 12. É preciso ressaltar que, no pensamento
de Ibn’Arabī, o nihil da creatio ex nihilo comum ao pensamento islâmico não é uma “não-existência”
incondicional, mas uma “não-existência” no sentido particular de algo que é não-existente como uma coisa
empírica ou fenomênica. “O que ele vê como nihil é a ‘existência’ no nível dos inteligíveis, ou – o que vem a ser
a mesma coisa – na Consciência de Deus. Ontologicamente, seu nihil é o “possível” (mumkim), i.e., algo que tem
o poder (ou possibilidade) de existir ... Todas as coisas, na visão de Ibn’Arabī, têm o poder suficiente para
deixarem o ocultamento dentro do campo da existência em resposta ao comando ontológico de Deus.” Cf.
Toshihiko IZUTSU, Sufism and Taoism, 1984: 201.
252
revelação de Deus a cada instante. Ibn’Arabī explica que o significado do comando relatado
no Corão, “Seja!” (36:82), e aquilo é, não significa que as coisas adquiram existência, mas
sim que aquilo que ouve o comando adquire a propriedade de ser um lugar de manifestação.
Sob um certo ponto de vista, o distanciamento ou retiro em relação à criação pode ser
visto como análogo ao retorno ao vazio no qual o cosmos foi criado. Ibn’Arabī assinala que a
palavra khalwa, que signica retiro, recolhimento num lugar de reclusão ou segurança, um
lugar de refúgio, deriva da mesma raiz que a palavra khāla, que significa vazio.
77
Ele lembra
também a questão colocada ao Profeta, “De onde nosso Senhor veio a ser antes que Ele
criasse a criação?”, e a resposta do Profeta, “Ele veio a ser numa nuvem, sobre a qual e sob a
qual não havia nenhum ar”. Essa vacuidade ou vazio, a Nuvem, em que não há nenhuma
criação e ainda assim onde a criação toma forma,
78
pode ser compreendido tanto como uma
explicação metafísica quanto como uma realidade experiencial. Ele se refere a Deus e, à
medida que o servo perfeito não é outro que Deus, se refere ao estado no qual ele estava antes
de ser criado. Em última análise, a metáfora do coração polido para Ibn’Arabī aponta para o
retorno a esse centro quieto, vazio e totalmente receptivo, o mesmo vazio no qual a criação
acontece, a terra natal do conhecedor. O coração distanciado e esvaziado torna-se uno com
Deus e com a “Mente Divina” na qual estão contidos todos os exemplares que precedem a
existência das coisas no espaço e no tempo, e assim o “conhecedor” torna-se uno também
com o seu próprio exemplar, com sua imagem que precede a criação e que, portanto, não é
diferente de Deus.
77
Cecilia TWINCH, “The Beauty of Oneness Witnessed in the Emptiness of the Heart”. Disponível em
<
http/www.ibnarabisociety.org.> Acesso em: 23 de junho de 2003.
78
William CHITTICK, The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of Imagination, 1989: 125.
253
4.2.4 – Alma, nafs, eu – o que é aniquilado?
No centro da antropologia cristã medieval, de maneira semelhante à antropologia
islâmica, está a noção de que a pessoa humana foi feita à imagem de Deus, embora essa
imagem precise ser resgatada, transformada ou lembrada por meio da ação salvífica em cada
alma individual.
A antropologia platônica influenciou a antropologia cristã com sua noção da alma
como portadora de uma imagem da divindade. Na antropologia grega, havia uma divisão entre
corpo e alma que levou a uma ênfase na última como a pessoa verdadeira e à insistência na
imortalidade da alma como o verdadeiro destino humano. O pensamento filosófico grego via
a alma como o centro do cosmos, uma realidade intermediária que ligava os extremos dos
mundos material e espiritual.
79
Seguindo também a máxima inscrita no templo de Apolo em
Delfos, “Conhece-te a ti mesmo”, que está no centro de várias tradições religiosas, para os
pensadores cristãos medievais, a contemplação de Deus geralmente era iniciada com uma
verdadeira contemplação do eu por alguma técnica introspectiva.
80
Esse conhecimento não
envolvia somente a natureza e os poderes da alma, reconhecida como a pessoa verdadeira,
mas também o reconhecimento existencial de nossa condição pecaminosaestava
.
Na filosofia cristã medieval de maneira geral, a alma
81
era considerada uma substância
espiritual, dotada de uma função animadora e, seguindo santo Agostinho, partida em três
79
Bernard McGINN, “The Human Person as the Image of God – The Western Christianity” in Christian
Spirituality: Origins to the Twelfth Century, 2000: 313.
80
Bernard McGINN, op. cit.: 315.
81
Nas representações mais antigas, a alma, como princípio de vida, era concebida como um sopro, alento ou
hálito, equivalentes à respiração, na falta do qual o indivíduo morre. (Nefesh em hebraico, nafs em árabe, atman
em sânscrito, pneuma em grego, anima em latim). Na Grécia arcaica, distinguia-se a alma livre, psyché – um
princípio vital – e a alma corporal – thymos, noos e menos, que representam seus traços psicológicos. No
momento da morte, a psyché deixa o corpo e como uma sombra incorpórea – eidôlon, passa a habitar o Hades.
Cf. Jan N. BREMMER, The Early Greek Concept of the Soul, 1993: 14/56/57/73. Em outras visões, o termo
descrevia um duplo próprio de cada um dos seres humanos, preexistente ao corpo e que perdura após a morte
deste, um duplo de origem luminosa e divina. Platão estabeleceu o dualismo entre alma e corpo, a alma como
uma realidade imortal e separável. A alma desterrada aspira a se liberar do corpo e retornar à sua origem divina,
entre as idéias, no mundo inteligível. Ela teria partes ou tipos de atividade distintas, numa divisão hierárquica em
que a parte inteligível seria a mais elevada e poderia subordinar as partes inferiores.
254
faculdades: memória, intelecto e vontade.
82
Essas faculdades existem e são criadas com a
alma. De maneira geral, as obras teológicas apresentam teorias das faculdades superiores da
alma que se assemelham a Deus. Nesse sentido, somente a alma que se purificou de sua
natureza inferior é capaz de conduzir o ser humano de volta a Deus.
O século XII, já identificado como um momento de mudança na história da
espiritualidade latina, testemunhou uma nova ênfase no indivíduo, caracterizada por um senso
ampliado de auto-análise, e pela ênfase no domínio da experiência interior, ainda que fossem
mantidos os laços com pensadores do passado, em especial com Agostinho. Os escritos dos
místicos da tradição renano
-flamenga acabaram por configurar um modelo de alma que
depois veio a florescer nas obras de Eckhart, de Tauler e de Ruysbroeck. Esse modelo, muitas
vezes expresso de modo metafórico, tinha uma representação ternária, em que o espaço
interior da alma era subdividido em uma região sensorial, sede das faculdades sensíveis, uma
região racional, sede das faculdades racionais, e uma região supra-racional e deiforme,
identificada com a essência da alma, sua substância mais íntima.
83
Dentro do modelo da alma renano-flamengo, é a essência da alma que ocupa um lugar
privilegiado, o lugar místico, sede de sua regeneração e da união de indistinção com o divino.
Essa é a parte mais nobre da alma humana, seu fundo e essência nua, retratado em imagens
abissais, no qual nada que é humano pode entrar e no qual o Incriado reside. Esse fundo ou
essência se distingue das faculdades da alma: a essência é a graça por meio da qual ela é o que
é e o que a define em seu ser próprio; as faculdades são os instrumentos por intermédio dos
quais ela realiza todas as suas operações. Na essência não se dá nenhuma operação. Embora
ela seja o fundo essencial de onde as faculdades emanam, ela é pura passividade, repouso
absoluto, um lugar de silêncio onde todas as coisas criadas são abolidas e só Deus fala.
84
Esse
82
Etienne GILSON, A filosofia na Idade Média, 2001: 868.
83
Mino BERGAMO, L’Anatomie de L’Âme, 1994: 51.
84
Mino BERGAMO, op. cit.: 151.
255
lugar místico, para além da esfera das operações e para além das faculdades racionais, e a
união mística que aí tem lugar, se inscrevem, dentro da tradição desse modelo de alma, num
horizonte rigorosamente ontológico.
A noção de anéantissement, aniquilamento ou aniquilação, tema central na obra de
Marguerite Porete, já aparece no próprio título de seu livro, Le Mirouer des simples âmes
néanties et qui seulement demourent en vouloir et desir d’amour, ligada à palavra alma. a
Porete parece manter as três faculdades agostinianas da alma, porém, em sua obra, duas
questões são centrais para a análise da natureza da alma. Primeiramente a idéia de que a alma
possui, como um selo gravado, a imagem da Trindade, da mesma maneira como a Trindade
tem gravada em si a imagem da alma. Dessa forma parece haver na alma um elemento mais
interno, mais secreto e propriamente divino, pois todo o progresso espiritual está ligado a essa
imagem dentro da alma. A outra questão central é como a vontade afeta as outras faculdades
da alma.
No capítulo 110 do Miroir, Marguerite Porete explica como a “arte” na criatura é uma
habilidade sutil que é a substância da alma e que gera o intelecto (entendement). A
cognoissance, compreensão, termo que ela parece utilizar como a capacidade de compreender
as coisas do reino divino e promover o progresso espiritual, é a parte mais elevada da alma e é
gerada a partir da habilidade e do intelecto. Contudo, o conhecimento proveniente dessas
capacidades está relacionado à vontade.
Para Porete, a partir de sua infinita bondade, Deus deu à alma uma vontade livre, mas
a partir do exercício dessa vontade livre, a alma removeu sua vontade da vontade de Deus. A
vontade livre da alma, dada livremente como uma dádiva divina, pode se voltar para as coisas
criadas ou para as coisas divinas. Se a alma permanece com sua vontade, ela se volta para as
coisas criadas e, conseqüentemente, sua habilidade e seu intelecto ficam limitados. O
intelecto, gerado pela habilidade e controlado pela vontade, só fornece o conhecimento
256
permitido pela vontade. Já que em seu recesso mais íntimo a alma se liga a Deus por meio da
imagem gravada da Trindade, ela nunca pode estar fora de Deus, mas pode se prender a si
mesma e se afastar dele ou pode se ligar ao que há nela de mais profundo e unir-se a ele.
À medida que a vontade permanece no mundo criatural, das coisas, o intelecto estará
limitado a esse mundo e, portanto, o conhecimento será de um tipo particular. A alma deve
devolver sua vontade a Deus livremente para atingir o estado de perfeição espiritual. Ela deve
se esvaziar, se tornar um verdadeiro nada que pode ser preenchido apenas pela vontade e pela
compreensão divinas. Se a perfeição é atingida, no estado de aniquilação, a alma não deseja
mais sua própria vontade, mas apenas o desejo divino deseja nela.
Essa Alma, diz Amor, tem a memória, o intelecto e a vontade completamente
no abismo do ser uno, isto é, em Deus. E tal estado lhe dá o ser, sem saber, nem
sentir, nem querer qualquer estado, exceto somente o ordenamento de Deus.
Essa Alma, diz Amor, em vários dias, enlanguesceu de amor.
85
A primeira condição para que o progresso espiritual se realize é a tomada de
consciência de que em si mesmas, independentemente do que têm de divino, as criaturas não
são mais que um puro nada. Tomando consciência de seus próprios limites e negando-os
voluntariamente, a alma renuncia a tudo o que faz dela esse ser particular e determinado. Uma
vez derrubados os entraves que a mantinham na ignorância e as paredes que a
particularizavam, a alma só passa a perceber em si a continuidade com o ser do qual deriva,
alcançando sua completa liberdade.
Por outro lado, na maioria das fontes ocidentais sobre o pensamento islâmico, a
palavra nafs é normalmente traduzida como alma ou como eu, dependendo do contexto. Da
mesma maneira que a palavra self em inglês, nafs pode ser um pronome reflexivo que se
85
Mirrouer: 43: 57-62.
257
refere a um substantivo já mencionado. Em algumas passagens corânicas, o termo nafs, no
sentido de eu, é utilizado para se referir a Deus, mas o termo raramente é utilizado num
sentido técnico para designar Deus. De uma maneira geral, o Corão se refere à alma ou ao eu
dos seres humanos como aquilo que é responsável pela atividade e que será recompensado ou
punido na vida eterna. Quando Ibn’Arabī utiliza al-nafs, sem nenhuma qualificação, ele está
se referindo ao lado humano, ao eu ou à alma, nunca a Deus, ao qual ele se refere como al-
dhāt.
86
Num certo sentido, o hadith “Aquele que conhece a si mesmo conhece o seu Senhor”
também pode ser traduzido por “Aquele que conhece sua alma, conhece o seu Senhor”,
87
pois
a alma é precisamente esse eu que precisa ser conhecido. Em vários ensinamentos sufis que
têm por foco a necessidade de ultrapassar as limitações do eu humano, o termo nafs é
normalmente utilizado num sentido negativo e muitas vezes é traduzido por ego
88
, sugerindo
86
William CHITTICK, The Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmology, 1998: 270
87
William CHITTICK, op. cit: 269.
88
William CHITTICK, The Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmology, 1998: 270. É bom
lembrar que o termo ego, um antigo conceito filosófico que indicava uma entidade por meio da qual o indivíduo
se torna consciente de sua própria existência e da existência do mundo externo, é hoje utilizado principalmente
num sentido psicológico e psicanalítico. Na segunda tópica freudiana, ainda que em Freud a definição de ego
sempre tenha sido renovada por sucessivas contribuições, o ego é considerado como uma organização
coordenada dos processos mentais em uma pessoa, e como um sistema de funções, com uma parte consciente e
uma parte inconsciente. Ao ego consciente pertencem a percepção e o controle motor, a linguagem e as funções
de encarar a realidade e de auto-preservação. Ele também é responsável pela defesa contra as reivindicações
pulsionais – a partir da utilização de mecanismos defensivos, atividade muitas vezes inconsciente. Sua função
básica é a de mediador que tenta levar em conta exigências contraditórias – o perigo que vem do mundo externo,
o da libido do id e o da severidade do superego – e de integração das três instâncias da personalidade. Nesse
sentido, ele é uma instância absolutamente necessária. Cf. J. LAPLANCHE & J.-B. PONTALIS, Vocabulário da
psicanálise, 1970: 183/184. Evidentemente, o eu que é aniquilado não pode ser equiparado ao ego tal como
explicitado acima. O místico, ao ser aniquilado, não perde sua capacidade de estar cônscio, ainda que o foco de
sua consciência não esteja mais em si mesmo. Suas funções egóicas, no sentido descrito, permanecem. Ele não
se torna um psicótico incapaz de atuar sob o princípio da realidade. A aniquilação não significa que a realidade
do indivíduo deixa de existir, e esse retorno à simplicidade não se relaciona ao que normalmente é conhecido por
regressão no sentido psicológico (que designa, “num processo psíquico que contenha um sentido de percurso ou
de desenvolvimento, um retorno em sentido inverso desde um ponto já atingido até um ponto antes desse”, ou
seja, a etapas já ultrapassadas do seu desenvolvimento – fases libidinais, relações de objeto, identificações etc. ...
No sentido formal, a regressão designa a passagem a modos de expressão e comportamento de nível inferior do
ponto de vista da complexidade, de estruturação e de diferenciação.” Cf. J. LAPLANCHE & J.-B. PONTALIS,
op. cit.: 567). A aniquilação, porém, significa a ultrapassagem do lado humano de nossa natureza dentro do
Divino, no qual essa dissolução ontológica significa a “transcendentalização da criaturalidade e a ascensão ao
sobrenatural interior”. Cf. Luiz Felipe PONDÉ, “Nomen Inominabile: a mística de Meister Eckhart”, 2004. Se na
fanā, o pseudo-eu se dissolve no nada, na baqā ou “subsistência”, o místico recupera sua própria consciência
normal cotidiana, mas é um ser que transcendeu sua própria determinação e vê o mundo normal fenomênico, em
sua rica multiplicidade, com outros olhos, como as múltiplas determinações da Realidade única. Nesse processo
258
o lado negativo da nafs. Já os filósofos muçulmanos, contrariamente aos sufis, preocupavam-
se em desenvolver uma perspectiva mais “científica” do eu e utilizavam o termo nafs como
uma designação conveniente para o seu objeto de estudo, sem nenhuma conotação negativa.
Para eles, a característica específica que diferencia os seres humanos é a sua alma racional
falante, que eles analisavam em relação às suas próprias faculdades, aos sentidos, ao corpo e
ao mundo externo.
89
Muitos autores islâmicos não fazem uma distinção precisa entre nafs e rūh (espírito),
termos que parecem denotar os diferentes graus de uma única realidade, a qual pode ser
chamada por ambos os nomes. Os dois termos nomeiam uma realidade invisível, a dimensão
interna do ser humano, a qual possui uma variedade de qualidades que se manifestam em
diferentes modalidades, mas cujo atributo inerente e mais relevante é a vida. A estrutura do
microcosmos é divida em graus de alma (ou espírito): a vegetal, que tem as qualidades de
crescimento, nutrição, atração, expulsão e retenção; a animal, que além das mencionadas tem
os cinco sentidos, a imaginação, o apetite e a raiva, e, finalmente, a humana, que acrescenta a
estas as qualidades da inteligência e do pensamento reflexivo.
90
Em contraste com os filósofos, os sufis, mais preocupados em fundamentar a sua
terminologia no Corão, viam o espírito como intimamente conectado a Deus, enquanto a alma
ou o eu representa o ser humano num estado de maior separação. Em seus textos, o espírito
normalmente precede a alma em virtude da hierarquia natural do universo e da ordem da
criação, sendo o nível mais elevado do cosmos.
91
Ibn’Arabī vê a alma tanto como um problema a ser superado quanto como um objeto
de estudo para os que querem situar a realidade humana no cosmos. Para al-Shaykh, como
ontológico, seu estado mental e seu relacionamento com o ambiente são mantidos mais harmoniosamente do que
antes. Ele não se encontra regredido, em termos psicológicos, a uma fase anterior de fixação libidinal que resulta
em dificuldades ou distorções em sua relação com o mundo à sua volta.
89
William CHITTICK, The Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmology, 1998.: 270.
90
Sachiko MURATA, The Tao of Islam: A Sourcebook on Gender Relationships in Islamic Thought, 1992:
236/237.
91
Sachiko MURATA, op. cit.: 237.
259
para outros filósofos islâmicos, rūh ou espírito é mais ou menos sinônimo de nafs, alma ou
eu, embora o autor faça algumas distinções em contextos específicos, freqüentemente
relacionando a escolha do termo com o verso corânico ou com o hadith no qual um dos dois
termos é empregado. Outros termos que Ibn’Arabī utiliza num sentido similar são “intelecto”
(‘aql), “segredo do coração” ou “mistério” (sirr) e “sutileza” (latīfa). Este último é
normalmente usado na expressão “a sutileza humana” que é equivalente à “alma racional
falante”.
92
Em certas passagens, Ibn’Arabī define nafs como “os atributos do servo que não são
firmes”
93
ou em outras palavras, que são “efeitos” ou causados, aludindo ao fato de que todas
as coisas criadas não são firmes pois dependem de causas e tomam suas realidades de outros.
Ibn’Arabī também se refere à alma como a sutileza que governa o corpo. Como outros autores
dentro dessa tradição, ele vê a alma, inclusive a alma universal, como uma barzakh, um istmo
ou realidade intermediária, com “uma face voltada para a natureza e uma face voltada para o
Espírito Divino.”
94
Quando Deus sopra o espírito no barro com o qual criou Adão, faz surgir a
alma ou eu, essa realidade intermediária que partilha dos atributos de ambos. Desse modo, a
alma se encontra entre a luz e a escuridão, entre a perfeição e a imperfeição, entre o
conhecimento e a ignorância, entre a racionalidade e a irracionalidade e assim por diante.
Em outros contextos, Ibn’Arabī atribui a imaginação
95
no microcosmos ao domínio da
alma, considerada como aquilo que une espírito e corpo. Para al-Shaykh, a imaginação pode
92
William CHITTICK, The Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmology, 1998: 269.
93
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 568.3) in The Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmology,
1998: 271.
94
Ibid.
95
Henry Corbin foi o estudioso que mais atenção dedicou ao que chamou de "imaginação criadora" e ao mundo
imaginal na obra de Ibn'Arabī e que também é marcante na obra de outro grande místico por ele estudado,
Suhrawardī, para o qual a modalidade visionária possuía um papel central e dominante. A expressão mundus
imaginalis foi cunhada por Corbin, na medida em que buscava um termo que pudesse definir o mundo
intermediário da Imaginação equivalente ao Arábico 'alām al-mithāl e que pudesse também expressar a idéia da
faculdade imaginativa criadora não como criando o imaginário, o irreal,
o mítico ou o fictício, mas como um
órgão espiritual capaz de permitir o acesso às imagens metafísicas do mundo imaginal. Cf. Spiritual Body and
Celestial Earth: From Mazdean Iran to Shî'ite Iran, 1989: X. Para um estudo detalhado da imaginação em
Ibn’Arabī, cf. Henri CORBIN, Alone with the Alone: Creative Imagination in the Sufism of Ibn’Arabī, 1997 e
William CHITTICK, Imaginal Worlds: Ibn al’Arabi and the Problem of Religious Diversity, 1994.
260
pegar um significado – isto é, uma realidade do mundo das coisas inteligíveis sem forma
externa – e dar-lhe uma forma sensorial. Por outro lado, a imaginação também espiritualiza o
plano corpóreo e sensorial ao trazer imagens das realidades externas, concretas, para dentro da
alma por meio dos sentidos. Assim, “a forma da imaginação está entre o intelecto e a
sensação, e a imaginação não tem nenhum locus exceto a alma”.
96
Em outra passagem, al-Shaykh afirma que a raiz de toda alma e de todo espírito é o
Espírito Divino e parece usar os termos como sinônimos:
As almas foram criadas de uma única fonte, como Deus diz, “Ele os criou de
uma alma” [C. 4:1]. Ele diz, depois da preparação do corpo da criação, “Eu
soprei nele do Meu espírito” [C. 15:29]. Portanto, o mistério que foi soprado no
objeto do sopro corretamente se deriva de um espírito – isto é, a alma ...
97
Ibn’Arabī distingue entre o Espírito Universal e os espíritos parciais soprados nas
coisas viventes e, embora não ofereça uma classificação definitiva, partilha a idéia dos três
tipos de almas ou espíritos parciais, ou dos vários níveis da alma. Para ele, a alma racional
falante em sua origem é o sopro divino, liberada da dimensão animal da existência. Sua
proximidade de Deus a mantém livre do pecado e de qualquer desobediência. Ela está para a
alma animal como o cavaleiro para sua montaria. A alma animal está indissoluvelmente
ligada ao corpo e a suas faculdades e, na prática, não é distinguível deste. É a alma racional
que “vende para Deus” as almas animais. Nesse contexto da discussão, a palavra nafs
significa tanto alma quanto “eu”. Ibn’Arabī utiliza aqui o verso corânico “Deus comprou
daqueles que têm fé as suas almas e suas possessões. (C. 9:111)”
96
IBN’ARABĪ, Futūhāt (IV 393.10) in The Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmology,
1998: 332.
97
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 272.21) in The Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmology,
1998: 272.
261
Conseqüentemente, as almas que o Real comprou nesse verso são apenas as
almas animais. Ele as comprou das almas racionais falantes que têm fé ...
Portanto a pessoa de fé não tem nenhum eu, então não há nenhuma piedade
nela, exceto a piedade essencial que pertence à alma racional falante em relação
a qualquer animal.
98
De acordo com Ibn’Arabī, o auto-conhecimento é uma precondição absolutamente
necessária para qualquer conhecimento verdadeiro, isto é, o conhecimento do Real. Contudo,
o cosmos está cheio de véus que encobrem esse conhecimento e o maior deles é o eu que
conhece. Conseqüentemente, a tarefa mais urgente é reconhecer a necessidade de levantar o
véu que impede que o eu veja a si mesmo e aos outros. O fato de que o eu é o véu ajuda a
entender o dito acima mencionado, “Aquele que conhece a si mesmo, conhece o seu Senhor.”
Quando o véu é levantado e se torna possível ver em seu lugar a auto-manifestação do Real, é
possível compreender que, paradoxalmente, o véu é idêntico à face divina e que o velamento é
o mesmo que auto-manifestação, ou seja, o véu é o eu e o eu é a face.
99
Para al-Shaykh, o
problema é a ignorância, e a solução é o conhecimento. Contudo, a ignorância a ser
suplantada é ontológica e tem a ver com o esquecimento e com a negligência que são tecidos
na natureza criada. Por isso, são os atributos criaturais que devem ser queimados, e a forma
mais rápida para o auto-conhecimento é eliminar o véu, isto é, precisamente a ipseidade com a
qual normalmente nos identificamos.
Quando Ibn’Arabī fala da aniquilação, o termo “testemunhar” fornece indicações de
como ele entende esse processo. Em geral, testemunhar é sinônimo de ver, não apenas com a
visão, mas com o coração. Esse termo exige a consciência do que é testemunhado, mas não
exige uma auto-consciência total, pois, segundo ele, aquilo que é testemunhado é percebido
como luz, e o eu é aniquilado porque é experienciado como escuridão, e não há consciência
98
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 147.2) in The Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmology,
1998: 288.
99
William CHITTICK, The Self-Disclosures of God: Principles of Ibn al-'Arabi's Cosmology, 1998: 120.
262
dele durante a visão de Deus. Se as faculdades da alma são apagadas na aniquilação, elas não
seriam afetadas, mas Ibn’Arabī define o testemunho como “o traço que o testemunhar deixa
no coração da testemunha”.
100
Chittick, contudo, diz que em alguns outros contextos
Ibn’Arabī deixa claro que para a perfeição humana é necessária a retenção de uma certa
modalidade de auto-consciência durante a aniquilação e que, portanto, a aniquilação do eu
experimentada pelo ser humano perfeito não é absoluta.
101
De qualquer modo, Ibn’Arabī
sempre mantém que a aniquilação é um termo relativo, é sempre a aniquilação de alguma
modalidade inferior específica de consciência para a simultânea subsistência através de uma
modalidade superior específica de consciência. Nesse sentido, a aniquilação é validada através
da subsistência que a acompanha. Em última análise aquilo que sempre subsiste é a auto-
manifestação do Real e o que é aniquilado é o irreal – a consciência limitada do indivíduo.
Em resumo, no estado da fanā se dá a extinção total do próprio eu e de tudo que lhe é
legado como objeto de cognição e de volição. Aqui, o místico vê todas as coisas do mundo
perdendo sua aparente solidez ontológica, tornando-se fluidas e se dispersando na
indiferenciação absoluta original da “Existência”.
102
Contudo, o estado mais elevado da vida
mística é representado pela baqā, a permanência eterna na Realidade Absoluta e com a
Realidade Absoluta – o estado espiritual no qual todas as coisas do mundo, após serem
absorvidas no Nada e dispersas na Unidade absoluta indiferenciada da “Existência”,
ressurgem do fundo do Nada, aos olhos da consciência transformada do místico.
103
Porém, é na metáfora do coração polido do homem perfeito – que, segundo Ibn’Arabī,
está para o cosmos assim como a alma racional está para o ser humano,-
um coração em
estado de perpétua transformação, que é o órgão fundamental da percepção e da consciência –
que Ibn’Arabī mostra o que constitui a essência, o fundamento de cada eu humano. O
100
William CHITTICK, Imaginal Worlds: Ibn’al-Arabi and the Problem of Religious Diversity, 1994: 60.
101
William CHITTICK, op. cit.: 61.
102
Toshihiko IZUTSU, Unicità dell’esistenza e creazione perpetua nella mistica islamica, 1991: 43.
103
Ibid.
263
coração, enquanto órgão de percepção teofânica e espelho polido da alma, mostra que o Ser
de Deus na alma, que é o ser essencial da alma, não é um fato estabelecido, mas um processo
de mudança de perspectivas que a alma deve realizar, uma fanā perpetuamente reencenada. É
aqui que se realiza a capacidade inata do ser humano, sua fitra, a forma divina na qual foi
criado.
O eu humano é intrinsecamente um lugar de visão e um plano de reflexão e um
lugar onde Deus Se manifesta para Si mesmo ... Daí fica claro que para
Ibn’Arabī a natureza fundamental ou o coração do eu humano é como um istmo
testemunhador que expressa e sintetiza os aspectos Divinos e humanos de uma
única realidade. É possível igualmente dizer que o coração do Homem Perfeito
une e expressa perfeitamente a Origem e sua Auto-Expressão como um outro
aparente ... Tal concepção da raiz Divina e sua identidade com a ipseidade
humana é intrinsecamente antitética a qualquer conceito de ipseidade que roube
o fenômeno do eu de sua natureza teofânica unitiva e universal.
104
Nas obras de Marguerite Porete e de Ibn’Arabī é possível discernir uma abordagem de
redescoberta do eu. Em ambos os casos, o eu, em sua forma mais elevada e verdadeira, é,
como era, um fato preexistente, ainda que oculto da visão da maioria. Ainda assim ele está lá,
mesmo que seja possível ou não alcançar a capacidade de nos apropriarmos desse eu oculto
no mais profundo recôndito da alma, onde Deus reside. Para Porete, a estratégia para
descobrir, revelar e realizar esse eu verdadeiro, o tesouro da Trindade, é a sua crítica apofática
do desejo, a aniquilação da vontade e do conhecimento criaturais. Para Ibn’Arabī, a estratégia
é se livrar da ignorância da verdadeira condição humana, da ilusão do eu soberano e
autônomo, é abraçar o nada humano que pode acompanhar as flutuações divinas em suas
perpétuas transformações. Ainda que eles possam se referir ao senso de vertigem
105
que a
104
Peter COATES, Ibn’Arabī and Modern Thought: The History of Taking Metaphysics Seriously, 2002:
125/126.
105
Denys TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1999: 177.
264
alma experimenta ao se debruçar sobre o abismo de seu próprio vazio, o sentimento final é o
de retorno ao fundamento familiar, de recuperação do que foi uma vez a identidade conhecida
e mais recentemente perdida. Podemos aqui utilizar como ilustração as palavras de Jean-Luc
Marion:
Eu sou chamado “mim mesmo” apenas à medida que outros sempre já se
apropriaram de mim para um nome o qual, sem sua convocação, nunca teria
sido capaz de me nomear adequadamente. Meu nome próprio foi dado a mim
por aqueles que se apropriaram de mim: o que é próprio a mim ou meu mesmo
resulta de uma apropriação imprópria e portanto apenas me identifica por meio
de uma inautenticidade originária ... Antes que o nome supostamente próprio –
que é de facto e de jure impróprio – fosse apropriado para mim por outros (em
convocação), foi necessário que o chamado ou o apelo o precedesse. Daí surge
uma primeira conseqüência: o chamado ou o apelo anterior e portanto
diferenciador constitui o prenome (le pré-nom) do nome; o pré-nome anterior ao
nome; e que é próprio, enquanto o nome “próprio” de fato marca uma
inapropriação ... A graça dá o mim mesmo para si mesmo antes mesmo que o eu
o perceba. Minha graça me precede.
106
O eu, ou mesmo o “ego”, se quisermos, permanece a postos, mas não é mais sua
própria origem . Em alguma medida o eu recebeu a si mesmo como dado pela graça, o que
significa que há ainda um sujeito responsável por dar sentido aos fenômenos, por interpretá-
los, mas esse sujeito não constitui mais os fenômenos, porque vem depois e não antes deles.
“Ao ser dado a si mesmo pelo evento, o ego aparece daqui para frente constituído como uma
testemunha ... no sentido legal do termo.”
107
A aniquilação do eu como um lugar de vontade distinta, de identidade com a
presunção de auto-suficiência e de ilusão de soberania dá lugar à descoberta do eu que se
106
Jean-Luc MARION, “The Final Appeal of the Subject” in The Religious, 2002: 143.
107
Jean-Luc MARION, “What do We Mean by ‘Mystic’?” in Mystics: Presence and Aporia, 2003: intr. 5.
265
mostra como a recuperação das linhas quebradas de continuidade com o eu preexistente em
Deus. Quando o eu perde todos os nomes, as imagens e os atributos, ele se rende à opacidade
e finalmente não pode ver dentro de si, espelhando o vazio do Deus sem nome. Na obra de
Marguerite Porete e de Ibn’Arabī, o sujeito humano se mostra como uma imagem
incompreensível do Deus incompreensível. Ao compreenderem a mais profunda
incompreensibilidade do humano, eles entendem a verdadeira incompreensibilidade de Deus.
De certa forma, ambos insistem na absoluta transcendência tanto de Deus quanto do eu, que
estão além de qualquer possibilidade de serem apropriados dentro de uma estrutura inteligível,
significativa, desejável e possessiva de ipseidade.
Nessas práticas críticas de uma teologia apofática em sua aplicação ao desejo humano,
o que está em jogo não é uma simples transferência do desejo, das coisas criadas para um
objeto incriado, Deus. Desejar qualquer coisa, mesmo ser um “lugar” onde Deus opera, é
falhar em ser o “nada” no qual Deus sozinho pode trabalhar. É como se o desejo como tal,
sinalizando uma identidade autônoma, e sendo um “algo”, constituísse um estado de ser não
distanciado e aqui, mais uma vez, está o paradoxo, pois nem mesmo esse distanciamento pode
ser desejado. A questão é tornar em desejo o que se é em si mesmo, nada, um unum
indistictum.
108
Na raiz de toda possessividade, de todo “atamento”, está o desejo de ser um eu.
Contudo, para a béguine e para al-Shaykh, qualquer eu que seja possível chamar de meu é um
eu falso e expressa
... o desejo de que haja em meu centro não o inominável abismo para o qual,
como em um vácuo, o Deus inominado é inevitavelmente atraído, mas uma
identidade que eu posso possuir, uma identidade que é definida por ser minha
propriedade. Essa é a derradeira forma destrutiva que a fixação pode tomar, pois
é uma fixação que busca preencher aquele nada com imagens do eu e de
108
Denys TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1999: 181.
266
“caminhos” para Deus ... Qualquer eu que eu possa chamar de meu mesmo é
um falso eu, um eu da imaginação possessiva.
109
Em última análise, o processo de aniquilação e de subsistência em Deus e o estado
sereno, fixo e distanciado que dele resulta não significa não ter nenhum desejo do que é criado
para desejar apenas Deus, nem significa não desejar absolutamente nada, mesmo Deus. Ele
significa, isso sim, desejar a partir do nada do eu e de Deus, desejar a partir daquela “cela de
retiro” ou da “secret clôture” onde nada criado pode entrar, onde se pode desejar tudo com
um desejo verdadeiramente divino, pois é desejo “sem um porquê”.
4.2.5 – Uma analogia apofática
Esse momento de estabelecermos as conexões entre as concepções da béguine e de al-
Shaykh pode, talvez, ser considerado o momento de uma analogia apofática. Em ambos os
autores, os dois termos que originam a analogia – o humano aniquilado e o divino – não
podem ser identificados, mas também não se pode distingui-los. A esses termos não pode ser
dado nenhum conteúdo determinado ou identificável. Na realidade, não tendo a determinação
ou a identidade de algum “o quê”, os termos indicam aquilo que permaneceria propriamente
desconhecido e incognoscível. A semelhança da relação pode ser estabelecida precisamente
porque o termo final em cada relação não pode nem ser identificado nem distinguido do termo
final da outra, o que pode gerar uma analogia apofática, entre duas figuras do incognoscível e
do inefável. Ainda assim, podemos estabelecer as semelhanças entre os diferentes discursos
místicos de ambos, que resultam no estabelecimento de uma antropologia apofática.
A lógica da negação redobrada expressa em termos de nem isso, nem aquilo, tal como
aparece na obra de ambos, não diz respeito somente à linguagem e ao pensamento sobre Deus.
109
Denys TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1999: 184.
267
A apófase teológica se une à apófase antropológica, e o distanciamento e o abandono em
relação às coisas criadas caminham junto com a “despossessão” do eu. Para eles, a dádiva
absoluta está associada na teologia com um Deus inefável e inconcebível, que é o “porquê” de
todas as coisas, mas em si não é coisa alguma que possa ser definida ou delimitada, e marca o
limite do conhecimento e da linguagem para os seres criados. A união mística com o divino
ocorre apenas num inefável desconhecimento que nada sabe, no qual se é desfeito como um
sujeito falante ou cognoscente.
110
No texto poretiano, as metáforas do abismo, da marca da Trindade impressa na alma,
do rio que perde seu nome desaguando no mar, do ferro que se torna fogo, do eu sem nome
como a Deidade inominável em si, tudo indica uma antropologia apofática subentendida no
termo anéantissement. No discurso akbariano, a vastidão oceânica do eu que espelha a
profundidade divina sem fim, a “estação de nenhuma estação”, a impossibilidade de se
atribuir qualquer atributo ou propriedade ao conhecedor que não possui mais qualidade ou
nome, sua não-delimitação, tudo marca uma paisagem fenomenológica que resulta da fanā.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī falam de um auto-esvaziamento que se aproxima do
nada, de uma abertura e de uma profundidade abissais cavadas na alma que permitem que
Deus ali se instale. Já que Deus permanece para além de todos os seres criados em Sua
unidade absolutamente simples, a theosis necessita do abandono ou da aniquilação do eu e do
reconhecimento da pobreza ontológica humana. Essa aniquilação é expressa em termos de
uma linguagem de “morte” dentro da prática de uma antropologia apofática que se relaciona
com o “desconhecimento” místico de Deus. É somente quando sofro uma “morte” e não sou
nada em mim mesmo, somente à medida que me torno dissimilar a qualquer coisa é que me
torno como o dessemelhante.
110
Thomas A. CARLSON, Indiscretion: Finitude and the naming of God, 1999: 188.
268
É essa prática de auto-abandono e de aniquilação que conduz à verdadeira vida com
Deus, uma vez que é essa prática que realiza a unidade radical da alma com Deus, realização
que depende da identidade do fundamento da alma e de Deus. Porete e Ibn’Arabī retratam
esse movimento na direção do fundamento divino como um movimento de abandono e
distanciamento em relação ao mundo criado. Para ambos, esse lugar mais interno e profundo
da alma, sua essência e fundamento, se encontra em uma região sem nome, da qual todos os
atributos e propriedades estão excluídos. Trata-se de um recesso oculto sobre o qual nada se
pode dizer, exceto coisas negativas: é atemporal, simples, sem movimento, despido de
faculdades, sem relação com as criaturas. Essa ausência de nome do fundamento da alma é
comparável à ausência de nome divina, já que o recesso interno do Ser divino também se
esquiva de qualquer propriedade ou atributo que possam ser afirmados sobre Ele.
111
Esse é um movimento necessário já que Deus permanece totalmente “dissimilar” ou
distinto do plano criado e, portanto, inatingível à medida que se permanece ligado a ele. Essa
“dessemelhança”, contudo, deve ser compreendida dialeticamente em relação à absoluta
“similaridade” divina. Esse é um dos pontos centrais no pensamento de Ibn’Arabī, expresso
nos conceitos de tanzīh e tashbīh: como o Deus absconditus, para sempre “um tesouro
oculto”, a nada se assemelha - é dissimilar, indefinível e não-delimitado -, Ele pode assumir
qualquer delimitação ou nome. Ainda que Marguerite Porete não sistematize esse pensamento
de maneira teologicamente sofisticada, ele pode ser inferido em seu discurso, pois embora ela
enfatize a impossibilidade de falar a verdade sobre Deus, sobre o qual não há nada que se
possa verdadeiramente falar, também diz que “onde quer que eu penetre só encontro Deus”, o
que ecoa o verso corânico sempre citado por al-Shaykh: “Para onde quer que você se volte, lá
está a face de Deus.” (C. 2:115)
111
John D. CAPUTO, The Mystical Element in Heidegger’s Thought, 1990: 127.
269
Contudo, Ibn’Arabī enfatiza mais explicitamente o jogo teofânico do cosmos, o qual
oferece uma infinita multiplicidade de teofanias que podem ser vistas como mostrando o Deus
invisível por meio de vários ângulos diferentes. Ele também deixa mais claro o aspecto
fundamentalmente co-criador entre Criador e criatura. Deus alcança a auto-consciência na e
por meio da consciência de Deus na criatura, que é uma teofania paradoxal. Ao mesmo
tempo, para ele, “toda a criação oferece um campo de aparição luminosa que torna manifesta
a inacessível escuridão da Essência.”
112
A béguine e al-Shaykh figuram a relação paradigmática com Deus não como uma
“relação”, mas como um retorno à Origem auto-suficiente e fundamento do Ser, que
Marguerite Porete chama de “nada” e à qual Ibn’Arabī se refere como dhāt ou essência, ankar
al-nakirāt, “o mais indeterminado de todos os indeterminados”. Ambos formulam um eu que
existia com a Deidade antes de toda criação e assim, eternamente. A proposição que utilizam
é a de que todos os seres criados existiam eternamente, mas “virtualmente”, no conhecimento
divino e só depois adquiriram “existência” independente. Eles estavam na Deidade antes
mesmo de serem criados, ou seja, antes de serem criados, eram incriados e, nesse sentido,
naturalmente divinos, pois em Deus nada é distinto de Deus. Portanto, se a existência na
Deidade está além de qualquer distinção, na unicidade indiferenciada da Deidade, ela não
pode se distinguir da Deidade enquanto tal. Desse modo, eles existiam na Deidade antes de
Deus, no fundamento mesmo de Deus, antes de suas criações.
Nessa existência que antecede a existência terrrena, a alma estava livre do contato com
as criaturas e completamente distanciada. A preexistência da alma em Deus representa uma
espécie de pureza que ela deve recuperar, uma condição original que ela tenta reconstruir.
Não ter nada significa retornar ao estado no qual a alma era nada ou não-existente, no qual ela
permanece em sua causa primeira. O retorno à preexistência representa o enraizamento em
112
Thomas CARLSON, “Locating the Mystical Subject” in Mystics: Presence and Aporia, 2003: 214.
270
um lugar onde Deus deixa de ser Deus, isto é, o Criador. A alma, por sua vez, deixa de ser
uma criatura, à medida que regressa à sua origem primordial, ao estado que antecede a ordem,
“Seja!”. Em outras palavras, a união mística consiste em desfazer todo o processo de criação,
em reverter sua direção, em suplantar sua direção em ambos os lados, de tal forma que não
haja mais criatura e criador.
Tanto no mito akbariano de criação quanto no transbordamento da bondade e do amor
divinos que resultam na criação, há um movimento para “fora”, no sentido da manifestação,
que antecede tanto a atualização e a concretização dos nomes divinos quanto antecede o fluir
da própria Trindade e que possibilita a existência do mundo criado. Posteriormente, há um
movimento de regresso, por meio do qual a alma traça seu caminho de retorno à sua origem
primordial, exitus e reditus.
113
O primeiro movimento termina na criação, nas criaturas, na
distinção e na multiplicidade. Nele é estabelecida a distinção entre a criatura e Deus. Nesse
momento, Deus se torna Deus, o Deus criador das crenças. No regresso, a distinção entre
“Deus” e as criaturas é suplantada e a divisão é curada. A criatura, aniquilando sua identidade
ilusória, se livra de seu aspecto criatural e regressa a seu fundamento primário na Deidade,
onde não há nem Deus nem criatura, apenas o abismo do Uno inominável.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī consideram que as criaturas em si não são nada, pois ser
é Deus. As coisas só existem através da existência de Deus. Uma criatura não tem ser – tem
apenas uma existência emprestada. Ela só existe à medida que recebe o influxo divino e é
sustentada em Deus e por Deus. Isso não significa que as criaturas sejam Deus, mas que são
em virtude de Deus e que são absolutamente dependentes de Deus. A teologia de ambos é
tanto teocêntrica quanto antropocêntrica – Deus é Deus e o homem é o homem – mas com a
identificação do fundo da alma com o fundo de Deus.
113
Jonh D. CAPUTO, The Mystical Element in Heidegger’s Thought, 1990: 129.
271
A vida da alma “liberada e clarificada” e a baqā do verdadeiro conhecedor é uma vida
na qual a ação não parte de nenhum propósito externo – nem recompensas, nem castigos,
temporais ou eternos. Absolutamente simples, desinteressadas e distanciadas de todos os
propósitos externos, de todo telos, ainda que o mais elevado, tais almas agem a partir da
presença divina dentro delas. Como esse fundamento da alma, calmo e silencioso, uma “cela
de retiro”, como diz Ibn’Arabī, está removido do contato com as criaturas, ele está retirado do
plano do espaço e do tempo. Nele há um “eterno agora” no qual a alma está removida da
seqüência dos “agoras” que constituem sua vida exterior. Uma vez que Deus vive na
eternidade, esse “eterno agora” é o lugar de encontro no qual a alma e Deus residem juntos
num único momento atemporal.
114
Contudo, embora a alma possua um fundamento incriado, ela é também criada e
dependente do tempo. Tanto o criado quanto o incriado parecem coexistir no ser criado. A
disjunção que ocorre na percepção da condição humana parece ser o resultado de uma “fratura
na intimidade entre Deus e a alma”
115
– a vontade e o desejo criaturais para Porete, bem como
o esquecimento, a ignorância e a ilusão de soberania para Ibn’Arabī.
Portanto, o fundamento da alma não é a sua totalidade, pois há também a vida externa
da alma por meio de suas faculdades. A unificação com Deus no sujeito humano implica uma
theosis somente à medida que a criatura humana, em perfeita semelhança com Deus,
transcende toda localização. Porém, embora a alma aniquilada não tenha mais um lugar, e o
“povo de Yatrib” não tenha nenhuma estação, espelhando o Deus sem circunscrição em lugar
114
Na dialética mística de Ibn’Arabī o tema do waqt, o momento do eterno agora, está interligado ao mito do
“suspiro do Compassivo” ou ao mito de criação, à metáfora do espelho polido e ao modelo do ser humano
perfeito – insān kāmil. Na noção do waqt está contida a idéia da contínua destruição e recriação do mundo a cada
momento, e a idéia de que os sufis são “filhos do momento”. Para al-Shaykh, em sua compreensão do momento
eterno, e em sua concepção perpetuamente transformadora da fanā, a cada momento é preciso perecer, tornar-se
uno com o divino na imagem refletida e, então, desistir daquela imagem e perecer novamente, continuamente
experenciando união e separação, fanā e baqā, a extinção e a reconstituição dentro de uma nova imagem, numa
transformação perpétua. Cf. Michael SELLS, “The Semantics of Mystical Union in Islam” in Mystical Union in
Judaism, Christianity and Islam: An Ecumenical Dialogue, 1999:122.
115
Denys TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1999: 145.
272
ou tempo, o místico é ainda um ser que age no mundo. Fica claro que não há em Ibn’Arabī o
quietismo e o contemptus mundi muitas vezes atribuídos aos místicos. Dialeticamente, embora
estejam fixos e em repouso, enraizados em sua origem primordial, os conhecedores são
capazes de acompanhar as transformações incessantes das manifestações divinas e de fornecer
a resposta apropriada para as infinitas flutuações e situações externas. Porete por sua vez,
embora com menos dinamismo, também sugere essa flutuação entre o repouso, a liberdade, a
paz e a permanência da alma aniquilada na corte divina e a sua ação no mundo, quando se faz
necessário. Ainda que suas jornadas místicas sejam distintas, nem um nem outro recomendam
abandonar o mundo e permanecer em clausura para encontrar Deus. Marguerite Porete, com
seu desejo alinhado ao desejo divino, dá à Natureza o que é necessário, sem remorso de
consciência, e al-Shaykh louva as coisas do mundo como um sinal de Deus. A orientação que
fornecem é, isto sim, quebrar a concha das criaturas, permitindo que Deus de fato ocupe esse
lugar vazio. Ao atingir esse momento, suas ações e respostas às solicitações externas brotam
desse fundamento e não se originam mais de suas próprias vontades, mas da vontade divina.
4.3 – Unio mystica
Assim como o termo mística, enquanto substantivo, foi criado no século XVII, o termo
unio mystica surgiu no mesmo período, utilizado por teólogos que emitiam comentários sobre
a “mística”. Ainda que em latim e nos vernáculos europeus houvesse riqueza de vocabulário
sobre a união com Deus, o termo “união mística” nunca foi utilizado por nenhum autor
medieval, nem mesmo pelos místicos espanhóis clássicos do século XVI. Segundo McGinn, a
popularidade da expressão “união mística” a partir do século XIX se deve mais ao estudo
acadêmico da mística do que aos próprios místicos.
116
116
Bernard McGINN, “Comments” in Mystical Union in Judaism, Christianity and Islam: An Ecumenical
Dialogue, 1999: 185.
273
A expressão unio mystica, uma criação moderna, cunhada por acadêmicos cristãos,
pode ser problemática nos estudos comparativos, pois apresenta dificuldades de tradução
tanto no árabe quanto no hebraico, que não têm um equivalente real para o adjetivo místico.
Contudo, essa expressão pode também ter uma função útil, ainda que limitada, pois permite
identificar um momento significativo das chamadas “experiências místicas”, tendo também
um papel hermenêutico na conversação, já que duas áreas emergem na conversação sobre a
união mística: a teológica e a antropológica.
117
Mesmo que haja diferenças importantes nos
termos e descrições de Deus, há uma série de convergências significativas, ou ao menos uma
similaridade de dinâmicas que cercam as descrições desse acontecimento, visto como o
objetivo da jornada mística. Há um momento na literatura mística das tradições religiosas
abraâmicas – os discursos sobre a união – que as põe em conversação próxima.
No contexto árabe, ao se usar o termo “união”, pode-se pensar em algumas palavras
que se aproximam das associações religiosas e culturais próprias do contexto ocidental
cristão, como ittihād (identidade) ou wusūl (contato). Contudo, um dos termos utilizados por
Ibn’Arabī é jam’, que no contexto de sua obra pode ser melhor traduzido como “síntese” do
que como “união”, expressando mais adequadamente a “bipolarização unitária que permeia
seu pensamento.”
118
Ibn’Arabī menciona dois tipos de síntese. O autor usa a expressão jam’ al-jam’ para se
referir ao que pode ser chamado de “Síntese Suprema”, síntese do Objeto Divino manifesto,
implicando no Sujeito Absoluto, ou seja, síntese da polarização que ocorre dentro da Essência
divina e reflete o mistério da existência da multiplicidade. Aqui está implícito o ensinamento
principal de Ibn’Arabī: “a Realidade é o Ser e o Ser é a Realidade, nada pode ser diferente da
Realidade e tudo que tem Ser não é nada que não seja Ele.”
119
Ao outro tipo de síntese, al-
117
Bernard McGINN,“Comments” in Mystical Union in Judaism, Christianity and Islam: An Ecumenical
Dialogue, 1999: 186
118
R.W.J. AUSTIN, “Meditations on the Vocabulary of Love and Union in Ibn’Arabī’s Thought”. Journal of the
Muhyiddin Ibn’Arabī Society. Vol. III, 1984: 13
119
R.W.J. AUSTIN, op. cit.: 14/17.
274
Shaykh se refere simplesmente como jam’, a síntese entre o servo reverenciador e o Deus
reverenciado (Allah), que são ambos, de maneiras diferentes, modalidades polares
condicionadas da Realidade que é Ser, ambos mutuamente dependentes um do outro para o
seu significado. Essa é a síntese do servo consciente com a Realidade criada que manifesta o
Cosmos.
Em última análise, as descrições do que veio a ser denominado unio mystica existem
nas três religiões abraâmicas
120
e foram articuladas em termos consistentes com as tradições
específicas. Ainda assim, mostram uma clara afinidade umas com as outras. No cristianismo,
no qual o termo se originou, o conceito de unio mystica emergiu ao fim de um longo e
complexo processo que restringiu e delimitou a idéia mais geral da presença divina no
crente.
121
Bernard McGinn delineia duas visões da unio mystica, duas visões sobre a natureza da
união com Deus que, no período entre o século XII e o século XVI, marcaram o cristianismo
latino e interagiram com as tendências das formas como os teólogos místicos compreendiam
os papéis representados pelo amor e pelo conhecimento em relação à união.
122
A primeira
delas é a unitas spiritus, que tem uma orientação mais moral e psicológica e consiste numa
120
Em relação ao judaísmo, Moshe IDEL contesta a compreensão da noção de devekut – termo cujo amplo
campo semântico místico inclui uma variedade de sentidos que vai da imitação do comportamento divino à total
fusão com o divino – em Gershon Scholen, que compreende o termo como um ideal místico que não inclui a
unio mystica. Idel fornece também vários exemplos da compreensão do devekut como envolvendo algum tipo de
obliteração da personalidade humana por meio da experiência de auto-inclusão do místico no plano divino, em
virtude da transformação de sua alma individual, atestandoJ
a existência no judaísmo de uma terminologia de
descrições unitivas. Cf. “Mystical Union in Judaism” in Mystical Union in Judaism, Christianity and Islam: An
Ecumenical Dialogue, 1999: 33. Já Michael FISHBANE, em seu trabalho The Kiss of God: Spiritual and
Mystical Death in Judaism, 1996, mostra os aspectos do desejo, articulados num discurso baseado no erotismo
do “Cântico dos cânticos”, e sua relação com a morte mística, equiparável à aniquilação, na espiritualidade
judaica.
121
Para uma visão mais detalhada da origem e evolução das idéias místicas no cristianismo, consultar a série The
Presence of God: A History of Western Christian Mysticism, de Bernard McGINN, que consiste em três
volumes: The Foundations of Mysticism: Origins to the Fifth Century, The Growth of Mysticism: Gregory the
Great through the 12
th
Century e The Flowering of Mysticism: Men and Women in the New Mysticism – 1200-
1350.
122
Cf. Bernard McGINN, “Love, Knowledge and Unio Mystica in the Western Christian Tradition” in Mystical
Union in Judaism, Christianity and Islam: An Ecumenical Dialogue, 1999: 85.
275
relação interpessoal de amor; a segunda visão, de orientação ontológica e normalmente
compreendida como uma união ontológica ou substancial, ele designou unitas indistinctionis.
4.3.1 Unitas indistinctionis
No século XIII, dentro do cristianismo, surgiu uma visão nova e suspeita
123
da unio
mystica que veio a ser discutida ao longo da Idade Média mais tardia. Essa nova tendência
enfatizava a união essencial ou ontológica entre Deus e a alma e pode ser considerada
próxima à concepção de união encontrada nos escritos de Plotino e Proclo , embora não haja
evidências de que esses textos antigos tenham fornecido a única fonte de inspiração para essas
mudanças. Essa nova tendência foi registrada inicialmente em algumas mulheres místicas do
século XIII e do início do século XIV, como Hadewijch de Brabante, Metchild de Magdeburg
e Marguerite Porete, e foi formulada de maneira mais teologicamente sofisticada na obra de
Eckhart. Os místicos que insistiam na visão radicalmente dinâmica de que Deus se une com o
humano enfatizavam, como já vimos, a preexistência virtual da pessoa em Deus como base
para a possibilidade de uma união de indistinção.
No Islã, é possível igualmente encontrar fortes expressões de união que se defrontaram
com grande resistência doutrinária e geraram um tipo de controvérsia semelhante. Embora a
idéia de que a alma é capaz de uma certa intimidade com Deus apareça no Corão, a idéia sufi
expressa na fanā – a transição da consciência humana para dentro do divino e sua realização
dos atributos divinos – foi vista como suspeita e blasfema por certos setores da ortodoxia
123
Como vimos, a autoridade da Igreja reagiu a essa nova compreensão da união, considerada herética em sua
interpretação. Ao longo do século XIII, grupos de hereges foram atacados pois entre outras coisas afirmavam
que “a alma é tomada da substância de Deus”. No século XIV, também por essa razão, entre outras, Eckhart foi
condenado pela autoridade papal, bem como os hereges do movimento do “livre espírito”. Cf. Bernard McGINN,
“Love, Knowledge and Unio Mystica in the Western Christian Tradition” in Mystical Union in Judaism,
Christianity and Islam: An Ecumenical Dialogue, 1999: 71.
276
religiosa. Contudo, os místicos sufis encontravam suporte para sua ortodoxia na tahwīd, o
testemunho da unicidade divina para a qual eles tentavam retornar ao “morrer para esse
mundo” e ao se tornarem “como eram, quando eram antes de ser”, o que os conduzia a uma
afirmação de identificação total.
124
O termo união é usualmente utilizado no sentido de “ato de unir uma coisa com a
outra” ou “ato de unir ou juntar duas ou mais coisas em uma”. Ao considerarmos o nível da
metáfora ou da linguagem poética e erótica comum às três tradições, essa concepção está
presente dentro das três tradições místicas. Porém, no nível mais explicitamente teológico, é
duvidoso se a união, tal como definida acima, pode ser aplicada sem qualificação.
125
Já vimos
que nas tradições apofáticas fortes, a união não acontece entre duas substâncias ou entidades,
mas no fundamento do “nada”, o nada auto-esvaziador da alma contemplativa ou o nada
inqualificável da Deidade não-manifesta. Nesse caso, o termo união substancial ou
ontológica, baseado numa linguagem de substância rejeitada pela tradição à qual é
freqüentemente aplicado, está baseado numa compreensão errônea.
Na literatura mística, normalmente, a palavra união é combinada com a palavra Deus,
significando duas entidades, a alma e Deus, conjuntas em união. Porém, para alguns autores
místicos, o que ocorre, ocorre tanto entre humano e divino quanto dentro do próprio divino, e
as duas uniões são uma única. Tanto no nascimento do Filho na alma, na união de Binah e
Tiferet no sistema cabalístico, na atualização da imagem gravada da Trindade, na
manifestação do divino para si mesmo em si mesmo na fanā sufi, o ente é sempre
“desentificado” pelo dentro, implicando uma noção de união entre duas entidades sempre em
tensão dialética com a união já e sempre realizada dentro do já uno.
126
124
Louis DUPRÉ, “Unio Mystica: The State and the Experience” in Mystical Union in Judaism, Christianity and
Islam: An Ecumenical Dialogue, 1999: 6.
125
Michael SELLS, “Comments” in Mystical Union in Judaism, Christianity and Islam: An Ecumenical
Dialogue, 1999: 169.
126
Ibid.
277
Levando em conta essas tradições apofáticas, e os casos em que não faz sentido falar
de “substancial”, “essencial” ou mesmo “ontológica”, McGinn adotou o termo unitas
indistinctionis para descrever essa forma de unio mystica entre alguns teólogos medievais,
começando pelas béguines do século XIII.
127
O termo também pode ser aplicado à paradoxal
compreensão de união no sufismo, com seu “discurso de perplexidade”. Ainda que muitos dos
textos desses mesmos místicos proponentes da união de indistinção façam uso de metáforas
de ingestão, metáforas de água ou de vinho, que sugerem união de substância, tais metáforas
não pressupõem uma teologia mística de união substantiva.
Em alguns autores, a compreensão mais radicalmente unitiva da união não é
compatível com a linguagem de substância. Seguindo Plotino, que colocou o Uno além da
“essência” ou substância (ousia) e além do ser (to on), Pseudo-Dionísio e João Escoto Erígena
colocaram a Deidade no plano do “além do ser” (superessentia) e tentaram livrar a Deidade
das noções delimitadoras do ser e da substância. Já os sufis nunca adotaram a linguagem
plotiniana do “além do ser”, mas eles encontraram outra forma para articular uma união não
baseada em substância. Na fanā e baqā, a união não é entre duas substâncias, essências ou
entidades, mas significa a obliteração de uma delas e o preenchimento do espaço psíquico
com outra, uma união no ato de percepção. A auto-revelação da Deidade no coração humano
ocorre na interseção da unidade absoluta e do mundo da criação, no ponto onde a criação flui
para o mundo e, por meio do polimento do espelho do coração humano, é levada de volta para
o divino. Segundo Ibn’Arabī:
O Real está perpetuamente em um estado de “união” (wasl) com a existência
criada ... Isso é indicado por Suas palavras, “Ele está contigo onde quer que
estejas” (57:4), isto é, em qualquer estado que tenhas na não-existência, na
existência, e em todas as qualidades. Tal é de fato a situação.
127
Bernard McGINN, “Comments” in Mystical Union in Judaism, Christianity and Islam: An Ecumenical
Dialogue, 1999: 189.
278
O que acontece com o povo da solicitude, o Povo de Allah, é que Deus lhes
dá a visão e desvela suas intuições até que eles testemunhem esse testemunho.
Isso – isto é, o testemunhar do gnóstico – é o que é chamado de
“união”.
Portanto o gnóstico se torna identificado (ittisāl) com o testemunhar da situação
verdadeira. Então essa união não pode se tornar separação (fasl), tal como o
conhecimento não pode se tornar ignorância.
... Os Homens buscam estar com o Real para sempre em qualquer forma que Ele
se manifeste. Ele nunca cessa de se manifestar nas formas de seus servos
continuamente, portanto o servo está com ele onde quer que Ele se manifeste
continuamente ... O gnóstico nunca cessa de testemunhar a proximidade
continuamente, já que ele nunca cessa de testemunhar as formas dentro de si e
fora de si, e isso não é nada senão a auto-manifestação do Real.
128
Marguerite Porete, por sua vez, embora não utilize a linguagem do
hiperessencialidade, usa um paradigma que tem aspectos semelhantes à tradição sufi e
dionisiana. À medida que o divino é considerado como ser, o mundo e a alma são nada. À
medida que o mundo e a alma são considerados como seres, o divino está para além desse ser,
é nada. A união ocorre dinamicamente apenas enquanto uma das entidades é considerada
como estando além, esvaziada ou transcendendo seu ser e substância.
Na obra de ambos os autores, à medida que se aproxima a união, o sujeito se aproxima
da coincidentia oppositorum, que pode ser expressa tanto como uma presença simultânea de
contraditórios ou, na narrativa, como uma oscilação violenta entre eles. O momento no qual o
transcendente se revela como imanente é o momento da união mística. No momento dessa
união mística, os atributos divinos não são conhecidos por um sujeito não-divino, a distinção
entre Deidade e criação e a dualidade entre amante e amado são desfeitas. Os atributos
aparecem no espelho, e a imagem no espelho é divina no humano e humana no divino.
128
IBN’ARABĪ, Futūhāt (II 480.12 e II 558.27) in The Sufi Path of Knowledge: Ibn al-Arabi’s Metaphysics of
Imagination, 1989: 365/366.
279
Em Ibn’Arabī, a “união” resulta do processo da remoção do véu da ignorância que
obscurece a natureza fundamental da pobreza ontológica humana e o reconhecimento da única
Existência (a aniquilação em Deus). Daí por diante, a subsistência em Deus permite que
místico possa compreender, no vazio de seu coração – o espelho do humano/divino – as
sempre novas manifestações dos nomes e atributos divinos, identificando-se com elas a cada
momento. Para Porete, a união representa o ápice de um processo análogo de reconhecimento
da pobreza e da humildade humanas. Neste processo, o despojamento e a aniquilação da
vontade e do conhecimento criatural resultam na atualização da Trindade gravada na alma
como a marca especular do divino/humano, que traz para a alma a sua liberdade e a sua paz
originais. Em ambos, a união significa a recuperação da consciência de um estado primordial
eterno.
Ao passar para além do discurso, para aquilo que através de seus textos pode ser
caracterizado como um estado unitivo de ser, acontece uma mudança fundamental de
consciência. O centro da consciência parece se deslocar do eu para um ponto além do eu, em
um momento em que nada é discernido como não-eu. Portanto, nesse momento, ou evento de
“desconhecimento” e esquecimento
129
, a experiência está isenta de um senso de eu, não tem a
habitual estrutura “sujeito-objeto” que determina os processos epistemológicos comuns,
segundo a compreensão da tradição intelectual ocidental, a qual, por isso mesmo, vê com
certa desconfiança essas afirmações dos místicos.
Uma outra situação é encontrada nas tradições orientais, em especial no budismo
(especialmente o mahayana), no vedanta (especialmente o advaita) e no taoísmo, que afirmam
a não-dualidade de sujeito e objeto. Nenhum desses sistemas nega completamente o mundo
129
Para um estudo detalhado da consciência mística no estado unitivo ou PCE (o evento de consciência pura),
marcadamente consistente em várias culturas, ver Robert FORMAN (ed.), The Problem of Pure Consciousness:
Mysticism and Philosophy e Robert FORMAN, Mysticism, Mind, Consciousness; para um estudo desse estado
de consciência como uma capacidade inata do ser humano e nas tradições religiosas, ver Robert FORMAN (ed.)
The Innate Capacity: Mysticism, Psychology and Philosophy. Para um estudo dos fenômenos místicos em
relação à fisiologia humana, ver Robert FORMAN (ed.), “Cognitive Models and Spiritual Maps”.
280
“relativo” dualista com o qual estamos familiarizados e que é pressuposto como “senso
comum”, ou seja, o mundo como uma coleção de objetos discretos interagindo causalmente
no espaço e no tempo. As tradições orientais, contudo, afirmam que há uma outra forma, não-
dual, de experienciar o mundo, e que essa outra modalidade de experiência é, de fato, mais
verídica e superior à modalidade dualística que normalmente tomamos por certa.
130
Nesses
sistemas, a natureza não-dual da realidade é revelada apenas naquilo que eles chamam de
iluminação ou liberação (nirvana, moksa, satori etc.). Embora tenha diferentes nomes nos
diferentes sistemas e seja descrita em diferentes termos, tal experiência não pode ser
alcançada ou compreendida conceitualmente. As tentativas intelectuais dão lugar às várias
técnicas meditativas que, segundo se afirma, promovem a experiência não-mediada da não-
dualidade.
131
Esse acontecimento da alma que entra num eterno agora e se torna una com a Deidade
que é puro “Nada” e puro Ser, esse desfazer do sujeito que se nadifica num vazio interno, esse
estado unitivo que resulta não do esforço, mas do abandono de qualquer esforço, enfim, a
pressão da experiência de Deus tal como relatada por místicos apofáticos, parecem requerer
130
David LOY, Nonduality: A Study in Comparative Philosophy, 1998: 3
131
David LOY, op. cit.: 4/5. Loy defende que, a partir da perspectiva da não-dualidade, após tê-la experienciado,
é possível entender a natureza ilusória da experiência dualística e como essa ilusão surge, mas não podemos
alcançar essa compreensão imersos em nossa experiência comum. Segundo o autor, partindo de nossa
experiência dualística usual, ou da nossa compreensão da experiência, não há argumento que possa fornecer uma
prova válida de que a experiência seja de fato não-dual. Ainda de acordo com Loy, toda filosofia é uma tentativa
de compreender nossa experiência, mas o ponto crítico é o tipo de experiência que aceitamos como fundamental,
oposto ao tipo de experiência que precisa ser “explicado”. Loy considera que o epistemólogo ocidental
normalmente aceita como dadas nossas experiências dualísticas familiares, dispensando outros tipos (p.ex., o
samâdhi) como “aberrações filosoficamente insignificantes”. Por outro lado, o epistemólogo oriental enfatiza
mais as várias experiências “paranormais”, incluindo o samâdhi, os sonhos e o que consideram experiências de
liberação. Enquanto o primeiro aceita a dualidade como válida e dispensa a não-dualidade, o segundo aceita a
não-dualidade como revelatória e critica a dualidade como uma interpretação mais comum, mas enganosa,
daquilo que experienciamos.. Trata-se de uma questão de premissas pois “nesse nível não há critérios neutros e
objetivos para avaliar essas duas visões” e a escolha é influenciada pela atitude cultural. Aqueles educados na
tradição empiricista ocidental são mais predispostos a serem céticos frente a tal experiência, preferindo explicar
a não-dualidade em termos de alguma outra coisa que eles sejam capazes de compreender – “por exemplo, como
um ‘sentimento oceânico’ relacionado à memória uterina, uma formulação de Freud”. Em última análise, para
Loy, a crença ocidental de que apenas um tipo de experiência é verídico é perigosamente circular, pois usa
argumentos baseados numa modalidade de experiência para concluir que apenas essa modalidade de experiência
é verídica. Cf. op. cit. 8.
281
uma reformulação da “experiência” tal como normalmente compreendida. A fenomenologia
não acomoda com facilidade essa reformulação, que tem sido discutida por alguns estudiosos.
4.4 – Unitas indistinctionis, uma experiência?
Ao longo desse trabalho salientamos a dimensão apofática do discurso místico de
Marguerite Porete e de Ibn’Arabī. Com isso, à medida que o aspecto não-intencional da
apófase se coloca contra o conceito moderno de experiência
132
– a experiência de algo,
sempre se referindo a um objeto gramatical –, chegamos à questão da experiência e de seu
limite ou, “do seu desfazer em formas do impossível”.
133
Essa é uma questão que hoje está em
debate e que tentaremos sintetizar de forma breve, pois se impõe mais como uma reavaliação
e um questionamento do que como uma argumentação conclusiva.
Na teologia negativa e na antropologia negativa encontramos a articulação de algum
limite absoluto à experiência possível para o sujeito da experiência que pensa e fala. Nelas se
encontra uma confrontação com as incertezas que surgem, quando, em nossa experiência, não
sabemos mais quem somos ou o que desejamos. No centro ou no fundamento da experiência
significativa, caracterizada como “união mística”, está aquilo que, ao final, se furta à
experiência. Então, em certo sentido, a aniquilação do sujeito e o “desconhecimento” de Deus
permanecem além da experiência no sentido em que marcam um limite frente ao qual o ser
que pensa e fala, que é capaz da experiência, seria dissolvido ou desfeito enquanto tal.
134
Lá,
onde a união mística é alcançada, a alma é levada para além de seu ser, de seu pensamento e
132
Aqui nos referimos à compreensão de experiência como experiência de algo. Nesse sentido, ela é sempre
intencional e não pode ser descrita sem a referência a um objeto gramatical. Deve, portanto, ser identificada sob
uma certa descrição, e essa descrição deve incluir uma referência ao objeto da experiência.
133
Thomas A. CARLSON, Indiscretion: Finitude and the Naming of God, 1999: 239.
134
Thomas A. CARLSON, op. cit.: 247.
282
de sua linguagem, que permanecem sempre “do lado de cá” da fronteira além da qual tanto o
pensamento quanto a linguagem não podem passar.
De forma radical, Denys Turner afirma que o que se entende por mística no período
atual normalmente coloca em seu centro a “experiência mística” e isso pode levar a uma
interpretação errônea da tradição mística medieval em termos experiencialistas. Turner
argumenta que o caráter distinto e a relevância da mística medieval está precisamente em sua
rejeição da “experiência mística” e alerta contra o equívoco de se traduzir a tradição medieval
em termos experiencialistas. Para essas tradições místicas medievais, o encontro com Deus se
dá dentro da escuridão divina, numa “nuvem de desconhecimento”, para além de todo
conhecimento e de toda experiência. A linguagem de “interioridade”, de ascensão e de
unidade, que hoje se relaciona à aquisição e ao cultivo de um certo tipo de experiência, era
utilizada por autores medievais precisamente para negar que esses fossem termos descritivos
de “experiência”.
135
Em sua crítica, Turner sugere que apesar da semelhança da linguagem, pois ainda hoje
metáforas similares são utilizadas em relação ao cultivo de um certo tipo de experiência, a
utilização medieval dessas metáforas estava ligada a uma crítica de experiências e práticas
religiosas. Enquanto hoje psicologizamos as metáforas, esvaziando-as de sua dialética, o
escritor medieval com influência neoplatônica usava a metáfora num sentido “apofático”,
rebaixando o valor do “experiencial” e desafiando um certo positivismo da experiência
religiosa. “Enquanto a mente moderna pensa o ‘místico’ em termos de suas experiências
caracterizantes, a mente medieval pensava o místico, ou seja, o secreto, o oculto, como sendo
uma ‘divindade’ que está exatamente oculta da experiência.”
136
Em última análise, Turner
135
Denys TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1999: 4.
136
Ibid.
283
acha que os movimentos mais negativos da linguagem mística não se relacionam a uma
“experiência de ausência”, mas a uma “ausência de experiência”.
137
Michael Sells, por sua vez, argumenta que se as afirmações de não-intencionalidade
dos místicos apofáticos forem levadas a sério e se a experiência é, por definição, intencional,
então necessáriamente a união mística não é uma experiência. Além disso, nenhum dos
místicos medievais falava diretamente de “experiência”. Sells acha que a principal motivação
da linguagem apofática é subverter ou deslocar o objeto gramatical. Ele afirma também que a
noção do não-mediado, que está no núcleo da mística apofática, contradiz a opinião de que
toda a experiência é mediada. Segundo Sells “se é verdade que toda a experiência é
construída, é igualmente verdade que o conceito de experiência é um construto moderno”.
138
Para enfrentar o conflito entre o deslocamento apofático do objeto gramatical e a noção de
que toda a experiência é intencional, Sells prefere abrir espaço no conceito de experiência e
escolher um conceito que sirva para a linguagem apofática, mas que abra essa linguagem ao
campo da investigação crítica.
Em sua leitura, Thomas Carlson acha que quando o discurso místico “apela” para a sua
experiência em termos de “morte ou aniquilação”, ele sinaliza um sentido no qual, como na
morte, o momento místico não pode ser articulado em termos de categorias daquilo que
normalmente conhecemos e expressamos como experiência.
139
Certos momentos místicos se
aproximariam do “impossível” e seriam incomensuráveis com as estruturas e categorias da
experiência comum. Em místicos como Marguerite Porete e Ibn’Arabī, a “causa” de todo
pensamento e linguagem, “aquilo sem o qual” eles simplesmente não são, é um Deus que
137
Denys TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1999: 264.
138
Cf. Mystical Languages of Unsaying, 1994: 214.
139
Carlson, contudo, discorda de Michael Sells quando este afirma que toda experiência requer um objeto. Ele
acha que algumas experiências, como a experiência de ansiedade – que ele analisa a partir de Kierkegaard e de
Heidegger e mesmo de Freud e cujo caso ele acredita estar relacionado com Deus ou com a morte – não possui
um objeto, ou é ocasionada por “nada”. Nesse sentido, a ansiedade subverteria ou deslocaria o objeto gramatical
de uma forma semelhante ao momento apofático descrito por Sells, mas ainda assim permaneceria uma
experiência. Cf. Indiscretion: Finitude and the Naming of God, 1999: 257, nota 14.
284
permanece além de tal pensamento e linguagem, e a união com esse Deus implica a
dissolução daquele que pensa e fala. Para eles, o possível é dado de acordo com o excesso do
“impossível”. “Não se pode decidir se a negatividade desse ‘além’ resulta de um excesso de
presença ou de ausência, de plenitude ou de falta, pois o verdadeiramente excessivo,
precisamente, excede essa distinção.”
140
Nesse sentido, de uma precedência radical, a dádiva incondicional seria irredutível às
condições do pensamento e da linguagem, sinalizando o “impossível” à medida que
permanece não-vislumbrável, não-apresentável e irrepetível para a consciência intencional.
Dentro dessa perspectiva que enfatiza a impossibilidade, a doação radical excederia a
categoria de experiência para a consciência intencional de qualquer eu auto-presente e, na
verdade, “imporia uma ‘contra-experiência’
141
que ‘fornece a experiência daquilo que
140
Thomas CARLSON, Indiscretion: Finitude and the Naming of God, 1999: 246. Aqui Carlson está se
referindo as distinções entre o que chama de “pensadores extáticos” (como Deleuze, Guattari, Kristeva) e
“pensadores da diferença” (como Blanchot, Levinas, Derrida) que pensam o desejo em termos de “falta, ausência
e negação”. Para Carlson, na teologia negativa, a questão entre falta e plenitude se torna indistinguível à medida
que ambas derrotam a auto-presença de qualquer sujeito cognoscente que poderia articular a distinção. “Não se
pode dizer se o excesso de desejo é um excesso de falta ou de plenitude. Em seu excesso, o fim infindável do
desejo, precisamente, excede qualquer distinção simples entre presença e ausência. Esse parece ter sido o insight
de muitos místicos que foram capazes de sustentar que a aridez do deserto e a enchente oceânica, a virgem e a
mãe, são, de fato, indistinguíveis.” Contudo, Carlson acha que essa “indiscrição” é difícil de manter, pois “a
maioria dos pensadores que insistem em um excesso que excede a distinção da presença e da ausência tendem a
pender para um lado ou para o outro”. Ele cita Marion (e Altizer), que tende para um pensamento de plenitude
ou presença, embora afirme que a saturação de presença equivale à ausência. Já Derrida (ou Taylor) tende para
um pensamento de falta e ausência, apesar de sua insistência na “indecidibilidade”. Cf. op. cit.: 247/248, notas 3
e 4.
141
Ao se referir ao “fenômeno saturado”, que parece contradizer as condições para a possibilidade da
experiência, Jean-Luc Marion diz que isso não resulta na pura e simples impossibilidade da experiência. Para ele,
se no fenômeno saturado não há nenhuma experiência de um objeto, devemos imaginar que possa haver uma
contra-experiência de um não-objeto. Contra-experiência, diz ele, não é o equivalente à não-experiência, mas
equivale à experiência de um fenômeno que não é nem notado, nem conservado de acordo com sua objetividade,
e que portanto resiste às condições de objetificação. “A contra-experiência oferece a experiência daquilo que
irredutivelmente contradiz as condições para a experiência dos objetos ... Podemos, portanto, dizer, do fenômeno
saturado, que lá a experiência é fundada.” Cf. Jean-Luc MARION, Being Given: Toward a Phenomenology of
Giveness, 2002: 215. Nesse sentido, o “fenômeno saturado” de Marion se definiria por uma doação
incondicional que dá mais intuição do que aquela que a intenção pode antever ou conceber e não por uma
relativa pobreza ou adequação da intuição. Por meio dessa excessiva doação de intuição, o fenômeno saturado
apaga todo horizonte ao inundar todos os horizontes, e sobrepuja o eu ao permanecer irredutível ao eu. A doação
torna-se originária em todos os sentidos e a consciência torna-se a tela sobre a qual os fenômenos dados se
mostram, ao invés da origem e da medida do pensamento objetivo. Essa relação entre as duas facetas
inseparáveis do fenômeno – intenção e intuição – que se estabelecem no fenômeno saturado pode talvez nos
permitir determinar a terceira via, a via de eminência, onde a teologia mística é realizada. Nela, “Deus
permanece incompreensível, não imperceptível – sem conceito adequado, mas não sem intuição doadora”. Cf. In
Excess: Studies of Saturated Phenomena, 2002: 159/160.
285
contradiz as condições da experiência dos objetos’.”
142
À medida que o “impossível” abre e
sustenta o movimento do possível, a dádiva que se esquiva da experiência ao mesmo tempo
forneceria a experiência, mas, em si, permanece além da experiência.
143
O impossível não é simplesmente oposto ao possível, mas permanece aquilo em torno
do qual o possível sempre circula e para o qual se move, sem chegar. É o desejo sem fim e
incansável da alma que nomeia a possibilidade e, na verdade, é essa própria inacessibilidade
que engendra o pensamento, o discurso e o desejo em sua abertura radical, pois ainda que o
silêncio seja o resultado final desse “impossível”, aquilo que não pode ser falado não pode
também ser silenciado, sinalizando uma possibilidade que nunca pode ser reduzida à realidade
presente.
Tanto a tradição cristã dionisiana quanto a tradição sufi figuram uma relação íntima
entre o abandono das coisas criadas e a dissolução ou morte do eu, e a representação dessa
relação dentro de um movimento de amor e desejo cuja infinitude é sinalizada por meio de
uma linguagem apofática, aberta. Como a alma individual não pode estar presente lá onde a
mais completa união com Deus ocorre, ela não pode diretamente saber, nomear ou representar
a dádiva divina na união.
Em suas linguagens teológicas, que sinalizam um momento do “desconhecimento
místico”, Porete e Ibn’Arabī não podem articular o “lugar” ou o “momento” no qual Deus e a
alma estariam unidos, pois “lá”, o sujeito da linguagem estaria desfeito. É nesse sentido que o
“excesso” de Deus acaba por exceder a distinção de presença e ausência, pois “lá” onde Deus
142
Thomas CARLSON, Indiscretion: Finitude and the Naming of God, 1999: 249
143
Carlson está se referindo aqui aos paradoxos da “dádiva” em termos do “impossível” por Marion e Derrida.
Carlson os vê como indicando uma incomensurabilidade essencial entre a “dádiva” como o “impossível” e a
experiência como pertencente a uma realidade que é ou se torna presente para um sujeito auto-presente. Carlson
acredita que uma fenomenologia da dádiva em termos do impossível nos oferece os meios para uma
consideração da experiência possível em relação aos seus limites constitutivos. Carlson acredita que o domínio
da mística apofática se mostra crucial em relação a essas questões, pois exige tal fenomenologia e ao mesmo
tempo oferece um terreno substancial no qual se pode desenvolvê-la. Cf. Indiscretion: Finitude and the Naming
of God, 1999: 261.
286
se dá mais completamente, a alma criada simplesmente não mais se encontra na presença de
seu pensamento ou linguagem, sendo incapaz dessa distinção. Ao pensamento e à linguagem
que expressam esse desconhecimento místico de Deus só resta uma proliferação infindável de
imagens que circum-ambulam o mistério. O termo final dessa relação permanece para além de
identificação e nunca se torna o conteúdo da experiência cognoscente.
Em última análise, essa experiência paradoxal ou experiência de não-experiência,
144
ou ainda essa contra-experiência dos místicos leva a um questionamento da categoria de
experiência, questionamento que está longe de uma conclusão ou de uma posição definitivas.
Carlson acha que esse ponto pode se perder para aqueles que, dentro dos estudos religiosos,
apelam para a experiência como o padrão primário e inabalável por meio do qual o fenômeno
religioso deve ser identificado, abordado, interpretado e avaliado. Em sua avaliação, nesse
tipo de apelo, “experiência” é utilizada para fundamentar e estabelecer a interpretação,
quando, de fato, deveria desordenar e provocar a interpretação. Especialmente em relação à
mística, Carlson acha que esse apelo é automático e seguro demais. Em sua leitura, no âmago
da experiência mística pode jazer uma certa “não-experiência”, uma certa “impossibilidade”
da experiência para o sujeito da experiência que, para ele, se assemelha a uma “morte” no
âmago da vida. Para o autor, isso marca o impossível e leva-o a considerar a “experiência” à
luz da dádiva e de seus paradoxos.
Concluindo essa discussão, podemos fazer nossas as palavras de Carlson: “Por fim,
penso eu, essa não-experiência no centro da experiência, essa morte no centro da vida,
144
Kevin HART, “The Experience of Nonexperience” in Mystics: Presence and Aporia, 2003: 188. Nesse ensaio,
Hart estuda Maurice Blanchot no contexto da filosofia, teologia e literatura do século XX para clarificar a
diferença entre o que os teólogos chamam de experiência mística e os filósofos pós-modernos chamam de
experiência limite. Blanchot teoriza uma experiência de não-experiência, uma experiência para a qual a literatura
sinaliza inconscientemente, mas que permanece irrepresentável e finalmente, não experienciada: a morte. Hart
tenta mostrar que a experiência de não-experiência pode ser experimentada “não tanto como escuridão, mas
como abertura”, abertura às novas possibilidades da filosofia e da teologia, e abertura à alteridade. Cf. op. cit:
202.
287
fundamentalmente doam: doam ao nosso pensamento e linguagem o seu movimento, ao nosso
desejo a sua força, à nossa experiência a sua possibilidade.”
145
145
Thomas A. CARLSON, Indiscretion: Finitude and the Naming of God, 1999: 262.
288
CONCLUSÃO
Finalizamos agora esse percurso no qual acreditamos ter estabelecido a convergência
do tema da aniquilação mística, entendida como uma antropologia apofática, nos textos de
Marguerite Porete e de Ibn’Arabī. Essa antropologia apofática mostra a pobreza radical como
o mais significativo corolário da união mística – a unio indistinctionis. Na compreensão da
união mística descrita por ambos, a absoluta pobreza ontológica, a aniquilação de todo desejo
e a verdadeira liberdade são temas inter-relacionados. O caráter inefável da união sem
diferença, os aspectos de sua misteriosa realização são expressos numa interação de afirmação
e negação que engloba a ontologia, a dialética e a metáfora. No centro dessa linguagem de
desdizer utilizada para mostrar a união apofática que ocorre in nihilo está uma radical
dialética de transcendência e imanência, na qual o que está totalmente “além” é revelado ou se
revela como mais intimamente “dentro”: dentro dos atos básicos da percepção para Ibn’Arabī,
ou dentro do ato de amor para Marguerite Porete.
Passamos pelo favorecimento que ambos dão à linguagem do amor para expressar a
aniquilação e a união com Deus, em especial do amor erótico, mostrando a centralidade dos
temas eróticos baseados na ode pré-islâmica para o “discurso de perplexidade” dos sufis e de
Ibn’Arabī em especial. Da mesma forma, mostramos a utilização da linguagem do amor
cortês no meio béguine e em Porete, com seu arrebatamento erótico, como o veículo para a
ultrapassagem do eu na apófase do desejo que ela realiza. Ambas as religiões, cristã e
islâmica, têm uma tradição rica e diferente de linguagem erótica que em si merece um estudo
comparativo, o que não era nosso objetivo e permanece por ser realizado.
Delineando a imagem do divino, o momento catafático da teologia de cada um deles,
privilegiamos o momento apofático e o modo de “eminência” de suas teologias místicas, que
289
nega a negação. Essa terceira via vai além da esfera da nomeação, afirmativa ou negativa, na
direção de uma anonimidade inominada. Ela representa uma mudança qualitativa que vai
além da esfera da predicação, onde o nome de Deus não busca determinar o que Deus é, mas
simplesmente se refere a Deus e enaltece Deus.
Se a teologia mística é a busca por um idioma divino, que seria indecifrável e
indizível, na revelação é dada uma linguagem ao idioma divino. Os nomes atribuídos a Deus
funcionam numa economia que circula entre o cifrado e o comunicável, mas muitas vezes
esses nomes adquirem o poder de se apropriarem deles mesmos, de se declararem próprios.
Daí a necessidade da teologia negativa: sua função é nos lembrar que Deus escapa de todos os
programas desenvolvidos por filósofos e teólogos. Enquanto o teólogo “positivo” diz que
Deus é possível e soletra os termos da revelação, o teólogo negativo diz que Deus é
impossível, mostrando que Deus sempre excede o conceito de Deus. Segundo Kevin Hart, é
uma tarefa do pensamento religioso manter o jogo entre o negativo e o positivo, “demonstrar
que o impossível não está em contradição com o possível, eles se arranjam e rearranjam na
forma de uma aporia.”
1
Sem a teologia negativa, o discurso sobre Deus decairia em idolatria, e sem a teologia
positiva, para começar, não haveria nenhum discurso sobre Deus. Marion diz que, por si, a
negação nunca é suficiente para fazer uma teologia, não mais do que a afirmação. Nunca há
um nome próprio ou apropriado para se falar de Deus.
2
Porém, ao negar qualquer
cincunscrição a Deus, a teologia mística não nega ou renuncia a Deus e nem mesmo proíbe o
acesso à presença divina. Elevando Deus acima de todos os nomes, incluindo o nome “ser” ou
o predicado “presença”, ela afirma Deus de forma mais pura. Nela, o nome de Deus protege
1
Kevin HART, The Trespass of the Sign: Deconstruction, Theology and Philosophy, 2000: 296.
2
Jean-Luc MARION, “In the Name: How to Avoid Speaking of ‘Negative Theology’” in In Excess: Studies of
Saturated Phenomena, 2002: 139.
290
Deus da presença, ou como diz Marion, o nome de Deus não é um nome para se dizer, mas
para se escutar. “O Nome não é dito, ele chama.”
3
No desconhecimento místico apresentado por Marguerite Porete e por Ibn’Arabī,
vimos que Deus é Deus somente se Ele se retrai de nosso conhecimento, não só de fato, mas
em princípio. Essa confissão do não-conhecimento não é um simples fracasso para conhecer,
mas é na verdade uma abertura à outra forma de conhecimento na qual o que se conhece de
Deus é a sua incompreensibilidade.
4
Em suas abordagens ontológicas, Deus é uma possessão
da alma, um a priori; a descoberta de Deus é a descoberta de si mesmo, do ser verdadeiro.
Nossos autores mostram a compreensão de que Deus é a fonte e a origem de tudo que
reivindica ser, o que significa que todas as coisas criadas, em última análise, são contingentes,
dependendo de Deus para qualquer substância que possuam. Ainda que em algum sentido elas
sejam algo, sua origem está além de seus próprios poderes, num ato de doação por meio do
qual Deus fornece às criaturas seu ser como dádiva.
Porete e Ibn’Arabī representam a articulação entre Deus e o eu, utilizando uma
linguagem que funciona por meio de silêncios e fracassos. Vimos como, em seus discursos, a
anonimidade da Deidade transcendente implica a dissolução do eu que se dá num abismo
insondável. Enquanto essa pobreza e despossessão do eu, que corresponde à inominabilidade
e incompreensibilidade do “nada” divino, parecem pretender o cessamento de palavras e
imagens, elas na verdade tornam radicalmente abertos o anseio e a linguagem que
caracterizam a relação da alma com Deus.
A mais radical doação de Deus não preencheria ou satisfaria o desejo de tal
forma que o eu desejante pudesse encontrar ou se assegurar de seu
conhecimento de Deus ou de seu desconhecimento; pelo contrário, a doação de
3
Jean-Luc MARION, “In the Name: How to Avoid Speaking of ‘Negative Theology’” in In Excess: Studies of
Saturated Phenomena, 2002: 162.
4
John D. CAPUTO, “Apostles of the Impossible” in God, the Gift and Postmodernism, 1999: 192.
291
Deus provocaria um anseio insuperável que desfaz o eu de si e portanto de seu
conhecimento e desconhecimento. Dessa maneira, um desejo expropriador sem
fim iria junto com a abertura apofática da linguagem que surge da incognoscível
incognoscibilidade de Deus.
5
O inseparável reverso da anonimidade divina é a multiplicidade dos nomes divinos,
que fica ainda mais evidente nas formulações de Ibn’Arabī. A inter-relação da multiplicidade
dos nomes e da anonimidade dentro do anseio e da aniquilação que caracterizam o retorno da
alma para Deus são formulados, em Porete e em Ibn’Arabī, dentro do esquema neoplatônico
clássico de processão, retorno e permanência, um esquema que identifica a origem e o fim da
alma na absoluta simplicidade ou unidade de Deus. A atualização da imagem da Trindade e o
polimento do coração do conhecedor levam a alma para a simplicidade de seu fundo divino,
que permanece além de toda distinção. A permanência se refere à absoluta simplicidade do
divino que, como origem e fim, fica além da emanação e do retorno, ainda que dê lugar a eles.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī descrevem um chamado indeterminado que chama o
“eu” – em sua preexistência – a ser, de uma tal forma que o “eu” não pode ter estado presente
para constituir, dominar e receber o chamado. Antes que o eu seja, o chamado o chama a ser e
nesse sentido o chamado vem antes do Ser. A aniquilação, com seu despojamento da
qualidade criada, permite o retorno da alma ao Uno simples e indeterminado, no qual o eu
verdadeiro preexistia e existe eternamente. Todo esse processo é descrito em termos de uma
contra-experiência de perplexidade, de um evento que não se pode compreender, de algo que
é possível ver, mas que não se pode “designar como um objeto ou como um ser”.
6
Mencionamos que o processo de desconstrução inerente à jornada mística de Porete e
de Ibn’Arabī, que conduz ao evento de consciência pura, pode também ser encontrado em
5
Thomas A. CARLSON, “The Poverty and Poetry of Indiscretion: Negative Theology and Negative
Anthropology”. Christianity and Literature 47, Winter 1998: 178.
6
John D. CAPUTO, “Apostles of the Impossible” in God, the Gift and Postmodernism, 1999: 215.
292
tradições orientais. E não só isso, mas também os traços principais da concepção da “Unidade
da Existência” (Wahdat-al–Wujūd), presente na obra de Ibn’Arabī, são encontrados nas
grandes tradições do pensamento oriental, no hinduísmo vedanta, no budismo mahayana, no
zen-budismo, e também no taoísmo.
7
No Ocidente medieval, vimos como traços da ontologia
da mística do Ser, partilhada pelas béguines, parecem se assemelhar à Wahdat-al-Wujūd.
8
Aqui se abre portanto uma segunda zona de comparação, já sinalizada por Émilie Zum Brunn,
na qual as concepções não só da mística akbariana, mas também as da mística renana, podem,
proveitosamente e evitando comparações fáceis entre Ocidente e Oriente, ser comparadas à
ontologia desses sistemas de pensamento orientais. John Caputo também discorre sobre as
semelhanças que podem ser encontradas entre a mística de Meister Eckhart, que partilhava da
espiritualidade renana, com as formulações do zen-budismo, cujo treinamento também
acontece na esfera do distanciamento e cujo conceito de sunyata reflete um fundo
absolutamente indeterminado, incondicionado, nada em particular, um vazio, de onde tudo
procede e para onde tudo retorna, alcançado apenas por meio da desistência de qualquer
esforço para alcançá-lo.
9
Sem dúvida, tais semelhanças podem também ser aplicadas à
ontologia akbariana.
O mundo em que Marguerite Porete e Ibn’Arabī viveram não existe mais. Não
vivemos mais sob a égide sagrada da era medieval, na qual havia uma conexão clara entre o
conhecimento de Deus alcançado por meio da vida mística e a autoridade que podia ser
reivindicada com base nesse conhecimento especial. Nesse mundo de pensamento, a
existência de Deus era tomada como certa e as preocupações que os místicos expressavam
não são as questões que os filósofos contemporâneos perguntam.
7
Cf. Toshihiko IZUTSU, Sufism and Taoism: A Comparative Study of Key Philosophical Concepts, 1984.
8
Émilie ZUM BRUNN & Alan de LIBERA, Maître Eckhart: Métaphisique du Verbe et Théologie Negative,
1984: 227.
9
John D. CAPUTO, The Mystical Element in Heidegger’s Thought, 1990: 210.
293
É hoje lugar comum dizer que vivemos num mundo vazio de qualquer presença
mística, graças à afirmação de uma razão puramente humana que, ao compreender a si mesma
e ao mundo, visa manipular e dominar esse mundo tecnologicamente – o que podemos ver
hoje acima de tudo na tecnologia da imagem que modela o nosso mundo. Vemos hoje um
modelo de sujeito humano moderno que, por meio de sua afirmação racional e tecnológica,
esvazia o mundo da presença mística. Num mundo onde tudo é disponível, mensurável e
manipulável, há poucos recessos de escuridão ou mistério, nenhuma distância ou
transcendência – uma cultura de “presença total”.
10
Em contraste, nas tradições clássicas da
teologia mística, a criatura humana, em última análise, “era vista não como um senhor auto-
transparente de seu mundo, mas como uma imagem incompreensível de um Deus
incompreensível que se torna visível – como invisível – dentro e através de um mundo
totalmente teofânico”.
11
A era moderna trouxe a liberação do homem, introduziu o subjetivismo e o
individualismo, mas também em nenhum outro momento o não-individual, na forma do
coletivo, foi tão aceito como válido. Há agora um conhecimento mais objetivo e uma
realidade “mais objetiva” do que antes, mas a interioridade subjetiva nunca foi tão precária,
fato comprovado pelo enorme sucesso de manuais de auto-ajuda para sermos nós mesmos,
pela oferta dos mais diversos tipos de terapias que promovem ou prometem um caminho de
introspecção, e por todo o tipo de “espiritualidades” exóticas ou não que sinalizam alguma
transcendência a ser alcançada por meio de práticas meditativas em ambientes saturados por
velas coloridas e incensos. Ironicamente, o sujeito racional e soberano, que conquistou
definitivamente o seu mundo, responde hoje à anonimidade de Deus não com a anonimidade
do sujeito místico que alcançou o fundo comum da alma e de Deus, mas com a anonimidade
do humano que se torna invisível na nova sociedade e na nova consciência de massa.
10
Thomas A. CARLSON, “Locating The Mystical Subject” in Mystics: Presence and Aporia, 2003: 210
11
Thomas A. CARLSON, op. cit.: 207.
294
Marguerite Porete e Ibn’Arabī mostram que o eu, a ipseidade em termos da qual as
pessoas vivem a maior parte de suas vidas, é ilusório. Decerto que eles falam do
desmantelamento do senso de ipseidade criada para alcançar o fundo divino da alma onde o
caráter de ser um “algo” é perdido. Eles tentam descrever aquele ponto da alma no qual ela é
transformada em Deus e, para ambos, a linguagem dessa descrição encontra os limites da
própria linguagem e se rompe na escuridão do desconhecimento. Eles aceitam a perplexidade
desse não-saber o que são e onde se encontram, e conhecem a si mesmos ao não saber sua
diferença de Deus. Para eles, qualquer ipseidade que eles possam definir, não seria a ipseidade
que é transformada na união com Deus. O que eles experimentam nessa união propiciada pela
iniciativa divina da graça é a experiência da perda da experiência do eu.
Contudo, eles são ainda um eu. Eles continuam a possuir os poderes humanos dos
sentidos, da imaginação, do intelecto, da memória e da vontade. Eles continuam a ter
consciência desses poderes e de si mesmos como agentes, pois a graça não destrói a natureza,
mas a aperfeiçoa.
12
A perfeição desses poderes é a sua despossessão, o término de sua
operação autônoma, que os moveria a partir de qualquer outra coisa diferente da ação divina
da graça.
O intelecto, a memória e a vontade – nossos “eus” como agentes – são fora de
dúvida auto-conscientes. Eu sei que eles são “meus”, mas eles não precisam
mais parecer serem meus como distintos do poder divino que agora os move,
como se o fato de serem “meus” dependesse de não serem movidos totalmente
por Deus. Se eles são “meus” poderes – e são – e se eu os movo livremente – e
eu o faço – eu não o faço em oposição ao fato de que Deus os move.
13
12
Denys TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1999: 246.
13
Denys TURNER, op. cit.: 247
295
A união com Deus, que resulta na incapacidade de construir uma ipseidade que não
seja una com Deus em atividade e identidade, não significa que essa ipseidade seja construída
pela exclusão da atividade própria ou identidade numérica da alma. “Se eu não posso ter
nenhuma identidade em contraste com a de Deus, então minha identidade com Deus não pode
se opor à minha identidade comigo.”
14
Na escuridão do desconhecimento, para Marguerite
Porete e para Ibn’Arabī, está o reconhecimento de que nosso centro mais interno e profundo é
Deus. Com esse reconhecimento vem a convicção de que a fonte de onde nossas ações partem
e de onde nos vem a nossa liberdade para amar está em nós, mas não é nossa, não a
possuímos, somos possuídos por ela. Quando as estruturas experienciais da ipseidade se
desintegram e nos descentram, somos levados ao amor divino, onde nos recentramos num
fundo que está além de qualquer possibilidade de experiência.
Nesse novo centro adquirimos a capacidade de nos amar verdadeiramente, pois aí
podemos nos amar com o amor incriado, indiferenciado, de Deus por si mesmo. E se podemos
nos amar assim, podemos amar tudo à nossa volta com o mesmo amor. E se podemos amar
tudo, podemos nos encontrar com a realidade em seus próprios termos e não nos nossos e
espelhar no mundo a compaixão divina que a tudo abarca.
E o que esse sujeito místico da béguine e de al-Shaykh pode hoje nos dizer quanto ao
que significa “ser humano”? A nós que, em algum lugar entre o sujeito em sua auto-
importância, o eu ditador, megalômano, para o qual a individualidade é o valor máximo e a
anonimidade da consciência grupal, das organizações, descobertas e tecnologias, precisamos
seguir nosso curso. A nós que precisamos manter o valor intrínseco do indivíduo e seu direito
de ser ele mesmo como um contraponto à coletivização. Talvez ele possa nos dizer que a
aniquilação não significa perder o eu ou não representa a alienação; que a aniquilação mística
significa uma nova sensibilidade para consigo mesmo, uma sintonia para o que acontece no
14
Denys TURNER, The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism, 1999: 247.
296
“ser interior”; que ela significa a proposta de uma vida livre da possessividade e da tirania
sobre as coisas, uma vida vivida a partir de uma compaixão em relação às coisas, que detecta
nelas uma presença mais profunda e que não segue a usurpação da criação pela criatura; que
não há aí uma destruição do homem, ou do indivíduo, mas uma genuína recuperação da
essência humana; que a descida e a queda vividas na aniquilação representam uma forma mais
profunda de humanidade que tem o Amor no centro de toda a realidade e que pode trazer um
apelo a todos, homens e mulheres, que hoje buscam uma outra compreensão de sua
humanidade.
297
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