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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
SEXUALIDADE EM REVISTA:
AS POSIÇÕES DE SUJEITO EM NOVA E TPM
Dissertação de Mestrado
Gabriela Boemler Hollenbach
Porto Alegre, 2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
SEXUALIDADE EM REVISTA:
AS POSIÇÕES DE SUJEITO EM NOVA E TPM
Gabriela Boemler Hollenbach
Orientadora:
Profa. Dra. Christa Berger
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestre em Comunicação e Informação
Porto Alegre, maio de 2005
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SEXUALIDADE EM REVISTA:
AS POSIÇÕES DE SUJEITO EM NOVA E TPM
Gabriela Boemler Hollenbach
Banca Examinadora:
Presidente: ________________________________________________
Profa. Dra. Christa Berger (PPGCOM/UFRGS)
Membros: ________________________________________________
Profa. Dra. Marcia Benetti Machado (PPGCOM/UFRGS)
________________________________________________
Profa. Dra. Nadia Geisa Silveira Souza (PPGEDU/UFRGS)
________________________________________________
Profa. Rosa Maria Bueno Fischer (PPGEDU/UFRGS)
Porto Alegre, maio de 2005
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos amigos, familiares e professores que me acompanharam neste
percurso. Em especial à professora e orientadora Christa Berger, que delicadamente me
conduziu nesta jornada, sem me fazer trilhar os seus caminhos e sem nunca me deixar sair
da estrada; à Marcia Benetti Machado, que escolheu por mim a TPM; à Nadia Geisa Souza,
que me ajudou a decifrar Foucault; à Rosa Fischer, cujas observações foram fundamentais
para o encadeamento do trabalho. Agradeço de coração aos meus pais, que me abriram os
caminhos e ampliaram os horizontes. E ao Paulo, pela colaboração inestimável, pelo carinho
e espaço de liberdade.
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................ 5
ABSTRACT........................................................................................................................ 6
1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 7
2. REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO................................................. 18
2.1 Reflexões sobre a sexualidade.................................................................................... 21
2.1.1 A sexualidade no pensamento de Michel Foucault.................................................... 23
2.1.2 Corpo, sexualidade e amor na contemporaneidade.................................................... 34
2.2 As revistas femininas................................................................................................... 42
2.2.1 A produção de verdade e sentido nos meios de comunicação.................................... 44
2.2.2 Revistas femininas: elementos discursivos do dispositivo de sexualidade................. 47
2.2.3 Sobre a confissão, a sexualidade e a autoridade das revistas femininas..................... 52
2.2.4 A imprensa feminina no Brasil.................................................................................... 60
2.3 Metodologia................................................................................................................... 65
2.3.1 A leitora imaginada...................................................................................................... 66
2.3.2 O corpus da pesquisa................................................................................................... 71
3. A SEXUALIDADE NA REVISTA NOVA.................................................................... 75
3.1 Ainda o sexo rei............................................................................................................. 75
3.2 Sexo com amor.............................................................................................................. 81
3.3 As “armas de sedução”................................................................................................ 91
3.4 A doença da falta de desejo......................................................................................... 101
3.5 As outras mulheres: confidentes ou concorrentes.................................................... 104
SEXUALIDADE NA REVISTA TPM............................................................................ 113
4.1 Uma revista de perfis e personagens......................................................................... 113
4.2 Badulaque x Sexo Lacrado........................................................................................ 119
4.3 A naturalização da homossexualidade...................................................................... 123
4.4 Relativização da necessidade do homem na vida..................................................... 127
4.5 A normalização das relações extraconjugais............................................................ 134
4.6 Cuidados com o corpo e a alma................................................................................. 136
5. CONCLUSÃO............................................................................................................... 154
5.1 As formas normais de vivenciar a sexualidade........................................................ 154
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................. 167
RESUMO
Supondo que as revistas femininas configuram-se como elementos discursivos do
dispositivo de sexualidade, a presente pesquisa buscou identificar e comparar as posições
de sujeito nas quais as leitoras das revistas Nova e TPM deveriam se reconhecer para ter
uma experiência coerente de leitura. Ancorada no pensamento de Foucault e no conceito de
modo de endereçamento de Ellsworth, busquei extrair dos textos os diferentes enunciados
sobre a sexualidade, que conformariam essas posições de sujeito, tentando entender o que
se configuraria hoje como uma forma “normal” de vivenciar a sexualidade, bem como as
possibilidades de resistência em relação a essa proposta de normalidade. A hipótese é que,
neste período histórico, a norma se deslocou do “como” ou “o que” fazer no âmbito sexual
para o próprio fazer.
Palavras-chave: imprensa feminina, sexualidade, revistas femininas.
6
ABSTRACT
Supposing that feminine magazines are discoursive elements of the "sexuality
dispositive", the work’s purpose is to identify and compare the subject positions where
Nova and TPM readers should to recognize themselves for a coherent experience of
reading. Ancored to the Michel Foucault’s thought and to the Ellsworth’s modes of address
concept, I tried to extract from the texts the enunciations about sexuality, looking for
understand what would configure a "normal" form of living it, as well as the possibility of
resistence to this normality proposal. The hypothesis is that, in this historical moment, the
norm was dislocated from the “how” or “what” to do in the sexual ambit for the doing
itself.
Key words: feminine press, sexuality, feminine magazine.
7
1. INTRODUÇÃO
Em todas as sociedades, a sexualidade não se restringe ao aspecto biológico: ela
pressupõe a aprendizagem de regras construídas coletivamente, uma espécie de
socialização. Há também em todas as sociedades uma distinção entre as condutas
consideradas “certas” e “erradas” em relação ao sexo, que dependem das relações de poder
vigentes em determinado espaço e tempo. A arbitrariedade dessas prescrições normativas
pode ser explicitada através da comparação dos significados dados à sexualidade em
diferentes sociedades, em diferentes grupos dentro de uma mesma cultura ou através de um
olhar para o passado: o que é incorreto e condenável num contexto pode não o ser em outro.
Em alguns casos, a situação até mesmo se inverte.
Foi o que aconteceu em relação à sexualidade feminina no mundo ocidental. Muitos
imperativos sociais que durante séculos impuseram normas austeras em relação à vida
privada tornaram-se anacrônicos nesta época que se caracteriza pela exaltação do eu e da
volúpia (LIPOVETSKY, 1994). No Brasil do início do século XX, a virgindade, que
estava vinculada à idéia de honra
1
masculina, era uma prerrogativa das boas moças, que
deveriam permanecer virgens até o casamento, sob pena de ficarem “encalhadas”
2
ou
“perderem-se na vida”. Depois de casadas, as mulheres que tinham relações sexuais com
homens que não fossem os maridos corriam o risco de serem mortas, sem que o agressor
1
De acordo com Marshall Sahlins, a categoria “honra” vigorou no mundo mediterrâneo durante mais de um
milênio. Em nome dela, era lícito até mesmo matar. O Brasil, assim como a maior parte dos países latino-
americanos, é herdeiro dessa tradição mediterrânea e a fez valer até meados do século XX.
2
À época, em que o destino de uma mulher era o casamento, ficar “encalhada” era certamente uma grande
pena. De alguma forma ainda hoje o é: a mulher “encalhada” é percebida culturalmente como alguém que
faliu socialmente, no sentido que, se não conseguiu arrumar um parceiro, é porque deve ter algum
“defeito”moral ou físico. De qualquer forma, a situação hoje parece menos grave, visto que a mulher pelo
menos pode alegar que ficou só por escolha pessoal.
8
tivesse de pagar por isso. Esta conduta tinha tanta legitimidade por aqui que ainda hoje o
direito tenta usar o argumento da legítima defesa da honra para absolver homens que
matam esposas ou amantes.
3
Se no início do século XX as prescrições normativas faziam
com que mulheres morressem por serem infiéis ou se suicidassem ao perceber que tinham
perdido a “pureza”, no início do século XXI os imperativos que garantem o sucesso pessoal
e social parecem pedir uma vida sexual ativa.
A concepção positiva de poder no pensamento de Michel Foucault parece-me útil
para pensar no que consiste esta mudança de perspectiva em relação à sexualidade
feminina. Segundo o autor, entre o sujeito e o poder a relação não é somente de interdição:
mais do que reprimir, o poder constitui os sujeitos através de uma articulação com os
saberes que vigoram em determinada época e espaço. É a mesma idéia que norteia o seu
olhar sobre a sexualidade: atacando a hipótese repressiva, Foucault mostra que, nas
sociedades ocidentais, a sexualidade não foi somente excluída ou interditada, como se
tendeu a pensar durante séculos, ao contrário, houve uma incitação ao discurso sobre o
sexo, vinculando-o à revelação de uma suposta verdade sobre o indivíduo e à promessa de
felicidade:
[. . .] o Ocidente não é realmente um negador da sexualidade – ele não a exclui –
mas sim que ele a introduz, ele organiza, a partir dela, todo um dispositivo
complexo no qual se trata da constituição da individualidade, da subjetividade,
em suma, a maneira pela qual nos comportamos, tomamos consciência de nós
3
Uma pesquisa intitulada “Legítima Defesa da Honra: Ilegítima Impunidade de Assassinos - Um Estudo
Crítico da Jurisprudência Brasileira”, feito pelas advogadas Silvia Pimentel, Juliana Belloque e Vanessa
Pandjiarjian e publicado pela revista Época (disponível em
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT673863-1664,00.html) mostra que entre 42 assassinos que
utilizaram a tese da legítima defesa da honra para justificar a morte das esposas ou amantes entre 1999 e
2003, 23 foram absolvidos em primeira instância. De acordo com a matéria, a maioria dos processos teve
recurso, mas não se sabe se as decisões serão revertidas pelas cortes superiores
.
9
mesmos. Em outras palavras, no Ocidente, os homens, as pessoas se
individualizam graças a um certo número de procedimentos, e creio que a
sexualidade, muito mais do que um elemento do indivíduo que seria excluído
dele, é constitutiva dessa ligação que obriga as pessoas a se associar com sua
identidade na forma da subjetividade. (FOUCAULT, 2004, p.76).
Para o autor, a tecnologia que permitiu articular o corpo, o saber e o poder na
constituição do homem como sujeito de desejo foi a confissão. De acordo com Fonseca
(1995, p.87), a confissão que diz a verdade sobre o sexo “se assenta sobre a idéia de que é
dentro do corpo e dos seus desejos que pode ser encontrada a verdade mais profunda sobre
o ser humano.” A partir dos séculos I e II de nossa era o homem teria sido levado a refletir
sobre a própria sexualidade, entendida como perigosa e como tendo um funcionamento
obscuro, para encontrar em si uma verdade, que deveria ser tornada pública a fim de que o
homem, portador de um mal inato, pudesse se transformar e alcançar a salvação.
Se em um primeiro momento o confessionário eclesiástico foi o local privilegiado
para a confissão da verdade do sexo
4
, quando este foi reformulado em termos médicos, no
início do século XIX, a instância legítima para a confissão tornou-se o divã do psiquiatra,
cuja matriz encontra-se na tecnologia do poder pastoral
5
do Cristianismo. A articulação do
ritual da confissão às regras do discurso científico, segundo Foucault, instituiu no Ocidente
uma scientia sexualis, em contraposição aos mundos antigo e oriental, que desenvolveram
uma ars erotica. Foi apoiando-se no olhar essencialista da Medicina que o dispositivo de
4
A confissão obrigatória, exaustiva e periódica imposta aos fiéis foi estabelecida pelo Concílio de Latrão,
realizado em 1139.
5
Foucault explica que, por ter sido a única religião a fundar uma Igreja, o Cristianismo postulou o princípio de
que certos indivíduos poderiam servir a outros como pastores. O poder pastoral, segundo Foucault, exige que
o pastor esteja pronto para sacrificar-se pela salvação dos fiéis, a quem deve olhar individualmente e conhecer
profundamente. E ele não pode ser exercido “sem o conhecimento da mente das pessoas, sem explorar suas
almas, sem fazer-lhes revelar os seus segredos mais íntimos. Implica um saber da consciência e a capacidade
de dirigi-la.”(FOUCAULT, 1995, p.237). Confessando os pecados ao pastor, o fiel assegura a sua salvação
num outro mundo.
10
sexualidade teria permitido ao poder/saber alcançar ao mesmo tempo o corpo de cada
indivíduo em particular e o corpo da população. De acordo com Costa (1998a, p.20):
Nos séculos XVIII e XIX, a sexualidade humana era um item cultural que não
podia ser entregue à errância das iniciativas individuais. De um lado, porque
servia às políticas demográficas das potências colonialistas; de outro, porque
continuava sendo o esteio para a formação do cidadão revolucionário imaginado
por Rousseau e do burguês socialmente fabricado por moralistas, higienistas,
filantropos, religiosos, pedagogos, juristas e psiquiatras do novo mundo
republicano. Nesta cultura, o sexo desviante era uma infâmia, um insulto à
Razão dos espíritos iluministas, capitalistas e imperialistas.
O controle dos desvios sexuais contribuía para a consolidação da família nuclear
burguesa que, baseada nos ideais do amor romântico, reproduzia os valores comprometidos
com a tradição patriarcal e conservadora. Ao passo que os princípios normativos dessa
tradição foram substituídos pelos ideais de felicidade e bem-estar da cultura democrática,
pluralista, humanista e individualista do século XX, o sexo teria perdido a importância
econômica, política e moral de outrora. Para Costa, desde que sejam respeitadas as regras
elementares das sociedades contemporâneas, os indivíduos hoje têm direito de expressar
livremente as suas preferências sexuais. Não há, para o autor, uma invariante psíquica que
sirva de regra para o diagnóstico do desvio ou da normalidade sexual. Além disso, a
explicitação das variações de práticas sexuais em diferentes tempos e culturas faz com que
nenhum argumento científico, filosófico ou do senso comum seja capaz de justificar
condutas preconceituosas neste âmbito. Aquilo que é “doença”, “perversão”, ou
“anormalidade” é hoje uma questão de interpretação.
11
Para Foucault (1988, p.141), no entanto, o “dispositivo de sexualidade deve ser
pensado a partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas”, visto que o
investimento do poder sobre os corpos varia de acordo com o contexto histórico. Se para
produzir o sujeito no século XIX e início do XX o poder buscou suporte no saber científico
e colocou o sexo no domínio do normal e do patológico, o que acontece nesta época em que
as verdades são muitas, relativas e em que a busca da felicidade legitima as condutas
valorativas do sujeito? Que discursos sustentariam o dispositivo de sexualidade hoje? Que
corpo, que formas de vivenciar a sexualidade seriam pertinentes ao sistema capitalista que
rege a vida social neste início de século XXI?
Estas são as perguntas que norteiam a presente pesquisa, que tem por objetivo
entender que formas de vivenciar a sexualidade estão sendo propostas às leitoras
imaginadas pelas revistas Nova e TPM. A primeira foi escolhida por ter, desde que surgiu,
voltado seu conteúdo editorial para a vida sexual, configurando-se como uma espécie de
manual de auto-ajuda sexual. De acordo com Mira (2001), Nova foi a primeira revista
brasileira a publicar a palavra orgasmo e o fez logo na capa da primeira edição. A escolha
da TPM deve-se ao fato dela ter sido criada para romper com o discurso das revistas
femininas aqui chamadas de tradicionais
6
, acusadas de ofender a inteligência e a auto-
estima das mulheres, o que, supostamente, deveria marcar uma ruptura com o discurso
dessas revistas, que em geral vinculam a identidade feminina à beleza física e superestimam
o papel da sexualidade.
6
Considera-se que as revistas tradicionais são as que estão no mercado editorial brasileiro há mais de 30 anos,
sendo as mais importantes representantes dessa categoria as revistas Capricho, Claudia e Nova.
12
Parto de alguns pressupostos para empreender tal trabalho. O primeiro deles refere-
se à importância assumida pelos meios de comunicação na constituição dos indivíduos
deste tempo. Se no século XIX o conhecimento científico substituiu a moral religiosa na
normalização e hierarquização dos indivíduos, ao longo do século XX, os meios de
comunicação, apoiando-se no pensamento científico, passaram a interferir mais neste
processo.
Na cultura de massas e de consumo contemporânea, as normas de construção das
identidades sociais são passadas culturalmente através de imagens visuais padronizadas
veiculadas pelos meios de comunicação. Estes, de acordo com Fischer, apresentam-se como
locus privilegiado de informação e educação das pessoas, ao mesmo tempo em que
procuram captar o receptor em sua intimidade, “produzindo nele, muitas vezes, a
possibilidade de se reconhecer em uma série de “verdades” veiculadas nos programas e
anúncios publicitários, e até mesmo de se auto-avaliar ou autodecifrar, a partir do constante
apelo à exposição da intimidade que, nesse processo, torna-se pública.” (FISCHER, 2001,
p. 587). Articulando os conceitos de poder, saber e sujeito de Foucault à tendência dos
meios de comunicação se mostrarem como educadores, a autora chegou ao conceito de
dispositivo pedagógico da mídia, segundo o qual “a mídia não somente veicula, mas
constrói discursos, produzindo dessa forma significados e sujeitos” (FISCHER, 1997,
p.63). Isso aconteceria porque praticamente todos os discursos que circulam neste tempo
sofrem uma mediação pelos meios de comunicação, que os organizam e modificam de
acordo com sua lógica. Esses novos discursos e significados que são devolvidos à
sociedade não dependem somente da lógica discursiva dos produtos midiáticos, mas
também das linguagens peculiares a cada veículo. Embora a autora estivesse referindo-se à
13
televisão, é o mesmo fundamento que funciona nas revistas endereçadas às mulheres, que
hoje oferecem a elas os recursos necessários para a construção de uma identidade bem-
sucedida.
Em uma sociedade individualista, em um tempo em as antigas instituições de
controle social, como a igreja, a família, o casamento, a escola e a política vêm perdendo
força na socialização dos indivíduos, na medida em que deixaram de corresponder ou
responder aos interesses do indivíduo moderno; em que a expressão da cultura está cada
vez mais fraca e homogênea, fazendo com que as pessoas não se sintam mais parte do que
acontece, a identidade é o que dá significado à vida, que determina quem “eu” sou e como
devo agir. É ela também que conecta o homem à sociedade, aos outros homens e a si
mesmo.
No que poderia consistir a identidade pessoal neste momento histórico em que a
socialização dos indivíduos perde as referências coletivas tradicionais e passa cada vez
mais a se basear na lógica dos meios de comunicação de massa?
7
Enquanto para Lipovetsky
a lógica que rege a construção das identidades sociais na contemporaneidade baseia-se na
livre disposição de si de acordo com uma ética indolor, que faz com que o indivíduo não se
sinta obrigado a ligar-se a nada a não ser a si próprio, Foucault vê a criação de uma
identidade – associada à sexualidade – e a fixação do indivíduo a ela como efeitos do poder
normalizador, que impediria o homem de constituir-se livremente a partir de suas
7
A forma como isso acontece será discutida mais adiante, no capítulo sobre as revistas femininas.Por ora é
importante ressaltar que a mídia vem se imiscuindo em âmbitos que lhe preexistiam: a política já não pode ser
pensada independentemente dos meios de comunicação; as crianças são hoje tão ou mais educadas pelas
imagens televisivas do que pela escola; até mesmo as manifestações de solidariedade são intermediadas pela
mídia através de programas que recolhem dinheiro para ajudar este ou aquele grupo de pessoas que de alguma
forma estão em situação de desvantagem em relação aos indivíduos “bem-sucedidos”.
14
particularidades. A livre disposição de si, que, para Lipovetsky, aparece como uma
exigência das sociedades modernas, libertas da tradição e dos imperativos do dever, é, para
Foucault, um objetivo a ser alcançado em um mundo regido pela norma. Isso porque, para
este autor, as práticas de si, as ações do homem sobre si mesmo, sempre se dão em função
dos regimes de verdade existentes na sociedade onde vive. O que significa que o homem
não pode ser compreendido fora das relações sociais que o constituem: são as práticas
sociais, discursivas e não discursivas com as quais o indivíduo entra em contato ao longo
da vida que o constituem enquanto sujeito, preso à própria identidade pela consciência de
si, e objeto, dócil e útil ao sistema no qual está inserido.
Além de ser um local de materialização das verdades de diferentes campos – em
função das quais o homem cuida de si mesmo – a mídia, percebendo uma demanda por esse
tipo de conteúdo, fez com que as práticas de si entrassem no esquema da produção em série
e da circulação em massa. Esta é a peculiaridade desta época: embora as práticas de si
existissem há muito tempo, como nos mostra Foucault nos últimos dois volumes da
História da Sexualidade, foi somente no século XX e através da literatura de auto-ajuda que
elas se difundiram para todo o corpo social (RÜDIGER, 1996). Desde que surgiram, as
revistas femininas funcionam como manuais a serem utilizados pelas leitoras em suas vidas
cotidianas, configurando-se como um tipo de literatura de auto-ajuda. E, pelo teor dos seus
conteúdos, a sexualidade, associada ao amor na cultura contemporânea, parece ser um
importante “ingrediente” da receita de identidade bem-sucedida proposta por diferentes
magazines. Identidade esta que também depende do corpo que a mulher for capaz de ter.
15
Como demonstra o estudo de Silva (2004) sobre as revistas Claudia, Nova e
Playboy, as posições de sujeito sugeridas aos leitores dessas publicações, construídas a
partir de diferentes disciplinas
8
, funcionam como lugares de formação de saberes sobre o
cuidado de si, que atualizam a antiga necessidade de controlar o corpo. Para ela, a partir da
década de 60, a dominação capitalista em relação ao corpo passou da ordem político-
jurídica para a tecnocientífica empresarial, que transforma o corpo em objeto de
explorações comerciais, científicas e industriais. Nesta ordem, a beleza, que estaria
associada à saúde, ao prazer e ao bem-estar emocional, pode ser alcançada através do
governo de si e seria resultado do esforço que o homem pode ou está disposto a fazer para
alcançá-la. Nos discursos do cuidado de si encontrados nas revistas, a sedução se apóia na
aparência física e nas estratégias de valorização estética de todas as partes do corpo
feminino, cujo valor simbólico é físico e sexual. A beleza, portanto, como afirma
Lipovetsky, é ainda a principal arma sedutiva feminina nesta época em que, graças ao
movimento feminista, aos antibióticos e aos métodos contraceptivos, as mulheres podem
usufruir livremente da sua sexualidade.
Se por um lado, na sociedade da qualidade de vida, a sexualidade encontra-se ligada
à felicidade e ao sucesso pessoal, por outro, o declínio de tabus religiosos e morais, a
banalização da liberdade sexual e o desmoronamento do imaginário contestador
ocasionaram uma dessacralização do sexo, que já não é objeto de um grande investimento
8
Silva (2004) encontrou posições de sujeito da cirurgia estética, da nutrologia, da dermatologia, da estética e
cosmetologia capilar, facial e corporal,da educação física, da massoterapia, da odontologia estética, entre
outras.
16
coletivo e individual. O movimento “no sex”
9
, no entanto, é bem menos expressivo do que
a tendência que vincula a felicidade a uma vida afetivo-sexual compensatória. Apesar dessa
inclinação à voluptuosidade e ao hedonismo nas sociedades contemporâneas, a pesquisa
“Estudo do Comportamento Sexual do Brasileiro”, realizada pelo Projeto Sexualidade da
Universidade de São Paulo e coordenada pelos médicos Carmita Abdo e Edson Moreira Jr.,
mostra que 54% das mulheres brasileiras têm algum tipo de “distúrbio” de ordem sexual.
Cerca de 35% sofreria de falta de desejo, 30% de falta de orgasmo, 21% teria dificuldade
de excitação e 18% sentiria dor durante a penetração. (VEJA, Ano 34, N. 21, 30 maio
2001). Em uma cultura que supervaloriza o bem-estar individual, vinculando-o à
sexualidade, ter uma “disfunção” sexual qualquer é motivo de angústia, tristeza, ansiedade.
Enquanto o imperativo do sexo se impõe, milhares de mulheres sentem-se, de alguma
forma, anormais por não gostarem de sexo.
Como se não bastasse isso, a organização social da sexualidade nesta época é
permeada por diferentes formas experimentar a sexualidade: enquanto alguns grupos
associam sexo e amor, outros prezam o sexo por sexo e outros ainda defendem o “no sex”.
Enquanto homossexuais e transexuais conquistam direitos, a sexualidade normativa
heterossexual ainda parece ser a regra. A existência de diferentes discursos e valorações a
respeito de como vivenciar a própria sexualidade parece deixar a subjetividade feminina,
ainda, numa situação precária.
9
Lipovetsky (2000) mostra que há nos Estados Unidos uma tendência à valorização do “low sexual desire” e
na Alemanha a imprensa publica testemunhos de jovens dizendo que sexo uma vez por semana é mais do que
suficiente.
17
Pelo menos sobre uma coisa não parece haver dúvida: o ser humano do início do
século XXI é um ser que preza a própria sexualidade, a valoriza, a cultiva, lhe dá uma
importância significativa. Eros é uma das expressões mais fortes da cultura moderna. Mas
se Lipovetsky e Costa acreditam que o sexo hoje é livre e pode exprimir-se sem imposições
ou tabus, com a única condição de não prejudicar o outro ou ir contra as normas das
sociedades democráticas contemporâneas, o pensamento de Foucault vem para dizer que o
poder é produtivo: se o homem contemporâneo preocupa-se tanto com a própria
sexualidade é por que esta preocupação é pertinente aos poderes da época.
18
2. REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO
No ensaio “Porque estudar o poder: a questão do sujeito”, o pensador francês
Michel Foucault admite ser o sujeito o tema em torno do qual giraram os seus diferentes
trabalhos. Ao estudar as formas de constituição do homem a partir dos discursos
verdadeiros, das relações de poder que sobre ele incidem e das formas pelas quais ele se
subjetiva, a preocupação de Foucault esteve voltada para a criação de uma história dos
modos através dos quais os seres humanos tornam-se sujeitos
10
na cultura ocidental. Para o
autor, os sujeitos, assim como as verdades, são efeitos das articulações entre poder e saber
em um determinado contexto histórico e a tecnologia de poder característica das sociedades
modernas é normalizadora: através de mecanismos de objetivação e subjetivação do
indivíduo, o poder normalizador constitui o sujeito transformando-o em objeto dócil e útil
para o sistema no qual está inserido e ligando-o a uma identidade que lhe é atribuída como
própria.
Combinando táticas de totalização com procedimentos de individualização, as
estruturas deste poder moderno transformam a norma no parâmetro para a qualificação – e
conseqüente diferenciação – dos indivíduos. Enquanto a lei constitui-se como um
dispositivo legal que diz o que pode ou não pode ser feito a partir de uma autoridade
10
Para Foucault (1995a), a palavra sujeito tem dois sentidos: sujeito a alguém, por controle e dependência, e
sujeito a si mesmo, preso à própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento.
19
institucional e constituída, o poder da norma é orgânico e validado pelo seu suporte em um
saber considerado verdadeiro. Ancoradas por este saber, as prescrições normativas são
naturalizadas e, portanto, menos visíveis do que as legais. E quanto menos visíveis, menos
resistíveis.
Interpelado pelo discurso normativo, o homem individualizado pelo poder
normalizador teria, segundo Foucault, dificuldades para relacionar-se consigo mesmo: se a
sua constituição se dá em função da norma, ela acontece em função do olhar dos outros e
do desejo de conformar-se a este olhar. Quando a norma é naturalizada, o seu próprio olhar
o constitui, a vigilância é internalizada. É nesse sentido que Foucault fala da
impossibilidade do homem moderno relacionar-se livremente consigo mesmo. Quando
práticas e discursos normativos são incorporados sem problematização, mantém-se o curso
natural de uma determinada ordem e os processos de dominação inerentes a ela.
O que inquieta no pensamento de Foucault é que a dominação de uns sobre os
outros não cessa com a luta de classes, com a descoberta e explicitação da ideologia
dominante e nem mesmo com a emergência de um novo discurso. Novas verdades
implicam novos processos de normalização. Como somos sempre interpelados por
discursos que não nasceram em nós, mas que nos constituem enquanto sujeitos históricos, a
possibilidade da “liberdade total” não existe, assim como não existe a dominação total,
visto que a idéia de poder em Foucault é, além de constitutiva, também relacional: o poder,
entendido como ação sobre ações, existe em ato, se em um momento ou contexto somos os
dominados, em outros podemos ser os dominadores.
20
Apesar desse aparente pessimismo, Foucault acredita na existência de espaços onde
o homem teria a possibilidade de escapar aos procedimentos normalizadores e deixar-se
guiar pelas próprias pulsões. Em seus últimos trabalhos, o autor chamava a atenção para a
necessidade de construção de uma nova ética para o indivíduo, uma nova “relação consigo
mesmo”. Como explica Jurandir Freire Costa (1998), esta nova ética estaria baseada nas
relações de amizade, que se constituiriam como um espaço intersticial onde seria possível a
produção de novas subjetividades e as diferenças individuais seriam respeitadas. A
liberdade, para Foucault, supõe um conhecimento de si, que só pode ser alcançado por
intermédio de um grupo. A construção desta nova ética consistiria não em descobrir o que
somos, mas “[. . .] recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos
ser para nos livrar deste duplo constrangimento político que é a simultânea individualização
e totalização própria às estruturas do poder moderno” (FOUCAULT, 1994, p. 239). Isto
seria possível graças a uma problematização do presente, que consistiria em negar os
universais antropológicos e admitir a arbitrariedade e contingência histórica da condição
humana:
Trata-se de produzir no agora uma diferença: a diferença entre o que já somos (e
que já estamos deixando de ser) e o outro daquilo que somos, o que viremos a
ser. A questão é, então, desfamiliarizar o presente (aquilo que somos), solapar
sua certeza, arruinar seu caráter necessário, e abri-lo a um vir-a-ser sem projetos
e sem promessas, a uma liberdade sem garantias, a uma temporalidade trágica.
(LARROSA, 2000, p. 330).
É, portanto, de liberdade que tratam os estudos de Foucault: não da liberdade ideal,
mas da possibilidade de problematizar o presente, perceber a existência dos procedimentos
normativos e escapar deles através de uma conduta ética. A liberdade, para ele, é, aliás,
uma condição para que exista uma relação de poder. Se o sujeito não pode fugir de
21
determinada situação, esta não é uma relação de poder, mas de violência. Assim, se existe a
relação de poder, existe também a possibilidade de fugir dela, de resistir. Com uma
liberdade sem garantias e reconhecendo a contingência do seu estar no mundo, o homem
poderia transformar-se de acordo com seus desejos, com os anseios de sua particularidade,
correndo os riscos que cada escolha implica.
É também de liberdade que deve tratar este trabalho sobre as representações da
sexualidade em duas revistas femininas brasileiras no início do século XXI: liberdade de
escolher o que fazer do e com o próprio corpo, de se autodeterminar, longe dos imperativos
da norma que vigoram nessa que se convenciona chamar de sociedade da informação.
Imperativos estes que normalizam, hierarquizam e punem os que, por vontade ou por sina,
não se encaixam nos padrões considerados normais e desejáveis pelo regime de verdade
que nos constitui.
2.1 Reflexões sobre a sexualidade
A primeira questão a ser resolvida em relação à sexualidade é a histórica oposição
entre o essencialismo ou reducionismo biológico e o construtivismo social. Ou seja, é a
sexualidade resultado de instintos ou energias sexuais inerentes à natureza humana ou uma
construção social? Surgidas no final do século XIX, na onda do evolucionismo, as teorias
essencialistas partem do pressuposto de que a sexualidade é uma força natural, de origem
biológica e que estaria na essência do indivíduo. Terto (1999) explica que o essencialismo
divide-se em duas tradições: o liberalismo e o absolutismo. Para a primeira, a sexualidade
22
seria uma força positiva que teria sido reprimida pela sociedade. Wilhelm Reich e Herbert
Marcuse
11
são os autores mais importantes dessa tradição, cujo pensamento teve grande
influência nos movimentos de liberação sexual nas décadas de 60 e 70. Contrariando essa
visão positiva do instinto sexual, a perspectiva absolutista entende a sexualidade como
regida por forças destrutivas, que precisam ser controladas pela sociedade. Essa visão
legitimou o controle da sexualidade por parte da medicina, que juntamente com as
instituições sociais do casamento, da monogamia, da família, deveria controlar o sexo
desviante. Nesse sentido, a homossexualidade, por exemplo, foi entendida como inata,
resultante de algum desvio hereditário, que necessitava ser controlado pela sociedade.
Foi contrapondo-se à perspectiva essencialista – que vincula a sexualidade à
natureza biológica do indivíduo – e à hipótese repressiva – a qual entende que a relação
entre o sujeito e o poder é somente repressiva – que surgiram os estudos de Foucault sobre
a sexualidade. Por entendê-la como um dispositivo histórico e estratégico, dependente das
relações entre poder, saber e prazer que agem no corpo em determinada época e contexto, o
autor se contrapõe à idéia de que a sexualidade seja algo inerente ao ser humano, capaz de
revelar sua essência, um instinto biológico natural e universal.
A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à
realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede de
superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a
incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e
11
Reich parte do suposto de que existe uma natureza sexual sadia, que se oporia a uma cultura “doente”. Ele
acredita que no comunismo primitivo – onde não existiam classes nem Estado e vigorou o matriarcado – a
sexualidade seria livre. Com o advento do capitalismo e o patriarcado, a repressão teria sido necessária para
assegurar a transmissão de riqueza pela linha patrilinear. Marcuse também acredita na necessidade de
repressão dos instintos em qualquer ordem civilizatória, mas ele acredita que é possível chegar a uma
liberdade sexual através das fantasias regressivas, que permitiria a realização do prazer como fim em si.
23
das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes
estratégias de saber, poder. (FOUCAULT, 1988, p.100).
O autor parece estar, portanto, mais próximo da perspectiva da construção social,
que, de acordo com Heilborn e Brandão (1999), reúne abordagens que problematizam a
universalidade do instinto sexual com base no argumento de que existem formas
culturalmente específicas que o Ocidente chama de sexualidade, mas que podem variar de
acordo com o contexto. Nesta perspectiva, a sexualidade pressupõe uma espécie de
socialização, de aprendizagem de determinadas regras, o que faz com que sua compreensão
só seja possível a partir das teias de significados e relações sociais que a sustentam em um
determinado contexto.
2.1.1 A sexualidade no pensamento de Michel Foucault
Segundo Fonseca (1995), em A Vontade de Saber, primeiro dos três volumes da
História da Sexualidade, Foucault explica a identidade do indivíduo moderno fazendo uma
justaposição das tecnologias de objetivação, que o constituem enquanto objeto dócil e útil
ao sistema no qual está inserido, às tecnologias de subjetivação, que permitiram a
constituição do indivíduo enquanto sujeito preso à própria identidade pela consciência de
si, isto é, sujeito moral. Para o autor, “a chave para a compreensão da individualidade
moderna (dócil e útil) no pensamento de Foucault está em partir da noção de sujeito
enquanto produção das relações de poder e saber e na identificação de tais relações.”
(FONSECA, 1995, p.79).
24
A disciplina foi a tecnologia resultante das articulações entre poder e saber no
século XIX, que permite a compreensão do indivíduo moderno enquanto efeito e objeto de
poder. Entendidas como os “métodos que permitem o controle minucioso das operações do
corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de
docilidade e utilidade” (FOUCAULT, 1997, p.126), as disciplinas teriam surgido em uma
conjuntura histórica marcada pela necessidade de fixação de uma população flutuante e o
seu ajustamento ao crescimento e complexificação do aparelho de produção capitalista, que
necessitava de mão-de-obra regular e capacitada. Para o autor, o surgimento das disciplinas
marca o que ele chamou de “troca do eixo político da individualização”, o que significa que
os mecanismos disciplinares teriam substituído os mecanismos histórico-rituais de
individualização. Enquanto estes incidiam sobre o soberano e o diferenciavam da
população, os mecanismos disciplinares recaem sobre o homem comum, nas suas
atividades cotidianas.
Segundo Foucault (1997), as estratégias disciplinares surgiram nas prisões, tendo
depois se espalhado para toda a sociedade. Articulando as estratégias do exame com a
vigilância hierarquizada e a sanção normalizadora, o regime de poder disciplinar levanta
informações sobre cada indivíduo em particular, colocando-o em relação aos outros
indivíduos e em função de uma regra comum. Produz-se, assim, uma individualidade
12
pertinente aos poderes em questão: o homem associado ao poder disciplinar não é um
elemento anônimo numa massa amorfa, mas possuidor de uma identidade que o distingue
dos demais.
12
Individualidade que, para Foucault, caracteriza-se por ser celular, na medida em que é isolada e localizável,
orgânica, porque ligada a um complexo produtivo, genética, por permitir a acumulação do tempo visando sua
maior rentabilidade, e combinatória, visto que o indivíduo é sempre considerado em relação a um conjunto.
25
Nesse regime disciplinar, a divisão dos indivíduos não somente marca os desvios e
hierarquiza, mas também serve para instalar um sistema de punição baseado no castigo e na
recompensa, onde os “bons” são premiados e os “maus” rebaixados em função da regra em
comum. A punição disciplinar passa pelo exercício, que deve conformar o indivíduo à
regra, e põe em funcionamento cinco operações distintas, que culminam com o
aparecimento da norma:
[. . .] relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um
conjunto que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação
e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos
outros e em função dessa regra de conjunto – que se deve fazer funcionar como
base mínima, como média a respeitar ou como ótimo de que se deve chegar
perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as
capacidades, o nível, a natureza dos indivíduos. Fazer funcionar através dessa
medida valorizadora a coação de uma conformidade a realizar. Enfim, traçar o
limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira
externa do anormal (a classe vergonhosa da Escola Militar). A penalidade
perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das
instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, excluí.
Em uma palavra, ela normaliza. (FOUCAULT, 1997, p.163, grifos do autor).
Daí a idéia de que o poder disciplinar é normalizador. Mas Foucault vai além: o
poder não somente normaliza, mas também constitui. A explicitação completa da
identidade do indivíduo moderno passa pela constituição do mesmo enquanto sujeito. Se a
disciplina foi responsável pela constituição do indivíduo como objeto, coube ao que
Foucault chamou de “bio-poder” constituí-lo como sujeito através do dispositivo da
sexualidade.
Para explicar como a sexualidade passou, no início do século XIX, a ser o principal
elemento de explicação da personalidade humana, Foucault parte da negação da hipótese
repressiva, a qual defendia que, em relação ao sexo, o poder funcionava somente como
26
interdição, como repressão a um instinto sexual subjacente. De acordo com o autor, esta
visão se sustentaria por ter uma caução histórica: surgiu no momento de desenvolvimento
do capitalismo e faria parte da ordem burguesa. Nesta perspectiva, a repressão é justificada
porque incompatível com a necessidade de ajustamento do homem ao trabalho. Um outro
motivo para a sustentação desse discurso é o que o autor chamou de “benefício do locutor”.
Este, ao falar do sexo reprimido, teria a sensação de estar fugindo do alcance do poder, pois
o discurso sobre a repressão remete às idéias de liberdade prometida e de multiplicação das
volúpias.
Para o autor, a idéia recorrente no pensamento ocidental de que o aumento da
repressão nos séculos XVII e XVIII teria somente a ver com o surgimento do sistema de
produção capitalista é falsa: ele mostra que alguns textos médicos desse período, que
tratavam da masturbação das crianças, eram traduções de textos médicos gregos e já
descreviam fenômenos de esgotamento provocados por uma prática excessiva da
sexualidade (FOUCAULT, 2004, p. 304). O autor admite, no entanto, a existência de uma
mudança em direção a um maior controle da sexualidade entre os séculos XVIII e XIX,
mas a hipótese repressiva não se sustenta porque o exercício do poder em relação ao sexo,
mais do que reprimir, obrigou as pessoas a falar, confessar os pensamentos mais secretos,
os deslizes, os comportamentos impuros. O importante, para ele, é que a intensificação da
vigilância na era vitoriana veio acompanhada de uma injunção a falar sobre o sexo, ligada a
uma preocupação administrativa com o bem-estar da população.
Inicialmente a reflexão sobre esta pulsão misteriosa que precisava ser controlada
era feita sob a égide do discurso religioso, que a vinculava à moral cristã e ao pecado. Ao
27
longo do século XVIII, os poderes públicos assumiram a tarefa de administrar o sexo em
nome do bem-estar da população: o sexo tornou-se caso de polícia.
13
Baseada
primeiramente nas questões da população, a relação entre o poder e o sexo muda
substancialmente no início do século XIX, quando o sexo passa a ser entendido como um
instinto penetrável por processos patológicos.
Foucault mostra dessa forma que a sexualidade está ligada a dispositivos históricos
de poder, que a vinculam a uma “intensificação do corpo, à sua valorização como objeto de
saber e como elemento nas relações de poder.” (FOUCAULT, 1988, p. 102). Nesse sentido,
ele defende a necessidade de pensar de outra forma as relações entre sexo, poder e verdade:
não mais buscar uma verdade no sexo, que estaria encoberta pelo poder, mas entender que
regime de poder-saber-prazer sustenta o discurso sobre a sexualidade humana e que permite
ao poder chegar às mais individuais das condutas.
Desde meados do século XVIII, atua sobre a vida da população um poder que
Foucault (1988) denominou “bio-poder”, o qual teria substituído o poder de vida e morte do
soberano. Mais do que “causar a morte ou deixar viver”, prerrogativa do poder soberano, o
biopoder se caracteriza pela preocupação com a vida e o crescimento da população e teria
surgido a partir de dois pólos que se desenvolveram separadamente durante o século XVIII.
O primeiro pólo estava voltado para o corpo entendido como um organismo dotado de
13
Quando fala de polícia, Foucault está falando das forças responsáveis pelo bem-estar da população,
incluindo a higiene. Pesquisas realizadas aqui atestam que estas idéias são pertinentes também ao contexto
brasileiro. A pesquisadora Beatriz Marocco (2004) mostra que no jornalismo porto-alegrense do final do séc.
XIX as prostitutas eram apresentadas como o “germe de todos os vícios”, um mal que deveria ser controlado
pela polícia. A autora explica ainda que os jornalistas acusavam a polícia de ser incapaz de cumprir a lei e se
ofereciam para substituí-la, tornando o jornal um dispositivo de poder que incluía em seus espaços um tipo de
indivíduo que pretendia corrigir e manipular, com o objetivo de adequá-lo à ordem burguesa vigente.
28
capacidade, uma máquina, e baseava-se numa tecnologia disciplinar que visava o seu
adestramento, com o intuito de torná-lo dócil
14
e útil para o sistema em questão. O segundo,
que se formou por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo enquanto espécie
e estava voltado para o controle dos processos biológicos que interfeririam na vida social.
Foi, conforme Foucault, o dispositivo de sexualidade
15
que permitiu reunir os dois
pólos e aprofundar o controle sobre o corpo do indivíduo e da espécie. Isto foi possível
porque, no século XVIII, a sexualidade tornou-se objeto de estudos estatísticos, que
deveriam controlar as taxas de natalidade, mortalidade, nascimentos legítimos e ilegítimos,
permitindo o acesso à população. Mais tarde, no início do século XIX, ela foi reformulada
em termos médicos, dentro de uma perspectiva essencialista. O sexo passou, então, a ser
considerado uma questão individual, por dizer respeito aos prazeres individuais, que
poderiam ser perigosos, e coletiva, porque, se fora de controle, poderia comprometer o
bem-estar da população.
De um lado, faz parte das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e
distribuição das forças, ajustamento e economia das energias. Do outro, o sexo
pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais que induz.
Insere-se, simultaneamente, nos dois registros; dá lugar a vigilâncias
infinitesimais, a controles constantes [. . .] a todo um micropoder sobre o corpo;
mas também dá margem a medidas maciças, a estimativas estatísticas, a
14
“É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1997, p.126).
15
Para Foucault (1979) o dispositivo é uma rede que se pode estabelecer entre elementos heterogêneos,
discursivos e não discursivos, que respondem a uma urgência histórica: ele tem sempre um objetivo
estratégico. Tais elementos mudam de posição ao responder essa urgência histórica, colocando em
funcionamento um duplo processo: “[. . .] por um lado, cada efeito, positivo ou negativo, desejado ou não,
estabelece uma relação de ressonância ou de contradição com os outros, e exige uma rearticulação, um
reajustamento dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente; por outro lado, processo de perpétuo
preenchimento estratégico” (FOUCAULT, 1979, p.245). A sua natureza estratégica faz com que o dispositivo
esteja sempre inscrito em um jogo de poder. Conforme Foucault o dispositivo são “estratégias de relões de
força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles.” (Op. Cit. p. 246).
29
interveões que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente.
(FOUCAULT, 1988, p.136-137).
Uma das principais características deste biopoder é a crescente importância da
norma no controle social, em articulação com o poder soberano da lei. Enquanto esta se
baseia no gládio, o poder que tem a tarefa de se encarregar da vida precisa de mecanismos
contínuos, reguladores e corretivos. Conforme Foucault (1988, p.135),
[. . .] não se trata de pôr a morte em ação no campo da soberania, mas de
distribuir os vivos num domínio de valor e utilidade. Um poder dessa natureza
tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu
fausto mortífero; não tem que traçar a linha que separa os súditos obedientes dos
inimigos do soberano, mas opera distribuições em torno da norma.
Enquanto nos trabalhos anteriores Foucault demorou-se sobre a constituição do
indivíduo a partir das formas de objetivação e subjetivação engendradas pelo conhecimento
científico ou pelo que ele chamou de “práticas divisoras”
16
, durante os seus estudos sobre a
sexualidade ele estava preocupado com a forma como o ser humano torna-se sujeito para si
mesmo num contexto histórico em que a forma de poder dominante baseia-se na
normalização e hierarquização dos indivíduos em função das verdades sempre contingentes
que norteiam os modos de vida de uma sociedade.
17
Em um texto entregue no início da
década de 80 para constar no Dictionnaire des philosophes, Foucault, sob o pseudônimo de
Maurice Florence, afirma que a sexualidade é um “modo de experiência historicamente
singular, no qual o sujeito é objetivado para ele próprio e para os outros, através de certos
procedimentos de governo.” A idéia de governo pode ser entendida aqui como um ponto de
16
Práticas que dividem o sujeito no interior de si mesmo e em relação aos outros.
17
Nesse sentido, os estudos de Foucault sobre a sexualidade estão somente até certo ponto relacionados ao
sexo em si. Numa entrevista concedida e publicada por Dreyfus e Rabinow (1995, p. 253), o autor confessa
estar muito mais interessado “[. . .] nos problemas sobre as técnicas de si e coisas deste tipo do que
propriamente em sexo... sexo é chato.”
30
contato entre a tecnologia política dos indivíduos (acesso ao corpo e à espécie) e a
tecnologia de si (técnicas de autocultivo).
Colocando em prática o método arquegenealógico, nos últimos dois volumes da
História da Sexualidade, Foucault olha para os modos das culturas greco-latinas
vivenciarem a sexualidade a fim de confrontar diferentes formas de subjetivação e mostrar
que os indivíduos são resultado de procedimentos característicos de uma temporalidade
específica. Ele estava interessado em compreender por que em certos grupos e sociedades a
preocupação com os prazeres do corpo se sobrepõe à preocupação com outros aspectos da
vida, como a alimentação e a realização dos deveres cívicos, matéria dos exercícios de
ascese para os gregos. Ou seja, ele pretendia entender como o homem ocidental, colocando
o prazer sexual no topo de uma hierarquia dos prazeres, passou a se reconhecer como
sujeito de desejo. E nega que esse interesse ocorra por causa da sua relação com a
interdição e a excitação da transgressão, afirmando que muitas vezes a preocupação moral é
forte onde precisamente não há obrigação nem proibição. Nesse sentido, ao olhar para os
gregos, Foucault buscou compreender como a temática da austeridade em relação à vida
sexual foi problematizada nos âmbitos da experiência que estavam livres das interdições
civis, sociais e religiosas, isto é, na relação com o corpo, com a esposa, com os rapazes e
com a verdade.
Enquanto a constituição do indivíduo moderno se daria em função das prescrições
dos códigos, interditos e mecanismos disciplinares, a constituição do indivíduo antigo se
daria em função das práticas de ordem moral ligadas a uma estilização da existência. Em O
31
Uso dos Prazeres, o autor mostra que além dos atos e códigos morais
18
, a constituição do
sujeito moral exige uma relação do sujeito consigo próprio, rapport à soi, a que Foucault
chamou de ética. Mais do que se basear no conhecimento de si, a ética do homem grego
tinha como fundamento uma ocupação consigo, um cuidado de si. Princípio base de
qualquer conduta racional, o cuidado de si é uma atitude do homem em relação a si mesmo,
aos outros, ao mundo, o que implica uma forma de vigilância e de capacidade de agir sobre
si mesmo.
O que está em jogo são as condições nas quais o ser humano problematiza o que ele
é, o mundo no qual ele vive e aquilo que é livre para fazer, mas que busca aperfeiçoar, com
o objetivo não de conformar-se às regras de um sistema institucional, mas de alcançar uma
vida melhor. Na cultura greco-latina, essa problematização dizia respeito a um conjunto de
práticas que se poderia chamar “artes da existência”: “Deve-se entender, com isso, práticas
refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de
conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer
de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos
critérios de estilo.” (FOUCAULT, 1984, p.15). Esta ação do homem sobre si mesmo estaria
apoiada em uma ética da amizade, que permitiria ao indivíduo estabelecer redes de relações
livres das codificações universais e que respeitariam a singularidade dos experimentos
subjetivos, onde a sexualidade seria descentrada.
18
O autor faz uma distinção entre atos e códigos morais: “Por atos ou canais entende-se o comportamento
real das pessoas em relação ao código moral. Por códigos morais ou receitas entende-se aquilo que é imposto
às pessoas, determinando quais atos são permitidos e proibidos, bem como o valor positivo ou negativo de
possíveis comportamentos diferentes. “(FONSECA, 1995, p.100).
32
Foucault explica que os gregos entendiam o sexo como uma força virtualmente
excessiva, isto é, como uma força da natureza suscetível de abuso. O perigo é o excesso que
vai além da necessidade. A questão moral, portanto, consistia em saber como controlar essa
força. As regras de austeridade serviam para dizer o que convém e o que não convém para a
constituição estética da própria vida, o que exigia que o homem
19
deslocasse o olhar para si
mesmo, dominasse o próprio pensamento e conduta em torno da moderação dos prazeres –
e do poder que se exerce sobre si com esta moderação. O que estava em jogo no século IV
a.C era o controle dos atos praticados na interação erótica, ligado ao princípio de
moderação que se aplicava à arte política de governar a si mesmo para melhor governar os
outros. O homem grego, portanto, estava preocupado com a idéia de ascese individual,
estilização da existência e de ética voltada para o domínio dos atos e não para o
conhecimento da verdade do desejo.
O conhecimento da verdade do desejo foi a preocupação que norteou o fenômeno
chamado por Foucault de “Cultura de Si”, que se instalou no Ocidente nos séculos I e II de
nossa era, quando o conjunto dos prazeres físicos passou a se organizar numa hierarquia em
que o topo é ocupado pelo prazer sexual. Segundo Foucault (2004), o cristianismo não
introduziu novas idéias e interdições morais, mas sim novas técnicas, novos mecanismos de
poder que valorizaram as proibições já existentes e que estavam ligadas à produção da
verdade.
20
Para o autor, o que houve foi uma intensificação dos temas de austeridade nos
19
E quando fala do homem, fala do homem mesmo. A ética erótica dos atos não era uma prerrogativa de
todos, mas era restrita aos homens livres, excluindo-se, portanto, as mulheres, crianças, estrangeiros e
escravos.
20
Essas novas técnicas estariam ligadas ao que o autor chamou de poder pastoral, segundo o qual alguns
indivíduos exercem em relação aos outros o papel de pastores. No poder pastoral, a busca da salvação é
obrigatória e só pode ser obtida com a aceitação da autoridade do pastor, o qual exige do rebanho obediência
33
mesmos núcleos de problematização moral em que se detiveram os gregos. Também aqui o
sexo foi entendido como uma força excessiva, mas em vez de organizar-se a partir da
questão da moderação dos prazeres e do poder que se exerce sobre si, tal cultura tinha como
fundamento a idéia de que o homem é detentor de um mal: para alcançar a salvação, ele
precisaria procurar dentro de si uma verdade, que deveria ser tornada pública (o trabalho do
homem sobre si mesmo tem neste contexto um caráter social, que envolve outros
indivíduos, grupos ou instituições), a fim de que ele pudesse transformar-se e evitar que o
“mal” tomasse conta de seu ser. A interpretação dos sonhos foi um dos recursos utilizados
para tanto. Tomando o texto A Chave dos Sonhos, Foucault mostra que a arte de interpretar
os sonhos sexuais tinha uma preocupação com o aspecto social e político da vida do
sonhador. Era uma maneira contemporânea de perceber e julgar os prazeres. Prazeres estes
que eram vistos com maior severidade e desconfiança nesta “Cultura de Si”, que valorizou
o matrimônio, condenou os excessos dos prazeres – que teriam efeitos negativos sobre o
corpo e a alma – e desqualificou o amor pelos rapazes. O cristianismo traz, portanto, uma
renúncia à carne e aos prazeres do corpo, o que aumentou a necessidade de cuidar de si:
para não sucumbir, o indivíduo deveria voltar-se para si mesmo, a fim de melhor controlar-
se, tanto no que diz respeito ao corpo quanto à alma.
A preocupação com os excessos do corpo – a masturbação, por exemplo; a
exortação à moderação e à fidelidade conjugal; a preocupação normalmente traduzida por
uma desqualificação da homossexualidade e as noções de abstenção e autocontrole são
temas presentes no pensamento grego, no greco-romano, na moral cristã chegando às
absoluta. Para alcançar a salvação, o indivíduo deve, com a ajuda do pastor, produzir uma verdade sobre si
mesmo.
34
sociedades européias modernas. Apesar da continuidade dos temas, Foucault mostra que
eles foram formulados diferentemente em cada um desses momentos. Enquanto no
pensamento antigo as temáticas citadas cercavam-se de propostas de moderação em que
não havia pretensão de universalidade e que deviam conduzir a uma estilística da vida, na
moralidade cristã, elas eram induzidas por preceitos que se propunham universais, devendo
ser observados por qualquer pessoa, em todos os momentos e lugares. Para o autor, esta
moral cristã teria se enraizado no corpo social e se prolongado no tempo até a
contemporaneidade.
2.1.2 Corpo, sexualidade e amor na contemporaneidade
Em um período muito curto em termos de história das mentalidades, as sociedades
ocidentais viram transformados radicalmente os seus valores e comportamentos no âmbito
sexual, com efeitos significativos em vários aspectos da vida social. Acompanhando o
espantoso crescimento da economia mundial depois da Segunda Guerra
21
, as mulheres
entraram em massa no mercado de trabalho, conquistando independência financeira e maior
autonomia e igualdade em relação aos homens. Viram também aparecer os métodos
contraceptivos que as libertaram de uma sexualidade vinculada à reprodução, bem como os
antibióticos, que serenaram os medos das doenças transmitidas sexualmente – pelo menos
21
De acordo com Eric Hobsbawm (1995), os historiadores só foram perceber mais tarde a excepcionalidade
do que ele chamou de “A Era de Ouro”, compreendida entre o pós-guerra e meados da década de 70. Embora
o boom tenha acontecido essencialmente nos países capitalistas desenvolvidos, todos os outros países
passaram por uma fase de prosperidade na década de 50. A economia mundial crescia a uma taxa explosiva.
Para Hobsbawm (1995, p.257), “Na década de 1960, era claro que jamais houvera algo assim. A produção
mundial de manufaturas quadruplicou entre o início da década de 50 e o início da década de 70, e, o que é
ainda mais impressionante, o comércio mundial de produtos manufaturados aumentou dez vezes.” O boom
mundial fez com que bens e serviços que antes eram destinados a uma minoria passassem a ser produzidos
para um mercado de massa.
35
até o aparecimento da Aids, no último quartel do século. Em um mundo regido pela lógica
do capital e carente de consumidores, o dinheiro é capaz de comprar liberdades, desde que
estas sejam compatíveis com seus interesses. E a liberação sexual feminina parece não ter
sido um obstáculo ao capitalismo, visto que figura como uma das grandes mudanças do
século XX, que, de acordo com o filósofo Gilles Lipovetsky (2000), será lembrado como o
século das mulheres, visto que revolucionou mais do que qualquer outro seu destino e
identidade.
Apesar dessa tendência à igualdade, muitas das atribuições tradicionais do feminino
perduram, de acordo com Lipovetsky (2000, p.13), “[. . .] menos por inércia histórica do
que por sua possibilidade de harmonizar-se com os novos referenciais de autonomia
individual.” As diferenças de gênero permanecem e ficam mais patentes quando o assunto é
a vida privada, as emoções, o amor, a sexualidade. Embora as aspirações femininas não se
concentrem exclusivamente na vida sentimental – em muitos casos a carreira profissional
ganhou igual ou maior importância do que a amorosa –, pesquisas em todo mundo
ocidental mostram que as mulheres em geral mantêm uma relação privilegiada com a
ordem amorosa, apesar desta ter sido duramente atacada pelo movimento feminista na
década de 60, que apregoava a liberdade sexual em detrimento do amor romântico. Este foi
acusado de ser o ópio das mulheres e de manter os papéis estereotipados que as
inferiorizam em relação aos homens. (LIPOVETSKY, 2000).
A liberdade sexual nasce, portanto, associada à autonomia individual, em
contraposição ao amor romântico, que implicava uma renúncia de si. Como as mulheres
não abandonaram o amor, visto que ele funciona também como vetor de identidade, sentido
36
e poderes privados, além de não se opor aos princípios de autonomia apregoados pela
cultura individualista moderna, a sexualidade foi a ele vinculada e passou a ser um dos
principais fatores de constituição da identidade feminina.
22
Ao mesmo tempo em que o erotismo feminino liga-se ao amor e alimenta-se de
significações e imagens sentimentais, há uma relativização da necessidade do compromisso
emocional para que haja o ato sexual:
Em nossos dias, as mulheres desdramatizaram amplamente a libido, suas
aventuras sexuais já não implicam o grande amor e podem ter livre curso fora de
qualquer projeto futuro. Amores de férias, ligações passageiras, evasões de uma
noite, tudo isso não é mais desconhecido das mulheres e se realiza sem
embaraço nem culpa. (LIPOVETSKY, 2000, p.36).
Nesta sociedade em que a busca da felicidade legitima as condutas valorativas do
sujeito, não há mais justificativa teórica, moral ou filosófica para condenar o que duas
pessoas adultas e em consentimento fazem entre quatro paredes. Assim como as mulheres
têm o direito de desfrutar de sua sexualidade, nunca os movimentos que afirmam a
plasticidade das identidades sexuais esteveo forte: homossexuais, transexuais,
intersexuais passam cada vez mais a ver seus direitos reconhecidos no mundo ocidental.
22
É importante frisar que a influência da sexualidade na constituição da identidade varia de acordo com o
grupo e a classe social, pois, como referido acima, o valor atribuído a ela depende das condições de
socialização dos indivíduos. Numa pesquisa de campo realizada entre mulheres da burguesia, do campesinato
e operariado, Muraro (1983, p.319) conclui que os corpos de homens e mulheres burgueses são “altamente
montados para o prazer e para o consumo”. Dentre as mulheres burguesas pesquisadas no início da década de
80, 90% consideraram importante ter relações sexuais antes do casamento, 76,6% concordaram que é certo a
mulher procurar o homem quando tiver vontade de sexo e 90% acham que a mulher deve procurar outros
homens quando não estiver satisfeita no casamento. Entre as campesinas da Zona da Mata e do Agreste a
situação é bem diferente: 90% das mulheres acreditam que não existe necessidade de ter relações sexuais
antes do casamento, somente 25% das mulheres do Agreste e 40% da Zona da Mata concordam que é preciso
buscar outros parceiros caso não estejam satisfeitas com os maridos e, no que se refere a procurar o parceiro,
90% das mulheres do Agreste acham correto, enquanto na Zona da mata o índice baixa para 65%. Poder-se-ia
afirmar, a partir dos dados revelados pela pesquisa, que as mulheres de classes mais abastadas – a quem são
dirigidas as revistas femininas de que trata este trabalho – valorizam mais uma vida sexual ativa e satisfatória
do que as de classes sociais mais baixas.
37
Enquanto isso, alguns grupos pregam o “no sex”
23
. De acordo com Costa (1998a) isso
acontece porque o sexo perdeu a importância econômica, política e moral que tivera
outrora, permitindo com que as sexualidades antes consideradas desviantes pudessem ser
expostas à opinião pública. Livre da força transgressora e da culpa religiosa, a única
importância do sexo “[. . .] é a de ser mais um índice da individualização à qual aspira o
sujeito narcísico, consumidor de bens, sensações e imagens orquestradas pelo consumo.”
(COSTA, 1998a, p.20). O problema moral, afirma Costa, teria se deslocado para a questão
do amor.
Desvinculando a reflexão sobre o sexo da reflexão sobre o amor, Foucault
subestimou a importância deste na constituição das subjetividades contemporâneas.
24
Para
Costa (1998b), a questão da sexualidade é hoje moralmente menos importante do que a
questão amorosa para a realização emocional dos indivíduos. Isso aconteceria porque se as
23
De acordo com Kostman (2004), nos Estados Unidos, nos últimos dez anos, o movimento denominado
“True Love Waits”, que defende a abstinência sexual para os adolescentes antes do casamento, teve 2,5
milhões de adeptos. No entanto, uma pesquisa realizada pela Universidade de Columbia mostra que 88%
desses jovens sucumbem à tentação e acabam tendo relações sexuais antes de encontrar o “verdadeiro amor”.
A pesquisa também mostra que os jovens que prometeram abstinência, quando decidem transar, protegem-se
menos do que os que estão fora do movimento. Para Kostman, apesar da pesquisa, o movimento deve ganhar
força, porque este tem o apoio do governo americano. Este, em 2003, teria destinado 135 milhões de dólares
“[. . .] para centros de saúde, escolas e igrejas que realizem reuniões com o objetivo de convencer
adolescentes a evitar relações sexuais antes do casamento. Ao mesmo tempo, reduziu a verba para programas
de educação que incentivam o sexo seguro. Em alguns Estados americanos todos os programas que fornecem
informações sobre o uso de métodos anticoncepcionais e preservativos para adolescentes foram abolidos.”
24
De acordo com Costa (1998b) há duas razões para Foucault ter esquecido do amor. A primeira diz respeito
à resistência que ele, assim como todo o Ocidente, tem em admitir a dimensão coercitiva do amor. A segunda
razão é conseqüência de seus achados teóricos. “Foucault não se interessava pelo amor porque não via neste
hábito cultural um instrumento disciplinar, formador de "identidades sociais" [. . .] De fato, o amor, diferente
do sexo, sempre foi um aspecto da relação intersubjetiva passível de "trabalho ético" e não de "codificação
moral" como a sexualidade. A modulação individual das preferências amorosas não visa proibir, permitir ou
regular trocas de amor; visa tipificar o estilo de amar de cada um. Não conhecemos, no Ocidente, a proibição
de amar como conhecemos a proibição de ter relações sexuais ou contrair vínculos matrimoniais dentro de um
certo círculo de parceiros. Portanto, a liberdade estilística no domínio do amor reproduzia, de certa maneira, a
liberdade estilística da erótica grega que Foucault quis revalorizar, retomando a discussão sobre a amizade. O
amor foi para o sujeito moderno o que o "sexo" ou a erótica foram para o homem livre da polis grega. Fazer
da prática sexual algo semelhante à prática histórica do amor no Ocidente era o que Foucault esperava das
relações de amizade.”(COSTA, 1998b, p.32-33).
38
parcerias sexuais são relativamente fáceis de se encontrar nesta época em que as questões
da emancipação sexual e do gozo erótico já não ocupam o centro dos debates coletivos, a
ausência de obrigações de qualquer gênero que imponham uma continuidade nestas
parcerias faz com que o amor seja culturalmente definido como um evento raro. Ao mesmo
tempo em que o amor escasseia, Costa acredita que os indivíduos são levados a crer que
amar é uma tarefa simples e que está ao alcance de qualquer pessoa razoavelmente adulta,
madura, sem inibições afetivas ou impedimentos culturais.
Para o autor, assim como o sexo religioso ou médico-científico normatizou as
experiências de prazer do sujeito, criando divisões entre o moral e o imoral, o normal e o
anormal, o amor-paixão romântico engendrou a idéia de felicidade sentimental, que criou
seus incluídos e excluídos. Os excluídos do amor romântico não se constituiriam como
minorias identitárias, como acontece com os homossexuais, mas, de acordo com Costa,
teriam aprendido a considerar-se "infelizes", "azarados", "irrealizados". E, como não se
levantam dúvidas sobre a universalidade do amor, o sentimento do insucesso amoroso é
acompanhado de culpa, baixa da auto-estima e não de revolta contra o valor imposto, como
aconteceria numa situação de preconceito.
A relação privilegiada das mulheres com o amor faz com que a maior parte delas,
apesar das liberdades sexuais contemporâneas, não considere o sexo como uma pura troca
de prazeres, mas tenda a associar a realização sexual ao compromisso emocional. Sendo
assim, Costa acredita que a ética da amizade proposta por Foucault, que permitiria ao
indivíduo constituir-se livremente através da renovação das subjetividades no espaço
39
intersticial das relações de amizade, só será culturalmente possível com um questionamento
da validade dos ideais do amor romântico.
O que, pelo menos nos meios de comunicação, vêm acontecendo pouco. As
tentativas de reflexão sobre o assunto levadas a cabo por alguns pensadores em artigos de
jornais ou revistas são irrelevantes perante a constante exaltação do amor nas músicas,
filmes, telenovelas, programas de televisão e reportagens que circulam em revistas e jornais
desta época. O amor, dessa forma, é culturalmente definido como indispensável para a
constituição emocional do indivíduo moderno. Mas se aprendemos que qualquer pessoa
“normal” é capaz de amar, aprendemos também que o amor vem acompanhado do desejo
sexual, e que este, liberto da culpa religiosa, é fácil de ser sentido, visto que depende da
nossa natureza biológica. Assim como não se questiona a validade dos ideais do amor
romântico, não se questiona a sua vinculação com a sexualidade e a naturalização do
desejo.
Os meios de comunicação, vinculados que estão com o mundo do consumo, são,
para Lipovetsky, um dos principais apoios de uma cultura pós-moralista que ele acredita
vigorar nas sociedades democráticas ocidentais na virada do milênio, baseadas numa nova
lógica de secularização da moral. O dever laico que substituiu a moral religiosa na Época
Clássica seria agora relegado por uma ética indolor: ausência de compromisso,
supervalorização do bem-estar em detrimento das obrigações e exaltação dos direitos
individuais à autonomia, ao desejo e à felicidade caracterizam esta sociedade que
desvaloriza os ideais de abnegação e estimula os prazeres imediatos. Enquanto a era
moralista pretendia o disciplinamento do desejo, a pós-moralista o intensifica e o associa ao
40
prazer e ao bem-estar. Lipovetsky sugere que este se tornou Deus, sendo a publicidade o
seu profeta. Incitando os homens a esquecer as dores e serem felizes, a publicidade os faz
deixar de reconhecer a obrigação de se ligar a qualquer coisa para além de si próprios.
Além disso, com
o advento do cinema e da televisão, os ideais de beleza, ainda a
principal arma sedutiva feminina, passaram a ser transmitidos culturalmente através de
imagens visuais padronizadas: “Não nos dizem mais como é “uma dama” ou em que
consiste a feminidade. Em vez disso, ficamos sabendo das regras diretamente através do
discurso do corpo: por meio de imagens que nos dizem que roupas, configuração do corpo,
expressão facial, movimentos e comportamento são exigidos” (BORDO, 1997, p.24).
De acordo com Silva (2004) a cultura de massa e de consumo coincide com a
ascensão do poder-saber das estéticas do corpo, as quais aperfeiçoaram a disciplina sobre
ele. Os discursos do cuidado de si, enquanto práticas discursivas, são elementos teóricos
que integram o poder disciplinar do corpo, enquanto as práticas e técnicas de controle do
corpo feminino e masculino constituem os elementos não discursivos desse poder. Ela
mostra que a partir da década de 60, tanto o corpo feminino quanto o masculino foram
submetidos a novo “controle-dominação-estimulação” capitalista, através dos quais os
indivíduos se transformam historicamente em sujeitos que governam seus corpos “dóceis”.
A partir dos discursos do cuidado de si encontrados nos textos das revistas Claudia, Nova e
Playboy, Silva mostra que cuidar do corpo significa cuidar de si mesmo, afirmar-se e sentir-
se bem, e tudo isso, a partir da ordem tecnocientífica empresarial, em que o corpo é objeto
de explorações comerciais.
41
Nesta época de declínio de valores religiosos, políticos e morais, o cuidado de si,
que, segundo Costa (2004), tinha outrora por objetivo o disciplinamento do desejo e o
desenvolvimento da alma, hoje se volta para os cuidados com o corpo, que deve
permanecer jovem, saudável e magro, conforme os preceitos científicos da “qualidade de
vida”. A ética que rege o agir moral contemporâneo não é mais política ou psicológica, mas
uma bioética, que substituiu a “excelência virtuosa da vida” pela “qualidade de vida”, o
sujeito moral pelo corpo biológico e o sujeito coletivo pela espécie humana. Para o autor,
este novo modo de vida gerou uma nova identidade, a bio-identidade, e uma nova forma de
preocupação consigo, a bio-ascese, que prevê um trabalho do homem sobre si mesmo para
transformar-se baseado na reeducação de hábitos considerados pela ciência como insalubres
ou destrutivos.
Assim como o “bio-poder” de Foucault tem necessidades de mecanismos
contínuos, reguladores e corretivos, a bioética de Costa e a cultura da felicidade de
Lipovetsky também prevêem uma série de normas, informações e técnicas que estimulam
um trabalho permanente de autocontrole e de vigilância de si próprio.
[. . . ] depois do imperativo categórico, o imperativo narcísico incessantemente
glorificado pela cultura higiênica e desportiva, estética e dietética. Manter-se em
forma, lutar contra as rugas, zelar por uma alimentação saudável, bronzear-se,
manter a linha, descansar, a felicidade individualista é inseparável de um
extraordinário forcing no esforço de dinamização, de conservação, de gestão
optimizada de si próprio. A ética contemporânea da felicidade não é apenas
consumista, ela é de essência ativista, construtivista: [. . .] já não se trata da
aceitação resignada do tempo, mas da eterna juventude do corpo; já não se trata
da sabedoria, mas do trabalho que cada um é capaz de executar; não da unidade
do eu, mas da diversidade high tech das exigências de proteção, de conservação,
de valorização do capital corpo (LIPOVESTSKY, 1994, p.65).
42
Esta mudança no eixo valorativo das condutas – que não se baseiam mais no
pensamento religioso, político ou filosófico, mas nos preceitos da ordem tecnocientífica
empresarial – produziu, conforme Costa (2004) uma reviravolta na concepção do desvio e
da normalidade mentais: se no século XVIII os loucos ameaçavam a sociedade Iluminista
com a sua desrazão, no XIX os perversos assustavam a sociedade com os seus instintos
desregrados, hoje os estultos, incompetentes para exercer a vontade no domínio do corpo,
nos ameaçam com a fraqueza de vontade. Se a imagem social do corpo é o referente central
da identidade, os que não tiverem domínio sobre ele são os fracos, os inferiores, os estultos.
É, portanto, buscando incessantemente adequar-se a um ideal de feminidade
homogeneizante que as mulheres desta época transformam seus corpos em corpos dóceis,
habituados ao controle externo, disciplinados e úteis à ordem tecnocientífica empresarial.
Para Bordo (1997), a preocupação desmedida das mulheres com a aparência, que traduz a
prática da feminidade na contemporaneidade, reafirma as configurações de gênero
existentes, marca um retrocesso nas tentativas de transformar as relações de poder e não
encontra formas de resistência. A autora mostra que as doenças que alguns estudos
feministas entenderam como “patologias de protesto”, como a agorafobia e a anorexia,
vivenciadas por muitas mulheres de classes média e média-alta como uma experiência
libertadora, parecem estar em conluio com as condições culturais que as produzem,
reproduzindo em vez de transformar aquilo que provoca o protesto. O investimento do
poder sobre os corpos é tão sutil que a resistência potencial é utilizada na manutenção e
reprodução de relações de poder existentes.
2.2 As revistas femininas
43
Desde que surgiram, as publicações destinadas às mulheres configuram-se como
manuais a serem utilizados por elas na sua vida cotidiana. Se nos seus primórdios elas
ensinavam diferentes pontos de crochê, receitas de bolo, dicas de leitura e bom
comportamento, conformando-se ao ideal de mulher das sociedades patriarcais
25
, neste
tempo de relativização dos papéis sociais, elas trazem respostas aos problemas de
identidade característicos de uma cultura globalizada e fragmentada.
Ao propor um conjunto de regras, conselhos, dicas às quais a leitora deveria
recorrer para orientar suas práticas cotidianas e “ser feliz”, as revistas femininas
configuram-se como um tipo de literatura característica do século XX: a de auto-ajuda. De
acordo com Rüdiger (1996, p.11), esta literatura é uma categoria cultural deste tempo em
que o declínio da tradição deixou os indivíduos desprovidos de uma unidade e refere-se “ao
conjunto textualmente mediado de práticas através das quais as pessoas procuram
descobrir, cultivar e empregar seus supostos recursos interiores e transformar sua
subjetividade, visando a conseguir uma determinada posição individual supra ou
intramundana.” Nesta época de “verdades” relativas, a incompletude do sujeito vem à tona,
deixando a subjetividade numa situação precária. Correndo o risco de perder sua
25
Até meados do século XIX, a unidade básica da sociedade brasileira era a família patriarcal. Fora dela, não
existiam instituições que permitissem a agregação de pessoas em torno de interesses comuns e que pudessem
contrabalançar a importância da família na construção de um discurso sobre o feminino. Além da esposa,
filhos e netos do patriarca, a família era composta por escravos e escravas – que, muitas vezes, eram também
concubinas–, e agregados. Foi no isolamento das casas-grandes e sob a influência de uma cultura herdeira das
tradições mediterrâneas que, durante séculos, se construiu o discurso sobre os papéis sociais reservados a
homens e mulheres no Brasil, atualizando representações que consideravam mulheres e crianças como seres
inferiores, enquanto o patriarca era a encarnação de todas as virtudes. Os significados e papéis que cada
membro da família deveria assumir eram dados pela tradição, que reservava à mulher o papel de mãe e
esposa.
44
identidade, o indivíduo precisa agora monitorar-se constantemente, fazendo um exercício
sobre si mesmo para atingir ou manter um modo de ser adequado ao seu tempo.
O cuidado de si na contemporaneidade, de acordo com Foucault, se dá sempre em
função da verdade, que é eternamente sujeita ao risco, ao acaso e às relações de força. Ele
implica um conhecimento de si, mas “também o conhecimento de um certo número de
regras de conduta ou de princípios que são simultaneamente verdades e prescrições. Cuidar
de si é se munir dessas verdades.”(2004, p.269). É nesse sentido que a ética, entendida
como relação consigo mesmo, liga-se aos jogos de verdade. Verdades que, neste tempo,
penetram no corpo social através dos meios de comunicação.
2.2.1 A produção de verdade e sentido nos meios de comunicação
Em uma época em que, nas sociedades urbanas, o consumo da mídia é a segunda
principal categoria de atividade depois do trabalho e a atividade predominante nas casas
(CASTELLS, 2000), em que a política teve de adaptar-se à lógica dos meios de
comunicação
26
, em que instituições tradicionais como a família e escola perderam força na
26
Desde a restauração democrática no Brasil em meados dos anos 80, os meios de comunicação se tornaram
o cenário por excelência da representação política. Em vez de ter acesso ao mundo político a partir dos
próprios partidos, como aconteceu no Brasil na época da imprensa política-partidária, ou ter as informações
controladas e censuradas pelos governos autoritários que se estabeleceram durante o período da ditadura
militar, hoje os brasileiros compreendem a política através dos diferentes veículos de comunicação. Salvo nos
períodos de eleição, em que o governo garante um espaço nos meios de comunicação para que os partidos
possam se comunicar com o eleitorado sem a interferência de um campo externo ao político, é através da
informação mediada pelos atores da comunicação de massa que as pessoas criam uma opinião a respeito dos
temas em pauta num determinado período, bem como a respeito dos personagens envolvidos. Esta opinião
criada ao longo dos anos de intervalo entre as eleições será determinante na hora do ‘público eleitor’ decidir
quem serão os próximos atores a ocupar o palco da política. O que faz com que os políticos despendam cada
vez mais tempo, dinheiro e energia com o gerenciamento das impressões do público. Gerenciamento este que
não depende mais somente da sua vontade, mas, de acordo com Gomes (2003) deve considerar o campo da
comunicação de massa.
45
socialização dos indivíduos e em que a mídia toma para si a função de informar e educar as
populações, a produção de verdades passou a estar estreitamente vinculada aos meios de
comunicação. Se o lugar legítimo para a produção dos saberes que regem a vida social na
contemporaneidade é ainda a Ciência, é através dos meios de comunicação que eles
penetram no corpo social. A imensa oferta de conhecimento a respeito dos mais diversos
assuntos impede que este se prolifere igualmente pela sociedade. Ao escolher aquilo que
pode ser dito em um determinado veículo, em um espaço e tempo específicos, para um
determinado público, de acordo com seus interesses enquanto empresa capitalista, a mídia
faz com que sua lógica interfira nessas verdades científicas. Concordo com o argumento de
Fischer (1996) de que os meios de comunicação funcionariam como um lugar de
superposição de verdades provenientes de diferentes campos e formações discursivas. Não
há neles uma simples reprodução dos discursos que murmuram na sociedade: quando estes
chegam à mídia, ingressam em um outro dispositivo, que a autora chama de “dispositivo
pedagógico da mídia”, transformando-se, assim, em outros discursos. O dispositivo
pedagógico se basearia não somente na idéia de que os conteúdos da mídia construiriam
significados e sujeitos, mas que a linguagem própria dos produtos midiáticos, entendidos
como materialidades discursivas, conformariam uma lógica discursiva própria, que também
produz sujeitos e sentidos. Selecionando alguns discursos em detrimento de outros, dando-
lhes uma determinada visibilidade, e adequando-os à sua linguagem a fim de torná-los
inteligíveis para o maior número de pessoas, os meios de comunicação se transformam em
um importante local para a produção de “verdades” que norteiam a vida individual e
coletiva.
46
Esta propagação do discurso científico através dos meios de comunicação, que
informam, analisam e comentam o seu conteúdo, teve, de acordo com Giddens (1992),
efeitos muito maiores e diversificados sobre a sociedade do que os textos propriamente
científicos. Ele considera o conceito de “reflexividade institucional” mais adequado para
explicar como o discurso penetra e organiza a vida social:
É institucional por ser o elemento estrutural básico da atividade social nos
ambientes modernos. É reflexivo no sentido de que os termos introduzidos para
descrever a vida social habitualmente chegam e a transformam – não como um
processo mecânico, nem necessariamente de uma maneira controlada, mas
porque tornam-se parte das formas de ação adotadas pelos indivíduos ou pelos
grupos (GIDDENS, 1992, p.39).
O próprio Foucault admite que há muitos textos considerados “maiores” que se
dispersam e desaparecem, e há comentários que podem ocupar o lugar mais importante. O
que ele pretendia frisar era o desnível que sempre existe entre um discurso criador de novos
atos de fala e os discursos que se repetem: “[. . . ] se é verdade que os seus pontos de
aplicação podem mudar, a função permanece e o princípio de um desnível é
necessariamente acionado.” (FOUCAULT, 1971, p.6). Assim, sem entrar no mérito de ser a
reflexividade institucional ou o poder/saber o melhor conceito para pensar na forma como o
discurso penetra e organiza a vida social, o importante é perceber a discrepância existente
entre os discursos “verdadeiros” proferidos a partir de um lugar “legítimo” e os proferidos
ordinariamente. Ao apropriar-se de enunciados que pululam em determinado momento
histórico, reprocessá-los e devolvê-los à sociedade, os meios de comunicação transformam-
se num desses lugares legítimos para a construção de um saber sobre o homem e o mundo.
47
A idéia de que o discurso é constitutivo da realidade é fundamental no pensamento
de Foucault. Com isso, o filósofo francês não quis dizer que existem estruturas permanentes
e universais por trás da realidade, mas que os discursos são “práticas que formam
sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 1995, p.56). Entendido como
prática social resultante de relações de poder, o discurso, que também é descrito como um
conjunto de enunciados apoiados numa mesma formação discursiva, depende do equilíbrio
entre forças que se modificam de acordo com o contexto e época específicos. Admitindo
essa contingência, Foucault nega a idéia de que existe uma verdade a ser alcançada: para
ele, não há o que se procurar por trás do discurso, que também não pode ser identificado
como um signo que se refere a algo “real”, mas deve ser pensado a partir das condições e
relações históricas e concretas que permitiram o seu aparecimento: “[. . .] analisando os
próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras
e as coisas e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva.” (idem).
2.2.2 Revistas femininas: elementos discursivos do dispositivo de sexualidade
Existe, para Foucault, uma intrincada relação entre as práticas discursivas e as não-
discursivas que se articulam na construção dos saberes de uma determinada época, que, por
sua vez, resultam de relações de poder na sociedade. Em um célebre trecho de Vigiar e
Punir, Foucault afirma:
Temos antes que admitir que o poder produz saber [. . .]; que poder e saber estão
diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata
de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo
tempo relações de poder. Essas relações de “poder-saber” não devem então ser
analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em
relação ao sistema do poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito
48
que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são
outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder saber e de suas
transformações históricas (FOUCAULT, 1997, p.30).
Colocando em circulação enunciados heterogêneos, provenientes de diferentes
formações discursivas, as revistas femininas configuram-se como um local privilegiado
para a reprodução, construção e acumulação de um saber sobre a sexualidade na
contemporaneidade. Constituem-se, portanto, como elementos discursivos que integram o
dispositivo de sexualidade, sendo que as práticas sugeridas por elas configurar-se-iam como
os elementos não discursivos.
Parto, então, do pressuposto de que, ao materializar determinados saberes em
relação à sexualidade, em detrimento de outros, as revistas colaboram para a construção de
formas específicas de vivenciá-la, pertinentes aos poderes desta época. Com a promessa de
educar as mulheres para a conquista amorosa e sexual, as revistas dão inteligibilidade
àquilo que é desejável neste período histórico e indicam os caminhos a serem seguidos para
alcançar os objetivos propostos por elas mesmas. Ao disponibilizar regras de conduta a
serem seguidas pela leitora em sua vida cotidiana, as revistas legitimam um determinado
modo de ser e, ao lado de outras instituições sociais como a família, a escola, a Igreja e
outros meios de comunicação, contribuem para dar inteligibilidade ao que significa ser
mulher numa determinada sociedade e tempo: ajudam a formar o modo através do qual as
mulheres olham para si mesmas e o modo como a sociedade olha para elas.
Não é possível, porém, pensar linearmente na relação entre o conteúdo das revistas
e o comportamento das leitoras, ou seja, não há uma causalidade nessa relação. O que
49
importa na análise dos discursos da mídia é entender que as coisas ditas decorrem das
dinâmicas de poder/saber do seu tempo. As idéias materializadas nas revistas não nascem
da cabeça do jornalista, que intencionalmente, tentaria manipular as leitoras. É, de alguma
forma, o espírito do tempo que nelas se materializa. Além disso, a decodificação das
mensagens veiculadas pelas revistas depende do contexto em que elas são recebidas. Há
que as leitoras se reconheçam nas páginas das revistas para que o discurso das mesmas as
interpele.
Tratando da intimidade de celebridades e mulheres comuns ao mesmo tempo em
que propõem maneiras da leitora gerir a própria vida, as revistas femininas colocam em
funcionamento as estruturas características do poder moderno: através da difusão de um
ideal a ser seguido, elas engendram processos de subjetivação que têm a norma como
parâmetro. De acordo com Fischer (1996), o fato das imagens midiáticas servirem à
constituição das identidades deve-se à simultânea valorização do individual e do
estandardizado que ela operacionaliza apropriando-se de modos privados de ser,
reelaborando-os e devolvendo-os à sociedade. “Vemo-nos nas telas da TV, nas fotografias
das revistas, nos textos dos testemunhos e reportagens sobre vidas comuns ou trajetórias
espetaculares: umas e outras falam da intimidade, da frustração, do desejo, do sonho,
conhecidos de qualquer um de nós” (FISCHER, 1996, p.13).
Ao mesmo tempo em que se dirigem à totalidade das leitoras, as revistas, como
numa conversa entre amigas, dirigem-se a cada uma delas em particular, tratando de temas
que lhe dizem respeito e indicando o caminho que ela deve seguir para encaixar-se num
modelo bem-sucedido de pessoa. É dessa forma que a revista individualiza cada leitora em
50
função de uma regra geral. Nesse sentido, as revistas normalizam e tornam desejáveis
alguns comportamentos em detrimento de outros, que devem ser evitados.
E a norma, nas revistas, reveste-se do sentido do “atual”. De acordo com Larrosa
(2000), para Foucault, o atual é o novo, o interessante e, ao mesmo tempo, um “vir-a-ser”,
aquilo que estamos nos tornando – em contraposição ao presente, que é o que somos agora,
mas estamos já deixando de ser. A particularidade das revistas em relação aos veículos
informativos é o seu caráter vanguardista: provavelmente por causa da moda em
vestuário
27
, as revistas femininas se impregnaram do novo, que influenciou todos os outros
conteúdos publicados. O moderno, o novo, o atual revestem-se de um significado positivo e
indicam um caminho a seguir, o que fazer, como agir: usando uma linguagem persuasiva,
muito próxima da publicitária, as revistas apresentam uma série de roupas, produtos e
condutas “modernas” que devem ser imitadas para afirmar sinais que individualizem cada
mulher e a identifiquem como pertencente à elite. Para Buitoni (1986), os modismos
apresentados pelas revistas são construções arbitrárias, que mantêm apenas uma relação
latente com a realidade:
Bem trabalhada, a novidade é uma qualidade capaz de revestir qualquer objeto.
A ancoragem temporal desloca-se para uma relação mental: a revista (ou a
indústria, a publicidade) inventa um modismo que logo é apresentado como o
que existe de mais “atual”. “Atual” aqui é apenas sinônimo de novo, mediador
de novidade eo de momento situado no tempo (BUITONI, 1986, p.13-14).
O formato, a qualidade do papel e a periodicidade das revistas também as
diferenciam dos jornais impressos. De acordo com Scalzo (2003), até o surgimento das
27
Segundo Buitoni (1986), muitos veículos femininos nasceram por causa da moda em vestiário. A autora
conta que as grandes tiragens de periódicos femininos aconteceram por causa da difusão dos moldes de
costura nos Estados Unidos.
51
revistas semanais de informação no século XX, a vocação mais evidente do veículo revista
era o entretenimento, seguido por questões educacionais e de serviço. A adoção dos
historicamente constituídos “princípios” do jornalismo pelas revistas semanais de
informação, no entanto, contaminou os conteúdos dos demais magazines, mesmo os que
não tinham no jornalismo a principal linha editorial, fazendo com que estes passassem a ter
mais rigor na apuração e checagem das informações.
Considera-se, então, que as revistas femininas são uma mescla de jornalismo,
entretenimento e literatura de auto-ajuda. Além de funcionarem como uma espécie de
“filtro” em relação ao conhecimento proveniente do campo científico, os magazines
interferem nele, dando um determinado tom à matéria ou conferindo mais ou menos
importância a ela. Assumindo a intenção de fornecer informações à leitora, as revistas
apóiam-se e buscam legitimidade no campo do jornalismo, que se funda sobre o princípio
da verdade
28
. Embora os magazines mantenham as mesmas rotinas de produção do
jornalismo e se aproveitem da credibilidade adquirida por este para legitimar-se, a sua
autoridade para falar a respeito da sexualidade baseia-se também em outros aspectos. Cabe
aqui uma digressão histórica.
2.2.3 Sobre a confissão, a sexualidade e a autoridade das revistas femininas
28
O jogo do fazer crer está, por sua vez, baseado no contrato de leitura: o leitor espera que o jornal lhe dê
informações verdadeiras a respeito do mundo e lhe diga o que, entre tantas coisas, é preciso saber dele. O
jornalismo, portanto, tem a função de sistematizar um conhecimento a respeito do mundo, faz uma mediação
entre o homem e a realidade.
52
Por volta dos anos 20, as Ciências Sociais surgiam como uma nova autoridade no
cenário ocidental. Para Cott (1991), os cientistas sociais da época tinham convicção de que
o seu saber era crucial para o estabelecimento de uma ordem social moderna, eficaz e
democrática. Os mesmos cientistas que consideravam a Psicologia como a ferramenta que
poderia fazer o ajustamento psicológico do indivíduo às normas sociais “salutares”
voltaram-se contra a moral sexual “vitoriana”, entendida como repressiva, e passaram a
interpretar a sexualidade como fonte de vitalidade, que deveria ser explorada. Tais idéias
foram rapidamente incorporadas pelo cinema, revistas e publicidade americanas, que
difundiram os ideais de liberação pelo resto do mundo através do cinema que florescia na
época.
29
Um novo discurso, no entanto, interferiu na organização social da sexualidade por
volta da década de 30, domesticando-a dentro de um novo ideal de casamento. Apoiando-se
no conhecimento gerado pelas Ciências Sociais, os conselheiros matrimoniais
reconheceram o casamento vitoriano como hierárquico e emocionalmente estéril, mas, em
vez da liberação, os moralistas defenderam um casamento baseado na íntima associação
sexual, que deveria valorizar a individualidade dos parceiros e, ao mesmo tempo, os unir.
Segundo Winckler (1983), através de manuais para casados, revistas cristãs e obras da
teologia moral o discurso católico no Brasil apregoava uma sacralização do casamento
burguês, que se conformava como uma comunhão entre dois seres que se amam e que
supõe a educação e responsabilidade pelos filhos. A sexualidade feminina, nesse contexto,
29
Buitoni (1986) conta que as revistas femininas escassearam no Brasil no período entre guerras. Com exceção da Revista
Feminina, que foi extinta em 1936, os magazines mais vendidos eram os de variedades, com seções específicas para
homens, mulheres e crianças, das quais o principal exemplar é a revista Cruzeiro. As partes direcionadas às mulheres muito
falavam da vida dos atores e atrizes de cinema. Algumas publicações foram criadas em torno do cinema, como a Scena
Muda, Filmelândia, Cinemim e Cinelândia, e outras do rádio, como A Revista do Rádio.
53
foi reconhecida, legitimada e normalizada dentro do matrimônio. As mulheres que não
encontrassem um marido ou as homossexuais eram consideradas um perigo social. (COTT,
1991).
A partir da década de 30, a normalização da sexualidade feminina dentro do
casamento foi contemporânea à consolidação do processo de industrialização na Europa e
nos Estados Unidos e à responsabilização das mulheres pelas compras da casa. Enquanto
estas se tornavam o público alvo da indústria alimentícia, de eletrodomésticos e cosmética,
a publicidade ganhou força social, passando a interferir nos processos de normalização das
condutas. Essa interferência foi possível porque, de acordo com Cott, os publicitários da
época estavam convencidos de que o seu ofício tinha evoluído da prestação de informações
para a criação de necessidades. Para tanto, transferiram as idéias de “eficácia” e
“ajustamento” das Ciências Sociais para objetivos comerciais, apresentando-se aos
consumidores como educadores, e aos seus clientes como manipuladores do
comportamento humano.
Para Passerini (1991), a partir da década de 30, a representação da mulher na
publicidade, nos periódicos femininos e no cinema aparece imediatamente ligada ao
consumo. Uma “boa” mulher deveria zelar pelo bem-estar da família, podendo agora contar
com a ajuda dos eletrodomésticos. O novo papel feminino, todavia, não se restringia à
administração da casa: a dona de casa eficiente também devia ser uma mulher sedutora.
Inspiradas nos filmes de Hollywood, cuja influência sobre a vida cotidiana até os anos 60 é
sobretudo romântica (MIRA, 2001), muitas mulheres sonhavam com uma vida parecida
com a das divas do cinema. A beleza, então, tornava-se “fundamental”, e a indústria
54
cosmética aproveitou-se da representação feminina criada pelo cinema para, através das
promessas publicitárias, entrar na vida das mulheres. De acordo com Higonnet, a
publicidade da época
[. . .] associava a uma identidade de consumidora as características cosméticas e
psicológicas femininas que promovia. As mulheres eram mostradas como estando
completamente dependentes dos produtos comerciais para levarem a cabo suas
tarefas domésticas, atraírem os homens, educarem os filhos ou conseguirem
aceitação social. Identificando a feminilidade com objetos, a publicidade
encorajava as mulheres a identificarem-se elas próprias como objetos
(HIGONNET, 1991, p.409).
Embora essas autoras estivessem se referindo ao contexto norte-americano, a
pesquisa de Dulac (2002) sobre os anúncios publicitários publicados na Revista O Globo
nas décadas de 40 e 50 mostra que a situação por aqui era similar. Nessa revista, a
feminilidade estava associada à beleza, que, por sua vez, era tida como um atributo natural
da mulher, mas necessitava ser mantida através do uso de produtos de beleza anunciados
pela revista. O ideal de mulher e de beleza aqui também era ditado pelas estrelas de cinema.
Os papéis sugeridos pelos meios de comunicação às mulheres no período entre as
guerras eram, portanto, contraditórios. Elas foram investidas tanto pelo discurso
publicitário, que as incitava, ao mesmo tempo, a terem uma vida glamourosa e a serem
eficientes donas de casa, mães, esposas e amantes, como pelos discursos científicos, que em
geral eram conservadores e, de acordo com Cott (1991, p.106), afirmavam que “a mulher
insensibilizada ou endurecida pela vida profissional acabaria por repelir os homens”.
Viviam, ainda, numa cultura católica, fortalecida graças a uma associação com os estados
autoritários que se expandiam à época, que sacralizou o casamento burguês.
55
Cott (1991) mostra que essas expectativas diferenciadas criadas pelos meios de
comunicação em torno da nova mulher no período entre guerras ofereceram um amplo
terreno para o conflito psicológico. Conflito este que pode ser comprovado pelo sucesso de
um novo gênero de revista feminina que surgiu na França, no final dos anos 30:
Confidences, lançada em 1938, inaugurava o gênero confessionário e trazia relatos
autobiográficos de leitoras que, aflitas com a gestão dos novos e diferentes papéis sugeridos
a elas, endereçaram suas angústias para os próprios meios de comunicação de massa.
Foucault ao falar dos seus estudos sobre a sexualidade, refere-se à diferença da
mesma em relação aos outros sistemas de interdição. Enquanto estes estariam vinculados às
normas que regem uma determinada sociedade, a sexualidade, além da norma, suporia
também a obrigação de um certo deciframento de si mesmo. Se a norma pede um sujeito
mudo, tal deciframento exige um sujeito falante: através da confissão do sexo a um
especialista o indivíduo poderia descobrir a verdade sobre si mesmo. Enquanto as verdades
eram resultado do saber gerado pela Igreja Católica, o confessionário foi o lugar
privilegiado para a confissão. Mais tarde, quando o pensamento científico tornou-se a
forma mais legítima de conhecimento, o ritual de confissão deslocou-se do confessionário
para o divã do psiquiatra. Quando, ao longo do século XX, os meios de comunicação
transformaram-se nos principais responsáveis pela colocação do sexo em discurso, pelo
armazenamento e difusão das “verdades” acerca da sexualidade, eles também se
transformaram em um espaço de confissão. Isso porque, conforme Foucault (1988, p.66),
“A verdade cura quando dita a tempo, quando dita a quem é devido e por quem é, ao
mesmo tempo, seu detentor e responsável”. Em todos os casos a forma como o discurso
56
sobre a sexualidade deveria estar estruturado era dado de acordo com as regras das
instâncias maiores, isto é, os preceitos católicos, científicos e a linguagem e conteúdos dos
meios de comunicação de massa.
Em 1959, de acordo com Passerini (1991), Gabriella Parca publica na Itália uma
antologia de oito mil cartas enviadas por leitoras de dois jornais ilustrados. O livro Le
italiane si confessano gerou polêmica no País, e os jornais começaram a questionar e
manifestar preocupação pelo fato de tantas mulheres parecerem preferir o correio dos
periódicos ao confessor. Passerini conta que, no prefácio da terceira edição do livro,
publicada em 1966, Pier Paolo Pasolini teria afirmado que “cada carta continha uma idéia
para um conto ou um filme”:
O livro revelava dúvidas, medos, obsessões, insatisfações e ao mesmo tempo
dificuldade em mudar das mulheres italianas, não como espelho fiel do costume
social – se acaso ele existe – mas no interior de um específico reino do
imaginário que era o mundo da fotonovela. A linguagem era da mesma natureza
e era utilizada sobretudo para exprimir um dos caracteres nacionais na sua forma
feminina: a obsessão pelo sexo (PASSERINI, 1991, p.396).
Embora as angústias das mulheres fossem em grande parte resultado das
representações geradas pela publicidade e pelo cinema, a estrutura dos mesmos não
permitia algo como a confissão. Esta foi dirigida aos veículos impressos, em especial às
revistas femininas, que funcionavam em um sistema de retroalimentação com a indústria
cinematográfica.
30
As narrativas do cinema da época, de acordo com Mira (2001), eram
construídas em torno de um relacionamento amoroso, heterossexual e romântico. Narrativas
30
No livro Mortes em Derrapagem, Antônio Fausto Neto mostra como as revistas especializadas na vida dos “olympianos”
mantêm uma
relação de co-determinação com os programas de televisão e rádio. O autor as caracteriza como um
sistema de antecipação, visto que elas preparam o leitor para apreciar o conteúdo de um outro suporte, ao
mesmo tempo em que se aproveitam do conteúdo deste suporte.
57
estas que se materializavam nas revistas femininas e deram origem a um gênero de
literatura que, surgida na Itália, espalhou-se rapidamente pela França e toda América
Latina: a fotonovela. Para Mira, as fotonovelas nasceram de publicações conhecidas como
cine-romances, resumos de filmes contendo fotografias das principais cenas e um texto
curto. Foi a partir da literatura sentimental das fotonovelas que surgiu a grande imprensa
feminina brasileira, cujo marco foi a revista Capricho, criada em 1952.
Para Foucault, não existe poder sem a correlata constituição de um campo de saber.
Não é possível, no entanto, criar um saber independentemente do que ouvimos, olhamos e
dizemos dos indivíduos. Isso implica uma contínua extração, interpretação e registro de
conhecimento. Assim como a psiquiatria fez o “louco” falar para criar um conhecimento
sobre ele e assim controlá-lo, a lógica da comunicação de massa criou um espaço para as
mulheres falarem. Começou assim a produção de um saber sobre o feminino baseado nos
valores e idéias dos próprios meios de comunicação. Tendo surgido nas revistas, a
confissão aos meios de comunicação espalhou-se para todos os outros veículos, que se
articularam ao pensamento científico na produção de seus conteúdos. De acordo com
Fischer (1996, p.85):
Nos textos da mídia, a discursividade sobre “que fazer de si mesmo” passa
sempre por uma “revelação de si”. A base das produções textuais, em geral, é a
confissão que os próprios sujeitos fazem de sua vida íntima, de sua precariedade
humana, dos seus desejos, dos seus pecados ou até dos simples atos do seu
cotidiano. Na mesma medida em que proliferam ocasiões nas quais pessoas
comuns ou celebridades são convidadas a expor as mazelas de sua privacidade
(ou são apanhadas involuntariamente nessa condição), multiplicam-se as
respostas aos conflitos aí confessados: psicólogos, psicanalistas,
endocrinologistas, nutricionistas, ginecologistas, comunicadores alçados a
diretores espirituais, pediatras – toda uma gama de conselheiros do corpo e da
alma – dedicam-se a comunicar, através da mídia, os novos saberes que nesse
ambiente se produzem. São dois tipos de textos – dos que se confessam e dos
que interpretam as confissões, a partir de um certo campo de conhecimento -,
58
em que se sobressai um discurso sobre a sexualidade, em geral associado à
questão primordial da beleza e da juventude e, mais recentemente, à morte pela
AIDS.
Além de se valerem da confissão para a construção dos textos, nos últimos anos as
revistas aprimoraram as técnicas para extrair “verdades”das leitoras. As informações a
respeito dos desejos, sonhos e interesses do seu público-alvo norteiam os conteúdo das
revistas e servem como uma eficiente estratégia de venda de espaço junto aos anunciantes,
que ficam certos de que estão atingindo o público alvo de seus produtos. Ao detectar as
características de suas leitoras, as revistas propõem um modo de ser compatível com elas e
com os interesses das indústrias que as visam.
Embora Foucault (1995a) chame a atenção para a necessidade de distinguir as
relações de poder das relações de comunicação, por entender que as últimas podem
configurar-se somente como efeitos de poder e não como a relação de poder em si, os
discursos engendrados pelos meios de comunicação levam vantagem quando se trata de
chegar a um consenso a respeito das significações. Selecionando enunciados de diferentes
formações discursivas
31
, entendidas como sistemas de regras que prescrevem o que deve
ser dito em determinado contexto, e disponibilizando-os para um público muito mais amplo
do que é possível reunir em interações face à face, os significados que os meios de
comunicação dão às coisas tendem a ser dominantes. Isso porque, para o autor, a linguagem
não é literal ou transparente, ou seja, não existe um sentido único e prévio para cada
31
Para Foucault (1995b), sempre que se puder definir, entre um certo número de enunciados, uma
regularidade, se estará diante de uma formação discursiva. Esses sistemas de formação dos discursos não são
blocos estáticos, que do exterior determinariam o que deve ser o discurso, mas residem no próprio discurso.
Foucault as define como “[. . .] um feixe complexo de relações que funcionam como regra: ela prescreve o
que dever ser correlacionado em um prática discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que
empregue tal ou qual enunciação, para que utilize tal ou qual conceito, para que organize tal ou qual
estratégia.
59
palavra: os sentidos também são históricos. Assim, a mídia, mais do que retratar a
realidade, ajuda a criar uma forma de percebê-la.
Para Foucault, o conceito de poder não pode ser pensado através da fórmula da
soma zero: quando um tem, outro não tem. A especificidade dessa concepção de poder é
que ele não é algo que se possui, mas algo que se exerce, que só existe em ato. É uma ação
de uns sobre os outros, uma ação sobre ações possíveis, que sempre coloca em jogo
relações entre indivíduos ou grupos. Dessa forma, não existe “o” poder, mas relações de
poder que ele define como “um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os
outros, mas que age sobre sua própria ação.”(FOUCAULT, 1995a, p.243).
Se as revistas extraem um saber sobre as leitoras para devolver-lhes as respostas
para os problemas de identidade comum a este período de verdades relativas, e se, pelo
menos em algum grau, essas leitoras conseguem se reconhecer nas páginas das revistas,
utilizando-se das dicas que lhes são propostas, configura-se aí uma forma de ação sobre
ações, ou seja, uma forma de poder. É interessante também notar que, para Foucault
(1995a), a liberdade é uma das condições para que exista uma relação de poder: o indivíduo
sobre quem se exerce o poder deve sempre se manter como sujeito da ação. Quando não há
escolha, a relação não é de poder, mas coerção, violência. No caso das revistas, a relação é
de poder, pois as leitoras podem escolher seguir ou não os modelos sugeridos pelas
revistas. A possibilidade de resistência – para Foucault, outra condição para que exista uma
relação de poder – também existe nas revistas: as respostas das leitoras aos conteúdos
propostos podem ser variadas e múltiplas: se em um momento elas podem incorporar as
sugestões, em outro podem considerar as mesmas insignificantes.
60
2.2.4 A imprensa feminina no Brasil
Embora já existisse há mais de um século
32
, a imprensa feminina firmou-se no
mercado editorial brasileiro a partir da década de 50, quando, de acordo com Juarez Bahia
(1990), as publicações especializadas semanais, quinzenais ou mensais de grande tiragem
se consolidaram por causa das melhorias na indústria gráfica e da propaganda, isto é, da
formação de uma indústria cultural nacional. Foi nesse período que a possibilidade de lucro
passou a determinar a existência ou não de uma publicação qualquer: jornais, revistas e
emissoras de rádio precisaram batalhar para capturar o público de maior poder aquisitivo e
a publicidade mais rendosa.
Na esteira do crescimento econômico mundial, entre as décadas de 50 e 70 o Brasil
vivia um momento de expansão da classe média e do mercado interno de bens de consumo
e duráveis. Ao mesmo tempo, sob a influência dos movimentos de 68, houve uma
convergência de forças que permitiram a liberação econômica e sexual feminina, fazendo
32
Considerando o papel da mulher na sociedade patriarcal, somado à sua falta de alfabetização e direitos, o
fato da imprensa feminina ter nascido quase simultaneamente aos primeiros jornais independentes é
surpreendente. De acordo com Buitoni (1986), o primeiro periódico feminino brasileiro foi O Espelho
Diamantino, lançado no Rio de Janeiro em 1827, seguido pelo pernambucano O Espelho das Brazileiras, de
1831. À época, o Rio de Janeiro era a sede do poder imperial, e Recife, o centro do poder econômico, que se
encontrava nas mãos dos senhores de engenho nordestinos. O surgimento das revistas femininas nessas
cidades faz supor que elas tenham nascido vinculadas à elite. Como nesse período o Brasil estava mais
integrado ao espaço geográfico metropolitano europeu do que internamente, é possível inferir que as
primeiras revistas femininas surgiram na esteira dos periódicos destinados às mulheres que circulavam na
Europa há mais de cem anos. Prova disso é que o conteúdo das revistas brasileiras era muito semelhante ao
das européias, tratando principalmente de moda e literatura, assuntos considerados pertinentes ao universo
feminino, para quem o analfabetismo, de acordo com Mira (2001), era signo de nobreza e virtude, pois
afastava o perigo dos amores secretos por correspondência. Até o início do século XX, de acordo com
Buitoni, os magazines endereçados às mulheres eram conservadores e reprovavam idéias progressistas, “[. . . ]
no máximo diziam que a educação beneficiava a mulher”(BUITONI, 1986, p.41).
61
com que as mulheres se tornassem um público cobiçado. Para Bahia (1990), o filão
feminino representava rendimentos certos e foi pioneiro no mercado segmentado.
Entre 1960 e 1975, a indústria de revistas dobrou sua produção, saltando de 104
para 202 milhões de exemplares. Inicialmente, de acordo com Ortiz (1985), todas as
propostas estavam preocupadas em ressaltar a identidade nacional, como aconteceu com
Claudia (1961), Quatro Rodas (1960), Realidade (1966), e Veja (1968). Entre o início dos
anos 70 e meados dos 80 delineia-se um novo peodo na história das revistas no País. Com
o enfraquecimento do Estado Nação, desaparece o desejo de construir uma identidade
nacional, e as revistas internacionais passam a fazer parte do cotidiano brasileiro, conforme
Mira (2001, p.97), não por incapacidade de produzir conteúdo de qualidade, mas porque os
modelos internacionais podiam muito bem ser aplicados a certos segmentos de leitores
daqui. É o caso da Nova (1973), versão brasileira da Cosmopolitan, da Playboy (1975), e
mais tarde, da Elle (1988). Com exceção de Nova, que não pode manter o nome
Cosmopolitan porque o título já havia sido registrado por uma empresa no País, as revistas
estrangeiras deveriam manter o mesmo nome por aqui. E o perfil dos leitores também era o
mesmo: “O perfil da leitora de Cosmopolitan é mais ou menos igual no Brasil, EUA e
Inglaterra: são mulheres jovens, entre 20 e 35 anos em média, das classes A e B” (MIRA,
2001, p.98).
A emergência do que Giddens (1993) chamou de uma sexualidade plástica, possível
graças ao desenvolvimento de métodos contraceptivos fáceis de manipular, baratos e
eficientes, fez com que homens e mulheres entrassem na década de 70 estimulados a
explorar a própria sexualidade, “reprimida” durante tantos anos. Muita dúvida pairava a
62
respeito do assunto: as revistas femininas criadas nas décadas anteriores sequer publicavam
o nome dos órgãos sexuais em suas páginas – a mulher nem tinha “orgasmos”, mas
“chegava ao clímax” – , a televisão e o rádio também eram muito discretos ao falar em sexo
e a internet ainda não estava aí para esclarecer possíveis dúvidas. A Editora Abril foi
perspicaz ao detectar essa demanda no mercado e, para suprir as novas “necessidades” de
informação, fez um acordo com a Hearst Corporation para lançar a bem-sucedida fórmula
da Cosmopolitan
33
no Brasil, endereçada às mulheres que não eram as adolescentes, que
agora começavam a ler Capricho, transformada na “revista da gatinha”, ou donas de casa,
leitoras da Claudia, mas mulheres adultas, solteiras, que trabalhavam fora, pouco
interessadas nos afazeres domésticos e que possuem uma certa liberdade sexual e
econômica.
Para Buitoni, desde a década de 70, o lançamento de uma nova revista era feito a
partir de pesquisas que apontavam os interesses do público em potencial e determinavam o
tipo de linguagem e conteúdo a nortear a publicação. Tendência que só veio a se acentuar
com os anos: hoje, as revistas, além de continuarem encomendando pesquisas de mercado,
mantêm vários canais de comunicação com as leitoras. Numa recente edição de Nova, a
diretora de redação Cynthia Greiner, no editorial intitulado Quero ler seus pensamentos
conta como a revista detecta os interesses do seu público-alvo:
33
Segundo magazine da Hearst Corporation, Cosmopolitan fora lançada no ano de 1886 como uma revista de
literatura. Com quase 100 anos, ela chegou obsoleta à década de 60. Para “reanimar” a revista, a editora
propôs que a autora dos best sellers “Sex and the single girl” (1962) e “Sex and the Office” (1964), Helen
Gurley Brown, assumisse a revista com total liberdade para fazer as mudanças que quisesse. Ela promoveu
uma reforma editorial completa, montou uma redação só de mulheres e elaborou um novo padrão de texto, o
que fala à leitora como quem fala com uma amiga. Dirigida às mulheres que buscavam “crescimento pessoal,
autoconfiança, um emprego interessante, boas relações com um homem e uma vida sexual melhor” (Mira,
2003, p.121), a revista foi um sucesso: o primeiro número vendeu um milhão de exemplares e em dez anos a
tiragem chegou a 2,5 milhões. Em 1994, ela tinha 28 edições publicadas em 14 diferentes línguas, circulando
em 80 países e atingindo 30 milhões de leitoras.
63
Já lhe ocorreu abrir a sua NOVA, bater o olho numa reportagem e ter a sensação
de que ela foi feita especialmente para você, tantas são as semelhanças com o que
acontece na sua própria vida? Pois fique sabendo que não é mera coincidência.
Nós, aqui na redação, estamos ligadíssimas na sua – e temos planos de ficar
muito, muito mais. Conheça nossas armas: um serviço de atendimento ao leitor
que recebe mais de mil contatos por edição (com pedidos, críticas, elogios e
relatos pessoais emocionantes, que devoramos); entrevistas mensais tête-à-tête,
conduzidas por nossos editores e designers, com compradoras de NOVA;
enquetes por e-mail para saber sua opinião sobre uma porção de assuntos; e uma
pesquisa de fôlego a cada seis meses com mais de mil entrevistas, para medir
nosso ibope com você naquele mês (NOVA, abr. 2003, p. 12).
A partir de meados dos anos 80, o processo de segmentação na mídia aumentou em
todos os veículos. Na televisão, a especialização acentuou-se na década de 90, com o
surgimento dos canais pagos. A maior parte das primeiras revistas publicadas pela Abril
ainda permanece forte no mercado editorial brasileiro, que viu crescer vertiginosamente o
número de magazines endereçados ao público feminino, acompanhando o desenvolvimento
da indústria de beleza no País.
34
A facilidade de manuseio, a qualidade do papel, a
diagramação rica em cores, fotografias e ilustrações, as páginas mais limpas, os tipos
maiores e o texto coloquial e simples transformam as revistas numa leitura mais atraente do
que os jornais diários
35
. Hoje, numa banca de revista, é possível encontrar mais de cem
títulos de revistas que se dirigem a mulheres de todas as idades. Só a Abril disponibiliza
34
No Brasil, enquanto vários setores industriais operam com capacidade ociosa, a indústria de beleza não
pára de crescer. Dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos
(ABIHPEC) mostram que, nos últimos seis anos, o mercado do setor cresceu cerca de 75%. No mesmo
período, a economia brasileira cresceu 10% . Além disso, o ramo duplicou suas exportações nos últimos cinco
anos e atingiu o primeiro superávit na balança comercial em 2002, com US$ 35, 8 milhões. No primeiro
semestre de 2003, a balança comercial do setor registrou um aumento de 87,08% em relação ao mesmo
período de 2002, alcançando mais de US$ 32 milhões. A produção com destino ao mercado exterior também
é vertiginosa: de janeiro a julho de 2003, foram exportados cerca de US$ 86 milhões.
35
De acordo com Buitoni (1986), a imprensa feminina nunca conseguiu muito espaço nos jornais atuais, e
quando consegue, as matérias de cunho jornalístico são raras. As seções dedicadas às mulheres reproduzem
nos jornais o conteúdo das revistas.
64
treze diferentes títulos: Ana Maria, Boa Forma, Bons Fluidos, Capricho, Casa Claudia,
Claudia Cozinha, Claudia, Contigo, Elle, Estilo, Faça e Venda, Nova e Vida Simples. A
Globo possui cinco publicações femininas: Marie Claire, Criativa, Casa e Jardim, Crescer
e Quem. A Símbolo Comunicação, que se intitula “A editora das mulheres do Brasil”, tem
12 publicações femininas: Uma, Corpo, Natural, Dieta Já, Atrevida, Minha Paixão, Meu
Nenê, Quarto do Nenê, Raça, Chiques, Mais Feliz, Chega Mais. Também nos anos 90,
apareceu a revista Caras, que, abusando da imagem, retrata a vida das celebridades e é um
dos veículos mais utilizados pelas agências de publicidade para atingir o público feminino.
Além destas, existem inúmeras revistas que dão dicas de decoração, artesanato, culinária,
floricultura, cuidados com crianças, etc. Em 2001, a Editora Trip lança a versão feminina
da revista Trip: Trip Para Mulher, mais conhecida como TPM, nasce para fazer um
contraponto às revistas tradicionais, acusadas de ofender a inteligência e auto-estima das
mulheres. Essa postura aparece claramente no editorial da primeira edição, em maio de
2001, em que o editor Paulo Lima afirma:
[ . . . ] as revistas femininas nem mesmo se dignam a velar aquilo que pensam da
mulher brasileira: uma pessoa simplória, de horizontes estreitos, com
pouquíssimo potencial, de espiritualidade rasa, cultura próxima do zero, tipo
físico medíocre, que se agarra a regimes, peelings, drenagens linfáticas, plásticas
e ginásticas, para – com a ajuda de um fragilíssimo Cascolac cultural que
consegue absorver de suas páginas – lutar com todas as forças a fim de laçar um
pobre diabo que a carregue.
Apesar da diferença de títulos e assuntos, os temas abordados pelas revistas
concentram-se principalmente nas vicissitudes da vida privada
36
. De acordo com Buitoni
36
Para Buitoni (1986), os três grandes eixos que sustentam a imprensa feminina são a moda, casa e coração:
“O vestir, o morar e o sentir. Apesar de dois dos temas estarem ligados à aparência exterior – moda e casa
constituem um exterior ainda pouco ligado ao mundo do trabalho. Coração é o tema mais interior, relacionado
65
(1986), culinária, decoração, beleza, moda, como ser uma super mulher na cama e fora dela
são temas que, num momento ou outro, são abordados nos periódicos femininos. Causa
certo estranhamento o fato desses conteúdos serem privilegiados pelos magazines, visto que
hoje a maior parte das mulheres que os lêem alcançaram níveis de escolaridade e cultura
equivalentes – quando não superiores – aos dos homens.
2.3 Metodologia
Ao propor a pergunta “quem somos nós neste momento histórico?”, em vez de “o
que é isto?”, Foucault estava diferenciando-se de um tipo de pensamento que pretende fazer
uma “Analítica da Verdade” e inserindo-se num ramo da Filosofia que se ocupa com uma
“Ontologia do Presente”. Ao explicar o sentido e valor das coisas que se passam no
presente, desfamiliarizando-as, Foucault substitui os universais antropológicos por aprioris
históricos: o homem é efeito de relações históricas de poder e não há nada nele que lhe
possa garantir uma unidade. O autor não estava interessado na forma como esses aprioris
poderiam ser condições de possibilidade para uma experiência possível, mas como se
configurariam como condições de possibilidade da experiência real, concreta (MOREY,
1996). Ao pesquisador, cabe olhar para essas práticas concretas, para entender como, nelas,
as relações entre sujeito e objeto concorrem para a subjetivação e objetivação do indivíduo.
O interessante nessa análise seria “[. . .] determinar o que deve ser o sujeito, a que
condições ele está submetido, qual o seu status, que posição deve ocupar no real ou no
à subjetividade e ao sentimento. Coração é a literatura romântica, o amor aos filhos, o sexo”(BUITONI,
1986,p.68).
66
imaginário para se tornar sujeito legítimo deste ou daquele tipo de conhecimento
(FOUCAULT, 2004, p.235, grifo do autor).
Assim, ao longo de seu trajeto teórico, Foucault esteve interessado na forma como
os indivíduos ingressam em jogos de verdade que o constituem enquanto sujeitos e objetos
de determinado tipo de conhecimento. Para pensar nas diferentes formas de subjetivação
dos seres humanos na cultura, Foucault empreendeu três diferentes tipos de investigação,
que o conduziram a três diferentes modos de objetivação. O primeiro trata da objetivação
do sujeito pela Ciência, isto é, a forma como o homem foi objetivado no discurso da
Gramática, Economia ou Biologia. Em um segundo momento, o trabalho do autor voltou-se
para o que ele chamou de objetivação através de “práticas divisoras”, em que o sujeito é
dividido no seu interior e em relação aos outros. A terceira forma de objetivação do sujeito
na cultura, que norteou os seus últimos estudos, diz respeito à forma como o ser humano
torna-se sujeito para si mesmo, isto é, sujeito moral. Foi com este objetivo que Foucault
empreendeu seus estudos sobre a sexualidade, entendendo-a como um dispositivo histórico
responsável pela ligação do sujeito para consigo mesmo.
Nesse sentido, o projeto genealógico de Foucault desenvolveu-se em três eixos
principais: Ontologia Histórica de nós mesmos em relação à verdade que nos constitui
como sujeito de conhecimento; Ontologia Histórica de nós mesmos em relação ao campo
de poder através do qual nos constituímos em sujeitos atuando sobre os demais; Ontologia
Histórica de nós mesmos em relação ética por meio da qual nos constituímos como sujeito
de ação moral. É preciso não tomar esses três momentos separadamente na análise. De
acordo com Morey (1996) um procedimento metodológico não substituiu o anterior, mas
eles se “englobam em círculos cada vez mais amplos”. Ao propor uma Ontologia Histórica,
67
Foucault está empreendendo a desconstrução daquilo que somos e mostrando a
arbitrariedade e contingência da condição humana.
2.3.1 A leitora imaginada
O sucesso de uma revista qualquer depende hoje da sua capacidade de encontrar a
fórmula editorial capaz de atrair um grupo de consumidores que determinados anunciantes
podem atingir. Uma vez encontrado tal grupo de leitores/consumidores, a revista precisa
falar de assuntos que lhe digam respeito. Embora todos os meios de comunicação precisem
hoje conhecer a fundo o seu público-alvo, de acordo com Scalzo (2003), o fato das revistas
se caracterizarem pela seletividade da audiência as torna mais segmentadas: elas não falam
com todo mundo, como fazem os jornais e a televisão, nem individualizam o leitor, como
acontece na Internet, mas ficam no meio termo, falando sobre os temas de interesse de um
público preciso, o qual ela precisa conhecer muito bem. A proximidade com a realidade dos
leitores – conseguida através de inúmeras técnicas para obter informação e descobrir quem
é e do que gosta o público em potencial – faz com que as revistas tenham “[. . .] a
capacidade de reafirmar a identidade de grupos de interesses específicos, funcionando
muitas vezes como uma espécie de carteirinha de acesso a eles” (SCALZO, 2003, p.50).
Embora os leitores sejam considerados como consumidores, as coisas ditas nos
magazines não são resultado da vontade dos autores dos textos, que, deliberadamente
tentariam manipulá-los. Assim como acontece com os filmes, as coisas ditas nas revistas
falam de algum lugar no interior das idéias, fantasias, ansiedades, desejos e esperanças do
público imaginado e desejado por elas, de acordo com o regime de verdade vigente.
68
Conforme Ellsworth (2001, p.38), esse “algum lugar” a partir do qual falam os filmes, ou,
no caso, as revistas, pode ser localizado por meio de um exame das formas pelas quais
certos personagens, vozes, pontos de vista, discursos e ações são visual e narrativamente
privilegiados e recompensados em detrimento de outros. A posição que o sujeito deve
ocupar no real ou no imaginário para se tornar sujeito legítimo do conhecimento
materializado nas revistas pode ser explicitado através do conceito de modo de
endereçamento, proveniente dos estudos de cinema.
Como os filmes visam, imaginam e desejam um determinado público, o conceito de
modo de endereçamento, segundo Ellsworth (2001), pode ser resumido com as perguntas:
quem este filme pensa que você é? Quem este filme deseja que você seja? Essas suposições
e desejos deixam, de acordo com a autora, traços, intencionais ou não, no próprio filme, que
para fazer sentido ao espectador, exige que este entre numa relação particular com sua
história e sistema de imagem. A idéia é que, para compreender os textos de um filme, o
espectador deve ser capaz de adotar, pelo menos imaginária e temporariamente, os
interesses sociais, políticos e econômicos que são as condições para o conhecimento que
eles constroem. No cerne do conceito, portanto, está a relação entre o texto de um filme e a
experiência do espectador, ou no caso das revistas, o texto das revistas e a experiência das
leitoras. O modo de endereçamento está no filme, mas ocorre em algum lugar entre o social
e o individual, em um espaço invisível que “convoca” o expectador a uma posição a partir
da qual ele deve ler a história.
Há um consenso entre os pensadores de que o espectador nunca é, apenas ou
totalmente, quem o filme pensa que ele ou ela é. Reconhecem também que os públicos não
69
são todos iguais, e que os diferentes públicos fazem leituras diferentes e extraem prazeres
diferentes do mesmo filme. Para Ellsworth, a forma como uma pessoa vivencia a
experiência do modo de endereçamento depende da distância entre, de um lado, quem o
filme pensa que ela é, e de outro, o que ela pensa que é, ou seja, depende do quanto o filme
erra o seu alvo. Existe, de qualquer forma, sempre uma negociação por parte do espectador.
Os filmes, contudo, oferecem uma certa recompensa para aqueles que assumem as posições
de gênero, status social, raça às quais eles se endereçam. Esta recompensa constituir-se-ia
em
[. . .] uma tentativa por parte dos produtores de filmes para antecipar (e falar
para) as ansiedades, os medos, os gostos, as esperanças e as formas de dar
sentido do público por eles desejado. Parece claro que, ao falar para esses
elementos, um filme tenta encontrar o público que ele imagina e deseja no lugar
onde se encontram seus medos e suas esperanças. Mesmo que o público nunca
esteja no lugar para o qual o filme fala, o lugar que o filme endereça parece
existir como um “lá” abstrato e partilhável, uma posição de sujeito imaginada no
interior do poder, do conhecimento e do desejo que os interesses conscientes e
inconscientes por detrás da produção do filme precisam que o público preencha.
Abstratamente ou não, os filmes parecem “convidar” os espectadores reais a
essas posições e encorajá-los, ao menos imaginariamente, a assumir e a ler o
filme a partir de lá. E os espectadores parecem ser “recompensados” (com o
prazer da narrativa, com finais felizes, com experiências coerentes de leitura) por
“assumir” e agir a partir daquela posição imaginária, à medida que interpretam o
filme (ELLSWORTH, 2001, p. 39).
Da mesma forma que privilegiam um determinado tipo de espectador/leitor, os
filmes/revistas punem, por meio da exclusão, do ridículo ou da punição inscrita na
narrativa, os que não se encaixam no perfil para o qual endereçam determinado texto. Isto
traz alguns problemas. Enquanto acredita-se que os espectadores “dominantes” ajustem-se
mais ou menos naturalmente a um filme endereçado a eles, entende-se que todos os outros
seriam “resistentes”. Ellsworth acredita ser impossível simplificar as coisas desse modo e
70
admite não haver formas puras e nítidas do espectador/leitor perceber determinados textos.
Como este estudo visa entender que representações da sexualidade estão em jogo no
discurso das revistas, admitindo que não há uma relação causal entre o seu conteúdo e o
comportamento das leitoras, o interessante é perceber que as coisas ditas, que são práticas
concretas, de acordo com Foucault (1995b), estão atadas às dinâmicas de poder e saber do
seu tempo. Conforme Ellsworth (2001, p. 47):
(...) o paradoxal poder de endereçamento consiste na diferença entre, de um lado,
todas as outras frases que poderiam ter sido ditas e foram ditas em outros filmes,
telenovelas, noticiários, romances, comédias da tv e, de outro, a frase que foi
dita aqui. O modo de endereçamento consiste na diferença entre o que poderia
ser dito – tudo o que é histórica e culturalmente possível e inteligível de se dizer
– e o que é dito. É aqui e dessa forma que o modo de endereçamento excede as
fronteiras do próprio texto do filme e extravasa as conjunturas históricas da
produção e da recepção do filme.
O conceito de modo de endereçamento, portanto, está de acordo com a proposta
foucaultiana de tratar o discurso no jogo de sua instância. Ao olhar para os documentos,
considerados como monumentos, Foucault não busca as origens secretas do discurso, as
fáceis interpretações, baseadas em ideologias simplistas ou no princípio de causa efeito,
mas pretende romper com as continuidades que caracterizam e dão unidade ao discurso.
Não se trata de negar definitivamente as continuidades do discurso, mas “sacudir a quietude
com a qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre
o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas [. . .]”, (FOUCAULT, 1995b,
p. 29). Foucault chamou de formação discursiva o feixe de relações que funciona como
regra, como princípio de dispersão e repartição dos enunciados, que determina o que pode e
o que não pode ser dito em determinado contexto. Esse sistema de formação não é exterior
71
aos discursos, mas encontra-se neles, nas regularidades dos enunciados
37
. A análise do
enunciado, para o autor, deve ser correlativa à da formação discursiva, visto que as regras
de formação dos enunciados dela dependem. Admitindo que a realidade é atravessada por
lutas pela imposição de sentido, e que a heterogeneidade é uma característica de qualquer
discurso ou texto, Foucault propõe uma análise enunciativa que dê conta das contradições e
da dispersão dos enunciados, construindo novas unidades arquitetônicas e mostrando como
os sentidos são historicamente construídos. Para tanto, ele sugere que o pesquisador
multiplique relações. De acordo com Fischer (2001a, p.205):
Multiplicar relações significa situar as coisas ditas em campos discursivos,
extrair delas alguns enunciados e colocá-los em relação a outros, do mesmo
campo ou de campos distintos. É operar sobre os documentos, desde seu interior,
ordenando e identificando elementos, construindo unidades arquitetônicas,
fazendo-os verdadeiros monumentos. É perguntar: por que isso é dito aqui, deste
modo, nesta situação, e não em outro tempo e lugar, de forma diferente? É
investigar sobre as posições necessárias ao falante, para que ele efetivamente
possa ser sujeito daquele enunciado. [. . .] é proceder a um levantamento da
memória desse enunciado, acompanhá-lo como irrupção, como descontinuidade
e como transformação. É tratar os enunciados na sua dispersão e na sua pobreza,
uma vez que poucas coisas são realmente ditas nesse grande murmúrio anônimo
do ser da linguagem. É o ça parle de Foucault, o diz-se que, segundo Deleuze,
assume determinada dimensão conforme o corpus considerado.
Supondo que as revistas femininas integram o dispositivo da sexualidade, a presente
pesquisa tem por objetivo entender que formas de vivenciar a sexualidade são propostas às
leitoras imaginadas pelas revistas Nova e TPM no ano de 2003. Para tanto, faz-se
37
Foucault descreve o enunciado como uma função que se apóia em conjuntos de signos, mas que não se
confunde com eles. O enunciado é tomado pelo autor como um acontecimento, que para se realizar requer
“um referencial (que não é exatamente um fato, um estado de coisas, nem mesmo um objeto, mas um
princípio de diferenciação); um sujeito (não a consciência que fala, não o autor da formulação, mas uma
posição que pode ser ocupada sob determinadas condições, por indivíduos indiferentes); um campo associado
(que não é o contexto real da formulação, a situação na qual foi articulada, mas um domínio de coexistência
para outros enunciados); uma materialidade (que não é apenas a substância ou o suporte da articulação, mas
um status, regras de construção, regras de transcrição, possibilidade de uso ou de reutilização)”(FOUCAULT,
1995, p.133).
72
necessário identificar que saberes sobre a sexualidade estão sendo disponibilizados a elas e
as posições de sujeito que decorrem desses saberes. A partir das coisas ditas e das práticas
sugeridas pelas revistas, pretende-se também entender o que se configuraria hoje como uma
forma “normal” de vivenciar a sexualidade, bem como as possibilidades de resistência a
essa proposta de normalidade. Por fim, a pesquisa pretende comparar as representações –
essas unidades arquitetônicas – sobre a sexualidade nas duas revistas, tentando entender se
a TPM de fato rompe com o discurso das aqui chamadas revistas tradicionais. A hipótese é
que, neste período histórico, a norma em relação ao sexo pede uma vida sexual ativa, e que
esta ganhou o status de bem de consumo e pode ser utilizada como uma forma de capital na
construção das identidades sociais.
2.3.2 O corpus da pesquisa
Para pensar em uma nova economia das relações de poder, mais próxima à vida e
que dê conta dos processos de subjetivação e objetivação do sujeito na cultura, Foucault
sugere como ponto de partida as formas de resistência estabelecidas em relação à
configuração dos poderes existentes. Isso consistiria em:
[. . .] usar esta resistência como um catalisador químico, de modo a esclarecer as
relações de poder, localizar sua posição, descobrir seu ponto de aplicação e os
métodos utilizados. Mais do que analisar o poder do ponto de vista de sua
racionalidade interna, ela consiste em analisar as relações de poder através do
antagonismo das estratégias. Por exemplo, para descobrir o que significa, na
nossa sociedade, a sanidade, talvez devêssemos investigar o que ocorre no
campo da insanidade. (FOUCAULT, 1995, p.234).
73
É somente ingressando nos jogos
38
de verdade de determinado contexto que a
resistência é possível. A inversão
39
nesse jogo pode acontecer quando são explicitadas as
conseqüências de determinadas verdades, mostrando às pessoas o que elas ignoram sobre
sua própria situação e acenando para outras possibilidades racionais.
A revista Trip Para Mulher, mais conhecida como TPM, é uma publicação mensal
(80 mil exemplares), da Editora Trip, que surgiu para fazer um contraponto às revistas
femininas tradicionais
40
, acusadas de ofender a inteligência e a auto-estima das mulheres.
Constituiria-se, então, como uma forma de resistência ao discurso propagado por essas
revistas.
O nome TPM, que se refere a “trip para mulher”, mas também à tensão pré-
menstrual, indica o tipo de público que a revista pretende atingir: mulheres ousadas, fortes,
que se permitem ter variações de humor – como acontece com a maioria das mulheres
durante a tensão pré-menstrual –, que não se encaixam nos estereótipos femininos
tradicionais e nem naqueles que as outras revistas femininas propõem.
38
Ao falar de “jogo”, Foucault não estão se referindo à metáfora dos jogos, no sentido de imitar ou
representar, mas a “a um conjunto de regras de produção da verdade. [. . .] é um conjunto de procedimentos
que conduzem a um certo resultado, que pode ser considerado, em função de seus princípios e das suas regras
de procedimento, válido ou não, ganho ou perda.” (FOUCAULT, 2004, p.282)
39
Se, para o autor, onde há poder há resistência, persiste sempre a possibilidade de uma inversão eventual.
“Uma relação de confronto encontra seu termo, seu momento final (e a vitória de um dos dois adversários)
quando o jogo das reações antagônicas é substituído por mecanismos estáveis pelos quais um dentre eles pode
conduzir de maneira bastante constante e com suficiente certeza a conduta dos outros.” (FOUCAULT, 1995,
p.248).
40
Neste trabalho, considero revistas tradicionais as que sobrevivem – e fortes – no mercado editorial
brasileiro há mais de 30 anos.
Guardadas as devidas proporções, as revistas tradicionais seriam o que
Landowski (1992, p.121) chama de “jornalismo de referência”, o qual pretende ser testemunha e cronista do
mundo, construindo uma posição de leitura que destaca o leitor de sua própria subjetividade, e engendra uma
competência de leitura que “se constitui no próprio gesto de uma objetivação do mundo apreendido como
objeto de conhecimento e como campo de ação”. Já a TPM estaria incluída no que o autor chama de “nova
imprensa”, ou imprensa alternativa, que teria por objetivo liberar o leitor das convenções de leitura que o
jornalismo de referência impõe ao seu público.
74
Julgo necessário também analisar as representações da sexualidade em uma das
revistas tradicionais. Nova foi escolhida por configurar-se, desde o seu surgimento, como
uma revista que fala de sexo. De acordo com Mira (2001, p.127), a palavra “orgasmo”, que
em tempos de censura tinha causado problemas à Realidade, faz sua estréia entre as revistas
femininas num título da capa do primeiro número de Nova. Apesar das revistas Cláudia e
Capricho terem tratado do assunto quando ele veio à tona, conforme Buitoni, elas foram
bem mais cautelosas. E ainda o são. Nova sempre foi mais ousada: a modelo com roupa
decotada na capa, muitos artigos sobre comportamento, sexo, liberação (econômica e
sexual), desejo de luxo e descontração, moda e beleza foram os ingredientes da receita de
Nova no Brasil. O debate sobre a sexualidade feminina foi, desde o seu surgimento, um dos
principais pilares da revista, que inicialmente também dedicava bastante espaço ao
trabalho. Apesar de ter nascido em 1973 como uma revista feminista, que defendia o acesso
das mulheres à esfera pública e o direito ao prazer, já no início da década de 80, de acordo
com Alves (1985), ela vinculava a independência feminina ao poder de consumo,
atualizava o mito do príncipe encantado e oferecia às leitoras um modelo de “supermulher”,
que concilia dupla jornada de trabalho, maternidade e felicidade amorosa.
Sobre maternidade, a revista já não fala. A respeito de trabalho, oferece sempre
menos de 10% de suas páginas. Os conteúdos de Nova agora giram em torno de
sexualidade e amor. A palavra SEXO aparece em letras coloridas e garrafais, pouco
menores que as do título, na maior parte das edições. De alguma forma, todas as suas
matérias estão relacionadas à vida sexual: quando trata de beleza, moda, psicologia e até
trabalho ou dinheiro, ela está tratando, direta ou indiretamente, de sexo. O sexo, aliás, é um
75
tema recorrente em praticamente todas as revistas femininas da atualidade. A
particularidade de Nova é que ela praticamente só faz isso.
Dentro da proposta de fazer uma história do presente, a pesquisa tem como corpus
as edições dessas duas revistas publicadas em 2003, ano em que Nova completava 30 anos
de existência, e a TPM, dois. Os trechos retirados das revistas para análise serão, nos
capítulos que seguem, referenciados de duas formas: quando um trecho for antecedido pelo
título da matéria, a referência ao mês da publicação e às páginas onde ele se encontra
acompanharão o título, não se repetindo na citação da fala do repórter ou entrevistado.
Quando o título da matéria não constar, a referência estará junto ao trecho citado.
76
3. A SEXUALIDADE NA REVISTA NOVA
3.1 Ainda o sexo rei
No editorial da edição especial de Junho, mês dos namorados, a diretora de redação,
Cynthia Greiner, explica o que Nova pode fazer pela sua leitora:
Não tem mês mais cara de Nova do que Junho. Você já conquistou o homem de
seus sonhos e está vivendo uma paixão de ficar com os quatro pneus arriados? Seu
lugar é aqui, lendo as reportagens que preparamos para pôr lenha na fogueira do
seu romance no Dia dos Namorados. Ah, ainda procura aquele gato especial, que
vai fazer o chão tremer quando estiverem juntos? Amiga, seu lugar é bem aqui, em
Nova. Ou você acha que qualquer outra revista vai ajudá-la como a gente nessa
tarefa? (NOVA, jun., p.16).
Ajudar a leitora na “tarefa” de conquistar e manter um homem que possa fazer de
sua existência algo mais interessante: esta é a proposta de Nova, que, assim como acontece
com a maior parte das revistas endereçadas às mulheres, funciona como um manual a ser
utilizado por elas na sua vida cotidiana. As chamadas de capa indicam em que âmbito da
vida a mulher poderá aplicar o conteúdo disponível em suas páginas: em Nova, ela pode
buscar “idéias de beleza para ficar linda, sexy e na última moda já” (NOVA, fev.),
descobrir “as cinco qualidades que os homens procuram em uma mulher” (NOVA, maio), a
fórmula para deixar qualquer “paquera louco de desejo sem nem encostar as mãozinhas
nele!” (NOVA mar.), os “100 lugares quentes em todo o país para beijar na boca, grudar
em alguém, encontrar um gato certo” (NOVA, jun.) ou ainda aprender “oito ousadias na
cama e deixar ele viciado em você” (NOVA, out.). Numa postura pedagógica, a revista
ensina a mulher a “aumentar seu poder de fogo” valorizando o que ela tem de melhor, ou
seja, “um cabelo matador, uma boca apetitosa, uma barriga sexy” (NOVA, maio), também
sugere que ela aprenda com os conselhos de mulheres que em suas páginas “(...) contam o
77
que fizeram para se sentir sexy, sexy, sexy” (NOVA, jul.). Em meio a chamadas em letras
grandes e coloridas tratando do “agarre seu homem”, a revista também coloca em algumas
edições, em letras miúdas e no canto inferior esquerdo – de acordo com manuais de
publicidade, um dos menos visíveis na capa de uma revista –, chamadas para matérias que
podem melhorar a vida profissional: “14 segredos orientais para trabalhar melhor e ganhar
mais” (NOVA, jan.), “trabalho de futuro, 7 profissões escolhidas a dedo para quem sonha
com uma vida melhor.” (NOVA, maio).
A sexualidade, portanto, é central na vida da leitora imaginada por Nova, branca, de
classe média, média-alta, “[. . .] cheia de energia, ousada, independente, [. . .] que quer
saber mais sobre sexo, carreira, beleza e amor” (http://nova.abril.com.br/ acesso em 14 de
janeiro de 2005). Considerando que o trinômio sexo, amor e beleza andam juntos, a revista
poderia ser dividida em duas partes: a que fala da vida no trabalho e a que se refere à esfera
privada. Como as matérias sobre trabalho ocupam somente entre quatro e doze páginas, é
em torno do trinômio sexo, amor e beleza que giram os conteúdos de Nova, que, em geral
traz cerca de 150 páginas mensais. A “atitude”, “ousadia” e “independência” da mulher de
Nova decorrem, sim, do fato dela trabalhar fora e ganhar seu próprio dinheiro, mas estão
principalmente associados ao uso que ela pode fazer do seu corpo e sexualidade. Com um
conteúdo editorial dividido em cinco partes, quando Nova fala de Beleza e Saúde, trata de
sexo, quando fala de Vida e Trabalho, fala de sexo, quando fala de Moda e Estilo, fala de
sexo, quando fala de Gente Famosa, fala de sexo e, para completar, tem uma editoria que se
chama Amor e Sexo. Cada uma dessas editorias está subdivida em colunas, seções ou
reportagens que ocupam quase sempre as mesmas páginas do magazine e não estão
necessariamente agrupados. Ligando todos os aspectos da vida ao sexo, a revista sugere que
78
todos os esforços das mulheres para se tornarem mais bonitas, magras, bem vestidas,
interessantes, independentes financeiramente e até inteligentes estão direcionadas para a
conquista de um homem com quem manter uma vida sexual, como se este fosse o objetivo
máximo da existência feminina.
Nova nasceu, em 1973, como uma revista de vanguarda. Na esteira do movimento
feminista, que reivindicava o direito da mulher ao prazer sexual, ela quebrava tabus e falava
em sexo, prazer e liberação como nenhuma outra o fazia à época (BUITONI, 1986).
Direcionada à “nova” mulher que surgia na década de 70, a revista pregava a liberação,
conformando-se à idéia de que a relação entre o sexo, o saber e o poder é essencialmente
repressiva. Em 2003, ano em que a revista completou 30 anos, essa voz que afirma a
sexualidade e prega a liberação ainda norteia o seu conteúdo. Não se fala mais de uma
sexualidade proibida, que deve livrar-se das garras do poder para enfim libertar-se, nem do
quanto éramos reprimidos antes da revolução sexual e o quanto somos livres hoje,
enunciado freqüente nos primeiros dez anos da revista (ALVES, 1985), mas sim de uma
eterna possibilidade de intensificação do prazer. O enunciado que apregoa a existência da
possibilidade de sentir mais e melhor prazer atravessa todos os conteúdos da revista, numa
reapropriação do discurso feminista
41
em que o “direito” ao prazer é levado aos extremos: a
leitora de Nova é desafiada a “testar suas habilidades na cama e avançar nas fronteiras da
excitação”, afirmando que para aceitar tal missão é preciso “abandonar inibições, apurar os
sentidos, explorar desejos secretos”, com a promessa de ter “tesão em níveis nunca antes
imaginados” (NOVA, out., p.138). Ou seja: escapar às garras do poder que impõe
41
Na década de 60, uma das principais bandeiras do movimento feminista foi o direito da mulher ao prazer
sexual.
79
fronteiras, descobrir a verdade sobre si mesma apurando os sentidos e explorando desejos
secretos para assim obter um prazer sequer antes imaginado, correlato da salvação na
cultura hodierna da qualidade de vida.
Para Foucault, os poderes característicos das sociedades modernas são a disciplina,
que age sobre o corpo do indivíduo, e o “bio-poder”, que age sobre o corpo da espécie, do
homem como ser vivo. A resistência ao “bio-poder” parece reivindicar justamente uma
valorização da vida sobre a qual ele investe: desde o século XIX, as lutas políticas
centraram-se no desenvolvimento das potencialidades dessa vida, nas exigências do
“direito” à felicidade, à saúde, à satisfação de necessidades. Foi assim, “resistindo”ao poder
que investe sobre a vida do indivíduo e da população, que nos dois últimos séculos, o
homem ocidental conquistou o “direito” ao bem-estar. Processo que culminou na cultura
que Lipovetsky (1994) denominou “pós-disciplinar” e “pós-moralista”. Nessa nova
sociedade, e de acordo com este autor, os direitos subjetivos imperam e a idéia de sacrifício
de si próprio perdeu legitimidade:
Em algumas décadas, passamos da civilização do dever para uma cultura da
felicidade subjetiva, do ócio e do sexo: é a cultura do self-love que nos rege, em
vez do antigo sistema de repressão e de controle dirigista dos costumes, as
exigências de renúncia e de austeridade foram massivamente substituídas por
normas de satisfação do desejo e de realização íntima [. . .]. (LIPOVETSKY,
1994, p.58).
Para Foucault, no entanto, a humanidade não progride em direção a um estado ideal,
onde seria possível a plena “satisfação do desejo”, mas avança de acordo com o acaso da
luta entre as forças que se encontram em jogo na História. Ao falar das possibilidades de
80
uma emergência
42
, o autor afirma que as violências geradas pelos processos de dominação
vinculados a um determinado tipo de saber são sempre fixadas em um sistema de regras,
que, para o autor, são vazias e, portanto, podem ser burladas:
O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o
lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las
ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se
introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os
dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras. As diferentes
emergências que se podem demarcar não são figuras sucessivas de uma mesma
significação; são efeitos de substituição, reposição e deslocamento, conquistas
disfarçadas, inversões sistemáticas. (FOUCAULT,1979, p.25,26).
A exigência de valorização da vida foi uma forma de inversão em relação ao poder
soberano que tinha o poder de eliminá-la. Uma nova inversão parece ter emergido nas
últimas décadas do século XX, fazendo com que o que antes a resistência se transformasse
na própria regra: o “direito” à vida e ao prazer transformou-se em uma espécie de “dever
de viver plenamente e gozar sem entraves. Nesta sociedade regida por estratégias que visam
maximizar a vida, corpo e sexo entram numa lógica de controle-estimulação, em oposição
ao controle-repressão característico do poder soberano.
Apesar de propor um modo de ser manifestamente sexualizado, os discursos sobre a
sexualidade em Nova raramente aparecem vinculados à morte. São pouco comuns as
matérias que tratam da prevenção de doenças venéreas, como se este risco não existisse ou
como se a leitora já estivesse tão acostumada a se proteger que não precisasse mais deste
42
Para Foucault, a emergência é a entrada em cena das forças, um ponto de surgimento, “[. . .] um lugar de
afrontamento; é preciso ainda impedir de imaginá-la como um campo fechado onde se desencadearia uma
luta, um plano onde os adversários estariam em igualdade; é de preferência – o exemplo dos bons e dos
malvados o prova – um “não-lugar”, uma pura distância, o fato que os adversários não pertencem ao mesmo
espaço. Ninguém é portanto responsável por uma emergência; ninguém pode se autoglorificar por ela; ela
sempre se produz no interstício” (FOUCAULT, 1979, p.24).
81
tipo de dica. Há, nesse sentido, uma negação dos perigos do sexo e da sua vinculação com
a morte nas páginas de Nova, onde Eros reina absoluto, numa constante exaltação do sexo
como fonte inesgotável de vida, alegria e êxtase.
43
O que justifica, todos os meses, a
presença de incontáveis matérias propondo técnicas para as mulheres “conquistarem”, à
força do trabalho sobre o corpo e a personalidade, um homem com quem manter uma vida
sexual “ardente”. Para as leitoras que já executaram essa primeira etapa da “tarefa” que – a
revista imagina – elas precisam “cumprir” neste tempo específico, são oferecidas técnicas
para proporcionar e obter mais prazer do ato sexual. Às que ainda não “cumpriram”, Nova
se propõe a ajudar a encontrar, conquistar e manter um parceiro. E a promessa vinculada à
prática do sexo é a do jardim das delícias:
Às vezes, o sexo é bom, outras ele é tããããão bom que você mal consegue formar
uma frase depois do orgasmo. As duas reportagens deste especial, uma sobre 75
idéias que fazem diferença na cama e outra sobre sexo por telefone têm um – e
só um – objetivo: garantir que você chegue sempre, em qualquer circunstância,
ao final de suas sessões eróticas sem ser capaz de articular um único pensamento
(NOVA, jan., Guia Lacrado).
As práticas sugeridas nas 75 dicas publicadas no encarte chamado “guia lacrado”
44
resultam da extração de conhecimento de homens e mulheres que revelaram “a forma mais
deliciosa que conhecem de fazer o que é ótimo ficar ainda melhor” e de sugestões da
própria revista. Ensinando a obter o que se deseja, a revista ensina a desejar. E, das páginas
43
Para Freud, a vida humana é guiada por dois instintos: Eros, o instinto de vida, e Thanatos, o instinto de
morte. Enquanto a energia de Eros é chamada de libido e está vinculada à preservação da vida do indivíduo, a
energia de Thanatos é a destrutividade, e levaria à degradação e à destruição do organismo.
44
Na maior parte das edições, a palavra SEXO aparece estampada em letras garrafais e coloridas na capa de
Nova, indicando, com uma fonte que só é menor do que a do próprio nome da revista, uma seção intitulada
“Guia Lacrado”. Tal guia é composto por oito páginas um pouco menores do que as demais, com uma
numeração também diferenciada. O lacre a ser retirado pela leitora denota o caráter reservado, confidencial do
assunto a ser tratado ali. O guia lacrado é um guia sexual de uma revista que praticamente só fala de sexo. E o
seu objetivo parece claro: guiar, orientar, conduzir as leitoras em direção a uma vida sexual plena.
82
de Nova, depreende-se que a mulher deseje ficar tão inebriada pelo prazer a ponto de não
ser capaz de pensar, aliás, sequer de proferir uma palavra. O sexo, em Nova, ainda se
encontra no topo da hierarquia dos prazeres físicos. O “sexo rei” de Foucault aparece como
principal pilar de sustentação de seus conteúdos.
3.2 Sexo com amor
Nas páginas de Nova, o modelo privilegiado de relacionamento é heterossexual e
vincula sexo e amor, como não poderia deixar de ser em uma sociedade em que a ideologia
do romantismo sentimental faz crer que o apaixonamento romântico é constitutivo do
desenvolvimento emocional do sujeito. Pouco se fala em sexo casual, sexo por sexo, prazer
por prazer. Uma das poucas vezes em que o tema apareceu foi na fala de um homem que se
dizia assustado com as mulheres que só querem sexo (NOVA, abr., p. 46), deixando
entrever os resquícios de um discurso conservador que ainda permeia as relações entre
homens e mulheres no Brasil. Na matéria Quando você fez sexo pela última vez? (NOVA,
nov., p.92-94), uma das quatro mulheres “lindas, jovens e modernas” que falavam da sua
maneira de encarar o sexo contrapõe-se a esse discurso reconhecendo que “transar sem
compromisso pode ser muito bom” e admite usar a afirmação “eu só quero sexo” por saber
que, “na maioria dos casos, é só o que eles querem também”. Embora um movimento de
resistência possa ser detectado quando ela conta afirmar que “só quer sexo” porque esta é
normalmente a conduta masculina, tão temida por tantas moças casadouras, a entrevistada
assume a sua “anormalidade” ao confessar: “Sinto que, um dia, vou encontrar alguém com
quem poderei construir uma relação ‘normal’, ou seja, com sexo e sentimento juntos. E até
lá? Continuo com a minha vida ‘anormal’. Por enquanto, está de bom tamanho.”
83
Na apresentação do depoimento Saí com vários homens, arruinei meu casamento e
me arrependi (NOVA, nov., p.122-127), a revista afirma: “Apesar de casada com um
modelo lindo e apaixonado, Carolina não resistiu à tentação de flertar com outros homens e
cometer a traição que levaria à destruição de sua história de amor”. Embora os costumes
livres femininos não sejam lançados ao ultraje público, as mulheres que transam por transar
são “anormais” e não arrumam namorado facilmente; já as que traem o marido correm o
risco de terminarem sozinhas.
O mesmo acontece com as homossexuais. No depoimento Tive um caso com outra
mulher e meu marido nunca descobriu (NOVA, abr., p.104-107), uma das raras ocasiões
em que a revista trata da homossexualidade feminina, uma leitora conta a história do seu
romance com uma colega de trabalho, que além de tê-la deixado sentindo-se culpada e em
crise durante anos, fez com que se distanciasse do marido: “Honestamente, não estou aberta
para outra relação homossexual. [. . .] Estou disposta a encontrar um outro amor hetero [. .
.]”, conclui a entrevistada, que acabou sem o marido e a amante.
Já na matéria O que esses três bonitões têm em comum? (NOVA, jul., p.146-149),
em que três homens gays falam das vezes que foram abordados por mulheres que não
sabiam da sua opção sexual, a homossexualidade é apresentada sob o prisma da decepção
feminina em relação aos homossexuais bonitos, repetindo um enunciado presente na
84
revista, falas e blogs
45
de mulheres desta época. Depois de falar do romance de Tom Cruise
com um ator pornô, a matéria segue:
Mas... e quando é aquele cara charmoso, aquela promessa de muito beijo na boca
com direito a dias e noites de romance, que chamou sua atenção na pista de
dança? Estão querendo destruir o nosso sonho!
Em outras palavras, é
insuportável para muitas
de nós sequer imaginar a possibilidade de aquele
homão de Missão Impossível (ou qualquer outro homão que conhecemos na
balada) não ser tão másculo assim. Nos sentimos desvalorizadas.” (NOVA, jul.,
p.148, grifo nosso).
A normalidade, portanto, encontra-se na prática intensa de sexo com o “homem
amado”, “homem dos sonhos” ou “gato especial”, indicando que os sonhos das leitoras
imaginadas por Nova conformam-se aos ideais do amor-paixão romântico. Tal enunciado
repete-se nas incontáveis matérias que dão dicas para o casal “incendiar na cama” e
“invadir territórios inflamáveis”, no horóscopo do mês, nos testes, nas matérias de caráter
informativo, nas páginas de moda e nas confissões de personagens anônimas e famosas.
Numa entrevista, a atriz Carolina Dieckmann, modelo de capa da edição de junho, afirma:
“Só tive dois parceiros na vida e nunca fiz sexo sem estar completamente apaixonada. Acho
que transar por transar é perda de tempo” (NOVA, jun., p.142), idéia que se repete na fala
da atriz Gisele Itié, que está na capa da edição de março: “Não costumo fazer sexo sem
45
O desprezo dos homossexuais por parte de mulheres que não querem ficar sozinhas também pode ser
observado em blogs desta época. Os comentários a seguir respondem a uma mensagem publicada no dia 14 de
abril de 2004 em um blog chamado Hospital de Bonecas (http://www.hospitalparabonecas.blogger.com.br/,),
onde mulheres contam suas desventuras amorosas. A mensagem intitulada “O desespero é grande” diz o
seguinte: “Essa é de arrancar os cabelos da boneca: O Brasil tem 86.223.155 mulheres e 83.576.015 homens.
aaaaaaarght!!!!!!!!”. Ao que as outras mulheres responderam:Será que é por isso que eu não arrumo
namorado???? Snif.......” ; “Péééééssimos números. Aposto que destes homens 30% é gay e 50% é casado.
Sobra pouco, muito pouco pra tanta mulher :-/”; “1ª vez que entro no blog e leio logo essa notícia p-a-v-o-r-o-
s-a!!!!! rrrrrrsssssss. Odiei saber isso!”; “é isso aí, fora a parte homossexual e comprometida, sobram os
acefalóides, que diminuem um pouco mais a chance de sucesso... viva o hospital!!!!!”; “Tá faltando homens, e
eles ainda insistem em virar padre ou gay, assim tá difícil!!! Acho que é por isso que eu to solteirona, vou
acabar ficando pra titia... Bem que o Papa podia liberar os padres, pq quem vai liberar os gays???
KKKKKKKKKKK”; “Calma bonecas.... tirando as feias e as burras são poucas as que se salvam... o
problema não é a quantidade de mulheres do país e sim a quantidade de gays...”.
85
estar apaixonada” (NOVA, mar., p.104). Tal enunciado perpassa as matérias de Nova e é
sintomático do comportamento da mulher imaginada por ela. Embora se admita que o sexo
casual possa acontecer uma vez ou outra – assim como Gisele não “costuma” fazer sexo
sem estar apaixonada, isto não é condenável como foi até décadas atrás –, a norma
encontra-se na vinculação arbitrária entre sexo e amor, que em nenhum momento é
questionada.
Nesta época em que aprendemos que o amor é culturalmente definido como um
evento raro, os homens são representados como arredios ao casamento e ao compromisso
emocional: em muitos momentos a revista dá dicas de como convencer o parceiro a
“firmar” um compromisso. Em Seu namorado é gamofóbico? (NOVA, jun., p.162-165), a
“aversão irracional e exagerada” dos homens ao casamento aparece como uma doença, que
a revista sugere ser uma epidemia: enquanto “todos os homens sentem certo pavor diante
do casório”, as mulheres seriam apressadas pelo relógio biológico, “pois sabemos que
nossos óvulos envelhecerão”. A voz que fala na matéria é da Psicologia, que sugere que a
solução para o problema é a terapia. Apesar de naturalizar o desejo feminino de se casar, a
revista aconselha as suas leitoras a não ficarem presas numa relação que não vale a pena só
por medo da solidão, como acontece na matéria Estupro Emocional (NOVA, fev., p.72-73),
em que a leitora é aconselhada a tomar cuidado para não deixar que o homem com quem
está, aos poucos, com críticas, detone a sua auto-estima.
Neste contexto em que o sexo é vinculado ao amor e os homens são arredios ao
compromisso emocional, o entrosamento sexual do casal aparece com o principal vínculo a
86
ligar os parceiros.
46
Na matéria Xeque-Mate: os movimentos espertos que uma namorada
pode fazer (NOVA, mar., p.106-109), em que alguns homens falam das atitudes femininas
que mais colaboram para o relacionamento deslanchar, um mâitre de 24 anos afirma: “A
mulher que gosta de sexo – e assume isso sem falsos pudores – é tudo de bom. Se ela diz
‘Eu adoro transar’ ou ‘Quero fazer amor agora’, gamo na hora”. Já um consultor de
marketing diz: “Se o sexo não engrena depois de três meses de namoro... Fui!”. O sexo,
portanto, é imprescindível para o relacionamento deslanchar.
Apresentando o resultado de uma pesquisa realizada com 5.118 rapazes nos sites
das revistas Nova, Vip e Playboy, a matéria As cinco qualidades que os homens querem
numa mulher (NOVA, maio, p.118-121) mostra que três dessas qualidades têm conotação
sexual: fidelidade, sensualidade e “ser boa de cama” vêm se somar à inteligência e bom
humor. Para um advogado que respondeu à pesquisa e que comenta a sua escolha na
matéria, a fidelidade é fundamental porque “o sexo é o laço mais forte e exclusivo que liga
um casal”. Afirmação corroborada por um gerente: “A infidelidade é para o homem uma
quebra nesse laço. Imediatamente perde-se a confiança e todo o resto”. Uma atualização do
discurso feminista, no entanto, aparece na voz de Ulisses Tavares, que, na matéria, fala
abaixo do intertítulo A OPINIÃO DO ESPECIALISTA
47
. Este diz que exigir fidelidade da
garota é uma questão de poder: “O brasileiro não mudou nada nesse quesito nos últimos 20
46
De acordo com dados o estudo do Projeto de Sexualidade da USP, a importância da sexualidade para a
harmonia do casal é prioridade para 56,1% das mulheres e 48,8% dos homens. Somente 0,9% de homens e
mulheres disseram que era nada importante, 2,9% das mulheres e 3,1% dos homens disseram ser pouco
importante e 41% das mulheres e 47,2% dos homens julgaram a harmonia sexual ser geralmente importante.
47
Como em muitas outras matérias, a formação científica dos especialistas que comentaram as respostas dos
entrevistados não aparece. Falaram três vozes: dois deles foram apresentados como autores de livros, um que
tratava da relação homem mulher, o outro um manual para o homem, e um terceiro especialista foi chamado
de sexólogo. Nos três casos, não havia referência à profissão dos “especialistas”, embora Cuschner seja
psiquiatra e o outro autor de livro seja publicitário e professor de tecnologias da informação.
87
anos. Ele não admite renunciar ao poder de manter a mulher em casa, só dele, enquanto
vive suas aventuras sossegado. A liberdade feminina o apavora.” A idéia da infidelidade
feminina como tabu é tão forte em Nova que a pergunta endereçada aos homens na Seção
Nova Pergunta, Eles Respondem da edição de março era: “Fora traição, que atitude dela
você não perdoaria?”.
Além de fiel, a mulher idealizada pelos homens precisa ser “sensual” e “boa de
cama”. A justificativa para a sensualidade como qualidade essencial em uma mulher
aparece na voz do especialista Luiz Cuschnir, apresentado como autor de um livro sobre
relacionamentos. Para ele, é o jogo de sedução feminino que acende a libido do homem,
sendo este um fator determinante para o namoro continuar “firme e forte”: “Para o homem
não existe relação amorosa sem tesão. Por isso é necessário manter sempre essa tensão
erótica o tempo todo. Se a mulher se masculiniza, não se cuida ou não se mostra
sexualmente interessada nele, também não consegue mantê-lo interessado.” Em relação ao
ser “boa de cama”, um entrevistado que é produtor de eventos confessa que “na verdade,
estar em sintonia sexual é pré-requisito para o relacionamento fluir”, enquanto um
advogado diz: “Sonho com uma mulher boa de cama, de sofá, de mesa da sala, de banco de
carro, de elevador, de cozinha, de chuveiro, de piscina, de canga de praia, de bosque
deserto... Assim, o namoro jamais vai correr o risco de cair no marasmo ou na mesmice.”
Embora o sexo apareça como “pré-requisito para o relacionamento fluir”, a
qualidade mais importante para 67% dos entrevistados na matéria sobre a mulher ideal foi a
inteligência, “se não, não há troca nem amadurecimento dentro de uma relação”, diz um
dos entrevistados, resumindo a opinião da maioria. E o especialista Cuschnir explica: “A
88
inteligência feminina fascina o homem porque ele imagina que assim poderá desenvolver
um relacionamento gratificante, que entre outras coisas o fará crescer como ser humano”. A
importância da prática sexual na vida do casal, no entanto, não é relativizada. A mulher
deve ser sim inteligente, mas também “sensual”, “fiel” e “boa de cama”. Mesmo quando
emergem enunciados contrários à idéia de que o sexo é fundamental no relacionamento do
casal, há um imediato retorno ao enunciado inverso e que sublinha a importância de se ter
uma vida sexual ativa nos tempos hodiernos. Na matéria O amor de vocês foi construído
para durar? (NOVA, fev., p. 89-93), a repórter diz que “até mesmo os casais mais ativos
sexualmente saem de sincronia de vez em quando
”. O enunciado que diz que isso é normal
desde que “de vez em quando” retorna nas falas encontradas na mesma matéria: “Além
disso, se a falta passageira
de tesão significasse falta de amor (...) e “Casais sadios
concordam que fatores externos influenciam a libido e que sua diminuição temporária pode
não ter ligação com a falta de amor, mas com outros aspectos da vida , como stress.” A
falta de desejo, portanto, é normal, se passageira.
Para não frustrar as expectativas do parceiro, que considera o sexo como o principal
vínculo entre o casal, a revista ensina as mulheres a “manipular” o próprio apetite sexual.
Na matéria Acerte os ponteiros do prazer com o seu amor (NOVA, jul.,p.84-85), a
sexóloga Aparecida Favoreto aconselha a leitora a erotizar o seu cotidiano para que possa
sentir tanto desejo quanto o seu homem. Este, por ser “bombardeado por estímulos sensuais
24 horas por dia” estaria sempre disposto para o ato sexual, enquanto as mulheres, que não
são expostas a tantos estímulos sensuais, além de “acumularem tarefas domésticas nada
estimulantes” não teriam o mesmo ímpeto. A especialista, então, recomenda: “Ponha a
imaginação para funcionar e pense naquilo várias vezes ao longo do dia. Enquanto veste a
89
calcinha de manhã ou nos últimos dez minutos de horário de almoço, por exemplo, antecipe
como será a sua transa noturna [. . .].”
Se a sexualidade é fundamental para a manutenção de um bom relacionamento com
o parceiro, as incontáveis matérias que em Nova ensinam as mulheres a satisfazer o seu
homem na cama (“para não cair na monotonia”) fazem sentido. O direito das mulheres ao
prazer, todavia, aparece tão importante quanto o prazer que ela deve proporcionar ao
parceiro, talvez inclusive se sobreponha a este, numa aberta referência ao discurso
feminista, que há anos combate a idéia da “mulher para o outro”.
48
Nesse sentido, numa
postura pedagógica que assume em diversos momentos, a revista até mesmo endereça
algumas sugestões para o companheiro da leitora, encarregada de fazer com que estas
sugestões cheguem a ele, como acontece na matéria Como satisfazer uma mulher sempre:
de NOVA para o seu homem, (NOVA, mar., Guia Lacrado) na qual ele poderá buscar “as
informações necessárias para levar uma mulher à loucura”.
Se conseguir mostrar tanto interesse pela vida sexual quanto o namorado ou marido,
além de colocar em prática as milhares decnicas sugeridas pela revista para proporcionar
ao casal uma vida sexual “ardente”, a leitora poderá utilizar o sexo como um recurso de
poder. De acordo com Figueiredo (1995, p.129), o sexo é representado em Nova como “um
caminho para a manipulação do parceiro (através da sedução ou tentação), uma espécie de
48
Em “O corpo e a Reprodução Feminilidade: Uma apropriação Feminista de Foucault”, Susan Bordo (1997)
critica a economia emocional contemporânea, que exige das mulheres uma preocupação constante com a
alimentação e bem-estar da família (filhos e marido) e, ao mesmo tempo, faz com que elas considerem
excessivo qualquer cuidado para consigo mesmas. Para obter o corpo necessário aos imperativos da época, ao
mesmo tempo em que zelam pela alimentação da família, deixam de alimentar-se (para não engordar). Bordo
não estava referindo-se somente à alimentação, mas estendendo a reflexão para outros âmbitos da vida, em
que a mulher é incentivada a preocupar-se com o bem-estar dos outros em detrimento de si mesma.
90
isca, uma arma em um jogo ou numa caça. (tradução minha). Na matéria Jogada de mestre
(NOVA, jun., p.126-128), que aconselha as mulheres a brincar com os homens para fazê-
los valorizar a relação, a consultora do site www. Lightyourfire.com, ensina:
O último jogo, claro, é sobre sexo. A regra é: adie a transa por um mês. Mesmo
que sinta vontade, resista. Só tome cuidado para ele não pensar que você não
sente atração sexual. Dê pistas de que está a fim (vista-se sedutoramente, sussurre
no ouvido), porém não dê abertura para chegarem aos finalmentes.[. . .] Com
isso, você terá tempo para conquistá-lo de outras formas, e, quando rolar, já
estarão completamente envolvidos. Sem contar que, com essa segurada de onda,
ele pensará que você não vai para a cama com todos e se sentirá especial.(
NOVA, jun., p.128).
A leitora que puder “governar” a si mesma e conseguir “manipular” a própria
sexualidade pode utilizá-la como uma forma de capital na relação com o parceiro, que a
deseja sempre pronta para o ato sexual. No depoimento Garotas de programa salvaram
meu casamento (NOVA, ago. 104-107), uma produtora de moda fala dos seus esforços para
despertar novamente o desejo do marido, que, perdendo o interesse sexual por ela, estava
interessando-se por prostitutas. Depois de ter sido fotografada pelo marido em poses
eróticas à beira-mar, ela teria enviado as fotos transformadas em anúncio de prostituta ao
trabalho dele. Passou também a freqüentar sex shops, onde conheceu “amigas” – e a palavra
indicando as prostitutas que salvaram o casamento da moça aparece entre aspas nos textos
da revista – que lhe deram dicas de como agradar o marido sexualmente. Satisfeita com os
resultados, afirma: “Como você pode ver, nossas transas têm sido freqüentes, apaixonadas e
fantásticas. Meu casamento vai muito bem, obrigada.” Nessas narrativas dramáticas
49
49
Para Gomes, o interesse do público por uma publicação qualquer na contemporaneidade pode ser acionado
através dos mecanismos do drama, isto é, a publicação deve surtir um efeito dramático sobre a leitora, seja ele
o temor (relativo à tragédia), a admiração (à epopéia) ou o riso (à comédia). O importante aqui é que os
acontecimentos ganham um caráter teatral, com um enredo onde os atores sociais se transformam em
personagens envolvidos numa situação dramática.
91
publicadas na seção de depoimentos, tratando quase sempre da vida amorosa e sexual, as
mulheres parecem fazer questão de mostrar o quão fantástica foi ou é sua vida sexual:
“Apesar de jovem, ele era um amante excepcional e me fazia sentir nas nuvens” (NOVA,
nov., p.124). Assim como acontece nos testemunhos televisivos de fiéis das religiões
neopentecostais, que depois de muito sofrimento são salvos ao entrar para uma determinada
Igreja, nesses depoimentos mensais, as leitoras relatam as suas desventuras amorosas,
contam o que fizeram para superá-las e, enfim, são “salvas” por um novo amor, pelo
mesmo amor que se recuperou ou por um homem que ainda está por chegar em suas vidas,
numa aberta atualização do mito do príncipe encantado: “[. . .] já me sinto preparada para
confiar nos homens outra vez. Um dia, sei que vou encontrar alguém que, sinceramente, me
fará muito feliz.” (NOVA, fev., p.83); “[. . .] tudo o que desejo é reconstruir minha vida
amorosa. Estou mais madura e sei que ainda é tempo de viver uma nova paixão.” (NOVA,
nov., p. 127).
Apesar da maior parte das leitoras que escrevem à revista endossarem a posição de
sujeito sugerida a elas, a idéia de que não é possível manter sempre uma vida sexual intensa
aparece de maneira transversa na fala de algumas leitoras: “A gente sabe que na maioria
dos relacionamentos a freqüência de sexo vai caindo com o tempo. Isso não acontece
comigo.” (NOVA, jul., p.106).
Se na revista a regra de conjunto parece ser a obrigação de manter uma vida sexual
ativa e “ardente”, se é verdade que o discurso constrói os objetos de que fala e que o poder
produz mais do que reprime, a leitora de Nova casada vai esforçar-se para manter-se de
acordo com o esperado dela. Já a solteira, que se reconhece nas páginas de Nova e que por
92
algum motivo não tenha uma vida sexual, em vez de ficar incapaz de articular um
pensamento depois de testar as centenas de técnicas propostas pelas matérias todos os
meses, vai, tentando conformar-se ao olhar do outro, concentrar seus pensamentos e forças
na busca de um parceiro sexual. E poderá contar com a ajuda da revista nesse
empreendimento: ao longo de 2003, várias matérias ensinam o que ela deve fazer para
seduzir os rapazes e deixa bem claras quais são as “armas de sedução” necessárias para tal
empreendimento.
3.3 As “armas de sedução”
As matérias que dão dicas de como arrumar ou agradar um namorado ou marido são
fórmula das revistas femininas, que, desde os seus primórdios, souberam explorar o
interesse das mulheres pelo amor através dos consultórios sentimentais (BUITONI, 1986).
Embora as técnicas de conquista mudem conforme o tempo e a cultura em que se vive, a
freqüência de reportagens deste gênero em Nova confirma a permanência do
superinvestimento feminino no amor neste início de século XXI. Ao mesmo tempo em que
as mulheres reclamam o direito de serem sujeitos sociais autônomos, com uma
reivindicação cada vez mais forte de apropriação de si em matéria de vida profissional,
familiar e sexual, o desejo de ter um homem ao lado continua a ser uma das maiores
aspirações femininas, o que significa, de acordo com Lipovetsky (2000), um certo desejo de
desapropriação de si: “Quando estou apaixonada, esqueço o resto do mundo, vivo em
função do outro. É como se o meu corpo flutuasse e eu só tivesse olhos para o homem
amado” (NOVA, mar., p.105). A frase da atriz Gisele Itié reflete um dos principais
enunciados que atravessa o conteúdo de Nova, possível porque, conforme Lipovetsky, na
93
contemporaneidade, o feminino se constrói na conjunção dos desejos de controle do destino
individual e dos desejos de entrega emocional, interpretados como o caminho para chegar
a uma vida rica e plena. A idéia de emancipação feminina, presente nos primeiros dez anos
da revista e, de acordo com Alves (1985), componente de uma atualização do mito da
Cinderela
50
, já não ocupa o mesmo espaço e importância em suas páginas : a autonomia
feminina está dada. O mito do princípe encantado, no entanto, retorna sempre, enfatizando
a idéia de que a mulher só será realmente feliz se acompanhada de um homem que a ame.
Apesar do desejo de desapropriação de si estar ligado à divisão das identidades de
gênero, sendo o feminino passivo em contraposição a um masculino ativo
51
, nas páginas de
Nova, pelo menos no âmbito dos papéis sedutivos, essa divisão parece ter sido superada: a
mulher não deve ficar esperando um galante homem que a corteje, mas “[. . .] conquistar
alguém é mais uma questão de iniciativa” (NOVA, abr., p.48). Quando um homem lhe
agrada, a leitora é incitada a ir à luta, munindo-se das armas necessárias para fazê-lo, que,
também conforme Lipovetsky, diferem de acordo com o sexo. Enquanto as armas sedutivas
50
Em um estudo realizado em Nova entre 1980 e 1984, Alves (1985) explica que a atualização do mito de
Cinderela foi um dos principais traços da revista no período. “A emancipação da mulher é equiparada à
passagem da gata borralheira à princesa (ou superstar), que ora vive em função do príncipe encantado, ora se
afirma como guerreira triunfante que não abre mão de sua autonomia.”
51
De acordo com Bourdieu (1999), o princípio de divisão entre masculino ativo e feminino passivo cria e
organiza o desejo, sendo o masculino de posse, e o feminino, de dominação. O autor explica que, desde a
mais tenra idade, os meninos passam por rituais que os separam do mundo materno e garantem a sua
progressiva masculinização, virilizando-os. Uma vez crescidos, cabe a eles realizar todas as tarefas breves,
perigosas e espetaculares, por exemplo, matar o boi e descansar, enquanto as mulheres fazem os chouriços e
salsichas durante horas e depois limpam tudo. Eles têm obrigação de serem nobres, corajosos e honrados. Já
as meninas passam por um trabalho de socialização psicossomático onde suas virtudes só podem ser baseadas
na negatividade e na falta: se lhes impõem limites ao corpo que devem refletir-se na moral e no
comportamento. São elas as responsáveis por todos os trabalhos domésticos, menos nobres, e, através de uma
rígida disciplina do corpo, as mulheres ocidentais empenham-se em apresentar-se adequadamente usando
saias, saltos altos, carregando bolsas, sorrindo, baixando os olhos, aceitando interrupções. De acordo com
Bourdieu, essa disciplina lhes embota a capacidade de movimento, a liberdade.
94
masculinas são mais variadas, podendo ser posição social, dinheiro ou humor, no feminino
a sedução se apóia essencialmente na aparência e nas estratégias de valorização estética.
Associada à saúde, ao prazer e ao bem-estar emocional (SILVA, 2004), nas páginas
de Nova a beleza está intimamente associada ao sucesso amoroso e sexual. A arte de se
fazer querer está profundamente ligada à arte de se fazer bela. E, para tanto, vale qualquer
esforço. A fim de que a leitora possa, quando o verão chegar, passar o dia de biquíni na
praia “sem se preocupar com as gordurinhas e a celulite, que sabotam o sucesso na areia”,
na edição de outubro a revista preparou um megaespecial” de verão. A promessa feita às
leitoras que seguirem as prescrições do magazine para obter o “derrière” (bumbum) dos
seus sonhos”
52
, além do corpo magro e sarado necessário aos imperativos da época, é
“estar na pele daquela garota toda esculpida que atrai os olhares dos bonitões”
(NOVA,out.,editorial), e que, portanto, tem um homem e uma vida sexual garantida.
Repetindo o mesmo enunciado, uma mulher que escreve à revista diz que o marido
colocava nela a culpa pelo caso extraconjugal que mantinha com outra mulher: “Dizia que
eu não era magra o suficiente para que ele me admirasse. Até me criticava em público:
“Encolha a barriga. As pessoas estão olhando.” (NOVA, fev., 73). É um “defeito” do corpo
– a gordura – que justifica a falta de admiração do marido pela mulher, a falta de desejo
sexual por ela. Em um espaço discursivo onde o entrosamento sexual aparece como um
“pré-requisito para o relacionamento fluir”, ter um corpo gordo e com celulite é sinônimo
52
Nas fotos de mulheres que posam para revistas endereçadas ao público masculino, o bumbum das modelos
é sempre privilegiado em relação às outras partes do corpo, seguido pelos seios e pernas. No especial “Gata
de Praia” (NOVA, out., p.142-157), além de uma série de exercícios para todas as partes do corpo, a revista
apresenta uma seção só com exercícios e tratamentos para o bumbum, indicando a importância especial desta
parte do corpo.
95
de fracasso pessoal. A dor de sentir-se trocada por uma outra mulher é a punição pelo
descuido com o corpo, que, portador de um “defeito”, não merece os prazeres do sexo, nem
a fidelidade e amor de um homem.
Embora o pensamento de Foucault não tenha se voltado para as questões relativas
ao feminino, seus estudos apontam para as táticas sociais que transformam o corpo da
mulher numa superfície para o exercício do poder. De acordo com Susan Bordo (1997,
p.20)
Através da busca de um ideal de beleza evanescente, homogeneizante, sempre em
mutação – uma busca sem fim e sem descanso, que exige das mulheres que sigam
constantemente mudanças insignificantes e muitas vezes extravagantes da moda –
os corpos femininos tornam-se o que Foucault chamou de “corpos dóceis”:
aqueles cujas forças e energias estão habituadas ao controle externo, à sujeição, à
transformação e ao aperfeiçoamento. Por meio de disciplinas rigorosas e
reguladoras sobre a dieta, a maquiagem, e o vestuário – princípios organizadores
centrais do tempo e do espaço nos dias de muitas mulheres- somos convertidas
em pessoas menos orientadas para o social e mais centradas na automodificação.
Neste tempo em que o corpo é o principal referente da identidade pessoal, tanto o
amor próprio quanto o amor que a mulher pode receber dependem da arte de se fazer bela,
que, por sua vez, depende do uso que ela souber ou puder fazer dos recursos disponíveis
para transformar o seu corpo em um corpo desejável. De acordo com Lipovetsky (2002,
p.15), se nas sociedades tradicionais a beleza era considerada um dom, devendo os
considerados “feios” resignar-se, no universo individualista do presente o que dá grandeza
ao homem é não se acomodar, é saber gerir a si mesmo conforme as verdades históricas que
conformam um determinado corpo como ideal. Esta, nem sempre, é uma questão somente
de vontade. O esforço de gestão otimizada de si exige que a pessoa tenha também tempo e
96
dinheiro.
53
Plásticas, regimes, ginástica, cosméticos. A revista deixa claras as técnicas
passíveis de serem aplicadas pela leitora sobre si mesma para que se encaixe no rol dos
indivíduos bem-sucedidos, no caso de Nova, as mulheres bonitas e que “possuem” um
namorado – ou as que têm potencial para conseguir um – com quem mantêm uma vida
sexual “ardente”.
Para “aumentar o seu poder de fogo”, a revista sugere que a leitora valorize o que
tem de “bom” na hora da conquista: se tiver peito, deve deixá-los à mostra, e, para isso, dar
pinceladas de blush marrom, pensar no modelo de sutiã que valorize o tipo de seio, passar
bastante creme para evitar que, por causa do peso dos peitos abundantes, eles caiam e
fiquem flácidos e, se o “problema” forem as estrias, a revista, baseada na opinião de uma
especialista em cosmetologia, sugere que a mulher passe o creme duas vezes por dia.
Depois das dicas, aparecem os produtos e os preços, numa estratégia de merchandising que
a revista adota há anos, com o objetivo de integrar reportagem e propaganda de forma não-
explícita. Dicas parecidas são dadas às leitoras que “fazem sucesso com os homens” por
terem uma “barriga de dar inveja”, “lábios apetitosos” ou um “bumbum de babar”. Para
tornar-se mais atraente, a mulher deve ficar atenta até mesmo a aspectos pouco
significativos do corpo, atestando que a disciplina exigida das mulheres na
contemporaneidade pede cuidado com os mínimos detalhes: se “cílios fartos e longos são
uma forte arma de sedução” (NOVA, jul., p. 30), a mulher precisa aprender a utilizar um
53
Esta é uma idéia que vem se desenvolvendo desde o início do século XX. Em 1902, quando Helena
Rubinstein lançou o Crème Valaze, produto que inaugurou o primeiro e um dos maiores impérios do setor de
beleza, já afirmou: “Toda mulher pode ser bonita. Bastam 15 minutos diários e 5 dólares ao ano em creme
facial." A diferença é que agora os 5 dólares não bastam, assim como não basta somente um creme facial,
nem os 15 minutos diários.
97
curvex, aparelho para alongar e modelar os cílios, além de comprar uma máscara que pode
aumentá-los.
Num jogo duplo, a revista passa a idéia de que os cosméticos podem potencializar a
beleza – fundamental na hora da conquista – e, ao mesmo tempo, de que as mulheres
bonitas usam cosméticos. Em muitos momentos, famosas e anônimas contam os seus
segredos de beleza à revista: “Quando eu morava em Nova York, fui até a loja Kiehl’s.
Gostei tanto dos produtos que comprei a linha inteira, uns 20 itens”, diz a celebridade
Daniela Cicarelli à Nova, na seção de beleza da edição de fevereiro, da qual foi a modelo de
capa. Páginas adiante, Daniela aparece novamente numa entrevista intitulada “a gostosa do
pedaço”, onde ela dá sua dica de sedução: “Dar risada é o segredo de beleza mais
importante de uma mulher”. A “gostosa do pedaço” pode dizer isso tranqüilamente para
uma revista em que são as formas perfeitas, e não uma suposta beleza interior, que
garantem a “conquista” de um homem – que nunca é um pedreiro, um guardador de carros
ou um atendente de loja, mas sempre um homem que tenha uma profissão
reconhecidamente “de sucesso”, ou seja, uma profissão que lhe dê potencial para ganhar
dinheiro ou status – que ela possa usar como uma forma de capital social. O parceiro
escolhido é, de alguma forma, o reflexo da pessoa. Escolher, entre tantos homens, um que
não seja um “gato”, que não tenha uma boa profissão ou que seja reconhecido pelos outros
como alguém socialmente pouco interessante diminui a mulher. E, para a conquista de um
homem “tudo de bom”, a posição de leitura em Nova pede que a mulher cuide da aparência
usando cosméticos, fazendo dieta, ginástica ou, dependendo da “gravidade” da situação,
98
apelando para as intervenções que a medicina estética
54
pode realizar nos corpos não
adequados aos valores da época. Depois de retirar gordura da barriga através de uma
lipoaspiração e transferi-la para os glúteos, uma entrevistada da matéria Um desbunde
(NOVA, mar., p.94-95) afirma: “Dá uma enorme satisfação perceber pescoços virando para
dar aquela olhadinha a mais no meu rebolado.” O olhar e aprovação dos homens valem o
risco e os dois meses de desconforto causados pela cirurgia.
Além de cosméticos e cirurgias estéticas, a moda em vestuário, ligada à imprensa
feminina desde os seus primórdios, também ganha em Nova o poder de fazer uma mulher
bonita e sexy. No editorial da edição de junho, a diretora de redação, mostrando o esforço
de toda a equipe para fazer com que a leitora solteira não passe o dia dos namorados
sozinha, dá a dica (NOVA, jun., p.16, grifo nosso): “Se você estiver vestida para matar, aí
as chances de ele não se apaixonar ficam reduzidas a ...zero! Em “Louco pelo seu Look”,
Lena fotografou as peças que são as mais poderosas armas de sedução
.” A apresentação do
ensaio de moda descrito é antecedida pelo texto:
Já pensou que a sua produção pode ficar gravada na memória daquele homem
maravilhoso para sempre? Nossa editora de moda, que também é uma expert em
comportamento masculino, escolheu as combinações que vão atiçá-lo pelo olhar e
criar uma sensualíssima conexão entre vocês. (Com)prove hoje mesmo! (NOVA,
jun., p., 146).
A editora de moda em Nova é uma especialista não somente em moda, mas também
em comportamento masculino. Ela sabe o que a mulher precisa vestir para agradar o
“homem maravilhoso” com quem – a revista imagina – ela sonha: uma blusa de cetim,
54
Em vários momentos, a revista sugere que cirurgias plásticas, lipoaspirações, injeções de gordura, etc.
podem ajudar as mulheres “que não foram privilegiadas com formas tão maravilhosas” (Nova, março, p.95)
quanto às que a medicina estética pode proporcionar.
99
custando R$388, e uma saia de couro, que ela pode comprar por R$ 790,00. Se preferir e
tiver recursos para tanto, a dica é um “corset decote de luxo”, vendido por R$ 1.540,00,
acompanhado por um colar de ouro com brilhantes, cujo preço poderá ser conhecido “sob
consulta”, entre outras combinações propostas.
Na seção Fera na Paquera e sob o título A noite Promete (NOVA, jan., p. 46), a
revista diz que “a paquera rola mais fácil quando a mulher se sente poderosa”. Para chegar
à festa “arrasando”, a voz amiga e imperativa de Nova sugere à leitora que “compre algo
sexy para a ocasião”, que “vá ao cabeleireiro na hora do almoço ou depois do trabalho” e
que “tome um banho de sensualidade”, apostando no “conceito de aromacolorterapia da
Universo Garden Angels. A linha Sensualidade tem xampu, spray e hidratante que renovam
as energias e aguçam seu poder de atração.” Ou seja, todo um ritual de beleza envolvido
para sair à caça de um “príncipe encantado”, onde a relação com a publicidade é patente.
Nos editoriais de moda e beleza as características desejáveis numa mulher aparecem
como completamente dependentes dos produtos anunciados nas mesmas páginas. São os
cosméticos que tornam os cílios poderosas armas de sedução, as roupas que vão ficar
gravadas na mente do homem e criar uma sensualíssima conexão entre o casal, os produtos
que podem fazer com que a rotina não acabe com o desejo sexual: “Vale desde investir em
uma lingerie ou depilação diferente até mudar o jeito de abordar o seu homem”, aconselha a
terapeuta de casais e autora do livro Coragem para Amar, Maria Helena Matarazzo na
matéria Amor à prova de Bala (NOVA, out., p.134-137). Algumas páginas antes desta
matéria, o ensaio de moda Arte Moderna (NOVA, out., p.124-129) diz que as lingeries
100
agora “estão tão sexy que transformam o seu corpo numa obra de arte. Capaz de deixar
todos os homens em “êxtase”
Fig. 1: Foto do ensaio Arte Moderna, out., p.126
Como não poderia deixar de ser, o teor dos anúncios publicitários coincide com a
posição da revista. A idéia de roupas e cosméticos como “armas de sedução” é reforçada
pela publicidade, como no anúncio da marca Vinólia, que diz: “São muitas as formas de
conquista [. . .]. Na categoria “armas poderosas”, temos perfumes irresistíveis”. A maior
parte dos anúncios em Nova faz um apelo sexual para vender seus produtos.
101
Fig. 2: Anúncio Du Loren (Nova, out., p.66-67)
É também na publicidade que se pode entrever um movimento que se contrapõe à
obrigação das mulheres buscarem ideais de beleza inalcançáveis. Incorporando a crítica
feminista à ditadura do corpo e da beleza, com o objetivo de captar também o diferente,
alguns anúncios sugerem que todas as mulheres têm defeitos: “Não é porque a Natura está
lançando sua nova linha de maquiagem que vai deixar de mostrar mulheres bonitas de
verdade. Como a Gabi, que volta e meia acha suas sobrancelhas finas demais” ou “Se a
Natura acredita na beleza única de cada mulher, então por que faz maquiagem? Para a
Carminha valorizar os traços da boca que só ela tem. Apesar de sugerir que as mulheres que
não são beldades são bonitas também, o anúncio não rompe com o imperativo da beleza:
cada mulher é bonita a seu modo, mas é bonita.
A relação estreita entre a revista e o mercado publicitário também fica evidenciada
na escolha que, todos os meses, a redação faz do melhor anúncio publicado na edição
passada. “A publicidade faz parte da vida de uma revista. Nós vivemos juntos, face a face,
102
página a página. Então, por que não falar dela, dizer o que mais nos agrada e o que nos
provoca maior impacto.” (NOVA, ago., p. 152). Além de escolher o melhor anúncio, a
revista publica a foto e o nome das pessoas da agência de publicidade que trabalhou nele.
A lógica capitalista não aparece somente na idéia dos produtos de beleza como
armas de sedução e na aproximação entre o conteúdo publicitário e o da revista. Explicando
exatamente como funciona a publicidade na própria revista, a matéria intitulada Marketing
da Sedução (NOVA, ago., p.86) sugere que a leitora use estratégias de marketing para
acertar o coração do seu “gato-alvo”, que, nesse caso, é o consumidor, enquanto ela é o
produto. Assim como acontece numa estratégia de marketing, a mulher é aconselhada a
começar pela definição do target, o que significa conhecer detalhes da vida do seu “alvo”,
para, em seguida, partindo das informações levantadas, focar as “vantagens do produto”, ou
seja, as características que na mulher/produto podem agradar aquele consumidor específico.
E, então, um movimento de resistência em relação ao enunciado que vincula a beleza à
atratividade sexual: “É esse desejo realizado, e não uma característica física sua, que
favorecerá um relacionamento duradouro”, diz a especialista em marketing entrevistada,
afirmando também que a moça não pode querer ser tudo ao mesmo tempo – linda-sexy-
carinhosa-divertida-protetora-aventureira – mas seu principal diferencial dever ser
ressaltado com base no que o paquera procura numa mulher. Aconselha também a não fazer
propaganda enganosa, visto que “se o consumidor perceber que foi ludibriado nem cogitará
um novo encontro”. Como não fazer propaganda enganosa se é preciso mostrar que se é o
“produto” que o “consumidor” espera? O trabalho sobre si está vinculado ao olhar do
outro. Não basta conformar o corpo aos imperativos da época, é preciso ajustar corpo e a
103
personalidade ao gosto do “consumidor” em particular, como cada vez mais acontece com
os produtos.
3.4 A “doença” da falta de desejo
Se vozes de diferentes disciplinas científicas são as responsáveis pela construção de
um discurso sobre a beleza do corpo nas páginas de Nova, conformando o que Silva (2004)
denominou de um “dispositivo de controle-estimulação do embelezamento do corpo”,
quando se trata da sexualidade, a voz da Ciência não se faz tão presente. Depois de passar
trinta anos a falar exaustivamente de sexo, Nova considera-se como uma autoridade em
relação ao assunto, dispensando muitas vezes as dicas de especialistas para melhorar a
qualidade dos prazeres. Quando estes aparecem, o campo de saber a partir do qual estão
falando nem sempre é indicado nas matérias: profissionais como psicólogos, médicos,
nutricionistas, etc. aparecem identificados como autores de livros, consultores de sites sobre
relacionamentos, ou através de títulos genéricos como “terapeuta corporal”, “terapeuta
sexual” ou “sexólogo”. Embora o texto da maior parte das reportagens esteja apoiado nos
saberes da Medicina, Psicologia, Nutrição e Educação Física, nas matérias que visam
aprimorar a prática sexual há poucas referências a uma Ciência Sexual, mas uma série de
técnicas a serem utilizadas pelos casais no jogo erótico, sem que se mencione os “certos” e
“errados” desse jogo. Os textos que ensinam as leitoras a maximizar, intensificar o prazer
sexual tanto para si quanto para o parceiro repetem-se em cada edição da revista,
configurando uma forma de ars erótica, o que contraria a visão de Foucault (1988) de que o
Ocidente teria desenvolvido uma Ciência Sexual, preocupada com uma suposta verdade do
indivíduo a ser encontrada na sua sexualidade, em detrimento de uma ars erótica, que
104
trataria das técnicas para intensificar o prazer sexual. Em Nova, há uma conjunção das
duas coisas.
A norma em relação à sexualidade parece ter se estendido do “como”, “com quem”
ou “o que” fazer no âmbito sexual a partir do discurso científico para o próprio fazer. A
leitora idealizada por Nova tem uma vida sexual ou este é entendido como o seu maior
desejo. Mas, se a voz da Ciência aparece pouco nas matérias que dão conta de aprimorar a
qualidade dos prazeres, ela se faz presente no discurso que apregoa a necessidade do sexo
para se ter uma vida “normal”. Para Foucault, é a partir da identificação das anomalias em
relação aos comportamentos considerados normais a partir do regime de verdade vigente
que o poder avança e produz os corpos pertinentes a um determinado contexto histórico,
aperfeiçoando assim o controle sobre a vida do indivíduo e da população. Na matéria Eu
vivo de Sexo (NOVA, out., p. 106-107) a ginecologista e terapeuta do Projeto Sexualidade
do Hospital de Clínicas de São Paulo Sandra Penteado diz que as queixas mais comuns das
mulheres são a perda da libido e a dificuldade de chegar ao orgasmo. A falta de desejo é
apresentada na matéria Pílula do Desejo (NOVA, fev., p.68, 69) como um “problema” três
vezes mais comum nas mulheres do que nos homens.
Um número cada vez maior de mulheres está vendo o desejo sair pela mesma
porta em que entrou a tão sonhada – e merecida – independência sexual, como
mostra uma pesquisa recente, coordenada pela psiquiatra Carmita Abdo, do
Projeto Sexualidade da Universidade de São Paulo. Nela, verificou-se que as
mulheres sofrem três vezes mais de falta de desejo do que os homens. É o que a
gente poderia chamar de paradoxo feminista: justamente no momento em que
podem decidir quem levar para a cama – e quando e onde – as mulheres estão
sem vontade de usufruir os direitos conquistados.
Foucault (1988) acredita que a peculiaridade do mundo Ocidental, em contraposição
ao mundo oriental e antigo, que desenvolveram uma ars erótica, não foi a proliferação do
105
discurso sobre o sexo, mas o caráter científico desse discurso, a criação de uma scientia
sexualis, que colocou o sexo no domínio do normal e do patológico a partir do século XIX.
Se naquela época era a histeria a “doença” a ser curada nas mulheres, no florescer do século
XXI, a falta de desejo aparece nas páginas de Nova como um mal que atinge cada vez mais
mulheres. Elas “sofrem” de falta de apetite sexual, uma patologia que deve ser tratada. E eis
a justificativa científica para tal doença: “E já está comprovado, a depressão, mesmo que
leve, está ligada à diminuição do interesse sexual”. A verdade científica sugere que uma
pessoa sã e de bem com a vida não teria motivos para “sofrer” de falta de desejo, que
também pode ser ocasionada por problemas psicológicos, estresse, competição na vida
profissional e pessoal e a rotina. Ao mesmo tempo, num movimento de resistência, a
matéria traz à tona o discurso feminista e reconhece que os “direitos conquistados” se
tornaram uma espécie de obrigação na contemporaneidade: “Sim, a mulher está se sentindo
pressionada a ser um furacão sensual. É como se um alter ego vestido de ninfeta insaciável
ficasse soprando no ouvido dela: “Quem não transa muito tem problemas”. Contudo, em
vez de relativizar tal afirmação, a matéria diz que o fator “cobrança” de bom desempenho é
mais uma causa para a “disfunção” sexual.
Ao admitir que as mulheres estão sendo cobradas a serem furacões na cama, a
revista mostra compreender algo que é presente e comum na vida de muitas mulheres – de
acordo com a pesquisa de Abdo , divulgada pela edição da revista Veja de 30 de maio de
2001, 54% das brasileiras tem algum tipo de “problema” sexual –, fazendo com que
aumente a identificação das mesmas com a revista. Assim como o poder moderno, os
conteúdos dos meios de comunicação não existem independentemente dos indivíduos: é
preciso que as revistas falem às leitoras de assuntos que lhes sejam pertinentes, caso
106
contrário deixam de vender. É por isso que a revista que apresenta o sexo como a grande
promessa de felicidade precisa, em algum momento, reconhecer que as leitoras estão sendo
cobradas – por uma voz que sussurra aos seus ouvidos, de quem elas são certamente
representantes – a terem uma vida sexual para serem normais.
3.5 As outras mulheres: confidentes ou concorrentes
Para Foucault (1979, p.25), em cada momento da História, a dominação de uns
sobre os outros é possível porque se fixa em um ritual de poder, instalado em um sistema
de regras, que impõe obrigações e direitos e diferencia os indivíduos.
[. . .] o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza,
permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e
tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o
poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal,
pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um
imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças
individuais. (FOUCAULT, 1997, p.164).
A idéia das amigas como medida de comparação é uma constante em Nova. Na
matéria Só me aparecem relacionamentos superficiais. Eu mereço??? (NOVA, abr., p.126-
129), em que a repórter conta a história de mulheres “bonitas, inteligentes e interessantes”
que passam a noite de sábado sozinhas, Nova mostra compreender o que se passa na vida
da leitora:
A gente sabe muito bem o que anda acontecendo. Você cansou de ter vários
ficantes e agora está a fim de mergulhar num amor de verdade, ter um namorado
que não se desmaterialize da noite para o dia. Só que parece que todos os
espécimes masculinos errados e alérgicos a compromisso resolveram bater na
sua porta. Pior, basta olhar para o lado para ver as amigas namorando.
107
O pior é colocar-se em relação às amigas que estão namorando. A diferenciação e
hierarquização entre as mulheres que têm e as que não têm namorado é evidente em Nova.
E é também entre as que já estão com namorado, pois não adianta “arrumar um boneco só
para mostrar às amigas”, como sugere uma psicoterapeuta da Associação de Terapeutas
Holísticos de São Paulo na matéria Solteira Feliz
55
(NOVA, jun., p.114-116). A idéia é que
a leitora precisa arrumar um namorado de dar inveja às amigas: “Sempre fui namoradeira
desde que me conheço por gente. Durante a adolescência, eu era do tipo que não conseguia
resistir a nenhum gato bonito no colégio. Todas as minhas amigas morriam de inveja do
meu jeito extrovertido e das conquistas que colecionava [. . .]” (NOVA, nov., p.122).
A relação com as amigas, no entanto, não se restringe à medida de comparação: elas
são a engrenagem de um sofisticado sistema de vigilância de si que mistura traços do
fenômeno que Foucault chamou de “Cultura de si” e da tecnologia disciplinar
contemporânea. De acordo com Fonseca (1995), para Foucault, na era cristã, o trabalho que
o indivíduo exerce sobre si mesmo não é uma atividade solitária, mas tem um caráter
social, envolvendo nesta prática outros indivíduos, grupos ou mesmo instituições:
Parentes e amigos com o papel de confidentes, profissionais de direção da alma
e do corpo, instituições de ensino de aplicação a si representam a implicação
social do cuidado de si. Daí a caracterização de uma verdadeira Cultura de Si,
enquanto fenômeno cultural propriamente dito. Fenômeno que envolve a idéia
de necessidade do trabalho que cada indivíduo deve ter para consigo e que a
sociedade deve assegurar e apoiar. (FONSECA, 1995, .117).
Para Foucault, a matriz geral que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o
sexo é a tecnologia da confissão. Durante muito tempo vinculada à penitência, a confissão
55
A matéria dizia que, para estar pronta para o próximo príncipe encantado, a mulher precisa tirar uma lição
positiva do fim da relação, ter uma vida de programação intensa e ficar aberta para o mundo. Quando a moça
estiver feliz e curtindo a vida de solteira, aí estará pronta para encontrar um novo príncipe.
108
teria pouco a pouco perdido a sua situação ritual e exclusiva e difundido-se pelo corpo
social, onde foi utilizada em toda uma série de regulações: crianças e pais, alunos e
pedagogos, doentes e psiquiatras, delinqüentes e peritos. As motivações e efeitos dela
esperados se diversificaram, assim como as formas que toma. A produção do contato
consigo mesmo, portanto, não se dá na solidão, mas, de acordo com Souza (1997) depende
de uma interlocução, que teria por função instituir o espaço do segredo. Para o autor, o que
define o segredo são as condições em que se fala de algo, que “correspondem a certas
regras imaginárias de interlocução em que o elemento fundamental é a formação imaginária
da posição de sujeito do destinatário em relação ao enunciador. Em outros termos, trata-se
do foco ou da posição lançada em jogo para falar e elaborar a si em algum aspecto.”
(SOUZA, 1997, p.110).
Assim, se colecionar conquistas dá poder, o ritual que permite a diferenciação e
hierarquização das mulheres em função da “obrigação” de ter uma vida sexual é a
confidência às amigas. Há que se fazer uma distinção, no entanto, entre confissão e
confidência. A primeira, de acordo com Souza (1997) diz respeito à necessidade de colocar
em julgamento toda a experiência que permanece longe da esfera pública e deve ser feita a
uma autoridade instituída, que possui um estatuto diferente daquele que confessa. Já a
confidência exige que os interlocutores estejam num mesmo nível de reciprocidade. “Pela
confidência constitui-se e mantém-se, pela confissão revela-se o segredo, conforme as
injunções do sistema institucional do poder” (SOUZA, 1997, p.110)
109
De acordo com Lipovetsky (2000), mais do que os homens, as mulheres gostam de
conversar sobre as suas experiências íntimas, analisá-las, interpretá-las junto com as
amigas. Na revista, as amigas aparecem como os pares, os interlocutores a quem devem ser
confidenciadas as aventuras sexuais. No trecho abaixo, a entrevistada da matéria Pílula do
Desejo fala das conseqüências do seu “problema” de não sentir desejo pelo parceiro:
Eu me achava a pior das criaturas toda vez que ouvia minha amiga narrar suas
peripécias sexuais com o namorado. Para eles, tudo acabava em sexo – e
ardente. A descrição dela de um simples beijo era tão erótica que parecia ter
saído de um dos livros de Nelson Rodrigues. Não é que eu não gostasse de
transar, mas na maioria das vezes o cansaço e as preocupações acabavam com
qualquer clima. Isso me deixava deprimida (NOVA, fev. 2003, p.69).
De causa, a depressão passa a conseqüência do problema sexual. “Não é que eu não
gostasse de transar”. A entrevistada não poderia dizer outra coisa para uma revista que
vincula a sexualidade ao prazer supremo, visto que a formação discursiva funciona como
uma matriz de sentido, na qual as pessoas se reconheceriam porque as significações foram
incorporadas, tornando-se naturais. Mesmo com nome fictício, a leitora se defende: o
cansaço e as preocupações são apontados como os motivos para a falta de desejo,
reproduzindo o discurso científico. Na matéria, no entanto, a moça não diz que ficava
deprimida por não transar, mas afirma sentir-se a pior das criaturas ao ouvir a amiga contar
suas peripécias sexuais. Ela sofreria da mesma forma se não tivesse de escutar tais
confidências? Ou se não fosse atribuído tal valor ao comportamento sexual?
Em um contexto em que a norma parece pedir uma vida sexual ativa, as mulheres
marcam a sua posição dentro do grupo trocando com as amigas suas experiências sexuais.
Ao fazê-lo, a pessoa se subjetiva, marcando o seu lugar de fala como um lugar bem ou mal-
sucedido, tanto para si quanto para os outros. O papel das amigas aparece como
110
fundamental nesse processo de reconhecimento de si mesmo: elas são a medida, o olhar ao
qual o desejo se deve conformar. Longe, portanto, de funcionarem como espaços
intersticiais de renovação das subjetividades, as relações de amizade configuram-se como
um sofisticado sistema de vigilância, onde a sexualidade gera hierarquias sociais e produz o
sujeito, que, ao sentir-se diferente, age sobre si mesmo com o objetivo de se conformar à
homogeneidade dada pela norma. Em vez de decentrar a sexualidade, respeitando as
diferenças subjetivas e possibilitando a constituição do sujeito livre dos procedimentos
normativos resultantes das articulações entre saber e poder, as relações de amizade
funcionam a serviço destes, tornando parcas as possibilidades de resistência.
No caso da garota que se sentia a “pior das criaturas” ao ouvir os relatos da amiga, o
“transformar-se” significou fazer um tratamento. Ela procurou um profissional
56
, e “[. . .]
depois de quatro meses se tratando com um medicamento à base de bupropirona de
liberação prolongada, mudou. Agora não apenas ouve histórias da amiga, como conta as
suas próprias experiências.” O interessante neste trecho é que o “problema” sexual da
entrevistada não termina na cama, na relação com o parceiro, mas no processo de
subjetivação perante as amigas.
57
Além de resolver o “problema” sexual da entrevistada, o
antidepressivo Wellbutrin, fabricado pelo laboratório GlaxoSmithKline, de acordo com a
psiquiatra Carmita Abdo, é emagrecedor. Ela afirma que metade das mulheres que está se
tratando com ele emagreceu quase 4 quilos, devendo esta perda se manter por um bom
56
A matéria não diz que tipo de “profissional” a moça procurou, mas frisa que o tratamento a base do
antidepressivo Wellbutrin foi eficaz, atestando o poder da Ciência de resolver os problemas sexuais.
57
E isso não acontece somente nas revistas. No seriado americano Sex in the city, que faz muito sucesso entre
as brasileiras e é citado várias vezes tanto pela Nova quanto pela TPM, as quatro amigas, personagens
principais do seriado, em algum momento do episódio, se reúnem para contar as aventuras e desventuras
sexuais.
111
tempo após a suspensão do remédio. Ou seja, além de aumentar o desejo, “normalizando” a
vida da paciente, o remédio ainda emagrece. Em um tempo em que o corpo magro e jovem
é o estereótipo do corpo belo, emagrecer significa ganhar capital sexual: tornar-se magro
significa tornar-se desejável. Talvez por isso o remédio faça efeito.
As mulheres que não são as confidentes, são as concorrentes. Em diferentes
momentos, a revista sugere que sempre existem várias mulheres interessadas no rapaz
escolhido pela leitora, que precisam ser ludibriadas por ela. “Derrube a concorrência: Uma
rival saiu na frente e já conseguiu alguns pontos com o rapaz? Não é motivo para você fugir
da raia. Mostre que é melhor ainda, capaz de propiciar tudo o que ela oferece – e mais.”
(NOVA, ago., p.87). Rivais na guerra por um homem, as mulheres podem também ser
cúmplices na conquista amorosa. A revista sugere que elas se reúnam antes de ir para as
baladas, encontrem-se para conversar sobre os homens e apóiem-se mutuamente
apresentando umas às outras amigos solteiros. Depois que terminou um relacionamento
longo, uma leitora conta que conseguiu se restabelecer ao voltar a sair com amigas até
encontrar o atual marido (NOVA, maio, p.141). Quando solteiras, portanto, a amizade é
possível graças a um objetivo comum.
Representadas como os pares a quem devem ser confidenciadas as aventuras
sexuais, parâmetro de comparação, concorrentes ou cúmplices para as solteiras, as outras
mulheres são uma ameaça para as casadas. Em Namoro à prova de bala (Out., 134-137), as
repórteres listavam os maiores vilões que ameaçam a felicidade de um casal, sendo que os
maiores vilões são as mulheres que insistem em dar em cima de homens comprometidos,
como sugere a foto de abertura da matéria:
112
Fig. 3 e 4: Fotos de abertura de Namoro à prova de bala (NOVA, out., p. 134-135)
“Proteja-se dos ataques da concorrência. Imagine um exército de mulheres saradas
em roupas provocantes desfilando ao redor do seu namorado. É de tirar o sono, a fome e a
tranqüilidade de qualquer mulher, mesmo as mais seguras”, sugere tal matéria. A chamada
“As 10 novas regras do relacionamento que dá certo. Leia logo, antes que ele ache outra
mais bem informada” (NOVA, dez., capa) sugere que a qualquer momento a mulher pode
perder o namorado para uma mulher mais preparada, indicando o quão útil pode ser a
leitura de Nova. Até mesmo nas cartas de leitoras aparece a idéia das outras mulheres como
uma ameaça: “Toda vez que me apaixono por alguém e começo a me relacionar, aparece
alguma amiga minha – sempre bonita, que joga charme para ele e tenta seduzi-lo [. . .]. Isso
acaba comigo” (NOVA, mar., p.59).
A rivalidade entre mulheres tornou-se até pauta para uma matéria na edição de
março. Em A Guerra do Batom (NOVA mar., p.84-85), uma psicóloga diz que a
animosidade entre mulheres cresceu 45% nos últimos dez anos. De acordo com a psicóloga,
os ataques das mulheres perigosas que estão em toda parte ocorrem por baixa auto-estima e
113
inveja. Comentando a atitude de uma amiga que dá em cima do namorado da outra
enquanto esta vai ao banheiro, a psicóloga afirma: “Ela deve se sentir inferior à outra.
Então, acha que paquerar e conseguir dormir com o namorado da amiga mais bem-sucedida
vai valorizá-la.”
A possibilidade das mulheres estarem juntas na vida, portanto, nas páginas de Nova,
decorre do fato delas terem o mesmo interesse: o de desejarem conquistar e manter um
homem que as ame. Neste momento, elas são cúmplices. Depois, as amigas mais chegadas
viram as conselheiras e confidentes, enquanto todas as outras se transformam em rivais. É o
mesmo interesse que as une e afasta: as outras mulheres devem sempre ser vistas com
desconfiança, pois podem usurpar o namorado da leitora sem qualquer pudor. O afeto, a
amizade, o companheirismo entre mulheres fora do aconselhamento amoroso não existe nas
páginas de Nova.
114
4. SEXUALIDADE NA REVISTA TPM
4.1 Uma revista de perfis e personagens
O lugar de fala da TPM, como indica o trecho abaixo, é construído a partir da
negação do discurso das revistas femininas aqui chamadas de tradicionais. Enquanto estas
apresentariam corpos e vidas irreais, criando um modelo inatingível a ser perseguido pelas
leitoras, a TPM, acompanhando uma tendência do mercado publicitário
58
, se propõe a dar
visibilidade a “homens e mulheres que são especiais de verdade” (TPM, ago., editorial),
“bonitas e normais” como as leitoras imaginadas por ela.
O casamento perfeito, o corpo perfeito, a família perfeita... Desde que você
nasceu, o único lugar em que encontrou representações dessas utopias foi, com
absoluta certeza, o universo paralelo das revistas femininas e em seu irmão de
criação, o mundo da propaganda tosca. Assim, e de forma sistemática, a maioria
das revistas dirigidas às mulheres tem colaborado para formar e manter sob
controle gerações de mulheres tristes e decepcionadas com as próprias
existências, infelizes por não terem 30 quilos a menos do que a natureza
determinou, 15 anos a menos do que a cronologia diz, [. . .] por não possuírem
namorados e maridos como os que aparecem em matérias e anúncios ou pais e
mães simpáticos, compreensivos e sensíveis como os projetados naquelas
páginas. (TPM, ago., editorial).
Essas mulheres desiludidas com os conteúdos “rasos” das outras publicações seriam
pessoas inteligentes, com interesses diversificados, ousadas, livres e fortes – o que não as
tornaria menos bonitas e femininas. Em vez de ficar horas malhando para conseguir um
corpo “sarado”, elas investiriam seu tempo e dinheiro no cultivo da alma e em atividades
58
Os fabricantes de produtos cosméticos vêm incorporando imagens de diferentes tipos de mulheres em seus
spots publicitários, sugerindo que os padrões de beleza já não são tão rígidos e aumentando assim o seu
público em potencial. Campanhas dos produtos da linha Dove, O Boticário e Natura veiculadas nos anos de
2003 e 2004 são exemplos desta nova tendência.
115
que lhes tragam prazer. Para tanto, as “desencanadas” garotas que se sentem atraídas pela
TPM não lêem os best sellers e livros de auto-ajuda como os propostos pelos magazines
tradicionais, mas são fãs de tudo o que estiver ligado à cultura beatnik, gostam de jazz,
cinema alternativo, moda, culinária e decoração; em vez de desperdiçar seu tempo
pensando em estratégias para agarrar um homem, elas vão a mostras de arte, viajam pelo
interior do País e lugares exóticos no exterior e praticam esportes radicais. Apresentada
com o slogan “TPM uma revista que não trata a mulher como idiota. Tem público, né?”,
a revista oferece recursos para a leitora construir uma identidade bem-sucedida e que não
tenha como principal fundamento a sua vida amorosa e sexual.
A sigla TPM, que dá nome à revista, carrega um sentido ambíguo: refere-se à Trip
Para Mulher e, ao mesmo tempo, à tensão pré-menstrual. Cada edição da versão feminina
da revista Trip também apresenta duas capas, geralmente uma com uma personagem
feminina e outra masculina. É partindo do pressuposto de que não existe uma forma única e
certa de ser, viver e querer que a TPM se contrapõe ao “mundo perfeito” proposto pelos
demais magazines. É a mesma idéia que justifica o público imaginado por ela: mulheres
que não seguem padrões e que não são sempre as mesmas, permitindo-se ter variações de
humor – como acontece com a maior parte da população feminina durante a tensão pré-
menstrual; mulheres que não se querem “perfeitas” e nem vêem na sexualidade um aspecto
central de suas vidas ou acreditam que agarrar e manter um homem ao seu lado é o ápice da
felicidade feminina.
116
Ao contrário de Nova que, apresentando textos prescritivos, baseados na confissão
de mulheres e homens comuns e famosos e na opinião de especialistas das chamadas
Ciências Humanas, configura-se como uma espécie de manual a ser utilizado pela leitora
em sua vida cotidiana, a TPM possui uma fórmula que mistura jornalismo, humor e
confissão de colunistas, editoras convidadas, repórteres e leitoras. O discurso médico, salvo
raras exceções
59
, não aparece na revista, que além de entrevistas, reportagens, ensaios
fotográficos masculinos e de moda, traz também três colunas e seções fixas. Estas são “Test
Drive”, onde algumas mulheres testam produtos – que em 2003, foram sempre carros ou
motos; “Badulaque” uma mistura de notas irônicas sobre diferentes assuntos e “Sacolão”,
descrita como uma “mistura boa de um pouco de tudo o que mais gostamos”, onde as
repórteres dão dicas de lojas “vintage”, lugares “bacanas”, livros, filmes, músicas, objetos
de decoração, entre outros. Duas das colunas são assinadas por jornalistas que trabalham na
redação do magazine: Coluna do Meio, da jornalista Milly Lacombe, e Casa da Chris,
extinta no mês de julho de 2003, escrita pela diretora de redação da TPM, Chris Campos. A
terceira coluna, Um Pensamento, é obra de Mara Gabrilli, publicitária e psicóloga. No
espaço que lhes cabe, as colunistas não fazem consulência sentimental, como é comum
acontecer nos magazines femininos, mas falam a respeito da sua experiência de vida, cada
qual ao seu modo.
60
Algo semelhante ocorre na seção Editoras Convidadas, criada no
59
O conhecido psicanalista Contardo Calligaris é uma das poucas vozes das chamadas “Ciências Humanas”
que aparece na revista. Danuza Leão lembra que Calligaris diz que hoje todo mundo quer ter uma vida como a
do seriado Friends, e ninguém está mais disposto a ter uma paixão de rasgar o peito. Também é fonte de
algumas matérias integrantes da campanha “Imagem é Tudo?”, empreendida pela TPM em 2003, como em A
moda no Divã (TPM, ago., p. 84-85), em que o psicanalista afirma que tememos os olhares que nos julgam
porque são eles que dizem quem nós somos.
60
Enquanto Milly Lacombe fala da sua experiência como lésbica, Chris Campos fala de cozinha e decoração
e Mara Gabrilli disserta sobre os mais diversos assuntos, que vão desde uma trilogia sobre o amor (meses de
junho, julho e agosto) até vicissitudes da vida de tetraplégica, como na coluna de dezembro, na qual ela falava
sobre a sua sensibilidade a picadas de insetos, ou na do mês de março, em que relatava as dificuldades que
teve ao tentar reconhecer firma de um documento em um cartório (impossibilitada de mover os braços, ela
assina com a boca).
117
primeiro aniversário da revista, em maio de 2002. Nas páginas que lhes cabem, como em
um blog, quatro garotas falam livremente a respeito de si mesmas, das coisas que gostam
ou não gostam, do que pensam da vida, dos livros, músicas e objetos que valem a sua
atenção, além de darem dicas de viagem e culinária.
A confissão, “prática de si por excelência”, como diria Foucault, é constitutiva dos
textos da TPM, que vai além da publicização da intimidade sexual e amorosa das pessoas:
na revista, entrevistados, colunistas, editoras convidadas e até repórteres falam
exaustivamente sobre os mais diferentes aspectos da própria vida, constituindo-se em ato. O
texto da revista é praticamente escrito em primeira pessoa. Este falar de si, comum nesta
época de blogs, fotologs, Orkut e confissões virtuais e televisivas de todo o tipo, é
característico da cultura contemporânea, que Fischer (2001, 587), lembrando Jurandir
Freire Costa, descreve como uma cultura que reforça um tipo de mito individualista e
racionalista “segundo o qual será mais auntico e verdadeiro aquele que tudo expuser
publicamente sobre sua intimidade, como se esse grande lugar público da mídia pudesse
mostrar a transparência das verdades individuais e como se essa prática devesse ser
considerada não só bastante desejável como necessária [. . .]”.
A confissão na TPM funciona para construir e publicizar um estilo de vida, em que
informação – e, aqui, principalmente “informação cultural” – é poder. A pessoa é o que ela
sabe sobre música, filmes, culinária, moda, literatura. Embora a revista critique o
narcisismo que também caracteriza a cultura contemporânea através da Campanha Imagem
é Tudo?, que relativiza a importância da imagem corporal neste período histórico, é em
torno do “eu” que giram os seus conteúdos. Para falar de diferentes assuntos, nas
118
reportagens
61
, a TPM quase sempre parte do particular: ela fala de cinema através da vida
de atores e cineastas, de esporte através da vida de esportistas, de moda através da vida de
modelos e estilistas: “Ana Claudia Michels quebra tabus e mostra roupas para meninos que
a gente morre de vontade de usar” (TPM, set., capa); “Marcelo Serrado rejeita a fama de
bonzinho e põe o pé na lama (TPM, nov., capa); “Imagem não é tudo. O outro lado da
empresária que gosta de forró e da senadora radical que em casa é ternurinha” (TPM, out.,
capa); “Soninha renega o rótulo de rebelde largada: ‘Sou careta de vez em quando, faço
depilação e fico feliz quando me sinto bonita’.” (TPM, dez., capa); “Modelo, socialite,
escritora, boêmia. Danuza Leão: ‘Homem o tempo todo não dá’” (TPM, fev., capa).
“Menina não entra...va. A TPM acompanha um dia na vida da primeira comandante da
aviação brasileira e das mulheres que constroem a maior hidrelétrica do País.” (TPM, set.,
capa).
Nas longas reportagens e entrevistas, a maior parte com pessoas conhecidas dos
brasileiros neste início de século XXI, os personagens que aparecem na TPM falam a
respeito da atividade que realizam para viver e pela qual se destacam, sobre a sua relação
com a família, amores, sexo, dinheiro. Mesmo chamando a atenção para as suas aventuras
sexuais e amorosas, a conversa nunca se restringe a isso. Em vez de técnicas para
aperfeiçoar o corpo, conquistar um homem ou melhorar a qualidade dos prazeres, a versão
feminina da revista Trip propõe um modo de ser fashion, cool, hypado,“s-moderno”,
inspirado na vida dessas pessoas que aparecem em suas páginas.
61
Nas reportagens, porque nas pequenas matérias das seções fixas, a TPM fala de coisas bem pontuais, como,
por exemplo, “Troféu Pessoa Sem Noção 2003” (badulaque dezembro), ou “Terror urbano”, matéria de duas
páginas falando das lendas urbanas como o homem do saco, a loira do banheiro ou o ladrão de órgãos
(badulaque setembro).
119
Como indicam as chamadas de capa citadas acima, não existe um modo de ser
homogêneo, único e imutável que possa servir de modelo às leitoras. Em muitos momentos
e referindo-se às mais diversas situações, inclusive na crítica às outras revistas, a TPM se
contrapõe aos procedimentos de homogeneização que criam padrões de comportamentos a
serem seguidos. O “legal” aqui é ser você mesmo – e, ao mesmo tempo, desprendido de si
mesmo – é criar um estilo próprio que não responda a regras morais ou culturalmente
impostas, mas que dependa do que o próprio indivíduo julga adequado para si. “Não existe
o certo, e sim o melhor para cada pessoa” (TPM, maio, p. 56), afirma a então prefeita de
São Paulo Marta Suplicy, ao falar do seu divórcio. Marina Person, ao dar sua opinião sobre
a infidelidade diz que “[ . . . ] o que desagrada é quando é aceito sem questionamento. É
como uma roupa que você compra pronta. Pode servir perfeitamente para uns, mas vai
precisar de um ajuste para outros. As pessoas dançam quando tentam usar uma roupa que
não foi feita pra elas.” (TPM, jun., p. 21).
Este modo de ser estilizado, que não se encaixa nos estereótipos ou padrões
tradicionais de comportamento e que depende mais das atividades, interesses e idéias que a
pessoa cultiva a respeito do mundo, bem como do modo como se veste e dos objetos que
compra, do que das suas conquistas amorosas e sexuais não é fixo, nem único. Contando
histórias de pessoas famosas que rompem com o estereótipo de si mesmas, com a imagem
que o público e elas próprias mantêm a seu respeito, a TPM faz vir à tona a multiplicidade e
descontinuidade do sujeito. O desejo de unidade que o caracterizaria desaparece nos textos,
onde não somente se admite a descontinuidade do sujeito em relação a si mesmo, como se
valoriza a sua flexibilidade perante valores, padrões e modelos prontos:
120
Quando vemos nas páginas desta revista a entrevista da ex-bailarina que se torna
correspondente de guerra, da mulher que beirando os noventa anos encontra no
esporte e no amor a graça da vida, ou na ex-modelo que se volta para o fogão,
como diria o locutor esportivo, sem medo de ser feliz, enxergamos uma nova
atitude possível diante da vida. E é para revelar e curtir essa atitude que criamos a
TPM.(TPM, mar., editorial)
Esta nova atitude diante da vida requer da pessoa ousadia para tentar novos
caminhos e desprendimento em relação às próprias crenças, àquilo que ela já foi um dia, ao
que pensam ao seu respeito ou mesmo ao que ela é no presente. Assim, o idealizador da
São Paulo Fashion Week, Paulo Borges, considerado “o poderoso chefão da moda
brasileira”, na revista “tira o uniforme descolado” e diz que gosta mesmo é da calma da
vida na roça. O ícone sexual Sônia Braga diz que está solteira e feliz sem homem. O
estilista Adriano Costa é entrevistado porque “cospe no próprio prato e cria camisetas que
ironizam a moda e a arte”. A identidade do sujeito, portanto, não é fixa. Não há, nas
páginas da TPM, um aspecto da vida do indivíduo que se sobreponha aos outros e que o
prenda à própria identidade, papel que, de acordo com Foucault (1988), a partir do século
XVIII coube à sexualidade.
4.2 Badulaque x Sexo Lacrado
O discurso científico, que ditaria os certos e errados em relação à sexualidade, não
está presente nas páginas da TPM, que se pauta principalmente no próprio discurso
midiático, através da materialização das vidas de pessoas conhecidas dos brasileiros e da
121
negação do discurso das revistas tradicionais. A “brava”
62
leitora idealizada pela TPM não
encara o mundo da forma como essas revistas esperam que as mulheres o façam, nem dá a
importância que elas sugerem que as mulheres dêem à vida amorosa e sexual. Mas, como
neste tempo é quase uma heresia não gostar de sexo, e como a TPM se define mais pelo que
nega do que pelo que propõe, ela imagina que a sua leitora não gosta é de considerar o sexo
da forma como as leitoras dessas revistas o fariam.
Enquanto o “Sexo Lacrado”, suplemento publicado mensalmente por Nova, dá dicas
para melhorar a qualidade dos prazeres sexuais, o “Badulaque”, caderno da TPM, traz notas
irônicas sobre diferentes assuntos
63
, com texto e edição de Nina Lemos. Ambos trazem oito
páginas diferenciadas das demais: enquanto na Nova elas são um pouco menores, na TPM é
o tipo de papel que as distingue. Na capa da edição de julho, a chamada “Badulaque
Especial: 16 páginas de sexo, nenhuma página com dicas de como segurar seu homem”
anuncia a posição de leitura esperada pela revista. A leitora está, sim, interessada em sexo,
62
Muitos dos personagens que aparecem na TPM são pessoas conhecidas por terem personalidade forte, e os
repórteres fazem questão de chamar a atenção para esta sua característica. TPM pergunta à Paula Lavigne:
“Você é brava?” Ela responde:“Eu sou simpática, mas não conta para ninguém. Acho ótimo que as pessoas
achem que eu sou brava e antipática.”(TPM, maio, p.16). TPM pergunta a Paulo Borges: Você é briguento?
Ele diz: “Sou uma pessoa extremamente forte. Tenho personalidade forte e energia forte.”(TPM, jul., p.18).
63
Para dar uma idéia do conteúdo do suplemento, seguem abaixo os títulos das notas publicadas no Badulaque
do mês de dezembro: “Brinquedos marcantes” (trata de brinquedos que marcaram a infância das meninas e
meninos que hoje estão com cerca de 30 anos); “The best of 2003” (é uma matéria em que são publicados os
nomes das pessoas que marcaram 2003 em 30 categorias, como o homem mais canalha, a criança mais chata,
o casal mais chato); “A não-entrevista do mês”(seção fixa do caderno, que fala da pessoa que não será
entrevistada porque não merece aparecer. Nesta ocasião, a não-entrevistada foi a socialite Narcisa
Tamborindeguy, que sempre dá uma festa badalada no reveillon, cujos detalhes todo mundo fica sabendo);
“Motherns”(outra seção fixa que traz dicas das “espertas garotas do www.mothern.blogspot.com”. Nesta
ocasião, elas falam dos “Genéricos para o Natal”, sugerindo que as mães comprem presentes mais baratos
para a criançada); “Presentes subliminares”( traz uma lista de presentes com mensagens subliminares “que a
TPM despreza”. Na lista estão os cremes anti-rugas, “[. . .] não queremos lembrar, logo no Natal, que temos
rugas.”, chapinha para o cabelo, eletrodomésticos, vestido de mulherzinha, livro de auto-ajuda para arrumar
homem, entre outros); “Cada enfeite em seu galho”(traz dicas de decoração da árvore para “lares não
convencionais”); Papai Noel Punk”( sugere que a leitora, em vez de música natalina – que é “careta” – tente
uma trilha que tira sarro do papai noel, este “porco capitalista”); por fim, “Luta livre” (trata das brigas de
família nas festas de fim de ano).
122
mas não o utiliza como um recurso para agarrar e manter um parceiro. Na abertura do
especial, a revista elenca as cinco frases que não serão encontradas ali:
1. Sexo anal é uma questão de relaxar. 2. Engolir pode ser uma prova de amor. 3.
Sexo, para o homem, é uma necessidade biológica. 4. Se você não gostar de fazer
sexo oral nele, faça assim mesmo! Senão você vai perder o seu homem. 5. Nunca
transe no primeiro encontro. Homens odeiam mulher oferecida.
Referindo-se ao conteúdo dos magazines tradicionais, as frases acima insinuam
que estes estimulam as mulheres a manipular sua sexualidade em função da vontade do
parceiro, o que, pelo menos na Nova, de fato acontece. Essas “outras” mulheres estariam
dispostas a qualquer coisa, mesmo contra a própria vontade, para segurar um homem – que
teria necessidade biológica de sexo – ao seu lado. Contrapondo a identidade da sua leitora à
dessas “outras” mulheres, a revista dá a entender que estas seriam fracas de vontade, não
tendo dessa forma domínio sobre o próprio corpo e sexualidade, o que obviamente não
aconteceria com as “fortes” leitoras imaginadas pela TPM, senhoras do próprio destino. De
acordo com Costa (2004) a forma por excelência do desvio hoje é a estultícia, descrita pelo
autor como a incompetência para exercer a vontade no domínio do corpo e da mente. As
pessoas “normais”, portanto, são as que dão mostras de domínio de si mesmas: mulher
poderosa é a “que tem a vida sexual sob o domínio dela”, diz o cartunista Angeli em Angeli
sem crise (TPM, jan., p. 6- 13).
Retratadas como exemplares dos estultos desta época, as leitoras de Novao
ridicularizadas na TPM. Sob o título Novafobia, em uma nota do Especial de sexo, Xico Sá,
que é repórter da TPM, mas é descrito na matéria como “O macho do site
www.carapuceiro.com”, confessa, em tom lúdico, seu medo de ser seqüestrado por uma
leitora de manuais sexuais:
123
Vejo, na capa da Nova, que inventaram uma outra posição sexual. Inventaram ou
redescobriram, sei lá, a partir de algum pergaminho perdido dos originais do
Kama Sutra. Pouco importa. Como morro de medo de cruzar uma dessas vorazes
leitoras de tal almanaque, que a cada edição descobrem revolucionários truques
para enlouquecer a bofelândia, mal vi a capa. Zarpei. Já pensou que violência
urbana: ser seqüestrado (e não apenas um seqüestro relâmpago?) por uma
insaciável e preparada leitora de Nova?! (TPM, jul., badulaque).
Zombando de uma suposta leitora de Nova, que, de tão obcecada por sexo, sairia às
ruas seqüestrando homens incautos com o objetivo de conquistá-los submetendo-os às
praticas sexuais prescritas pelo magazine, a TPM critica as fórmulas homogeneizantes
propostas pelos manuais sexuais e cria uma posição de leitura baseada em princípios
opostos. Sob o título Em busca do orgasmo perdido, a repórter Renata Leão critica o livro
que pretende ensinar a mulher a chegar a um orgasmo “amplo, geral e irrestrito”:
O problema é que tudo que envolve regras, fórmulas e dicas de como ser feliz na
cama não funciona. [. . .] Por mais bem-intencionado que seja – e por menos
machista que tente ser – não foge muito a todas aquelas baboseiras publicadas na
maioria das revistas femininas em “guias de sexo lacrados” e matérias que
mudam a fórmula, mas nunca a forma.[. . .] Duvido que vocês, leitoras, não
saibam muito bem como segurar o pau de seus pretês. Sem regra nenhuma,
pelamordedeus. Fiquei irritada com trechos que falam sobre ‘gratificação sexual
e os meios pelos quais ela pode tornar sua vida feliz’. Auto-ajuda na cama não,
por favor! Todo o mundo já sabe que transar faz bem e pronto. Ninguém nesse
mundo merece perder tempo com mais um manual para ir às nuvens. Não tive
vontade de testar as sugestões. Cada um sabe o que e mais gostoso. (TPM, abr.,
badulaque)
Sexo faz bem e pronto e cada um sabe o que é mais gostoso. Como demonstra o
trecho acima, a leitora imaginada pela TPM gosta, sim, de sexo, mas não de fórmulas
prontas, de modelos a serem seguidos. Mesmo na intimidade elas querem individualidade.
A crítica à fórmula homogeneizante com que Nova trata do assunto não nega a importância
do sexo na vida da pessoa, mas o retira do centro da experiência humana.
124
Contrapondo-se também às revistas especializadas em publicar detalhes sobre a vida
de celebridades, na seção “A não-entrevista do mês”, publicada mensalmente no
Badulaque, a TPM afirma recusar-se a entrevistar as apresentadoras Angélica e Eliana, que
“sempre viram noticia por uma única razão... seus amores”. E justifica: “Ah, todo mundo
arranja um ficante, tem um namorado que é um enrosco e por isso vai e volta. Isso é muito
normal e não deveria ser notícia.” (TPM, mar., badulaque).
Diferenciando-se das demais revistas brasileiras que têm na sexualidade um de seus
principais temas, a TPM fala pouco no assunto. Nas edições de agosto e setembro de 2003,
a palavra sexo só aparece uma vez nas cerca de 100 páginas publicadas mensalmente: na
primeira, o vocábulo aparece em um pequeno box intitulado ping-pong, em que o estilista
Adriano Costa aponta cinco coisas das quais não abre mão: o sexo era a terceira, depois de
dançar e ouvir música. Em setembro, a palavra só aparece na coluna de Milly Lacombe,
quando esta diz: “amor não tem sexo”, referindo-se a mulheres que amam mulheres e a
homens que amam homens. A sexualidade, portanto, perde importância nas páginas da
TPM, cujas leitoras namoram, arrumam “pretês”, gostam de homens bonitos e de sexo, mas
este é só mais um aspecto importante da vida, não o mais relevante, como acontece em
Nova. O sexo aqui é decentralizado, não serve como capital, não leva a leitora ao sétimo
céu e nem deve ser levado muito a sério.
4.3 A naturalização da homossexualidade
A não-centralidade do sexo na vida da pessoa vem acompanhada da idéia de que
não há uma única forma de vivenciá-lo. Sete anos depois de duas personagens lésbicas
125
serem mortas numa telenovela
64
da Rede Globo, por causa da rejeição do público às cenas
de intimidade das duas, o amor entre mulheres aparece sob um prisma positivo na TPM.
Em Mulher Zoológico (TPM, out. p.14-20), ao responder se seria capaz de amar outra
mulher, a atriz Sônia Braga diz que sim e acrescenta: “Mas essa é uma pergunta
preconceituosa hoje em dia, não?” O amor entre pessoas do mesmo sexo é tão normal que é
até preconceito perguntar a alguém se seria capaz de ter uma experiência gay. Em São
Paulo Fashion (TPM, jul., p. 16-23), o idealizador da São Paulo Fashion Week, Paulo
Borges, revela estar casado com outro homem, mas a revista não dá destaque a tal
informação, preferindo salientar que ele não acredita em fidelidade, e que, mesmo tendo
acesso aos mais glamourosos salões brasileiros e estrangeiros, gostaria mesmo é de morar
na roça.
Além da revista falar com naturalidade do amor entre pessoas do mesmo sexo, a
questão é amplamente discutida na coluna de Milly Lacombe. A delicadeza com que a
jornalista fala do assunto e o sucesso da Coluna do Meio entre as leitoras transformaram-na
em uma espécie de ícone do lesbianismo no Brasil: “Descobri que você é o ídolo número 1
dos blogs lésbicos brasileiros. Obrigada por ter me feito olhar para as minhas próprias
histórias”, elogia uma leitora na seção de cartas do mês de agosto. Na Coluna do Meio, uma
das mais lidas e comentadas da revista, Milly fala da sua experiência como gay, conta
histórias da infância e da vida cotidiana e reflete sobre as possibilidades de amor entre
pessoas do mesmo sexo, chamando atenção para a poesia que pode haver nesses encontros.
64
Em 1998, Christiane Torloni e Silvia Pfeifer interpretaram Rafaela e Leila na novela “Torre de Babel” e
foram mortas em um acidente num shopping center depois dos índices de audiência caírem de 42 para 36
pontos. (FREITAS, 2000, p.28).
126
Fazendo uma analogia com a culinária, na coluna de abril, ela discorre sobre a descoberta
da homossexualidade:
É como se você só pudesse comer brócolis sabendo que chocolate existe, mas não
foi feito para você – era proibidíssimo. Pior: você vivia rodeada por chocolates.
Chocolates formavam seu time de vôlei, eram seus melhores amigos, ligavam
regularmente. [. . .] Você era uma diabética dentro da doceria. E então, quando
você já havia se conformado com a dieta do brócolis, descobriu que podia comer
chocolate escondido. Beijar outra mulher era de fato muito mais coerente do que
supunha. E muito melhor também. Aos 16 anos, eu tinha descoberto o sentido da
vida. E ele residia em tudo aquilo que se segue ao primeiro beijo. A descoberta
do sexo, a perda da inocência, não poderiam ter sido mais clandestinamente
perfeitas.
De acordo com Bordo (1997), as regras de construção da feminilidade
contemporânea exigem que as mulheres desenvolvam uma economia emocional totalmente
voltada para os outros. Conforme a autora, embora elas aprendam a alimentar outras
pessoas, consideram excessivo qualquer desejo de auto-alimentação e cuidado consigo
mesmas. “Obviamente, o alimento não é a questão em debate aqui; mais exatamente, o
controle do apetite feminino é meramente a expressão mais concreta da norma geral que
rege a construção da feminilidade, de que a fome feminina – por poder público,
independência, gratificação sexual – deve ser contida [. . .]”. (BORDO, 1997, p.25). Essas
regras de construção da feminilidade não se aplicam às mulheres imaginadas pela TPM, que
não somente buscam se alimentar, como podem chegar ao jardim das delícias provando o
alimento que lhes foi proibido. Afirmando o prazer de comer chocolate quando a norma é
comer brócolis, ou o prazer de amar as mulheres quando a norma é amar os homens, a
TPM, pela voz de Milly Lacombe, ao mesmo tempo em que resiste ao investimento político
sobre o corpo feminino na contemporaneidade, traz à tona a hipótese repressiva – a qual se
opõe Foucault – , que entende o poder fundamentalmente como interdição e promete a
felicidade aos que ousarem ultrapassar as barreiras impostas pelo poder. Ao afirmar que
127
descobriu o sentido da vida ao comer o chocolate – interdito nesta época em que a magreza
é o ideal – numa analogia à relação sexual com outra mulher, a colunista reafirma a
importância do sexo na constituição das identidades e, no interior de uma revista que faz
apologia ao diferente
65
, exalta a homossexualidade:
Sozinhas, descobrimos nossos corpos, nossos delírios, nossos mais bem
guardados segredos. A história da primeira vez é mais ou menos essa para toda
menina gay. De repente, aquilo que tinha gosto de inalcançável e ilegal, se torna
possível e extremamente legal. O lado bom é que a coisa acontece com uma
intensidade e com um tipo de poesia que, talvez, heterossexuais desconheçam.
(...) No saldo geral, a emoção superou a dor, o delírio foi maior que a culpa. No
final, a descoberta de que chocolate não é, quem diria, proibido, e a expectativa
de que, num futuro nem tão distante, poderíamos todos, mais do que
simplesmente aceitar, celebrar nossas diferenças. O sonho de um mundo sem
preconceitos, sem minorias, sem intolerância, sem proibições estúpidas.
Depois da descoberta da verdade sobre si e da ruptura com o interdito, a chegada
ao jardim das delícias, onde a emoção e o delírio prevalecem sobre a dor e a culpa da
caminhada. E tudo com uma poesia talvez desconhecida pelos que preferem seguir os
caminhos até então entendidos como convencionais. Como para Foucault (1979, p.25,26)
as emergências são figuras sucessivas de uma mesma significação, a inversão no jogo de
forças se dá quando os dominados se apoderam das regras, “disfarçam-se para pervertê-las”
e as aplicam sobre os que antes as tinham imposto. Embora a revista não condene a
heterossexualidade – o que seria uma total inversão no jogo, e não um efeito de reposição,
deslocamento, conquista disfarçada – emerge aqui a sugestão de que o sexo entre
homossexuais seria melhor, teria mais poesia, conseqüentemente traria mais prazer, do que
65
A aceitação das diferenças, a defesa e naturalização da homossexualidade, bem como a sua analogia com a
culinária, aparecem também numa nota do badulaque do mês de outubro, em que se falava de como
convencer crianças a comer um pouco de tudo e, assim, ter uma dieta balanceada. A nota sugere que a mãe
faça a criança acreditar que haverá uma festa no seu estômago: “É interessante que a criança escolha o
anfitrião e o motivo da comemoração. Por exemplo: o aniversário da beterraba, a despedida do brócolis, o
casamento do arroz com o feijão. “Mas mãe, o feijão e o arroz não são homens?” Aproveite a oportunidade
para explicar à novíssima geração que homens podem se casar com homens, sim. E que o fato de o arroz ser
branco e o feijão ser preto não impede que eles se amem”.
128
o praticado entre pessoas do mesmo sexo. Na matéria “2 Anos” (TPM, maio, p.54-60), em
comemoração ao aniversário da revista, Milly Lacombe passa de colunista a entrevistada e
fala de como pode ser a vida dos que ousam romper com as convenções: “Percebi que as
pessoas acabam dando valor para aqueles que têm coragem de quebrar tabus. Nunca me
senti tão amada e tão valorizada como nesses dois anos. Nunca estive cercada por tanta
gente bacana, solidária e carinhosa.”.
Como a heterogeneidade é constitutiva de qualquer discurso, a idéia contrária
também aparece na TPM, indicando que nesta época a posição da revista não é hegemônica.
A idéia de que existe um mundo cheio de preconceitos, com minorias, intolerâncias e
proibições estúpidas encontrada na fala de Milly é reforçada em “É a mãe” (TPM, set.,
p.14- 20), na voz de Lucinha Araújo, que relativiza a visão positiva que a TPM lança sobre
uma homossexualidade aceita e valorizada por todos. Ao comentar o que sentiu ao
descobrir que o filho Cazuza era gay, Lucinha diz ter temido por ele, visto que os caminhos
de minorias vêm sempre carregados de sofrimento: “É uma coisa que a sociedade não
aceita. As pessoas mais esclarecidas vão dizer: “Ah, aceita sim.”Mas é mentira. Aceita se a
pessoa é famosa. O Ney Matogrosso sempre disse publicamente que era apaixonado pelo
Cazuza e todo mundo acha lindo. Mas vai um pobre qualquer chegar numa estação de trem
e anunciar que é gay.” A própria Milly, na coluna de janeiro, confessa que a mãe não
olhava mais para ela desde que tinha anunciado que era homossexual.
4.4 Relativização da necessidade do homem na vida
129
“Ele não me ligou ainda. Se eu ligar, ele vai achar que eu sou louca?”. Começa com
esta frase a matéria Sem Vergonha (TPM, fev., p.8-15), resultado de uma entrevista com a
ex-socialite, modelo e colunista social Danuza Leão. A frase remete à imagem, comum nos
demais magazines, da mulher que fica horas ao lado do telefone esperando o homem no
qual está interessada ligar, sem saber se toma a iniciativa ou não. As mulheres TPM têm
mais o que fazer: Danuza “não aguarda o telefonema de nenhum pretendente, mas de um
editor do jornal A Folha de São Paulo, para o qual ela escreve.”
As atividades profissionais ou artísticas dos entrevistados são mais importantes do
que suas vicissitudes amorosas e sexuais. O que não significa a ausência destas nas páginas
da TPM, mas sim que romances, rolos e namoros não são motivo para famosos aparecerem
na revista, numa clara negação à fórmula utilizada pelas revistas de fofoca.
66
A leitora
imaginada pela TPM não desperdiça seu tempo à espera de um telefonema do “pretê”, nem
fica sofrendo ou fazendo melodrama por um amor mal-sucedido, tampouco deixa de lado
aspectos importantes da vida para matutar uma estratégia que lhe garanta um homem ou
uma mulher com quem manter uma vida sexual.
66
A não-entrevista do mês de maio recusava-se a entrevistar um casal de adolescentes: “Um casal de 14 anos
terminar um namorinho de três meses não deveria ser notícia, não é? Isso é o tipo de coisa tão sem
importância que nem os pais dos envolvidos perdem tempo falando sobre o tema. Mas... a modelo Yasmin
Brunet se separou do ator Kayky Brito. Nossa! Que importante. Está lá em todas as revistas de fofoca. [. . .]
Mas eles continuam bons amigos, é claro. E nós continuamos a perder a nossa fé na vida e na inteligência
humana. Um namorico teen virar notícia em um momento em que tanta coisa acontece no mundo é no
mínimo revoltante. Claro, não vamos entrevistar o casal por nada nesse mundo. Temos coisas mais
importantes para fazer, como escrever uma revista que não fala sobre esse tipo de fofoca. E só de escrever
essa nota sobre assunto tão ridículo a repórter ficou de mau humor e com vontade de socar alguém
.” As
chamadas de capa da edição em que foi publicada esta nota, momento em que tanta coisa importante
acontecia no mundo, eram as seguintes: “TPM libera o lado feminino de Fábio Assunção, Matheus
Nachtergaele, Lázaro Ramos e Gabriel Nunes”; Paula Lavigne, a mulhjer de Caetano Veloso, fala de
casamento aberto, sexo e dinheiro: 'Acho que mereço ser rica'”; Nesses dois anos... Marta Suplicy e outras
seis mulheres contam o que mudou em suas vidas; “E mais: Débora Falabella, Paloma Duarte, J.R. Duran e
outros convidados revelam os 21 lugares imperdíveis do Brasil'; “Garotas-propaganda. Sete mulheres dos
bastidores da publicidade viram modelo por um dia”.
130
Como, no entanto, a ambigüidade é uma das características constitutivas da TPM,
que, assim como a leitora imaginada por ela, não se prende a posições fixas, a revista deixa
também entrever suas contradições. Em A Síndrome do Segundo Encontro (TPM, maio,
p.42-43), Nina Lemos e Xico Sá descrevem os momentos de “alta-tensão” que sucedem o
primeiro encontro entre amantes. Nina começa dizendo que se o rapaz não tivesse ligado,
tudo seria normal: ela teria se lamentado com as amigas, tomariam um champanhe,
escutariam a música que diz que os homens só querem as meninas de 17 e ficariam
deprimidas porque já têm 30. Indício de que também aqui as mulheres costumam conversar
sobre suas aventuras amorosas e sexuais, sem que, no entanto, elas possam ser usadas como
uma forma de capital. E quando se trata de amor, as determinadas mulheres TPM, das quais
Nina Lemos é um dos principais modelos
67
, ficam frágeis: “Estou com dor de barriga e com
enjôo. Não consigo trabalhar. Já tomei uns 300 cafés. Passei o dia inteiro querendo que ele
ligasse. Mas agora que ele ligou, fiquei nesse ridículo estado de pânico. Era para eu estar
feliz. Mas estou nervosa, horrivelmente nervosa.” Assim como a mulher de Nova, a
“desencanada” mulher da TPM fica nervosa diante da possibilidade de um encontro
amoroso e gasta tempo, sim, pensando no que vestir para que o parceiro em potencial não
pense que ela “está louca” por ele, repetindo aqui uma idéia comum nas outras revistas, que
em geral sugerem que a mulher não “se entregue” nos primeiros encontros. “Que roupa eu
boto? [. . .] Vou botar aquela camiseta do Herchcovitch que eu comprei.” Usar uma peça
67
Nina Lemos é um dos principais personagens da revista. Além de ter conduzido várias das entrevistas
publicadas em 2003, também é responsável pelos textos e edição do suplemento Badulaque e, como repórter
especial, faz matérias no estilo repórter-participante, como em “Mico de auditório” (TPM, abr., p.92-95) em
que participou de uma caravana para o programa da Hebe Camargo, e “Lição de casa”(TPM, jan., p.62-64)
em que foi enviada a um curso para empregadas domésticas. Nessas ocasiões, ela é o personagem principal:
são as suas fotos e impressões que aparecem nas matérias. Tentando fazer humor, ela ridiculariza as pessoas
que, por exemplo, “pagam mico” nos programas de auditório, ou as empregadas que devem passar as cuecas
do patrão.
131
do estilista Herchcovitch, anunciante assíduo da TPM, indica que a pessoa é fashion, chique
e tem dinheiro. Num movimento que é de resistência, mas que também é característico da
TPM, que não se prende a posições fixas, a versão masculina do segundo encontro debocha
de uma suposta obsessão feminina por roupas de marca: “Mas ela que se dane com essas
frescuras de grifes modernas! Aquela cueca Calvin Klein, que acho mais peça de amigos
gays, só vesti para agradá-la na primeira vez. Só uso grife quando é falsa”, diz o repórter
Xico Sá.
Além de se preocupar com a roupa que vai vestir, Nina Lemos confessa: “Acho que
agora eu fiquei feliz. É que pensei em sexo. Delícia. Faz tanto tempo que não fico de
verdade com alguém”. Em Angeli Sem Crise (TPM, jan., p. 6-13), ao responder a pergunta
“quanto tempo dá pra ficar sem sexo?”, o cartunista Angeli diz gostar da prática diária.
“Mas não entendo o sexo como copulação e só. Existe a coisa de você sexualizar a relação.
É manter um climinha quente o tempo todo, mesmo que não esteja na cama transando.
Acho que isso é diário. E se possível também a prática, que eu gostaria que fosse diária,
mas nem sempre dá.” Na matéria Amigo é para essas coisas (TPM, fev., p.78-82), três
escritoras deveriam criar uma história sobre sexo com o melhor amigo. Num breve ping-
pong, a revista pergunta: “Dá pra escrever sem falar de sexo, sexualidade, libido?” A
primeira escriba responde: “Impossível. Só se o sujeito for brocha e mesmo assim, em
tempos de Viagra, dá pra dar um jeito.” A segunda diz “dá pra escrever até sobre uma jaca.
É só querer. Mas eu não me interesso muito por frutas, sabe.” E a última diz: “Deve dar,
mas fica tão sem graça...”.
132
Se não dá pra escrever sem falar de sexo, que dirá viver. Não dá pra escrever sem
falar de sexo, mas só de pensar nele dá pra ficar feliz. O sexo não é só copulação, mas a
conquista diária do parceiro. Embora fale muito menos de sexo do que as demais revistas
femininas brasileiras, a TPM traz à tona o enunciado recorrente nesses magazines, que
vincula a felicidade a uma vida sexual ativa. Isso pode acontecer porque, de acordo com
Brandão, no interior de um campo, a toda formação discursiva se vê associar uma memória
discursiva, que é a retomada de formulações anteriores, já enunciadas em um campo
discursivo específico. A memória discursiva é que permitiria o aparecimento, a rejeição ou
a transformação de enunciados pertencentes a formações discursivas historicamente
contíguas.” (BRANDÃO,1997, p.76).
Tentando contrapor-se ao discurso dos magazines tradicionais, a TPM ora o
incorpora e reforça, ora rompe com ele. Na reportagem Expedição Vagalume (TPM, fev.
p.32-38), Renata Leão conta a história de três amigas que ficaram nove meses percorrendo
a floresta Amazônica com o objetivo de levar dez mil livros a crianças de comunidades
rurais da região. A amizade entre mulheres, portanto, vai além da troca de confidências. A
repórter descreve desde detalhes da viagem, mostrando as aventuras e dificuldades pelas
quais as garotas passaram longe dos “luxos” da cidade grande, passando por dicas de como
montar um projeto social, até detalhes sobre a vida pessoal das bem-intencionadas moças:
“Tirando um sarro da própria condição, elas contam que estão há nove meses sem
namorar”. A não existência de um sentido único para as palavras e frases faz com que o
sentido das mesmas dependa da formação discursiva em que se encontram. Para Foucault,
nem enunciados, nem formações discursivas possuem margens bem delimitadas, assim
como não resultam da vontade de um sujeito uno, centralizado, mas são tecidos a partir da
133
relação com discursos e enunciados outros, que lhes povoam. Ao afirmar que as garotas
tiram um sarro de si mesmas por estarem há nove meses sem namorar, a matéria retoma um
enunciado presente nas demais revistas – que sustenta a necessidade de um homem na vida
de uma mulher – e sugere que quem fica sozinho tanto tempo é digno de troça, mas dá a
entender também que essas garotas legais conseguem rir do próprio infortúnio. Assim como
acontece na Nova, que reconhece ser normal o casal ter períodos passageiros de sexo
morno, as moças tiram sarro de si mesmas em uma situação que é temporária: elas vão ficar
nove meses sem transar e sem namorar por causa de um evento extraordinário em suas
vidas. Quando voltarem ao seu “habitat natural”, a vida volta ao normal e elas voltarão a ter
os orgasmos propriamente ditos.
A frase da garota entrevistada “não é o fim do mundo ficar nove meses sem
transar”, que rendeu a afirmação da repórter, indica, no entanto, um movimento de
resistência à obrigação de se ter uma vida sexual ativa na contemporaneidade. Mas por que
alguém falaria de sexo em uma reportagem que trata do desenvolvimento de comunidades
rurais da Amazônia através da leitura? Se a moça afirma que não é o fim do mundo ficar
nove meses sem transar, é porque, de alguma forma, o discurso que vincula a normalidade a
uma vida sexual ativa já a interpelou. E esse é o discurso das “outras” revistas, que a TPM
repete para instalar uma ruptura: “Não é o fim do mundo ficar nove meses sem transar.
Fazendo um projeto desses, que me dá um imenso prazer, tenho outros tipos de orgasmos”,
diz a entrevistada, resistindo à obrigação de ter um namorado e uma vida sexual ativa.
Dessa forma, a revista sugere que o joie de vivre pode estar em outras coisas que não o
sexo, retirando-o do topo da hierarquia dos prazeres. O vocabulário, no entanto, segue o
134
mesmo: o sexo ainda é o parâmetro para calcular o que seria um “imenso prazer”. É o
orgasmo o que a leitora deve querer.
E a leitora imaginada pela TPM sabe como chegar a tê-los, não necessariamente na
companhia de um parceiro . Fazendo marketing de si mesma, numa página dividida ao
meio, a revista reproduz, na metade superior, uma frase publicada na “revista N.”, numa
clara referência à Nova: “Uma boa sessão de masturbação substitui o sexo a dois?”. Na
metade inferior, em rosa, a frase da TPM: “Meninas se masturbam e ponto final. Dane-se se
querem fazer disso um tabu.” Em várias ocasiões, nos badulaques e sacolões, a revista
indica o uso de vibradores, como o vibrador Koala, que custa R$ 290,00: “Esse tipo de
vibrador em formato de bichinhos fofos é febre nas sex shops. Eles existem em formato de
borboleta, joaninha, etc. Nossa amiga, Raq Affonso, do site 02 Neurônio, já testou um deles
e aprovou. “Você coloca na calcinha e pode se movimentar livremente, fazendo coisas
como lavar a louça” (TPM, jul., badulaque especial sexo).
A TPM fala da vida de casais, e, no seu jogo ambíguo, ora faz o elogio do
matrimônio, ora o desqualifica. Em um intertítulo em letras maiores e em caixa alta, a atriz
Mariana Lima afirma: “considero estar casada uma experiência altamente estimulante”
(TPM, jun., p.55). Páginas depois, o ator Marcelo Anthony, também numa frase em
destaque, diz que “Casamento é fundamental. Tenho necessidade do meu casulo. Minha
noite perfeita é em casa” (TPM, jun., p. 71). Apesar de em muitos momentos a revista
exaltar o casamento, o enunciado que sugere a possibilidade da mulher viver sem um
homem também aparece na fala de alguns entrevistados: Danuza Leão diz: “Adoro um
marido, um namorado. Mas homem o tempo todo não dá. Homem era bom a gente apertar
135
um botão, quando a gente quer, e desapertar, quando não quer.” (TPM, fev., p.11). Ao ser
questionada sobre a falta que faz uma pessoa ao seu lado, Sônia Braga, que está sem
namorado “há um tempão” responde: “Enquanto houver cinema, não (faz falta). Porque eu
preencho meu tempo indo ao cinema, já que não achei o homem certo ainda. Mas estou
feliz sem homem.”(TPM, out., p.17).
O lugar de fala dos enunciadores, no entanto, não pode ser desconsiderado aqui. Na
mesma matéria em que diz estar feliz sozinha, Sônia Braga afirma ter tido muitos
namorados na vida, e Danuza Leão, além de ter sido “tudo o que muita gente quer ser”, já
amou e foi amada, já deixou e foi deixada. Elas não precisam afirmar o quão fantástica foi
ou é sua vida sexual como o fazem as mulheres da Nova. Isso fica implícito.
4.5 A normalização das relações extraconjugais
Toda sociedade distingue e organiza, através de normas e sanções, uma sexualidade
conjugal e uma sexualidade pré e extraconjugal. Durante séculos, a infidelidade feminina
foi condenada e punida severamente, enquanto a masculina era aceita, e, em muitos casos,
desejável. Para Giddens, a progressiva igualdade feminina no âmbito sexual, proporcionada
pelo advento da sexualidade plástica
68
, desestabilizou esta verdade histórica. Giddens
comentando uma pesquisa feita por Rubin
69
, mostra que:
68
Sexualidade liberta da necessidade de reprodução, proporcionada pelo desenvolvimento de técnicas
anticoncepcionais e, mais recentemente, pelo desenvolvimento da engenharia genética.
69
RUBIN, Lílian. Erotic Wars. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1990. Apud GIDDENS, 1993, p.22.
136
As mulheres esperam tanto receber quanto proporcionar prazer sexual, e muitas
começam a considerar uma vida sexual compensadora como um requisito chave
para um casamento satisfatório. A proporção de mulheres casadas há mais de
cinco anos que têm encontros sexuais extraconjugais é, hoje em dia, virtualmente
a mesma que aquela dos homens. O padrão duplo ainda existe, mas as mulheres
não são mais tolerantes diante da perspectiva de que – enquanto os homens
necessitam de variedade e pode-se esperar que se envolvam em aventuras
extraconjugais – elas não se comportem do mesmo modo.
Embora na vida real a infidelidade feminina ainda seja um tabu para a maior parte
das pessoas, na TPM ela aparece como algo natural, que, mais cedo ou mais tarde, pode
acontecer. Numa frase em destaque, a revista reproduz a fala do idealizador da São Paulo
Fashion Week, Paulo Borges: “Não acredito que uma pessoa, principalmente o homem,
consiga ser fiel para o resto da vida. Uma coisa é a teoria, outra é o sangue.” (TPM, jul.,
p.20). Da mesma forma, na apresentação da entrevista de Paula Lavigne, a repórter afirma
que ela “[ . . . ] acredita que o desejo por outras pessoas faz parte de uma união longa –
cabe a ambas as partes encarar isso ou não.” (TPM, maio, p. 15). Frase que a própria Paula
explica num trecho da entrevista:
TPM. Você acredita em relacionamento aberto?
Paula. Não acredito que exista um casamento só. Existem fases. Você pode
passar por fases tendo outra coisa se aquilo for bom, sem fazer com que o
casamento acabe. Se eu tenho um casamento de 17 anos (...) tudo vai mudando.
Acho que se você tem momentos... Tem que estudar a situação. Não é porque
você vai ter uma coisa fora do casamento que ele vai acabar. Ou o contrário.
Conheço casal que nunca teve nada fora e tudo bem. O que é casamento aberto?
Não conheço nenhum casal que, depois de 20 anos juntos, não tenha traído. A
não ser o pai e a mãe do Caetano, talvez. Acredito no seguinte: que você tem que
lidar com as situações que aparecem. E te digo uma coisa, as situações aparecem.
Você está vivo, com o coração batendo, sente necessidade de viver coisas
diferentes. Acredito em casamento aberto para avaliar as situações novas da vida.
( TPM, maio, p.17-18).
137
O trecho reflete uma mudança histórica importante. Até pouco tempo atrás, os
homens brasileiros se achavam no direito de maltratar ou até mesmo matar a mulher infiel
para recuperar a honra perdida na traição. Hoje, de um modo geral, os maridos estão mais
tolerantes, e a infidelidade feminina não é mais sempre razão para uma separação. Em
Angeli sem crise (TPM, jan., p. 6-13), o cartunista Angeli revela achar que homens e
mulheres têm o direito de procurar “coisas” fora do casamento, conta que teve um caso
extraconjugal e que a esposa também: “A gente abriu o jogo e achei legal para me testar,
para ver que eu não fazia parte do grupo de pessoas possessivas que não compreende a
evolução do ser humano. Porque homem é um problema, mesmo quando não está mais
envolvido, fica tocado quando vê a mulher com um outro. Percebi que eu não era assim.”
De acordo com Giddens, (1993) um novo tipo de relacionamento entre homens e
mulheres vem substituindo as uniões que se baseiam no amor romântico: o “relacionamento
puro” teria por base o que o autor chamou de “amor confluente”. Enquanto o amor
romântico pressupunha uma identificação projetiva com uma “pessoa especial”, o amor
confluente se baseia muito mais na procura de um “relacionamento especial”, que se
mantém enquanto os parceiros obtenham da relação beneficio suficiente que justifique a sua
continuidade. Nesse caso, a exclusividade sexual só é fundamental se os parceiros assim a
considerarem.
Numa revista que retira a centralidade do sexo na vida da pessoa e não julga este o
laço mais importante a unir um casal, a exigência de fidelidade deixa de fazer sentido. A
frase de Marina Person: “Acho a palavra traição horrível e superestimada nas relações e na
sociedade. Tem um estigma. Um peso muito maior do que a coisa em si.” (TPM, jun., p.
138
21), que aparece em um intertítulo em letras maiores e vermelhas, retirada de um trecho da
entrevista em que a apresentadora admite que já traiu e foi traída, e a do Angeli “A gente
seria muito mais feliz sexualmente sem a palavra traição ou pecado” sintetizam a posição
da revista a esse respeito.
4.6 Cuidados com o corpo e a alma
Assumindo o compromisso de romper com os padrões de beleza que homogeneízam
e entristecem milhares de mulheres ao redor do mundo, na segunda metade de 2003 a TPM
empreendeu a campanha Imagem é tudo?, questionando a importância assumida pela
imagem do corpo na cultura contemporânea. Seguindo com a crítica às demais revistas
femininas, que exibem “modelos” de corpo perfeito a serem imitados pelas leitoras, a TPM
se propõe a dar visibilidade a pessoas “bonitas e normais – como você” (TPM, mar., p.18).
A leitora imaginada pela revista, portanto, não tem um corpo perfeito, como o das modelos
que aparecem nos demais magazines, mas é uma mulher bonita. No editorial de agosto de
2002, Lima afirma que elas ligam sim para o corpo
querem ser bonitas, desejadas, consomem, fazem compras, gostam de moda e
objetinhos simpáticos, de todos os tipos. O que as diferencia das demais, porém, é
que, além de nadarem bem na superfície, sem dificuldade ou culpa, adoram
mergulhar nas águas mais profundas da existência, estão preparadas para isso.
Mais ainda, sentem-se plenamente confortáveis no mundo mais denso e menos
ensolarado da imperfeição, do drama humano, do abstrato [. . .] São essas
mulheres, que, até um ano e pouco atrás, se desiludiam nas bancas, ao encontrar
apenas manuais sobre superfícies, irreais, vazias, burras, cada vez mais rasas. São
exatamente elas nossa inspiração para esta e todas as próximas mil edições da
Tpm. (TPM, ago. 2002, editorial).
Elas cuidam do corpo, portanto, sem se descuidar da alma. A frase “Não é a plástica
que melhora a auto-estima”, chamada de capa para a entrevista com Sônia Braga, é
completada pela atriz na matéria Mulher Zoológico (TPM, out., p.14-20): “Quando você vai
139
lá para falar com o Pitanguy, como foi o meu caso, é porque já resolveu dar uma mexida,
porque sua vida inteira já está movimentando para um outro lado.”As melhorias no corpo,
portanto, seriam reflexos de uma mudança na alma, sinais da “vontade forte” que, de
acordo com Costa (www.jfreirecosta.com, acesso em 27 de dezembro de 2004), caracteriza
as pessoas “normais” desta época, em contraposição aos estultos, incompetentes “para
exercer a vontade no domínio do corpo e da mente, seguindo os preceitos da qualidade de
vida”.
Senhoras da própria vontade, tendo conhecido a adversidade e já sofrido por serem
gordinhas, terem peitos caídos ou um nariz comprido, as fortes mulheres que servem de
modelo às leitoras do magazine são felizes por terem conseguido se reinventar. Assim é
quando Paula Lavigne (TPM, maio, p. 20) confessa: “Eu era feia. [ . . . ] Aí fui resolvendo.
Melhorei o nariz, que eu não gostava. Depois que amamentei coloquei silicone. Malhei para
ficar com o corpo legal”, ou quando a apresentadora Marina Person diz ter sofrido por
causa dos quilos a mais na adolescência, mas estar satisfeita por ter conseguido se
transformar numa mulher sexy, que inclusive já posou nua para uma revista masculina: “E
eu fiz tanto regime na minha vida [ . . . ] Com 16, 17 anos, eu nunca estava satisfeita com
meu corpo.” (TPM, jun., p 19).
Nesta época em que é no corpo que se encontra a identidade do indivíduo e em que
existem recursos para conformá-lo aos padrões socialmente desejáveis e aceitos, ter um
belo corpo é uma questão de força de vontade. Numa entrevista à revista Veja, Lipovetsky
(2002, p.15) afirma a esse respeito:
140
O corpo passou a ter outro valor na sociedade democrática e tecnológica, que
recusa a submissão ao destino. Na sociedade tradicional, a beleza era considerada
um dom. Se você não nascia belo, restava-lhe a resignação. Agora, num universo
individualista, o que dá grandeza ao homem é não se acomodar. Quem é gordo ou
narigudo pode fazer dieta, plástica e ficar bonito. Você pode lutar ou pagar para
ser belo.
A beleza, no entanto, é uma construção histórica. Tentando contrapor-se ao
conteúdo dos magazines femininos, que todos os meses reforçam o discurso que vincula a
beleza à magreza e à juventude
70
dando receitas para emagrecer ou “manter a forma”, bem
como dicas de cremes anti-rugas para a mulher permanecer sempre jovem, a TPM, dentro
da proposta da campanha Imagem é tudo? ( o selo da campanha aparece sempre que o tema
entra em pauta nas matérias), faz os seus entrevistados falarem sobre o assunto. Em Eterno
Retorno (TPM, jul., p.76-81), a repórter Milly Lacombe pergunta à Marina Lima:
Tpm: Existe um preconceito grande com mulher e pop star que envelhecem.
Você está nos dois grupos. Como é isso?
Marina Lima: “Eu tô gostando de envelhecer. Não voltaria no tempo. É mais
interessante hoje.[. . .] Quando eu erro, não dói tanto. Mas quando acerto, acerto
plenamente.[. . .] Nunca me considerei bonita. Percebi, desde cedo, o belo, o
interessante, o diferente – pude pinçar essas coisas e me tornei uma pessoa
interessante. Com o tempo, acho que fui ficando mais bonita. Isso vem apenas da
sabedoria, de saber aceitar seus defeitos e incorporá-los no meio da confusão
que é você mesma. Vejo a Fernanda Montenegro, que diz que nunca fez plástica,
e ela é tão interessante que quando olho para ela não tô preocupada com ruga.
Um enunciado que resiste à juventude como ideal aparece na valorização da
sabedoria que se ganha enquanto se perde o vigor da pele e com a idéia de que as pessoas
interessantes, que brilham pelo talento e intelecto, pelas qualidades da alma, podem
70
Para Lipovetsky (2003), a evolução na venda de produtos cosméticos é prova de que as normas em relação
à beleza são o antipeso e o antienvelhecimento. Ele mostra que os produtos preventivos foram multiplicados
por quatro na França ao longo dos anos 80. O Brasil, em 2002, ficou em segundo lugar no ranking
internacional de uso de botox, marca da toxina botulínica produzida pela multinacional Allergan, capaz de
reduzir rugas da testa, olhos e pescoço. De acordo com matéria publicada na Folha de São Paulo
(http://www1.folha.uol.com.br/folha/equilibrio/beleza/ult559u50.shtml) em 02/12/2002, o mercado de
botox movimentou mais de R$100 milhões em 2002.
141
prescindir das preocupações com as formas do corpo.
Mas se algumas pessoas possuem carisma e talento suficiente para brilhar pelo que
são, as que um dia foram símbolo sexual sofrem com o envelhecimento. Em À prova de
bala (TPM, nov., p. 14-20) Nina Lemos pergunta à Maitê Proença se é mais difícil
envelhecer para quem é símbolo sexual. E Maitê responde: “O mundo hoje tem essa
cobrança da juventude. Na TV, se você passa dos 40, já começa a fazer papel de mãe. Eu
fiz a mãe da Giovanna Antonelli! Eu acho que eles têm horror a gente velha. [...] Agora só
sirvo para fazer mãe.” A atriz, no entanto, diz não saber se vai fazer uma plástica para
novamente poder interpretar papéis sexy. Ao falar das intervenções no corpo, tão comuns
no meio artístico, ela afirma: “Externamente, fica lindo, mas internamente você envelheceu
tomando anestesia, se cortando, se ferindo, tomando analgésico. Qualquer cirurgia é um
trauma para o corpo.”
Neste tempo em que a beleza supera a fecundidade como característica distintiva do
feminino, o corpo “ideal” não deve ostentar as marcas da maternidade: peitos murchos e
caídos, barriga flácida e com estrias e, para um grande contingente de mulheres, a gordura
decorrente da gravidez devem ser apagados do corpo feminino. Os sinais que precisam ser
ressaltados são os que indiquem o potencial do corpo para o sexo. Enquanto Maitê ainda
reluta em fazer uma plástica, Sônia Braga, que ficou famosa ao interpretar papéis
sensuais
71
, resolveu operar os seios depois de ser criticada pela sua atuação como mãe de
Jennifer Lopez em Olhos de Anjo. Seios novos que lhe podem devolver o título de símbolo
71
Entre o fim dos anos 70 e início dos 80, a atriz foi símbolo sexual no Brasil. Sônia ficou famosa ao
interpretar mulheres sensuais nos filmes “A dama do lotação”, “Dona Flor e seus dois maridos”, “Gabriela”, a
novela, e depois o filme, e “O beijo da Mulher Aranha”.
142
sexual e que ela parece fazer questão de exibir na revista:
Fig. 5: Mulher Zoológico (TPM out., p. 14-15)
Ao comentar a experiência de Sônia Braga, o repórter afirma:
Aos 51, estava com ar de matrona por causa de alguns quilinhos em excesso. Para
tornar sua personagem – uma mulher que apanhava do marido – verossímil, usou
roupas largas e fez o cabelo negro ficar grisalho. Mas os esperados aplausos não
vieram. Ao contrário: acostumados a ver a brasileira no papel de femme fatale,
muitos americanos declararam que sua carreira estava em decadência. Em vez de
ficar deprimida, resolveu se reinventar: fez regime, malhou muito e procurou o
mestre da cirurgia plástica, Ivo Pitanguy, para dar uma rejuvenescida geral.
Engana-se, porém, quem acha que sua transformação é resultado apenas do medo
de envelhecer. Para a atriz, muito mais traumático que ver o seu rosto cheio de
rugas foi sentir o corpo perder a forma. (TPM, out., p.14)
143
“Como envelhecer é um fato da vida, as pessoas aceitam melhor. Quando você
engorda, elas ficam sem graça na sua frente
”, diz a atriz. Apesar de questionar a
importância da imagem do corpo na constituição da identidade, a revista que relativiza a
juventude como ideal não consegue romper com o imperativo da magreza. Além de, salvo
raras exceções, somente mulheres magras serem nela retratadas, na voz de alguns
entrevistados emerge o enunciado que sugere que o corpo normal é magro. Sônia diz que é
mais difícil engordar do que envelhecer, Danuza Leão afirma querer continuar com 57 Kg,
porque essa é uma das “obrigações que a gente tem na vida. [. . .] É obrigação minha que
meu filho não me veja arrasada, destruída, gorda, devastada pela vida [. . .]” (TPM, fev.,
p.12).
Para Lipovetsky (2000, p.133), nunca as mulheres combateram tanto tudo o que
parece flácido, gordo, mole. E, como “não basta não ser gordo, tendo o corpo de ser firme,
musculoso e tônico, livre de qualquer marca de relaxamento ou de moleza”, as
“interessantes” mulheres retratadas pela TPM são adeptas de esportes pouco convencionais:
gostam de atividades físicas ao ar livre, que as façam viajar para lugares distantes e
conhecer gente interessante. “Há uns cinco anos descobri uma das minhas grandes paixões
[. . .]: o snowboard. Descer uma montanha nevada gigante, a milhão, com uma pranchina
estilosa nos pés, é o máximo”, diz a editora convidada Jéssica Desilva nas suas duas
páginas do mês de setembro, onde também indica produtos de beleza necessários nas
gélidas e caras estações de esqui. Em letras maiores, o único intertítulo da matéria
Profissão Perigo (TPM, fev., 52-56), repetia a fala da apresentadora de programas
esportivos na TV Daniela Monteiro, que estava com medo de pular de bungee jump na
Nova Zelândia: “O instrutor, já perdendo a paciência, tentava me convencer de que bungee
144
era melhor do que sexo”. Na versão feminina da revista Trip, que tem no esporte um de
seus principais pilares, a prática esportiva pode dar sentido à vida.
“Se houver um sonho em andamento, você nunca envelhece”, é o intertítulo da
matéria A vida não pára (TPM, mar., p.32-33), que conta a história de Luzia de Freitas
Caracciolo, 88 anos, primeira alpinista mulher a chegar ao topo da montanha Dedo de
Deus, no Rio de Janeiro, em 1933. Depois de passar a vida praticando diferentes esportes,
no ano da entrevista Luzia dedicava-se à natação e esperava participar do campeonato
mundial de natação em Roma, que aconteceria em 2004, quando poderia competir na
categoria 90 anos. O repórter conta que a senhora que hoje mora numa casinha de difícil
acesso no alto de um morro no Rio de Janeiro, rodeada de plantas, fez do amor pela
natureza e pelo esporte a sua razão de viver. E, ao contrário de Nova, que sequer dá
visibilidade a mulheres mais velhas, a TPM tenta passar a idéia de que é possível ter uma
vida plena também na “terceira idade”. E a revista abre a matéria com uma foto de Dona
Luzia nadando, como outra revista não ousaria fazer:
Figura 6: A vida não pára (TPM, mar., p.32)
145
E porque têm espírito aventureiro, as ricas e corajosas mulheres que servem de
modelo às leitoras da TPM “largam tudo” para correr atrás dos sonhos de atleta. “Não
adianta ter um emprego bacana, se o que eu quero mesmo é estar na água treinando”, diz
em De pernas para o ar (TPM, dez., p.102, 103) a bicampeã nacional de wakeboard,
Mariana Martins, que deixou um emprego como designer gráfica para se dedicar ao
esporte. Em Fui (TPM, abr., p. 14-21), matéria que retrata a vida de três mulheres que
“largaram tudo para morar na praia”, Izabela Valezim conta que, tendo cresido em Ilhabela,
tentou fazer faculdade em São Paulo, não se acostumou e hoje dá aulas de kite-surfing na
praia paulista. Como em um romance de John Fante, autor que serve de inspiração a muitos
personagens que se mostram na TPM, a dica é correr atrás dos sonhos, de preferência, de
carro.
Fig 7: Anúncio Volkswagen (TPM dez., p. 2-3)
146
Os anúncios de automóveis são muito mais freqüentes na TPM do que na Nova. A
Wolkswagen comprou espaço em onze das doze edições de 2003, em dez delas, nas páginas
dois e três. O apelo ao consumidor, na maior parte das vezes, é feito através de uma
associação entre carro, esporte e aventura, indicando que o perfil da leitora idealizada pela
TPM é similar ao dos personagens que nela aparecem.
A relação com a indústria cosmética que não pára de crescer no Brasil é tão clara na
TPM quanto em Nova, mas como a mulher TPM não gosta de fórmulas prontas e é flexível,
aberta a novas experiências, a revista se permite anunciar e indicar cremes de grifes
famosas e sugerir que a leitora use também produtos caseiros. “Estou sempre
experimentando novidades e não pretendo criticar nenhuma das maravilhosas marcas que
existem por aí e que recheiam as prateleiras do meu banheiro. Mas receitas caseiras são
uma alternativa natural e barata para quem curte cuidar da pele e gosta de experimentar
novos creminhos” (TPM, fev., p.22), diz a editora convidada Juliana Loureiro.
Além de cremes, a leitora idealizada pela TPM gosta de maquiagem, esmalte,
roupas, sapatos e “objetinhos simpáticos de todos os tipos”, que lhe são apresentados na
seção Sacolão e nas colunas das editoras convidadas. Objetos, roupas e cosméticos ajudam
a compor o “seu” estilo, que deve ser apreciado pelos amigos, conhecidos e desconhecidos.
Os cosméticos, no entanto, não servem como “armas de sedução”, mas são sinônimo de
bem-estar. “Em plena era dos 'miraculosos' retinol e ceramidas, cada vez mais gente prefere
cosméticos que não prometem nada além de um pouco de prazer, glamour e simplicidade.”
147
Este é o lead da matéria Império dos Sentidos (TPM, jan.78-81), que fala da nova promessa
dos produtos de beleza:
Pode ser um sabonetinho hidratante à base de leite, como nos tempos da vovó,
um sal de banho afrodisíaco com minirrosas para relaxar na banheira, um óleo
feito com a melhor seleção da última colheita de olivas francesas... Sem nenhuma
promessa de rejuvenescimento ou de combate à celulite, os cosméticos dos
sonhos são um sucesso. A explicação é simples: como a qualidade de vida tornou-
se um valor inestimável atualmente, o consumidor busca produtos que aumentem
o bem-estar em todas as áreas, de comida a sabão em pó. Para o publicitário
Ricardo Guimarães, que participou da criação da linha Ekos da Natura, não se
trata de modismo, mas de evolução. [. . .] A mulher que consome o está lutando
contra o seu corpo. Ainda que queira perder os quilinhos ou eliminar algumas
rugas, o que ela quer quando compra um desses frascos é um cheiro gostoso na
pele ou muita espuma no banho – e isso lhe faz um bem danado. 'Quando você
está feliz, se sente mais bonita, e as pessoas também percebem você assim’,
explica Cristiana Arcangeli, que em 1986 criou a Phitoervas.
Os “especialistas” entrevistados nesta matéria são publicitários ou donos de
empresas bem-sucedidas de produtos de beleza. Apesar de retomar uma formulação das
outras revistas femininas ao afirmar que as mulheres querem perder quilinhos ou eliminar
rugas, o discurso publicitário incorpora a crítica ao corpo como referencial da identidade e
sugere que as mulheres já não usam os cosméticos para ficarem mais bonitas, mas o fazem
porque os cuidados com a beleza são distintivos do feminino e encerram em si um valor
ritual. Ao sentir-se feminina, cheirosa, tomando um banho de espuma com minirrosas para
relaxar, a mulher fica feliz, e assim, mais bonita. Não são as propriedades terapêuticas do
cosmético que vão fazer a mulher mais bonita, mas o simples fato de usá-lo. “Não se trata
apenas de vender tratamentos cosméticos, mas um conceito de estilo de vida”, diz a
representante brasileira da marca L'Occitane. No fim da matéria, uma página apresenta
produtos de beleza, que variam do sabonete Lux que custa R$ 0,80 aos sachês de verbena
para infusão L'Occitane, custando R$ 119,00.
148
Na nota Creme para a alma (TPM, abr., p.32), a editora convidada Juliana
Loureiro, que reconhece ser tão viciada em cremes a ponto de não saber se controlar, fala
da linha de produtos Garden Angel, que mistura aromaterapia e cromoterapia, para
“promover a cura de certos estados mentais e físicos”. Os cremes, óleos, produtos para o
cabelo, sabonetes, velas, fragâncias corporais e para o ambiente seriam preparados para
“tratar o corpo e o espírito.” No fim da matéria, a revista, sob o título “Va lá”, indica o
endereço da loja.
Os cuidados com a alma, portanto, passam pelo corpo e dizem respeito não a uma
maior compreensão do mundo, mas ao prazer de sentir um determinado cheiro ou cor, que
teria propriedades terapêuticas sobre a alma. Não é o discurso médico que a revista deixa
aflorar aqui, mas o publicitário, ancorado em um discurso que enfatiza os benefícios de
terapias alternativas – sempre vinculadas a um estilo de vida simples – no tratamento do
corpo e da alma. Tal discurso cresce no Brasil e vem se propagando também em outros
magazines femininos, como em Vida Simples, da Editora Abril.
Apesar de uma tendência à liberdade de escolha, a fuga individual de uma suposta
anormalidade prova que a necessidade de adequação a regras culturalmente impostas não
desapareceu neste mundo dito “pós-moderno”, do qual os personagens da TPM são
eloqüentes representantes. A ex-vj da MTV Sônia Francine, conhecida por não gostar de se
depilar, tendo, inclusive, dado um depoimento a esse respeito no segundo número da
149
TPM
72
, admite em Sem perder a ternura (TPM, dez., 24-30) fazer depilação de vez em
quando, e por causa do marido:
Coitado do Marcelo, o que custa dar uma depilada? Ele realmente não se importa
com isso, mas, quando você está conquistando alguém, não faz o maior esforço
para ficar mais bonita? Acho bom continuar fazendo depois que já conquistou. Às
vezes me depilo para ir à piscina porque ele não merece andar ao lado dessa perna
cabeluda.
Em alguns momentos, no entanto, a revista tenta relativizar a necessidade desses
rituais de beleza, como acontece na matéria A Primeira Vez que eu fiz... a unha! (TPM, set.,
badulaque), em que a colunista Milly Lacombe foi “escoltada” pela colega Nina Lemos até
uma manicure, depois de toda a redação ter ficado muda e perplexa ao saber que a colunista
nunca tinha feito as unhas. Numa página inteira, as duas repórteres falam de como foi esta
experiência. “Nunca me senti tão feminina! Parecia até que eu era uma mulher de cabelos
longos especializada em cosméticos”, diz Nina Lemos, que, ferrenha critica das vaidades
femininas, conduziu a amiga até a manicure. Já Milly Lacombe confessa que não vai dar
conta de ficar com a unha feita por mais de 20 minutos: “Afinal, pra que fazer a unha se já
nasci com ela pronta?”, brinca Milly, num movimento de resistência. Ao mesmo tempo em
que relativiza a necessidade de pintar as unhas, a matéria enfatiza a idéia de que isso é coisa
de mulher. A crítica precisa vir de uma repórter homossexual, porque mulher que é bem
mulher faz a unha.
O mundo da moda também está sempre em pauta na TPM. Além dos ensaios de
72
A matéria Pêlo Sim, Pêlo Não (jun. 2001, p.61-62) começa com a frase de Soninha: “Eu nasci com pelos e
vou continuar peluda.” No decorrer da matéria em que ela conta porque não se depila, afirma: “[. . .] o cara
que gostar de mim vai ter de gostar do jeito que eu sou. Eu nasci com pêlos, eles me acompanharam até aqui,
vão continuar comigo. Eu tenho outras coisas a oferecer que não uma perna escalpelada.”.
150
moda, que se diferenciam dos ensaios de outras revistas por contarem a história das pessoas
que posaram para as fotos – e que nem sempre são modelos –, a revista costuma dar
visibilidade aos personagens do mundo fashion brasileiro.
73
Ingrediente básico na
construção de si mesmo, a moda aparece na TPM como uma possibilidade para o indivíduo
constituir-se livremente: “Gosto de ter liberdade para ser individual, para poder quebrar o
padrão”, diz o “stylist” Felipe Veloso em Image Victms (TPM, ago. 82-85). Frase
corroborada pelo especialista Contardo Calligaris: “Ter liberdade para se vestir traz muitas
compensações. Não é falso a pessoa dizer que se sente diferente”. Alberto Renault, que
além de escritor, é diretor de teatro, óperas, TV e eventos de moda, concorda: “O que eu
acho legal nas pessoas que vivem no universo da moda é a capacidade de ser autoral. Esse é
um exercício de liberdade muito grande.”
O apelo aos rituais para justificar comportamentos também aparece nas matérias
que falam sobre moda. Criticando a tendência dos “modernos” considerarem careta vestir-
se de acordo com a ocasião em nome da autenticidade, Gloria Kalil, que escreve sobre
moda (www.chic.com.br), dá a dica às leitoras da TPM:
Ir a uma festa não é a mesma coisa que ir ao escritório ou à aula. Aproveite a
liberdade que temos hoje e seja de fato criativo e pessoal no jeito de se vestir. Dar
73
Várias matérias falam da vida de estilistas e modelos famosas brasileiras, como acontece em São Paulo
Fashion (TPM, jul. 16-23), que conta a história do idealizador da São Paulo Fashion Week, Paulo Borges, em
Funk de butique (TPM, ago.64-65), que fala do estilista Adriano Costa, em Fora da Moda (TPM, ago.42-44),
tratando da vida das arquitetas que viraram estilistas Paula Raia e Fernanda de Goye, ou como no ensaio
Invadindo o guarda-roupa deles (TPM, set. 54-62), com a modelo Ana Claudia Michels. Na entrevista que
acompanha este último, a repórter Alexandra Farah pergunta à Ana Claudia: “Ontem, durante a seção de
fotos, você disse três vezes que era virgem, mas insistiu em ficar com a camiseta da British Colony que tinha
estampada a frase “I lost my virginity in Rio” argumentando que ela tinha sido feita pra você. Afinal, você é
virgem?”. E a moça responde: “Imagina, você acreditou. [Risos] Eu namorei três anos. Também sou filha de
Deus.” A modelo que anos antes era conhecida por andar com uma Bíblia na bolsa e ficar chocada com a
liberalidade sexual do mundo da moda agora usa uma camiseta dizendo que já transou.
151
as costas aos rituais deixa a vida sem graça. Você esperou pela festa a semana
toda. Vista-se, enfeite-se e divirta-se. Um perfume, um salto alto, um vestido
decotado e colorido fazem milagres por você. Experimente! (TPM dezembro,
documento não paginado).
Assim como os cosméticos, as roupas não servem como “arma de sedução”, mas
funcionam como um “indicador” da personalidade, do estilo da pessoa. A revista, no
entanto, questiona essa constituição de si através do exterior. “Mas será que a gente não
poderia ser individual de outra forma, que não seja ligada à imagem?”, diz Renault,
afirmando que a sociedade hodierna é muito mais ligada à imagem do que à palavra.
Nessa campanha para retirar a importância da imagem na constituição da identidade
pessoal, a TPM, mais do que as outras revistas, dá visibilidade a pessoas comuns, que não
são modelos, atrizes ou famosas por algum motivo. Pessoas “normais” posaram para os
ensaios de moda das edições de março, maio, julho, agosto, setembro e dezembro de 2003.
Nas edições de março e maio, duas delas foram capa da revista. A “modelo” do mês de
março era uma cozinheira que participou do ensaio de moda intitulado Lugar de mulher é
na cozinha (TPM, mar.48-51), em que a revista fotografou e contou um pouco da vida de
chefs brasileiras; a mulher que está na capa da edição de maio é uma assistente de arte que
também posou para as fotos das páginas de moda, cuja proposta era transformar garotas que
trabalham em agências de publicidade em modelo por um dia. Esses homens e mulheres
retratadas pela revista não são beldades como as que aparecem em Nova, mas são pessoas
“bonitas e normais”, que geralmente não fogem do paradigma de beleza atual: são magras,
jovens e tem um rosto com linhas harmoniosas. Mais que isso: têm “estilo”. A professora
de culinária da livraria Millie Foglie, que aparece no ensaio de moda do mês de março, é
152
formada em Administração de Empresas e estava na França quando a irmã lhe contou que
queria abrir uma livraria de culinária. Com um vestido glamouroso, ela aparece lendo um
livro de receitas em inglês e apoiada numa pilha de outros livros em várias línguas.
Assim como ela, a maior parte das pessoas que aparecem nas edições de 2003 estão
de acordo com os padrões de beleza convencionais. Embora a revista se oponha à idéia do
corpo como capital, como acontece na matéria Contra a Maré (TPM, ago., p.78), que
aborda a dificuldade das três melhores surfistas brasileiras para conseguir patrocínio
“porque estão longe da imagem de belas mulheres que sempre esteve vinculada ao esporte”,
ela geralmente mantém as representações tradicionais sobre a beleza feminina. Se em
agosto a revista critica os periódicos especializados em surf que “estampam fotos de
garotas esculturais ao lado de ondas incríveis”, em outubro, no ensaio de moda Surf’s Up
(TPM, out. p.52-59), é justamente isso que ela faz:
Figura 8: Surf’s Up (TPM, out. p.55)
153
“Vaidade também cabe no quiver das boas surfistas”, que compram e usam os
biquinis das marcas que não patrocinam as três melhores surfistas por estas não terem os
corpos dentro dos padrões de beleza convencionais. Corpos estes que a revista não tem
coragem de apresentar num ensaio de moda.
A própria revista admite, no entanto, que as virtudes da alma são neste tempo muito
menos valorizadas do que as do corpo. Na matéria Imagem é tudo (TPM, jun., 48-52), que
inaugura a campanha de mesmo nome, a repórter Nina Lemos reflete sobre essa obrigação
da mulher moderna de ser bonita:
Vem da infância a imagem impecável da rainha má e linda que é capaz de matar
para não perder o posto de mais bela do reino. A lição de moral ficou registrada:
de nada adianta ser bonita por fora, se, por dentro, você não passa de uma maçã
podre. Fomos, desde então, induzidas a ser, além de bonitinhas por fora, também
moças de bom coração, como a ancestral Branca de Neve. Hoje, porém, a lógica
do conto de fadas soa obsoleta, já que a busca pela imagem perfeita é grande o
suficiente para fazer com que você ignore coisas boas
74
que estão na frente do seu
nariz por valorizar apenas o que pode ser avaliado por fora. [. . .] Em nome de
uma imagem ainda mais perfeita, como num videoclipe, é preciso, além de
cercar-se de elementos humanos que façam da sua vida uma fotografia dos
tempos modernos, um corpo perfeito.
O texto é uma crítica à proposta da revista, que espera que sua leitora seja bonita
por fora e por dentro, não uma moça de bom coração, como a ancestral Branca de Neve,
mas uma garota “descolada”, “interessante”, nem tão boazinha. Para isso, a revista
apresenta modelos de vida que devem ser imitados pelas leitoras, e que possam fazer das
suas vidas uma fotografia dos tempos modernos. Mesmo fazendo uma crítica à importância
74
A matéria sugere que supervalorizar a imagem torna a vida menos interessante. Muitas mulheres deixariam
de fazer coisas legais, “como enfiar o pé na jaca em nome de uma paixão” para não faltar à aula de ginástica
na manhã seguinte ou “deixar de conhecer alguém interessante” porque ele se veste mal. O problema de
supervalorizar a imagem, portanto, é pessoal: é a própria pessoa quem perde concentrando a atenção nos
cuidados com a própria imagem.
154
da imagem do corpo na contemporaneidade, a TPM reconhece que a forma física é um
caminho certo para o sucesso e realização pessoal. E vai além: mais do que “parecer”, a
mulher TPM precisa “ser” (cool, hypada,descolada), “fazer” (praticar esportes, ter um
trabalho legal), “ter” (objetinhos vários, roupas de estilistas famosos e um carro esporte) e
“conhecer” (cinema, música, literatura) para poder dissertar sobre os mais diversos
assuntos. O capital aqui não é somente o corpo, mas o conteúdo.
155
5. CONCLUSÃO
Procurei neste trabalho identificar as formas de vivenciar a sexualidade propostas às
leitoras imaginadas pelas revistas Nova e TPM, partindo da perspectiva foucaultiana de que
elas são sempre históricas, dependentes das dinâmicas entre saber e poder e ligadas à
constituição dos sujeitos pertencentes a um determinado contexto. Apesar da questão de
gênero estar implícita numa análise sobre revistas femininas, não são as diferenças culturais
de comportamentos entre homens e mulheres, nem as formas como as sociedades criam,
mantêm e reproduzem esses comportamentos que estão em jogo nesta pesquisa. A questão
central não era mostrar como as revistas colaboram para a construção de uma determinada
feminidade, o que demandaria empreender a pesquisa a partir da perspectiva de gênero,
mas jogar uma luz sobre o funcionamento do dispositivo da sexualidade na
contemporaneidade através da identificação das posições de sujeito esperadas das leitoras
imaginadas por duas revistas situadas em formações discursivas antagônicas. Procurei, para
tanto, identificar os enunciados que nos textos se repetiam, entrecruzavam e apoiavam-se
uns aos outros na construção de um determinado tipo de sexualidade e de determinadas
posições de sujeito que as mulheres supostamente deveriam assumir para ler os textos.
5.1 As formas normais de vivenciar a sexualidade
Diferentemente dos saberes sobre os cuidados com o corpo, os saberes sobre a
sexualidade disponibilizados à leitora imaginada por Nova nem sempre estão ancorados no
discurso científico. Em diferentes ocasiões, a revista que há 30 anos fala de sexo dispensa a
opinião de especialistas, considerando-se já como uma autoridade a respeito do assunto. Na
156
maior parte das matérias em que falam os especialistas, estes são apresentados como
autores de livros, geralmente de auto-ajuda, consultores de sites, sexólogos, terapeutas
sexuais, corporais ou de casais, o que supõe uma ligação com a Psicologia ou Medicina,
sem que, no entanto, isso seja explicitado.
75
Em muitas ocasiões, a profissão do especialista
vem acompanhada do título do livro que ele publicou, indicando que o critério para a
escolha daquele profissional em particular baseou-se na sua visibilidade social. Assim, se
em um primeiro momento as revistas femininas transformaram os especialistas em
consultores, que falavam da sexualidade a partir da disciplina científica à qual estavam
vinculados – o que não deixou de acontecer em Nova, que, para falar de sexo, apóia-se
principalmente nos saberes da Psicologia e Medicina – hoje parece ser a presença na esfera
pública que os autoriza a pronunciar um discurso verdadeiro sobre o sexo.
Na TPM, a presença de especialistas de qualquer área é quase nula, o que pode ser
explicado pela fórmula editorial escolhida pela revista, que privilegia entrevistas e perfis
em detrimento de matérias que discutam relacionamentos, amor ou sexo desvinculados da
vida de uma pessoa em particular. Como não pretende explicar o comportamento de
ninguém nem dar dicas de auto-ajuda para serem aplicadas em qualquer âmbito da vida, a
opinião dos especialistas se torna dispensável.
Neste tempo em que os indivíduos perderam as referências identitárias da tradição,
é a busca da felicidade que torna inteligíveis as condutas valorativas do sujeito. E, nesta
cultura hedonista e narcisista, ainda permeada pela ideologia do romantismo sentimental,
75
Fica, portanto, a dúvida sobre a posição de sujeito do especialista. Se em “Botão Mágico” ( NOVA, jul.,
Sexo Lacrado), o terapeuta corporal autor do livro Massagens Afrodisíacas – Do In: Técnicas para aumentar
o prazer fala dos meios para estimular os “botões mágicos”, na matéria “Aquecimento Central” (NOVA, abr.,
Sexo Lacrado) é a atriz Kim Cattrall, do seriado Sex and the City, que publicou o “ótimo livro” Satisfação –
A arte do orgasmo feminino, quem ensina a mulher a “subir uns dez degraus na escala do prazer” através da
estimulação do clitóris.
157
felicidade é sinônimo de obtenção de prazer (COSTA, 2004). Levando aos extremos o
discurso feminista que nos anos 70 defendia o direito da mulher ao prazer sexual e
associando-o aos ideais do amor romântico, Nova vincula o sexo ao amor e transforma o
relacionamento afetivo e sexual numa condição sine qua non para a tão almejada felicidade.
Enquanto Nova associa o sexo ao prazer supremo, a TPM relativiza a sua
importância: o sexo é só mais um aspecto da vida, não necessariamente o principal. A
leitora idealizada por ela pode obter muitas alegrias de um encontro amoroso e sexual, mas
não existe nada de compulsório nisso. Em duas edições de 2003, a revista sequer fala no
assunto, e nas demais, fala pouco, o que denota uma ruptura em relação às revistas aqui
chamadas de tradicionais, que têm no sexo um de seus principais pilares.
Ao retirar a centralidade do sexo na construção das identidades, a TPM torna
flexíveis alguns padrões de comportamento existentes no corpo social e que se
materializam nas páginas de Nova. Se a leitora imaginada por Nova quer, antes de tudo,
viver um relacionamento amoroso, que confira sentido à sua existência
76
, e o sexo aparece
na revista como o principal vínculo entre um homem e uma mulher, a infidelidade se
transforma em tabu: “Fora a traição, que atitude dela você não perdoaria?”, a pergunta da
seção Nova Pergunta, Eles respondem da edição de março resume a postura da revista em
relação à infidelidade, trazendo à tona o discurso conservador que durante séculos permitiu
que homens matassem as mulheres “traidoras” em nome da honra. Não há mais, no entanto,
condescendência feminina em relação à infidelidade masculina: em Nova, ela é tão
76
Nesta época de hedonismo e individualismo, considera-se aqui que o amor resistiu não somente por ter se
adaptado às novas exigências de autonomia feminina, mas porque pode enriquecer as vidas subjetivas,
lastreando-as de uma dimensão ideal de sentido e permitindo, como diz Lipovetsky, “escapar ao deserto de si
entregue apenas a si” (LIPOVETSKY, 2000, p.50).
158
condenável quanto a feminina, e a revista sugere que as mulheres não a aceitem de forma
alguma. A arbitrariedade histórica, cultural e psicológica do vínculo entre sexo e amor
(COSTA, 1999) não é reconhecida por Nova.
A leitora, no entanto, não corre mais o risco de ser morta por “trair” o parceiro:
agora é o fantasma da solidão que a assombra. Em uma das poucas vezes em que a revista
falou na infidelidade feminina, a revista reproduzia o depoimento de uma leitora que teve
um caso com outra mulher e acabou sem o marido e sem a amante, indicando que quem
romper com os padrões de comportamento considerados normais, mais cedo ou mais tarde,
paga por isso. É sintomático o fato de tanto a infidelidade quanto a homossexualidade
femininas, temas raramente abordados em Nova, aparecerem juntos na matéria, como que
justificando a conduta “imoral” da leitora: se ela é capaz de ser infiel, é capaz também de
amar uma pessoa do mesmo sexo.
Enquanto em Nova trair o namorado, marido ou “gato especial” pode deixar a
mulher sozinha, na TPM, onde o relacionamento entre homens e mulheres não se baseia
somente no sexo, admite-se que escolher um parceiro para a vida não significa deixar de
sentir desejo por outras pessoas. Em diferentes momentos, a revista sugere que, mesmo
com um relacionamento estável, a leitora pode sentir atração por outros homens e ter com
eles relações sexuais. “Não é porque você vai ter uma coisa fora do casamento que ele vai
acabar”, diz Paula Lavigne, indicando que os relacionamentos na TPM conformam-se ao
que Giddens chamou de relacionamento puro, que se basearia no “amor confluente”,
sentimento que teria substituído o amor romântico na organização da vida pessoal. Neste
tipo de relacionamento, os parceiros permanecem juntos enquanto estiverem de acordo
159
sobre a validade da união. Diferentemente do que acontece nos vínculos baseados no amor
romântico, nesse tipo de relação a exclusividade sexual só é fundamental se os parceiros
assim o definirem.
E a TPM imagina que os seus sofisticados leitores encaram com naturalidade tanto
as histórias de amor e sexo extraconjugais quanto as homossexuais, em um reflexo
invertido do discurso da Nova. De acordo Freitas (2000), a revista não somente nega
visibilidade às mulheres homossexuais como desencoraja tal opção sexual, visto que, nas
escassas vezes em que trata do tema, mostra apenas mulheres que preferem não divulgar
seus nomes. Enquanto na Nova a homossexualidade é retratada sob o prisma da decepção
das mulheres em relação aos homossexuais bonitos ou associada à infidelidade, a TPM a
naturaliza. Nesse sentido, a coluna de Milly Lacombe é exemplar: ao refletir sobre a sua
experiência homossexual, misturando-a a histórias da infância e situações cotidianas, a
colunista trivializa o modo de vida gay, permitindo que muitas leitoras que até então não se
viam representadas nas páginas de revistas femininas reconheçam-se em suas palavras. A
afirmação da homossexualidade na TPM possui também uma conotação política e
representa uma forma de resistência aos imperativos sociais que colocam as mulheres em
rígidos esquemas de disciplina do corpo. Retomando a recorrente analogia entre sexo e
culinária, na coluna de abril a jornalista descreve como é bom comer chocolate quando a
norma é comer brócolis, fazendo um elogio à homossexualidade ao mesmo tempo em que
critica a necessidade das mulheres controlarem a sua fome de sexo, para não ficarem mal
faladas, e de comida, para não ficarem gordas, símbolo primeiro da estultícia nos dias de
hoje.
160
Há que se dizer também que o desejo de diferenciar-se das massas é constitutivo do
discurso da TPM. A leitora imaginada por ela é única, tem personalidade e bom gosto
definidos pelo seu padrão de consumo e não gosta de prazeres fáceis e vulgares. O amor
homossexual, portanto, aparece como uma alternativa ao amor “banal” entre um homem e
uma mulher e, como diz Milly Lacombe, pode acontecer “com uma intensidade e poesia
que, talvez, os heterossexuais desconheçam.” Talvez. A palavra livra a jornalista de fazer
apologia à homossexualidade. O tom, contudo, é de exaltação.
Além das diferenças em relação à homossexualidade e à infidelidade, a TPM, que
parece definir-se mais pelo que não propõe do que pelo que efetivamente apresenta, recusa-
se a entrevistar pessoas só por causa de seus envolvimentos amorosos, numa aberta crítica à
fórmula das revistas especializadas na vida de celebridades, mais especialmente da revista
Caras, e a dar dicas homogeneizantes para melhorar a qualidade dos prazeres, motivo pelo
qual ridiculariza a Nova. Como a leitora imaginada pela TPM é uma moça esperta, não
precisa de ajuda para gozar ou agarrar e manter seu homem, o que ela sabe muito bem fazer
sozinha. A revista que pouco fala de sexo, quando o faz, o faz na primeira pessoa. E as
vozes que falam na TPM gostam sim de sexo, mas sabem que existem outras coisas
importantes e que podem ser tão prazerosas quanto, como viajar pela Amazônia levando
livros a crianças carentes, pular de bung jump ou ir ao cinema. A leitora imaginada pela
TPM, portanto, não restringe sua vida ao sexo, nem acredita que o relacionamento amoroso
seja uma condição para a felicidade, como aconteceria com a leitora de Nova.
161
“Dá pra escrever sem falar de sexo”, pergunta a TPM a três escritoras gaúchas que
criaram uma história sobre sexo com o melhor amigo para a edição de fevereiro. Clarah
Averbuck, que em 2003 aparece duas vezes na TPM e em 2005 torna-se uma de suas
colunistas, responde que dá até pra escrever sobre uma jaca, acrescentando, no entanto, que
não se interessa por frutas.
77
As outras duas reconhecem não ser possível, o que indica que
também na TPM o sexo aparece como vetor de sentido no imaginário feminino.
Em Nova, este aspecto radicaliza-se: a vida só parece fazer sentido se a mulher tiver
um relacionamento amoroso, que é também sexual
. A revista, dessa forma, aprisiona a
subjetividade feminina numa identidade romântico-burguesa que hiperestima a sexualidade
e restringe os ideais de felicidade ao êxtase amoroso e sexual. A apropriação do discurso
feminista dos anos 70, que reivindicava o direito das mulheres ao prazer, retira, no entanto,
o peso dos oito séculos de amor-paixão que criaram no Ocidente uma cultura do sofrimento
ligado ao relacionamento amoroso. Nesta época em que todos querem ser felizes, não há
tempo para masoquismo e lamúrias de amor: a leitora imaginada por Nova, ao menor
indício de sofrimento, sacode a poeira, faz um regime, compra uma roupa sexy e uns
creminhos, junta-se com as amigas solteiras e vai em busca de uma outra história que possa
trazer beleza à sua existência.
A revista, portanto, reforça o senso comum de que conquistar e manter um homem é
o maior objetivo da vida de uma mulher. E ela faz crer que, para que isso seja possível, a
77
Em 1999, dois anos antes da TPM ser lançada, a resposta de Clarah às críticas que alguém fizera aos textos
sobre relacionamentos amorosos que ela publicara no site www.não-til.com.br deixa entrever no corpo social
a dicotomia entre a Nova e TPM. Naquela ocasião Clarah se defendia: “Eu não pretendia soar como uma
jovem batalhadora e independente que lê nova cosmopolitan e acha que os homens são todos uns canalhas
sexistas” (http://www.nao-til.com.br/cartas/cartas08.htm#195).
162
leitora precisa ser, em primeiro lugar, bonita, mas também inteligente, interessante e
determinada, além de se mostrar tão insaciável como as mulheres que aparecem nas revistas
masculinas.
78
Na voz de diferentes locutores, aparece o enunciado sugerindo que o homem
não pode, nem por um segundo, imaginar que a mulher não sinta desejo por ele, o que o
afugentaria. Também em diferentes vozes aparece a idéia de que as mulheres bonitas
possuem maior potencial para a conquista e manutenção de um parceiro. Como a beleza
não é um dom concedido a todas, nesta época em que é possível conformar o corpo aos
imperativos sociais, a revista apresenta cosméticos e roupas como “armas de sedução”,
capazes de transformar a leitora numa mulher “poderosa”, bonita e sexy. Ao contrário das
estultas, incompetentes para exercer a vontade no domínio do corpo, as mulheres que forem
capazes de “governar” a si mesmas e tiverem tempo e dinheiro para comprar as “armas de
sedução” ou pagar pelas técnicas que lhes proporcionem um “corpo ideal” e souberem
manipular a própria sexualidade são recompensadas com um namorado de dar inveja às
amigas. Estes, muitas vezes, aparecem mais como um acessório que vai valorizar a mulher
do que como um companheiro.
Como bem disse o escritor francês Michel Houellebecq (2002, p.84): “A
sexualidade é um sistema de hierarquia social”. Se a sexualidade dá status, precisa ser
merecida. Assim como acontece com o corpo e o namorado, uma vida sexual ativa também
pode ser utilizada como capital no relacionamento com as amigas. A amizade entre
mulheres aparece imediatamente ligada à relação destas com os homens: elas ficam mais
próximas quando estão solteiras e precisam de companhia para a “balada”; quando passam
78
Mira (2001) fala que as mulheres são apresentadas nas revistas masculinas como tendo desejos insaciáveis,
numa representação da fêmea desejada pela maioria dos homens.
163
a namorar, as amigas que estiveram juntas na fase de conquista do “gato” se transformam
em confidentes. As que não são as confidentes, são as concorrentes. Em muitos momentos
a revista faz crer que existem inúmeras mulheres circulando por aí prontas para roubar o
namorado que a leitora imaginada tanto se esforçou para conseguir.
A sexualidade ganha nas páginas de Nova o status de “objeto”, de fetiche, de bem
de consumo, com a função ritual de marcar a posição do indivíduo no grupo através de um
sofisticado esquema de vigilância baseado na confidência às amigas. A revista apropria-se
do discurso feminista para sugerir que as mulheres devem usufruir os direitos conquistados
e manter uma vida sexual ativa, apresentada como a chave para a felicidade. O discurso
conservador vem para delimitar os prazeres sexuais no relacionamento heterossexual e
monogâmico; o científico para enquadrar a falta de desejo como uma patologia associada à
depressão, e que, portanto, precisa ser tratada nesta época em que todos devem ser felizes; e
o publicitário aparece para deixar claro que corpo é necessário para a obtenção dessa vida
sexual que pode levar a mulher ao jardim das delícias. Todos os discursos convergem para
a sugestão de que a pessoa normal, sadia, de bem com a vida tem uma vida sexual ativa. O
discurso religioso, que reduz o sexo à reprodução, nem por um momento aparece nos textos
de Nova, assim como também não está presente o discurso feminista contemporâneo, que
reivindica uma nova política para o corpo feminino, docilizado nesta cultura que lhe impõe
rigorosas disciplinas.
Para Foucault, enquanto o dispositivo de aliança teria uma ligação privilegiada com
o direito, tendo a reprodução como um de seus principais momentos, o de sexualidade “tem
como razão de ser não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos
164
corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez
mais global”.(FOUCAULT, 1988, p.101). E, para o autor, é o corpo que produz e consome
a principal articulação entre o dispositivo da sexualidade e a economia. Em uma época em
que o desemprego cresce, em vez de carecer de mão-de-obra como aconteceu no século
XVIII, a Economia precisa de público consumidor. De acordo com dados da Associação
Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), em 2000,
o faturamento da indústria de beleza no Brasil foi de R$ 7,5 bilhões, tendo este número
subido para R$ 12,9 bilhões em 2004. O setor vem crescendo vertiginosamente, sempre
acima da economia geral do País, e apresentando crescimento mesmo nas épocas de crise
da economia. Construindo para as mulheres uma identidade de gênero centrada em si
mesma, em que a beleza é fundamental para a conquista sexual, que pode levar a mulher ao
maior dos prazeres e à tão sonhada felicidade, Nova sugere que as mulheres mantenham-se
centradas em si mesmas e não só gastem muito dinheiro em produtos, cirurgias e
tratamentos capazes de fazê-las mais belas, mas também muito tempo.
Se em Nova fica evidente a relação com a publicidade e a indústria de beleza através
do esquema sexo como maior dos prazeres e beleza como fundamental para conseguir sexo,
na TPM, onde a sexualidade perde centralidade, a situação não é tão óbvia. A ambigüidade
característica da revista reflete-se também na forma como ela aborda o tema da beleza. Ao
mesmo tempo em que critica a idéia do corpo como referente central da identidade através
da campanha Imagem é Tudo?, a TPM raramente dá visibilidade a homens e mulheres que
não se encaixem nesses padrões. Quando o faz, como acontece na matéria que trata das
dificuldades para as surfistas que não são saradas e gostosas conseguirem patrocínio,
mesmo sendo as melhores no ranking nacional, um mês depois publica um ensaio de moda
165
sobre biquíni somente com as meninas que ganham patrocínio, bonitas e “saradas” , como
as que aparecem nos anúncios publicitários, que ditam os modelos a serem seguidos nesta
época.
A leitora imaginada pela TPM é uma mulher bonita, que se preocupa sim com a
aparência, mas não com o objetivo explícito de conquistar um homem. A voz que justifica
o uso de cosméticos e roupas de grife é a mesma que, numa resistência à tendência
ambígua, múltipla e fragmentada que retirou a importância da tradição na organização da
vida social neste mundo dito pós-moderno – tão bem representado pela TPM –, clama por
algumas verdades. E é o discurso publicitário que fala mais alto na revista, apresentando os
cuidados com o corpo como parte de um ritual de bem-estar, que, como todo ritual, tem a
função prática de ordenar as vidas subjetivas. A voz da publicidade
79
diz que as mulheres
TPM não usam os cosméticos para corrigir as imperfeições do corpo, como o fazem as
mulheres Nova, mas ora usando um “sabonetinho hidratante à base de leite, como nos
tempos da vovó”, ora relaxando na banheira com um “sal de banho afrodisíaco com
minirrosas” ou com um “óleo feito com a melhor seleção da última colheita de olivas
francesas”, elas afirmam o seu “estilo” e personalidade como diferente do das massas.
Estas, sequer podem comer olivas francesas, que dirá tomar banho com o óleo extraído
delas. Afirmando que os produtos de beleza não são somente cosméticos, mas um conceito
de “estilo de vida”, o discurso publicitário faz com que o “estilo” – e as mulheres TPM
querem ter “estilo” – dependa das escolhas de consumo que a pessoa faz. É assim que os
cuidados com o corpo, que em todas as classes são distintivos do feminino, servem também
79
Embora a revista publique mensalmente no expediente a frase “Nós vendemos espaço, mas não vendemos
opiniões”, a revista mantém uma boa relação com o mercado publicitário, tendo, inclusive transformado
garotas que trabalham em agências de publicidade em modelo por um dia no ensaio de moda de abril, além de
ter usado os anunciantes como fonte da matéria Império dos Sentidos (TPM, jan. 2003, p.78-81).
166
para diferenciar as mulheres umas das outras. Ser diferente, aliás, é uma das maiores
aspirações da leitora imaginada pela TPM, que além de se banhar com óleo de olivas
francesas, viaja para lugares exóticos – como nos melhores tempos da “Geração Beatnik”,
que serve de inspiração aos personagens da revista –, pratica esportes radicais e usa roupas
de famosos estilistas brasileiros. É no vestir que ela encontra a possibilidade de ser autoral,
fugir ao banal e constituir-se como diversa.
A liberdade, portanto, aparece na TPM vinculada à capacidade do indivíduo criar
para si um estilo próprio, longe dos padrões que homogeneízam as pessoas. Nesse sentido,
a revista que faz uma crítica veemente à idéia do corpo como o referente central da
identidade cria um espaço de liberdade para o sujeito: os homens podem ser muitas outras
coisas para além do corpo e do sexo. No entanto, ao vincular “estilo” e padrões de
consumo, a TPM engendra novos imperativos aos quais o sujeito deve adequar-se para ser
bem-sucedido. Além disso, ao dar, na maior parte do tempo, somente visibilidade às
pessoas que se encaixam nos padrões de beleza contemporâneos, ela os legitima.
Nem o corpo, nem a forma de vivenciar a sexualidade, no entanto, definem a
identidade da mulher imaginada pela TPM, que é o resultado das escolhas que faz: das
roupas e produtos que usa, dos esportes que pratica, dos lugares que conhece e freqüenta,
dos amigos que cultiva, dos autores que lê e da sua profissão. Todos esses aspectos
contribuem para a construção do “eu” que não se quer igual aos outros, mas sim aceito e
reconhecido por eles. Apesar de se contrapor aos processos de totalização e
individualização levados à cabo pelas outras revistas, a TPM não chega a aprofundar a
reflexão sobre as conseqüências disso para as subjetividades contemporâneas e, salvo raras
exceções, ao propor um estilo de vida só acessível a uma classe social privilegiada, torna
167
ainda maiores as diferenças. Em relação à sexualidade, porém, ela surpreende: o sexo é
importante, mas não vital ou compulsório. A TPM consegue, assim, romper com o moderno
mito da sexualidade, que coloca o sexo no princípio e fim de todas as coisas, transforma-o
em bem de consumo e gera hierarquias entre as pessoas com potencial sexual e as
despossuídas de sexo. Isso ela deixa para a Nova.
168
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