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Luciana Villela de Moraes Sarmento
Ticket to ride: as tensões entre contracultura e consumo
nas letras de músicas dos Beatles
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Comunicação Social da
PUC-Rio.
Orientador: Prof. Dr. Everardo Pereira Guimarães Rocha
Rio de Janeiro, janeiro de 2006
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do
trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.
Luciana Sarmento
Graduou-se em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo em
dezembro de 2001 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Dedica-se atualmente a pesquisas no campo da música popular e sua relevância
acadêmica na área de Comunicação Social.
Ficha Catalográfica
Sarmento, Luciana V. de M.
Ticket to ride: as tensões entre consumo e contracultura nas letras dos
Beatles / Luciana V. de M. Sarmento; orientador: Everardo Rocha. Rio de
Janeiro: PUC, Departamento de Comunicação Social, 2006.
1v. 143p.
Dissertação de mestrado - Comunicação Social - PUC-Rio
Incluí referências bibliográficas.
1. Comunicação social, teses; 2. Música popular; 3. Rock and roll ; 4.
Contracultura; 5. Cultura de massa I Rocha, Everardo (Everardo Rocha) II
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Comunicação Social.
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Para meus pais, Rosane e Milton, pelo apoio de sempre nas horas mais difíceis.
Para meus irmãos, Ricardo, Adriana e Cristiana pela minha criação espiritual e
musical.
Para meu namorado Andrei, “por todo amor que houver nessa vida”
Agradecimentos
Ao meu orientador, Everardo Rocha, pela sapiência.
Aos professores do mestrado da PUC-Rio, pelas experiências compartilhadas e
multiplicadas.
À secretária Marise, pela paciência, carinho e incentivo.
À Cecília, pelo amadurecimento.
Ao meu irmão Ricardo e ao meu cunhado Ricardo, por me guiarem textos afora.
À minha tia Angela e à Catarina, pela hospitalidade e acolhimento nas horas
difíceis.
Ao meu primo-irmão Luiz Eduardo, pelas viagens musicais e beatlenianas.
A toda minha família, especialmente meus avós e meus pais, por me ensinarem o
sentido da vida.
Ao meu namorado Andrei, por ter aparecido “bem devagar” na hora certa, no
lugar certo e estar sempre do meu lado.
Aos meus amigos, fiéis companheiros de longas jornadas, que, mesmo quando
estão longe, estão perto.
Resumo
SARMENTO, Luciana. Ticket to ride: as tensões entre contracultura e
consumo nas letras dos Beatles. Rio de Janeiro, 2006. 144p. Dissertação
de Mestrado - Departamento de Comunicação Social, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A contracultura foi um movimento impulsionado pela juventude da década de
1960 que se chocou com a sociedade capitalista e ia contra os seus princípios.
Entretanto, para que este movimento de contracultura pudesse se desenvolver,
ele necessitava da cultura de massa - que pertence à sociedade capitalista - para
se desenvolver e espalhar sua mensagem pelo mundo. São essas tensões entre
consumo e contracultura que são detalhadas nesta dissertação, a partir das letras
das músicas dos Beatles (grupo musical que foi um dos maiores ícones da
contracultura) que retratam, de alguma forma, o universo do consumo.
Palavras-chave
Música popular; Beatles; Rock and roll; Contracultura; Cultura de massa;
Consumo.
Abstract
SARMENTO, Luciana. Ticket to ride: the tensions between the
counterculture movement and consumption in Beatles’ lyrics. Rio de
Janeiro, 2006. 144p. MSc. Dissertation - Departamento de Comunicação
Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The counterculture was a movement impulsed by the young people in the 1960’s
decade that ran into the capitalist society and it’s principals. However, for this
movement to work, it needed the mass culture that belongs to the capitalist
society to spread it’s message around the world. These tensions between the
counterculture movement and consumption are detailed on this dissertation,
inspired on the Beatles’ lyrics (a rock group that was one of the most popular
icons of the countercultere movement) that shows, in some way, the
consumption’s universe.
Key-words
Popular music; Beatles; Rock and roll; Counterculture; Mass culture;
Consumption.
Sumário
1 Introdução 9
2 Cultura de massa 13
3 A Contracultura 29
3.1. Antecedentes 29
3.2. O movimento 35
3.3. Trilha sonora 43
4 The Beatles – mito, produto e discurso 54
4.1. Beatles for sale 54
4.2. Discurso 80
5 Considerações finais e perspectivas futuras 116
6 Referências bibliográficas 119
7 Anexo 121
And in the end, the love you take is equal to the love you make.
John Lennon e Paul McCartney
1
Introdução
Os Beatles venderam no mundo inteiro mais de um bilhão de discos. Esse
número faz da banda recordista em vendas até hoje, trinta e cinco anos após terem
se separado. Além de outros recordes, é dos Beatles a música mais regravada do
mundo. Por isso, é tão importante para o campo da Comunicação Social tentar
compreender o que faz dos Beatles um fenômeno da cultura de massa.
Este é o propósito desta dissertação. As tensões entre consumo e
contracultura presentes nas letras de música dos Beatles serão destacadas para a
compreensão de uma parte de nossa cultura de massa, componente cotidiano da
maioria da população mundial. Este trabalho irá observar como o mercado se
apodera do universo da cultura como um todo, e como isso aconteceu
especificamente com o movimento de contracultura, iniciado na década de 1960.
Para melhor compreensão das relações entre consumo e contracultura, o recorte
cairá justamente sobre os Beatles.
Este estudo está fundamentado em pesquisa bibliográfica e na análise das
letras de música dos Beatles que falam, de alguma forma, de consumo,
contrastando-as com o movimento de contracultura no qual o grupo estava
inserido. Tal movimento consistia, como o próprio nome revela, em se colocar
contra o sistema vigente, o capitalismo, o industrialismo, o consumismo e a
“tecnocracia”. Entretanto, se os Beatles alimentavam e eram alimentados pela
contracultura, eles dependeram do mesmo sistema contra o qual lutavam para se
estabelecerem como um dos maiores fenômenos da cultura de massa no século
XX. São essas tensões e ambigüidades entre o consumo e a contracultura que
serão assinaladas nesta dissertação, a partir de um universo de 42 músicas
selecionadas entre as 218 músicas
1
gravadas pelos Beatles durante sua carreira
oficial que retratam o consumo de forma direta ou indireta (estaremos observando
1
Informação retirada de: <http://www.aboutthebeatles.com>. Acesso em: 4 jan. 2006.
Introdução 10
as representações de dinheiro, de bens de consumo, produtos midiáticos, trabalho,
profissões, entre outros).
Junto com o empresário Brian Epstein e o produtor musical George Martin,
os quatro beatles mudaram os rumos da música. Os processos musicais de
gravação, composição e produção, no início da década de 1960, estavam
fragmentados, em poder de rias pessoas. Por exemplo, havia os compositores,
os intérpretes, os músicos de estúdio, entre outros. Os Beatles assumiram, dentro
da sua música, todos esses processos, centralizando o poder de decisão sobre o
que iria ser gravado e difundido pela cultura de massa. Eles transformaram o rock
and roll no rock e se tornaram porta-vozes de uma geração jovem insatisfeita
com o modo como o Estado conduzia política, econômica, social e culturalmente
o ocidente capitalista – que se utilizou da música para gritar ao mundo suas
insatisfações.
Dois integrantes da banda ainda estão vivos e ativos no meio musical: Ringo
Starr, com 65 anos, e Paul McCartney, com 63; ainda fornecem muito material
para a mídia e continuam gravando composições próprias. No ano de 2005, Ringo
lançou o álbum Choose love e Paul lançou Chaos and creation in the backyard,
ambos com músicas inéditas e aclamados pela crítica e pelo público. Os dois
continuam fazendo shows pelo mundo.
John Lennon foi assassinado em 1980, mas continua atraindo uma legião de
fãs que carregam na memória suas mensagens sobre um mundo melhor, calcado
na paz e no amor. No dia 8 de dezembro de 2005, quando completaram-se 25 anos
da morte de Lennon, o que se assistiu na televisão, nos jornais, nas revistas nos
meios de comunicação de massa como um todo foi uma gama de reportagens,
reapresentações de programas e exibições de documentários ligadas aos Beatles.
George Harrison faleceu de câncer em 29 de novembro de 2002, mas
também não foi esquecido pela mídia, nem pelos s. No ano de 2005, foi
relançado em DVD o Concert for Bangladesh, uma iniciativa do artista para
arrecadar dinheiro no ano de 1971, em Nova York, para a população de
Bangladesh. Sua ligação com a música indiana, particularmente com o músico
Ravi Shankar (músico indiano), foi uma das grandes mudanças observadas na
trajetória do rock durante a década de 1960 e uma das heranças deixadas pelos
Beatles às gerações seguintes.
Introdução 11
Os Beatles continuam vivos e ativos no imaginário das pessoas que
viveram ou não a década de 1960 – e suas músicas contém uma atualidade sobre o
mundo em que vivemos, de forma que são continuamente regravadas e ganham
versões em várias línguas pelos quatro cantos do mundo até hoje. A contribuição
dos Beatles para o mundo da música pop/rock incluindo a musicalidade das
canções, os temas das letras, as relações entre indústria fonográfica e artistas, o
surgimento do videoclipe como um mercado segmentado (relativo aos jovens e ao
rock) e as atitudes frente a um mundo em constante e veloz transformação não
pode passar em branco pelos olhos dos comunicadores.
A escolha do tema parte de uma visão pessoal, da paixão pela sica, pelo
rock, pelos próprios Beatles e também de uma visão como profissional da área de
Comunicação Social. Os produtos culturais da televisão, do cinema, da literatura,
do teatro para citar alguns são constantemente observados como estudo da
Comunicação. Entretanto, a música não recebe a mesma atenção que estes
produtos, ao mesmo tempo em que está presente na vida das pessoas de todas as
classes sociais e faixas etárias e, também, é parte integrante destes mesmos
produtos ela está dentro das novelas, dos filmes, das peças e atua como
referência, em alguns casos, em obras literárias. Portanto, é extremamente
necessário dar ao campo da música a atenção que ele merece dentro dos estudos
de Comunicação. E a escolha pelos Beatles provém do fato da banda ser um
fenômeno quase que incomparável na cultura de massa, em termos de vendas, de
inovações, de influências na vida das pessoas e no campo da música como um
todo.
Este estudo é delimitado
nos países ocidentais capitalistas desenvolvidos, a
partir da segunda metade do século XX, especificamente Estados Unidos e
Inglaterra. É importante ressaltar que esta análise compreende um período curto
de tempo, se relativizado em relação a uma escala maior, como faz Everardo
Rocha, no livro A sociedade do sonho Comunicação, cultura e consumo
(1995:112) a partir de um estudo de Carl Sagan em que ele coloca toda a história
do universo desde o seu surgimento até os dias de hoje na escala de um ano. Nesta
relativização, falar no tipo de sociedade construída a partir da Revolução
Industrial é algo como falar sobre cinco décimos de segundo da história do
universo e a amplitude da nossa sociedade Ocidental é reduzida a uma
miniatura. Portanto, a década de 1960 também pode ser assim relativizada.
Introdução 12
O primeiro capítulo destina-se a entender algumas discussões sobre a cultura
de massa, partindo-se de autores como Theodor Adorno e Max Horkheimer,
Andréas Huyssen, Edgar Morin e Everardo Rocha. As discussões levantadas por
esses autores serão utilizadas ao longo da dissertação para se entender os
paradoxos nos quais os Beatles estavam inseridos e como isso refletiu nas letras
de músicas deles.
O segundo capítulo faz uma contextualização histórica da época, desde o
fim da II Guerra Mundial até o fim da década de 1960.
Serão abordados: o
período de expansão do capitalismo, a consolidação dos jovens como agentes
sociais e mercado consumidor, o surgimento do rock and roll, as revoluções social
e cultural e a ascensão do movimento de contracultura - e como ele adotou o rock
como um de seus ícones/produtos principais.
A história dos Beatles, entendida como um mito e um produto da cultura de
massa, constitui parte do terceiro capítulo. Também nele está inserida a análise
das 43 letras de músicas selecionadas que trazem representações de consumo e
consumo está entendido como algo muito mais amplo do que efetuar uma
compra em uma loja. A noção de consumo foi ampliada, de modo a abranger
produtos midiáticos, bens materiais, representações de trabalho e de profissões,
entre outros assuntos. Dessa forma, pretende-se destacar as tensões entre consumo
e contracultura expressas nas letras de música dos Beatles.
2
Cultura de massa
Desde sua publicação, em 1947, o livro Dialética do Esclarecimento, de
Theodor Adorno e Max Horkheimer, consagrou o termo Indústria Cultural como
uma forma de se dirigir aos meios de comunicação de massa e aos produtos
(formas e conteúdos) por eles veiculados. Os autores condenam o que vão chamar
de Indústria Cultural e defendem a autonomia da arte burguesa. Eles argumentam
que esta não deveria sofrer alterações para ser vendida para a massa, pois tais
alterações implicariam em uma simplificação de forma e conteúdo para que o
grande público pudesse entender e gostar do que estaria sendo transmitido pelos
meios de comunicação de massa.
Adorno e Horkheimer entendiam a comunicação de massa como meio de
difusão de tais ideologias: o rádio e o cinema, principalmente (o cinema foi muito
utilizado para fazer propaganda nazista, e Adorno se preocupava muito com tal
fato). Por isso, vão tentar combater a Indústria Cultural, como modo de evitar que
o nazismo se espalhasse novamente e como meio de chamar atenção para os
espetáculos fascistas que tinham ocorrido na Europa nas décadas de 30 e 40.
Os dois começam criticando a evolução da indústria como um todo. Para
eles, o conceito de esclarecimento não se confunde com o Iluminismo, mas está
relacionado com o século V a.C., quando o homem tenta se libertar do
pensamento mítico/mágico, desenvolvendo a razão. No entanto, Adorno e
Horkheimer defendem a idéia de que a razão tal qual ela se desenvolveu a partir
do Iluminismo e que iria resultar na Revolução Industrial e, posteriormente, nas
I e II Guerras tornou-se instrumento de dominação e que, deveria estar apenas
sob o controle dos dominadores, nunca nas mãos dos dominados:
O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar
completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor consideração
consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautério o último resto de sua
própria autoconsciência. Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é
suficientemente duro para destruir os mitos. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985:
20)
Cultura de massa
14
O mito é uma forma usada pelo homem para explicar o mundo, por medo do
que não conhece, medo da natureza que não domina. Entretanto, os próprios
“mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprio
esclarecimento” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 23). E continuam os
autores:
O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar,
explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito
cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina. (...) O lugar dos
espíritos e demônios locais foi tomado pelo céu e sua hierarquia; o lugar das
práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, pelo sacrifício bem dosado e pelo
trabalho servil mediado pelo comando. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 23)
Em determinado momento, o homem tem que se libertar do pensamento
mágico e conhecer o mundo em que habita e, para isso, ele usa a razão. No
entanto, Adorno e Horkheimer não viram a razão sendo utilizada durante a época
do nazismo. Na realidade, eles afirmam, o homem retorna à barbárie, quando se
utiliza do fascismo, porque ainda não venceu completamente o mito.
A doutrina da igualdade entre a ação e a reação afirmava o poder da repetição à
ilusão de que pela repetição poderiam se identificar com a realidade repetida e,
assim, escapar a seu poder. Mas quanto mais se desvanece a ilusão mágica, tanto
mais inexoravelmente a repetição, sob o título da submissão à lei, prende o homem
naquele ciclo que, objetualizado sob a forma da lei natural, parecia garanti-lo um
sujeito livre. O princípio da imanência, a explicação de todo acontecimento como
repetição, que o esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é o princípio
do próprio mito. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 26)
Assim, Adorno e Horkheimer também condenam a mímesis a
representação, a imitação, a cópia não perfeita. O comportamento mimético seria
utilizado pelo homem “primitivo” para se defender da natureza que não
controlava, assim, opondo-se ao caminho da razão (que busca sempre conhecer
para poder controlar). Portanto, a razão que o homem pensou ter adquirido a partir
do Iluminismo, segundo os dois autores, é apenas ilusória, que ele continua a
utilizar o comportamento mimético, empregando tal mesis também na indústria
como um todo e particularmente na Indústria Cultural. Dessa forma, a crítica à
mímesis alega que esta também é uma volta à barbárie e ao pensamento mítico,
pois passa longe do caminho da razão.
Cultura de massa
15
Vemos a mímesis presente no trabalho do operário nas indústrias a
repetição de movimentos para realizar tarefas isoladas dentro da fábrica,
obedecendo a divisão do trabalho; e também sua crítica no filme Tempos
Modernos (1936), de Charles Chaplin, onde ele interpreta um operário que, de
tanto fazer os mesmos movimentos enquanto trabalha, acaba se confundindo com
a máquina. Portanto, o homem, a partir do momento em que passa a se guiar pela
razão e pelo logos, substitui a fonte dominadora: antes era a natureza; agora é a
própria razão, o próprio esclarecimento. Como continuam Adorno e Horkheimer:
A essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os
homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a
natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte
sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados
amadurece a sementeira da nova barbárie. Forçado pela dominação, o trabalho
humano tendeu sempre a se afastar do mito, voltando a cair sob o seu influxo,
levado pela mesma dominação. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 42)
E o que é observado na Indústria Cultural senão a própria mímesis e a
formação de uma mitologia contemporânea? Por isso, os dois autores insistiram
tanto em condená-la. No capítulo A Indústria Cultural: O esclarecimento como
mistificação das massas há, logo no início, uma crítica ferrenha à própria indústria
como um todo: “Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de
semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é
coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. Até entoam o mesmo louvor do
ritmo de aço” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 113).
A mímesis na Indústria Cultural é encontrada não somente na questão da
representação, como também na multiplicação do número de produtos por meio
das tecnologias. O cinema, por exemplo, é feito para ser distribuído em grande
número de cópias, senão não consegue pagar o seu próprio custo de produção e
muito menos gerar lucros, que é o que visa a Indústria Cultural, segundo os dois
autores.
Aliás, a questão dos produtos da Indústria Cultural serem vendidos é outro
motivo de crítica de Adorno e Horkheimer ao sistema dos meios de comunicação
de massa:
O cinema e o dio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que
não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a
Cultura de massa
16
legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como
indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais
suprimem toda dúvida quanto à necessidade real de seus produtos. (ADORNO e
HORKHEIMER, 1985: 114)
E daí por diante não cessam mais de criticar a Indústria Cultural e a
sociedade por ela envolvida. Dizem que: “a atitude do público que, pretensamente
e de fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua
desculpa” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 115) e que, portanto, o público
não é o único culpado por consumir os produtos da Indústria Cultural isso
apenas faz parte do sistema como um todo. E os dois vão além quando dizem que
a técnica é um poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a
sociedade. Assim, quando ela é utilizada também nos produtos culturais
veiculados pelos meios de comunicação de massa, os economicamente mais fortes
estão exercendo seu poder sobre a população.
Mas as críticas feitas por Adorno e Horkheimer aos produtos da indústria
cultural não se limitam a sua forma, a sua reprodução em massa; eles também
criticam o seu conteúdo, como podemos observar:
Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem
ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele
próprio derivado deles e varia na aparência. Os detalhes tornam-se fungíveis. A
breve seqüência de intervalos fácil de memorizar, como mostrou a canção de
sucesso; o fracasso temporário do herói, que ele sabe suportar como good sport que
é; a boa palmada que a namorada recebe da mão forte do astro; sua rude reserva em
face da herdeira mimada são, como todos os detalhes, clichês prontos para serem
empregados arbitrariamente aqui e ali e completamente definidos pela finalidade
que lhes cabe no esquema. Confirmá-lo, compondo-o, eis aí sua razão de ser.
Desde o começo do filme já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao
escutar a música ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os
primeiros compassos, de adivinhar o desenvolvimento do tema e sente-se feliz
quando ele tem lugar como previsto
2
. O número médio de palavras da short story é
algo em que não se pode mexer. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 117)
Contra a mímesis nos produtos da Indústria Cultural, os autores defendem a
autonomia da arte burguesa: que ela não seja dependente, nem veiculada pelos
meios de comunicação de massa. Defendem também a idéia de que a mistura
entre a “arte séria” e a “arte leve” (para utilizar os termos que os autores
empregam no texto) só traz malefícios a ambas:
2
Grifo nosso.
Cultura de massa
17
A arte séria recusou-se àqueles para quem as necessidades e a pressão da vida
fizeram da seriedade um escárnio e que têm todos os motivos para ficarem
contentes quando podem usar como simples passatempo o tempo que não passam
junto às máquinas. A arte leve acompanhou a arte autônoma como uma sombra.
Ela é a má consciência social da arte séria. O que esta – em virtude de seus
pressupostos sociais perdeu em termos de verdade confere aquela a aparência de
um direito objetivo. Essa divisão é ela própria a verdade: ela exprime pelo menos a
negatividade da cultura formada pela adição de duas esferas. A pior maneira de
reconciliar essa antítese é absorver a arte leve na arte séria ou vice-versa. Mas é
isto que tenta a indústria cultural. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985:127)
Adorno e Horkheimer defendem a pureza da arte burguesa, indicam que ela
não deve se misturar com a “arte leve” e são definitivamente contra os produtos
híbridos que a cultura de massa pode produzir. Por outro lado, nota-se,
paradoxalmente, que a compulsão por uma pureza por parte dos dois autores,
ao mesmo tempo em que eles estão escrevendo contra o nazismo, que defendia a
pureza de raças.
Entretanto, na atualidade, essa postura não consegue abranger mais as
hibridações presentes nos produtos da cultura de massa. No momento em que a
globalização se torna cada vez mais ampla homogeneizando e, ao mesmo
tempo, incentivando o desenvolvimento das diferenças –, é quase impossível
pensar em algo totalmente puro, que não seja híbrido, que não tenha se misturado
ou sofrido influências de algum lugar e de algum tempo. Portanto, nesta
conjuntura, torna-se obsoleto falar na oposição entre a “arte séria” e a “arte leve”,
como cita Andreas Huyssen, no seu livro Memórias do Modernismo:
As fronteiras entre a alta arte e a cultura de massa se tornaram cada vez mais
fluidas, e devemos começar a ver este processo como uma oportunidade, ao invés
de lamentar a perda de qualidade e a falta de ousadia. muitas tentativas bem-
sucedidas feitas por vários artistas de incorporar formas de cultura de massa em
seus trabalhos, e certos segmentos da cultura de massa têm cada vez mais adotado
estratégias vindas da alta-arte
3
. (HUYSSEN, 1997: 11)
Huyssen chama essa tensão entre a alta arte e a cultura de massa de o
Grande Divisor, discurso que predominou durante muito tempo nas discussões
sobre comunicação. Ele diz que Adorno foi um dos teóricos que mais defendiam o
Cultura de massa
18
conceito desse Grande Divisor. Entretanto, enxerga por trás dos trabalhos de
Adorno alguns importantes impulsos políticos – a necessidade de defender a
autonomia da alta arte do totalitarismo e dos espetáculos de massa que o fascismo
realizava pela Europa nos anos 30 e 40. De qualquer forma, Huyssen argumenta
que o discurso do Grande Divisor é algo que se esgotou e inicia uma análise
sobre as vanguardas do início do século XX. Na sua concepção, tais vanguardas já
propunham uma visão diferente daquela que separava alta arte e cultura de massa,
que não integrava a arte na vida, que colocava a arte como algo a ser admirado e
“auratizado”
4
:
As barreiras artificiais entre trabalho e lazer, produção e cultura seriam eliminadas.
Estes artistas (os vanguardistas) não queriam uma arte meramente decorativa que
concedesse um brilho ilusório a um cotidiano crescentemente instrumentalizado.
Eles queriam uma arte que interviesse no cotidiano sendo tanto útil quanto bonita,
uma arte de demonstrações e festividades de massa, uma arte ativa em objetos e
atitudes, na vida e nas roupas, na fala e na escrita. (HUYSSEN, 1997: 34)
As vanguardas históricas do início do século XX, segundo Huyssen,
propunham uma arte que acabasse com a dicotomia arte/vida, defendida pelo
discurso do Grande Divisor, dada pela tensão entre a alta arte e a cultura de
massa. Além disso, queriam uma arte que pudesse intervir nas transformações do
mundo para melhor ainda havia a crença no progresso e na tecnologia, antes do
fim da II Guerra Mundial. Por isso, os vanguardistas utilizavam também em sua
arte a tecnologia – tanto como forma de demonstrar o encantamento com o que ela
poderia proporcionar, o progresso que ela poderia trazer, mas também como
forma de chocar os burgueses, que utilizavam-na em suas indústrias. Entretanto,
as vanguardas não conseguiram atingir seu objetivo. Quem consegue, mais tarde,
na segunda metade do século XX, abolir a dicotomia arte/vida, ou seja, integrar
realmente a arte no cotidiano da vida, é a cultura de massa. Mas ela não realiza o
sonho das vanguardas de utilizar esta arte para mudar o mundo:
3
Grifo nosso. Veremos mais tarde o modo como o rock and roll se utiliza de instrumentos
considerados da alta arte, proveniente da música clássica, e como isso resulta num novo produto,
não necessariamente inferior, como defendem Adorno e Horkheimer.
4
Aura: “(...) figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de
uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma
cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que proteja sua sombra sobre nós, significa
respirar a aura dessas montanhas, desse galho” (BENJAMIN, 1985: 170). Walter Benjamin
destaca, no texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica como a indústria cultural
altera a aura da obra de arte, trazendo-a para o cotidiano das pessoas.
Cultura de massa
19
Não só a vanguarda histórica é coisa do passado, mas é também inútil tentar
revivê-la sob qualquer forma. Suas invenções artísticas e suas técnicas foram
absorvidas e cooptadas pela cultura de mass media ocidental em todas as suas
manifestações, de filmes de Hollywood, televisão, design industrial e arquitetura
até a estetização da tecnologia e a estética da mercadoria. O lugar legítimo de uma
vanguarda cultural que carregava as esperanças utópicas de uma cultura de massa
emancipadora sob o socialismo foi gradualmente preenchido com a ascensão da
cultura de massa midiatizada e suas indústrias e instituições de apoio. (HUYSSEN,
1997: 37)
Assim, Huyssen segue analisando a cultura de massa como o outro, a
sombra, o espectro da alta arte. E ressalta que ela, desde o século XIX, começa a
ser vista como, de alguma forma, associada à mulher, ao feminino (enquanto a
cultura real é ligada ao mundo masculino) e, por isso, sempre marginalizada,
degradada:
De qualquer forma, a representação de uma cultura de massa inferior como
feminina caminha de braços dados com a emergência da mística masculina no
modernismo (especialmente na pintura), o que tem sido exaustivamente
documentado pelas teóricas feministas. O que é interessante na segunda metade do
século XIX, porém, é um certo efeito-chave de significação: da obsessivamente
declarada inferioridade da mulher como artista (...) à associação da mulher com a
cultura de massa (...) e daí para a identificação da mulher com as massas em termos
de ameaça política. (HUYSSEN, 1997: 49)
A cultura de massa identificada com o feminino traz a necessidade de se
resistir à tentação interna ao seu encanto, seu envolvimento, sua sensualidade o
medo de se perder em ilusões, sonhos e consumo. E a partir do momento em que
ela é também identificada com as massas, levanta um grande temor na burguesia:
que as massas se revoltem, que queiram assumir o controle dos meios de produção
e que desenvolvam uma cultura tão misturada no cotidiano, na vida, tão
“desauratizada” (BENJAMIN, 1985) como são os produtos da cultura de massa.
Hoje, como afirma Huyssen, é inútil se ater a essa discussão sobre os
perigos que a cultura de massa oferece. A partir dos anos 60, os movimentos
artísticos, como a Pop Art, voltam a desconstruir e questionar a alta arte,
propondo uma arte que faça parte da vida, mas que, no entanto, não tem poder de
transformar o mundo. Coincidência ou não, tais movimentos despontam
juntamente com a emergência do movimento feminista, com o surgimento das
mulheres como grandes artistas e “com a concomitante reavaliação de formas e
Cultura de massa
20
gêneros de expressão cultural tradicionalmente desvalorizadas (como por exemplo
as artes decorativas, os textos autobiográficos, as cartas, etc.).” ( HUYSSEN,
1997: 61) E continua Huyssen:
Se a Pop Art chamou nossa atenção para o imaginário do cotidiano, querendo que a
separação entre alta e baixa artes fosse eliminada, então hoje a meta do artista é
romper a torre de marfim da arte e contribuir para uma mudança do cotidiano. (...)
não mais aceitando a separação entre o filosófico e o não-filosófico, o alto e o
baixo, o espiritual e o material, o teórico e o prático, o cultivado e o não-cultivado;
e não planejando apenas uma mudança no Estado, na vida política, na produção
econômica e nas estruturas judicial e social, mas também uma mudança no
cotidiano. (HUYSSEN, 1997: 116)
Assim, Huyssen conclui que o discurso do Grande Divisor torna-se cada
vez menos influente nas produções teóricas e que a emergência das mulheres no
mercado e na vida social, a partir do feminismo da década de 1960, intensifica a
decadência da separação entre arte e vida:
(...) a presença pública e visível das mulheres como artistas na alta arte, tanto
quanto a emergência de novos tipos de mulheres performers e produtoras na
cultura de massa, que fazem com que a velha estratégia de representação de gênero
tenha se tornado obsoleta. A atribuição universalizante de feminilidade à cultura de
massa sempre dependeu da exclusão real das mulheres da alta cultura e de suas
instituições. Tais exclusões são, na contemporaneidade, coisa do passado. Dessa
forma, portanto, a velha retórica perdeu seu poder de persuasão porque as
realidades mudaram. (HUYSSEN, 1997: 65)
Quem também defende a idéia de que a cultura de massa é associada aos
valores femininos é Edgar Morin, em seu livro Cultura de Massas no Século XX
O Espírito do Tempo. Ele exemplifica isso com o fato de não haver setores
especificamente masculinos na cultura de massa (atualmente eles começam a
despontar com mais freqüência, mas ainda são minoria). Comparando com o setor
feminino, que é enorme - composto por revistas, programas de rádio e televisão,
dicas culinárias e de beleza, temas como amor, lar, conforto o setor masculino é
extremamente restrito e se resume mais a temas como agressão, aventura,
homicídio, entre outros. Um programa de televisão ou uma revista
especificamente direcionados aos homens são casos ainda hoje isolados. E Morin
continua, falando do rosto da mulher na capa da revista – a cover girl
5
:
5
Cover Girl é o termo utilizado para indicar a mulher que está na capa da revista.
Cultura de massa
21
Se o rosto da mulher e não do homem impera na revista feminina, é porque o
essencial é o modelo identificador da mulher sedutora, e não o objeto a seduzir. Se
na grande imprensa periódica a mulher eclipsa igualmente o homem, é porque ela
ainda é sujeito identificador para as leitoras, enquanto ela aparece como objeto de
desejo para os leitores. Essa coincidência da mulher-sujeito e da mulher-objeto
assegura a hegemonia do rosto feminino. É o reino, não da mulher sujeito-
objeto, mas dos valores femininos no seio da cultura. Não o modelo
identificador masculino que se imponha concorrentemente
6
. (MORIN, 1967: 150)
Nesse livro, Morin critica o termo cultura de massa (mas ainda assim
utiliza, constantemente, o termo), dizendo que ele é limitado, pois nossa sociedade
é industrial, capitalista, técnica, burocrática, de classes, burguesa, individualista,
etc. E ainda descreve o percurso da cultura de massa no século XX, alegando que
ela, como nenhuma outra forma de cultura que existiu antes, conseguiu integrar a
arte na vida.
Não dúvida de que, o livro, o jornal eram mercadorias, mas a cultura e a vida
privada nunca haviam entrado a tal ponto no circuito comercial e industrial, nunca
os murmúrios do mundo antigamente suspiros de fantasmas, cochichos de fadas,
anões e duendes, palavras de gênios e de deuses, hoje em dia músicas, palavras,
filmes levados através de ondas não haviam sido ao mesmo tempo fabricados
industrialmente e vendidos comercialmente. Essas novas mercadorias são as mais
humanas de todas, pois vendem a varejo os ectoplasmas da humanidade, os amores
e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da alma. (MORIN, 1967:
15/16)
Além disso, o autor explica que a cultura de massa é “projetiva” e
“identificativa” e isso constitui grande parte de sua força. Ela é identificativa,
porque veicula valores como amor, lar, bem-estar, conforto, beleza, entre outros,
com os quais o público pode se identificar; e é projetiva quando transmite valores
como aventura, agressão, homicídio, que a maioria não pode experimentar
efetivamente em sua vida, mas pode projetar nos filmes, músicas, programas de
televisão, contos, etc., onde os personagens podem transgredir a lei e se aventurar
sem preocupações, porque não estão no mundo real.
A cultura de massa também desenvolve uma “dupla consciência” nas
pessoas: ao mesmo tempo em que elas se distraem, ficam absortas e desligadas.
Entretanto, ao entrar no imaginário de um filme, por exemplo, elas têm a
6
Grifo do autor
Cultura de massa
22
consciência de aquilo é um filme, e não a realidade “o imaginário permanece
conhecido como imaginário” (MORIN, 1967: 81). E continua Morin:
Esse universo imaginário adquire vida para o leitor se este é, por sua vez, possuído
e médium, isto é, se ele se projeta e se identifica com os personagens em situação,
se ele vive neles e se eles vivem nele. um desdobramento do leitor (ou
espectador) sobre os personagens, uma interiorização dos personagens dentro do
leitor (ou espectador), simultâneas e complementares, segundo transferências
incessantes e variáveis. Essas transferências psíquicas que asseguram a
participação estética nos universos imaginários são, ao mesmo tempo, infra-
mágicas (eles não chegam aos fenômenos propriamente mágicos) e supramágicos
(eles correspondem a um estágio no qual a magia está superada). (...) Em outras
palavras, eu não defino a estética como a qualidade própria das obras de arte, mas
como um tipo de relação humana muito mais ampla e fundamental. (MORIN,
1967: 82)
Os conteúdos imaginários, segundo o autor, se manifestam, na sociedade
atual, principalmente através dos espetáculos, é por meio do estético que se realiza
o consumo imaginário. E este incita o consumo real:
O que constitui a originalidade, a especificidade da cultura de massa é a direção de
uma parte do consumo imaginário, pela orientação dos processos de identificação,
para as realizações. Nas sociedades ocidentais esse desenvolvimento do consumo
imaginário provoca um aumento da procura real, das necessidades reais (elas
mesmas cada vez mais embebidas do imaginário, como as necessidades de padrão
social, luxo, prestígio); o crescimento econômico caminha num sentido que teria
parecido incrível há um século atrás: realizar o imaginário. (MORIN, 1967: 176)
A concepção de felicidade criada pela cultura de massa envolve valores que
são externos ao indivíduo, para que este possa não apenas consumir os produtos,
mas também consumir sua própria vida nas produções da cultura de massa,
através dos movimentos de projeção e de identificação já indicados acima.
Morin descreve a indústria cultural no segundo capítulo deste mesmo livro
e, ao contrário de Adorno e Horkheimer, privilegia seu status na sociedade
contemporânea. Ele argumenta que a padronização que a indústria cultural exige
busca no pensamento racional a divisão do trabalho, presente em qualquer sistema
industrial. Alega que isso não torna a indústria cultural inferior, mas que cria uma
tensão entre a padronização e a individualização que a leva a um termo médio
nas palavras do próprio autor, a indústria cultural se aproxima da mediocridade,
no sentido exato da palavra, ou seja, no sentido do que é médio, não
pejorativamente. E Morin continua sua defesa da cultura de massa:
Cultura de massa
23
Ao mesmo tempo que repugna à alta cultura desprestigiar seus valores, a cultura
industrial tende a integrar bem demais em seus moldes as formas e os conteúdos de
que se apropria. portanto, ao lado da democratização propriamente dita
(multiplicação pura e simples), uma vulgarização (transformação tendo em vista a
multiplicação) (...). O digest moderno, diversamente do resumo que é um auxílio
para a memorização, substitui a obra lenta e densa pela condensação agradável e
simplificadora.
7
(MORIN, 1967: 58)
O autor explica, ainda, os meios de se vulgarizar, aclimatar as obras de “alta
cultura” na cultura de massa, tornando-as híbridos culturais. São eles:
simplificação, maniqueização, atualização e modernização. Tais produtos bridos
provenientes da cultura de massa são os mesmos os quais Adorno e Horkheimer
tinham dificuldade de trabalhar por defenderem a pureza e a autonomia da obra de
arte burguesa. Mas esta pureza é, hoje em dia, praticamente impossível de se
encontrar nas produções culturais do mundo inteiro, visto que a tecnologia e a
cultura de massa contribuem para um mundo cada vez mais globalizado.
O autor ainda desenvolve a idéia de que a cultura de massa é uma cultura de
lazer, ou seja, o tempo em que o trabalhador não está na fábrica, não é mais um
tempo de repouso e recuperação, mas um tempo para consumir o que ele
considera o seu entretenimento, a distração de todos os seus problemas da vida
real. Por isso, o fator projetivo da cultura de massa, também descrito por Morin, é
tão importante, que ele proporciona ao trabalhador realizar aventuras e viagens
que ele nunca poderia fazer nas suas férias, por exemplo. Também as próprias
férias tornam-se momento de consumo, como cita o autor:
O turista não é apenas um espectador em movimento. Ele não se beneficia apenas
(sobretudo quando circula de automóvel) de uma volúpia particular que vem da
consumação do espaço (devorar os quilômetros)
8
. (...) Por algumas compras de
objetos simbólicos tidos como souvenirs Torre de Pisa em miniatura, cinzeiros
figurativos e outras bugigangas do gênero ele se apropria magicamente da
Espanha ou da Itália. Enfim, ele consome o ser físico do país visitado, na refeição
gastronômica (...). (MORIN, 1967: 77)
Assim, a cultura de massa se assume como globalizante e se apropria de
quaisquer manifestações culturais que possam aparecer, utilizando o mecanismo
7
Grifo do autor.
8
Grifo do autor.
Cultura de massa
24
de vulgarização descrito acima para aclimatá-la e torná-la consumível por todo o
globo:
Efetivamente, a cultura de massa é, em sua natureza, a-nacional, a-estatal,
antiacumuladora. Seus conteúdos essenciais são os das necessidades privadas,
afetivas (felicidade, amor), imaginárias (aventuras, liberdades), ou materiais (bem-
estar). Mas é precisamente isso que constitui sua força conquistadora. Em toda
parte onde o desenvolvimento técnico ou industrial cria novas condições de vida,
em toda parte onde se esboroam as antigas culturas tradicionais, emergem as novas
necessidades individuais, a procura do bem-estar e da felicidade. (MORIN, 1967:
166)
Outra análise sobre a cultura de massa que será válida para esta dissertação
está no livro A sociedade do sonho Comunicação, cultura e consumo, onde
Everardo Rocha observa os produtos da Indústria Cultural por um viés
antropológico. O autor descobre, dentro do mundo dos programas de televisão,
filmes, anúncios, músicas, etc, uma outra sociedade que não a nossa própria,
classificada como “sociedade do sonho”. A partir daí, Rocha propõe uma análise
dessa sociedade como se não estivéssemos acostumados com ela, através do olhar
antropológico-relativista, para tentar descobrir as características dessa sociedade
intrínseca aos meios de comunicação de massa:
Vamos começar a conhecer o significado do mundo mágico de imagens, palavras,
sons, movimentos e cores através do qual os Meios de Comunicação invadem
nosso cotidiano. Vamos discutir idéias a respeito deste universo de produções
simbólicas. Entender a lógica e a mágica dessa Indústria Cultural que organiza,
encanta, engana, traduz, enfim, nossa experiência de ser no mundo, ao reproduzir
esta espécie de vida em paralelo que nos envolve a todos e a cada um, nosso tempo
e lugar. (ROCHA, 1995: 23)
Para dar sentido ao mundo, o homem sempre precisou explicar os
fenômenos naturais de alguma forma. As culturas tribais criavam mitos e deuses
para dar conta de tal tarefa. Entretanto, a partir do Iluminismo, a mitologia foi
substituída pela razão (ou seria a própria razão a nova mitologia do homem?)
9
. O
avanço tecnológico, impulsionado pelo pensamento racional, colocou o próprio
homem como o centro de seu mundo. A ciência e a razão substituíram a magia e a
mitologia como formas de compreensão e controle da natureza e do universo. A
9
Analisaremos mais este tópico quando falarmos no Mito da Consciência Objetiva (ROSZAK,
1972), no próximo capítulo.
Cultura de massa
25
partir do estudo do próprio corpo, o homem pôde criar curas para as doenças; a
eletricidade foi dominada e direcionada para onde ele quisesse. Assim, um novo
mundo foi criado ao redor do homem, utilizando sempre a razão para explicar os
acontecimentos e os fenômenos alheios a sua vontade.
É nesse momento de desenvolvimento da razão junto com a ciência que o
homem deposita todas as suas esperanças de um mundo melhor, baseado nos
avanços tecnológicos, nos estudos sobre as curas para o corpo e na melhoria da
qualidade de vida a partir da organização das cidades com melhores condições
sanitárias. Este é o momento do desenvolvimento do capitalismo, da Revolução
Industrial, da diminuição das distâncias físicas – através da construção de estradas
de ferro, do surgimento do automóvel e do avião e também através da
comunicação: a partir do telégrafo, do telefone e, mais tarde, dos meios de
comunicação de massa. Erick Hobsbawn explica:
A guerra, com suas demandas de alta tecnologia, preparou vários processos
revolucionários para posterior uso civil, embora um pouco mais do lado britânico
(depois assumido pelos EUA) que entre os alemães com seu espírito científico:
radar, motor a jato e várias idéias e técnicas que prepararam o terreno para a
eletrônica e a tecnologia de informação do pós-guerra. (HOBSBAWN, 1995: 260)
Da mesmo forma que traziam o progresso, esses avanços tecnológicos
foram utilizados para destruição de cidades e vidas nas grandes guerras da
primeira metade do século XX. É exatamente nesse momento, do início da
desilusão humana com a tecnologia, que os meios de comunicação de massa
começam a se desenvolver: a expansão do rádio, o surgimento da televisão, a
amplificação do cinema, etc. E é dentro dos meios de comunicação de massa o
que nos é mostrado na televisão (novelas, desenhos animados, propagandas, entre
outros) e nos filmes, o que é contado nas músicas que ouvimos, e até mesmo a
própria imagem que se forma dos artistas (atores, cantores, apresentadores,
celebridades, enfim) que começa a se construir a “sociedade dentro da
Comunicação de Massa” (ROCHA, 1995). Uma sociedade totalmente contrária à
nossa, uma sociedade às avessas:
Nela como no mito passado, presente e futuro perdem o sentido costumeiro.
(...) O estilo de praticar temporalidade dentro da Comunicação de Massa estabelece
Cultura de massa
26
irremediavelmente sua aproximação com a cultura do “outro” e da “exclusão”
10
.
(ROCHA, 1995: 164)
A questão do ‘tempo’ é apenas uma das desenvolvidas por Rocha.
Diferentemente do ‘historicismo’ onde as coisas acontecem a partir do modelo
causa/conseqüência, traduzidas em uma caminhada em direção a um mundo
melhor e mais desenvolvido na “sociedade dentro da Comunicação de Massa” o
tempo é cíclico chamado de ‘tempo totêmico’ como é das sociedades sem
escrita, excluídas anteriormente para dar lugar a nossa própria sociedade
ocidental.
Outra característica da nossa sociedade, segundo Rocha, é o
‘individualismo’, traduzida na “sociedade dentro da Comunicação de Massa”
como ‘holismo’: uma espécie de teia, onde todos se conhecem, se ajudam, vivem
em harmonia e pensam no próximo. No lugar de indivíduos, vemos os problemas
serem resolvidos pelo todo:
Assim, em vez de uma visão “psicológica”, “comportamental” e “individualizante”
do consumo ou do consumidor, a tendência expressa pela Comunicação de Massa
(instrumento poderoso de socialização para o consumo) é a de uma “antropologia”
do pertencimento a grupos, castas, totens, famílias, linhagens ou alguma outra
forma qualquer de unidade sociológica. Consumimos para fazer parte de grupos
determinados e, no mesmo gesto, nos diferenciarmos de outros grupos, numa
lógica complementar e distintiva muito próxima das classificações totêmicas
11
.
(ROCHA, 1995: 172)
Outra questão importante em nossa sociedade, o ‘poder’ organizador dos
grupos, leis e regras é transformado na “sociedade dentro da Comunicação de
Massa”. Nesta, o poder não é exercido através da violência e do Estado, sendo
substituído pela ‘persuasão’ (instrumento por excelência da publicidade), que
aproxima esta sociedade das sociedades antigas, mais uma vez. E Rocha nos
explica que:
(...) esse processo é logicamente possível porque os atores sociais da cultura de
dentro representam e atualizam constantemente sua própria persuasão. Persuadir
para fora só é viável porque primeiro a persuasão acontece dentro
12
.(ROCHA,
1995:189)
10
Grifo do autor.
11
Ou seja, próxima das sociedades antigas, dos povos sem escrita.
12
Grifo do autor.
Cultura de massa
27
A última característica observada pelo autor é o ‘produtivismo’, essencial
para a construção e manutenção da Sociedade Industrial, que é substituído na
“sociedade dentro da Comunicação de Massa” pelo ‘ócio’. Aproximando
novamente a sociedade de dentro da Indústria Cultural dos povos antigos, que
trabalhavam apenas o necessário para sua sobrevivência, aparece uma sociedade
de abundância, onde nada falta. A Indústria Cultural coloca ali problemas que
ela é capaz de solucionar:
O domínio da economia, portanto, não aparece ali senão para ser resolvido. (...) Por
outro lado, na cultura da Comunicação de Massa anúncios principalmente os
desejos e as necessidades encontram, por uma gica impecável, os meios para sua
satisfação. (ROCHA, 1995: 203)
Percebe-se que o construído nessa “sociedade dentro da Comunicação de
Massa” é uma sociedade às avessas, que inverte as características da sociedade
que a criou: substitui o individualismo’ pelo ‘holismo’, o ‘tempo histórico’ pelo
‘tempo totêmico, o ‘poder do Estado’ pelo ‘poder da persuasão’ e o
‘produtivismo’ pelo ‘ócio’. Ao mesmo tempo, esta sociedade se aproxima da
sociedade do “outro” qualquer cultura que não a Sociedade Industrial, segundo
Rocha (1995: 136): “cultura dos chamados ‘primitivos’ ou ‘índios’ ou ‘selvagens’
ou ‘sociedades tribais’” sempre, de alguma forma, excluída, para favorecer a
sociedade capitalista tal como ela é hoje:
Um plano mostra uma estranha conjunção, indicando semelhanças com a cultura
do ‘outro’ e da falta’, onde a Comunicação de Massa se aproxima das sociedades
objeto do etnocídio e da exclusão. No segundo plano, fica ainda mais enfatizada
esta estranheza, pois tudo indica que ela possui sentido inverso em relação à
Sociedade Industrial. A Comunicação de Massa, sob determinado ângulo, se
posicionou na contramão da cultura que a inventa. A sociedade representada nestes
sistemas simbólicos se acha presa no paradoxo de estar em conjunção com o
universo social do excluído e em disjunção com o universo social do seu produtor.
(ROCHA, 1995: 152)
Constata-se que a Sociedade Industrial criou a “sociedade dentro dos
produtos da Comunicação de Massa”: “Inventamos, a um só tempo, o próximo e o
distante, a inversão e a recuperação. Usamos aquele mundo para falar de outras
coisas. Coisas do ‘outro’, de certa forma” (ROCHA, 1995: 208).
Cultura de massa
28
Neste primeiro capítulo, portanto, foram assinalados alguns conceitos
relativos à cultura de massa que irão guiar esta dissertação. Destacou-se a
discussão de Adorno e Horkheimer (1985), que defendiam a pureza da arte,
opondo-se à Indústria Cultural. Em seguida, foi observado, com Huyssen (1997),
como essa postura dos autores alemães se tornou obsoleta para compreender os
híbridos culturais atuantes na cultura de massa contemporânea. Este autor ainda
chamou a atenção para a inserção da arte no cotidiano da vida, realizada pela
cultura de massa. Morin (1967) possibilitou a continuação da discussão sobre essa
mistura entre arte e vida, ressaltando aspectos inerentes à cultura de massa. Por
fim, foi observado, com Rocha (1995), como ela criou, dentro de seus próprios
produtos, uma outra sociedade a “sociedade do sonho”, presente na “sociedade
dentro da Comunicação de Massa que possui características opostas à
sociedade capitalista, industrial e consumista.
O capítulo seguinte irá descrever o contexto histórico em que os Beatles se
encontravam para que se tente entender um pouco mais sobre o mundo que
acabava de sair da II Guerra Mundial: o surgimento de um mercado direcionado
aos jovens e o desenvolvimento do movimento de contracultura. Depois, no
terceiro capítulo, a análise sobre as tensões entre consumo e contracultura poderá
ser desenvolvida.
3
A Contracultura
3.1.
Antecedentes
Com a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial, iniciou-se no Ocidente
capitalista um período de desenvolvimento econômico e político que daria
impulso a grandes transformações sociais e culturais, sobretudo a partir da década
de 1960. O mundo passou por um período de “ouro”: basta lembrar que de 1950 a
1973 o preço do barril de petróleo custava menos de dois lares (HOBSBAWN,
1995: 258).
O impressionante desenvolvimento econômico pós-1945 foi sentido em
termos materiais na Inglaterra em meados da década de 50; enquanto os Estados
Unidos apenas deram continuidade ao crescimento acelerado que vinham
mantendo desde o fim da Grande Depressão (depois de 1930). Mas se tal
crescimento aconteceu nos países ocidentais capitalistas desenvolvidos (o que foi
uma espécie de globalização da situação dos Estados Unidos antes de 1945), no
resto do mundo houve acentuação das diferenças sociais e econômicas. A “Era
de Ouro” dependia “do que estivera tão dramaticamente ausente no entreguerras,
um equilíbrio entre o crescimento da produção e a capacidade dos consumidores
de comprá-la.” (HOBSBAWN, 1995: 279) Ela dependia também da hegemonia
dos Estados Unidos. E continua Hobsbawn (1995: 262):
A grande característica da Era de Ouro era precisar cada vez mais de maciços
investimentos e cada vez menos gente, a não ser como consumidores. Contudo, o
ímpeto e rapidez do surto econômico eram tais que, durante uma geração, isso não
foi óbvio. Pelo contrário, a economia cresceu tão depressa que mesmo nos países
industrializados a classe operária industrial manteve ou mesmo aumentou seu
número de empregados. Em todos os países avançados, com exceção dos EUA, os
reservatórios de mão-de-obra preenchidos durante a depressão pré-guerra e a
desmobilização do pós-guerra se esvaziaram, novos contingentes de mão-de-obra
foram atraídos da zona rural e da imigração estrangeira, e mulheres casadas, até
então mantidas fora do mercado de trabalho, entraram nele em número crescente.
Apesar disso, o ideal a que aspirava a Era de Ouro, embora se realizasse aos
poucos, era a produção ou mesmo o serviço, sem seres humanos, robôs
automatizados montando carros, espaços silenciosos cheios de bancos de
A Contracultura
30
computadores controlando a produção de energia, trens sem maquinistas. Os seres
humanos só eram essenciais para tal economia num aspecto: como compradores de
bens e serviços. Aí estava seu problema central. Na Era de Ouro, isso ainda parecia
irreal e distante, como a futura morte do universo por entropia, da qual os cientistas
vitorianos haviam avisado a raça humana.
Os jovens, que antes eram convocados para o front de guerra, agora viviam
em famílias prósperas, que não mais necessitavam com tanta urgência de ajuda
financeira. Ao contrário, a família passou a sustentar o jovem durante muito mais
tempo, pensando em uma educação de nível superior
13
.
Hobsbawn, no livro A era dos extremos: o breve século XX 1914-1991,
explica melhor esse período de grande desenvolvimento dos países capitalistas,
que ele chama de “Era de Ouro”:
Bens e serviços antes restritos a minorias eram agora produzidos para um mercado
de massa, como no setor de viagens a praias ensolaradas. (...) O que antes era um
luxo tornou-se o padrão do conforto desejado, pelo menos nos países ricos: a
geladeira, a lavadora de roupas automática, o telefone. (...) Em suma, era agora
possível o cidadão médio desses países viver como só os muito ricos tinham vivido
no tempo de seus pais a não ser, claro, pela mecanização que substituíra os
criados pessoais. (HOBSBAWN, 1995: 259)
É claro que algumas conseqüências iriam surgir dessa “Era de Ouro” tais
como problemas ecológicos, sociais (acentuação das diferenças econômicas os
ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres) e mesmo
transformações culturais. Mas não dúvida de que o período instigava o
progresso; no entanto, as pessoas não mais acreditavam nele como o faziam antes
das I e II Guerras Mundiais, já que, nesta época, o potencial destrutivo dos
avanços tecnológicos ainda não tinha sido utilizado pelo homem, como foi feito
nas duas grandes guerras (e como continuava sendo feito ainda nos anos 60, na
Guerra do Vietnã, por exemplo).
Dessa forma, a partir dos anos 50, por um lado, estava se desenvolvendo e
se consolidando uma sociedade de consumo, capitalista, produtivista: a sociedade
construída dentro dos produtos da Comunicação de Massa (ROCHA, 1995). Por
outro lado, as transformações sociais e culturais decorrentes desse período da “Era
de Ouro” iriam afetar o mundo e, conseqüentemente, essa mesma sociedade.
13
Analisaremos com mais atenção a consolidação dos jovens como consumidores, como
expressiva força estudantil e como agente social ainda neste capítulo.
A Contracultura
31
As mudanças advindas do acelerado desenvolvimento econômico da “Era de
Ouro” – incluindo aí a aparição dos meios de comunicação de massa como
importante fator de consumo e de construção do imaginário coletivo trouxe
inúmeras conseqüências para o mundo. Mas talvez a mais importante delas tenha
sido o destaque que a juventude passou a ter como classe estudantil, como
consumidores e como molde da cultura de massa. Hobsbawn ressalta esta como
sendo uma das várias transformações sociais e culturais da década de 1960 – e que
iria ter grande relevância também para o plano econômico. Além dessa
transformação, ele destaca a morte do campesinato (a impressionante migração
dos camponeses para as cidades), o conseqüente crescimento acelerado das
cidades (e todas as mudanças que isso traz consigo) e a emergência das mulheres
como agente social e cada vez mais importante classe consumidora (privilegiada
desde sempre na cultura de massa). Assim, Hobsbawn centraliza as revoluções
social e cultural no eixo das mudanças nas estruturas de relação entre os sexos e as
gerações.
Uma das impressionantes mudanças foi o crescimento de cargos que
passavam a exigir educação secundária e até mesmo superior coisa até então
pouco comum. Assim, os pais começaram a se preocupar com o futuro dos filhos,
não poupando esforços para colocá-los em uma universidade
14
, pois este era o
meio de garantir-lhes uma vida melhor.
Durante a década de 1960, o estudo superior se tornou tão comum para as
moças quanto para os rapazes. Os jovens rapazes não eram mais convocados
para a guerra e, nas classes média e alta, também não começavam a trabalhar
cedo, sendo incentivados a estudar até os vinte e poucos anos. As moças, que
antigamente se casavam cedo, também começaram a estudar, pois a renda familiar
que era complementada com o emprego dos filhos homens, agora passou a ser
responsabilidade das mulheres. Hobsbawn (1995: 312) observa:
Na verdade, à medida que a educação superior para os filhos da classe média se
tornava quase universal, e os pais tinham de dar contribuições financeiras a seus
rebentos até quando eles beiravam os vinte anos ou até mais, o trabalho pago
para as mulheres casadas da classe média deixou de ser basicamente uma
14
Analisaremos mais as conseqüências da entrada maciça dos jovens nas universidades e como
eles acabaram por constituir uma classe consumidora de suma importância na cultura de massa e
também como se tornaram agentes sociais e políticos, antes não reconhecidos.
A Contracultura
32
declaração de independência e tornou-se o que muito era para as pobres, uma
maneira de equilibrar o orçamento.
Outra grande transformação social/cultural iniciada na cada de 1960 foi a
entrada das mulheres no mercado de trabalho e a emergência do movimento
feminista. Como destaca Hobsbawn, as mulheres mais pobres, sobretudo as
casadas, se viram forçadas a entrar no mercado de trabalho para complementar a
renda familiar, o que não tinha, necessariamente, uma relação direta com a visão
social e política dos direitos das mulheres o feminismo, que iria estourar na
década de 1960. Elas começaram a ingressar no mercado de trabalho na época da
II Guerra, quando não havia mão-de-obra masculina suficiente para manter a
economia estável. Crescia também o número de mulheres que chefiavam as
famílias sozinhas fato decorrente das mudanças de comportamento sexual e
também não podemos esquecer que muitos homens morreram na II Guerra.
O movimento feminista tomou impulso quando as mulheres das classes
alta e média entraram no mercado de trabalho, tendo consciência de que isso seria
uma atitude de independência em relação aos seus maridos:
(...) nos países desenvolvidos, o feminismo de classe média, ou o movimento de
mulheres educadas ou intelectuais, alargou-se numa espécie de sensação genérica
de que chegara a hora da libertação feminina, ou pelo menos da auto-afirmação das
mulheres. Isso se dava porque o feminismo específico da classe média inicial,
embora às vezes não diretamente relevante para os interesses do resto do grupo
feminino ocidental, suscitava questões que interessavam a todas: e essas questões
se tornaram urgentes à medida que a convulsão social que esboçamos gerava uma
profunda, e muitas vezes súbita, revolução moral e cultural, uma dramática
transformação das convenções de comportamento social e pessoal. As mulheres
foram cruciais nessa revolução cultural, que girou em torno das mudanças na
família tradicional e nas atividades domésticas e nelas encontraram expressão
de que as mulheres sempre tinham sido o elemento central. (HOBSBAWN, 1995:
313)
As mulheres sempre foram - como foi observado com Edgar Morin no
primeiro capítulo desta dissertação - um foco importante da cultura de massa,
constituindo grande parte de sua força consumidora. Mas o destaque é que, na
década de 1960, elas passaram a contar com o próprio dinheiro, fruto de seu
trabalho, o que não acontecia anteriormente.
O reconhecimento dos jovens como classe social e consumidora e a
emergência das mulheres como força social e política causaram uma enorme
A Contracultura
33
transformação em grandes instituições que tinham sido fundamentais para que o
capitalismo pudesse ter vencido até então: a família tradicional e as igrejas
tradicionais do Ocidente.
Como continua Hobsbawn (1995: 314/315):
(...) a vasta maioria da humanidade partilhava certo número de características,
como a existência de casamento formal com relações sexuais privilegiadas para os
conjugues (o ‘adultério’ é universalmente tratado como crime); a superioridade dos
maridos em relação às esposas (‘patriarcado’) e dos pais em relação aos filhos,
assim como às gerações mais jovens; famílias consistindo em várias pessoas (...)
Contudo, na segunda metade do século XX, esses arranjos básicos e muito
existentes começaram a mudar com grande rapidez, pelo menos nos países
ocidentais ‘desenvolvidos’, embora de forma desigual mesmo dentro dessas
regiões.
Divórcios, mais pessoas morando sozinhas, pílulas anticoncepcionais,
liberação sexual, mulheres ocupando posições sociais antes inimagináveis, jovens
concentrados em universidades pelo mundo todo, que parecia girar mais depressa
tal a quantidade e a velocidade das transformações.
Os pais que se esforçavam por colocar seus filhos nas universidades
queriam que estes tivessem uma vida melhor do que a que eles tinham tido
(lembremos do período de crises e guerras antes de 1945). Na “Era de Ouro”-
pleno emprego, estabilidade, férias remuneradas, aposentadoria, etc a geração
que tinha vivido antes da II Guerra nem pensava em transformações e se satisfazia
com as melhorias visíveis por quase todo o globo. No entanto, a geração que não
passou pela Grande Depressão, nem por qualquer uma das duas Grandes Guerras,
não conseguia entender como seus pais se contentavam:
A própria juventude do corpo estudantil, a própria largura do abismo de gerações
entre esses filhos do mundo do pós-guerra e seus pais, estes capazes de lembrar e
comparar, tornavam seus problemas mais urgentes, sua atitude mais crítica. Pois as
insatisfações dos jovens não eram amortecidas pela consciência de ter vivido
épocas de impressionante melhoria, muito melhores do que seus pais algum dia
esperaram ver. Os novos tempos eram os únicos que os rapazes e moças que iam
pra universidade conheciam. Ao contrário, eles sentiam que tudo podia ser
diferente e melhor, mesmo não sabendo exatamente como. (HOBSBAWN, 1995:
295/296)
Os jovens que se encontravam nas universidades na década de 1960 queriam
mudar o mundo porque não poderiam imaginar o que as gerações anteriores
tinham passado. Ao mesmo tempo, tinham muito medo de repetir o mesmo erro
A Contracultura
34
de seus pais, que ficaram, na maioria, apáticos diante do massacre da II Guerra
Mundial (ROSZAK, 1972).
O mercado rapidamente percebeu que a juventude estava se tornando um
grupo de atores conscientes de si mesmos e não perdeu a oportunidade de
oferecer-lhe produtos, serviços e bens de consumo como o rock and roll
15
,
filmes específicos para os jovens (que não se definiam nem como crianças, nem
como adultos), roupas, gírias, gestos, símbolos materiais e/ou culturais, etc.
Formou-se uma “cultura popular jovem” (HOBSBAWN, 1995), que se destacava
por seu internacionalismo (as mesmas transformações e produtos, serviços e bens
de consumo poderiam ser encontrados por quase todo o globo ao mesmo tempo).
Os jovens de todo o mundo concentrados em universidades, com a vantagem de
ainda disporem de uma maior facilidade para lidar com as novas tecnologias, se
comunicaram e criaram uma espécie de língua que todos falavam, baseada no
consumo desses símbolos ideológicos e materiais:
Essas massas de rapazes e moças e seus professores, contadas aos milhões ou pelo
menos centenas de milhares em todos os Estados, a não ser nos muito pequenos e
excepcionalmente atrasados, e concentradas em campi ou ‘cidades universitárias’
grandes e muitas vezes isolados, constituíam um novo fator na cultura e na política.
Eram transnacionais, movimentando-se e comunicando idéias e experiências
através de fronteiras com facilidade e rapidez, e provavelmente estavam mais à
vontade com a tecnologia das comunicações que os governos. Como revelou a
década de 1960, eram não apenas radicais e explosivas, mas singularmente eficazes
na expressão nacional, e mesmo internacional, de descontentamento político e
social. (HOBSBAWN, 1995: 292)
Essa “cultura popular jovem” que se consolidou na década de 1960 se
caracterizava também por ser dominante nas economias de mercado de quase todo
o mundo. Segundo Hobsbawn (1995: 319): “a ‘juventude’ era vista não como um
estágio preparatório para a vida adulta, mas, em certo sentido, como o estágio
final do pleno desenvolvimento humano”. Essa juventude esbarrava com a
gerontocracia que governava o mundo homens que eram adultos na II Guerra
Mundial - e daí os protestos e a rebeldia tão característica da geração de 1960/70.
A partir de meados da década de 1960, portanto, o chamado movimento de
contracultura se consolidou.
15
Este tópico será mais desenvolvido adiante.
A Contracultura
35
Essa revolução cultural trouxe transformações decisivas para o curso da
humanidade a própria contracultura foi uma conseqüência dela. Segundo
Hobsbawn (1995: 328), a revolução cultural foi a vitória do indivíduo sobre a
sociedade ao contrário do que observamos na “sociedade dentro da Indústria
Cultural” (ROCHA, 1995), já previamente analisada. Mas dentro da
contracultura, também não é o individualismo que triunfa. A contracultura,
assim, se aproxima dessa sociedade de dentro da Indústria Cultural, como
veremos a seguir.
3.2.
O movimento
A geração que movimentou os anos 60 não queria cometer o mesmo erro de
seus pais, fechando os olhos para o totalitarismo e a ganância do capitalismo, que
resultaram na II Guerra Mundial e na detonação de duas bombas atômicas, como
explica Theodore Roszak em seu livro A Contracultura (1972: 33/34):
Por que seriam os jovens os principais contestadores da expansão da tecnocracia?
16
Não como evitar a resposta mais óbvia: os jovens assumem tamanho destaque
porque atuam contra um pano de fundo de passividade quase patológica por parte
da geração adulta. reduzindo a zero nossa concepção de cidadania é que
poderíamos desculpar nossa geração adulta por sua espantosa omissão. Os adultos
do período da II Guerra Mundial, acometidos pela paralisia de desnorteada
docilidade (...) na verdade abriram mão de sua madureza, se é que esse termo
significa alguma coisa que ser mais alto, ter problemas financeiros e ser capaz de
comprar bebida sem fazer prova de idade. Vale dizer: renunciaram a sua
responsabilidade de tomar decisões de valor, de gerar ideais, de controlar a
autoridade pública, de salvaguardar a sociedade contra os rapinantes.
Desde o começo, a contracultura teve uma relação contraditória com a
cultura de massa:
Paradoxalmente, os que se rebelavam contra as convenções e restrições
partilhavam as crenças sobre as quais se erguia a sociedade de consumo de massa,
ou pelo menos as motivações psicológicas que os que vendiam bens de consumo e
serviço achavam mais eficazes para promover sua venda. (HOBSBAWN, 1995:
327)
16
Ainda segundo o autor, tecnocracia é “um sistema de organização político e social baseado em
princípios técnicos” (1972: 15).
A Contracultura
36
Os jovens da contracultura caracterizavam-se pelo inconformismo radical e
pelo desejo de inovação cultural e, além disso, por estarem reunidos em grande
número pelo mundo em termos estatísticos. Parecia que pela primeira vez eles
se davam conta do poder que tinham, principalmente pela concentração nas
universidades, e do segmento que o mercado havia começado a direcionar
especificamente para eles, como também salienta Morin, que atribui à juventude
papel fundamental na cultura de massas do século XX:
A adolescência atual está profundamente desmoralizada pelo dio burocrático que
emana da sociedade adulta: e mais ainda, talvez, pela inconsistência e hipocrisia
dos valores estabelecidos; ela experimenta, de modo extremamente vivo, a grande
questão do sentido da existência humana; ela talvez esteja profundamente marcada
por esse sentimento de aniquilamento-suicídio possível da humanidade que fez
nascer a bomba atômica. Encontra, contudo, na cultura de massa, um estilo
estético-lúdico que se adapta a seu niilismo, uma afirmação de valores privados
que corresponde a seu individualismo, e a aventura imaginária, que mantém sem
sacia-lo, sua necessidade de aventura. (MORIN, 1967: 161)
Crianças protegidas dos malefícios do capitalismo pelos pais que tinham
sofrido na pele com as duas Grandes Guerras e com a Grande Depressão que
ocorreu nos anos 30, esses jovens eram mimados, por um lado, mas também
mostravam-se mais atentos à humanidade como um todo, como destaca Roszak
(1972: 41):
Se perguntarmos quem o os responsáveis por essas crianças peraltas, pode
haver uma resposta: os responsáveis são seus pais, que lhes deram um superego
anêmico. (...) Uma sociedade de lazer, com alto nível de consumo, simplesmente
não precisa de contingentes de jovens trabalhadores ‘responsáveis’, rigidamente
treinados. (...) Assim, os jovens são ‘estragados’, no sentido de que são levados a
acreditar que ser humano implica de alguma forma com prazer e liberdade.
Entretanto, ao contrário de seus pais, que também anseiam pela abundância e pelo
lazer da sociedade de consumo, os jovens não tiveram de se vender em troca de
seus confortos ou de aceita-los em regime de meio expediente. Podem tomar como
natural a segurança econômica e sobre ela constroem uma nova e
descomprometida personalidade, talvez maculada por um ócio irresponsável, mas
também tocada por um espírito sincero.
O movimento de contracultura - impulsionado por um contingente de
jovens ociosos e, ao mesmo tempo, dispostos a lutar contra a “tecnocracia”, o
capitalismo, a burocracia e, conseqüentemente, contra as guerras e ditaduras que
eclodiam por todo o mundo assumia-se ‘contra a cultura’ dominante, ou seja,
contra as bases do capitalismo e da sociedade de consumo. Ao mesmo tempo,
A Contracultura
37
dependia dos meios de comunicação de massa para se espalhar por todo o mundo.
Se a contracultura tinha suas características próprias música, vestimentas,
comportamento, livros, filmes, ídolos, artistas, gestos, gírias, entre outros ela
necessitava dos meios de comunicação de massa para difundir sua ideologia.
Dessa forma, como diria Morin (1967: 58), a cultura de massa passa a se utilizar
dos mecanismos de vulgarização para tornar a obra consumível por um público
mais extenso.
A consolidação dos jovens como agente sociais e como classe consumidora
deu a eles um destaque que antes não existia. A rebeldia e os protestos contra a
gerontocracia e contra o sistema cultural vigente a “tecnocracia”, a sociedade
capitalista, industrial, produtivista e consumista ganharam força na mídia e se
espalharam por todo o Ocidente capitalista, contribuindo para a formação da
“cultura popular jovem e iniciando um movimento exatamente contrário à
sociedade da época - a contracultura.
Nesta análise sobre esse movimento, é importante entender o que Roszak
quer dizer com o termo “sociedade tecnocrática” ou “tecnocracia”: “produto de
um industrialismo maduro e em aceleração” (ROSZAK, 1972: 31), que é
justamente o objeto de combate da contracultura. O autor destaca que a
“tecnocracia” é um “imperativo cultural” (ROSZAK, 1972: 9), que se faz
“ideologicamente invisível” (ROSZAK, 1972: 21), exatamente porque, desta
forma, fica mais difícil combatê-la. Ela é um regime de especialistas, que possuem
um conhecimento científico objetivo e seguro sobre determinado assunto, onde
tudo é puramente técnico e objetivo; a ciência e a razão são suas bases, suas
estruturas, os moldes de sua realidade e os próprios especialistas sempre
recorrem a elas quando precisam resolver qualquer problema:
A política, a educação, o lazer, o entretenimento, a cultura como um todo, os
impulsos inconscientes e até mesmo, como veremos, o protesto contra a
tecnocracia tudo se torna objeto de exame e de manipulação puramente cnicos.
O que se procura criar é um novo organismo social cuja saúde dependa de sua
capacidade de manter o coração tecnológico batendo regularmente. (ROSZAK,
1972: 19)
Dessa forma, é a “tecnocracia” que os jovens da contracultura querem
substituir por uma sociedade diferente, com outras características. Eles enxergam
na “tecnocracia” a grande fundadora das duas Grandes Guerras. A gerontocracia
A Contracultura
38
que está no poder da “sociedade tecnocrática” até reconhece seus erros;
entretanto, não quer abrir mão de seu comando, nem das melhorias alcançadas
durante a “Era de Ouro”, proporcionadas pela “tecnocracia”:
Na verdade, de vez em quando o sistema à prova de erros atola-se em distúrbios,
lassidão apática ou erros de supercentralização; na verdade, a obscenidade crônica
da guerra termonuclear paira sobre o sistema como uma ameaçadora ave de rapina
que consome a maior parcela de nossa opulência e inteligência. Mas a atual
geração de pais agarra-se à tecnocracia devido ao sentido míope da próspera
segurança por ela proporcionada. (ROSZAK, 1972: 25)
Mas, de fato, os jovens agora concentrados em universidades, como
observamos neste capítulo -, com o apoio do mercado (eram grande público alvo
consumidor, que gerava muitos lucros), da mídia, da publicidade, na década de
1960, passaram a sentir mais a potência que tinham como número:
Não resta dúvida de que em grande parte isto se deve ao fato de a máquina
publicitária de nossa sociedade de consumo haver dedicado muita atenção ao
cultivo da consciência etária, tanto dos velhos como dos jovens. Os adolescentes
dispõem de um enorme volume de dinheiro e gozam de muito lazer; era inevitável,
assim, que passassem a constituir um mercado especial. Foram adulados,
utilizados, idolatrados e tratados com uma deferência quase nauseante. O resultado
disto é que tudo quanto os jovens criaram para si serviu de alimento à máquina
comercial inclusive
17
o novo ethos de descontentamento (...). (ROSZAK, 1972:
38)
Poderíamos, então, perguntar porque a “tecnocracia” não combateu as
universidades, que eram o locus onde estavam os jovens que queriam construir
uma sociedade diferente da que viviam. A resposta é que é dentro das
universidades que se formam os tais especialistas, responsáveis pelo
funcionamento da sociedade “tecnocrática”. Mas o modo que a “tecnocracia”
arranjou de acabar com a contracultura foi o mesmo que ela utiliza com toda e
qualquer manifestação que apareça, por ventura, fora de seu controle e de suas
previsões: a absorção, simplificação e vulgarização
18
pelo mercado,
transformando a própria contracultura em produto consumido por um grande
contingente de jovens. Contudo, em 1972, quando Theodore Roszak escreveu A
17
Grifo do autor.
18
Lembremos dos meios de “vulgarização” e “aclimatação” já estudados no primeiro capítulo
desta dissertação - utilizados pela Indústria Cultural para transformar determinado produto em algo
que pode ser consumido por muitos (MORIN, 1967).
A Contracultura
39
Contracultura, o movimento ainda estava acontecendo, de forma que ele não
poderia prever qual seria seu futuro embora defenda a juventude da época e
alerte-a para o perigo que a cultura de massa (comandada pela “tecnocracia”)
oferece.
Entretanto, não se pretende, nesta dissertação, se ater a conceitos binários
e/ou maniqueístas, mas estudar e questionar as tensões entre a contracultura (e o
que talvez tenha sido seu principal e mais duradouro motor e produto – o rock and
roll) e o mercado. Pontua-se aqui a necessidade de se entender essa “cultura
popular jovem”, formada na segunda metade do século XX, pois esta não teve o
mesmo destino da contracultura; ela a “cultura popular jovem” - não está
ainda viva, como é um dos principais elementos que mantém a funcionalidade da
cultura de massa tal como é entendida hoje:
Assim, através de uma dialética que Marx jamais poderia ter imaginado, a América
tecnocrática produz um elemento potencialmente revolucionário entre sua própria
juventude. Em lugar de descobrir o inimigo de classes em suas fábricas, a
burguesia enfrenta-o na sala de jantar, nas pessoas de seus próprios filhos
mimados. (ROSZAK, 1972: 45)
Agora será definido o que é a contracultura, tal qual Roszak a localiza: “(...)
uma cultura tão radicalmente dissociada dos pressupostos básicos de nossa
sociedade que muitas pessoas nem sequer a consideram uma cultura, e sim uma
invasão bárbara de aspecto alarmante”. (ROSZAK, 1972: 54)
Neste ponto, chama-se atenção para o conceito evolucionista utilizado pelo
autor uma “invasão bárbara”. Mais do que simplesmente uma visão sobre o
assunto, Roszak inicia um processo que perdurará por todo o livro: a
aproximação da contracultura com uma cultura diferente, que não é a nossa, com
a cultura do “outro”, do excluído, do bárbaro. Mas antes de se aprofundar nesse
tema, vejamos quais as características dessa contracultura.
Experimentação cultural, formada e dirigida por e para a juventude, que
ataca as bases da “tecnocracia” e da “cosmovisão científica”, aproximando os
jovens de uma outra concepção de tempo, religião, poder, produção e indivíduo:
Ademais, o que significa afirmar o primado dos poderes não-intelectivos senão
questionar tudo quanto nossa cultura valoriza como ‘razão’ e ‘realidade’? Negar
que o verdadeiro eu seja esse pequeno e sólido átomo de objetividade intensa que
conduzimos de um lado para o outro a cada dia, enquanto construímos pontes e
A Contracultura
40
carreiras, será decerto brincar com a psicopatologia. Significa atacar os homens no
âmago de sua segurança, negando a validade de tudo a que se referem quando
pronunciam a palavra mais preciosa que possuem em seu vocabulário: ‘eu’.
Entretanto, é isso que faz a contracultura quando, por meio de suas tendências
místicas ou das drogas, agride a realidade do ego como uma unidade de identidade
isolável, puramente cerebral. (ROSZAK, 1972: 65/66)
A contracultura sabe muito do que não quer ser e pouco sobre o que
realmente deseja. Assim, ataca, o tempo todo, as bases da “tecnocracia”. Uma
delas, sugerida por Roszak, é a “consciência objetiva” o mito que molda a nossa
cultura, mas que não quer ser visto como tal, por isso, incorpora os conceitos
tecnocráticos de razão, ciência, racionalidade, objetividade e se assume como o
único modo de se acessar a realidade; a própria ciência é, então, encarada por
Roszak como mito e não como desmitificação, tal qual ela se apresenta na
sociedade atual:
Estaremos usando a palavra mitologia’ ilegitimamente ao aplicá-la à objetividade
como um estado de consciência? Creio que não. Em seu nível mais profundo o
mito é aquela criação coletiva que cristaliza os valores eminentes, centrais de uma
cultura. É, por assim dizer, o sistema de intercomunicações da cultura. Se a cultura
da ciência situa seus valores supremos não em símbolos ou rituais místicos ou em
narrativas épicas de terras e épocas remotas, e sim num mundo de consciência, por
que hesitar em chamar isto de mito? Afinal de contas, o mito tem sido identificado
como um fenômeno universal da sociedade humana, um fator constitutivo de
importância tão grande que se torna difícil imaginar que uma cultura pudesse ser
dotada de coerência se lhe faltasse o elo mitológico. (ROSZAK, 1972: 217/218)
Desconstruindo o poder intocável e, até então, incontestável da
“tecnocracia”, enxergando a “consciência objetiva” como um mito, e não uma
verdade inabalável, a juventude que promove a contracultura pode começar a
contestar as bases da “sociedade tecnocrática” e, a partir daí, criar a sua própria.
Se a sociedade que a juventude pretendia construir era contra a cultura’
dominante, ela teria características opostas a esta, como mostra Roszak durante
todo o livro. Assim, no lugar do ‘individualismo’, o ‘holismo’ os jovens que
viviam em comunidades ‘hippies’
19
tentavam aproximá-la de uma tribo, alguma
comunidade “primitiva”, onde todos poderiam viver em harmonia e ninguém
mandaria em ninguém. O ‘poder do Estado’ seria substituído pelo ‘poder da
19
No sentido mais simples, dicionarizado, o termo “hippie” é: “membro de um grupo não
conformista, caracterizado pelo rompimento com a sociedade tradicional, especialmente no que
A Contracultura
41
persuasão’. Do mesmo modo, não pretendiam ser uma sociedade ‘produtivista’
como a nossa: utilizavam o trabalho para produzir apenas o que lhes era
necessário, dando prioridade ao ‘ócio’, ao prazer, ao desejo. Com a contestação da
“cosmovisão científica”, nasce também um interesse por outras religiões:
(...) também nela [na cultura jovem contemporânea] uma concepção muito mais
madura e muito diferente do que significa investigar a consciência não-intelectiva.
Sua principal fonte está na forte influência exercida sobre os jovens pela religião
oriental, com sua herança de contemplação dócil, pacífica e de consumada
civilidade. Temos aqui uma tradição que contesta radicalmente a validade da
cosmovisão científica, da supremacia da cognição cerebral, do valor da pujança
tecnológica; mas o que faz no mais tranqüilo e comedido dos tons, com humor,
com ternura, e até mesmo com uma dose de astuciosa argumentação. (ROSZAK,
1972: 89/90)
Até mesmo o ‘tempo histórico’ passa a ser encarado de forma diferente por
esses jovens (já que esse próprio tempo histórico foi a base para a consolidação da
“tecnocracia”). O slogan da década de 1960: “Não acredite em ninguém com mais
de trinta anos”, pode exemplificar este fato. De ‘histórico’, o tempo passa a ser
‘totêmico’, na tentativa de eternizar a juventude:
A radicalização política dos anos 60 (...) foi dessa gente jovem, que rejeitava o
status de crianças e mesmo de adolescentes (ou seja, adultos ainda não inteiramente
amadurecidos), negando ao mesmo tempo humanidade plena a qualquer geração
acima dos trinta anos de idade, com exceção do guru ocasional. (HOBSBAWN,
1995: 318)
Assim, a sociedade que contracultura pretendia construir possuía
características inversas à sociedade “tecnocrática” capitalista industrial. Neste
momento, é possível retomarmos o conceito de Rocha (1995) sobre a “sociedade
dentro dos produtos da Comunicação de Massa” e aproximá-lo dos anseios da
contracultura:
(...) se no plano das sociedades reais nos afastamos do ‘outro’, no plano do
imaginário inventamos uma cultura representada dentro da Comunicação de Massa
que inverte nossas escolhas. Por força de inversões nas nossas concepções da
temporalidade, do poder, da individualidade e (...) do produtivismo, a sociedade
dentro da Comunicação de Massa se aproxima e nos aproxima das escolhas
realizadas pelo ‘outro’. (ROCHA, 1995: 200)
respeita à aparência pessoal e aos hábitos de vida, e por um enfático ideal de paz e amor universal”
(FERREIRA, 1999: 1053).
A Contracultura
42
A sociedade inventada pela contracultura também realizou essa inversão e,
portanto, pode ser aproximada da “sociedade dentro da Comunicação de Massa”.
É claro que nem todos os jovens aderiram radicalmente à contracultura a ponto
de, por todo o mundo, se juntarem em tais comunidades hippies. Mas esta
demonstração de interesse geral por um tipo de sociedade que não a nossa refletiu
em toda a produção cultural da época.
As revoluções social e cultural, estudadas neste capítulo, influenciaram a
contracultura. As mudanças no comportamento sexual, por exemplo
ironicamente, conseqüências dos avanços científicos, como a pílula
anticoncepcional apareciam de forma radical entre os hippies. Jovens
praticavam o sexo livre, alegando ser uma forma de prazer (fundamental na
constituição da contracultura). Eles simplesmente não queriam mais assistir às
demonstrações de prazer, liberdade e felicidade oferecidas pela “sociedade dentro
da Comunicação de Massa”. Queriam eles mesmos experimentá-las na vida real:
O que ocorre com a sexualidade ocorre em todos os outros aspectos da vida. Na
tecnocracia, a invenção e o embelezamento de traiçoeiras paródias de liberdade,
alegria e realização tornam-se uma forma indispensável de controle social. Em
todos os meios sociais, publicitários e especialistas em relações públicas adquirem
proeminência cada vez maior. A tecnocracia tem como centuriões falsários que,
através de hábeis manipulações, tentam integrar a insatisfação gerada por
aspirações frustradas. (ROSZAK, 1972: 28)
A juventude, na tentativa de construção de uma nova sociedade a partir do
combate à “tecnocracia”, acabou por gerar algo semelhante à “sociedade do
outro” (ROCHA, 1995: 136) excluída culturalmente por nossa sociedade.
Conseqüentemente, a contracultura se aproximou muito da “sociedade dentro da
Comunicação de Massa” (ROCHA, 1995): ambas substituíram a razão pela magia
e trouxeram de volta os ‘excluídos’ o bruxo, o feiticeiro, o índio, o xamã, o
poeta, o louco, a criança e a mulher. Como bem exemplifica Roszak (1972: 259):
Vivemos na superfície de nossa cultura e fingimos saber o suficiente. (...) Além de
manipular tais noções superficiais, agimos movidos pela fé. Acreditamos que em
algum lugar além das pílulas e dos gráficos econômicos existem especialistas que
entendem o que deve ser entendido. Sabemos que são especialistas porque, afinal
de contas, falam como especialistas e, além disso, possuem graus, licenças, títulos
e diplomas. Estaremos em melhor situação que o selvagem que acredita que foi
curado da febre pela expulsão de um espírito maligno?
A Contracultura
43
Não é de se estranhar, portanto, que a cultura de massa tenha utilizado seus
processos de “simplificação” e de “vulgarização” (MORIN, 1967) para aclimatar
as formas de arte, os símbolos e as ideologias da contracultura dentro de seu
mercado. Como as duas contracultura e “sociedade dentro da Comunicação de
Massa” (ROCHA, 1995) estavam muito próximas, a cultura de massa enxergou
no movimento jovem uma séria ameaça à sociedade inventada pela sociedade
“tecnocrática” capitalista industrial. A contracultura, dessa maneira, foi
encampada pela cultura de massa.
Mesmo que tenha sido manifestação de desejos ou apenas uma tentativa
frustrada, como a contracultura se demonstrou mais tarde, é de extrema
importância observar que a juventude da década de 1960 em determinado
momento, quando a cultura de massa estava solidificada tenha tentado
destruir a sociedade que a consolidou. Em seu lugar, seria erguida uma sociedade
extremamente semelhante àquela encontrada dentro dos produtos da cultura de
massa.
Analisar, pois, materiais culturais específicos dessa época constitui um fato
importante, por se tratar de uma dupla afirmação de sentido da “sociedade dentro
da Comunicação de Massa” (ROCHA, 1995), a chamada “sociedade do sonho”. A
contracultura tentou transformá-la em “sociedade da realidade”, colocando-a em
tensão com a própria sociedade que a inventou.
O foco desse estudo recai sobre o surgimento do rock and roll, em um
momento anterior à contracultura, e como ela o adotou e o transformou em um de
seus principais ícones. Simultaneamente, o mercado continuou se apoderando
disso tudo, transformando a tentativa da contracultura novamente em “sociedade
do sonho”. No próximo capítulo, serão analisados aspectos e músicas da banda de
rock mais expressiva da década de 1960, cuja influência e número impressionante
de vendas perduram até hoje: os Beatles.
3.3.
Trilha sonora
Em meados do anos 50, um novo ritmo surgiu no cenário musical norte-
-americano: o rock and roll nascido como híbrido cultural, uma mistura de
A Contracultura
44
ritmos. O processo que, musicalmente, deu origem ao rock and roll, consistiu na
junção do rhythm & blues (R&B) com a música country & western (segundo
Friedlander, country é a música rural do ‘branco pobre’ e o western é a música
dos cowboys do Oeste dos Estados Unidos). Mas o próprio R&B já é uma mistura
de ritmos: o blues urbano e rural -, a música gospel, e as chamadas jump band
jazz (FRIEDLANDER, 2003). Em seu livro, Rock: o grito e o mito a música
pop como forma de comunicação e contracultura (1973), Roberto Muggiati
sinaliza sobre as fusões de ritmos que iriam dar lugar ao rock and roll, a partir das
várias culturas que conviviam dentro dos Estados Unidos no início do século
XX:
A música é um elemento importante em todas essas culturas e a troca de
influências será acelerada pela expansão dos meios de comunicação (transportes e
mass media). Durante esse intenso cruzamento de influências, duas grandes
correntes a ‘música branca’ e a ‘música negra’ irão se alimentar uma da outra,
não para compor um idioma uniforme, convergente, mas para determinar, através
das tentativas de fusão em diferentes épocas, a maior parte dos estilos e gêneros
que compõem o diversificado panorama musical norte-americano e, em certa
medida, a atual música de consumo das sociedades industrializadas. (1973: 31)
O blues surgiu no cenário norte-americano no final do século XIX, quando
homens negros do Sul dos Estados Unidos cantavam a vida difícil que levavam
invocando o grito africano que nunca deixaram na terra natal (MUGGIATI, 1973).
Durante a época de Depressão, esses homens utilizavam o blues rural para
extravasar suas aflições e dificuldades. Aos poucos, o blues foi se espalhando por
todo o país até assumir a forma do blues urbano (mas, naquela época, continuava
sendo uma música essencialmente de negros):
As apresentações de blues rural sulista nas varandas, nos bares de beira de estrada,
ou na praça das cidades perderam importância na década que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial até serem substituídas pelo blues urbano do Norte e Oeste. O
centro passou a ser os bares enfumaçados da região sul de Chicago, assim como
outras áreas urbanas e palcos teatrais. Uma maciça migração negra durante a
Depressão e os anos da Segunda Guerra Mundial criaram um grande número de
comunidades afro-americanas nos centros urbanos do Norte do país ao final da
guerra em 1945. As novidades e a alienação da existência urbana, a ausência do lar
rural e da família e de seu apoio emocional e material ajudaram a criar o
cenário no qual o blues urbano floresceu. (FRIEDLANDER, 2003, p.32)
As letras do blues rural eram quase sempre depressivas, com um estilo de
cantar que possuía uma carga fortemente emocional, utilizando-se das blue
A Contracultura
45
notes
20
. O blues urbano mantém as mesmas características, com a diferença de
que começa a utilizar temas mais positivos nas suas letras. Segundo Simon Frith
(2002: 8), havia a necessidade de começar a se inventar um som urbano: “um som
capaz de competir com o barulho do tráfego e das multidões urbanas e que
pudesse fazer um escarcéu no palco, com força suficiente para acordar qualquer
bêbado”. A guitarra, o modo direto e irônico de abordar os temas nas letras foram
apenas algumas características do blues herdadas pelo rock and roll:
No plano ideológico, as letras dos blues, como as letras do rock, cultivam o que
Stearns chama ‘um ceticismo enxuto que penetra na fachada florida de nossa
cultura como uma faca’. A canção popular, geralmente derivada dos grandes shows
musicais da Broadway (Gershwin, Rodgers & Hart, Cole Porter, Irving Berling,
etc.), preencheu admiravelmente seu papel no período entre guerras, eufórica no
clima otimista dos twenties, euforizante ou então melancólica nos anos da
Depressão. Mas depois do choque da Segunda Guerra, ela não comunicava mais
nada às novas gerações. As coisas tinham mudado, exigia-se uma música aberta
para a realidade do mundo que começava a pulsar de novo. (...) Se a canção
popular americana já por volta de 1950 havia perdido sua função social, é preciso
lembrar que o blues, concreto e vital, tinha sobrevivido a todas essas mudanças.
(...) O blues olhava o mundo sem ilusões, como a coisa complexa que é. Cultivava,
por exemplo, uma certa ironia (...). (MUGGIATI, 1973: 11)
Outro estilo musical que muito contribuiu para a formação do R&B e,
conseqüentemente, para a formação do rock and roll foi o gospel, música religiosa
que tem suas origens no final do período de escravidão nos Estados Unidos
(FRIEDLANDER, 2003). A música gospel tem um estilo vocal emocionado,
complexidade harmônica, grande participação física por parte dos cantores e do
público (como palmas e gestos corporais espontâneos), o formato “chamado e
resposta” (que será fundamental no diálogo entre vocalista e guitarra no rock and
roll), acompanhamento com percussão, complexidade rítmica.
O jump band jazz, como define Friedlander, também teve grande influência
na formação do rock and roll. O ritmo tinha surgido com as grandes bandas da
época da II Guerra Mundial, com a diferença de que era uma banda menor: cinco
ou seis músicos e um saxofonista tocavam numa batida “suingada”, trazendo para
o R&B um pouco de influências do jazz:
No final dos anos 40, visionários da música negra transformaram os elementos do
blues, gospel e do jump band jazz no estilo conhecido como rhythm and blues.
20
Segundo Friedlander, as “notas sustentadas”.
A Contracultura
46
Essa fusão tornou-se, mais tarde, a base para a primeira era do rock, o rock and roll
clássico. A síntese musical do R&B consistia na formação básica das bandas de
blues, complementada por um solista de sax-tenor do jazz. Como no jump band
jazz, o importante era o swing. A influência do gospel, que enfatizava a base
rítmica 2/4 (ou backbeat’), marcadas principalmente pela bateria, criava um
movimento corporal que estimulava os ouvintes. O virtuosismo vocal e a
criatividade no palco, ambas heranças do gospel, foram importantes componentes
do R&B (...). Emoção na voz e sustentação nas notas foram herdadas do blues. O
solo instrumental, feito principalmente pelo sax-tenor, combinava a fluidez
improvisada do jazz com as longas repetições do blues. (FRIEDLANDER, 2003:
34)
O rhythm and blues falava sobre as adversidades da vida (herança do blues),
mas também sobre temas cotidianos
21
, como relacionamentos amorosos e sexuais
o que fazia corar a maior parte dos brancos. A batida envolvente e a
autenticidade das letras começava a criar um blico de jovens ouvintes negros
depois da II Guerra Mundial.
Finalizando a análise das influências musicais recebidas pelo rock and roll
para se detalhar sua história social e as conseqüências que ele iria ter na década de
1960, principalmente falta assinalar a síntese do R&B com o country &
western.
22
Dessa mistura de ritmos ‘negros’ com ritmos ‘brancos’ nasce o rock
and roll:
Se o rock n’roll é uma síntese e um brido dos dois idiomas ‘música branca’ e
‘música negra’- nem por isso deixa de ser encarado socialmente como ‘música de
negro’. Em sua qualidade de race music, ele é também a música de uma outra
minoria, de uma nova raça que começa a se manifestar no cenário da sociedade
americana: a juventude. (MUGGIATI, 1973: 37)
A partir dessas explicações, surgem várias questões que irão, de certa forma,
nos guiar pela história social do rock and roll. Uma delas é exatamente o
problema que foi enfrentado na época: o racismo. Na primeira metade do século
XX, todos os ritmos negros que surgiam nos Estados Unidos, enfrentavam grande
preconceito por parte das classes alta e média, principalmente. Mesmo o jazz era
desprezado nessa época pela maioria da população:
21
Aqui podemos perceber a inserção da música no cotidiano da vida, como alertou Huyssen
estudado no primeiro capítulo desta dissertação sobre o poder dos meios de comunicação de
massa de abolir a dicotomia arte/vida.
A Contracultura
47
Antes do surgimento estrondoso do rock n’roll no início da década de 1950, o
consumo de música se distribuía num esquema compartimentalizado. Grande parte
da população urbana branca consumia ‘música clássica’, de preferência do gênero
‘ligeiro’ e/ou música popular: canções românticas açucaradas ou cançonetas mais
rápidas no balanço diluído das orquestras brancas de swing. Até então, os filhos
dessa ‘maioria silenciosa’ não diferiam grandemente dos pais em matéria de gosto,
com uma pequena diferença: a sua preferência por uma música de dança
ligeiramente mais ruidosa. Apenas uma minoria da classe média branca, a
intelligentsia, prestigia de modo elitista o jazz negro ao lado da música erudita,
sobretudo a de vanguarda, recusando como ‘lixo’ qualquer tipo de música popular.
(MUGGIATI, 1973: 34)
Assim, o blues, o rhythm and blues e o rock and roll foram deixados nas
mãos das pequenas gravadoras, pois atendiam a um público consumidor não
muito extenso, formado basicamente por negros. As pequenas estações de rádio de
áreas urbanas transmitiam programas de R&B (e posteriormente de rock and roll).
Jovens brancos, a procura de um novo estilo de vida que não o de seus pais
como foi assinalado no contexto histórico pós-guerra, abordado no início deste
capítulo -, ouviam este novo ritmo e corriam para as lojas de discos das cidades
23
.
O rock and roll e o R&B, com seu excesso de sensualidade tanto nas letras
das músicas quanto na forma de dançar, não agradavam os pais desses jovens
brancos que começavam a consumir o ritmo. Tampouco satisfaziam as grandes
instituições sobre a qual a “tecnocracia” se desenvolveu a Igreja, as escolas, os
órgãos oficiais, o governo -, pois o que estava sendo ameaçado eram a moral e os
bons costumes da sociedade americana. E tais ritmos também não agradavam as
grandes gravadoras que controlavam o mercado fonográfico, pois elas não
possuíam artistas de R&B, tampouco de rock and roll.
Mas um problema se delineava neste ponto. As rádios, que vinham decaindo
depois da chegada e conseqüente concorrência com a televisão, viram nos novos
ritmos uma possibilidade de salvação econômica, e não se negavam a executar tais
músicas das classes baixas:
No início, as grandes ignoraram o R&B. Por volta de 1953, a venda de gravações
de R&B e a execução nas rádios fizeram com que elas produzissem covers dos
sucessos de R&B. Para as grandes gravadoras, produzir covers significava pagar
22
A hipótese trabalhada por Paul Friedlander é a de que Elvis Presley foi quem juntou os ritmos,
transformando-os em um híbrido que recebeu o nome de rockabilly e que seria o trampolim para
muitos ‘roqueiros clássicos’ que surgiam em meados da década de 1950.
23
Veremos, logo adiante, como o rock and roll serviu para criar uma identidade de grupo entre a
juventude dos anos 50 e 60, inicialmente.
A Contracultura
48
royalties pelos direitos de gravação de uma música quase sempre trocando as
letras e amenizando as partes mais pesadas e lançar sua própria versão, gravada
por um artista pop da casa. Durante aproximadamente três anos (1953-1955), essa
prática teve o efeito de obscurecer as versões negras originais. As independentes
simplesmente não conseguiam prensar discos suficientes e perderam o sistema de
distribuição nacional – e elas não tinham uma rede de influência necessária com os
responsáveis pelas estações de rádio para assegurar a execução. (FRIEDLANDER,
2003: 39)
No geral, esses covers eram modificados, davam mais ênfase à melodia,
suavizando as letras que falassem de relacionamentos amorosos e sexuais de
forma menos envergonhada, mas que ainda assim fizessem sucesso entre os
jovens. Como sinaliza Muggiati (1973: 40): “Não é qualidade o que preocupa as
grandes gravadoras: existe um público ávido para consumir a nova música e elas,
com seus eficientes sistemas de distribuição, vão ao seu encontro em todo canto
do país”
24
.
Dessa forma, o próprio rock and roll é fruto de várias tensões entre uma
sociedade que se preocupava com a moral e os bons costumes da juventude e uma
sociedade de consumo, que enxergava no mesmo rock and roll imoral um grande
filão a ser explorado entre os jovens. O rock nasceu como produto e como revolta,
ao mesmo tempo. A sociedade americana se viu obrigada a abrir mão de seus
valores tradicionais, em troca de mais dinheiro pelo produto rock dinheiro que
não vinha apenas da venda de discos, mas também dos shows, da audiência dos
programas de televisão que mostravam os ídolos adolescentes do rock e, mais
tarde, de revistas, camisetas, bottons, bonés, calças, calçados e até mesmo álbum
de figurinhas com os ídolos da juventude. Mas as transformações sociais e
culturais decorrentes dessa permissividade em relação ao rock and roll, por parte
da sociedade americana, ainda não podiam sequer ser imaginadas em meados dos
anos 50. estava se desenvolvendo a tal “cultura popular jovem”
(HOBSBAWN, 1995) que iria trazer tantas mudanças ao longo da década de
1960. Como observa Paul Friedlander (2003: 46):
24
Nesse ponto, Muggiati ainda assinala: “Novamente a criação original negra é empacotada por
brancos e vendida ao grande público branco. A cópia institucionalizava-se e ressurge o mecanismo
das covers (‘coberturas’) cópias exatas de canções lançadas ou gravadas. Na grande maioria
dos casos, são cópias que cantores brancos fazem, ‘cobrindomaterial original negro. o óbvias
as razões por que muitas canções de sucesso acabaram sendo aceitas quando expostas à massa
consumidora por um artista simpático, cativante – e branco.” (1973, p. 36)
A Contracultura
49
Na era do homem de empresa, na qual os pais trabalhadores se esforçavam para ter
seu lugar e se conformar, o rock se tornou um catalisador para os adolescentes
formarem sua própria identidade de grupo um companheirismo entre aqueles que
gostavam da música e se identificavam com ela. Muitos jovens dos anos 50 viam
no rock and roll uma expressão de rebeldia e de uma inquietude crescente contra a
perceptível rigidez e banalidade de uma época dominada por políticos republicanos
conservadores e pela musicalidade de Mictch Miller. O rock and roll lhes deu um
senso de comunidade, como dariam os protestos antiguerra da geração seguinte.
Ao mesmo tempo em que os jovens buscavam uma vida diferente da que
seus pais tiveram – estando alheios aos problemas das épocas de crise e de
guerras, que a única coisa que vivenciaram tinha sido a “Era de Ouro” eles
ajudavam a solidificar a “sociedade dentro da Comunicação de Massa”; a
identidade isolada que esses jovens buscavam foi o que os levou, exatamente, a
consumir os produtos oferecidos pela sociedade capitalista “tecnocrática”. Essa
tensão iria se agravar ainda, como será assinalado adiante: os jovens da
contracultura, que rejeitavam exatamente essa sociedade capitalista
“tecnocrática”, adotaram o rock como idioma de sua sociedade. Mas isso resultava
apenas na fortificação da sociedade de consumo, a partir da venda de produtos
simbólicos, culturais e materiais (o rock aí incluído) que a rejeitasse.
O grande e acelerado desenvolvimento tecnológico – principalmente o boom
desse desenvolvimento relativo aos meios de comunicação de massa – influenciou
de maneira direta essa “cultura popular jovem” que começou a se formar com a
explosão do rock and roll:
Até o começo do século, a tradicional família praticava impunemente a lavagem
cerebral dos filhos: o mesmo repertório de informações e valores era transmitido
quase intacto de geração a geração. Com o dilúvio de dados provocado pelos novos
media sobretudo os eletrônicos esses compartimentos estanques de classes e
hierarquias foram invadidos e todo mundo se viu bruscamente na situação do
náufrago: nadar para sobreviver. Nadar, no caso, equivalia a digerir e manipular
convenientemente a massa de informação despejada diariamente pela indústria das
comunicações. Foi dentro dessas condições que os jovens, para se defender,
criaram um campo de informação próprio. (MUGGIATI, 1973: 11/12)
Segundo Friedlander, esse primeiro estouro do rock and roll ocorreu de
meados até o fim da década de 50. A partir de 1959, aproximadamente, acontece
uma transição para a chamada música popular, pois o rock clássico tinha
desaparecido de cena. Isto ocorreu porque os roqueiros saíram de cena (Elvis
Presley se alistou no exército, desfazendo a imagem de roqueiro-delinqüente-
A Contracultura
50
juvenil, e outros também se afastaram da música; alguns, como Buddy Holly,
morreram); a pressão da Igreja, dos pais e dos órgãos oficiais do establishment
25
também contribuiu para enterrar a primeira era do rock; além disso, as grandes
gravadoras não tinham muito poder de ação dentro do rock e as pequenas não
suportaram a pressão. Os ídolos dessa juventude do início dos anos 60 eram
apenas uma visão não-rebelde dos ídolos do rock produtos sobre os quais o
establishment pudesse ter algum controle, como afirma Friedlander (2003: 106):
“Os artistas, a maioria homens bonitos e elegantes, cantavam um rock artificial
com pouco ou nenhum ritmo, arranjos açucarados e uma profusão de seguras e
ingênuas mensagens românticas”. No lugar do rock ficou:
(...) uma variedade de estilos que pouco tinham em comum além da ausência de
uma batida forte, de uma visão de mundo e de um estilo de performance que
veiculavam mais o amor romântico em detrimento do apelo sexual. Estes novos
estilos pop iam desde as iniciativas bem-sucedidas dos chamados ídolos da
juventude até as novas tendências da emergente música folk, do calipso ‘étnico’, de
outros instrumentais do pré-reggae caribenho (a maior parte apresentando
guitarras), do surf sound californiano e dos primeiros sucessos do soul e dos
artistas da Motown.
26
(FRIEDLANDER, 2003: 105)
Mas não foi apenas como conteúdo e forma que o rock and roll
revolucionou as bases da música; também o processo de gravação e distribuição
de músicas foi transformado. Durante a primeira fase do rock and roll, os artistas
faziam questão de participar diretamente de todo o processo, compunham suas
próprias músicas e gravavam com suas próprias bandas.
Entretanto, no início dos anos 60, o establishment reafirmou seu controle
sobre todo o processo; os artistas eram apenas intérpretes, músicos de estúdio
temporários que gravavam as músicas e os compositores eram profissionais
contratados. Segundo Simon Frith, essa fase pela qual a música pop passava, essa:
“a equação do processo musical pelo fabrico de discos e dinheiro não satisfazia a
25
Segundo o dicionário Michaelis, o termo establishment significa: “autoridades (públicas e
privadas) estabelecidas; sistema governante”. Disponível em:
<http://www2.uol.com.br/michaelis>. Acesso em: 4 jan. 2006 .
26
Os vários ritmos citados por Friedlander podem ser exemplificados: nos primeiros anos da
década de 1960, o que o autor chama de “calipso étnico” e de “pré-reggae caribenho” foi o que deu
destaque a ritmos como o reggae (que se desenvolveria mais tarde) e a salsa; na música folk”,
temos o exemplo de Joan Baez; o surf soundtem os Beach Boys como seu maior representante;
e a gravadora Motown, famosa por lançar artistas de soul musiclançava os primeiros sucessos
de Smokey Robinson, Marvin Gaye e Marvelettes (FRIEDLANDER, 2003: 110/111/112/113)
A Contracultura
51
idéia original do rock´n´roll, que era a de fazer música direta” (2002: 17). O autor
ainda observa que:
A atenção criativa passou dos artistas para os que faziam discos os compositores,
arranjadores e produtores, para os quais os cantores eram apenas uma fachada
adolescente. O declínio do rock´n´roll como dança representou o crescimento de
novos tipos de som pop, saídos de fábricas de sucesso (...). (FRITH, 2002: 47)
A partir de 1963, o mundo da música inicia uma nova revolução, que iria
alimentar a “cultura popular jovem”. Muitos autores, como Paul Friedlander e
Roberto Muggiati, localizam essa revolução com o surgimento dos Beatles.
Começava a segunda e definitiva era do rock onde ele próprio iria se
transformar e adquirir uma dimensão nunca antes imaginada. Desde então, o rock
veio para ficar e moldar um novo estilo de vida que, até hoje, é modelo para a
juventude ocidental. Junto com os Beatles veio a chamada “invasão inglesa”:
vários grupos de rock britânicos – num cenário antes dominado pelos norte-
americanos começaram a despontar e fazer muito sucesso em todo o mundo. Os
Beatles iriam transformar o rock and roll em rock tirando das mãos dos
“especialistas” da “tecnocracia” o controle sobre o material produzido e
assumindo os processos de composição, gravação e produção da música para eles
mesmos - e consolidariam uma carreira mundial através das mudanças
introduzidas por eles na música
27
:
A experimentação realizada pelos Beatles e outros grupos da invasão inglesa
ajudou a redefinir a natureza da música do rock, das letras e da cultura que a
cercava. As fronteiras musicais foram tão alargadas que puderem incluir a cítara,
um instrumento de cordas indiano, e gravações de guitarra tocadas ao fundo, assim
como letras que continham interpretações do Livro Tibetano dos Mortos.
(FRIEDLANDER, 2003: 24/25)
Por volta de 1965, o rock poderia se diferenciar bem do rock and roll da
década de 1950 e os Beatles tiveram grande participação nisso. As letras da
música rock, que caracterizaram a década de 1960, falavam de assuntos mais
sérios (embora ainda ligados ao cotidiano e, geralmente, mantendo a postura
irônica iniciada pelo rock and roll). Na forma, o rock também passou por
27
Como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo desta dissertação.
A Contracultura
52
mudanças o rock-de-estúdio
28
-, mas manteve o caráter da juventude, de revolta
e barulho uma outra música para um outro mundo. Entretanto, se os jovens se
utilizavam do rock para ir contra a “sociedade tecnocrática”, o mercado parecia
não dar atenção o importante era vender e essa função o rock sempre cumpriu
muito bem:
Em meados dos anos 60, houve um boom inédito no mercado musical, e, dessa vez,
os músicos compunham seu próprio material e começavam a controlar os sons de
seus próprios discos. Ao adaptar os sofisticados canais do estúdio à música
rudimentar dos shows baratos, os grupos britânicos tiveram de aprender como
arranjos e músicas funcionavam. Logo ficou mais fácil escrever músicas que
soassem bem do que trabalhar em cima dos trabalhos dos outros. Mais uma vez, a
prática dos Beatles tornou-se modelo para todos os demais. Eles escreveram
músicas adolescentes que não seguiam regra alguma, mas que eram engraçadas,
irônicas e pessoais. (...) O que começou com um resgate do pop, uma nova
explosão de rock´n´roll adolescente, acabou então sugerindo um rol de novas
possibilidades para a música popular, como uma forma de expressão artística: o
rock´n´roll virou rock. (FRITH, 2002: 20)
Quando o movimento de contracultura se inicia, em meados da década de
60, os Beatles estavam no seu auge – não apenas no auge da carreira, mas também
no auge da inovação artística. Curiosamente, eles adotaram e foram adotados pela
contracultura e representaram, ao mesmo tempo, um gigantesco número de
vendas, alimentando a sociedade “tecnocrática” de consumo. Essa tensão entre
contracultura e “tecnocracia” é bem representada, portanto, pelos Beatles. E para
entendê-la, analisaremos a história dos quatro rapazes ingleses no próximo
capítulo:
Os discos dos Beatles lembraram-nos da força do rock´n´roll não somente de sua
força sonora, mas também de sua força cultural, sua habilidade de mover platéias e
de dominar a vida das pessoas. O sucesso dos Beatles mostrou que era possível ter
um impacto cultural de massa ao mesmo tempo que se preservava o status de
músico ‘de verdade’. (FRITH, 2002: 21)
Neste capítulo destacou-se a “Era de Ouro” pela qual o ocidente capitalista
desenvolvido passou no momento posterior ao fim da II Guerra Mundial e as
28
Sobre essa mudança do rock, Muggiati comenta: “Mas o rock n´roll da década de 1950 se
preocupou demasiadamente com o ritmo e por isso não desenvolveu em toda a sua potencialidade
os potenciais da amplificação. Somente o rock posterior a 1965 exploraria essas possibilidades,
fazendo da própria amplificação um novo médium e tentando repetir nos concertos ao vivo a
riqueza e a densidade do rock-de-estúdio.” (1973, p. 59)
A Contracultura
53
conseqüências sociais e culturais decorrentes deste fato, que resultaram no
surgimento do movimento de contracultura, liderado pelos jovens que ganharam
status de agentes sociais a partir do momento em que se forma um mercado
consumidor exclusivamente voltado para eles. Paradoxalmente, ao mesmo tempo
em que eles rejeitavam o establishment através da contracultura, alimentavam-no
quando consumiam os produtos culturais e/ou simbólicos que a própria
contracultura fabricava e que poderia circular através do consumo. Assim,
esses jovens encontravam-se em um momento de constante tensão entre consumo
e contracultura. É neste momento ambíguo que os quatro componentes dos
Beatles se juntam e formam um grupo de rock and roll no final da década de
1950.
Observou-se também neste capítulo como as características da contracultura
se aproximaram das características da “sociedade dentro da Indústria Cultural”
(ROCHA, 1995), ameaçando-a. Por isso, a cultura de massa que vende o tempo
todo esta sociedade engoliu a contracultura, se apropriando de sua ideologia,
seus produtos e símbolos para ganhar mais dinheiro. Essas tensões entre consumo
e contracultura, entre a “sociedade dentro da Comunicação de Massa” e a
sociedade que os jovens estavam tentando criar estão presentes nas letras de
músicas dos Beatles que foram selecionadas, como será observado no capítulo
seguinte.
4
The Beatles – mito, produto e discurso
4.1. Beatles for sale
Os Beatles venderam no mundo inteiro mais de um bilhão de discos
29
. São
colecionadores de recordes
30
: nos Estados Unidos, lideram a lista de artistas com
mais singles nos topos das paradas (foram vinte músicas entre 1964 e 1970) e são
o grupo com maior número de álbuns no topo das paradas musicais (foram
dezenove discos que alcançaram o primeiro lugar em vendas, mais que o dobro do
número conseguido por Elvis Presley); no Reino Unido, eles lideram a lista dos
que tiveram mais singles em primeiro lugar, consecutivamente; até 1986, também
registraram o recorde da música mais regravada do mundo Yesterday, com mais
de 1600 versões; e o álbum 1, que reúne os maiores sucessos dos Beatles, vendeu
13,5 milhões de cópias no mundo inteiro no primeiro mês que se seguiu ao
lançamento. Por isso, é tão importante para o campo da Comunicação Social
tentar compreender o que faz dos Beatles um fenômeno da cultura de massa.
foi destacado até aqui as discussões sobre cultura de massa, na qual os
Beatles estão inseridos; o contexto histórico em que eles surgiram, incluindo a
contracultura, com a qual eles travaram uma relação dialética entre propagar a
mensagem que o movimento jovem pregava contra o establishment e,
simultaneamente, depender dele para realizar tal propagação. Neste momento,
será detalhada a história da banda. A pesquisa foi realizada em diversos livros,
como Rock and roll: uma história social (FRIEDLANDER, 1997), The Beatles:
an illustrated record (CARR e TYLER, 1978), Paz, amor e Sargent Pepper’s: os
bastidores de Sgt. Pepper (MARTIN e PEARSON, 1995), Antologia (GENESIS
29
Biggest All-Times Sales For A Band”. GUINESS WORLD RECORDS, 2005. Seção Arts and
Media Pop Stars. Disponível em:
<http://www.guinnessworldrecords.com/content_pages/record.asp?recordid=50910>. Acesso em:
5 jan. 2006.
30
GUINESS WORLD RECORDS, 2005. Seção Find a world record. Disponível em:
<http://www.guinnessworldrecords.com/content_pages/search.asp?searchstring=beatles>. Acesso
em: 5 jan. 2006.
The Beatles – mito, produto e discurso 55
55
PUBLICATIONS, 2001) e também nos 5 DVD’s que compõe o Anthology
(WONFOR, 2003). O que se encontrou neste material foram diversas versões de
uma história, ou seja: o ‘mito’ dos Beatles que é vendido ainda hoje como um
‘produto’. Não está sendo aqui posta em dúvida a veracidade dos fatos, mas a
estrutura de todas as histórias encontradas nos livros e DVD’s citados acima são
semelhantes entre si mesmas e também semelhantes a uma estrutura mitológica.
Destaca-se, agora, a ‘história-mito’ do grupo tal qual ela é vendida como produto,
que os próprios Beatles o um produto da cultura de massa e assim se
assumem, como no título de seu quarto álbum Beatles for sale, ou - Beatles à
venda - de 1964.
A primeira parte da história conta o ‘encontro mágico’, como os quatro
componentes do grupo se conheceram e formaram a banda, aonde isso aconteceu
e qual era o contexto da época.
Liverpool é uma cidade portuária inglesa, onde, no ano de 1940, durante a II
Guerra Mundial, nasceram Richard Starkey (7 de julho) e John Winston Lennon
(9 de outubro). Em 18 de junho de 1942, nasceu James Paul McCartney e, em 25
de fevereiro de 1943, George Harrison (GENESIS PUBLICATIONS, 2001). A
Segunda Guerra terminaria em agosto de 1945, trazendo inúmeras transformações
econômicas, políticas, sociais e culturais, como observamos no capítulo
anterior. Os jovens da década de 50 teriam muita dificuldade em se posicionar
nesse novo mundo, totalmente diferente do mundo da juventude de seus pais. O
rock n´roll, fusão de ritmos brancos e negros, estouraria em 1954, com Elvis
Presley representando uma classe média branca americana, que começava a se
rebelar contra o establishment o que iria se agravar na cada de 1960. Os
jovens de Liverpool, entretanto, tinham grande vantagem sobre os jovens de
Londres como viviam numa cidade portuária, os discos de blues, de rhythm &
blues e de rock n’roll americanos chegavam à cidade antes que chegassem à
capital. Enquanto o resto da Inglaterra ouvia o skiffle, um ritmo semelhante ao
blues, Liverpool via nascer as primeiras bandas de rock n´roll de estilo americano
(WONFOR, 2003).
No dia 6 de julho de 1957, Paul McCartney visitou uma feira em Liverpool,
onde viu se apresentar uma banda de rock n’roll, formada por estudantes: The
Quarrymen - cujo vocalista e guitarrista era John Lennon. Paul, então com 15
anos, também já tocava guitarra e ficou impressionado com a habilidade de
The Beatles – mito, produto e discurso 56
56
Lennon para a música. Pediu pra entrar na banda e John, um tanto quanto
desconfiado, solicitou a McCartney que tocasse alguma coisa. Paul tocou Twenty
Flight Rock, de Eddie Cochran, e John ficou impressionado como Paul articulava
bem as palavras; logo ele foi incluído na banda (WONFOR, 2003). George já
conhecia Paul, mas, por ser mais novo, não conseguia ganhar muita atenção. Um
dia, ele mostrou a John e Paul que realmente sabia tocar guitarra e também entrou
no grupo, agora formado por: John Lennon, vocal e guitarra; Paul McCartney,
vocal e guitarra; George Harrison, vocal e guitarra e Stuart Sutcliffe, contra-baixo.
Stuart era um amigo de John da escola de artes de Liverpool e artista
plástico talentoso. Certa vez, vendeu um quadro por uma quantia razoável e John
o convenceu de que ele tinha que comprar um contra-baixo com o dinheiro, pois a
banda precisava de um baixista. Eles se apresentavam em bares e clubs noturnos,
apesar de não terem um baterista quando perguntados o porquê de tal situação,
alegavam que “o ritmo estava nas guitarras” (WONFOR, 2003). Em agosto de
1960, a banda recebeu um convite para passar uma temporada em Hamburgo, na
Alemanha, apresentando-se em casas noturnas. Mas o convite exigia uma banda
com cinco integrantes e eles realmente precisavam de um baterista. Pete Best -
filho da dona de um club noturno, em Liverpool foi chamado na véspera da ida
dos então Silver Beetles para Hamburgo (GENESIS PUBLICATIONS, 2001).
A etapa seguinte da história dos Beatles retrata o ‘período de sofrimento’
pelo qual os rapazes passaram. As diversas temporadas que eles passaram em
Hamburgo, tocando todas as noites, são retratadas como um período penoso, mas
recompensador em termos musicais para os Beatles.
Os cinco rapazes – John, Paul, George, Stuart e Pete – seguiram para
Hamburgo junto com outros grupos de rock n’roll que surgiam na época em
Liverpool e adjacências, entre eles, Rory Storm & The Hurricanes, cujo baterista
era Richard Starkey, que ficaria conhecido nos Beatles como Ringo Starr. Na
temporada que fizeram na cidade alemã em 1960, Ringo tocou algumas vezes com
eles, porque Pete Best não aparecia em todos ensaios (WONFOR, 2003).
Aliás, o nome da banda passou por muitas transformações. A escolha de The
Quarrymen foi feita porque, na época, todos os integrantes estudavam na Quarry
Bank High School. Depois, Sutcliffe sugeriu que a banda se chamasse The Silver
Beetles (Os Besouros Prateados), em homenagem à banda de Buddy Holly, The
Crickets (Os Grilos). Mais tarde reduziram o nome apenas para The Beatles,
The Beatles – mito, produto e discurso 57
57
mudando a grafia para possibilitar o duplo sentido, que beat significa batida em
inglês (WONFOR, 2003).
Em Hamburgo, tocaram em casas noturnas como o Indra Club e o
Kaiserkeller - moraram num antigo cinema abandonado. Sem tempo para dormir,
tomavam estimulantes Preludin (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 50)
buscando disposição para tocar a noite toda. Foi uma temporada bastante
proveitosa para os jovens rapazes, tanto pessoalmente, como profissionalmente -
pois eles tocavam a noite inteira (quase sem tempo de descanso), desenvolvendo
muito seus talentos musicais. Sutcliffe se apaixonou por Astrid Kishnerr - uma
fotógrafa alemã, que iria tirar muitas das mais famosas fotos dos Beatles e que
sugeriu o tão famoso corte de cabelo típico da banda (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 50).
Em dezembro de 1960, eles assinaram contrato com a principal casa noturna
de Hamburgo, o Top Ten Club, e deixaram o Kaiserkeller. Insatisfeito com a ida
dos rapazes para outro club, o dono deste bar fez uma denúncia à polícia alemã,
dizendo que George era menor de idade ele faria 18 anos em Fevereiro de 1961.
George então foi deportado e os outros tiveram suas licenças de trabalho cassadas
(GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 55/56).
Em abril de 1961, eles voltaram para Hamburgo para uma outra temporada
de dois meses. Em junho, os Beatles gravam com Tony Sheridan, fazendo backing
vocal, a canção My Bonnie. O compacto sai creditado a Tony Sheridan & The
Beat Brothers (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 59).
Quando os Beatles retornaram à Liverpool, Stuart decidiu ficar com Astrid e
entrou para a escola de arte em Hamburgo. Paul assumiu o contrabaixo. Em 11 de
abril de 1962, eles voltaram para mais uma temporada na cidade alemã, tocando
desta vez no Star Club. Quando chegatam, receberam a notícia de que o amigo e
ex-integrante da banda Stuart Sutcliffe tinha morrido na noite anterior, de
hemorragia cerebral. Mas os Beatles cumpriam seu contrato, permanecendo na
cidade até junho de 1962. Neste mesmo ano, eles ainda retornaram a Hamburgo
para curtas temporadas em novembro e dezembro (WONFOR, 2003).
A etapa seguinte dessa ‘história-mito’ atua como uma ‘recompensa’ pelo
árduo período passado em Hamburgo. Trata-se de um novo ‘encontro mágico’,
desta vez, dos próprios Beatles com o empresário Brian Epstein e com o produtor
The Beatles – mito, produto e discurso 58
58
musical George Martin, que foram indispensáveis para que o grupo se tornasse o
fenômeno da cultura de massa como é conhecido hoje.
Entre as idas e vindas de Hamburgo, algo curioso ocorreu. Brian Epstein era
o jovem dono de uma loja chamada NEMS North End Music Stores, em
Liverpool. Ele iria se tornar o empresário que alavancaria a carreira dos Beatles e
conta como ouviu falar do grupo pela primeira vez:
No sábado, 28 de Outubro de 1961, um garoto me pediu um disco de um grupo
chamado The Beatles. Sempre foi a nossa política considerar todo e qualquer
pedido. Escrevi num bloco: ‘My Bonnie’. The Beatles. Verificar na segunda-
feira.’ (...) Antes de eu ter tempo de checar na segunda-feira, duas garotas entraram
na loja e pediram um disco desse grupo. Esta, ao contrário da lenda, foi a soma
total de pedidos do disco nessa época em Liverpool. Mas eu tive certeza de que era
significativo, três pedidos de um disco desconhecido em dois dias. Fiz contatos e
descobri o que não tinha percebido ainda, que os Beatles eram um grupo de
Liverpool, que acabava de retornar do extremo quente, úmido e sujo Hamburgo,
onde haviam tocado em clubes. Uma garota que eu conhecia me disse: ‘Os
Beatles? São o máximo. Estão no Cavern toda semana...’. (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 65)
Em 9 de novembro de 1961, Epstein foi ao Cavern Club
31
ver quem eram os
tão procurados Beatles. Ele enxergou todo o potencial dos rapazes e tornou-se seu
empresário, realizando a primeira notável mudança: o figurino. Os Beatles
abandonaram as roupas de couro e passaram a usar terninhos mais modernos,
passando uma imagem de garotos mais comportados. John Lennon conta:
Ele estava tentando limpar a nossa imagem: disse que a nossa aparência não estava
correta, que nunca atravessaríamos a porta de um lugar melhor. (...) Tínhamos que
escolher isso ou continuar comendo galinha no palco. Respeitávamos as suas
opiniões. Paramos de mastigar pães com queijo e sanduíches de geléia; começamos
a prestar muito mais atenção ao que estávamos fazendo, fazíamos o máximo para
sermos pontuais e nos arrumávamos melhor. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001:
67)
Os Beatles realizaram um disco patrocinado por Epstein, que foi atrás de
alguma gravadora que quisesse contratá-los. A Decca foi apenas uma das que os
rejeitou o diretor da gravadora na época, Dick Rowe, comentou que os grupos
de guitarra estavam com os dias contados (GENESIS PUBLICATIONS, 2001:
31
Os Beatles se apresentaram no Cavern Club 292 vezes de março de 1962 até agosto de 1963
(FRIEDLANDER, 2003).
The Beatles – mito, produto e discurso 59
59
67). Finalmente, conseguiram um contrato com o selo Parlophone, que pertencia
à gravadora EMI.
Em junho de 1962, eles entraram em contato com o produtor musical,
George Martin (que iria acompanhá-los durante toda a carreira), que não gostou
de Pete Best e providenciou um baterista de estúdio (Andy White) para a gravação
do primeiro compacto Love Me Do / P.S. I Love You, enquanto John, Paul e
George acionaram rapidamente o amigo Ringo. Os dois bateristas tocaram no dia
da gravação, que aconteceu em 11 de setembro de 1962. No compacto, Love Me
Do tem a bateria de White; a versão que está no primeiro álbum dos Beatles,
Please Please Me, conta com Ringo Starr como baterista. O compacto foi um
sucesso de vendas correu o boato de que o próprio Epstein teria comprado dez
mil cópias do disco, levando os Beatles ao topo das paradas, de onde não sairiam
tão cedo (WONFOR, 2003).
Em março de 1963 foi lançado o primeiro álbum dos Beatles, Please, Please
Me gravado em uma única sessão de doze horas (GENESIS PUBLICATIONS,
2001: 92) -, que atingiu o primeiro lugar nas paradas britânicas. O álbum tinha
quatorze faixas, sendo que oito composições de Lennon e McCartney. Em
seguida, foram lançados diversos compactos e o álbum With The Beatles (com
quatorze faixas: sete composições de Lennon e McCartney, uma de George
Harrison e as outras seis de outros compositores), em novembro de 1963. Sucesso
absoluto em toda a Europa, eles conquistaram até a Rainha da Inglaterra: em 4 de
novembro de 1963, os Beatles se apresentaram no Royal Variety Show, diante de
Sua Majestade e, além de muito aplaudidos, ainda foram extremamente ousados,
quando John declara: “Para nossa última música gostaria de pedir sua ajuda. O
pessoal da geral pode bater palmas. O resto, por favor, chacoalhe as jóias.”
(GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 105).
Se o rock and roll, como analisamos, nasceu como um híbrido cultural,
carregando uma contradição em si mesmo - ser contra-a-cultura’ dominante e ser
produto dessa mesma cultura, simultaneamente -, nesta declaração de Lennon no
Royal Variety Show tal contradição só é reforçada, não pela música rock and
roll sendo apresentada para a Rainha da Inglaterra, mas pela atitude displicente do
artista. Alguns criticavam muito os Beatles por se colocarem ao lado do
movimento de contracultura ao mesmo tempo em que ganhavam muito dinheiro
com as músicas (que levavam exatamente essas mensagens da contracultura):
The Beatles – mito, produto e discurso 60
60
Os Beatles o mudariam o mundo fazendo voto de pobreza, nem o mudariam
destinando seu dinheiro a organizações de caridade ou a grupos revolucionário. Sua
força – além da música, é claro – estava no fato de que se tornaram ricos e
poderosos. Isso ajudou sua arte e lhes deu recursos para se devotarem única e
exclusivamente ao rock. É óbvio que se os Beatles enriqueceram isso aconteceu
através de um ato de escolha ‘livre’ de cada pessoa, mesmo de pretensos
revolucionários: a compra de discos. Por outro lado, ao proporem um estilo de vida
impossível para todos, os Beatles se colocaram com um modelo explosivo, capaz
de comprometer toda a ordem social. (MUGGIATI, 1973: 70)
Assim, ainda seguindo o pensamento de Muggiati, o próprio sucesso dos
Beatles implicava em uma crítica; não havia a necessidade de criticar o sistema
abertamente, uma vez que eles não se importavam com o establishment e até
podiam zombar dele, como Lennon fez com essa declaração, que provocou risos
entre a platéia em hora nenhuma causou revolta ou foi encarado como um
deboche. Ao contrário, os Beatles se tornaram os queridinhos de toda a Inglaterra
e foram condecorados com a medalha de Membro do Império Britânico, em 1965,
como será detalhado mais adiante. Longe de se tornarem inimigos do Império, os
Beatles, durante a primeira metade da década de 1960, foram utilizados pelo
sistema para mascarar os problemas que o país vinha enfrentando:
Os Beatles como personagem são um prolongamento daquele tipo de anti-herói (ou
working class hero) esboçado na ficção dos angry young men ingleses (...). Os
Beatles entram em cena no momento exato em que começa a liquidação final do
Império Britânico: o escândalo Profumo (1962) desmascara a ‘pureza’ das
instituições, a Pop Art recém-criada cobre de irreverência uma cultura metida a
séria, a imprensa satírica ataca o até então inatacável através de revistas como The
Private Eye e a palavra Establishment serve de nome ao cabaré satírico mais
freqüentado de Londres: vai começar o reinado mod, com a mini-saia e os novos
dândis de Carnaby Street. (MUGGIATI, 1973: 71/72)
De forma contraditória os Beatles foram utilizados pelo establishment para
distraírem a população, de maneira a diminuir a visibilidade dos problemas
enfrentados pela Inglaterra na época, ao mesmo tempo em que se colocaram numa
posição contrária ao próprio sistema. O consumo do entretenimento Beatles servia
para distrair e divertir as pessoas; mas aos poucos, com a tomada de consciência
de toda uma geração e dos próprios rapazes, essa ‘diversão-produto’ do
establishment passou a criticar de forma mais aberta o próprio establishment.
Também no início dos anos 60, os Estados Unidos estavam precisando de algo
para distrair a juventude:
The Beatles – mito, produto e discurso 61
61
A conquista dos corações de mentes da juventude americana foi facilitada pela
perda do carismático presidente John F. Kennedy. A imprensa americana estava,
como a imprensa inglesa, inclinada a voltar suas atenções para algo menos pesado.
A personalidade dos Beatles, seu bom humor e músicas animadas e voltadas para o
amor ofereciam uma distração positiva para a tristeza. (FRIEDLANDER, 2003:
127/128)
E os Beatles, como cavalo de Tróia da Invasão Inglesa no campo da música
mais especificamente do rock and roll não serviram como distração para a
juventude mundial, mas cresceram e ingressaram no movimento de contracultura,
em meados da década de 1960, junto com essa mesma juventude.
Notamos que as três primeiras etapa do ‘mito’ dos Beatles teve como base
dois ‘encontros mágicos’ – as pessoas certas, nos lugares certos, nas horas certas –
que foram indispensáveis para a alavancada do grupo e um ‘período de
sofrimento’, mas que também os fez crescer e amadurecer, tornando-os aptos para
alcançar a recompensa: o ‘sucesso’, que é o que veremos a seguir.
Depois de muito insistir com a gravadora EMI para lançar os discos dos
Beatles nos Estados Unidos, Brian Epstein conseguiu fazer com que a Capitol
Records (selo pertencente à EMI) lançasse o compacto I Wanna Hold Your
Hand/I Saw Her Standing There em 26 de dezembro de 1963 (WONFOR, 2003).
Em 15 de janeiro de 1964, enquanto os Beatles estavam fazendo shows em
Paris, chegou um telegrama da Capitol Records endereçado à EMI, dizendo que a
banda tinha alcançado o primeiro lugar nas paradas americanas com a música I
Wanna Hold Your Hand. Assim, em fevereiro de 1964, os Beatles desembarcaram
no aeroporto John F. Kennedy, em Nova York, lotado de jovens histéricas e
partiram direto para uma entrevista coletiva, onde ficaram impressionados com
tamanho assédio. Nascia a Beatlemania, o primeiro grande fenômeno musical
planetarizado. Apresentaram-se no programa de televisão Ed Sullivan Show pela
primeira vez em 9 de fevereiro, onde o apresentador leu no ar um telegrama de
Elvis Presley desejando sucesso aos Beatles. Segundo o DVD Anthology
(WONFOR, 2003), durante os primeiros cinco minutos da apresentação deles no
Ed Sullivan, não houve índices criminais em todo o país. 73 milhões de pessoas
assistiram a esse primeiro show, o que até hoje é considerada uma das maiores
audiências dos Estados Unidos (WONFOR, 2003).
The Beatles – mito, produto e discurso 62
62
Nesse ano, realizaram uma turnê mundial, iniciada em junho, passando por
Escandinávia, Hong Kong, Austrália e Nova Zelândia. Nessa época, mais
precisamente em fevereiro, estava sendo produzido o primeiro filme dos
Beatles, A Hard Day´s Night, dirigido por Richard Lester, que consolidaria a
Beatlemania em todo o mundo. O filme foi lançado em julho de 1964, com
premiére em Londres e em Liverpool e foi sucesso de público e crítica. Filmado
em preto e branco, o diretor Dick Lester e o roteirista Alun Owen fizeram questão
de captar as características pessoais de cada integrante, que nenhum deles era
ator profissional. O resultado foi uma comédia leve, inteligente e recheada de
videoclipes
32
. Além disso, diferente do que acontecia com freqüência, os Beatles
se apresentaram (e o filme é um reflexo disso) como uma banda formada por
quatro personalidades separadas:
(...) a banda não consistia em um líder e três seguidores, mas de quatro pessoas
separadas, com personalidades individuais. John era o extrovertido espirituoso,
Paul, o bonitinho e inteligente, George, o mais calmo e Ringo, o ursinho vulnerável
que dava vontade de abraçar. As fãs tinham quatro potenciais arrasadores de
coração para escolher. (FRIEDLANDER, 2003: 128)
33
1964, aliás, é o ano dos Beatles: não um ano de consolidação, como
também de mudanças. No dia 28 de agosto, enquanto estavam em mais uma turnê
que passou pelos Estados Unidos e Canadá, os Beatles foram apresentados a Bob
Dylan, num hotel em Nova York. Além da primeira experiência com maconha,
vivenciada pelo grupo (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 158), Dylan também
teve grande influência no rumo que os próximos álbuns iriam tomar: as letras e
músicas dos Beatles assumiriam uma forma e um conteúdo mais mergulhados no
experimentalismo intuitivo, na contestação, na análise pessoal de cada um,
deixando de lado o iê-iê-iê e consolidando o estilo rock e não o rock n’roll
34
,
como observa Friedlander (2003: 132):
32
A linguagem do videoclipe começa a surgir no filme A Hard Day’s Night e ganha impulso
quando os Beatles param de fazer shows e, em vez de se apresentarem ao vivo nos programas de
televisão do mundo inteiro, mandam os promotion films videoclipes, tal como os entendemos
hoje. Veremos isso mais detalhadamente ainda neste capítulo.
33
O que nos remete aos conceitos de projeção e identificação utilizados por Morin (1967) para
teorizar sobre a cultura de massa.
34
Roberto Muggiati defende a idéia de que foram os Beatles quem fizeram a transição do rock
and roll para o rock. Sobre isso, Friedlander observa (2003: 132/133): “O rock, um gênero que
The Beatles – mito, produto e discurso 63
63
As letras dos Beatles estavam sofrendo uma simultânea evolução de temas –
intensificada pelos amigos e conhecidos, principalmente do mundo das artes, que
viviam estilos de vida culturais alternativos. Como os americanos, os ingleses
estavam em busca de uma análise filosófica e política do status quo, oferecendo
também uma solução que consistia em variados graus de mudança ou escape. Os
Beatles participaram destas mudanças, refletindo estas experiências musicalmente
com modificações tanto na forma quanto no conteúdo. Bob Dylan foi um dos
primeiros catalisadores destas mudanças.
Eles começaram a se preocupar em fazer um som diferente, mais
característico, prestando mais atenção nas letras. Começaram a utilizar
instrumentos diversos, que não os usuais do rock and roll (como, por exemplo,
cítara, flauta e cordas); além disso, também passaram a inserir sons não
identificáveis, como o feedback de guitarra em I Feel Fine, de 1964, e sons de
arranhado e de tosse, só para citar alguns. Isso já pode ser percebido no álbum que
sucede Beatles For Sale (novembro de 1964) - o Help! (agosto de 1965), que
também foi trilha sonora do filme homônimo. Ringo declara:
Eu sentia que estávamos progredindo musicalmente, com altos e baixos. Uma parte
do material em “Beatles For Sale” e no álbum “Rubber Soul”, de 1965, era
simplesmente brilhante, nada do que estava sendo produzido se comparava a isso.
O trabalho no estúdio estava ficando realmente muito bom. (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 159)
A rotina estressante de shows sucessivos e as incansáveis fãs deixavam
apenas os quartos de hotel como recanto de sossego para os Beatles. Friedlander
(2003: 131) observa que, para eles, “a vida em excursões tornou-se uma insana
paródia da paródia de A Hard Day’s Night”.
O segundo filme da banda foi filmado nas Bahamas, Áustria e Inglaterra,
numa época em que, como os próprios Beatles declararam, fumavam maconha no
café da manhã, como relata John:
(...) com “Help!”, Dick Lester não nos contou sobre o que era. Eu percebo agora o
quanto era avançado. Foi um precursor daquelas onomatopéias visuais do Batman
‘Pau! Uau!’ na TV – esse tipo de coisa. Mas ele nunca explicou para nós. Em parte,
talvez, porque o tínhamos passado muito tempo juntos entre ‘A Hard Day’s
Night’ e o Help!’ e em parte porque estávamos fumando maconha no café da
manhã nesse período. Ninguém conseguia se comunicar com a gente; eram olhares
nem mesmo seus mais sérios defensores poderiam chamar de filosoficamente importante, estava
adquirindo uma dimensão ‘séria’. E os Beatles estavam entre os pioneiros.”
The Beatles – mito, produto e discurso 64
64
no vazio e risadinhas o tempo todo. No nosso mundo. (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 167)
No álbum Help!, vemos as personalidades de cada um mais destacadas
Paul em Yesterday, seu primeiro vôo solo ; George mostrou incrível melhora em
suas composições e duas de suas canções são incluídas no álbum (I need you e
You like me too much); Ringo cantou sozinho pela primeira vez em Act Naturally
e John se destacou na música Help!, escrita num momento de depressão:
Em um ano, as letras dos Beatles adquiriram um formato psicofilosófico. A trilha
sonora de Help continha nuances de introspecção e vulnerabilidade. A música-
título, que Lennon mais tarde descreveria como um grito deprimido por ajuda,
mostra uma consciência psicológica rara naquela época. Hide Your Love Away até
mesmo soava como Dylan. (FRIEDLANDER, 2003: 132)
Em 1965, eles receberam a medalha MBE (Member of British Empire) - a
medalha de Membro do Império Britânico, indo encontrar-se novamente com a
Rainha e causando grande polêmica quanto à situação. Muitos militares que
tinham recebido a medalha devolvem-na, pois não admitiam estar no mesmo
patamar que artistas pop. No DVD Anthology (WONFOR, 2003) e no livro
Antologia (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 182/184), fica a dúvida se eles
teriam ou não fumado maconha no banheiro do Palácio de Buckingham, antes de
receber a medalha; Ringo chega a comentar que eles teriam levado 5 cigarros
um para cada beatle e um para presentear o jovem príncipe Charles (WONFOR,
2003).
No dia 15 de agosto, eles realizaram o famoso show no Shea Stadium, em
Nova York com um público de aproximadamente 60 mil pessoas. Apareceram
sem os famosos terninhos, mas vestidos com túnicas e a histeria pareceu também
contagiá-los, principalmente John que tocou teclado pela primeira vez no palco.
No dia 27 de agosto, os Beatles encontram-se com Elvis Presley, realizando um
sonho antigo de conhecer o já ‘velho’ ídolo.
Em dezembro de 1965, foi lançado o álbum Rubber Soul, onde a mudança
iniciada pelo encontro com Bob Dylan é facilmente identificada em todas as
músicas, com arranjos mais complexos, letras menos românticas, introdução de
novos instrumentos (a cítara indiana, por George, é um bom exemplo) e letras de
The Beatles – mito, produto e discurso 65
65
cunho mais político, como Nowhere Man, dando início à transição do rock and
roll para o rock:
O rock era algo mais que o pop, mais que o rock´n´roll. Os músicos de rock
combinavam uma ênfase de virtuosismo e técnica com a concepção romântica da
arte como expressão individual, original e sincera. Eles alegavam não ser
comerciais – a lógica de sua música não era a de fazer dinheiro ou de encontrar um
mercado; eles estavam, na verdade, desdenhando o pop comercial. Entretanto, a
música feita naqueles princípios aparentemente não-comerciais veio a ter seu
próprio público. Os fãs da música pop também estavam mudando, preferindo os
álbuns aos compactos, investindo em som, usando música como fonte de instrução
pessoal e experiência, como também para dançar e divertir-se. O rock abasteceu (e
sugou) o lado rebelde da juventude do final do anos 60: o movimento contra a
guerra do Vietnã dentro e fora do exército -, as revoltas nos campi das
universidades, as celebrações hedonísticas de drogas e sexo. (FRITH, 2002: 22/23)
O álbum seguinte, Revolver, lançado em agosto de 1966, confirmou a
tendência mais introspectiva dos Beatles. Trouxe Taxman, de George Harrison,
uma canção de protesto; Eleanor Rigby com seus arranjos de violino; Yellow
Submarine, que se transformaria em filme mais tarde; I’m Only Sleeping com seu
solo de guitarra invertido uma inovação na época. Aliás, os recursos técnicos
disponíveis não eram muitos e a execução ao vivo das músicas mais complexas
que estavam sendo compostas tornava-se quase impossível. Nessa época, eles
também entram em contato pela primeira vez com o LSD, droga psicodélica que
iria influenciá-los muito nos próximos trabalhos (GENESIS PUBLICATIONS,
2001: 177/179/180).
Já com o sucesso garantido e cansados da correria para fazer shows e
apresentações em estúdios de TV, eles decidiram não mais ir aos programas de
televisão para divulgar suas músicas: em vez disso, organizaram PromoFilms
videoclipes para mandar para as televisões de todo mundo, atitude ousada e
inovadora, mas que acaba dando certo:
Por volta de 1967, a música dos Beatles havia ficado tão sofisticada que eles não
podiam mais apresentá-la com seus instrumentos em um estúdio de TV. Na
verdade, eles haviam parado de fazer turnês no ano anterior. Em Strawberry fields
forever eles apareciam no filme, embora não cantando ou tocando: o filme acabou
como uma série de imagens surreais complementando o clima da música. As duas
principais razões pela qual eles fizeram aquele promo são tão válidas hoje quanto
eram na época. Primeiro, o artista tem o poder de controlar a sua apresentação
visual, e não ficar simplesmente à mercê do estúdio de TV. É claro que esse poder
é, atualmente, dividido com a gravadora, que geralmente está pagando pelo vídeo,
e com o diretor, que é contratado para produzí-lo. No entanto, muito mais tempo,
The Beatles – mito, produto e discurso 66
66
dinheiro e energia criativa são gastos para se fazer um vídeo do que em qualquer
apresentação na TV. Segundo, o vídeo pode ser enviado para emissoras de TV em
todo o mundo: uma alternativa muito mais barata e eficaz de se promover um
compacto, em vez de mandar um artista numa volta ao mundo. (NISSIM, 2002:
410)
A Beatlemania tinha chegado num ponto insuportável. Por cada cidade em
que passavam, havia protestos de alguma forma. Quando estiveram em Tóquio,
um grupo de pessoas se manifestou alegando que o local onde iria ocorrer o show
o Budokan, um templo religioso era impróprio para tal acontecimento. Mas a
pior situação ocorreu durante a passagem dos Beatles pelas Filipinas, em 04 de
julho de 1966. Foram maltratados e ainda houve o incidente com a Rainha Imelda
Marcos, que teria marcado um encontro com a banda, o qual Brian recusou,
alegando que os Beatles não se envolviam em política. Mas, ainda assim, a rainha
continuou esperando-os. Com a ausência do grupo no encontro, todos no local se
voltaram contra eles. Saíram às pressas do país, com medo que a situação piorasse
(GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 219/220).
Em maio de 1966, a Beatlemania começou a entrar em crise. Naquela
época, os Beatles concordavam que a Igreja Anglicana estava perdendo fiéis e
decaindo cada vez mais e que ela deveria refletir sobre suas opiniões quanto às
mudanças pelas quais o mundo vinha passando (GENESIS PUBLICATIONS,
2001: 223). Quando a repórter Maureen Cleave, do London Evening Standard,
entrevistou Lennon, a conversa fluiu para o lado da religião e John afirmou que os
Beatles eram mais populares que Jesus Cristo. Paul explica o que aconteceu na
época:
Se você ler o artigo inteiro, percebe que o que ele estava tentando dizer era algo em
que todos nós acreditávamos: ‘Eu não sei o que está acontecendo com a Igreja.
Hoje em dia os Beatles são maiores que Jesus Cristo. Não estão fazendo o
suficiente por Jesus; eles têm de fazer mais”. Mas ele cometeu o erro infeliz de
falar muito abertamente porque Maureen era alguém que conhecíamos muito bem,
para quem falávamos as coisas na lata. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 223)
No mundo todo, as pessoas protestaram contra a polêmica declaração e
contra os próprios Beatles e Epstein convenceu John a pedir desculpas
publicamente (WONFOR, 2003). Os fãs queimaram discos da banda em praça
pública o que fez aumentar a venda de discos, que os próprios fãs tiveram
The Beatles – mito, produto e discurso 67
67
que comprar os que tinham jogado fora, como os próprios Beatles afirmam no
DVD Anthology (2003).
A grande histeria dos fãs e os novos arranjos mais complexos prejudicavam
o desempenho profissional dos quatro rapazes nos shows, o que fez com que os
Beatles deixassem de se apresentar ao vivo. Como declarou John Lennon: “A
música não era ouvida. Era um tipo de espetáculo circense: os Beatles eram o
show, e a música não tinha nada a ver com aquilo.” (GENESIS PUBLICATIONS,
2001: 229). Além disso, eles temiam pela própria segurança. O último show
aconteceu em 29 de agosto 1966, no Candlestick Park, em San Francisco
(WONFOR, 2003). Mais maduros e buscando melhorar a qualidade musical, os
Beatles agora faziam parte da juventude inconformada com o mundo:
Os jovens dos anos 60, que construíram o comportamento rebelde da década
anterior, criaram seu próprio estilo, desafiaram a moral prevalecente e inauguraram
uma época de criatividade e experimentação. Os Beatles se utilizaram dos
fundamentos do rock clássico e, ao mesmo tempo, abriram um caminho que
expandiu continuamente as fronteiras do rock. Sua integridade criativa, idealismo e
espontaneidade colocaram o desafio para os principais críticos levar a sério a
forma e o conteúdo do rock. (FRIEDLANDER, 2003: 149)
Pela primeira vez em quatro anos, os Beatles conseguiram uma pequena
folga: Ringo foi para a Espanha; John trabalhou como ator no filme How I Won
the War; George foi para a Índia (ele estava cada vez mais envolvido com a
música e com a religião indianas) e Paul assinou a trilha sonora do filme The
Family Way, ao lado de George Martin. A folga gerou boatos sobre uma possível
separação da banda (WONFOR, 2003).
Em dezembro de 1966, os Beatles lançaram sua primeira coletânea de
sucessos, Yesterday and Today, pela EMI na Inglaterra e pela Capitol nos Estados
Unidos, incluindo principalmente singles que não foram lançados em álbuns.
Outra razão para o lançamento dessa coletânea se refere principalmente à Capitol,
que lançava os discos dos Beatles com menos canções do que os lançamentos
britânicos. A canção Yesterday, que estava no álbum Help!, de 1965, só foi
lançada nos Estados Unidos nessa coletânea, por exemplo. O álbum Revolver
britânico tinha cinco composições de Lennon; o Revolver lançado pela Capitol
tinha apenas duas. Assim, a famosa foto da capa da coletânea Yesterday and
Today onde os Beatles aparecem vestidos com aventais de açougueiros, com
The Beatles – mito, produto e discurso 68
68
carne crua e pedaços de uma boneca espalhados por todo o cenário foi uma
forma de vingança contra a Capitol:
Depois de os DJs americanos reclamarem da foto, a Capitol gastou 200 mil dólares
para trocá-la por uma foto diferente. A partir daí, a maioria dos lançamentos
britânicos e americanos, começando com o de Sargent Pepper’s Lonley Hearts
Club Band pela Capitol, foi idêntica. (FRIEDLANDER, 2003: 129)
Em novembro de 1966, os Beatles voltam ao estúdio para gravar um novo
álbum. Como conta George Martin:
Nós começamos com ‘Strawberry Fields’, e depois gravamos ‘When I’m Sixty-
Four’ e ‘Penny Lane’. Eram todas destinadas para o próximo álbum. Nós não
sabíamos que era Sgt. Pepper ainda – elas seriam apenas faixas para O Novo
Álbum mas era para ser um disco criado em estúdio, e ia haver músicas que não
poderiam ser executadas ao vivo. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 237)
John compôs Strawberry Fields durante as filmagens de How I Won The
War. E a partir daí, o surrealismo começou a tomar conta das músicas dos Beatles,
como relata Paul McCartney:
O legal é que muitas das nossas músicas estavam começando a ficar um pouco
mais surreais. Eu lembro do John ter em casa um livro chamado ‘Bizarre’, sobre
todo tipo de coisa estranha. Estávamos nos abrindo artisticamente e deixando as
viseiras de lado. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 237)
Strawberry Fields é um orfanato que ficava próximo à casa que John
morava em Liverpool quando criança. Ele costumava ir sempre que queria
pensar e ficar sozinho. Penny Lane é uma rua de um bairro de Liverpool, por onde
os quatros integrantes dos Beatles também passaram durante toda a vida. As duas
músicas foram os primeiros lançamentos do ano de 1967 e não foram incluídas
no álbum porque eles não costumavam incluir singles que tivessem sido
lançados em compactos. George Martin explica: “Isto é absurdo hoje em dia, mas
naquela época era um aspecto de nossa tentativa de dar ao público valor pelo
dinheiro.” (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 239)
Quando o rock and roll surgiu, as músicas não ultrapassavam três minutos;
eram lançadas primeiro em compactos e depois como uma das faixas do LP dos
artistas. Como esclarece Muggiati (1973: 61): Depois de 1965, o rock havia
evoluído bastante para comportar, sem risco de tédio, todo o espaço de um LP. E,
The Beatles – mito, produto e discurso 69
69
também, o poder aquisitivo dos jovens (...) aumentou a ponto de favorecer o LP
como médium principal.”. Além disso, os Beatles, junto com Brian Epstein e
George Martin, começaram a mudar o comércio da música no mundo do rock:
Os Beatles subverteram de tal maneira o esquema rotineiro de comercialização que,
em 1967, com Sargent Pepper’s, lançaram o LP primeiro e depois pinçaram do
álbum uma ou duas canções, de maior agrado popular, lançando-as em compacto.
A partir daí, a coisa se inverteu: primeiro o LP, depois, duas canções mais
‘massificáveis’ do LP para formar um compacto (MUGGIATI, 1973: 61).
Agora, os Beatles tinham mais tempo de pensar nas músicas que iriam fazer,
sem ter que organizar turnês e estar se apresentando ao vivo quase todo dia.
Podiam se dar ao luxo, naquele momento, de serem mais artistas. É Paul quem
conta sobre a idéia de se fazer o Sargent Pepper’s:
Foi o começo da era hippie, e havia uma aura de badalação hippie em todos os
EUA. Comecei a pensar que o nome seria realmente louco para dar a uma banda.
Na época, havia muitos grupos com nomes como ‘Laughing Joe and His Medicine
Band’ ou ‘Col. Tucker’s Medicinal Brew and Compound’; aquela coisa toda de
andar em carruagens pelo Velho Oeste, com nomes longos e extravagantes. Juntei
então essas palavras: Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Levei a idéia
para os caras em Londres: ‘Como estamos tentando nos livrar de nós mesmos
para sair das turnês e entrar em uma coisa mais surreal que tal se a gente se
tornasse uma banda alter ego, alguma coisa do tipo, digamos, ‘Sargent Pepper’s
Lonely Hearts’? (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 241)
A idéia deles era fazer um álbum conceitual – um tipo de ópera-rock,
gênero popularizado na época pelo grupo inglês The Who. E realmente, as duas
primeiras músicas do álbum Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band e With
a Little Help From My Friends seguem esta linha. Mas depois, a banda alegou
que desistiu da idéia e foram apenas compondo. O curioso é que o resultado final
é realmente de um álbum conceitual aclamado por público e crítica e os
Beatles assumiram os personagens da fictícia banda quando se fantasiam com
fardas coloridas para a capa do disco, que é lançado no dia 1
o
de junho de 1967.
Dois dias depois, Jimi Hendrix tocou a música tema num show em Londres
(WONFOR, 2003). Sargent Pepper’s foi uma revolução na música do mundo
inteiro, sendo ponto de referência para muitos artistas até hoje. Muggiati define o
álbum como uma “arte aberta”, onde “o rock decidiu utilizar todos os recursos
musicais a sua disposição, sem nenhum preconceito ou hierarquia” (MUGGIATI,
The Beatles – mito, produto e discurso 70
70
1973: 59). As músicas dos Beatles haviam se tornado musicalmente complexas,
iniciando a era do rock-de-estúdio:
Um dos principais efeitos da eletrônica sobre a música foi revolucionar a própria
dinâmica sonora, feita tradicionalmente através de instrumentos antigos e
artesanais. No campo da música pop, sua principal conseqüência, através do LP, foi
a criação do studio rock, rock-de-estúdio. Nas notas da contracapa do seu primeiro
álbum, os Beatles garantiam aos fãs que apenas uma faixa do LP empregava
‘truques de estúdio’, até então considerados uma ‘apelação’ pelos rockers. Vencido
esse pudor inicial, foram os próprios Beatles que, com o álbum Sargent Pepper’s,
fizeram pela primeira vez um uso consciente e sistemático de todos os recursos que
a gravação de estúdio oferecia. Diz-se que “A Day in the Life” (a coda desta suíte
psicodélica) nasceu quando o produtor e engenheiro de som dos Beatles, George
Martin, juntou duas composições separadas, uma de Paul McCartney, outra de John
Lennon. (MUGGIATI, 1973: 65/66)
As músicas A Day In The Life e Lucy In The Sky With Diamonds foram
proibidas na BBC de Londres, por fazerem alusão às drogas. Aliás, no dia 19 de
junho de 1967, Paul foi entrevistado por repórteres que apareceram na porta de
sua casa e perguntaram: “É verdade que vocês tomam drogas?e ele confirma. O
próprio Paul explica:
Eles estavam na minha porta eu não podia mandá-los embora então pensei:
‘Bem, ou eu tento blefar ou vou contar a verdade pra ele’. Tomei uma decisão
relâmpago: ‘Dane-se. Vou dar a eles a verdade’. (...) Eu disse: ‘Vou contar para
você. Mas se você tiver alguma preocupação quanto ao efeito da notícia sobre as
crianças, então o divulgue. Vou dizer a verdade, mas se você divulgar a coisa
toda ao público, então não seminha responsabilidade. Não estou certo se desejo
recomendar isso, mas, considerando que você está me perguntando, sim, eu tomei
LSD.’ Eu havia tomado umas quatro vezes naquela época e disse isso a ele. Achei
que foi razoável, mas aquilo se tornou um grande tópico das notícias. (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 255)
No dia 25 de junho de 1967, foi realizada a primeira transmissão mundial
via satélite ao vivo para 24 países dos 5 continentes do mundo e teve 400 milhões
de espectadores na época (WONFOR, 2003). O programa transmitido Our
World contou com a participação dos Beatles, cantando All We Need Is Love,
vestidos com roupas coloridas, num cenário cheio de flores e corações flower
power, como se diria na época transmitindo uma mensagem de amor e paz para
o planeta:
Os Beatles, assim como Elvis, foram parte de um momento. Sua popularidade
coincidiu com a grande expansão da tecnologia das comunicações. (...) A
The Beatles – mito, produto e discurso 71
71
beatlemania se desenvolveu nos cinco continentes. Devido à deificação da banda,
assim como seu impacto significativo nas culturas britânica e americana, o
marketing e a subseqüente proliferação da cultura popular ocidental pelo mundo
fizeram dos Beatles a força musical mais poderosa da história. (FRIEDLANDER,
2003: 148/149)
A partir deste momento, sem deixar de fazer sucesso, começa a ser contado
o declínio dos Beatles (a morte do empresário Brian Epstein e o fracasso da loja
da Apple) que levaria à ‘morte/separação’ do grupo dentro desta ‘história-mito’.
Entretanto, como produto, os quatro componentes ainda seriam de grande
utilidade e mesmo o mito dos Beatles é até hoje re-contado e re-atualizado para
que as pessoas continuem consumindo-o.
1967 foi declarado como o ‘verão do amor’ pela imprensa de todo o mundo
(GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 254) a onda hippie, o flower power, os
protestos pacíficos, as conexões com a filosofia oriental, o movimento de ‘paz e
amor’, a revolução feminista, a liberação sexual e as drogas o movimento de
contracultura estava consolidado, e os Beatles participavam dele e contribuíam
com músicas, atitudes, declarações e comportamentos.
Nesse momento, a banda continuava a produzir, ao mesmo tempo em que
cada um buscava aprofundar seus talentos pessoais. Em agosto de 1967, George
foi com sua mulher Pattie Boyd (que conheceu durante as filmagens de A Hard
Day’s Night) para San Francisco, a capital do movimento hippie, visitar a irmã de
Pattie, que morava lá. Decidem passar por Haight-Ashbury, um cruzamento de
duas ruas em um bairro de San Franscisco, famoso entre os hippies. George conta
um pouco mais sobre a experiência:
Fui esperando que fosse um lugar radiante, com ciganos maravilhosos, fazendo
obras de arte, pinturas e esculturas em pequenas oficinas. Mas estava cheio de
meninos abandonados com a pele manchada e ligados em drogas e imediatamente
compreendi a situação. Eu apenas poderia descrevê-la assim: um monte de
vagabundos e desgarrados, muitos deles meninos bem jovens que caíam nas drogas
e vinham de todos os lados do país para essa Meca do LSD. (...) Aquilo certamente
me mostrou o que estava de fato acontecendo na cultura das drogas. Não era o que
eu pensava o despertar espiritual e a prática artística era como alcoolismo,
como qualquer vício. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 259)
George percebeu que o poderia continuar embarcando na psicodélica e
perigosa viagem das drogas. Roszak diz que o uso de drogas, amplamente
The Beatles – mito, produto e discurso 72
72
divulgado no movimento de contracultura, acaba desviando os jovens do seu
propósito de criar uma sociedade diferente da sociedade “tecnocrática”:
E se os defensores das drogas conseguissem que elas fossem legalizadas? Sem
dúvida o comércio de maconha seria controlado imediatamente pelas grandes
companhias de cigarros o que sem dúvida seria melhor que deixá-lo nas mãos da
Máfia. (...) E é claro que as principais companhias farmacêuticas também não
perderiam tempo em distribuir LSD a todas as farmácias. E daí? Ter-se-ia realizado
a revolução? Teríamos, de repente, uma sociedade de amor, mansidão, inocência e
liberdade? Em caso positivo, que teríamos a dizer sobre a integridade do nosso
organismo? Não seríamos obrigados a admitir que os técnicos behavioristas é que
estavam com toda a razão? (ROSZAK, 1972: 180)
George Harrison se enredou, então, por um outro viés da contracultura: a
filosofia oriental. O beatle já tinha grande simpatia pelos instrumentos indianos e
resolveu buscar o caminho da meditação. Para tanto, como ele mesmo explica no
DVD Anthology (2003), precisava de um ‘mantra’. E no dia 24 de agosto daquele
ano, Maharishi Mahesh Yogi, uma espécie de guru indiano que estava espalhando
sua filosofia pelo mundo, fez uma palestra em Londres, no hotel Hilton. George
chama Paul e John para o acompanharem e eles ficam muito bem impressionados
com o Maharishi. Quando a palestra termina, eles vão aos bastidores (como os
próprios declaram, uma das coisas boas de ser um beatle é que não existem portas
fechadas) (WONFOR, 2003) e o guru os convida para ir com ele para Gales, onde
ele faria um seminário no final de semana. Depois deste seminário, John, Paul e
George entram em contato com Ringo e os quatro seguem para Bangor, onde o
Maharishi iria realizar outro seminário (GENESIS PUBLICATIONS, 2001:
260/261). Eles ficam encantados com a palestra e, de certa forma, decidem
substituir as drogas pela meditação transcendental. George continua:
Em Bangor, demos uma entrevista coletiva dizendo que havíamos desistido das
drogas. Não era realmente por causa do Maharishi. Vinha de meu desejo de
ampliar a experiência da meditação. Afinal, eu estava fazendo exercícios de ioga
para aprender a tocar cítara. Eu tinha feito um pequeno progresso e então o
Maharishi apareceu no momento em que eu desejava experimentar a meditação.
(GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 262)
O guru ainda teria muita influência no próximo álbum e na vida dos
integrantes da banda. Mas o final de semana em Bangor foi interrompido por uma
trágica notícia que abalaria não a vida pessoal como o destino dos próprios
The Beatles – mito, produto e discurso 73
73
Beatles: a morte do empresário e amigo Brian Epstein, no dia 27 de agosto de
1967, por uma acidental overdose de soníferos e bebida. Na época, houve rumores
de que ele, na verdade, teria se suicidado. Mas os próprios Beatles não
acreditaram na hipótese, embora reconheçam que ele andava muito triste, que
depois que pararam de viajar, Brian não tinha muito o que fazer. E a meditação
ajudou-os a superar o choque inicial de uma forma mais branda. John declarou:
Brian morreu apenas no corpo, e seu espírito sempre estará trabalhando conosco.
Sua energia e força eram tudo e perdurarão. Quando estávamos na trilha certa ou
errada, ele sabia e nos dizia normalmente tinha razão. (...) Não temos a menor
idéia se encontraremos um novo empresário. Sempre estivemos no controle do que
estávamos fazendo e agora teremos de fazer o que é preciso. Sabemos o que
devemos e o que não devemos fazer. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 267)
Entretanto, parece que eles não sabiam assim tão bem o que fazer. Nenhum
dos quatro entendia nada de administração, finanças e negócios; nenhum deles
poderia tornar-se o empresário, porque eles se diziam uma ‘democracia’ não
havia um líder, nenhum dos quatro tinha mais poder sobre a banda do que o outro;
George Martin mantinha com eles uma posição de diálogo apenas musical. Eles
criaram, então, a Apple, uma empresa que pertencia aos Beatles. John Lennon
explica no livro Anthology: “ela foi concebida pelos Epsteins e pela NEMS antes
de assumirmos (...) Eles a haviam organizado de forma que faríamos o mesmo que
a Northern Songs vender nós mesmos para s mesmos”. (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 268) A Apple era uma editora, gravadora e boutique
cuidava tudo que se relacionava ao grupo. O objetivo era diversificar o negócio,
como conta George Harrison:
A butique Apple começou como uma idéia excelente. Eu ainda gostaria de ter uma
loja que vendesse coisas que valessem a pena. O que estávamos tentando fazer era
vender todas as coisas de que gostávamos. Afora as roupas malucas e o material
hippie flower-power, deveríamos apoiar todos os tipos de música diferente (...) e
venderíamos livros sobre coisas que nos interessavam, bem como objetos
espirituais, incenso e tudo o mais. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 270)
Todos tinham idéias brilhantes, mas ninguém sabia como colocá-las em
prática. Eles anunciaram que queriam apoiar novos talentos e choveram fitas
demo, poemas e roteiros na Apple. Segundo os próprios Beatles, o principal
objetivo da Apple não era ganhar muito dinheiro, mas ajudar jovens artistas, como
The Beatles – mito, produto e discurso 74
74
melhor explica Lennon: “(...) para ver se podemos efetivamente ter liberdade
artística dentro de uma estrutura empresarial e se podemos criar coisas boas e
vendê-las sem cobrar três vezes nosso o custo” (GENESIS PUBLICATIONS,
2001: 287). Ou seja, em algum momento houve a tentativa de colocar na realidade
a sociedade dentro da Indústria Cultural” (ROCHA, 1995) criada
especificamente pelos Beatles e pelo movimento de contracultura. Isso reflete o
paradoxo em que os Beatles se encontravam constantemente eles estavam
sempre entre a cultura de massa e a contracultura. A Apple foi uma tentativa de
integrar os dois lados desse paradoxo, utilizando o poder comercial dos Beatles
para incentivar a criatividade tão valorizada na contracultura. Alguns artistas
foram efetivamente lançados pela empresa na época, como James Taylor,
Badfinger e Mary Hopkin. Mas, definitivamente, nenhum dos integrantes da
banda tinha jeito com os negócios (WONFOR, 2003).
Decidiram, então, paralelamente, voltar a produzir. Fizeram o filme e o
álbum Magical Mistery Tour, lançado em 27 de novembro de 1967. Eles mesmos
dirigiram o filme, que acabou se revelando um fracasso na época, embora o álbum
tenha conseguido carreira melhor, ainda beirando o surrealismo em músicas como
I Am the Walrus, The Fool on the Hill, entre outras. George Martin fala sobre o
assunto:
‘Magical Mistery Tour’ o foi realmente um sucesso de fato isto é atenuar a
coisa. Quando apareceu originalmente na televisão inglesa, era um filme colorido
apresentado em preto e branco, porque não havia cor na BBC1 naquele tempo.
Tinha uma imagem horrorosa e foi um desastre. Todos diziam que era horroroso e
pomposo, mas era uma espécie de vídeo de vanguarda, se preferirem. (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 274)
Em fevereiro de 1968, os Beatles decidiram passar algumas semanas com o
Maharishi em Rishikesh, na Índia. Ringo e sua esposa Maureen não ficaram muito
tempo – ele não agüentou a comida indiana e ela não se dava bem com os
mosquitos. John e George passaram alguns meses no local, meditando e
compondo muito para o próximo disco, que seria o White Album. No entanto, eles
descobriram que o Maharishi tinha tentado dormir com Mia Farrow (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 286) que também estava em Rishikesh, entre outros
famosos, como o cantor Donovan e Mike Love, dos BeachBoys e outras
The Beatles – mito, produto e discurso 75
75
mulheres que estavam por e decidiram ir embora. John Lennon conta como foi
avisar ao “guru”, que eles estavam partindo:
Eu disse: Estamos indo embora’. ‘Por quê?’ ‘Bem, se você é tão cósmico, sabe
por quê’. Porque todos os auxiliares dele estavam sempre sugerindo que ele fazia
milagres. E eu estava dizendo: ‘Você sabe por quê’.(...) E ele me lançou um olhar
tipo ‘Eu mato você, seu desgraçado’. Ele me deu um olhar desses. E eu soube na
hora, quando ele olhou pra mim, que eu havia arrancado a sua máscara. (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 285/286)
Eles assumiram que erraram no julgamento quanto ao Maharishi; mas
continuaram acreditando na meditação. John então compôs a sica Sexy Sadie,
relatando a experiência enganosa que tiveram.
Em 17 de julho de 1968, o novo filme dos Beatles, Yellow Submarine que
Muggiati define como a “síntese audiovisual do rock” (1973: 64) -, estreou em
Londres. Quatro meses depois, o filme foi lançado nos Estados Unidos e se tornou
sucesso de público e crítica. Este filme foi um desenho animado dos Beatles
lutando contra os Blue Meanies (que podem ser interpretados como o
establishment) - uma metáfora do movimento de contracultura, do protesto contra
a guerra e o desejo pela paz, tanto que All We Need Is Love foi incluída na trilha
sonora.
No dia 31 de julho, a boutique Apple fechou suas portas, mais uma prova de
que os Beatles não sabiam lidar com os negócios. Eles simplesmente resolveram
dar tudo ao público – cada um poderia entrar e sair com uma peça. Ficaram, então,
com a editora e a gravadora Apple, que se mudou para a Saville Row, em Londres
(WONFOR, 2003). Por volta desta época, John Lennon já havia se separado da
primeira mulher Cynthia e estava com Yoko Ono, sempre presente nas
gravações da banda.
Em 22 de novembro de 1968, o White Album que era um álbum duplo
foi lançado e chegou no topo das paradas nos Estados Unidos e na Inglaterra. A
gravação deste disco foi um tanto quanto conturbada cada um queria impôr suas
vontades, ninguém se sentia muito confortável e John passou a levar Yoko para
todas as gravações dentro do estúdio – o que não agradou nenhum pouco os outros
três Beatles. Ringo Starr chegou mesmo a abandonar a banda durante algum
tempo, mas voltou depois de pedidos dos outros três beatles. O processo de
separação da banda já tinha começado.
The Beatles – mito, produto e discurso 76
76
Ainda em 1968, os Beatles lançaram o compacto Hey Jude / Revolution.
Hey Jude foi basicamente composição de Paul McCartney, tentando consolar
Julian, o filho de John Lennon que estava sofrendo com a separação dos pais. A
canção, que tem aproximadamente 8 minutos, até hoje é um sucesso. George
Martin comenta sobre ela:
Gravamos ‘Hey Jude’ na Trident Studios. Era uma canção comprida. De fato,
depois de cronometrá-la, eu cheguei a dizer: ‘Vocês não podem fazer um single tão
longo assim’. Fui silenciado pelos rapazes – não pela primeira vez em minha vida –
e John perguntou: ‘Por quê não?’. Não consegui realmente pensar em uma boa
resposta exceto a patética de que os disc-jóqueis não a tocariam. Ele disse:
‘Tocarão se formos nós’. E é claro que ele estava absolutamente certo. (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 297)
Os Beatles começaram a se deparar com problemas financeiros-
administrativos. O fechamento da loja da Apple, problemas com a Nemsporor
Holdings - a NEMS, empresa de Brian Epstein que administrava os negócios dos
Bealtes, mas que não era comandada por eles - e com a Nothern Songs, a editora
das músicas do quarteto, criada em 1963, mas que também não estava nas mãos
deles. Depois da morte de Brian Epstein, seu irmão Clive ficou como seu sucessor
na NEMS e propôs aos Beatles vendê-la para a empresa de investimentos Triumph
Investment Trust, de forma que esta fosse adquirir 25 por cento dos royalties dos
Beatles que pertenciam à NEMS. Preocupado com o que pudesse acontecer, Paul
chamou o advogado americano Lee Eastman (pai de Linda, sua futura esposa)
para defender os direitos dos Beatles. Ao mesmo tempo, Allen Klein (que tinha
sido o primeiro empresário dos Rolling Stones), ofereceu seus serviços a John:
Enfatizando seu detalhado cálculo das finanças de John, Klein garantiu que ele iria
adquirir a NEMS para os Beatles sem custo. Lennon sentiu uma certa afinidade por
este contador levemente gorducho, que tinha perdido sua mãe e passado uma parte
de sua infância num orfanato. Enquanto os Eastman eram figuras da alta sociedade,
Klein era o próprio batalhador, um homem que se fizera por si mesmo. John,
George e Ringo ficaram com Klein; Paul preferiu Lee Eastman. A NEMS acabou
sendo perdida e as acusações começaram. (FRIEDLANDER, 2003: 141)
No início de 1969, o ex-cantor Dick James que era fundador da Northern
Songs junto com Brian Epstein vendeu mais de trinta e um por cento da sua
parte na editora para o empresário Sir Lew Grade, sem contar nada a ninguém:
The Beatles – mito, produto e discurso 77
77
John descobriu ao ler sobre isto num jornal; Paul tomou conhecimento sobre
o assunto durante sua lua-de-mel nos Estados Unidos. Então, pela segunda vez na
história recente, uma importante parte do império de negócios dos Beatles tinha
sido vendida aos empresários do establishment. Depois dos meses de brigas
internas e negociações, os trinta por cento de participação que os Beatles tinham
na Northern Songs se mostraram insuficientes para impedir que a empresa de
Grade, a ATV, ganhasse o controle da Northern Songs. (FRIEDLANDER, 2003:
142)
Em janeiro de 1969, os Beatles se reuniram novamente, com a idéia de fazer
um disco ao vivo sicas novas e os ensaios seriam todos filmados - o que
resultaria em um filme, cujo final seria um grande concerto ao vivo. Nasceu o
projeto Get Back que mais tarde se chamaria Let it Be - com a direção de
Michael Lindsay-Hogg. Mas, mais uma vez, os ensaios foram
desentendimentos entre os quatro integrantes da banda, que ainda se sentiam
muito incomodados com a presença constante das câmeras, filmando toda e
qualquer discussão. O clima é um pouco amenizado quando eles chamaram o
tecladista Billy Preston para participar das gravações. O convite, na verdade,
partiu de George:
É curioso ver como as pessoas se comportam de maneira delicada quando entra um
convidado, porque elas realmente não querem que todos saibam o quanto são
maldosas. (...) Billy foi para o piano elétrico e logo de saída houve uma melhora de
100% na vibração da sala. Ter essa quinta pessoa foi o bastante para quebrar o gelo
que havíamos criado entre nós. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 318)
No dia 30 de janeiro, eles tocaram ao vivo no chamado Roof Top Concert
uma performance realizada no telhado dos estúdios de gravação da Apple, em
Londres. O grande show ao vivo nunca foi realizado e o projeto Let it Be foi
engavetado. Cada um foi para um canto, cuidar das suas coisas. Havia dúvidas
quanto ao destino dos Beatles.
Em março de 1969, Paul se casou com Linda e John com Yoko. Ainda
restavam os problemas com orçamentos e a falta de empresários. Foi nessa época
que Dick James vendeu sua parte na Northern Songs para o empresário Lew
Grade, Mais um passo em direção à dissolução dos Beatles. No entanto, uma boa
surpresa surge no cenário. George Martin explica:
The Beatles – mito, produto e discurso 78
78
‘Let it Be’ foi um disco tão infeliz (ainda que existam nele algumas canções
excelentes) que eu realmente acreditei que era o fim dos Beatles. Supus que nunca
mais trabalharia com eles de novo. Eu pensava: ‘Que pena terminar desse jeito’.
Por isso, fiquei muito surpreso quando Paul me ligou e disse: ‘Vamos fazer outro
disco – você gostaria de produzí-lo?’. Minha resposta imediata foi: ‘Só se vocês me
deixarem produzi-lo da maneira que costumávamos fazer’. Ele disse: ‘Nós
deixaremos, nós queremos’. ‘Inclusive John?’ ‘Sim, de verdade’. eu disse:
‘Bem, se vocês realmente desejam, vamos fazê-lo. Vamos nos juntar novamente’.
Foi um disco muito feliz. Suponho que tenha sido porque todos achavam que seria
o último. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 337)
Abbey Road foi gravado no estúdio homônimo que tinha sediado a
gravação da maioria dos álbuns de toda a carreira da banda - e lançado em 26 de
setembro de 1969. Cada um dos Beatles ia seguindo com a vida, sem saber
exatamente se o grupo tinha terminado ou não. Várias vezes, John ameaçou dizer
à imprensa que tinha saído da banda, mas os outros o convenciam a não fazê-lo.
Paralelamente, cada um tocava seus projetos pessoais, Paul preparando um
disco solo, John realizando seus trabalhos com Yoko e participações como no
Sweet Toronto Peace Festival, ao lado de velhos roqueiros como Chuck Berry e
Jerry Lee Lewis.
Em 10 de abril de 1970, Paul McCartney declarou publicamente que deixou
os Beatles, deixando John furioso já que seis meses antes o próprio Paul o tinha
convencido a não deixar a banda. No dia 8 de maio, o disco Let it Be, produzido
por Phil Spector a partir das gravações dos ensaios realizados em janeiro do ano
anterior, foi lançado e chegou em primeiro lugar nas paradas inglesas e
americanas. No dia 20, o filme homônimo estreou em Londres e nenhum dos
Beatles compareceu (WONFOR, 2003):
A banda que tinha se reunido em Hamburgo em 1960 acabou amargamente dez
anos depois. Durante esse período, o rock evoluiu de suas raízes na era do rock
clássico para a época de ouro do final dos anos 60 e começo dos 70. Os Beatles
exploraram a criatividade, foram além dos limites, se tornando o maior catalisador
do amadurecimento da música rock. Eles fizeram inovações musicais importantes e
ajudaram a transformar a indústria musical.
35
Os temas e as idéias contidas em suas
canções refletiam a consciência não dos membros da banda, mas também da
crescente contracultura da época. O sucesso comercial dos Beatles assegurou a
divulgação dessas idéias para o maior número de pessoas possível.
(FRIEDLANDER, 2003: 147/148)
35
A indústria musical triplicou suas vendas entre 1960 e 1970 de 600 milhões de dólares para
1,66 bilhão de dólares. Os percentuais de royalty dos Beatles cresceram de 3 por cento para 17,5
por cento, entre 1962 e 1970. A venda de discos, em 1970, ultrapassava as vendas de todas as
outras áreas de entretenimento, inclusive o cinema. (FRIEDLANDER, 2003, p. 148)
The Beatles – mito, produto e discurso 79
79
Durante a década de 1970, todos os ex-integrantes dos Beatles continuaram
em carreiras solo. Eles nunca mais se reuniram publicamente para tocar. Em 8 de
dezembro de 1980, John Lennon foi assassinado em Nova York, por um fã
alucinado. George Harrison faleceu de câncer no dia 29 de Novembro de 2001.
Ringo Starr, hoje com 65 anos, e Paul McCartney, aos 63 anos, ainda gravam
discos com músicas inéditas e realizam turnês. Em 2004, Paul participou do Rock
in Rio Lisboa.
Fico muito contente porque a maioria das canções falava de amor, paz,
compreensão. Dificilmente há alguma que diga: ‘Vamos lá, garotada. Digam a
todos para caírem fora. Abandonem seus pais.’ É sempre ‘tudo que você precisa é
de amor’ ou ‘dê uma chance à paz’, de John. Havia um espírito bom por trás de
tudo, do qual me orgulho muito. Seja como for... os Beatles eram uma coisa
grandiosa. PAUL MCCARTNEY (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 357)
Éramos honestos e éramos honestos em relação à música. A música era positiva.
Era positiva no amor. Eles compuseram nós todos compusemos sobre outras
coisas, mas a mensagem básica dos Beatles foi o Amor. RINGO STARR
(GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 356)
Acho que demos esperança aos fãs dos Beatles. Demos a eles um sentimento
positivo de que havia um dia de sol adiante e que havia um tempo bom a ser
mantido e que você é sua própria pessoa e que o governo não é dono de você.
Havia esse tipo de mensagem em muitas de nossas canções. GEORGE
HARRISON (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 357)
Todos têm este sonho maravilhoso de como era e jamais será assim, porque nunca
foi como todo mundo acha que foi. Foi maravilhoso e acabou. E por isso, caros
amigos, vocês têm apenas de continuar. O sonho acabou. JOHN LENNON
(GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 352)
Quando Lennon diz que “o sonho acabou”, o ‘sonho’ está aqui
representando muito mais do que o sonho dos Beatles. A contracultura também
estava chegando a seu final, quando percebeu que o podia competir com a
“sociedade dentro da Indústria Cultural” (ROCHA, 1995).
A história dos Beatles tal qual ela se apresenta como produto da cultura de
massa foi aqui apresentada e incita o consumo até os dias de hoje, 35 anos depois
que o grupo se desfez. Em seguida, serão analisadas as letras de músicas do grupo
que trazem representações de consumo e como a tensão entre o próprio consumo e
o movimento de contracultura foi retratado pelos Beatles.
The Beatles – mito, produto e discurso 80
80
4.2.
Discurso
Neste momento, serão destacadas as letras de sicas dos Beatles,
atentando para as representações de consumo nelas inseridas. A busca por letras
de músicas que falassem especificamente de marcas de empresas resultou em
apenas duas, compostas por Lennon e McCartney. Back in USSR e Come
together
36
não serão aqui analisadas por o constituírem uma quantidade
significativa e por não utilizarem as marcas como tema principal. Temas como
dinheiro, trabalho, bens materiais, produtos midiáticos, vida cotidiana e protestos
contra o governo são aqui entendidos como parte do universo do consumo, ou
seja, a noção de consumo foi ampliada e não se restringe aos atos de compra e
venda.
Por isso, letras de música que falam sobre algum tipo de trabalho, profissão,
cinema e carros, foram selecionados para análise. Outros temas se relacionam à
vida cotidiana passando, de alguma forma pelo universo do consumo. Por
exemplo, se a letra de música fala sobre um casal que vive feliz e está planejando
economizar para viajar nas férias, ela também está incluída nesta análise. Quando
os Beatles fazem referência às suas próprias canções antigas em suas letras
também entende-se isso como o consumo do produto Beatles explicitado em uma
música. O propósito desta análise é compreender que tipo de ‘sociedade’ a banda
criou dentro de suas músicas e como esta “sociedade dos Beatles” se relacionava
no contexto de tensão entre a “tecnocracia” e a contracultura, entre a “sociedade
real” e a “sociedade dentro da Comunicação de Massa” (ROCHA, 1995), que
ocorreu de forma bastante intensa na década de 1960.
O rock foi um dos combustíveis da contracultura, estabelecendo com ela
uma relação de mútua dependência durante um certo período. Sendo os Beatles
um dos maiores ícones do rock e também da música como um todo - é
importante observar como suas letras falavam de um movimento ‘contra-a-
36
Back in USSR, primeira faixa do álbum The Beatles, cita no verso Flew in from Miami Beach
B.O.A.C. / Didn't get to bed last night” a extinta empresa de aviação B.O.A.C, que atuou de 1939 a
1974, quando se fundiu com outra empresa de aviação, a British European para formar a British
Airways. A música Come together, primeira faixa do álbum Abbey Road cita a Coca-cola no verso
He wear no shoeshine / He got toe jam football / He got monkey finger / He shoot Coca Cola”.
The Beatles – mito, produto e discurso 81
81
cultura’ oficial (a “tecnocracia”, o capitalismo e o industrialismo ocidentais), e
como, ao mesmo tempo, essas músicas foram executadas em todo o mundo,
utilizando-se exatamente desse sistema da “tecnocracia” e da expansão crescente
da tecnologia dos meios de comunicação de massa. Em seu livro Cenas da Vida
Pós-Moderna: Intelectuais, Arte e Videocultura na Argetina (2000), Beatriz Sarlo
observa que:
A cultura sonha, somos sonhados por ícones da cultura. Somos livremente
sonhados pelas capas de revistas, pelos cartazes, pela publicidade, pela moda: cada
um de nós encontra um fio que promete conduzir a algo profundamente pessoal,
nessa trama tecida com desejos absolutamente comuns. (p. 25)
Esse “sonho da cultura” pode ser adaptado pelo mercado rock que se
desenvolveu a partir da década de 1960. Os jovens da época foram sonhados por
essa cultura rock juvenil e encontraram nela os seus desejos pessoais que eram
universalizados através dos meios de comunicação de massa, com alcance cada
vez maior e mais intenso por todo o globo. Observar essa tensão entre músicas
que falam ‘contra a cultura’, mas que dependem dela para se fazer ouvir entre os
jovens é o foco de nossa análise. E quanto mais essas músicas eram ouvidas, mais
jovens simpatizavam com o movimento contracultura, ao mesmo tempo em que
alimentavam cada vez mais o mercado:
Um dos pontos mais complexos na discussão do rock é determinar onde acaba o
‘novo’ e onde começa através de um mecanismo típico da sociedade de consumo
– a ‘diluição’. Nascida do protesto e da rebelião, a contracultura tende a ser
assimilada pela cultura oficial, cada vez mais rapidamente, como demonstram os
muitos movimentos de vanguarda deste século. Mas há também a contrapartida: ao
absorver elementos da contracultura, a cultura oficial se deixa modificar (...).
(MUGGIATI, 1973, p. 69)
Antes de darmos início à análise, é importante delimitar o campo de estudo.
O que está sendo analisado como objeto nesta dissertação são as músicas dos
Beatles que se incluem na discografia oficial, ou seja: 13 álbuns (Please, please
me e With the Beatles, de 1963; A hard day’s night e Beatles for sale, 1964; Help!
e Rubber Soul, de 1965; Revolver, de 1966; Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club
Band e Magical Mistery Tour, de 1967; The Beatles (ou White Album), de 1968;
Yellow submarine e Abbey Road, de 69; e Let it be, de 1970) e os singles lançados
em compacto durante os anos de 1963 a 1970 (alguns foram incluídos em
The Beatles – mito, produto e discurso 82
82
coletâneas). Não está sendo delimitada a questão da autoria, ou seja: as músicas
que serão analisadas não foram, todas elas, compostas pelos Beatles; algumas são
de outros autores. Mas o que está sendo levando em consideração, dada a história
do grupo, sabendo que eles nunca foram obrigados a gravar nada
37
, é a mensagem
que eles transmitiram durante o tempo em que ficaram juntos.
Segundo o critério de consumo que explicado no início deste capítulo, 43
músicas foram aqui selecionadas, dentre as 218 gravadas pelos Beatles
38
. São elas:
A day in the life; A hard day’s night; Act naturally; Baby, you’re a rich man;
Being for the benefit of Mr. Kite; Birthday; Can’t buy me love; Doctor Robert;
Drive my car; Eleanor Rigby; Glass onion; Good morning, good morning; Honey
pie; I am the walrus; I’m down; Lady Madonna; Love you to; Lovely Rita;
Magical Mistery Tour; Mean Mr. Mustard; Money; Mr. Postman; Norwegian
wood; Ob-la-di, ob-la-da; Only a Northern song; Paperback writer; Penny Lane;
Piggies; Revolution; Roll over Beethoven; Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club
Band; Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band (reprise); She came in through
the bathroom window; She’s leaving home; Taxman; The ballad of John and
Yoko; Ticket to ride; Two of us; When I’m sixty-four; While my guitar gently
weeps; Within you, without you; You never give me your money e; Your mother
should know. Todas estão transcritas no anexo desta dissertação.
Quatro dessas 43 músicas são de outros compositores, seis são de George
Harrison e trinta e três de John Lennon e Paul McCartney. É importante frisar que
a parceria Lennon e McCartney teve início antes dos Beatles alcançarem o
sucesso. Os dois fizeram um acordo, nunca firmado oficialmente, de que eles
assinariam suas músicas juntos, mesmo que a composição tivesse sido somente de
um ou de outro, mesmo que um tivesse apenas ajudado o outro. Brian Epstein
adorou a idéia, que passava uma sensação de união, que a banda não tinha um
líder.
37
Como vimos no capítulo anterior, os Beatles nunca foram obrigados, seja pela gravadora, pelo
empresário Brian Epstein ou pelo produtor musical George Martin, a gravar nada que eles não
quisessem. Um bom exemplo disso é a música How do you do it, composição de Mitch Murray,
que os Beatles chegaram a gravar, mas não lançaram porque não achavam que tinha a marca deles.
A canção alcançou o primeiro lugar na Inglaterra com o grupo Gerry and the Pacemakers
(GENESIS PUBLICATIONS, 2002, p. 77). Portanto, o que está sendo levado em conta nesta
dissertação são as letras compostas por eles como uma mensagem direta ou músicas de outras
pessoas que eles tenham interpretado e lançado em sua discografia oficial como uma mensagem
indireta.
The Beatles – mito, produto e discurso 83
83
Andreas Huyssen, autor abordado no primeiro capítulo dessa dissertação,
alega que a abolição da dicotomia entre arte e vida é realizada pela cultura de
massa. É ela que insere a arte no cotidiano das pessoas; é a pop art que absorve as
manifestações da contracultura:
Ela (a pop art) também representava o beat e o rock, a arte em pôster, o culto às
crianças e às flores e o ambiente da droga sem dúvida valia para qualquer
manifestação de ‘subcultura’ e underground. Em resumo, o Pop se tornou
sinônimo do novo estilo de vida da geração mais jovem, um estilo que se revoltava
contra a autoridade e buscava a libertação das normas da sociedade. Enquanto uma
‘euforia de emancipação’ se espalhava, principalmente entre os estudantes
secundaristas e universitários, o Pop, em seu sentido mais geral, se amalgamou
com as atividades públicas e políticas da esquerda anti-autoritária. (HUYSSEN,
1997: 94)
Assim, uma correspondência entre a expansão da cultura de massa na
década de 1960 - que integra a arte no cotidiano da vida - e o fato de o pop estar
se aliando ao movimento de contracultura, constituindo um novo estilo de vida
entre a juventude da época, como também observa Beatriz Sarlo (2000: 34):
O rock foi mais do que uma música; moveu-se desde o início com o impulso de
uma contracultura que se espalhou pela vida cotidiana. O rock se identificou de
modo extramusical: sustentada pela música, a cultura rock definiu os limites de um
território onde houve mobilização, resistência e experimentação.
As representações de “vida cotidiana” constituem um tema recorrente nas
músicas dos Beatles que abordam o consumo. Dentre elas, algumas destacam o
jornal seja ele explicitado na música, ou como forma de inspiração para esta, a
partir de uma notícia. Foram selecionadas três músicas que abordam o jornal e a
imprensa de maneiras diferentes, retratando alguma espécie de consumo: A day in
the life e She’s leaving home, de Lennon e McCartney, do álbum Sargent
Pepper’s Lonely Hearts Club Band e The ballad of John and Yoko, dos mesmos
autores (embora esta seja uma composição quase autobiográfica de Lennon),
lançada em compacto em maio de 1969. As duas primeiras músicas foram
compostas a partir de notícias de jornal, enquanto a terceira abastece a imprensa
com notícias sobre a própria vida de Lennon.
38
A lista completa das músicas está disponível em:
<http://www.aboutthebeatles.com/misc_songindex.html>. Acesso no dia 4 jan. 2006.
The Beatles – mito, produto e discurso 84
84
A day in the life é uma junção de duas músicas uma de Lennon, outra de
McCartney, realizada pelo produtor musical George Martin, que contou com a
participação de quarenta músicos das orquestras Sinfônica de Londres e Real
Filarmônica (GOMES e PASTA, 2004, p.261) para fazer a ligação entre as duas
diferentes músicas. A canção começa:
I read the news today, oh boy / about a luck man who made the grade / and though
the news was rather sad / well I just had to laugh / I saw the photograph / He blew
his mind out in a car / he didn’t notice that the lights have changed / a crowd of
people stood and stared / they’d seen his face before.
39
Portanto, o próprio compositor explicita na letra que leu a notícia no jornal,
e essa notícia se torna a própria música. E continua: I saw a film today, oh boy /
the English army had just won the war / a crowd of people turned away / but I just
had to look / having read the book
40
. E, além da referência cotidiana a uma
notícia de jornal, também há a referência cotidiana a um filme que ele viu hoje – e
o cinema faz parte da cultura de massa, integrada no dia-a-dia das pessoas
naquela época. E da mesma forma, a última parte da música endossa: I heard the
news today, oh boy / four thousand holes in Blacburn, Lancashire / and though
the holes were rather small / they had to count them all
41
. A parte da música
inserida no meio pelo produtor George Martin é a composição de McCartney, que
só exalta o cotidiano presente na canção:
Woke up, got out of bed / dragged a comb across my head / found my way
downstairs and I drank a cup / and looking up, I notice I was late / Found my coat
and grabbed my hat / made the bus in seconds flat / found my way upstairs and had
a smoke / and somebody spoke and I went into a dream
42
.
39
“Eu li as notícias de hoje / sobre um homem que tinha feito uma boa fortuna /e, apesar da notícia
ser bem triste / eu simplesmente tive que rir /eu vi a fotografia. / Ele estourou seus miolos dentro
do carro / não notou que o sinal tinha mudado. /Uma multidão de pessoas ficou parada olhando /
elas tinham visto a cara dele antes”.
40
“Eu vi um filme hoje / o exército inglês tinha acabo de ganhar a guerra. / Uma multidão de
pessoas foi embora / mas eu simplesmente tinha que ver o filme / porque já tinha lido o livro”.
41
“Eu ouvi as notícias de hoje / quatro mil buracos na estrada de Blackburn, em Lancashire. / E
apesar dos buracos serem bem pequenos, eles tiveram que contar todos”.
42
“Acordei, saí da cama / passei um pente na cabeça. / Encontrei meu rumo descendo a escada e
tomei uma xícara / olhei para cima e vi que estava atrasado. / Encontrei meu paletó, agarrei meu
chapéu / alcancei o ônibus no segundo exato. / Encontrei meu rumo subindo a escada e dei uma
fumada / alguém falou e eu entrei em um sonho”.
The Beatles – mito, produto e discurso 85
85
Assim, o jornal é nesta música, associado ao cotidiano e é também material
para a própria canção.
A idéia da próxima música a ser analisada também partiu de uma notícia de
jornal. She’s leaving home, de Lennon e McCartney, é a faixa 6 do álbum Sargent
Pepper’s Lonely Hearts Club Band, de 1967, é a história de uma garota que foge
de casa e o que os pais sentem quando descobrem o fato. O tema do feminismo
está presente, junto com o abismo entre as gerações de pais e filhos na década de
1960 que, como já se assinalou no segundo capítulo desta dissertação, foi um dos
combustíveis para que o rock and roll e depois o rock se consolidasse. Mas o
verso que nos chama atenção aqui, particularmente, é Fun is the one thing that
money can’t buy
43
. Esse verso é cantado como se os pais da menina estivessem
fazendo constatações quanto ao fato de ela ter fugido de casa. Perguntam-se
porque ela teria feito isso, o que eles fizeram de errado (“what did we do that was
wrong?”), que eles deram a ela e sacrificaram a maior parte de suas vidas (“we
gave her most of our lives / sacrificed most of our lives), que eles nunca
pensaram neles mesmos (“we never thought of ourselves”), que eles deram a ela
tudo que o dinheiro podia comprar (“we gave her everything money could buy”) e
terminam constatando exatamente que eles não puderam comprar pra ela diversão
e que é isso que ela está buscando agora. Mesclando o tema do feminismo com o
tema da incompreensão dos pais em relação aos filhos nos anos 60 (e a
incompreensão dos filhos em relação aos pais) e com o desejo por uma vida
repleta de diversão e vazia de obrigações e responsabilidades, os Beatles fizeram
uma música que abordasse esses questionamentos da contracultura, concluindo
que os pais pensavam que poderiam resolver a vida dos jovens com o dinheiro,
mas esses jovens estavam buscando algo a mais do que isso.
A música The ballad of John and Yoko é quase toda uma autobiografia de
John naquele momento: Christ, you know it ain’t easy / You know how hard it
can be / The way things are going / They’re gonna crucify me
44
. A música foi
proibida nos Estados Unidos por evocar Cristo basta lembrar a polêmica
declaração de John em relação ao Cristianismo em 1966, melhor detalhada na
primeira parte deste capítulo. Ele estava falando de sua relação com Yoko, da
43
“Diversão é a única coisa que o dinheiro não pode comprar”.
44
“Cristo, você sabe que não é fácil, você sabe o quanto pode ser difícil. Do jeito que as coisas
estão indo, eles vão me crucificar”.
The Beatles – mito, produto e discurso 86
86
forma como a imprensa, os fãs e os outros três beatles encaravam o fato de ela
estar sempre junto dele, dando palpites a todo momento, inclusive sobre as
músicas que o grupo estava gravando. O consumo aparece nessa música quando
John se dirige à imprensa, aos jornais; e também nos versos: Saving up money
for a rainy day
45
e Giving up your clothes to charity
46
. Também de forma
ligada ao cotidiano, contando sua história com a esposa Yoko - com quem tinha
casado há dois meses, quando a música foi lançada – Lennon compôs uma música
sobre as coisas que abastecem a imprensa, sobre sua própria vida, seus problemas
e conta como a própria imprensa se tornou parte de seu cotidiano, quando, no
fim da música, fala: “The men from the press said we wish you sucess, it’s good to
have the both of you back
47
. Assim, inseridas no tema do cotidiano, essas três
músicas falam de duas relações diferentes com o jornal e a imprensa.
E se Lennon descreveu em sua balada com Yoko o cotidiano de uma
relação, o mesmo fez Paul McCartney nas músicas When I’m sixty-four (faixa 9
do álbum Sargent Pepper’s) e Two of us (faixa 1 do álbum Let it be). A primeira
foi composta por Paul quando ele tinha 16 anos; os outros três beatles o
ajudaram a adaptá-la quando foi gravada para o LP Sargent Pepper’s. Como em
The ballad of John and Yoko, McCartney descreve o cotidiano de um casal,
quando o rapaz se questiona: When I get older, losing my hair / many years from
now / Will you still be sendind me a Valentine / birthday greetings bottle of
wine?
48
. E continua: Will you still need me / will you still feed me / When I’m
sixty-four?”
49
. Prevendo o futuro, o rapaz continua: Every summer we can rent a
cottage / in the Isle of Wright, if it’s not too dear / We shall scrimp and save /
Grandchildren on your knee / Vera, Chuck and Dave
50
. Como Lennon, que
pretende economizar um pouco dinheiro para dias difíceis ao lado de sua amada
Yoko, McCartney também demonstra a mesma preocupação. Ao mesmo tempo
em que os Beatles podem ser totalmente ‘contra-a-cultura’, demonstrando isso
através de representações de consumo, eles podem também passar a imagem de
45
“Economizando para enfrentar possíveis tempos difíceis”.
46
“Doa suas roupas para caridade”.
47
“Os homens da imprensa disseram / ‘nós desejamos sucesso a vocês / é bom tê-los de volta’”.
48
“Quando eu estiver mais velho, perdendo meu cabelo / daqui a muitos anos / você ainda vai me
mandar um cartão de dia dos namorados / comemoração de aniversário, garrafa de vinho?”.
49
“Você ainda precisará de mim / você ainda vai me alimentar / quando eu tiver sessenta e quatro
anos?”.
The Beatles – mito, produto e discurso 87
87
rapazes totalmente tradicionais, que sonham em construir uma vida boa e
confortável junto da amada e, para isso, o se incomodam em economizar
dinheiro. Two of us, composição muito mais de Paul McCartney do que de John
Lennon, embora assinada por ambos, é outra canção que fala desse cotidiano da
vida amorosa, também auto-biográfico, como Lennon fez em sua balada, mas
conta a vida de Paul e Linda, com quem ele iria se casar em breve. Notamos a
mesma posição tradicionalista, do cara que economiza dinheiro para viver um
futuro feliz ao lado da amada, mas não se importa de gastá-lo se é para fazê-la
feliz: “Two of us riding nowhere / Spending someone’s hard earned pay
51
.
Outra música dos Beatles que também se encaixa nesse cotidiano da vida
amorosa, através de representações de consumo, é Ob-la-di, Ob-la-da, faixa 4 do
disco 1 do White Album, A canção conta a história do casal Desmond e Molly
Jones (ela é cantora de uma boate durante a noite), que tem uma relação feliz,
seguindo a vida
52
. Em determinada parte da música, o compositor conta que:
Desmond takes a trolley to the jewellers stores / buys a twenty carat golden ring
/ takes it back to Molly waiting at the door / and as he gives it to her, she begins
to sing / Ob-la-di, ob-la-da / life goes on
53
. Assim, nota-se que o fato de se
presentear a amada, com quem se leva uma vida amorosa feliz, é um ato
considerado válido pelos Beatles, mesmo que eles estivessem inseridos no
contexto de contracultura, onde o dinheiro ou qualquer coisa que ele compre
era desprezado.
A próxima música a ser aqui analisada é Birthday, faixa 1 do disco 2 do
White Album, de 1968. A música descreve um aniversário: You say it’s your
birthday / It’s my birthday too yeah / They say it’s your birthday / We’re gonna
have a good time / I’m glad it’s your birthday / happy birthday to you
54
.
50
Todo verão podemos alugar um chalé na Ilha de Wright / se não for muito caro. / Nós
deveremos economizar e poupar / Os netos no seu colo: Vera, Chuck and Dave”.
51
“Nós dois dirigindo para lugar nenhum / gastando o dinheiro que alguém trabalhou duro para
receber”.
52
Obladi oblada, em ioruba, quer dizer a vida continua ou life goes on como diz o refrão da
música (GOMES et PASTA, 2004, p. 297). O músico nigeriano que tocava conga, Jimmy Scott,
sempre repetia essa frase para Paul McCartney quando o encontrava. Scott, em uma das suas
viagens para a Inglaterra, a imigração deixou-o nu em uma sala durante duas horas. No dia
seguinte, ele morreu de pneumonia.
53
“Desmond pega um bonde até as joalherias / compra um anel de ouro de 20 quilates / leva-o de
volta para Molly, que está o esperando na porta / Enquanto ele lhe dá o anel, ela começa a cantar /
ob-la-di, ob-la-da, a vida continua”.
54
“Você diz que é seu aniversário / é meu aniversário também. / Dizem que é seu aniversário /
nós vamos nos divertir. / Estou feliz que é seu aniversário / feliz aniversário para você”.
The Beatles – mito, produto e discurso 88
88
Segundo Elaine Gomes e Leda Pasta (2004: 323), nenhum dos beatles lembra se a
música foi composta em homenagem ao aniversário de alguém e que: “Paul
compôs a música no piano do estúdio. A sessão começou às cinco da tarde e a
música nem existia. Às cinco da manhã estava pronta.”. Assim, pode-se supor
que, como estavam surgindo muitos produtos que levavam a marca The Beatles,
eles poderiam estar querendo fazer uma música comercial de aniversário, para que
as pessoas pudessem cantá-la, ouví-la e tocá-la no dia do próprio aniversário.
As músicas que trazem representações de “produtos midiáticos” cinema, o
próprio rock and roll, as músicas dos Beatles e o circo também são temas
recorrentes nas letras selecionadas. Roll Over Beethoven, de Chuck Berry, gravada
no álbum With the Beatles, de 1963 (essa música fazia parte do repertório da
banda desde os tempos em que eles tocavam em Hamburgo e no Cavern Club),
fala sobre a febre do rock and roll e traduz a ânsia dos jovens por consumir a nova
música:
Well, gonna write a little letter / gonna mail it to my local D.J. / It’s a rockin’ little
record / I want my jockey to play / Roll over Beethoven / I gotta hear it again today
/ You know my temperature’s risin’ / and the jukebox’s blowin’ a fuse / My heart’s
beating rhythm / And my soul keeps singing the blues / Roll over Beethoven / and
tell Tchaikovsky the news
55
.
Observa-se que o jovem está escrevendo uma carta para o DJ de sua cidade,
para pedir para tocar uma gravação de rock and roll o que retrata uma forma
de consumo da música que se destinava a consolidar um mercado jovem. Destaca-
se também a separação entre a “alta” e a “baixa” artes, que Adorno e Horkheimer
consideraram em sua Dialética do Esclarecimento (1985) - que abordamos no
primeiro capítulo desta dissertação - aqui representada pelo jovem deixando de
lado compositores clássicos como Beethoven e Tchaikovsky (considerados
membros da alta arte) e assumindo o rock and roll como a música que ele quer
ouvir, a música que está presente, de fato, no cotidiano da sua vida através dos
meios de comunicação de massa (aqui representados pelo rádio, pelo disc jockey e
55
“Vou escrever uma cartinha / enviar para o meu DJ local. / É uma gravação de rock / que eu
quero que ele toque / sai pra lá, Beethoven / tenho que ouvir a música de novo hoje. / Você sabe
que minha temperatura está subindo / e a jukebox está queimando / meu coração bate no ritmo e /
The Beatles – mito, produto e discurso 89
89
pela pneumonia de rock, quando a letra fala que: I got a rockin’ pneumonia / I
need a shot of rhythm and blues
56
). Interessante observar também como o
compositor interliga o rock and roll ao rhythm and blues, que faz parte de sua
origem. No verso my heart’s beatin’ rhythm(meu coração batendo no ritmo),
and my soul keeps singing the blues(e minha alma continua cantando blues),
percebemos que um dos ritmos que deu forma ao rock and roll é, de certa forma,
homenageado na canção. Assim, o rock and roll como componente da cultura de
massa é exaltado aqui nessa canção através do consumo de música rock and roll
pelo rádio, pela compra de discos; também tem seu status elevado quando é
escolhido em detrimento de compositores clássicos (Beethoven e Tchaikovsky).
Outra representação de consumo importante nos tempos de rock and roll também
aparece nesta música: a jukebox. Em um dos últimos versos da canção, o
compositor explica: Long as she’s got a dime / the music will never stop
57
.
Então, enquanto o mercado estiver abastecido pelo consumo, a música que os
jovens queriam ouvir nunca iria parar: bastava consumí-la.
Em 1964, os Beatles entraram no mundo do cinema, realizando seu primeiro
filme A hard day’s night, que teve a direção de Richard Lester. Ele foi também
diretor do segundo filme da banda, Help!, lançado em 1965. Ringo Starr foi o
beatle que mais mereceu elogios como ator, embora os quatro tivessem
interpretados a si mesmos em ambos os filmes. Muitos gostaram de sua cena em A
hard day’s night, onde ele, depois de ter brigado com os outros três beatles, anda
solitário pela beira de um rio. O próprio Ringo explica:
Fui para as filmagens direto de uma balada noturna e estava com ressaca, para
dizer o mínimo. Dick Lester esperava lá com todo o pessoal e um menino que faria
a cena comigo, mas eu não tinha cabeça para isso. Estava acabado. Tentamos
filmar de várias formas. Tentaram com o menino dizendo suas falas e alguém, fora
das câmeras, gritando as minhas. Eu estava tão ‘fora’ que eles disseram: ‘Bom,
vamos esquecer as falas e fazer qualquer coisa...’ Então eu sugeri: ‘Vou andar um
pouco e você filma’, e foi o que fizemos. É por isso que pareço tão distraído e
solitário. Não era representação, era como eu me sentia mesmo. (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 129)
minha alma continua cantando blues. / Sai pra lá, Beethoven, / e conte as novidades para
Tchaikovsky”.
56
“Eu estou com a pneumonia do rock / Preciso de uma injeção de rhythm and blues”.
57
“Enquanto ela tiver uma moeda / a música nunca vai parar”.
The Beatles – mito, produto e discurso 90
90
Assim, para a trilha sonora do segundo filme, Ringo gravou a música Act
naturally, de Johnny Russel e Voni Morrison
58
. A canção descreve:
They’re gonna put me in the movies / they’re gonna make a big star out of me /
we’ll make a film about a man that’s sad and lonely / And all I gotta do is act
naturally / We’ll I bet you I’m gonna be a big star / Might win a Oscar, you can
never tell / The movies gonna make me a big star / ´Cause I can play my part so
well
59
.
Assim, Ringo interpreta uma canção que adquire um significado a mais pelo
fato de ser ele quem está cantando: a música é sobre um cara triste e solitário que
é escalado para fazer um papel em um filme de um cara triste e solitário, e por
isso tudo que ele tem que fazer é agir naturalmente. Quando sabemos o que Ringo
Starr passou para filmar a cena citada acima no filme A hard day’s night, temos a
exata noção de que é sobre isso que ele está falando. E que ele pode até ganhar um
Oscar (sempre pensando na fama e no dinheiro que o cinema pode trazer a um
ator) e que, no entanto, tudo que ele tem que fazer é agir naturalmente, interpretar
a ele mesmo.
Da mesma maneira, a ambição em ser uma estrela de cinema é fato que
notamos na música Drive my car. A personagem da música quer ser uma estrela
de cinema, embora ainda não saiba bem como. Nos anos 60, a incrível expansão
dos meios de comunicação de massa e o crescente desenvolvimento acelerado das
novas tecnologias começavam a fazer com que as pessoas desejassem estar
participando ativamente – e não apenas como espectadores – daquele mundo
dentro da indústria cultural. Por isso, até hoje, muitos sonham em ser estrelas de
cinema ou astros de rock somente por causa da fama e do dinheiro que isso pode
trazer e é isso que vai permití-los serem iguais às celebridades que eles tanto
veneram
60
. Por isso, a personagem de Drive my car conta que: “I wanna be
famous / a star on the screen
61
.
58
Russel era um escritor famoso de música country. A gravação original é de Buck Owens, em
1963.
59
“Eles vão me colocar no cinema / vão fazer de mim um grande astro. / Vamos fazer um filme
sobre um homem que é triste e solitário / e tudo que eu tenho que fazer é agir naturalmente. / Bem,
eu aposto com você que serei um grande astro / posso até ganhar o Oscar, nunca se sabe. / O
cinema vai fazer de mim um grande astro / porque eu sei interpretar tão bem o meu papel”.
60
Lembremos dos processos de projeção e de identificação dos quais a cultura de massa se uitliza,
segundo Morin, estudados no primeiro capítulo desta dissertação.
61
“Quero ser famosa / uma estrela nas telas”.
The Beatles – mito, produto e discurso 91
91
A imagem de estrela de cinema também aparece na música Honey pie, faixa
9 do disco 2 do White Album, composição de Lennon e McCartney. A canção traz
um clima de musicais da Broadway. Gomes e Pasta explicam (2004: 337):
Mais uma homenagem de Paul ao ‘vaudeville’, o teatro de revista do começo do
século, que ele adorava. Cresceu ouvindo show de radio e adorava Fred Astaire
cantando Cheek to cheek em seus disco de 78 rotações. Quis uma música para
cantar como um crooner.
O compositor pede que sua garota, que deixou a Inglaterra para se tornar
uma estrela de cinema nos Estados Unidos, volte para casa: Come and show me
the magic of your Hollywood song / You became a legend on the silver screen /
and now the thought of meeting you / makes me weak in the knee
62
. Portanto, de
forma bastante cotidiana, essa música também aborda aspectos da cultura de
massa e ainda traz a musicalidade das canções da Broadway, como um crooner,
exatamente do jeito que McCartney planejou, dentro de um álbum tão diverso
como o White Album. E tudo que o compositor quer é que sua honey pie
63
, agora
uma estrela famosa, volte para casa e para os braços dele.
Uma outra composição de Lennon e McCartney, Your mother should know,
faixa 5 do álbum Magical Mistery Tour, de 1967, utiliza o hit como uma
representação de consumo ligado à cultura de massa e convoca todos os presentes
a se Let’s get up and dance to a song that was a hit / before you mother was
born
64
. Na década de 1960, era difícil que os filhos pudessem compreender seus
pais e vice-versa. Por isso, muitas canções são feitas por jovens, para jovens e
carregam mensagens na forma e no conteúdo incompreensíveis para uma geração
de pais que cresceu ouvindo as letras de amor romântico, que eram as músicas
existentes antes da II Guerra Mundial, como já assinalamos nesta dissertação.
Entretanto, Your mother should know é um convite aos jovens para que eles
ouçam o que seus pais têm a dizer; uma reunião familiar realizada através do hit
que, segundo a música, já fazia sucesso muito tempo antes que os pais do jovem
tivessem nascido, mesmo que isso tivesse acontecido muito tempo atrás, - que
se torna o agregador de pais e filhos.
62
“Venha e me mostre a magia da sua canção de Hollywood / você se tornou uma lenda nas
grandes telas / e que agora só de pensar em encontrá-la / sinto fraquejar os joelhos”.
63
Na tradução literal, “torta de mel”, que seria um apelido carinhoso para a namorada.
64
“Vamos nos levantar e dançar uma canção que foi um hit / antes de sua mãe nascer”.
The Beatles – mito, produto e discurso 92
92
As duas próximas músicas a serem analisadas são, na verdade, quase uma
só: Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band a faixa 1 do álbum homônimo
e Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band (reprise) – faixa 12 do mesmo
álbum, que começa sendo um álbum conceitual. A idéia era que os Beatles
assumissem a personalidade da banda título do novo trabalho e cada um ganhasse
novos nomes que não os seus originais. Assim, a segunda faixa do álbum é With a
little help from my friends, que o vocalista Billy Shears (Ringo Starr) cantaria para
dar início ao show / álbum. Mas a idéia não funciona daí pra frente. John explica:
Sgt. Pepper é conhecido como o primeiro disco conceitual, mas ele não chega a
lugar nenhum. Todas as minhas contribuições para o disco não têm absolutamente
nada a ver com esta idéia de Sgt. Pepper e sua banda, mas funciona porque
dissemos que funcionava (...)” (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 241).
Entretanto, até hoje Sargent Pepper’s é considerado um disco conceitual pela
grande maioria dos fãs dos Beatles. Embora a idéia não tenha sido finalizada
(apenas as duas primeiras músicas do álbum se encaixam no conceito Sgt.
Pepper’s), a penúltima música - Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band
(Reprise), segue essa idéia de ser um álbum conceitual, pois é nela que a banda
fictícia agradece a presença do público: We hope you have enjoyed the show /
(...) / We’re sorry but it’s time to go / (...) / We’d like to thank you once again
65
.
Assim, como nos shows que os próprios Beatles realizavam, eles agradecem ao
público antes de tocar a última música que, no show/álbum Sgt. Pepper é
representada por A day in the life. E, prestando atenção nas três últimas faixas do
disco - Good morning, good morning, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band
(Reprise) e A day in the life percebe-se que uma emenda na outra, através de
efeitos de estúdio, como se o álbum realmente fosse um show da banda alter-ego
dos Beatles. É importante ressaltar a partir deste ponto como o próprio cotidiano
da banda – shows, fãs e até mesmo as próprias músicas dos Beatlespassam a ser
objeto de tema das canções, como foi observado agora com as duas versões de
Sargent Pepper’s e com o próprio conceito do álbum.
Magical Mistery Tour (composição de Lennon e McCartney, que é
homônima ao terceiro filme dos Beatles), retrata os produtos midiáticos – os
65
“Esperamos que vocês tenham gostado do show / (...) Lamentamos, mas é hora de ir embora /
(...) / Gostaríamos de agradecê-los novamente”.
The Beatles – mito, produto e discurso 93
93
passeios e o próprio filme, que é sobre um passeio, como explicam Gomes e Pasta
(2004: 269):
Os Mistery Tour (Passeios Mistério) existiam de fato, as senhoras e senhores
embarcavam numa excursão-surpresa, sem saber aonde o ônibus ia. Os
apregoadores diziam Roll up!’ (Vamos!), convocando os turistas. Quando a dupla
compôs essa música, com as lembranças dos parques de diversões infantis, a
expressão era uma gíria para ‘enrole um baseado’. Durante toda a música se
repete a frase de duplo sentido. Para quem ainda não tinha entendido a mensagem,
convocações para um passeio. Para toda a juventude, o chamado era para outra
viagem, a da maconha.
Assim, falando de um passeio, citando expressões como make a reservation
(faça uma reserva), o ônibus colorido que aparece no filme Magical Mistery Tour
promete, como a música, levar o passageiro para longe dali e garantia de
satisfação (“satisfaction guaranteed”). Um artifício dos Beatles para falar aos
jovens da década de 1960 do mundo das drogas, através de representações de
consumo, pensando em construir uma sociedade diferente daquela que ali se
apresentava, uma outra sociedade bem longe, que se aproximasse do movimento
de contracultura.
A idéia de Being for the benefit of Mr. Kite, faixa 7 do mesmo disco,
composição de Lennon e McCartney, veio de Lennon, que comprou em um
antiquário um cartaz vitoriano que anunciava uma apresentação do Circus Royal
de Pablo Fanques, em fevereiro de 1843, cuja principal atração era um tal de Mr.
Kite. Assim, a letra foi praticamente toda copiada do cartaz. (GOMES e PASTA,
2004: 249). E, novamente, os Beatles estão falando da própria cultura de massa
como diversão e entretenimento nas letras de suas músicas.
O mesmo pode ser observado na canção She came in through the bathroom
window, também de Lennon e McCartney, faixa 13 do álbum Abbey Road, de
1969, que foi gravada junto com a música anterior Polythene Pam. Apesar de
estarem em faixas separadas, elas foram emendadas no estúdio, como acontece
com outras músicas no mesmo álbum. A canção conta a história de uma fã, Diane
Ashley, que entrou pela janela do banheiro da casa de Paul McCartney e abriu a
porta da frente para que outras fãs também entrassem. Como contam Gomes e
Pasta (2004: 389): “Antes de serem postas para fora, elas remexeram em tudo e
furtaram coisas, como souvenirs”. A partir daí surgiu a idéia para a música,
The Beatles – mito, produto e discurso 94
94
utilizando-se de temas que estão presentes no cotidiano dos Beatles e que fazem
parte da cultura de massa, na qual os artistas de rock estão enveredados.
Duas músicas, em especial, se referem à sicas dos próprios Beatles. A
primeira delas é I am the walrus (faixa 6 do álbum Magical Mistery Tour),
composição que leva mais o crédito de Lennon do que de McCartney, embora os
dois a tenham assinado. A letra, segundo John (GENESIS PUBLICATIONS,
2001: 273), foi inspirada no poema The Walrus and the Carpenter, que está em
Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol. A canção é um tanto quanto
surreal, com imagens estranhas como egg-man
66
e walrus
67
. O próprio Lennon
justifica: “Naquele tempo, eu estava escrevendo de modo vago, à la Dylan, nunca
dizendo o que pretendia, mas dando a impressão de algo, onde se pode ler mais ou
menos.” (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 273). A canção foi proibida na rádio
britânica BBC por causa do verso you let your knickers downou “vodeixou
sua lingerie descer”. Mas o que nos convém observar aqui é o trecho da música
em que Lennon descreve: Mr. City policeman sitting pretty little policeman in a
row / see how they fly like Lucy in the sky / see how they run / I’m crying I’m
crying I’m crying
68
. O compositor se utiliza de um título de sua própria música -
Lucy in the sky with diamonds, faixa 3 do álbum Sargent Pepper’s Lonely Hearts
Club Band, anterior a Magical Mistery Tour que também foi proibida na rádio
BBC de Londres por causa de seu título, cujas iniciais são LSD (imaginava-se que
tivesse algo a ver com o ácido lisérgico, mas Lennon negou a história durante toda
a vida). O fato é que os Beatles já tinham se firmado como astros do rock e, até os
dias de hoje, influenciam pessoas que fazem música. Eles mesmos já se viam
como formadores de opinião de uma juventude ocidental e sentiam a liberdade
de citar a si mesmos em suas músicas. Podemos observar isso melhor na música
Glass onion, também de Lennon e McCartney, faixa 3 do disco 1 do White Album,
de 1968. Durante a canção cinco referências a músicas anteriores dos Beatles:
Strawberry fields
69
, I am the walrus
70
, Lady Madonna
71
, The fool on the hill
72
e
66
“Homem-ovo”
67
“Morsa”
68
“Senhor Cidade, policial sentado, pequeno policial bonitinho em uma fila / veja como eles
voam, como Lucy no céu. / Veja como eles correm. / Estou chorando”.
69
Lançada em fevereiro de 1967 em um compacto junto com a canção Penny Lane.
70
Faixa 6 do álbum Magical Mistery Tour, de 1967.
71
Lançada em compacto, em março de 1968.
72
Faixa 2 do álbum Magical Mistery Tour.
The Beatles – mito, produto e discurso 95
95
Fixing a hole
73
. A canção, segundo Lennon (GENESIS PUBLICATIONS, 2001:
206) segue a mesma forma de I am the walrus, com imagens jogadas sem
qualquer conexão umas com as outras; entretanto, a partir do momento em que ele
associa tais imagens a músicas anteriores dos Beatles, os ouvintes que
acompanhavam a carreira da banda tinham alguma base para tentar entender o
que ele estava querendo dizer, pois já estavam familiarizadas com a sociedade dos
Beatles.
As representações de “trabalho e profissões” nas letras dos Beatles aqui
selecionadas aparecem de diversas maneiras: inseridas no cotidiano, como uma
forma de se alcançar a amada ou, pelo viés da contracultura, como algo
entediante e desnecessário.
A hard day’s night, de Lennon e McCartney, está no terceiro álbum da
banda e também é o título do primeiro filme, dirigido por Richard Lester, em
1964. O título – uma das expressões cômicas e esquisitas de Ringo Starr –
significa “a noite de um dia difícil” (GENESIS PUBLICATIONS, 2001, P. 129).
A letra fala de um dia de muito trabalho; o rapaz está cansado e não a hora
de voltar para casa, para os braços de sua amada, onde tudo parece estar bem. Os
compositores assim justificam o por quê de tanto trabalho: you know I work all
day / to get you money to buy you things / and it’s worth it just to hear you say /
you’re gonna give me everything
74
. Então, eles continuam: So why on earth
shoul I moan / ‘cos when I get you alone / you know I feel okay
75
. Nesta música,
observamos a oposição trabalho X lar, mas tanto esforço nesse dia difícil é
recompensado quando ele chega à noite em casa e encontra aconchego ao lado de
seu amor. De maneira sutil, há uma certa oposição à cultura dominante, que era
a cultura do trabalho, do esforço para conseguir ganhar mais e mais dinheiro e
assim comprar as coisas das quais a família precisa e/ou deseja. Mas essa música
ainda não se encaixa na categoria contracultura, porque o amor que o rapaz
recebe compensa qualquer trabalho árduo que ele possa ter tido durante o dia.
73
Faixa 5 do álbum Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
74
“Você sabe que trabalho o dia inteiro / para conseguir dinheiro para comprar coisas para você /
E vale a pena apenas ouvir você dizer / que me dará tudo”.
75
“Por quê eu deveria me queixar? / Porque quando nós estamos sozinhos / você sabe que me
sinto bem”.
The Beatles – mito, produto e discurso 96
96
É importante também observar o que esta música tem a dizer a partir do
momento em que ela é homônima ao título do primeiro filme dos Beatles. No
filme, os Beatles interpretam eles mesmos, utilizando seus nomes verdadeiros e
vivendo uma rotina estressante de shows, gravações, apresentações em programas
de televisão, entrevistas, fãs alucinadas. Supõe-se, assim que, ao final do dia ou
ao final do filme – viria a “noite de um dia difícil”, compensado pelo dinheiro que
se ganha para satisfazer os próprios desejos e os desejos da amada.
Please Mr.Postman, dos compositores Dobbin, Garret, Garman e Brianbert,
foi gravada pela primeira vez pelo grupo The Marvelettes, pertencente à gravadora
Motown, em 1961. Era uma das músicas que os Beatles tocavam nos clubs
noturnos de Hamburgo, acrescentando aos vocais predominantes uma batida mais
própria do rock and roll, utilizando as guitarras de forma diferente. A música pede
ao carteiro Mr. Postman que verifique se não chegou nenhuma carta, pois o
compositor está esperando uma carta dizendo que seu amor está retornando para
casa. A representação da profissão de ‘carteiro’ também está presente nas letras de
músicas cantadas pelos Beatles, trazendo uma relação entre cotidiano e amor
adolescente, típicos da primeira fase do rock and roll (de meados da década de
1950 até, aproximadamente, 1960).
Eleanor Rigby, composição de Lennon e McCartney, faixa 2 do álbum
Revolver, traz o cotidiano do trabalho em um tema urbano e recorrente na
literatura desde o crescimento das grandes cidades: a solidão no meio da multidão.
A música, mais de Paul McCartney do que de John Lennon, conta a história de
dois personagens: Eleanor Rigby – entendida como uma solteirona que vive
sozinha e o padre McKenzie, também um solitário. O refrão: All the lonely
people / Where do they all come from? / All the lonely people / Where do they all
belong?
76
vem exatamente depois de o compositor contar um pouco da história
de cada um dos dois personagens solitários, o que faz o próprio ouvinte indagar se
ele próprio também não está sozinho no meio da multidão. Quando a história do
padre começa a ser contada: Father McKenzie / writing the words of a sermon
that no one will hear / No one comes near / Look at him working / darning his
76
“Todas as pessoas solitárias / de onde todas elas vêm? / Todas as pessoas solitárias / a que lugar
todas elas pertencem?”.
The Beatles – mito, produto e discurso 97
97
socks in the night / when there’s nobody there / What does he care?
77
observa-se
a representação do tema do trabalho para exemplificar a trajetória solitária do
personagem da música.
A música Honey pie, que foi analisada acima por se referir ao cinema,
fala também sobre trabalho: She was a working girl / North of England way /
And now she’s hit the big time / in the USA / And if she could only hear me / this
is what I’d say
78
. Nota-se aqui a oposição entre a trabalhadora da Inglaterra e a
estrela dos Estados Unidos, que foi neste país que a cultura de massa nasceu,
com o advento do cinema, dos musicais da Broadway e até mesmo do próprio
rock and roll. Ao analisar este trecho da música, tem-se a impressão de que a
garota que largou o trabalho de operária na Inglaterra para se tornar uma estrela de
cinema nos Estados Unidos não mais atenção ao namorado que deixou em seu
país natal, pois ela agora é famosa.
A cidade onde os Beatles nasceram e cresceram aparece em forma de
representação de consumo. Penny Lane que poderia ser traduzida como
“Avenida dos centavos” é também o título de uma canção dos Beatles, lançada
no lado B de um compacto (cujo lado A era Strawberry Fields Forever, uma
música que também trazia recordações de Liverpool), lançado em fevereiro de
1967. A canção descreve as lojas que realmente existiam em Penny Lane: o
barbeiro, o banqueiro com um carro, o bombeiro que guarda o retrato da Rainha, a
enfermeira
79
mas todas essas lembranças são colocadas na canção de forma
muito obscura, quase surreal, como conta Paul McCartney, no livro Antologia
(2001: 237):
77
Padre McKenzie, escrevendo as palavras de um sermão que ninguém vai ouvir. / Ninguém
chega perto. / Veja-o trabalhando / cerzindo suas meias à noite, quando ninguém está lá. / Com o
que ele se importa?”.
78
“Ela era uma trabalhadora / operária do norte da Inglaterra. / Agora ela faz sucesso / nos Estados
Unidos. / E se ela pudesse apenas me ouvir / eis o que eu falaria”.
79
In Penny Lane there is a barber showing photographs / of every had he’s had the pleasure to
know / and all the people that come and go / stop and say hello / On the corner is a banker with a
motocar / the little children laugh at him behind his back / And the banker never wears a mac / in
the pouring rain very strange / (...) / in Penny Lane there is a fireman with an hourglass / and in
his pocket is a portrait of the Queen / he likes to keep his fire engine clean / it’s a clean machine /
(...) / behind the shelter in the middle of a roundabout / the pretty nurse is selling poppies from a
tray / And though she feels as if she’s in a play / she is anyway / In Penny Lane, the barber shaves
another costumer, we see the banker sitting waiting for a trim / and then the fireman rushes in /
from the pouring rain – very strange.
The Beatles – mito, produto e discurso 98
98
A letra era inteira baseada em coisas reais. Tinha um barbeiro que se chamava
Bioletti, ou algo assim (eu acho que ele continua na Penny Lane, na verdade),
que, como todos os barbeiros, tinha fotos dos cortes de cabelo que você podia
escolher. Mas em vez de dizer The barber with pictures of haircuts in his
windows”, foi mudado para: Every had he’s had the pleasure to known”. Um
barbeiro mostrando fotografias, como uma exposição.
O refrão diz: “Penny Lane is my ears and in my eyes / there beneath the blue
suburbain skies
80
. Dessa forma, descrevendo o comércio de uma rua onde
passaram grande parte da vida, os Beatles constroem uma música que evoca
memórias de um cotidiano pelo qual eles passaram e que sentem falta dele,
através do tema do trabalho e das diversas profissões que preenchiam o comércio
de Penny Lane.
Lady Madonna, composição de Lennon e McCartney, lançada em compacto
em março de 1968, fala da personagem, lady Madonna, que tem a dupla jornada
de trabalhar fora de casa arrumando dinheiro para sustentar os filhos - e
trabalhar dentro de casa, cuidando da família. O trabalho simplesmente faz parte
do cotidiano e é encontrado na sociedade que os Beatles criaram dentro de suas
músicas. Entretanto, em momento algum a palavra trabalho (work ou job) aparece
explicitamente na letra da música, mas ouvimos que: Lady Madonna children at
your feet / Wonder how you manage to make ends meet / Who finds the money
when you pay the rent / Did you think that money was heaven sent?
81
e continua
descrevendo o cotidiano da personagem, na correria do dia-a-dia, tentando
integrar as duas jornadas. Como Elaine Gomes e Leda Pasta ressaltam (2004:
279): “Sobre a letra, Paul conta que primeiro pensou na Virgem Maria, mas
decidiu fazer uma homenagem às mulheres das classes baixas, que levam uma
vida próxima da escravidão”. Como já foi detalhado no segundo capítulo, o
feminismo das classes média e alta começou quando elas sentiram necessidade
de entrar no mercado de trabalho, não porque necessitavam disso para sobreviver,
mas como uma forma de não depender mais dos maridos. As mulheres das classes
mais baixas, entretanto, começaram a ingressar no mercado de trabalho durante
a II Guerra Mundial, mas porque precisavam do dinheiro que os maridos não
podiam prover, que estavam na guerra ou porque tinham morrido nela. Nessa
80
“Penny Lane está nos meus ouvidos e nos meus olhos / lá, embaixo dos céus azuis do subúrbio”.
The Beatles – mito, produto e discurso 99
99
música, o compositor fala dessas mulheres menos favorecidas social e
financeiramente e o trabalho que elas têm para criar os filhos e manter uma
família. Isso é feito no auge do movimento feminista, que procura valorizar o
trabalho profissional da mulher em detrimento dos trabalhos de dona-de-casa,
falando de dinheiro, de manejar o orçamento para alimentar as crianças e pagar o
aluguel, por exemplo. As mulheres, quando ingressam no movimento feminista,
acabam assumindo essa dupla jornada de donas-de-casa e profissionais, ainda que
os trabalhos do lar não estivessem sendo valorizados nos anos 60.
Lovely Rita é a décima faixa do álbum Sargent Pepper’s Lonely Hearts
Club Band, de 1967. Sobre ela, Paul fala no livro Antologia (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 247):
Li uma matéria no jornal sobre ‘Lovely Rita’, a fiscal de parquímetro. Ela acabara
de se aposentar como diretora de trânsito. A expressão meter maid (fiscal de
parquímetro) era tão americana que atraía, e para mim uma maid(donzela) era
sempre uma coisa um pouco sexy: Meter maid. Ei, vem dar uma olhada no meu
medidor, baby’. Eu via um pouco disso e, por outro lado, via nela um ar ‘militar’.
Os Beatles se utilizam de expressões de duplo sentido para dar uma
conotação sexual às suas músicas e essa não foi a única vez que fizeram isso. O
que interessa particularmente aqui é notar que a personagem da música, Rita, que
é uma fiscal de estacionamento, age de acordo com os valores do feminismo:
Took her out and tried to win her / had a laugh and over dinner / told her I
would really like to see her again / got the bill and Rita paid it
82
. Analisando a
declaração de Paul sobre essa música, nota-se que ele teve a idéia a partir de uma
notícia de jornal onde uma diretora de trânsito estava se aposentando. A imagem
que o compositor fez da personagem que descreveu nesta canção foi de uma
mulher independente, até mesmo um pouco mandona o “ar militar” que ele
enxergou nela –, que não era uma mulher fácil (ele tentou ganhá-la, mas
conseguiu uma risada) e que pagou a conta do jantar. Uma imagem nova sobre a
mulher, impensável nos anos 50. Assim, esta música também pegou uma
81
“Lady Madonna, as crianças nos seus pés / imagino como você faz para equilibrar receita e
despesa. / Quem encontra o dinheiro, quando você paga o aluguel? / Voachou que o dinheiro
caía do céu?”.
82
“Levei-a para sair e tentei ganhá-la / consegui um sorriso e um jantar / Disse a ela que queria vê-
la de novo/ veio a conta e Rita pagou”.
The Beatles – mito, produto e discurso 100
100
representação de consumo o trabalho e a conta do jantar – para explicitar o tema
do feminismo, que fazia parte do movimento de contracultura.
Paperback writer (Lennon e McCartney, lançada em compacto em junho de
1966) é uma carta em forma de música, onde um jovem está escrevendo a
possíveis editores: Dear Sir or Madam will you read my book / it took me years
to write, will you take a look? / It’s based on a novel by a man named Lear / and I
need a job / so I want to be a paperback writer
83
.Mais uma vez, portanto,
observa-se o trabalho inserido no dia-a-dia nas letras dos Beatles, através de
representações de consumo. Foi a primeira vez que um lado A dos compactos da
banda não era uma música que falava de amor. A idéia partiu de Paul McCartney,
que pensou em escrever uma música como se fosse uma carta. Conta a história de
um escritor de livros baratos, como explicam Gomes e Pasta (2004: 201): “Os
‘paperback’ não são obrigatoriamente livros de bolso, de tamanho menor, mas
sempre são livros baratos, impressos em papel de segunda categoria”. Nesta
canção, nota-se que a arte de escrever está sendo um tanto quanto banalizada na
música o dom da escrita não é mais uma condição especial de artista, mas de
alguém que precisa de um emprego e decidiu que quer ser um escritor de livros
baratos, porque sabe que não são necessárias muitas aptidões para realizar tal
tarefa. De modo sutil, é uma crítica à proliferação de obras de arte com a expansão
das tecnologias dos meios de comunicação de massa que ocorriam na época. Mas
se torna ainda mais interessante observar a parte da música em que o tal escritor
fala: I can make it longer if you like the style / I can change it round / and I want
to be a paperback writer / paperback writer. / If you realle like it you can have the
rights / it could make a million for you overnight.
84
”. Embora não entendessem
muito bem da parte financeira dos direitos autorais de suas músicas, os Beatles
sabiam que ganhavam muito dinheiro com eles. Assim, a crítica se volta contra a
própria arte – ou a banalização dela, o modo como cada vez mais pessoas
ganhavam dinheiro fazendo qualquer coisa que poderia se julgar uma forma de
arte – e Paperback writer foi uma maneira de chamar atenção pra isso.
83
“Caro senhor ou senhora , vocês lerão o meu livro? / Levei anos para escrevê-lo, vocês vão dar
uma olhada? / É baseado num romance de um homem chamado Lear / e eu preciso de um
emprego, então quero ser um escritor de livros baratos”.
84
“Eu posso tornar o livro mais longo, se você gostar do estilo / eu posso virar o livro ao contrário
/ eu quero ser um escritor de livros baratos. / Se você realmente gostar, pode ter os direitos autorais
/ que vão lhe render um milhão da noite para o dia”.
The Beatles – mito, produto e discurso 101
101
Outra canção que também retrata o trabalho é Norwegian Wood, faixa 2 do
álbum Rubber Soul, de 1965, composição de Lennon e McCartney
85
. Sobre o
título da canção, as autoras Elaine de Almeida Gomes e Leda Pasta (2004: 173)
esclarecem: “Era moda na época decorar quartos revestindo-os de madeira, fosse
pinho barato ou um material melhor”. O quarto onde se passa essa canção é
revestido de madeira norueguesa. John Lennon explica no livro Antologia (2001:
196) que a letra era sobre os casos que ele tinha fora do casamento, mas que tudo
tinha que ser contado de uma maneira misteriosa para que sua mulher Cynthia não
desconfiasse: “Não me lembro de uma mulher específica, eu estava escrevendo a
partir das minhas experiências: mulheres, apartamentos, essas coisas”. Então, a
letra descreve a história de um homem contando: I once had a girl / or should I
say / she once had me / She showed me her room / isn’t it good? / Norwegian
wood
86
. Mas a parte que particularmente nos interessa aqui é quando ele
descreve:
I sat on a rug / biding my time / drinking her wine. / We talked until two / and then
she said / ‘it’s time for bed’ / She told me she worked in the morning and started to
laugh / I told her I didn’t, and crawled off to sleep in the bath
87
.
De maneira sutil, observa-se o tema do feminismo – a mulher tem que
trabalhar de manhã, mas o homem, não – e nota-se também como uma música que
está contando casos de John Lennon fora do casamento o que para ele era algo
normal, fazia parte do seu cotidiano traz a representação do trabalho ligado a
esse dia-a-dia. No caso específico dessa música, o fato de a mulher ter falado que
precisava dormir porque trabalhava na manhã seguinte aborreceu o homem, que
foi dormir no banheiro. A música continua: “And when I awoke / I was alone / this
bird has flown. / So I lit a fire / isn’t it good / Norwegian wood
88
. Assim, quando
a mulher saiu para trabalhar de manhã, deixando-o sozinho no seu quarto, ele
85
Essa música também tem a participação importante instrumental de George Harrison tocando
cítara; é o primeiro registro do instrumento em uma música ocidental (GOMES e PASTA, 2004).
86
“Uma vez eu tive uma garota / ou talvez deveria dizer / que ela uma vez me teve. / Ela me
mostrou o seu quarto / isso não é bom? / Madeira norueguesa”.
87
“Eu me sentei num tapete / oferecendo meu tempo / bebendo o vinho dela. / s conversamos
até as duas / então ela disse / que estava na hora de ir pra cama. / Ela me contou que trabalhava de
manhã e eu comecei a rir. / Disse a ela que eu não trabalhava de manhã e me arrestei para dormir
no banheiro”.
88
“E quando eu acordei / estava sozinho / o pássaro tinha voado. / Então eu coloquei fogo / isso
não é bom? / Madeira norueguesa”.
The Beatles – mito, produto e discurso 102
102
colocou fogo na madeira norueguesa como um modo de vingança por ela ter ido
dormir, já que tinha que acordar cedo.
Good morning, good morning (faixa 11 do álbum Sargent Pepper’s) e
Doctor Robert faixa 4 do álbum Revolver), ambas composições de Lennon e
McCartney, falam de dois temas muito recorrentes no movimento de
contracultura, utilizando-se de representações de trabalho para fazê-lo. A
oposição entre trabalho e ócio é observada em Good morning, good morning
cujo título foi retirado de um anúncio de sucrilhos na televisão (GOMES e
PASTA, 2004: 257):
Going to work, you don’t want to go, feeling low down / heading for home you start
to roam then you’re in town / everybody knows there’s nothing doing / everything
is closed, it’s like a ruin / everyone you see is half asleep
89
.
Depois de um tempo, o compositor coloca: “After a while you start to smile,
now you feel cool
90
e, depois dessa mudança de humor, ele começa a rir e
aproveitar o dia. É importante ressaltar que a questão do trabalho e das
responsabilidades é vista como algo chato, tedioso e maçante, como de fato ocorre
no movimento de contracultura; o que interessava aos jovens dessa época era
diversão, perambular pela cidade, se distrair para melhorar o estado de espírito,
que antes estava entediado com o fato de estar indo para o trabalho. Dessa forma –
não indo para o trabalho, mas indo passear na cidade o compositor pode ter um
bom dia (good morning), idéia que foi vendida por um comercial de cereais. Mais
uma vez, a contracultura se aproxima da “sociedade dentro da Indústria Cultural”
(ROCHA, 1995).
Doctor Robert aborda o tema das drogas, amplamente divulgadas e
utilizadas na década de 1960 como uma forma de se rebelar contra a sociedade
“tecnocrática”, tradicional e “careta”
91
. Robert Freyman era um médico alemão
muito famoso na época, em Nova York, que cuidava das celebridades. Ele perdeu
sua licença médica em 1968, dois anos depois que essa música foi lançada: “Dele
surgiu a inspiração para o doutor desta letra, misto de médico e traficante, um
doutor dos sonhos que tem drogas para todos os males” (GOMES e PASTA,
89
“Indo para o trabalho, mas não quer ir, está se sentindo deprimido / indo para casa, começa a
perambular, então você está na cidade / todos sabem que não nada acontecendo / que tudo está
fechado como uma ruína / e todos que você vê estão sonolentos”.
90
“Depois de um tempo você começa a sorrir, agora você se sente bem”.
91
Gíria utilizada para designar a pessoa que não toma drogas.
The Beatles – mito, produto e discurso 103
103
2004: 225). Em determinado momento, a música fala: Don’t pay money just to
see yourself with / Doctor Robert
92
. Os Beatles sempre foram adeptos das drogas,
desde a época em que tocavam em Hamburgo, quando tomavam pílulas
estimulantes para conseguirem ficar despertos (GENESIS PUBLICATIONS,
2001: 50). Mais tarde veio a maconha (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 158) e
o LSD (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 177) e outras drogas mais pesadas.
Esse é um tema recorrente no movimento de contracultura, uma forma de escapar
da realidade para conseguir enxergar outra sociedade, mas elas acabaram
desviando muitos jovens de seu real propósito, como já vimos com Roszak
(1972). McCartney fala sobre Doctor Robert:
‘Doctor Robert’ é como uma piada. Nos EUA, ouvíamos falar de um cara em Nova
York: ‘Dá pra conseguir qualquer coisa com ele qualquer comprimido’. Era algo
proibido, mas também uma piada sobre o sujeito que curava todo mundo de tudo
com todas aquelas pílulas e tranqüilizantes, injeções para isso e aquilo. Ele
simplesmente mantinha Nova York ligada. Doctor Robert’ era sobre isso, um
médico com comprimidos que você ficar legal. (GENESIS PUBLICATIONS,
2001: 209)
Agora serão analisadas algumas canções dos Beatles que trazem
representações de “crítica ao governo/establishment”. Taxman, de Harrison a
primeira faixa do álbum Revolver
93
, de 1966 é uma crítica sobre os impostos
pagos na Inglaterra: Let me tell you how it will be / there’s one for you, nineteen
for me / ‘cos I’m the Taxman
94
. Durante a música, dois nomes são citados como
cobrador de impostos: Mr. Wilson e Mr. Heath. Mr. Wilson é uma referência a
Harold Wilson, que foi primeiro-ministro da Inglaterra. E o outro cobrador de
impostos era Edward Heath, líder do Partido Conservador britânico, que, mais
tarde, também se tornaria ministro em 1970 (GOMES e PASTA, 2004: 205). A
letra fala também: “Should five per cent apeear too small / be thankful I don’t take
it all
95
e continua: If you drive a car, I´ll tax the street / If you try to seat, I’ll tax
your seat / If you get too cold , I’ll tax the heat / If you take a walk, I’ll tax your
92
“Não pague em dinheiro apenas para se encontrar com / Doutor Robert”.
93
Revolver quer dizer revolver, agitar, revirar. E a sonoridade e as músicas do disco representavam
exatamente isso: uma reviravolta na carreira dos Beatles e a consolidação da música rock.
94
Deixe-me contar como isso vai ser / tem um pra você e dezenove para mim / porque eu sou o
cobrador de impostos”.
95
“Cinco por cento deveria parecer pequeno / agradeça que eu não vou lhe tomar tudo”.
The Beatles – mito, produto e discurso 104
104
feet
96
e termina com a frase: And you’re working for no-one but me, taxman
97
.
Sobre essa música, Paul McCartney declara no livro Antologia (GENESIS
PUBLICATIONS, 2001: 206/207)
‘Taxman’ era bem George. Nas reuniões de negócios, os advogados e contadores
nos explicavam como as coisas funcionavam. Éramos muito ingênuos, como dá pra
ver pelos nossos acordos de negócios. (...) Eles (os advogados e contadores)
diziam: ‘Olha, depois que morrer, ainda vai pagar imposto’. ‘Qual?’ ‘Taxa de
óbito.’ Daí ele (George Harrison) apareceu com aquele verso ótimo: declare the
pennies on your eyes
98
, que era a indignação justificada do George em relação à
idéia de ter chegado ali, ganhado todo aquele dinheiro e metade dele estava prestes
a ser arrancado à força.
Taxman, portanto, é uma música totalmente anti-establishment, como
declarou John Lennon (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 207), e ela fala
contra-a-cultura reclamando que o Estado confisca todo o dinheiro que as pessoas
ganham com seu árduo trabalho. Entretanto, essa música estava presente em um
álbum dos Beatles os mesmos que, um ano antes, tinham sido condecorados
pela Rainha da Inglaterra com uma medalha de Membro do Império Britânico
(Member of British Empire), estavam agora criticando o primeiro-ministro
abertamente, através de um meio de comunicação de massa, atingindo jovens do
mundo inteiro.
Outra canção de Harrison, Piggies (faixa 12 do primeiro disco do álbum
duplo White Album), também aparece com destaque. Ela se utiliza dos porcos
como metáfora:
Have you seen the bigger piggies in their starched white shirts? / You will find the
bigger piggies stirring up the dirt / Always have clean shirts to play around in / In
their styes with all their backing / they don’t care what goes around / In their eyes
there’s something lacking / What they need’s a damn good whacking
99
.
96
“Se você dirigir um carro, eu vou taxar a rua / se você tentar sentar, eu vou taxar o seu assento /
se você estiver com muito frio, eu vou taxar o calor / se você for dar uma volta, eu vou taxar os
seus pés”.
97
“E você está trabalhando pra mais ninguém, só para mim, o cobrador de impostos”.
98
O verso completo é: Now my advice for those who die / declare the pennies in your eyesou
“Meu conselho para aqueles que morrem, declarem as moedas nos seus olhos”.
99
“Você já viu os porcos maiores em suas camisas brancas engomadas / Você vai achar os porcos
maiores agitando a sujeira / Eles sempre têm camisas brancas para brincar para brincar nela / Em
seus chiqueiros, com todo apoio / eles não se importam com nada que acontece ao redor. / Eles
precisam de uma boa palmada”.
The Beatles – mito, produto e discurso 105
105
E fala que: Everywhere there’s lots of piggies living piggie lives / You can
see them out for dinner with their piggie wives
100
. Observa-se que, nesta música,
nada está sendo pedido ao governo, como em Taxman, onde o compositor reclama
a grande quantia de dinheiro perdida com a arrecadação de impostos. Aqui, os
“porcos”, que não ligam para o que acontece ao seu redor, levam suas “esposas-
porcas” para jantar fora e só se importam com suas “camisas limpas e engomadas”
e em “espalhar a sujeira”. A leitura interpretativa identifica os “porcos” como
sendo aqueles que governam, que estão no controle da cultura oficial, que se
importam com suas próprias vidas, classificando, portanto, essa música como uma
das que se utiliza de representações de consumo levar a “esposa-porca” para
jantar fora – para dar seu recado ‘contra-a-cultura’.
Harrison continua com sua crítica na canção Only a Northern Song a
segunda faixa do álbum Yellow submarine, trilha sonora do filme homônimo de
1969. Esse álbum conta com treze músicas: sete delas são apenas instrumentais e
foram compostas pelo produtor George Martin; das outras seis músicas restantes,
duas eram sucessos consagrados Yellow submarine e All you need is love. As
outras quatro tiveram que ser compostas especialmente para o filme, por exigência
da Northern Songs - a editora das músicas dos Beatles para completar o álbum.
George Harrison a fez por pura obrigação, apenas para cumprir o contrato com a
gravadora (GOMES e PASTA, 2004: 345). A letra irônica despreza a própria
editora, dizendo: it’s only a Northern song
101
, ou seja, não é nada demais. E o
compositor, mais uma vez, usa representações de consumo a própria editora
Northern Songs e o mercado fonográfico com suas exigências e problemas com
direitos autorais – para se criticar o próprio sistema das gravadoras.
Algumas músicas dos Beatles selecionadas para esta análise demonstram, de
forma muito clara, algum tipo de “representação de dinheiro”, denotando uma
posição contra ou a favor dele. Money de Janie Bradford e Barry Gordy Jr.
102
, é a
última faixa do segundo álbum da banda With the Beatles. O próprio título da
canção já explicita seu significado – Dinheiro. A letra começa falando que:
100
. “Por todo o canto, existem muitos porcos vivendo vidas de porcos / você pode -los levando
suas esposas-porcas para jantar”.
101
“É só uma canção da Northern Songs”
102
Money foi gravada originalmente por Barret Strong em 1960.
The Beatles – mito, produto e discurso 106
106
The best things in life are free / but you can keep them for the birds and bees / Now
give me money / that’s what I want / that’s what I want / You’re lovin’ gives me a
thrill / but your love don’t pay my bills / Now give money / that’s what I want /
that’s what I want / Money don’t get everything, it’s true / What it don’t get, I can’t
use / Now give me money / that’s what I want / a lot of money / that’s what I want /
that’s what I want
103
.
Assim, ainda no início da carreira, num álbum onde oito músicas eram do
grupo e seis eram de outros compositores, quando os Beatles ainda tinham na
memória a árdua temporada passada em Hamburgo - onde eles chegaram a dormir
em um cinema velho, o Bambi Kino, perto dos banheiros, sem um lugar limpo e
descente onde pudessem morar (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 46) tudo
que os quatro rapazes pobres que tinham vindo da cidade portuária de Liverpool
estavam vislumbrando com o sucesso repentino que se acentuava a cada dia mais
era ganhar dinheiro com suas músicas e poder ajudar suas famílias a construir um
futuro com um pouco mais de comodidade. E não havia vergonha nenhuma em
declarar isso cantando: “Agora me dinheiro, muito dinheiro, é isso que eu
quero”. Money é uma das músicas que se encaixa perfeitamente dentro da
ideologia capitalista de acumulação de bens e os Beatles demonstraram isso
cantando essa música.
Drive my car, de Lennon e McCartney é a primeira faixa do álbum Rubber
soul, lançado no final de 1965. Essa música fala de carros e sobre ser uma estrela
da cultura de massa, sob um ponto de vista positivo, e não depreciativo, como
fazia o movimento de contracultura. Entretanto, essa música trata mais do sonho
de ser uma estrela e de ter um carro luxuoso e não propriamente de ter o carro e
ser uma estrela. A canção conta a história de um rapaz: Asked a girl what she
wanted to be / she said ‘baby, can’t you see / I wanna be famous, a star on the
screen / but you can do something in between’
104
. E vem o refrão: Baby, you
can drive my car / Yes, I wanna be a star / Baby, you can drive my car / And
103
“As melhores coisas da vida são de graça / mas você pode dá-las para os pássaros e as abelhas /
Agora me dê dinheiro / é o que eu quero / O seu amor me dá muitas emoções / mas o seu amor não
paga as minhas contas / Agora me dinheiro / é o que eu quero / Dinheiro não consegue tudo, é
verdade / O que ele não consegue, eu não posso usar / Agora me dê dinheiro / é o que eu quero”.
104
“Perguntei a uma menina o que ela queria ser / ela falou: ‘baby, você não consegue ver? / Eu
quero ser famosa, uma estrela nas telas / mas você pode fazer algo enquanto isso’”.
The Beatles – mito, produto e discurso 107
107
maybe, I’ll love you
105
. Importante ressaltar aqui o duplo sentido da expressão
drive my car, em inglês, que além de “dirigir o meu carro”, também significa
“fazer sexo” (GOMES e PASTA, 2004: 171) – e os Beatles adoravam letras
ambíguas, que pudessem ter alguma malícia, como sempre foi característico no
rock and roll. A letra continua dizendo que: I told that girl that my prospects
were good / And she said ‘baby, it’s understood / working for peanuts is all very
fine / but I can show you a better time”
106
e repete o refrão
107
, finalizando com o
verso: I told that girl I could start right away / She said “listen, baby, I’ve got
something to say / I’ve got no car and it’s breaking my heart / But I’ve found a
driver and that’s a start
108
. Assim, a letra fala de uma garota que sonha em ser
uma estrela de cinema, sonha em ter um carro, não quer ficar “trabalhando por uns
trocados”; uma menina ambiciosa, mas que ainda não tem nenhuma das coisas
com as quais ela sonha. E a forma como ela conquista o rapaz é com seus sonhos,
com sua ambição: “eu achei um motorista e isso é um começo”. Sem uma
defesa explícita da acumulação de bens e da ambição, a música trata as
representações de consumo de uma maneira onde não por quê se desculpar em
sonhar em ser uma estrela de cinema e ter um carro. Totalmente fora, portanto,
dos padrões da contracultura. Curioso é observar que Rubber soul é o primeiro
álbum onde as mudanças musicais e pessoais pelas quais os Beatles vinham
passando pode ser notada claramente. E se a primeira faixa do álbum é Drive my
car, a quarta é Nowhere Man, a primeira letra de cunho político de Lennon e
McCartney, que não fala de representações de consumo, mas que explicita
alguns questionamentos do movimento de contracultura.
You never give me your money está no penúltimo álbum da banda (embora
tenha sido o último a ser gravado) Abbey Road. A letra de Lennon e McCartney
(na verdade, mais de McCartney) pode ser melhor entendida, no entanto, se
inserida no contexto no qual ela foi criada. Quando o álbum Let it be foi gravado,
os Beatles estavam brigando muito uns com os outros por rios motivos: cada
105
“Baby, você pode dirigir o meu carro / sim, eu vou ser uma estrela / você pode dirigir o meu
carro / e talvez eu te ame”.
106
“Eu disse a garota que minhas perspectivas eram boas / e ela lhe disse: ‘baby, eu entendi.
Trabalhar por alguns trocados é válido, mas eu posso lhe mostrar dias melhores’”.
107
“Baby, you can drive my car / Yes, I’m gonna be a star / Baby, you can drive my car / And
maybe I’ll love you”.
The Beatles – mito, produto e discurso 108
108
um estava tomando um rumo musical diferente, a presença constante e os palpites
de Yoko Ono nas gravações incomodavam Paul, George e Ringo, as desavenças
criadas pela venda da Northern Songs (a editora das músicas dos Beatles) e da
NEMS (a empresa que administrava os negócios deles) para empresários do
establishment. A briga de Paul e John para escolher quem os representaria depois
que Brian Epstein morreu se seria o pai de Linda, na época namorada de Paul,
Lee Eastman ou Allen Klein foi o que motivou a letra de You never give me
your money. A música pode ser interpretada como dirigida diretamente a John ou
como dirigida diretamente às pessoas que tomavam conta dos negócios dos
Beatles os quatro nunca entenderam muito o que estava sendo feito com o
dinheiro que eles ganhavam, mas, antes da morte de Brian, não se preocupavam
com isso. Como a declaração de George Harrison explica:
‘Funny paper’ é o que temos. Pedaços de papel dizendo quanto se ganha e o que
é isto e aquilo, mas nunca temos realmente libras, xelins e pences. Nós todos
tínhamos um casarão e um carro e um escritório, mas saber concretamente o
dinheiro que ganhamos parece impossível. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001:
337)
Assim, a letra de You never give me your money ou “Você nunca me o
seu dinheiro” começa: You never give me your money / you only give me your
funny paper / And in the middle of negotiation you break down.
109
O que destaca-
se aqui é a referência aos funny papers que os Beatles ganhavam, em vez de
ganhar dinheiro vivo, e a dificuldade em manter um diálogo entre eles (“no meio
da negociação, vose afasta”). Percebe-se que é a música retratava a briga entre
os próprios integrantes da banda e a briga que a própria banda travava com o
mundo externo e também entre eles mesmos por causa da perda da NEMS e da
Northern Songs. E a letra continua: Out of college, money spent / see no future,
pay no rent / all the money’s gone, nowhere to go / Any jobber got the sack /
Monday morning turning back.
110
. Ao mesmo tempo em que a briga por dinheiro
entre os quatro beatles é exaltada, demonstrando o interesse explícito pelo
108
“Eu disse àquela garota que poderia começar naquele momento / e ela me disse: ‘escute, baby,
tenho algo para lhe falar / eu não tenho carro e isso está partindo o meu coração / mas eu já achei
um motorista e isso já é um começo’”.
109
“Você nunca me dá o seu dinheiro / você só me dá o papel esquisito / e no meio da negociação /
você se afasta”.
The Beatles – mito, produto e discurso 109
109
dinheiro num movimento contrário à contracultura -, a música continua falando
de um “sentimento mágico” (Oh, that magic feeling), como se houvesse uma
nostalgia em relação à época onde os Beatles o precisavam se preocupar com
problemas financeiros e administrativos. E continua falando em fugir dali: Soon
we’ll be away from here / Step on gas and wipe that tear away / One sweet dream
/ Came true today
111
. Nenhuma das três últimas músicas acima carrega o
sentimento de culpa por ganhar ou desejar ganhar dinheiro (o que era muito
comum na época da contracultura). E, apesar de You never give me your money
estar falando explicitamente de dinheiro e das brigas que estavam acontecendo por
causa dele, ela fala de um desejo de estar longe dali, um desejo talvez de voltar ao
tempo em que os Beatles não brigavam por questões financeiras, pois tinham
Brian Epstein tomando conta de tudo e ele era de inteira confiança dos quatro, ou
de sumir dali, de ir pra bem longe. E foi o que os Beatles acabaram fazendo
quando se separaram.
Can’t buy me love, de Lennon e McCartney, faz parte da trilha sonora do
filme A hard day’s night, mas foi lançada primeiro como compacto. A letra desta
canção – cujo título significa “você não pode comprar meu amor” – retrata o rapaz
falando para a garota: “I´ll buy you a diamond ring, my friend / if it makes you feel
all right / I’ll get you anything, my friend / if it makes you feel all right / ‘Cause I
don’t care too much for money / for money can’t buy me love
112
. E continua em
um verso mais à frente: Say you don’t need no diamond rings / and I’ll be
satisfied / Tell me that you want the kind of things / that money just can’t buy
113
e, ainda: I may not have a lot to give / but what I’ve got / I’ll give to you / ‘Cause
I don’t care too much for money / For money can’t buy me love
114
. Amor, no
entender dos compositores, é algo que não pode ser vendido, nem comprado. A
frase: “I don’t care too much for money” (“não dou muita importância para
dinheiro”) insere definitivamente esta música no contexto da contracultura. No
110
“Fora da faculdade, dinheiro gasto / não vejo futuro, não pago aluguel / todo dinheiro se foi,
nenhum lugar para ir / qualquer corretor é despedido / voltando na segunda-feira de manhã”.
111
“Logo estaremos longe daqui / pé na tábua, enxugue aquela lágrima / um sonho doce se
realizou hoje”.
112
“Eu comprarei para você um anel de diamantes / se você se sentir bem com isso / eu
conseguirei qualquer coisa pra você / se você se sentir bem por isso / porque eu não ligo muito
para dinheiro / com dinheiro você não compra o meu amor”.
113
“Me diga que você não precisa de um anel de diamantes / e eu estarei satisfeito / Me diga que
você quer o tipo de coisas / que o dinheiro não pode comprar”.
The Beatles – mito, produto e discurso 110
110
livro Rock: o grito e o mito a música pop como forma de comunicação e
contracultura (1973: 71) Roberto Muggiati analisa uma declaração da jornalista
Susan Lydon, onde ela defende a idéia de que os jovens de classe média
americanos desprezam o dinheiro como forma de se colocar ‘contra-a-cultura’
“tecnocrática”; para os jovens ingleses, entretanto, esbanjar o dinheiro também é
uma forma de desprezá-lo: “No fundo, desprezar o dinheiro ou esbanjá-lo são
duas maneiras de contrariar a ordem econômica e subverter o sistema de relações
em que repousa o estilo de vida da classe média”. Assim, nota-se na música Can’t
buy me love exatamente essa forma de pensar dos jovens ingleses: o rapaz pode
não se “importa com o dinheiro”, portanto, ele pode esbanjá-lo, porque o faz a
mínima diferença.
I’m down, também de Lennon e McCartney, lançado em 23 de Julho de
1965 (GOMES e PASTA, 2004: 137), fala de um rapaz que está triste, deprimido,
porque a namorada está mentindo pra ele: You telling lies thinking I can’t see /
you don’t cry ‘cos you’re laughing at me
115
. E continua descrevendo que: Man
buy ring woman throws it away / Same old thing happens everyday
116
. E diz que
está triste, pra baixo, e continua: We’re alone and there’s nobody else / You still
moan: ‘Keep your hands to yourself’
117
. Observa-se nessa música o tema do
amor adolescente nesse caso a perda do amor da garota, as brigas por várias
razões (inclusive acrescentando uma pitada sobre sexo ou sobre a garota não
querer fazer sexo o que ainda era algo avançado para a época, mas sempre foi
característica do rock and roll), utilizando-se de elementos de representação do
consumo para descrever a situação. No caso específico de I’m down, isso está
exemplificado no anel que o homem compra para a mulher e que ela joga fora e
que isso sempre acontece. O anel jogado fora aqui está representando não o
dinheiro do rapaz jogado fora, como também o seu amor indo para o lixo. De
forma inversa, tomando a música anteriormente analisada Can’t buy me love,
parece que agora é a garota que está falando: “você não pode comprar meu amor
com um anel”. Entretanto, não é isso que vai fazer o rapaz feliz; nem tampouco
114
“Eu posso não ter muitas coisas para dar / mas o que eu tiver, eu dou para você / Porque eu não
ligo muito para dinheiro / Com dinheiro você não me compra amor”.
115
“Você está me dizendo mentiras pensando que eu não estou percebendo / Vo não chora
porque está rindo de mim”.
116
“Homem compra anel, a mulher o joga fora / a mesma velha coisa acontece todos os dias”.
The Beatles – mito, produto e discurso 111
111
seria reaver o tal anel que ele comprou para a amada. A única coisa que pode fazê-
lo feliz seria o amor dela que ele já não tem mais.
Outra canção que também fala do dinheiro e da mesquinharia de maneira
negativa é Mean Mr. Mustard, de Lennon e McCartney, faixa 11 do álbum Abbey
Road. Embora de forma um tanto despretensiosa, a música descreve o velho Mr.
Mustard, um homem mesquinho, mean, no sentido de ser medíocre, mau:
Mean Mr. Mustard sleeps in the park / shaves in the dark / trying to save paper /
Sleeps in a hole on the road / saving up to buy some clothes / Keeps a ten bob note
up his nose / such a mean old man, such a mean old man
118
.
E a música prossegue: His sister Pam
119
works in a shop / she never stops
/ she’s a go getter / Takes him out to look at the Queen / only place he’s ever been
/ Always shouts out something obscene / such a dirty old man / dirty old man
120
.
Dessa forma, os Beatles se utilizam da mesquinharia, do fato de se economizar
coisas pequenas para descrever um velho sujo, mau e medíocre, que, ainda por
cima, ofende a Rainha. Isso pode ser interpretado como uma crítica às tantas
pessoas que sonham em acumular bens e deixam de aproveitar a vida,
reclamam do governo e não fazem nada para mudar a situação.
While my guitar gently weeps - faixa 7 do primeiro disco do White Album,
composição de George Harrison, com participação de Eric Clapton fazendo o solo
de guitarra - pode ser interpretada como falando de arte, embora também possa ser
lida como uma música de amor dirigida a uma mulher. Harrison conta que estava
envolvido com os conceitos orientais e que neles a concepção que temos de
coincidência (como algo que acontece por acaso) não existe. Então, ele decidiu
compor uma música que seria baseada na primeira coisa que ele visse ao abrir um
livro qualquer gently weeps (uma expressão que significa “suavemente
lamenta”) foi o que apareceu ao acaso, no primeiro livro que Harrison abriu
117
“Nós estamos sozinhos e o tem mais ninguém / você continua dizendo: ‘guarde suas mãos
para você mesmo’”.
118
“Mesquinho Sr. Mustard dorme no parque / se barbeia no escuro / tentando economizar papel /
Dorme em um buraco na estrada / economizando para comprar algumas roupas / Mantém uma
nota de dez schillings no nariz / um homem tão mesquinho, tão mesquinho”.
119
Pam é outra personagem das músicas dos Beatles, e está presente em Polythene Pam, a faixa
seguinte do mesmo álbum Abbey Road.
120
“Sua irmã Pam trabalha numa loja / ela nunca pára / ela é uma procriadora / Ela o leva para ver
a Rainha / o único lugar em que ele esteve / ele sempre grita coisas obscenas / É um sujeito
mesquinho e sujo”.
The Beatles – mito, produto e discurso 112
112
(GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 306). A parte da música que convém analisar
aqui é: I don’t know how someone controlled you / they bought and sold you
121
.
George poderia estar falando de uma garota, assim como poderia estar se
referindo à uma guitarra, à música como um todo, à uma forma de arte que estaria
sendo vendida por um preço muito barato, como em Paperback writer, colocando-
se contra o poder do dinheiro de controlar, comprar e vender coisas, pessoas e
idéias.
Outras duas composições de Harrison: Love you to, faixa 3 do álbum
Revolver, de 1966 e Within you, without you, faixa 8 do Sargent Pepper’s Lonely
Hearts Club Band, de 1967 serão aqui analisadas. As duas músicas fazem uma
oposição entre dinheiro ambição, o “ter tudo” e a vida e a alma, indo contra as
concepções materialistas da sociedade “tecnocrática” e a favor de uma maior
espiritualização, tendendo para o lado das religiões orientais, como era típico do
movimento de contracultura (fato observado no segundo capítulo desta
dissertação). Love you to foi uma música composta especificamente para a cítara –
instrumento indiano com o qual Harrison se envolveu ao longo da década de 1960
– e fala:
Each day just goes so fast / I turn around, it’s past / you don’t get time to hand a
sing on me. / Love while you can / before I’m a dead old man / A life-time is so
short / a new one can’t be bought / but what you’ve got means such a lot to me
122
.
O compositor está falando de um tema urbano, onde as pessoas sempre
alegam que não tem tempo para fazer as coisas; mas ele observa que é necessário
amar antes que a vida se acabe e que as pessoas não vão poder comprar mais
tempo de vida, pois isso é algo transcendental. A mensagem de amor que a
contracultura carregava consigo está aqui presente oposta ao ato de comprar
assim como não se pode comprar amor can’t buy me love não se pode
comprar mais tempo de vida ou outra vida. É necessário amar enquanto se está
vivo e esquecer a correria da vida urbana. A mesma mensagem é transmitida em
Within you, without you e nota-se também o tema da ambição se opôr à alma de
121
“Eu não sei como alguém te controlou / eles te venderam e te compraram”.
122
“Cada dia passa tão rápido /quando eu olho para trás, já é passado / você não tem tempo para
me mandar um sinal. / Ame-me enquanto você pode / antes que eu seja um velho morto. / O tempo
de uma vida é tão curto / um novo não pode ser comprado / mas o que votem significa muito
para mim”.
The Beatles – mito, produto e discurso 113
113
uma pessoa: We were talking about the love that’s / gone so cold and the
people / who gain the world and lose their soul – they don’t know, they can’t see –
are you / one of them?
123
.
Revolution foi lançada originalmente no lado B do compacto Hey Jude /
Revolution e, posteriormente, entrou no segundo disco do álbum duplo The
Beatles, de 1968. A canção, assinada por Lennon e McCartney, carrega mais a
autoria de Lennon e discute que lado se deve tomar dentro da revolução cultural
pela qual o mundo passava. Essa música, portanto, fala da contracultura dividida:
havia aqueles que partiam para a luta armada, matando e/ou machucando pessoas
para conseguirem abolir o establishment e aqueles que se colocavam ao lado dos
movimentos pacificistas:
Estou fora se for pela violência. Não me esperem nas barricadas, a menos que seja
com flores. No que diz respeito a derrubar alguma coisa em nome do marxismo ou
do cristianismo, quero saber o que vocês vão fazer depois que a derrubarem. Quer
dizer, não podemos usar parte dela? Qual o sentido de detonar Wall Street? Se
vocês querem mudar o sistema, mudem o sistema. Não faz sentido matar as
pessoas. (GENESIS PUBLICATIONS, 2001: 299)
Lennon se coloca ao lado dos pacifistas e se preocupa com uma consciência
sobre o desejo de se mudar o sistema – o que os revolucionários iriam fazer depois
que o tivessem destruído? Eles tinham que ter um plano, e não o desejo de
derrubar e destruir. No verso: You ask me for a contribution / well, you know /
we’re all doing what we can / But if what money for people with minds that hate /
All I can tell you is, brother, you have to wait
124
é através do dinheiro que o
compositor explicita sua posição no movimento de contracultura.
Baby, you’re a rich man (faixa 10 do álbum Magical Mistery Tour, de 1967)
fala de um tipo de gente: beautiful people ou “pessoas bonitas”, como Harrison
fala por metáforas dos “porcos” Piggies, sica analisada anteriormente. A
composição de Lennon e McCartney faz um diálogo entre alguém que faz
perguntas e as “pessoas bonitas”, que contam que estão entrosadas na sociedade
de forma bastante irônica. E o refrão fala: Baby, you’re a richman / baby, you’re
123
“Nós estávamos falando sobre o amor que / ficou tão frio e as pessoas / que ganham o mundo e
perdem a sua alma - eles não sabem, eles não podem ver – você é / uma dessas pessoas?”.
124
“Você me pede uma contribuição / bem, você sabe / todos estamos fazendo o que podemos /
mas se você quer dinheiro para pessoas com mentes que odeiam / tudo que posso lhe dizer, irmão,
é que você tem que esperar”.
The Beatles – mito, produto e discurso 114
114
a richman / baby, you’re a richman too / you keep all your money in a big brown
bag / inside the zoo
125
. Assim, zombando da “nata da sociedade”, essa música
também utiliza representações do dinheiro mais especificamente, do fato de se
acumular dinheiro para ir contra a sociedade que não estava ligada com os
valores da contracultura e só pensava nos seus próprios bens. Como Elaine
Gomes e Leda Pasta contam no livro The Beatles: Letras e canções comentadas
(2004: 265):
Depois da surpresa dos tempos de Can’t buy me love, agora os Beatles eram
confortavelmente ricos e estavam ficando adultos. Não eram mais os garotos
deslumbrantes e deslumbrados, da classe média baixa de Liverpool, mas artistas da
linha de frente da cultura do mundo. Tinham subido na vida e tomavam
consciência de ser formadores de opinião.
Ticket to ride, de Lennon e McCartney, faixa 7 do álbum Help!, de agosto
de 1965, foi lançada antes do álbum em compacto, em abril do mesmo ano. A
canção conta a história de um rapaz que está triste porque a namorada está indo
embora: I think I’m gonna be sad / I think it’s today / The girl that’s driving me
mad / is going away / She’s got a ticket to ride / she’s got a ticket to ride / she’s
got a ticket to ride / but she don’t care
126
. A personagem da música é uma garota
dos anos 60 que quer ser livre, independente, quer viajar, não quer ficar
dependendo do namorado o que seria um bom exemplo do tema do feminismo
despontando, entretanto, sem utilizar as representações de consumo para se
colocar ‘contra-a-cultura’. A questão a ser mais atentamente observada aqui é que
“a garota tem um bilhete para viajar com o rapaz, mas ela não liga”. Ticket quer
dizer bilhete, ingresso, algo que foi comprado para se ter acesso a alguma coisa.
Pode-se também interpretar essa música como o hino de uma geração que tem um
ingresso para uma vida social e economicamente segura – a vida da época da “Era
de Ouro”, que foi estudada no segundo capítulo desta dissertação -, mas essa
geração não liga, não se interessa por essa vida e quer se libertar dos valores aos
quais está agarrada: She said that living with me / is bringing her down / that she
125
“Baby, você é um homem rico / baby, você é um homem rico também. / Você guarda todo o
seu dinheiro em uma grande sacola marrom / dentro do zoológico”.
126
“Acho que vou ficar triste / acho que é hoje. / A garota que esme levando à loucura / está
indo embora / Ela tem um bilhete para viajar / mas ela não se importa”.
The Beatles – mito, produto e discurso 115
115
would never be free / when I was around
127
. Os jovens de 1960 queriam procurar
a sua própria vida, os seus próprios valores, a sua própria sociedade, embarcando
no trem do movimento de contracultura. Musicalmente, Ticket to ride integra
duas melodias diferentes o trecho em que eles cantam my baby don’t care
128
tem um ritmo mais acelerado, totalmente diferente do resto da música, o que era
uma idéia completamente nova em 1965. My Baby pode significar aqui duas
coisas: no sentido de “meu amor”, “minha gata” ou, ao da letra, “meu bebê”,
que eram os filhos rebeldes da “tecnocracia” que não se importavam com o futuro
garantido e seguro que os pais estavam vislumbrando para eles. Eles sonhavam
com uma outra sociedade.
127
“Ela disse que viver comigo / está deixando-a triste / que ela nunca seria livre / enquanto eu
estiver por perto”.
128
“Meu amor não se importa”.
5
Considerações finais e perspectivas futuras
Diante da importância da obra dos Beatles tanto em quantidade, como em
números de vendas, inovações artísticas e influências, na década de 1960, que
foram decisivas para o mundo pode-se extrair material relevante para estudos e
análises, no campo da Comunicação Social, como por exemplo: será que eles,
como componentes de uma “cultura popular jovem” (HOBSBAWN, 1995)
influenciaram a difusão do idioma inglês, num mundo que começava um
movimento de globalização? Na contra-capa do DVD Paul McCartney in Red
Square: a concert film (2005) – que é um documentário que intercala imagens dos
shows que o artista fez na Praça Vermelha e em São Petersburgo, na Rússia -
uma declaração do sociólogo Artemy Troitsky: The Beatles, Paul, John, George
and Ringo, have done more for the fall of comunism than any other western
institution
129
. Na década de 1960, o comunismo era regime político em alguns
países, como na Alemanha Oriental e na extinta União Soviética; nos países da
América Latina, existiam vários tipos de ditadura. Interessante seria observar a
influência dos Beatles nesses países durante seus regimes fechados, quando a
censura atuava de forma bastante rígida e não permitia que determinados produtos
culturais chegassem às mãos da população. Ou, ainda, fazer uma pesquisa
detalhada sobre todos os tipos de produtos que chegaram ao mercado e que
levaram a marca The Beatles: calçados, camisetas, bottons, mochilas, utensílios de
cozinha, entre muitos outros, e como eles atuaram dentro deste mesmo contexto
de tensões entre a contracultura e o consumo. Ainda utilizando o conceito de
contracultura definido por este estudo, aproximando-o da “sociedade dentro da
Comunicação de Massa” (ROCHA, 1995), seria interessante fazer uma pesquisa
que relatasse as relações entre contracultura e feminismo, a partir de
representações da mulher nas letras de músicas dos Beatles. Entretanto, devido à
129
“Os Beatles Paul, John, George e Ringo fizeram mais pela queda do comunismo do que
qualquer outra instituição ocidental”.
Considerações finais e perspectivas futuras
117
limitação de uma dissertação de mestrado, foi essencial se ater apenas ao que foi
proposto no início deste trabalho.
Durante esta dissertação, destacaram-se conceitos referentes à cultura de
massa, dos seguintes autores: Adorno e Horkheimer, Andreas Huyssen, Edgar
Morin e Everardo Rocha, para que pudesse se estabelecer uma visão geral sobre a
cultura de massa, da qual os Beatles fazem parte. Em seguida, detalhou-se o
movimento de contracultura, seus antecedentes e seu principal produto e
expressão o rock. Delineado o contexto histórico, pôde-se observar a trajetória
dos Beatles, tal qual ela se apresenta nos dias atuais: como um mito e um produto
a ser consumido. A seguir, pôde-se constatar as tensões entre o consumo e a
contracultura nas letras das músicas dos Beatles, apresentadas no início desse
trabalho.
Verificou-se as representações de “trabalho e profissões”, “dinheiro”,
“produtos midiáticos” e “vida cotidiana”, dentro da sociedade criada pelos
Beatles, em suas músicas e suas constantes ambigüidades, em relação a um
mundo que aspirava colocar na prática as características da “sociedade dentro dos
produtos da Comunicação de Massa” (ROCHA, 1995). Os Beatles viviam dentro
de uma grande questão, nem sempre percebida conscientemente: seriam eles parte
do establishment ou estariam lutando para destruí-lo? E este questionamento
reflete em muitas de suas letras, como já foi assinalado.
O desenvolvimento da questão da contracultura apresentou um interessante
aspecto: a aproximação desta com a “sociedade do sonho”, presente dentro dos
produtos da cultura de massa. A contracultura se colocava em oposição ao
establishment, ao capitalismo, ao industrialismo, ao consumismo e à
“tecnocracia”. Entretanto ela dependeu, durante toda a sua existência, desse
mesmo sistema para poder divulgar suas idéias para a juventude da década de
1960. Como ela se colocava contra a “tecnocracia”, era de se esperar que se
afastasse completamente desta e de seus produtos, inclusive aqueles veiculados
pela cultura de massa. Como vimos com Rocha (1995), os produtos da cultura de
massa, inserida na “tecnocracia”, se afastam da sociedade real. A contracultura,
assim, ao se distanciar da sociedade “tecnocrática”, criou para si uma sociedade
com valores totalmente opostos a esta. No lugar do individualismo o holismo, em
vez do produtivismo o ócio. Ela privilegiou o poder pela persuasão e não pela
violência e pelo Estado e, finalmente, assumiu um tempo totêmico e não o tempo
Considerações finais e perspectivas futuras
118
historicista - presente na sociedade capitalista ocidental. Dessa forma, a
contracultura se aproximou da “sociedade dentro da Comunicação de Massa” e se
apresentou como uma ameaça real à “tecnocracia”, que depende do trabalho, da
concepção individualista, do poder exercido pelo Estado e da concepção de tempo
historicista para existir. As características opostas a essas o ócio, o holismo, a
persuasão e o tempo totêmico, respectivamente sempre foram deixados a cargo
dos produtos da cultura de massa, para que os indivíduos satisfizessem seus
desejos e sonhos projetivamente (MORIN, 1967) dentro dos produtos da indústria
cultural. Ao tentar colocar tais características em prática, numa sociedade real, a
contracultura se colocou em concorrência com a “sociedade dentro dos produtos
da cultura de massa”. Mais do que isso, ao tentar realizar tal feito, a contracultura
trouxe de volta para a realidade os povos excluídos anteriormente os bruxos, os
feiticeiros, os índios, os loucos, as crianças e as mulheres - para que o capitalismo
pudesse se desenvolver. Dessa forma, a cultura de massa não encontrou outra
alternativa senão encampar a contracultura e trazê-la de volta apenas para o
imaginário, longe da sua concretização real.
Segundo John Lennon, o sonho acabou (GENESIS PUBLICATIONS, 2001:
352). Porém, constata-se que ele ainda existe como produto, não como uma
possibilidade de realização. O sonho está à venda em sicas, camisetas, bottons,
bijuterias, histórias, memórias, mitos, documentários, filmes, programas de
televisão, de forma a incentivar o desenvolvimento da sociedade capitalista,
industrialista, consumista e “tecnocrática”, para que ela se fortaleça a cada dia
mais. O sonho alimenta a sua própria delimitação.
6
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fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
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<http://www.thebeatles.com.br>. Acesso em: 10 dez. 2005.
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1985. v.1
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DVD (83 min aproximadamente). Ficção.
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dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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Fazendo música: o guia para compor, tocar e gravar. Brasília: Editora
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GOMES, Elaine de Almeida (Ed.) e PASTA, Leda. The Beatles: Letras e
canções comentadas. _____: Lira, 2004.
Guiness World Records. Disponível em:
<http://www.guinessworldrecords.com>. Acesso em 4 jan. 2006.
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120
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bastidores de Sgt. Pepper. 1. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
MCCARTNEY, Paul e HAEFELI, Mark. Paul McCartney in Red Square: a
concert film. Manaus: Warner Music, 2005. DVD (163 min aproximadamente)
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Fazendo música: o guia para compor, tocar e gravar. Brasília: Editora
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WONFOR, Geoff. The Beatles Anthology. Londres: Apple Corps, 2003. DVD, 5
vol. (674min ou 11h e 14min aproximadamente). Documentário.
7
Anexo
Letras de música dos Beatles analisadas nesta dissertação, organizadas em
ordem alfabética:
A day in the life
A hard day’s night
Act Naturally
Baby, you’re a rich man
Being for the benefit of Mr. Kite
Birthday
Can’t buy me love
Doctor Robert
Drive my car
Eleanor Rigby
Glass onion
Good morning, good morning
Honey pie
I am the walrus
I’m down
Lady Madonna
Love you to
Lovely Rita
Magical Mistery Tour
Mean Mr.Mustard
Mr. Postman
Money
Norwegian wood
Ob-la-di, ob-la-da
Only a Northern song
Paperback writer
Penny Lane
Piggies
Revolution
Roll Over Beethoven
Sargent Pepper’s Lonely Hearts
Club Band
Sargent Pepper’s Lonely Hearts
Club Band (reprise)
She came in through the
bathroom window
She’s leaving home
Taxman
The ballad of John and Yoko
Ticket to ride
Two of us
When I’m sixty-four
While my guitar gently weeps
Within you, without you
You never give me your money
Your mother should know
Anexo
A day in the life
Lennon / McCartney
A hard day’s night
Lennon / McCartney
I read the news today oh, boy
About a lucky man who made the
grade
And though the news was rather sad
Well, I just had to laugh
I saw the photograph
He blew his mind out in a car
He didn't notice that the lights had
changed
A crowd of people stood and stared
They'd seen his face before
Nobody was really sure if he was
from the House of Lords
I saw a film today oh, boy
The English army had just won the
war
A crowd of people turned away
But I just had to look
Having read the book
I love to turn you on.
Woke up, got out of bed
dragged a comb across my head
Found my way downstairs and drank
a cup
and looking up, I noticed I was late
Found my coat and grabbed my hat
Made the bus in seconds flat
Found my way upstairs and had a
smoke
Somebody spoke and I went into a
dream
I read the news today oh, boy
Four thousand holes in Blackburn,
Lancashire
And though the holes were rather
small
They had to count them all
Now they know how many holes it
takes to fill the Albert Hall
I'd love to turn you on
It's been a hard day's night
And I've been working like a dog
It's been a hard day's night
I should be sleeping like a log
But when I get home to you
I find the things that you do
Will make me feel all right
You know I work all day
To get you money to buy you things
And it's worth it just to hear you say
You're gonna give me everything
So why I love to come home
'cause when I get you alone
You know I feel okay
When I'm home
everything seems to be all right
when I'm home
feeling you holding me tight, tight
Yeah, it's been a hard day's night
And I've been working like a dog
It's been a hard day's night
I should be sleeping like a log
But when I get home to you
I find the things that you do
Will make me feel all right, Oh!
So why I love to come home
'cause when I get you alone
You know I feel okay
When I'm home
Everything seems to be all right
when I'm home
feeling you holding me tight, all
through the night
Yeah, it's been a hard day's night
And I've been working like a dog
It's been a hard day's night
I should be sleeping like a log
But when I get home to you
I find the things that you do
Will make me feel all right
You know I feel all right
You know I feel all right
Anexo
Act naturally
Morrison / Russel
Baby, you’re a rich man
Lennon / McCartney
They're gonna put me in the movies
They're gonna make a big star out of
me
We'll make a film about a man that's
sad and lonely
And all I gotta so is act naturally
Well, I'll bet you I'm gonna be a big
star
Might win an Oscar you can never
tell
The movies gonna make me a big
star
'Cause I can plat the part so well
Well I hope you come and see me in
the movies
Then I know that you will plainly see
The biggest fool that ever hit the big
time
And all I gotta do is act naturally
We'll make the scene about a man
that's sad and lonely
And beggin down upon his bended
knee
I'll play the part but I won't need
rehearsal
All I gotta do is act naturally
Well, I'll bet you I'm gonna be a big
star
Might win an Oscar you can never
tell
The movies gonna make me a big
star
'Cause I can plat the part so well
Well I hope you come and see me in
the movies
Then I know that you will plainly see
The biggest fool that ever hit the big
time
And all I gotta do is act naturally
How does it feel to be
One of the beautiful people?
Now that you know who you are
What do you want to be?
And have you travelled very far?
Far as the eye can see.
How does it feel to be
One of the beautiful people?
How often have you been there?
Often enough to know.
What did you see, when you were
there?
Nothing that doesn't show.
Baby you're a rich man,
Baby you're a rich man,
Baby you're a rich man too.
You keep all your money in a big
brown bag inside a zoo.
What a thing to do.
Baby you're a rich man,
Baby you're a rich man,
Baby you're a rich man too.
How does it feel to be
One of the beautiful people?
Tuned to A natural E
Happy to be that way.
Now that you've found another key
What are you going to play?
Baby you're a rich man,
Baby you're a rich man,
Baby you're a rich man too.
You keep all your money in a big
brown bag inside a zoo.
What a thing to do.
Baby you're a rich man...
Anexo
Being for the benefit of Mr. Kite
Lennon / McCartney
Birthday
Lennon / McCartney
For the benefit of Mr. Kite
there will be a show tonight on
trampoline
The Hendersons will all be there
late of Pablo Fanques'fair, what a
scene
Over men and horses hoops and
garters
and lastly through a hogshead of real
fire
In this way Mr. K will challenge the
world
The celebrated Mr. K
performs his feats on Saturday at
Bishopsgate
The Hendersons will dance and sing
as Mr. Kite flies through the ring,
don't be late
Messers K. and H. assure the public
their production will be second to
none
And of course Henry the Horse
dances the waltz
The band begins at ten to six
when Mr. K performs his tricks
without a sound
And Mr. H will demonstrate
ten somersets he'll undertake on solid
ground
Having been some days in
preparation
a splendid time is guaranteed for all
And tonight Mr. Kite is topping the
bill
You say it's your birthday
It's my birthday too, yeah
They say it's you birthday
We're gonna have a good time
I'm glad it's your birthday
Happy birthday to you
Yes we're going to a party, party
Yes we're going to a party, party
Yes we're going to a party, party
I would like you to dance (birthday)
Take a cha-cha-cha-chance
(birthday)
I would like you to dance (birthday)
Ooo, dance, yeah
I would like you to dance (birthday)
Take a cha-cha-cha-chance
(birthday)
I would like you to dance (birthday)
Ooo, dance
You say it's your birthday
It's my birthday too, yeah
They say it's you birthday
We're gonna have a good time
I'm glad it's your birthday
Happy birthday to you
Happy birthday to you
Anexo
Can’t buy me love
Lennon / McCartney
Doctor Robert
Lennon / McCartney
Can't buy me love, love
Can't buy me love
I'll buy you a diamond ring my friend
If it makes you feel all right
I'll get you anything my friend
If it makes you feel all right
'Cause I don't care too much for
money
For money can't buy me love
I'll give you all I've got to give
If you say you love me too
I may not have a lot to give
but what I've got I'll give to you
For I don't care too much for money
For money can't buy me love
Can't buy me love
Everybody tells me so
Can't buy me love
No, no ,no, no
Say you don't need no diamond ring
And I'll be satisfied
Tell me that you want those kind of
things
that money just can't buy
For I don't care too much for money
For money can't buy me love
Can't buy me love
Everybody tells me so
Can't buy me love
No, no ,no, no
Say you don't need no diamond ring
And I'll be satisfied
Tell me that you want those kind of
things
that money just can't buy
For I don't care too much for money
For money can't buy me love
Ooh, can't buy me love, love
Can't buy me love, no
Ring, my friend I said you'd call
Doctor Robert
Day or night he'll be there any time
at all
Doctor Robert
Doctor Robert
You're a new and better man
He help you to understand
He does everything he can
Doctor Robert
If you're down he'll pick you up
Doctor Robert
Take a drink from his special cup
Doctor Robert
Doctor Robert
He's a man you must believe
Helping anyone in need
No one can succeed like
Doctor Robert
Well, well, well, you're feeling fine
Well, well, well, he'll make you
Doctor Robert
My friend works for the National
Health
Doctor Robert
Don't pay money just to see yourself
Doctor Robert
Doctor Robert
You're a new and better man
He help you to understand
He does everything he can
Doctor Robert
Well, well, well, you're feeling fine
Well, well, well, he'll make you
Doctor Robert
Ring, my friend I said you'd call
Doctor Robert
Doctor Robert
Anexo
Drive my car
Lennon / McCartney
Eleanor Rigby
Lennon / McCartney
Asked a girl what she wanted to be
She said "baby can't you see
I wanna be famous, a star of the
screen
But you do something in between"
"Baby, you can drive my car
yes, I'm gonna be a star
Baby you can drive my car
And maybe I'll love you"
I told that girl that my prospects were
good
And she said "baby it's understood
Working for peanuts is all very fine
But I can show you a better time"
"Baby, you can drive my car
yes, I'm gonna be a star
Baby you can drive my car
And maybe I'll love you"
Beep beep mm beep beep, yeah
"Baby, you can drive my car
yes, I'm gonna be a star
Baby you can drive my car
And maybe I'll love you"
I told that girl I could start right away
And she said "listen baby I've got
something to say
I got no car and it's breaking my
heart
But I've found a driver and that's a
start
"Baby, you can drive my car
yes, I'm gonna be a star
Baby you can drive my car
And maybe I'll love you"
Beep beep mm beep beep, yeah
Beep beep mm beep beep, yeah
Beep beep mm beep beep, yeah
Ah, look at all the lonely people
Ah, look at all the lonely people
Eleanor Rigby, picks up the rice
in the church where a wedding has
been
Lives in a dream
Waits at the window, wearing the
face
that she keeps in a jar by the door
Who is it for
All the lonely people
Where do they all come from?
All the lonely people
Where do they all belong?
Father McKenzie, writing the words
of a sermon that no one will hear
No one comes near
Look at him working, darning his
socks
in the night when there's nobody
there
What does he care
All the lonely people
Where do they all come from?
All the lonely people
Where do they all belong?
Ah, look at all the lonely people
Ah, look at all the lonely people
Eleanor Rigby, died in the church
and was buried along with her name
Nobody came
Father McKenzie, wiping the dirt
from his hands as he walks from the
grave
No one was saved
All the lonely people
Where do they all come from?
All the lonely people
Where do they all belong?
Anexo
Glass onion
Lennon / McCartney
Good morning, good morning
Lennon / McCartney
I told you about strawberry fields
You know the place where nothing is
real
Well here’s another place you can go
Where everything flows
Looking through the bent backed
tulips
To see how the other half live
Looking through a glass onion
I told you about the walrus and me,
man
You know that we’re as close as can
be, man
Well here’s another clue for you all
The walrus is Paul
Standing on the cast iron shore, yeah
Lady Madonna trying to make ends
meet, yeah
Looking through a glass onion
Oh yeah, oh yeah, oh yeah
Looking through a glass onion
I told you about the fool on the hill
I tell you man he’s living there still
Well here’s another place you can be
Listen to me
Fixing a hole in the ocean
Tryin’ to make a dovetail joint
Looking through a glass onion
Good morning good morning
good morning good morning
good morning
Nothing to do to save his life
call his wife in
Nothing say but what a day
how’s your but been
Nothing to do, it’s up to you
I’ve got noting to say but it’s O.K.
Good morning good morning
good morning
Going to work don’t want to go
feeling low down
Heading for home you start to roam
then you’re in town
Everybody knows there’s nothing
doing
Everything is closed, it’s like a ruin
Everyone you see is half asleep
And you’re on your own, you’re in
the street
After a while you start to smile
now you feel cool
Then you decide to take a walk by
the old school
Nothing has changed it’s still the
same
I’ve got nothing to say but it’s O.K.
Good morning good morning
good morning
People running ‘round it’s five
o’clock
Everywhere in town it’s getting dark
Everyone you see is full of life
It’s time for tea and meet the wife
Somebody needs to know the time
glad that I’m here
Watching the skirts you start to flirt
no you’re in gear
Go to a show you hope she goes
I’ve got nothing to say but it’s O.K.
Good morning good morning
Anexo
Honey pie
Lennon / McCartney
I am the walrus
Lennon / McCartney
She was a working girl
North of England way
Now she's in the big time
In the USA
And if she could only gear me
this is what I'd say
Honey pie, you are making me crazy
I'm in love, but I'm lazy
So won't you please home
Oh, Honey Pie
My position is tragic
Come and show me the magic
of you Hollywood song
You became a legend of the silver
screen
And now the though of meeting you
makes me weak in the knee
Oh, honey pie
You are driving me frantic
Sail across the Atlantic
To be where you belong
Honey pie, come back to me
Will the wind that blew her boat
across the sea
kindly send her sailing back to me
T. T. Tee, Now honey pie
You are making me crazy
I'm in love but I'm lazy
Son won't you please come home
Honey pie, come back to me
Come, come back to me, Honey pie
ha, ha, ha
Honey pie, honey pie
I am he as you are he as you are me and
we are all together.
See how they run like pigs from a gun, see
how they fly.
I'm crying.
Sitting on a cornflake, waiting for the van
to come.
Corporation tee-shirt, stupid bloody
Tuesday.
Man, you been a naughty boy, you let
your face grow long.
I am the eggman, they are the eggmen.
I am the walrus, goo goo g'joob.
Mister City Policeman sitting
Pretty little policemen in a row.
See how they fly like Lucy in the Sky, see
how they run.
I'm crying, I'm crying.
I'm crying, I'm crying.
Yellow matter custard, dripping from a
dead dog's eye.
Crabalocker fishwife, pornographic
priestess,
Boy, you been a naughty girl you let your
knickers down.
I am the eggman, they are the eggmen.
I am the walrus, goo goo g'joob.
Sitting in an English garden waiting for
the sun.
If the sun don't come, you get a tan
From standing in the English rain.
I am the eggman, they are the eggmen.
I am the walrus, goo goo g'joob g'goo goo
g'joob.
Expert textpert choking smokers,
Don't you thing the joker laughs at you?
See how they smile like pigs in a sty,
See how they snied.
I'm crying.
Semolina pilchard, climbing up the Eiffel
Tower.
Elementary penguin singing Hari Krishna.
Man, you should have seen them kicking
Edgar Allan Poe.
I am the eggman, they are the eggmen.
I am the walrus, goo goo g'joob g'goo goo
g'joob.
Goo goo g'joob g'goo goo g'joob g'goo.
Anexo
I’m down
Lennon / McCartney
Lady Madonna
Lennon / McCartney
You telling lies thinking I can’t see
You don’t cry ‘cos you’re laughing
at me
I’m down (I’m really down)
I’m down (Down on the ground)
I’m down (I’m really down)
How can you laugh when you know
I’m down
(How can you laugh) When you
know I’m down.
Man buys ring woman throws it
away
Same damn thing happens everyday
I’m down (I’m really down)
I’m down (Down on the ground)
I’m down (I’m really down)
How can you laugh when you know
I’m down
(How can you laugh) When you
know I’m down.
We’re all alone and there’s nobody
else
You still moan: “Keep your hands to
yourself!”
I’m down (I’m really down)
I’m down (Down on the ground)
I’m down (I’m really down)
How can you laugh when you know
I’m down
(How can you laugh) When you
know I’m down.
Don’t you know that I’m down (I’m
really down)
Don’t you know that I’m down (I’m
really down)
Down on the ground (I’m really
down)
Don’t you know that I’m down (I’m
really down)
Down, down, down.
Lady Madonna, children at your feet.
Wonder how you manage to make
ends meet.
Who finds the money? When you
pay the rent?
Did you think that money was
heaven sent?
Friday night arrives without a
suitcase.
Sunday morning creep in like a nun.
Monday’s child has learned to tie his
bootlace.
See how they run.
Lady Madonna, baby at your breast.
Wonder how you manage to feed the
rest.
See how they run.
Lady Madonna, lying on the bed,
Listen to the music playing in your
head.
Tuesday afternoon is never ending.
Wednesday morning papers didn’t
come.
Thursday night you stockings needed
mending.
See how they run.
Lady Madonna, children at your feet.
Wonder how you manage to make
ends meet.
Anexo
Love you to
Harrison
Lovely Rita
Lennon / McCartney
Each day just goes so fast
I turn around, it's past
You don't get time to hang a sign on
me
Love me while you can
Before I'm a dead old man
A life time is so short
A new one can't be bought
But what you've got means such a lot
to me
Make love all day long
Make love singing songs
Make love all day long
Make love singing songs
There's people standing round
Who'll screw you in the ground
They'll fill you in with all their sins,
you'll see
I'll make love to you
If you want me to
Lovely Rita meter maid
nothing can come between us
When it gets dark I tow your heart
away
Standing by a parking meter
when I caught a glimpse of Rita
Filling in a ticket in her little white
book
In a cap she looked much older
And the bag across her shoulder
Made her look a little like a military
man
Lovely Rita meter maid
may I inquire discreetly
When are you free to take some tea
with me
Took her out and tried to win her
had a laugh and over dinner
Told her I would really like to see
her again
Got the bill and Rita paid it
Took her home and nearly made it
Sitting on a sofa with a sister or two
Lovely Rita meter maid
where would I be without you
give us a wink and make me think of
you
Lovely meter maid
Rita meter maid
oh, Lovely Rita meter, meter maid
Anexo
Magical Mistery Tour
Lennon / McCartney
Mean Mr. Mustard
Lennon / McCartney
Roll up, roll up for the mystery tour.
Roll up, roll up for the mystery tour.
Roll up and that’s an invitation, roll
up for the mystery tour.
Roll up to make a reservation, roll up
for the mystery tour.
The magical mystery tour is waiting
to take you away,
Waiting to take you away.
Roll up, roll up for the mystery tour.
Roll up, roll up for the mystery tour.
Roll up we’ve got everything we
need, roll up for the mystery tour.
Roll up satisfaction guaranteed, roll
up for the mystery tour.
The magical mystery tour is hoping
to take you away,
Hoping to take you away.
Roll up, roll up for the mystery tour.
Roll up, roll up for the mystery tour.
Roll up and that’s an invitation, roll
up for the mystery tour.
Roll up to make a reservation, roll up
for the mystery tour.
The magical mystery tour is coming
to take you away,
Coming to take you away.
The magical mystery tour is dying to
take you away,
Dying to take you away, take you
away.
Mean Mr. Mustard sleeps in the park
shaves in the dark, tries to save paper
Sleeps in a hole in the road
Saving up to buy him some clothes
Keeps a ten bob note up his nose
Such a mean old man
Such a mean old man
His sister Pam works in a shop
she never stops, she's a go getter
Takes him out to look at the Queen
Only place that he's ever been
Always shouts out something
obscene
Such a dirty old man
Dirty old man
Anexo
Mr. Postman
Dobbin /Garrett /Garman /Brianbert
Money
Bradfor / Gordy
Oh yes, wait just a minute mister
postman
Wait, wait mister postman
(Mister postman look and see)
(If there's a letter in the bag for me)
Please mister postman
(I've been waiting a long long time)
(Since I heard from that girl of mine)
There must be some mail today
From my girlfriend so far away
Please mister postman look and see
If there's a letter, a letter for me
I've been standing here waiting
Mister Postman
So patiently for just a card
or just a letter
Saying she's returning home to me
Please Mister Postman
(Mister postman look and see)
(If there's a letter in the bag for me)
Please mister postman
(I've been waiting a long long time)
(Since I heard from that girl of mine)
So many days you past me by
See the tears standing in my eyes
You didn't stop to make me feel
better
By leaving me a card or letter
Mister Postman, look and see
Is there a letter, yeah, for me
I've been waiting such a long long
time
Since I heard from that girl of mine
You gotta, wait a minute wait a
minute
Wait a minute wait a minute
(you gotta) check and see one more
time for me
You gotta, wait a minute wait a
minute
Mister Postman,
deliver the letter, the sooner the
better
The best things in life are free
But you can keep them for the birds
and bees
Now give me money
That's what I want
That's what I want, yeah
That's what I want
You're lovin' gives me a thrill
But you're lovin' don't pay my bills
Now give me money
That's what I want
That's what I want, yeah
That's what I want
Money don't get everything it's true
What it don't get, I can't use
Now give me money
That's what I want
That's what I want, yeah
That's what I want, wah
Money don't get everything it's true
What it don't get, I can't use
Now give me money
That's what I want
That's what I want, yeah
That's what I want
Well now give me money
Ow, money
Wow, yeah, I wanna be free
Oh I want money
That's what I want
That's what I want, well
Now give me money
ow, money
Wow, yeah, you need money
now, give me money
That's what I want, yeah
that's what I want, yeah
Anexo
Norwegian wood
Lennon / McCartney
Ob-la-di, ob-la-da
Lennon / McCartney
I once had a girl
Or should I say she once had me
She showed me get room
Isn't it good Norwegian wood?
She asked me to stay
And she told me to sit anywhere
So I looked around
And I noticed there wasn't a chair
I sat on a rug biding my time
drinking her wine
We talked until two and then she said
"it's time for bed"
She told me she worked
in the morning and started to laugh
I told her I didn't
and crawled off to sleep in the bath
And when I awoke I was alone
This bird had flown
So I lit a fire
Isn't it good Norwegian wood?
Desmond has a barrow in the
marketplace
Molly is the singer in a band
Desmond say to Molly, girl I like
you face
And Molly says this as she takes him
be the hand
Refrão:
Ob-la-di, ob-la-da,
Life goes on, bra
La la how the life goes on
Ob-la-di, ob-la-da
Life goes on, bra
La la how the life goes on
Desmond take a trolley to the
jewelers store
Buys a twenty carat golden ring, (rin-
ring)
Takes it back to Molly waiting at the
door
And as he gives it to her she begins
to sing (sin-sing)
Refrão
Yeah, In a couple of years they
have built a home sweet home
With a couple of kids running in the
yard
of Desmond and Molly Jones
Happy ever after in the market place
Desmond lets the children lend a
hand
Molly stays at home and does her
pretty face
And in the evening she's a singer
with the band
Refrão
Happy ever after in the market place
Molly lets the children lend a hand
Desmond stays at home and does his
pretty face
And in the evening she's a singer
with the band
Refrão
Anexo
Only a Northern song
Harrison
Paperback writer
Lennon / McCartney
If you’re listening to this song
You may think the chords are going
wrong
But they’re not
He just wrote it like that
When you’re listening late at night
You may think the bands are not
quite right
But they are
They just play it like that
It doesn’t really matter what chords I
play
What words I say or time of day it is
As it’s only a Northern Song
It doesn’t really matter what clothes I
wear
or how I fare or if my hair is brown
When it’s only a Northern Song
If you think the harmony
Is a lttle dark and out of key
You’re correct
There’s nobody there
And I told you there’s no one there
Paperback Writer.......
Dear Sir or Madam, will you read my
book?
It took me years to write, will you
take a look?
Based on a novel by a man named
Lear
And I need a job, so I want to be a
paperback writer,
Paperback writer.
It’s the dirty story of a dirty man
And his clinging wife doesn’t
understand.
His son is working for the Daily
Mail,
It’s a steady job but he wants to be a
paperback writer,
Paperback writer.
Paperback writer
It’s a thousand pages, give or take a
few,
I’ll be writing more in a week or two.
I can make it longer if you like the
style,
I can change it round and I want to
be a paperback writer,
Paperback writer.
If you really like it you can have the
rights,
It could make a million for you
overnight.
If you must return it, you can send it
here
But I need a break and I want to be a
paperback writer,
Paperback writer.
Paperback writer
Paperback writer – paperback writer
Paperback writer – paperback writer.
Anexo
Penny Lane
Lennon / McCartney
Piggies
Harrison
In Penny Lane there is a barber
showing photographs
Of every head he's had the pleasure
to know.
And all the people that come and go
Stop and say hello.
the corner is a banker with a
motorcar,
The little children laugh at him
behind his back.
And the banker never wears a mack
In the pouring rain, very strange.
Penny Lane is in my ears and in my
eyes.
There beneath the blue suburban
skies
I sit, and meanwhile back
In penny Lane there is a fireman with
an hourglass
And in his pocket is a portrait of the
Queen.
He likes to keep his fire engine clean,
It's a clean machine.
Penny Lane is in my ears and in my
eyes.
A four of fish and finger pies
In summer, meanwhile back
Behind the shelter in the middle of a
roundabout
The pretty nurse is selling poppies
from a tray
And tho' she feels as if she's in a play
She is anyway.
In Penny Lane the barber shaves
another customer,
We see the banker sitting waiting for
a trim.
And then the fireman rushes in
From the pouring rain, very strange.
Penny lane is in my ears and in my
eyes.
There beneath the blue suburban
skies
I sit, and meanwhile back.
Have you see the little piggies
crawling in the dirt
And for all the little piggies
Life is getting worse
Always having dirt
to play around in
Have you see the bigger piggies
In their starched white shirts
You will find the bigger piggies
Stirring up the dirt
Always have clean shirts
to play around in
In their sties with all their backing
They don't care what goes on around
In their eyes there's something
lacking
What they need's a darn good
whacking
Everywhere there's lots of piggies
Living piggy lives
You can see them out for dinner
With their piggy wives
Clutching forks and knives
to eat their bacon
One more time
Anexo
Revolution
Lennon / McCartney
Roll over Beethoven
Berry
You say you want a revolution
Well, you know
We all want to change the world
You tell me that it's evolution
Well, you know
We all want to change the world
But when you talk about destruction
Don't you know that you can count me
out
Don't you know it's gonna be all right
Don't you know it's gonna be all right
Don't you know it's gonna be all right
You say you got a real solution
Well, you know
We'd all love to see the plan
You ask me for a contribution
Well, you know
We're doing what we can
But when you want money
for people with minds that hate
All I can tell is brother you have to
wait
Don't you know it's gonna be all right
Don't you know it's gonna be all right
Don't you know it's gonna be all right
You say you'll change the constitution
Well, you know
We all want to change your head
You tell me it's the institution
Well, you know
You better free you mind instead
But if you go carrying pictures of
chairman Mao
You ain't going to make it with anyone
anyhow
Don't you know it's gonna be all right
Don't you know it's gonna be all right
Don't you know it's gonna be all right
Ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah
all right, all right, all right
all right, all right, all right
all right, all right, all right
all right, all right
Well gonna write a little letter
Gonna mail it to my local D.J.
It's a rockin' little record
I want my jockey to play
Roll over Beethoven
I gotta hear it again today
You know my temperature's risin'
and the jukebox's blowin' a fuse
My hearts beatin' rhythm
and my soul keeps singing the blues
Roll over Beethoven
and tell Tchaikovsky the news
I got a rockin' pneumonia
I need a shot of rhythm and blues
I think I got it off the writer
sittin' down by the rhythm review
Roll over Beethoven
we're rockin' in two by two
Well if you fell you like it
Get your lover and reel and rock it
roll it over and move on up
just jump around and reel and rock it
roll it over
Roll over Beethoven
a rockin' in two by two , oh
Well early in the mornin'
I'm a givin' you the warnin'
Don't you step on my blue suede
showes
Hey little little
gonna play my fiddle
Ain't got nothing to lost
Roll over Beethoven
and tell Tchaikovsky the news
You know she winks like a glow
worm
Dance like a spinnin' top
She got a crazy partner
oughta see 'em reel an rock
Long as she's got a dime
the music will never stop
Roll over Beethoven
and dig these rhythm and blues
Anexo
Sgt. Pepper’s Lonely
Hearts Club Band
Lennon / McCartney
Sgt. Pepper’s Lonely
Hearts Club Band (reprise)
Lennon / McCartney
It was twenty years ago today
Sgt. Pepper taught the band to play
They’ve been going in and out of
style
But they’re guaranteed to raise a
smile
So may I introduce to you
the act you’ve know for all these
years
Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club
Band
We’re Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s
Club Band
We hope you will enjoy the show
Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club
Band
Sit back and let the evening go
Sgt. Pepper’s Lonely, Sgt. Pepper’s
Lonely
Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club
Band
It’s wonderful to be here
It’s certainly a thrill
You’re such a lovely audience
We’d like to take you home with us
We’d love to take you home
I don’t really want to stop the show
But I thought you might like to know
that the singers going to sing a some
And he wants you all the sing along
So may I introduce to you
The one and only Billy Shears
Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club
Band
We’re Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s
Club Band
we hope you will enjoy the show
Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club
Band
We’re sorry but it’s time to go
Sgt. Pepper’s Lonely, Sgt. Pepper’s
Lonely
Sgt. Pepper’s Lonely, Sgt. Pepper’s
Lonely
Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club
Band
We’d like to thank you once again
Sgt. Pepper’s one and only Lonely
Heart’s Club Band
It’s getting very near the end
Sgt. Pepper’s Lonely, Sgt. Pepper’s
Lonely
Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club
Band
Anexo
She came in through
the bathroom window
Lennon / McCartney
She’s leaving home
Lennon / McCartney
She came in through the bathroom
window
protected by a silver spoon
But now she sucks her thumb and
wonders
By the banks of her own lagoon
Didn't anybody tell her
Didn't anybody see
Sunday's on the phone to Monday
Tuesday's on the phone to me
She said she's always been a dancer
She worked at fifteen clubs a day
And though she thought I knew the
answer
Well I knew what I could not say
And so I quit the Police Department
And got myself a steady job
And though she tried her best to help
me
She could steal, but she could not rob
Didn't anybody tell her
Didn't anybody see
Sunday's on the phone to Monday
Tuesday's on the phone to me
Oh, yeah
Wednesday morning at five o'clock
as the day begins
Silently closing her bedroom door
Leaving the note that she hoped would
say more
She goes downstairs to the kitchen
clutching her handkerchief
Quietly turning the back door key
Stepping outside she is free
She (we gave her most of our lives)
is leaving (sacrificed most of our lives)
home (we gave her everything money
could buy)
She's leaving home after living alone
for so many years (bye bye)
Father snores as his wife gets into her
dressing gown
Picks up the letter that's lying there
Standing alone at the top of the stairs
She breaks down and cries to her
husband
Daddy our baby's gone
Why would she treat us so
thoughtlessly
How could she do this to me
She (We never thought of ourselves)
is leaving (never a thought for
ourselves)
home (we struggled hard all our lives
to get by)
She's leaving home after living alone
for so many years (bye bye)
Friday morning at nine o'clock she is
far away
Waiting to keep the appointment she
made
Meeting a man from the motor trade
She (what did we do that was wrong)
is having (we didn't know it was
wrong)
fun (fun is the one thing that money
can't buy)
Something inside that was always
denied for so many years (bye bye)
She's leaving home (bye bye)
Anexo
Taxman
Harrison
The ballad of John and Yoko
Lennon / McCartney
Let me tell you how it will be
There's one for you, nineteen for me
'cause I'm the taxman,
yeah, I'm the taxman
Should five percent appear too small
Be thankful I don't take it all
'cause I'm the taxman,
yeah, I'm the taxman
If you drive a car, I'll tax the street
If you try to sit, I'll tax your seat
If you get too cold, I'll tax the heat
If you take a walk, I'll tax your feet
Taxman
'Cause I'm the taxman,
Yeah, I'm the taxman
Don't ask me what I want it for
If you don't want to pay some more
'cause I'm the taxman,
yeah, I'm the taxman
Now my advice for those who die
Declare the pennies on your eyes
'cause I'm the taxman,
yeah, I'm the taxman
And you're working for no one but
me
Standing in the dock at Southampton,
Trying to get to Holland or France.
The man in the mac said, "You've got to
turn back".
You know they didn't even give us a
chance.
Refrão:
Christ you know it ain't easy,
You know how hard it can be.
The way things are going
They're going to crucify me.
Finally made the plane into Paris,
Honey mooning down by the Seine.
Peter Brown called to say,
"You can make it O.K.,
You can get married in Gibraltar, near
Spain".
Refrão
Drove from Paris to the Amsterdam
Hilton,
Talking in our beds for a week.
The newspapers said, "Say what you
doing in bed?"
I said, "We're only trying to get us some
peace".
Refrão
Saving up your money for a rainy day,
Giving all your clothes to charity.
Last night the wife said,
"Oh boy, when you're dead
You don't take nothing with you
But your soul - think!"
Made a lightning trip to Vienna,
eating chocolate cake in a bag.
The newspapers said, "She's gone to his
head,
They look just like two gurus in drag".
Refrão
Caught an early plane back to London.
Fifty acorns tied in a sack.
The men from the press said, "We wish
you success,
It's good to have the both of you back".
Refrão
Anexo
Ticket to ride
Lennon / McCartney
Two of us
Lennon / McCartney
I think I'm gonna be sad, I think it's
today, Yeah
The girl that's driving me mad is
going away
Refrão:
She's got a ticket to ride
She's got a ticket to ride
She's got a ticket to ride
but she don't care
She said that living with me is
bringing her down, yeah
For she would never be free when I
was around
Refrão
I don't know why she's riding so high
She ought to think right
She ought to do right by me
Before she gets to saying goodbye
She ought to think right
She ought to do right by me
I think I'm gonna be sad, I think it's
today, Yeah
The girl that's driving me mad is
going away, yeah, oh
Refrão
I don't know why she's riding so high
She ought to think right
She ought to do right by me
Before she gets to saying goodbye
She ought to think right
She ought to do right by me
She said that living with me is
bringing her down, yeah
For she would never be free when I
was around
She's got a ticket to ride
She's got a ticket to ride
She's got a ticket to ride
but she don't care
My baby don't care
Two of us riding nowhere
spending someone's hard earned pay
You and me Sunday driving
Not arriving on our way back home
We're on our way back home
We're on our way home
We're going home
Two of us sending postcards
writing letters on my wall
You and me burning matches
lifting latches on our way back home
We're on our way back home
We're on our way home
We're going home
You and I have memories
longer that that road
that stretches out ahead
Two of us wearing raincoats
standing solo in the sun
You and me chasing paper
getting nowhere on our way back
home
We're on our way back home
We're on our way home
We're going home
You and I have memories
longer that that road
that stretches out ahead
Two of us wearing raincoats
standing solo in the sun
You and me chasing paper
getting nowhere on our way back
home
We're on our way back home
We're on our way home
We're going home
We're going home
Anexo
When I’m sixty-four
Lennon / McCartney
While my guitar gently weeps
Harrison
When I get older losing my hair
many years from now
will you still be sending me a
valentine
birthday greeting, bottle of wine
If I’d been out till quarter to three
would you lock the door
Will you still need me
Will you still feed me
When I’m sixty-four
You’ll be older too
And if you say the word
I could stay with you
I could be handy mending a fuse
when your light have gone
You can knit a sweater by the
fireside
Sunday mornings, go for a ride
Doing the garden, digging the weeds
Who could ask for more
Will you still need me
Will you still feed me
When I’m sixty-four
Every summer we can rent a cottage
on the
Isle of Wight, if it’s not too dear
We shall scrimp and save
Grandchildren on your knee
Vera, Chuck, and Dave
Send me a postcard, drop me a line
stating point of view
indicate precisely what you mean to
say
yours sincerely wasting away
Give me your answer fill in a form
mine forever more
Will you still need me
Will you still feed me
When I’m sixty-four
I look at you all see the love there
that’s sleeping
While my guitar gently weeps
I look at the floor and I see it need
sweeping
Still my guitar gently weeps
I don’t know why nobody told you
how to unfold you love
I don’t know how someone
controlled you
they bought and sold you
I look at the world and I notice it’s
turning
While my guitar gently weeps
With every mistake we must surely
be learning
Still my guitar gently weeps
I don’t know how you were diverted
you were perverted too
I don’t know how you were inverted
no on altered you
I look at you all see the love there
that’s sleeping
While my guitar gently weeps
I look at you all
Still my guitar gently weeps
Oh, oh, oh
oh oh oh oh oh oh oh
oh oh, oh oh, oh oh
Yeah yeah yeah yeah
yeah yeah yeah yeah
Anexo
Within you, without you
Harrison
You never give me your money
Lennon / McCartney
We were talking
about the space between us all
and people who hide themselves
behind a wall of illusion
never glimpse the truth
then it's far too late
when they pass away
We were talking
about the love we all could share
When we find it
to try our best to hold it there
with our love, with our love
we could save the world
if they only knew
Try to realize it's all within yourself
no one else ca make you change
And to see you're really only very
small
and life flows on within you and
without you
We were talking
about the love that's gone so cold
and the people who gain the world
and lose their soul
They don't know, they can't see
Are you one of them
When you've seen beyond yourself
then you may find
peace of mind is waiting there
And the time will come
when you see we're all one
and life flows on within you and
without you
You never give me your money
you only give me you funny paper
And in the middle of negotiation you
break down
I never give you my number
I only give you my situation
And in the middle of investigation I
break down
Out of college money spent
See no future, pay no rent
All the money's gone, nowhere to go
Any jobber got the sack
Monday morning turning back
Yellow lorry slow, nowhere to go
But oh, that magic feeling
Nowhere to go
Oh, that magic feeling
nowhere to go
nowhere to go
Ah, Ooo, Ah, Ooo, Ah
One sweet dream
Pick up the bags and get in the
limousine
Soon we'll be away from here
Step on the gas and wipe that tear
away
One sweet dream
Came true today
Came true today
Came true today
One two three four five six seven
All good children go to heaven
Anexo
Your mother should know
Lennon / McCartney
Let's all get up and dance to a song
That was a hit before your mother
was born.
Though she was born a long, long
time ago
Your mother should know (Your
mother should...)
Your mother should know (...know.)
Sing it again.
Let's all get up and dance to a song
That was a hit before your mother
was born.
Though she was born a long, long
time ago
Your mother should know (Your
mother should...)
Your mother should know (...know.)
Lift up your hearts and sing me a
song
That was a hit before your mother
was born.
Though she was born a long, long
time ago
Your mother should know (Your
mother should...)
Your mother should know (Aaaah.)
Your mother should know (Your
mother should...)
Your mother should know (Aaaah.)
Sing it again.
Da-da-da-da...
Though she was born a long, long
time ago
Your mother should know (Your
mother should...)
Your mother should know (Yeah.)
Your mother should know (Your
mother should...)
Your mother should know (Yeah.)
Your mother should know (Your
mother should...)
Your mother should know (Yeah.)
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