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Portanto, embora distintas, o razoável e o racional são complementares: agentes
puramente razoáveis não teriam fins próprios, e agentes puramente racionais não teriam
senso de justiça, inviabilizando, portanto, a cooperação social.
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Dada a definição de razoável, é possível agora especificar o que são doutrinas
abrangentes razoáveis. Para Rawls, elas possuem três características: 1) ser um exercício da
razão teórica, ou seja, estar relacionada aos principais aspectos religiosos, filosóficos e
morais da vida humana; 2) ser também um exercício da razão prática porque seleciona
valores e tenta equilibrá-los quando em conflito; 3) ser baseada numa tradição de
pensamento e doutrina.
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Assim, a existência de um pluralismo de doutrinas razoáveis abrangentes é um fato
normal de um regime democrático. Melhor dizendo, é um fato normal do pensamento
humano que pode ser desenvolvido em regimes democráticos que procuram garantir
especialmente a liberdade de expressão. E essas diversas doutrinas são razoáveis na medida
em que conseguem coexistir umas com as outras, num ambiente de tolerância e liberdade
de pensamento. Cada cidadão, com sua doutrina razoável, sabe que os outros são livres
para terem suas próprias doutrinas e que, portanto, não há espaço para qualquer tipo de
coação por alguém adotar qualquer tipo de doutrina, desde que ela seja razoável.
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Para um entendimento do que Rawls chama de “limites do juízo” (burdens of judgement), ou seja,
elementos que causam discordância entre as pessoas razoáveis, e que são de extrema importância para a idéia
democrática de tolerância, ver “Os limites do juízo” (Liberalismo, II, §2).
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Como a intenção de Rawls é elaborar uma teoria ideal, ele evita uma definição demasiadamente fechada de
doutrina abrangente: “Essa definição de doutrinas abrangentes e razoáveis é deliberadamente vaga. Evitamos
excluir doutrinas como não-razoáveis, a não ser que tenhamos razões sólidas para tanto, fundadas em
aspectos claros do razoável propriamente dito. Caso contrário, nossa definição corre o risco de ser
arbitrária e exclusiva. O liberalismo político considera razoáveis muitas das doutrinas conhecidas e
tradicionais — religiosas, filosóficas e morais —, mesmo quando não as levamos seriamente em conta em
termos pessoais, por pensarmos que dão peso excessivo a alguns valores e não reconhecem a importância de
outros. Mas o liberalismo político não precisa de um critério mais rigoroso para seus propósitos”.
(Liberalismo, II, §3, p. 103-4). Por outro lado, sua visão é bastante clara quando se trata de limitar doutrinas
não-razoáveis: “A existência de doutrinas que negam uma ou mais liberdades democráticas é, por si, um fato
permanente da vida, ou assim parece. Isso nos impõe a tarefa prática de contê-las — como se contém uma
guerra ou uma doença —, para que não subvertam a justiça política”. (Liberalismo, II, §3, p. 108, nota 19).