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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
PARADOXOS DO HOMEM:
UM ESTUDO SOBRE A CONDIÇÃO HUMANA EM PASCAL
JUÇARA DOS SANTOS NASCIMENTO
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal de São Carlos,
como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em
Filosofia, área de concentração em
História da Filosofia, sob orientação do
Prof. Dr. Bento Prado Neto.
SÃO CARLOS
2006
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
N244ph
Nascimento, Juçara dos Santos.
Paradoxos do homem: um estudo sobre a condição
humana em Pascal / Juçara dos Santos Nascimento. -- São
Carlos : UFSCar, 2006.
111 p.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2006.
1. Antropologia filosófica. 2. Ontologia. I. Título.
CDD: 128 (20
a
)
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AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Bento Prado Neto que acompanhou com infinita
paciência e inestimável contribuição minha tentativa de interpretação
da filosofia de Pascal.
Aos amigos Paulo César Rodrigues e Merilin Rose Soares,
espíritos de finesse que me serviram de estímulo durante todos esses
anos de formação.
À minha família pelo apoio sempre.
À Banca, responsável pela qualificação da tese, pelo
aconselhamento.
À secretaria da pós-graduação Suely Aparecida P. Vall pela
dedicação e carinho.
Ao Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da
Universidade Federal de São Carlos, pelo apoio e incentivo.
Dedico esse trabalho a Dagmar Manieri, sem o qual não apenas
este projeto, mas tantos outros, estariam à deriva, sem porto.
RESUMO
O objetivo do nosso trabalho é analisar a concepção de homem
presente na filosofia de Blaise Pascal. Com o tema de homem
pretendemos investigar a idéia de uma individualidade que se
apresenta como ser humano consciente que reconhece a sua própria
identidade.
Para tanto, nossa análise será de temática, sobretudo,
psicológica e antropológica, apesar do enfoque epistemológico do
primeiro capítulo. Partindo da desproporção entre o homem e a
pesquisa da Natureza, acreditamos obter uma primeira orientação
para a busca do nosso objetivo central: alcançar uma compreensão da
verdade da condição humana nas Pensées. Em Pascal os limites do
conhecimento racional são colocados pela consideração da própria
finitude humana: não é possível uma apreensão racional da essência
do homem.
A análise de outras dimensões que assume o conhecimento
humano em Pascal e dos paradoxos insuperáveis que perfazem o eu
na sua dimensão empírica nos darão a chave para a compreensão da
localização da dimensão de verdade desse conceito.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................1
I.
DESPROPORÇÃO ENTRE HOMEM E NATUREZA .......................4
II.
DIMENSÕES DO CONHECIMENTO EM PASCAL ....................... 12
III.
PARADOXOS DA CONDIÇÃO HUMANA .................................... 25
IV.
CONSTITUIÇÃO DO EU: O EU NO MUNDO .............................. 37
V.
GRANDEZA E MISÉRIA DO HOMEM .......................................... 51
VI.
A GRAÇA ..................................................................................... 69
CONCLUSÃO .................................................................................101
BIBLIOGRAFIA ............................................................................. 108
1
INTRODUÇÃO
As Pensées de Pascal permaneceram por longo período
presas ao reducionismo das interpretações religiosas de sua
filosofia. Somente em 1959, com a publicação do livro O Dieu
Caché, Lucien Goldmann marca uma virada na interpretação
pascaliana e faz notar no pensamento do filósofo uma antropologia
e ontologia que superam em muito o seu projeto apologético. Ao
considerar as transformações que marcaram o século XVII,
Goldmann apontou o deslocamento de várias perspectivas, sendo
uma delas a da substituição do universo ordenado pela do espaço
indefinido e sem limites (1959, p.41). É no pavor da separação entre
homem e Deus que, no pensamento de Pascal, se faz sentir o
impacto dessa mudança de perspectiva. Essa ruptura entre as
realidades físicas e cosmológicas e as realidades humanas
caracteriza, segundo Goldmann e Lukács, a visão do homem
trágico que, de acordo com o último autor:
“... espera das lutas adversas um julgamento de Deus, uma
sentença sobre a última verdade. Mas o mundo em volta dele segue
seu próprio caminho, indiferente às questões e às respostas. Todas
as coisas emudeceram e os combates se distribuem arbitrariamente
as vitórias e as derrotas. Nunca mais ressoarão, na marcha dos
2
destinos, as palavras claras do julgamento de Deus, era sua voz
que despertava o conjunto para a vida, agora ele deve viver só,
para sempre. A voz do juiz calou-se para sempre. Isto porque o
homem será vencido – destinado a sofrer – na vitória mais ainda do
que na derrota”
1
O nosso trabalho tem por objetivo alcançar uma compreensão
do ser do homem em Pascal. Partindo da desproporção entre o
homem e a pesquisa da Natureza (desproporção esta que atesta no
homem o desconhecimento da relação entre parte e todo), Pascal
marca a tragicidade humana. Ao levantar a problemática do Infinito
Pascal convoca o homem a tomar consciência de suas limitações,
única condição para que ele possa se abrir às verdades que
ultrapassam os limites da compreensão racional, ou melhor, para
que ele possa se abrir à sua própria verdade. A partir da
apresentação das dimensões que assume o conhecimento humano
no pensamento de Pascal, acreditamos obter uma primeira
orientação para a busca do nosso objetivo central: alcançar uma
compreensão da verdade da condição humana nas Pensées.
Ao buscar uma caracterização da verdade do homem em
Pascal, cabe esclarecer que pretendemos com o tema de “homem”
expressar a idéia de uma individualidade que se apresenta como
1
(LUKÁCS apud GOLDMANN, 1959, P.45)
3
ser humano consciente que reconhece a sua própria identidade.
Para tanto, nossa análise será de temática sobretudo psicológica e
antropológica, apesar do enfoque epistemológico do primeiro
capítulo. A análise dos paradoxos insuperáveis que perfazem o eu
na sua dimensão empírica nos darão a chave para a compreensão
da localização da dimensão de verdade desse conceito.
Para o presente trabalho, seguimos a ordenação dos
Pensamentos de Pascal feita por Brunschvicg. Quando citamos os
fragmentos dos Pensamentos, no final da citação, oferecemos o
número correspondente da ordenação precedido de fr
.
4
I- Desproporção entre homem e Natureza
Ao convidar o leitor a refletir sobre a relação entre o homem e
o Universo, Pascal desenha o caráter insuficiente da existência
humana, na medida em que através dessa relação a razão se
depara com aquilo que a ultrapassa infinitamente. No fragmento 72
das Pensées, Pascal localiza o homem perante a Natureza. O que
se abre a partir dessa relação é o espetáculo do Infinito e, como
aponta o filósofo, “mais rapidamente (a imaginação) se cansará de
conceber que a natureza de revelar” a magnitude desse espetáculo.
No desenvolvimento do fragmento, o filósofo convoca o homem a
considerar-se a si mesmo em relação ao universo: “que se encare
como um ser extraviado neste canto afastado da natureza, e que,
da pequena cela onde se acha preso, isto é, do universo, aprenda a
avaliar em seu valor exato a terra, os reinos, as cidades e ele
próprio” (fr.72).
O fragmento em questão, aberto pela temática da legitimidade
da verdade em ciência natural, ao relacionar a condição humana
com o Infinito da Natureza, apresenta uma concepção de homem
que resulta da constatação da finitude da razão perante um
universo infinito. Tal concepção decorre de razões postas por
5
interrogações de natureza filosófica e implica uma série de
conseqüências de mesma natureza, sendo uma das principais delas
a crítica à metafísica em matéria de conhecimento científico.
O homem encontra-se num estado de infinita desproporção
em relação às coisas do mundo físico. Essa desproporção entre
homem e Universo indica tanto os próprios limites internos da
capacidade racional, como aponta para a possibilidade do homem
dentro dos seus limites conhecer uma infinidade de coisas. De fato,
os limites do conhecimento não impossibilitam o progresso da
ciência, como nos diz Pascal:
“(...) todas as ciências são infinitas na amplitude de suas
investigações, pois quem duvidará, por exemplo, de que a
geometria tenha uma infinidade de infinidades de teoremas a
serem expostos?” (fr.72)
O homem surge na relação com o Universo como um ser
entre dois abismos, “o infinitamente grande” e o “infinitamente
pequeno” da Natureza. A desproporção é a marca dessa relação na
medida em que o caráter infinito da Natureza impossibilita qualquer
relação proporcional. A desproporção entre a finitude humana e o
infinito da Natureza atesta, desse modo, a impossibilidade de
acesso ao plano essencial das coisas físicas.
6
Desse modo, a ciência natural é questionada no pensamento
de Pascal a partir da própria consideração da desproporção física
que se apresenta entre as coisas. E o mesmo tipo de abismo que
encontramos no infinitamente grande da Natureza, surge também
no seu infinitamente pequeno:
“(...) que dividindo ainda estas ultimas coisas, ele
esgote suas forças nestas concepções, e que o
último objeto onde ele possa chegar seja agora
aquele de nosso discurso”. (fr 72)
A partir da consideração da insuficiência cosmológica e
epistemológica do homem Pascal convida seus leitores ao combate
à “presunção” no campo do conhecimento científico. Presunção
que, como diz o filósofo, conduziu tantos homens a ambicionarem
alcançar o princípio das coisas, confiando terem alguma proporção
com estas mesmas.
Tendo em vista que o espetáculo do duplo infinito impossibilita
ao homem o alcance do conhecimento acerca da essencialidade da
matéria, cabe a ele, ao constatar a sua falta de proporção com as
coisas -situado entre os “dois abismos do infinito e do nada” -
preferir “contemplá-las em silêncio a investigá-las com presunção”.
(fr.72) Não podemos conhecer absolutamente as coisas devido à
nossa própria desproporção em relação a elas, devemos, portanto,
7
combater a presunção, que produz tanto equívoco nos resultados a
que chegam os conhecimentos de tais ciências. Temos, desse
modo, no pensamento do filósofo, um direcionamento
epistemológico que ressalta a importância ética da consideração
dos limites do conhecimento humano: a consciência da finitude
como desdobramento ético da epistemologia, como sugere uma
passagem do fragmento em questão: “e que, da pequena cela onde
se acha preso, isto é, do universo, aprenda a avaliar em seu valor
exato a terra, os reinos, as cidades e ele próprio”. O duplo infinito da
natureza sugere os limites do conhecimento racional, o homem é
incapaz de apreender os princípios últimos do conhecimento
verdadeiro. E a positividade da constatação desses limites em
Pascal está em que o âmbito em que a razão opera legitimamente
segundo procedimentos de natureza dedutivo-demonstrativa ou
experimental fica demarcado.
A propriedade do duplo infinito também se exprime na
concepção pascaliana de homem como “caniço pensante”:
“O homem não passa de um caniço, o mais fraco da
natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o
universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota
de água, basta para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o
esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o
8
mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo
tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso”. (fr.377)
A noção de “caniço pensante” caracteriza dois aspectos da
condição humana: o homem é materialmente limitado por um corpo
finito e, nessa medida, é compreendido pelo espaço. Mas, embora a
razão seja incapaz de compreender a infinitude do espaço, ao
menos conhece a existência do infinito. Enfim, um aspecto ressalta
a finitude do corpo e outro a amplitude da razão. Cabe à razão a
produção do conhecimento e o reconhecimento dos limites tanto do
corpo quanto de si mesma. Os limites da razão são colocados pela
sua própria condição finita em relação ao infinito, desse modo, o
alcance dos primeiros princípios que fundam o conhecimento está
além da capacidade racional.
Visto que está além da capacidade racional o alcance dos
princípios que fundam o conhecimento, o acesso a tais princípios se
dará por outras vias. De acordo com Pascal, há no homem uma
compreensão imediata dos termos primitivos - os princípios que
fundam o conhecimento - mas, tal compreensão na medida em que
não pode ser fruto da atividade racional, deve provir do corpo do
homem, por meio do “sentimento” que corresponde a uma espécie
de apreensão intuitiva dos princípios. É o “coração” que caracteriza
essa apreensão dos primeiros princípios através do “sentimento”,
9
termo (“coração”) que em Pascal sugere uma espécie de
instrumento mediador entre a razão e a matéria, situado no corpo
realiza a comunicação entre a Ordem
2
da Natureza e a Ordem do
Espírito, fornecendo os primeiros princípios (os termos primitivos
encontrados no universo físico) por meio do “sentimento”. Desse
modo, corpo e razão encontram-se num estatuto semelhante, a
relação entre ambos é mediada pelo “coração”
3
, nenhum ocupa um
patamar mais elevado na hierarquia das condições do
conhecimento possível, uma vez que ambos enfrentam o infinito.
Ressaltemos que os termos primitivos, fornecidos à razão pelo
“coração” e que possibilitam a produção do conhecimento são
indefiníveis e indemonstráveis. O “coração” é o mediador que
fornece os princípios com que a razão irá trabalhar de modo lógico-
demonstrativo (o método geométrico). Está descartada em Pascal a
possibilidade de fundamentar o conhecimento racional em termos
ontológicos, o processo racional trabalha a partir de referenciais
que, como já dissemos, a razão mesma é incapaz de definir ou
demonstrar.
2
Segundo Mariana Stange em sua tese de doutorado intitulada “O problema da fundamentação do
conhecimento na Filosofia de Blaise Pascal”, a filosofia pascaliana divide a realidade em três diferentes
ordens, a ordem da natureza que corresponde a esfera onde se encontram os objetos do mundo físico, a
ordem do espírito que equivale a esfera da racionalidade que trabalha como procedimento lógico-
dedutivo na produção de certezas, e a ordem da caridade, corresponde as questões que escapam ao
domínio racional, questões de ordem religiosa.
3
De acordo com a interpretação de Lucien Goldmann em seu livro O Deus Escondido, o coração
corresponde a uma “faculdade que reúne na sua exigência e na sua realidade a matéria e o espírito, o
teórico e o prático...” Lucien Goldmann, Le Dieu Cachê, Paris, Éditions Gallimard, 1959, p.281.
10
De fato a pretensão de acesso a verdades ontológicas
conduziria o conhecimento racional à regressão ao infinito, pois ao
tentar alcançar a essência das coisas a razão se chocaria com o
infinito e jamais alcançaria os princípios em si mesmos do
conhecimento.
Ao considerar a dimensão epistemológica do pensamento
pascaliano, alcançamos a desproporção como traço elementar do
homem; como vimos, está vedado à razão o alcance de verdades
ontológicas, o que também significa que não é possível uma
apreensão racional da essência humana.
“Assim, se [somos] simplesmente materiais nada
podemos conhecer; e se somos compostos de espírito e
matéria não podemos conhecer perfeitamente as coisas
simples, espirituais ou corporais”. (fr.72)
O homem caracteriza-se como esse composto de espírito e
corpo, sem poder, no entanto, “conceber nem o que é corpo nem,
menos ainda, o que é espírito e, ainda menos, de que modo pode
um corpo unir-se a um espírito” (fr.72)
Mais adiante, no fragmento 73 o filósofo sugere:
“Mas talvez este assunto ultrapasse o alcance da razão”.
Tendo em vista que a razão em Pascal não possui o
monopólio do conhecimento verdadeiro, que há também outras
11
dimensões de conhecimento produtoras de certezas em seu
pensamento, estenderemos nossa análise às demais dimensões do
conhecimento com o intento de alargar o campo de compreensão
do sujeito pascaliano. Acreditamos também que a descrição do
caráter psicológico daquilo que localizamos mais precisamente no
âmbito cosmológico, a saber, a insuficiência, essa desproporção
entre o homem e Universo, poderá fazer ver a multiplicidade dos
paradoxos que se delineiam na figura humana. E com isso, indicar
um caminho profícuo para a compreensão da verdade do ser do
homem no pensamento pascaliano, objetivo central de nossa
dissertação.
Mas antes, consideramos pertinente uma análise de outras
dimensões do conhecimento, uma vez que, como vimos, em Pascal
não há a possibilidade de compreensão racional da identidade
humana, visto a impossibilidade de uma apreensão racional da
essência de qualquer coisa.
12
II- DIMENSÕES DO CONHECIMENTO EM PASCAL
Como vimos, a consideração da relação entre homem e
Natureza em Pascal resulta num convite à meditação acerca das
possibilidades e limites do conhecimento racional. E a marca da
desproporção que se desenha nessa relação aponta do interior da
racionalidade para uma dimensão que a razão não abarca. Assim,
ao delimitar o âmbito legítimo de produção das verdades racionais,
Pascal realizou uma cisão no conhecimento em diversas esferas.
No fragmento 282 o filósofo afirma “Conhecemos a verdade não
apenas pela razão mas também pelo coração; (...)”.
Como já indicamos, o “coração” no pensamento de Pascal
caracteriza-se como um parâmetro de apreensão da verdade que
exclui da razão o monopólio das certezas. Sellier
4
ressaltou na sua
obra a importância da compreensão do significado desse termo
para adentrar o pensamento do filósofo. De acordo com o autor, o
“coração” na filosofia pascaliana é sede de conhecimentos íntimos,
imediatos e indemonstráveis. Os conhecimentos advindos do
“coração” são pontos de partida para todos os outros e como
4
SELLIER, P. Pascal et Saint Augustin. Paris: Colin, 1970.
13
princípios morais caracterizam-se como o norte da conduta
humana. (1970, p. 125 e 134).
Cabe ao “coração a apreensão dos ”princípios primeiros” ou
“noções primitivas” como espaço, tempo, movimento, número,
igualdade entre outros. Tais conhecimentos não necessitam serem
definidos, pois todos os entendem “com extrema clareza natural”,
são conhecimentos imediatos e universais. No fragmento 434 o
filósofo esclarece: “Sentimos naturalmente em nós a certeza da
verdade dos princípios primeiros por sentimento natural” (fr.434). Os
primeiros princípios são necessários como apoio e fundamento de
todo discurso racional. O “coração” apreende os princípios por
“instinto” e por “sentimento” e a razão segue seu percurso lógico-
demonstrativo a partir desses princípios indefiníveis e
indemonstráveis. Portanto, a esfera do “coração” tem no
“sentimento” e no “instinto” dimensões de conhecimento que
apreendem seus objetos de modo imediato. Considerando que o
“coração” constitui-se como apoio e fundamento ao discurso
racional, temos que a razão apreende o seu objeto de modo
mediato, exigindo, assim, o esforço humano para tanto. O coração
“sente” os princípios e a razão trabalha de modo discursivo e
demonstrativo extraindo conclusões dos princípios que lhe são
dados. Os primeiros princípios dispensam o trabalho da razão, na
14
medida em que se apresentam como evidentes por si mesmos, não
necessitando, desse modo, de demonstrações.
No fragmento 252 Pascal assinala a diferença entre
“sentimento” e razão: enquanto o sentimento do coração “... age
num instante e está sempre pronto para agir”, a razão: “age
lentamente e com tantas vistas, sobre tantos princípios, os quais
devem estar presentes, que a cada instante ela cochila ou se perde,
deixa de ter todos os seus princípios presentes” (fr.252). Portanto, a
diferença que Pascal estabelece entre razão e “coração” se refere
também à diferença que há entre conhecimento mediato e imediato,
respectivamente. O conhecimento racional dá-se através da
presença de princípios, que a razão não dá conta de demonstrar,
necessitando, para tanto, das certezas do “coração”. Já o
“sentimento” não necessita do auxílio de uma outra faculdade, ele
vê claramente de um só “golpe de vista”, por isso seu tipo de
conhecimento é imediato.
Ao discernir razão e “coração” Pascal exclui a razão da esfera
do coração, mas tais faculdades de conhecimento acabam por se
completarem, na medida em que é o “coração” que fornece à razão
os princípios primeiros. Sendo assim, o “coração” é a base de todo
conhecimento humano.
15
O conhecimento dos princípios primeiros que serve como
base ao discurso racional, constitui somente um dos aspectos do
potencial do “coração”. Ao estabelecer a diferença entre o “espírito
geométrico” e o “espírito de finura”, a saber, os diferentes modos
pelos quais o espírito ou alma funciona em cada homem, Pascal
indica alguns dos demais aspectos dessa potência. O “espírito de
finura” encontra-se mais voltado às sutilezas, aos princípios
indemonstráveis e ao “sentimento”, “vê de um só golpe de vista”,
sente; já o “espírito geométrico” se volta às coisas da ciência,
maneja os princípios bem para em seguida empregar o raciocínio,
ou seja, age progressivamente. Sendo o “espírito de finura” aquele
que vê de um só golpe de vista, aquele que sente os princípios,
temos que ele está ligado ao “coração”. Já o “espírito geométrico”,
preocupado com encadeamento de raciocínios e demonstrações, se
refere à razão.
O “coração” tem ainda a memória como uma de suas
dimensões de conhecimento. Através da memória o homem pode
guardar a idéia das coisas. Tais idéias acabam por se transformar
em “sentimentos”. Sobre essa relação entre memória e sentimento
o filósofo esclarece; “Sentimento. A memória, a alegria são
sentimentos e mesmo as proposições da geometria se tornam
sentimentos, pois a razão torna naturais os sentimentos e os
16
sentimentos naturais se apagam pela razão” (fr.95) “A memória é
necessária para todas as operações da razão” (fr.369), visto que é a
faculdade responsável por fornecer a faculdade racional as noções
que possui de seus objetos e que necessita para poder operar.
Considerada essa dependência racional da faculdade da memória e
como Pascal aproxima memória de “sentimento”, no fragmento 274
o filósofo afirma: “todo nosso raciocínio reduz-se a ceder ao
sentimento” (fr. 274).
Uma outra faculdade ainda abarca o homem, a “imaginação”
ou fantasia, que é “semelhante e contrária ao sentimento, de
maneira que não se pode distinguir entre esses contrários” (fr.274).
A imaginação, também opera com as imagens corpóreas que a
memória retém e ao trabalhar com estas imagens as absolutiza
conduzindo o homem a tomá-las como sentimentos naturais e
fazendo, desse modo:
“... seus felizes e infelizes, seus sãos, seus doentes,
seus ricos, seus pobres; faz crer, duvidar, negar a razão;
suspende os sentidos, fá-los sentir; tem seus loucos e seus
sábios...” (fr 82).
A imaginação aproxima-se do “sentimento”, na medida em
que atrai o homem às imagens que ela absolutiza. No entanto,
diferente do sentimento, “essa senhora do erro e da falsidade (...)
17
não dá nenhuma marca de sua qualidade, emprestando o mesmo
caráter ao verdadeiro e ao falso” (fr.82).
Ao trabalhar com as imagens presentes na memória, a
imaginação atualiza tais imagens e, do mesmo modo que a razão,
estabelece nexos causais entre as imagens, chegando a
conclusões e é justamente isso que dá o caráter verdadeiro ao
falso. Esse caráter de verdade emprestado às imagens valorizadas
pela imaginação conduz o homem ao erro. A imaginação é
semelhante e contrária ao "sentimento”, mas a razão “por ser
flexível em todos os sentidos” (fr.274), não é capaz de distinguir
estes contrários. É a imaginação, portanto, que leva a razão a fazer
de suas proposições sentimentos naturais e a extinguir os
verdadeiros sentimentos naturais.
“Essa soberba potência inimiga da razão, que se
compraz em controlá-la e em dominá-la para mostrar quanto
pode em todas as coisas, estabeleceu no homem uma
segunda natureza...” (fr. 82).
Pascal identifica esta segunda natureza ao costume “O
costume é uma segunda natureza que destrói a primeira” (fr.93).
Trataremos do significado da noção de natureza humana em Pascal
mais adiante; o que interessa nesse ponto é que sendo a
imaginação responsável pela construção dessa segunda natureza,
18
temos que ela é a autora da criação de hábitos no homem. De fato,
“quem dá respeito e a veneração às pessoas, às obras, as leis, aos
grandes, se não essa faculdade imaginativa?” (fr. 82).
Considerada por Pascal como a faculdade enganadora por
excelência, a imaginação impede o homem de tomar conhecimento
da verdade de sua condição, na medida em que o induz a cultuar
somente aparências, visto que se prende apenas às imagens das
coisas, ampliando-as ou diminuindo-as e afastando os homens de
considerar estas coisas tais como são.
Ressaltemos que, embora a imaginação busque na memória,
faculdade que faz parte da esfera do “coração”, as imagens
corpóreas de que necessita para poder operar, Pascal não insere a
imaginação nessa mesma esfera, uma vez que os sentimentos do
“coração” podem conduzir o homem ao conhecimento do real, ao
passo que as imagens que a imaginação amplia ou diminui e que
são tomadas pelo homem como “sentimentos” só podem conduzi-lo
à falsidade.
Uma outra dimensão do conhecimento presente nas
Pensées corresponde ao instinto
1
. Em diversos fragmentos o
1
Em sua obra “Vérité et Méthode dans lês Pensées”, Thomas M. Harrington, ao analisar os fragmentos
nos quais Pascal emprega o nome instinto, aponta que : “esse vocábulo num primeiro momento, pode
parecer ambíguo. Porém essa ambigüidade logo se desfaz se considerarmos a “intencionalidade”de Pascal
ao empregar tal vocábulo; 1) quando se trata de estabelecer a grandeza do homem, ele emprega a palavra
instinto com um significado que convém a essa meta. 2) quando, ao contrário, trata-se de lutar contra as
19
filósofo menciona essa faculdade, geralmente a relacionando a dois
estados do homem: “Instinto e razão, marcas de duas naturezas”
(fr. 344). O instinto está relacionado em Pascal com a Ordem do
corpo, mas enquanto dimensão do conhecimento pertence à Ordem
do coração. É a faculdade que atua como uma espécie de revelador
da condição dupla do homem, a partir do instinto o homem pode se
lembrar da dignidade de sua primeira natureza
2
ou ainda se desviar
de pensar sobre as misérias de sua natureza atual.
Embora o instinto tenha em comum com o “coração” o fato de
ambos apreenderem sua verdade por uma certa via intuitiva, que
caracteriza tais conhecimentos como imediatos, Pascal também
aponta a diferença que há entre os dois: os conhecimentos
advindos do instinto são mecânicos e rígidos, marcam os aspectos
da natureza animal do homem, se referem à ordem do corpo; já o
“coração” se caracteriza como uma faculdade de conhecimento por
excelência, na medida em que oferece à razão seus princípios
primeiros.
Assim a diferença que Pascal assinala entre instinto e razão é
também a diferença que se segue entre a natureza animal e a
pretensões racionalistas, ele emprega a mesma palavra com um outro significado que negativamente
indica os impulsos que caracteriza o estado de miséria do homem” (p.86-89)
2
Pretendemos analisar o conceito de natureza humana em Pascal mais detalhadamente no
desenvolvimento do trabalho. Nesse ponto apenas pretendemos buscar uma caracterização do instinto
enquanto dimensão do conhecimento.
20
espiritual. Como, no entanto, é através do instinto e da experiência
que o homem poderá conhecer as contrariedades de sua natureza,
a razão, por si, não pode dar conta de uma explicação plena do
homem.
Pascal considera os conhecimentos do instinto úteis à vida, na
medida em que conduzem o homem a conservar a sua existência e
tais conhecimentos se referem à esfera do coração, porque são
marcados pela ausência de abstração e a apreensão imediata de
seus objetos. Todavia, os conhecimentos do instinto, por
permanecerem sempre em estado igual, mantêm o homem nos
limites de sua natureza. O instinto é algo que ele possui em comum
com os animais e, portanto, está ligado à ordem do corpo.
Embora o conhecimento do instinto, por ser rígido e mecânico
seja considerado por Pascal um conhecimento natural, o filósofo
ressalta que nem tudo que o homem realiza mecanicamente
corresponde a um conhecimento natural, ou seja, um conhecimento
instintivo:
“O costume de ver o rei acompanhado de guardas, de
tambores, de oficiais e de todas as coisas que levam o mundo
ao respeito e ao terror faz com que seu rosto, quando ele está
às vezes sozinho e sem estes acompanhamentos, imprima
em seus súditos o respeito e o terror, porque não se separa
21
no pensamento a sua pessoa do séqüito que se vê de
ordinário juntamente com ele. E o mundo, que não sabe que
esse efeito tem sua origem em tal ou qual costume, acredita
que isso provenha de uma força natural” (fr 308)
O costume que faz do rei o temor de seus súditos não
corresponde a uma força natural, ainda que também seja pautado
na repetição. Por costume o homem não age instintivamente, mas
pela força da repetição. “Quando vemos um efeito repetir-se
seguidamente concluímos tratar-se de uma necessidade natural:
amanhã será dia...” (fr.91). Mas o homem toma o costume –
adquirido pela força da repetição – como sua própria natureza: “O
costume é uma segunda natureza que destrói a primeira” (fr.93). Ao
se mascararem como uma necessidade natural os elementos do
costume tornam-se os senhores das crenças e juízos humanos. Tal
condicionamento impede que o homem reflita sobre seus atos e
assim ele prossegue realizando mecanicamente tudo que tal força
comanda.
O corpo é o responsável no homem pela criação dos
costumes, uma vez que é ele que desenvolve certos mecanismos
que conduzem o homem a uma adaptação a todo tipo de coisas
que se repetem com freqüência. Desse modo, é a partir do corpo
que desenvolvemos certos costumes e hábitos. O corpo é
22
compreendido por Pascal como um “autômato”, máquina que
automatiza tudo aquilo que é necessário para a sobrevivência.
Através dessa automatização o homem assegura tudo aquilo que é
necessário à sua conservação.
Todavia, essa automatização do corpo que produz hábitos e
costumes, apesar de liberar o homem de ter que agir com
consciência retira também deste a liberdade de agir de modo lúcido.
Pois tais mecanismos de repetição são assimilados como se
fossem inerentes a própria natureza do homem e não como aquilo
que se molda no autômato.
O hábito, assim, tem a força de modelar uma natureza no
homem que acaba por distanciá-lo da necessária reflexão sobre a
verdade de sua condição. “Sem dúvida, a natureza não é tão
uniforme. É, pois, o costume que faz isso, constrangendo a
natureza; (...)” (fr. 97), na medida em que cria um meio
ambiente artificial no qual os homens acabam por viver de
determinados modos em função de hábitos adquiridos.
Pascal desenvolve o tema do corpo-máquina como um
obstáculo às faculdades superiores da alma, a saber, à razão e o
coração. Há oposição entre corpo e alma, todavia, o homem é
exatamente esta união.
23
“... o homem é, em si mesmo, o objeto mais prodigioso
da natureza; pois não pode conceber (...) de que modo pode
um corpo unir-se a um espírito. Essa a sua dificuldade
máxima e, não obstante, a sua própria essência” (fr.72)
Embora o homem seja em essência essa união entre corpo e
espírito, o corpo-máquina constitui um obstáculo para o espírito,
para se despir dos hábitos que este fez o homem adquirir é
necessário “inclinar o autômato”, pois “somos autômatos tanto
quanto espírito”. Para tal tarefa não bastam as provas, uma vez que
estas só convencem o espírito, carece recorrer ao costume.
“O costume torna as nossas provas mais fortes e mais
críveis; inclina o autômato, o qual arrasta o espírito sem que
este o perceba. Quem demonstrou que amanhã será dia, e
que morremos? E haverá algo em que mais se acredite? É,
pois, o costume que nos persuade disso” (fr.252).
Desse modo, as provas não constituem a única demonstração
que persuade o homem à convicção, o costume também persuade
o homem não exigindo provas para que ele tenha certeza de seus
atos.
E porque o costume também persuade o homem, não
carecendo de provas para tanto, é necessário inclinar o autômato,
uma vez que não basta o espírito crer nas suas certezas, quando o
24
autômato se inclina a crer ao contrário. Tanto espírito como
autômato devem ser conduzidos a crerem. O primeiro pelas razões
e o segundo pelo costume.
Revisitando nossa análise, temos a caracterização de
algumas dimensões do conhecimento em Pascal que nos permite
um direcionamento para o nosso objetivo. A análise da relação do
homem com a Natureza caracterizou a finitude humana como
marca central dessa relação. Os limites da capacidade racional
impedem ao homem o acesso a verdades ontológicas, isso equivale
também a dizer que não há em Pascal a possibilidade do acesso
racional a essência do homem.
A razão em Pascal não é produtora de subjetividade, o caniço
pensante que se desenha na relação com infinito caracteriza um ser
convocado a tomar consciência de sua falta substancial e limites.
As demais dimensões do conhecimento nos indicaram outros
caminhos para a compreensão da verdade do ser do homem em
Pascal, buscaremos analisar como elas atuam no homem na sua
relação consigo e no mundo.
25
III -PARADOXOS DA CONDIÇÃO HUMANA
Conforme vimos, em Pascal não há a possibilidade de
alcançar uma compreensão essencial do homem que se caracterize
pela negação das percepções sensíveis e a afirmação do sujeito a
partir da evidência do pensamento, como na filosofia de Descartes.
Primeiramente, porque a razão em seu pensamento não é o cerne
da subjetividade. E ainda, o próprio status das percepções
sensíveis exclui a possibilidade de negação das mesmas. Não há
no pensamento de Pascal uma crítica direta das percepções
sensíveis, ao contrário, o filósofo afirma a evidência dos dados
fornecidos pelos sentidos, “... as percepções dos sentidos são
sempre verdadeiras” (fr. 9). Quando no fragmento 83 Pascal
considera as percepções como “potências enganadoras”, também
inclui a razão nessa categoria, a partir do momento em que ela
busca ultrapassar os seus limites. Tanto as percepções como a
razão devem permanecer nos limites de sua finitude, e somente se
tornam enganadoras quando tentam operar fora do âmbito a que
pertencem: ao atuarem dentro dos seus limites podem constituir-se
como princípios de verdade.
26
No entanto, ainda que percepções e razão possam constituir-
se enquanto princípios de verdade a partir da mediação do
“coração” estão em permanente conflito, enganando-se
mutuamente. As percepções conduzem a razão ao erro quando lhe
fornecem impressões falsas, e a razão, por sua vez, às vezes
interpreta os dados sensíveis de modo equivocado. O conflito que
surge entre razão e percepções decorre dos próprios limites do
intelecto finito que, ao invés de proceder de acordo com as regras
que norteiam a produção das certezas sensíveis tenta pela
imaginação e pela vontade, extrapolar ilegitimamente esses limites.
Nós já indicamos que imaginação e vontade são dimensões
do conhecimento que se estabelecem nos limites do conhecimento
racional. Retomemos no fragmento 82 das Pensées como Pascal
caracteriza a imaginação:
“– Imaginação – É essa parte enganadora no homem,
essa senhora de erro e falsidade, tanto mais velhaca
quanto não o é sempre; pois seria regra infalível da
verdade, se o fosse infalível da mentira. Mas, sendo o
mais das vezes falsa, não dá nenhuma marca de sua
qualidade, emprestando o mesmo caráter ao verdadeiro
e ao falso” . (fr.82)
27
A imaginação é considerada uma parte enganadora no
homem, porque atua de modo negativo nos limites da razão,
conduzindo-a ao erro, na medida em que é capaz de seduzi-la a
pronunciar-se sobre objetos que estão além do seu alcance, seja
por tentar compreender a essência dos objetos da natureza, seja
por tentar compreender a essência divina:
“A imaginação amplia os pequenos objetos até encher-
nos a alma com eles, em uma avaliação fantasista; e numa
insolência temerária diminui os grandes e os reduz a sua
medida, como ao falar de Deus” (fr.84)
É a faculdade responsável por fundar no homem a aparência
de felicidade, riqueza, as crenças e, por fim, o homem no seu
sentido mundano e todos os disfarces culturais que o distanciam de
pensar em si próprio, ou seja, que o desviam de pensar sobre a sua
condição miserável. Enquanto a razão faz ver no homem a sua
miséria, a falta constitutiva de seu ser, a imaginação molda uma
realidade por cima dessa mesma falta e fora do âmbito dessa
faculdade tal realidade se apresenta sobre o signo da
inconsistência.
A imaginação estabelece no homem tanto uma segunda
natureza como um mundo próprio marcados pelo signo da
aparência. Mas, o homem prefere representar a si mesmo e para o
28
outro esse disfarce, autorizando que a imaginação sobreponha-se à
razão, na medida em que o mundo que ela lhe oferece proporciona
mais prazer. Essa “senhora do erro e do engano” “satisfaz mais
seus hóspedes que a razão”, uma vez que “dispõe de tudo, faz a
beleza, a justiça e a felicidade, que é tudo no mundo” (82).
A imaginação alicia o homem com promessas de prazeres
que seu estado de miséria revelado pela razão não pode cumprir,
enquanto essa faculdade pode oferecer satisfação para o homem, a
razão só pode lhe proporcionar desespero. Como sugere Pascal:
“(...) Não pode tornar sábios os loucos; mas os torna
felizes, ao contrário da razão, que só pode tornar seus
amigos miseráveis; uma cobrindo-os de glória, a outra
de vergonha”. (fr. 82)
Tanto no plano epistemológico, como no moral e no
psicológico reina a imaginação, visto que esta faculdade está aliada
à busca do prazer, à satisfação da concupiscência. Sob o ponto de
vista da psicologia existencial é mais aprazível orientar-se pela
imaginação, uma vez que ela possibilita a criação de um modo de
felicidade e satisfação que a razão não poderia oferecer.
A vontade , como dissemos, instala-se, como a imaginação,
no reconhecimento dos limites da razão, sua função cognitiva
consiste mesmo em reconhecer esses limites. Pascal apresenta
29
essa faculdade no fragmento 99 como um dos principais órgãos da
crença, uma vez que o valor de verdade ou falsidade das coisas é
dependente do ângulo pelo qual são vistas. E como a vontade é
fator de decisão do ângulo de visão, muitas vezes “desvia o espírito
da consideração das qualidades que não quer ver”. Desse modo,
embora seja ela que revele a condição insuficiente do homem em
relação ao infinito, também conduz a razão ao erro ao fazê-la
extrapolar os limites que lhe são próprios.
A vontade pode desviar a razão do caminho dedutivo-
demonstrativo que ela percorre em relação à produção dos saberes
geométricos, ao persuadi-la a estabelecer como verdadeiros juízos
que têm apenas a aparência de legitimidade, ou seja, considerar
como válidos os juízos produzidos geometricamente sobre objetos
não geométricos ou pertencentes à ordem da Caridade.
A vontade é, desse modo, um instrumento de persuasão.
Persuade a razão da evidência dos princípios possíveis do
conhecimento geométrico, assim como a persuade da certeza das
verdades divinas. Desde que a vontade se restrinja a operar no
interior dos limites da razão para persuadi-la unicamente das
evidências naturais, pode exprimir a sua positividade, a saber, que
é o instrumento que graças à persuasão que permite, produz as
certezas racionalmente demonstráveis. Considerada a
30
impossibilidade de a razão alcançar um conhecimento acerca da
essência dos objetos da natureza, a miséria da razão é também
resultado desses limites: a imaginação e a vontade, quando
extrapolam os limites da razão, marcam a sua miséria e, em
conseqüência, marcam a miséria da condição humana.
É essa situação de desproporção perante o universo e
conseqüente insuficiência que marcam a miséria da condição
humana em Pascal. No entanto, é também a consciência da própria
miséria que faz a grandeza do homem. De acordo com o filósofo, é
necessário saber-se miserável para ser grande. A imaginação e a
vontade quando extrapolam os limites da razão, reafirmam a
miséria da condição humana.
A mais dramática conseqüência dos limites da razão e da
decorrente impossibilidade de definir essências é caracterizada pela
constatação de que não só os objetos exteriores ao sujeito, mas a
própria essência do eu escapa à compreensão racional. Sendo a
essência do eu racionalmente inapreensível, como qualquer outra,
restam apenas as qualidades exteriores observáveis pelas
percepções ou aquelas interiores que são observáveis quanto a
seus efeitos: “Como se faz bem em distinguir os homens pelo
exterior, e não pelas qualidades interiores!” (fr.319). Todavia,
mesmo que a essência do eu seja racionalmente incompreensível o
31
homem deve buscar conhecer-se para ordenar sua conduta, como
diz o filósofo “é preciso conhecer-se a si mesmo; se isso não
servisse para encontrar a verdade, serviria ao menos para regular a
vida, e não há nada mais justo” (fr.66)
Quando a imaginação e a vontade atuam sem considerar os
limites da capacidade racional, essas faculdades impedem que o
homem possa tomar conhecimento da sua condição. A
impossibilidade de compreensão racional de sua essência convoca
o homem a tomar consciência desse estado para melhor ordenar a
sua vida. O homem só pode ser grande quando conhece sua
miséria.
Mas, na medida em que a imaginação encobre com artifícios
o estado de miserabilidade do homem e a vontade o persuade de
não buscar conhecer-se, a miséria humana é reafirmada e a
dimensão de sentido dessa condição não é aberta.
A partir da análise da imaginação no pensamento de Pascal,
podemos caracterizar essa faculdade como produtora de enganos,
na medida em que ela forja no homem um ser imaginário que é o
traço constituinte do seu ser psicológico no mundo. A opção que o
homem faz pela imaginação leva em consideração a necessidade
de fuga de vivenciar a miséria que atesta a sua condição
verdadeira.
32
O homem opta por distanciar-se da verdade de sua condição,
na medida em que o que orienta o seu ser no mundo é a dinâmica
do prazer.
Desse modo, o domínio da imaginação sobre o homem
aponta para a inconsistência da psique, visto que a recusa de
considerar racionalmente a verdade de sua condição, a opção pelo
ser imaginário, faz notar no homem o rompimento entre a busca do
conhecimento e a aspiração à felicidade. Não tem valia o
conhecimento racional da verdade para um homem em busca da
felicidade.
Todavia, ao optar pelas construções da imaginação, o homem
escolhe também uma forma de felicidade marcada pelo signo da
inconstância, uma vez que a imaginação, no seu modo atuante
trabalha deformando a imagem das coisas, com isso, o homem é
direcionado a cultuar somente falsidades:
“A imaginação amplia os pequenos objetos até encher-
nos a alma com eles, em uma avaliação fantasista; e numa
insolência temerária diminui os grandes e os reduz à sua
medida, como ao falar de Deus” (fr.84)
Ao atuar desse modo a imaginação é capaz de ampliar as
qualidades que o homem julga possuir, e, assim, ele pode forjar
para si uma certa imagem de grandeza, para preencher um espaço
33
interno que se caracteriza como miséria e falta. Imaginando-se
grande o homem se desvencilha de constatar as misérias presentes
na sua condição atual.
É também pela capacidade de ampliar qualidades que Pascal
responsabiliza a faculdade da imaginação por ter conduzido muitos
filósofos a falarem sobre Deus como algo que fosse passível de
uma demonstração racional. Pois, na medida em que eles puderam
ampliar a imagem de grandeza de si mesmo a partir dessa
faculdade, eles puderam também diminuir a grandeza divina e
mensurá-la por eles mesmos. Portanto, o homem que se dispõe a
sondar Deus, só pode fazê-lo a partir da imagem de grandeza que
forja para si mesmo.
A imagem de grandeza com a qual a imaginação veste o
homem não pode constituir o seu ser verdadeiro, uma vez que tais
artifícios mascaram a falta constitutiva de ser. Ao optar pelas
construções imaginárias movido pela dinâmica do prazer o homem,
cai num tipo de satisfação marcado pela inconstância. Como nos
diz Pascal:
“A eloqüência contínua aborrece. Os príncipes e os reis
brincam às vezes. Não estão sempre em seus tronos; ai se
entediam: é preciso abandonar a grandeza para a sentirmos. A
34
continuidade aborrece em tudo: o frio é agradável para nos
aquecermos” (fr.355)
O fragmento em questão ao considerar que o homem é
incapaz de continuidades prolongadas, visto que estas o entediam e
impedem que ele reconheça a qualidade do estado em que se
encontra, sugere a ausência de integração entre a qualidade
específica do prazer vivenciado e o seu reconhecimento
psicológico.
A imaginação enquanto instância produtora de subjetividade
não nos aproxima da verdade do ser do homem, uma vez que,
sendo acionada através da dinâmica do prazer, que por sua vez é
marcada pela inconstância atesta a incapacidade humana de
continuidades prolongadas. Tal incapacidade seria extremamente
problemática, na medida em que a própria idéia de identidade
mínima do sujeito supõe uma certa permanência na continuidade.
A análise da capacidade racional do homem em Pascal fez
notar a insuficiência humana perante um universo que o ultrapassa.
É o reconhecimento dessa insuficiência (da sua miséria) que faz o
homem grande: “A grandeza do homem é grande na medida em
que ele se conhece miserável”.(fr. 397). Já a imaginação pode ser
caracterizada como a faculdade da contingência e da insuficiência
como miséria. Realiza o homem como um ser que não possui seu
35
princípio de ser em si mesmo e estende esta contingência a todo o
universo empírico. E é na medida em que esse construto imaginário
se forja a partir da negação do reconhecimento da miséria humana
que a imaginação é a faculdade da insuficiência como miséria.
A consideração do ser imaginário que realiza o homem na
esfera psicológica e social não nos fornece a verdade da condição
humana em Pascal, visto que nesse âmbito ele surge como
“disfarce” para si mesmo e para o outro. No entanto, algumas
questões significativas se colocam a partir da análise dessa
faculdade: a opção do homem pelo ser imaginário vai de encontro
com a recusa de aceitar uma condição de miséria que esse mesmo
ser encobre. Mas Pascal mesmo nos diz que o homem só pode ser
grande quando reconhece a sua miséria, e tal fato parece sugerir
que a verdade do ser (a sua grandeza) deve passar pela
consideração da miséria.
A primeira questão que se coloca é a seguinte: por que o
homem se esforça em fugir da sua própria condição, se as
construções da imaginação, marcadas pela inconstância, o tornam
escravo do desejo? Visto que é a imaginação a faculdade
fundadora do homem e da sociedade enquanto realidade empírica
observável, buscaremos respostas a esta questão a partir da
36
análise do modo pelo qual a imaginação atua no campo psicológico
e social na filosofia de Pascal.
37
IV-CONSTITUIÇÃO DO EU: O EU NO MUNDO
Vimos, até o momento, que a construção do sujeito tanto na
psicologia como na ordem social realiza-se através das cordas da
imaginação. O homem sobrepõe ao seu ser verdadeiro – que
resulta em descontentamento – um outro imaginário, como se faz
notar no fragmento 147:
“_ Não nos contentamos com a vida que temos em nós
e no nosso próprio ser: queremos viver na idéia dos outros
uma vida imaginária, e, para isso, esforçamo-nos por fingir.
Trabalhamos incessantemente para embelezar e conservar
nosso ser imaginário e negligenciamos o verdadeiro”
É a escolha pelo ser imaginário que constitui o indivíduo
empírico, visto que o homem está descontente com a sua condição
verdadeira, por isso a opção pelo gratuito e artificial.
No fragmento 323, para o qual ainda voltaremos, ao procurar
a verdade do eu, Pascal irá caracterizar um espaço psicológico
marcado pela exterioridade do ser, uma vez que o objeto da
psicologia pascaliana é definido no mundo a partir de qualidades
artificiais. A dimensão verdadeira do eu se opõe ao ser imaginário e
38
não se comunica com o real empírico. Desse modo, temos que a
verdade ontológica do objeto da psicologia é expulsa do mundo.
Vincent Carraud
5
, ao estudar o conceito de eu em Pascal,
analisou a insuficiência humana enquanto realidade psicológica,
uma vez que somente as redes da imaginação fornecem ao
homem uma certa solidez. O objeto da psicologia aponta para a
ausência de essencialidade do homem enquanto realidade
psicológica e social, uma vez que, nessas esferas, o homem, para
fugir da angústia, faz a opção de mascarar a sua falta de “ser”
esforçando-se por “parecer”. Mas, novamente, perguntamos: por
que essa opção por fugir da própria verdade do seu ser?
A necessidade que o homem possui de desvencilhar-se de
sua condição pode ser esclarecida em Pascal, na medida em que o
objeto da psicologia relaciona-se com a busca do amor: “A natureza
do amor-próprio e desse eu humano é não amar senão a si e não
considerar senão a si” (100). No desenvolvimento do fragmento em
questão o filósofo atesta que esse “eu” está cheio de misérias, mas
quer ser, no entanto, objeto de amor e estima dos outros; para isso,
precisa cobrir com construções imaginárias suas imperfeições e
vícios, “pois concebe um ódio mortal contra essa verdade que o
repreende e o convence de seus defeitos” (fr.100)
5
CARRAUD, V. Pascal et la Philosophie, Paris: PUF, 1992.
39
Ao negar-se a reconhecer as suas imperfeições, o homem
soma às mesmas uma ilusão voluntária que resulta da sua aversão
à verdade. A aversão à verdade é inseparável no homem do amor-
próprio, pois é preciso encobrir sua verdade de misérias para se
forjar no olhar do outro com uma aparente grandeza que o torne um
objeto passível de ser amado pelos outros. Essa ilusão voluntária
em que vive o homem é caracterizada por Pascal nos fragmentos
que versam sobre a temática do divertissement
2
.
Nas suas meditações acerca do homem, Pascal também
considerou que este deve sempre ver a si mesmo enquanto ser
diferenciado porque ele pensa, logo sua dignidade particular reside
nessa qualidade diferencial de ser capaz de pensar. No fragmento
146 o filósofo afirma: “O homem é visivelmente feito para pensar; é
toda sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever consiste
em pensar corretamente”. Mais adiante, o filósofo opõe aquilo que
deveria ser o pensamento às atividades do divertissement: “ora em
que pensa o mundo? Apenas em dançar,... em jogar argolinhas,
etc. em tornar-se rei, sem pensar o que é ser rei, e o que é ser
homem”.
2
Divertissement, no século XVII tinha um forte caráter militar: desviar de inimigos, manobras
estratégicas. Divertir-se significava desviar-se de obstáculos indesejáveis. Em Pascal o termo é utilizado
para descrever a fuga do homem em pensar na sua própria condição, divertir-se é alienar-se.
40
A partir da temática do divertissement, Pascal caracteriza o
modo pelo qual imaginação atua no âmbito psicológico e social do
homem. A descrição do plano existencial do homem em diversos
fragmentos das Pensées expressa a condição de um ser que vive a
constante fuga de pensar em si mesmo. É para desviar-se da
angústia resultante da consideração da sua insuficiência ontológica
que o homem no divertissement se aliena de si próprio.
Um homem sem diversão é um ser envolto em infelicidade,
pois nesse estado ele é lançado a contemplar o seu vazio
essencial. No fragmento 164 Pascal esclarece essa necessidade de
divertir-se: “Mas tirai-lhes a diversão, vós os vereis secar de tédio.
Passam a sentir então o seu nada sem o conhecer, porque é ter
muita infelicidade estar numa tristeza insuportável, logo que se fica
reduzido a contemplar a si mesmo sem disso se divertir”. (fr.164)
O divertissement expressa a maneira pela qual um ser
desejante busca a felicidade. É a descrição de um modo de operar
do homem que por si só dissolve o homem interior na sua
inconsistência psicológica. O homem que se diverte se ocupa com
uma atividade sem fim, ou em outras palavras, o fim que ele visa é
ilusório. Em qualquer atividade os homens se iludem, na caça: “Não
sabem que é só a caçada e não a presa que eles buscam”. Desse
modo, o homem continua indefinidamente buscando a felicidade,
41
mas essa busca dissolve a própria idéia de felicidade e ameaça
qualquer construção duradoura da identidade.
O homem, marcado pela escravidão do desejo e a fuga
constante de admitir a miséria de sua condição surge no
divertissement como um ser que possui uma profunda necessidade
de estima:
“Grandeza do homem: temos uma idéia tão grande da
alma do homem que não podemos tolerar que sejamos
desprezados e não estimados por uma alma, e toda a
felicidade do homem consiste nessa estima” (fr.400)
Esse homem que deseja a estima dos outros e coloca toda
sua felicidade nesse fator não pode, no entanto, alcançar a
realização do seu desejo. Tal impossibilidade resulta da
consideração de que o desejo humano dissolve todas as relações: o
homem que forja para si uma imagem de grandeza é incapaz de um
amor direcionado para o reconhecimento legítimo do outro. Pelo
contrário, ele necessita do outro para reforçar essa imagem que ele
constrói de si mesmo. A necessidade que o homem tem de legitimar
a construção de si mesmo através do reconhecimento do outro é
caracterizada por Pascal como a guerra constante entre os “eus”.
Tal situação impossibilita a realização da felicidade humana, uma
vez que todos querem ser estimados. Portanto, por mais que o
42
homem preencha com disfarces aquilo que nele é falta constitutiva,
a própria gratuidade da estima, ou melhor, a não realização desta
mesma, uma vez que cada “eu” vive numa incessante luta de ser
confirmado pelo olhar do outro, coloca em evidência a sua condição
de miséria.
Assim a necessidade que o homem possui de se ocupar
indefinidamente com as atividades do divertissement, pode ser
explicada na medida em que se compreende a sua condição: a de
um ser marcado por um desejo infinito de estabelecer-se como uma
identidade digna de estima. Mas, no confronto com o outro, só pode
dar-se conta do fracasso do seu projeto de felicidade e angustiar-se
com a sua falta interna. Desse modo, o homem caracteriza-se pela
marca de um paradoxo insuperável: embora a verdade de sua
condição aponte para uma insuficiência essencial, para um estado
de miséria presente, enquanto ser desejante o homem aspira à
felicidade que resultaria no campo existencial, na constituição de
uma identidade digna da estima do outro. Mas, a construção dessa
identidade não se encontra ao alcance do homem, pois no seu
vazio essencial ele não encontrará materiais que possibilitem tal
construção. Desse modo, a imagem que o homem pode construir
de si a partir dos artifícios imaginários para obter solidez necessita
43
do reconhecimento do outro. Quando não ocorre este
reconhecimento o homem é lançado na sua condição de miséria.
A cadeia do divertissement será constantemente interrompida
pela facilidade com que se dissolvem as construções humanas; os
castelos de areia da identidade se dissolverão sempre nas bases do
vazio e da falta humana. A imaginação que atua no divertissement
não livra o homem de sentir os paradoxos de sua condição. Seguir
os mecanismos do divertissement ou interrompê-los conduz o
homem a dois estados indesejáveis: no primeiro ele sente a sua
incapacidade para a felicidade, na medida em que o seu desejo de
se constituir enquanto identidade não se realiza, pois
freqüentemente não passa pela confirmação do olhar alheio e nisso
se dissolve. No segundo, ele é lançado ao tédio, termo que em
Pascal refere-se à angústia que provém do sentimento do vazio
original da natureza humana e que foi encoberto pelas vestes do
hábito.
Em Pascal o homem só pode se constituir enquanto
identidade no mundo da seguinte forma:
“ Não nos contentamos com a vida que temos em nós e
no nosso próprio ser: queremos viver na idéia dos outros
uma vida imaginária, e, para isso, esforçamo-nos por
fingir. Trabalhamos incessantemente para embelezar e
44
conservar nosso ser imaginário, e negligenciamos o
verdadeiro. E se temos tranqüilidade, ou generosidade,
ou fidelidade, apressamo-nos em fazê-lo saber, a fim de
ligar essas virtudes a esse nosso outro ser; e de bom
grado as destacaríamos de nós para juntá-las a ele; e
seriamos prazerozamente poltrões para adquirir a
reputação de corajosos. Grande marca do vazio de
nosso próprio ser, não estar satisfeito com um sem o
outro, e renunciar muitas vezes a um pelo outro! Pois
quem não morresse para conservar sua honra seria
infame!” (147)
Podemos notar nesse fragmento a descrição de uma
identidade que só pode se construir via imaginação. O sujeito está
entregue às construções imaginárias e toma esse espaço
psicológico como campo constitutivo de seu ser. Temos, desse
modo, a gratuidade representando a insuficiência humana de se
constituir enquanto identidade. Todavia, o homem ainda prefere
esses espaços da gratuidade nos quais constrói a si mesmo, que ao
menos têm a frágil consistência dada pelos valores imaginários –
que fazem a base dos sociais – do que perceber a sua verdadeira
realidade que o angustia, na medida em que aponta para a sua
falta de substancialidade.
45
Comentando a miséria do homem que se constitui com
qualidades inessenciais, no fragmento 323 Pascal, ao perguntar se
“aquele que ama alguém por causa de sua beleza, ama-o?”,
desenvolve a idéia de uma psicologia condenada à exterioridade do
ser.
No fragmento em questão é dissolvida a idéia de que a
relação de amor possa ser pautada na base do eu: o amor possível
seria nesse caso a relação entre a união de qualidades
emprestadas e a necessidade da admiração pelo outro dessas
mesmas qualidades. Está presente no sujeito uma desproporção
entre uma suposta substância necessária (o eu verdadeiro, que
somente surge como ausência preenchida pela imaginação) e as
qualidades artificiais que servem como suporte do amor buscado
pelo homem. São somente qualidades artificiais que podem definir o
homem no mundo, se ser amado é uma necessidade de sua
existência empírica, tal existência é conseqüência de um processo
que quando analisado resulta na dissolução da verdade ontológica
desse objeto.
Ao buscar a verdade do ser do homem em Pascal nos
deparamos com a seguinte situação: temos que o ser verdadeiro
se opõe ao ser imaginário, não se comunica com a realidade
empírica, porque ele não pode ser apreendido pelas qualidades,
46
pelos valores. Não há, desse modo, verdade ontológica do objeto
da psicologia. Nela o homem só pode ser descrito a partir das
nuances do costume e da gratuidade, o que para Pascal não
equivale à nossa verdadeira natureza. Em suma, temos que a
verdade do eu não pode estar presente na realidade empírico-
psicológica do homem, pois há uma desproporção entre esta e a
verdade ontológica do ser. Com isso, temos que o “ser verdadeiro”
é sinônimo de insuficiência como realidade psicológica; nesse
âmbito o homem só pode obter uma eficácia pragmática como
objeto inserido no campo das leis e regras sociais que se fazem nas
teias da imaginação e do hábito.
No entanto, se o homem somente se torna real a partir das
teias da imaginação, a base abissal em que se assentam tais
construções (a falta, o vazio constitutivo do ser do homem) faz notar
a inconsistência de uma realidade subjetiva artificial, imaginária, e,
portanto, sempre inacabada. Uma realidade incapaz de transcender
a dinâmica de um desejo infinito e sempre irrealizado.
O homem que optou pelo ser imaginário vive o império do
amor-próprio e como diz Pascal:
“A natureza do amor-próprio e desse eu humano é não
amar senão a si e não considerar senão a si. (...)”
(fr.100)
47
“... pois tudo tende para si mesmo. Isso é contra toda
ordem: é preciso tender para o geral; e a tendência para
si é o começo de toda desordem, na polícia, na
economia, no corpo particular do homem. A vontade
está pois depravada”. (fr.100)
A idéia de “tendência a si mesmo” surge em Pascal como
índice da insuficiência presente no homem de transcender a
dinâmica do anseio de ser desejado. Tal dinâmica caracteriza um
sujeito que se constrói na estrita dependência dos laços da
imaginação. O conceito de eu enquanto identidade constitutiva não
pode ser apreendido nem externamente (socialmente), nem
internamente (psicologicamente), nesses âmbitos ele só pode se
sustentar a partir de artifícios.
Retomando, temos que a razão é insuficiente para explicar a
verdade da condição humana: a partir dela somente podemos
constatar a insuficiência ontológica do homem. A imaginação
enquanto produtora de subjetividade só nos permite vislumbrar uma
condição que opta por preencher esse vazio essencial com uma
série de artifícios que constituem a base do ser psicológico e social
do homem.
A partir da análise das nuances psicológica e social do
homem, pudemos identificar uma oposição entre divertissement e
48
angústia. É para se desviar da angústia que provém da “infelicidade
natural de nossa condição fraca e mortal, e tão miserável (...)”
(fr.139) que o homem se diverte. Portanto, como diz Pascal, o erro
do homem não está em procurar atividades que o distanciem de ver
suas misérias, mas sim em acreditar que toda a sua agitação e
movimento visa o repouso, pois “...os homens que sentem
naturalmente a sua condição não evitam nada quanto o repouso;
nada há que não façam para buscar a agitação” (fr.139). Nesse
ponto Pascal censura tanto aqueles que condenaram o homem por
ser incapaz de ficar em repouso, como esse mesmo homem que se
ilude pensando que o seu movimento visa um fim específico que o
proporcionaria a felicidade. Em ambas as situações há um
desconhecimento da verdadeira natureza humana.
A natureza insaciável da cupidez humana (fr.139) desmente a
ilusão voluntária que caracteriza as atividades humanas. Em
Pascal, o homem no seu estado atual está totalmente absorvido
pelo jugo do desejo, a toda realização de um desejo se sobrepõe
um outro. A mecânica do divertissement não assegura ao homem
um estado de felicidade. De acordo com Pascal, se divertir-se é a
única coisa que consola o homem de suas misérias é no entanto a
marca de sua maior miséria (fr.171) Envolto nas atividades do
49
divertissement o homem é impedido de pensar em si próprio e
assim se perde insensivelmente.
Pascal convoca o homem do divertissement a resistir a si
mesmo, a conhecer a vaidade dos prazeres que norteiam seu ser
empírico e a realidade dos males que o cercam (a morte, as
doenças, a sua insuficiência). Convida o homem a se opor ao
divertissement e mergulhar na angústia que o permite compreender
a sua condição de misérias.
Dois instintos atuam no homem na mecânica do
divertissement: um instinto que o faz buscar as agitações exteriores
e que é fruto de suas misérias presentes. E um outro instinto
secreto que restou da grandeza de sua primeira natureza e que o
faz pressentir que a felicidade só está no repouso. Como vimos, no
estudo das dimensões do conhecimento em Pascal, o instinto é
marca de duas naturezas no homem: “Instinto e razão, marcas de
duas naturezas” (fr. 344). Pascal aponta que há no homem a marca
de dois instintos que o faz um todo confuso e dilacerado por
paradoxos: procura o repouso pela agitação e se o encontra não
suporta o tédio que esse estado proporciona.
A partir da multiplicação dos paradoxos da condição humana,
do desenho de toda miséria em que vive o homem, Pascal
considera que a problemática de nossa condição deve ser buscada
50
a partir do reconhecimento que nosso “coração” – a vontade – está
doente. A dimensão de nosso ser verdadeiro deve ser buscada no
encontro da teologia com a psicologia. Dito de outro modo, é
somente opondo concupiscência e graça que nos aproximamos da
definição essencial de nossa natureza. Mas, antes de analisar a
oposição entre concupiscência e graça, pretendemos estender a
nossa análise do ser psicológico do homem visando compreender a
duplicidade de sua natureza que Pascal caracteriza no paradoxo de
grandeza e miséria.
51
V - GRANDEZA E MISÉRIA DO HOMEM
Como vimos, as Pensées apresentam um desenho trágico da
condição humana. O homem vive uma situação paradoxal marcada,
sobretudo, por traços de grandeza e miséria, a começar pela
miséria: “O homem não passa, portanto de disfarce, mentira e
hipocrisia, tanto em face de si próprio como em relação aos outros”
(fr. 100). No entanto, o homem se recusa a enxergar a verdade da
sua condição e vive num movimento incessante de dissimulá-la,
forjando para si com o impulso da vaidade uma máscara que
esconda a sua miséria inconfessável. Miséria que marca o homem
com o selo da discórdia, interna e externa. No plano interno, ela se
reflete, por exemplo, na luta entre a razão e as paixões.
O sujeito pascaliano vive o conflito da “Guerra intestina do
homem entre a razão e as paixões. Se só tivesse a razão sem as
paixões... Se só tivesse as paixões sem razão...Mas, tendo ambas,
não pode ficar sem guerra, não podendo estar em paz com uma,
senão entrando em guerra com a outra; assim está sempre dividido
e contrário a si mesmo”(fr.412)
52
Esse homem marcado pela discórdia vive o império do amor-
próprio. Esse amor exagerado por si mesmo faz, no plano externo,
do ódio a regra central das relações na vida social, “todos os
homens se odeiam naturalmente entre si” (fr. 451) . Para Pascal,
toda a moral da ordem social foi engendrada a partir da
concupiscência e, de modo algum esse verniz pode apagar os
traços de miséria presente na condição humana, apenas os deixam
velados aos olhos vaidosos do homem que deseja parecer grande
para si mesmo.
E, de fato, há grandeza no homem, mas não essa, desejada.
A verdadeira grandeza do homem só pode ser percebida a partir do
conhecimento da sua miséria.
“A grandeza do homem é grande na medida em que ele
se conhece miserável”, afirma o filósofo. “Uma árvore não
sabe que é miserável. É, pois, ser miserável conhecer-se
miserável; mas é ser grande saber que se é miserável” (fr.
397)
É através do conhecimento que o homem pode vir a ter de si
mesmo que ele vai ao encontro de sua grandeza, e não a partir do
conceito que ele faz de si. Por vaidade, o homem forja para si uma
falsa grandeza e é por isso que Pascal o toma por arrogante nas
53
suas Pensées, como também o considera desprezível quando ele
se limita a se resignar à miséria que descobre na sua condição.
Quando Pascal aponta as misérias da condição humana e
acusa o amor-próprio como o responsável por essa situação, o
filósofo está conduzindo sua análise do homem à teologia. A
explicação para o estado de miséria de nossa condição repousa na
idéia cristã da Queda. Deus puniu o pecado original convertendo o
homem em deus de seu amor próprio.
No paraíso o homem vivia num estado de harmonia consigo,
na medida em que vivia no seu plano essencial, pois na
participação com a essência divina, ele se realizava também
substancialmente. Com a Queda há uma ruptura do homem consigo
mesmo, na medida em que ele deixa de se relacionar com Deus. O
homem decaído vive uma situação de miséria existencial, o seu ser
habita o vazio deixado pelo abandono de Deus. Com o amor-
próprio, esse amor exagerado por si mesmo, o homem se lança a
preencher esse vazio com todos os artifícios possíveis. Dado o
enfoque histórico-teológico que Pascal empreende na consideração
do homem, podemos então apresentar com uma maior precisão
como se delineia a problemática do ser do homem no seu
pensamento.
Em um de seus fragmentos Pascal nos diz do eu:
54
“Numa palavra, o eu tem duas qualidades: é injusto em
si, fazendo-se centro de tudo; é incômodo aos outros,
querendo sujeitá-los: pois cada eu é o inimigo e desejaria ser
o tirano de todos os outros” (fr. 455)
O eu pascaliano apresenta-se, desse modo, como sujeito e
objeto do seu próprio amor, um amor que pretende tiranizar e
destruir os desejos equivalentes dos outros eus. Esse eu
desenhado por Pascal é, sobretudo, a expressão do homem
separado de Deus e que se toma por deus. Um eu que se forja para
si mesmo no espaço do seu vazio, da sua miséria existencial e
busca confirmar sua dissimulação a partir do olhar de um outro eu.
Por tudo isso, Pascal considera que esse eu não merece amar a si
próprio.
Porém, ainda que o homem se esforce por preencher esse
vazio que lhe é inerente, “o eu não poderá impedir que esse objeto
que ama esteja cheio de defeitos e misérias”. Pascal diz desse eu:.
“... quer ser grande e acha-se pequeno; quer ser feliz e
acha-se miserável; quer ser perfeito e acha-se cheio de
imperfeições; quer ser o objeto do amor e da estima dos
homens, e vê que seus defeitos só merecem deles aversão e
desprezo. Esse embaraço em que se acha produz nele a mais
injusta e criminosa paixão que se possa imaginar; pois
55
concebe um ódio mortal contra essa verdade que o repreende
e o convence de seus defeitos” (fr. 100)
Esse eu, fruto do amor-próprio, conduz o homem à fuga de si
mesmo e a só buscar-se fora de si. Marcado pelo vazio essencial,
dilacerado por uma série de contradições, o homem se ocupa em
mascarar-se indefinidamente. Vimos, a partir da análise do ser do
homem no mundo como Pascal deixa evidente essa necessidade
que o eu tem de se mascarar, forjando eus imaginários entre ele e
ele mesmo, entre ele e os outros eus. Dessa consideração
podemos notar que na verdade o eu se odeia profundamente, pois
é no mascaramento de si que ele se sente tranqüilo.
No entanto, “a grandeza do homem é tão visível, que se tira
mesmo de sua miséria”,e mais adiante o filósofo aponta:
“Porque, ao que é natureza nos animais nós chamamos
miséria no homem; por onde reconhecemos que, como a
natureza é hoje semelhante à dos animais, ele caiu de uma
natureza melhor, que lhe era própria outrora”(fr. 409).
A natureza corrompida do homem, aponta ela mesma para a
sua grandeza: mesmo em sua condição miserável o homem
mantém sua dignidade e esta se afirma no distanciamento do eu em
relação a si mesmo. O homem em seu estado atual é escravo da
concupiscência, o amor próprio investe um amor equivocado na
56
falta mesma de ser, é preciso que nesse estado o homem odeie a si
mesmo, para só assim poder se amar verdadeiramente. “Mas, como
não podemos amar o que está fora de nós, cumpre-nos amar um
ser que esteja em nós, e que não seja nós, e isso é certo para
todos” (fr. 485). No divertissement, o eu mascara o seu vazio com
atos ilusórios, nesse estado ele se aniquila completamente, uma
vez que nega a sua capacidade de participação essencial com
Deus. Somente odiando a si mesmo e amando a Deus é que o eu
assegura a possibilidade de restituição da sua essência divina.
Portanto, “é preciso amar só a Deus e só odiar a si mesmo” (fr.
476), desvencilhando-se do amor próprio, o eu pode se direcionar a
deus e a ele se unir. “O homem ultrapassa infinitamente o homem”,
nos diz o filósofo; entendemos então que enquanto natureza isolada
o eu não pode resgatar a sua dimensão essencial, somente no
desprendimento de si mesmo é que ele se ultrapassa e se auto-
supera.
É a partir do eixo da Queda e Redenção que Pascal assinala
a destruição total do conceito de eu
3
. O eu pascaliano encontra-se
escondido de si mesmo, porque Deus é um Deus Escondido.
Somente na revelação divina o homem pode ver a si mesmo,
3
Scarlett Marton, em seu artigo “Pascal: a busca do ponto fixo e a Prática da anatomia Moral”, visa
mostrar o paradoxo da condição humana em Pascal e a necessidade da busca de um ponto fixo, bem
como, aplicando o “renversement du pour au contre”ao conceito de eu, afirma a importância em Pascal da
prática da anatomia moral. Tal abordagem foi de grande relevância em nossa análise do conceito de eu.
57
porque vê Deus. A individualidade do eu só pode se afirmar na
Graça. Pascal ressalta que sem esse mistério o homem é um
“monstro incompreensível” (fr.420). O eu que se afirma para si
mesmo e para os outros enquanto superficialidade através dos
construtos da imaginação, na relação com Cristo se aniquila e
assim se restitui. No fragmento 323 Pascal indagava acerca do eu:
“Que é o eu? Um homem que se põe à janela para ver os
passantes, se eu estiver passando, posso dizer que se pôs à janela
para ver-me? Não, pois não pensa em mim em particular”
Posicionado o eu no lugar do passante, Pascal enfatiza que a única
coisa possível de ver na procura do eu, são as qualidades
perecíveis.
“Quem gosta de uma pessoa por causa de sua beleza
sem matar a pessoa, gostará dela? Não pois a varíola, que
tirará a beleza sem matar a pessoa, fará que não goste mais;
e quando se gosta de mim por meu juízo, ou por minha
memória gosta-se de mim? Não; pois posso perder essas
qualidades sem me perder”.
A partir desse ponto do fragmento 323 podíamos notar que o
eu que Pascal nos apresenta só pode ser notado através das
qualidades pelas quais ele se percebe e os outros o percebem. Tais
qualidades mutáveis são o que fazem as particularidades psíquicas
58
do indivíduo. A busca do eu substância é inglória: “Onde está, pois,
esse eu, se não se encontra nem no corpo nem na alma? E como
amar o corpo ou a alma, senão por essas qualidades, que não são
o que faz o eu, de vez que são perecíveis?” (fr 323)
Pascal contrapõe e se distancia da concepção do eu advinda
do cartesianismo
4
: ao eu do cogito, que se realiza enquanto
substância pensante desprovida de tudo aquilo que remete a uma
consciência natural, (visto que esta essência primeiramente se
afirma enquanto possibilidade do conhecimento), o filósofo
contrapõe o sujeito na sua dimensão puramente humana. Cabe
ressaltar que Pascal, ao questionar o sujeito cartesiano, não
desqualifica a racionalidade humana. Em vários fragmentos das
suas Pensées, o filósofo não deixa de afirmar a importância do
pensamento:
“O homem é visivelmente feito para pensar (...) e toda a
sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever
4
Em sua análise desse fragmento Vincent Carraud indica que há uma similitude entre o fragmento 323 e
a Meditação II de Descartes: ao perguntar: “o que é o eu?” , Pascal critíca o “eu-substância”de Descartes.
O “eu penso” cartesiano ao se colocar à janela para ver os passantes, só os vê como homens verdadeiros,
só se certifica da verdade daquilo que seus olhos vêem, depois de julgar pelo espírito. Assim, esse eu não
pensa nos passantes como uma particularidade, uma vez que os homens que passam só são verdadeiros
depois da inspecção do espírito, eles são apenas uma abstração. De acordo com Carraud, Pascal indaga se
aquele que se pôs à janela vê a substância de um eu que passa. Esse eu que passa não é uma abstração, é
um eu constituído pelo amor e que, por isso, quer “ser amado e admirado por todos”. Pascal contrapõe ao
eu abstrato, ao “eu penso” o eu que se ama e requer ser amado para ser.
Portanto, para atacar o “eu penso”cartesiano, Pascal, segundo Vincent Carraud, nesse fragmento,
parte do seguinte raciocínio: se o eu é a “alma da pessoa”, nada do que define o eu pode atingí-lo: nem a
substância que é a “res cogitans”, nem a razão, o espírito ou o entendimento, ( e as qualidades que são a
memória e o julgamento); nem o corpo (seu lugar ou sua beleza), então nem a substância que é a “res
extensa”. Tudo isso que o eu permite pensar dele mesmo é insuficiente à interrogação sobre o eu. Para
isso ver Vincent Carraud, Pascal et la Philosophie, IV, p. 322-327.
59
consiste em pensar corretamente. Ora, a ordem do
pensamento é de começar por si, e pelo seu autor e sua
finalidade” (fr146).
No entanto, o filósofo também aponta que a ordem do
pensamento não deve se deter no eu, ela deve “começar por si, e
pelo seu autor e sua finalidade”. O homem perante o universo deve
constatar a sua insuficiência perante o Infinito que ele não pode
abarcar.
O indivíduo é uma ilusão de unidade, algo que se forja para si
mesmo indefinidamente, que vivencia o puro movimento e a
necessidade de movimento. “Tudo é um, tudo é diverso. Quantas
naturezas na do homem!” (fr. 116). Sendo assim, temos a própria
idéia de natureza colocada em questão, o fragmento sugere que a
própria idéia de identidade do eu não existe.
O eu pascaliano, dizíamos, necessita da estima alheia para
que se concretize.
“É falso que sejamos dignos de que outros nos
amem: é injusto que o queiramos”, aponta Pascal. “Se
nascêssemos razoáveis, indiferentes e conhecendo-nos
a nós e aos outros, não daríamos essa inclinação à
nossa vontade. Nascemos, no entando, com ela;
60
nascemos, portanto, injustos, pois tudo tende para si
mesmo”(fr.477).
Em Pascal, o indivíduo só pode tomar consciência de si
mesmo, só garante alguma certeza da sua identidade a partir da
relação com a consciência que tem dos outros “eus” em relação a si
mesmo. Pois, na medida em que ele não possui um eu constitutivo
e necessita então forjar um para si, ele se faz nesse movimento um
eu que só se afirma a partir do outro.
“Não nos contentamos com a vida que temos em nós e
no nosso próprio ser, queremos viver na idéia dos outros uma
vida imaginária, e, para isso, esforçamo-nos por fingir.
Trabalhamos incessantemente para embelezar e conservar o
nosso ser imaginário e negligenciamos o verdadeiro”(fr. 147).
Por fim esse eu que se apresenta na dimensão puramente
humana só se realiza enquanto imagem que constrói de si mesmo e
que pretende impor aos demais, e, estes, por sua vez, os outros
“eus”, também pretendem cada qual impor a imagem que possuem
deles próprios. Tais imagens são forjadas, na medida em que para
construí-las é necessário que o eu disfarce, esconda suas
qualidades.
61
Esse eu que Pascal nos apresenta como uma mentira,
caracterizado como uma realidade miserável, é o resultado da
separação entre o homem e Deus. A partir dessa separação o
homem foi condenado também a se separar de si mesmo
incessantemente, buscando-se sempre em qualquer outra parte,
onde de fato não se encontra. Esse eu somente pode ser salvo
desse estado de miséria na relação com Deus, porque é também
nela que ele se aniquila.
“Quem não odeia em si o seu amor-próprio, e esse
instinto que o leva a fazer-se Deus, é bem cego”, aponta
Pascal. “Quem não vê que nada é tão oposto à justiça e a
verdade? Porque é falso que mereçamos isso; e é injusto e
impossível chegar a isso, uma vez que todos pedem a mesma
coisa. É, pois, em uma manifesta injustiça que nascemos, da
qual não podemos desfazer-nos e da qual devemos desfazer-
nos”(fr, 492).
Pascal, ao reduzir a diversidade do eu segue em direção a um
resgate da unidade, que não se encontra na unidade do eu, mas
que só pode ser re-encontrado na ordem da caridade.
Temos assim que ao construir o modo como se apresenta o
conceito de eu na sua dimensão existencial, Pascal pretende
destruir o que ele representa. O conceito de eu surge como algo
62
relacional: na relação consigo mesmo e com os outros que
engendra o eu, esse só pode representar a miséria da condição
humana, a falta constitutiva. Na relação com Cristo este conceito se
dissolve.
O homem perante a Natureza é frágil, insuficiente para
abarcar tudo que lhe escapa, que o ultrapassa, na vida social ele
vive a superficialidade de ser uma máscara, “disfarce, mentira e
hipocrisia”, e no abandono de si mesmo ele vive a angustia
existencial que provém da sua falta constitutiva. Pascal convoca o
homem a se considerar perante o infinito: o infinitamente pequeno e
o infinitamente grande, com o intuito de que nesse movimento ele
perceba a sua insignificância. Mas o homem dominado pelo amor-
próprio não quer achar-se pequeno quando almeja ser grande e por
isso se coloca como o centro do mundo. Perante os outros o eu é
tirano e quer ser o centro; na relação consigo mesmo reconhece a
dignidade do pensamento, mas está por demais aprisionado na cela
dos seus desejos e vive, desse modo, uma situação angustiante.
Considerado esse quadro de miséria que caracteriza a
relação do homem consigo mesmo, com os outros e com o mundo,
notamos a necessidade de encontrar uma “plataforma firme e
segura” que resolva as contradições, os paradoxos da condição
humana. Todavia, nas palavras de Pascal essa plataforma é
63
sempre frágil e com o menor vento rui, não há ponto fixo que
solucione as misérias humanas.
“Os que vivem no desregramento dizem aos que vivem
na ordem que são estes que se afastam da natureza, e julgam
segui-la: como os que estão no barco julgam que os que
estão na margem fogem (...). A linguagem é semelhante em
toda parte. É preciso ter um ponto fixo para julgar. O porto
julga os que estão no barco; mas onde conseguir um porto na
moral? “ ( fr. 383).
Ao desenhar as misérias da condição humana, Pascal aponta
para a necessidade de encontrar o sentido dessa mesma condição.
O destino humano, o lugar em que ela encontre um pouso para seu
movimento absurdo e incessante. Todavia, encontrar a verdade, o
repouso da nossa condição é tarefa árdua, uma vez que o homem
se encontra, por sua própria condição, numa situação paradoxal,
“um ponto intermediário entre tudo e nada”(fr. 70). Sendo apenas
um ponto entre extremos infinitos, o homem não pode de modo
algum suprimir os contrários, como nos diz o filósofo no fragmento
72:
“Ardemos no desejo de encontrar uma plataforma firme
e uma base última e permanente para sobre ela edificar uma
64
torre que se erga até o infinito; porém os alicerces ruem e a
terra se abre até o abismo”
Na filosofia pascaliana há uma crítica contundente à filosofia
cartesiana. De acordo com Pascal, a metafísica, ao pretender
estabelecer o vínculo entre o homem e o mundo através da prova
racional da existência de Deus está fadada ao fracasso.
“Não procuremos, pois, segurança e firmeza. Nossa
razão é sempre iludida pela inconstância das aparências e
nada pode fixar o finito entre dois infinitos que o cercam e dele
se afastam”(fr 72).
O eu pascaliano é expressão do ser paradoxal que reúne em
si grandeza e miséria. Reflete a consciência trágica que viveu a
separação entre o finito e o infinito e que não pode vislumbrar uma
reconciliação desse estado a partir da razão. Esse homem
paradoxal está fadado a um emaranhado de dificuldades quando
pretende encontrar um ponto de equilíbrio para sua condição. No
fragmento 383 Pascal coloca: “É preciso ter um ponto fixo para
julgar. O porto julga os que estão no barco; mas onde conseguir um
porto na moral? “(fr. 383). No anterior o filósofo aponta:
“Quando tudo se resolve igualmente, nada se
resolve na aparência, como acontece num barco.
Quando todos tendem para o desregramento, ninguém
65
parece tender. Quem pára torna observável o
arrebatamento dos outros, como um ponto fixo” (382).
De tais fragmentos se depreende a dificuldade de encontrar
um porto que julgue a conduta humana. O próprio homem é um
referencial que está em movimento num universo descentrado,
desse modo, qualquer ponto tomado como centro equivale a
qualquer outro. Diante de um universo descentrado, entre o
infinitamente pequeno e o infinitamente grande qualquer ponto pode
se constituir como centro. O universo “é uma esfera infinita, cujo
centro está em toda parte e a circunferência não se acha em
nenhuma” (fr.72) e nessa condição de desespero o homem só pode
se acomodar em falsos centros. Grandeza e miséria marcam nossa
condição. O homem é grande, na medida em que admite a sua
miséria, quando reconhece que a partir da razão não pode
encontrar um ponto de equilíbrio, a verdade da sua condição. O
ponto de equilíbrio que o homem busca é orientado pelo desejo,
comum a todos, de busca da felicidade:
“(...). E, no entanto, depois de tão grande número de anos,
nunca ninguém, sem a fé, chegou a esse ponto a que todos visam
continuamente” (fr. 425). Ao buscar a felicidade em si mesmo ou
fora de si, o homem se agita do interior ao exterior e é sempre
fadado ao fracasso.
66
A felicidade humana, o repouso da condição paradoxal do
homem, só pode ser designado por Aquele que conhece os limites
da circunferência, em quem as extremidades se tocam e reúnem:
somente Deus pode ser essa verdade, ele que é “o movimento
infinito, o ponto que tudo enche, o movimento de repouso” (fr. 232).
Desse modo, temos em Pascal uma explicação da verdade do ser
do homem que se dá em termos teológicos. A religião cristã é o
norte que explica o sentido da condição humana, o ponto de
equilíbrio que explica a condição paradoxal do homem.
“(...) a religião deve de tal maneira ser o objeto e o
centro para onde todas as coisas tendem, que quem conhecer
os seus princípios poderá explicar a razão de toda a natureza
do homem, em particular,, e de toda a marcha do mundo em
geral”(fr. 556).
Temos então, que o homem somente pode encontrar a
verdade, o sentido da sua condição num plano sobrenatural. No
plano natural:
“a vida humana nada mais é que uma perpétua
ilusão; não fazemos outra coisa senão nos enganarmos
e adularmos mutuamente. Ninguém fala de nós em
nossa presença como fala em nossa ausência. A união
existente entre os homens assenta apenas nesse mútuo
67
engano; e poucas amizades subsistiriam se todos
soubessem o que deles dizem os amigos quando não
estão presentes, mesmo quando falam com sinceridade
e sem paixões” ( fr. 100)
Para compreender melhor a dimensão do sentido da verdade
do eu em Pascal, faz-se necessária uma apresentação do modo
que o filósofo concebe o conceito de natureza humana, uma vez
que ele nos afirma que na sua existência atual o homem vive uma
natureza corrompida. E é no confronto entre concupiscência e
graça, ou de outro modo, entre natureza corrompida e primeira
natureza, que se abre em Pascal a fenda para a compreensão da
verdade do ser do homem em Pascal.
Como vimos, o homem pascaliano vive uma condição
paradoxal marcada por traços de grandeza e miséria. Nesse
capítulo, procuramos enfatizar principalmente os traços de miséria
presentes na condição humana: sob o império do amor-próprio o
homem vive uma situação existencial de fuga constante de si
mesmo através das construções da imaginação e das ocupações
do divertissement. Os traços de miséria por si sós não podem
explicar a verdade do homem, pois esta se encontra não no
conceito que o homem concupiscente do divertissement faz de si
mesmo, mas no conhecimento que o homem que assume a própria
68
miséria (aquele que aspira à “graça”) pode vir a ter de si. Desse
modo, temos que miséria e grandeza são opostos comunicáveis,
somente sendo consciente de seu estado de miséria o homem pode
vislumbrar a grandeza que o abarca e também o ultrapassa.
69
VI- A GRAÇA
Segundo Pascal, os filósofos que pretenderam conhecer a
essência do ser, atribuindo ou não a ela uma substância divina, só
puderam obter insucesso nesse empreendimento, porque tomaram
por origem apenas as construções da razão. Pascal toma
Montaigne e Epicteto como significativos representantes de seitas
5
que só puderam compreender o homem unilateralmente e, portanto,
fracassaram nos seus objetivos. Epicteto, ao considerar o homem
como um ser capaz de realizar a vontade divina escondeu os traços
de miséria presente na condição humana. Já Montaigne percebeu
que o homem não tinha forças suficientes para atingir a divindade;
todavia, viu nesse fator motivo suficiente para o homem se refugiar
na ignorância total, perdendo de vista as marcas de grandeza,
resquícios de sua primeira natureza.
Tanto Epicteto como Montaigne colocaram o homem no vazio.
O estóico, ao afirmar que o homem por si só chega ao alcance de
Deus e por isso alcança a compreensão de sua verdadeira
5
Philippe Sellier em sua obra “Pascal et Saint Augustin” pp.190-191, afirma que “os epicuristas colocam
o soberano bem nos prazeres dos sentidos, e os estóicos na admiração da alma por ela mesma”.
Montaigne e Epicteto são, para Pascal, dois eminentes representantes dessas duas filosofias, que se opõem
totalmente uma a outra (conforme o “Colóquio com o Sr. De Saci”). Em moral Montaigne é um
epicurista, aos olhos de Pascal.
70
natureza, posicionou este mesmo homem no “pico do rochedo’,
metáfora pascaliana do orgulho. Por sua vez, o ceticismo de
Montaigne iguala o homem aos animais, visto que, ao aceitar com
naturalidade as misérias presentes na condição humana, esse
filósofo se acomodou na preguiça. Orgulho e preguiça caracterizam
em Pascal a fonte de todas as faltas do homem:
“Uns considerando a natureza como incorrupta, outros,
como irreparável, não conseguiram evitar nem o orgulho nem
a preguiça, que são as fontes de todos os vícios (...)” (fr.435)
O homem estóico, na visão pascaliana, acaba por se manter
na grandeza que atribui a si mesmo, perdendo de vista as suas
fraquezas. Ao dar-se conta dessas fraquezas, como constatou
Montaigne, “o homem cai de um orgulho desmedido a um
abatimento insuportável... de uma presunção desmedida o homem
cai a um horrível abatimento do coração” (fr. 417).
Pascal compreende a preguiça como uma face ressentida do
orgulho, pois “os que desprezam mais os homens, e que os igualam
aos animais, ainda querem ser por isso admirados e acreditados, e
se contradizem a si mesmos por seu próprio sentimento” (fr. 404).
Considerada a preguiça a outra face do orgulho, temos então que,
na visão de Pascal, o homem ainda que negue a sua excelência, é
ainda nessa negação movido pelo mesmo desejo de excelência. O
71
homem quer se vangloriar em qualquer situação e é esse desejo de
glória que conduz o homem a se exaltar ou se rebaixar como
pretenderam estas duas “seitas” filosóficas em questão. A busca de
glória corresponde ao desejo de ser reconhecido pelos outros e
uma vez que tal desejo está presente em todos os corações, deve
estar também em toda filosofia. O desejo de ser reconhecido iguala-
se a um culto que o homem presta a si mesmo, e é neste culto que
Pascal vê o orgulho elevado ao extremo.
É através da razão que o homem procura ser reconhecido na
razão alheia, ou seja, busca a glória, uma vez que a razão é o que
possibilita ao homem vangloriar-se, ela se faz um ídolo a quem o
homem serve voluntariamente, e, na medida em que a própria
razão é um ídolo, temos que também é ela que impede que o
homem reconheça a sua verdadeira condição. Montaigne e Epicteto
julgaram terem descoberto, através da razão, a verdadeira condição
do homem, e é por conta da orientação que eles escolheram para
tal objetivo que Pascal considera as “duas razões contrárias”, a
saber, estoicismo e ceticismo, como seitas. Tais seitas acabam por
se excluírem mutuamente, na medida, em que uma exalta a razão,
a outra a rebaixa; uma afirma que há um Deus e que o homem
pode alcançá-lo; a outra, que a existência da divindade é incerta à
razão e que o homem não é capaz de se elevar até ela. O orgulho
72
conduz Epicteto a ressaltar somente a grandeza humana fazendo
do homem um anjo, visto que confere a este o poder de se igualar a
Deus. Já Montaigne pretende sua glória na descoberta da miséria
humana, uma vez que vê a natureza do homem como debilitada e
iguala este aos animais. As concepções acerca da condição
humana, presentes no estoicismo e no ceticismo, caracterizam o
homem, juntas, na figura do anjo e do animal, como resultado da
junção entre grandeza e miséria num mesmo sujeito. Tal junção
traçaria o homem como “um monstro estranho e um desvario bem
visível” (fr.405). Todavia, uma vez que tanto Epicteto como
Montaigne pretenderam explicar a grandeza ou a miséria da
natureza humana, é correto que o homem traga em si marcas
desses dois opostos.
O problema dessas escolas filosóficas é que, de um lado, o
estoicismo, ao exaltar somente as grandezas humanas, elevou o
homem acima da sua própria humanidade. Por outro lado,
Montaigne ao ressaltar somente as misérias do homem, igualou
este aos animais. Desse modo, ambos os filósofos em questão
colocaram o homem num não-lugar, uma vez que este não pode
permanecer tranqüilo em nenhum destes posicionamentos: num
deles o homem acaba por velar as suas misérias, já no outro almeja
ser reconhecido pelo fato mesmo de exaltá-las.
73
Como vimos, o conhecimento racional não pode dar conta da
verdade da natureza humana, porque a razão alcança apenas parte
do conhecimento da condição humana e é por isso que a toma por
única, ainda que sob aspectos diferentes. Ainda que a razão
detecte as contradições presentes na natureza do homem, no
entanto, é incapaz de harmonizá-las no plano abstrato em que a
considera. Para uma compreensão plena da noção de natureza
humana, faz-se necessário harmonizar os contrários (grandeza e
miséria). A natureza que a razão toma por única deve ser
desdobrada em duas, e para tanto, se faz necessário ir além da
razão, reconhecendo que há verdades que estão além do que o
conhecimento racional pode demonstrar. “A última tentativa da
razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a
ultrapassam” (fr. 267). É a partir das verdades reveladas – que
ultrapassam os limites da razão – que o homem pode ampliar o
conhecimento sobre sua própria natureza. Com elas o homem pode
discernir em si uma natureza sadia (antes da Queda) de uma
natureza corrupta (pós- Queda).
Desse modo, temos que a grandeza que Epicteto assinalou
como marca da natureza humana era natural ao homem no estado
anterior à Queda (no homem unido a Deus). A miséria que
74
Montaigne aponta como natural no homem, só o é no estado
posterior à Queda, no homem separado de Deus.
No plano racional é insustentável pensar os traços de
grandeza e miséria como marcas de uma mesma natureza humana.
Todavia, a fé, ao ensinar que esses traços provêm de dois
momentos distintos da natureza humana, permite ao homem pensar
“que paradoxo é em si mesmo”, ao mesmo tempo fraco e forte,
grande e pequeno, nem anjo e nem animal.
Somente a verdade do evangelho é capaz de conciliar estes
opostos: a figura de Cristo ao reunir em si o humano e o divino
corresponde ao núcleo de certezas no qual as contrariedades
humanas se harmonizam.Somente Nele o homem pode encontrar a
verdade de sua natureza: “fora de Jesus Cristo não sabemos o que
é nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos”
(fr.548).
Somente a partir da mediação de Cristo o homem miserável –
infinitamente separado de Deus – pode obter uma comunicação
com o sobrenatural, ou seja, com a sua própria verdade. Portanto, é
na relação com Cristo que o homem pode conhecer a Deus e a si
mesmo, somente a partir disso, o paradoxo da condição humana
torna-se pensável. “É não somente impossível, mas também inútil,
conhecer Deus sem Jesus Cristo”(fr. 549).
75
Com o conhecimento racional podemos somente conhecer
abstratamente a existência de Deus, mas somos incapazes de
provar a sua divindade, do mesmo modo que com os recursos
racionais chegamos à grandeza e, ou, à miséria da natureza
humana sem conhecer a verdadeira natureza humana.
Em Pascal, grandeza e miséria, são traços constitutivos da
natureza humana. Esta no seu estado atual se identifica com o
hábito, uma vez que o homem após a Queda se encontra
destituído de sua essência que na primeira natureza representava a
sua relação com Deus. A razão, incapaz de provar Deus, só pode
exaltar ou rebaixar o homem. Já o coração, ao poder provar a
divindade de Cristo, sente também a grandeza e a miséria humana.
Os filósofos que através da razão almejaram explicar a
condição humana, ao exaltarem a grandeza ou a miséria dessa
condição sem conhecer Deus, não conseguiram provar a essência
do Ser universal. Portanto, amaram o que julgaram possuir como
seu ser mais precioso, a saber, o próprio eu. No fragmento 277
Pascal atesta que “o coração ama o ser universal naturalmente”,
todavia, uma vez que o homem se encontra infinitamente separado
de Deus, acaba por aplicar a si mesmo sua capacidade de amar a
Deus. Temos então que o eu em Pascal transforma o amor
destinado a Deus em amor-próprio, tomando a si mesmo como
76
Deus. O eu somente se constrói verdadeiramente a partir da
relação entre a alma capaz de um amor universal e Deus. E visto
que o eu não conhece Deus a quem se iguala, também não
conhece a si mesmo. Logo, é por instinto de se conservar que o eu
se faz Deus. “Será devido à razão que vos amais a vós próprios?”
(fr. 277).
Temos então que a partir do amor-próprio que o eu se
constrói, ao mesmo passo também se perde de vista, uma vez que
deposita em si mesmo um amor infinito, igualando-se a Deus, o
qual a razão não pode medir. Portanto, para que o eu se conheça
verdadeiramente é preciso conduzi-lo à descoberta do seu lugar de
origem e isso só é possível atacando este amor-próprio que
engendra o eu e que o leva a se fazer Deus. A partir do
dilaceramento do eu é que o homem pode verdadeiramente se
conhecer.
“O homem não passa (...) de disfarce, mentira e hipocrisia,
tanto em face de si próprio como em relação aos outros” (fr.100).
Retomando essa consideração de Pascal, percebemos que
ela tende a revelar que, separado de Deus, o homem passa a
enganar a si mesmo e aos outros. O homem só pode imaginar-se
grande por se desconhecer completamente, sabe que está cheio
de misérias, mas na recusa de aceitá-las e compreendê-las recorre
77
a dissimulações. É para evitar a verdade de sua condição que o
homem dissimula, tanto em face de si mesmo como em relação aos
outros; desse modo, temos que é a partir de uma ilusão voluntária
que o eu se forja fazendo-se grande. E esta ilusão voluntária tem
raízes profundas no coração do ser humano.
O amor-próprio que engendra o eu faz do homem um ser
dominado pela desordem: ‘guerra intestina do homem entre a razão
e as paixões” (fr.412). O eu não somente vive um conflito interior
entre sua razão e as paixões, mas também estende essa guerra
para o exterior, na medida em que necessita dominar os outros
“eus” para satisfazer os seus próprios interesses, como apontamos
no capítulo anterior. Tal conflito que vive o homem se deve à perda
da unidade estabelecida por Deus entre Ele e a criatura; com a
Queda o homem passou a ser dividido e contrário a si mesmo.
Este homem dividido é aquele que sente o vazio dos espaços
infinitos que se abriram com o abandono de Deus, e pretende a
todo custo preencher este vazio amando tudo aquilo que julga útil
para si. Todavia, o amor infinito que antes era depositado em Deus,
ao se transformar em amor-próprio, um amor que visa apenas o
interesse do homem, pelo fato de ser infinito, não se satisfaz na
criatura finita. O amor-próprio, por ser desmedido, lança o homem
78
indefinidamente do interior ao exterior, sem que este possa
encontrar um ponto de equilíbrio.
Sendo o amor-próprio responsável pelas contradições
presentes no homem, tudo que ele faz é visando a si mesmo: ao se
considerar grande, tal grandeza é forjada apenas para a satisfação
do amor próprio e de modo algum pode ser considerada como
inerente ao homem, uma vez que “a grandeza do homem é grande
na medida em que ele se conhece miserável” (fr. 397).
O amor-próprio, ao ser caracterizado por Pascal como um
amor que ama a si mesmo e que tudo quer dominar por esse amor
se contrapõe à caridade (Ordem da Caridade) que corresponde ao
amor que ama Deus. Desse modo, o eu é fruto da relação de amor,
mas de um amor exagerado de si mesmo. O eu que se dá nessa
relação de amor, se faz deus do seu amor-próprio. A partir da
oposição entre amor-próprio e caridade Pascal constata que o
homem é completamente dominado pelo seu amor-próprio. O
homem é incapaz de dominar as suas paixões, uma vez que fazem
parte de sua natureza decaída, portanto, a verdade da condição
humana só pode surgir a partir do dilaceramento desse respectivo
conceito de eu.
Considerada a noção de amor-próprio e sendo este amor
desmedido, temos que o eu se faz a partir de uma relação em que
79
ele é tanto sujeito como objeto do seu amor: um amor que tem em
si mesmo o seu centro, mas que pretende destruir este mesmo
desejo nos outros eus, pois necessita dominá-los:
“(...) o eu tem duas qualidades: é injusto em si, fazendo-se
centro de tudo; é incomodo aos outros, querendo sujeitá-los: pois
cada eu é inimigo e desejaria ser tirano de todos os outros...” (fr.
455).
O homem separado de Deus e que se toma por Deus
apresenta seu eu como uma unidade que para se conservar
enquanto tal necessita ser reconhecida pelos outros eus como o
centro de tudo. No entanto, uma vez que este amor aplicado a si
mesmo tem como meta preencher o vazio que permeia o coração
humano após o abandono de Deus temos que esse eu “não
poderá impedir que esse objeto que ama esteja cheio de defeitos e
misérias”(fr. 100). O homem só pode construir-se grande velando
todas as suas misérias, fraquezas e imperfeições; portanto, este eu
que é fruto do amor-próprio só pode se fazer na medida em que
lança o homem para fora de si mesmo, fazendo com que este
busque no exterior “eus imaginários” para só assim se auto-afirmar
como centro.
Enquanto ama a si mesmo o eu não pode se dar conta da
dimensão real de sua condição; no entanto, na medida em que
80
considera a si mesmo pode se ver inteiramente: reconhece-se como
miserável, fraco e imperfeito Mas é também para fugir dessa
constatação que o eu se esforça por fingir, criando os “eus
imaginários” e impondo-os aos outros.
Como já apontamos, o eu somente pode ser reconhecido
pelos outros eus na medida em que forja uma imagem das
qualidades que julga possuir e tenta impô-las aos outros, e, uma
vez que é só nessa reunião de qualidades de empréstimo que o eu
se conhece e se reconhece, temos que ele mesmo é uma ilusão.
Há uma contradição insuportável entre o que o eu anseia
parecer e aquilo que ele é de fato, e, é por isso que na medida em
que o eu se considera verdadeiramente o amor-próprio passa a ser
inibido.
Pascal aponta que é necessário amar o eu verdadeiramente,
amá-lo como falta uma vez que ele se ama de modo equivocado: “a
grandeza do homem é tão visível, que se tira mesmo de sua
miséria” (fr. 409). É a partir do reconhecimento da própria miséria e
não no mascaramento desta, que o eu se abre para um amor
verdadeiro.
O vazio presente no eu não é devido à distância deste em
relação a si mesmo. O vazio existente no eu foi deixado por Deus
ao abandonar o homem. Portanto, ao tentar preencher este vazio é
81
que o eu se auto-destrói, pois visa esconder este vazio com as
ilusões do divertissement. Portanto, o eu não deve ser buscado em
algum lugar da exterioridade, deve antes ser buscado no próprio
coração humano: o eu deve ser amado como esta falta mesma que
constitui a condição de um ser extraviado por natureza. O lugar do
eu deve ser buscado na sua alteridade com o próprio Deus; é
negando o que ele forja para si que pode se abrir para Deus.
É a partir do dogma da Queda e da Redenção que Pascal
empreende a destruição do conceito de eu: o homem não pode
reconhecer a si mesmo no seu estado atual porque Deus é um
“Deus Escondido”, e é por isso que somente a verdade da
Revelação é que pode conduzir o homem a ver a si mesmo tal
como é,ou seja, ver Deus. Através da graça divina que toca o
“coração” o homem pode resgatar a sua unidade; no entanto, não é
o eu que é salvo nessa relação, mas o eu de Jesus Cristo.
O eu pascaliano não existe em si mesmo, visto que é
formado e conservado a partir do amor-próprio: que se expressa a
partir do vazio que Deus deixou. Ao se forjar nesse vazio, o eu só
pode se constituir na medida em que empresta para si qualidades
que não possui, só podendo, desse modo, se revelar nas
qualidades pelas quais ele se percebe e os outros o percebem.
82
No fragmento 323, significativo para a compreensão do
conceito de eu, Pascal apresenta duas decisivas questões, a saber,
“que é o eu?” e “ e “onde está esse eu? ”. No desenvolvimento do
fragmento em questão, Pascal posiciona o eu na janela para ver os
passantes. Contudo este eu que se põe à janela, não pode ver o eu
que passa, temos então que o eu enquanto um objeto do olhar não
se deixa visualizar, visto que o eu que se põe à janela, não pensa
particularmente no eu que passa. Logo, temos que o eu só
considera a si mesmo, não tem consciência dos outros eus. Com
isso, temos que a medida em que há ausência de consciência do
outro, há também a abertura que possibilita o eu lançar mão de
dissimulações, o eu não pode ser apreendido pelo olhar porque se
esconde.
O eu dissimula, porque ao se colocar como objeto do olhar
quer ser visto como objeto do amor: “quem gosta de uma pessoa
por causa da beleza; do juízo, ou da memória (...) gostará dela?
Não (...) ... estas poderão se perder com o tempo, sem que a alma
se perca.”. As qualidades do corpo e da alma que o eu não
esconde, não é o eu que as possui realmente, visto que elas podem
desaparecer sem que o eu desapareça. Tudo aquilo que no eu
pode ser visto como objeto de amor são apenas qualidades e não o
83
eu, temos então que a relação do eu com os outros só se dá no
nível das qualidades.
Mas, entendido que o eu só se deixa perceber por suas
qualidades e que não são estas que fazem o eu, Pascal indaga:
“onde está esse eu que não se encontra nem no corpo nem na
alma?”. O lugar verdadeiro do eu encontra-se na humildade: lugar
do eu substância divina, do eu que se aniquila em Jesus Cristo.
Pascal diz adiante: “Com efeito, amaríamos a substância da
alma de uma pessoa abstratamente, e alguns qualidades que nela
existissem? Isso não é possível, e seria injusto”. Tal injustiça se
deve ao amor-próprio, uma vez que este amor infinito empreende
amar qualidades perecíveis. Portanto, amando com um amor infinito
qualidades que são acidentes, o eu é injusto consigo mesmo. O eu
é injusto consigo mesmo e com os outros, uma vez que preencheu
o vazio deixado por Deus se tomando como homem/deus e nisso se
perdeu da sua verdadeira essência, e ainda, arranca dos outros eus
o mesmo direito que julga possuir de fazer-se Deus. Ao se querer
Deus o eu desvia o olhar das suas próprias misérias. Esse eu
dissimulador só poderá se desfazer dessas injustiças a partir da
negação do amor-próprio, que é o que o engendra. Ao se desfazer
desse amor o homem se abre para Deus e resgata o sentido da sua
condição.
84
Retomando, temos que o eu que se forja a partir do espaço
vazio deixado com o abandono de Deus caracteriza a miséria que
vive o homem atual. Miséria esta que é conseqüência da Queda do
primeiro homem. A natureza humana foi corrompida com a Queda,
na medida em que a partir dela o homem se separou de si mesmo,
uma vez que se distanciou de Deus. Portanto, a chave para a
compreensão da miséria atual da condição humana não será
encontrada no próprio homem, mas através de Cristo, espelho onde
o homem pode se desdobrar e se vê, todavia, só pode se ver como
mistério e enigma.
Cristo reúne em si a dualidade da natureza humana e se
apresenta como o mediador entre o finito e o Infinito. O sofrimento
de Jesus Cristo, sua solidão e abandono por parte de Deus e dos
homens (fr 553) é o que possibilita ao homem enxergar sua própria
realidade, ao mesmo tempo em que conserva o mistério dessa
realidade, uma vez que o sofrimento de Cristo não é menos
incompreensível que o do homem.A união de Deus ao homem na
figura de Cristo constitui o núcleo da teoria da graça. Ao expor sua
interpretação da teoria da graça, Pascal segue uma orientação
agostiniana. A verdade sobre a graça é exposta em seu
pensamento a partir da contraposição de duas doutrinas sobre esta
temática, a saber, a de Molina e a de Calvino. De acordo com
85
Pascal, os erros de Molina e de Calvino são parciais e se destroem
mutuamente.
Um dos aspectos essenciais do pensamento teológico de
Pascal se refere à harmonia da criação. No seu estado de primeira
grandeza o homem, enquanto criatura, podia participar da vida
divina com o auxílio da graça, vivia, desse modo, a plenitude do seu
próprio ser que se realizava a partir da ligação indissociável entre
criatura e Criador. Todavia, esta plenitude precisava ser confirmada
por Deus, a confirmação na vida eterna dependia da vontade divina,
para tanto o homem deveria observar os preceitos divinos para ser
confirmado na glória. Observar os preceitos divinos consistia em
que o homem jamais deveria cortar seus vínculos de dependência
com Deus, deveria dedicar um amor infinito ao seu Criador.Temos,
desse modo, que no estado de criação havia uma relação de
dependência da criatura em relação ao seu Criador. Nesse estado o
homem era indiferente ao bem e ao mal, todavia sabia dos
propósitos de Deus para sua vida, uma vez que obteve dele uma
graça suficiente e necessária para permanecer no Bem: suficiente
porque o homem não tinha até então nenhuma orientação para
seguir o mal, portanto bastava ser direcionado para o bem;
necessária, visto que o homem ao estar indiferente ao bem e ao
86
mal, se orientando somente pelo seu livre-arbítrio, poderia se perder
dos desígnios divinos.
Mas, ainda que Deus tenha fornecido a sua criatura esta
graça suficiente que a orientaria para o Bem, não impediu, no
entanto, que ela optasse pelo mau uso da graça, visto que Deus
deu ao homem a livre escolha de fazer bom ou mau uso da graça.
O primeiro homem conhecia os preceitos divinos, possuía uma
vontade sã e forte e a graça para realizar tais preceitos. Temos
então que o espaço de liberdade do primeiro homem consistia em
poder não pecar. Deus impôs ao homem observar os preceitos (a
observância denota que Deus tinha uma vontade condicional de
salvar o homem), para que este não se sentisse como senhor de
sua beatitude. Observando os preceitos o homem se preservava do
orgulho.
No entanto, Adão optou pelo abandono da graça divina,
buscando em si mesmo a sua beatitude. Ao querer ser
independente de Deus e se igualar a Ele, o primeiro homem buscou
uma autonomia moral que atentava contra a soberania divina. As
conseqüências desta afronta ao Criador foi o mergulho do homem
na concupiscência, no amor exagerado de si mesmo. O primeiro
homem, ao abandonar o Criador, inverteu a ordem do amor. O amor
que no estado de inocência se relacionava com o amor-de-si, que
87
era o próprio amor a Deus, torna-se com a Queda, amor-próprio,
um amor infinito que a criatura deposita a si mesma no espaço
vazio deixado por Deus. Desse modo, o espaço em que reina o eu
é também aquele espaço do orgulho e do engano.
Com a falta de Adão, o homem se afasta da sua primeira
natureza, que consistia na união com o Criador, e passa a viver
uma natureza corrompida. No seu estado de primeira grandeza o
homem podia não pecar porque tinha a vontade dirigida para o
Bem. Já na natureza corrompida, o homem se encontra no próprio
reino do pecado, na medida em que a vontade está dirigida para si
mesma, à satisfação do eu. Ao abandonar a graça que indicava o
caminho do Bem, o homem se tornou juiz do bem e do mal, todavia,
sua vontade que antes era orientada a um amor infinito pelo
Criador, foi enfraquecida e passou a se orientar para tudo aquilo
que maior deleitação proporcionasse.
Ao aplicar este amor infinito ao seu próprio eu e se deleitar
com os objetos que maior prazer proporcionarem a este eu, a
vontade vive insatisfeita, uma vez que seu potencial infinito não
pode se realizar na finitude da criatura. “O homem ultrapassa
infinitamente o homem” nos diz Pascal. Toda pretensão de
compreensão do humano deve abarcar a consideração de que o
88
homem, na sua condição temporal, se encontra destituído do seu
ser autêntico. Pascal explica a condição humana a partir do eixo
histórico da Queda e da Redenção; disso se segue uma concepção
de homem que caracteriza este, sobretudo, como um ser fendido
pelo sobrenatural. O homem pascaliano ultrapassa infinitamente
toda e qualquer concepção racionalista do homem.
Pascal, ao colocar o homem como um ser que somente
alcança o seu plano ontológico na abertura para Deus interroga os
sistemas filosóficos que visaram definir o homem no nível da
natureza. No nível da natureza o homem é incapaz de alcançar o
sentido pleno de sua condição e assim assentar-se na verdade e
felicidade. Todos os sistemas filosóficos que pretenderam explicar o
homem nesse nível caíram numa série de contradições. Toda
filosofia que almejou explicar racionalmente o homem em termos de
natureza não notou que, na busca de compreender o homem em
sua dimensão plena, a razão só não basta. É se valendo da própria
razão, daquilo que ela prova acerca do humano e do universo, que
Pascal também leva o homem a compreender o paradoxo que ele é
em si mesmo.
A busca do sentido do homem em termos de natureza é,
certamente, fadada ao fracasso, porque na filosofia pascaliana o
homem na sua dimensão temporal se caracteriza como um ser
89
extraviado infinitamente daquilo que constituía a sua verdadeira
natureza. O que tomamos como natureza nessa dimensão é na
verdade uma reunião de caracteres fragmentados moldados a partir
do hábito e que só se constitui enquanto uma falsa unidade. O
discurso racional não dá conta de explicar o sentido pleno do
humano, na medida em que ele visa a conciliação de todos os
paradoxos que se desenham no plano existencial do homem,
quando se faz necessário na verdade a explicitação e explicação
dos mesmos.
É a partir da noção de graça, que constitui o núcleo da
doutrina cristã, que Pascal localiza o plano essencial do homem. Tal
doutrina, ao unir ao homem as coisas divinas, assume uma forte
aparência de contradição; disso se segue que todos aqueles que
visaram compreender esta doutrina através da razão acabaram por
eliminar os contrários, ora atribuindo tudo a Deus ou atribuindo tudo
ao homem.
Nos seus Escritos sobre a graça, principalmente, Pascal irá
colocar a compreensão desse “mistério insondável” como o único
capaz de alcançar a plenitude de sentido da existência humana.
Para tal empreendimento, o filósofo contrapõe a doutrina de Molina
à de Calvino e é a partir do confronto dessas duas compreensões
“unilaterais” acerca da graça que Pascal faz jorrar a sua
90
interpretação daquela que deve ser entendida como a verdadeira
doutrina da graça fiel à Tradição. Contrapondo a verdade dos
molinistas à dos calvinistas, entendidas no pensamento de Pascal
como verdades parciais, surge a verdade de maneira unívoca, uma
vez que “os erros (de ambos) se destroem mutuamente” (fr. 862).
Deus atua no homem através de sua graça e o homem só age
corretamente com a graça divina. Somente conhecendo esta
misteriosa união do humano e divino expressa a partir da graça na
figura de Cristo é que se pode esclarecer o verdadeiro sentido de
nossa condição, assim como também apenas considerando o
homem em dois estados distintos é que se pode compreender sua
miséria e a necessidade da graça divina em seu estado atual.
Assim como Pascal distingue no homem um estado antes e
outro depois da Queda de Adão, também discerne duas graças:
uma relativa ao homem antes da Queda e outra própria do seu
estado atual, no qual ele necessita de uma graça que ao mesmo
tempo o faça querer, poder e agir, visto que após a queda o homem
teve sua liberdade enfraquecida e já não pode por si só se orientar
para o Bem.
Antes da Queda, no estado de criação, o homem possuía
plenamente seu ser, na medida em que estava em sintonia direta
com o Ser pleno que era Deus. Por realizar plenamente seu ser o
91
homem se comunicava com Deus; desse modo, ele participava da
divindade, era capaz de Deus, se constituía como um ser em que
não havia separação entre interioridade e exterioridade. O homem
vivia a plenitude do seu Ser.Para que fosse eterna essa plenitude
que gozava o homem no estado de criação era necessário que
Deus a confirmasse. Mas porque o homem foi criado com o livre-
arbítrio essa confirmação dependia também da vontade humana.
Deus pediu ao homem que observasse seus preceitos para ser
confirmado eternamente na glória; observar tais preceitos
significava que jamais o homem deveria se esquecer que a sua
existência estava relacionada diretamente com a de Deus, ou seja,
que ele não perdesse de vista que era a criatura e que dependia
intrinsecamente do seu Criador.
Todavia, enquanto criatura dotada de livre-arbítrio, o homem
possuía também a liberdade de abandonar ou não tal dependência;
sua primeira liberdade consistia, desse modo, em poder não pecar,
era a de permanecer eternamente em si, ou seja, na sua relação
com o Ser pleno.
Temos então que o primeiro homem podia escolher a
confirmação da plenitude do seu ser na eternidade, na medida em
que permanecesse nos vínculos de dependência com seu Criador.
Mas, para tanto, embora esse primeiro homem se encontrasse num
92
estado de inocência, necessitava da graça de Deus para realizar o
Bem (o bem consistia em jamais deixar de observar os preceitos
divinos, ou seja, amar sempre o seu Criador).
Tal necessidade se esclarece, na medida em que ao ser
dotado de livre-arbítrio Adão podia optar por não praticar o bem,
uma vez que seu livre-arbítrio era flexível tanto para o bem quanto
para o mal, sendo o mal no estado de inocência não observar os
preceitos divinos, ou seja, buscar ser independente de Deus. A
graça é então necessária para que o homem pratique o bem. Deus
não podia com justiça impor os preceitos a Adão sem lhe dar a
graça necessária para os realizar. Somente porque o primeiro
homem obteve uma graça suficiente e necessária para permanecer
na plenitude do seu Ser a partir da manutenção dos laços com o
Criador é que ele pode ter pecado. Pois, ao ser dotado de livre-
arbítrio flexível tanto para o bem como para o mal ele poderia ter
cortado os laços de dependência sem prejuízo para si, já que foi o
próprio Deus que o orientou com tal potência e não prestou nenhum
auxílio para que sua criatura não quebrasse esse vínculo.
Porém, Deus dota o primeiro homem também com uma graça
suficiente e necessária para que ele permaneça no bem. Suficiente,
porque no estado de inocência não havendo distinção entre
exterioridade e interioridade, então nada exterior arrastava o
93
homem para o mal; e necessária porque o homem estando somente
entregue ao seu livre-arbítrio não poderia realizar o bem. Temos
então que no estado de criação o homem era ciente que Deus
almejava confirmar sua plenitude na eternidade, era dotado de uma
vontade que podia o conduzir para o bem, como também possuía
uma determinada graça que tornava possível tal condução.
O homem tinha, portanto, a liberdade de fazer mau ou bom
uso da graça, a primeira liberdade consistia, desse modo, no poder
de não pecar. A queda de Adão expressa a escolha pelo o mau uso
da graça. Pascal designa sempre esse episódio como uma
“rebelião orgulhosa”, uma vez que o abandono da graça divina
implica que o primeiro homem buscou em suas próprias forças a
superioridade que só a graça possuía, pois só ela poderia conduzir
o homem à confirmação eterna da plenitude do seu ser. Ao
abandonar a graça, Adão nega a sua condição de criatura, quis ser
independente de Deus. Ser igual a Deus e independente dele é
para Pascal o orgulho levado ao extremo. Foi por espontânea
vontade que Adão se afastou de Deus, pois ao se apoiar
exclusivamente em seu livre-arbítrio, abandonou a graça divina e
por sua vez, foi também abandonado por Deus. Ao abandonar a
graça, Adão cortou os vínculos de dependência com o Criador,
almejou ser independente de Deus e se igualar a Ele. Desse modo,
94
o primeiro homem negou a sua condição de criatura e pretendeu
decidir a partir das suas fracas luzes o discernimento entre o bem e
o mal, ou seja, reivindicou a autonomia moral pela qual negou seu
estado de criatura.
Ao tentar se fazer deus de si mesmo, rompendo os vínculos
com o Criador, Adão despertou no homem a concupiscência, ou
seja, o amor exagerado de si mesmo. Esta foi a primeira
manifestação da desordem que o pecado introduz na harmonia da
criação. No seu estado de inocência o homem era envolto por um
amor-de-si que consistia na união com o amor divino. Por orgulho,
Adão inverteu esta ordem e passou a amar infinitamente a si
próprio. Movido pela sua própria vontade o homem abandonou a
Deus e, com isso, abandonou também a si mesmo. Em decorrência
desses fatores, o homem atual se encontra numa distancia infinita
do seu Criador. Nesses espaços imensuráveis impera o reino do eu,
no qual o homem pretende a todo custo ser o centro de si mesmo,
fazendo do seu eu, um Deus para si.
Com a Queda, o amor de si voltado para Deus, se
transformou em amor-próprio. Essa inversão do amor que se deu
por conta do orgulho da criatura, resultou em que o homem, no seu
estado atual, vive uma vida emaranhada em misérias. Se no estado
de inocência o primeiro homem gozou do privilegio de poder não
95
pecar, a partir da Queda ele se lança no próprio reino do pecado.
Ao abandonar a graça, o primeiro o homem teve sua vontade
enfraquecida e não pode mais por si só se direcionar para o Bem,
ou seja, para Deus. A vontade do homem decaído se voltou para si
mesma e tudo que busca é satisfazer desmedidamente o seu amor
maior que passou a ser o próprio eu.
Com isso, temos que a fonte de todos os pecados consistiu na
inversão da ordem do amor instituída por Deus. Na transformação
do amor-de-si voltado para o Criador, em amor-próprio voltado para
o eu. Ao perverter a ordem do amor, o homem teve o seu livre-
arbítrio enfraquecido e se tornou escravo do pecado, na medida em
que passou a viver sob o jugo de uma vontade infinita que busca a
todo custo a satisfação do próprio eu. No entanto, essa vontade
jamais pode se deleitar plenamente na criatura finita, daí a fonte de
todas as nossas misérias e angústias.
O homem decaído, escravo do pecado, perdeu também o
privilegio de poder não morrer, visto que em sua primeira natureza
ele era imortal e só precisava ser confirmado por Deus eternamente
na glória. Temos então que o pecado introduziu a morte no homem
e este passou a viver o temor desta, sua vontade o orienta a todo
custo para os prazeres da concupiscência, desvencilhando-o,
assim, de refletir acerca das misérias de sua condição atual.
96
Todavia, embora a falta do primeiro homem o tenha lançado a
uma distancia infinita do seu Criador, ainda resta a ele algum
instinto de felicidade e idéia da verdade, enquanto resquícios de
sua primeira natureza. Pois, no seu estado atual, submerso num
emaranhado de misérias, o homem não pode encontrar a felicidade
e a verdade. O homem atual é um composto de grandeza e miséria
que não pode ser resolvido numa síntese; no entanto, pode ser
compreendido e assim fazer luz ao sentido verdadeiro de sua
condição.
Todos os homens posteriores a Adão nascem sob o peso do
pecado do primeiro homem, mas o Criador almeja escolher entre
essa humanidade pecadora um certo número de homens. Tal
escolha, fruto da misericórdia divina se dá por razões
desconhecidas, independentes de qualquer mérito relativo à vida
mundana. Desse modo, a salvação de alguns homens repousa
somente na gratuidade da misericórdia divina.
A graça expressa na figura de Cristo deve atuar na vontade
corrompida do homem decaído, pois com o livre-arbítrio
enfraquecido pela Queda, o homem não pode mais por si só voltar-
se para o bem. A vontade do homem pós-Queda é movida pela
concupiscência, dirige-se sempre para a satisfação do próprio eu.
Todavia, o eu finito jamais pode preencher a capacidade infinita da
97
vontade, dai decorre que esta experimenta um constante
descontentamento. Deus constitui, portanto, o único bem verdadeiro
que pode satisfazer plenamente a vontade. A graça de Jesus Cristo
fornece à vontade o Bem verdadeiro, ou seja, o amor de Deus,
preenchendo o vazio existente no homem no qual se instalou o eu.
Tal graça difere daquela recebida por Adão no estado de
criação, na medida em que com a introdução do pecado, o homem
foi entregue às suas próprias forças e sua vontade perdeu o poder
de se guiar para o bem, e nem mesmo possui o anseio de querer o
bem. O homem decaído necessita de uma graça que lhe dê não só
o poder de realizar o bem, mas também o de querer realizar o bem.
A graça de Cristo proporciona ao homem o poder e o querer fazer o
bem.Com a graça, a vontade divina investe no vazio existente no
homem decaído, originado pela perversão da ordem do amor. Com
isso, o homem é liberto de si mesmo e pode se voltar para o bem,
uma vez que sua vontade encontra uma deleitação maior na graça
divina.
Cabe ressaltar que, na interpretação de Pascal, a graça constitui
um dom gratuito, desse modo, ela não está no poder do homem,
mas de Deus. E ainda, aquele que recebe esse dom não tem a
certeza de sua continuidade. Portanto, de acordo com Pascal, os
molinistas se enganam ao afirmar que a graça está no poder de
98
todos os homens e que Jesus Cristo morreu para todos. Tal
interpretação acerca da graça acarretaria no abandono pelo homem
daquela que constitui sua virtude essencial, a humildade, visto que
a medida em que o homem tem a certeza de sua salvação, ele
perde também o temor e dai advém o orgulho.
Para Pascal, a graça de Jesus Cristo é eficaz, e só ela
determina nossa vontade a fazer o bem, todavia, esta graça pode
sempre faltar ao homem justo, ela será sempre atual, o homem
somente pode perseverar no bem a partir da infusão contínua da
graça, Pascal não admite o tempo na graça. A graça de Jesus
Cristo fornece à vontade humana, ao mesmo tempo, o poder, o
querer e o agir, sendo o querer o mais importante, pois a vontade
corrompida sendo escrava da concupiscência não pode se dirigir
por si só à caridade. Desse modo, temos que Deus é que opera no
homem a salvação. A graça divina ao unir a potência divina à
miséria humana, arranca o homem de si mesmo e o lança no infinito
que é Deus. Não admitindo o tempo na graça, Pascal é contrário a
uma graça que está sempre à disposição do homem como
pretendeu Molina. Os molinistas afirmam que todo homem dispõe
de uma graça que está sempre em seu poder, portanto, a salvação
é considerada um mérito humano. Isso para Pascal significa que a
vontade divina depende da vontade humana, uma vez que ao
99
atribuir ao homem uma graça suficiente, temos que este dispõe por
si só do poder de perseverar no bem.
O filósofo crítica em Molina o fato de que assim ele
estabelece que a salvação do homem depende quase
exclusivamente da sua vontade. Logo, a vontade divina fica restrita
à vontade humana. A conseqüência que se segue,
necessariamente, de tal doutrina é certamente a de fazer crescer no
coração humano o orgulho. Ao colocar o homem como o centro de
sua salvação ou de sua perda, a doutrina molinista acende o
orgulho humano, impedindo assim de fazer o homem reconhecer o
que a própria experiência e a Tradição descobriram, a saber, a
insuficiência do livre arbítrio do homem decaído e a necessidade de
uma graça maior que o arranque da concupiscência.
Já a doutrina de Calvino, ao atribuir a salvação
exclusivamente à vontade de Deus, faz do homem um mero
instrumento da vontade divina e, ainda, o conduz a um estado de
completa passividade, na medida em que a graça é entendida
como um dom com o qual Deus salva alguns já no nascimento.
Para Pascal tal doutrina só pode conduzir o homem à preguiça.
Para receber a graça divina, o coração humano deve ser
constantemente purificado, eliminando do seu interior tanto o
orgulho como a preguiça. Esta purificação deve ser assídua, visto
100
que a graça eficaz é também sempre atual. Através da prece e da
penitência o homem se purifica, na medida em que tais atos o
distanciam do orgulho, visto que neles há o reconhecimento de
nossa insuficiência.
De acordo com Pascal, toda interpretação da graça que seja
fiel à Tradição deve ter em vista que o homem no seu estado atual
tornou-se de tal modo escravo da concupiscência, que somente se
orienta para aquilo que o compraz mais. Logo, a verdadeira graça
consiste naquela que exalta a potência divina, afirmando ao mesmo
tempo a insuficiência humana. No seu estado atual, o homem não é
orientado como Adão pela indiferença de escolher, nesse estado
ele só se liberta de uma concupiscência na medida em que uma
outra ofereça um prazer maior, desse modo, toda libertação está no
nível da escravidão.
O homem, no seu estado atual, se encontra preso às amarras
da concupiscência, e só pode, desse modo, voltar-se para Deus, a
partir da ligação de suas misérias com a potência divina. A graça
reativa a ordem do amor estabelecida por Deus no ato da criação;
nesse ponto se encontra a autenticidade do ser do homem.
101
CONCLUSÃO
A tentativa de alcançar um retrato da verdade do ser do
homem nas Pensées, freqüentemente se chocou em nosso trabalho
com os impasses das fronteiras infinitas do pensamento pascaliano.
As voltas e reviravoltas de seu pensamento, no dizer de Lebrun,
fizeram também da nossa leitura um andar em círculos revisitando
muitas vezes a mesma temática tendo em vista a sua relação com
outros conceitos que foram surgindo.
No primeiro capítulo, ao analisar a relação entre homem e
Natureza o que deteve nossa preocupação foi a consideração da
crítica que Pascal faz à Metafísica em matéria de conhecimento
científico e a ruptura entre as dimensões do conhecimento. Essas
questões certamente se fazem peculiares num contexto filosófico
que teve a sua maior expressão no racionalismo cartesiano.
Na consideração da epistemologia pascaliana estamos
cientes de que diversas fronteiras ficaram descobertas. Uma
consideração da filosofia de Descartes, interlocutor por excelência
de Pascal, seria bastante relevante. Mas, como nosso objetivo
nesse campo do pensamento de Pascal foi somente o de focalizar
as marcas da desproporção, a consciência da finitude como uma
102
problemática existencial significativamente configurada nos seus
desdobramentos psicológico e antropológico, não nos detivemos
nas questões de metodologia em ciência, uma vez que em tal
abordagem perderíamos de vista nosso objetivo.
Um dos traços da filosofia moderna, em matéria de
epistemologia consistiu em tomar como o principal problema da
filosofia o tema da relação entre o sujeito e o objeto de cognição,
portanto, - o método desta relação – o problema do conhecimento.
O pensamento filosófico desse período apresenta uma série de
títulos que carregam a marca da busca de um método de
conhecimento rigoroso, inclusive Pascal com seu L’esprit
Geométrique.
Mas, o que nos interessou focalizar na epistemologia de
Pascal foi o seu desdobramento ético, a preocupação com os
fundamentos do conhecimento a partir da consideração da finitude
humana.
A razão em Pascal é insuficiente para alcançar tanto a
essência da realidade física, como a própria verdade ontológica do
homem. Desse modo, nosso objetivo migrou do campo racional
para considerar outras modalidades legítimas de conhecimento.
Pascal pensou o homem na totalidade dos campos antropológicos –
103
política, sociedade, psicologia, espiritualidade; epistemologia, etc –
sem remeter todos os campos ao tema epistemológico.
Na consideração das dimensões do conhecimento
focalizamos a imaginação e a vontade como faculdades produtoras
de subjetividade que caracterizam no homem a insuficiência como
miséria. Tais faculdades atuam no limite do intelecto finito: a
imaginação forja no homem um “ser imaginário” que mascara a sua
miséria e a vontade o persuade a vivenciar essa ilusão.
A opção do homem pelo ser imaginário expressa uma
condição que ao orientar-se pela dinâmica do prazer vive a fuga de
considerar a verdade de sua condição miserável. O curioso dessa
caracterização da condição humana é o rompimento que há entre
verdade e felicidade. O homem pascaliano somente pode ser feliz,
na medida em que mente para si e para o outro. Mas, essa frágil
felicidade pautada na fuga de si e no movimento incansável da
dinâmica do prazer não permite nenhum estado de constância no
homem. A consciência da sua finitude, da sua falta somente pode
proporcionar angústia, por isso ele experimenta a constante fuga da
verdade de sua condição.
Mas, esse homem é convocado constantemente à verdade,
encobrir sua falta é se perder de si e a frivolidade dos seus
prazeres, a impossibilidade de continuidades numa falsa felicidade
104
forjada a partir de artifícios são os fatores que convidam o homem à
infelicidade. Infelicidade que o permita entender a verdade de sua
condição.
Essa fratura entre conhecimento e verdade, certamente, é de
profunda importância no universo de hoje, que vive a tirania do
imperativo categórico “be happy”. As psicologias práticas e os
movimentos sociais que visam a transformação parecem abrigar
uma crença na evidência de que a felicidade é de fato um atributo
ontológico do homem.
O tema da felicidade humana se estende por toda a tradição
filosófica. Só para mencionar autores distantes como Santo
Agostinho e Freud, podemos encontrar – de modos distintos - a
idéia de que a busca da felicidade e do prazer é parte constitutiva
da natureza humana. O que o homem contemporâneo perdeu de
vista é a consciência de que a busca da felicidade e prazer sempre
foi vista como um problema da natureza humana, com a qual o
homem seria obrigado a lidar, a mitigar, a combater, e algumas
vezes a satisfazer.
No modelo atual, a evidência de que o homem nasceu para
ser feliz e de que ele deseja isto é tomada como solução e não
como um campo de problemas. Certamente, uma sociedade
baseada no ato de consumo como equação da felicidade produz
105
uma antropologia simétrica ás suas necessidades. A felicidade
passa a ser um critério moral.
Na análise da constituição do eu: o eu no mundo
caracterizamos a oposição entre o divertissement e a angústia. O
divertissement expressa os modos de comportar-se de um ser que
se sustenta pelas cordas da imaginação e que vive o “calvário do
desejo”.
Divertir-se é o recurso que o homem utiliza para desvencilhar-
se de pensar na sua miséria, através dessa atividade ele se aliena
de pensar na sua condição. Essa abordagem pascaliana é bastante
relevante ao pensamento contemporâneo, que tem por reflexo um
mundo em que:
“Divertir-se significa que não devemos pensar, que
devemos esquecer a dor, mesmo onde ela se mostra. Na
base do divertimento planta-se a impotência. É de fato, fuga,
mas não, como pretende, fuga da realidade perversa, mas do
último grão de resistência que a realidade ainda pode haver
deixado.
6
Para encontrar a verdade do homem é preciso mergulhar na
miséria e compreender que a escravidão do desejo, o império da
6
ADORNO. “Industria cultural e sociedade” , Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
106
concupiscência que molda o homem e todos os seus correlatos
sociais é expressão de uma vontade, como diria Pascal, depravada.
Os paradoxos da condição do homem são remetidos à
explicação teológica. Miséria e grandeza no homem remete a
primeira natureza e segunda natureza no eixo da Queda e
redenção. O hábito e o costume modelam essa segunda natureza
e fazem com que o homem perca de vista a dimensão de sua
verdade.
Mas, é a própria dimensão de verdade do homem em Pascal
que dissolve a idéia mesma de homem enquanto indivíduo
autônomo. A ética de mergulhar na miséria, a possibilidade de uma
graça eficaz contingente, consiste numa proposta que não assume
sua viabilidade a partir de uma vontade humana autônoma.
O homem pascaliano não possui a sua razão de ser em si
mesmo, pelo contrário, é só no despreendimento de si e no
encontro com o sobrenatural que ele se realiza, ou melhor, se
realiza em Cristo. Podemos questionar que tal concepção de
homem perde de vista o universo material e as relações que se
estabelecem nele como determinantes de consciência. Mas,
também não podemos perder de vista que Pascal questionou ao
seu tempo a arbitrariedade e contingência que regiam as
construções do homem concupiscente.
107
A filosofia de Pascal reflete uma visão trágica que caracteriza
o homem como um ser dilacerado entre duas exigências
contraditórias que o mundo não permite conciliar. O homem é
grande por sua consciência, por sua exigência de totalidade e de
absoluto, mas pequeno pela sua insuficiência de realizar essa
exigência. Sua filosofia faz parte de um debate filosófico que ao se
preocupar com as temáticas da infelicidade, do medo, da morte se
opõe a égide da razão e do progresso sobre a natureza, a
eliminação , o controle completo da contingência, o banimento do
incompreensível.
108
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