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Dafne Berbigier Dino
NUM NINHO DE MAFAGAFOS:
LITERATURA INFANTIL DE INPIRAÇÃO FOLCLÓRICA E A
FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO
Orientadora: Prof. Dr. Tania Mariza Kuchenbecker Rösing
Passo Fundo
2006
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO EM LETRAS
Campus I – Prédio B3, sala 106 – Bairro São José – Cep. 99001-970 - Passo Fundo/RS
Fone (54) 316-8341 – Fax (54) 316-8125 – E-mail: mestradolet[email protected]r
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Dafne Berbigier Dino
NUM NINHO DE MAFAGAFOS:
LITERATURA INFANTIL DE INPIRAÇÃO FOLCLÓRICA E A
FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO
Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em
Letras, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
da Universidade de Passo Fundo, como requisito
parcial e final para a obtenção do grau de Mestre em
Letras- Estudos Literários, tendo como orientadora a
Prof. Dr. Tania Mariza Kuchenbecker
Rösing.
Passo Fundo
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2006
Dafne Berbigier Dino
Num ninho de mafagafos:
literatura infantil de inspiração folclórica e
a formação do leitor literário
Banca examinadora:
Prof. Dr. Tania Mariza Kuchenbecker Rösing – UPF- Orientadora
Prof. Dr Fabiane Burlamaque Verardi – UPF- Professora examinadora
Prof. Dr. Jane Fraga Tutikian- UFRGS- Professora examinadora
Passo Fundo
4
2006
RESUMO
Este estudo investigativo consiste em uma análise da relação entre a cultura popular
e a literatura infantil através do levantamento da presença de elementos folclóricos em
obras de literatura infantil brasileira e o modo como o leitor em formação se apropria
desses elementos. Para auxiliar o desenvolvimento da pesquisa foram estabelecidas
questões norteadoras estreitamente relacionadas ao objetivo geral: Quais são os elementos
folclóricos utilizados pelos escritores de literatura infantil Ângela Lago, Joel Rufino dos
Santos e Ricardo Azevedo em suas obras? As narrativas desses autores são criadas
conforme a estrutura dos contos tradicionais? De que forma o leitor em formação se
apropria dos elementos folclóricos? A leitura de obras de inspiração folclórica influencia a
formação do leitor literário? Para responder às questões propostas e alcançar o objetivo
determinado, seguiram-se quatro etapas de investigação: pesquisa de cunho bibliográfico,
na qual buscaram-se definições de cultura popular, folclore e literatura infantil; seleção de
obras de autores de literatura infantil brasileira contemporânea para análise; investigação da
fase de produção dos autores de literatura infantil selecionados, através de entrevistas;
investigação da influência dos elementos folclóricos na formação do leitor literário através
de entrevistas com 14 leitores das obras selecionadas, freqüentadores do Centro de
Referência de Literatura e Multimeiros- Mundo da Leitura. Pelo encaminhamento dado à
investigação realizada, procurou-se evidenciar não apenas se os elementos folclóricos
utilizados pelos escritores de literatura infantil abrangem substratos temáticos, oriundos do
modelo de visão popular, e estruturais, resgatando a organização das narrativas tradicionais,
mas também, se a leitura dessas obras influencia positivamente os leitores, levando-os a
formar um comportamento perene de leitura.
Palavras chave: literatura infantil, formação do leitor, cultura popular, folclore.
5
ABSTRACT
This investigative study consists in one analysis between the popular culture and the
children ’ s literature through the collection of data about the presence of folkloric elements
in works of Brazilian children ’ s literature and the way how the reader in formation
appropriate of these elements. Guiding questions closely related to the main goal were
established in order to help the development of the research. These questions are: which are
the folkloric elements used by writers of children s literature Angela Lago, Joel Rufino
dos Santos, and Ricardo Azevedo in their works? Are the narratives of these authors
created according to the structures of traditional tales? How can a reader in formation
appropriate of folkloric elements? Does the reading of folkloric inspiration works influence
the literary reader formation? In order to answer these proposed questions and reach the
specific goal, four investigative steps were followed: bibliographic research, where
definitions of popular culture were searched, folklore and children s literature; works of
contemporary Brazilian children s literature were selected to analysis; through interview,
the investigation into the production step about the selected author of children s literature
was done; investigation into the influence of folkloric elements at formation of literary
readers through interviews of 14 readers of selected works, who attend the reference center
of literature and multimedia- World of reading. Through the conduction given to the
accomplished investigation, not only if the folkloric elements applied by writers of infant
literature cover thematic extracts, originated of popular and structural sight, rescuing the
organization of traditional narratives, but also, if the reading of these works influences the
readers positively, taking them to form a perennial behavior of reading.
Key words: infant literature, reading formation, popular culture, folklore
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................8
1. CAMPO GRANDE; GADO MIÚDO - OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ..............16
1.1 Cultura popular: aspectos introdutórios......................................................................17
1.2 Folclore: modos de ser, de pesar e de agir..................................................................30
1.2.1 Linguagem folclórica...........................................................................................37
1.2.2 Festas e folguedos................................................................................................41
1.2.3 Músicas...............................................................................................................42
1.2.4 Danças .................................................................................................................47
1.3 Relações entre cultura popular e folclore ...................................................................49
1.4 A natureza das expressões da oralidade e da literatura ..............................................51
1.5 Visão moderna da infância e surgimento da literatura infantil...................................56
1.6 Consolidação da literatura infantil..............................................................................60
1.7 Relação entre literatura infantil e o folclore ...............................................................64
2. O QUE É, O QUE É? ADIVINHE SE PUDER – A PESQUISA................................74
2.1 Análise das obras........................................................................................................75
2.1.1 Ricardo Azevedo .................................................................................................75
2.1.2 Joel Rufino dos Santos .......................................................................................98
2.1.3 Ângela Lago ......................................................................................................105
2.2 Entrevistas com os autores de literatura infantil.......................................................117
2.3 Entrevista com os leitores.........................................................................................121
3. SE NÃO DEU CERTO, É PORQUE AINDA NÃO ACABOU - A CULTURA
POPULAR E A FORMAÇÃO DO LEITOR.....................................................................135
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................140
REFERÊNCIAS .................................................................... Erro! Indicador não definido.
7
ANEXOS............................................................................................................................151
ANEXO A - Instrumento de pesquisa I..............................................................................152
ANEXO B- Instrumento de pesquisa II.............................................................................153
ANEXO C – Entrevista com Ricardo Azevedo .................................................................154
ANEXO D – Entrevista com Joel Rufino dos Santos ........................................................158
ANEXO E - Entrevista com Ângela Lago..........................................................................160
8
INTRODUÇÃO
Quando o colonizador europeu chegou às terras brasileiras, espantou-se com tanta
abundância: eram águas que não acabavam mais, qualidade inquestionável das madeiras
com apelo à exploração, frutas para serem colhidas, animais para serem caçados, metais
preciosos, e, ainda, a mão-de-obra escrava. Os índios, por outro lado, viviam, como se sabe,
em harmonia com o meio ambiente e possuíam um modelo cultural completamente
diferente do homem branco. Desse primeiro encontro, deu-se a gênese da cultura popular
brasileira, lendas, mitos e práticas dos indígenas mesclaram-se com a cultura européia.
Pode-se citar como exemplo de manifestação proveniente desse contato as histórias
sobre aquele menino de pés virados para trás, atarracado, de cabeleira vermelha e de corpo
peludo, conhecido por Curupira. Segundo a tradição indígena, esta figura vive nos lugares
de mata fechada e quando alguém caça por maldade, ele se transforma numa fera terrível,
fazendo com que o caçador perca-se apavorado dentro da floresta. No momento em que os
primeiros navios negreiros chegaram, também se herdou uma série de usos, costumes e
histórias. Aquele que espanta o gado, faz desaparecer os objetos das casas, assusta viajantes
com assobios e pula numa perna só, aquele negrinho que se chama Saci, veio com os
escravos africanos, através da memória desse povo. Com os europeus, entre outras tantas
contribuições, chegaram os mitos universais, figuras representativas da cultura de várias
partes do mundo, como a bruxa, simbolizando a maldade humana, a sereia, que no Brasil
virou Iara, representando a sedução pelo desconhecido, o lobisomem, bicho-papão, mula-
sem-cabeça. Isso sem citar os ditos populares, trava-línguas, anedotas, contos, frases feitas,
parlendas, uma riqueza em formas literárias à disposição dos agentes formadores de
leitores.
Sabe-se que a formação cultural do Brasil e as diferentes gestões políticas geraram o
quadro que se apresenta atualmente, no qual 13% da população brasileira é analfabeta, 26%
é constituída por analfabetos funcionais e 75% dos brasileiros não têm domínio pleno sobre
a leitura
1
. Através do contexto que se apresenta, é possível inferir que a maioria da
1
Dados obtidos no site do IBGE, disponível em http//: www.ibege.gov.br. Acesso em: agosto de 2005.
9
população vivencia a cultura popular, de transmissão oral ou é influenciada pela forma
popular de conceber o mundo. Em vista desse contexto brasileiro, Passo Fundo é um
município singular, uma vez que, mais de 20 anos, desenvolve amplas ações de
formação de leitores, e, atualmente, está aliando o uso de suportes multimidiais com as
representações da cultura popular nesse processo.
O município de Passo Fundo é conhecido nacional e internacionalmente por ser o
cenário de dois grandes eventos culturais: a Jornada Nacional de Literatura
2
e o Festival
Internacional de Folclore
3
. Apesar de acontecerem a cada dois anos, a realização de ambos
se constitui apenas na culminância de toda uma movimentação cultural da cidade, fazendo
parte de uma política de formação de leitores e de sensibilização da comunidade para a
valorização da cultura popular e da identidade dos diferentes povos. Entre uma Jornada
Literária e outra, muito se faz pelos leitores para que se tornem críticos e consolidem a
necessidade de consumo do texto literário. Dentre essas ações, destaca-se o trabalho
desenvolvido no Centro de Referência de Literatura e Multimeios Mundo da Leitura que,
pertencente ao curso de Letras da Universidade de Passo Fundo, durante o ano todo, atende
aos alunos da rede pública e particular, realizando práticas leitoras, cujo objetivo é formar
leitores em múltiplas linguagens e suportes, além de produzir e apresentar um programa de
televisão.
2
As Jornadas de Literatura acontecem a cada dois anos no mês de agosto. O evento possui mais de 20 anos de
existência e constitui-se em uma movimentação cultural que objetiva formar leitores do texto literário. A
programação inclui debates entre escritores, críticos, artistas em geral, com o público, além de cursos,
atividades paralelas, como exposições de arte, de livros, apresentações de espetáculos musicais, de dança,
amostra de filmes, de fotografias, entre outras atividades. As mesas redondas, nas quais os escritores debatem
temas diversos, ocorrem no Circo da Cultura, um complexo de lonas armadas no Campus 1 da Universidade
de Passo Fundo. Para o momento de diálogo entre o blico-leitor e os autores, existe uma preparação
conhecida como Pré-Jornada, durante a qual os participantes fazem a leitura das obras dos autores que estarão
presentes no evento e discutem o conteúdo das mesmas, além de assistirem a palestras, a espetáculos e a
outras ações que visam a preparação do público para o debate. Em 2005, na 11ª Jornada Nacional de
Literatura, 225 autores estiveram presentes, 5.000 pessoas participaram dos debates no Circo da Cultura e
mais de 8.000 assistiram as apresentações artísticas e interagiram com os escritores na Programação Paralela.
3
O Festival Internacional de Folclore, outro evento de grande porte preparado para um público de mais de
5.000 pessoas, traz a Passo Fundo, a cada dois anos, apresentações artísticas de grupos folclóricos das mais
diferentes regiões do Brasil e de muitos outros países. Já estiveram na cidade grupos da França, Itália,
Turquia, ssia, Ilha de Páscoa entre outros. As apresentações, na sua maioria constituídas de danças e
músicas tradicionais, acontecem à noite para o público em geral e, durante o dia, para os alunos do Ensino
Público, que m a sua entrada subsidiada pela prefeitura. Durante a Programação Paralela acontecem desfiles
das etnias e oficinas de dança, culinária, artesanato.
10
O Mundo da Leitura na TV
4
é transmitido na rede nacional do Canal Futura,
destinado ao público infantil, utilizando inúmeros recursos para formar leitores.
Paralelamente à criação do programa de TV, o Centro de Referência de Literatura e
Multimeios proporcionou um forte elo entre essas várias iniciativas de fomento cultural,
através do projeto Mundo da Leitura na Escola, quando se passou a discutir e a vivenciar a
cultura popular, folclore e literatura com os professores e alunos da rede pública, no bairro
São José, onde está localizada a Universidade de Passo Fundo. Nessa oportunidade,
observou-se que tanto os professores, quanto os alunos e pais de alunos envolvidos no
projeto, na sua grande maioria, não apresentavam intimidade com a leitura de materiais
impressos ou em outros suportes, porém, muitos moradores do bairro, pais de alunos,
conheciam histórias sobre a fundação do bairro, sabiam fazer brinquedos artesanais, ou
conheciam brincadeiras folclóricas.
Em 2001 ocorreu a primeira edição da Jornadinha Nacional de Literatura
5
, nessa
oportunidade, milhares de crianças conversaram com os escritores de literatura infantil
sobre obras que haviam lido previamente para o encontro. Tanto os leitores participantes da
Jornadinha, quanto os leitores ligados ao projeto Mundo da Leitura na Escola
demonstraram ávido interesse pelas obras de Ricardo Azevedo, Ângela Lago e Joel Rufino
dos Santos, escritores que utilizam elementos folclóricos em suas produções. Essas
observações possibilitaram estabelecer as seguintes questões que permearam toda a
pesquisa: Que elementos folclóricos os escritores de literatura infantil contemporânea
utilizam em suas obras? As narrativas desses autores são criadas nas perspectivas dos
4
O programa surgiu de um desafio proposto pela UPF TV ao Centro de Referência de Literatura e
Multimeios. A idéia inicial era produzir um programa simples, com poucos recursos, de cunho educativo
tendo como alvo o público infantil. Hoje, o Mundo da Leitura na TV é transmitido em rede nacional pelo
Canal Futura. A produção do programa é realizada por uma equipe multidisciplinar que objetiva transmitir
informações, dicas de leituras, enigmas, parlendas, trava-línguas, contações de histórias, em uma linguagem
dinâmica e atual. A apresentação é realizada por um personagem boneco muito carismático: o Gato Gali-Leu,
que conta ainda com o auxílio de seus amigos Gata Borralheira, Mil Faces e Natália.
5
A Jornadinha Nacional de Literatura chegou a sua terceira edição em 2005 e é parte da história de Passo
Fundo. A programação é cuidadosamente preparada para atender ao grande público de crianças e
adolescentes, que conversam com os autores de literatura infanto-juvenil e assistem a diversos espetáculos. As
apresentações ocorrem na Lona Central do Circo da Cultura e em quatro lonas coloridas, nas quais os autores
se revezam no contato com as crianças. Em 2005 aproximadamente 12.000 alunos da rede pública e particular
de ensino participaram do evento.
11
contos tradicionais? De que forma o leitor em formação se apropria desses elementos? A
leitura de obras de inspiração folclórica influencia a formação do leitor literário?
O presente estudo investigativo pretende contribuir com as reflexões acerca da
importância de se preservar o patrimônio cultural brasileiro e explicitar a relação entre a
cultura que emerge do povo e a produção de literatura infanto-juvenil, paralelamente aos
modos de apropriação dos elementos folclóricos pelos leitores em formação. Essa
investigação somar-se-á às iniciativas propostas pelo Centro de Referência de Literatura e
Multimeios Mundo da Leitura, já referido, ao qual a autora da proposta esteve vinculada
como monitora de leitura pelo período de quatro anos. O Centro, coordenado pela Prof.ª
Dr.ª Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, é conhecido pelas inúmeras ões de promoção
da leitura em diferentes suportes e linguagens e se relaciona de modo especial aos objetivos
dessa pesquisa pelo trabalho desenvolvido a partir do ano de 2002, ao valorizar a cultura
popular através das práticas leitoras, utilizando, ao mesmo tempo o acervo em livros, CDs-
ROM, CDs, recursos desse espaço multimidial que contemplam temas folclóricos .
Através da realização desse estudo investigativo buscou-se reunir subsídios teórico-
metodológicos referentes à formação do leitor e à literatura infantil, que poderão ser úteis a
educadores, animadores culturais, bibliotecários e a profissionais que atuam em espaços
semelhantes ao Mundo da Leitura, conhecidos como centros culturais multimidiais
existentes em número muito reduzido e os que estão em processo de construção.
Dentro da perspectiva de dinamismo dos atuais estudos sobre cultura, a pesquisa
propõe definições de cultura popular, folclore e literatura infantil com vistas a esclarecer
diferenças e pontos de contato, bem como a natureza de suas produções. O trabalho em
questão possibilitou, ainda, a identificação dos procedimentos de pesquisa no processo de
criação literária através da análise de obras e de entrevistas com os autores Ângela Lago,
Joel Rufino dos Santos e Ricardo Azevedo, buscando identificar as fontes dos elementos
folclóricos utilizados pelos autores. A investigação ofereceu, ainda, condições para o
aprofundamento de questões referentes à formação do leitor literário, justificando, o
problema de pesquisa definido, tanto do ponto de vista teórico, como prático, por estar
12
ligado ao trabalho desenvolvido efetivamente na Universidade de Passo Fundo, através do
Centro de Referência de Literatura e Multimeios e na formação de leitores em geral.
Esta pesquisa caracteriza-se como qualitativa, tendo em vista as afirmações de
Maria Cecília de Souza Minayo sobre essa modalidade de investigação social, nas quais é
evidenciado que a pesquisa qualitativa trabalha com o “universo de significados,
aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização
de variáveis.”
6
A observação de comportamentos e fenômenos para compreendê-los através de
ferramentas específicas, como entrevistas, é o caminho pelo qual se optou nessa
investigação, uma vez que esses fenômenos não poderiam ser analisados apenas a partir de
dados matemáticos e racionais. Portanto, levando em consideração o objetivo dessa
pesquisa, a investigação qualitativa é a que melhor se ajusta à natureza do problema
estudado, ou seja, a relação entre o universo popular e literário, expresso pela produção de
autores de literatura infantil e a forma como o leitor se apropria desses textos.
Segundo Augusto N. S. Triviños, a pesquisa qualitativa de tipo histórico-estrutural
“parte também da descrição que tenta captar não só a aparência do fenômeno, como
também sua essência. Busca, porém, as causas da existência dele, procurando explicar sua
origem, suas relações, suas mudanças e se esforça por intuir as conseqüências que terão na
vida humana.”
7
Quanto aos aspectos metodológicos, este estudo divide-se em dois momentos. No
primeiro, de cunho bibliográfico, buscou-se definições de cultura popular, folclore e
literatura infantil, através das obras dos teóricos Peter Burke, Mikhail Bakhtin, David R.
Olson, Walter Ong, Florestan Fernandes, Rossini Tavares de Lima, Câmara Cascudo,
Phillipe Ariès, Teresa Colomer, Vladimir Propp, Bruno Bettelheim. No segundo momento,
6
MINAYO, M. C. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 21;22.
7
TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São
Paulo: Atlas S. A., 1987. p. 129.
13
através das obras selecionadas para análise: O Armazém do folclore, No meio da noite
escura tem um pé de maravilha, Meu livro de folclore, de Ricardo Azevedo; A festa no céu,
Sete histórias para chacoalhar o esqueleto, Tampinha, de Ângela Lago; História de
Trancoso, Dudu Calunga, Botija de Ouro, de Joel Rufino dos Santos. Cabe ressaltar, ainda,
que as obras selecionadas foram escritas por autores que estão vivos e produzindo
periodicamente, o que aponta para uma transformação na abordagem do fenômeno
investigado.
Nessa etapa procurou-se observar a presença de elementos folclóricos nos livros
como, temas populares, marcas de oralidade (vocabulário popular, repetições, ordem direta
das frases, períodos curtos), personagens folclóricos, e, principalmente, se as narrativas
desses escritores seguem as perspectivas da estrutura dos contos tradicionais. Os dados
levantados foram relacionados com os estudos dos teóricos citados. Na seqüência,
investigou-se a fase de produção dos autores de literatura infantil, através de entrevistas
estruturadas, respondidas por e-mail, a fim de esclarecer a forma como esses escritores se
apropriam de elementos folclóricos em suas criações, investigando se as suas pesquisas são
de caráter livresco, ou se eles vão a campo, buscar na expressão oral do povo os elementos
para a elaboração de seus trabalhos.
Em seguida, no período de julho a novembro de 2005, foram entrevistados 14
alunos, leitores das obras selecionadas, entre 9 e 12 anos e freqüentadores do Mundo da
Leitura, para se investigar a influência dos elementos folclóricos na formação desses
leitores enquanto leitores do texto literário. O grupo é constituído por 7 meninas e 7
meninos, estudantes do Instituto Menino Deus
8
. Os critérios utilizados para a escolha dos
entrevistados foram: faixa etária, o fato de todos freqüentarem o Mundo da Leitura através
de visitas agendadas ou individualmente, todos terem participado das três edições das
Jornadinhas de Literatura. As entrevistas ocorreram na escola ou na casa dos sujeitos e
foram gravadas em fita cassete com a autorização verbal dos mesmos e de seus
responsáveis.
8
Escola da rede privada de ensino, na qual a investigadora atua como professora de Redação no Ensino
Médio e professora das oficinas extracurriculares de Produção Textual e Leitura no Ensino Fundamental.
14
Dessa forma, tendo como objetivo investigar a presença de elementos folclóricos
em obras infantis contemporâneas, as características do conto tradicional, a presença dessas
características na literatura infanto-juvenil e o modo como o leitor em formação se apropria
desses elementos dividiu-se esse estudo em quatro capítulos.
No primeiro capítulo Campo grande; gado miúdo- Os pressupostos teóricos-
apresentam-se considerações a respeito das definições de cultura popular, folclore e seus
principais elementos, passando ainda pela relação entre ambos, e entre oralidade e
literatura, considerações acerca da emergência do sentimento moderno de infância, e,
conseqüentemente, da literatura infantil, bem como os elos entre esta literatura e o folclore.
Os teóricos cujos estudos fundamentam a investigação são: Peter Burke, Mikhail Bakhtin,
David R. Olson, Walter Ong, Florestan Fernandes, Rossini Tavares de Lima, Câmara
Cascudo, Phillipe Ariès, Teresa Colomer, Bruno Bettelheim, Vladimir Propp.
O segundo capítulo-O que é, o que é? Adivinhe se puder- A pesquisa- se constitui de
uma análise de nove obras de literatura infanto-juvenil, pertencentes ao acervo do Centro de
Referência de Literatura e Multimeios, escritas por Ricardo Azevedo, Ângela Lago e Joel
Rufino dos Santos, com vistas a explicitar a presença de elementos folclóricos nas mesmas,
bem como investigar a decorrência da estrutura tradicional nas narrativas contemporâneas,
descrita na forma de funções por Propp. No mesmo capítulo, apresentam-se entrevistas
com os três autores focalizando a questão da pesquisa da cultura popular realizada por eles
no processo de produção de suas obras. Finalizando o capítulo, destacando as reflexões a
respeito da formação do leitor são apresentados os dados colhidos nas entrevistas com os
leitores das obras analisadas, freqüentadores do Mundo da Leitura, destacando como
questão principal a influência dos elementos folclóricos na escolha de obras literárias para
leitura.
O terceiro capítulo –Se não deu certo, é porque ainda não acabou- A cultura
popular e a formação do leitor-- constará de uma avaliação dos dados obtidos através das
análises das obras selecionadas, das entrevistas com leitores, das entrevistas com os
15
escritores e, discutidos a partir dos pressupostos teóricos desenvolvidos no primeiro
capítulo relacionados com a formação do leitor. Nas Considerações finais- constam os
resultados obtidos durante a investigação no sentido de responder as questões norteadoras
da pesquisa.
Por tratar de questões fundamentais como a promoção do comportamento de leitura
e a identidade cultural dos indivíduos, acredita-se que as reflexões tecidas ao longo da
investigação possam ser um estímulo ao desenvolvimento de propostas de práticas leitoras,
no âmbito escolar, ou em ambientes de leitura multimidiais, como o Centro de Referência
de Literatura e Multimeios, envolvendo os elementos da cultura popular presentes no
cotidiano dos leitores, com produções literárias de inspiração folclórica, possibilitando,
através dessas práticas um reconhecimento da criança enquanto indivíduo inserido em uma
cultura específica, rica e significativa e enquanto leitor do texto literário.
16
1. CAMPO GRANDE; GADO MIÚDO - OS PRESSUPOSTOS
TEÓRICOS
A resposta para a adivinha Campo grande; gado miúdo é o céu com suas estrelas. O
firmamento sempre encantou os povos e, a partir de sua contemplação, surgiram mitos
maravilhosos e lendas como o Cágado e a festa no céu, adivinhas e muitas especulações.
Assim como o céu, que pode ser observado da Terra, é tão vasto, a cultura popular também
é muito abrangente. Na presente pesquisa, partiu-se do seguinte pressuposto: a cultura
popular está na gênese da literatura infantil. Os contos folclóricos que circulavam na
Europa durante a Idade Média foram utilizados como subsídio para as obras que
conhecemos hoje como os clássicos da literatura infantil, porém sofreram inúmeras
modificações. Os camponeses do século XVI até o século XVIII contavam histórias
repletas de detalhes violentos e libidinosos. Isso acontecia porque não havia distinção entre
a infância e a vida adulta. À medida que se consolida um novo sentimento em relação à
infância, como fase especial do desenvolvimento, na qual a criança deve ser protegida e
educada, os contos foram recriados e indicados para os leitores em formação.
O francês Charles Perrault, os alemães Jacob e Wilhelm Grimm e o dinamarquês
Hans Christian Andersen, no período compreendido entre o fim do século XVII e o início
do século XIX pesquisaram, recolheram e adaptaram as histórias contadas nas comunidades
de tradição oral. Em uma das antigas versões de Chapeuzinho Vermelho
9
, na França do
século XVIII, o lobo matava a vovó, enchia uma jarra com o seu sangue e fatiava a sua
carne. Quando a menina chegava era convidada a beber do “vinho” e comer da carne e em
9
Revista Aventuras na história, edição 25 setembro de 2005. Editora Abril, Flávia Ribeiro.
17
seguida a deitar-se nua na cama com o lobo travestido, sendo devorada ao final do conto.
Na versão dos irmãos Grimm, do início do século XIX, as cenas de canibalismo e nudez
são suprimidas e a figura do caçador foi incluída para garantir o final feliz. É surpreendente
constatar que uma das histórias mais célebres da literatura infantil possui como relato
original uma versão tão violenta.
Desde então, observa-se a presença de elementos folclóricos adaptados na literatura
infantil. No Brasil, destacam-se os exemplos da obra de Monteiro Lobato, com as histórias
do Sítio do Picapau Amarelo; Ziraldo, com a Turma do Pererê; Ana Maria Machado, que
faz alusões a elementos folclóricos em Bem do meu tamanho, ou recria histórias, como na
Coleção conte outra vez; Marina Colassanti, em Uma idéia toda azul e Doze reis e a moça
do labirinto, cujas personagens são as mesmas dos contos tradicionais; Ruth Rocha, que
recria várias histórias tradicionais na série Ruth Rocha Conta; Ricardo Azevedo, Ângela
Lago e Joel Rufino dos Santos, cujas obras destes três últimos escritores serão analisadas
no decorrer desta investigação.
Apesar dos evidentes elos entre a cultura popular e a literatura infantil, ao se iniciar
uma reflexão acerca dos pontos de contato entre estas produções, percebe-se uma confusão
no campo das definições e torna-se difícil afirmar o que é cultura popular, o que é folclore e
o que é literatura infantil. O presente estudo investigativo possui caráter introdutório,
fazendo-se necessário, no entanto, refletir sobre os termos e conceitos envolvidos e
posicionar-se a esse respeito, para se compreender e analisar a relação entre a cultura
popular e a literatura infantil.
1.1 Cultura popular: aspectos introdutórios
O Brasil é uma nação continental e, por isso mesmo, multifacetada, cuja diversidade
cultural se consolida no dia-a-dia do povo. Em cada estado são cultivados costumes
específicos, que revelam a identidade do brasileiro. Na maneira de falar, na forma de
festejar, no artesanato, na alimentação, em cada atividade, o povo mobiliza o patrimônio
cultural construído a partir da mescla das culturas européia, indígena e negra. A
18
Antropologia Cultural, em seus estudos iniciais, já fazia uma repartição do Brasil em
culturas aplicando-lhes um critério racial: cultura indígena, cultura negra, cultura branca,
cultura mestiça. Para diversos autores, como Alfredo Bosi
10
, cultura é uma herança de
valores e objetos compartilhados por um grupo, sendo que, no Brasil, no princípio da
colonização, começou a se estabelecer uma cultura erudita, centrada na cultura européia,
dos imigrantes portugueses e espanhóis, e uma cultura considerada popular, oriunda das
tribos indígenas, dos africanos e, mais tarde, dos colonos que vieram a se constituir em
mão-de-obra barata no país.
O termo cultura possui muitos usos e, nos últimos 100 anos, tem-se constituído em
uma arena de muitas discussões. Em Cultura Popular na Idade Moderna
11
, Peter Burke
apresenta um estudo extensivo sobre o tema, objetivando descrever e interpretar expressões
da cultura popular no surgimento da Europa moderna. Ainda na introdução, o autor faz
alusão à diversidade própria à cultura. Segundo Burke, o termo “cultura popular” uma
falsa impressão de homogeneidade e que seria melhor usá-lo no plural, ou substituí-lo por
uma expressão como “a cultura das classes populares”. Cultura seria, portanto, “um sistema
de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações,
objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados”. Por cultura popular se
entende sinteticamente, e, em suas palavras, negativamente, como “uma cultura não-oficial,
da não-elite, das classes subalternas”
12
.
Trazendo a definição de Burke para o contexto brasileiro atual, pode-se perceber a
riqueza da cultura popular, que o país possui um número muito expressivo de pessoas,
que se encaixam no segmento reconhecido como classe subalterna, devido ao desequilíbrio
sócio-econômico que mantém os meios de produção, inclusive os da cultura oficial, nas
mãos de uma elite minoritária. Os indivíduos que não participam da elite e acabam
produzindo uma cultura não-oficial, reúnem-se em diversas comunidades, nas quais os
valores, símbolos e práticas são diferenciados, preservando cada grupo as suas
representações específicas.
10
BOSI, A. A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1922.p. 308.
11
BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 16
12
Id. Ibidem., p. 25
19
Na obra Cultura popular no Brasil
13
, que procura discutir como alguns estudiosos
abordam a cultura popular brasileira, como a definem e delimitam, que conceitos utilizam,
como encaram as relações entre essa forma de cultura e o contexto sócio-cultural do qual
faz parte, os autores lembram que a expressão cultura popular é entendida por muitos
teóricos como uma prática própria de grupos subalternos da sociedade, sendo na linguagem
corrente, geralmente, aplicada com sentido pejorativo. “Esta depreciação tem certa base em
uma tradição de estudos nos quais as manifestações culturais populares o tratadas como
algo pitoresco, arcaico, anacrônico, inculto. Enfim, alguma coisa superada ou em vias de
superação.”
14
No entanto, é preciso compreender que essa visão preconceituosa da cultura popular
está comprometida com um momento histórico-cultural conhecido por Romantismo, no
qual uma das perspectivas adotadas era o interesse pelo espírito popular, enquanto
representante do exotismo e da cor local. Sendo a definição de cultura popular analisada
numa perspectiva diacrônica, atualmente os paradigmas são outros, conforme será
apresentado no decorrer da investigação.
O preconceito em relação à cultura popular fez com que muitos estudos, que
objetivaram resgatar suas manifestações, fossem desprezados, ou realizados através de uma
metodologia duvidosa, que o estudo da cultura popular consistia, muitas vezes, em criar
uma relação de expressões exóticas do folclore, ou em buscar similares à cultura erudita
nessas manifestações. Entretanto, como afirma a moderna antropologia, o tema passou a ser
abordado de forma muito mais abrangente e emancipatória, como lembra Peter Burke:
Hoje, contudo, seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e outros
usam o termo “cultura” muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo que
pode ser aprendido em uma dada sociedade como comer, beber, andar, falar,
silenciar e assim por diante. Em outras palavras, a história da cultura inclui agora a
história das ações ou noções subjacentes à vida cotidiana. O que se costumava
considerar garantido, óbvio, normal ou “senso comum” agora é visto como algo
que varia de sociedade a sociedade e muda de um século a outro, que é
“construído” socialmente e portanto, requer explicação e interpretação social e
13
AYALA, M., IGNEZ, M, AYALA, N. Cultura popular no Brasil. São Paulo: Ática, 2003.
14
Idem., p. 10
20
histórica. Essa nova história cultural é às vezes chamada história “sócio-cultural”
para distingui-la das histórias mais tradicionais da arte, da literatura e da música.
15
O autor destaca que se pode citar uma série de razões como justificativa para esse
interesse pelo povo nesse momento da história: estéticas, intelectuais e políticas. Quanto às
razões estéticas, voltar a atenção para o popular era o que se pode chamar de revolta contra
a arte, como produção artificial. Dessa forma, “polido”, “artístico” tornou-se um termo
negativo, e “natural”, virou elogio, porque representava a espontaneidade do povo. Enfim, a
descoberta da cultura popular fazia parte de um movimento de primitivismo cultural. Entre
as principais razões intelectuais e políticas, está a objeção ao Iluminismo
16
. Cabe lembrar
que, ao se voltar o olhar para os trabalhos realizados por folcloristas, literatos e estudiosos
da cultura popular em geral, nesse momento de “descoberta do povo”, deve-se resguardar o
posicionamento crítico, uma vez que, em muitos casos, esses pesquisadores foram
influenciados por idéias nacionalistas exacerbadas e por um romantismo ingênuo, que
fizeram com que muito do material recolhido apresente corruptelas e interpretações
equivocadas. Fazem parte do estudo nacionalista-ufanista do folclore nomes como Celso
Magalhães, José de Alencar, Sílvio Romero.
Contudo, uma revolução epistemológica na antropologia e na sociologia lança um
olhar mais abrangente aos fenômenos culturais. Os estudiosos passam a se referir a uma
concepção ampla de cultura e, para se chegar a essa compreensão, é indispensável reter o
conceito antropológico do termo cultura como conjunto de modos de ser, viver, pensar e
falar de uma dada formação social; ao mesmo tempo, abdicar do conceito mais restrito,
pelo qual cultura é apenas o mundo da produção escrita provinda, de preferência, das
instituições de ensino e pesquisa superiores. Deve, portanto, ficar pressuposto, no termo
popular, que essa cultura é, acima de tudo, grupal, o que lhe garante sua perpetuação, que
resiste à perda de elementos individuais. A cultura popular vincula-se, tradicionalmente,
aos estratos mais pobres, o que não impede o fato de seu aproveitamento pela cultura de
15
Ibid., p. 21
16
O Iluminismo, enquanto corrente de pensamento dominante no século XVIII, defendeu o predomínio da
razão sobre a e estabelece o progresso como destino da humanidade. Seus principais idealizadores, John
Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778) e Rousseau (1712-1778), representaram
a visão de mundo da burguesia intelectual da época, na qual, o elitismo, o abandono das tradições e a ênfase
na razão eram inerentes.
21
massa, vinculada através da televisão, do rádio, do cinema, e pela cultura erudita,
relacionada aos institutos e universidades.
A esse respeito, Burke
17
destaca que a cultura popular ou pequena tradição era
transmitida a todos, na informalidade, em diferentes espaços, como a taverna, a igreja ou a
praça, por outro lado a cultura erudita ou grande tradição era excludente, sendo transmitida
somente nos liceus e nas universidades, gerando, dessa forma, uma relação assimétrica
entre os dois movimentos culturais. A relação assimétrica perdura atualmente, uma vez que,
além dessa relação dinâmica entre culturas, o movimento está presente no âmbito das
próprias manifestações, tanto nas modificações que sofrem com o decorrer dos anos, como
no diálogo entre as várias representações materiais, abrangendo características de vestuário,
alimentação, manifestações espirituais, entre outras. A cultura popular decorre das ações
diárias do homem, compreendendo os modos de pensar, de agir e de falar, por isso
difundida essencialmente de forma oral.
Apesar de ser um modelo de visão de mundo amplamente difundido, a cultura
popular sofre preconceito por parte da cultura erudita elitista e do discurso escolar, que a
consideram como sinônimo de subdesenvolvimento e atraso em relação ao
desenvolvimento das tecnologias de comunicação e o monoculturalismo imposto pela
globalização.
Além da resistência por parte do discurso escolar e de parte da cultura erudita, o
universo popular ainda enfrenta restrições da nova organização sócio-econômica, que
valoriza questões opostas à visão de mundo popular, como a racionalidade, objetividade,
desenvolvimento tecnológico, valor mercadológico do conhecimento.
Segundo a compreensão de alguns teóricos, como Jean-François Lyotard, vive-se a
pós-modernidade
18
, que trouxe consigo um profundo questionamento da moderna
17
Id.Ibidem. p. 55
18
Na era da pós-modernidade as velhas identidades, que estabilizavam o mundo social, estão em declínio,
fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. É uma crise de identidade acerca do
22
epistemologia baseada na distinção entre sujeito e objeto. É um período descrito como uma
era de racionalidade e amplo desenvolvimento da tecnologia. A pós-modernidade é
marcada pela cibercultura, abrangendo as formas de ser e agir nos meios eletrônicos. Se
durante o século XIX se vivenciou o desejo pelo espírito enciclopedista e uma forma
fragmentada de abordar a ciência, isolando os saberes, hoje aposta-se na complexidade, nas
abordagens interdisciplinares e na leitura em múltiplos suportes. O saber é afetado pelo
desenvolvimento das tecnologias da informação, uma vez que os processos de pesquisa
estão sendo completamente reestruturados e a transmissão das informações transformadas
em conhecimentos é mais veloz a cada dia. Segundo Lyotard, a lógica do mercado
influencia toda a relação com o conhecimento:
Esta relação entre fornecedores e usuários do conhecimento tende e
tenderá a assumir a forma que os produtores e os consumidores de
mercadorias têm com estas últimas, ou seja, a forma valor. O saber é e será
produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para ser valorizado
numa nova produção: nos dois casos, para se trocado. Ele deixa de ser para
si mesmo seu próprio fim; perde o seu “valor de uso”.
19
Dessa forma, quando o saber passa a ser um bem de consumo, tratado como uma
alavanca para o desenvolvimento tecnológico e a comunicação é imediata, fazendo com
que as mais longínquas partes do mundo estejam interconectadas, pode-se questionar: qual
é o espaço reservado às tradições? Percebe-se que está diminuindo sensivelmente o culto às
grandes narrativas e identidades nacionais, assim, o sujeito não tem o sentimento de
pertencimento a uma determinada comunidade, o indivíduo passa a ser fragmentado e
membro de uma difusa sociedade global.
A pós-modernidade é um momento de incertezas, causado pelo abalo das
referências, como é o caso dos grandes mitos e narrativas. As diferentes sociedades, agora
globalizadas, vivem uma espécie de “crise de identidade”, gerada pela dificuldade do
indivíduo em se sentir parte de um grupo ou de uma cultura. Durante esse processo de
sentimento de pertencimento a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e nacionais. (Apud. HALL, S.
A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&H, 2004)
19
LYOTARD, Jean-françois. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro: José Olympo, 1988. p. 5
23
fragmentação, muito da cultura popular se perde, pois ela é constituída de manifestações
plurais e específicas de cada grupo de indivíduos que se enfraquecem com a velocidade
com que as informações massificadas se disseminam. Nesse sentido, é de grande
importância a valorização de iniciativas de resgate do patrimônio cultural popular da
humanidade, porque, além de ser representativo das identidades sociais, a cultura popular
possui um número vasto de símbolos e procedimentos que podem ser geradores de novos
conhecimentos e formas artísticas.
Após serem elencadas brevemente algumas características do contexto atual, é
possível inferir que o entusiasmo pelas novas tecnologias digitais mascara a questão da
homogeneização cultural que está se disseminando através das diferentes mídias, impondo
novos valores, expressões e comportamentos padronizados, em detrimento das culturas
específicas de diferentes povos. Contudo, conforme Ayala
20
, as práticas culturais
populares, na verdade, se modificam, juntamente com o contexto social em que estão
inseridas, sem que isso implique necessariamente a sua extinção”.Mais do que isso, os
elementos da cultura popular estão sendo aproveitados em diferentes mídias, sofrendo um
processo de recriação contínuo. Assim como os contos tradicionais deram origem à
literatura infantil, elementos folclóricos variados estão originando CDs-ROM, CDs de
áudio, DVDs e programas de televisão, como a minissérie exibida pela Rede Glodo de
Televisão, em janeiro de 2005, “Hoje é dia de Maria”, baseada em contos populares
recolhidos por Sílvio Romero e Luís da Câmara Cascudo.
Apesar da inserção dos elementos populares nas diferentes mídias, e do contexto
caótico em que se vive, as características da cultura popular e suas expressões legítimas,
possuem pontos comuns e imutáveis, transmitidos através dos tempos. Por isso, destacam-
se a seguir traços perenes da natureza das manifestações populares, tendo em vista as
reflexões dos teóricos Peter Burke, Mikhail Bakhtin, Philippe Ariès, entre outros.
A primeira característica da cultura popular, citada anteriormente é o princípio da
bricolage:
20
AYALA, M, IGNEZ, M., AYALA, N, op. cit., p.20
24
Em primeiro lugar, na cultura popular o repertório de elementos em que pode se
basear o indivíduo é relativamente limitado. Em segundo lugar, esses elementos
estão combinados em formas estereotipadas, com relativamente poucas
tentativas de modificação é o princípio de bricolage. (talvez não seja casual
que diversos pioneiros do estruturalismo fossem estudiosos do folclore,
notadamente Roman Jakobson e Vladimir Propp.).
21
Como poderá ser verificado posteriormente, na análise das obras dos escritores de
literatura infantil, em muitos textos existe um trabalho de bricolage, o autor se vale de um
número limitado de procedimentos narrativos, expressos na forma de funções, ou núcleo de
ações, e produz um novo texto, de acordo com a estrutura do conto tradicional.
Vladimir Propp
22
foi o primeiro a pesquisar a estrutura do conto tradicional, típica
manifestação popular, a partir do estudo da forma. Através desse trabalho é possível
observar claramente a utilização de um repertório limitado de motivos. O teórico russo
analisou um corpus de 100 contos populares e concluiu que o desenrolar das histórias
coincidiam em muitos aspectos, porém, variando nos motivos. Ao final de seu estudo,
Propp apresentou na obra A morfologia do conto os resultados da investigação, entre os
quais encontra-se um esquema do conto folclórico em 31 funções que se seguem
cronologicamente, e sete personagens (Agressor, Doador, Auxiliar, Princesa e seu Pai,
Mandante, Herói e Falso Herói). Nem todas as funções
23
e personagens estarão presentes
no mesmo conto, mas a ordem cronológica das funções é comumente respeitada. Os
estudos de Vladimir Propp permitem demonstrar, a partir de análise de textos da literatura
infantil contemporânea, os laços dessa literatura com a cultura popular, evidenciados
através da estrutura do conto tradicional presente em textos atuais.
Na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais
24
, o foco da reflexão é o problema da cultura cômica popular em
momentos históricos específicos, na Idade Média e no Renascimento, buscando o
discernimento de suas dimensões e definição de suas características originais
21
BURKE, op. cit. p.171
22
PROPP, V. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1984.
23
As funções propostas por Propp são pequenos núcleos de ações que se repetem nos contos maravilhosos.
24
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
São Paulo: Hucitec: Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
25
características que perduram na essência das expressões populares até os dias de hoje.
Nesse contexto, o riso é um elemento importantíssimo para se compreender as
representações populares. Bakhtin explora a faceta cômica da vivência do povo, a partir do
que ele descreve como cosmovisão carnavalesca. Para este autor o riso popular e suas
formas constituem o campo menos estudado da criação popular.
Ao contrário da descrição do cotidiano popular de Bakhtin, a concepção simplista
de cultura popular e do folclore, proposta pelos românticos, excluiu quase totalmente as
representações da praça pública com os seus aspectos cômicos contínuos. Nem mesmo
posteriormente, os especialistas do folclore e da história literária levaram em consideração
o humor como um objeto digno de estudo do ponto de vista cultural, histórico, folclórico ou
literário. No entanto, ele está presente em grande parte das representações dessa natureza,
nas anedotas, no vocabulário, nas imagens grotescas, nos cantos e nos autos. Através do
cômico, o povo se permitia apresentar uma espécie de licença para criar uma visão do
mundo completamente fora dos parâmetros oficiais, desenvolvendo expressões alternativas
aos dogmas da Igreja, ao estado e às relações sociais.
Para Bakhtin
25
, a tradição popular de transmissão oral origina-se nos ritos pagãos,
como os cantos fálicos citados na Poética
26
, de Aristóteles, no capítulo Origem da poesia.
Causas. História da poesia trágica e cômica. O princípio cômico presente nos ritos pagãos,
como o carnaval, liberta-os totalmente de qualquer dogma e eles são ainda desprovidos de
caráter encantatório, isto é, não eram realizados com o intuito de se receber uma
compensação mágica. As manifestações da cultura do riso, conforme Bakhtin, são: 1.As
formas dos ritos e espetáculos; 2. Obras cômicas verbais; 3.Diversas formas e gêneros do
vocabulário familiar e grosseiro. Entre as manifestações dos ritos e espetáculos, pode-se
citar as festas sazonais, nas quais todos os elementos sociais se mesclavam e as convenções
se afrouxavam. Essas manifestações também foram lembradas por Philippe Ariès em A
história social da criança e da família
27
, para ilustrar a forma como o universo infantil não
25
Idem., p. 4
26
ARISTÓTELES. Poética. In: Ética a Nicômano; Poética. São Paulo, Nova Cultural, 1987.
27
ARIÈS, Philippe. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos,
1981. p. 51
26
se distinguia do universo adulto, que as crianças participavam ativamente nessas e em
outras ocasiões:
Na sociedade antiga, o trabalho não ocupava tanto tempo do dia, nem tinha tanta
importância na opinião comum: não tinha o valor existencial que lhe atribuímos
pouco mais de um século. Mal podemos dizer que tivesse o mesmo sentido.
Por outro lado, os jogos e divertimentos estendiam-se muito além dos momentos
furtivos que lhes dedicamos: formavam um dos principais meios de que
dispunha uma sociedade para estreitar seus laços coletivos, para se sentir unida.
Isso se aplicava a quase todos os jogos, mas esse papel social aparecia melhor
nas grandes festas sazonais e tradicionais. Elas se realizavam em datas fixas do
calendário, e seus programas seguiam em geral regras tradicionais. Essas festas
foram estudadas por especialistas em folclore ou tradições populares, que se
situam num meio quase exclusivamente rural. Mas, ao contrário, elas envolviam
toda a sociedade, de cuja vitalidade eram a manifestação periódica. Ora, as
crianças as crianças e os jovens participavam delas em de igualdade com
todos os outros membros da sociedade, e quase sempre desempenhavam um
papel que lhes era reservado pela tradição.
28
As festas populares, desde a antiguidade, além de serem um momento em que os
limites se afrouxavam, eram acontecimentos ligados à passagem do tempo, como marcos
do tempo natural, representando a renovação periódica do mundo, no seu eterno ciclo de
vida e morte. Relembrando a fertilidade, do homem e da terra, e, conseqüentemente, sua
extinção.As festividades sazonais provavelmente sejam uma das mais antigas expressões
culturais da humanidade.
Os bacanais, que posteriormente se transformaram no carnaval, têm sua origem
explicada segundo a mitologia romana
29
. Quando Baco estava na Ásia Menor tornou-se
amigo de um sátiro chamado Ampelos. Certo dia, um touro matou seu amigo e Baco,
inconformado, derramou uma bebida deliciosa em seus ferimentos. Ampelos foi
transformado em vinha e esse suco derramado por Baco deu à uva a sua qualidade
embriagadora. Após o ocorrido, ele seguiu em direção à Índia. Durante essa expedição é
seguido por ninfas, faunos, sátiros e muitos outros seres fantástico, que bebiam e cantavam.
O mito do corte de Baco deu origem às bacantes, festividades populares em Roma e na
28
Idem. p. 49
29
KURY, M. G. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 110.
27
Grécia, quando os participantes bebiam vinho em homenagem ao deus e praticavam todo
tipo de orgias.
Seguindo na mesma linha, as obras cômicas verbais, outra importante manifestação
da cultura do riso, segundo Bakhtin
30
, empregavam as formas e símbolos da concepção de
mundo popular e carnavalesca, objetivando sempre a inversão de valores. Indica como
exemplo a obra mais célebre desta literatura, A ceia de Ciprião, que nada mais é do que
uma paródia da Bíblia e dos Evangelhos. As diversas formas e gêneros do vocabulário
familiar e grosseiro, como os insultos, juramentos, blasfêmias, palavras injuriosas,
consideradas formas fixas, assim como os provérbios, também animavam as expressões
populares do contexto descrito pelo autor.
Prosseguindo nesta questão a respeito dos aspectos cômicos da cultura popular, o
autor reitera o efeito humorístico carnavalesco, advindo do realismo grotesco, que nada
mais foi do que uma forma de expressão que se vale da exposição do corpo e de seus
aspectos mais terrenos, ligados à sexualidade, à procriação, à morte, à decomposição. O
realismo grotesco expõe sem pudores aquilo que o Classicismo procurava esconder. O
Classicismo, enquanto tendência artística e literária, é avesso às principais características da
cultura popular. Essa tendência resgatou as formas e valores greco-romanos da Antigüidade
Clássica, especialmente da cultura grega entre os séculos VI a.C. e IV a.C. Essa retomada
ocorre várias vezes no decorrer da história ocidental, inclusive na Idade Média. Contudo,
mostra-se mais intensa do século XIV ao XVI na Itália. Nas artes plásticas, na literatura e
no teatro, o Classicismo coincide com o Renascimento. No século XVIII, a tendência se
repete com o nome de Neoclassicismo. O Classicismo é profundamente influenciado pelos
ideais humanistas, que colocam o homem como centro do Universo. Reproduz o mundo
real, mas reformulando, tudo de acordo com o que se considera ideal. As obras refletem
princípios como harmonia, ordem, gica, equilíbrio, simetria, objetividade e refinamento.
A razão é mais importante que a emoção. A representação da figura humana no
30
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
São Paulo: Hucitec: Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999. p. 22
28
Classicismo era sempre o mais afastada possível de tudo o que pudesse lembrar o caráter
animal e perene do homem, como o sexo, a doença e a morte.
A cultura popular é contrária a todos os princípios do Classicismo: enquanto este
trata da ordem, da racionalidade, da fragmentação, aquela considera imprescindíveis
aspectos como a natureza, o tempo cíclico, o grotesco, o riso, o sentimento de pertencer,
que para o espírito popular tudo faz parte de um mesmo “organismo vivo”, que se extingue
e se renova periodicamente.
Bakhtin observou que os elementos fundamentais do grotesco, no que diz respeito
ao conteúdo, são: o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a
desagregação e o despedaçamento corporal. E o corpo é parte da sociedade da vida, na qual
gente, bicho, plantas, todos são irmãos, por isso os corpos não estão limitados, apartados do
mundo, estão no mundo confundidos com os animais e as plantas:
O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico
isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua
evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é tão
magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e
afirmativo. O centro capital de todas essas imagens da vida corporal e material
são a fertilidade, o crescimento e a superabundância. As manifestações da vida
material e corporal não são atribuídas a um ser biológico isolado ou a um
indivíduo “econômico” particular e egoísta, mas a uma espécie de corpo popular,
coletivo e genérico (...). A abundância e a universalidade determinam por sua
vez o caráter alegre e festivo (não cotidiano) das imagens referentes à vida
material e corporal. O princípio material e corporal é o princípio da festa, do
banquete, da alegria, da “festança”. Esse aspecto subsiste consideravelmente na
literatura e na arte do Renascimento, e sobretudo em Rabelais.
31
Ainda de acordo com o teórico russo, é importante salientar também outros aspectos
fundamentais relacionados à cultura popular: a tradição oral e o culto à memória. Antes da
supervalorização da escrita, ocorrida após a difusão dos meios de comunicação impressos,
o arcabouço cultural das sociedades iletradas era o próprio homem e sua memória. E assim,
perpetuou-se a imagem dos “profissionais da memória”, contadores de histórias,
31
BAKHTIN, op. cit., p. 17
29
titereteiros, artistas mambembes de toda natureza e os artesãos, todos responsáveis pela
transmissão de geração após geração do conhecimento do povo.
Até a supervalorização da escrita, o próprio homem representava o patrimônio
cultural de um determinado grupo, depois da difusão da leitura no meio impresso, houve
uma exteriorização das narrativas. Somente o relato exposto no livro, referendado por uma
autoria, poderia ser prestigiado. Como decorrência de um preconceito em relação à cultura
oral, a experiência de narrar foi desaparecendo, a leitura em grupo e o papel dos
profissionais da memória se tornou obsoleto para dar lugar ao solitário leitor das páginas e,
posteriormente, ao eclético navegador da rede mundial de computadores. Sobre a evolução
da escrita e dos suportes de leitura, Roger Chartier realiza uma ampla e pertinente
investigação, entre suas afirmações pode-se destacar que:
No século XVIII, a teoria do direito natural e a estética da originalidade
fundamentam a propriedade literária. Uma vez que se justifica, para cada uma, a
posse dos frutos de seu trabalho, o autor é reconhecido como detentor de uma
propriedade imprescritível sobre as obras que exprimem seu próprio gênio. Esta
não desaparece com a cessão do manuscrito àqueles que são editores. Não é,
portanto de espantar que sejam estes últimos os que tenham moldado a figura do
autor-proprietário.
32
Contudo, na atualidade, observa-se uma expressiva mudança no significado da
autoria: “com a revolução eletrônica, as possibilidades de participação do leitor, mas
também os riscos de interpolação, tornam-se tais que se embaça a idéia de texto, e também
a idéia de autor. Como se o futuro fizesse ressurgir a incerteza que caracterizava a posição
do autor durante a Antigüidade.”
33
No contexto veloz que a tecnologia proporciona, ainda
não se sabe qual é o espaço reservado às expressões populares de difusão oral.
Chartier, ao discutir a leitura entre a falta e o excesso, lembra o papel das leituras
selvagens, isto é, a leitura de materiais que não possuem uma legitimidade cultural do ponto
de vista erudito-elitista. Para o autor é importante que se busque o apoio dessas práticas
32
CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1999. p. 49
33
Ibid., p. 24
30
incontroladas para conduzir o leitor pelas vias escolares ou não a outras leituras. Nesse
sentido, o contato com manifestações da cultura popular pode ser considerado uma leitura
selvagem, uma vez que essas expressões sofrem preconceito do discurso escolar. No
entanto, quando uma criança ou adolescente reconhece em uma obra literária elementos
folclóricos comuns ao seu cotidiano, ela poderá se reconhecer nessa obra e buscar, a partir
dessa experiência, novas leituras.
Através de atitudes preconceituosas muito da cultura popular se perdeu, e já se sente
a importância do resgate. Escritores como Ricardo Azevedo, Ângela Lago e Joel Rufino
dos Santos são autores de literatura infantil que muitos anos estão promovendo uma rica
apresentação dos elementos folclóricos brasileiros em suas obras, fenômeno observado na
literatura destinada aos pequenos desde suas origens, fato que comprova a pertinência de
estudos acerca dos elos entre cultura popular, folclore e literatura. No entanto, é necessário
que algumas considerações a respeito da natureza do fato folclórico sejam tecidas, para que
se tenha um melhor entendimento sobre o aproveitamento dos elementos que a constituem
na literatura destinada ao leitor em formação.
1.2 Folclore: modos de ser, de pesar e de agir
Alguns teóricos tratam a cultura popular e o folclore como sinônimos. No presente
estudo, posteriormente, tratar-se-á da relação entre cultura popular e folclore de forma mais
detalhada. O termo folclore apareceu pela primeira vez em uma carta enviada pelo
arqueólogo William John Thoms à revista The Atheneum, de Londres, em agosto de 1856.
Ele propôs substituir outras palavras existentes no idioma inglês como: Antiquitates
Vulgares ou Popular Antiquitats, porque acreditava que elas não definiam de maneira
adequada o que hoje se chama folclore. Alguns anos após a publicação, um grupo de
estudiosos sugeriu que folclore se referisse aos modos de saber do povo e Folclore, ao
saber erudito que estuda o saber popular. Lima
34
destaca que desde William John Thoms o
34
LIMA, R. T. Abecê do folclore. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 9
31
folclore tem sido considerado a ciência das Antiguidades Populares. Em 1886, na França,
Paul Sébillot
35
escrevia que o folclore é “uma espécie de enciclopédia das tradições,
crenças, costumes das classes populares ou das nações pouco avançadas em evolução... É o
exame das sobrevivências, que remontam às primeiras idades da humanidade...”.
Florestan Fernandes
36
lembra que desde os primeiros estudos folclóricos existiu
uma preocupação com o resgate das manifestações populares, incentivadas pelo temor que
as formas não fixadas desaparecessem do cotidiano das comunidades, por isso buscou-se
registrar os elementos que pudessem determinar a natureza da cultura popular em diferentes
grupos sociais:
Determinar o conhecimento peculiar ao povo, através dos elementos materiais
que constituíam a sua cultura. Ou seja, o folclore propunha-se estudar os modos
de ser, de pensar e de agir peculiares ao povo, por meio de fatos de natureza
ergológica, como técnicas de trabalhar na roça, ou manipular metais, de
transporte ou de esculpir objetos etc., e de natureza não material, como as
lendas, as superstições, as danças, as adivinhas, os provérbios etc.
37
Portanto, dessa visão relacionada ao evolucionismo e à burguesia, surgiu o primeiro
ponto de partida dos teóricos e pesquisadores do folclore. Após o desenvolvimento de
pesquisas e do amadurecimento das discussões a respeito deste fenômeno cultural, uma
visão mais complexa e ampla de folclore começou a surgir, repudiando a idéia de se ligar
esses estudos apenas aos fenômenos passados e curiosos. Começa-se a admitir o caráter
dinâmico da cultura. Contudo, alguns seguimentos da cultura oficial ainda insistem em
relacionar folclore àquilo que não tem vida, que é apenas memória dos feitos de nossos
antepassados. Folclore é, antes de tudo, um fenômeno coletivo e dinâmico.
Segundo o mesmo autor, o trabalho de campo na área dos estudos folclóricos está se
tornando mais amplo, abrangendo aspectos mais variados, desmistificando afirmações
como a de que apenas o povo, no sentido de classe social com menores recursos
financeiros, é o criador e difusor de todos os elementos folclóricos. O próprio Fernandes
35
SÉBILLOT, 1913 (apud LIMA, 2003, p. 11)
36
FERNANDES, F. O folclore em questão.São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 23
37
Ibidem.,p.39
32
realizou uma pesquisa de campo em São Paulo e constatou que as mesmas superstições,
crendices, contos, lendas, circulavam entre pessoas oriundas de diferentes classes sociais.
Fernandes afirma a respeito da visão ultrapassada sobre folclore que:
“progresso” não se processa uniformemente na sociedade, havendo por isso
camadas da população que não participam do desenvolvimento da mesma
sociedade ou apenas o acompanham com retardamento evidente. E os elementos
culturais que constituem o patrimônio cultural dos indivíduos a elas
pertencentes, não se sintonizam dinamicamente com a cultura tomada como um
sistema ou como um todo orgânico e por isso deixam de refletir integralmente a
evolução cultural da sociedade. Assim, nesse esquema puramente evolucionista
e em certo sentido simples imagem do desenvolvimento biológico, os primeiros
folcloristas admitiam que o folclore abrangia tudo o que culturalmente se
explicasse como apego ao passado, às soluções costumeiras e rotineiras,
compreendendo todos os elementos que a secularização da cultura substituía por
outros novos (...).
38
Em 1951, conforme Brandão
39
, ocorre uma real valorização dos estudos da cultura
popular no Brasil, quando acontece o I Congresso Brasileiro de Folclore, cujo principal
feito foi a elaboração da Carta do Folclore Brasileiro, que estabeleceu, pela primeira vez
com clareza, o que deve ser considerado folclore. Hoje, a maior parte dos folcloristas
fundamenta suas pesquisas nessas referências. No trecho que segue, encontra-se a definição
de fato folclórico e a apresentação dos elementos que o compõem:
1.
O I Congresso Brasileiro de Folclore reconhece o estudo do folclore como
integrante das ciências antropológicas e culturais, condena o preconceito de
considerar folclórico o fato espiritual e aconselha o estudo da vida popular em
toda a sua plenitude, quer no aspecto material, quer no aspecto espiritual.
2. Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo,
preservado pela tradição popular e pela imitação e que não sejam diretamente
influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam à renovação e
conservação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma
orientação religiosa e filosófica.
40
Considerando que o fato folclórico abrange as maneiras de pensar, sentir e agir de
um povo, preservado pela tradição popular, ele se perpetua através das relações
interpessoais, principalmente através da oralidade. Muitos de seus elementos que são
38
FERNANDES, op. cit.,p.25
39
BRANDÃO, C. R. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 2003.p.17
40
COMISSÃO PAULISTA DE FOLCLORE. “O conceito de fato folclórico.”, In Anais do Congresso
Brasileiro de Folclore. IBECC, Ministério das Relações Exteriores, Serviços de Publicações. II v.
33
passados de geração em geração, foram incorporados à obra de escritores renomados.
Sobre esse fenômeno Lima
41
destaca que “a poesia e a prosa erudita brasileiras apresentam
numerosos exemplos de aproveitamento ou inspiração folclórica. Até poetas byronianos,
como Álvares de Azevedo, tiveram um momento de folclore”. Mário de Andrade, Monteiro
Lobato, Ariano Suassuna, Guimarães Rosa, entre muitos outros, também são conhecidos e
reconhecidos por buscarem inspiração na cultura do povo. Nas obras desses escritores,
percebe-se a presença de certos elementos folclóricos, não só aqueles ligados a expressões
orais referentes às narrativas e à linguagem popular, mas também estão presentes a música,
as danças, a alimentação, as encenações próprias do povo.
Monteiro Lobato, antes mesmo de ser um aclamado escritor de literatura infantil,
fazia uso da cultura popular, principalmente da cultura caipira, para a concepção de suas
obras. O escritor modernista procurava tornar o seu texto o mais próximo possível do
universo do povo, de modo que não fazia parte de suas pretensões usar o popular como
motivo de suas criações se o produto das mesmas não fosse acessível para o povo que as
inspirou. Na literatura adulta, Monteiro Lobato é acima de tudo um contador de histórias
caipiras. Através de seus personagens, como Jeca Tatu, representou a oralidade própria do
meio rural em extinção e as contradições do país, que, ao mesmo tempo em que se
modernizava, sofria com o atraso em muitas áreas.
Um exemplo inusitado de aproveitamento folclórico do período romântico é o
fragmento do poema Cantiga, de Álvares de Azevedo, autor reconhecido por seguir as
linhas estéticas do ultra-romantismo, tratando de temas como o incesto, adultério,
necrofilia, antropofagia, idealização feminina, entre outros. Apresenta-se nessa estrofe um
lirismo ingênuo avesso à maioria dos poemas e contos de sua autoria:
1 Em-um-cas-TE-lo-doi-RA-(do) A/ E.R. 7[4-7]
1 2 3 4 5 6 7
2 Dor-me en-can-TA-da-don-ZE-(la); B/ E.R. 7[4-7]
1 2 3 4 5 6 7
3 Nas-ceu-e-VI-ve-dor-MIM-(do) A/ E.R 7[4-7]
1 2 3 4 5 6 7
41
LIMA, op.cit., p. 103
34
4 Dor-me-TU-do-jun-to-DE-(la). B/ E.R.. 7[3-7]
42
1 2 3 4 5 6 7
O título Cantiga faz menção às cantigas medievais executadas com o
acompanhamento de instrumentos de corda, apresentadas nas cortes para o entretenimento
dos nobres. Essas formas, apesar de originalmente eruditas, deram origem tanto à poesia
quanto à música popular nos países de colonização européia, como o Brasil.
O poema é estruturado de acordo com a fórmula mais simples na poesia folclórica: a
quadrinha popular. A quadrinha é, geralmente, uma redondilha menor, constituída por
versos de cinco sílabas poéticas, ou, como no poema Cantiga, redondilha maior, versos
com sete sílabas poéticas. Nesse caso, as rimas seguem o esquema A/B/A/B, portanto, são
interpoladas. São pobres quanto ao parentesco sonoro, porque os versos terminam com
fonemas iguais, mas ricas quanto à diversidade gramatical: doirado (adjetivo); dormindo
(verbo); donzela (substantivo); dela (pronome).
O poema de Álvares de Azevedo possui clara relação com o conto tradicional A
Bela Adormecida no bosque, recolhido por Charles Perrault em 1697, e publicado na
coletânea Contos da Mamãe Gansa.
A linguagem utilizada pelo poeta romântico também possui índices de oralidade
comum às expressões literárias populares, por tratar-se de um poema que apresenta seleção
de termos comuns, de fácil entendimento e de uma sintaxe em ordem direta, com exceção
da expressão: encantada donzela, que está em ordem inversa. Todavia, é comum encontrar
nos contos tradicionais, os substantivos que representam protagonista, virem precedidos
pelos adjetivos, marcando mais facilmente na memória dos ouvintes as características das
personagens.
Em Macunaíma
43
, de Mario de Andrade, a presença de características folclóricas é
abundante. O próprio autor classificou a sua obra como rapsódia, isto é, uma reunião de
42
ABAB corresponde ao esquema de rimas. E. R. (esquema rítmico). 7[3-7] corresponde ao número de
sílabas poéticas e entre colchetes estão representadas as sílabas tônicas.
35
elementos diversos, ou bricolagem, oriundos de fontes distintas, como cultura erudita,
cultura popular, oral e escrita, o que consagrou a obra de Mário de Andrade como singular
no âmbito do Modernismo brasileiro. Sendo o autor um grande estudioso da cultura
popular, o folclore está presente desde a título da obra: Makunaíma é um mito dos povos da
Venezuela e da Guiana, e significa, de acordo com a lenda original, “Grande Mal”. Através
de seu caráter heterogêneo, que engloba inúmeras características de personagens típicos da
cultura popular da Idade Média: inocente, astuto, grotesco, covarde, preguiçosos, e, ainda,
sendo simultaneamente, índio, branco e negro, Macunaíma tornou-se um símbolo do
homem brasileiro contemporâneo do início do século, invadido pela sua sem-vontade,
traduzida pela frase constante na narrativa: “Ai, que preguiça!”.
Mário de Andrade foi um dos idealizadores da Semana da Arte Moderna, que
ocorreu de 13 a 18 de fevereiro, em 1922. Durante o evento foram realizadas conferências,
recitais, exposições, no Teatro Municipal de São Paulo, objetivando apresentar ao público
as novas tendências da arte do século XIX. Os modernistas defendiam a assimilação das
estéticas internacionais para mesclá-las com a cultura nacional, vinculada à cultura popular.
Villa-Lobos, por exemplo, protagonizou um dos momentos mais críticos da semana de 22,
quando precisou encerrar uma apresentação por causa das vaias da platéia, ao apresentar
uma peça, executada por uma orquestra, com seus instrumentos eruditos, juntamente com
instrumentos para acompanhamento de congadas: caixas, chocalhos, reco-recos, bumbos. O
público de intelectuais conservadores não estava preparado para tanta flexibilidade cultural.
Em Macunaíma também se mesclam elementos folclóricos a características
eruditas, o próprio meio de vinculação do texto: livro impresso é um suporte
tradicionalmente erudito. Segundo Noemi Jaffe,
44
a personagem foi explicitamente
recolhida da obra do etnólogo alemão, Koch-Grünberg, que compilou lendas narradas por
índios amazônicos. Contos tradicionais brasileiros e de vários outros países, provérbios e
canções populares encontrados em antologias folclóricas, serviram de substrato para a obra
Macunaíma, de Mário de Andrade.
43
ANDRADE, M. Macunaíma (Rapsódia). Belo Horizonte: Villa Rica, 2000.
44
JAFFE, N. Macunaíma. São Paulo: Publifolha, 2001. p. 18
36
A linguagem é, em alguns momentos, coloquial, ou regional, com a presença de
neologismos como: “desinfeliz” e “sobessubindo”, expressões redundantes: “ninguém mais
não” e discurso indireto livre: “a mãe não quis porque não podia largar a mandioca”; em
outros momentos, é ambígua, culta e irônica, como no capítulo Cartas pras Icamiabas, em
que a literatura de informação e os parnasianos são ironizados. São as índias parentes para
quem Macunaíma pede dinheiro, que recebem a carta com descrições da cidade.
O herói sem nenhum caráter não é mau, mas sim uma criatura em constante
transformação, por isso é sem caráter, isto é, sem personalidade determinada. As
metamorfoses sofridas por ele remetem às transformações típicas dos contos de fadas,
como o sapo, que vira príncipe. Macunaíma, ao manter relações com Soforá, mulher de seu
irmão, se transforma num lindo príncipe. A busca por um amuleto também é um tema
recorrente nos contos tradicionais. “O herói da nossa gente” é obstinado na sua busca por
recuperar o seu amuleto perdido: a pedra muiraquitã, presente de sua amada Ci. Como
muitos personagens das narrativas orais, ele enfrenta um grande perigo: o gigante
Venceslau Pietro Pietra, comerciante peruano que comprou a muiraquitã. Macunaíma mata
seu opositor e recupera seu amuleto.
Haroldo de Campos
45
caracteriza Macunaíma como uma “arquelegenda folclórica”.
Campos usa como fundamentação teórica da sua análise a obra de Vladimir Propp,
Morfologia do conto maravilhoso, para realizar uma análise estrutural da obra de Mário de
Andrade e observa na rapsódia as mesmas funções destacadas pelo teórico Propp após
analisar centenas de contos tradicionais russos.
Os elementos folclóricos presentes na cultura popular brasileira são infinitos e estão
inseridos em festas, encenações, expressões da religiosidade, músicas, alimentação, trajes,
sabedoria popular, entre outras tantas manifestações. Neste estudo destacar-se-ão os
elementos próprios da linguagem folclórica, e tratar-se-á, de forma mais detalhada, a
45
CAMPOS, H. Morfologia do Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1974.
37
respeito dos contos, das lendas e dos mitos tradicionais relacionando-os com a literatura
infantil contemporânea.
1.2.1 Linguagem folclórica
A linguagem folclórica se caracteriza principalmente pela sua espontaneidade. Não
se encontra nas suas expressões uma preocupação com regras impostas, ela atende aos fins
da comunicação imediata. Por isso, J. Gerardo M. Guimarães
46
destaca que “a linguagem
popular é aquela em que prevalece a função de comunicar. Manifesta-se de modo oral,
escrito, ou ainda por meio de gestos e outros signos, com certo predomínio da primeira
forma”. Luís da Câmara Cascudo acrescenta que a linguagem incorpora regionalismos,
frases feitas, parlendas, trava-línguas, ditados, adágios, adivinhações, formas de escolhas de
brincadeiras, fórmulas de terminar histórias e vender fiado, apelidos entre outras
manifestações. A seguir, apresentar-se-ão as principais expressões da linguagem folclórica,
recolhidas e descritas pelos teóricos referidos acima.
Os ditados ou ditos populares são sentenças curtas, de cunho moral, religioso ou
filosófico, desenvolvidas através do conhecimento pragmático do homem em contato com o
mundo e de suas relações sociais. Geralmente apresentam um tom humorístico. São
exemplos de ditos comparativos:
“Comprido que nem xingada de gago.”
“Pesado que nem sono de surdo.”
“Feia que nem mulher de cego.”
“Fácil que nem tirar doce de criança.”
“Gordo que nem marido de cozinheira.”
No caso dos ditos explicitados anteriormente, as comparações são relacionadas com
características físicas observáveis no dia-a-dia das pessoas, como o fato de um gago
demorar a falar uma frase, um surdo não poder ser interrompido no seu sono por causa de
algum barulho, ou um cego não poder avaliar a beleza da mesma forma com que pessoas
46
GUIMARÃES, J. G. M. Repensando o folclore. São Paulo: Manole, 2002. p. 98
38
usuárias do sentido da visão o fazem. O inusitado da comparação causa o efeito
humorístico, característica própria da cultura popular. Outros ditos:
“Em terreiro de galinha, barata não tem razão.”
“Coice de égua não faz mal a cavalo.”
“Cada qual enterra seu pai como pode.”
“Jacaré quando tem fome até barro come.”
“Mentira tem perna curta.”
“Macaco velho não põe a mão em cumbuca.”
“Passarinho que come pedra sabe o rabo que tem.”
Muitos ditos ou ditados populares se assemelham a uma fábula, que utilizam
características tradicionalmente relacionadas aos animais, para representar ações e emoções
humanas. O primeiro dito, “Em terreiro de galinha, barata não tem razão”, por exemplo,
destaca de uma forma divertida as relações de poder que as pessoas vivem, o segundo:
“Coice de égua não faz mal a cavalo”, destaca as relações amorosas de submissão. Em
“Cada qual enterra seu pai como pode”, existe uma referência ao poder aquisitivo e a
tradição das cerimônias fúnebres custosas. “Jacaré quando tem fome até barro come”,
revela que, durante a Idade Média, a cultura popular tratava corriqueiramente sobre a fome,
que essa era a realidade da maioria dos camponeses. Este ditado refere-se, então, ao fato
de qualquer alimento parecer saboroso para quem não tem o que comer. “Mentira tem
perna curta” constata a impossibilidade de uma inverdade se sustentar por muito tempo. Em
“Macaco velho não põe a mão em cumbuca”, macaco velho” significa a experiência
adquirida na maturidade, que protege o indivíduo dos possíveis perigos, simbolizados pela
“cumbuca”. “Passarinho que come pedra sabe o rabo que tem” trata da consciência sobre as
conseqüências dos atos.
Toda criação, mesmo a folclórica, tem origem em uma personalidade individual, o
que também serve para os ditos. Inicialmente enunciados por alguém e, após, agradando a
todos, por tratarem dos interesses coletivos, foram transmitidos oralmente e tornaram-se
universalmente conhecidos, passaram a ser patrimônio de uma dada coletividade.
Semelhantes aos ditados, existem as frases feitas, orações com grande poder de síntese, que
descrevem situações rotineiras, de uma forma bem humorada e, outras vezes, grosseira.
Exemplos:
39
“Dar uma mão.”
“Conversa mole para boi dormir.”
“Ficar com água na boca.”
“Chover no molhado.”
“Ficar em cima do muro.
As parlendas são expressões da linguagem popular em forma de versos de cinco a
seis sílabas, utilizados para embalar, acalmar, entreter as crianças. Outro uso comum é a
escolha de quem deve iniciar um jogo e ainda, a fixação de idéias simples, como dias da
semana, cores e números. Nesse caso, a parlenda chama-se mnemonia. A seguir, apresenta-
se um exemplo de parlenda muito comum entre as crianças. Ela possui versos curtos de 4 e
5 sílabas com rimas no esquema: A, A, B, A.
1 BÃO-ba-da-LÃO A/ E.R. 4[1-4]
1 2 3 4
2 Se-NHOR-ca-pi-TÃO A/ E.R. 5[2-5]
1 2 3 4 5
3 Es-PA-da-na-CIN-(ta) B/ E.R. 5[2-5]
1 2 3 4 5
4 Gi-NE-te-na-MÃO A/ E.R. 5[2-5]
1 2 3 4 5
A parlenda de escolha serve para que as crianças decidam quem vai receber certas
incumbências nas brincadeiras infantis, por exemplo, se um grupo for brincar de esconde-
esconde, usa-se a parlenda para decidir quem irá procurar os demais. Basta dizer os versos
apontando para os participantes, a pessoa na qual a última sílaba cair será o escolhido para
a tarefa. A parlenda de escolha abaixo, lembra o sotaque italiano e francês. A sonoridade é
peculiar, que os acentos das palavras estão deslocados de seus locais originais e o
número de versos apresenta-se num crescendo de 5 sílabas até 8.
1 U-ni- DU-ni- TE A/ E.R. 5[3-5]
1 2 3 4 5
2 Sa-la-MÊ -min-GUÊ A/ E.R. 5[3-5]
1 2 3 4 5
3 Um- sor-VE-te- co-lo-A/ E.R. 7[3-7]
1 2 3 4 5 6 7
4 O- es-co-LHI-do-foi- vo-CÊ! A/ E.R. 8[4-8]
1 2 3 4 5 6 7 8
40
Os trava-línguas são versos ou expressões de difícil pronúncia as quais, quando
ditas repetidas vezes, são de articulação quase impossível. Além do sentido lúdico,
possuem o sentido pragmático de exercitar a dicção e a memorização. Exemplos:
“A espingarda destravíncula-pinculá
Quem destravíncula-pinculá ela
Bom destravíncula-pinculador será.”
“O relógio tique-taqueia
Tique-taque, tique-taque
Antes que o tique ficasse
O taque não tocava.”
Tão populares quanto os trava-línguas são as adivinhas, enigmas que, através de
analogias, expressam idéias e conceitos, contêm e escondem o sentido concomitantemente.
Atualmente, são vistas como um meio de pôr à prova a perspicácia do adivinhador. Porém,
a sua origem está ligada, segundo André Jolles
47
, a questões cruciais como a vida e a morte.
Existe um grupo de adivinhas conhecidas como enigmas da esfinge, pois surgem dentro de
narrativas nas quais são descritas situações em que um examinador, transformado em um
monstro, faz a pergunta ao adivinhador, que não sabendo a resposta, é devorado. Outro
grupo crucial são as adivinhas de Ilo presentes em contos nos quais um acusado apresenta
uma adivinha, que se o for respondida pelo juiz, vale a sua liberdade. O segundo grupo
tem origem em um relato que conta a história de uma moça acusada de ter assassinado uma
criança. No momento de seu julgamento, ela apresenta uma adivinha baseada no fato de ter
feito um par de sapatos com seu cachorro chamado Ilo:
Sobre Ilo vou
Sobre Ilo estou,
Sobre Ilo, a bela e gentil.
Adivinhem, meus senhores, o que isto quer dizer.
Além das rmulas fixas da linguagem folclórica, como as destacadas aqui, não se
pode deixar de observar o vocabulário pico de cada uma das etnias que colaboraram para
47
JOLLES, A. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.p.52
41
a formação cultural do país e, ainda, as frases de pára-choques de caminhões, epítetos,
quadras populares e as fórmulas para se terminar histórias. No caso do Sul do país,
palavras e expressões oriundas do espanhol, do alemão, do italiano, do austríaco, do
polonês, dos índios tapes, charruas, minuanos, guaranis, e, naturalmente, os portugueses,
principalmente os açorianos. O que alguns autores chamam de literatura folclórica,
relacionada à linguagem oral ou folclórica, compreendendo os mitos, lendas, contos
tradicionais, será tratado de forma mais extensiva no item referente às características da
literatura infantil.
1.2.2 Festas e folguedos
Segundo Bakhtin
48
, as festividades são expressões populares ligadas à noção de
tempo natural, isto é, ligadas ao processo de renovação periódica que o mundo vive, de
morte e ressurreição. É uma visão cíclica do mundo, dividida entre morte e vida, inverno e
primavera, representada em atividades festivas que acontecem em momentos específicos do
ano. Nas épocas descritas pelo autor, Idade Média e Renascimento, os festejos de carnaval,
as festas agrícolas, e muitos folguedos que aconteciam em praça pública, possuíam um
papel muito importante na vida dos homens. Assim como hoje, representavam uma
oportunidade catártica, porque ofereciam um relaxamento da ordem vigente, que propiciava
uma extrapolação de limites, permitindo a apresentação de uma visão de mundo muito
diferente daquela institucionalizada pela Igreja e pelo Estado. Atualmente, as grandes festas
folclóricas estão ligadas geralmente à religião e ao trabalho.
Luís da Câmara Cascudo
49
, descreve os folguedos como representações folclóricas
constituídas de: 1) Letra (quadras, sextilhas, oitavas, ou outros tipos de versos); 2) sica
(melodia e instrumentos musicais que sustentam o ritmo); 3) Coreografia (movimentação
dos participantes em fila, fila dupla, roda, roda concêntrica ou outras formações); 4)
Temática (enredo de representação teatral. Exemplo: Congada). Com o passar do tempo, os
participantes dos diversos folguedos foram naturalmente diminuindo o tempo das
48
BAKHTIN, op. cit.,p.240
49
Ibid., p. 241.
42
representações, por isso alguns diálogos das apresentações teatrais se tornaram truncados e
de difícil entendimento. No Brasil, os principais folguedos são: folguedos natalinos, como o
Reisado, Chegança e Cavalhada; folguedos carnavalescos, como Caboclinhos, Negras das
Costas; folguedos carnavalescos de estrutura simples, como Boi de Carnaval, Gigantões,
Ursos de Carnaval; folguedos de festas religiosas, como Mane do Rosário, Bandos.
Na região Sul do país, o folguedo mais tradicional é o “Boi-de-mão”, semelhante ao
“Bumba-meu-boi” do Nordeste. As congadas, que acontecem principalmente nos estados
do Paraná e Santa Catarina, representam uma forma de veneração e culto à Nossa Senhora
do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia e possui figuras tradicionais, oriundas do
folclore africano, como rei do Congo, fidalguia e rainha Ginga, com seus capitães, tenentes
e nobreza. As festas folclóricas de base religiosa, citadas no Dicionário Brasileiro de
Folclore, são: Festa de Nossa Senhora do Rosário, Festa de Nossa Senhora dos Navegantes,
Festa de Nossa Senhora dos Remédios, Festa de Santa Cruz, Festa de Santa Rita, Festa de
São Benedito, Festa de São Pedro, Festa do Divino e Festas Juninas.
Através dos elementos folclóricos, festas e folguedos, cultivados nos dias atuais,
pode-se perceber muito das especificidades da cultura popular, originadas na Idade Média,
ou até mesmo na Antigüidade, quando gregos e romanos planejavam longas festividades
dedicadas aos diversos deuses adorados na época. Os folguedos atuais são as formas dos
ritos e espetáculos de outrora, demonstrando que o popular sempre encontra um espaço
para as suas manifestações.
1.2.3 Músicas
O escritor modernista Mário de Andrade, conhecido por ter criado o anti-herói
Macunaíma, personagem repleto de inspiração folclórica, como se constatou anteriormente,
desenvolveu ao longo de sua vida vários estudos a respeito da música produzida pelo povo,
que deram origem à obra: Música de feitiçaria no Brasil
50
. O autor classificou a música
50
ANDRADE, Mário. sica de feitiçaria no Brasil. São Paulo: Martins Editora, 1963. p. 32
43
brasileira em três planos distintos: música erudita, popular ou popularesca, e folclórica.
Muitos estudiosos que o sucederam utilizaram a mesma classificação.
Compreender os limites entre as manifestações musicais eruditas, populares e
folclóricas também pode ser esclarecedor para se delimitar as expressões literárias, pois em
alguns momentos é possível traçar um paralelo entre as produções, como os meios de
transmissão, sujeito do processo criativo ou quanto aos temas abordados.
Luís da Câmara Cascudo
51
afirma que a música é a expressão essencial na vida
folclórica, assim como o verso e o acompanhamento instrumental. Baseando-se nas
colocações de Rossini Tavares de Lima e Mário de Andrade, o autor define a música
folclórica como espontânea, criada e aceita coletivamente pelo povo, transmitida oralmente
para os outros membros da comunidade e tendo função relacionada com os interesses da
vida do grupo. São exemplos dessas manifestações: moda de viola, dos pregões, aboios,
dorme-nenês, rodas infantis, cantos e toques de várias danças e folguedos. As
manifestações musicais folclóricas podem ter origem na música erudita, cantada pela elite,
que foi passando de geração para geração, acrescendo-se elementos ou transformando-se a
sua estrutura de acordo com as necessidades do grupo. Podemos citar como exemplos dos
elos da música erudita com a folclórica, as modinhas e as xácaras.
É característica da música folclórica ligar-se às danças e aos gestos, como ocorre na
catira, samba-lenço, batuque, (danças acompanhadas de músicas folclóricas) e ligadas aos
gestos estão as danças de Reis e de Benditos, as folias do Divino, entre outras. Músicos
eruditos já utilizaram como fonte para suas criações a música folclórica, como Heitor Villa-
Lobos, que usou como inspiração cantigas de roda e outras expressões cantadas
.
Nas obras A ciência do folclore e Abecê do folclore
52
, Rossini Tavares de Lima,
valendo-se da classificação sugerida por rio de Andrade, acrescendo, porém, a classe
Música Primitiva, apresenta as seguintes idéias a respeito da música folclórica e brasileira
51
CÂMARA, op.cit., p. 404
52
LIMA, R. T. A ciência do folclore.São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 36
44
de um modo geral: erudita é aquela produzida no contexto da cultura oficial de elite. O seu
criador estuda o que se pode chamar de ciência da música. A música erudita é uma forma
de criação que nasce da elaboração intelectual de sujeitos que possuem qualidades artísticas
e que compõem suas obras com o auxílio de estudo metodológico da arte e ciência da
música, no contexto da cultura oficial, dentro de conservatórios, escolas de música e
universidades.
no âmbito popular, os compositores são conhecidos pelos meios de comunicação
de massa e, normalmente, tomam por empréstimo fórmulas da música erudita ou da sica
folclórica. Um exemplo muito difundido é a música sertaneja comercial, executada por
duplas. Primitivas, são realizações artísticas de alguns grupos de indígenas da América, ou
africanos pigmeus, bosquímanos, polinésios. Folclórica é constituída por peças musicais
criadas ou aceitas coletivamente ao meio do povo, e destinadas à vida funcional da
coletividade, mando-se por transmissão oral. Quanto à sua composição, segue o seguinte
processo: a) improvisada de maneira espontânea e aceita no momento de criação; b)
improvisada, ensaiada e aceita c) tradicional, isto é, aceita por um determinado grupo
através dos tempos, sem perder seu significado e valor expressivo. Os instrumentos mais
utilizados na música folclórica são: viola de cinco cordas duplas ou viola de dez cordas,
berimbau, pandeiro, reco-reco, atabaque.
No universo infantil, destacam-se as cantigas de roda. Veríssimo de Melo, em
Folclore Infantil
53
, fez uma coletânea dessas manifestações, distribuindo-as em cinco
grupos, de acordo com o estado de ânimo representado nas letras de cada uma delas. São
eles: amorosas, satíricas, imitativas, religiosas, dramáticas. Além de classificá-las,
apresentando letra e partitura, o autor descreve as brincadeiras e encenações que as
acompanham. A seguir, observar-se-á um exemplo de cantiga amorosa, que mantém o
padrão de redondilha maior na primeira estrofe, porém, na segunda foge completamente a
essa estrutura. Apresenta, também, um nível semântico bem diferenciado, uma vez que os
primeiros versos tratam da violência das relações amorosas, representadas através das
figuras do cravo e da rosa, universo masculino e feminino em conflito, e a segunda estrofe
53
MELO, V. Folclore infantil. Belo Horizonte: Iatiaia, 1956. p. 17.
45
se configura como um jogo de sonoridades, que não possui consistência semântica, não
existe relação lógica entre os dois elementos:
1 O- CRA-vo- bri-gou- com a –RO-(sa), A/ E.R.7[2-7]
1 2 3 4 5 6 7
2 De-FRON-te-a-mi-nha-CA-(sa); A/ E.R. 7[2-7]
1 2 3 4 5 6 7
3 O- CRA-vo- fi-cou- fe-RI-(do) A/ E.R. 7[2-7]
1 2 3 4 5 6 7
4 E a- RO-sa- des-pe-ta-LA-(da). B/ E.R. 7[2-7]
1 2 3 4 5 6 7
5 PAL-ma-; PAL-ma-, PAL-(ma), A E. R. 5[1-3]
1 2 3 4 5
6 PÉ-, PÉ-, PÉ, C E.R 3[1-2-3]
1 2 3
7 RO-da-, RO-da-, RO-(da), A E.R. 5[1-3-5]
1 2 3 4 5
8 Ca-ran-GUE-jo- PEI-xe- É C E.R 7[3-5-7]
1 2 3 4 5 6 7
O próximo exemplo pode ser classificado como uma cantiga satírica, porque, a
partir da análise do nível semântico, percebe-se uma tensão humorística entre um
representante do poder institucionalizado, constituído na figura do delegado, e o povo,
simbolizado na figura de Pai Francisco, boêmio, tocador de violão, que acaba prisioneiro.
O nível estrutural da cantiga é bastante variável, apresentando versos de 4 até 8 sílabas,
com rimas externas e misturadas:
1 Pai- Fran-CIS-co em-trou- na- RO-(da), A E.R. 7[3-7]
1 2 3 4 5 6 7
2 To-CAN-do- seu- vi-o-LÃO. B E.R 7[2-7]
1 2 3 4 5 6 7
3 Ta-ra-RAM -TÃO-TÃO. B E.R. 5[3-4-5]
1 2 3 4 5
4 Vem- de- LÁ- seu- de-le-GA-(do), C E.R. 7[3-7]
1 2 3 4 5 6 7
5 Pai- Fran-CIS-co- foi- pra- pri-SÃO. B E.R 8[3-8]
1 2 3 4 5 6 7 8
6 CO-mo- e-le- VEM D E.R. 5[1-5]
1 2 3 4 5
7 TO-do- re-que-BRA-(do) C E.R. 5[1-5]
1 2 3 4 5
8 Pa-RE-ce- um- VE-(lho) E E.R 5[2-5]
1 2 3 4 5
46
9 De-sen-gon-ÇA-(do) C E.R. 4[4]
1 2 3 4
O exemplo a seguir é uma cantiga classificada como religiosa, porque exalta a
figura de um dos santos mais populares, São João. Ela faz referência ao costume das
crianças de algumas regiões do Brasil, que preparam capelas com flores nas árvores para o
santo:
1 Ca-pe-LI-nha- de- me-LÃO A/ E.R. 7[3-7]
1 2 3 4 5 6 7
2 É- de- SÃO- Jo-ÃO; A/ E.R. 5[1-3-5]
1 2 3 4 5
3 É- de- CRA-vo-, É- de- RO-(as), B/ E.R. 7[1-3-7]
1 2 3 4 5 6 7
4 É- de- man-JE-ri-CÃO. A/ E.R. 6[1-4-6]
1 2 3 4 5 6
5 SÃO- Jo-ÃO- es-TÁ- dor-MIN-(do) B/ E.R. 7[1-3-5-7]
1 2 3 4 5 6 7
6 NÃO- a-COR-da- NÃO A/ E.R. 5[1-3-5]
1 2 3 4 5
7 A-COR-dai-, -a-COR-dai- o- Jo-ÃO. A/ E.R. 9[2-5-9]
1 2 3 4 5 6 7 8 9
As cantigas de roda, além de serem representações folclóricas, transmitidas através
da oralidade, atualmente foram instituídas como conteúdo obrigatório em várias escolas de
educação infantil, porque as suas letras e as representações que as acompanham fazem com
que as crianças se desenvolvam em vários sentidos, na coordenação motora, na expressão
oral e sensibilidade musical, entre outros aspectos. Os elementos das cantigas de roda
também estão constantemente presentes na literatura infantil contemporânea.
Posteriormente, este fenômeno será observado, na análise das obras selecionadas para fins
do presente estudo investigativo.
47
1.2.4 Danças
No Brasil a dança é uma das expressões que mais se manifesta no cotidiano das
pessoas, em muitos momentos ela se faz presente: nas comemorações, durantes festas
tradicionais, e, principalmente, em época de carnaval. De acordo com de Luís da Câmara
Cascudo
54
, a dança é a mais antiga manifestação grupal, direcionada ao sobrenatural,
homenageando as forças ocultas que regiam a vida dos homens na Antigüidade. Uma
constatação que deve ser lembrada é a de que a dança é também a mais universal de todas
as expressões, sendo um dos movimentos mais cultivados o dançar em círculos. O autor
ressalta que a dança enquanto recreação surgiu pela exigência dos cultos rurais, que, por
muito tempo, existiram danças para pedir chuva, caça, para agradecer os deuses, ou
impedir os castigos dos mesmos. E, por fim, foram os europeus que espalharam pelo
mundo os bailes, nos quais se dançava em pares, homens e mulheres, partindo daí a dança
em solo, apresentada por um único bailarino.
Sendo a dança uma manifestação cultural tão difundida, é importante destacar qual é
a sua natureza enquanto representação folclórica. Na obra Repensando o folclore
55
, de J.
Gerardo M. Guimarães, o autor se dedica ao esclarecimento do que é dança folclórica e a
apresentação de algumas manifestações brasileiras. Guimarães relembra algumas noções
gerais sobre a dança, como o fato de a mesma ser um movimento ordenado, combinação de
gestos e atitudes corporais, produzidas em grupos, ou individualmente, acompanhadas de
música ou sons produzidos com o corpo. Segundo o autor, em certas ocasiões, a dança
representa de forma simbólica os atos sociais da comunidade. Contudo, ao se tratar de
dança folclórica, é preciso compreendê-la em um contexto cultural, e não de uma forma
54
CASCUDO,o
p. cit., p. 179
55
GUIMARÃES, J. G. M. Repensando o folclore. São Paulo: Manole, 2002. p.24
48
mais genérica. Assim como a música pode ser erudita, popularesca, primitiva, folclórica, as
danças também se enquadram, basicamente, dentro das mesmas especificações. Por isso,
Guimarães classifica a dança de salão e a dança da moda, como pertencentes ao domínio da
cultura de massa, a dança conhecida como clássica”, como pertencente ao domínio da
cultura erudita, e finalmente, a dança folclórica, que ocorre no contexto da cultura popular,
espontânea.
No Rio Grande do Sul, os folcloristas Barbosa Lessa e Paixão Côrtes se destacaram
sobremaneira ao realizarem um extensivo estudo acerca das danças folclóricas gaúchas. Na
obra Danças e andanças na tradição gaúcha
56
, tratam das transformações ocorridas nas
manifestações da dança ao longo dos anos:
Inicialmente expressão mágica, masculina, dos povos primitivos, a dança chegou
à Antigüidade Clássica já com boa dose de caráter profano e em vias de se
transformar em espetáculo para entretenimento público. Com danças é que os
gregos cultuavam Dionísio, deus libertador dos instintos. Mas, com a introdução
do corifeu como narrador das peripécias de Dionísio, a “letra” passou a disputar
lugar junto à música e, desta forma, o elemento literário foi se tornando tão
importante como a música.
57
Enquanto a dança se modificava ao longo do tempo, foi perdendo o seu caráter
sagrado e entrando no plano do profano e do dico. Hoje, dança-se no cotidiano, para
comemorar, festejar, brincar, e, no âmbito escolar e profissional, para produzir uma
experiência estética, fruto de muita técnica e dedicação dos artistas:
Ao longo da Idade Média foi-se observando uma gradativa separação dos
elementos originados dos cultos dionisíacos. O aspecto liberador dos instintos
evolui para manifestações essencialmente profanas como “carnaval”; e houve
um ramo que se especializou em danças ginásticas, liberadoras de energias
físicas(...). O elemento literário, que antes havia criado o teatro grego prosperou
admiravelmente na França e em vários reinos europeus sob a forma de jograis e
menestréis (...).Quanto ao elemento coreográfico, foi seguindo dois caminhos. O
primeiro, visto, se desenvolveu sob a forma de autos dramáticos, nos quais o
dançarino era antes de mais nada um “personagem” se apresentando diante de
um público. O segundo foi constituído danças puramente lúdicas, sem pretender
56
CÔRTES, L. Danças e andanças na tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975. p. 135.
57
CÔRTES, op. Cit.,. p.17
49
aplausos do público e prendendo exclusivamente o entretenimento e a
comunicação social.
58
No estado do Rio Grande do Sul, as danças pertencentes ao folclore quanto ao
elemento coreográfico, seguiram o que os autores chamaram de danças puramente lúdicas,
destinadas ao entretenimento e à comunicação social, sendo as mais conhecidas fandango,
chula, chimarrita, gato, pau-de-fita.
Como já foram referidos anteriormente, os elementos folclóricos existentes são
infinitos, porém optou-se por tratar da linguagem, festas e folguedos, músicas, danças, por
se entender que estes são os que se fazem mais presentes no dia-a-dia, apesar dos apelos da
cultura de massa. No entanto, ainda não foi apresentado o elemento envolvido de forma
mais essencial com o tema do presente estudo, a literatura folclórica e suas amplas
manifestações, ou, como defende Ong, as vocalizações.
1.3 Relações entre cultura popular e folclore
Quando se trata de diversidade cultural, cultura popular e folclore, o campo das
definições se torna nebuloso, uma vez que inúmeros teóricos teceram suas considerações
acerca desses temas, adicionando-se a isso o fato de o senso-comum também apresentar
naturalmente as suas idéias a respeito dos limites desses fenômenos, surgindo, então, uma
diversidade de possíveis entendimentos.
É importante retomar algumas considerações a respeito dos fenômenos culturais
estudados. Quando se fala em cultura popular de uma forma genérica, é melhor que se use a
expressão no plural, “culturas populares”, para que não se transmita a falsa idéia de
homogeneidade, uma vez que as manifestações das classes populares são sempre
diversificadas. A cultura popular está intimamente ligada às definições de povo e de classe,
e aqui, assume-se a definição de povo, defendida por Burke
59
, que relaciona esse segmento
58
Ibid., p. 17
59
BURKE, op.cit., 16
50
social com a classe subalterna, desfavorecida economicamente. Cultura popular equivale à
cultura não-oficial, que se desenvolve à margem de instituições elitistas. Porém, ao se
relacionar o popular, com o economicamente desfavorecido, não se objetiva alimentar a
visão pejorativa de que toda a cultura espontânea é tosca, desprovida de qualidade estética.
Deve-se destacar, também, que o conceito de cultura popular é histórico e dinâmico,
isto é, muda com o passar do tempo e está em consonância com a evolução dos estudos em
diferentes áreas das ciências humanas, como História, Sociologia, Antropologia. No
princípio, a sua definição sugeria que, grosso modo, cultura popular era o estudo das
manifestações exóticas do folclore. Atualmente, as definições apontam para um caminho
mais amplo, sendo relacionadas aos fenômenos culturais espontâneos, ocorridos fora das
universidades e demais instituições de ensino. Nesse sentido, Burke afirma, de modo muito
apropriado, que a cultura popular é a pequena tradição e a cultura erudita é a grande
tradição (excludente, produzida nos liceus e universidades), todavia, elas não estão isoladas
uma da outra, pelo contrário, estão em constante contato, alimentando-se mutuamente.
A cultura popular possui uma definição muito ampla, cujas características principais
são: o princípio da bricolage, a oralidade, visão cíclica do mundo, culto à memória e o
sentimento de pertencer à sociedade da vida. As expressões populares apresentam um
número limitado de elementos que vão se relacionando de maneiras diversas numa espécie
de permutação constante - é o que Bakhtin chamou de bricolage. A oralidade é a forma de
transmissão das representações populares, que se tornam patrimônio dinâmico das
comunidades, surge daí o culto à memória, a importância de lembrar e repassar os
conhecimentos adquiridos. A visão cíclica do mundo é oriunda da observação primitiva da
passagem da vida na terra, tudo nasce e morre, mas tudo tem possibilidade de renascer uma
vez que, no mundo, as coisas e pessoas são partes da mesma matéria, o que já indica o
sentimento de pertencer à sociedade da vida, na qual todas fazem parte de um mesmo
plano, num infinito ir e vir.
A cultura popular acontece no âmbito da cultura oral, mas está sempre entrando em
contato com a cultura escrita, inclusive no sentido de alimentá-la, fenômeno que terá uma
51
de suas ocorrências analisada de forma mais detalhada, quando se dará a observação da
presença de elementos folclóricos na literatura infanto-juvenil brasileira. Portanto, é de
sumo interesse para a realização desse estudo que se verifiquem as características e as
relações da cultura escrita e da cultura oral.
1.4 A natureza das expressões da oralidade e da literatura
Em inúmeros estudos encontra-se o termo literatura oral, porém, segundo Walter
Ong, no livro Oralidade e cultura escrita
60
, o uso da expressão é completamente
equivocado, uma vez que “literatura”, conforme a etimologia, significa “escritos” (latim
literatura, de litera, letra do alfabeto), usado atualmente para designar um conjunto de
textos, como literatura brasileira, literatura inglesa, literatura infanto-juvenil. Não existe
nenhum termo semelhante que possa abranger, de forma satisfatória, as expressões
puramente orais, como contos tradicionais, provérbios, adivinhas, entre outras. Ong chama
essas expressões de vocalizações ou formas artísticas puramente orais. Pode-se tratar as
manifestações da oralidade como vocalizações, de acordo com que é afirmado por Ong,
porém, deve-se levar em consideração que a conceituação de literatura do autor (o termo
literatura é usado para designar um conjunto de obras) é demasiado restritivo, não
apontando sequer o caráter estético que as obras classificadas como literária possuem.
Nesse sentido, Frederico Fernandes
61
observa que a importância dos estudos acerca
da oralidade na área de Letras ocasionou uma modificação no próprio sentido do que se
entende por literário. A partir da nova abordagem, literatura deixa de ser entendida no seu
sentido etimológico e passa por uma abertura do conceito, descentraliza o cânone e
aumenta o número de manifestações a serem estudadas como literatura.
Para Ong não existe apenas uma diferenciação possível entre cultura escrita e
oralidade, mas pode-se falar em oralidade primária: a das pessoas que desconhecem
inteiramente a escrita e a oralidade secundária: aquela possível no mundo da tecnologia,
60
ONG, W. Oralidade e cultura escrita. São Paulo: Papirus, 1998.
61
FERNANDES, G.A.F.(org.) Oralidade e literatura: manifestações e abordagens no Brasil. Londrina:
Eduel,2003.p.14
52
através do telefone, da rede, do rádio, da televisão. Vive-se uma completa valorização da
escrita, todos os documentos, informações, legislação, receitas médicas, propagandas, são
cristalizados através dela, o que faz parecer muito remota uma existência sem a influência
do alfabeto e sem pertinência as representações que não passam por sua via, como é o caso
das vocalizações. No entanto, ainda conforme Ong, dezenas de milhares de línguas
existem, sendo que apenas 106 produziram um grau de escrita suficiente para que fosse
criada literatura. Mesmo que a escrita seja altamente valorizada, todos os textos escritos
devem estar de alguma forma relacionados aos sons, não justificando o fato lembrado pelo
autor:
No entanto, apesar das raízes orais de toda verbalização, o estudo científico e
literário, durante séculos e até épocas muito recentes, rejeitou a oralidade. Os
textos exigiram atenção de um modo tão ditatorial que as criações orais
tenderam a ser consideradas geralmente como variantes de produções escritas
ou, quando muito, sob um rigoroso escrutínio acadêmico. Apenas recentemente
fomos tomados de impaciência diante de nossa insensibilidade nessa questão
62
Nesse sentido, David R. Olson, explicita que a maioria das crenças relacionadas à
habilidade de escrever “São na verdade, mitologia, uma visão seletiva dos fatos que não
justifica as pretensas superioridades dos letrados como atribui as falhas da sociedade, e do
mundo, ao analfabetismo.”
63
O autor levanta seis crenças em relação à escrita, que pesquisas
atuais colocaram em vida: “1. Escrever é transcrever a fala. 2. Superioridade da escrita
com relação à fala. 3. A superioridade tecnológica do sistema de escrita alfabético. 4. A
escrita é o órgão do progresso social. 5. A escrita como instrumento do desenvolvimento
cultural e científico. 6. A escrita como um instrumento de desenvolvimento cognitivo. Ao
realizar uma reflexão sistemática sobre as crenças em relação à cultura escrita e o
preconceito em relação à oralidade, percebe-se a escrita tem tido um uso ideológico, que
não permite que ela seja vista como o que realmente é: um artefato tecnológico,
revolucionário, sim, o que de forma alguma justifica a depreciação da oralidade.
62
ONG, op. cit. p. 17
63
OLSON, R. David. O mundo no papel: As implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São
Paulo: Ática, 1997. p. 19
53
Sobre essa questão, Ong observa que o estudo da linguagem concentrou-se mais nos
textos escritos do que na oralidade por um motivo óbvio: a relação do próprio estudo com a
escrita. O pensamento é analítico, ele procura meios de dividir a sua matéria para melhor se
apropriar dela. Contudo, o exame seqüencial, classificatório e explicativo dos fenômenos
ou de verdades estabelecidas é impossível sem a escrita e a leitura. “Os seres humanos, nas
culturas orais primárias, não afetadas por qualquer tipo de escrita, aprendem muito,
possuem e praticam grande sabedoria, porém não“estudam”.”
64
. As culturas orais primárias
produziram maravilhas, que foram esquecidas durante cadas, em virtude da
supervalorização da escrita, porém, agora que as atenções estão se voltando positivamente
para as expressões orais, não se deve incorrer no erro e desprezar o valor da cultura escrita
e de seus efeitos sobre o conhecimento humano.
Na realidade, as culturas orais produzem realizações verbais impressionantes e
belas, de alto valor artístico e humano, que não são sequer possíveis quando a
escrita se apodera da psique. Contudo, sem a escrita, a consciência humana não
pode atingir o ápice de suas potencialidades, não é capaz de outras criações belas
e impressionantes. Nesse sentido, a oralidade precisa e está destinada a produzir
a escrita. A cultura escrita, como veremos, é imprescindível ao desenvolvimento
não apenas da ciência, mas também da história, da filosofia, ao entendimento
analítico da literatura e de qualquer arte e, na verdade, à explicação da própria
linguagem (incluindo a falada). Dificilmente haverá uma cultura oral ou uma
cultura predominantemente oral no mundo, hoje, que não esteja ciente da
enorme pletora de capacidades absolutamente inacessíveis sem a cultura escrita.
Essa consciência é angustiante para as pessoas enraizadas na oralidade primária,
que desejam ardentemente a cultura escrita, mas que estão igualmente
conscientes de que entrar no mundo cheio de atrativos da cultura escrita significa
deixar atrás de si boa parte do que é fascinante e profundamente amado no
mundo oral anterior. Devemos morrer para continuar a viver.
65
A humanidade parece estar sempre em um constante movimento de
supervalorização de uma tecnologia em detrimento de outra, de supervalorização de uma
cultura, em relação à outra, porém, o que se constata, é que, na complexidade dos
fenômenos culturais, torna-se praticamente impossível que algumas tecnologias substituam
definitivamente outras, conforme se observou com o surgimento da televisão, que não
causou a extinção do rádio.
64
ONG, op.cit., p. 17
65
Ibid. p. 23,24
54
A escrita é uma tecnologia, assim como a televisão, o rádio e o computador, e
precisa também de suas ferramentas específicas como canetas, papel, tinta, impressoras.
Atualmente, algumas pessoas têm aversão aos computadores, no momento da expansão da
cultura escrita, também houve quem a repudiasse, como Platão, que acreditava que a escrita
poderia destruir a memória, porém, depois de consolidada a cultura escrita no ocidente,
generalizou-se um preconceito em relação à cultura oral, relacionando-a a formas
primitivas de pensamento, destituídas de valor, racionalidade e até mesmo valor estético.
Nas últimas décadas, os estudiosos da área da antropologia passaram a se
conscientizar, através de inúmeras pesquisas, de que as culturas orais podem ser muito
sofisticadas e que a grande civilização grega, cujos ideais influenciam o pensamento da
humanidade até hoje, não foi desenvolvida através da escrita, que era muito limitada na
época, mas sim, através da oralidade, utilizando-se a dialética a partir do debate e
argumentação, como meio para se chegar ao conhecimento.
Olson, em Oralidade e cultura escrita,
66
trata de duas hipóteses tradicionais para o
surgimento da escrita. Em primeiro lugar, os sistemas de escrita teriam se desenvolvido
com objetivos mnemônicos, mas como são lidos, acabam fornecendo um modelo para a
linguagem e o pensamento. Em segundo lugar, a escrita teria nascido da necessidade de
ajustamento de representações de uma língua para outra.
Durante toda a Idade Média, foi utilizada como mais do que um auxiliar
mnemônico, e sim, como um verdadeiro instrumento do poder da monarquia e do clero,
através dela eram cobrados os impostos, a burocracia, o comércio, as informações, por
esses usos, inicialmente, a escrita foi um fator de padronização, de conformação, e não de
emancipação do pensamento individual.
Olson afirma que a escrita reestrutura a mente: “humanos funcionalmente letrados
realmente são: seres cujos processos de pensamento não nascem de capacidades meramente
66
OLSON, op.cit., p. 84
55
naturais, mas da estruturação dessas capacidades, direta, ou indiretamente, pela tecnologia
da escrita.”
67
Todavia, levando em consideração o fato de que, atualmente, existem raras
comunidades que vivem uma cultura oral primária, pode se observar que os indivíduos que
pertencem ao mundo da escrita, mesmo quando se encontram numa situação de oralidade,
têm seus pensamentos regidos pelas regras da representação escrita e organizam a sua
consciência de tal modo, que seria impossível se eles não a conhecessem. Contudo, não se
pode de forma alguma inferir que o pensamento oral seja simplista, porque, ao seu modo,
ele é reflexivo. E segundo Ong
68
, a palavra dita, tem um poder que a escrita não possui:
Numa cultura oral primária, na qual a palavra existe apenas no som, sem
qualquer referência a um texto visualmente perceptível e a uma consciência, nem
mesmo à possibilidade de um tal texto, a fenomenologia do som penetra
profundamente no sentimento de existência dos seres humanos, na qualidade de
palavra falada. Pois o modo como a palavra é vivenciada é sempre importante na
vida psíquica. A ação centralizadora do som (o campo sonoro não está espalhado
diante de mim, mas a toda a minha volta) afeta o sentido humano do cosmos.
Para as culturas orais, o cosmos é um evento contínuo, com o homem em seu
centro.
69
É importante destacar que, em decorrência dos processos de expansão tecnológica e
da globalização, atualmente a cultura oral primária praticamente não existe, porque quase
todos os povos entraram em contato com a escrita, embora todas as culturas preservem,
em algum grau, as características da cultura oral primária. Portanto, em toda cultura escrita
existem resquícios da cultura oral.
Todo artefato tecnológico transforma a consciência, e assim foi com a escrita, que
possibilitou um pensamento organizado e abstrato, de uma forma que a oralidade não
permitia. Contudo, é importante destacar: isso não é um motivo pertinente para desprezar a
cultura oral, uma vez que ela também permite produções complexas, impossíveis para
aqueles que assimilaram as fórmulas da escrita, fato observado nas contribuições
incontáveis da civilização grega, essencialmente oral. A cultura escrita e seu maior bem, a
67
OLSON, op.cit., p. 93
68
ONG, op.cit.,27
69
Ibid., p. 87
56
literatura, recorrem constantemente a argumentos nas formas próprias da oralidade.
Grandes escritores buscaram inspiração nas formas orais, principalmente os autores que
produziram para o público infantil, como será visto a seguir. Antes, porém, de se tratar
sobre as relações entre a cultura escrita e a oralidade, através da presença de elementos
folclóricos na literatura infantil, é necessário determinar as origens dessa literatura e de seu
público alvo.
1.5 Visão moderna da infância e surgimento da literatura infantil
O sentimento relacionado à criança, que se conhece hoje, que evoca o carinho, o
cuidado e a preservação dessa fase da vida como única e especial, não existia até o século
XVIII, as crianças eram tratadas como pequenos adultos e, por isso, viviam em um
universo partilhado com eles. Posteriormente, no mesmo momento em que se consolida um
novo sentimento de infância, surge também uma literatura voltada para esse público, é a
literatura infantil, sendo assim, se faz importante para o desenvolvimento desse estudo
observar o processo de distinção entre as fases da vida. Para embasar essa reflexão buscou-
se apoio na obra História Social da Criança e da Família
70
, escrita por Philippe Ariès, na
qual é apresentada à forma como a família e a sociedade trataram a infância no decorrer do
tempo, através do testemunho das artes, das vestimentas e de registros escritos.
Até a Idade Média as condições de vida eram muito precárias, a falta de saneamento
básico fazia com que inúmeras epidemias dizimassem populações inteiras. Por conta dos
altos índices de mortalidade infantil, era muito comum que famílias perdessem boa parte de
suas crianças antes mesmo de completarem cinco anos de idade, por isso, muitas delas não
recebiam nome e eram enterradas nos quintais das casas como se fossem animais. Para
aquelas que ultrapassavam uma série de obstáculos à vida, o destino era a rápida integração
à vida adulta, através da aprendizagem de um ofício, no sistema de aprendizes e mestres, e
a participação em todos os outros eventos sociais, como festas, cerimônias, lutos. Aos
pequenos dessa época não era vedada nenhuma instância da vida. Contudo, conforme foram
70
ARIÈS, P. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
57
passando os anos, e a sociedade foi se desenvolvendo em vários aspectos, a expectativa
média de vida foi aumentando, gerando assim, uma diferenciação entre as fases da
existência, que a princípio, não significavam apenas etapas biológicas, e sim, funções
sociais, uma vez que os papéis dentro da sociedade começaram a ficar claramente
demarcados.
No século XVII, com a ascensão da burguesia, passa a existir uma clara
diferenciação entre adultos e crianças, e o divisor de águas era relacionado ao sentido de
servidão: a infância passou a ter uma longa duração, que acompanhava o indivíduo
enquanto esse fosse dependente, e os termos utilizados para se referir a essa fase eram
muito próximos aos utilizados para designar os trabalhadores mais simples, como destaca
Ariès:
Durante o século XVII, houve uma evolução: o antigo costume se conservou nas
classes sociais mais dependentes, enquanto um novo hábito surgiu entre a
burguesia, onde a palavra infância se restringiu a seu sentido moderno. A longa
duração da infância, tal como aparecia na língua comum, provinha da
indiferença que se sentia então pelos fenômenos propriamente biológicos:
ninguém teria a idéia de limitar a infância pela puberdade. A idéia de criança
estava ligada à idéia de dependência: as palavras fils, valets e garçons eram
também palavras do vocabulário das relações feudais ou senhoriais de
dependência.se saía da infância ao se sair da dependência, ou, ao menos, dos
graus mais baixos da dependência.
71
O autor utiliza o testemunho da arte e dos costumes sociais para contar a
“descoberta da infância”. Em relação às artes plásticas é importante salientar que, até o
século XII, as representações pictóricas não representavam, ou não reconheciam a infância.
Ariès apresenta como justificativa para essa constatação o fato de até então, a mortalidade
infantil apresentar altos índices, o que gerava uma insensibilidade em relação a esse
momento da existência:
Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido
e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena. No primeiro caso, a infância
era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na lembrança;
no segundo, o da criança morta, não se considerava que essa coisinha
71
ARIÈS, op.cit., p. 11
58
desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança: havia tantas crianças, cuja
sobrevivência era tão problemática. O sentimento de que se faziam várias
crianças para conservar apenas algumas era e durante muito tempo permaneceu
muito forte. Ainda no século XVII, em Le Caquet de L`a´ccouchée, vemos uma
vizinha, mulher de um relator, tranqüilizar assim uma mulher inquieta, mãe de
cinco “pestes”, e que acabara de dar à luz: “Antes que eles te possam causar
muitos problemas, tu terás perdido a metade, e quem sabe todos”.
72
Foi a partir do século XVI que as crianças começam a aparecer em retratos de
famílias, túmulos, e na arte em geral, porém essas expressões possuíam uma característica
em comum: representavam a criança com feições de adulto, apenas em uma escala menor, o
que é um indício de que o ser infantil ainda não estava bem definido. No século XVII, nas
obras de arte com representações de crianças bastante comuns, principalmente as de
nudez, é possível constatar uma mudança de visão, uma vez que infância passa a ser
relacionada à inocência, qualidade que deveria ser preservada. Conseqüentemente, ocorre o
afastamento dos pequenos do cotidiano dos adultos. A esse respeito Zilberman destaca que:
A infância corporifica, a partir de então, dois sonhos do adulto. Primeiramente,
encarna o ideal da permanência do primitivo, pois a criança é o bom selvagem,
cuja naturalidade é preciso conservar enquanto o ser humano atravessa o período
infantil. A conseqüência é sua marginalização em relação ao setor de produção,
porque exerce uma atividade inútil do ponto de vista econômico (não traz
dinheiro para dentro de casa) e, até mesmo, contraproducente (apenas consome).
Em segundo lugar, possibilita a expansão do desejo de superioridade por parte
do adulto, que mantém sobre os pequenos um julgo inquestionável, que cresce à
medida em que esses são isolados do processo de produção. Enfim, este
afastamento legitima pela alegação a noções previamente estabelecidas, relativas
à índole frágil e dependente da infância, desmentindo-se o fato de que esta foi
tornada incapacitada para ação devido às circunstâncias ideológicas com que a
infância é manipulada.
73
A visão dos artistas plásticos acerca do universo infantil é apenas um dos exemplos
citados pelo autor para que se possa concluir que o conceito de infância deve ser entendido
numa perspectiva diacrônica, isto é modifica-se através do tempo. Através da análise dos
trajes utilizados pelas crianças, pelos jogos e brincadeiras também é possível observar a
mudança de concepção do que é ser criança. A partir do século XVII observou-se uma clara
72
Ibid. p. 21
73
ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. São Paulo: Ática, 1982. p. 18
59
diferenciação dos universos adulto e infantil, uma vez que através de roupas muito
específicas se separavam os pequenos com uma espécie de uniforme. Por isso o autor
conclui que a forma de vestir não é apenas uma frivolidade, mas é um código em que a
relação da sua apresentação e aquilo que ele representa, é muito clara.
Quanto aos jogos e às brincadeiras, Ariès lembra que, até a Idade Média, existiam
muitos jogos dúbios, que serviam tanto para os adultos, como para as crianças. Esse era o
caso da boneca que possuía vários usos e as miniaturas, que passaram a ser bibelôs,
colecionados pelos adultos. Existiam os jogos exercícios, como o hóquei, pião, peteca,
bola, jogos de azar, jogos de salão. Nessa época, o trabalho e o lazer possuíam sentidos
muito diferentes do que têm hoje, o homem direcionava muito mais do seu tempo às
atividades lúdicas:
Na sociedade antiga, o trabalho não ocupava tanto tempo do dia, nem tinha tanta
importância na opinião comum: não tinha o valor existencial que lhe atribuímos
pouco mais de um século. Mal podemos dizer que tivesse o mesmo sentido.
Por outro lado, os jogos e divertimentos estendiam-se muito além dos momentos
furtivos que lhes dedicamos: formavam um dos principais meios de que
dispunha uma sociedade para estreitar seus laços coletivos, para se sentir unida.
Isso se aplicava a quase todos os jogos, mas esse papel social aparecia melhor
nas grandes festas sazonais e tradicionais. Elas se realizavam em datas fixas do
calendário, e seus programas seguiam em geral regras tradicionais. Essas festas
foram estudadas por especialistas em folclore ou tradições populares, que se
situam num meio quase exclusivamente rural. Mas, ao contrário, elas envolviam
toda a sociedade, de cuja vitalidade eram a manifestação periódica. Ora, as
crianças as crianças e os jovens participavam delas em de igualdade com
todos os outros membros da sociedade, e quase sempre desempenhavam um
papel que lhes era reservado pela tradição.
74
Através da observação da evolução dos usos e costumes das sociedades, Philippe
Ariès conclui que a história se repete monotonamente, e o que se pode constatar é que
antigamente, até a Idade Média, existia uma insensibilidade em relação à infância, mas a
partir daí começa a se desenvolver lentamente uma nova visão das fases da existência.
Depois da ascensão burguesa, e da industrialização começa a se consolidar fortemente o
sentimento de infância que conhecemos hoje. A criança passa a ser considerada um ser
especial que deve ser protegido, festejado, lembrado, educado. Essa visão de infância como
74
ARIÉ, op.cit. p. 51
60
um período de fragilidade exige que a inocência deva ser preservada da corrupção do
mundo adulto, por isso a criança passou a ser cada vez mais afastada do convívio em
comunidade e passou-se a se especializar tudo para essa fase, desde roupas, brinquedos e
festas, como também começou a sua escolarização. Os pequenos necessitavam de um lugar
especial para serem educados e preparados para o convívio social. E é dentro desse
processo de escolarização, de especialização da infância, que surge o que se conhece hoje
como literatura infantil.
Apesar de a escola surgir para preparar os pequenos para a vida civilizada, essa
instituição é contraditória desde a sua origem, pois, ao mesmo tempo em que deve preparar
a criança para a vida adulta, objetiva proteger os pequenos contra ao mundo exterior, numa
tentativa de manter a inocência. Da mesma forma, a literatura infantil passa a ser vinculada
à pedagogia, apresentando uma natureza formativa, o que a coloca como objeto de
contradições e críticas.
1.6 Consolidação da literatura infantil
Se o surgimento da literatura infantil é contemporâneo ao nascimento do sentimento
moderno da infância, a crítica especializada a respeito dessa literatura (e as tentativas de
definição da mesma), surge paralelamente ao desenvolvimento editorial do período
entreguerras. Nesse momento histórico, a nível mundial, passa-se por um momento de
expansão da escolarização obrigatória, de promoção da alfabetização, tendo como um dos
principais objetivos tornar a mão-de-obra mais capacitada para operar os sistemas de
produção cada vez mais complexos. Os avanços no campo educativo aumentam a produção
de literatura infantil, por essas obras serem vistas pelos pedagogos e professores como um
excelente material didático, tanto pelo seu potencial textual a ser usado na alfabetização. Os
professores percebem também, a possibilidade de se vincular valores e ensinamentos que
possam promover a entrada das crianças no universo adulto, interiorizando as regras da
convivência social e seu papel a ser representado no palco das relações pessoais e de
produção.
61
Os livros destinados ao público de leitores em formação podem ser considerados
literatura? Essa foi a primeira questão abordada pelos estudos teóricos, seminários e cursos
universitários que iniciaram os estudos acerca das produções da literatura infantil. Nesse
momento, o entendimento que se destacava é o de que a literatura infantil não poderia ser
considerada literatura, arte pura, porque a experiência estética poderia ser vivida por
aqueles que possuem certa maturidade e vivência psicológica, e, portanto, as crianças
ainda não estariam preparadas para uma verdadeira arte. A partir de então, a literatura
infantil foi constantemente subestimada em seu valor literário. Essa desvalorização fica
ainda mais clara na década de 1960, quando os estudos estruturalistas se popularizam.
Segundo o pensamento dos formalistas russos, o caráter de obra de arte na literatura é
percebido através da literariedade, isto é, o texto deve possuir marcas em sua estrutura que
o afaste da forma cotidiana de linguagem. É o princípio do estranhamento, segundo o qual
o texto deve fugir do coloquial. Por isso, a literatura infantil foi considerada um texto
literário menor, porque, aparentemente, possui menos desvios da forma cotidiana da
linguagem.
A segunda questão que repercutiu sobremaneira entre a crítica que começa a se
especializar em literatura infantil foi se essa produção poderia configurar-se pelas obras de
reconhecida qualidade ou pelo sucesso com o público jovem? A partir dos anos setenta do
Século XX a crítica se dividiu em dois pólos: aqueles que acreditavam que o valor das
obras infantis deveria ser constatado através de uma análise de elementos, semelhante ao
processo a que a crítica impunha à literatura adulta, e o outro grupo que acreditava na
importância de avaliar a obra de literatura infantil a partir do seu êxito com o público,
através do prazer do leitor. A esse respeito Teresa Colomer destaca que:
A tensão entre as duas posições extremas, quer dizer, entre a avaliação do texto
ou a consideração ao leitor, teve momentos de maior e menor inclinação para um
dos dois pólos, mas mantém um equilíbrio estável, que dificilmente alguém
pode pretender anular totalmente um dos critérios. O problema, portanto, se
apresenta sempre sob forma de como selecionar os livros de maneira que exijam
um esforço de interpretação, mas sem que esta literatura se torne distante para
aqueles que se supõe sejam seus destinatários.
75
75
COLOMER, T. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. São Paulo: Global, 2003.
p. 46
62
Nesse momento em que a crítica sobre a literatura infantil é ainda muito incipiente,
o papel da mesma é visceralmente relacionado à prática escolar. Dessa forma, ela se
contenta em oferecer materiais de avaliação de fácil manipulação por parte do educador e
bibliotecários como resenhas curtas, guias, seleções, etc...
Atualmente, aborda-se a questão da seguinte forma: a literatura infantil é um campo
literário específico dentro do sistema de comunicação literária. Essa definição torna as
discussões anteriores ultrapassadas. Conforme Flávio Kothe
76
, o conceito de sistema pode
ser entendido como um conjunto de elementos coerentes entre si e distintos de seu meio.
Eles são organizados segundo um determinado princípio que é a dominante. Todo sistema é
como uma teia de aranha apresenta grandes linhas de estruturação. Para entender um
sistema é preciso entender as suas partes. Ele é um conjunto de possibilidades e limitações
interdependentes. Para o mesmo autor, a literatura é um sistema ideológico, que de modo
geral visa dar continuidade à dominação por parte de uma classe social, sendo até mesmo a
definição corrente de literatura, ponto que afirma a colocação do autor: a concepção de
literatura amplamente disseminada não abriga no seu sistema os contos, mitos, lendas e
outras manifestações folclóricas, por essas produções não serem institucionalizadas. Na
atualidade, porém, assistimos a uma espécie de democratização do sistema literário que
passa a abraçar em sua definição tanto as representações populares, quanto às obras
destinadas ao público jovem. Colomer afirma que com a atual abordagem da literatura
infantil procura levantar as características do gênero:
Os esforços se centraram então, mais do que em procurar marcas literárias, em
definir traços específicos da literatura para crianças e em julgar as obras pelo seu
êxito no uso das convenções do gênero. Muitos autores se aplicaram em
estabelecer estas características próprias em listas que incluíam estes traços,
como por exemplo o protagonismo de crianças e jovens, a flexibilidade especial
das possibilidades dos acontecimentos narrados, determinados elementos
recorrentes nas tramas (a prova, a viagem através do tempo, golpes de sorte e
formas distintas de iniciação à idade adulta), etc. Nesta visão se entende que a
imaturidade lingüística, emocional e intelectual dos receptores determina,
76
KOTHE, R. F. Literatura e sistemas intersemióticos. . o Paulo: Cortez/Autores Associados, 1981. P. 51
63
precisamente, as limitações inerentes ao gênero, e passou-se a assinalar,
repetidamente, que qualquer gênero literário tem limitações e que a literatura
infantil e juvenil não é uma exceção.
77
A polêmica gerada pela suposta limitação da literatura infantil foi aos poucos se
dissipando, e hoje, se observa uma visão mais positiva da crítica em relação a essa
produção. A teoria literária evoluiu desde os estudos estruturalistas, para a teoria da
recepção e da pragmática literária, que inclui no circuito de análise a figura do leitor, o
contexto social da produção e uso da literatura e é nessa perspectiva que o presente estudo
investigativo procura se inserir, através de uma análise posterior de obras contemporâneas
da literatura infantil, no sentido de observar quais os elementos folclóricos estão presentes
nas mesmas, bem como uma investigação acerca do processo de criação literária dos
autores e, posteriormente, a recepção dessas obras por parte do público leitor.
A teoria literária passa a admitir a literatura relacionada aos fatores contextuais.
Dessa forma, a análise literária ultrapassa os aspectos inerentes à obra (aspectos puramente
estruturais), surgindo, assim, o que alguns teóricos chamam de “semiótica da cultura”,
concebendo-se cultura como um mecanismo estruturador da forma de ver o mundo. Neste
sentido, o texto literário possuiu uma codificação plural, abrangendo o uso dos códigos da
língua, das normas literárias, e dos códigos artísticos e ideológicos. A literatura em
contexto não é um reflexo mimético da realidade, mas sim um sistema, cuja função é a de
construção do conhecimento, e, conseqüentemente, de criação do mundo. Dentro da
perspectiva da literatura em contexto, ela é concebida como um ato comunicativo, com um
uso específico da linguagem, no qual estão envolvidos, no mínimo, autores e receptores. A
literatura é um sistema literário e a literatura infantil é uma parte do sistema literário (autor,
texto, receptor, relações de produção, difusão).
77
COLOMER, op. cit.,p. 51.
64
1.7 Relação entre literatura infantil e o folclore
Na contemporaneidade, os estudos acerca da literatura infantil, de autoras como
Teresa Colomer e Nelly Novaes Coelho, são unânimes ao apontar o profundo vínculo entre
o folclore e a gênese da literatura infantil, de forma mais específica, através da utilização
dos contos maravilhosos e dos contos de fadas como substratos das novas obras. É evidente
que muitos outros elementos folclóricos enriquecem as produções da literatura infantil, mas
é nas formas narrativas que essa relação se torna mais presente. No século XVIII, quando o
sentimento moderno da infância estava completamente consolidado, a escolarização
compulsória era uma realidade e os muitos planos de alfabetização buscavam o melhor
material textual para seus fins, muitas coletâneas de contos tradicionais vieram a toda, e o
marco inicial desse trabalho foram os livros de Charles Perrault: Histórias ou contos do
tempo passado, com suas moralidades e Contos da minha mãe Gansa. A mãe Gansa era
uma personagem dos contos populares franceses, cuja função era a de contar histórias para
os filhotes e é através dessa personagem que Perrault lança o primeiro núcleo do cânone da
literatura infantil. Nessa coletânea estão presentes: A Bela adormecida no bosque,
Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, O Gato de Botas, As fadas, A Gata Borralheira,
Henrique do Topete e o Pequeno Polegar.
No momento de elaboração desses contos, no âmbito da cultura popular, eles não
eram endereçados às crianças em especial, mas, sim, surgiam do povo, para o povo, e,
dessa forma, eram ricos em características angustiadas, desesperadas e perversas, próprias
da vivência do camponês miserável da época feudal. Quando foram adaptados para servir à
infância sofreram inúmeras modificações para que se encaixassem aos princípios da
moralidade cristã e das necessidades pedagógicas. De qualquer modo, a sua essência mítica
e angustiada permanece em muitas narrativas. Para Colomer, a destinação dos produtos da
cultura popular para as crianças propiciou a permanência desse patrimônio cultural:
Embora a literatura de tradição oral não fosse dirigida especialmente a crianças
no momento de sua criação e difusão, é certo que, desde o início de sua fixação
escrita, houve uma vontade explícita de apelar a estes ouvintes. As obras de
Perrault e Grimm são exemplos evidentes disso, de maneira que a bibliografia
65
histórica de obras infantis inclui sempre uma grande parte do material folclórico.
Por outro lado, faz muito tempo que a literatura de tradição oral perdeu sua
caracterização de uma cultura. Foi, precisamente, seu extravasamento para uma
nova audiência, a constituída agora pela infância, que lhe permitiu manter sua
presença no imaginário coletivo das sociedades contemporâneas. Pode afirmar-
se, pois, que o folclore como forma literária viva está enraizado essencialmente
na literatura infantil e é parte da descrição deste fenômeno.
78
Ainda segundo Colomer, muitos estudos históricos estabeleceram uma clara
vinculação entre folclore e literatura infantil, sendo que três áreas do conhecimento
ajudaram a elucidar essa relação: a teoria literária, a antropologia e a psicologia. Os
conceitos elaborados nestes campos se transferiram para os estudos sobre literatura infantil
e configuraram dois tipos de pressupostos básicos sobre a contribuição do folclore à
literatura infantil. O primeiro pressuposto diz respeito ao aproveitamento folclórico na
literatura infantil sendo relacionado a uma possibilidade de transmissão da herança cultural
da coletividade, permitindo a valorização e a continuidade da identidade cultural de um
povo. O segundo pressuposto relaciona a literatura infantil de inspiração folclórica com a
contravenção, com a possibilidade de dar à criança um contato com a cultura da “classe
popular”, no sentido de perceber as relações de poder. Sobre esse aspecto a autora afirma
que:
A herança do folclore é vista como uma aprendizagem de enraizamento histórico
a partir do conhecimento das formas culturais antigas. Este último postulado
parte da avaliação do folclore como “cultura do povo”, avaliação herdada do
romantismo e reformulada mais modernamente em um novo sentido de cultura
das “classes populares”. A partir desta posição defendeu-se a capacidade de
subversão social desta literatura considerou-se tão necessária para a educação
das crianças, como propiciavam os ares da contracultura que se respiravam
quando de sua formulação da década de setenta.
79
Ainda sobre a influência das narrativas folclóricas sobre a produção da literatura
infantil, cabe ressaltar também algumas considerações de Walter Benjamin
80
a esse
respeito. O autor enfatiza que a experiência interpessoal é a fonte a qual recorrem todos os
78
COLOMER, op.cit., p. 55
79
COLOMER, op.cit.,.p. 58
80
BENJAMIN, W. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, W. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.23
66
narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que mais se assemelham às
histórias contadas oralmente.
Os bons narradores, conforme o conhecimento popular, são os homens que viajam
muito, e, por isso, possuem muitas histórias para contar, e aqueles que ganharam a sua vida
honestamente, ao longo dos anos no mesmo lugar. Conforme Benjamim, pode-se
concretizar esses dois grupos através de duas figuras arcaicas: do camponês sedentário e do
marinheiro comerciante. Todavia, “se os camponeses e os marujos foram os primeiros
mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo
associava-se o saber das terras distantes, trazido para casa pelos imigrantes, com o saber do
passado, recolhido pelo trabalhador sedentário.”
81
Conforme o autor, a natureza da
verdadeira narrativa é possuir uma sabedoria específica que está desaparecendo:
De qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se
“dar conselhos” parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão
deixando de ser comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos
nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma
pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está
sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a
história (sem contar que um homem é receptivo a um conselho na medida em
que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância viva da existência
tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria
o lado épico da verdade – está em extinção.
82
Este desaparecimento da narrativa está ligado, segundo o autor, a um sintoma de
decadência, ou a uma característica moderna. Nesse sentido, informa que a arte da narrativa
está se tornando, hoje, extremamente rara e que a difusão da informação é o fator que de
forma decisiva tornou-se responsável por esse declínio. A narrativa, ao contrário da
informação, é uma “forma artesanal” de comunicação relacionada à imaginação e à
criatividade, não estando interessada em transmitir um relatório de acontecimentos.
81
Ibid., p. 199
82
BENJAMIN, op.cit., p. 200, 201.
67
Para Luís da Câmara Cascudo
83
, entre todos os materiais de estudo, as narrativas na
forma de contos populares são o mais amplo e expressivo. Eles revelam informação
histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social, constituindo-se em um documento vivo,
representando costumes, idéias, mentalidades, julgamentos. Segundo Cascudo, as
características do conto popular são: antigüidade, anonimato, divulgação e persistência. A
respeito de sua antigüidade, pode-se dizer que é percebida através de detalhes de ambiente,
armas, frases, hábitos desaparecidos. “Raro é o conto que menciona armas de fogo. Falam
sempre de carruagem, espada, transporte a cavalo, reclusão feminina, autoridade paterna,
absolutismo real.”
84
Anonimato, porque o relato é transmitido oralmente e assim se perde a
noção de autoria, que as narrativas passam por muitas modificações. Divulgação, porque
esses contos devem ter ampla circulação em uma determinada coletividade. Persistência,
porque eles devem ser tradicionais entre um grupo de pessoas, devem persistir ao passar do
tempo.
Os motivos dos contos folclóricos são inúmeros, mas na obra Contos Tradicionais
do Brasil
85
, de Luís da Câmara Cascudo, ele os classifica baseado em estudos de outros
folcloristas: contos de encantamento, contos de exemplo, contos de animais, facécias
(piadas, anedotas), contos religiosos, contos etiológicos, demônio logrado, contos de
adivinhação (a vitória do herói depende da solução de uma adivinhação), natureza
denunciante (ato criminoso denunciado por ramos, pedras, frutas), conto acumulativo, ciclo
da morte, tradição (não constituem história ou lenda). Além dos contos, existem outras
formas narrativas da literatura oral, como os mitos e as lendas, que exprimem a concepção
de mundo compartilhada pelos membros de uma coletividade e servem para reforçar a
identidade e, ainda, possuem qualidade estética.
Em Literatura oral no Brasil
86
, Câmara Cascudo aborda a temática da literatura
oral, destacando a sua importância e valor para o entendimento da mentalidade popular.
Aponta a existência de duas literaturas paralelas: a literatura oral e a literatura escrita, a
83
CÂMARA, L.C. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1984.
84
Ibid., p. 13
85
CÂMARA, L.C. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2000. p.12
86
CÂMARA, Cascudo Luis da. Literatura oral no Brasil. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984.
68
primeira desvalorizada e a segunda reconhecida e institucionalizada. Ele procura enfatizar a
contribuição dos três elementos na cultura brasileira: branco, negro e indígena, na
perspectiva da “participação” do índio, a “sobrevivência” negra e a “permanência”
portuguesa, chamando a atenção para a contribuição decisiva do colonizador. Para o autor,
a literatura oficial é subordinada à vaidade, busca sempre homenagens, enquanto a
literatura oral é modesta e ignorada, sendo a primeira obediente aos ritos modernos ou
antigos de escolas “expressa uma ação refletida e puramente intelectual. A sua irmã mais
velha, a outra bem velha e popular, age falando, cantando, representando, dançando no
meio do povo, nos terreiros das fazendas, nos pátios das igrejas.”
87
O preconceito em relação às expressões da cultura popular faz com que se perca boa
parte desse patrimônio formado por riquíssimas manifestações, além de excluir
representantes desse modelo de visão de mundo, como os trabalhadores rurais e da
periferia, os analfabetos e analfabetos funcionais. É importante lembrar que a literatura oral
é espontânea e por isso ela expressa a natureza do brasileiro, a sua forma de pensar e agir,
constituindo-se em um registro dinâmico de identidade cultural.
André Jolles,
88
ligado aos estudos estruturalistas, realiza uma análise “morfológica”
das formas simples, isto é, as expressões mais elementares da produção verbal que,
posteriormente, deram origem às formas literárias mais complexas. Segundo Jolles, as
formas simples são: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, conto e chiste.
Sobre o conto, o autor destaca a noção de moral ingênua, segundo a qual pode-se dizer que
existe nessa estrutura uma noção de continuidade em que os acontecimentos e o curso das
coisas obedecem a uma ordem tal que satisfazem completamente as exigências de uma
determinada moral, postulando que os personagens serão “bons” e “justos” segundo um
juízo sentimental absoluto. Portanto, a ação do herói não segue regras pré-estabelecidas por
leis escritas ou códigos vigentes na realidade, simplesmente o que corresponde ao seu
desejo é o mais correto a ser feito.
87
Ibid., p. 27
88
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
69
A ação localiza-se sempre “num país distante, longe, muito longe daqui”, passa-se
“há muito, muito tempo’, ou então o lugar é em toda e nenhuma parte, a época sempre e
nunca. A indeterminação temporal e espacial permite a fácil identificação com as
personagens, de modo que os sentimentos experimentados por elas e as realizações
alcançadas poderiam estar relacionados a qualquer indivíduo. Para Jolles, os personagens
dos contos, enquanto formas simples, não são realmente atuantes, mas, sim, condições para
que o acontecimento ético se realize, seguindo a noção da moral ingênua”:
Monstros, espíritos malignos, ogros e bruxas encarnam a direção trágica; graças
aos seus poderes mágicos, as boas fadas e tudo o que a elas se associa são o meio
mais seguro de escapar à realidade. Todos esses seres são maravilhosos, nenhum
deles é, na verdade, um personagem atuante; são todos os executores do
acontecimento ético que uma das duas espécies pode impedir, enquanto que a outra
orienta na direção do nosso julgamento sentimental.
89
Do ponto de vista estrutural, o conto é univalente, contém um drama, um
conflito, uma unidade, mas inúmeras funções. De forma que, no conto tradicional, a
narrativa articula-se rumo ao desfecho tão coerente com o todo da fabulação, que o
desenlace final se determina desde o começo. Entre os contos da literatura folclórica
destaca-se o conto maravilhoso
90
. Segundo Vladimir Propp: “Podemos chamar de conto
maravilhoso, do ponto de vista morfológico, a qualquer desenrolar de ação que parte de
uma mal feitoria ou de uma falta (...), e que passa por funções intermediárias para ir acabar
em casamento (...) ou em outras funções utilizadas como desfecho.”
91
Propp investigou a estrutura do conto a partir do estudo da forma, para isso ele
analisou um corpus de 100 contos populares russos e conclui que o desenrolar das histórias
coincidiam em muitos aspectos, porém, variando nos motivos. Ao final de seu estudo, o
teórico apresentou na obra A morfologia do conto os resultados da investigação, entre os
89
JOLLES, op.cit., p. 203
90
Existe uma confusão entre a definição de conto maravilhoso e contos de fadas. Muitos classificam
erroneamente os dois tipos. De acordo com Nelly Novaes Coelho (2000) o conto de fadas é de origem
espiritual/ética/existencial. Originou-se entre os celtas, com heróis e heroínas, cujas aventuras estavam
ligadas ao sobrenatural e visavam à realização interior do ser humano, girando em torno da temática do
relacionamento homem/mulher, com a presença ou não de fadas.
91
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. p. 144
.
70
quais encontra-se um esquema do conto folclórico em 31 funções que se seguem
cronologicamente e sete personagens (Agressor, Doador, Auxiliar, Princesa e seu Pai,
Mandante, Herói e Falso Herói). Nem todas as funções e personagens estarão presentes no
mesmo conto, mas a ordem cronológica das funções é comumente respeitada. As funções
92
seguem o seguinte esquema:
0-a Situação inicial: apresenta o herói destacando suas características, nascimento,
dons e qualidades. Pode estar presente a composição da família. Faz menção a profecias e
relata um tempo e lugar indefinido, como Era uma vez.
1-b Ausência: o herói perde um dos membros da família, que se ausenta por razão
de uma viagem, morte, guerra, visita, ou outro motivo, gerando uma situação de possível
perigo para o protagonista.
2-c Interdição: uma ordem, súplica ou conselho é dirigido ao herói, procurando
protegê-lo do mal. Pode estar presente também uma prescrição, como, por exemplo, ir para
a floresta.
3-d Transgressão: o herói não viola a interdição e abre caminho para a presença do
agressor. No caso de seguir a prescrição, essa o levará ao mesmo destino: o encontro com o
agressor.
4-e Interpelação: o agressor investiga a tima, procurando informações sobre ela
ou a respeito de algum objeto precioso que ela carrega.
5-f Informação: a informação é obtida.
6-g Logro: o agressor tenta enganar a vítima.
7-h Cumplicidade: a vítima se deixa enganar.
92
PORTELLA, E. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979. p. 132.
71
Até a função 7-h acontece uma preparação para a ação, que apenas começará a se
desenrolar a partir da função 8-A.
8-A Dano e/ou carência: o agressor prejudica um dos membros da família através
das mais variadas possibilidades: rapto, roubo, assassinato, transformação mágica,
substituição, ameaça de canibalismo, extorsão. Algumas narrativas, entretanto, podem
iniciar com alguma carência, que faz com que o protagonista procure resolver essa falta
determinada.
9-B Mediação: o dano ou a carência é reconhecido e existe um apelo para que o
protagonista restabeleça o equilíbrio, ou permissão para que ele parta. Nesse momento o
personagem passa a ser caracterizado como herói-agente ou herói-vítima, quando seu papel
é passivo.
10-C Empresa reparadora: o herói agente sai em missão para solucionar a carência
ou recuperar um objeto perdido.
11- Partida do herói. As funções ABC são o da trama que motiva o
desenvolvimento da ação.
12-D Primeira função do doador: o herói é submetido a provas por um novo
personagem, o doador, que geralmente encontra por acaso.
13-E Reação do herói: o herói pode reagir diante do doador positivamente ou
negativamente. Quando satisfaz as exigências da prova, recebe o “objeto mágico”, quando
não satisfaz pode ser reconhecido como um falso-herói ou haverá novas provas.
14-F Transmissão: realiza-se o dom do auxiliar mágico, que poder ser um animal
ou objeto ou, ainda, qualidades extraordinárias que o herói passa a possuir.
72
15-G Deslocamento espacial: o herói é transportado para o local onde se encontra o
objeto de sua busca.
16-H Luta: acontece o confronto entre o herói e o agressor.
17-I Marca: o herói recebe um sinal em seu corpo ou um signo exterior, como uma
anel ou lenço.
18-J Vitória: o agressor é vencido pelo herói.
19-k Reparação do dano ou carência: termina a ação do herói, sua missão está
cumprida.
20- Volta: O herói volta ao local de partida.
21-Pr Perseguição: o herói é perseguido em seu trajeto.
22- Rs Socorro: o herói consegue escapar de seus perseguidores com a ajuda de um
auxiliar mágico, de sua astúcia ou alguma interferência providencial.
23-O Chegada incógnito: o herói retorna sem se dar a conhecer.
24-L Impostura: um falso herói pretende receber os louros pela façanha realizada.
25-M Tarefa difícil: uma tarefa difícil é proposta.
26-N Realização da tarefa: somente o verdadeiro herói consegue realizar a tarefa
proposta.
27-Q Reconhecimento: o herói é reconhecido garças a marca que carrega (função
17), e porque obteve êxito em sua tarefa.
73
28-Ex Descoberta: o falso herói ou agressor é desmascarado.
29-T Transfiguração: o herói recebe uma nova e nobre aparência ou riqueza.
30-U Castigo: o falso herói ou agressor é punido.
31-W Casamento: o herói se casa ou recebe o trono, ou, ainda, recebe uma valiosa
retribuição.
O conto, além de seus aspectos estruturais, é de extrema importância como
expressão da psicologia coletiva no quadro da literatura oral de um país. As suas diversas
modalidades, os processos de transmissão, adaptação, narração, os auxílios da mímica,
entonação, o vel intelectual do auditório, sua recepção, reação e projeção, determinam o
valor supremo como um dos mais expressivos índices intelectuais populares. O conto ainda
documenta a sobrevivência, o registro de usos, costumes e fórmulas jurídicas esquecidas no
tempo.
74
2. O QUE É, O QUE É? ADIVINHE SE PUDER – A PESQUISA
Após o primeiro momento da pesquisa, de cunho bibliográfico, através do qual
buscaram-se definições de cultura popular, folclore, literatura infantil e os elos entre essas
manifestações, registram-se, neste capítulo, as investigações acerca dos elementos
folclóricos presentes nas obras de literatura infantil e o modo como o leitor em formação se
apropria desses elementos.
Para facilitar a investigação foram formuladas algumas questões para nortearem as
ações da pesquisa: Quais são os elementos folclóricos utilizados pelos escritores de
literatura infantil em suas obras? As narrativas desses autores são criadas a partir da
estrutura dos contos tradicionais? De que forma o leitor em formação se apropria desses
elementos?
No intuito de alcançar o objetivo proposto e de responder às questões norteadoras,
analisaram-se nove textos literários: O Armazém do folclore, No meio da noite escura tem
um de maravilha, Meu livro de folclore de Ricardo Azevedo; A festa no céu, Sete
histórias para chacoalhar o esqueleto, Tampinha, de Ângela Lago; História de Trancoso,
Dudu Calunga, Botija de Ouro, de Joel Rufino dos Santos.
Com a finalidade de investigar a fase de criação dos livros de inspiração folclórica
desses autores através de entrevistas estruturadas, respondidas por e-mail.
Na seqüência analisaram-se as entrevistas realizadas com 14 alunos, meninos e
meninas, entre 9 e 12 anos, leitores das obras selecionadas, para se investigar a influência
dos elementos folclóricos em sua formação enquanto leitores de textos literários.
75
2.1 Análise das obras
Nessa etapa procurou-se observar a presença de elementos folclóricos nos livros
selecionados de acordo com as seguintes categorias: temas populares, marcas de oralidade
(vocabulário popular, repetições, ordem direta das frases, períodos curtos), personagens
folclóricos, narrativas estruturadas conforme os contos tradicionais, a partir de
aproximações com a proposta de Propp, explicitada em 31 funções.
Buscando um maior entendimento das categorias acima mencionadas, explicitam-se
os seguintes aspectos:
- a busca do autoconhecimento, com o protagonista avaliando sentimentos e
desejos;
- ações que acontecem em lugares distantes e exóticos, com nomes próprios que se
auto-explicam;
- busca pessoal do prazer e da felicidade de acordo com a moral ingênua descrita
por André Jolles.
- renovação periódica do mundo, descrita por Mikhail Bakthin, representada por
indicativos de continuidade da vida como o casamento presente ao final de tantas histórias;
- metamorfoses do herói e de outros personagens;
- o poder oficial representado por reis e outras autoridades;
- fórmulas de desfecho presentes ao final das narrativas;
- elementos humorísticos e grotescos, próprios da cultura do riso em oposição à
cultura oficial, séria e abstrata; princípio de bridolage, conforme Bakthin
93
.
2.1.1 Ricardo Azevedo
A obra Meu livro de folclore
94
, de Ricardo Azevedo é um compêndio de formas
literárias populares, como contos, frases feitas, adivinhas, parlendas, acompanhadas de
ilustrações de traços simples, lembrando figuras da arte naïf
95
ou xilogravuras
96
.
93
BAKTHIN, op. cit., p. 17
94
AZEVEDO, R. Meu livro de folclore. São Paulo: Ática, 2002.
76
Ao final do livro, encontra-se uma nota do autor explicando o seu objetivo e a
origem do material selecionado: “Compor um minúsculo painel mostrando, pelo menos um
pouco, a poesia, o encanto, o mistério, a sabedoria, a malícia e a alegria de um dos
inúmeros aspectos do folclore: a“literatura popular”. O texto apresenta, também,
expectativas em relação ao leitor: “Espero que o livro funcione como uma espécie de
introdução. Tomara que com ele nas mãos, o leitor possa, de repente, tomar consciência do
tesouro que é a cultura popular”. Quanto à origem, o autor citou nomes como: Luís da
Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Lindolfo Gomes, Aluísio Almeida, Veríssimo de Melo,
entre outros. As frases feitas foram recolhidas pelo próprio autor durante conversas com
moradores de diferentes regiões do Brasil.
A respeito desta nota é importante salientar que a palavra literatura é apresentada
entre aspas, quando relacionada às expressões populares, revelando que o autor não as
considera como pertencentes a essa categoria, todavia, durante uma exposição na 11ª
Jornada Nacional de Literatura
97
, durante uma mesa redonda, cujo tema era a relação entre
o universo popular e a música. Ricardo Azevedo já se refere aos contos tradicionais,
parlendas, quadras populares, como literatura popular, sem restrições.
Meu livro de folclore possui quatro versões de contos tradicionais: Sapo com medo
d´água, Os três namorados da princesa, Gaspar, eu caio! , O macaco e a velha. O primeiro
conto é bastante sucinto. Dois homens, fugidos da prisão, encontraram um sapo na beira da
lagoa e decidem maltratá-lo. O animal, muito esperto, usou a seguinte estratégia para
95
O adjetivo naïf é o mais empregado para o gênero de pintura chamado também de ingênuo e às vezes
primitiva (no Brasil). Os pintores naïfs, em geral, são autodidatas e sua pintura não é ligada a nenhuma escola
ou tendência
.
96
As xilogravuras são ilustrações que acompanham os cordéis no Norte e Nordeste do Brasil. A partir da
década de trinta, surgiram os primeiros folhetos trazendo retratos de Padre Cícero, Lampião e outros tantos
motivos. Nas xilogravuras ou "tacos", como ainda hoje preferem chamar os artistas populares, são usadas
madeiras leves, como umburana, pinho, cedro, cajá. A arte de gravar em madeira é de provável origem
chinesa, sendo conhecida desde o século VI. No Ocidente, ela já se afirma durante a Idade Média, através
das iluminuras e confecções de baralhos.
97
Edição do evento realizada de 22 a 26 de agosto, de 2005 em Passo Fundo.
77
escapar dos malfeitores: toda vez que eles mencionavam alguma crueldade, como por
exemplo, “Vamos jogar no formigueiro?O sapo permanecia tranqüilo. Porém, quando um
deles sugeriu: “Vamos afogar o desgraçado na lagoa? O animal começou a gritar
desesperado. Os bandidos, pensando estar fazendo a maior das maldades, jogaram-no na
lagoa, e o sapo foi embora nadando e cantando. Neste pequeno conto pode-se observar
algumas características do universo literário popular, como, por exemplo, o personagem
antropomorfizado: o sapo possui características humanas, fala, canta, assobia, finge. Ele
representa os mais fracos, que vencem pela astúcia, tema recorrente no folclore. No Brasil,
o personagem ícone dos fracos astutos é Pedro Malasartes, que sempre vence os obstáculos
através da esperteza e do bom-humor. Nesta história também está representada a crueldade
humana: os bandidos sem nenhum motivo decidem maltratar o animal, sugerindo diversas
formas de fazê-lo sofrer:
“Vamos jogar no formigueiro?
“Pega a faca. Vamos picar ele todinho.”
“Sobe na árvore e atira ele lá do alto.”
“Pega um fósforo e acende uma fogueira.
Vamos fazer churrasco de sapo!”
98
Quanto ao vocabulário, constata-se que os termos são familiares e existem ao longo
do texto expressões populares como: “É feio que dói” e “não estava nem ligando”. A
história é concisa e objetiva, as frases são curtas com o predomínio de orações coordenadas.
O primeiro conto da obra não pode ser caracterizado como um conto maravilhoso,
conforme as proposições de Vladimir Propp, porém a narrativa pode ser classificada como
uma facécia ou anedota, pequeno relato jocoso, de acordo com Luís da Câmara Cascudo
99
.
Outras categorias estabelecidas para a análise também não foram encontradas no conto
como: a busca do autoconhecimento do personagem protagonista, ações que acontecem em
locais distantes e exóticos, fórmulas de desfecho ao final da narrativa.
O segundo conto, Os três namorados da princesa, é contextualizado em um
ambiente próprio dos contos de encantamento ocidentais. Uma princesa que não conseguia
98
AZEVEDO, op.cit.,p. 4.
99
CÂMARA, L.C. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2000.
78
escolher entre três galantes pretendentes, lança o desafio: “Casarei com aquele que me
trouxer o presente mais raro”. O príncipe que era alto e louro, conseguiu em um reino
distante um tapete voador, elemento que faz referência aos contos orientais. O segundo
príncipe, moreno e sorridente, encontrou um espelho mágico que conseguia enxergar as
pessoas que estavam longe. O terceiro príncipe, que era pequeno, com um par de olhos
brilhantes, encontrou uma maçã mágica a qual, com seu perfume, fazia os mortos voltarem
à vida. No dia marcado, os três encontraram-se e todos acreditavam que possuíam o melhor
presente.
Como estavam com saudades, resolveram pegar o espelho e espiar. Descobriram
que a princesa havia morrido. Os três montaram no tapete gico e voaram para casa. O
príncipe pequeno pegou a maçã e colocou embaixo do nariz da moça que ressuscitou. Os
três haviam conseguido presentes maravilhosos, que salvaram a vida da princesa, por isso
ela concluiu que não deveria casar com nenhum dos três, mas que ficariam sempre juntos
como os maiores amigos que já existiram.
Algumas funções apresentadas por Propp, como constituintes do conto maravilhoso
podem ser observadas nesta narrativa. A história inicia em um tempo/espaço não definido e
com a descrição do herói (função 0-a). A estrutura tradicional: “Era uma vez” abre a
narrativa, porém, o conto não termina com: “E viveram felizes para sempre”. Ao invés de
uma festa de casamento, comum na maioria dos contos populares (função 31-W), em Os
três namorados da princesa acontece uma grande festa para selar a amizade dos quatro,
que a princesa não achou justo escolher entre os três pretendentes. Essa escolha está
relacionada à moral ingênua
100
, segundo a qual é justo aquilo que corresponde ao juízo
sentimental absoluto, aos desejos pessoais do herói.
Os três personagens são heróis que se lançam em uma jornada por lugares distantes
e precisam enfrentar obstáculos e desafios, motivo presente nas narrativas desde os mitos
da Antigüidade e ação que corresponde à Empresa reparadora: o herói agente sai em
100
A moral ingênua é uma das características do conto popular apontadas por André Jolles na obra Formas
Simples.
79
missão para solucionar a carência ou recuperar um objeto perdido (função 10-C). O
príncipe alto e loiro “atravessou as montanhas mais íngremes, enfrentou despenhadeiros,
precipícios”. O príncipe moreno e sorridente “pegou um navio, navegou oceanos, enfrentou
as ondas e tempestades do mar”. O príncipe pequeno, com um par de olhos brilhantes,
“atravessou as florestas mais inóspitas, enfrentou feras e povos selvagens”.
A princesa, um dos sete personagens citados por Propp, é descrita através de
comparações com os elementos da natureza: “Era uma vez uma princesa mais linda do que
as flores, os raios do sol e as pedras preciosas.”Os príncipes estão perdidamente
apaixonados e desejam se casar com ela, o que remete ao ciclo da vida, o indivíduo nasce,
cresce, reproduz e morre, e tudo sempre se renova na sociedade da vida, por isso muitos
contos terminam com o casamento
101
, apontando para a perpetuação da vida.
O poder oficial, representado pela figura do rei, nesse caso, pode ser considerado
flexível porque, apesar de sua posição, o rei permite que a princesa decida com quem irá
casar, e, ao final, quando ela conclui que não deve casar com nenhum dos pretendentes, ele
aceita a sua determinação. Observa-se ainda a presença dos auxiliares: tapete, maçã e o
espelho, que permitem que os heróis cumpram a sua tarefa, de acordo com a transmissão:
realiza-se o dom do auxiliar mágico (função 14-F).
O autor manteve a mesma linguagem do conto Sapo com medo água, concisa,
objetiva, com expressões populares, porém foram acrescentados alguns termos próprios da
linguagem erudita como, “inóspita”e “íngremes”.
Gaspar, eu caio! É o terceiro conto que trata da história de um viajante que entra
em uma cabana abandonada para escapar da chuva, estando com fome, decide fazer um
assado. Enquanto ele deita no chão, esperando a comida ficar pronta, escuta um barulho no
teto da cabana e uma voz dizendo: “Gaspar!”. O viajante pergunta: “Quem está aí?” E a
mesma voz responde inúmeras vezes: “Gaspar...Eu caio”. Quando o viajante responde:
101
A última função apontada pelo estudo de Vladimir Propp em Morfologia do conto maravilhoso é o
casamento.
80
“Pois caia!” Caem do telhado partes de um esqueleto que vai se formando no chão. O
esqueleto começa a sacudir e solta um cuspe escuro na carne que estava assando. O
viajante, com muita raiva, parte para cima dele e os dois passam a noite lutando. O homem
vence a briga e o esqueleto cava um buraco no pátio da cabana encontrando um pote cheio
de ouro, e depois, desaparece no ar.
Esta narrativa não faz parte do ciclo dos contos maravilhosos ocidentais, não possui
os personagens e funções de Propp, porém apresenta elementos grotescos e ridículos, os
quais Bakthin observou nas expressões populares da Idade Média e do Renascimento. O
grotesco, nesse sentido, está relacionado à morte e aos humores do corpo: “O corpo
descarnado fica zangado. Pára a dança, agacha e, cuidadoso, enfia o crânio no pescoço.
Depois, lambuza a carne que assa no fogo com seu cuspe escuro.”
102
Nesse conto, a barreira entre a vida e a morte é flexível, uma vez que o esqueleto
pode interagir com o viajante, até mesmo violentamente. A morte sempre foi um tema
recorrente e angustiante para a humanidade, todas as áreas do conhecimento de alguma
forma tecem considerações a esse respeito. Na cultura popular, a simbologia, crenças e
costumes relacionados a ela são vastos, como por exemplo, as formas como o povo se
refere a morte indiretamente: “abotoar o paletó, vestir pijama de madeira, ir para a terra dos
pés juntos, empacotar, desocupar a moita”, entre outras. Em Gaspar, eu caio! O autor
refere-se ao estranho personagem como o esqueleto, o corpo descarnado, o morto e a
caveira. Ao final da narrativa, o viajante recebe uma recompensa, um tesouro que estava
enterrado no pátio da cabana.
Neste conto percebem-se fortes traços da oralidade: termos e expressões como,
“enfia”, “pau de matar cobra”, “rolam atracados”, “vara a noite”, “vivalma”, “cavuca ele
mesmo”. As frases curtas se constituem em uma gradação de informações que dão ao conto
um ritmo angustiante, completando o suspense da história: “Noite escura no mato. Estrada
102
AZEVEDO, R. Meu livro de folclore. São Paulo: Ática, 2002. p. 37
81
de terra sem vivalma. O vento gemendo pelos galhos e as nuvens passando nervosas,
querendo chover.”
103
No último conto, O macaco e a velha, uma senhora morava em uma casa com um
pátio cheio de bananeiras. Na porta de sua cozinha ficava a escada para pegar banana. A
escada quebrou e as bananas estavam maduras. Um macaco estava passando e a velha o
chamou para ajudar a catar as bananas. O macaco trepou nas árvores, mas ao invés de jogar
as bananas para a velha, ele comia todas. Com muita raiva, a velha mandou fazer uma
boneca grudenta de cera. Colocou-a na frente de casa junto com uma cesta cheia de
bananas. Quando o macaco viu, foi logo dizendo: “Ô, Caterina! Quero banana...” Como ele
pediu várias vezes e a boneca não se mexia, deu um tapa, beliscão e chute, acabando por
ficar preso nela.
A velha levou o macaco para dentro e mandou cozinhar para comer o coitado na
janta. Em todas as etapas do preparo, o macaco cantava uma música modificada conforme a
ação da cozinheira: “me esfola devagar”, “me tempera devagar”, “me assa devagar”,
“mastiga devagar”. A velha comeu tudo. Em seguida, começou a sentir uma dor de barriga
terrível e o macaco de dentro começou a pedir: “Quero sair”. A velha respondeu: “Sai pelas
orelhas”. E o macaco: “Não posso, que tem cera”. A velha sugeriu ainda que ele saísse pelo
nariz e pela boca, mas ele não aceitou por causa da gosma e do cuspe. De repente, a velha
estufou, estufou e estufou, soltou gazes e de dentro dela saiu o macaco, e vários
macaquinhos tocando viola e cantando.
Esse conto é o que melhor revela o grotesco descrito por Bakthin, em A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento. Nesta narrativa, as secreções do corpo são
citadas sem pudor: gosma, cuspe, cera. A personagem a que todos este aspectos fisiológicos
são relacionados, é uma velha, o que reforça as características grotescas da narrativa. A
esperteza é representada pela figura do macaco que, ao ser convidado para ajudar a colher
as bananas, come as melhores sozinho, e mesmo depois de ser engolido, consegue escapar.
103
AZEVEDO,op. cit., p. 33
82
Quanto à linguagem, a musicalidade é o aspecto que se sobressai através das quadrinhas
cantadas pelo macaco:
“Me mata devagar
Que dói, dói, dói
Eu também tenho filhos
Que dói, dói, dói”
104
Por não se tratar de um conto maravilhoso, não se observa em O macaco e a velha
categorias como o protagonista herói, que busca se conhecer melhor, avaliando seus
sentimentos, poder oficial representado por reis e rainha, príncipes, princesas.
A obra de Ricardo Azevedo traz, também, um bestiário com texto descritivo e
ilustrações de personagens folclóricos como: o Lobisomem, a Mãozinha-preta, o Curupira,
entre outros. Os textos são simples e curtos: Filho que nasce depois de sete filhas vira
lobisomem. Aparece de noite nas encruzilhadas e cemitérios. Às vezes ataca, mordendo as
pessoas. Uiva para a lua e aprecia comer cocô de galinha.
105
O livro Armazém do folclore
106
é uma continuidade do trabalho que o autor Ricardo
Azevedo desenvolveu nos seus livros anteriores, Histórias folclóricas de medo e de
quebranto e Meu livro de folclore, levando ao leitor um variado painel da cultura popular.
Compõem a obra seis contos com a presença de frases feitas, personagens folclóricos, como
a bruxa e bicho-papão, trava-línguas, adivinhas, quadras populares.
No primeiro conto, A princesa que se perdeu na floresta, já no título se encontra
uma presença própria das narrativas populares: a princesa, figura feminina idealizada,
descrita através de comparações com elementos da natureza: “Sua filha era mais linda do
que as pedras preciosas e as estrelas mais brilhantes do céu.”
107
Apesar de ser uma
personagem feminina, ela possui atributos de um herói mitológico, é corajosa e destemida:
“Desdenhava dos perigos. Nadava nas lagoas escuras. Gostava de arriscar-se pelas estradas,
104
AZEVEDO, op. cit. p. 63
105
Ibid., 53
106
AZEVEDO, R. Armazém do folclore. São Paulo: Ática, 2000.
107
Ibid., 9
83
saltando barrancos e cercas com seu cavalo alazão.”
108
A narrativa inicia com a descrição
do herói e suas características (função 0-a). No conto de Azevedo, as personagens herói e
princesa coincidem.
Quando a princesa estava participando de uma caçada, perdeu-se na floresta,
adormeceu, enquanto isso, um príncipe de um reino vizinho a encontrou. Antes que ela
acordasse, ele retirou uma de suas luvas brancas e correu para o castelo para buscar uma
carruagem para levá-la, porém, ao retornar, não a encontrou mais. Assim a heroína está
sozinha na floresta, realizando a Interdição: uma ordem, súplica ou conselho é dirigido ao
herói, procurando protegê-lo do mal. Pode estar presente uma prescrição, por exemplo, ir
para a floresta (função 2-c).
A princesa chega a um país distante, veste roupas humildes e se emprega no palácio
como acompanhante da princesa louca. Ela descobre o motivo da doença da moça: no meio
da floresta, dois cães negros mexem um caldeirão, enquanto um homem recita:
“Gira que gira enquanto girar
A doce princesa não pode pensar
Mexe que mexe que enquanto mexer
A doce princesa vai enlouquecer”
109
Ao se deparar com o primeiro desafio, a princesa usa a coragem e a esperteza para
salvar a moça doente. Para distrair a jovem, ela tenta ensinar-lhe a jogar cartas, mas, no
momento das lições, as luzes do castelo se apagam. Ela segue um clarão que vem da
floresta, onde encontra os cães e o homem, que estão provocando a doença da princesa. A
descoberta da doença é um obstáculo que o herói precisa vencer. Existe um apelo para que
o protagonista restabeleça o equilíbrio após reconhecer o dano ou a carência, caracterizando
como herói-agente ou herói-vítima (a função 9-B). A princesa é uma heroína-agente, pois
usa de sua inteligência para resolver a questão.
108
AZEVEDO, op.cit.,p. 9
109
Ibid. p. 11
84
Ela mentiu para o homem que conhecia a filha do rei daquele castelo e que ela era
muito saudável, esperta e inteligente. Ouvindo isso, ele gritou com os cães que o teriam
enganado e os jogou no caldeirão. A princesa louca voltou a ser uma jovem normal e a
princesa perdida ganhou fama pelo mundo por resolver as questões mais intrincadas. A
descrição do feitiço é semelhante aos ritos de bruxaria: “Chegando perto viu dois imensos
cachorros peludos em volta de uma fogueira, andando sobre duas patas e mexendo uma
colher, num caldeirão. Junto deles um homem mal encarado recitava.”
110
Durante a Idade
Média, época em que a Santa Inquisição enviou para a fogueira muitas pessoas acusadas de
bruxaria, essa antiga prática foi relacionada ao culto ao Demônio, por vezes representado
por um grande cachorro preto.
A heroína recebe um novo desafio e a função de Mediação se repete. Um rei
desesperado pede que ela faça com que sua filha volte a falar. Ela descobre que a causa do
encanto é novamente um cão negro, que sai de um alçapão no quarto da princesa, depois
que ela adormece, beija-a e coloca um anel em seu dedo. Depois de retirado o anel, o
encanto é desfeito.
A princesa recebe a terceira e última tarefa. Ela aceita o pedido de um rei para tentar
curar um príncipe, que um dia encontrou uma princesa na floresta e ficou perdidamente
apaixonado, mas como não conseguiu encontrá-la, adoeceu de tristeza. A princesa
reconheceu a luva, mostrou aquela que ainda levava consigo. Os dois se casam ao final, em
uma grande festa.
A festa do casamento, nesse caso, possui um sentido próximo ao das festividades
sazonais realizadas pelos camponeses medievais, porque é uma celebração relacionada à
visão cíclica do mundo, ao recomeço. Um casamento aponta para o início de uma família,
com a vinda dos futuros filhos. É a representação da ordem natural das coisas como o
grande meio para se alcançar à satisfação pessoal, correspondendo, também, à última
função de Propp (31-W).
110
Ibid.,p. 10
85
O conto A história do príncipe Luís inicia com a fórmula: “Era uma vez”. O título,
porém, apresenta um dado que não é comum nos contos tradicionais brasileiros: nome
próprio. Na antologia Contos tradicionais do Brasil, de Luís da Câmara Cascudo
111
, por
exemplo, em uma seleção de 100 contos, apenas 14 possuíam nomes próprios no título. A
situação inicial não é descrita exatamente como a primeira função do conto maravilhoso,
porque ao invés de tratar da descrição do herói, descreve o personagem do rei.
Representante do poder oficial e da nobreza, o rei era infeliz, porque não possuía
um filho homem, para quem pudesse deixar de herança o reino e o poder. A rainha a sua
posição ameaçada, já que a sua função primordial, no contexto da monarquia, é de gerar um
herdeiro e, por isso, faz um pacto com o Demônio, enquanto o rei viajava.
Durante a viagem, o rei encontra uma princesa condenada a viver na solidão no
meio da floresta, por obra de um encanto, os dois se apaixonam e desse enlace nasce o
príncipe Luís. O rei deixa para a princesa um retrato seu e um colar, ambos servirão de elo
de ligação entre eles, como acontece em A princesa que se perdeu na floresta. Ao retornar
para o palácio, o rei encontra a rainha grávida com a ajuda do Demônio, e decide nunca
mais procurar a moça da floresta. A rainha deu a luz a um menino que se chamou Roberto.
Sem ter ninguém que a ajudasse, a princesa solitária envia o príncipe Luís para viver com
seu avô no palácio, que o recebe e cria sem que se saiba a sua origem. O herói é afastado
por súplica ou conselho, de acordo com a função interdição (2-c).
Os dois príncipes se tornam uma representação maniqueísta, Luís sendo a expressão
do bem e Roberto, a expressão do mal, conforme a descrição de ambos abaixo:
“O menino, adotado pelo rei, que era seu avô e nem sabia, recebeu o
nome de Luís e cresceu, revelando-se uma pessoa inteligente e
generosa. Tanto o monarca como a rainha, os nobres, os professores e
o povo do reino viviam encantados com ele, agora um belo moço de
quinze anos.”
“O tal menino recebeu o nome de Roberto, e foi terrível desde
pequeno. Machucou o peito da mãe na hora de mamar. Mastigou
111
CÂMARA, L.C. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2000.
86
carne crua com menos de um ano. Não sabia brincar, brigar. Não
sabia cantar, só gritar. Não sabia sorrir, só caçoar.”
112
Certo dia, o príncipe Luís foi convidado a passar alguns dias com o príncipe
Roberto. O convite foi feito para que Luís influenciasse positivamente a príncipe maldoso,
porém, ele foi tão desagradável, que os dois acabaram brigando. Roberto disse ao pai que
Luís o havia agredido e ofendido a rainha. Roberto representa o personagem agressor e age
conforme a ação dano ou carência (função 8-A), surge uma carência que faz com que o
protagonista resolva essa falta ou o agressor entra em ação atingindo membros da família
do herói, ou ele próprio. Como castigo o rei lança o seguinte desafio: “Que o rapaz partisse
em busca de seus verdadeiros pais. Se no prazo de cinco dias não descobrisse a sua
verdadeira origem, seria preso e decapitado.”
113
O rei também faz o papel de personagem
doador, função (12-D Primeira função do doador), o herói é submetido a provas por um
personagem.
O conto obedece ao tradicional motivo do herói que parte para terras distantes para
se conhecer melhor (função 10-C). No meio do caminho ele encontra uma velha decrépita
que garante poder ajudá-lo, se em troca ele se casasse com ela. Luís concorda e ela lhe
indica o caminho do castelo de sua mãe. O herói recebe a ajuda de um auxiliar mágico ou
de alguma interferência providencial (função 22-Rs).
No momento do encontro com sua mãe, ele recebe os objetos, que servem de elo
entre a princesa solitária e o rei: o retrato e o colar. De posse desses elementos, o príncipe
retorna ao palácio com a prova da sua verdadeira identidade, realizando a função
Reconhecimento (27-Q).
A rainha é castigada e Roberto é morto por Luís, transformando-se em um cachorro
preto, símbolo do demônio, na função Castigo (30-U), o falso herói ou agressor é punido.
Nesse desfecho fica clara a representação da moral ingênua, porque Luís assassina Roberto,
112
AZEVEDO, op.cit.,p. 43
113
Ibid.,p. 44
87
não de acordo com leis registradas ou universais, ele o mata apoiado no seu senso
individual de justiça, correspondente aos seus desejos.
Dois casamentos selam o final, do rei com a princesa solitária, e de Luís com a
velha decrépita, na verdade, uma bela moça enfeitiçada que, depois de ter o seu encanto
quebrado por Luís, voltou a ser jovem e bela (função 31-W).
Em O rei que ficou cego, observam-se mais uma vez as características dos contos da
tradição européia: a presença do rei, representando o poder oficial e da nobreza, cavaleiros
corajosos, desafios. O rei fica cego e descobre que a cura para o seu mal era a água da
fonte, protegida por um gigante, no país do Quem-vai-lá-não-volta, nome próprio composto
que se auto-explica. O rei envia seus três filhos em busca da cura. O primeiro a ir é o mais
velho, mas ao chegar no país, encontra um morto estendido no chão, pergunta para as
pessoas o porquê de existir um insepulto no meio da rua, e todos lhe respondem que
naquele país, quem não paga suas vidas, não pode ser enterrado. O moço deu de ombros,
entrou em uma estalagem e foi atendido por uma bela moça, esqueceu-se do seu objetivo, e
nunca mais voltou. Com o filho do meio acontece exatamente a mesma coisa. O filho mais
novo, porém, teve uma atitude diferente: ao encontrar o morto, paga suas vidas e manda
enterrá-lo. Quando entra na estalagem, encontra os irmãos, mas depois parte para a morada
do gigante.
Cada filho do rei possui um cavalo de cor diferente, o primeiro, negro, simbolizando
morte ou mau-agouro, o segundo, cinza, simbolizando sorte, escuridão, e o caçula
possui um cavalo branco, simbolizando a esperança. Em muitos contos, o irmão mais novo
ou o personagem mais frágil é aquele que possui atitudes diferentes, muita coragem e é o
único que consegue ultrapassar os desafios. O número três, em algumas culturas, significa
síntese, união ou ainda, finalização, e assim, o terceiro filho, através de suas atitudes
destemidas, consegue encontrar a cura para o pai.
A situação inicial apresenta a descrição do rei, seu problema e os filhos. Logo após
a situação inicial, acontece a Interdição (função 2-c), existe uma prescrição para que o
88
herói siga viagem. Em seguida, o irmão mais novo encontra o gigante, representando o
agressor. Inicia a ação propriamente dita, dano ou carência, que se realiza através do
desafio proposto pelo gigante (função 8-A).
O gigante desafia o irmão mais novo três vezes, antes de lhe conceder o remédio
para o rei. Primeiro o rapaz deveria seguir até o palácio de vidro e trazer de uma espada
de ouro. Para isso, ele precisou ultrapassar um rio imenso e dois exércitos. O segundo
desafio consistia em chegar ao palácio de cristal e trazer de um cavalo prateado,
ultrapassando um rio cheio de monstros e cavalos lutando. O último desafio era chegar ao
palácio de diamante e trazer a filha do gigante, atravessando um rio de fogo, leões e
serpentes. As tarefas propostas correspondem à empresa reparadora (função 10-C),
triplicada.
O príncipe conseguiu realizar estas tarefas, porque recebeu o auxílio de um
vulto vestido com um capuz. O ser misterioso também alertou o príncipe de que ele não
deveria parar na estalagem onde estavam seus irmãos. De posse da água mágica, e ainda
acompanhado da bela filha do gigante, montada em um cavalo prateado, segurando uma
espada de ouro, o príncipe não escutou o conselho e parou na estalagem. Esse núcleo da
ação corresponde à reação do herói, porque ele consegue satisfazer as exigências da prova
(função 13-E).
Corroídos pela inveja e transformados em novos agressores, os irmãos jogam o
caçula em um poço e partem para palácio. Entretanto, ninguém conseguiu abrir a garrafa
com a água, ninguém conseguiu tirar a espada da bainha, o cavalo fugiu e a moça ficou
muda de tristeza (função 24-L impostura).
Mais uma vez o vulto vem em auxílio do príncipe e, dessa vez, revela a sua
identidade: ele era o morto que o rapaz ajudou, saldando as suas dívidas e mandando
sepultá-lo. Neste momento, observa-se a ação socorro (função 22-Rs). Quando chegou no
palácio, montado no cavalo prateado, o rapaz estava tão barbudo e esfarrapado, que
ninguém o reconheceu (função 23-0 chegada incógnito), e ele pode tirar a espada da
89
bainha e só ele pode abrir o remédio e curar o rei, referências às histórias do ciclo arturiano,
nas quais o predestinado consegue tirar a espada da pedra. O príncipe se casa com a
moça que voltou a falar. O conto termina com uma fórmula de desfecho que sugere a
presença do contador da história na festa de casamento (função 31-W):
“Eu também estive lá
E trouxe até um docinho
Mas confesso minha gente
Comi tudo no caminho!”
114
Na obra Armazém do folclore, existem textos descrevendo personagens, chamados
pelo autor de monstrengos. A descrição dessas figuras é formada também de explicações ao
leitor a respeito da simbologia de cada personagem. No caso da Iara, uma espécie de sereia
de água doce, ela é relacionada aos desejos proibidos: “É que a Iara representa o desejo
proibido, a tentação. Está ligada àquelas coisas que a gente tem vontade de fazer, mas sabe
que é melhor não”.
115
As bruxas representam a maldade: “É que as bruxas, na verdade, são o mbolo da
maldade, da coisa ruim, da coisa que vem para machucar, das doenças, guerras, injustiças e
desgraças que acontecem.”
116
O bicho-papão representa o medo da escuridão, do desconhecido: “Os bichos-
papões nascem justamente daí: da noite que esconde e desorganiza tudo, do pesadelo, da
sensação de perder o controle sobre as coisas e, claro, principalmente, do medo.”
117
Nos três contos - A princesa que se perdeu na floresta, A história do príncipe Luís e
O rei que ficou cego - encontram-se características do modelo de visão do mundo popular e
dos contos da tradição ocidental. Personagens heróis necessitam enfrentar obstáculos e
inúmeras dificuldades: empreendem viagens a lugares exóticos, o que promove o seu
autoconhecimento. Está presente também a maldade humana, a existência do bem e do mal.
114
Ibid.,p.125
115
Ibid.,p.31
116
Ibid.,p.70.
117
Ibid.,p. 90
90
Os auxiliares mágicos, forças desconhecidas que ajudam os heróis em momentos críticos. A
moral ingênua, que permite aos heróis agir conforme seus desejos e interesses.
Metamorfoses e reconhecimentos do herói. Renovação periódica do mundo, através do
ritual do casamento que encerra as histórias. O poder oficial representado pelo rei.
O livro No meio da noite escura tem um de maravilha
118
é constituído por 10
contos e 1 entrevista com o autor. Foram analisados apenas três contos: Moço bonito
imundo, A mulher dourada e o menino careca, O príncipe encantado no reino da
escuridão.
Em Moço bonito imundo um jovem impulsivo e corajoso parte para explorar o
mundo. A ação de deixar o espaço de origem para aventurar-se é freqüente, e de uma forma
geral, está relacionada à simbologia do crescimento, rito de passagem, autoconhecimento.
No meio do caminho, o moço encontra o Diabo, descrito por Ricardo Azevedo de acordo
com o imaginário popular, alimentado pela tradição medieval portuguesa, com cheiro de
enxofre, alto, pálido, vestindo roupas pretas, sorriso amarelo e pés de bode. Ao longo do
texto, o autor explora os termos referentes à figura do Diabo na linguagem popular e, além
de citar diferentes nomes atribuídos a esse personagem, ele faz uso de números cabalísticos.
São treze
119
as formas de se chamar o Diabo apresentadas no texto: Satanás, Tinhoso,
Coisa-ruim, Cão, Satã, Arrenegado, Não-Sei-Que-Diga, Pé-de-Bode, Maligno, Lúcifer,
Beiçudo, Demônio, além de Diabo.
O Diabo faz uma proposta tentadora para o rapaz que está sozinho no mundo e não tem
nada a perder. O jovem aceita viver por sete anos coberto com a pele de um monstro, sem
tomar banho, em troca, toda a vez que ele precisasse de dinheiro, teria apenas que colocar a
mão no bolso, e as moedas surgiriam. Passados os sete anos, o rapaz, segundo o Diabo,
viveria feliz para sempre. Na proposta também está presente um número cabalístico, dessa
vez, o sete. São comuns nos contos tradicionais das zonas rurais os pactos com o Demônio
para se alcançar a felicidade, a riqueza ou algum talento, como tocar viola com perfeição.
118
AZEVEDO, R. No meio da noite escura tem um pé de maravilha. São Paulo: Ática, 2002.
119
O número 13 em muitas tradições é considerado a representação da má sorte. Nos rituais de bruxaria
europeus o Satã era a 13ª figura, e no tarô, a Morte é a 13ª carta dos Arcanos Maiores.
91
Nessas histórias, o que é normalmente solicitado é a alma do personagem disposto a
negociar com o “Tinhoso”. Em outras versões, ao final da narrativa, o rapaz não consegue
se desvencilhar da pele de monstro e passa o resto de seus dias metamorfoseado naquela
forma terrível. Nessa versão resgatada pelo autor, a história perdeu o seu tom moralista,
uma vez que o rapaz, impulsivo e ganancioso, aceita a proposta e, no final, se sai bem,
inclusive casa-se com uma bela moça, situação que lembra o conto europeu “A Bela e a
Fera”.
Cotejando o início do conto com as primeiras oito funções propostas por Propp, que
se constituem numa preparação para a ação, existe uma perfeita correspondência. A função
0-A, equivalente à situação inicial, que introduz o futuro herói, está localizada no primeiro
parágrafo: “Era uma vez um homem muito pobre. Vivia com a mulher e o filho num
casebre na beira da estrada. Seu filho era um moço forte e bonito.”
120
A função 1-B marcada pela ausência de membros da família, como acontece em a
“Gata Borralheira”, e outros tantos contos tradicionais, está presente no início do conto: “O
homem tinha idade. Um dia, trabalhando na terra, sentiu-se mal, foi para a cama e
morreu. Pouco tempo depois, sua mulher morreu também”
121
. Esse primeiro acontecimento
induz ao próximo passo do herói, o deslocamento, a aventura (função 2-c prescrição): “E lá
se foi ele sem rota nem rumo. Andou e desandou por caminhos e descaminhos.”
122
O herói
entra em contato com o agressor, o Diabo (função 3-d, transgressão). Na interpelação,
(função 4-e), o agressor procura obter informações sobre a sua futura vítima, “- Não precisa
ter medo disse o recém-chegado. Conheço bem a sua história. Sei que perdeu os pais e
agora anda sozinho pelo mundo tentando se arranjar na vida. Posso ajudar você. Mas tem
uma coisa (...) – Antes você vai ter que provar que é corajoso de verdade”.
123
Na função 12-D, o herói se depara com o doador. O moço imundo, vestindo a pele
do monstro encontra um senhor que perdeu tudo e o ajuda, em troca ele lhe a mão de
120
AZEVEDO,Ibid.,p. 7
121
Ibid., p. 7
122
Ibid.,p. 7
123
Ibid.,p.8
92
uma de suas filhas, nesse caso não acontecem as provas preparatórias a que o herói seria
submetido, nem a doação de um auxiliar mágico. Durante o deslocamento espacial, (função
15-G), o herói é transportado ao local onde se encontra o objeto da sua busca: o rapaz
encontra o Diabo dentro do tempo previsto de sete anos. Na luta, (função 16-H), acontece o
confronto entre o herói e o agressor: “O Beiçudo não queria mas o moço pegou um pedaço
de pau grosso para brigar”
124
. Finalmente a vitória, (função 18-J), “num gesto mágico, em
menos de um segundo, a figura bonita imunda se viu banhada, barbeada, cabelo cortado e
unha aparada, vestindo roupa nova.”
125
A partir dessa função, a narrativa começa a apresentar o desfecho. Na volta, (função
20), “elegante e feliz da vida, o moço saiu da mata, comprou um cavalo branco e foi direto
para a casa do negociante.”
126
O herói chega ao seu destino incógnito, (função 23-O), mas
logo é reconhecido, (função 27-Q): “No começo, a menina não quis acreditar que aquele
moço e a figura imunda eram a mesma pessoa, mas o recém chegado contou tudo.”
127
A
(função 29-T), é a única que se encontra deslocada em relação à proposta de Propp,
transfiguração do herói acontece logo após o confronto com o agressor, quando o herói
recupera a sua aparência nobre. O casamento (função 31-W), constitui-se no desfecho: “O
negociante veio e logo o casamento foi marcado. Dizem que foi a festa mais bonita que
houve até hoje.”
128
Apesar de ter negociado a sua alma com o Demônio, o protagonista é premiado com
um casamento e o final feliz, porque a sua conduta é justa se relacionada ao conceito de
moral ingênua, na qual é certo aquilo que corresponde aos desejos sinceros do herói que,
depois de passar por uma metamorfose, está apto a começar uma nova vida.
Todos os contos dessa obra terminam com uma fórmula de desfecho, estrofes de
quatro versos, no estilo de quadrinhas populares. Em Moço bonito imundo os versos são um
124
Ibid.,p.14
125
Ibid.,p.14
126
Ibid.,p.15
127
Ibid.,p.15
128
Ibid.,p.15
93
desafio do contador de histórias, implícito no narrador, para que alguém conte uma história
mais bela do que a sua:
“Acabou-se o que era doce
Toda história tem um fim
Quero ver quem conta outra
Que seja bonita assim!”
129
Em A mulher dourada e o menino careca, Ricardo Azevedo resgatou uma história
que possui alguns pontos de contato com o conto europeu O Barba Azul, registrado por
Charles Perrault, que ficou conhecido no mundo todo pelo seu trabalho com as narrativas
maravilhosas.
No conto de Azevedo, um homem trabalhador, ao cortar o mato, bate com o
machado em uma pedra e, debaixo dela, surge uma criatura mágica, uma linda mulher
dourada. Como ela ficou terrivelmente aborrecida por ter sido acordada, promete matar o
homem, mas ele alega ter mulher e filho para cuidar. A mulher dourada faz um acordo com
ele: fica com o seu filho e em troca lhe um saco de ouro, semelhante à narrativa de
Barba Azul, quando a filha do camponês é entregue ao marido sanguinário.
Estruturalmente, ele se organiza de uma forma um pouco diferente. A situação
inicial (função 0-a) não apresenta a descrição do herói, e sim, parte para a apresentação do
pai do herói e de um pequeno conflito que se constitui no motivo que exigirá o
deslocamento do mesmo: “Um dia estava com o machado cortando o mato. Sem querer, o
machado escapou e quebrou uma pedra. Debaixo da pedra havia um buraco (...) surgiu do
fundo da terra uma mulher ...”
130
para não ser morto pela criatura gica o homem entrega
seu filho para apaziguá-la.
Ao chegar no mundo subterrâneo, o menino é bem tratado pela mulher dourada. A
interdição (função 2-c) se realiza parcialmente, que ela é caracterizada por um conselho
da ordem pública visando proteger a vítima da cilada do mal. A mulher avisa o menino de
129
Ibid.,p.15
130
Ibid.,p.17
94
que ele não poderá abrir as arcas douradas, no entanto a criatura gica faz o papel de
ordem pública e, ao mesmo tempo, de possível agressor. A transgressão (função 3-d)
acontece: “aproveitando-se de que a mulher dourada não estava no castelo de cristal, o
menino foi até o quarto, tomou coragem e abriu uma das arcas.”
131
As quatro funções
seguintes, correspondentes à preparação da ação (interpelação, informação, logro,
cumplicidade) não acontecem no conto de Ricardo Azevedo, o que se observa é um único
motivo associado, semelhante à expulsão do homem do paraíso, do relato bíblico, o menino
tem a sua curiosidade punida com a saída do mundo subterrâneo, onde ele vivia como um
rei. Nesse mesmo instante, a mulher dourada faz o papel de personagem doador, colocando
nas mãos do menino uma varinha mágica. De acordo com Propp, o doador seria
introduzido na narração na função 12-D. O equilibro da história é abalado e o herói parte
em empresa reparadora, retornando à função 10-C.
O menino observa seu reflexo na água e percebe que seus cabelos viraram fios de
ouro e para se proteger de possíveis bandidos, esconde a cabeleira com uma bexiga de vaca,
tornando-se o menino careca. Esse motivo corresponde à função 17-I, na qual o herói
recebe um sinal em seu corpo.
O menino começa a trabalhar como jardineiro em um palácio e presenteia a princesa
com fios de seu cabelo dourado. Ela apaixona-se, mas o rei, enfeitiçado por uma bruxa do
“Reino-do-Entrou-Ficou”, decreta que quem conseguisse chegar até o tal reino trazendo o
antídoto para o seu mal, a cegueira, casaria com a sua filha. A proposição dessa tarefa
corresponde à função 25-M. O menino careca e mais quatro cavaleiros seguiram a missão,
porém, com o auxílio da varinha mágica o herói é capaz de realizar a tarefa (função 26-
N). A narrativa retrocede dentro da estrutura descrita por Propp até a função 24-L, na qual
um falso herói pretende ser o autor da façanha: “Os cavaleiros mentiam. Estavam levando
era leite de vaca. Sua idéia era dar ao rei o leite errado e depois dizer que a culpa era do
adivinho”
132
, mas os falsos heróis são desmascarados (função 28-Ex). Acontece a
transfiguração, o herói recebe aparência nobre (função 29-T): “Tirando a varinha mágica
131
Ibid.,p.19
132
Ibid.,p. 25
95
do bolso, transformou-se num cavaleiro armado até os dentes montado num cavalo
musculoso.”
133
O falso herói é punido (função 30-U): “os quatro cavaleiros recuaram
assustados e desistiram de tudo.” O herói se casa (função 31-W): “O rei mandou fazer uma
festa de casamento”.
134
O príncipe encantado no reino da escuridão inicia de forma semelhante ao conto
“A Gata Borralheira”, registrado por Charles Perrault. Um comerciante rico, pai de uma
menina, fica viúvo e casa-se novamente. A sua nova esposa e suas filhas tratam a menina
muito mal, e, por isso, quando ela completa quinze anos, comunica ao pai que imorar
sozinha em uma cabana na floresta. A menina foi visitada por um adivinho que lhe disse
que seu pai viajaria para um país distante, onde existia um jardim encantado com as mais
belas rosas do mundo, nas cores branca, vermelha e roxa. Quando o pai da menina veio
despedir-se, ao sair de viagem, ela lhe pediu que trouxesse rosas de presente. O pai traz
para a moça três rosas do jardim encantado, e depois ela recebe três visitas da madrasta e
suas filhas, que, com inveja, destroem as rosas uma a uma. A primeira rosa simbolizava a
sua felicidade, a segunda, sua riqueza, e a terceira, o amor.
De acordo com as funções de Propp, observa-se que as duas primeiras funções,
situação inicial e ausência, acontecem respectivamente. A menina é apresentada, sua mãe
morre. Por ser maltratada pela madrasta e suas filhas, decide exilar-se na floresta
correspondendo à prescrição (função 2-c). Surge um motivo, que a princípio, não se
encaixa nas funções de Propp: ela recebe a visita de um adivinho que prediz a viagem do
pai e as rosas como presentes. Num desdobramento da função 2-c, agora como conselhos
que visam proteger a futura vítima da cilada do mal: “Naquela mesma noite, quando
estava quase dormindo, a menina escutou uma voz no quarto: “Cuidado! Se precisares de
mim basta chamar o Príncipe Encantado no Castelo de Ferro do Reino da Escuridão”
135
. No
outro dia a previsão do adivinho é cumprida, o pai viaja e as rosas são trazidas para a,
menina. A partir dessa função, através de um jogo estrutural de repetições, a menina perde
todas as rosas e, respectivamente a felicidade, a riqueza, e o amor.
133
Ibid.,p.26
134
Ibid.,p.27
135
Ibid.,p. 30
96
A moça vai parar em um reino com o qual sonhou e é contratada como criada de um
castelo, onde foi obrigada a realizar três tarefas impossíveis: lavar toda a roupa do palácio,
toda a louça, e salvar o príncipe, filho desaparecido da rainha. Segue-se a função 26-N,
quando, na realização da tarefa, a moça recupera o príncipe que estava transformado em
sapo. Existe um reconhecimento, porque o príncipe conta à moça que era aquele mendigo
que havia estado na sua casa pedindo ajuda.
Constata-se, também, a maldade humana, através das ações das filhas da madrasta,
conforme os fragmentos abaixo:
“A filha mais velha da madrasta entrou e logo foi perguntando
se por acaso a menina tinha recebido algum presente do pai.
– Sim – disse ela toda feliz. – Ganhei essas rosas lindas.
A filha mais velha da madrasta não gostou. Arrancou a flor
branca do vaso e despetalou. Depois deu risada e foi
embora.”
136
Em boa parte dos contos tradicionais, o herói empreende uma viagem a um lugar
distante e exótico. Nesse caso, a heroína é transportada para esse tempo e espaço indefinido
de forma mágica e instantânea: “Naquela noite, a filha do negociante teve um sonho.
Sonhou que estava num lugar desconhecido diante de um palácio enorme. Quando acordou,
tomou um susto. Estava lá mesmo!”.
137
O conto corresponde perfeitamente à moral ingênua, porque o sentido de justiça se
dá quando a heroína livra-se dos maus-tratos da madrasta e suas filhas, ultrapassa os
obstáculos causados pela inveja das demais empregadas do castelo, salva e casa-se com o
príncipe, completando a busca pela felicidade e pelo prazer. A narrativa termina com o
casamento, última função de Propp ( 31-W).
136
Ibid.,p.31
137
Ibid.,p. 33
97
Ao final do livro, Ricardo Azevedo, apresenta uma entrevista ficcional com um
papagaio, na qual o autor aborda, através de uma linguagem acessível para o leitor em
formação, temas como: definição dos contos populares e suas características, a transmissão
oral, as fontes, que dão origem aos contos e os principais temas. A respeito de seu trabalho
de elaboração, Ricardo Azevedo revela que as histórias do livro são contos populares
recontados. Em seguida, o autor especifica o que são os contos populares, lembrando a sua
origem e o modo de transmissão. Azevedo dá continuidade à entrevista explicando o
processo de transmissão dos contos, através do hábito da reunião de pessoas para conversar
e do contar histórias. Na seqüência, o autor valoriza o trabalho dos estudiosos, como
folcloristas, que resgatam os elementos da cultura popular, que se tornam as fontes que o
autor pesquisa para recontar as histórias. Ricardo Azevedo também traz como informações
para o leitor um compêndio de temas universais desenvolvidos nos contos populares,
destacando a possibilidade de identificação da vivência do leitor com as histórias dos
personagens.
A entrevista ficcional demonstra a preocupação do autor com o conhecimento do
leitor a respeito da origem das histórias que ele está lendo. Fazendo com que as crianças
tenham consciência de que essas narrativas fazem parte de uma cultura popular, na qual
elas também estão inseridas. Quando Azevedo afirma que essas histórias antigas, guardadas
na memória do povo, são transmitidas de boca em boca no Brasil, desde a chegada dos
portugueses, ou mesmo antes, pelos índios, está destacando a importância da participação
das inúmeras etnias na formação cultural do brasileiro. O autor afirma que as suas fontes de
pesquisa para recontar as histórias são orais e livrescas, isto é, ele realiza um trabalho
criativo baseado em narrativas ouvidas de contadores de histórias, ou cotejando diferentes
versões de uma mesma história resgatada por diferentes estudiosos. Sobre essa questão é
importante destacar que o papel do escritor é imprescindível nesse processo, uma vez que
ele faz uso de sua sensibilidade e criatividade para selecionar e recriar o material folclórico,
criando a sua própria versão dos contos, porém preservando e até mesmo realçando a
essência das narrativas. Ao destacar os temas universais presentes nos contos populares,
Azevedo afirma ao leitor que as histórias antigas são tão atuais quanto qualquer outra, pois
98
desenvolvem temas que podem interessar qualquer ser humano, em qualquer tempo
histórico.
2.1.2 Joel Rufino dos Santos
Joel Rufino dos Santos ironiza as relações de poder, destaca os elementos
folclóricos como personagens tradicionais e apresenta características da cultura negra nos
contos de sua autoria Histórias de Trancoso, Dudu Calunga e Botija de ouro, objetos desta
investigação.
No Brasil, uma das principais fontes das histórias folclóricas oriundas de várias
nações, é a obra Contos e histórias de proveito e exemplo, de autoria de Gonçalo Fernandes
Trancoso, no século XVI. Seus relatos tiveram tanta popularidade que a expressão histórias
de Trancoso passou a ter a mesma significação de histórias da Carochinha ou histórias
folclóricas, e a denominar, também, um popular personagem.
Trancoso representa o homem do povo, que vê o mundo através das lentes da
concepção popular. Ele é movido pela moral ingênua, porque, através da sua esperteza, ele
alcança sempre o que deseja e isso é considerado justo, correspondendo à lógica de suas
aspirações. Ele é pobre e não possui o conhecimento do mundo letrado, porém a sua astúcia
e praticidade fazem com que ele sempre alcance seus objetivos. Trancoso representa a
vontade do povo de burlar a ordem estabelecida, de tirar a autoridade dos representantes da
Igreja, do poder oficial e do poder econômico. É o símbolo da resistência bem-humorada
dos pequenos.
Na obra História de Trancoso
138
, de Joel Rufino dos Santos, um fazendeiro muito
rico viajava solitário, desejando encontrar um companheiro de jornada, quando conhece um
padre medroso, que decidiu acompanhá-lo. O padre morria de medo dos curupiras que lhe
disseram que estavam pelas estradas. O fazendeiro garante que com ele o padre estava a
138
RUFINO, J. Histórias de Trancoso. São Paulo: Ática, 1983.
99
salvo. No meio do caminho, eles encontram o roceiro. Não ficam satisfeitos em tê-lo como
companhia, todavia seguem os três pela estrada.
O único que possuía uma moringa com água era o matuto recém-chegado.
Rapidamente, o padre pediu um gole, mas o fazendeiro agüentou por um bom tempo a sede,
porque não tinha coragem de colocar a boca onde Trancoso bebia. Quando não agüentava
mais de sede, pegou a moringa e procurou uma parte que estava lascada, pensando que,
certamente, o roceiro não colocava a boca nesse lugar. Neste momento da narrativa o
personagem Trancoso começa a mostrar a sua graça e esperteza ironizando seu
companheiro de viagem: “ Gozado, nhonhô Disse o roceiro. – É mesmo aí, nesse
quebradinho, que acostumo de beber.”
139
André Jolles, ao tratar sobre a forma simples do
chiste, relato jocoso presente em diversas culturas, destaca o papel da ironia nessas
narrativas:
A ironia, por sua vez, troça do que repreende, mas sem opor-se-lhe,
manifestando antes simpatia, compreensão e espírito de participação. Por
isso é que ela se caracteriza pelo sentido de solidariedade. O trocista tem
em comum com o objeto de sua troça o fato de ser afetado por aquilo que
zomba; ele próprio o conhece, mas reconhecendo a sua insuficiência, e
mostra-o a quem não parece conhece-lo. É essa a razão por que a
solidariedade tem aqui um significado mais profundo. Sente-se, na ironia,
um pouco de intimidade e da familiaridade entre o superior e o inferior. É
justamente nessa solidariedade que reside o imenso valor pedagógico da
ironia.
140
O roceiro ironiza seu companheiro, mas segue com o cortejo, sem os abandonar em
nenhum momento, criando entre eles um elo solidário. Os três viajantes param em uma
venda e fazem uma refeição com comidas populares: feijão, mandioca, jabá e beberam
jurubeba. Antes de dormir, o dono da venda deu um pequeno pedaço de queijo de cabra
para os três. Por ser muito pequeno não era possível dividir: O padre deu uma idéia: “-
Vamos dormir. Quem tiver o sonho mais bonito fica com o queijo.”
141
No dia seguinte, o
padre inventou um sonho: “Sonhei com uma grande escada de ouro, cravejada de marfim.
139
RUFINO, op.cit.p. 15
140
JOLLES, op. cit.,p. 211
141
RUFINO, op.cit.,p.18
100
Começava juntinho do meu travesseiro...Furava as nuvens em riba...Ia subindo,
subindo... E sabem onde terminava? –Não respondeu o fazendeiro. No céu. Ninguém
pode sonhar coisa mais bonita. Conforme o combinado, o queijo é meu.”
142
O fazendeiro também inventou um belo sonho, julgando-se mais esperto do que o
padre: “Pois eu disse o fazendeiro, picando o rolo de fumo sonhei com um lugar
iluminadão. que não tinha lâmpadas.(...)- A luz nascia das coisas(...)Já viram areia de
prata de puro diamante? Pois era assim nesse lugar que sonhei.”
143
O padre perguntou: “E pode-se saber que lugar era este? Ao que o fazendeiro
respondeu: “O céu. Vosonhou com a escada pro céu. Eu sonhei que estava lá.”
144
Saiu
para procurar o queijo, mas ele havia desaparecido. O roceiro, então, demonstra toda a sua
esperteza: “Cês não ouviram um barulho de noite? Pois era eu que me levantei para comer
o queijo. Como vocês estavam no céu, achei que não precisavam mais do queijo.”
145
Quanto à linguagem o texto é composto por expressões orais próprias do interior:
“Sou servido um gole desta água. Pra matar minha sede.”; “Já que vosmicê tanto insiste, me
a saborosa.”
146
Outras características dos contos populares correspondem ao
deslocamento, à jornada das personagens, e a não revelação de seus destinos. O meio de
transporte do padre e do fazendeiro, representando o poder oficial e político, é o cavalo, e o
roceiro, representando o povo, segue em um humilde burro. A descrição de Trancoso: “O
roceiro tinha um dente na frente. E cara de bobo.”
147
Que não agrada ao padre e ao
fazendeiro. Eles não ficam satisfeitos em seguir viagem com alguém inferior” apenas
interessam-se por ele, quando percebem que é o único que possuía água: O fazendeiro e o
padre torceram o nariz. Mas seguiram viagem. Anda que anda, os dois proseando. O
142
Ibid.,p.24
143
Ibid.,p.25
144
Ibid.,p.28
145
Ibid.,p.31
146
Ibid.,p. 12
147
Ibid.,p. 9
101
roceiro tinha lá papo para aquela conversa de doutor?
148
Mesmo sendo simples e
discriminado, o roceiro acaba ludibriando seus companheiros.
Não é possível relacionar a narrativa de Trancoso com a estrutura dos contos
maravilhosos, aqui não existem os sete personagens ou os pequenos núcleos de ações
chamados de funções. Trancoso, ao contrário do herói de origem mitológica, é simples,
humilde e feio, porém astuto. Portanto, as demais categorias de análise estabelecidas não
foram observadas na narrativa como a busca do autoconhecimento, ações que acontecem
em lugares distantes e exóticos, metamorfose do herói ou fórmulas de desfecho. A história
segue a estrutura simples do chiste ou causo, conforme a denominação popular, porém,
mesmo sendo um relato curto é possível resgatar informações sobre o modo de ser do povo,
dominado pela crendice, representado, por exemplo, pelo medo do Padre de curupiras, ou a
crença em um céu composto por riquezas abundantes.
Em Botija de ouro
149
uma pequena escrava não possuía nome, quando o senhor a
comprou esqueceu de perguntar; por isso, a chamava de moleca. Os negros da fazenda não
gostavam disso e decidiram escolher um nome para ela. Citam vários nomes africanos, mas
não conseguiram escolher nenhum. Certo dia, a moleca começou a comer parede. O senhor
ficou furioso com isso, mandou que o capataz prendesse a menina em um quarto escuro
para que ela parasse com essa mania. Enquanto estava presa, ela sentiu tanta fome que
começou a comer parede novamente, e, dessa vez, arranhou tanto que encontrou uma botija
de ouro, uma espécie de pote de barro encantado com moedas dentro. Esfregando a botija
ela produz ouro e pára quando se estalam os dedos. O feitor perguntou que luz era aquela
que vinha de dentro do quarto. Ela respondeu que era “um montão de vaga-lume”.
O feitor desconfiou que fosse a botija de ouro e avisou ao senhor que, em seguida,
mandou chamar a moleca. Ela negou e disse novamente que eram vaga-lumes. Como
castigo, foi amarrada no tronco, coberta de mel para que as formigas a devorassem. Porém,
todas as noites, ela era protegida por vaga-lumes. O feitor sempre a ameaçava, quando
148
Ibid.,p.11
149
SANTO, J. R. A Botija de ouro. São Paulo: Ática, 1983.
102
percebia que nada de mal lhe acontecia: “Espera a noite que vem.”Ao final de 549 noites
ela estava tão magrinha que conseguiu sair sozinha do tronco, pegou a botija e deu ao
patrão. Disse que não a queria mais e o ensinou a fazer dinheiro. O fazendeiro, obcecado
por sua ganância, fez tantas moedas que a sua casa caiu em um buraco e os negros ficaram
todos livres e a moleca recebeu o nome de A Noite Que Vem. Esse conto traz uma
descrição do contexto da escravidão, quando os negros trouxeram para o Brasil muitos dos
elementos, que enriquecem nossa cultura popular até hoje.
Segundo Rossine Tavares de Lima
150
, as culturas que mais deixaram seus traços nas
formas de ser, pensar e agir do brasileiro foram nagô ou iorubá e bantos, por intermédio dos
negros de Angola, Congo e Moçambique. Esses grupos introduziram no Brasil ornamentos
pessoais, indumentária, alimentos, instrumentos musicais e a sua religião. Na literatura
popular, temas como a revolta e sentimento de justiça contra castigos não merecidos são
amplamente divulgados. O fantástico no conto de origem africana é representado por
auxiliares mágicos ou sobrenaturais, que têm a função de apaziguar o sofrimento dos
escravos.
Em Botija de ouro, a moleca é auxiliada por uma nuvem de vaga-lumes; em outros
contos e lendas, existe uma fusão entre o contexto vivenciado pelos escravos e elementos
da cultura européia, como santos católicos. Exemplo dessa mescla é a lenda do Negrinho do
Pastoreio, que recebe a ajuda de Nossa Senhora.
O senhor dos escravos, do conto de Joel Rufino, representa um sistema político-
econômico em cuja lógica cabia a exploração e a humilhação do povo negro pelos
latifundiários. Esse povo procurou manter sua dignidade e sua cultura através da
preservação de suas tradições. Nessa narrativa, observa-se como símbolo do anseio por
dignidade a busca da comunidade por um nome para a escravinha, chamada de moleca pelo
senhor. No contexto do Brasil colônia, produtor de açúcar e escravista, os senhores das
terras procuravam exterminar a cultura africana, misturando escravos vindos de várias
150
LIMA, R. T. Abecê de folclore. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
103
regiões, falando dialetos diferentes, para que não pudessem se comunicar e manter sua
cultura, que dava ao negro identidade e impedia a sua coisificação.
Na obra de Joel Rufino, o poder oficial não é representado pela realeza, conforme os
contos maravilhosos, e sim, pelo senhor das terras e o feitor, que executa as suas ordens e
mantém os escravos subjugados. Dessa forma, é explicitado o tema universal da relação de
poder entre opressor e subalternos. Nesse contexto, a única forma de alcançar a dignidade
seria a fuga ou a rebelião, porém, no conto a questão é resolvida através de uma solução
mágica, que traz a liberdade para os negros.
A narrativa A Botija de ouro não é de origem européia, portanto não apresenta
características evidentes do conto maravilhoso ou funções sistematizadas por Propp. Porém,
a história inicia com a estrutura Era uma vez, e a ação ocorre em um lugar indeterminado,
pois não é apresentada a localização da fazenda. Existe, ainda, a presença do fantástico,
representada pelos vaga-lumes e pela botija. Observam-se no texto muitas marcas de
oralidade e termos de origem africana, como no fragmento a seguir: E palpitaram que
palpitaram: Aluá, Gerebô, Quituxe, Giga, Azuzê, Anuanda... Nenhum prestava.”
151
O conto Dudu Calunga também é uma contribuição da cultura popular africana,
mas, diferente do que ocorre em A botija de ouro, não trata da opressão e maus-tratos
sofridos pelos escravos. A narrativa inicia com a descrição de uma festa animada, na qual
não existe distinção de idade, sexo ou cor. À meia-noite, os batedores de atabaques
cansaram-se e foram beber. Os nomes de muitas bebidas típicas são citados: “Refresco de
casca de abacaxi, vinho de jenipapo, cachaça, manguaça, meladinha.”
152
Esse fragmento
pode ser relacionado às afirmações de Bakhtin acerca das festas e folguedos, quando o
autor destaca que esses momentos representavam catarse e relaxamento da ordem vigente,
sendo possível até mesmo a confraternização entre opressores e oprimidos.
151
RUFINO, op.cit.,p. 6
152
RUFINO, J. Dudu Calunga. São Paulo: Ática, 1986.
104
De repente as pessoas ouviram tropéis e ficaram com medo. Um cavaleiro entrou no
terreiro, muito bem vestido, trazendo um pandeiro embaixo do braço. Ele tinha uma perna
e vinha montado em um cavalo “torto”: “Do lado que tinha mão, não tinha pata. A
cabeça também era torta. Do lado que tinha venta não tinha olho. E da banda que tinha
chifre não tinha orelha”
153
Nesse momento, as pessoas começaram a encontrar seus objetos
perdidos. Muitos disseram que o cavaleiro era Ossanha: Orixá que corresponde ao caipora
indígena, que possui um pé só e é esperto e zombeteiro. “Vimos que ele tinha só uma perna.
Usava um boné vermelho e carregava um pandeiro debaixo do sovaco. O personagem
lembra o Saci, figura folclórica que também possui uma perna e usa um barrete
encarnado.
Os pais-de-santo levaram o visitante para ver o peji, altar armado e dedicado a um
orixá nos candomblés. No terreiro estavam os orixás caracterizados, divindades das
religiões afro, que simbolizam as forças naturais- Ao ritmo dos tambores, essas entidades
tomam o corpo das filhas-de-santo.
O misterioso cavaleiro começou a tocar o seu pandeiro e todas as moças da festa
dançaram sem parar. Elas começaram a diminuir até entrarem todas no pandeiro. Quando a
última entrou, o cavalo falou: “Símbora Dudu.” O negrinho cresceu e as moças voltaram ao
normal. O desfecho do conto é o seguinte: “O negrinho de um levou todas pro seu
Candomblé, do outro lado do mar. Era Dudu Calunga.” Segundo Luis da Câmara
Cascudo,
154
Calunga “no idioma quioco, vale dizer mar, e aparece nessa acepção nos cantos
de macumbas e candomblés cariocas e baianos, dedicado aos santos-d´água.”
Dentre as categorias de análise destacadas para os fins dessa pesquisa, observou-se
que as obras de Joel Rufino dos Santos possuem apenas a presença de temas populares,
marcas da oralidade e personagens folclóricos, conforme foi visto, porém a estrutura dos
contos não segue as funções de Propp. Tradicionalmente, a literatura infantil, em geral, faz
uso dos elementos folclóricos de origem européia, Rufino, porém aborda temas oriundos da
153
Ibid.,p. 24
154
CASCUDO, L.C. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2000. p. 100.
105
cultura negra, que foi sistematicamente excluída, permitindo ao leitor, dessa forma, refletir
sobre aspectos como a condição subalterna, o preconceito, exclusão social, possibilitando a
formulação de uma visão positiva em relação à identidade negra, e, conseqüentemente,
legitimando o valor da cultura popular afro-brasileira.
A qualidade do texto, rico em expressões da oralidade e palavras de origem africana
também contribui para o desenvolvimento do leitor literário. Essas narrativas fazem com
que o leitor em formação utilize constantemente seu conhecimento prévio, relacionando os
personagens das obras com outros seres folclóricos, procurando compreender o significado
desses seres e estimulado a busca de leitura de outras obras. Existem, ao longo dos contos,
lacunas que possibilitam ao leitor criar questões e hipóteses, ampliando a sua habilidade de
leitura, interpretação e apropriação. O leitor poderá se perguntar, por exemplo: O que
aconteceu com o senhor e o capataz dentro do buraco? Como os negros passaram a viver
depois do incidente? Por que Dudu Calunga levou as moças para o seu Candomblé? E para
cada uma dessas questões, o leitor poderá inferir um universo de respostas possíveis,
dependendo de sua experiência de vida e de leitura.
2.1.3 Ângela Lago
Haveria festa no céu e somente os animais que possuíam asas poderiam chegar lá.
Porém, a tartaruga decide ir ao baile. Ela se esconde dentro do violão do urubu e, dessa
forma, consegue chegar ao céu. Aproveitou e sambou a noite toda.“Rebolou até o sol
raiar.”
155
Através do texto e das ilustrações, uma festa típica da cultura popular brasileira é
descrita: a presença de instrumentos folclóricos de corda e percussão, convidados dançando
alegremente. Na hora de retornar, a tartaruga entra novamente no violão, mas dessa vez ela
vem assobiando o samba da festa, por isso é descoberta, e o urubu a joga para fora de muito
155
LAGO, A. A festa no céu: um conto do nosso folclore. São Paulo: Melhoramentos, 1994. p. 16
106
alto: “Aquela diaba da tartaruga tinha feito ele de burro de carga. Furioso, virou o violão e
sacudiu.”
156
A tartaruga caiu gritando “- Sai da frente, terra, senão te arrebento.”
157
A terra
não se mexeu e o casco da tartaruga se quebrou em pedacinhos.“Fomos nós que achamos e
colamos os pedaços todos.”
158
Ao final o narrador se dirige ao narratário:“Agora você sabe por que a tartaruga
tem esse lindo casco o remendado. E se você quiser saber mais sobre a festa no céu,
pergunte para ela. Ela adora contar.”
159
A festa no céu é uma narrativa que se classifica conforme Luís da Câmara Cascudo,
como conto etiológico, isto é, contos que explicam a origem de uma forma, hábito,
disposição de um animal, no caso, é explicada a origem da forma remendada do casco da
tartaruga. Cascudo afirma que essa é uma das fábulas mais populares do Brasil e encontra-
se em quase todas as antologias folclóricas, porém, em algumas regiões a tartaruga ou
cágado é substituído por um sapo, e, quem remenda o animal por piedade é Deus ou Nossa
Senhora. O relato tem origem nas fábulas de Esopo, mas o que os contadores latino-
americanos acrescentaram é o motivo do animal escondido no bojo do violão.
Percebe-se a influência européia na narrativa pela introdução dos elementos cristãos
como o céu e a salvação por intermédio da ação de Deus ou de Nossa Senhora no momento
em que o animal sofre a queda. Existe, ainda, um importante registro oriental desse relato
na obra Calila e Dimna, coletânea, originada a partir de adaptações do Pantshatantra,
reunião de histórias utilizadas pelos pregadores budistas, a partir do século V. Calila e
Dimna foi registrada originalmente em sânscrito e possuía uma estrutura labiríntica, na qual
as fábulas se ligam umas as outras através do mesmo eixo condutor: um rei pede que um
filósofo conte histórias exemplares, e, assim os relatos formam uma teia de narrativas. A
versão de Ângela Lago para A festa no céu recebeu a introdução de elementos da cultura
156
LAGO, op.cit.,p.22
157
Ibid.,p.22
158
Ibid.,p.24
159
Ibid.,p.27
107
popular brasileira, como o samba e presença de expressões da oralidade entre as quais:
“tinha feito ele de burro de carga.”, “os pássaros morriam de rir.”, “ela se mandou e ...”.
Além de conto etiológico essa obra pode ser classificada como uma fábula, narrativa
que se caracteriza por apresentar ações protagonizadas por animais representando homens,
possuindo uma moral, tendo, portanto, a função de divertir e instruir. O texto de Ângela
Lago não possui uma moral explícita, porém pode se inferir como uma repreensão de fundo
moral o fato de a tartaruga ser punida por sua ousadia em querer participar da festa.
Na leitura de fábulas registradas por La Fontaine, a moral é facilmente detectada
durante a leitura. Em O cordeiro e o lobo, por exemplo, evidencia-se como o ingênuo pode
tornar-se uma presa fácil do prepotente e, em A raposa e as uvas, demonstra-se o quanto o
presunçoso é ridículo. É importante destacar que a forma original da fábula é em verso,
porém muito tempo as diversas traduções, adaptações e apropriações populares das
obras de fabulistas clássicos como Esopo, Fedro e La Fontaine transformaram essas
narrativas em prosas, tal como o texto analisado.
O conto Tampinha
160
, de Ângela Lago é uma história com motivo semelhante ao
Pequeno Polegar, de origem européia, ou Pequetito, japonês. Existem ainda outras
personagens femininas de tamanho minúsculo: a Mindinha e a Polegarzinha. O motivo dos
personagens pequeninos, porém intrépidos, é uma alusão à coragem dos fracos. Esse tema é
ligado ao contexto do camponês medieval, que vivia oprimido e constituí-se numa
mensagem de esperança para o leitor. Tampinha é um típico herói de conto maravilhoso,
que vive em um lugar genérico, distante. Sai de casa em busca de felicidade, colocando a
sua missão acima de interesses pessoais. Enfrenta obstáculos que lhe proporcionarão o
autoconhecimento, crescimento e o encontro com o parceiro amoroso. A essa narrativa
pode-se aplicar o esquema estrutural desenvolvido por Propp.
A recriação de Ângela Lago utiliza elementos dos contos tradicionais como as
fórmulas pré-estabelecidas. O início: “Era uma vez” corresponde à situação inicial (função
160
LAGO, A. Tampinha. São Paulo: Moderna, 1994.
108
0-a) e o casamento no final (função 31-W). Porém, neste caso, apenas sugerido: “Vocês
têm alguma coisa contra casamento?”. O conto possui um narrador onisciente que
representa um contador de histórias: “Perto morava um rapaz que eu esqueci o nome. Era
um rapaz muito simpático e, para facilitar esta história, vou chamá-lo de Bonito.”
161
Tampinha era tão pequenina, que quando alguém espirrava ela saía voando, por isso
usava uma tampa de garrafa na cabeça para ficar mais pesada e não voar tão longe. Ela
morava com a avó numa casa à margem do Rio do Mato Perdido. A sua avó é uma espécie
de curandeira ou feiticeira, que conhece as propriedades medicinais dos chás, mas para a
única coisa que ela não conhecia a cura é para a pequenez de Tampinha. O moço Bonito
fica doente e o remédio para salvá-lo é o chá da flor preta da árvore do curupira
162
.
Tampinha decide sair à procura da flor. Realiza-se dessa forma, a interdição (função
3-c) quando uma prescrição para que o personagem se desloque, surge um dano ou
carência; (função 8-A), representada pela doença de Bonito, que causa o deslocamento de
Tampinha. A avó pendura uma pimenta-malagueta no seu pescoço e lhe ensina palavras
mágicas:
“Pimentum, pimentom, pimentém, pimentim;
Peixe quer água, eu quero atchim.
Pimentur, pimentor, pimenter, pimentir;
E quero voltar de onde eu quero ir.”
163
As palavras gicas e a pimenta-malagueta são auxiliares mágicos necessários à
heroína para que consiga ultrapassar os obstáculos, vencendo o desafio de encontrar a flor.
161
LAGO, op.cit.,p. 6
162
Kurupiré, kurupirá, o nome varia conforme a região onde habita. Sua área de abrangência é muito extensa:
Brasil, Bolívia, parte do Peru, especialmente a região das selvas, Argentina mais localizadamente em
Misiones e parte de Corrientes. A primeira referência que se conhece desta entidade, data de 1560, em carta
escrita pelo Padre Anchieta. A maioria dos cronistas da época do Brasil Colônia a ele se refere como um dos
seres mais temidos pelos indígenas. Entidade protetora das matas. Aparece como um menino índio ou homem
muito pequeno de cabelos vermelhos, dentes verdes, corpo coberto de pêlos e pés voltados para trás. Deixa
suas pegadas ao contrário para enganar os inimigos, quando está entrando na mata, parece que está saindo.
RIBERIRO, P. S. Folclore: similaridades nos países do mercosul: lendas, mitos, religiosidade, medicina e
crenças do povo. Porto Alegre: Martins Livreiro., 2002. p. 50
163
Ibid.,p.17
109
No início de sua jornada, ela se depara com uma cobra grande
164
cantando,
constituindo-se na função em que se o encontro com o agressor (função 16-H). No caso
do conto Tampinha, essa função está diluída entre vários agressores:
“Você tem avó, eu tenho um tio.
Venha comigo pro fundo do rio.
Você tem agulha, eu tenho um fio.
Venha calada sem dar nem um pio.”
165
Nesse momento Tampinha esqueceu as palavras mágicas e só conseguiu dizer:
“Pimentim, que quero atchim...” A cobra grande se curvou para escutá-la e com o cheiro da
pimenta deu um espirro e Tampinha saiu voando até chegar a praia da Onça-Pintada, o
segundo agressor. Tanto as palavras mágicas ensinadas pela avó, quanto a fala da cobra
grande são em formato de quadrinhas populares. Quando a Onça chegou perto de
Tampinha, sentiu o cheiro da pimenta. Tampinha só conseguiu dizer:
“Pimentrim....primentrum...” Voou pelos ares. Quando caiu avistou uma árvore enorme. A
menina era tão pequenina, que não conseguia subir na árvore, mas lá do alto cai uma fruta e
ela recebe o segundo auxílio: “Coma esta frutinha e cresça bonitinha.”
166
Tampinha come a fruta e seus braços crescem, porém, seu corpo continua
minúsculo. Ouve mais uma vez: “Ô filhote louco, come mais um pouco.”
167
A menina
come, dessa vez, suas pernas crescem. A árvore joga mais uma fruta e depois dessa:
“Quando terminou estava moça feita. Alta como qualquer moça, se vocês me acreditam. E
o melhor: deu conta de apanhar a flor.”
168
164
Mito aquático: Moboi, cobra, uma, preta, o mais popular dos mitos amazônicos, aparece sob diferentes
aspectos. Ora como cobra preta, grande, de olhos luminosos como dois faróis, ora como embarcação a vapor
ou à vela. Os caboclos anunciam a sua presença nos rios, lagos, igarapés e igapós com a mesma insistência
com que os pescadores e barqueiros da Europa acreditam no monstro do Loch Ness. A imaginação do povo
amazônico criou para o mito propriedades fabulosas, capazes de desorientar suas vítimas.CASCUDO, L. C.
Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2000. p. 74.
165
Ibid.,p.18
166
Ibid.,p.33
167
Ibid.,p.33
168
Ibid.,p.36
110
Dessa vez a menina encontra o curupira, ele está furioso, porque ela conseguiu
pegar a sua flor. Rapidamente Tampinha recita, realizando o dom do auxiliar mágico,
(função 14-F) e vence o agressor, (função 18-J):
“Peixe quer água, eu quero atchim.
Me esperam de volta, de onde eu vim.”169
O curupira o maior espirro do mundo e mesmo crescida, Tampinha consegue
voltar para casa voando. O chá foi feito. O moço Bonito fica curado, Tampinha consegue
reparar o dano (função 19-K) e o conto termina com a sugestão de casamento da narradora
(função 31-W). Do ponto de vista psicanalítico, conforme Bruno Bettelheim
170
, esse tipo
narrativa, com o tema do herói que ultrapassa os obstáculos pode ser muito proveitosa para
o leitor no sentido de aliviar certas angústias e ajudá-lo a resolver conflitos inconscientes.
No caso de um personagem pequenino, a metáfora se torna ainda mais contundente, porque
em muitos momentos, a criança poderá se sentir frágil frente aos obstáculos naturais da
vida e poderá se espelhar nos heróis e heroínas.
Em Sete histórias para sacudir o esqueleto
171
todos os contos do livro se passam na
cidade de Bom Despacho, em Minas Gerais que, segundo dados constantes de uma nota
feita pela autora, é a cidade onde seu pai nasceu e se criou. As histórias seriam casos
contados na família e passados de pai para filha. Os contos possuem como eixo temático a
morte, são muito concisos e ricos em expressões da oralidade. Não fazem parte da linha de
narrativas dos contos de fadas e contos maravilhosos, são histórias de assombração
contadas nas cidades do interior do Brasil.
Por não serem caracterizados como contos maravilhosos, não apresentaram as
seguintes características: busca do autoconhecimento do herói, ações que acontecem em
lugares indeterminados no tempo e no espaço, metamorfoses, poder oficial representado
pela figura do rei, fórmulas de desfecho, etc. Nas resenhas dos sete contos a serem
169
Ibid.,p.39
170
BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
171
LAGO, A. Sete histórias para sacudir o esqueleto. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2002.
111
apresentadas, os principais elementos folclóricos observados são expressões da oralidade e
expressões próprias da cultura do riso.
A primeira história - Caio?- é semelhante ao conto Gaspar, eu caio! De Ricardo
Azevedo, porém possui uma estrutura mais simples e um final que se afasta do
sobrenatural.
Em Bom Despacho havia uma fazenda que ninguém queria comprar. Quando
finalmente surgiu um comprador, o caseiro o aconselhou a passar a noite na casa antes de
fechar o negócio, porque, segundo ele, a propriedade era mal-assombrada. De repente, o
comprador ouviu uma voz gritando: Caio? Apavorado, sem saber se a assombração estava
perguntando se podia cair, ou se ela conhecia o seu nome. Caio respondeu: Sim
repetidamente. A cada resposta caíram do forro da casa pedaços de ossos. Ao final, Caio
descobre que era o caseiro quem estava jogando os ossos, para que ninguém comprasse a
casa e ele pudesse continuar sem trabalhar. Caio? apresenta como características da cultura
popular o grotesco, com a presença dos ossos humanos; o ridículo, quando se descobre que
o caseiro “não queria dono novo na fazenda onde ele gostava de vadiar.”
172
repetição das
ações: a cada resposta cai um osso e o tom de anedota.
Em Encurtando caminho, tia Maria, na saída da escola, viu uma menina passando
pelo cemitério e decidiu acompanhá-la para cortar caminho. Perguntou a ela se poderiam
seguir juntas, que sentia medo de andar sozinha pelo cemitério, ao que a menina falou:
“Eu entendo você – respondeu a outra. - Quando eu estava viva, sentia exatamente a mesma
coisa.”
173
O final inesperado o tom de suspense e o elemento “tia Maria” é
representativo da transmissão oral, uma vez que o narrador, no papel do contador da
história, conheceu a narrativa porque aconteceu com alguém de sua família.
Um homem que não sabia mais o que fazer para fugir dos cobradores, decide fingir-
se de morto em O defunto que devia. Deitado em cima da mesa, foi visitado por aqueles a
172
LAGO,op.cit.,p. 6
173
Ibid.,p.10
112
quem devia e, a princípio, seu plano estava dando certo: “Coitado, perdeu mais do que
qualquer um de nós eles disseram, e foram embora. Porém, um sapateiro sovina, ficou na
casa à espera dos parentes para cobrar a dívida de alguém. Quando escureceu, três ladrões
viram a porta aberta e entraram no velório, o sapateiro se escondeu embaixo da cama. Os
ladrões, aproveitando que não havia ninguém velando o morto, decidiram dividir o dinheiro
de um roubo. Como sobrou uma moeda eles decidiram fazer um teste de coragem: “a
moeda é do primeiro que enfiar uma faca no peito do morto!”. O “morto” começou a gritar
e o sapateiro, com o susto, gritou também. Os ladrões saíram correndo e deixaram o
dinheiro. No caminho um deles lembrou das moedas e eles decidiram voltar. “são duas
almas penadas, mas nós somos três depenados.”
174
O sapateiro e o morto já estavam
dividindo o dinheiro, quando os três chegaram e ouviram o tilintar das moedas. O sapateiro
lembrava a dívida dizendo: “- E o meu real? E o meu real? Assustados os ladrões fugiram
gritando: “- Ai ai ai! São muitas almas! O dinheiro nem está dando.
175
Este conto apresenta um dado interessante sobre a visão da morte na cultura
popular: o costume de velar o corpo em casa. Dentro dessa concepção de mundo, a morte
não é algo que deva ser escondido, ela é sentida e celebrada através de muitos ritos, mas
entendida como um acontecimento comum, que faz parte do ciclo da vida. Atualmente, nos
centros urbanos, onde predominam a cultura de massa e a sociedade de consumo, não
existem mais os longos ritos relacionados à perda de alguém, e quanto mais afastado e
higiênico for o acontecimento, melhor. Muitas pessoas morrem sozinhas em um quarto frio
de hospital e são veladas o mais rápido possível em uma capela mortuária.
Mais uma vez é citado alguém da família do narrador em Vamos esperar o Setset
chegar?: Meu tio vinha de uma longa viagem.”
176
A caminho de Bom Despacho começa
uma forte tempestade e o protagonista se abriga em uma cabana abandonada, como estava
muito cansado acaba dormindo. Acordou no meio da noite com um bode perguntando:
“Então? Vamos esperar o Setset chegar?”
177
Ele pensa que está sonhando. De repente chega
174
Ibid.,p.16
175
Ibid.,p.19
176
Ibid.,p.21
177
Ibid.,p.22
113
outro bode dizendo: “Oba! Vamos começar?” Ao que o outro respondeu: “Não, Dodô! Nós
vamos esperar o Setset chegar”.
178
. E assim, vários bodes foram chegando, fazendo a
mesma pergunta, com água na boca, lambendo os beiços. Chegaram os bodes Tretrê,
Quaquá, Cincin, Seisei. O tio fez as contas e disse: “Minhas desculpas ao Setset, mas não
vou esperar não!”
179
Pulou a janela e sumiu no mundo. Nesse conto encontram-se as
repetições, próprias das histórias folclóricas, utilizadas como recurso mnemônico e a figura
do bode, que simboliza o mal e, em alguns casos, o Demônio. Verifica-se a presença do
fantástico, representado através dos animais falantes e o suspense da narrativa é composto
pelo cenário: noite chuvosa, cabana abandonada no meio da estrada e a sugestão de que o
protagonista poderia ser devorado pelos bodes.
O conto A rosa assombrada trata sobre uma órfã que viveu em Bom Despacho,
mais de cem anos e possuía o costume de rezar para Santo Antônio na igreja. O sacristão,
apaixonado por ela, ouvia suas orações e no momento em que ela disse: Santo Antônio, me
um sinal! Quero saber com quem eu vou casar...” O sacristão, que estava atrás do altar,
respondeu: “Vovai casar com aquele que lhe entregar uma rosa bem na saída da igreja.”
Depois, ele correu para o cemitério ao lado da igreja, pegou uma rosa e foi esperar a
menina na porta da igreja. Quando a moça apareceu, o sacristão lembrou que a rosa que ele
havia pego era justamente do túmulo da mãe da órfã. Quando ela viu o sacristão segurando
uma rosa na porta da igreja, soltou uma exclamação: “Mãe!”. O sacristão pensou que ela
estivesse vendo a alma de sua mãe atrás dele. Largou a flor e saiu correndo. Outro rapaz
que vinha passando, recolheu a rosa, presenteou-a à moça e com ele a órfã se casou.
Nesta história existem dois elementos temáticos próprios dos contos tradicionais
europeus: a menina órfã e o final feliz com casamento. Percebe-se, também, características
próprias da cultura popular como a crendice e o medo, a menina acredita que um santo
poderá lhe mostrar com quem irá casar e o sacristão fica impressionado com a coincidência
ao perceber que pegou a rosa justamente do túmulo da mãe da órfã. No decorrer da
narrativa, o leitor é conduzido a um clima de suspense, através de elementos como: igreja,
178
Ibid.,p.22
179
Ibid.,p.25
114
cemitério, flor do túmulo, mas, em seguida, a expectativa é desfeita com a explicação do
engano do assustado sacristão. Esse jogo de criar uma expectativa, elevando a tensão no
momento de clímax, e depois resolver a questão de forma catártica, é bastante estimulante
para o leitor, podendo levá-lo a buscar outras obras semelhantes para repetir a sensação de
tensão e alívio.
Em A casa sonhada, uma mulher que vivia na cidade de Pitangui, todas as noites
sonhava com uma casa simples, mas confortável. Certo dia, seu marido foi transferido para
a cidade de Bom Despacho e lá encontrou uma casa exatamente igual àquela que sua
esposa descrevia. Algum tempo depois, o ex-dono da casa apareceu, a mulher demorou a
abrir a porta, estava receosa, porque seu marido não estava em casa. Depois que entrou, o
senhor disse que a casa era mal-assombrada, ligou a luz e saiu correndo. A mulher saiu
correndo atrás e perguntou: “Mas o que foi? O que viu? O que aconteceu? E o homem
respondeu: “Ô meu Deus! Não se preocupe, quem assombra a casa é a senhora mesma!
ele conseguiu explicar, antes de cair desmaiado.”
180
Histórias de casas mal-assombradas são heranças dos contos de castelos
assombrados da Europa. No interior do Brasil, existem muitas superstições do povo, que
ditam regras para que uma alma não fique presa a esse mundo. Quando morre alguém na
casa, todas as janelas e portas devem ficar abertas e serem fechadas após o enterro é preciso
de três pessoas para tratar dos serviços fúnebres: uma, para avisar a morte e convidar para o
velório e enterro; outra, para tratar do atestado de óbito e do féretro e uma terceira, para
comprar a mortalha, nem uma a mais e nem uma a menos. Essas crenças e procedimentos
ilustram o medo do povo frente à morte e o seu desejo de dominar o desconhecido
No último conto, Dançando com o morto, mais uma vez o grotesco e as
características da anedota, relato conciso e jocoso, estão presentes. Uma viúva e seu filho
contavam na cozinha o dinheiro, que encontraram embaixo do colchão, quando o falecido
marido aparece para se sentar à mesa. Depois, mandou o filho tocar a sanfona para dançar
com a mulher, quando esta percebeu que, quanto mais rápido o morto dançava, iam lhe
180
Ibid.,p.50
115
caindo partes do corpo, mandou que o filho tocasse cada vez mais depressa até ele se
desmanchar todinho. Enterraram o morto, mas como a mulher havia dito para o menino que
era para colocar dentro do baú tudo o que era do morto, ele enterrou também o dinheiro
sem que ela percebesse. O tema da ganância, própria do ser humano é tratado nesse
pequeno conto de forma bem-humorada e com um tom moralista, a mulher quis livrar-se
tão rapidamente do falecido marido, que acabou perdendo o dinheiro, que antes contava
alegremente.
Através das resenhas e da análise de determinados das obras dos três autores, é
possível responder às questões norteadoras: Quais são os elementos folclóricos utilizados
pelos escritores Ricardo Azevedo, Joel Rufino dos Santos e Ângela Lago em suas obras?
As narrativas desses autores seguem os moldes dos contos tradicionais? Quanto aos livros
de Azevedo foi possível observar a presença de elementos como, parlendas, adivinhas,
quadrinhas populares, ilustrações no estilo de xilogravuras, figuras folclóricas, entre outros
tantos. Os contos recontados pelo autor seguem a estrutura do conto maravilhoso,
apresentando as funções descritas por Vladimir Propp. Nenhum apresentou as 31 funções
em ordem cronológica, mas, no mínimo, as funções básicas são evidentes: designo, viagem,
desafio ou obstáculo, mediação de doador ou auxiliar mágico, conquista de um objetivo.
Outros contos como O macaco e a velha ou Sapo com medo água o são estruturados
dessa forma, por possuírem outras origens e temas, como a representação do ridículo, da
astúcia, do grotesco. Todas as histórias são ricas em termos e expressões próprios da
oralidade.
A leitura dos livros de Ricardo Azevedo pode ser positiva para a formação do leitor
literário, porque suas obras apresentam diferentes gêneros, o que é importante para que a
criança se familiarize com diversas estruturas. O leitor também tem a oportunidade de
entrar em contato com histórias que revelam a natureza do povo, com as quais ele poderá se
identificar e reconhecer elementos folclóricos, próprios do seu cotidiano. Os personagens
heróicos, estruturas maniqueístas e personagens antagonistas como bruxas, ogros e gigantes
podem ser importantes para os leitores no sentido de ajudá-los a lidar mais facilmente com
suas ansiedades e conflitos. Certamente a riqueza de detalhes e o enredo das histórias
116
recontadas por Azevedo poderão encantar e estimular a imaginação dos leitores facilmente,
auxiliando no processo de consolidação do comportamento de leitura.
Os contos de Joel Rufino dos Santos não seguem a estrutura do conto maravilhoso,
com as funções descritas por Propp. São histórias que resgatam elementos da cultura
africana, como personagens, vocabulário, menção a religiões africanas. No caso de
Histórias de Trancoso, observa-se a representação das relações de poder e submissão, nas
figuras do fazendeiro, do padre e o do roceiro e a forma como o povo, simbolizado por
Trancoso, dribla essa gica através da astúcia. O diferencial da obra de Joel Rufino dos
Santos é que ele não se limita apenas a repetir estruturas e padrões, ele possui um texto
original que, apesar de possuir elementos da cultura popular, não deixa de ser inovador,
permitindo ao leitor realizar inferências e relações entre o texto e suas vivências, seu
conhecimento prévio. Seu papel também é importante no sentido de preservar valores e
expressões da cultura afro-brasileira, favorecendo o desenvolvimento da criticidade e da
capacidade reflexiva do leitor.
Entre os contos de Ângela Lago, constatou-se a presença de animais
antropomorfizados, como em A festa no céu; conto classificado por Luís da Câmara
Cascudo de etiológico, porque explica a origem de um fenômeno, no caso, o casco da
tartaruga em forma de remendos. Em Tampinha, a autora cria uma história conforme a
estrutura do conto maravilhoso e descreve uma personagem de acordo com outros heróis da
tradição européia, porém acrescenta elementos folclóricos brasileiros, como curupira e
cobra grande. Em, Sete histórias para sacudir o esqueleto, Lago reconta anedotas com
temas sobrenaturais, comuns no interior do Brasil, nestes relatos curtos ficou clara a
presença do ridículo, grotesco, expressões da oralidade.
Os três autores apresentaram em suas obras temas e personagens populares,
linguagem concisa, objetiva e expressões comuns da oralidade, características da cultura do
riso e manifestações do grotesco. Todos os personagens protagonistas das histórias são
adultos ou jovens com características especiais que os distingue entre os demais, ou
animais, conforme ocorre nos contos tradicionais, nos quais dificilmente encontramos um
117
protagonista criança. Ângela Lago, Ricardo Azevedo e Joel Rufino dos Santos apresentam
também, soluções fantásticas e o sobrenatural em suas narrativas.
2.2 Entrevistas com os autores de literatura infantil
Os escritores Ricardo Azevedo, Joel Rufino dos Santos e Ângela Lago foram
entrevistados através de e-mail e responderam a questões que procuravam abordar temas
como: a compreensão do autor a respeito da diversidade cultural brasileira e os obstáculos
para manter a identidade plural dessa cultura; qual a motivação que leva o escritor a utilizar
elementos folclóricos em suas produções literárias; quais as fontes utilizadas para se
resgatar os elementos folclóricos que originam as obras de literatura infantil; qual é a
expectativa desses autores em relação ao leitor em formação ao utilizar o folclore como
substrato de suas criações. O objetivo específico desta etapa da investigação foi evidenciar
a compreensão do autor de literatura infantil sobre o seu papel enquanto formador de
leitores e agente de resgate do patrimônio cultural, valorizando os meios de que ele faz uso
para recriar as manifestações da cultura popular. As entrevistas completas estão transcritas
no anexo.
As respostas dos escritores trouxeram uma riquíssima contribuição para a pesquisa
realizada, pois demonstraram diferentes concepções sobre a relação entre a literatura
infantil e a cultura popular, apresentando muitos pontos de contato com questões abordadas
no decorrer desta investigação. A primeira pergunta que procurava demonstrar a visão dos
escritores a respeito da diversidade cultural brasileira e dos obstáculos para mantê-la,
recebeu respostas bastante díspares.
Ricardo Azevedo relacionou a identidade plural brasileira a dois modelos culturais:
um relacionado à cultura oficial, disseminada pelas escolas e universidades, construída a
partir da cultura escrita, e outro modelo não oficial, heterogêneo e influente, das culturas
populares de tradição oral. Segundo o escritor, não levar em consideração o modelo não
oficial é um obstáculo para se compreender a identidade plural. É possível relacionar a fala
de Azevedo com o momento da pesquisa em que se discutiu aspectos referentes à oralidade
118
e literatura, com base nas afirmações de Walter Ong e David Olson. Segundo esses autores,
apesar de a cultura oral ser complexa e desenvolver produções únicas, sofreu durante
muitos anos preconceitos baseados na crença de que o universo letrado seria superior.
Walter Ong torna a questão relativa ao apontar fatos como a existência de milhares de
línguas, mas apenas 106 produzem literatura; apesar da escrita ser altamente valorizada,
todos textos devem estar relacionados a sons; as crenças baseadas na habilidade de escrever
fazem parte de uma visão seletiva dos fatos. E por fim, Ong considera que os estudos e
atenção se concentraram por muito tempo apenas nos textos escritos por um motivo
simples: a própria relação do estudo com a escrita, analisar, classificar, explicar são atos
próprios do universo da escrita e é natural que se relacionem naturalmente com expressões
da cultura escrita, em detrimento da cultura oral.
O escritor Joel Rufino dos Santos se referiu à existência das diferentes etnias que
formam o povo brasileiro, relacionadas às posições sociais. Este estudo investigativo,
serviu, também, para enfatizar a nação multifacetada em que o Brasil se constitui, cujas
primeiras culturas fora: culturas indígenas, culturas européias, culturas negras. A partir
destes seguimentos, desenvolveu-se uma primeira cultura erudita, proveniente das
contribuições portuguesas e uma cultura popular desenvolvida pelos índios, negros e, mais
tarde, pelos colonos vindos de diversas nações. Pelo critério social e econômico, a cultura
erudita passou a ser a cultura oficial das elites, e a cultura popular, não-oficial, pertencente
às classes subalternas. Já a escritora Ângela Lago afirmou que a diversidade cultural e a sua
manutenção não constituem elementos de sua reflexão.
Quanto à questão que procurava identificar a motivação dos autores para que
usassem elementos folclóricos em suas produções, novamente observam-se diferentes
pontos de vista. Ricardo Azevedo é movido por razões conscientes e embasadas do ponto
de vista teórico, uma vez que além de utilizar a cultura popular como ponto de partida para
muitas de suas produções literárias, ele também faz desses elementos objeto de
investigação acadêmica. O autor vê a si mesmo como um agente ativo no resgate das
formas literárias populares e no aspecto mais subjetivo, enquanto desenhista e escritor, ele
afirma que a relação com essa cultura é “fascinante e enriquecedora”.
119
Joel Rufino das Santos inicia a sua resposta a essa mesma questão com uma
ressalva: “o que você chama de folclore (expressão algo pejorativa para designar algo de
pouco valor, exótico, etc.), é melhor chamar de cultura popular.”Durante o
desenvolvimento dessa investigação, viu-se que a expressão cultura popular, na linguagem
corrente, também é aplicada com sentido pejorativo, ligada à ignorância, ao tosco, ao mal-
elaborado. Do mesmo modo, o termo folclore pode ser entendido pelo senso comum como
uma reunião de curiosidades ou elementos exóticos, que não fazem parte do dia-a-dia das
pessoas e estão cristalizados, mortos no passado. Essas concepções são heranças da
“descoberta do povo” ocorrida nos séculos XVIII e XIX, marcados por inúmeros estudos
sobre o folclore, porém utilizando metodologias duvidosas, embasados por sentimentos
nacionalistas exacerbados e por um romantismo ingênuo. Nesta investigação, quando se
refere à cultura popular, faz-se menção às idéias emancipadoras da moderna antropologia
que, em poucas palavras, concebem a cultura popular como o modo de ser, viver, pensar e
agir, gerando uma concepção de mundo grupal, ligada às classes subalternas de uma dada
coletividade. Possui expressões heterogêneas riquíssimas, de transmissão essencialmente
oral, que perpassa e influencia a cultura oficial, ligada ao universo da escrita. Entende-se
folclore da mesma forma, como um fenômeno coletivo, dinâmico, vivo e atual, no qual
observam-se expressões estéticas como dança, música, literatura, entre outras. Para Joel
Rufino a opção pela utilização dos elementos folclóricos se por motivos subjetivos de
identificação, “em geral me encanto mais com eles do que com os elementos da cultura
propriamente dita.”Ângela Lago cita como motivação a sua identificação pessoal com a
cultura popular e, porque esta é acessível a todos, inclusive para a criança, seu público
leitor.
A terceira questão visava investigar os critérios de seleção dos elementos folclóricos
utilizados pelos escritores. Nenhum dos autores detalhou preocupações específicas de
seleção como temas que, supostamente, não seriam adequados para crianças, preocupações
moralistas, estéticas ou didáticas. Ricardo Azevedo afirma que o único critério é
disponibilizar ao leitor acesso ao discurso e procedimentos de linguagem originados na
cultura popular. Joel Rufino utiliza o critério da sensibilidade. Ângela Lago não tem
consciência de nenhum critério.
120
Quanto às fontes de pesquisa utilizadas para o resgate dos elementos folclóricos,
Ricardo Azevedo afirma que a sua fonte é essencialmente livresca, Ângela Lago, que
utiliza fontes orais e livrescas, Joel Rufino utiliza a sua memória, pessoas e livros. Os três
autores apontaram como fonte outros livros, portanto o material utilizado por eles havia
sido resgatado, porém, devido a questões editoriais, como explicou Azevedo, essa literatura
popular jamais seria acessada pelo leitor em formação.
Sobre as expectativas dos autores ao utilizar os elementos folclóricos, Azevedo
novamente destaca a sua consciência enquanto formador de leitores: a utilização de
procedimentos ligados à cultura oral pode servir de ponte entre o leitor inserido nessa visão
de mundo popular com a cultura oficial. Ângela Lago também espera cativar o leitor dentro
de um universo em que ele se reconheça, que esteja incluído. Rufino destaca expectativas
estéticas e críticas, que o leitor se encante, assim como o autor e que cheguem a realizar
uma reflexão crítica sobre a dominação social e desvalorização da cultura popular.
Tendo em vista que os três escritores utilizam procedimentos de uma cultura
essencialmente oral, a sexta e última questão abordava as definições relacionadas aos
diferentes suportes na visão desses autores: 6- Contos tradicionais, lendas, adivinhas,
originalmente transmitidos através da oralidade, quando fixados em suportes como o livro,
vídeo, Cd-Rom, etc, ainda podem ser considerados cultura popular? Para Ricardo Azevedo
e Ângela Lago, manifestações folclóricas em novos suportes não poderiam continuar sendo
consideradas cultura popular, pois para o primeiro a cultura popular é essencialmente oral
e, para Lago, o suporte não influencia a questão e sim, o sujeito que produz a obra. Para
Joel Rufino, pode ser considerada cultura popular, ainda que esteja sendo vinculada a um
suporte da cultura de massa.
De acordo com as proposições teóricas estudadas no decorrer desta investigação, a
cultura popular é um modelo de visão de mundo, relacionada às camadas empobrecidas da
sociedade, transmitida de forma essencialmente oral, não estando vinculada a nenhuma
instituição, constituindo-se num conjunto de crenças e de práticas de uma coletividade.
121
2.3 Entrevista com os leitores
Foram entrevistados 14 leitores das obras analisadas anteriormente, 7 meninos e 7
meninas, com idades entre 9 e 12 anos. Os sujeitos foram selecionados através de suas
fichas de leituras na biblioteca da escola, ou do Centro de Referência de Literatura e
Multimeios, por constarem entre os livros retirados por eles os títulos selecionados para
essa investigação. Os sujeitos responderam às questões referentes aos motivos que os
levaram a escolher essas leituras e qual a influência dos elementos folclóricos presentes
nelas para a formação desses jovens enquanto leitores do texto literário. Não serão
informados os nomes dos sujeitos e sim será determinado um número para sua
identificação, conforme a ordem em que foram entrevistados.
Dois sujeitos, ambos com 10 anos, uma menina e um menino, foram os leitores da
obra Meu Livro de folclore, de Ricardo Azevedo selecionados. Para a primeira questão 1-
Por que você escolheu esse livro? O Sujeito 2 respondeu: “Porque me chamou mais a
atenção as figuras da capa” e o Sujeito 11: “Porque eu acho interessante o folclore”.
As respostas apontam para a importância dos elementos estruturais da obra como o
título, que deve aguçar a curiosidade do leitor, ilustrações e aparência do livro. As edições
das obras analisadas são bem elaboradas, as ilustrações e o projeto gráfico (capa,
diagramação do texto, fontes das letras, criação e disposição das ilustrações) dos livros de
Ricardo Azevedo são do próprio autor, de forma que o produto final, além de ser muito
atraente do ponto de vista estético, é coerente com a proposta do texto, promovendo um
diálogo entre ambos. As ilustrações acrescentam significados ao texto complementando-o,
e são tecnicamente bem realizadas. Ângela Lago também ilustra seus livros, cujos desenhos
lembram os traços infantis, com características subjetivas, que ampliam o potencial
significativo do texto. José Flávio Teixeira ilustrou todas as obras de Joel Rufino,
pertencentes à coleção Curupira, entre elas, os três títulos lidos pelos alunos; na sua
proposta os desenhos possuem traços simples e cores vibrantes e são mais descritivos,
tornando-se, algumas vezes, redundantes em relação ao texto. Com sua resposta, o Sujeito
122
11 deixa implícita a informação de que ele possui um conjunto de conhecimentos prévios,
que lhe permitem considerar folclore algo interessante, e, que, portanto, uma obra cujo
título é: Meu livro de folclore poderá ser de agradável leitura.
A segunda questão 2- Voouviu alguma história parecida? E a sua seqüência 3-
Você lembra de detalhes e personagens dessa história que você conhecia? objetivavam
levantar os conhecimentos prévios do leitor sobre folclore e características dos contos
tradicionais. Os Sujeitos 2 e 11 afirmaram conhecer histórias parecidas, porém, somente um
conseguiu lembrar claramente de detalhes de uma outra história: “Eu ouvi uma história
parecida, que era sobre um homem que queria matar um animal, que ele se
surpreendeu, porque o animal atingiu ele.” Ao ser perguntado sobre como entrou em
contato com essa história semelhante, o sujeito afirmou que a sua avó contou. O sujeito que
não se recordava de detalhes da história, disse que ninguém havia lhe contato, ele leu em
um livro e ao ser perguntado 3- Você saberia dizer o título de algum livro que possui
personagens semelhantes? Lembrou-se de outra obra de Ricardo Azevedo, que não foi
selecionada para análise por não ser vinculada de forma específica com o universo popular:
Dezenove poemas desengonçados.
A questão: 4- Você costuma ouvir histórias? Quem as conta para você? objetivava
investigar se os sujeitos tinham o hábito de ouvir histórias e identificar quem contava para
eles. O Sujeito 2 afirmou que a sua professora conta na escola, e em casa, apenas quando
era mais novo contavam-lhe histórias como “Os três porquinhos”. O Sujeito 11 revelou que
sua avó, sua mãe e as professoras contam histórias. Essas questões são importantes para o
entendimento do processo da formação do leitor e de sua relação com histórias de
inspiração folclórica, uma vez que, ao ter o hábito de ouvir histórias, a criança já internaliza
a estrutura das narrativas antes mesmo de ser alfabetizada e sente prazer ao reencontrar
esses esquemas nas obras de literatura infantil, além de ser um importante momento de
proximidade entre o contador e o ouvinte. Bettelheim
181
afirma que o prazer de um
momento de afetividade, quando os pais contam histórias para o filho, pode surgir quando a
criança ouve um conto cujo conteúdo se relaciona com algum conflito inconsciente que a
181
BETTELHEIM, op.cit.,p.20
123
perturbe. Ela poderá sentir prazer em ouvir várias vezes o mesmo relato, porque a resolução
de situações problemáticas nessas narrativas pode aliviar a ansiedade advinda de conflitos
naturais do desenvolvimento humano.
Na apresentação da questão 6 aos Sujeitos 2 e 11 foi perguntado: Entre os
personagens da obra Meu livro de folclore, qual foi o que mais lhe chamou a atenção? Por
quê? o Sujeito 2 apontou o lobisomem, descrito no bestiário, e apresentou como
justificativa o fato de sentir muito medo desse personagem. O Sujeito 11 respondeu: “O
sapo, porque os homens queriam matar ele afogado, mas os homens jogaram ele no rio e ele
saiu nadando”. Infere-se dessa resposta que a graça transmitida pela astúcia com que o
personagem consegue livrar-se da situação de perigo tenha agradado o leitor. Apesar do
medo que o Sujeito 11 afirma sentir do personagem, em sala de aula ele sugere
constantemente à professora que faça a leitura da descrição presente no livro de Ricardo
Azevedo (ele possui um exemplar da obra) ou que conte histórias relacionadas ao tema. Ao
perceberem características violentas e assustadoras, como o personagem lobisomem, alguns
pais e educadores refutam a idéia de lerem para as crianças histórias folclóricas, mas os
estudos de Bettelheim apontam para um aproveitamento positivo desses temas por parte das
crianças, conforme o exemplo narrado pelo autor:
Encorajada pela discussão sobre a importância que os contos de fadas m
para as crianças, uma mãe venceu sua hesitação em contar estas estórias
“sangrentas e ameaçadoras” para seu filho. A partir de suas conversas com
ele, soube que o filho tinha fantasias de comer gente ou de pessoas
sendo devoradas. Então ela contou-lhe “João, o Gigante Matador”. A
resposta dele no final estória foi: “Não existem coisas como gigantes,
existem?”. E antes que a mãe pudesse das a resposta reasseguradora que
estava na ponta da língua e que teria destruído o valor da estória ele
continuou: “Mas coisas como gente grande, e elas são como gigantes”.
Na amadurecida idade avançada de cinco anos, ele compreendeu a
mensagem encorajadora da estória: embora os adultos pareçam gigantes
assustadores, um menininho com astúcia pode vence-los.
182
Os Sujeitos 5, 9 e 14 leram a obra Armazém do folclore, de Ricardo Azevedo. O
primeiro leitor, com 9 anos, não soube especificar o motivo que o levou a retirar a obra na
182
Ibid.,p.35
124
biblioteca. O Sujeito 9 respondeu que conhecia esse livro e o considera muito
interessante. O Sujeito 14 leu vários títulos escritos por Ricardo Azevedo, porém, a obra em
questão foi indicada por sua professora.
Em relação à questão 2- Você conhecia alguma história semelhante a esta que você
leu? o Sujeito 5 respondeu que leu em outros livros, mas não se recorda de nenhum
detalhe. O Sujeito 9 ouviu ditos populares semelhantes aos do livro, porém não sabe
precisar em que locais os escutou. O Sujeito 14 lembrou do conto A quase morte de
Malandro, pertencente à obra Contos para enganar morte, também de autoria de Ricardo
Azevedo. Os três sujeitos não têm o hábito de ouvir histórias em casa, apenas na escola,
mas destacaram o fato de serem leitores, como se observa na resposta do Sujeito 14: “Eu
não costumo muito ouvir histórias. Eu leio histórias, mas ninguém conta para mim. Quando
vem uma amiga pequena aqui em casa, eu conto e leio histórias para ela. É bem divertido.”
O leitor demonstra sentir prazer em escutar histórias, mas como a prática não é
habitual em sua casa, ele conta histórias para crianças mais novas, assumindo o papel de
mãe ou de professora. A partir dessa observação, destaca-se a importância do relato oral na
formação dos leitores, tanto por parte dos educadores, quanto pelos pais, mesmo depois que
a criança passa da primeira infância. Durante um momento de contação, o adulto pode ser
um mediador da leitura, interagindo, repetindo fragmentos da história conforme a vontade
do ouvinte, compartilhando significados e tornando agradável o contato da criança com a
literatura.
Os personagens da obra Armazém do folclore que mais chamaram a atenção dos
Sujeitos 5 e 9 foram: a bruxa, a princesa. A primeira foi citada por um menino, que não
quis justificar a sua escolha e a princesa por uma menina, que justificou a escolha pela
beleza da personagem. O Sujeito 14 leu inúmeras obras de Ricardo Azevedo, por isso
citou personagens que pertenciam a outras obras: “O Malandro, o Moço imundo, a
Morte, porque eles sabiam o que fazer, não desistiam nunca e são muito legais.” Portanto,
dois temas universais, próprios dos contos tradicionais motivaram a identificação dos
125
leitores: a presença da princesa, representando o ideal de beleza feminina e a persistência
dos heróis. Sobre a questão da identificação Bettelheim destaca que:
As escolhas das crianças são baseadas não tanto sobre o certo verus o errado,
mas sobre quem desperta sua simpatia e quem desperta sua antipatia. Quanto
mais simples e direto é um bom personagem, tanto mais fácil para a criança
identificar-se com ele e rejeitar o outro mau. A criança se identifica com o
bom herói não por causa de sua bondade, mas porque a condição do herói lhe
traz um profundo apelo positivo. A questão para a criança não é “Será que
quero ser bom?” mas “Com quem quero parecer?”. A criança decide isto na
base de se projetar calorosamente num personagem. Se esta figura é uma
pessoa muito boa, então a criança decide que quer ser boa também.
183
Nos contos amorais, em que os personagens não podem ser divididos entre bons e
maus, como é o caso de Zé Malandro (citado pelo Sujeito 14), cujo sucesso se dá através da
trapaça, o interesse da criança ocorre ao perceber que mesmo os medíocres podem alcançar
sucesso na vida, a moralidade não é a questão mais importante nesses contos, mas o auxílio
que lança ao leitor, muitas vezes em nível inconsciente, de que ele poderá enfrentar a vida
com perspectiva de sucesso.
O Sujeito 13, leitor da obra No meio da noite escura tem um de maravilha, de
autoria de Ricardo Azevedo, não lembra por que escolheu a obra para leitura. Afirmou que
ouviu histórias que acabavam da mesma forma que os contos do livro: “Eles vivem
felizes para sempre”. Ele teve contato com essas histórias, com final semelhante, porque leu
em livros ou alguém lhe contou. Quanto à questão 4- Você costuma ouvir histórias? Quem
as conta para você? O leitor respondeu “Minha irmã e meu professor”. O personagem que
mais chamou a sua atenção foi: “a menina, ela é trabalhadeira e é a personagem principal.
Ela é a personagem da história O príncipe encantado no reino da escuridão.” Todos os
leitores das obras de Ricardo Azevedo responderam de forma positiva a questão sobre o seu
interesse em continuar lendo livros desse escritor, demonstrando um elo entre o universo
infantil ao qual fazem parte e a mentalidade popular representada nas obras. Nelly Novaes
Coelho
184
trata dessa identificação entre o popular e o infantil. Segundo a autora, dados da
183
Ibid.,p.18
184
COELHO, N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. p. 40
126
psicologia demonstram que a mentalidade popular e a infantil identificam-se por uma
consciência primária na apreensão do eu interior ou da realidade exterior, isto é, as relações
com o outro se dão basicamente através da sensibilidade ou das emoções. A cultura popular
e o universo infantil possuem um conhecimento da realidade que se dá através do emotivo e
da intuição, em ambos predomina o pensamento mágico, com sua lógica oposta ao
racionalismo da cultura letrada e erudita.
Dois meninos, os Sujeitos 1 e 8, leram a obra Dudu Calunga, de Joel Rufino dos
Santos. Para a primeira questão - Por que vo escolheu esse livro? deram as seguintes
respostas: “Por que eu achei ele muito legal.” (Sujeito 1); “Porque eu tinha ouvido uma
história parecida com essa e eu achei o livro interessante.” (Sujeito 8). O Sujeito 1
relacionou a personagem de Joel Rufino com o Saci, personagem apresentado no programa
de televisão inspirado na obra de Monteiro Lobato, tio do Picapau Amarelo; o Sujeito
8 relacionou Dudu Calunga com o personagem da lenda do Rio Grande do Sul, Negrinho
do Pastoreio, com a qual o aluno teve contato, porque a sua professora contou em sala de
aula.
Os dois leitores têm o hábito de ouvir histórias contadas por suas mães e por
professoras. O Sujeito 8 lembrou-se de uma pequena fábula contada por sua mãe e ditos
populares. “Ela também conta ditos tipo: filho de peixinhos, peixinho é. E daí tem outra
história que é assim: Tinha uma cobra de floresta e uma tartaruga, daí a cobra perguntou
para a tartaruga: “Tu me leva até o outro lado do mar?”. A tartaruga falou: “Claro”. a
tartaruga pensou: “Sim, porque se ela me morder, eu e ela vamos nos afogar, então vou
levar ela.” Na metade do caminho a cobra mordeu a tartaruga. E a tartaruga perguntou: “por
que você me mordeu se agora eu e você vamos nos afogar?” A cobra falou: “Por que é meu
instinto.” Destaca-se novamente a importância do contar histórias fato evidenciado pelo
Sujeito 8 ao recordar com detalhes a história que foi contada por sua mãe, provavelmente
essa prática alimentaa sua imaginação, será fonte de modelos e estruturas textuais e o
ajudará a formar-se como um leitor literário, crítico e atuante.
127
Ambos os sujeitos citaram o Dudu Calunga como o seu personagem preferido da
história e justificaram de forma diferente suas escolhas: “O Dudu Calunga, porque ele tava
batendo pandeiro e daí, enquanto ele batia o pandeiro ele dizia umas palavras e as pessoas
que estavam dançando iam diminuindo e cabendo dentro do pandeiro.” (Sujeito 8); “Dudu
Calunga, porque ele é muito engraçado.”(Sujeito 1). Também os dois demonstraram
interesse em continuar lendo as obras de Joel Rufino dos Santos. O elemento que mais
chamou a atenção do Sujeito 8, no personagem Dudu, foi a sua capacidade mágica de
diminuir o tamanho das pessoas, o que remete novamente às palavras de Nelly Novaes
sobre a aproximação entre o universo popular e o infantil, através do pensamento mágico.
Na contra capa do livro Dudu Calunga, existe uma sugestão de faixa etária para os
leitores da obra, 6 anos, porém nas fichas da biblioteca da escola não havia nenhuma
retirada da obra por crianças com essa idade e, no Centro de Referência de Literatura e
Multimeios, a maior parte das retiradas foram efetivadas por professores, ao realizarem o
empréstimo de sacolas de leitura
185
, ou por crianças a partir de nove anos. Optou-se por
entrevistar os Sujeitos 1 e 8, que possuem respectivamente 9 e 10 anos, estudantes de uma
escola particular os quais possuem o hábito de ler até um livro por semana. Apesar da
indicação da obra Dudu Calunga às crianças de 6 anos, acredita-se que os sujeitos não
possuem um baixo nível de compreensão, mas sim, que são estimulados pelas discussões de
questões como a negritude que ocorrem com maior freqüência a partir da 4ª série do Ensino
Fundamental. Durante a Educação Infantil e as primeiras séries do Ensino Fundamental, a
literatura infantil que é trabalhada na escola, ou lida pelos pais em casa, trata de temas
relacionados basicamente ao folclore europeu, e, por isso, infere-se que Dudu Calunga
poderia fazer pouco sentido ao leitor dessa faixa etária, levando em consideração, ainda, o
fato de esses Sujeitos fazerem parte de uma classe social média ou alta, serem descendentes
principalmente de alemães e italianos e não terem contato com crianças negras na escola.
185
O Centro de Referência de Literatura e Multimeios Mundo da Leitura presta aos professores o serviço de
empréstimo de sacolas de leitura, com 35 títulos, selecionados por eles de acordo com a sua necessidade ou
pelos monitores do Centro. Os livros podem ser repassados na escola para os alunos para a leitura em sala de
aula ou em casa.
128
A obra A botija de ouro, escrita por Joel Rufino dos Santos, foi lida pelos Sujeitos 4
e 12, com 9 e 10 anos respectivamente, que deram as seguintes justificativas para a escolha:
“Porque a minha professora indicou.” (Sujeito 4); “Porque eu gosto de livros de escravos”
(Sujeito 12). Quando perguntados na questão 2- Você já conhecia alguma história
semelhante? o Sujeito 4 lembrou-se da lenda da Mãe Preta
186
, contada pela professora de
sua série. O Sujeito 12 recordou-se do seu livro didático, que trazia informações sobre a
escravidão no Brasil. Sobre o hábito de escutar histórias, o Sujeito 4 disse que, além da
professora, os seus familiares lhe contam histórias como Soldadinho de Chumbo, A Bela e
a Fera e vários contos de fadas. Ao contrário, o Sujeito 12 não possui ninguém que lhe
conte histórias em casa. Os dois leitores destacaram a Moleca como a personagem que mais
chamou a atenção, pelo fato de ela passar fome e, por isso, comer parede. O tema da fome
impressionou muito os leitores, apesar de não fazer parte de suas vivências passar por
necessidades ou ver outras pessoas em situação de miséria absoluta. A imagem criada por
Rufino é muito contundente, sendo, até certo ponto, um desafio para a imaginação da
criança de classe média.
Apenas o Sujeito 7 leu a obra História de Trancoso, de Joel Rufino dos Santos. Ele
não soube especificar por que havia escolhido este livro. Ao ser questionado sobre seu
conhecimento de histórias semelhantes, destacou o personagem Seu Barnabé, do programa
de televisão Sítio do Picapau Amarelo. Perguntado sobre seu hábito de ouvir histórias,
respondeu: “Eu não costumo ouvir histórias, mas assisto na televisão e leio livros. Para a
pergunta 6- No livro História de Trancoso, qual é o personagem que mais chamou a sua
atenção? Por quê? apresentou a seguinte resposta:“Trancoso, porque eles estavam
disputando para ver quem é que ficava com o queijo e quem tivesse o sonho mais bonito
ficaria com o queijo e os dois, o padre e o fazendeiro disseram que sonharam que estavam
no céu e daí o Trancoso disse que então, que eles estavam no céu eles não iriam sentir
186
Existe na cidade de Passo Fundo uma fonte em homenagem à Mãe Preta. Segundo moradores do local,
essas terras pertenciam ao Cabo Neves, um dos primeiros habitantes da cidade. Ele possuía muitos escravos,
e, devido aos maus tratos alguns fugiram da fazenda, entre eles, um jovem que deixou sua mãe. Diz a lenda,
que Mãe Preta, como era chamada, chorou até ser visitada por Deus, que lhe acalmou dizendo que seu filho
estava muito melhor e fez com que de suas lágrimas se formasse uma fonte. O rapaz teria sido enviado para a
guerra do Paraguai, aonde veio a falecer. Fonte: BECKER, P. Histórias afro-brasileiras. Passo Fundo: UPF
Editora, 2002
129
falta do queijo e então ele comeu o queijo.” O Sujeito 7 também respondeu positivamente à
questão sobre o seu interesse em continuar lendo livros do autor. Histórias de Trancoso
também pode ser considerada uma narrativa amoral, porque todos os personagens tentam
trapacear para obter o objeto de desejo, o queijo. O protagonista, além de ser trapaceiro, é
descrito como feio e com cara de bobo, mesmo assim, é o personagem que mais chama a
atenção do leitor, por causa de sua esperteza.
O Sujeito 6, uma menina com 12 anos de idade, escolheu o livro Tampinha, de
Ângela Lago para a leitura. A escolha da obra se deu em virtude do interesse pelo título:
“eu achei o nome do livro interessante, eu nunca tinha visto um nome assim: Tampinha, eu
achei curioso. A leitora afirmou que nunca escutou uma história semelhante a essa e que
não possui o hábito de ouvir histórias, apenas de lê-las nos livros. O personagem que mais
chamou a sua atenção foi a própria Tampinha: “porque ela é uma menina muito pequena e
daí dá para a gente imaginar uma menina bem pequenininha, que a gente nunca vê alguém
assim, parecido e são bem curiosas as aventuras que ela faz dentro do livro.” A entrevistada
também demonstrou desejo em continuar lendo os livro de Ângela Lago: “sim, porque eu
acho que os livros dela são bem interessantes, ela escreve bem e a gente fica com
curiosidade enquanto está lendo e quer ler cada vez mais.” Quando o Sujeito 6 diz que o
interessante no livro é poder imaginar uma menina pequenina, que não pode ser encontrada
na realidade, sua resposta lembra a importância da subjetividade da criança no momento da
leitura, quando ela aciona as suas experiências vivenciais e literárias, emoções, imaginação,
fantasia e relaciona com o discurso do autor, de modo que a sua contribuição no momento
da leitura é tão significativa, quanto a do escritor. Ler, portanto, se torna um processo
cooperativo entre ambos.
Os Sujeitos 3 e 10 leram a obra Sete histórias para sacudir o esqueleto, de Ângela
Lago. Não foi possível entrar em contato com nenhum dos leitores de A festa no céu,
devido a dificuldades para contatar os pais das crianças.
O Sujeito 3 afirmou que escolheu essa obra para a leitura, porque já tinha conhecido
o livro em outra oportunidade e o Sujeito 10, porque achou interessante o título. Quando
130
perguntados, na questão- Você conhece alguma história parecida com essas do livro que
você leu? o Sujeito 3 respondeu: “Mais ou menos. Era uma história de terror, mas assim
não, era mais de suspense, essas são engraçadas.” Nos contos do livro, alguns elementos
fantásticos recebem explicações racionais ao final da narrativa, que desfazem a tensão
causada pela presença do sobrenatural, pode-se comparar, por exemplo as versões do conto
Caio, de Ângela Lago e Ricardo Azevedo. Enquanto o autor termina a sua versão com o
esqueleto entregando um tesouro ao viajante, a versão de Ângela Lago termina com a
descoberta do caseiro tentando assustar o comprador da casa. Os dois Sujeitos não escutam
histórias de seus familiares ou de professores, o que pode ser considerado um fator negativo
em sua formação como leitores, pois ao contar histórias os pais ou professores vivenciam
junto às crianças um momento de leitura compartilhada que pode ser muito estimulante e
enriquecedor.
O Sujeito 10 afirmou que o personagem que mais chamou a sua atenção foi o
defunto: “ele chamou minha atenção, porque era um cara normal, que não tinha dinheiro
para pagar as contas, daí ele fingiu que estava morto.” O Sujeito 3 diz ter gostado mais do
Caio: “porque até descobrir o que era esse Caio, eu queria ficar lendo e lendo até
descobrir.” Os dois leitores gostariam de continuar lendo livros da autora Ângela Lago, o
que demonstra a eficácia dos recursos literários utilizados pela autora, como os temas
ligados ao sobrenatural e ao fantástico, narrativas concisas e objetivas, vocabulário popular
e ilustrações significativas.
A maior parte dos entrevistados, 10 sujeitos, responderam positivamente à questão,
que objetivava investigar se os leitores possuem referências sobre histórias folclóricas e
quais são as fontes dessas referências. Conforme as respostas, pode-se inferir que os
leitores possuem conhecimento prévio acerca da cultura popular adquiridos através dos
livros, professores, oralmente e através da televisão.
Os Sujeitos levam em consideração elementos como, título, temas dos livros e
informações que possuem acerca da cultura popular para escolherem as suas leituras. Os
conhecimentos prévios que influenciam na escolha do livro provavelmente sejam
131
desenvolvidos no ambiente escolar, que em agosto, mês em que algumas das entrevistas
foram realizadas, comemora-se nas escolas o mês do Folclore, conforme o Decreto Federal
56.747, de 17-08-1965 que sugere a promoção de iniciativas nos estabelecimentos de
ensino que divulguem a importância do folclore e ordena a celebração do Dia do Folclore
em 22 de agosto. As comemorações realizadas nesse mês são duramente criticadas por
estudiosos dos fenômenos culturais como Rossini Tavares de Lima, porque, segundo eles,
existe uma compreensão errônea do que seja folclore e este é repassado para as crianças
como algo antiquado e morto, que deve ser lembrado como se fosse um simples compêndio
de curiosidades. Acredita-se que o mês do folclore deva ser celebrado nas escolas, porém
através de atividades que possam demonstrar aos alunos que a cultura popular é dinâmica e
flexível, produzida a cada instante na vida de uma comunidade.
As respostas evidenciaram a presença do professor como o mediador da leitura e,
também de elementos culturais, como as lendas, mitos e contos orais. É expressivo o dado
da presença da televisão, citado também em algumas respostas, porém não dado
referente ao computador e à internet, mesmo existindo um grande número de sites
direcionados a essa faixa etária, contendo histórias folclóricas, até mesmo dos próprios
autores selecionados (www.angela-lago.com.br
187
, www.ricardoazevedo.com.br
188
,
www.canalkids.com.br ).
As perguntas feitas aos entrevistados não apresentavam alternativas de respostas e
os encontros foram individuais, de modo que uma criança não tivesse contato com a outra
para não influenciar as respostas, no entanto alguns dados se repetiram significativamente,
como o fato de os leitores destacarem que ninguém lhes contava histórias, porém os livros
fazem esse papel:
-“Não costumo ouvir, eu costumo pegar os livros e eu mesmo leio.” (Sujeito 6).
187
O site foi desenvolvido pela própria escritora e ilustradora Ângela Lago. Tanto as animações, quando o
conteúdo foram criados por ela. Nesse espaço virtual a escritora divulga suas obras, apresenta brincadeiras
com elementos folclóricos, como as adivinhas e produz jogos interativos.
188
O site desenvolvido por Ricardo Azevedo traz informações sobre seus livros, ilustrações do próprio autor,
e um espaço dedicado à pesquisa de ditos populares e frases feitas entre os internautas. O autor disponibiliza,
ainda, artigos online sobre a relação entre cultura popular e literatura infantil, formação do leitor, entre outros.
132
-“Ninguém conta para mim, mas eu gosto muito de ler, porque eu sou muito curiosa.”
(Sujeito 9)
-“Eu não costumo ouvir histórias, eu mesmo leio para melhorar a minha leitura.” (Sujeito
10).
-“Eu não costumo ouvir histórias. Eu leio histórias, mas ninguém conta para mim. Quando
vem uma amiga pequena na minha casa, eu conto e leio histórias para ela. É bem
divertido.” (Sujeito 14)
-“Eu não costumo ouvir histórias, mas assisto na televisão e leio livros.” (Sujeito7)
A televisão, com a sua linguagem audiovisual, é vista como uma herdeira do contar
histórias, assim como o livro. Porém, o computador, talvez por sua estrutura hipertextual de
leitura, não é relacionado ao ato de contar na experiência desses leitores, que possuem
acesso a essa tecnologia na escola, no Centro de Referência de Literatura e Multimeiros e
alguns, em sua residência. Os alunos foram questionados informalmente sobre o uso que
fazem da rede de computadores, no sentido de ler histórias ou pesquisar informações
relacionadas à cultura popular. A resposta obtida é muito semelhante em todos os casos:
eles utilizam os computadores apenas para interagir com jogos e fazer pesquisas escolares.
Essa questão não recebeu maior atenção durante a investigação, pois fugia ao objetivo da
pesquisa, porém cabe ressaltar que nesse ponto se abrem várias possibilidades de estudo.
A última questão feita aos sujeitos entrevistados -Você possui interesse em
continuar lendo livros de (autores lidos)? - objetivava investigar se a leitura dessas obras
havia influenciado a formação do leitor, no sentido de incentivá-los a ler mais. Todas as
respostas foram positivas, muitos dos alunos conheciam os escritores e obras
selecionadas para análise, porque participaram da Jornadinha Nacional de Literatura,
bem como da Pré-jornadinha
189
, promovida pelo Mundo da Leitura e pela própria escola, o
que pode ter influenciado nas respostas, que na grande maioria citaram o carinho pelo
escritor e a qualidade dos livros:
189
O Centro de Referência de Literatura e Multimeios nos meses que antecedem as Jornadinhas Nacionais de
Literatura desenvolve um caderno de atividades, que é distribuído para as escolas que participarão do evento.
No caderno são sugeridas algumas atividades para que os professores desenvolvam com os alunos a partir da
leitura das obras indicadas, escritas pelos autores participantes do evento. Cada turma deve apresentar um
produto final proveniente da atividade realizada.
133
-“Porque é o autor que eu mais gosto.” (Sujeito 2, referindo-se a Ricardo Azevedo).
-“Sim, porque ele é um escritor que escreve bem as histórias.” (Sujeito 4, referindo-
se a Joel Rufino dos Santo).
-“Sim, porque eu acho que os livros dela são bem interessantes, ela escreve bem e a
gente fica com curiosidade enquanto está lendo e quer ler cada vez mais. (Sujeito 6,
referindo-se a Ângela Lago)
-“Sim, porque eu gosto muito desse escritor.” (Sujeito 12, referindo-se a Joel Rufino
dos Santos).
Em Passo Fundo, devido à movimentação cultural promovida pelas Jornadas
Literárias, existe uma intimidade entre leitores e escritores. algum tempo, essa ligação
mais estreita era observada apenas entre os adultos que participavam das mesas redondas
no Circo da Cultura, local onde são realizadas as Jornadas de Literatura. Atualmente, com a
criação das Jornadinhas de Literatura, que têm como público alvo a criança e o adolescente,
já é possível perceber um clima de cumplicidade entre os leitores em formação e os autores.
Alguns dos sujeitos da pesquisa participaram das três edições da Jornadinha, possuíam
livros autografados dos autores e esses momentos de encontro são aguardados
ansiosamente por eles, fazem parte da sua memória afetiva, sendo o escritor visto como
uma espécie de herói ao qual eles têm acesso.
Através das respostas dos leitores é evidenciado que eles possuem conhecimento
dos elementos folclóricos presentes nas obras, porque os reconhecem e relacionam com
outras manifestações folclóricas conhecidas através dos professores, dos livros, dos
familiares e da televisão. Eles se identificam com os personagens, possuem prazer em ler as
histórias, porém um dos fatores que mais os motiva em relação a essas obras é a própria
figura do escritor e a qualidade do texto, que segundo eles é de fácil entendimento,
interessante, divertido.
A escola é o espaço privilegiado para prover o contato entre os leitores em formação
e as obras literárias, e, também com o patrimônio cultural brasileiro, perpetuado através do
134
folclore. A professora, na maioria das vezes, será a única contadora de histórias da vida da
criança e deve investir nessa função para garantir que o comportamento de leitura se
consolide. No caso dos sujeitos da pesquisa, é percebido no momento da fala, que as
crianças lamentam o fato de que seus pais não contam histórias, mas que os livros contam
e, por isso, referem-se se a estes com carinho. Esses leitores possuem, ainda, o privilégio de
poder freqüentar o Centro de Referência de Literatura e Multimeios, conhecido
afetivamente por eles como Mundo da Leitura. Nesse espaço são inúmeros os apelos para
que o leitor realize suas descobertas literárias, acessando textos em diferentes suportes e
linguagens, sendo acompanhados nesse processo pelos monitores de leitura que, através de
uma postura afetiva e estimulante, conduzem os visitantes em um labirinto de
possibilidades.
135
3. SE NÃO DEU CERTO, É PORQUE AINDA NÃO ACABOU - A
CULTURA POPULAR E A FORMAÇÃO DO LEITOR
O ditado popular - Se não deu certo, é porque ainda não acabou- refere-se ao final
feliz presente na maioria das narrativas populares, baseado na concepção de que tudo se
renova continuamente, num ciclo positivo de vida. Da mesma forma, pode-se pensar a
questão da formação do leitor, que está muito longe de uma condição ideal, porém se
pode acompanhar experiências exitosas no sentido de criar a necessidade de leitura, como
as atividades do Centro de Referência de Literatura e Multimeios, as Jornadas e
Jornadinhas de Literatura, as perspectivas do Plano Nacional do Livro e da Leitura do
Ministério da Cultura.
Ao partir do pressuposto de que a cultura popular está presente na literatura infantil
e se relaciona com essa produção desde a sua origem, pode-se inferir que ela possui uma
importância histórica na formação do leitor. As primeiras obras destinadas ao público
infantil, como se constatou no decorrer da investigação, foram histórias contadas por
camponeses medievais imersos em uma cultura essencialmente oral, que foram recriadas e
adaptadas ao novo destinatário. Atualmente, inúmeros estudos, de diferentes áreas do
conhecimento, respaldam a validade da presença do folclore nas obras de literatura infantil
conforme destaca a autora espanhola Teresa Colomer:
O interesse pelo folclore, desvelado pelos estudos estruturalistas, assim
como a reivindicação da fantasia e dos contos populares realizada pela
psicanálise, produziram a ruptura dos critérios educativos vigentes. Os
estudos sobre os livros infantis analisaram profundamente a adequação do
folclore à recepção das crianças e teorizaram seus benefícios a partir de
critérios antropológicos, psicológicos e literários. A conseqüência desta
reflexão configura uma grande parte dos pressupostos atuais nesta área de
estudo. Por um lado, o folclore é visto como o precedente que se liga à
literatura infantil atual e como um tipo de literatura que passou a integrar a
literatura destinada a crianças. Por outro lado, a descrição das características
literárias e educativas da literatura de tradição oral estabeleceu o padrão
para avaliar os livros infantis, a tal ponto, que apenas recentemente
começam a assinalar-se os limites deste modelo para a exploração em uma
literatura atual de transmissão fundamentalmente escrita.
190
190
COLOMER. Op.cit.,p. 148.
136
Esta relação entre literatura destinada às crianças e a cultura popular é um fenômeno
que demonstra continuidade, uma vez que autores de literatura infantil contemporânea
utilizam constantemente elementos folclóricos em suas obras. Escritores como Ricardo
Azevedo, Joel Rufino dos Santos e Ângela Lago, que possuem um amplo público leitor e
são reconhecidos pela crítica, receberam premiações importantes por suas realizações.
Em 2001, a obra Meu livro de folclore, escrita por Ricardo Azevedo foi a mais retirada
pelos leitores do Centro de Referência de Literatura e Multimeios Mundo da Leitura,
dentre um acervo de aproximadamente 13 600 títulos infanto-juvenis. O mais interessante é
que o exemplar que ficou em segundo lugar no número de retiradas foi Harry Potter e a
Pedra Filosofal, da inglesa J. K. Rowling, apesar de todo o seu apelo comercial, não atraiu
tantos leitores quanto o livro de Azevedo.
Nas obras analisadas encontraram-se muitos vestígios da cultura popular nos temas,
procedimentos com a linguagem e estrutura, conforme foi demonstrado no capítulo
anterior. Os contos maravilhosos, recontados por Ricardo Azevedo e Ângela Lago,
inspiram-se na estrutura do conto tradicional, descrita por Vladimir Propp e tratam de temas
universais que interessam a todos, em especial às crianças, como o herói que parte em
busca de um objetivo, ultrapassa desafios, sofre metamorfoses e se conhece melhor. Uma
riqueza em personagens folclóricos, com suas simbologias, poesias, adivinhas, parlendas,
que aguçam a imaginação dos jovens leitores estão presentes nestas produções. Joel Rufino
dos Santos, além de encantar o leitor, cristalizando a leitura como um comportamento
perene de vida, oferece um retrato da formação cultural brasileira, permitindo a reflexão
crítica do leitor sobre a desvalorização da cultura popular relacionada aos substratos
empobrecidos da sociedade.
Quanto ao papel do escritor no processo de aproveitamento folclórico, é importante
destacar que a sua atividade é fundamental, porque ele faz uso de sua sensibilidade e senso
estético para selecionar os temas, personagens e demais elementos utilizados nas obras e,
ainda, realiza um trabalho de criação a partir de um material existente, como Azevedo
que coteja diferentes versões de um conto, recolhido por folcloristas, etnólogos,
antropólogos, ou outros estudiosos, que resgatam as narrativas sem maiores cuidados com a
linguagem e publicam obras que são mal distribuídas. Após a comparação das versões, o
137
autor cria a sua própria história, porém, a essência do relato e a visão popular são
respeitadas. Une-se a isso a qualidade do projeto editorial, compreendido por capa,
diagramação, disposição das ilustrações, fonte da letra que atraem a atenção dos jovens. O
leitor está inserido em um universo de muitos apelos da mídia e de vários designers, por
isso é importante que o visual do livro também seduza o público e esteja de acordo com a
proposta do texto.
Os autores entrevistados, cujas obras foram analisadas, demonstraram usar recursos
estéticos literários, como a plurissignificação, metáforas, ambigüidades, múltiplas
sonoridades e apresentar textos de acordo com diferentes gêneros. Dessa forma o leitor se
apropria desses procedimentos literários e cada vez mais desenvolve habilidades para a
leitura. Detalhe não menos importante é que os mesmos autores não demonstram
preocupações moralistas ou didáticas, que tanto empobrecem a literatura infantil.
Através das entrevistas com os leitores, evidenciou-se que eles possuem
conhecimentos prévios sobre elementos da cultura popular, recordaram de histórias de sua
cidade, personagens, ditos populares, portanto, conforme afirmou Ricardo Azevedo na
entrevista, a cultura popular pode ser um importante elo entre os jovens e a cultura oficial.
Observou-se, também, durante este estudo investigativo, que a cultura popular é um
universo que não acolhe somente as crianças de baixa renda, filhas de pais analfabetos. Em
Passo Fundo, cidade de médio porte, com aproximadamente 175 mil habitantes, até mesmo
as crianças de classe média alta, moradoras de bairros residenciais, mantêm o hábito de
brincar na rua, pulam corda, dizem parlendas, trava-línguas. Um dos sujeitos dessa
pesquisa, uma menina de 10 anos de idade, cujo pai é possuidor de um acervo considerável
de literatura universal e de uma vida cultural intensa, passa boa parte de seu tempo livre na
companhia de funcionários da casa, analfabetos e semi-analfabetos, e, com eles, aprende
ditos populares, parlendas e expressões do gênero. Esta mesma menina também é uma
voraz leitora das obras dos escritores Ricardo Azevedo, Ângela Lago e Joel Rufino.
Portanto, quando as crianças reconhecem elementos de suas brincadeiras diárias nos livros,
acontece um processo de identificação, de relação emotiva e lúdica com a literatura.
138
Entretanto, mesmo que a presença de elementos folclóricos seja um elo de ligação
entre a obra e o leitor, é de grande importância destacar o papel do professor mediador de
leitura, basta lembrar que muitos dos entrevistados tiveram acesso aos livros, porque foram
indicados por seus professores. Por isso, existe a necessidade de que o professor seja um
agente ativo na formação dos leitores, consciente de questões como as características de
uma literatura infantil de qualidade, da relação entre a literatura infantil e a cultura popular
e de que a literatura infantil é diferente de textos paradidáticos, recheados com
preocupações moralistas.
Formar leitores é uma tarefa abrangente que encontra muitos obstáculos, como
desigualdade social, preço dos livros, condições particulares das crianças, problemas gerais
no sistema de ensino, portanto não se pode esperar que o professor aja sozinho como um
Dom Quixote sonhador. Ele deve ser amparado por uma escola, cujo projeto pedagógico
priorize a questão da leitura, deve participar de movimentos culturais como a Jornada de
Literatura, Jornadinha, feiras do livro, etc.
A respeito desse desafio nacional gigantesco cabe questionar também o papel do
escritor de literatura infantil, enquanto formador de leitores e agente do resgate e
dinamização do patrimônio cultural, através de suas obras. Consciente ou não desse
processo, o escritor é peça chave desse desafio: formar leitores que possam ter acesso à
literatura; que tenham uma visão ampla de mundo; que possam acompanhar as informações
político-econômicas de seu país; que possam refletir de forma crítica sobre os
acontecimentos mundiais; que, mesmo imersos no contexto globalizado, possam se sentir
parte de uma rica e única cultura. Tudo isso em um país no qual 55 milhões de pessoas
estão abaixo da linha de pobreza e destas, 21, 7 milhões acham-se em situação de miséria
absoluta
191
.
Sabe-se que a atualidade é marcada pela velocidade na transmissão de informações,
na produção de conhecimento e no desenvolvimento da tecnologia. Esta lógica influencia
os procedimentos de leitura, portanto, faz-se necessário que as ações em torno da formação
de leitores estejam em consonância com a forma como a sociedade tem se organizado, para
191
Censo IBGE 2000, O estado de S. Paulo, 19 de setembro de 2003.
139
que os indivíduos possam estar incluídos nela, sendo interativos e críticos. Dessa forma, a
partir de um olhar descuidado, é possível pensar que estimular jovens leitores a apreciar
obras de inspiração folclórica seja um contra-senso, uma vez que o espaço destinado às
antigas tradições possa estar se tornando reduzido, frente às inúmeras transformações.
Porém, através do trajeto teórico percorrido durante essa investigação, é possível inferir que
apesar de todas as mudanças ocorridas na vida do homem moderno, o patrimônio cultural
construído ao longo do tempo ainda tem muito a contribuir para o entendimento do ser a
respeito de sua identidade, aspirações e crenças. Por mais que a globalização possa ser a
ordem vigente e a cibercultura seja uma realidade, muitas pessoas somente se reconhecem
no âmbito da cultura popular, possuindo apenas a oralidade como recurso expressivo. É
preciso incluir essas pessoas, através de um trabalho de mediação de leitura e mediação de
culturas, e a literatura infantil de inspiração folclórica pode ser esse elo de ligação.
Concebendo-se a leitura em amplo sentido, envolvendo as múltiplas linguagens
presentes em diferentes suportes, como a televisão, o CD-Rom, computador, CD de áudio,
dança, teatro, música, percebe-se que a cultura popular possui uma complexa gama de
manifestações e todas elas podem ser veiculadas através desses suportes. No momento em
que essas representações forem fixadas em suportes diferentes, como ocorre com os
elementos folclóricos que originam livros de literatura infantil, elas deixam de ser
manifestações da cultura popular, porém, tornam-se produtos culturais com grande
potencial na formação de um leitor com o perfil adequado as exigências atuais. Sugere-se
que as escolas e os centros de leitura multimidiais invistam em acervos que contemplem
temas folclóricos e desenvolvam ações de animação do mesmo, proporcionando a formação
de leitores do texto literário e dos múltiplos suportes.
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A formação do leitor é um tema que tem gerado novas abordagens e muita
discussão nos meios acadêmicos, nas escolas, nas empresas privadas e no desenvolvimento
da política educacional do governo. No Brasil, o Ano Ibero-americano da Leitura em 2005
recebeu o nome de Vivaleitura e foi comemorado em 21 países da Europa e das Américas
através de uma ampla rede de ações visando o fomento cultural. A partir desse marco,
desenvolveu-se a Política Nacional do Livro, objetivando promover iniciativas de estímulo
à leitura de caráter permanente, organizadas conforme quatro eixos de ações:
democratização do acesso à leitura, fomento à leitura, valorização do livro e da leitura,
apoio à criação e à produção literária.
Apesar do louvável esforço nacional em formar leitores, as condições sociais e
econômicas do país são obstáculos contínuos para o sucesso pleno em tornar o Brasil uma
nação letrada, por isso é de fundamental importância a investigação acerca de abordagens e
estratégias para se promover à leitura do texto literário a partir da realidade de quem se
pretende atingir, levando-se em consideração que uma grande parcela da população
brasileira vivencia o modelo cultural popular de transmissão oral, incluindo o mero de
jovens que chega até os bancos escolares, mas se depara com um conflito entre a sua
concepção de mundo e aquela transmitida pelas instituições de ensino.
Quando a criança consegue ter acesso à educação, ainda precisa passar por um
processo de desconstrução da sua identidade, sofrendo o preconceito de um discurso
escolar que privilegia apenas o modelo cultural oficial elitista que, muitas vezes, nem
mesmo os professores dominam. Este encaminhamento da escola em fazer com que o aluno
negue completamente seus referenciais, não é positivo para formação do comportamento de
leitura, que o universo da escrita será para esse aluno algo artificial, com o qual ele não
se identifica e não consegue dar sentido. Em outros casos, a escola um tratamento ao
folclore em atividades, que levam o aluno a ter uma concepção equivocada, acreditando
que a cultura popular é algo antigo, cujo único valor é a curiosidade que as manifestações
141
tradicionais provocam. Respeitado o perfil do leitor, a oferta adequada de material de
leitura e atividades relacionadas às diferentes culturas, suscitam a reconstrução da
identidade e a inserção no mundo globalizado, sem que se perca as referências originais do
indivíduo.
Levar em consideração os conhecimentos dos alunos ligados à oralidade para se
criar uma ponte entre a cultura popular, essencialmente oral e a cultura oficial, letrada, é
mais do que uma estratégia, porque as manifestações da oralidade constituem-se em um
rico material à disposição dos educadores e demais interessados na formação do leitor.
Além do incentivo à leitura das obras de autores como Ricardo Azevedo, Ângela Lago e
Joel Rufino dos Santos, outras atividades podem ser desenvolvidas pela escola para
valorizar a cultura popular de seu entorno, do bairro em que se localiza, cidade, ou região.
Os alunos podem entrar em contato com o folclore nas diferentes disciplinas, na sica, na
dança, no teatro, nas artes plásticas. É possível demonstrar nesse processo que a cultura
erudita, nas mais diversas áreas, muitas vezes se alimenta do popular, como os artistas
plásticos Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, que procuravam dar aos seus
quadros uma feição brasileira, escritores cujas obras figuram nas listas dos clássicos da
cultura erudita que focalizam a temática popular, como Mário de Andrade, Monteiro
Lobato, Graciliano Ramos, fazendo com que os alunos, ao tomarem consciência do diálogo
entre as culturas, valorizem as manifestações da cultura popular brasileira, na qual estão
inseridos.
Evidenciou-se durante a investigação que, no surgimento das primeiras escolas, as
crianças passaram a ser alfabetizadas de forma mais sistematizada. Nesse momento,
iniciativas de transferir a literatura popular para esse novo público foram imediatas, contos
populares, parlendas, cantigas, tudo isso foi resgatado, adaptado e direcionado à infância.
Desde então, o elo entre a cultura popular e a literatura infantil jamais de desfez, o que pode
ser visualizado na produção de escritores que, até hoje, produzem livros de inspiração
folclórica. Através da análise das obras de Ricardo Azevedo, Joel Rufino dos Santos e
Ângela Lago, no intuito de responder à questão: quais são os elementos folclóricos
utilizados pelos escritores de literatura infantil em suas obras? foi possível constatar que
142
estes escritores utilizam inúmeros elementos folclóricos, como adivinhas, quadras, trava-
línguas, personagens folclóricos e procedimentos comuns aos contos tradicionais como a
sua estrutura e temas. De fato, os temas universais presentes nos contos, como o herói que
busca se conhecer melhor, que enfrenta obstáculos, se apaixona e outros tantos encantam
não as crianças, mas também os adultos, marcando a interioridade de cada um dos
leitores de forma única e perene. Incentivar à leitura desse riquíssimo material torna-se uma
educação para o pensar, para o criar, para o sentir e para o transformar, reconstruindo uma
nova realidade pessoal, relacionada ao contexto cultural.
Através das entrevistas com os leitores e análise dos dados reunidos procurou-se
responder à seguinte questão: De que forma o leitor em formação é influenciado pela leitura
de obras de inspiração folclórica e como se apropria das mesmas? foi possível constatar que
todos os sujeitos, apesar de pertencerem à classe média alta e estarem matriculados na
escola, possuem conhecimentos prévios a respeito dos elementos folclóricos presentes nas
obras analisadas. Os alunos relacionaram as obras lidas com histórias que ouviram o
professor ou algum familiar contar, por intermédio de referências da televisão e de outras
obras impressas. Escolheram os livros pelos títulos ou por indicação de professores e todos
os sujeitos se referiram positivamente sobre a possibilidade de continuar lendo a obra dos
três autores, observando-se que alguns já são leitores assíduos. Os resultados demonstraram
que a presença de características da cultura popular também é importante e agrada crianças
que não são necessariamente vinculadas a um ambiente de miséria e analfabetismo, pois
elas vivenciam a cultura popular através de suas relações familiares, conforme
demonstraram os sujeitos da pesquisa em suas respostas. Generalizando a informação não é
difícil inferir que muitas crianças da classe média alta também são embaladas ao som dos
acalantos, distraídas com parlendas e encantadas por histórias contadas por pais, avós e,
posteriormente, por professores.
Entrevistando os escritores Ângela Lago, Joel Rufino dos Santos e Ricardo Azevedo
observou-se que os três utilizam como fonte dos elementos folclóricos presentes em suas
obras, principalmente antologias de contos tradicionais, buscando na pesquisa de estudiosos
da cultura popular, subsídios para suas produções. Os escritores demonstraram concepções
de cultura popular diferentes, mas relacionadas ao referencial teórico que fundamenta esse
143
estudo investigativo. Em relação aos leitores, os autores de literatura infantil possuem a
expectativa de que os elementos folclóricos presentes em suas obras encantem as crianças e
possam levá-las a refletir sobre a realidade brasileira.
Para compreender a relação entre a cultura popular, literatura e formação do leitor
trabalhou-se com os conceitos de cultura popular, folclore, literatura infantil, a partir de
diferentes autores, entre os quais: Peter Burke, Mikhail Bakhtin, David R. Olson, Walter
Ong, Florestan Fernandes, Rossini Tavares de Lima, Câmara Cascudo, Phillipe Ariès,
Teresa Colomer, Vladimir Propp. Conforme os autores citados, cultura popular possui uma
definição muito ampla, cujas características principais são: o princípio da bricolage, a
oralidade, visão cíclica do mundo, culto à memória, o riso, grotesco, espontaneidade. As
expressões populares apresentam um número limitado de elementos que vão se
relacionando de maneiras diversas numa espécie de permutação constante - é o que Bakhtin
chamou de bricolage. A oralidade é a forma de transmissão das representações populares,
que se tornam patrimônio dinâmico das comunidades, surgindo o culto à memória, a
importância de lembrar e difundir os conhecimentos adquiridos. A visão cíclica do mundo é
oriunda da observação primitiva da passagem da vida na terra, tudo nasce e morre, mas
tudo tem possibilidade de renascer que, no mundo, as coisas e pessoas são partes da
mesma matéria, indicando um sentimento de pertencimento à sociedade da vida, na qual
todas fazem parte de um mesmo plano, num infinito ir e vir. O riso e as manifestações
grotescas são representações da espontaneidade e anseio por ultrapassar limites
estabelecidos. O folclore, enquanto conjunto de manifestações da cultura popular,
representando o modo de ser, pensar e agir de um povo é uma infinita fonte de inspiração
para a literatura, em especial, para a literatura infantil.
Finalizando, a pesquisa pretendeu demonstrar a natureza da relação entre a cultura
popular e a literatura infantil, bem como a influência dos elementos folclóricos na formação
do leitor literário. Evidenciou-se que a cultura popular de transmissão oral permeia a vida
de grande parte da população e, no caso das crianças, pode se transformar em um valioso
estímulo para a leitura do texto literário.
144
A presente pesquisa se constituiu em um estudo introdutório sobre o tema. Em
continuidade, pode-se sugerir a investigação da presença de elementos folclóricos em
múltiplos suportes de leitura, como CDs-ROM, CDs de áudio, DVDs, observando o modo
como o leitor interage com esses suportes de leitura e a forma como os elementos
folclóricos são vinculados nessas mídias, tendo em vista que na atualidade se exige cada
vez mais habilidades de leitura e interação com diferentes linguagens e suportes para que o
indivíduo realmente consiga estar integrado ao mundo veloz onde tantas informações
circulam e o conhecimento é multiplicado a cada momento.
145
REFERÊNCIAS
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____________. Meu livro de folclore. São Paulo: Ática, 2002.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec: Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
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técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
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146
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Global, 2003.
CÔRTES, L. Danças e andanças na tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975.
COMISSÃO PAULISTA DE FOLCLORE. “O conceito de fato folclórico”, in Anais do 1º
Congresso Brasileiro de Folclore. IBECC, Ministério das Relações Exteriores, Serviços de
Publicações. II v.
FERNANDES, F. O folclore em questão.São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FERNANDES, G.A.F.(org.) Oralidade e literatura: manifestações e abordagens no Brasil.
Londrina: Eduel,2003.
GUIMARÃES, J. G. M. Repensando o folclore. São Paulo: Manole, 2002.
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JAFFE, N. Macunaíma. São Paulo: Publifolha, 2001.
JOLLES, A. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
KOTHE, R. F. Literatura e sistemas intersemióticos. São Paulo: Cortez/Autores
Associados, 1981.
KURY, M. G. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
LAGO, A. Sete histórias para sacudir o esqueleto. São Paulo, Companhia das Letrinhas,
2002.
_________. Tampinha. São Paulo: Moderna, 1994.
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LECHTE, J. Cinqüenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-
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MINAYO, M. C. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes,
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ONG, W. Oralidade e cultura escrita. São Paulo: Papirus, 1998.
147
OLSON, R. David. O mundo no papel: As implicações conceituais e cognitivas da leitura e
da escrita. São Paulo: Ática, 1997.
PORTELLA, E. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979.
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1984.
RIBEIRO, P. S. Folclore: similaridades nos países do mercosul: lendas, mitos,
religiosidade, medicina e crenças do povo. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2002.
RUFINO, J. Dudu Calunga. São Paulo: Ática, 1986.
________. Histórias de Trancoso. São Paulo: Ática, 1983.
________. A Botija de ouro. São Paulo: Ática, 1983.
ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. São Paulo: Ática, 1982.
148
149
150
151
ANEXOS
152
ANEXO A - Instrumento de pesquisa I
Entrevista com os sujeitos leitores
Nome:
Idade:
Escola:
Série:
1. Por que você escolheu esse livro?
2. Você já ouviu alguma história semelhante? Você se lembra de personagens e
detalhes dessa história que já conhecia?
3. (Caso a resposta anterior for positiva) Quando você teve contato com essa história?
Foi através de livros que você a conheceu ou alguém lhe contou?
4. Você costuma ouvir histórias? Quem as conta para você?
5. Entre os livros que você leu, qual personagem chamou mais a sua atenção?
6. Você gostou das ilustrações do livro?
7. Você possui interesse em continuar lendo livros do escritor (nome do autor do livro
lido pela criança)?
153
ANEXO B- Instrumento de pesquisa II
Entrevista com os escritores Ângela Lago, Joel Rufino dos Santos e Ricardo Azevedo
1. Que aspectos a diversidade cultural brasileira apresenta e quais as dificuldades para
manter essa identidade plural?
2. Por que utiliza elementos folclóricos nas suas produções literárias?
3. Quais são os critérios de seleção dos elementos folclóricos utilizados para a
produção dos livros?
4. Qual é a fonte de pesquisa utilizada para o resgate desses elementos? Livresca ou
oral?Ambas? Outras.
5. O que o espera que os elementos folclóricos presentes em seus livros causem nos
leitores em formação?
6. Contos tradicionais, lendas, adivinhas, originalmente transmitidos através da
oralidade, quando fixados em suportes como o livro, vídeo, CD-Rom, etc, ainda
podem ser considerados cultura popular?
154
ANEXO C – Entrevista com Ricardo Azevedo
Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Azevedo é mestre em Letras pela
Universidade de São Paulo e doutor em Teoria Literária (USP). Escreveu sua primeira
história aos 17 anos, Um autor de contos para crianças, que viria a ser publicada muito
mais tarde, em uma versão modificada, com o título Um homem no sótão (a obra recebeu o
Prêmio Banco Noroeste, 1982). O primeiro livro foi publicado em 1980, O peixe que podia
cantar. Atualmente o autor possui muitas obras infantis e juvenis publicadas, premiadas,
além de traduções na Alemanha, Portugal, México e Holanda. Desde 1980, Azevedo vem
pesquisando contos maravilhosos, adivinhas, quadras, anedotas, ditados e frases feitas do
Brasil para recontá-las. Essas pesquisas sobre a cultura popular brasileira já originaram
vários livros, que para o autor, a literatura infantil tem suas raízes nas formas literárias
populares. A seguir a entrevista com o autor:
1- Que aspectos a diversidade cultural brasileira apresenta e quais as dificuldades para
manter essa identidade plural?
Creio que um aspecto importante, nem sempre colocado com clareza, é que temos
no Brasil uma cultura oficial, hegemônica e "moderna", razoavelmente homogênea,
disseminada pelas escolas, universidades e mídia, construída a partir da cultura escrita e
que, em grandes linhas, determina, sistematiza e estabelece uma certa visão, um "modelo de
consciência" para usar palavras de Norbert Elias, da vida e do mundo. Tal modelo,
acessível a uma parcela relativamente pequena da população, opõe-se ou costuma entrar em
contradição com outro, bastante diversificado, fragmentado e heterodoxo e que, mesmo
sendo desprezado, é existente e influente. Trata-se do modelo disseminado pelas culturas
populares e pelas tradições orais. É preciso lembrar que 75% da população brasileira é
considerada "analfabeta funcional", um eufemismo. Na verdade, são analfabetos mesmo,
afinal, são incapazes de compreender o que lêem, portanto, não lêem nem tem acesso a
livros, jornais, manuais, bulas de remédio, cartazes etc. Essas pessoas, em suma, não
seguem nem poderiam seguir os paradigmas do pensamento escolarizado, mas sim outros.
Quais são eles? Não temos respostas satisfatórias para essa pergunta. Em todo o caso, não
155
levar em consideração esse modelo não oficial, mas existente, é o que eu acho, não tem
contribuído nem para a compreensão de nossa "identidade plural", como disse você, nem
para a compreensão de aspectos importantes da arte brasileira, nem para a criação de um
modelo educacional inclusivo de fato, nem para a formação de leitores e, enfim, nem para
que tenhamos um dia uma sociedade mais equilibrada, justa, plural e minimamente auto-
consciente.
2- Por que utiliza elementos folclóricos nas suas produções literárias?
Em primeiro lugar, tenho tentado recuperar, dentro do possível e, no caso dos
contos e adivinhas, através de versões criadas por mim, as formas literárias populares, ou
seja, os contos de encantamento, quadras, trava-línguas, adivinhas, ditados etc. As pessoas,
crianças e adultos, têm direito de ter acesso, mesmo que de forma parcial, a esse rico
material. Fora isso, como escritor e desenhista, trabalhar a partir das fontes populares tem
sido uma experiência fascinante e enriquecedora. Um segundo ponto: na minha visão a
chamada "literatura infantil" é, na verdade, essencialmente, uma literatura popular. Tenho
vários artigos sobre o tema e minha dissertação de mestrado ("Como o ar não tem cor, se o
céu é azul ? Vestígios dos Contos Populares na Literatura Infantil" Letras, USP.1997) tenta
demonstrar isso. Continuei a estudar o assunto no doutorado ("Abençoado e danado do
samba - Um estudo sobre as formas literárias populares: o discurso da pessoa, das
hierarquias, do contexto, da oralidade, da religiosidade, do senso comum e da folia" Letras,
USP, 2004). Compreender algo que possa ser chamado de "discurso popular" criado a partir
de determinados padrões culturais, éticos e estéticos não coincidentes com os padrões
oficiais e escolarizados tem sido objeto do meu maior interesse.
3- Quais são os critérios de seleção dos elementos folclóricos utilizados para a produção
dos livros?
156
Se você está se referindo a livros como Armazém do folclore, Contos de enganar a
morte e outros, os critérios são trazer ao leitor as formas literárias populares e recuperar um
certo discurso ou certos procedimentos com a linguagem recorrentes na cultura popular.
4- Qual é a fonte de pesquisa utilizada para o resgate desses elementos? Livresca? Oral?
Ambas?
Basicamente bibliográfica. No caso dos contos, por exemplo, tento encontrar o máximo
possível de versões recolhidas por folcloristas, antropólogos etc. e, a partir delas, crio a
minha. Como, pelo fato de ser escritor, tenho tido a sorte de viajar por todo o Brasil,
sempre procuro em sebos e bibliotecas as publicações feitas por pesquisadores locais. Essas
obras às vezes são ótimas, mas inacessíveis por serem produzidas em pequenas tiragens
pessimamente distribuídas. Faço isso mais de vinte anos e tenho um acervo
considerável.
5- O que espera que os elementos folclóricos presentes em seus livros causem nos leitores
em formação?
Num país onde, no mínimo, 75% das pessoas vive mergulhada na cultura oral e
popular, tornar acessíveis enredos, temas e procedimentos com a linguagem vinculadas a
essa cultura, ou seja, tornar acessíveis certos padrões culturais éticos e estéticos não
oficiais, pode ser muito importante. Hoje, quando uma criança filha de pais analfabetos,
portanto enraizada na cultural oral, entra na escola, sofre um processo desgastante, pois se
obrigada a lidar com paradigmas estranhos à sua formação. Com o tempo é levada a
desprezar os próprios pais que não sabem ler nem escrever, desconhecem a História, a
matemática etc. Isso é péssimo! Por outro lado, se for apresentado a ela um conto popular
ou uma adivinha ela vai dizer: "espere, meus pais conhecem isso!". É preciso criar uma
ponte entre o modelo oficial e o modelo popular e nesse sentido o contato com as formas
literárias populares pode ter uma importância social extraordinária.
157
6- Contos tradicionais, lendas, adivinhas, originalmente transmitidos através da oralidade,
quando fixados em suportes como o livro, vídeo, CD-ROM, etc, ainda podem ser
considerados cultura popular?
A rigor, não. Processos de fixação como a escrita e outros são opostos à cultura oral
e popular. Nas culturas orais, uma voz é um sopro que sai de uma pessoa, ganha corpo
no contato face-a-face e pode ser fixado pela memória. Isso tem inúmeras e complexas
implicações, tanto sociais como éticas e estéticas. Em suma, mesmo sendo difícil
determinar com precisão o que seja "popular", sem vida, pode-se falar em obras que
estão mais comprometidas com certos padrões populares do que outras. Compare, por
exemplo, a obra de Dorival Caymmi e de Caetano Veloso. Ambas são extraordinárias e
fazem parte do que de melhor na chamada música popular brasileira mas, é preciso
reconhecer, são construídas a partir de modelos e paradigmas bem diferentes. A primeira é
marcada pelos padrões e procedimentos da cultura popular e oral e a segunda pelos da
cultura hegemônica e escrita. Determinar e compreender esses diferentes padrões
construtivos e suas implicações é, creio, uma grande questão.
158
ANEXO D – Entrevista com Joel Rufino dos Santos
Joel Rufino dos Santos é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (URFJ), onde leciona literatura. Historiador e romancista,
publicou obras premiadas como Crônicas de indomáveis delírios e Quando eu voltei, tive
uma surpresa, premiado com o troféu Orígenes Lessa, na categoria Melhor para o jovem,
pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 2000 e inúmeros livros com temas
folclóricos.
1- Que aspectos a diversidade cultural brasileira apresenta e quais as dificuldades para
manter essa identidade plural?
O que chamamos povo brasileiro se formou por camadas sucessivas, durante
quinhentos anos. Essas camadas (de índios, de africanos, de europeus, orientais,
mediterrâneos, eslavos, judeus etc.) se fundiram, relativamente, mas mantêm até hoje as
marcas das posições sociais originais: por exemplo, negros são basicamente trabalhadores,
portugueses são comerciantes, japoneses agricultores etc. Em conseqüência disso, as
diferentes culturas desses grupos estão hierarquizadas conforme a posição social: umas
valem mais que as outras. Esse, em síntese, é o aspecto principal.
2- Por que utiliza elementos folclóricos nas suas produções literárias?
O que você chama folclore (expressão algo pejorativa para designar algo de pouco
valor, exótico, etc.), é melhor chamar de cultura popular. Utilizo elementos de cultura
popular porque em geral me encanto mais com eles do que com os elementos da cultura
propriamente dita.
3- Quais são os critérios de seleção dos elementos folclóricos utilizados para a
produção dos livros?
159
Utilizo nessa produção os elementos que me tocam a sensibilidade: histórias,
parlendas, criaturas fantásticas, etc.
4- Qual é a fonte de pesquisa utilizada para o resgate desses elementos? Livresca ou
oral?Ambas? Outras.
Minha própria memória pessoal, que minha família é de origem popular
nordestina; e também livresca (sou professor de literatura brasileira).
5- O que espera que os elementos folclóricos presentes em seus livros causem nos
leitores em formação?
O mesmo encantamento que sempre causaram em mim. E também reflexão crítica
sobre essa forma de dominação social brasileira que é a subvalorização da cultura dos
pobres.
6. Contos tradicionais, lendas, adivinhas, originalmente transmitidos através da
oralidade, quando fixados em suportes como o livro, vídeo, CD-Rom, etc, ainda podem
ser considerados cultura popular?
Podem, não; são cultura popular. Esses suportes que você menciona são elementos
da cultura de massas. A cultura de massas atravessa tanto a cultura popular quanto a
erudita, a de elite etc., sem lhes tirar o essencial, que é o sentimento de mundo a partir de
uma dada posição social.
160
ANEXO E - Entrevista com Ângela Lago
Angela Lago nasceu em Belo Horizonte, em 1945. Já morou na Venezuela, na Escócia
e faz vinte anos que escreve e ilustra livros para crianças. Expôs seus trabalhos em muitos
países e teve livros publicados até no Japão. Ganhou prêmios na França, Espanha,
Eslováquia, Japão e Brasil, inclusive o Jabuti, com o ABC Doido. Angela recebeu uma
homenagem especial da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil durante o Salão
FNLIJ do Livro para crianças e jovens no MAM.
1- Que aspectos a diversidade cultural brasileira apresenta e quais as dificuldades para
manter essa identidade plural?
Essa não é uma preocupação minha. Quando utilizo elementos do folclore acabo talvez
reproduzindo a maneira de pensar do meu povo. Mas quem é meu povo? Meu país? Meu
estado? Meu bairro? Meu grupo familiar? Minhas memórias? Não me importa: se a história
funcionar, talvez seja mais do que isso.
2- Por que utiliza elementos folclóricos nas suas produções literárias?
Porque a sabedoria popular é sabedoria. Porque me identifico com essa cultura sem
afetação. Porque é uma cultura capaz de falar a todos, incluindo a criança. Porque
elementos folclóricos deliciosos. São muitos os motivos.
3- Quais são os critérios de seleção dos elementos folclóricos utilizados para a
produção dos livros?
Não tenho consciência de critério nenhum. Quando estou trabalhando numa história
deixo a corrente me levar torcendo que me leve ao mar.
161
4- Qual é a fonte de pesquisa utilizada para o resgate desses elementos? Livresca?
Oral? Ambas?
Ambas. O que ouço ou ouvi tem sido em geral o ponto de partida.
5- O que espera que os elementos folclóricos presentes em seus livros causem nos
leitores em formação?
Os elementos folclóricos estão presentes no nosso dia a dia. Fazem parte da vida, da
cultura. Fazem parte inclusive da arte mais sofisticada. A fonte do folclore é uma fonte
poderosa, genuína. Gostaria de tocar profundamente meu leitor -- e também de fasciná-lo --
à partir de um lugar onde ele se reconhece. Eu também me reconheço neste lugar.
6- Contos tradicionais, lendas, adivinhas, originalmente transmitidos através da
oralidade, quando fixados em suporte como o livro, vídeo, CD-Rom, etc, ainda
podem ser considerados cultura popular?
Quando um músico erudito desenvolve uma frase musical do folclore faz arte
erudita. Quando um músico popular faz música, faz música popular. O suporte não importa.
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