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do indivíduo. A busca do eu substância é inglória: “Onde está, pois,
esse eu, se não se encontra nem no corpo nem na alma? E como
amar o corpo ou a alma, senão por essas qualidades, que não são
o que faz o eu, de vez que são perecíveis?” (fr 323)
Pascal contrapõe e se distancia da concepção do eu advinda
do cartesianismo
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: ao eu do cogito, que se realiza enquanto
substância pensante desprovida de tudo aquilo que remete a uma
consciência natural, (visto que esta essência primeiramente se
afirma enquanto possibilidade do conhecimento), o filósofo
contrapõe o sujeito na sua dimensão puramente humana. Cabe
ressaltar que Pascal, ao questionar o sujeito cartesiano, não
desqualifica a racionalidade humana. Em vários fragmentos das
suas Pensées, o filósofo não deixa de afirmar a importância do
pensamento:
“O homem é visivelmente feito para pensar (...) e toda a
sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever
4
Em sua análise desse fragmento Vincent Carraud indica que há uma similitude entre o fragmento 323 e
a Meditação II de Descartes: ao perguntar: “o que é o eu?” , Pascal critíca o “eu-substância”de Descartes.
O “eu penso” cartesiano ao se colocar à janela para ver os passantes, só os vê como homens verdadeiros,
só se certifica da verdade daquilo que seus olhos vêem, depois de julgar pelo espírito. Assim, esse eu não
pensa nos passantes como uma particularidade, uma vez que os homens que passam só são verdadeiros
depois da inspecção do espírito, eles são apenas uma abstração. De acordo com Carraud, Pascal indaga se
aquele que se pôs à janela vê a substância de um eu que passa. Esse eu que passa não é uma abstração, é
um eu constituído pelo amor e que, por isso, quer “ser amado e admirado por todos”. Pascal contrapõe ao
eu abstrato, ao “eu penso” o eu que se ama e requer ser amado para ser.
Portanto, para atacar o “eu penso”cartesiano, Pascal, segundo Vincent Carraud, nesse fragmento,
parte do seguinte raciocínio: se o eu é a “alma da pessoa”, nada do que define o eu pode atingí-lo: nem a
substância que é a “res cogitans”, nem a razão, o espírito ou o entendimento, ( e as qualidades que são a
memória e o julgamento); nem o corpo (seu lugar ou sua beleza), então nem a substância que é a “res
extensa”. Tudo isso que o eu permite pensar dele mesmo é insuficiente à interrogação sobre o eu. Para
isso ver Vincent Carraud, Pascal et la Philosophie, IV, p. 322-327.