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Luciano de Faria Brasil
A Espacialidade do Dasein:
Um Estudo sobre o § 24 de Ser e Tempo.
Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia, Área de Concentração
em Filosofia do Conhecimento e da Linguagem.
Orientador: Prof. Dr. Zeljko Loparic
Porto Alegre
2005
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RESUMO
A dissertação tem como objetivo apresentar a abordagem do espaço e da
espacialidade em Ser e Tempo, explanando a lógica de construção dos
conceitos no contexto da obra e, também, desvelando a recepção que
Heidegger efetuou de alguns elementos da filosofia crítica de Kant. Examina-
se primeiramente a abordagem kantiana do espaço, que confronta a querela
científico-filosófica de seu tempo sobre a natureza do espaço, se relacional ou
absoluta. O modelo kantiano mantém elementos relacionais e a noção de
espaço objetivo como idéia reguladora. Kant aloja a percepção do espaço
‘dentro’ do homem, em sua faculdade cognitiva, como forma pura da
sensibilidade a priori. Após, passa-se ao estudo da incorporação que Heidegger
promove em relação aos conceitos da metafísica ocidental. Em sua técnica de
apropriação e releitura, uma lógica específica, pois os conceitos ontológicos
são levados para o âmbito do Dasein e do mundo prático. Por sua vez, os
conceitos práticos são ontologizados. um deslocamento de significado, pois
os conceitos são integrados na corrente na ontologia fundamental, sob o novo a
priori do ser-no-mundo. Por fim, analisa-se o conceito de espaço em Ser e
Tempo, passando pela apresentação do conceito de mundo. Em sua exposição
sobre o espaço, Heidegger busca o terreno anterior à dicotomização, i.e., em
termos kantianos, a condição de possibilidade de ambas as concepções de
espaço, tanto subjetivo quanto objetivo. Como Kant, Heidegger afirma o
caráter humano do espaço e o seu papel como condição de possibilidade para a
experiência, mas ao contrário de Kant, Heidegger pensa o espaço a partir do
elemento fundacional da reflexão de Ser e Tempo: o ser-no-mundo. Heidegger
intenta escapar à dicotomia sujeito-objeto centrando o estudo na espacialidade
das atividades pré-reflexivas do homem concretamente situado. Justamente
porque a espacialidade deve ser pensada a partir do Dasein, ela se apresenta
como um a priori, significando que o espaço está previamente presente em
cada encontro com o ente disponível intramundano no mundo circundante.
Nessa concepção de espaço e da espacialidade, percebe-se uma evidente
influência kantiana a atravessar toda a argumentação.
Palavras-chave: espaço, espacialidade, Dasein, filosofia crítica, fenomenologia.
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ABSTRACT
The dissertation aims to present the approach of space and spatiality in Being
and Time, explaining the conceptual-building logic in that work and showing
the reception of some elements of Kant’s critical philosophy. At first, the study
analyses the kantian approach of space, which confronts the scientific and
philosophical problems of his time about the nature of space, relational or
absolute. The kantian model keeps relational elements and the concept of
‘objective space’ as a ‘regulative idea’. Kant allocates the space’s perception
‘inside’ man, in his cognitive faculty, as a pure form of a priori sensibility.
Later becomes the analysis of Heidegger’s incorporating of western
metaphysics concepts. In his technique of conceptual appropriation there is a
specifical logic, so the ontological concepts are taken to Dasein’s ground and
to the practical world. On the other side, the practical concepts are ontologized.
There is a change of meaning, for the concepts are integrated in fundamental
ontology, under the new a priori of being-in-the-world. At last, the study
examines the concept of space in Being and Time, also showing the concept of
world. In his exposition on space, Heidegger seeks the ground beneath
dichotomy, the condition of possibility of both kinds of space. As Kant,
Heidegger affirms the human character of space and its role as condition of
possibility for the experience, but differing from Kant, Heidegger thinks the
space on the ground of the foundational element in Being and Time: the being-
in-the-world. Heidegger aims to escape the dichotomy subject-object, focusing
his studies in spatiality of pre-reflexive activities of an actually situated man.
The spatiality must be thought on Dasein’s ground and because of it, the
spatiality reveals itself as an a priori, meaning the space is previously present
in every contact with ready-to-hand things in the surrounding world. In this
meaning of space and spatiality, there is a clear kantian influence above all the
argumentation.
Keywords: space, spatiality, Dasein, critical philosophy, phenomenology.
4
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 8.
1.1. Palavras iniciais 8.
1.2. A chave de leitura 9.
1.3. A estrutura da dissertação 11.
1.4. A linguagem heideggeriana: critérios de interpretação 14.
2. KANT E O ESPAÇO 18.
2.1. O projeto crítico kantiano 18.
2.1.1. Entendimento e sensibilidade 20.
2.1.2. Uma teoria do juízo 21.
2.1.3. A relevância dos dados da experiência possível 24.
2.1.4. Estética transcendental 26.
2.2. O espaço na abordagem de Kant 27.
2.2.1. Antecedentes imediatos. Newton, Clarke e Leibniz 28.
2.2.2. A solução kantiana 29.
2.2.3. Interpretação do modelo kantiano 32.
3. HEIDEGGER E A HERANÇA KANTIANA 36.
3.1. Premissas. A chave de interpretação 36.
5
3.2. A formação de Heidegger. Notas sobre as influências em seu pensamento 38.
3.3. Aproximação à gnosiologia de Martin Heidegger 40.
3.4. Sobre a construção dos conceitos em Ser e Tempo 42.
3.5. O transcendental em Heidegger. O Dasein e os existenciais 46.
3.6. Um novo a priori: o ser-no-mundo 49.
4. ESPAÇO E ESPACIALIDADE EM SER e TEMPO 52.
4.1. Introdução 52
4.1.1. Notas sobre o método fenomenológico em Ser e Tempo 53
4.2. O conceito de mundo em Ser e Tempo 57.
4.2.1. Introdução 57.
4.2.2. Análise da mundanidade circundante (“Umweltlichkeit”) 60.
4.2.3. Crítica da interpretação cartesiana do mundo 64.
4.2.4. O mundo e o Dasein 67.
4.3. A noção de espaço em Ser e Tempo 68.
4.3.1. A espacialidade do ente disponível intramundano 68.
4.3.2. A espacialidade do ser-no-mundo 71.
4.4. A espacialidade do Dasein e o espaço 75.
4.4.1. O § 24 de Ser e Tempo 75.
4.4.2. Interpretação e crítica da abordagem de Heidegger 79.
4.4.3. O espaço nos marcos do método fenomenológico 84.
4.4.4. As raízes kantianas da abordagem heideggeriana 87.
6
5. CONCLUSÕES 92.
REFERÊNCIAS 117.
7
1. INTRODUÇÃO
1.1. Palavras iniciais
Estudar a noção de espaço na obra de Martin Heidegger, especificamente no
bojo de seu texto mais conhecido, Ser e Tempo, constitui tarefa das mais árduas e, por isso
mesmo, das mais interessantes. A linguagem evocativa e fugidia, a arquitetura complexa dos
conceitos, a novidade na aplicação do método fenomenológico, a introdução de um novo
elemento de fundação o ser-no-mundo no contexto de uma atitude filosófica voltada para
a análise do existir humano, tudo obstaculiza o exame superficial da obra de Heidegger,
impondo o estudo mais cerrado, rente ao complexo texto filosófico. Vejamos um exemplo,
quase anedótico. Tomemos como o exemplo o próprio conceito de ser, base operativa do
pensar heideggeriano. em Ser e Tempo é dito que o conceito de ser é indefinível, e que
diante dessa impossibilidade de se definir o ser, resta a questão de seu sentido (HEIDEGGER,
1993, p. 4). Nem por isso o ser, tal como concebido por Heidegger, deixou de conter algo de
inacessível em sua formulação. Até pessoas que haviam sido, em certa medida, próximas de
sua reflexão perceberam essa impenetrabilidade do conceito: “Nos anos cinqüenta Jaspers
anotou, concordando, uma frase de Löwith: ‘Com efeito ninguém poderá afirmar que
conscientemente compreendeu o que é o ser, esse mistério do qual Heidegger fala’”
(SAFRANSKI, 2000, p. 451).
Deixando de lado, o aspecto trivial e anedótico da passagem, a dificuldade de
abordar Heidegger reduzi-lo, esquematizá-lo, simplificá-lo, pois avulta na medida exata.
Em uma densa trajetória intelectual em que a pergunta pelo ser assumiu diversas formas
(LOPARIC, 2004b, p. 53-54), as questões clássicas da filosofia foram submetidas a novas e
8
radicais abordagens; entre elas, em um contexto muito próprio, a questão do espaço. Também
a espacialidade recebeu uma formulação específica no contexto do pensar heideggeriano,
abrindo uma possibilidade de tratamento dessa questão que escapa à tradição cartesiana.
Assim, embora não seja um tema central na reflexão filosófica de Heidegger, e não tenha
recebido um tratamento completo e acabado, a questão do espaço apresenta indubitável
interesse para o estudioso de sua obra, seja pela novidade no manejo dessa temática, seja pela
íntima conexão com noções basilares de seu pensamento: ser-no-mundo e mundo.
Ser-no-mundo, como assinalado pelo próprio Heidegger em Ser e Tempo,
aparece como constituição ontológica fundamental do Dasein. Há uma proximidade na gênese
dos conceitos de existência, Dasein e ser-no-mundo, salientando que todos têm em comum o
fato de indicar, grosso modo, que o homem está situado de maneira dinâmica, especialmente
no que toca ao seu “poder ser” (VATTIMO, p. 27). O desdobramento dessa análise leva
necessariamente à inquirição sobre o conceito de mundo. Como assinalado pelos estudiosos
do opus heideggeriano, o pensador de Meßkirch explorou vários caminhos em sua
investigação da noção de mundo (STEIN, 1997, p. 101). Interessa primacialmente ao escopo
deste trabalho o método de abordagem praticado em Ser e Tempo, conforme se relacionem
com as noções de espaço e espacialidade, objeto deste estudo. Para tanto, é necessária uma
chave de leitura que forneça um fio condutor da análise, proporcionando um guia para o
estudo e um vetor para a interpretação. Esta chave de leitura, em nossa óptica, é o diálogo
com Kant, realizado na forma do método fenomenológico, tal como Heidegger o concebia.
1.2. A chave de leitura
Para bem esclarecer essa chave de leitura, cumpre retomar a advertência
contida no Seminar in Zähringen, ocorrido em 1973: ler os parágrafos 14 até 24 de Ser e
9
Tempo para si mesmos, desligados do plano geral, seria, em relação ao todo do ensaio de
Heidegger (1986, p. 373), uma violação fundamental de seu sentido (“ein grundsätzlicher
Verstoß gegen dessen Sinn”). O alerta será tomado, porém, em sentido bem diverso do
imaginado por Heidegger: trata-se aqui de rastrear a linhagem de suas noções de espaço e
espacialidade, elucidando a sua relação com a tradição kantiana.
Que o opus heideggeriano tenha se constituído, em larga parte, em diálogo com
a obra de Kant, não é novidade, cuidando-se agora de explicitar essa interação no que toca ao
tratamento da espacialidade. Além disso, a análise dessa relação deverá ser precedida por (i)
uma apresentação do tratamento dado por Kant ao problema do espaço; (ii) uma exposição da
recepção heideggeriana de aspectos da filosofia crítica, como o esquematismo e a
transcendentalidade, que recebem, segundo nossa leitura, uma carga semântica renovada.
Espaço e espacialidade serão objeto de questionamento e reflexão por parte de
Heidegger em distintos momentos de produção intelectual. Após a virada (Kehre) no
pensamento heideggeriano, a ênfase passa da existencialidade para a acontecencialidade
(LOPARIC, 2004b, p. 53-54); exemplo disso é a abordagem contida nos Seminários de
Zollikon (HEIDEGGER, 2001, p. 169), em que a espacialidade (e a temporalidade, da mesma
forma) é vista como pertencente à clareira (Lichtung).
Restringir-se-á a análise, porém, à estruturação do espaço e da espacialidade no
contexto de Ser e Tempo, obra maior do primeiro Heidegger, trabalhando-se a análise desses
conceitos segundo a lógica interna do plano global do ensaio, i.e., segundo a lógica interna da
formação dos conceitos conforme o método fenomenológico
1
- atendendo-se à recomendação
trazida nos Seminários de Zähringen, mas de forma distinta daquela imaginada por Heidegger
e, também, conforme a relação crítica mantida com o acervo conceitual e metodológico da
1
Essa preferência ao exame da lógica interna dos conceitos segundo o plano global da obra implica, em
conseqüência lógica, contrastar o mínimo possível o texto de Ser e Tempo com obras posteriores de Heidegger.
Conforme resta claro da segunda premissa metódica do presente estudo, será dada preferência à comparação com
o arcabouço conceitual da obra de Kant, especificamente da Crítica da Razão Pura.
10
obra de Kant (especialmente com os tópicos pertinentes da Crítica da Razão Pura).
1.3. A estrutura da dissertação
É difícil expor uma temática tão rica nas formas convencionais do discurso
acadêmico. Lembra-se aqui, como exemplo, o conhecido gracejo, segundo a qual, por meio de
uma amiga pianista, Max Weber examina as partituras de Tristão e Isolda, de Richard
Wagner, e ao final comenta: “Essa é a técnica de escritura que me faz falta. Com ela à minha
disposição eu poderia finalmente fazer o que deveria: dizer muitas coisas separadas, uma ao
lado da outra, mas simultaneamente” (BAUMGARTEN, 1964, p. 482-483, grifou-se).
Sobre o episódio em questão, diz Cohn (1979, p. 3-4):
Essa frase define, como nenhuma outra, o espírito do empreendimento científico
weberiano. Não é difícil imaginar o fascínio de Weber por essa escritura que permite
tratar de modo simultâneo o desenrolar rigorosamente coerente de temas que
correm, conforme a lógica de cada qual, por linhas paralelas, para no final formarem
um todo construído pela vontade livre mas disciplinada de uma pensamento criador:
a obra.
É o que se pretenderia aqui: analisar paralelamente as linhas de exposição e
argumentação de Kant e de Heidegger sobre o espaço, mostrando simultaneamente o
tratamento do espaço pela abordagem crítica kantiana e a incorporação do kantismo na obra
magna de Heidegger, para, ao final, chegar construtivamente ao tratamento do espaço em Ser
e Tempo. Uma tal estrutura seria perfeita para explicar claramente a herança kantiana no seio
da transformação operada pelo filósofo de Meßkirch nos domínios do pensamento; todavia,
em face da impossibilidade de sua execução no campo da dissertação científica, proceder-se-á
ao costumeiro exame seqüencial dos tópicos, expostos em ordem linear com vista a uma boa e
ordenada compreensão do tema.
Assim, após uma apresentação dos objetivos do trabalho, passar-se-á ao exame
11
da formulação de Kant sobre o conceito de espaço com uma forma pura da intuição,
tomando-se como base a explanação contida na Estética Transcendental (1974, p. 69-78 [B
33-47]). Será analisada, em breves linhas, a lógica interna de formação do conceito, com vista
à elucidação da exposição metafísica e da exposição transcendental que é procedida na Crítica
da Razão Pura. Para tanto, a obra de Kant será enfocada a partir da perspectiva que considera
o programa crítico pelo menos em sua primeira fase como uma teoria de solubilidade de
problemas (LOPARIC, 2002, p. 14-32). Aliás, a sistematização dos problemas científicos de
sua época era apontada por Lebrun (2001, p. 25-36) como o móvel da reflexão de Kant em
vários assuntos.
Assentada a apresentação da elaboração kantiana, o presente estudo
prosseguirá com uma pequena exposição da recepção de Heidegger às idéias da filosofia
crítica, como o esquematismo, a transcendentalidade e a noção de a priori, assim como uma
explanação sobre a estratégia de formação dos conceitos em Ser e Tempo. Buscar-se-á, ainda
que de forma incompleta, trazer alguns aspectos do diálogo que Heidegger estabeleceu com a
tradição kantiana, notadamente o deslocamento semântico ocorrido com a noção de a priori,
lançada para o mundo prático, com a noção de ser-no-mundo.
Nesse sentido, diz Loparic (2004a, p. 64, n. 7):
“O conceito heideggeriano da transcendência como condição de possibilidade ou a
priori existente (1927, p. 50n), uma das suas descobertas fundamentais, é, por um
lado, uma reapropriação do conceito kantiano de a priori operacional efetivo (do
esquematismo) e, por outro lado, uma desconstrução do a priori kantiano
meramente formal (por exemplo, da apercepção transcendental)”.
Por derradeiro, transitar-se-á à análise das noções de espaço e espacialidade em
Ser e Tempo. A análise será precedida de uma exposição do método fenomenológico tal como
compreendido por Heidegger e por uma apresentação do conceito de mundo. Vencidos esses
tópicos, seguir-se-á uma exposição e comentário dos §§ 22 e 23 de Ser e Tempo, dissecando a
12
conceituação que Heidegger faz do espaço. Embora o confronto direto de Heidegger seja com
Descartes e a tradição cartesiana de caracterização do mundo como res extensa (e com as
conseqüências daí advindas quanto ao conceito de espaço), o trabalho tentará, na medida em
que se afigure possível, rastrear um fio condutor na argumentação heideggeriana que permita
identificar a recepção da tradição kantiana, ainda que oculta e metamorfoseada sob um novo a
priori o do ser-no-mundo e, conseqüentemente, sob uma noção de transcendental
submetida a um novo tratamento semântico.
É nessa linha de argumentação e análise que o § 24 de Ser e Tempo, será
apresentado, de maneira sintética. Examinar-se-á a ação espacializante do Dasein e sua
correlação com o conceito de espaço presente nos parágrafos anteriores da obra, buscando, de
forma breve (mas, espera-se, fecunda) os pontos de contato e de distinção, as eventuais
convergências e divergências com a obra de Kant, de forma a trazer à tona o quanto
Heidegger deve ao sábio de Königsberg no tratamento do espaço e da espacialidade, e
também como se deu essa recepção do acervo conceitual e metodológico kantiano, ainda que
em outras bases notadamente, o paradigma do a priori existente, i.e., o ser-no-mundo,
estabelecido como um dos pontos de partida da reflexão heideggeriana.
Após, prosseguir-se-á em uma breve tentativa de interpretação e crítica da
posição de Heidegger. Seguir-se-á uma explanação da teorização de Heidegger sobre o espaço
e a espacialidade como resultado da aplicação do método fenomenológico no contexto de Ser
e Tempo. Por derradeiro, evocar-se-á a raiz kantiana da construção teórica de Heidegger,
conforme a chave de leitura posta ab initio. Identificados e analisados os pontos relevantes, as
conclusões alcançadas serão expostas em capítulo próprio, encerrando o trabalho.
13
1.4. A linguagem heideggeriana: critérios de interpretação
Uma especial atenção merece a linguagem de Heidegger, no contexto de Ser e
Tempo. Como bem ressaltado em interessante estudo sobre o pensamento político de
Heidegger (WOLIN, p. 45), o discurso filosófico do pensador de Meßkirch possui uma forma
própria, assumindo características não-argumentativas e evocativas. O filósofo, em seu
projeto de ‘destruição’ do acervo da metafísica ocidental, teve de literalmente reinventar o
vocabulário filosófico corrente, adaptando-o para suas finalidades e, assim, criando um jargão
todo especial. Assim, os conceitos e noções trazidos no bojo de Ser e Tempo adquirem
significados que se afastam da carga de significação a eles associada na tradição filosófica.
Como lidar, pois, com a linguagem de Ser e Tempo?
A resposta não é fácil, mas passa por uma diretriz oriunda, em certo grau, do
pensamento do próprio Heidegger. Em face de uma linguagem evocativa, o importante é a sua
compreensão pelo intérprete. Essa compreensão, no caso desta dissertação, dar-se-á em vista
da ‘chave de leitura’ acima referida. Será assumido, pois, o atual paradigma hermenêutico
segundo o qual o texto não pertence mais ao autor, havendo também a “pertença do intérprete
a seu ‘texto’” (GADAMER, 2002, p. 506). Os textos filosóficos, especificamente, devem ser
tensionados; há que se levar a cabo uma leitura problematizante, para obter uma interpretação
criadora e fecunda.
No contexto desta dissertação, a opção pela interpretação de Heidegger
segundo a ‘chave de leitura’ antes mencionada, assim como a afirmação correlata da co-
pertença entre intérprete e texto, têm o sentido de uma opção clara quanto ao chamado locus
hermenêutico, do “lugar” onde se determina estar o sentido. As variadas formulações sobre o
assunto podem ser reduzidas à definição de três loci hermenêuticos fundamentais o autor, o
texto e o intérprete (ou, em termos de análise literária, o leitor). O locus hermenêutico diz
14
basicamente com o princípio para a determinação do sentido, i.e., para a compreensão. Trata-
se de saber onde o sentido de um texto deve se encontrado ou estabelecido, com o fito de
determinar o correlato princípio de interpretação.
Pouco se aceita, hodiernamente, o autor como sendo o locus hermenêutico
primordial. Se o sentido está na intenção do autor, vale dizer, do filósofo, interpretá-lo seria
apenas ‘descobrir’ que intenção era aquela. Seu texto adquire uma função de natureza
mediadora, não de cunho final. Serve de instrumento para ‘descobrir’ (ou, melhor dizendo,
‘tentar descobrir’) o que o pensador quis expressar. Ao invés do texto, vigeria a intenção do
autor como princípio fundamental de interpretação.
Igual sorte parece assistir à corrente que atribui ao texto a condição de locus
hermenêutico. Na polissemia de um texto filosófico, na sua capacidade de sustentar
diversificados sentidos possíveis, estaria uma verdadeira ‘reserva de sentido’. Emancipado e
autonomizado em relação ao autor, o texto-em-si possuiria uma espécie de sentido primordial
fundante. Essa concepção hermenêutica, porém, ‘desliga’ o texto da história concreta,
cortando a conexão com o restante da obra do autor mais do que a análise da evolução do
pensamento filosófico de um autor específico, com a prospecção das influências e tendências
concretas que moldaram sua reflexão e que ajudam a compreendê-la, importaria o exame do
texto como objeto autônomo, perquirindo-se dentre os vários sentidos possíveis dentre
aqueles contidos na reserva de significação alojada no texto-em-si.
Em nossa visão de como deve ser a hermenêutica textual, consideramos o
intérprete como o locus privilegiado do sentido. Parece-nos a conseqüência óbvia e radical do
pensamento de Heidegger, desde que assumido em sua integralidade. Nos casos anteriores,
tanto a busca da intenção do autor quanto a procura do sentido possível do texto-em-si estão
impregnados da axiologia daquele que e conseqüentemente interpreta. A própria idéia
heideggeriana de ser-no-mundo destrói a idéia de um intérprete livre de condicionamentos,
15
pois o leitor está no mundo desde sempre, e, ao existir e viver concretamente, atribui sentido
ao mundo. Resta claro, portanto, que o autêntico locus hermenêutico está no intérprete, capaz
de efetuar uma leitura como produção de sentido. Lembrando e parafraseando o conhecido
aforismo nietzscheano segundo o qual todo conhecimento envolve interpretação, pode-se
dizer que ler e interpretar um texto filosófico é produzir sentido, abandonando-se
irremediavelmente toda pretensão de ‘neutralidade’ na análise da obra.
Destarte, afirmando o intérprete como o locus hermenêutico adequado à
compreensão do texto filosófico, segundo as próprias premissas do pensar heideggeriano, a
assunção da ‘chave de leitura’ antes mencionada e, também, da co-pertença entre intérprete e
texto afiguram-se plausíveis. Trata-se, assim, de compreender as formulações de Heidegger
sobre o espaço e a espacialidade no contexto de Ser e Tempo, tanto em sua lógica interna
quanto no confronto com o acervo da metafísica de extração kantiana.
Por derradeiro, três observações.
Primeiro, salienta-se que, ainda dentro de uma reflexão sobre a linguagem de
Heidegger, optou-se por não traduzir Dasein por ser-aí ou ser-o-aí
2
, mantendo-se o termo no
original alemão. Dasein, no vocabulário filosófico ‘tradicional’, é um decalque germânico do
latim existentia. Ora, Heidegger vai submeter tal vocábulo a uma inteira renovação,
emprestando-lhe um significado totalmente renovado. O termo, em sua acepção na obra de
Heidegger, quedou, em certa medida, não traduzível a outros idiomas, preferindo-se mantê-lo
no original para preservar a fidelidade à obra. Aliás, Benedito Nunes (2002, p. 42) indicou
a inconveniência de se traduzir Dasein por pre-sença, como ocorreu na tradução nacional.
Quanto aos demais termos do glossário heideggeriano, assinalar-se-á a
tradução preferível quando do emprego, no curso da dissertação, do vocábulo em questão.
Preferir-se-á, em regra, o uso dos termos contidos na tradução brasileira, ainda que
2
Seguindo-se a sugestão de Heidegger a Jean Beaufret no sentido de verter-se por ‘être-le-là’.
16
eventualmente passíveis de crítica, tendo em vista a sua difusão nos meios acadêmicos pátrios
e, assim, a comodidade e a facilidade de imediata compreensão que daí decorre. Todavia, em
várias oportunidades, será proposta uma tradução alternativa, de forma a preservar a força e a
integridade das formulações originais de Heidegger.
Segundo, destaca-se o fato de que esta é uma dissertação, mas contém
igualmente uma tese. Em outras palavras, o trabalho disserta sobre mundo e espaço em Ser e
Tempo, trazendo uma explanação, um resumo, uma síntese e uma tentativa de interpretação
daquela obra no que interessa ao tópico indicado, permeados por observações críticas e glosas
dos comentaristas mais destacados. O trabalho também traz, porém, uma tese, ainda que
exposta e defendida com brevidade: a da influência kantiana no tratamento que Heidegger
ao espaço. Daí a razão de haver capítulos específicos sobre Kant e sobre a recepção de Kant
por Heidegger; por isso, também, serão explicitados apenas os elementos atinentes à
espacialidade em Ser e Tempo que se afigurarem relevantes para a tese.
Terceiro, frisa-se que foi adotado o sistema de citação autor-data no curso
desta dissertação, pela praticidade que enseja. Todavia, foram incluídas também notas de
rodapé explicativas, em consonância com a permissão dada pela NBR 10520 da ABNT. As
notas destinam-se, em regra, ao esclarecimento de tópicos ligados à tradução. A linguagem de
Heidegger é complexa e de difícil translação, conforme visto acima. Assim, procurou-se
apresentar sempre o texto original para consulta em nota de rodapé quando efetuada a
paráfrase no corpo do estudo. Essas notas, repete-se, são de natureza exclusivamente
explicativa e não quebram a sistemática de citações adotada no conjunto do estudo.
Estão apresentadas, enfim, as propostas e objetivos da presente dissertação. Se
os resultados obtidos eventualmente não estiverem à altura do tema examinado, as escusas são
apresentadas de antemão: qualquer superficialidade ou rudeza no tratamento de uma temática
tão interessante deve-se, por óbvio, às limitações culturais do autor deste breve estudo.
17
2. KANT E O ESPAÇO
2.1. O projeto crítico kantiano
A natureza do projeto crítico de Immanuel Kant é por demais conhecida,
dispensando uma exposição muito detalhada. Desde o despertar do ‘sono dogmático’,
provocado pela leitura de David Hume, até a formulação madura e a exposição segura e firme,
dos postulados do idealismo transcendental, cuida-se de itinerário bem palmilhado pelos
estudiosos de filosofia moderna. A reflexão do Kant tardio consistiu basicamente em uma
crítica da razão, assim tomada como uma ponderação sobre os limites do conhecimento
humano. Ao invés do dogmatismo da metafísica vigente, de inspiração wolffiana, que se
propunha a legislar sobre coisas que os homens não têm condições de conhecer, o pensador de
Königsberg elaborou os fundamentos de uma metafísica depurada. Assim procedendo, Kant
lançou os alicerces de uma filosofia crítica que, atenta ao problema do conhecimento, se
constitui como “o fundamento da teoria da solubilidade dos problemas necessários da razão”
(LOPARIC, 2002, p. 14).
Assim, Kant parte da pergunta fundamental para a moderna teoria do
conhecimento: o que se pode conhecer? A resposta a essa simples questão traria uma virada
profunda no pensamento filosófico, uma verdadeira ‘revolução copernicana’. Conhecemos as
coisas como são ou como elas nos parecem? Partindo da distinção essencial entre
phaenomena e noumena, i.e., entre fenômenos e coisas em si, e buscando fugir às ciladas da
metafísica tradicional, que se expressa mediante assertivas não necessariamente fundadas na
experiência constatável, Kant (1974, p. 87 [B 60], grifou-se) formula, após, rigorosa
argumentação, aquela que seria uma das teses fundamentais do idealismo transcendental:
18
Quisemos, portanto, dizer que toda a nossa intuição, não é senão a representação de
fenômeno: que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal qual as que
intuímos nem que suas relações são em si mesmas constituídas do modo como nos
aparecem e que, se suprimíssemos o nosso sujeito ou também apenas a constituição
subjetiva dos sentidos em geral, em tal caso desapareceriam toda a constituição,
todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo espaço e tempo. (...) O
que há com os objetos em si e separados de toda esta receptividade da nossa
sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o
nosso modo de percebê-los, o qual nos é peculiar e não tem que concernir
necessariamente a todo ente, mas sim a todo homem.
Sinteticamente, afirma o comentarista (BONACCINI, 2003, p. 174):
(...) conhecemos fenômenos (de coisas em si mesmas existentes mas
incognoscíveis); conhecemos representações, isto é, só conhecemos os objetos
através de nossas representações, nunca tal como eles seriam independentemente
delas.
Invertendo o procedimento tradicional da metafísica de seus dias, com o intuito
de promover uma completa revolução em seu âmbito, Kant propôs que a intuição dos objetos
fosse vista como regulada pela nossa faculdade de intuição, e não pela natureza dos objetos,
pois se “a intuição tivesse que se regular pela natureza dos objetos, não vejo como se poderia
saber algo a priori a respeito da última; se porém o objeto (Gegenstand) (como objeto (objekt)
dos sentidos) se regula pela natureza de nossa faculdade de intuição, posso então representar-
me muito bem essa possibilidade” (1974, p. 25 [B XVI-XVII]) daí a possibilidade de
cognição apenas dos fenômenos (ou seja, das representações), nunca das coisas em si. Pode-
se, enfim, conhecer e legislar sobre a fenomenalidade dos objetos do conhecimento, a maneira
tal como os recebemos, mas nunca sobre as coisas em si mesmo consideradas, impenetráveis
que são à cognição, dada a impossibilidade de delas obtermos, como frisou Kant, qualquer
conhecimento a priori.
Essa nova formulação da questão cognitiva assume a forma de uma reflexão
profunda, no curso dos debates de seu tempo, sobre o modo de apreensão dos dados sensíveis
19
pelo homem, sujeito cognoscente, e sua conversão em construtos intelectuais; culminando, ao
cabo, na elaboração de uma teoria do juízo, apta a expressar, de forma depurada, as fontes e
limites do conhecimento metafísico.
2.1.1. Entendimento e sensibilidade
Kant distingue entre faculdade cognitiva inferior e faculdade cognitiva
superior
3
. Assim, reconhece duas fontes de conhecimento para o homem: o entendimento e a
sensibilidade. Uma nos fornece as intuições (a maneira pela qual os objetos nos são dados), a
outra nos fornece os conceitos. Diz sobre isso a primeira Crítica (Kant 1974, p. 69 [B 33-34]):
(...) pela sensibilidade nos são dados objetos e apenas ela nos fornece intuições; pelo
entendimento, em vez, os objetos são pensados e dele se originam conceitos. Todo
pensamento, quer diretamente, quer por rodeios (...) finalmente tem de referir-se a
intuições, por conseguinte à sensibilidade, pois de outro modo nenhum objeto pode
ser-nos dado.
Assim, para que os conceitos não sejam vazios, puramente formais, é preciso
que se possa ligá-los a uma intuição sensível. Deste modo, ambas as operações estão
relacionadas.
Na sensibilidade, o objeto é dado mediante uma afecção das operações
sensitivas, i.e., mediante a intuição. Essa capacidade das operações sensitivas para
proporcionar a intuição é que se denomina sensibilidade propriamente dita, constituindo-se
basicamente em uma receptividade. O efeito do objeto – da matéria da sensibilidade – chama-
se sensação. Deste modo, a relação com o objeto por meio da sensação é fundamentalmente
uma relação empírica, ou seja, a posteriori. Em conseqüência, o objeto indeterminado (mas
determinável) de uma intuição empírica amolda-se à noção de fenômeno, sendo objeto
3
Ao invés de falarmos em faculdades, terminologia já em declínio quando da edição da Crítica da Razão Pura,
faremos referência a operações.
20
passível de cognição. Verifica-se, pois, que a sensibilidade supõe a finitude do conhecimento
humano, pois o homem “não pode produzir por si mesmo nem projetar ante si todos os
objetos do conhecimento, como a razão infinita de Deus” (HÖFFE, 1986, p. 70, traduziu-se).
no entendimento, o objeto é pensado, ou seja, determinado. Essa capacidade
de determinar um objeto, de produzir representações espontaneamente, denomina-se
entendimento, que é a operação de construção dos conceitos. Assim, a relação com o objeto
por meio das categorias do entendimento chama-se relação pura, i.e., a priori. O objeto como
fenômeno determinado pelo entendimento é o que Kant nomeia particularmente como objeto,
em sua arquitetônica filosófica. Por sua vez, aos conceitos puros do entendimento o pensador
dá o nome de categorias, recuperando, assim, a velha denominação aristotélica.
À sensibilidade e ao entendimento soma-se uma terceira operação cognitiva,
decisiva para o projeto crítico kantiano: o juízo. Trata-se aqui da “faculdade de subsumir algo
segundo certas regras, ou seja, de discernir se algo está incluído ou não em uma regra dada.
As condições de possibilidade para aplicar conceitos puros do entendimento aos fenômenos
são determinações temporais transcendentais; são tanto conceptuais quanto sensíveis: os
esquemas transcendentais, um produto transcendental da imaginação” (HÖFFE, 1986, p. 73).
Tratando-se de uma noção operativa central para o projeto crítico instaurado por Kant que
assume, em seu desdobramento lógico, o aspecto de uma teoria geral dos juízos sintéticos a
priori – cumpre examinar de maneira mais detalhada a idéia de juízo, em tópico distinto.
2.1.2. Uma teoria do juízo
Sendo possível a cognição das representações apenas, e posto o conhecimento
em uma operação complexa que liga sensibilidade e entendimento, como se o
21
conhecimento, enfim? Pelo juízo, é a resposta de Kant
4
. A crítica da razão empreendida por
Kant propõe-se a analisar o nosso poder de julgar, i.e., o nosso poder de conhecer. Com
efeito, diria Kant na Lógica Jäsche (2003, p. 201): “um juízo é uma representação da unidade
da consciência de diversas representações ou a representação da relação entre elas, na medida
em que constituem um conceito”. Assim, a crítica kantiana se relaciona à atividade de julgar
em diferentes domínios (THOUARD, 2004, p. 52). Mais precisamente, tem como problema
fundamental a investigação acerca dos juízos sintéticos a priori, conhecimento puro da razão
(KANT, 1988, p. 205).
A esse respeito, Caygill afirma, com propriedade, que o juízo fornece a matriz
de toda a filosofia de Kant. Cada uma das três críticas está orientada para a análise de uma
determinada classe de juízo (...)” (2000, p. 205, grifou-se). Com efeito, o foco da Crítica da
Razão Pura está nos juízos teóricos; na Crítica da Razão Prática, está nos juízos práticos;
enquanto na Crítica do Juízo a atenção está nos juízos teleológicos e estéticos. A situação não
se resume às três críticas, alcançando toda a produção do Kant tardio. Afigura-se claro, para
os estudiosos do opus kantiano, que o projeto crítico é portador de uma lógica interna que o
impele à expansão contínua. Escapando aos limites da gnosiologia, a expansão do sistema
crítico para o campo da filosofia prática, i.e., para a esfera do agir humano, indica uma
tendência que, embora não percebida por Kant à época da primeira Crítica, acabou por se
impor como tarefa.
A crítica da razão reclamava sua expansão para outras áreas, além do orbe da
razão pura, podendo ser encontrada nessa expansão o fio condutor do pensamento do Kant
tardio. Assim, o sentido interno da evolução do pensamento kantiano pode ser identificado na
progressiva extensão do projeto crítico. Novos territórios foram gradativa e progressivamente
desbravados para a filosofia transcendental, com a submissão de outros campos à teoria do
4
A própria palavra crítica, que designa a fase decisiva de sua produção filosófica, provém dos termos gregos
correspondentes aos vocábulos juízo e julgar.
22
juízo, i.e., à perquirição sobre a natureza dos juízos sintéticos a priori pertinentes a esses
novos trechos do conhecimento, assim como, também, do agir humano
5
.
Veja-se o que diz Loparic a esse respeito (2001, p. 53-54, grifou-se):
A fim de abrir o caminho para a crítica da razão na sua totalidade para o estudo
da semântica a priori dos juízos a priori que, até então, permaneciam intratáveis —,
Kant precisava introduzir novos domínios de interpretação. É precisamente isso o
que ele faz ao escrever a Crítica da razão prática e a Crítica da faculdade do juízo.
Enquanto a primeira Crítica ocupa-se única e exclusivamente com aqueles juízos
sintéticos a priori cujo significado e método de decisão são determinados em termos
de conteúdos a priori intuitivos (cognitivos), nas outras duas Críticas, Kant começa
a estudar a realidade objetiva e a decidibilidade de juízos sintéticos a priori por
meio de dados que não têm qualquer valor cognitivo, a saber, os sentimentos morais
e estéticos. Procedendo dessa maneira, Kant estava de fato estendendo a
problemática da filosofia transcendental, tal como definida na primeira Crítica, a
todos os conceitos e juízos a priori, independentemente da faculdade do ânimo em
que têm a sua origem e do domínio de dados sensíveis em que sua realidade objetiva
e decidibilidade são garantidas. Depois de reformular a tarefa da crítica para
abranger o problema da possibilidade dos juízos sintéticos a priori da moral e da
estética, ele passará a tratar, do mesmo ponto de vista, os juízos a priori da doutrina
do direito, da doutrina da virtude e da história, acabando por conceber a filosofia
transcendental como teoria da possibilidade (realidade objetiva e decidibilidade) dos
juízos sintéticos a priori em geral.
Destarte, existem indícios de uma teoria dos juízos sintéticos a priori no
âmbito da história (confira-se KANT, 1986, p. 20 e 36 e, em uma etapa posterior, KANT,
1993, p. 95 e ss., especialmente p. 100-101) e do direito (sobre isso, ver LOPARIC, 2003). Da
mesma forma, a política internacional e seus procedimentos são abordados no opúsculo À paz
perpétua. Em todos os casos, Kant procede conforme o método da filosofia transcendental,
investigando problemas de constituição (i.e., de condições de possibilidade), produzindo
assim a extensão, o avanço de seu projeto crítico. Novos territórios filosóficos vale dizer,
novos domínios de interpretação são desta forma desbravados por Kant e lapidados com as
5
Ao falar-se em juízos sintéticos, dispensa-se maior elucubração sobre uma distinção básica na arquitetônica
conceptual kantiana: a clivagem entre analítico / sintético. Analíticos são todos os juízos cujo predicado se
relaciona com o sujeito pelo princípio da identidade, ou seja, está englobado no sujeito. Sintéticos, ao contrário,
são aqueles pensados sem identidade. Aqueles são juízos de elucidação; os últimos, juízos de ampliação. Como
os juízos de experiência são todos sintéticos, apenas daí pode advir acréscimo ao conhecimento humano. Quanto
ao par a priori / a posteriori, também dispensa uma exposição detalhada: um independe das impressões
sensíveis, não contendo dados empíricos; o outro tem sua origem na experiência sensível. Ambas as distinções,
analítico / sintético e a priori / a posteriori, pertencem hoje ao jargão filosófico corrente. Como ocupam lugar
central na reflexão de Kant, responsável por sua introdução no léxico filosófico contemporâneo, não se poderia
deixar de referi-las, passando ao largo, porém, de uma explanação detalhada.
23
ferramentas do sistema crítico. Trata-se de um desdobramento da crítica da razão, dentro da
referida lógica de expansão do projeto crítico.
Essa investigação sobre a possibilidade de juízos sintéticos a priori é de
natureza transcendental conceito decisivo na filosofia crítica desenvolvida por Kant e, por
conseguinte, na crítica da razão. Transcendental, no contexto estabelecido na Crítica da
Razão Pura, significa o conhecimento pelo qual podemos saber quais e como determinadas
representações – intuições ou conceitos – se aplicam a priori ou são possíveis a priori.
Adentra-se o território das condições de possibilidade, marca da metafísica depurada que
Kant quer construir. São transcendentais, e.g., aqueles supostos de caráter não-matemático ou
não-físico, mas que, apesar disso, estão presentes quando fazemos matemática ou física.
2.1.3. A relevância dos dados da experiência possível
No seu intento de depurar a metafísica, Kant tem sempre a preocupação de
garantir as suas formulações teóricas nos dados do real. A despreocupação com a realidade
vigente, a falta de ancoramento nos dados do concreto, são, aos seus olhos, as marcas da velha
metafísica que deseja purgar e suplantar. Com efeito, Kant sente-se embaraçado com os
“metafísicos, [que] como Leibniz, legislam e ‘decidem’ no absoluto a propósito do infinito,
do contínuo, das substâncias mas sem oferecer-nos garantia nenhuma de suas afirmações”
(LEBRUN, 2001, p. 27). Daí que, em sua rigorosa crítica da razão, tenha o pensador afirmado
a necessária referibilidade dos juízos sintéticos a priori ao plano da experiência possível.
Nesse sentido, recorre-se mais uma vez ao magistério de Loparic (2001, p. 55-
56):
Segundo a filosofia transcendental generalizada, para que um juízo sintético em
geral possa ser dito possível, a síntese conceitual que ele afirma deve ser garantida
pelas relações entre dados sensíveis. Se o juízo for sintético a priori, essas relações
24
têm de ser dadas também a priori. Dito de outra maneira, um juízo sintético a priori
é possível (objetivamente verdadeiro ou falso) se ele tiver uma realidade objetiva
garantida a priori, isto é, se aquilo a que esse juízo de refere e em que tem seu
“sentido e significado” for constituído a priori em um domínio de dadidades (cf.
KrV, B 194). Uma vez asseguradas as condições de validade ou não-validade
objetivas, pode-se passar à tarefa de explicitar o modo de determinar quais dessas
condições são efetivamente realizadas, isto é, formular o procedimento de decisão
ou de justificação desse juízo como válido ou como não-válido.
No caso de juízos sintéticos a priori teóricos, a possibilidade (realidade objetiva) é
assegurada pelas construções esquemáticas a priori no domínio sensível da intuição
pura. É no mesmo domínio que é garantida a decidibilidade dessas condições e,
portanto, a dos próprios juízos. Por exemplo, a verdade ou a falsidade dos juízos
sintéticos a priori da matemática pura repousa sobre as construções esquemáticas
matemáticas (KrV, B 56). É pelo mesmo meio que pode ser decidido, pelo menos
em princípio, quais desses juízos são verdadeiros e quais falsos. Da mesma forma,
os esquemas transcendentais, determinações transcendentais do tempo, são usados
para definir e para decidir (provar) a verdade dos juízos a priori do entendimento
puro. Nesse caso, existem duas tarefas prévias, a da dedução transcendental e a da
esquematização das categorias, cujas soluções mostram a priori que e como as
categorias se aplicam aos dados sensíveis, inclusive aos fenômenos da natureza que
constituem o domínio de experiência possível. Com todos os outros juízos sintéticos
a priori teóricos, o procedimento é o mesmo: o domínio sensível no qual são
interpretados e, pelo menos em princípio, decididos é constituído de construções a
priori na intuição pura.
Em suma: para serem decidíveis (i.e., válidos), os juízos sintéticos a priori
teóricos devem ter sua possibilidade assegurada no domínio sensível da intuição pura, ou seja,
no território da experiência da experiência possível, verificável. Por isso os construtos e
afirmativas da metafísica tradicional se afiguravam imprestáveis assertivas sobre o infinito
ou sobre o absoluto, v.g., não são verificáveis no campo da experiência, sequer no campo da
experiência possível. Os juízos sintéticos a priori que se possam formular sobre esses temas
não são decidíveis não podem ter sua validade ou falsidade demonstrada –, pois não são
garantidos pelos sense data necessários, colhidos no universo da experiência factível.
Assim, a metafísica pode ser uma ciência do conhecimento a priori da razão,
mas este conhecimento não diz respeito às coisas em si mesmo consideradas, mas à
configuração ou forma que a operação cognitiva impõe às coisas para percebê-las e conhecê-
las. Isso quer dizer que não podemos conhecer as coisas em si mesmas, mas devemos e isso
é importante poder pensá-las como reais. Do contrário, a conseqüência seria radicalmente
absurda: existiriam ‘aparições’ (Erscheinung), isto é, fenômenos sem algo que realmente
25
aparecesse, sem algo que desse suporte ‘coisal’ ao aparecer fenomênico (consulte-se
BONACCINI, 2003, p. 174). Seriam abantesmas, fantasmas, sem correspondência no
universo das coisas-em-si.
2.1.4. Estética transcendental
Ao examinar as três operações imprescindíveis ao conhecimento, Kant localiza
nelas certos elementos não-empíricos: no entendimento, os conceitos puros ou categorias; no
juízo, os esquemas transcendentais e os princípios do entendimento puro; e, na sensibilidade,
as formas puras da intuição. Como antes relembrado, para que os conceitos não sejam
estritamente formais, vazios, é preciso ligá-los a uma intuição sensível. Como essa intuição
sensível particulariza o conhecimento, Kant demonstra que uma intuição sensível também
pode ser a priori. É o que ocorre quando se distingue a forma pura da intuição de todo
conteúdo sensível particularizado e, também, de todo o conteúdo do entendimento.
Ao assim proceder, Kant enuncia uma verdadeira “teoria das formas da
sensibilidade a priori (THOUARD, 2004, p. 55), por ele denominada estética
transcendental. É uma estética porque é primordialmente uma teoria da sensibilidade, e é
transcendental, pois trata da maneira de acesso do sujeito ao conhecimento sensível. É, em
suas próprias palavras, “uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori” (KANT,
1974, p. 70 [B 35-36]). Essa ciência trata das duas formas puras da intuição sensível, como
princípios do conhecimento a priori: o espaço e o tempo.
Na elaboração de sua teoria das formas da sensibilidade a priori, Kant volta a
uma distinção presente na metafísica wolffiana de seu tempo: a diferenciação entre sentido
externo e sentido interno. O espaço seria justamente a forma do sentido externo, a forma na
qual as sensações, as afecções dos objetos, seriam recebidas e ordenadas como intuições
26
empíricas de objetos externos no espaço. O tempo, por sua vez, seria a forma do sentido
interno, alinhando as determinações internas às relações temporais (sucessividade no tempo).
Sobre isso, comenta um dos intérpretes de Kant (BONACCINI, 2003, p. 184):
Se espaço e tempo são intuições puras, temos em princípio a possibilidade de um
conhecimento a priori. E se essas intuições puras constituem as formas da
sensibilidade, unicamente segundo as quais podemos perceber os objetos, então não
podemos ter acesso senão a fenômenos espácio-temporais: não conhecemos as
coisas em si mesmas (e a tese do idealismo transcendental se sustenta).
Para arrematar e confirmar, como acima acentuado, a tese do idealismo
transcendental, Kant oferece vários argumentos em sua Exposição Metafísica do Conceito de
Espaço, assim como na Exposição Transcendental. Cumpre bosquejar tais argumentos,
oferecendo também um quadro sucinto sobre a elaboração kantiana acerca do espaço,
delineando seus antecedentes histórico-filosóficos e, da mesma forma, expondo a
interpretação que recebeu dos estudiosos e comentaristas de sua obra.
2.2. O espaço na abordagem de Kant
Por que o estudo do espaço? Justamente em razão da centralidade que a
problemática espacial possui no debate sobre as fundações da física e da matemática. Como a
filosofia transcendental pretendia fundar uma metafísica depurada, digna desse nome,
necessitava ser também uma justificação da verdade das ciências. Assim, a doutrina kantiana
do espaço, “longe de ser uma ‘opinião’ filosófica entre outras, está na intersecção de
problemas levantados pela ciência de seu tempo” (LEBRUN, 2001, p. 26). Ante a necessidade
de confrontação e enquadramento filosófico dos problemas científicos de seu tempo, e as
tarefas dadas pela crítica da razão, o exame racional sobre a natureza do espaço se impunha.
Cumpre, pois, explanar essa análise do espaço, assim como seus antecedentes.
27
2.2.1. Antecedentes imediatos. Newton, Clarke e Leibniz
Não foram poucos os pensadores que se propuseram ao estudo da natureza do
espaço. A posição platônica de identificação do espaço com a matéria foi severamente
criticada por Aristóteles. A formulação do Estagirita, de que o espaço é a fronteira do corpo
continente, na qual ele está em contato com o contido (consulte-se REALE, 1985, p. 73-75),
reúne os aspectos formais e materiais do espaço na noção de limite. Como bem lembrado por
Caygill (2000, p. 118), a maior parte do pensamento posterior permaneceu dentro dos
parâmetros platônicos ou aristotélicos, oscilando entre considerar o espaço, à maneira de
Platão, como um receptáculo para objetos em movimento, ou, segundo Aristóteles, como os
limites de tal receptáculo.
Da mesma forma, a discussão sobre o espaço avançou com a reflexão de
Descartes e sua introdução do par filosófico res extensa / res cogitans. Com a caracterização
do mundo e das coisas corpóreas pela sua extensão física, haveria necessariamente de agregar
uma nova visão sobre o fenômeno da espacialidade. Já os termos do debate científico acerca
do espaço e, em conseqüência, do debate filosófico sobre o tema que predominavam à
época de Kant eram ditados pelo teor da discussão entre Clarke e Leibniz, travada em
correspondência (1715-1716) de fundamental importância para a compreensão do tema.
A querela teórica que então se estabelecia sobre a natureza do espaço era se o
espaço tinha natureza absoluta ou relacional. A teoria que sustentava a natureza absoluta do
espaço, sustentada por Newton e Clarke, afirma, em síntese, que o espaço possui uma
estrutura própria e homogênea e existe independentemente das ‘coisas’. O espaço absoluto
serviria, assim, como o arcabouço último para as posições e movimentos dos objetos em seu
interior. Metaforicamente, a doutrina pode ser expressa na visão do espaço como uma ‘arena’
ou ‘receptáculo’, dentro do qual as coisas e objetos ‘ocorrem’ ou ‘estão’ o espaço em si,
28
todavia, é independente de tais objetos, possuindo existência singular.
A teoria dita relacional, sustentada por Leibniz
6
, em contraste, nega que o
espaço exista independentemente dos objetos. O espaço não seria mais do que a ordem de
relações entre os objetos, ou melhor, uma propriedade dos objetos. o haveria, segundo este
modelo de apreensão do fenômeno espacial, necessidade de uma entidade de cunho absoluto –
o espaço ‘acima’ ou ‘além’ das várias configurações da matéria. Dito em outros termos, não
haveria espaço se não existissem coisas, objetos. De qualquer forma, porém, para ambas as
teorias, o espaço é algo que está fora do ser humano, pertencendo ao universo das ‘coisas’.
2.2.2. A solução kantiana
A solução que Kant à querela entre a teoria absoluta do espaço e a teoria
relativa do espaço é original e consentânea com os princípios da filosofia transcendental.
Conforme afirmado, o projeto crítico kantiano consiste na elaboração do fundamento da
teoria da solubilidade dos problemas necessários da razão nos limites de uma sistemática
rigorosa, acima brevemente delineada. Para tanto, fazia-se necessária a confrontação, em um
determinado nível teórico e fundacional, dos problemas científicos de sua era. E o seu tempo,
como também visto, encontrava-se dividido quanto à natureza do espaço.
Em sua longa trajetória intelectual, Kant flertou com ambas as posições no
tocante ao tratamento do espaço. Como assinala o dicionarista, “em seus escritos pré-críticos
das décadas de 1740 e 1750, os pensamentos de Kant a respeito do espaço estavam, de um
modo geral, de acordo com a tradição da crítica de Leibniz a Descartes” (CAYGILL, 2000, p.
119). O seu enfoque primordial, àquela época, era o de análise do espaço como o fenômeno
6
Havia outras complicações ainda nas formulações de Leibniz. Para ele, em realidade, o espaço seria uma mera
ordem intelectual, um conjunto de relações instituídas por Deus entre as mônadas. Daí a sua famosa afirmação
segundo a qual o espaço não é nada sem as coisas, senão a possibilidade de pô-las. Por essas razões, entre tantas
outras, é que Kant acabou por concluir que a conciliação entre o mundo metafísico de Leibniz e as exigências
das ciências exatas era impossível.
29
das relações entre forças substanciais. Ora, as crescentes dúvidas de Kant acerca da filosofia
leibniziana/wolffiana, com os metafísicos que “legislam e ‘decidem’ no absoluto a propósito
do infinito, do contínuo, das substâncias mas sem oferecer-nos garantia nenhuma de suas
afirmações” (LEBRUN, 2001, p. 27), induziram-no, com toda a certeza, a uma revisão
intelectual.
Esta viravolta caracterizou-se por uma virada em favor da posição newtoniana,
ocorrida no ensaio de 1768 (Sobre o primeiro fundamento da distinção de direções no
espaço). Sobre aquele ensaio, diz Caygill (2000, p. 120):
Ostensivamente, o ensaio é uma defesa do espaço absoluto de Newton por meio de
um desenvolvimento da analysis situs de Leibniz, sua antecipação da topologia,
contra a metafísica leibniziana. Pelo estudo dos fenômenos de direção e orientação
no espaço, Kant esperava mostrar que o espaço, como um ‘ordenamento’, era
defensável com referência ao espaço absoluto.
A adesão de Kant à teoria newtoniana do espaço absoluto foi breve, mas
deixaria suas marcas na Dissertação Inaugural de 1770 e, também, na Crítica da Razão Pura,
que submete a espacialidade ao crivo do sistema crítico.
Cumpre, pois passar ao exame da Crítica da Razão Pura.
Nela, o espaço é concebido como uma intuição a priori.
Como Kant argumenta em sua exposição do conceito de espaço para
comprovar que se trata de uma intuição a priori? Como referido anteriormente no curso
desta dissertação, quatro argumentos são alinhados na Exposição Metafísica do Conceito de
Espaço, além de um argumento indireto contido na Exposição Transcendental. Cumpre
apresentá-los aqui, de forma abreviada, para a boa rememoração do tema (KANT, 1974, p.
71-78 [B 37-47]).
O primeiro argumento nega que o espaço possa ser um conceito empírico
abstraído da experiência, pois para que as sensações possam ser conscientemente referidas a
30
objetos exteriores ocupando lugares distintos daquele em que estamos, e, também, dos que os
outros objetos ocupam, é preciso antes ter por base a própria representação do espaço. Em
suma, a experiência externa só seria possível com base na representação espacial.
O segundo argumento reafirma o passo anterior e acrescenta que não só a
representação dos objetos externos supõe a representação do espaço, mas o próprio espaço é
uma representação necessária a priori, e está na base de todas as intuições externas. Caso
contrário, poderíamos representar objetos que não fossem espaciais, o que é impossível,
embora seja viável uma representação espacial vazia de coisas e objetos. Se a representação
do espaço fosse de origem empírica deveria surgir dos próprios objetos que representamos
ocupando um espaço. Como podemos representar o espaço sem objetos, e não objetos sem
espaço, não se trata de uma determinação dos objetos. Se a determinação não é inerente aos
objetos, não é empírica, a posteriori, e, portanto, somente pode ser a priori. Além disso, é
uma representação necessária, pois é condição de possibilidade dos fenômenos externos.
Do primeiro e do segundo argumentos, reunidos, surge claramente que o
espaço não é um conceito empírico, mas uma representação necessária a priori. Todavia,
ainda poderia ser um conceito a priori – o que é refutado pelos argumentos seguintes.
Assim, o terceiro argumento afirma que o espaço não é um conceito discursivo
ou um conceito universal das relações das coisas em geral, mas uma intuição pura. Isso
porque a representação do espaço é um todo uniforme, e a representação de suas parcelas é
feita mediante a limitação do todo em partes. O espaço, pois, não é um todo obtido pela
composição de partes preexistentes e extrínsecas entre si, mas um todo ilimitado que torna
possível cada uma de suas partes como limites de si mesmo. Em razão disso, não pode ser um
conceito, pois os conceitos são representações universais compostas pela reflexão a partir de
características comuns (per notas communes); formados, destarte, de partes preexistentes. O
espaço, sendo uniforme, não é composto; é, pois, uma representação singular.
31
O quarto argumento reforça o argumento anterior. O espaço não somente não
poderia ser um conceito universal por não ser uma representação composta, mas também
porque, além disso, é representado como uma grandeza infinita dada. Ora, nenhum conceito
dado pode conter uma quantidade infinita de representações, enquanto que no espaço todas as
suas partes são pensadas como sendo simultâneas ad infinitum. A conseqüência que segue é
que o espaço é, assim, uma intuição a priori e não um conceito.
Na Exposição Transcendental, Kant apresenta um argumento que pode ser
entendido como uma prova indireta. Se a geometria é uma ciência que determina
sinteticamente a priori as propriedades do espaço, é preciso que a intuição do espaço seja
originariamente uma intuição pura. Assim é porque de um simples conceito não se pode
extrair uma proposição que ultrapasse o conceito, a menos que se trate de uma intuição que se
encontra a priori no sujeito, antes de toda percepção de um objeto. Assim, a intuição externa
unicamente pode residir a priori no ânimo e preceder a percepção dos objetos se ela fizer
parte da natureza do sujeito enquanto disposição formal de ser afetado por objetos – isto é, de
receber a intuição, a representação imediata enquanto forma do sentido externo em geral. O
espaço seria, desta maneira, a forma do sentido externo.
2.2.3. Interpretação do modelo kantiano
Como interpretar o modelo proposto por Kant em sua abordagem do espaço?
Sem ser relacional ou absoluto, o modelo kantiano é, de certa maneira, ‘subjetivo’. Ao invés
de localizar o espaço como uma entidade fora’, seja de natureza absoluta (como ente
substancial e independente) ou relativa (vislumbrando o espaço como um sistema de relações
entre as ‘coisas’), Kant aloja o espaço ou a sua percepção ‘dentro’ do homem, em sua
operação cognitiva, em genial fidelidade aos postulados do sistema crítico. Trata-se de
32
estabelecer, segundo os métodos da filosofia transcendental, uma condição de possibilidade
para a percepção dos fenômenos físicos. É justamente por isso, pela ‘subjetivação’ do espaço,
que Kant fala que “somente desde o ponto de vista humano podemos (...) falar do espaço, de
entes extensos etc. Se nos afastamos da condição subjetiva unicamente sob a qual podemos
obter intuição externa, ou seja, do modo como podemos ser afetados por objetos, então a
representação do espaço não significa absolutamente nada” (1974, p. 75 [B 42-43]).
Ao pensar o espaço a partir do sujeito transcendental, e não de forma extrínseca
ou independente como até então se havia feito, Kant promove aqui também uma ‘revolução
copernicana’. Da mesma forma, se é certo que rejeita as concepções leibnizianas, por
incompatíveis com a razão científica de seu tempo, também não se pode deixar de notar que a
sua abordagem do espaço tem algo de relativo ou ‘relacional’, pois o sujeito promove, em
certa medida, a ‘coordenação’ das relações entre os objetos segundo seu próprio ponto de
vista cognitivo. Na ‘subjetivação’ do espaço restam nesgas do espaço ‘relacional’.
Da mesma forma, Kant não descarta a noção de espaço absoluto. Ao contrário,
no bojo de uma teoria da razão como sistema direcionado a fins práticos, várias questões
relacionadas à fundação das ciências físico-matemáticas exigiam a vinda de conceitos e
noções de outro jaez. A ‘revolução copernicana’ teve também o mérito, pois, de integrar
modelos aparentemente distintos no seio de uma mesma arquitetônica conceptual, legando
uma sistemática complexa, capaz de dar conta dos problemas advindos da audaciosa crítica da
razão. Sobre a questão do espaço absoluto, ensina Loparic (2002, p. 308):
Problemas adicionais relativos às fundações da física matemática tinham levado
Kant a legitimar a introdução de várias outras idéias, pertencentes à matemática
ideal, tais como a idéia de espaço vazio (p. 154) e a idéia newtoniana de espaço
absoluto. O espaço absoluto não é ‘nenhum objeto [Gegenstand] de experiência,
pois o espaço sem matéria não é um objeto [Objekt] de experiência’. Não obstante, o
espaço absoluto é ‘um conceito’ [Begriff] necessário da razão’, ainda que não seja
mais do que ‘uma mera idéia’ (ibid., p. 146).
33
Trata-se aqui de uma idéia regulativa, ou seja, de uma idéia que não
corresponde a um conceito, mas que deve servir como uma regra. Kant distingue aqui entre “o
conceito de um espaço efetivo que pode ser dado e a mera idéia de um espaço que é pensado
apenas para a determinação das relações entre espaços dados, mas que não é de fato um
espaço” (apud LOPARIC, 2002, p. 309). Ao superar a dicotomia espaço absoluto / espaço
relativo, Kant integra uma parcela de ambas as noções no mesmo sistema, recepcionando-as
sob o novo paradigma da filosofia transcendental, fundada no reconhecimento dos limites à
razão e ao conhecimento.
Não faltam críticas, é bem verdade.
Um delas de caráter recorrente, apresentada por Caygill, é a de que Kant, ao
deslocar o foco da abordagem, teria fugido à questão essencial sobre a natureza do espaço.
Assim, verbis: “Kant o segue a sugestão de Aristóteles de concentrar-se no espaço como
limite, preferindo destacar o seu caráter coordenativo, mas compartilha claramente da sua
dificuldade de não ser capaz de distingui-lo de forma convincente da matéria e da forma. Ao
considerar o espaço uma intuição que contém em si um ‘número infinito de representações’
que, num certo aspecto, ele ‘reveste’, pode-se dizer que Kant redescreveu a dificuldade em
vez de propor para ela uma solução convincente” (CAYGILL, 2000, p. 122).
Outra crítica, de caráter interessante, é a de que o espaço, como foco de atenção
da análise da Estética Transcendental (espaço dado, infinito, singular e omnicompreensivo),
não pode ser descrito como uma mera capacidade de intuir nem como uma intuição formal, já
que não é representado em si mesmo como um objeto. Para o intérprete, esse espaço deve ser
considerado como a forma ou estrutura ‘pré-intuída’ que condiciona e que é pressuposta pela
representação atual das configurações do espaço (ALLISON, 1992, p. 164-165).
Reproduzem-se as duas críticas apenas para atestar que a construção kantiana
foi e continua a ser objeto de debates acirrados entre os estudiosos da matéria. Na verdade, o
34
propósito da breve explanação sobre a abordagem de Kant sobre o espaço foi proporcionar
elementos para contrastá-la com o approach de Heidegger, e não examinar profundamente a
temática. Trata-se apenas de demonstrar os elementos essenciais do tratamento do espaço no
âmbito do sistema crítico ‘alojamento’ do espaço no sujeito, recepção mitigada das teorias
vigentes, reconduzidas a um novo paradigma para, depois, tentar reconhecer parcela desta
herança no tratado heideggeriano de 1927. Para isso, os elementos trazidos já bastam à tarefa.
35
3. HEIDEGGER E A HERANÇA KANTIANA
3.1. Premissas. A chave de interpretação
Depois de examinada a reflexão de Kant sobre o espaço, cumpre avançar na
estrutura da dissertação, expondo agora, em linhas gerais, o papel da herança kantiana no
contexto do pensamento de Heidegger. Trata-se aqui de analisar a forma, a maneira como
Heidegger recebe a obra de Kant e como dialoga, em sua própria obra, com a tradição da
filosofia crítica. Assim, a tarefa é rastrear o fio condutor na argumentação heideggeriana que
permita identificar o legado de Kant no que toca à recepção do esquematismo, da
transcendência e, especialmente, do a priori. Sobre isso, disse Loparic (2004a, p. 64, n. 7): “O
conceito heideggeriano da transcendência como condição de possibilidade ou a priori
existente (...) [é] uma das suas descobertas fundamentais (...)”.
Destarte, Heidegger será examinado como “uma espécie de neokantiano que
despertou para a historicidade da metafísica” (DRUCKER, 2004, p. 21). Reconhecer a raiz
kantiana de algumas das formulações do pensador de Meßkirch implica desnudar a origem de
uma parcela da armação conceptual de Ser e Tempo. Não é por outra razão que Stein afirma
(2000, p. 51): “O projeto heideggeriano é tirado de Kant, mas elevado a um outro nível”.
Trata-se aqui de uma verdadeira mudança de paradigma, em que os conceitos trazidos pela
metafísica ocidental são recebidos e criticamente alocados em uma nova estrutura de reflexão,
recebendo uma carga semântica renovada (sobre Ser e Tempo como mudança de paradigma,
conferir STEIN, 1990, p. 7-17 e p. 27-47). Tem-se então, com a edição de Ser e Tempo, uma
transformação tão importante para a filosofia ocidental quanto, de certa forma, foi a de Kant,
um século e meio antes.
36
Estabelecida a chave de leitura perseguir a trilha do acervo crítico de
inspiração kantiana no bojo da reflexão heideggeriana cumpre fixar o itinerário. Assim, é
necessário, ainda que em breves linhas, anotar os pontos cardeais da formação de Martin
Heidegger, destacando o que se afigurar relevante para os fins da presente dissertação.
Embora motivado por temáticas distintas, Heidegger mantém uma relação vital com
pensamento de Kant, como fica evidente no percurso de seu pensamento. que se destacar,
outrossim, que o Heidegger que interessa a este trabalho é o autor de Ser e Tempo. Faz-se o
alerta em face da forte transformação sofrida pelo seu pensamento ao longo de décadas de
reflexão. depois, como se sabe, uma “virada decisiva” (Kehre) do pensamento
heideggeriano, com o abandono da formulação existencial-ontológica da pergunta pelo ser e
a sua substituição pela formulação acontecencial-ontológica” (LOPARIC, 2004b, fls. 53-54).
Trata-se, em um posterior momento da reflexão de Heidegger, de examinar as modificações
do sentido do ser ao longo de seu acontecer na história da metafísica ocidental. Deste modo,
ante os ‘vários’ Heidegger, merecerá o devido destaque o pensador de 1927 e o respectivo
stato dell’arte de sua elaboração filosófica.
Da mesma forma, o itinerário deve transitar pela teoria do conhecimento de
Heidegger. O problema do conhecimento esteve entre as preocupações centrais do filósofo;
por outro lado, era clara a sua aversão à epistemologia (INWOOD, 2002, p. 20). Em razão
disso, é importante esclarecer as idéias gnosiológicas de Heidegger, precisando-lhe a eventual
origem kantiana, na medida em que esta for perceptível na ‘armação’ do sistema. Na
seqüência, adentrando na estrutura gnosiológica heideggeriana, há de ser desnudado o método
de formação dos conceitos em Ser e Tempo; vale dizer, para os fins desta dissertação, a
maneira como os construtos teóricos kantianos foram incorporados – transfigurados, poder-se-
ia dizer – em uma nova estrutura de pensamento, marcada por finalidades diferentes e
atravessada por uma preocupação diversa: a questão do ser.
37
O texto será ocupado também por um breve exame do transcendental em
Heidegger. É sabido que o filósofo, utilizando ou não a referida expressão (que muito
criticava, aliás), trabalhava também dentro de uma moldura de condições de possibilidade.
Essa investigação de problemas de constituição, de matriz marcadamente kantiana, está
presente na apresentação dos problemas filosóficos que se propõe a questionar. Essa
persistência do transcendental na reflexão heideggeriana conduz ao derradeiro tópico a ser
abordado: a permanência correlata à persistência do transcendental da noção de a priori.
À semelhança de Kant, o homem de Meßkirch também trabalha com um a priori, ou seja,
com a noção de estruturas necessárias, mas este a priori não é fixo, ou de conteúdo lógico e
imutável. Ao contrário, ao elucidar a radical historicidade da metafísica, Heidegger abre
caminho para um a priori radicado na existência: o ser-no-mundo, que será detalhado e
examinado.
3.2. A formação de M. Heidegger. Notas sobre as influências em seu pensamento
Se a tarefa da presente dissertação está calcada na recuperação do diálogo que a
obra maior de Heidegger estabelece com a tradição filosófica crítica advinda de Kant, então é
mister seguir as pegadas do pensador, trazendo à tona o contexto de sua formação filosófica.
Somente assim se poderão compreender os ‘vários’ Heidegger que existem sua obra e a
referência não é somente à virada (Kehre), mas às várias ‘camadas’ de reflexão que existem
no próprio texto de 1927. Entre as variegadas influências que compuseram a sofisticada e
riquíssima obra do filósofo, avulta a herança kantiana, a compor, como será visto, um dos
‘estratos’ fundamentais de seu pensamento.
A primeira influência, por influência da obra de Brentano, é Aristóteles. Após a
leitura de Sobre o múltiplo sentido do ente em Aristóteles é que Heidegger desperta para a
38
questão do ser. Várias das noções que povoaram a reflexão heideggeriana estão na obra do
Estagirita: presença, verdade, coisas, etc. Segue-se Husserl e a fenomenologia, com o famoso
lema ‘zu den Sachen selbst’ de volta às coisas (elas mesmas). É certo que Heidegger irá
promover uma utilização radicalmente nova do método fenomenológico, lançando mão de
seus institutos para o exame de uma questão estranha aos fenomenólogos de seu tempo: a
questão do ser (STEIN, 1983, p. 30-93). No entanto, é também indiscutível que a inflexão da
fenomenologia foi decisiva na construção do tratado de 1927. Neste ponto, destaca-se a
opinião contrária de Michael Inwood, a nosso ver equivocada. Para ele, a tradição
fenomenológica não tem o peso assinalado: ’Fenomenologia’ é dessas palavras da moda que
ST [Ser e Tempo], uma situação-limite de transição para coisas mais elevadas, inevitável mas
equivocadamente, utilizou” (INWOOD, 2002, p. 67).
Ramón Rodríguez Garcia apresenta Ser e Tempo como o resultado da fusão de
três motivos básicos que teriam impulsionado sua obra até 1927 (1987, p. 53 e as
precedentes): a influência de Aristóteles (a noção de λόγος, a verdade como desocultamento,
ser e verdade, e, também, ser e presença, eis alguns dos tópicos hauridos do pensador grego),
a noção de faticidade histórica da vida humana (obtida no exame da obra de Dilthey e no
exame das vozes do cristianismo primitivo, especialmente Paulo e Agostinho), e o sentido
filosófico da fenomenologia de Husserl. Isso é verdade, mas também é necessário destacar o
diálogo que se estabelece com Kant ao longo do texto, às vezes de forma oculta, por vezes às
claras, com referências explícitas à obra do sábio de Königsberg.
Da mesma forma, é fundamental vislumbrar as camadas que perpassam o texto.
As distinções ôntico / ontológico e ser / ente atravessam o texto e proporcionam luzes tanto
sobre a estrutura da obra quanto sobre a sua temática. Assim, o exame de Ser e Tempo
ensejará, conforme o intérprete, uma leitura primordialmente ‘existencial’, ou uma abordagem
mais ‘gnosiológica’, e assim por diante. A leitura que se pretende aqui fazer é com o sentido
39
de desenterrar elementos que permitam compreender a recepção crítica que noções de origem
kantiana recebem na obra de Heidegger. Toda e qualquer pista que leve à efetivação da ‘chave
de leitura’ antes proposta deve ser realçada, mesmo que pertença aos andaimes e fundações da
obra, não ao seu exterior mais evidente, como as influências bem conhecidas e estudadas,
como, v.g., aquelas assinaladas por Ramón Rodríguez Garcia.
3.3. Breve aproximação à gnosiologia de Martin Heidegger
Como referido, o problema do conhecimento constitui ponto central para
Heidegger; o filósofo, todavia, não insiste em um projeto epistemológico. Sua meta é outra:
em 1927, busca elaborar uma analítica existencial que conta da questão do ser. O cenário
que o filósofo lapidava é bem exposto por Stein (2002b, p. 91):
(...) para Heidegger, não se trata de eliminar a questão da teoria do conhecimento ou
da epistemologia, para superar o dualismo representação e representado. Trata-se de
desenvolver um espaço no qual se possa descrever um cenário em que tal atividade
de conhecimento se torne possível. Esse cenário é a analítica existencial em que se
baseia a ontologia fundamental. É nesse cenário que o homem se move, conduzido
por uma confiança no mundo, explicitado por um autocompreender-se em seu ser;
portanto, ainda por uma espécie de primeira entrega ao fato de existir, sem o qual
nada faz sentido.
A lição acima reproduzida encerra menção aos elementos fundamentais do
pensamento de Heidegger em Ser e Tempo; elementos essenciais, por conseguinte, ao
entendimento da problemática gnosiológica do pensador. São eles: a existência, o cuidado
(“Sorge”), o ser-no-mundo (fundamento da autocompreensão), e o Dasein, que nada mais é
do que o nome ontológico para o homem. Além deles, o elemento básico da filosofia
crítica, que é recebido por Heidegger sob uma nova roupagem o transcendental, que traz
consigo a idéia de condição de possibilidade.
Ora, este transcendental é devidamente entendido, segundo a leitura de Stein,
40
como a soma das categorias com o tempo. Este espaço transcendental, que se dá no Dasein e
se viabiliza por meio dos existenciais, é a condição de possibilidade para o ‘dar-se’ dos
fenômenos. Isso tem reflexos na própria teoria heideggeriana do conhecimento, em que o
dualismo entre realismo e idealismo é superado pelo ‘retroceder’ a um território anterior. Pela
utilidade do magistério, reproduz-se mais uma vez a lição de Stein (1993, p. 46):
É isso propriamente o que queremos: o que queremos resolver é o problema da
empiria, é o problema do conhecimento empírico. Qual a teoria da experiência de
Heidegger? A teoria da experiência de Heidegger não é uma teoria como Kant a
constrói, mas é uma teoria que, partindo de Kant, radicaliza Kant, via esquematismo,
e termina produzindo uma teoria da experiência que não constrói o objeto desde
fora. O objeto já é sempre compreendido. E com isso rompe a estrutura da relação
sujeito-objeto como sendo o modelo do conhecimento, a esse nível transcendental.
No nível superficial podemos perguntar pelo objeto do conhecimento, mas ali é o
objeto da empiria. As condições de possibilidade para atingir pela empiria o objeto
são postas de maneira diferente. O que Kant quer é a construção da objetividade. E
em Heidegger a construção da objetividade chega tarde. uma questão anterior,
que é a do ser-no-mundo prático. A relação sujeito-objeto, portanto, é criticada,
porque não se compreende a relação. Essa relação brota da maneira de ser-no-
mundo. Assim como a relação que se na verdade também não se resolveu e por
isso a questão da verdade tem que responder primeiro à questão da relação, na
relação intelecto e coisa. E Heidegger sempre vai remeter ao conjunto dos
existenciais, ao conjunto do Dasein, tendo como base sempre o elemento de
compreensão, sem o qual o Dasein não se daria.
Deste modo, a analítica não é uma teoria do conhecimento tal como Kant a
concebia (STEIN, 2000, p. 113), mas em seu interior estão fundamentos gnosiológicos
referidos a um novo paradigma, o do ser-no-mundo, que lhes uma nova conformação. A
questão queda assim radicada em um terreno filosófico ‘anterior’ à dicotomização sujeito-
objeto que caracteriza a metafísica ocidental. Como assinala Luzón (1995, p. 115)
corretamente, ao nosso ver –, Heidegger substitui o a priori objetivo e científico de Kant, o a
priori de substância e causa, por um a priori deslocado para o mundo prático e marcado pela
instrumentalidade.
41
3.4. Sobre a construção dos conceitos em Ser e Tempo
Antes de examinar aquilo que constitui o aspecto propriamente kantiano da
estrutura argumentativa, é necessário dizer ainda algumas palavras sobre aquilo que Stein
denomina apropriadamente a estratégia da formação dos conceitos da ontologia fundamental.
É importante, para uma correta compreensão dos conceitos heideggerianos, e para uma
perfeita localização sistemática de tais conceitos na arquitetônica conceptual de Ser e Tempo,
apreender como foram construídos tais conceitos. Em outras palavras, como noções advindas
da metafísica ocidental (que o pensador pretendia superar ou ‘destruir’) foram ‘transfiguradas’
(i.e., receberam uma carga semântica diferente, renovada) para se encaixarem em um sistema
formulado a partir de um novo paradigma. Compreender esse processo auxiliará no bom
entendimento da recepção, por Heidegger, da tradição kantiana, mesmo que o filósofo utilize,
muitas vezes, uma nomenclatura distinta daquela usada por Kant.
falamos, ao princípio, das dificuldades que residem na linguagem evocativa
usada por Heidegger em Ser e Tempo. Trata-se de um discurso que não é necessariamente
regido pelas regras clássicas de argumentação: mais do que demonstrar e provar, ele como
no XCIII fragmento de Heráclito indica, assinala. Apesar disso, algumas técnicas de
formação dos conceitos são claramente discerníveis na obra. Stein é claro na exposição desse
estilo de exposição: “Cada vez é desenvolvida uma lógica semelhante: os conceitos éticos são
ontologizados e esta é a tendência metodológica predominante e muitos conceitos
ontológicos são tornados práticos”. Prossegue logo adiante o autor: “Nesta dupla estratégia de
produção de conceitos para a ontologia fundamental talvez resida uma das principais razões
do fascínio do discurso heideggeriano” (STEIN, 1993, p. 71).
O mesmo se deu com relação à assimilação da obra de Kant. A tentativa de
alinhar aquele pensador junto a si, como aliado na questão do ser – bastante evidente em Kant
42
e o problema da metafísica –, levou-o a uma interpretação larga, uma ‘violência
hermenêutica’. Essa radicalização de Kant, sobretudo no âmbito da filosofia prática kantiana
(mormente quanto à questão da liberdade) culminou em uma leitura singular de seu
predecessor. Não é do interesse desta dissertação aprofundar-se nos detalhes da leitura
explícita que Heidegger fez de Kant, não na obra acima mencionada, mas também nas
obras que têm vindo a lume nos últimos anos (v.g., Análise Fenomenológica da Crítica da
Razão Pura); o que interessa, para os fins do presente estudo, é ressaltar a lógica interna que
preside à recepção heideggeriana dos conceitos e idéias contidas na obra de Kant.
Stein, mais uma vez, é essencial à compreensão do tema (1993, p. 73):
Essa estratégia da formação dos conceitos da ontologia fundamental servia a um
desígnio muito mais radical: a mudança de paradigma na filosofia. Na superação da
representação, da teoria da consciência em direção a uma teoria do mundo prático, o
filósofo realizaria um verdadeiro contorsionismo para adequar as categorias
kantianas (e de outros filósofos) aos existenciais. A teoria do Dasein e do ser-no-
mundo era concebida como anterior a uma possível teoria da consciência ou
qualquer outra teoria ontológica e, contudo, destas teorias o filosófo extraía, numa
operação de semântica filosófica, o material para seu vocabular-conceitual.
Resta nítida, portanto, a estratégia de recepção / apropriação de conceitos, o
que vale também para a recepção de Kant, explícita ou implicitamente (destaca-se a questão
da recepção ‘implícita’ dos conceitos, pois às vezes, como se verá na questão da
espacialidade, o fio condutor da aludida lógica de apropriação dos conceitos está oculto, mas
não menos presente). um deslocamento semântico nos conceitos, que são integrados em
uma arquitetônica filosófica nova e submetidos a um novo fundamento de validade, no caso, o
ser-no-mundo. Stein fala em uma operação de “semântica filosófica”, e é justamente disso
de uma semântica em sentido estrito que aqui se trata, segundo a tradicional acepção dada
ao vocábulo por Charles Morris em 1938, ou seja, de uma nova articulação dos conceitos
filosóficos com o respectivo conteúdo, vale dizer, uma nova atribuição de significado e
referência (relação entre a proposição do discurso e os dados da realidade). Heidegger
43
inaugura um novo procedimento semântico, ‘destruindo’ o contexto de referência e
significação do programa crítico kantiano e ‘apropriando’ os signos (conceitos) em uma nova
articulação de sentido.
A técnica de Heidegger, como se pode ver, é cristalina em sua ‘hermenêutica
apropriadora’. Os conceitos ontológicos são ‘antropologizados’ ou ‘subjetivados’, ou seja,
levados para o âmbito do Dasein e do mundo prático o que ocorrerá na questão do espaço.
Por sua vez, os conceitos práticos, notadamente aqueles que dizem respeito à ética, são
ontologizados. Assim transfigurados, os conceitos devidamente são integrados na corrente na
ontologia fundamental desenvolvida em Ser e Tempo. É necessário destacar, porém, quando
se fala em conceitos práticos e conceitos ontológicos, que não se está fazendo referência à
definição de tais termos segundo a tradição filosófica. Não se trata de uma ontologia
tradicional, mas de uma ontologia obtida ao cabo de uma nova semântica filosófica, formada
a partir da aplicação do método fenomenológico conforme a leitura que Heidegger fez da obra
husserliana. Neste particular, deve ser destacada a função dos indícios formais.
Indícios ou indicadores formais constituem uma herança metodológica
explícita da fenomenologia transcendental no bojo de Ser e Tempo. O indício formal pode ser
visto como uma preparação, uma antecipação da explicação fenomenológica. Ele dirige a
atenção para os fenômenos da vida fática, e sem esse indício ou indicação prévia, não se teria
acesso aos fenômenos originários. O indício formal não é, entretanto, uma referência externa
ao objeto; como dito, ele chama a atenção para a vida fática, pois a tendência é de
encobrimento dos fenômenos originários. O próprio conceito de existência, por exemplo, é
uma prefiguração da estrutura formal da compreensão do Dasein. Com os indícios formais
pretende-se evitar a generalização, pois antes de qualquer teorização a orientação preliminar,
a pré-compreensão fundamental à reflexão heideggeriana, encontra-se na vida fática.
Assim, Heidegger conecta o conceito de indícios formais com suas diretrizes
44
de pesquisa, articulando-a com a questão do ser e com a noção de Dasein. Os próprios
existenciais, a serem tratados logo adiante, constituem um exemplo de aplicação da teoria dos
indícios formais. A construção das ‘categorias’ relativas ao Dasein é feita mediante uma
operação de descrição fenomenológica. Mais do que definições acabadas, os existenciais
assinalam um ver fenomenológico das estruturas do Dasein, um olhar – ainda que incompleto,
ressalta-se voltado para a “coisa mesma” de que trata a ontologia fundamental. A respeito
desse caráter de incompletude das categorias existenciais formadas por meio do aludido
processo de indicação (ou indiciamento) formal, destaca Stein (2002b, p. 166):
Onde temos os indícios formais não temos o todo da coisa, temos os elementos
formais que remetem a algo que pode estar disperso na condição humana. Dela
apanhamos aspectos limitados, mas não o todo da condição humana. Como nunca
conseguimos completar a exposição dos indícios formais, nunca acabamos a
analítica existencial. Ela é a caminho, sempre é um processo em formação.
Resumindo a complexa estratégia de formação dos conceitos em Ser e Tempo,
é possível afirmar que Heidegger pratica uma hermenêutica de apropriação e recepção dos
conceitos da tradição filosófica (salientando-se, para os fins do presente estudo, as
formulações advindas da obra do Kant tardio), em que os conceitos ontológicos são
antropologizados e os conceitos práticos e éticos são ontologizados. Tais conceitos, porém,
não devem ser vistos ou tratados como construtos da ontologia tradicional, pois Heidegger
constrói uma nova ontologia, orientada por uma semântica distinta. Na elaboração de tais
conceitos, o pensador lança mão de sua versão do método fenomenológico, atribuindo papel
fundamental aos indícios formais na construção categorial da analítica existencial, construção
esta que, como dito, permanece aberta, em elaboração, um verdadeiro work in progress.
45
3.5. O transcendental em Heidegger. O Dasein e os existenciais
Voltemos a Kant. Como se a ‘radicalização’ de Kant referida em linhas
anteriores? Como visto, a interpretação de Kant por Heidegger vai aparecendo e se
confirmando na publicação de várias obras que vão surgindo no opus postumum. Embora não
seja nosso propósito assinalar a exata recepção que há na obra de Heidegger, mas sim a lógica
que preside a incorporação no novo paradigma do pensamento, faz-se necessário dizer
algumas palavras sobre a maneira pela qual Heidegger, trazendo Kant para próximo de sua
reflexão, concebe o transcendental, elemento basilar na filosofia crítica.
Conforme percebe Heidegger, Kant quer superar a luta então existente, em seu
tempo, entre cartesianismo, idéias inatas universais, e empirismo, idéias fundadas no
psicologismo, na “estrutura existencial individual”, como dirá Stein (1993, p. 31). Na
radicalização que Heidegger promove para escapar a esta dicotomia, o problema é resolvido
por meio da valorização da imaginação (conforme a primeira redação da Crítica da Razão
Pura, em 1781). Naquela obra, a unidade dos conceitos e categorias com o material trazido
pela intuição seria feita pela imaginação e, como acrescenta Stein (1993, p. 31), “através do
tempo, de certo modo”.
Ora, a imaginação, para Heidegger, seria uma superação também do
psicologismo, apesar das aparências. Não se trata aqui de um registro psicológico, mas de
uma construção ligada diretamente ao Dasein. Este, o Dasein, noção construída no âmbito do
ser-no-mundo (e pelo ser-em) nada mais é do que um construto para representar o homem, um
‘dublê’ do ser humano, dirá Stein (1993, p. 32). Não nos movimentamos mais frente a um ‘eu
transcendental’, um sujeito lógico contraposto a um ‘eu empírico’; não, estamos aqui nos
domínios do mundo prático, no qual o Dasein desde sempre está.
Para Heidegger, a metafísica é uma característica do próprio ser humano, é
46
uma tendência natural do próprio ser humano. Isso teria sido percebido por Kant, e a sua
tentativa de fundar as categorias no sujeito transcendental nada mais seria do que o
reconhecimento desta tendência inata. Há, pois, que preservar a questão do sentido do ser,
pois o homem é concebido enquanto alguém que compreende o ser, vinculando-o a uma
dimensão histórica, sem que isso implique, todavia, na historicização completa do ser (no
sentido do texto, ver STEIN, 1993, p. 32-33).
Assim, em Kant, a afirmação das categorias a priori respondia à distinção do
universal e do singular, i.e., do cartesianismo e do empirismo. Do universo categorial a priori,
os conceitos passam a ser preenchidos empiricamente, sem cair no psicologismo. A união
entre ambos se faz por meio do esquematismo. A razão recebe esquemas, fundados em um
método, pelos quais ela pode seguir regras de particularização das categorias a priori
universais. Este método conduz a razão a singularizar os conceitos sem cair no psicologismo.
As três perguntas fundamentais de Kant (“o que posso saber?”, “o que devo
fazer?” e “o que me é permitido esperar?”) têm sua solução remetida à resposta da quarta
pergunta: o que é o homem? Para Heidegger, esta pergunta é em si mesma transcendental e já
encontra resposta em Kant, pois a pergunta é de caráter metodológico (não epistemológico,
nem antropológico). O homem, como visto por Heidegger, está expresso no construto Dasein,
que pretende ser a superação do ‘eu empírico’ e do ‘eu transcendental’. Estes devem receber,
em Kant, o elemento que produza a unidade entre os dois, no caso, o esquematismo,
interpretado por Heidegger pelo ângulo da imaginação. Assim, o Dasein é o que Heidegger
põe entre aqueles ‘eus’. O Dasein é justamente o homem do esquema, do esquematismo,
porque é nele que se a síntese, somando-se a categoria ao tempo (neste sentido, STEIN,
1993, p. 33-35).
Em suma, o Dasein é dotado ele próprio de uma transcendentalidade (esta
constituída das categorias somadas à imaginação ou seja, aos existenciais ou ao tempo) e,
47
portanto, de uma temporalidade. Nesse contexto, os existenciais podem ser definidos como
maneiras de, mediante um método, seguir regras de descrição do Dasein enquanto ser-no-
mundo, território em que a diferenciação entre universal e singular se resolve sem cair no
subjetivismo transcendental nem no historicismo empirista (STEIN, 1993, p. 35).
aqui uma radicalização das virtualidades que, segundo Heidegger, estariam
ocultas em Kant. Há um esboço de superação da transcendentalidade ligada ao sujeito, na
transição rumo a uma transcendentalidade ligada ao mundo prático. O Dasein se articula em
existenciais no mundo prático
7
, e os existenciais nada mais são do que os esquemas pelos
quais o Dasein é interpretado no mundo e se compreende no mundo, pois nele se singulariza o
universal. Mais uma vez, remete-se a atenção ao magistério de Stein (1993, p. 37, grifou-se)
8
:
O Dasein se conduz por esquemas práticos e, como sempre compreende o ente,
sob o fundo da compreensão do ser, ele garante a aplicação, via regras que o Dasein
segue, dos conceitos ao singular. Então, podemos falar, em Heidegger, numa
transcendentalidade histórica.
Prossegue Stein (1993, p. 38):
O transcendental em Heidegger (...) traz, de um lado, alguns elementos do
transcendental kantiano a pretensão da universalidade, necessidade, verdade e
traz em si, ao mesmo tempo, elementos do universo empírico, também kantiano.
Mas, em lugar de colocar o eu transcendental e o eu empírico separados, para depois
se produzir a síntese, Heidegger define sinteticamente o Dasein. O Dasein é
esta síntese. Então, a operação de produzir a síntese já é resumida no constructo
Dasein. É por isso que a questão do idealismo e do realismo chegam tarde, na
medida em que já apanham o Dasein no mundo, sempre unindo universalidade e
singularidade, universalidade e contingência.
Para concluir, mais uma vez a lição de Stein, desta vez articulando a questão do
7
Questão sumamente interessante é a diferença do que significa mundo prático para Heidegger e para Kant. Os
momentos históricos distintos e os backgrounds diferentes explicam, de certa forma, os contornos da reflexão
heideggeriana, que desde o princípio esteve direcionada para o problema da vida fática. A idéia de que a vida
humana é a interpretação espontânea da realidade de si mesma e de todas as coisas (LOPARIC 2004b, p. 17)
constitui a força-motriz de Ser e Tempo, devendo ser procurada nesse campo a noção heideggeriana de mundo
prático. Kant, evidentemente, tem outros problemas científicos e filosóficos em mira, estando preocupado com a
esfera prática enquanto palco do princípio da causalidade, de percepção dos fenômenos, etc.
8
Alguns autores falam em um transcendental não-clássico.
48
transcendental com os existenciais (2004, p. 213-214):
A analítica existencial nos permite pensar o ser humano a partir da compreensão,
enquanto esta possui uma estrutura a priori. Mas esse a priori não se separa da
existência. Ele é a existência enquanto transcendência. Assim como se afirma que há
categorias na metafísica (em Aristóteles, Santo Tomás e Suarez), que são as
possibilidades de nosso acesso às coisas e ao ser humano como coisa, assim também
os existenciais são os modos de ser do Dasein e então do ser humano, a partir dos
quais se constitui o mundo e a relação com as coisas no mundo.
Esta é, em suma, a recepção que Heidegger faz do transcendentalismo: um
transcendental historicizado, capaz de superar a dicotomia entre a necessidade de um
conhecimento necessário a priori (ou seja, de uma determinação de índole lógico-semântica)
e o mundo prático, de cunho originário (isto é, anterior à teorização). Atuando
espontaneamente na existência, o Dasein único ente que pode compreender o ser se auto-
interpreta e interpreta o mundo antes de qualquer compreensão “teórica”, mas de acordo com
estruturas a priori próprias à existencialidade humana. Prevalência do mundo prático na ação
do Dasein e, simultaneamente, natureza a priori das estruturas de atuação no mundo
constituem a síntese buscada e obtida na obra de 1927.
3.6. Um novo a priori: o ser-no-mundo
De todo o exposto, transparece claramente que o transcendental em Heidegger
é referido ao elemento fundacional, o ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), que remete
definitivamente o ser humano ao mundo prático. Esse ser-no-mundo é concebido como um a
priori, radicado na constituição ontológica do Dasein, ou seja, na estrutura fundamental do
homem. É um a priori de novo cunho, como acima visto, pois combina elementos distintos
que, em Kant, seriam definidos ou como empíricos, ou como propriamente a priori.
Esse novo a priori, o ser-no-mundo, é um a priori subjetivo, um a priori da
49
cotidianidade, como referido por Zeljko Loparic em suas aulas
9
. Esse ser-no-mundo não é um
elemento contraposto ao ‘mundo’, mas uma estrutura unitária que constitui o próprio ser do
Dasein (RODRÍGUEZ GARCIA, 1987, p. 95). Está fundado no existencial do ser-em (In-
sein) e, como transcendental histórico ou não-clássico, traduz perfeitamente a faticidade da
existência como elemento fundamental, isto é, o “caráter de realidade do fato Dasein
(HEIDEGGER, 1993, p. 56)
10
.
Este ser-no-mundo é, ele próprio, condição de possibilidade da
fenomenalização da atividade ou ocupação do Dasein. Acima da realidade está a
possibilidade, alertava Heidegger, e nessa possibilidade se radica a compreensão do Dasein.
Como a “questão do ser é levantada a partir da compreensão do ser pelo Dasein(STEIN,
2003, p. 35), isso ocorre porque o Dasein esdesde sempre no mundo. Tem-se aqui o
ponto de historicização do ser e, por conseguinte, de historicização do transcendental.
Ressalte-se, por oportuno, o papel fundacional que Heidegger estabelecia para
o a priori em sua reflexão filosófica. O método fenomenológico utilizado em Ser e Tempo
(método várias vezes referido no curso nesta exposição, e que será brevemente exposto mais
adiante) deixa claro o quanto Heidegger é ainda tributário da fenomenologia transcendental de
Husserl, que por sua vez arrasta consigo a noção de transcendental, de um a priori como
conhecimento necessário. Assim, a ontologia fundamental de Heidegger carregava consigo a
análise do a priori necessário à fundação das ontologias “regionais” e das ciências. Sobre
isso, confira-se a lição de Robert. J. Dostal (1993, p. 152), referindo-se ao método e ao a
priori:
Being and Time is also a work in transcendental phenomenology in much the same
sense as the philosophy of Husserl. (…) It is a descriptive method that allows things
to show themselves for what they are. To call it “transcendental” is to adopt
9
A referência é ao curso sobre Heidegger desenvolvido no semestre de 2004, no curso de Pós-Graduação em
Filosofia da PUCRS.
10
“Die Tatsächlichkeit des Faktums Dasein ...”
50
terminology from Kant and Husserl, which means, as we saw earlier, a priori or
necessary knowledge. As the preceding quotation states, fundamental ontology
hopes to establish the a priori or necessary conditions for the regional ontologies and
the sciences. In other words, fundamental ontology would develop the background
required for the regional ontologies to proceed. It should establish the basic concepts
and assumptions of these fields by making clear the basic or “formal” structures of
being.
Na recepção do transcendental kantiano por um prisma prático-histórico e no
desvelamento da estratégia de recepção / apropriação dos conceitos filosóficos existentes no
acervo da metafísica ocidental está o que nos interessa para os fins da presente dissertação.
Aqui se vislumbra o fio condutor na argumentação heideggeriana que permita identificar a
recepção da tradição kantiana, ainda que oculta e metamorfoseada sob um novo a priori o
do ser-no-mundo e, conseqüentemente, sob uma noção de transcendental submetida a um
novo tratamento semântico. Com base nisso, se possível rastrear o diálogo (explícito ou
implícito) que Heidegger estabeleceu com a tradição kantiana no tratamento do espaço, além
de estabelecer a originalidade fenomenológica no exame da espacialidade.
51
4. ESPAÇO E ESPACIALIDADE EM SER e TEMPO
4.1. Introdução
Assentadas, em termos singelos, tanto a abordagem kantiana do espaço quanto
a recepção que Heidegger efetuou em relação à herança intelectual deixada pela filosofia
crítica, cumpre agora examinar as noções de espaço e de espacialidade em Ser e Tempo. Para
chegar à análise do espaço, o trajeto impõe a passagem pelo conceito de mundo, termo
integrante do novo paradigma trazido pelo pensador, o ser-no-mundo, explicitado no curso
desta dissertação. Segundo Heidegger (1993, p. 42), a essência do Dasein está na sua
existência
11
, constituindo-se o ser-no-mundo em um novo transcendental na estrutura do
pensar e do existir. A partir desse elemento fundacional é que devem ser examinados o espaço
e sua correlata, a espacialidade, que será justamente a espacialidade do Dasein.
Heidegger chega à problemática do mundo como passo necessário na estrutura
de Ser e Tempo. Após propor a questão do sentido do ser, o pensador encaminha-se para a
investigação das estruturas que tornam possível, a priori, a existência concreta do homem,
delineando uma analítica existencial (DUBOIS, 2004, p. 18). O ponto de partida não é mais
uma ontologia da coisa ou uma ontologia indistinta dos entes em geral, nos termos da
metafísica tradicional, mas sim uma ontologia daquele ente que se distingue pela relação com
o ser, que pode compreender o ser, o Dasein, vale dizer, o ser humano. Assim, destaca Stein
(2002a, p. 59) “a analítica existencial de Ser e Tempo tem por finalidade a procura do sentido
do ser, como caminho, o método fenomenológico, e por ponto de partida a interpretação da
faticidade do ser-aí”.
11
Das ‘Wesen’ des Daseins liegt in seiner Existenz”.
52
Trata-se, como dito, de uma analítica que visa ao desvelamento das estruturas
do Dasein, ou seja, da apresentação das estruturas da existencialidade humana como conceitos
e categorias distintos das estruturas das coisas intramundanas. Buscando o sentido do ser, por
meio do método fenomenológico tal como concebido por Heidegger o tratado de 1927
inicia por um exame preliminar do Dasein, expondo sua estrutura fundamental de ser-no-
mundo. Justamente porque o Dasein está engajado na existência, vivenciando seu modo de ser
na cotidianidade, é que a analítica existencial vai buscar em tal solo os elementos para a
caracterização das estruturas do existir humano, os existenciais, a que anteriormente se aludiu.
Explanando a constituição do ser-no-mundo, Heidegger refaz o percurso argumentativo para
apresentar, no caminho, o conceito de mundo, indispensável à compreensão do Dasein.
Assim, vislumbrar o que significa mundo para Heidegger conduz tanto à
apreensão do sentido do ser-no-mundo, estrutura fundamental do Dasein, quanto à percepção
dos conceitos de espaço e de espacialidade, que, como se verá, são correlatos a ambos, pois se
conectam com o conceito de mundo (mas não na forma da metafísica tradicional) e, da mesma
maneira, derivam da circunstância de que o Dasein “está” no mundo, i.e., da própria estrutura
existencial do ser-no-mundo. Como destaca o comentarista: “O Dasein e o mundo não são
duas entidades distintas capazes de variar independentemente uma da outra. São entidades
complementares” (INWOOD, 2004, p. 50). Ante a interpenetração dos conceitos, sendo
evidente o nexo entre ser-no-mundo, mundo e espaço, é necessário, como dito ao princípio,
analisar a noção de mundo, passando depois aos temas do espaço e da espacialidade em Ser e
Tempo.
4.1.1. Notas sobre o método fenomenológico em Ser e Tempo
Antes de passar à análise do conceito de mundo e, após, ao de espaço, no
53
contexto de Ser e Tempo, é necessário salientar alguns aspectos do “caminho” (na feliz
expressão de Stein, supra) trilhado por Heidegger, vale dizer, do método fenomenológico
empregado na analítica existencial. Não se trata, como se sabe, de uma simples aplicação da
disciplina husserliana da ‘redução transcendental’ ou da ‘redução eidética’. Em Heidegger, o
método fenomenológico também se transforma, sendo atravessado pela questão do ser.
Recebe uma nova roupagem, sendo remodelado para atender à pergunta fundamental pelo
sentido do ser. Pela importância que a questão metodológica assume, salientar-se-ão alguns
tópicos do tema, no que forem pertinentes à exposição e conclusão do presente trabalho.
As linhas do método fenomenológico utilizado por Heidegger na construção de
sua analítica existencial estão expostas no § de Ser e Tempo. Após destacar que a própria
palavra fenomenologia assinala um “conceito de método” (1993, p. 27)
12
, expressando, no
fundo, uma máxima de ação metodológica que se pode traduzir no tradicional lema
fenomenológico “às coisas em si mesmas” (“zu den Sachen selbst”), o filósofo passa a
examinar os dois termos componentes da locução (φαινόµενον e λόγος), a partir dos
respectivos étimos gregos, para ao final compor uma noção bastante original do referido
método fenomenológico.
A sua concepção de fenômeno difere do conceito trabalhado por Kant. Para
Heidegger, a noção kantiana de fenômeno como algo acessível à intuição empírica
corresponde ao conceito vulgar de fenômeno, não ao conceito fenomenológico. Em sentido
fenomenológico, fenômeno é somente o que constitui o ser, e ser é sempre o ser de um ente
(HEIDEGGER, 1993, p. 37)
13
. Seu conceito oposto é o de encobrimento (“Verdecktheit”);
assim, a busca pelos fenômenos é necessária justamente porque estes, na pelos menos de
início e na maioria das vezes, não se dão, não estão simplesmente acessíveis. O filósofo
assinalou que existem várias formas de encobrimento do fenômeno. Esteja ele desvirtuado ou
12
“…einen Methodenbegriff”.
13
“Weil Phänomen im phänomenologischen Verstande immer nur das ist, was Sein ausmacht, Sein aber je Sein
von Seiendem ist…”.
54
velado, o importante é assinalar que tal encobrimento pode participar necessariamente do
próprio modo de dar-se do fenômeno. Afirma Heidegger que todo e qualquer conceito ou
sentença fenomenológicos obtidos originariamente estão expostos à possibilidade de
desvirtuamento, i.e., de encobrimento (1993, p. 36)
14
.
Ao lado do conceito de fenômeno, o pensador analisa o conceito de λόγος.
Relembrando as raízes do conceito na filosofia grega, bem como a posterior obstrução do
acesso à dimensão originária da palavra na tradução do grego para o latim e deste para as
línguas nacionais (STEIN 1983, p. 60), Heidegger enuncia a correlação entre λόγος e
discurso. O λόγος, assim, é um deixar ver (“läßt sehen” ou “Sehenlassen”), um fazer ver a
partir daquilo de que trata o discurso. Em razão dessa natureza de deixar e fazer ver, o λόγος
pode, em seu ser, apresentar-se como verdadeiro ou falso. Verdadeiro, quando servir ao
desencobrimento do ente que é tratado no discurso; falso, quando encobrir, ou seja, propor um
ente pelo que ele não é. Heidegger afirma que o λόγος não pode ser considerado o locus da
“verdade”, como o fez parcela da tradição metafísica (aqui a crítica heideggeriana é à
“verdade do juízo”, ou seja, à tradição kantiana), mas sim um modo determinado de fazer ver.
A partir destes entendimentos sobre fenômeno e λόγος, o filósofo constrói o
seu conceito de fenomenologia, que difere substancialmente da noção de fenomenologia tal
como delineada por Husserl e seus epígonos. Interligando φαινόµενον e λόγος, conforme as
acepções que aos termos oriundos da tradição filosófica helênica, Heidegger entende a
fenomenologia, no sentido de diretriz formal de pesquisa, como sendo um deixar e fazer ver
por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo (1993, p. 34)
15
.
Como o pensador mesmo vem a salientar, tal atitude metodológica não faz mais que traduzir,
no campo de uma argumentação filosófica voltada para a questão do ser, a máxima
fenomenológica “às coisas em si mesmas” (“zu den Sachen selbst”).
14
“Jeder ursprünglich geschöpfte phänomenologische Begriff und Satz steht als mitgeteilte Aussage in der
Möglichkeit der Entartung”.
15
“Das was sich zeigt, so wie es sich von ihm selbst her zeigt, von ihm selbst her sehen lassen”.
55
Se em sentido fenomenológico, fenômeno é somente o que constitui o ser, e se
ser é sempre o ser de um ente, a fenomenologia, em seu conteúdo, é a ciência do ser dos
entes; é, portanto, ontologia. A fenomenologia é a via de acesso e o modo de verificação para
se determinar o que deve servir como tema da ontologia. Deste modo, enuncia Heidegger, a
ontologia é possível como fenomenologia (1993, p. 35)
16
. Conquista-se o acesso ao ser e
suas estruturas a partir dos próprios objetos fenomenologicamente considerados, a fim de
atravessar os encobrimentos vigentes. Há, pois, um imperativo de segurança metódica no
encaminhamento destas questões, para a correta apresentação das estruturas dos fenômenos.
O rigor metódico da fenomenologia é especialmente necessário no exame do
ente dotado do privilégio ôntico-ontológico, o homem ou, em termos ontológicos, o Dasein.
A fenomenologia de tal ente é uma ontologia fundamental, capaz de propor a questão
primordial do sentido do ser em geral, pois o λόγος da fenomenologia do Dasein tem um
caráter fundamentalmente hermenêutico. Heidegger toma o termo em seu sentido originário,
designando o ofício de interpretar. Nesta interpretação abre-se a possibilidade de desvendar as
estruturas ontológicas fundamentais do Dasein, bem como sua lógica constitutiva, e, por
conseguinte, a investigação sobre o sentido do ser. Assim posta a possibilidade, surge a
posterior probabilidade de se estender a margem de investigação aos demais entes. Destarte, a
hermenêutica do Dasein irrompe como o campo das condições de possibilidade de toda
investigação ontológica. Da mesma forma, a hermenêutica do Dasein como interpretação
ontológica de si mesma adquire, como visto, o sentido de uma analítica da existencialidade,
dado o primado ontológico do Dasein enquanto ente na possibilidade da existência.
Este pequeno excurso sobre o método fenomenológico em Ser e Tempo tem
sua razão de ser. A visão metodológica de Heidegger adquire fundamental importância na
medida em que renova completamente o arsenal metódico trazido da fenomenologia de raiz
16
Ontologie ist nur als Phänomenologie möglich”.
56
husserliana. Disse Stein (1983, p. 65) que “Heidegger transformou a fenomenologia
husserliana radicalizando-a: Isto significa a superação da ontologia ingênua de Husserl por
uma nova ontologia”. Ao atravessar os conceitos e métodos fenomenológicos pela questão do
ser e de seu sentido, o pensador introduziu um enfoque diferenciado, centrado na auto-
interpretação espontânea da existência humana examinada por uma hermenêutica do Dasein,
vale dizer, por uma analítica existencial. Promoveu, assim, uma “transformação hermenêutica
da fenomenologia” (RODRÍGUEZ GARCIA, 1997, p. 15). Toda a recepção do legado
filosófico do acervo da metafísica ocidental, quando se realizar, será nos marcos do método
fenomenológico, tal como Heidegger o entendia. É de fundamental importância, portanto,
estar atento ao método heideggeriano em sua tentativa de apreender o ente em seu ser,
desvendando-lhe as estruturas fundamentais.
4.2. O conceito de mundo em Ser e Tempo
4.2.1. Introdução
Assinalado o ser-no-mundo estrutura a priori do Dasein como forma de
superação tanto do realismo ingênuo como da metafísica da subjetividade, impõe-se o exame
de um dos termos que compõem a expressão em tela: o conceito de mundo, tal como
delimitado em Ser e Tempo. É sabido que o pensador explorou vários caminhos em sua
investigação da noção de mundo. Em Ser e Tempo, a análise “ontológico-compreensivo-
estrutural” do conceito; em Sobre a essência do fundamento, a análise da sua gênese
histórico-filosófica; e em Conceitos fundamentais da metafísica: Mundo, finitude e solidão, a
análise comparativo-diferencial: mundo da pedra, mundo do animal e mundo do homem;
homem: sem mundo, pobre em mundo e formador do mundo (sobre isso, ver STEIN, 1997, p
57
101). Interessa aqui, porém, a formulação de 1927, que dará um primeiro acesso ao estudo das
noções de espaço e de espacialidade no âmbito de Ser e Tempo.
Como destaca Heidegger, descrever fenomenologicamente o mundo significa
mostrar e fixar numa categoria conceitual o ser dos entes que simplesmente se dão dentro do
mundo (1993, p. 63)
17
. Todavia, nem um retrato ôntico dos entes intramundanos nem a
interpretação ontológica do ser destes entes alcançariam o fenômeno do mundo, pois em
ambas as vias de acesso o mundo é pressuposto, de várias maneiras (HEIDEGGER, 1993,
p. 64)
18
. Quando se coloca a questão do mundo, o mundo subentendido ou pressuposto não é
aquele que se põe por qualquer dos modos antes referidos, mas o que advém da mundanidade
do mundo. Mundanidade, para Heidegger, é um conceito ontológico e significa a estrutura de
um momento constitutivo do ser-no-mundo (que, por sua vez, como visto, é uma
determinação existencial do Dasein). Assim, na investigação ontológica do mundo a analítica
do Dasein não é abandonada, pois mundo é um caráter do próprio Dasein (HEIDEGGER,
1993, p. 64)
19
.
Para chegar a esse ponto na argumentação, Heidegger esclarece os diferentes
significados da palavra mundo (1993, p. 64-65):
1. Em primeiro lugar, mundo como conceito ôntico, indicando a totalidade dos
entes que se dão no mundo (“simplesmente dados”, “simplesmente existentes”,
“à-mão”, “vorhanden”).
2. Mundo como termo ontológico, significando o ser dos entes intramundanos
17
“Die ‘Welt’ phänomenologisch beschreiben wird demnach besagen: das Sein des innerhalb der Welt
vorhandenen Seienden aufweisen und begrifflich-kategorial fixieren”.
18
“Weder die ontische Abschilderung des innerweltlichen Seienden, noch die ontologische Interpretation des
Seins dieses Seienden treffen als solche auf das Phänomen ‘Welt’. In beiden Zugangsarten zum ‘objektiven Sein’
ist schon und zwar in verschiedener Weise ‘Welt’ ‘vorausgesetzt’”.
19
“’Weltlichkeit’ ist ein ontologischer Begriff und meint die Struktur eines konstitutiven Momentes des In-der-
Welt-seins. (…) ‘Welt’ ist (…) ein Charakter des Daseins selbst”.
58
acima aludidos.
3. Novamente em sentido ôntico, mundo é o contexto “em que” (“worin”)
efetivamente o Dasein vive como tal; mundo aqui possui um significado pré-
ontologicamente existenciário (“existenzielle”): mundo ‘público’, mundo
circundante ou ambiente (“Umwelt”) próximo (doméstico) e ‘próprio’.
4. Por derradeiro, mundo designa o conceito existencial-ontológico da
mundanidade.
Ora, quando fala sobre o mundo em Ser e Tempo, Heidegger utiliza-o na
terceira acepção sentido ôntico. Eventualmente, quando utilizada na segunda acepção, a
expressão vai destacada. Segundo o filósofo, por ignorarem o fenômeno da mundanidade, as
‘ontologias ingênuas’ caíram em um impasse. À falta de compreenderem a existência do
homem o Dasein como ser-no-mundo, buscaram fazê-lo a partir da natureza. Benedito
Nunes bem o esclarece (1992, p. 88):
Depois que os pré-socráticos investigaram o princípio (arché) da phýsis, a Ontologia grega
concentrou-se no ser como essência (eidos) e como substância que cada ente é em si, a sua
identidade, a sua permanência –, apreendido por um ato de visão intelectual do espírito (nous).
No ser-à-vista (Vorhanden), descoberto pela razão, assentou, desde a Filosofia platônica, a
concepção de realidade.
Heidegger parte do caminho oposto, partindo do Dasein enquanto ser-no-
mundo para alcançar o ser do mundo, a sua mundanidade. Como o mundo é sempre o mundo
do Dasein, pois o homem é ‘formador de mundo’, dirá Heidegger em seus cursos de
1929/1930 (2003, p. 314-419), a análise deve partir do mundo ambiente, circundante
59
(“Umwelt”), que rodeia imediatamente o ser humano (1993, p. 66)
20
. Destaca-se apenas, pois
oportuno para o escopo desta dissertação, que a expressão ‘mundo circundante’ aponta para
uma espacialidade. Todavia, esse “circundar” (“Umherum”) não tem um sentido
primordialmente espacial; ao contrário, esse caráter espacial deriva da estrutura da
mundanidade, e não o inverso. Aqui é que está o núcleo da espacialidade do Dasein, tema
desta dissertação e que será oportunamente examinado. Antes, porém, cumpre prosseguir no
exame do conceito de mundo e de suas conseqüências.
4.2.2. Análise da mundanidade circundante (“Umweltlichkeit”)
A análise do ser dos entes intramundanos principia, como visto, pelo exame
dos entes mais próximos, isso quer dizer em uma firme tradição fenomenológica pelo
exame das coisas. Esses são os entes pré-tematizados e estabelecidos como base pré-
fenomenal para a incursão de Heidegger sobre a mundanidade circundante. Mas as coisas são
aqui tomadas em um sentido distinto da tradição ontologizante da metafísica ocidental, i.e.,
como res ou substância. Heidegger, retomando as origens helênicas do pensar
21
, vislumbra tal
ente intramundano como instrumento (“Zeug”).
Essa é uma conceituação de radical importância em Ser e Tempo. Nunca “há”
apenas um instrumento. Ele sempre “é para”, dentro do todo instrumental a que pertence seu
ser. Nessa estrutura de “ser para” (“Um-zu”), acha-se sempre uma referência de algo para
algo, pois o instrumento sempre corresponde à sua instrumentalidade a partir da pertinência a
outros instrumentos. No uso (“Umgang”) que se faz do ente intramundano, moldado pela
ocupação (“Besorge”), surge a sua instrumentalidade. O martelo (exemplo preferido de
Heidegger) aparece em sua plena instrumentalidade sobre o fundo de referências múltiplas
20
“Die nächste Welt des alltäglichen Daseins ist die Umwelt”.
21
Do grego πράγµατα, aquilo com que se lida (πραξις).
60
organizando-se em uma totalidade instrumental – no caso, a oficina.
Todavia, é no próprio martelar que se descobre o uso, “manuseio”, específico
do martelo (HEIDEGGER, 1993, p. 69)
22
. Denomina-se disponibilidade intramundana
(“Zuhandenheit”) o modo de ser do instrumento em que ele se revela por si mesmo
23
. Todo
instrumento possui esse “ser-em-si”, e a visão puramente teórica das coisas carece dessa
compreensão da disponibilidade intramundana. o uso do instrumento não é cego, pois
informado pela multiplicidade de referências do “ser para”. A visão característica que advém
desse modo de lidar é a circunvisão (“Umsicht”). É o olhar da ocupação, da visão pré-teórica
que é cotidianamente a de todos.
Ora, o lidar cotidiano não se detém diretamente nas ferramentas em si mesmas.
O principal é a obra a ser produzida. É a obra que sustenta a totalidade das referências na qual
o instrumento vem ao encontro (HEIDEGGER, 1993, p. 70)
24
. Na obra produzida ‘para que’
(“Wozu”) se usa o instrumento que possui, por sua vez, o modo de ser daquele ente. A própria
obra é, na totalidade referencial em que está inserida, descoberta em seu uso ou manuseio.
Assim, pertence à essência da função de descoberta a possibilidade de desvelar
o ente intramundano evocado na obra; descobri-lo nas referências constitutivas da obra e no
uso da circunvisão. O modo de ser deste ente é a disponibilidade intramundana. Afirma
Heidegger (1993, p. 71)
25
que a disponibilidade intramundana é a determinação categorial dos
entes tal como são “em si”, sobre a base dos entes simplesmente dados. Assentadas tais
premissas (disponibilidade intramundana, circunvisão, etc.) importantíssimas no arcabouço
22
“Das Hämmern selbst entdeckt die spezifische ‘Handlichkeit’ des Hammers”.
23
Nossa primeira intenção era seguir a tradução efetuada na edição brasileira de Ser e Tempo: “Zuhandenheit”
por manualidade e “Vorhandenheit” para designar a condição de ser simplesmente dado. A manutenção dos
vocábulos constantes da tradução no vernáculo nacional prender-se-ia a um critério de praticidade, dada a ampla
divulgação da referida edição. Entretanto, para preservar a força semântica das formulações de Heidegger
traduzir-se-á “Zuhandenheit” por disponibilidade intramundana e “Vorhandenheit” por ente simplesmente
existente. A ampla variedade de traduções advindas das demais nguas neolatinas possibilita essa riqueza na
translação bastante árdua daquelas noções filosóficas. É o caso dos pares sous-la-mais / à-portée-de-la-main,
devant-la-main / à-portée-de-la-main, substancialidade / disponibilidade, disponibilidad / estar-ahí-dado, etc.
24
“Das Werk trägt die Verweisungsganzheit, innerhalb derer das Zeug begegnet”.
25
Zuhandenheit ist die ontologisch-kategoriale Bestimmung von Seiendem, wie es ‘an sich’ ist”.
61
de conceitos edificado por Heidegger em Ser e Tempo –, cumpre avançar na delimitação e
explicitação do fenômeno do mundo.
O mundo ele mesmo não é um ente intramundano. Como caracterizá-lo, então?
Como pode ele “mostrar-se”? O mundo abre-se na experiência negativa da ruptura do quadro
de referências. À cotidianidade do ser-no-mundo pertencem modos de ocupação que
permitem o aparecer da determinação mundana dos seres intramundanos, afirma Heidegger
(1993, p. 73). Assim, a surpresa, a importunidade e a impertinência mostram
26
o caráter de
‘algo simplesmente existente’ do ente disponível intramundano, pois, nesses casos, o ente
disponível intramundano perde sua disponibilidade intramundana. Nessa perturbação da
referência, i.e., na impossibilidade do “emprego para”, a referência se explicita não
ontologicamente, mas onticamente, para a circunvisão. O conjunto instrumental não se
evidencia como nunca visto, mas como um todo visto antecipadamente na circunvisão.
Nesse todo, anuncia-se o mundo.
Destarte, o mundo manifesta-se ao Dasein por meio das coisas que estão à
mão. Anunciando-se o mundo por intermédio das relações e conexões entre os entes
intramundanos, a mundanidade se expressa em um sistema de remissões. Essas remissões ou
relações se dão por meio de um ente intramundano, o signo ou sinal (“Zeichen”). Tendo por
função assinalar, o sinal tem como fundamento ontológico a própria referência. Assim, ensina
Heidegger (1993, p. 82), o sinal está onticamente à mão e, enquanto esse instrumento
determinado, desempenha, ao mesmo tempo, a função de alguma coisa que indica a estrutura
ontológica de disponibilidade intramundana, totalidade referencial e mundanidade
27
.
Por conseguinte, o mundo não é a soma dos entes intramundanos, “mas o
conjunto das relações que se estabelecem entre eles” (PASQUA, p. 50). A esta relação
26
Surpresa por Auffallen, importunidade por Aufdringlichkeit e impertinência por Aufsässigkeit, na trilha da
tradução brasileira de Sein und Zeit. Todos, em suma, modos deficientes de ocupação.
27
Zeichen ist ein ontisch Zuhandenes, das als dieses bestimmte Zeug zugleich als etwas fungiert, was die
ontologische Struktur der Zuhandenheit, Verweisungsganzheit und Weltlichkeit anzeigt”.
62
Heidegger denomina “Bewandtnis”, que foi traduzido como conjuntura na edição nacional.
Conjuntura é o ser dos entes intramundanos em que cada um deles já, desde sempre, liberou-
se (HEIDEGGER, 1993, p. 84)
28
. Aquilo junto a que possui uma conjuntura é o ‘para quê’
(“Wozu”) da serventia do utensílio, o ‘em quê’ (“Wofür”) da possibilidade de emprego. É
impossível, porém, prosseguir com tantas destinações. Deverá existir um ‘para quê’
derradeiro, “a partir do qual se estabelece o destino do resto que não, é ele próprio, destinado
a nada” (PASQUA, p. 51). Este ‘a fim de que’ final (“Worumwillen”) diz respeito ao Dasein,
pois todas as referências encontram nele um fim último.
O Dasein encontra sempre no mundo o ente à sua disposição, que nele encontra
sua serventia e destinação. Para que o Dasein descubra esse fim, porém, deve deixar o ente
vir. Heidegger diz “Bewendenlassen”, um ‘deixar-fazer’ (a tradução brasileira verteu “sich
bewenden lassen” por ‘deixar e fazer em conjunto’, que será doravante utilizada pelas razões
expostas anteriormente). Ora, esse deixar e fazer com que algo sempre em conjunto se
tenha liberado numa conjuntura é um perfeito a priori (“ein apriorisches Perfekt”), que
caracteriza o modo de ser do Dasein. Como a rede de relações entre os entes se refere ao
Dasein, e este é essencialmente poder-ser, suas possibilidades é que dão origem ao sistema de
relações cujo todo forma o mundo.
Deste modo, o fenômeno do mundo é o contexto ‘em quê’ da compreensão
referencial, pois “usar é compreender”, como assinalou um intérprete espanhol de Heidegger
(RODRÍGUEZ GARCÍA, 1987, p. 98), enquanto perspectiva de um deixar e fazer encontrar
um ente no modo de ser da conjuntura. A estrutura da perspectiva em que o Dasein se refere
constitui propriamente a mundanidade do mundo, ou seja, mundo como articulação de
sentido.
No jogo de remissões e referências que se estabelece, em que é essencial a
28
“Bewandtnis ist das Sein des innerweltlichen Seienden, darauf es je schon zunächst freigegeben ist”.
63
compreensão, surge uma totalidade aberta, ‘conjuntural’, composta por significações
articuladas. Esta totalidade articulada, formada essencialmente de relações de sentido, é por
Heidegger denominada significância’ (“Bedeutsamkeit”). Assim, a mundanidade do mundo,
isto é, a estrutura ontológica de qualquer mundo, isto constitui, enfim, a sua ‘significância’.
4.2.3. Crítica da interpretação cartesiana do mundo
Com o fim de demonstrar como a sua problematização ontológica da
mundanidade difere fundamentalmente do que havia, até então, sido pensado pela filosofia,
Heidegger aponta a interpretação cartesiana do mundo como sendo o oposto da sua. Por isso,
realiza a sua crítica, para, em contrapartida, evidenciar a ausência dos “equívocos” cartesianos
em sua própria leitura da espacialidade do Dasein. Heidegger irá repartir a sua análise em três
tópicos, que serão aqui brevemente apresentados: (a) a determinação do mundo como res
extensa; (b) os fundamentos desta determinação ontológica; e, (c) a crítica da ontologia
cartesiana do mundo. Tem-se aqui, respectivamente, os parágrafos 19 a 21 de Ser e Tempo.
Descartes distingue o ego cogito (como res cogitans) da res corporea.
Ontologicamente, diz Heidegger (1993, p. 89)
29
, esta é a distinção que determinará, no futuro,
a diferença entre ‘natureza’ e ‘espírito’. De fato, para Descartes, o ser da res corporea é a
substância; como, porém, a noção de substância é ambígua, ele identifica a substancialidade
com a extensão. Ao assim proceder, diz Heidegger, Descartes faz da extensão o fundamento
ontológico de todos os outros atributos: divisão, figura, movimento, etc. A extensão, porém,
permanece inalterada e preexiste aos demais modos. Deste modo, a extensão é fundamental e
constitui a própria substância. Para Heidegger, este é o erro de Descartes. Trata-se, na
verdade, de uma crítica a certo ponto injusta, pois Descartes não está preocupado com
29
Descartes unterscheidet das ‘ego cogito’ als res cogitans von der ‘res corporea’. Diese Unterscheidung
bestimmt künftig ontologisch die von ‘Natur und Geist’”.
64
ontologia, e sim com método suas preocupações são de índole metodológica, não
ontológica.
Heidegger prossegue afirmando que todas as explicações cartesianas fundam-
se, é verdade, sobre a noção de substância, que, segundo a tradição ontológica medieval,
caracteriza-se pela perpetuidade e auto-suficiência. Assim, ao invés de dirigir sua atenção
para o modo de ser do ente intramundano que se manifesta na vida quotidiana, Descartes teria
imposto sobre o ente, de forma arbitrária, um certo modo de ser, derivado de um
prejulgamento segundo o qual o ser (substância) é contínuo e permanente.
Assim, segundo a linha de argumentação heideggeriana, a ontologia cartesiana
não é determinada pela preferência de seu autor pela matemática, mas esta mesma predileção
é condicionada pela idéia que faz do ser segundo os atributos conferidos à substância. Walter
Biemel (1950, p. 62) endossa a argumentação de Heidegger, afirmando:
“Au lieu de porter son attention sur la modalité d’être de l’étant intramondain qui se
manifeste dans la vie quotidienne, Descartes pose arbitrairement dans l’étant une
certaine modalié d’être, derive d’un prejudge selon lequel l’être est permanence
continue. L’ontologie cartésienne du monde n’est pas determine par la predilection
de son auteur pour les mathématiques, mais cette prédilection même est
conditionnée par l’idée qu’il s’est faite de l’être subsistence-perpetuelle”.
Como se verifica, o autor assume a crítica de Heidegger a uma ontologia
subjacente à concepção cartesiana, que ao nosso ver não é de todo justa. Para Heidegger, ao
fazer derivar da substância tanto a res cogitans quanto a res extensa, realidades separadas por
uma distância infinita, Descartes institui a confusão e falha completamente na questão do ser,
pois a substância cartesiana está desprovida de qualquer estatuto ontológico.
Para Heidegger, a idéia de mundo proposta por Descartes, fundada na extensão,
não inquire sobre a essência do fenômeno do mundo nem desvela a sua mundanidade. Ao
contrário de Ser e Tempo, que parte da existência concreta, a ontologia cartesiana parte do
abstrato, limitando-se ao conhecimento derivado da matemática. Este conhecimento apreende
65
apenas o mais estável e permanente, recusando, no ser, o que lhe é fugidio e mutável. Uma tal
caracterização do mundo baseada na extensão veda, pois, a compreensão do mundo com base
na ação e na ocupação do Dasein. A crítica, como vimos, não é inteiramente justa, pois retira
Descartes de seu contexto, abstraindo o fato de que sua diretriz de pesquisa é metódica, não
ontológica. Na verdade, Heidegger escolhe o combate com Descartes porque sabe que a luta
será travada em uma arena alheia ao pensamento cartesiano, a arena ontológica. Após eleger o
adversário e fazê-lo lutar em um terreno para qual não estava aparelhado, Heidegger pode
afirmar uma via distinta de construção dos conceitos de mundo, espaço e espacialidade.
Para Heidegger, Descartes culmina por reduzir o problema do ser do mundo ao
problema da realidade natural, ou seja, do ente intramundano. Teria difundido o entendimento
de que o conhecimento ‘ôntico’ do ente, a partir de suas qualidades físico-matemáticas,
permitiria chegar ao ser do ente. Essa opinião, para Heidegger, teria graves conseqüências na
evolução do pensamento metafísico, pois seria assumida pelos pensadores relevantes da
história ocidental, como Kant e Hegel, com todos os erros que atraiu junto consigo. Na
segunda parte não publicada de Ser e Tempo, Heidegger se propunha a complementar a
análise da problemática do mundo, explicitando essas críticas (sobre o tema, confira-se
MULHALL, 1996, p. 39-46). Repete-se, porém, a advertência realizada acima, quando da
explanação da crítica de Heidegger ao pensamento cartesiano: não existe nada mais estranho à
reflexão de Descartes do que a “questão do ser”, tal como delineada em Ser e Tempo. A
crítica de Heidegger tem por finalidade, isso sim, mostrar a insuficiência do modo de
argumentação cartesiano para a construção de um conceito de mundo segundo o método
fenomenológico. Isto não infirma o raciocínio cartesiano, apenas mostra sua radical alteridade
em relação ao modo de pensar e às premissas contidas na argumentação do tratado de 1927.
66
4.2.4. O mundo e o Dasein
Como interagem, pois, o mundo e o Dasein? O homem é formador do mundo,
diz a conhecida lição de Heidegger, acima referida. O Dasein cria possibilidades e, desta
maneira, cria a inteligibilidade dos entes, vale dizer, a inteligibilidade do mundo. Esta
inteligibilidade, dentro dos pressupostos da transformação filosófica radical promovida por
Heidegger, vem do ser do Dasein, aloja-se no homem, não no ser dos entes intramundanos. É
a estrutura das relações e referências trazidas pelo Dasein quea estrutura ao mundo, e, se é
certo que não mundo sem Dasein, o inverso também é verdadeiro: não Dasein sem
mundo. Veja-se, sobre isso, a lição de Dubois (2004, p. 30-31):
O mundo é com efeito um existencial, ele é da ordem de um projeto do Dasein,
aberto para a compreensão de si do Dasein. Porém, além disso, essa abertura é de
fato a condição de possibilidade do ser-ao-alcance-da-mão, e do ser-à-mão, mesmo
que neste último haja o corte de uma relação viva com o mundo. O mundo é
portanto, nesse sentido, como horizonte, mais exterior que qualquer objeto
‘exterior’, ele é a própria transcendência. As categorias de ‘interioridade’ e de
‘exterioridade’ são aqui simplesmente deixadas de lado. Caso se prefira, o mundo é
a própria condição de possibilidade da relação sujeito-objeto, ou, melhor, o ser-no-
mundo é a condição de possibilidade da intencionalidade da ‘consciência’. Em todo
caso, o mundo não é nada, nada de ente – para além do ente, aberto, ele é no entanto
sua condição de possibilidade, a condição fenomenalizante. Este para além
possibilitador pode ser nomeado: transcendência. O mundo é transcendente. E o
transcendente por excelência é o Dasein como o que abre o mundo em projeto,
transcendente na medida em que se atém e sustém essa abertura (...). O ser-no-
mundo é a própria estrutura da transcendência (do Dasein). Por ser junto às coisas, o
Dasein deve estar ‘para além delas’, na abertura do mundo.
Resta uma questão: o mundo reduzido assim a uma rede de relações e
referências não iria restringir-se à subjetividade do homem, como ocorre no idealismo? Não,
porque o ser-no-mundo estabelece um paradigma distinto; a rede de referências que resulta no
mundo não é estabelecida pelo entendimento de um ‘eu transcendental’, mas no contexto do
mundo prático
30
. No entrelaçamento das possibilidades de ação do Dasein, o mundo não está
30
Uma breve explanação sobre as diferenças entre Kant e Heidegger no tratamento da subjetividade ocorrerá
mais adiante, no tópico 4.4.4..
67
no sujeito como um objeto no interior de outro. O Dasein é essencialmente projeto, lançado
em direção ao mundo, exteriorizando-se. Enfim, como ressaltou Pasqua (p. 53) “o Dasein e o
mundo são as duas faces de uma mesma realidade: o ser-no-mundo”.
4.3. A noção de espaço em Ser e Tempo
Assinala Heidegger que tanto o ente interior quanto o circundante são
simplesmente existentes (“vorhanden”) no espaço. Nesse contexto é que deve ser percebida a
espacialidade do Dasein: partindo do exame da espacialidade do ente disponível
intramundano, passando pela espacialidade do ser-no-mundo, para chegar à espacialidade do
Dasein. O percurso de mostrar a determinação espacial do mundo, fundada na
mundanidade do mundo, e não o contrário isto é, que o mundo seria simplesmente existente
(“vorhanden”) no espaço. Assim, seguir-se na exposição segundo a ordem estabelecida nos §§
22 e 23 de Ser e Tempo.
4.3.1. A espacialidade do ente disponível intramundano
Heidegger (1993, p. 102)
31
parte da seguinte questão: até que ponto, na
caracterização do ente disponível intramundano, já nos deparamos com a sua espacialidade?
O
ente disponível intramundano do modo de lidar, do uso cotidiano, possui o caráter de
proximidade (“Nähe”); e o ente “à-mão” (“zur Hand”) não se estipula medindo distâncias,
mas se regula a partir do uso fundado na circunvisão. A proximidade do instrumento significa
que ele não ocupa uma posição no espaço, meramente localizada, mas que, como instrumento,
acha-se essencialmente instalado, disposto, instituído e alojado (“an- und untergebracht,
31
“Inwiefern sind wir schon bei der Charakteristik des Zuhandenen auf dessen Räumlichkeit gestoßen?”.
68
aufgestellt, zurechtgelegt”).
O instrumento, assim, tem seu local (“Platz”), o que se deve distinguir
fundamentalmente de uma simples ocorrência numa posição arbitrária do espaço. O lugar é
sempre o ‘aqui’ e ‘lá’ determinados a que pertence um instrumento, não o ‘onde’ de qualquer
ente simplesmente existente. Essa pertinência corresponde ao caráter de instrumento do ente
disponível intramundano, ou seja, ao fato de ele pertencer ao todo instrumental segundo uma
conjuntura. Afirma o pensador de Meßkirch que “a condição de possibilidade da pertinência
localizável de um todo instrumental reside no para onde a que se remete a totalidade de locais
de um contexto instrumental” (HEIDEGGER, 2002, p. 150)
32
. Denomina-se região
(“Gegend”) este ‘para onde’ da possível pertinência instrumental, visualizado no modo de
lidar da ocupação, o qual é informado pela circunvisão. Não é esta a única tradução possível:
Benedito Nunes traduz “Gegend” por paragem. Assinala também (1992, p. 95) que “...como
espaço do ser-à-mão, a paragem deriva do ser-no-mundo; o Dasein, que é espacial, constitui o
ponto de origem do espaço relacional, geométrico e cósmico...”.
Enfim, para que a indicação e encontro de locais dentro de uma totalidade
instrumental disponível à circunvisão sejam possíveis, é preciso que se tenha descoberto
previamente uma região. Esta orientação regional da multiplicidade de locais do que está à
mão constitui o circundante, pois os entes que vêm ao nosso encontro no mundo circundante
estão justamente em torno de nós. Nunca, pois, nos é dada uma multiplicidade tridimensional
de possíveis posições preenchidas por coisas simplesmente dadas. Essa dimensionalidade do
espaço ainda se acha encoberta na espacialidade do que está à mão (HEIDEGGER, 1993, p.
103)
33
. Assim, nos exemplos de Heidegger, o local ‘em cima’ é o local no ‘teto’, o ‘embaixo’
é ‘no chão’, e assim por diante. Todos os ‘onde’ são descobertos e interpretados na
circunvisão, pelos meios do modo de lidar cotidiano, e não em uma leitura abstrata de
32
Reproduz-se, neste ponto, a tradução brasileira, dada a dificuldade de verter o vocabulário heideggeriano e o
fato de que a versão expressa bem a idéia-força do texto.
33
“Diese Dimensionalität des Raumes ist in der Räumlichkeit des Zuhandenen noch verhüllt”.
69
medições do espaço.
Regiões não se formam, portanto, a partir de coisas simplesmente dadas em
conjunto, formando-se a partir da circunvisão advinda da ocupação. A ocupação do Dasein
descobre previamente as regiões em que, cada vez, está em jogo uma conjuntura decisiva. A
descoberta prévia das regiões também está determinada pela totalidade conjuntural em que se
libera o ente disponível intramundano enquanto aquilo que vem ao encontro.
Diz Heidegger que a disponibilidade intramundana prévia de cada região
possui um sentido ainda mais originário que o ser do ente disponível intramundano, qual seja,
o caráter de familiaridade que não causa surpresa. Aliás, essa familiaridade se torna visível
no modo da surpresa: a região torna-se acessível, muitas vezes, quando alguma coisa não está
em seu local. O espaço que, no ser-no-mundo da circunvisão, descobre-se como espacialidade
do todo instrumental, pertence sempre ao próprio ente como seu local. O mero espaço está
entranhado, diz Heidegger, fragmentou-se em lugares (1993, p. 104)
34
.
Sobre a espacialidade do ente disponível intramundano, diz o comentarista
(PASQUA, p. 59-60):
Se, num sentido ainda a determinar, o espaço constitui o mundo, tal terá como
conseqüência que as coisas que se encontram terão igualmente um carácter
especial. Assim, encontramos junto a nós o ente-à-mão. Mas esta proximidade não é
unicamente de ordem espacial, ela releva igualmente da preocupação do Dasein que
se orienta na direcção em que o ente utilizável deve ser procurado. Trata-se dum
espaço de ordem qualitativa, não geométrica: espaço feito de direcções não de
dimensões, de lugares não de pontos. Nele determinam-se caminhos, não se medem
distâncias. Em suma, a sua topografia releva exclusiva da preocupação. Estas
determinações espaciais, tal como acabam de ser descritas, exprimem o aspecto
dinâmico da existência. A existência é um deslocamento, um desalojamento. O ser
do Dasein ek-siste, ele sai permanentemente de si para se encontrar num mundo que
se abre à sua passagem e lhe fornece os instrumentos duma estadia precária.
Os utensílios m o seu <<lugar para>> uma utilização possível, no interior dum
conjunto de utensílios disponíveis no mundo que rodeia o Dasein. O <<lugar>>
ocupado pelo ente disponível à-mão não é de ordem geométrica, isto é, abstracta; ele
é o lugar <<para onde>> o Dasein se dirige para encontrar o utensílio, onde ele
se encontra. Este <<para onde>> determina o que Heidegger denomina
<<região>> (Gegend). A região é a zona no seio da qual se repartem os lugares. A
análise de Heidegger visa mostrar que o espaço não é apreensível
34
“Der bloße Raum ist noch verhüllt. Der Raum ist in die Plätze aufgesplittert”.
70
independentemente do ente que o ocupa. O espaço não é a priori, não se revela
senão pelo desaparecimento dum objecto que deixa repentinamente um lugar vazio.
O Dasein preocupado descobre, não um espaço, mas lugares para os entes: <<O
espaço fragmentou-se em lugares.>> Esta fragmentação não significa separação dos
lugares entre si, porque se produz sempre na totalidade do mundo, onde tudo está
ligado a tudo pelo próprio movimento que faz sair o ser do ser.
A espacialidade que aqui é examinada dispõe, porém, de sua própria unidade
por meio da totalidade conjuntural do que está à mão. Destarte, o mundo circundante não se
orienta em um espaço previamente dado, mas a sua disponibilidade intramundana articula
na significância (“Bedeutsamkeit”) o contexto conjuntural de uma totalidade específica de
locais, referidos e informados pela circunvisão. Cada mundo sempre descobre a espacialidade
do espaço que lhe pertence.
4.3.2. A espacialidade do ser-no-mundo
Ao atribuir espacialidade ao Dasein, Heidegger tira as últimas conseqüências
de sua tese, ligando tal atributo ao próprio modo de ser do Dasein. Em sua essência, a
espacialidade do Dasein não é um ente simplesmente existente; como o Dasein está-no-
mundo e é-no-mundo, a espacialidade daí advinda para a ocupação com os entes
intramundanos pode partir desse ser-em. A espacialidade desse ser-em apresenta-se com
os atributos de des-distanciamento
35
(“Ent-fernung”) e direcionamento (“Ausrichtung”).
O des-distanciamento descobre a distância (proximidade). Esta é uma
determinação categorial dos entes privados do modo de ser do Dasein. Distanciamento, por
sua vez, é um existencial, pois apenas se faz possível quando se descobre para o Dasein a
distância entre os entes é que se fazem acessíveis os distanciamentos. Des-distanciar, pois, é
35
Para o termo, várias são as versões sugeridas: é-loignement, a-fastamento, etc. As traduções em línguas
neolatinas não conseguem, em regra, acompanhar o giro lingüístico do alemão. Assim, a tradução mais literal
teria de ser des-distanciamento ou des-afastamento. Acabamos por escolher a primeira dessas versões (des-
distanciamento), por considerar que a tradução constante da edição brasileira (dis-tanciamento) não explicita
convenientemente a natureza do fenômeno que se quer examinar.
71
acima de tudo uma aproximação dentro da circunvisão, i.e., trazer para a proximidade (no
sentido de apontar, ter à mão). Esse caráter de aproximação está presente também em outras
atitudes de descobrir os entes, pois, afirma Heidegger (1993, p. 105), no Dasein reside uma
tendência essencial de proximidade
36
.
Desta forma, todos os modos de aumentar a velocidade de aproximação e
superação da distância (como nas telecomunicações, exemplo utilizado por Heidegger),
ocorre o des-distanciamento do mundo. No des-distanciamento, a avaliação da distância não é
feita como intervalo, mas em determinações próprias, compreensíveis para modo de ser
cotidiano do Dasein. Por conseguinte, o Dasein não atravessa um trecho do espaço como uma
coisa corpórea simplesmente existente, pois a aproximação e o des-distanciamento são sempre
modos de ocupação com os entes intramundanos. Segundo o exemplo contido no § 23 de Ser
e Tempo, um caminho ‘objetivamente’ mais longo pode ser mais curto que um caminho muito
curto, o qual talvez seja uma ‘difícil caminhada’.
É nesse ‘apresentar-se’ (“Vorkommen”) que cada mundo está propriamente à
mão. Os intervalos objetivos de coisas simplesmente existentes não coincidem com a
distância e o estar próximo do ente disponível intramundano. Dir-se-á, talvez, que tais
avaliações e interpretações são ‘subjetivas’, especialmente quando confrontadas com a
natureza ‘objetiva’ dos intervalos entre as coisas. Trata-se, porém, salienta Heidegger, de uma
‘subjetividade’ mais afeita à ‘realidade’ do mundo, nada tendo a ver com uma arbitrariedade
‘subjetiva’. Segundo Heidegger (1993, p. 106), o des-distanciamento guiado por uma
circunvisão na cotidianidade do Dasein descobre o ser-em-si do ‘mundo verdadeiro’, isto é,
de um ente junto ao qual o Dasein, existindo, já sempre está
37
.
Orientando-se pelas distâncias enquanto intervalos medidos, encobre-se a
espacialidade originária do ser-em. Porque o Dasein é essencialmente espacial, segundo os
36
Im Dasein liegt eine wesenhafte Tendenz auf Nähe”.
37
Das umsichtige Ent-fernen der Alltäglichkeit des Daseins entdeckt das An-sich-sein der ‘wahren Welt’, des
Seienden, bei dem Dasein als existierendes je schon ist”.
72
modos do des-distanciamento, o lidar com as coisas sempre se mantém em um ‘mundo
circundante’. É a ocupação guiada pela circunvisão que decide sobre a proximidade e
distância do que está imediatamente à mão. Note-se: quando o Dasein, em suas ocupações
(“Besorgen”), aproxima de si alguma coisa, isso não quer dizer que a tenha fixado em uma
posição espacial que apresente menor intervalo em relação a seu corpo. A aproximação se
no âmbito da circunvisão, e não se orienta pela coisa-eu’ dotada de corpo, mas pelo ser-no-
mundo da ocupação.
Como ser-no-mundo, o Dasein se mantém essencialmente em um des-
distanciar (“Ent-fernen”), mas nunca pode cruzar esse des-distanciamento – pode apenas
transformá-lo
38
. O Dasein, em sua espacialidade, existe segundo o modo de descoberta do
espaço inerente à circunvisão, no sentido de se relacionar em um contínuo distanciamento
com os entes que vêm ao seu encontro no espaço. Assim, conforme Heidegger, o Dasein é
essencialmente des-distanciamento (“Ent-fernung”), e por isso mesmo, espacial.
O outro caráter do Dasein, em seu ser-em, é o direcionamento (“Ausrichtung”).
Toda aproximação toma antecipadamente uma direção dentro de uma região, e a ocupação
exercida na circunvisão é um des-distanciamento direcional. É deste direcionamento que
nascem as direções fixas de esquerda e direita. Heidegger não aborda o problema da
espacialização do Dasein em sua ‘corporeidade’ (“Leiblichkeit”)
39
, encarando a questão a
partir da problemática do ser-no-mundo. Aqui tem lugar a crítica de Kant: o senso de
distinção entre esquerda e direita reside não no ‘puro sentimento de diferença’ entre os lados,
38
O tema merece detalhamento. Conforme o referido § 23 de Ser e Tempo, a espacialidade do Dasein não se
determina pela indicação da posição em que uma coisa corpórea é simplesmente existente. O Dasein também
ocupa um local, mas de forma distinta; ocupar significa distanciar o ente disponível intramundano do mundo
circundante. O Dasein compreende o ‘aqui’ a partir do ‘lá’ do Umwelt, sendo que o aqui expressa o estar-junto
de ser que produz des-distância. Assim, o Dasein nunca está ‘aqui’, mas sempre ‘lá’, de onde retorna para o
‘aqui’. É isso que Heidegger tem em mente quando alude à particularidade fenomenal (phänomenalen
Eigentümlichkeit) inerente à estrutura do des-distanciamento, própria do ser-em.
39
Para uma abordagem da problemática espacial do Dasein pelo prisma do corpo, é interessante a obra de Didier
Franck, Heidegger e o problema do espaço. Segundo aquele autor, o corpo de carne e a vida não são constituídos
pelo tempo, e o problema da encarnação exige que sejam repensados o ser do homem, as relações do homem
com o ser e do ser com o homem.
73
mas no fato de o Dasein estar, desde sempre, em um mundo juntamente com esse ‘puro
sentimento’.
Assim, o direcionamento pela direita e esquerda baseia-se no direcionamento
essencial do Dasein, que, por sua vez, determina-se também pelo ser-no-mundo. Kant, ao
tratar do tema da orientação, ressalta apenas que esta necessita de um ‘princípio subjetivo’, no
sentido de um princípio a priori. Heidegger interpreta esse a priori como o ser-no-mundo, no
qual se funda o direcionamento. O a priori ‘subjetivo’ do ser-no-mundo nada tem a ver com
uma determinação previamente restrita a um sujeito destituído de mundo, como é o caso do
sujeito segundo a filosofia transcendental kantiana.
Novamente, leciona o comentarista sobre a temática (PASQUA, p. 61-62):
A diferença entre a espacialidade do ente intra-mundano e o Dasein encontra-se na
função espacializante deste último. O Dasein está no espaço de forma preocupada,
isto é, activa. Ele orienta-se no mundo aproximando-se do lugar de cada utensílio.
Esta aproximação é <<a-fastamento>> (Ent-fernung), uma supressão da distância,
uma negação do longínquo. Um utensílio não se aproxima dum utensílio, nem um
lugar dum lugar, o Dasein efectua a aproximação: <<O Dasein é essencialmente
a-fastamento, ele é o ente que, enquanto tal, permite ao ente ser encontrado na
proximidade.>> Esta tendência para suprimir toda a distância que o separa dos
entes é uma actividade essencial ao ser do Dasein.
Este procura aproximar e integrar no seu mundo circundante o máximo de objectos
possíveis esta tendência é Existencial. Ela caracteriza a civilização moderna. Por
exemplo, os recordes de velocidade, as invenções como o caminho-de-ferro, o
telégrafo, o telefone, o dio, o automóvel, o avião, etc., permitem suprimir as
distâncias, agir sobre um objecto afastado como se ele estivesse próximo. Dizendo
<<aqui>>, o Dasein não designa um lugar no espaço, mas aquilo junto do qual
está. E como ele está sempre fora de si, ele muda constantemente de aqui. Ele
orienta-se para os entes de que necessita e que aproxima de si <<a-fastando-os>>:
<<O Dasein entende o seu “aqui” a partir dum “ali” do seu mundo circundante. O
aqui não designa o “onde” dum ente subsistente, mas o estar junto de...,
característico dum ser que a-fasta simultaneamente com seu acto de afastar. A
espacialidade do Dasein é tal que o Dasein nunca está, à partida, aqui, mas ali; e é
deste ali que ele retorna ao seu “aqui”, de tal forma que ele interpreta o estar junto
de... da sua preocupação, em função do que está “ali” à-mão.>>
A espacialidade do Dasein caracteriza-se, pois, pelo facto de aproximar e situar, isto
é, de organizar esta aproximação. O Dasein aproxima situando, indicando regiões
por meio de signos. Podemos afirmar que a espacialidade não é subjectiva e a priori,
como o pensava Kant, ela é inerente ao ser-no-mundo. Assim, a esquerda e a direita
não são determinações subjectivas, mas direcções num mundo já presente.
Afastamento (Entfernung) e organização (Ausrichtung) o, assim, características
específicas da espacialidade do Dasein. Elas determinam a acção espacializante do
ser-no-mundo.
74
Destarte, des-distanciamento e direcionamento enquanto características
constitutivas do ser-em determinam a espacialidade do Dasein no espaço intramundano,
guiado pela circunvisão advinda das ocupações (HEIDEGGER, 1993, p. 110)
40
. Os dados
assentados permitem levar a cabo o trajeto, iniciando o exame da espacialidade do Dasein e
do problema ontológico do espaço, avançando no exame do § 24 de Ser e Tempo.
4.4. A espacialidade do Dasein e o espaço
Cumpre agora, pois, analisar, de maneira específica, o problema ontológico do
espaço e a espacialidade do Dasein, com ênfase nesta última. Percorrer-se-á a seguinte trilha:
em primeiro lugar, uma explanação acerca do § 24 de Ser e Tempo, à semelhança do que foi
realizado acerca dos §§ 22 e 23, i.e., uma dissertação sobre o conteúdo daquele tópico da obra
examinada, temperada por comentários de intérpretes autorizados. Após, prosseguir-se-á em
uma breve tentativa de interpretação e crítica da posição de Heidegger. Seguir-se-á uma
explanação da teorização de Heidegger sobre o espaço e a espacialidade como resultado da
aplicação do método fenomenológico no contexto de Ser e Tempo. Por derradeiro, evocar-se-á
a raiz kantiana da construção teórica de Heidegger, conforme a chave de leitura estabelecida
desde o início.
4.4.1. O § 24 de Ser e Tempo
Enquanto ser-no-mundo, o Dasein descobriu um ‘mundo’ em cada passo.
Consiste esse descobrir ou desvelar (“Entdecken”), fundado na mundanidade do mundo, em
uma liberação dos entes em uma totalidade conjuntural. O ser-no-mundo é espacial, dentro de
40
Ent-fernung und Ausrichtung bestimmen als constitutive Charaktere des In-Seins die Räumlichkeit des
Daseins, besorgend-umsichtig im entdeckten, innerweltlichen Raum zu sein”.
75
uma circunvisão, tanto nos modos de des-distanciamento quanto de direcionamento, porque o
que se acha à mão no mundo circundante pode vir ao encontro em sua espacialidade. A
liberação de uma totalidade conjuntural é, pois, uma liberação da pertinência espacial do que
está à mão.
Segundo Heidegger, o espaço assim aberto com a mundanidade do mundo
ainda não tem nada a ver com o puro conjunto de três dimensões. Nessa abertura imediata, o
espaço enquanto continente de uma ordem métrica permanece ainda velado. Aborda-se a
espacialidade em uma perspectiva fundada no ser-no-mundo, referenciada na região,
informada pela circunvisão, no seio de uma totalidade conjuntural.
O ‘deixar e fazer vir ao encontro’, constitutivo do ser-no-mundo dos entes
intramundanos, é um ‘dar-espaço’ (“Raum-geben”). Esse ‘dar-espaço’, que também se pode
nomear ‘arrumar’ (“Einräumen”) ou ‘espacear’, na lição de Benedito Nunes (1992, p. 96), que
traduziu “einräumt” por ‘espaceia’. Este ‘arrumar’ consiste na liberação do que está à mão
para a sua espacialidade (“liberar”, no caso, significa permitir trasladar, separar e colocar
objetos numa certa ordem, aproximando-os ou distanciando-os). Este ‘arrumar’ ou ‘espacear’
– uma doação preliminar de sentido – é que descobre os locais determinados pela conjuntura e
permite a orientação factual (“faktische Orientierung”) de cada passo. Enquanto ocupação
com o mundo em uma circunvisão, o Dasein pode tanto ‘arrumar’ como ‘desarrumar’ ou
‘mudar a arrumação’, pois o ‘arrumar’, entendido como um existencial, pertence a seu ser-no-
mundo. Com base na espacialidade assim descoberta, no ser-no-mundo, o espaço em si passa
a ser acessível ao conhecimento.
A afirmação de Heidegger (1993, p. 111) é bastante é concisa e rica em
conseqüências: o espaço não está no sujeito nem o mundo está no espaço
41
. Ao contrário,
afirma, o espaço está no mundo na medida em que o ser-no-mundo constitutivo do Dasein
41
Der Raum ist weder im Subjekt, noch ist die Welt im Raum”.
76
descobriu sempre um espaço, por estar sempre no mundo. Assim, o espaço não se encontra no
sujeito nem o sujeito, em seu ser-no-mundo, considera o mundo ‘como se’ (als ob) estivesse
no espaço. É o “sujeito”
42
, entendido ontologicamente na perspectiva de Heidegger, o Dasein,
portanto, que é espacial em sentido originário. Assim, o espaço se apresenta como a priori;
aprioridade significando, nesse contexto, precedência do encontro com espaço (como região)
em cada encontro com o ente disponível intramundano do mundo circundante.
Essa espacialidade advinda da circunvisão pode tornar-se objeto da própria
circunvisão e ensejar uma tarefa de cálculo e medição (v.g., a construção de uma casa ou a
medição de um campo). Pode-se seguir adiante, avançando até a análise abstrata do espaço
realizada pelas ciências métricas. Ao referir esse itinerário que leva da circunvisão à abstração
do espaço puro, Heidegger pretende apenas fixar ontologicamente a base fenomenal em que
se apóiam a descoberta e elaboração temática do espaço puro.
Ora, a descoberta do espaço puramente abstrato, destituído de circunvisão,
neutraliza (“neutralisiert”) as regiões do mundo circundante, reduzindo-as a puras dimensões.
O mundo perde a sua especificidade de circunstâncias, o conjunto de totalidade locais
transforma-se em um sistema impessoal de coordenadas, o mundo como um todo instrumental
perde seu espaço, reduzindo-se a um contexto de coisas extensas simplesmente dadas. O
espaço homogêneo da natureza vem marcado, pois, por uma desmundanização
(“Entweltlichung”) da determinação mundana do ente disponível intramundano.
Comentando a temática, diz novamente Pasqua (p. 62-63):
O Dasein, como acabamos de ver, alcança os entes na sua espacialidade, graças à
sua acção espacializante. Ele situa cada utensílio num lugar, organizando o conjunto
a que cada utensílio pertence. Ele move-se no mundo como num campo de jogo em
que as relações em combinam segundo o sistema que escolhe. O mundo surge,
assim, como um todo móvel, um campo de mutações, onde um <<aqui>> e um
<<ali>> determinam uma <<totalidade ligada mas não rígida>>. Estas análises
42
Heidegger grafa Subjekt entre aspas, para apontar claramente que o uso que faz da terminologia haurida da
metafísica da subjetividade é invadida, em Ser e Tempo, por um novo conteúdo semântico, fundado no a priori
existente (o ser-no-mundo), ou seja, em um novo paradigma de validade.
77
permitem concluir que <<o espaço não está tanto no sujeito como o mundo está no
espaço>>. O que se compreende se nos lembrarmos que na filosofia de Heidegger
nada é dado como coisa inerte e não agente. Tudo ek-siste. O espaço está no mundo,
no sentido em que ele é constitutivo do ser-no-mundo. E ele não está no sujeito
porque não em nós um espaço que projectaríamos, de seguida, para fora de nós.
O Dasein, com efeito, está sempre fora de si, preocupado no mundo e deixando-se
absorver pelos seus interesses.
Assim, o espaço não está nem em si, nem no sujeito. Mas será possível compreender
um espaço que não seja nem objectivo, nem subjectivo? Sim, porque o Dasein é
<<espacializante>>. O Dasein abre o espaço para permitir o seu encontro com os
entes. O espaço não é, portanto, um elemento ontológico primordial do ente, nem
um elemento fundamental do mundo: <<Não se trata de encontrar no fenómeno do
espaço a determinação ontológica única, ou mesmo primária, do ser intramundano.
Muito menos constitui o espaço o fenómeno do mundo, não sendo a espacialidade
concebível senão com base no mundo [...] de tal modo que o espaço co-constitui o
mundo de acordo com a espacialidade essencial do Dasein considerado na sua
constituição fundamental de ser-no-mundo.>>.
De acordo com seu ser-no-mundo, o Dasein sempre dispõe previamente, de
forma implícita, de um espaço descoberto. Isso diz algo sobre o ser do espaço? Ora, o fato
de o espaço se mostrar essencialmente em um mundo não decide sobre a modalidade de seu
ser. O espaço não precisa ser “vorhanden” nem “zuhanden”; da mesma forma, não possui o
modo de ser do Dasein. Ou seja, em linguagem cartesiana, nem res extensa, nem res cogitans.
Como caracterizá-lo, então?
Para buscar a solução dessa aporia, Heidegger remete à questão do ser,
afirmando que o problema decorre de uma falta de clareza de princípio acerca de sua
interpretação ontológica. Para ele, o decisivo para uma boa compreensão ontológica consiste
em libertar a questão sobre o ser do espaço dos conceitos ontológicos disponíveis no acervo
da metafísica ocidental. A que a espacialidade só pode ser descoberta a partir do mundo e isso
de tal maneira que o próprio espaço se mostra também um constitutivo do mundo embora
não seja, como alerta Heidegger (1993, p. 113), nem a única nem a determinação ontológica
primordial do ser dos entes intramundanos de acordo com a espacialidade essencial do
Dasein, no que respeita à sua constituição fundamental de ser-no-mundo. Sobre o tema, diz
Benedito Nunes (1992, p. 96):
78
O Dasein habita o recuado espaço originário, irredutível a uma localização simples e
não encerrado num sujeito. A espaciação (Einräumen), que acompanha toda “busca
do tempo perdido”, e pela qual se anuncia o fenômeno decisivo e ainda mais
primitivo da temporalidade (Zeitlichkeit), é ontologicamente, o rasgo de abertura do
Dasein como ser-no-mundo.
O espaço apresenta-se, pois, ao mesmo tempo, como co-pertencente ao mundo
e ao Dasein e co-constitutivo de ambos. No âmbito do mundo e, também, no contexto de um
ser-no-mundo espacializante, o espaço demonstra sua constituição ontológica complexa,
sendo semelhança de outros conceitos do tratado de 1927) um conceito incompleto, ainda
em formação. Parece evidente que Heidegger não pretendeu esgotar a temática do espaço e da
espacialidade. Pretendeu antes, como acima referido, iniciar uma liberação da questão sobre o
ser do espaço dos conceitos ontológicos disponíveis no acervo da metafísica ocidental.
Afastando a tradição cartesiana e trazendo o espaço para o âmbito do ser-no-mundo e,
conseqüentemente, para a esfera do Dasein, Heidegger apontou o caminho para um novo
estudo desta temática.
4.4.2. Interpretação e crítica da abordagem de Heidegger
Em sua trajetória argumentativa, Heidegger parece considerar que as teorias
sobre o espaço até então elaboradas (relacional / objetivo, Descartes / Kant) estão ainda
radicadas na dicotomia metafísica entre sujeito e objeto. À semelhança do restante de sua
reflexão filosófica, e na esteira do que virá posteriormente, Heidegger busca o terreno anterior
à dicotomização metafísica, i.e., em termos kantianos, a condição de possibilidade de ambas
as concepções de espaço, tanto subjetivo quanto objetivo.
Da mesma maneira que Kant, Heidegger afirma o caráter humano do espaço, e,
de certa forma, o seu papel como condição de possibilidade para a experiência. Todavia, ao
contrário de Kant, que considera o espaço como uma forma pura da intuição ou seja, uma
79
característica a priori de nosso aparelho cognitivo –, Heidegger pensa o espaço a partir do
elemento fundacional da reflexão de Ser e Tempo: o ser-no-mundo. Girando sua análise em
torno desse novo transcendental, Heidegger intenta escapar à dicotomia sujeito-objeto,
centrando o estudo na espacialidade das atividades pré-reflexivas do homem concretamente
situado, como caminhar e procurar coisas. Fundada no ser-no-mundo, a concepção
heideggeriana move-se, de forma conseqüente, de uma noção abstrata de espaço para um
campo em que predomina nitidamente a espacialidade da ação do Dasein
43
.
Ora, justamente porque Heidegger descreve essa espacialidade da ação sem
pressupor a noção de espaço objetivo (e, por conseguinte, sem pressupor um sistema de
coordenadas espaciais) é que sua teorização acerca do espaço parece tão intrincada. Como no
restante do tratado de 1927, mas de forma especialmente aguda com relação a este tópico, o
pensador tem que literalmente reinventar um vocabulário e uma terminologia adequados à
tarefa. Como pensar a distância sem referência ao sistema métrico, por exemplo? A
linguagem heideggeriana tem de dar conta de novos instrumentos para pensar a espacialidade
(“Gegend”, “Ent-fernung”, etc.) do ponto de vista do Dasein.
Por outro lado, é claramente rejeitada a teoria do espaço absoluto, que o
concebe como um ente autônomo, independente. Há, porém, algo de relacional na construção
de sua teoria do espaço. Embora não reduza a análise do espaço à relação entre entes físicos,
Heidegger “trata o espaço co-extensivamente a nossas ações quotidianas, ou o que Heidegger
chama de ‘estrutura de cuidado’” (ARISAKA, 1995). “Gegend”, “Ent-fernung” e
“Ausrichtung” são apenas as formas pelas quais o Dasein existe como cuidado (“Sorge”),
juntamente com a temporalidade. Assim, a espacialidade descreve a relação do Dasein com os
entes intramundanos, não havendo espaço “além” dessa espacialidade do ser-no-mundo.
43
Neste ponto, quem afirme que a teoria heideggeriana do espaço é uma teoria do espaço “vivido” ou do
espaço fenomenológico. O exame da espacialidade a partir do uso do corpo seria um bom exemplo desse espaço
“vivido” (a aproximação à noção husserliana de “mundo vivido” é evidente). O tema de uma espacialidade do
cuidado” em termos fenomenológicos será tratado logo adiante.
80
Como afirmado em Ser e Tempo, nem o Dasein nem os entes existem independentemente uns
dos outros em um espaço “vazio”, mas o Dasein é essencialmente espacial.
Poder-se-ia objetar que a solução heideggeriana recai no psicologismo, sendo
apenas mais uma maneira sobremaneira complexa, aliás de fundar o exame do espaço em
dados subjetivos ou internos. É possível refutar o argumento de duas formas (na exposição do
tema, segue-se ARISAKA, 1995).
Primeiro, pode-se argumentar no sentido de que a análise heideggeriana do
espaço não é psicológica, visto que não pressupõe ‘estados internos’ ou ‘psicológicos’
radicados em uma ‘mente’ que existiriam independentemente das ações no mundo prático ou
prioritariamente a elas (ou ao próprio espaço). Heidegger parte de uma posição inteiramente
distinta, pois a prioridade é dada a um framework fundado, como antes dito, nas ações que se
desenvolvem no mundo prático. O ser-no-mundo é o ponto de princípio, não a noção de
“mente”. Não se habita mais o território da filosofia da consciência, abandonada que foi em
favor de um novo paradigma, um novo transcendental, um novo a priori.
Segundo, é possível também aludir ao fato de que um approach psicologista
pode revelar várias ‘experiências internas’ do espaço, mas não consegue explicar a natureza
do espaço, sua constituição ontológica, por assim dizer. A exposição da natureza mesma da
espacialidade, conforme se deduz da argumentação heideggeriana (em uma chave de leitura
kantiana, evidentemente), pode ser alcançada pela busca das condições para essa
experiência espacializante. Esta não se resume às referidas ‘experiências internas’, ao
psicologismo, mas ao fundamento de tais experiências. Ora, conforme visto anteriormente, a
raiz da reflexão de Heidegger está centrada no mundo prático. Antes de qualquer registro
psicologista, há o a priori existente, o ser-no-mundo.
Outra objeção de ordem distinta que se poderia levantar contra a
formulação é a mesma que reiteradamente se tem levantado contra todo o opus heideggeriano:
81
a de que seria de caráter anti-científico, hostil à ciência moderna ou, no mínimo, indiferente às
formulações científicas do tempo presente. Ora, por mais que Heidegger pareça derrapar, em
sua linguagem, para uma abordagem hostil à ciência moderna, mormente em sua reflexão
posterior, marcada pela crítica da técnica, não parece ser esse o caso de sua abordagem do
fenômeno do espaço. Ao contrário, como afirma expressamente, pretende apenas “fixar
ontolologicamente o solo fenomênico em que se apóiam a descoberta e elaboração temática
do espaço puro” (HEIDEGGER, 1993, p. 112)
44
. Como salienta Benedito Nunes (1992, p.
96), ao examinar o espaço e a espacialidade em um contexto de “Raum-geben” e de
“Einräumen”, Heidegger está apenas expondo a perspectiva de ação do Dasein em um espaço
de ordem existencial e qualitativa, “de que o espaço homogêneo e geométrico é o esquema
abstrato”.
O que sobressai das passagens acima reproduzidas é o caráter complementar à
ciência que a reflexão enseja. Partindo do método fenomenológico tal como o concebia ou
interpretava, Heidegger simplesmente assinalou como o homem (ou seu ‘dublê’ ontológico, o
Dasein) chega à percepção do espaço, dentro de um quadro de cotidianidade e circunvisão,
fundado na sua condição de ser-no-mundo. Como ele próprio assinalou, a partir daí pode-se
evoluir para uma eventual tematização do espaço puro inclusive no plano científico, não
temos medo de afirmar. Nada em sua reflexão infirma a abordagem abstrata da ciência, pois o
que é atacada é a errônea percepção de que se deve partir primeiramente da abstração.
Segundo a formulação heideggeriana, conforme a premissa de que a essência do Dasein está
em sua existência, parte-se desta para eventualmente chegar à abstração. São duas ordens de
análise do espaço: uma qualitativa e existencial, que é a precedente, primordial, estabelecida
ao nível das estruturas do Dasein; a outra, geométrica e abstrata, que é posterior, ao nível das
ciências.
44
“Innerhalb ihrer Problematik sollte lediglich der phänomenale Boden ontologisch fixiert warden, auf dem die
thematische Entdeckung und Ausarbeitung des reinen Raumes ansetzt”.
82
O tipo de pesquisa encetada pela ciência não está, portanto, ao mesmo nível da
análise do tema ao nível das estruturas de ocupação do Dasein. À ontologia fundamental,
direcionada à questão do ser, incumbe estabelecer a base para as várias ontologias
“regionais”, i.e., dos vários segmentos do ser; providenciando, da mesma forma, uma base
filosófica firme para as ciências note-se, aliás, o quanto Heidegger ainda partilhava com
Husserl no que toca aos propósitos da pesquisa filosófica (DOSTAL, 1993, p. 152). A
elaboração científica, abstrata, carece da riqueza analítica ligada à existencialidade, pois
escapa ainda que parcialmente à esfera do mundo prático, ou seja, o mundo em que
habitamos desde sempre, no qual estamos engajados antes mesmo de qualquer atividade
teórica ou filosófica. Quando ocorre a ‘ordinarização’ ou o ‘esvaziamento’ do mundo prático
é que principia a análise científica tal como a conhecemos, tendente à abstração e à
‘descontextualização’ no exame dos entes intramundanos.
Nesse sentido, veja-se o magistério de Hall (1992, p. 96):
We are not always at work or in the midst of practical activity, not always
characterizable in term of making use of equipment in order to, and so on. And there
are special kinds of practice, such as those involved in science, which seem to
require a kind of just looking and seeing in order to achieve their own special
purposes. The point is, however, that if we take the relational context of practical
activity as basic, the modifications required to reach the theoretical point of view are
intelligible in terms of a lessening of practical interest and concern or the
substitution of special limited interests and concerns for the ordinary everyday ones,
and the resulting decontextualization (or minimal contextualization) of the everyday
world. Heidegger not only traces the route from the ready-to-hand to the present-to-
hand in this way, he also shows how the space (“existential space”) of practical
activity can undergo a similar transformation and become objective space (BT 146-
7). In Division II of Being and Time he attempts to tell the same story with respect
to existential” and objective time. If all of this is correct, the ready-to-hand and its
practical world enjoy a priority over the present-at-hand and the theoretical world in
terms of intelligibility or explanatory self-sufficiency, and Heidegger takes this to be
equivalent to priority in the logical, ontological and epistemological senses.
Não há, pois, nenhuma incompatibilidade do programa de Ser e Tempo com as
pesquisas científicas, pois operam em planos distintos e, ao mesmo tempo, complementares.
São esferas separadas, mas interligadas: o plano da analítica existencial e da atividade do
83
Dasein, em que os objetos estão primordialmente “zuhanden”; e o plano da análise abstrata e
científica, mais ‘raso’, em que os objetos estão “vorhanden”. A prioridade ontológica do
primeiro plano, da esfera da existencialidade humana, é evidente, e é nesse nível que se
radicam as “fundações” do projeto heideggeriano, tal como concebido no tratado de 1927. A
analítica existencial é o núcleo duro da ontologia fundamental; a partir daí, quanto mais
‘rarefeita’ a análise do mundo prático do Dasein, quanto mais se caminha em relação ao
mundo objetificado, mais se adentra no domínio das ciências.
4.4.3. O espaço nos marcos do método fenomenológico
Os §§ 22-24 de Ser e Tempo também podem ser examinados na perspectiva da
aplicação do método fenomenológico, tal como Heidegger o compreendia, ao tema do espaço.
Voltando-se, conforme a máxima fenomenológica, para a “coisa mesma” no caso, o espaço
o pensador empreende uma busca da conceituação fenomenológica do tema examinado.
Assim, procura examinar o ser que o constitui, na busca da essência do fenômeno do espaço
em sentido fenomenológico. Intenta desencobrir o conceito de espaço, livrando-o do peso da
tradição cartesiana, que aprisiona, na visão de Heidegger, o tema do espaço e da espacialidade
em uma visão matematizante e geometrizante, advinda da concepção de mundo como res
extensa. Para desvelar o espaço, o filósofo tenta afastar os entulhos que a metafísica deixa em
seu caminho, afastando o λόγος que considera “falso”– a abordagem de Descartes, que, para
Heidegger, propõe o ente pelo que ele não é instigando uma percepção do tema mediante o
acesso do que entende serem características originárias, primordiais, do fenômeno estudado.
Expondo o φαινόµενον do espaço como tema integrante da investigação do
conceito de mundo, Heidegger o encaixa em meio à problemática da disponibilidade
intramundana e dos entes simplesmente existentes, ou seja, conecta o tema à
84
instrumentalidade. É o Dasein que “percebe” e “vive” o espaço e a espacialidade, e é por isso
que o pensador enuncia a questão do espaço a partir do a priori do ser-no-mundo, constituição
ontológica fundamental do Dasein. É nessa perspectiva que Heidegger estrutura o λόγος
“verdadeiro”, articulando o discurso sobre o espaço a partir do Dasein engajado no mundo, na
medida em que tal ente, realizando a possibilidade do existir, promove uma auto-interpretação
espontânea da existência, examinada pelo filósofo em uma analítica da existencialidade da
existência (1993, p. 38)
45
– a analítica existencial.
Esse λόγος “correto”, esse deixar ver e fazer ver o espaço e a espacialidade,
levado a cabo com rigor metódico, conforme a máxima fenomenológica do retorno “às coisas
em si mesmas” (“zu den Sachen selbst”), produz seus resultados. A pesquisa fenomenológica,
como visto, é a via de acesso e o modo de verificação para se determinar o que deve servir
como tema da ontologia; assim, procura deixar ver o φαινόµενον tal como se mostra a partir
de si mesmo. Ao cabo, a ontologia fenomenológica do espaço e da espacialidade demonstra
uma espacialidade do cuidado. O próprio Heidegger afirma textualmente, ao final de Ser e
Tempo, em seu § 70, recapitulando a explanação inicial sobre o espaço, que o Dasein somente
pode ser espacial como cuidado (1993, p. 367)
46
. Fenomenologicamente, Heidegger chega às
conclusões antes referidas: nem o Dasein está dado no espaço, nem o espaço se reduz ao
Dasein.
A ontologia complexa do espaço advém do exame fenomenológico do tema.
Ao pesquisar a natureza do espaço (ou, em termos ontológicos, o seu ser), propõe o enigma
conceitual – o espaço não precisa ser “vorhanden” nem “zuhanden”; da mesma forma, porém,
não possui o modo de ser do Dasein. O Dasein toma, agarra, literalmente introjeta o espaço,
fazendo com que sua espacialidade seja diferente daquela correspondente às demais coisas
extensas, não apenas pela possibilidade de cognição e representação do espaço, mas porque,
45
“…einer Analytik der Existenzialität der Existenz ”.
46
“Räumlich wird das Dasein nur sein können als Sorge…”.
85
de forma primordial, o espaço não está no “sujeito” nem o mundo está no espaço. Na
perspectiva da interpretação ontológica da existencialidade, o espaço está no mundo na
medida em que o ser-no-mundo constitutivo do Dasein descobriu sempre um espaço, por
estar sempre no mundo.
Destaque-se aqui também o papel da técnica metodológica dos indícios
formais, intimamente ligada à fenomenologia transcendental. Como antes visto, o indício
formal é uma antecipação da explicação fenomenológica, um “chamar a atenção” para os
fenômenos da vida fática, sem o qual não haveria acesso aos fenômenos originários. É uma
técnica de desencobrimento inicial dos fenômenos que se apresentam velados como, por
exemplo, o espaço, “entulhado”, na visão de Heidegger, pelo peso da tradição cartesiana. Os
indícios formais estão ligados à pré-compreensão com que atuamos na vida fática. Destarte,
como assinalado, todo construto teórico realizado e concebido mediante uma operação de
descrição fenomenológica está inacabado, incompleto, por sua própria natureza de “olhar
fenomenológico” das estruturas fundamentais da existência humana.
Assim, se a solução encontrada por Heidegger não é inteiramente perfeita ou
completa, a resolução das eventuais lacunas que derivam de tal concepção escapa ao objetivo
deste trabalho, até porque tais incertezas derivam, em boa parte, da necessária não-
completude dos conceitos formados a partir da aplicação do método fenomenológico exposto
no § 7º de Ser e Tempo. Importa sim, no presente tópico, assinalar que a investigação
ontológica acerca do espaço e da espacialidade se deu justamente nos marcos do aludido
método fenomenológico, sendo empreendida com rigor metódico. Os resultados da pesquisa
foram regularmente obtidos, estando de acordo com a observação contida no § 8: se a questão
sobre o sentido do ser é a mais universal e a mais vazia, ela abriga igualmente a possibilidade
de sua mais aguda singularização em cada Dasein. Heidegger deixa para trás toda uma linha
de pensamento (a tradição cartesiana e a oposição, fundamental para Descartes, entre res
86
extensa e res cogitans) e constrói novos conceitos de espacialidade e de espaço,
profundamente arraigados no a priori do ser-no-mundo e na existencialidade do Dasein. O
fruto de tal atitude está expresso fundamentalmente nos §§ 22-24 da obra, dos quais emergem,
a nosso ver, tanto a noção de um espaço fenomenológico quanto de uma espacialidade do
cuidado.
4.4.4. As raízes kantianas da abordagem heideggeriana
Heidegger promove, como foi dito anteriormente, uma forte transformação e
renovação no mundo filosófico em seu tratado de 1927, ao pensar a partir de um novo
transcendental, o ser-no-mundo, que atrai o fundamento do filosofar para o mundo prático.
Essa verdadeira revolução alcança todas as áreas abarcadas por sua pena, inclusive o
tratamento do espaço e da espacialidade, concebida esta a partir da ocupação do Dasein.
Nessa reformulação da abordagem da espacialidade, há, por certo, a recepção’ do acervo da
metafísica ocidental, que é ‘destruída’, lapidada e novamente reconstruída, desta vez sob a
égide do novo paradigma introduzido por Heidegger.
Embora a polêmica seja travada explicitamente com a ontologia cartesiana,
vislumbra-se também o diálogo crítico com a obra de Kant. Em dois momentos a interação é
cristalina, deixando à mostra o fio condutor oculto de um diálogo com a filosofia crítica: no §
23, em que menção explícita à obra de Kant quanto à forma de orientação do homem; e no
§ 24, com a referência textual ao ‘como se’ (“als ob”), fórmula que faz referência à
metodologia filosófica de inspiração kantiana. Diante de tais indícios, é cito questionar qual
o papel do tratamento kantiano da espacialidade no pensamento de Heidegger, e em que
medida foi ele ‘recepcionado’ em Ser e Tempo.
Ora, como dito anteriormente, a noção de condição de possibilidade
87
desempenha um papel interessante no pensamento heideggeriano. Se, como acentuou Dubois,
para Heidegger o mundo está para além do ente, ele é no entanto sua condição de
possibilidade, é e a expressão é muito feliz a sua condição fenomenalizante (DUBOIS,
2004, p. 31). Se o mundo é ele próprio condição de possibilidade da experiência, o espaço
também desempenha papel de base na ocupação do Dasein. Justamente porque a
espacialidade deve ser pensada a partir do Dasein, ela se apresenta como um a priori
(HEIDEGGER, 1993, p. 111). Este a priori, como explicitado, não diz respeito a uma
pertinência prévia a um sujeito como uma forma inata e pura da sensibilidade, como na obra
de Kant. Não, esse a priori está recebido em novo patamar e encontra-se referido ao ser-no-
mundo e à estrutura ontológica da mundanidade, significando que o espaço está previamente
presente em cada encontro com o ente disponível intramundano (“zuhanden”) no mundo
circundante.
Alphonse de Waelhens (1948, p. 49) afirmou que o desenvolvimento do
conceito do mundo, na obra de Heidegger, não tem outra razão senão demonstrar que o ser do
mundo pertence à estrutura da subjetividade. Quando se fala em subjetividade, aqui, é
evidente que não se está a falar na subjetividade clássica (se assim se pode falar na
subjetividade instaurada a partir do programa crítico kantiano), pois o intento radical de
Heidegger foi justamente romper com a dicotomia metafísica entre sujeito e objeto. Quando
se fala em subjetividade, o que se quer ressaltar é aquilo que ficaria explícito nas lições de
1930 que o homem é formador de mundo, e, portanto, que o ser do mundo pode estar
imbricado no ser do homem, isto é, no ser do Dasein.
A subjetividade exposta em Ser e Tempo é sumamente distinta da subjetividade
segundo o programa crítico kantiano. O “eu” como sujeito absoluto, na Crítica da Razão
Pura, é uma função gica e não um ser existente (CAYGILL, 2000, p. 300). Para Heidegger,
a subjetividade está expressa no construto Dasein para denominar o homem, desde sempre no
88
mundo e engajado na atividade de utilização dos entes intramundanos em um quadro
articulado de significância e sentido. Seu acesso ao mundo e aos “objetos” se de forma
prática e pré-reflexiva.
Assim contextualizada a larga diferença entre Kant e Heidegger no que toca ao
tema da subjetividade, há, ainda que em uma pequena medida, uma ‘subjetivação’ ou
‘antropologização’ do espaço em Ser e Tempo, dentro da referida estratégia de formação
dos conceitos na obra de 1927. Como em Kant, o espaço ‘está’ no sujeito que conhece, mas à
diferença do pensador de Königberg, este “sujeito” (sujeito em sentido impróprio, tanto que o
próprio Heidegger grafa o termo entre aspas), o Dasein, é visto como desde sempre estando-
no-mundo. Não se confunde nem um pouco com o espaço como uma intuição a priori ou
como uma forma a priori da sensibilidade da metafísica da subjetividade, sendo, isso sim, um
a priori que se estabelece a partir da ocupação do Dasein no mundo prático.
Como destacado acima, Heidegger afirma o caráter humano do espaço, e o seu
papel como condição de possibilidade para a experiência. Ao contrário de Kant, porém, que
considera o espaço como uma forma pura da intuição, Heidegger pensa o espaço a partir do
elemento fundacional da reflexão de Ser e Tempo: o ser-no-mundo, intentando escapar à
dicotomia sujeito-objeto e centrando o estudo na espacialidade das atividades pré-reflexivas
do homem concretamente situado. Se rejeita a teoria do espaço absoluto, Heidegger, como
visto, percebe algo de relacional na sua teoria do espaço, pois nem o Dasein nem os entes
existem independentemente uns dos outros em um espaço “vazio”, mas o Dasein é
essencialmente espacial, de uma forma claramente a priori.
Assim, a nosso ver, a influência kantiana é evidente, notadamente na
formulação de Heidegger de que o espaço não é objetivo, mas contém, em sua essência,
referência ao homem (vale dizer, de forma “forçada” e tomando em conta as advertências
anteriores: uma referência ao “sujeito”, substituído aqui pela noção de Dasein). Kant
89
argumentou que as noções de ‘esquerda’ e ‘direita’ não podem ser aferidas a não ser com a
pressuposição de um ‘eu’ que esteja orientado em relação ao próprio corpo. Orientação é
também uma característica essencial da espacialidade fundada no ser-no-mundo; todavia, para
Heidegger, orientação não é um problema de “feeling”, estando conectada às ações
desenvolvidas no mundo prático. Há aqui a recepção de Kant nos quadros de um novo
paradigma: sai o “eu transcendental”, entra o ser-no-mundo como elemento fundacional na
análise do espaço e da espacialidade do Dasein, i.e., do ser humano. O espaço não é objetivo
nem subjetivo, só podendo ser examinado no âmbito do mundo prático.
Acima de tudo, como destacado acima, a raiz kantiana transparece na assunção
do espaço e da espacialidade humana como uma estrutura a priori na existência. Se o Dasein
está no mundo, ele está no espaço e age de forma espacializante, pré-reflexivamente, no
manuseio e no contato com os entes intramundanos. É um a priori não mais pensado em
termos puramente lógicos de um sujeito a-histórico que conhece o mundo, mas um a priori
radicalmente ligado ao ser-no-mundo e à estrutura ontológica da própria mundanidade.
Reconhecer o espaço e a espacialidade como elementos a priori na estrutura mesma da
existencialidade constitui um selo, uma chancela inequívoca a determinar, com inteira
clareza, a procedência kantiana do material teórico trabalhado por Heidegger.
Espaço pensado a partir da subjetividade humana (tomada esta como Dasein,
na maneira já mencionada), pensado como um elemento a priori, no quadro de um mundo
concebido como condição de possibilidade fenomenalizante em tudo avulta, segundo nossa
leitura, a marca do diálogo crítico com a obra de Kant, fato que, como visto, em duas
oportunidades se torna patente. É como se o pensador tivesse apreendido parcela substantiva
da abordagem que Kant ao espaço, renovando seu fundamento de validade sob um novo
paradigma ou transcendental, o ser-no-mundo. Com a adequação semântica assim promovida,
o conceito de espacialidade parece fazer um movimento ‘pendular’: de um lado, é
90
‘antropologizado’ ou ‘subjetivado’ de forma talvez mais radical do que a metafísica da
subjetividade parecia fazer; de outro, o espaço é inteiramente pensado a partir de um ‘sujeito’,
impropriamente falando, mergulhado desde sempre no mundo prático. Neste movimento, há,
talvez, o espelho do jogo do ser, pano de fundo da reflexão heideggeriana. O ir e vir do
conceito de espaço, de forma pendular, acompanha a fluidez da existência humana, expressa
na máscara fugidia de velamento e desvelamento do ser.
91
5. CONCLUSÕES
Ao final deste breve estudo, a matéria examinada pode ser sumariada,
avançando-se, também, algumas conclusões de caráter sintético.
5.1. Estabeleceu-se como objetivo desta dissertação o estudo da noção de espaço na
obra de Martin Heidegger, especificamente no contexto de sua obra mais conhecida, Ser e
Tempo. Em um texto polarizado pela questão do ser, várias das questões clássicas da filosofia
foram submetidas a novas abordagens; entre elas, em um contexto próprio, a questão do
espaço. A espacialidade recebeu uma formulação específica na reflexão de Heidegger, que
tratou o tema de forma estranha à tradição cartesiana. Assim, mesmo não sendo um tema
central na sua reflexão filosófica, e ainda não tenha recebido um tratamento completo e
acabado, a questão do espaço apresenta indubitável interesse para o estudioso de sua obra.
5.2. O exame de Ser e Tempo foi realizado e conduzido por meio de uma chave de
leitura específica: buscou-se rastrear a gênese de suas noções de espaço e espacialidade,
elucidando a sua relação com a tradição kantiana. É sabido que a obra de Heidegger se
constituiu, em parte substancial, em uma relação crítica com a obra de Kant; buscou-se, pois,
explicitar esse diálogo no que toca ao tratamento do espaço e da espacialidade. Deste modo, o
presente estudo centrou-se na estruturação do espaço e da espacialidade no contexto de Ser e
Tempo, analisando-se os conceitos segundo a lógica interna de sua formação pelo método
fenomenológico, e, por conseguinte, conforme a recepção crítica mantida com o acervo
conceitual e metodológico da obra de Kant, especialmente com a Crítica da Razão Pura.
92
5.3. A dissertação foi estruturada de forma linear: após uma apresentação dos
objetivos do trabalho, passou-se ao exame da formulação de Kant sobre o conceito de espaço
com uma forma pura da intuição. Prosseguiu-se com uma breve explanação da recepção de
Heidegger às idéias da filosofia crítica de inspiração kantiana e como uma exposição sobre a
estratégia de formação dos conceitos em Ser e Tempo. Por fim, adentrou-se na análise das
noções de espaço e espacialidade em Ser e Tempo, principiando por uma exposição do
método fenomenológico tal como compreendido por Heidegger e por uma apresentação do
conceito de mundo, seguidos por uma exposição e comentário dos §§ 22-24 de Ser e Tempo,
na forma da chave de leitura estabelecida no princípio deste estudo.
5.4. Destacou-se também a dificuldade de abordar a linguagem de Heidegger, tendo
em vista que seu discurso filosófico assume, por vezes, características não-argumentativas e
evocativas. Como resultado da ‘destruição’ do acervo da metafísica ocidental e da
conseqüente ‘reinvenção’ do vocabulário filosófico, os conceitos e noções de Ser e Tempo
adquirem significados que se afastam da carga de significação a eles associada na tradição
filosófica. Para lidar com essa linguagem, adotou-se o paradigma hermenêutico da co-
pertença entre intérprete e texto, afirmando o leitor como locus hermenêutico primordial,
como lugar privilegiado do sentido. O autêntico locus hermenêutico está no intérprete, capaz
de efetuar uma leitura como produção de sentido. A instituição de uma chave de leitura pelo
intérprete constitui, pois, a afirmação de um princípio de compreensão do texto.
5.5. Ainda sobre a linguagem de Heidegger, estabeleceu-se ab initio uma linha de
tradução e / ou versão dos vocábulos de Ser e Tempo. Optou-se, por exemplo, por não traduzir
Dasein por ser-aí ou ser-o-aí, mantendo-se o termo no original alemão. Quanto aos demais
termos do glossário heideggeriano, preferiu-se, em regra, o uso dos termos contidos na
93
tradução brasileira, ainda que eventualmente passíveis de crítica, tendo em vista a sua difusão
nos meios acadêmicos pátrios e a facilidade de imediata compreensão que daí decorre.
Todavia, em várias oportunidades, foram propostas traduções alternativas, de forma a
preservar a força e a integridade das formulações originais de Heidegger.
5.6. A exposição do exame do espaço segundo Kant principiou por uma breve
recensão sobre a natureza do projeto crítico como uma crítica da razão, assim tomada como
uma ponderação sobre os limites do conhecimento humano. O programa crítico, segundo a
leitura que adotamos, constituiu-se como o fundamento da teoria da solubilidade dos
problemas necessários da razão. Essa reformulação partiu dos campos da teoria do
conhecimento, pois Kant, invertendo o procedimento tradicional da metafísica de seus dias,
propôs que a intuição dos objetos fosse vista como regulada pela nossa faculdade de intuição,
e não pela natureza dos objetos. Se a intuição tivesse que se regular pela natureza dos objetos,
não haveria como saber algo a priori a respeito desta natureza; se, porém, o objeto se regula
pela natureza de nossa possibilidade de intuição, é possível um conhecimento a priori.
Afirma-se então a possibilidade de cognição apenas dos fenômenos (ou seja, das
representações), nunca das coisas em si. Pode-se conhecer e legislar sobre a fenomenalidade
dos objetos do conhecimento, a maneira tal como os recebemos, mas nunca sobre as coisas
em si mesmo consideradas, impenetráveis que são à cognição, dada a impossibilidade de delas
obtermos, como frisou Kant, qualquer conhecimento a priori.
5.7. Analisando as operações cognitivas do homem, Kant reconhece duas fontes de
conhecimento: o entendimento e a sensibilidade. Uma nos fornece as intuições (a maneira
pela qual os objetos nos são dados), a outra nos fornece os conceitos. Para que os conceitos
não sejam vazios, puramente formais, é preciso que se possa ligá-los a uma intuição sensível.
94
Na sensibilidade, o objeto é dado mediante uma afecção das operações sensitivas; enquanto
no entendimento, o objeto é pensado, ou seja, determinado, trata-se de uma operação de
construção dos conceitos. Assim, a relação com o objeto por meio das categorias do
entendimento chama-se relação pura, i.e., a priori. À sensibilidade e ao entendimento soma-se
uma terceira operação cognitiva, decisiva para o projeto crítico kantiano: o juízo. Cuida-se de
uma operação pela qual se subsume algo segundo certas regras, ou seja, de discernir se algo
está incluído ou não em uma regra dada. As condições de possibilidade para aplicar conceitos
puros do entendimento aos fenômenos são determinações temporais transcendentais; são tanto
conceptuais quanto sensíveis: os esquemas transcendentais.
5.8. O juízo tem papel central no projeto crítico de Kant. Esta operação complexa
que liga sensibilidade e entendimento é o ponto nuclear da crítica da razão empreendida por
Kant, que se propõe a analisar o nosso poder de conhecer. Assim, o juízo apresenta-se como
uma representação da unidade da consciência de diversas representações ou a representação
da relação entre elas, na medida em que constituem um conceito. A crítica kantiana se
relaciona à atividade de julgar em diferentes domínios, tendo como problema fundamental,
segundo a leitura que adotamos, a investigação acerca dos juízos sintéticos a priori,
conhecimento puro da razão. Como o juízo fornece a matriz de toda a filosofia do Kant tardio,
cada uma das três grandes críticas está orientada para a análise de uma determinada classe de
juízo: na Crítica da Razão Pura, os juízos teóricos; na Crítica da Razão Prática, os juízos
práticos; e na Crítica do Juízo, os juízos teleológicos e estéticos.
5.9. Viu-se também que a situação não se resume às três críticas, alcançando toda a
produção do Kant tardio, restando claro que o projeto crítico é portador de uma lógica interna
que o impele à expansão contínua. Novos territórios foram gradativa e progressivamente
95
desbravados para a filosofia transcendental, com a submissão de novos campos à teoria do
juízo, i.e., à perquirição sobre a natureza dos juízos sintéticos a priori pertinentes a esses
novos trechos do conhecimento, assim como, também, do agir humano. Destarte, pode-se
aventar, na obra de Kant, uma teoria dos juízos sintéticos a priori no âmbito da história, do
direito e da política internacional. Novos domínios de interpretação são desbravados e
lapidados com as ferramentas do sistema crítico. Essa investigação sobre a possibilidade de
juízos sintéticos a priori é de natureza transcendental. Transcendental, no contexto da Crítica
da Razão Pura, significa o conhecimento pelo qual podemos saber quais e como
determinadas representações se aplicam a priori ou são possíveis a priori. Adentra-se o
território das condições de possibilidade, marca da metafísica depurada de Kant.
5.10. Esse esforço de construção de uma metafísica depurada é acompanhado por
uma preocupação de garantir as formulações teóricas nos dados do real. Kant afirmou a
necessária referibilidade dos juízos sintéticos a priori ao plano da experiência possível. Para
serem decidíveis ou válidos, os juízos sintéticos a priori teóricos devem ter sua possibilidade
assegurada no domínio sensível da intuição pura, ou seja, no território da experiência, isto é,
da experiência possível, verificável. Da mesma forma, registrou-se que a metafísica pode ser
uma ciência do conhecimento a priori da razão, mas este conhecimento não diz respeito às
coisas em si mesmo consideradas, mas à configuração que a operação cognitiva impõe às
coisas para percebê-las e conhecê-las. Isso quer dizer que não podemos conhecer as coisas em
si mesmas, mas devemos poder pensá-las como reais. Do contrário, a conseqüência seria
absurda: existiriam aparições, isto é, fenômenos sem algo que realmente aparecesse, sem algo
que desse suporte físico ao aparecer fenomênico – fenômenos sem coisas-em-si.
5.11. Ao examinar os elementos a priori nas operações imprescindíveis ao
96
conhecimento, Kant localiza, na sensibilidade, as formas puras da intuição. Para que os
conceitos não sejam estritamente formais, vazios, é preciso ligá-los a uma intuição sensível.
Como essa intuição sensível particulariza o conhecimento, Kant demonstra que uma intuição
sensível também pode ser a priori. É o que ocorre quando se distingue a forma pura da
intuição de todo conteúdo sensível particularizado e, também, de todo o conteúdo do
entendimento. Kant enuncia, pois, uma verdadeira teoria das formas da sensibilidade a priori,
por ele denominada estética transcendental. É uma estética porque é primordialmente uma
teoria da sensibilidade, e é transcendental, pois trata da maneira de acesso do sujeito ao
conhecimento sensível. Essa ciência trata das duas formas puras da intuição sensível, como
princípios do conhecimento a priori: o espaço e o tempo. Na elaboração de sua teoria das
formas da sensibilidade a priori, Kant volta à diferenciação entre sentido externo e sentido
interno. O espaço seria justamente a forma do sentido externo, a forma na qual as sensações,
as afecções dos objetos, seriam recebidas e ordenadas como intuições empíricas de objetos
externos no espaço. O tempo, por sua vez, seria a forma do sentido interno, alinhando as
determinações internas às relações temporais.
5.12. Observou-se que os termos do debate científico acerca do espaço e também do
debate filosófico sobre o tema que predominavam à época de Kant eram ditados pelo teor da
discussão entre Clarke e Leibniz. A querela teórica que se então estabelecia sobre a natureza
do espaço era se o espaço tinha natureza absoluta ou relacional. A teoria que sustentava a
natureza absoluta do espaço, sustentada por Newton e Clarke, afirmava, em síntese, que o
espaço possui uma estrutura própria e homogênea e existe independentemente das coisas.
Concebia-se o espaço, segundo esta teoria, como uma arena ou receptáculo, dentro do qual as
coisas e objetos ocorrem ou estão. O espaço em si, todavia, seria independente de tais objetos.
A teoria dita relacional, sustentada por Leibniz, em contraste, nega que o espaço exista
97
independentemente dos objetos. O espaço não seria mais do que a ordem de relações entre os
objetos, ou melhor, uma propriedade dos objetos. Não haveria, segundo este modelo de
apreensão do fenômeno espacial, necessidade de uma entidade de cunho absoluto acima ou
além das várias configurações da matéria. Não haveria espaço se não existissem coisas ou
objetos. Para ambas as teorias, porém, o espaço é algo que está fora do ser humano.
5.13. A solução que Kant deu à disputa foi original. Na Crítica da Razão Pura, o
espaço é concebido como uma intuição a priori. Quatro argumentos são alinhados na
Exposição Metafísica do Conceito de Espaço, além de um argumento indireto contido na
Exposição Transcendental. O primeiro argumento nega que o espaço possa ser um conceito
empírico abstraído da experiência; o segundo argumento reafirma o passo anterior e
acrescenta que não a representação dos objetos externos supõe a representação do espaço,
mas o próprio espaço é uma representação necessária a priori, e está na base de todas as
intuições externas; o terceiro argumento afirma que o espaço não é um conceito discursivo ou
um conceito universal das relações das coisas em geral, mas uma intuição pura; o quarto
argumento reforça o anterior, dizendo que o espaço não somente não somente não poderia ser
um conceito universal por não ser uma representação composta, mas também porque, além
disso, é representado como uma grandeza infinita dada. Além disso, Kant apresenta uma
prova indireta. Se a geometria é uma ciência que determina sinteticamente a priori as
propriedades do espaço, é preciso que a intuição do espaço seja originariamente uma intuição
pura. Assim é porque de um simples conceito não se pode extrair uma proposição que
ultrapasse o conceito, a menos que se trate de uma intuição que se encontra a priori no sujeito,
antes de toda percepção de um objeto. Assim, a intuição externa unicamente pode residir a
priori no ânimo e preceder a percepção dos objetos se ela fizer parte da natureza do sujeito
enquanto disposição formal de ser afetado por objetos isto é, de receber a intuição, a
98
representação imediata enquanto forma do sentido externo em geral.
5.14. Segundo nossa leitura, conforme afirmado no texto da dissertação, o modelo
kantiano, sem ser relacional ou absoluto, é, de certa maneira, ‘subjetivo’. Ao invés de
localizar o espaço como uma entidade alheia, seja de natureza absoluta ou relativa, Kant aloja
o espaço e sua percepção dentro do homem, em sua operação cognitiva. Assim, estabelece,
conforme os métodos da filosofia transcendental, uma condição de possibilidade para a
percepção dos fenômenos físicos. uma ‘subjetivação’ do espaço, pois sem falar da
condição subjetiva sob a qual podemos obter intuição externa, então a representação do
espaço não significa absolutamente nada. Assim, se é certo que rejeita as concepções
leibnizianas, por incompatíveis com a ciência de seu tempo, também não se pode deixar de
notar que a sua abordagem do espaço tem algo de relativo ou ‘relacional’, pois o sujeito
promove, em certa medida, a ‘coordenação’ das relações entre os objetos segundo seu próprio
ponto de vista cognitivo. Kant não descarta, porém, a noção de espaço absoluto. Ao contrário,
no bojo de uma teoria da razão como sistema direcionado a fins práticos, preocupada com a
fundação das ciências físico-matemáticas, adota-a como uma idéia regulativa, ou seja, de uma
idéia que não corresponde a um conceito, mas que deve servir como uma regra. Ao superar a
dicotomia espaço absoluto / espaço relativo, Kant integra parcela de ambas as noções no
mesmo sistema, recepcionando-as sob o novo paradigma da filosofia transcendental.
5.15. Após explanar a reflexão de Kant sobre o espaço, avançou-se na dissertação,
explorando o papel da herança kantiana no pensamento de Heidegger. A tarefa era rastrear o
fio condutor na argumentação heideggeriana que permitisse identificar o legado de Kant no
que toca à recepção do esquematismo, de transcendência e, especialmente, do a priori.
Heidegger foi, conforme uma determinada linha de leitura e interpretação, examinado como
99
um neokantiano que despertou para a historicidade da metafísica. O filósofo trabalhava dentro
de uma moldura de condições de possibilidade. Essa investigação de problemas de
constituição, de matriz marcadamente kantiana, está presente na apresentação de vários
problemas filosóficos. À semelhança de Kant, o pensador de Meßkirch também trabalha com
um a priori, ou seja, com a noção de estruturas necessárias, mas este a priori não é fixo, ou de
conteúdo lógico e imutável. Ao contrário, ao assumir a radical historicidade da metafísica,
Heidegger formula um a priori radicado na existência: o ser-no-mundo.
5.16. Algumas influências na formação do pensamento de Heidegger foram
apresentadas, para facilitar a compreensão do diálogo que Ser e Tempo estabeleceu com Kant
e proporcionar a compreensão das várias camadas de reflexão que existem no próprio texto de
1927. Entre elas, sobressai a herança kantiana a compor um dos estratos fundamentais de seu
pensamento. Ser e Tempo parece ser o resultado da fusão de três motivos básicos que teriam
impulsionado a obra de Heidegger até 1927: a influência de Aristóteles (a noção de λόγος, a
verdade como desocultamento, ser e verdade, e, também, ser e presença, eis alguns dos
tópicos hauridos do pensador grego), a noção de faticidade histórica da vida humana (obtida
no exame da obra de Dilthey e no exame das vozes do cristianismo primitivo, especialmente
Paulo e Agostinho), e o sentido filosófico da fenomenologia de Husserl. Assim, o diálogo que
se estabelece com Kant ao longo do texto está muitas vezes oculto, devendo ser desvelado.
Trata-se de desenterrar os elementos que permitam compreender a recepção crítica que
noções de origem kantiana recebem na obra de Heidegger. Deste modo, como afirmado, toda
e qualquer pista que levasse à efetivação da chave de leitura mereceu realce, mesmo que
pertencesse aos andaimes e fundações da obra, não ao seu exterior mais evidente.
5.17. Referiu-se também a importância do problema do conhecimento para
100
Heidegger, que buscava superar o dualismo representação e representado. O pensador
procurava desenvolver um espaço no qual se pudesse descrever um cenário em que tal
atividade de conhecimento se torne possível, ou seja, a condição de possibilidade para o
próprio conhecimento. Esse cenário é a analítica existencial em que se baseia a ontologia
fundamental. Há um território transcendental, que se dá no Dasein e que se viabiliza por meio
dos existenciais. Este locus é a condição de possibilidade para o ‘dar-se’ dos fenômenos.
Assim, na teoria heideggeriana do conhecimento, o dualismo entre realismo e idealismo é
superado pelo ‘retroceder’ a um território anterior. uma questão anterior, que é a do ser-
no-mundo prático, anterior mesmo à relação sujeito-objeto. Essa relação sujeito-objeto brota
do próprio ser-no-mundo, que lhe é anterior. Deste modo, a analítica não é uma teoria do
conhecimento tal como Kant a concebia, mas em seu interior estão fundamentos
gnosiológicos referidos a um novo paradigma, o do ser-no-mundo.
5.18. Apresentou-se também um esboço de interpretação da estratégia da formação
dos conceitos da ontologia fundamental. Se os conceitos kantianos foram de alguma maneira
recebidos na obra de Heidegger, é importante apreender a lógica interna que preside à aludida
recepção. Algumas cnicas de formação dos conceitos são identificáveis: os conceitos éticos
são ontologizados e muitos conceitos ontológicos são tornados práticos. O mesmo parece ter
ocorrido com relação à assimilação da obra de Kant, ainda que mediante uma interpretação
larga, hermeneuticamente violenta. um deslocamento semântico nos conceitos, que são
integrados em uma arquitetônica filosófica nova e submetidos a um novo fundamento de
validade, no caso, o ser-no-mundo, mediante uma nova articulação dos conceitos filosóficos
com o respectivo conteúdo, vale dizer, uma nova atribuição de significado e referência.
Heidegger inaugura um novo procedimento semântico, ‘destruindo’ o contexto de referência e
significação do programa crítico kantiano e ‘apropriando’ os signos (conceitos) em uma nova
101
articulação de sentido.
5.19. Há em Heidegger, portanto, uma hermenêutica apropriadora. Os conceitos
ontológicos são antropologizados ou subjetivados, ou seja, levados para o âmbito do Dasein e
do mundo prático, o que ocorre inclusive na questão do espaço. Por sua vez, os conceitos
práticos, notadamente aqueles que dizem respeito à ética, são ontologizados. Assim recebidos,
os conceitos devidamente são integrados na corrente da ontologia fundamental desenvolvida
em Ser e Tempo. Não se está fazendo referência aqui, todavia, à definição de tais termos
segundo a tradição filosófica, pois não se trata de uma ontologia tradicional, mas de uma
ontologia obtida ao cabo de uma nova semântica filosófica, formada a partir da aplicação do
método fenomenológico. Destaca-se aqui o papel metodológico dos indícios formais,
intimamente ligados à fenomenologia transcendental. Como visto, o indício formal é uma
antecipação da explicação fenomenológica, um “chamar a atenção” para os fenômenos da
vida fática, sem o qual não haveria acesso aos fenômenos originários. É uma técnica de
desencobrimento inicial dos fenômenos que se apresentam velados. Os indícios formais estão
ligados à pré-compreensão com que atuamos na vida fática. Destarte, todo construto teórico
realizado e concebido mediante uma operação de descrição fenomenológica está inacabado,
incompleto, por sua própria natureza de ver fenomenológico das estruturas da existência.
5.20. A apropriação e radicalização de Kant se mediante uma recepção do
transcendental e das categorias, transformadas estas em existenciais. Cartesianismo e
psicologismo, superados na obra de Kant, são novamente enfrentados pelo ângulo do Dasein.
Este, o Dasein, noção construída no âmbito do ser-no-mundo (e pelo ser-em) nada mais é do
que um construto para representar o homem. Supera-se o ‘eu transcendental’, um sujeito
lógico contraposto a um ‘eu empírico’, para passar-se aos domínios do mundo prático, no qual
102
o Dasein desde sempre está. Concebe-se o homem enquanto alguém que compreende o ser,
vinculando-o a uma dimensão histórica. Assim, em Kant, a afirmação das categorias a priori
respondia à distinção do universal e do singular. Do universo categorial a priori, os conceitos
passam a ser preenchidos empiricamente, sem cair no psicologismo e a união entre ambos se
faz por meio do esquematismo. A razão recebe esquemas, fundados em um método, pelos
quais ela pode seguir regras de particularização das categorias a priori universais. Para
Heidegger, o homem está expresso no construto Dasein, que pretende ser a superação do ‘eu
empírico’ e do ‘eu transcendental’. O Dasein é justamente o homem do esquema, do
esquematismo, porque é nele que se dá a síntese. Nesse contexto, os existenciais são definidos
como maneiras de, mediante um método, seguir regras de descrição do Dasein enquanto ser-
no-mundo, território em que a diferenciação entre universal e singular se resolve sem cair no
subjetivismo transcendental nem no historicismo empirista. Há, pois, um esboço de superação
da transcendentalidade ligada ao sujeito, na transição rumo a uma transcendentalidade ligada
ao mundo prático. O Dasein se articula em existenciais no mundo prático, e os existenciais
nada mais são do que os esquemas pelos quais o Dasein é interpretado no mundo e se
compreende no mundo, pois nele se singulariza o universal.
5.21. Chegou-se à conclusão, portanto, que o transcendental em Heidegger é referido
ao elemento fundacional, o ser-no-mundo, que remete definitivamente o ser humano ao
mundo prático. Esse ser-no-mundo é concebido como um a priori, radicado na constituição
ontológica do Dasein, ou seja, na estrutura fundamental do homem. É um a priori de novo
cunho, como acima visto, pois combina elementos distintos que, em Kant, seriam definidos ou
como empíricos, ou como propriamente a priori. Como transcendental histórico ou não-
clássico, traduz perfeitamente a faticidade da existência como elemento fundamental. Este
ser-no-mundo é, ele próprio, condição de possibilidade da fenomenalização da atividade ou
103
ocupação do Dasein. Como a questão do ser é levantada a partir da compreensão do ser pelo
Dasein, isso ocorre porque o Dasein está desde sempre no mundo. Tem-se aqui o ponto de
historicização do ser e, por conseguinte, de historicização do transcendental. Salientou-se,
outrossim, o papel fundacional que Heidegger estabelecia para o a priori no estabelecimento
das ontologias “regionais” e das ciências, atestando o quanto permaneceu tributário da
fenomenologia transcendental de Husserl. Destarte, na recepção do transcendental kantiano
por um prisma prático-histórico e no desvelamento da estratégia de recepção dos conceitos
filosóficos existentes no acervo da metafísica vislumbrou-se o fio condutor na argumentação
heideggeriana que permitiu identificar a apropriação da tradição kantiana, ainda que oculta
sob um novo a priori (o ser-no-mundo) e, conseqüentemente, sob uma noção de
transcendental submetida a um novo tratamento semântico.
5.22. Depois de assentadas, em termos singelos, tanto a abordagem kantiana do
espaço quanto a recepção que Heidegger efetuou em relação à herança deixada pela filosofia
crítica, passou-se ao exame das noções de espaço e de espacialidade em Ser e Tempo. Iniciou-
se o percurso pelo conceito de mundo, termo integrante do novo paradigma trazido pelo
pensador, o ser-no-mundo, um novo transcendental na estrutura do pensar e do existir. A
partir desse elemento fundacional é que foram examinados o espaço e também a sua correlata,
a espacialidade do Dasein. Heidegger chega à problemática do mundo como passo necessário
na estrutura de Ser e Tempo. Justamente porque o Dasein está engajado na existência,
vivenciando seu modo de ser na cotidianidade, é que a analítica existencial vai buscar em tal
solo os elementos para a caracterização das estruturas do existir humano, os existenciais, a
que anteriormente se aludiu. Explanando a constituição do ser-no-mundo, Heidegger refaz o
percurso argumentativo para apresentar, no caminho, o conceito de mundo, indispensável à
compreensão do Dasein. Vislumbrar o que significa mundo para Heidegger conduz tanto à
104
apreensão do sentido do ser-no-mundo, estrutura fundamental do Dasein, quanto à percepção
dos conceitos de espaço e de espacialidade, correlatos a ambos, pois se conectam com o
conceito de mundo e, da mesma maneira, derivam da circunstância de que o Daseinestá” no
mundo, ou seja, da própria estrutura existencial do ser-no-mundo.
5.23. Para o exame do tema, expôs-se o método fenomenológico empregado na
analítica existencial. Em Heidegger, o método fenomenológico se transforma, sendo
atravessado pela questão do ser, e suas linhas estão expostas no § de Ser e Tempo. A sua
concepção de fenômeno difere do conceito trabalhado por Kant. Para Heidegger, a noção
kantiana de fenômeno como algo acessível à intuição empírica corresponde ao conceito
vulgar de fenômeno, não ao conceito fenomenológico. Em sentido fenomenológico,
fenômeno é somente o que constitui o ser, e ser é sempre o ser de um ente. Seu conceito
oposto é o de encobrimento; assim, a busca pelos fenômenos é necessária justamente porque
estes, na pelos menos de início e na maioria das vezes, não se dão, não estão simplesmente
acessíveis. Ao lado do conceito de fenômeno, há o conceito de λόγος, concebido como um
deixar ver ou fazer ver a partir daquilo de que trata o discurso. Em razão dessa natureza de
deixar e fazer ver, o λόγος pode, em seu ser, apresentar-se como verdadeiro ou falso.
Verdadeiro, quando servir ao desencobrimento do ente que é tratado no discurso; falso,
quando encobrir, ou seja, propor um ente pelo que ele não é. A partir destes conceitos,
Heidegger constrói o seu conceito de fenomenologia, que difere substancialmente da noção de
fenomenologia tal como delineada por Husserl. Interligando φαινόµενον e λόγος, Heidegger
entende a fenomenologia, no sentido de diretriz formal de pesquisa, como sendo um deixar e
fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo. Tal
atitude metodológica não faz mais que traduzir, no campo de uma argumentação filosófica
voltada para a questão do ser, a máxima fenomenológica às coisas em si mesmas”. Ora, se
105
em sentido fenomenológico, fenômeno é somente o que constitui o ser, e se ser é sempre o ser
de um ente, a fenomenologia, em seu conteúdo, é a ciência do ser dos entes; é, portanto,
ontologia. A fenomenologia é a via de acesso e o modo de verificação para se determinar o
que deve servir como tema da ontologia. Deste modo, enuncia Heidegger, a ontologia é
possível como fenomenologia. O rigor metódico da fenomenologia é especialmente
necessário no exame do ente dotado do privilégio ôntico-ontológico, o ser humano ou, em
termos ontológicos, o Dasein. A fenomenologia de tal ente é, pois, uma ontologia
fundamental, capaz de propor a questão primordial do sentido do ser em geral.
5.24. Transitando ao conceito de mundo em Ser e Tempo, destacamos a formulação
de Heidegger no sentido de que descrever fenomenologicamente o mundo significa mostrar e
fixar numa categoria conceitual o ser dos entes que simplesmente se dão dentro do mundo.
Todavia, nem um retrato ôntico dos entes intramundanos nem a interpretação ontológica do
ser destes entes alcançariam o fenômeno do mundo, pois em ambas as vias de acesso se
pressupõe, de várias maneiras, o mundo. Quando se coloca a questão do mundo, o mundo
subentendido ou pressuposto não é aquele que se põe por qualquer dos modos antes referidos,
mas o que advém da mundanidade do mundo. Mundanidade, para Heidegger, é um conceito
ontológico e significa a estrutura de um momento constitutivo do ser-no-mundo. Esclareceu
assim os diferentes significados da palavra mundo: (a) mundo como conceito ôntico,
indicando a totalidade dos entes que se dão no mundo; (b) mundo como termo ontológico,
significando o ser dos entes intramundanos; (c) novamente em sentido ôntico, mundo é o
contexto “em que” efetivamente o Dasein vive como tal, notadamente o mundo circundante;
(d) mundo designa o conceito existencial-ontológico da mundanidade. Como o mundo é
sempre o mundo do Dasein, a análise deve partir do mundo ambiente, circundante, que rodeia
imediatamente o ser humano. A expressão ‘mundo circundante’ aponta para uma
106
espacialidade, e esse caráter espacial deriva da estrutura da mundanidade, e não o inverso.
5.25. A análise do ser dos entes intramundanos principia, como visto, pelo exame
dos entes das coisas, ou seja, dos entes pré-tematizados e estabelecidos como base pré-
fenomenal para a incursão sobre a mundanidade circundante. As coisas o aqui tomadas em
um sentido distinto da tradição ontologizante (vistas como res ou substância), pois Heidegger
vislumbra tal ente intramundano como instrumento. Em Ser e Tempo, os instrumentos sempre
“existem para”, dentro do todo instrumental a que pertence seu ser. Nessa estrutura de “ser
para”, acha-se sempre uma referência de algo para algo, pois o instrumento sempre
corresponde à sua instrumentalidade a partir da pertinência a outros instrumentos. No uso que
se faz do ente intramundano, moldado pela ocupação, surge a sua instrumentalidade.
Denomina-se disponibilidade intramundana o modo de ser do instrumento em que ele se
revela por si mesmo. Todo instrumento possui esse “ser-em-si”, e a visão puramente teórica
das coisas carece dessa compreensão da disponibilidade intramundana, e a visão característica
que advém do modo não-teórico de lidar é a circunvisão. É o olhar da ocupação cotidiana, que
não se detém diretamente nas ferramentas em si mesmas. É a obra final que sustenta a
totalidade das referências na qual o instrumento vem ao encontro. A própria obra é, na
totalidade referencial em que está inserida, descoberta em seu uso ou manuseio. Assim,
pertence à essência da função de descoberta a possibilidade de desvelar o ente intramundano
evocado na obra; descobri-lo nas referências constitutivas da obra e no uso da circunvisão.
5.26. O mundo ele mesmo não é um ente intramundano. O mundo abre-se na
experiência negativa da ruptura do quadro de referências. A surpresa, a importunidade e a
impertinência mostram o caráter de ‘algo simplesmente existente’ do ente disponível
intramundano, pois, nesses casos, o ente disponível intramundano perde sua disponibilidade
107
intramundana. Nessa perturbação da referência, na impossibilidade do “emprego para”, a
referência se explicita não ontologicamente, mas onticamente, para a circunvisão. Anuncia-
se o mundo. Destarte, o mundo manifesta-se ao Dasein por meio das coisas que estão à mão.
Anunciando-se o mundo por intermédio das relações e conexões entre os entes
intramundanos, a mundanidade se expressa em um sistema de remissões. O mundo não é a
soma dos entes intramundanos, mas o conjunto das relações que se estabelecem entre eles, ou
seja, a conjuntura. Conjuntura é o ser dos entes intramundanos em que cada um deles já,
desde sempre, liberou-se. Todas as referências, porém, encontram no Dasein um fim último.
Deste modo, o fenômeno do mundo é o contexto ‘em quê’, a estrutura da perspectiva em que
o Dasein se refere constitui propriamente a mundanidade do mundo, ou seja, mundo como
articulação de sentido. No jogo de remissões e referências que se estabelece surge uma
totalidade aberta, composta por significações articuladas. Esta totalidade articulada, formada
essencialmente de relações de sentido, é a ‘significância’. A mundanidade do mundo, isto é, a
estrutura ontológica de qualquer mundo, isto constitui a sua ‘significância’.
5.27. A fim de estabelecer o traço distintivo de sua problematização do mundo,
Heidegger critica ferozmente a interpretação cartesiana do mundo. Segundo Heidegger, ao
distinguir res cogitans e res corporea, tomando res corporea como substância, Descartes
identifica a substancialidade com a extensão, fazendo-a o fundamento de todos os outros
atributos. A extensão é fundamental e constitui a própria substância. Para Heidegger, este é o
erro de Descartes. Trata-se, como afirmado, de uma crítica até certo ponto injusta, pois
Descartes não está preocupado com ontologia, e sim com método. Suas preocupações são de
índole metodológica, não ontológica. Para Heidegger, a idéia de mundo proposta por
Descartes, fundada na extensão, não inquire sobre a essência do fenômeno do mundo nem
desvela a sua mundanidade. Ao contrário de Ser e Tempo, que parte da existência concreta, a
108
ontologia cartesiana parte do abstrato, limitando-se ao conhecimento derivado da matemática.
Este conhecimento apreende apenas o mais estável e permanente, recusando, no ser, o que lhe
é fugidio e mutável. Uma tal caracterização do mundo baseada na extensão veda, pois, a
compreensão do mundo com base na ação e na ocupação do Dasein. A crítica, como vimos,
retira Descartes de seu contexto, abstraindo o fato de que sua diretriz de pesquisa é metódica,
não ontológica. Na verdade, Heidegger escolhe o combate com Descartes porque sabe que a
luta será travada em uma arena alheia ao pensamento cartesiano, a arena ontológica. Após
“superar” Descartes de forma desigual, em seu próprio terreno de Ser e Tempo, Heidegger
afirmou uma via distinta de construção dos conceitos de mundo, espaço e espacialidade.
5.28. O Dasein cria possibilidades e, desta maneira, cria a inteligibilidade dos entes,
vale dizer, a inteligibilidade do mundo. Esta inteligibilidade vem do ser do Dasein, aloja-se no
homem, não no ser dos entes intramundanos. É a estrutura das relações e referências trazidas
pelo Dasein que a estrutura ao mundo, e, se é certo que não mundo sem Dasein, o
inverso também é verdadeiro: não Dasein sem mundo. No entrelaçamento das
possibilidades de ação do Dasein, o mundo não está no sujeito como um objeto no interior de
outro. O Dasein é essencialmente projeto, lançado em direção ao mundo, exteriorizando-se.
Enfim, o Dasein e o mundo são as duas faces de uma mesma realidade: o ser-no-mundo.
5.29. O modo de lidar do ente disponível intramundano, no uso cotidiano, possui o
caráter de proximidade; e o ente à-mão” não se estipula medindo distâncias, mas se regula a
partir do uso fundado na circunvisão. O instrumento, assim, tem seu local, que se distingue de
uma simples ocorrência numa posição arbitrária do espaço. O lugar é sempre o ‘aqui’ e ‘lá’
determinados a que pertence um instrumento, não o ‘onde’ de qualquer ente simplesmente
existente. Essa pertinência corresponde ao caráter de instrumento do ente disponível
109
intramundano. Denomina-se região este ‘para onde’ da possível pertinência instrumental, já
visualizado no modo de lidar da ocupação, o qual é informado pela circunvisão. Nunca nos é
dada uma multiplicidade tridimensional de possíveis posições preenchidas por coisas
simplesmente dadas. Essa dimensionalidade do espaço ainda se acha encoberta na
espacialidade do que está à mão. Todos os ‘onde’ são descobertos e interpretados na
circunvisão, pelos meios do modo de lidar cotidiano, e não em uma leitura abstrata de
medições do espaço. Regiões não se formam, pois, a partir de coisas simplesmente dadas em
conjunto, formam-se a partir da circunvisão advinda da ocupação. Essa disponibilidade
intramundana prévia de cada região possui um sentido ainda mais originário que o ser do ente
disponível intramundano, qual seja, o caráter de familiaridade que não causa surpresa. Aliás,
essa familiaridade só se torna visível no modo da surpresa: a região torna-se acessível, muitas
vezes, quando alguma coisa não está em seu local. O espaço que, no ser-no-mundo da
circunvisão, descobre-se como espacialidade do todo instrumental, pertence sempre ao
próprio ente como seu local. A análise de Heidegger visa mostrar que o espaço não é
apreensível independentemente do ente que o ocupa. Assim, o mundo circundante não se
orienta em um espaço previamente dado, mas a sua disponibilidade intramundana articula na
significância o contexto de uma totalidade específica de locais referidos ela pela circunvisão.
Cada mundo sempre descobre a espacialidade do espaço que lhe pertence.
5.30. Ao atribuir espacialidade ao Dasein, Heidegger liga tal atributo ao próprio
modo de ser do Dasein. Em sua essência, a espacialidade do Dasein não é um ente
simplesmente existente; como o Dasein está-no-mundo, a espacialidade daí advinda, para a
ocupação com os entes intramundanos, só pode partir desse ser-em. A espacialidade desse ser-
em apresenta-se com os atributos de des-distanciamento e direcionamento. O des-
distanciamento descobre a distância (proximidade), pois des-distanciar, acima de tudo, é uma
110
aproximação dentro da circunvisão, ou seja, trazer para a proximidade (no sentido de apontar,
ter à mão). no Dasein reside uma tendência essencial de proximidade. No des-
distanciamento, a avaliação da distância não é feita como intervalo, mas em determinações
próprias, compreensíveis para o modo de ser cotidiano do Dasein, pois a aproximação e o des-
distanciamento são sempre modos de ocupação com os entes intramundanos. Os intervalos
objetivos de coisas simplesmente dadas não coincidem com a distância e o estar próximo do
ente disponível intramundano. Tais avaliações e interpretações são, talvez, subjetivas, quando
confrontadas com a natureza objetiva dos intervalos entre as coisas. Trata-se, porém, de uma
subjetividade mais afeita à realidade do mundo, nada tendo a ver com uma arbitrariedade.
Orientando-se pelas distâncias enquanto intervalos medidos, encobre-se a espacialidade
originária do ser-em. É a ocupação guiada pela circunvisão que decide sobre a proximidade e
distância do que está imediatamente à mão. A aproximação se no âmbito da circunvisão, e
não se orienta pela ‘coisa-eu’ dotada de corpo, mas pelo ser-no-mundo da ocupação. Assim,
conforme Heidegger, o Dasein é essencialmente des-distanciamento, e, por isso mesmo,
espacial. O outro caráter do Dasein, em seu ser-em, é o direcionamento. Toda aproximação
toma antecipadamente uma direção dentro de uma região, e a ocupação exercida na
circunvisão é um des-distanciamento direcional. É deste direcionamento que nascem as
direções fixas de esquerda e direita, que se baseia no direcionamento essencial do Dasein,
que, por sua vez, determina-se também pelo ser-no-mundo. Kant, ao tratar do tema da
orientação, ressalta que esta necessita de um ‘princípio subjetivo’, no sentido de um princípio
a priori. Heidegger interpreta esse a priori como o ser-no-mundo, no qual se funda o
direcionamento.
5.31. O Dasein, enquanto ser-no-mundo, desvela um mundo em cada passo, ou seja,
apreende e organiza os entes em uma totalidade articulada de sentido. O ser-no-mundo é
111
espacial, dentro de uma circunvisão, tanto nos modos de des-distanciamento quanto de
direcionamento, porque o que se acha à mão no mundo circundante é passível de ser assim
organizado: organiza-se a pertinência espacial do que está à mão. Esse espaço nada tem a ver
com o conjunto de três dimensões. Nessa abertura imediata, o espaço enquanto continente de
uma ordem métrica permanece ainda velado. Aborda-se a espacialidade em uma perspectiva
fundada no ser-no-mundo, referenciada na região, informada pela circunvisão, no seio de uma
totalidade conjuntural. um ‘dar-espaço’, que consiste na justamente na organização do que
está à mão para a sua espacialidade. Este ‘dar-espaço’ ou ‘arrumar’, como doação preliminar
de sentido, é que descobre os locais determinados pela conjuntura e permite a orientação
factual de cada passo. O espaço não está no sujeito nem o mundo está no espaço. Ao
contrário, para Heidegger o espaço está no mundo na medida em que o ser-no-mundo
constitutivo do Dasein descobriu sempre um espaço, por estar sempre no mundo. É o
Dasein, portanto, que é espacial em sentido originário. Assim, o espaço se apresenta como a
priori; aprioridade significando, nesse contexto, precedência do encontro com o espaço em
cada encontro com o ente disponível intramundano do mundo circundante.
5.32. De acordo com seu ser-no-mundo, o Dasein sempre dispõe previamente, de
forma implícita, de um espaço já descoberto, mas o fato de o espaço se mostrar
essencialmente em um mundo não diz sobre a modalidade de seu ser. O espaço não precisa
ser “vorhanden” nem “zuhanden”; da mesma forma, não possui o modo de ser do Dasein.
Trata-se, assim, de um recuado espaço originário, irredutível a uma localização simples e o
encerrado num sujeito. O ‘dar-espaço’ é, ontologicamente, um rasgo de abertura do Dasein
como ser-no-mundo, uma irrupção. O espaço apresenta-se, pois, ao mesmo tempo, como co-
pertencente ao mundo e ao Dasein e co-constitutivo de ambos. Como afirmamos mais acima,
parece evidente que Heidegger não pretendeu esgotar a temática do espaço e da espacialidade;
112
pretendeu antes iniciar uma liberação da questão sobre o ser do espaço dos conceitos
ontológicos disponíveis no acervo da metafísica ocidental, afastando a tradição cartesiana e
trazendo o espaço para o âmbito do ser-no-mundo e, conseqüentemente, para a esfera do
Dasein.
5.33. Heidegger busca o terreno anterior à dicotomização metafísica entre sujeito e
objeto, i.e., em termos kantianos, a condição de possibilidade de ambas as concepções de
espaço, tanto subjetivo quanto objetivo. Como Kant, Heidegger afirma o caráter humano do
espaço, e o seu papel como condição de possibilidade para a experiência. Ao contrário de
Kant, porém, que considera o espaço como uma característica a priori de nosso aparelho
cognitivo, Heidegger pensa o espaço a partir do elemento fundacional da reflexão de Ser e
Tempo: o ser-no-mundo. Para isso, centra o estudo na espacialidade das atividades pré-
reflexivas do homem concretamente situado, como caminhar e procurar coisas. Fundada no
ser-no-mundo, Heidegger adentra um campo em que predomina nitidamente a espacialidade
da ação do Dasein. Se é rejeitada a teoria do espaço absoluto, há, porém, algo de relacional na
construção de sua teoria do espaço. A espacialidade descreve a relação do Dasein com os
entes intramundanos, não havendo espaço “além” dessa espacialidade do ser-no-mundo.
Como afirmado em Ser e Tempo, nem o Dasein nem os entes existem independentemente uns
dos outros em um espaço “vazio”, mas o Dasein é essencialmente espacial. Não se trata de
psicologismo: (a) porque não pressupõe ‘estados internos’ ou ‘psicológicos’ radicados em
uma ‘mente’ que existiriam independentemente das ações no mundo prático ou
prioritariamente a elas; ao contrário a prioridade é dada às estruturas fundadas no mundo
prático; (b) uma abordagem psicologista não consegue explicar a natureza do espaço, sua
constituição ontológica, pois a exposição da natureza da espacialidade pode ser alcançada
pela busca das condições para essa experiência espacializante: antes de qualquer registro
113
psicologista, há o a priori existente, o ser-no-mundo.
5.34. Quanto à objeção de que seria de caráter anti-científico, hostil à ciência
moderna ou, no mínimo, indiferente às formulações científicas do tempo presente, não se
sustenta. Há, ao contrário, um caráter complementar à ciência. São duas ordens de análise do
espaço: uma qualitativa e existencial, que é a precedente, primordial, estabelecida ao nível das
estruturas do Dasein; a outra, geométrica e abstrata, que é posterior, ao nível das ciências. À
ontologia fundamental, direcionada à questão do ser, incumbe, como visto, estabelecer a base
para as várias ontologias “regionais”, i.e., dos vários segmentos do ser; providenciando, da
mesma forma, uma base filosófica firme para as ciências. A elaboração científica, abstrata,
carece da riqueza analítica ligada à existencialidade, pois escapa – ainda que parcialmente à
esfera do mundo prático, ou seja, o mundo em que habitamos desde sempre, no qual estamos
engajados antes mesmo de qualquer atividade teórica ou filosófica. Não há, pois, nenhuma
incompatibilidade do programa de Ser e Tempo com as pesquisas científicas, pois operam em
planos distintos e, ao mesmo tempo, complementares. São esferas separadas, mas interligadas:
o plano da analítica existencial e da atividade do Dasein, em que os objetos estão “zuhanden”;
e o plano da análise abstrata e científica, mais ‘raso’, em que os objetos estão “vorhanden”.
5.35. Os §§ 22-24 de Ser e Tempo também podem ser visto como a aplicação do
método fenomenológico ao tema do espaço. Heidegger intenta desencobrir o conceito de
espaço, livrando-o do peso da tradição cartesiana, que aprisiona, em sua visão, em uma
concepção matematizante e geometrizante, advinda da concepção de mundo como res
extensa. Heidegger o encaixa em meio à problemática da disponibilidade intramundana e dos
entes simplesmente dados, ou seja, conecta o tema à instrumentalidade. É o Dasein que
“percebe” e “vive” o espaço e a espacialidade, e é por isso que o pensador enuncia a questão
114
do espaço a partir do a priori do ser-no-mundo, constituição ontológica fundamental do
Dasein. É nessa perspectiva que Heidegger estrutura o λόγος “verdadeiro”, articulando o
discurso sobre o espaço a partir do Dasein engajado no mundo, na medida em que tal ente,
realizando a possibilidade do existir, promove uma auto-interpretação espontânea da
existência. Ao fim, a ontologia fenomenológica do espaço e da espacialidade demonstra uma
espacialidade do cuidado. O próprio Heidegger afirma textualmente, ao final de Ser e Tempo,
em seu § 70, recapitulando a explanação inicial sobre o espaço, que o Dasein somente pode
ser espacial como cuidado. O Dasein literalmente introjeta o espaço, fazendo com que sua
espacialidade seja diferente daquela correspondente às demais coisas extensas, não apenas
pela possibilidade de cognição e representação do espaço, mas porque, de forma primordial, o
espaço não está no sujeito nem o mundo está no espaço. Assim, se a solução encontrada por
Heidegger não é inteiramente perfeita ou completa, a resolução das eventuais aporias que
derivam de tal concepção escapa ao objetivo deste trabalho, até porque tais incertezas
derivam, em boa parte, da necessária não-completude dos conceitos formados a partir da
aplicação da teoria dos indícios formais e do método fenomenológico exposto no § 7º de Ser e
Tempo. Da aplicação de ambos emergem, segundo nossa compreensão, tanto a noção de um
espaço fenomenológico quanto de uma espacialidade do cuidado.
5.36. Na reformulação heideggeriana da abordagem da espacialidade, há, por certo, a
‘recepção’ do acervo da metafísica ocidental, que é ‘destruída’, lapidada e novamente
reconstruída, desta vez sob a égide do novo paradigma introduzido por Heidegger. Embora a
polêmica seja travada explicitamente com Descartes, vislumbra-se também o diálogo crítico
com a obra de Kant. Como dito anteriormente, a noção de condição de possibilidade
desempenha um papel interessante no pensamento de Heidegger. Se para Heidegger o mundo
está para além do ente, ele é, no entanto, a sua condição de possibilidade, é a sua condição
115
fenomenalizante. Se o mundo é ele próprio condição de possibilidade da experiência, o espaço
também desempenha papel de base na ocupação do Dasein. Justamente porque a
espacialidade deve ser pensada a partir do Dasein, ela se apresenta como um a priori. Este a
priori encontra-se referido ao ser-no-mundo e à estrutura ontológica da mundanidade,
significando que o espaço está previamente presente em cada encontro com o ente disponível
intramundano no mundo circundante. Assim posta a larga diferença entre Kant e Heidegger,
há, ainda que em uma pequena medida, uma ‘subjetivação’ ou ‘antropologização’ do espaço
em Ser e Tempo. Como em Kant, o espaço ‘está’ no sujeito que conhece, mas à diferença do
pensador de Königberg, este ‘sujeito’ impropriamente falando, o Dasein, é visto como desde
sempre estando-no-mundo. Não se confunde nem um pouco com o espaço como uma intuição
a priori ou como uma forma a priori da sensibilidade da metafísica da subjetividade, sendo,
isso sim, um a priori que se estabelece a partir da ocupação do Dasein no mundo prático.
Assim, a nosso ver, a influência kantiana é evidente, notadamente na formulação de
Heidegger de que o espaço não é objetivo, mas contém, em sua essência, referência ao
homem, ao Dasein. Há aqui a recepção de Kant nos quadros de um novo paradigma: sai o “eu
transcendental”, entra o ser-no-mundo como elemento fundacional na análise do espaço e da
espacialidade do Dasein. O espaço não é objetivo nem subjetivo, podendo ser examinado
no âmbito do mundo prático, do mundo pré-teórico, no qual desde sempre se está.
116
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