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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
O PRINCÍPIO DE VERDADE
(ENSAIO DE RECONSTRUÇÃO FILOSÓFICA
DA TEORIA ARISTOTÉLICA DA VERDADE)
Orientador: Prof. Dr. Nythamar Fernandes de Oliveira
Doutorando: Nazareno Eduardo de Almeida
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2
O PRINCÍPIO DE VERDADE
(ENSAIO DE RECONSTRUÇÃO FILOSÓFICA
DA TEORIA ARISTOTÉLICA DA VERDADE)
NAZARENO EDUARDO DE ALMEIDA
Tese de doutorado apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de doutor em
filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Nythamar
Fernandes de Oliveira, no Programa de Pós-
graduação em Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, junho de 2005
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3
RESUMO
A tese central deste trabalho consiste em reconstruir em bases filosóficas as
linhas gerais da teoria aristotélica da verdade mostrando, a partir da análise do
Livro IV da Metafísica, que esta teoria está fundada naquilo que é chamado nesta
investigação de princípio transcendental de verdade, o qual é constituído pela bi-
implicação modal dos princípios de não-contradição, do terceiro excluído e de
identidade. Para realizar esta reconstrução filosófica, a primeira parte do trabalho
expõe e investiga os problemas fundamentais em torno aos conceitos de verdade e
falsidade a partir da filosofia contemporânea, defendendo que: (1) tais problemas
são condições necessárias para caracterizar qualquer teoria ou teorização
consistente e abrangente da verdade; (2) o problema em torno aos princípios e
critérios de verdade reúne em si todos os demais problemas fundamentais acerca
da verdade; e (3) todas as teorias ou teorizações da verdade se referem
necessariamente à correlação entre pensamento, linguagem e realidade. Na
segunda parte é realizada a reconstrução filosófica da teoria aristotélica da verdade
através de diversas obras do corpus aristotelicum mostrando: (1) que esta teoria
responde aos problemas fundamentais acerca da verdade e da falsidade; (2) que
esta teoria se refere à correlação entre pensamento, linguagem e realidade; e (3)
que toma efetivamente a resposta ao problema em torno aos princípios e critérios
de verdade como fundamento para suas teorizações sobre a verdade e a falsidade.
ABSTRACT
The main thesis of this doctoral dissertation consists in reconstructing the
philososophical grounds for Aristotle’s theory of truth, in light of an analysis of Book IV of
Metaphysics, by arguing for a transcendental principle of truth, constituted by the modal
biconditional of the principles of noncontradiction, excluded middle, and identity. In order
to carry out such a philosophical reconstruction, the first part of the work expounds and
investigates the basic problems pertaining to the concepts of truth and falsehood in light of
contemporary philosophy, by arguing that: (1) such problems are necessary conditions to
characterize any consistent, comprehensive theory of truth; (2) the problem of principle and
criteria of truth comprizes all the other basic problems relating to truth; and (3) every
theory and theorizing about truth necessarily refers back to the correlation between
thought, language, and reality. In the second part, the philosophical reconstruction of
Aristotelian theory of truth is undertaken by resorting to several works from the corpus
aristotelicum so as to show that: (1) this theory attends to the basic problems of truth and
falsehood; (2) this theory refers us back to the correlation between thought, language, and
reality; and (3) it actually addresses the problem of the principles and criteria of truth as the
groundwork for its theorizing about truth and falsehood.
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Nythamar Fernandes de Oliveira que desde muito tem sido para
mim um mestre e conselheiro tanto na filosofia quanto na vida acadêmica. A ele
um agradecimento especial por toda confiança e apoio ao longo deste caminho.
Ao Programa de Pós-graduação em Filosofia que me acolheu, amparou e tratou
sempre com o máximo respeito. Entre seus membros um agradecimento em
especial ao Prof. Dr. Draiton Gonzaga de Souza, por sua perene simpatia e
solicitude, e ao Prof. Dr. Roberto Hoffmeister Pich, pelo apoio moral e bibliográfico
ao longo do mestrado e do doutorado.
Aos amigos Jason, Luciana e André, que sempre estimularam o pensamento a se
tornar mais amplo e ajudaram a vida a se tornar mais leve.
Este trabalho contou com o financiamento do CNPq através de uma bolsa de
doutorado, sem a qual a parte material deste percurso não seria possível.
5
Para Emmanuelli com amor,
pois sem ela este trabalho não teria verdadeiro sentido.
6
LISTA DE SIGNIFICADOS DOS SÍMBOLOS LÓGICOS
“~ ” = símbolo da negação: ‘não’ ou ‘não é o caso que’
“&” = símbolo da conjunção: ‘e’
” = símbolo da disjunção exclusiva: ‘ou’
” = símbolo da implicação: ‘se ... então’
” = símbolo da bi-implicação: ‘se, e somente se’
” = símbolo do quantificador universal: ‘para todo’
” =símbolo do quantificador existencial: ‘existe algum’ ou ‘existe ao menos um’
= símbolo do operador modal de necessidade: ‘é necessário que’ ou
‘necessariamente’
= símbolo do operador modal de possibilidade: ‘é possível que’ ou
‘possivelmente’
7
“Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam
zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam
zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos
tinham toda razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via
um lado das coisas e o outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas
exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao
do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.
Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.”
Bernardo Soares
O livro do desassossego.
    
 
    
“Pensar com sensatez é a virtude suprema, e sabedoria é dizer a verdade
e obrar perscrutando conforme a natureza.”
Heráclito de Éfeso
Aforismo 112
8
SUMÁRIO
Prólogo .......................................................................................................................... p. 11
Introdução geral ........................................................................................................... p. 19
Primeira Parte
A problemática em torno aos
conceitos de verdade e falsidade
Introdução
§ 1 – Os usos dos conceitos de verdade e falsidade e a diferença
entre as teorias e as teorizações da verdade ..........................................................p. 26
§ 2 – A historicidade das teorizações e teorias da verdade
e a problemática da verdade ................................................................................... p. 34
§ 3 – Verdade e falsidade como propriedades da relação
entre pensamento, linguagem e realidade ............................................................ p. 40
Capítulo I
Os problemas sobre os portadores, os sentidos e
a definição da verdade e da falsidade
§ 1 – O problema dos portadores de verdade .......................................................... p. 47
§ 2 – O problema dos sentidos e da definição
da verdade e da falsidade ........................................................................................ p. 53
Capítulo II
O problema acerca dos produtores e da produção de verdade
§ 1 – Introdução: produtores de verdade, portadores de verdade
e o conceito de dependência ontoalética ............................................................... p. 71
§ 2 – Os produtores de verdade e
a hierarquia ontoalética das asseverações ............................................................. p. 81
§ 3 – O paradoxo da auto-referência,
as produções de verdade intercategorial e intracategorial
e o caráter relacional da verdade e da falsidade .................................................. p. 91
§ 4 – O princípio geral dos produtores de verdade
e o problema da anarquia ontológica ................................................................... p. 101
9
Capítulo III
O problema dos princípios e critérios de verdade
§ 1 – Introdução: as definições de princípio e critério de verdade,
a estrutura das asseverações e a hierarquia ontoalética
entre princípios e critérios de verdade ................................................................ p. 110
§ 2 – O aspecto noético dos princípios de verdade
e os critérios noéticos de verdade ......................................................................... p. 133
§ 3 – O aspecto lógico-semântico dos princípios de verdade
e os critérios lógico-semânticos de verdade ........................................................ p. 147
§ 4 – O aspecto ontológico dos princípios de verdade
e os critérios ontológicos de verdade ................................................................... p. 160
§ 5 – Conclusão Geral da Primeira Parte:
O sentido transcendental dos princípios
primários de verdade ..............................................................................................p. 177
Segunda Parte
Ensaio de reconstrução filosófica
da teoria aristotélica da verdade
Prólogo ........................................................................................................................ p. 184
Introdução
O caráter geral da teoria aristotélica da verdade .................................................. p. 186
Capítulo I
Os portadores, os sentidos e a definição
da verdade e da falsidade segundo Aristóteles
§ 1 – Os portadores e os sentidos de verdade e falsidade
segundo Aristóteles ................................................................................................ p. 197
§ 2 – A definição de verdade e falsidade
segundo Aristóteles ................................................................................................ p. 221
Capítulo II
Os produtores e a produção
de verdade segundo Aristóteles
§ 1 – Introdução .......................................................................................................... p. 253
§ 2 – A simultaneidade lógico-semântica da verdade
e a anterioridade ontoalética dos produtores de verdade ................................ p. 258
10
§ 3 – Os sentidos do ser, o ser-verdadeiro e o ser-falso
e as formas de produção de verdade ................................................................... p. 292
Capítulo III
O princípio transcendental de verdade
segundo Aristóteles
Introdução: a hierarquia ontoalética entre os princípios
e os critérios de verdade segundo Aristóteles ....................................................... p. 360
O princípio transcendental de verdade
§ 1 – Introdução: A tese: equivalência entre não-contradição, terceiro excluído
e identidade no princípio transcendental de verdade ....................................... p. 375
§ 2 – Uma polêmica demonstração .......................................................................... p. 384
Conclusão geral .......................................................................................................... p. 420
Referências bibliográficas ......................................................................................... p. 423
11
PRÓLOGO
Amicus philosophorum, sed magis amica veritas.
O horizonte filosófico aberto pela questão acerca da relação entre pensamento,
linguagem e realidade é aquele no qual a presente investigação está imersa. Uma
das perspectivas de abordagem desta questão fundamental, constituída de muitos
aspectos e níveis, é a investigação acerca da estrutura essencial dos sentidos e da
natureza da verdade e falsidade. Qualquer abordagem desta última questão, quer
positiva e categórica, quer negativa e cética, se encontra inexoravelmente ligada
à questão fundamental sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo.
A partir deste fato filosófico pode-se exprimir deste modo o princípio geral que
perpassa o todo da investigação que segue: não é possível discutir e determinar
filosoficamente a relação entre pensamento, linguagem e realidade sem discutir e
determinar, de modo concomitante, a estrutura formal dos vários sentidos de
verdade e falsidade; contudo, e inversamente, não é possível discutir e determinar
tal estrutura sem que tal investigação seja, ao mesmo tempo, uma determinação e
discussão de uma das estruturas fundamentais da relação entre pensamento,
linguagem e realidade.
Esta plurívoca, problemática e multifacetada relação é assumida por esta
investigação como a questão filosófica fundamental pela evidente amplitude
12
daquilo que põe em jogo em sua consideração e investigação. Assim, o eventual
leitor deste texto deve ter em mente durante o percurso da leitura que tanto a
“escolha” de discutir o problema da verdade, quanto de o tratar no contexto das
obras de Aristóteles constituem, em sua unidade, um “meio” de discutir e abordar
esta questão fundamental.
A escolha de Aristóteles para além das idiossincrasias em matéria de gosto,
das peripécias pessoais do autor deste trabalho e da questão fundamental antes
aduzida se justifica por duas razões filosófico-hermenêuticas intimamente
correlacionadas. Em primeiro lugar e de modo mais evidente, pelo fato de se
remeter amiúde a Platão, mas sobretudo a Aristóteles, a instauração e defesa
explícitas daquela que é chamada a teoria clássica da verdade, também chamada
teoria da verdade como correspondência. As diversas concepções acerca da
verdade costumam e podem ser divididas entre as teorias clássicas da verdade,
que são variantes da concepção da verdade como correspondência, e as teorias
não-clássicas da verdade, identificadas geralmente com as concepções coerentistas
e pragmáticas da verdade, sendo ambas as concepções enfrentadas pelas
concepções comumente chamadas deflacionárias da verdade, surgidas durante o
século vinte, sobretudo a partir dos trabalhos de Ramsey e Tarski. A interpretação
de Aristóteles como expoente de uma teoria da verdade como correspondência tem
seu advento explícito com Tomás de Aquino. Deste pensador provém a xima
com que costumeiramente se apresenta tal teoria, a saber: veritas est adequatio
intellectus et rei”, ou seja, “verdade é a adequação de intelecto e coisa”. Conquanto
13
correta, tal interpretação não é ainda, contudo, completa, pois ver-se-á que a teoria
aristotélica da verdade comporta elementos das chamadas teorias não-clássicas e
mesmo das concepções deflacionárias da verdade. Não obstante, é importante no
momento perceber com estas indicações o papel fundador que a teoria da verdade
posta em obra por Aristóteles desempenha na história das teorizações sobre a
natureza da verdade e, assim, porque as teorizações deste pensador foram
tomadas como objeto desta investigação.
Uma segunda razão para a escolha de Aristóteles, motivo de caráter mais
hermenêutico do que filosófico, consiste no fato de que, malgrado esta recorrente
remissão, não até o momento nenhum trabalho de teor sistemático e filosófico
acerca da teoria aristotélica da verdade. Os trabalhos à disposição acerca do tema
estão marcados ou por uma pressuposição geral e tácita de evidência ou por um
caráter especializado e circunscrito a alguns textos e passagens, bem como por
interesses hermenêuticos e ou filosóficos demasiadamente exógenos ao tema
mesmo; em ambos os casos, porém, marcados pelos traços da parcialidade. Um tal
fato, do ponto de vista estritamente hermenêutico, constitui algo surpreendente,
dada a recorrência com que o estagirita é citado nas referências à concepção
clássica da verdade, quer por parte dos filósofos, quer por parte dos exegetas.
Posta tal situação hermenêutica, é preciso que a investigação proposta neste
trabalho adote, tanto quanto possível, uma atitude que pode ser chamada de
‘ceticismo metodológico’, ou seja, não tomar como ponto de partida evidente
14
nenhuma das opiniões correntes acerca do tema, tendo em vista seu caráter não
sistemático e muitas vezes até mesmo acrítico.
Esta última observação, porém, contrasta com um fato textual que deve ser
posto à luz de saída: dado que não um único tratado do mestre peripatético
estritamente dedicado ao tema, bem antes, este se encontra espalhado ao longo de
vários tratados sobre diversos temas, é preciso que a unidade estrutural e
argumentativa da teoria aristotélica da verdade seja re-constituída pela
investigação mesma. Tal é o sentido do subtítulo deste trabalho, a saber: ‘ensaio de
reconstrução filosófica da teoria aristotélica da verdade’. Por um lado, o sentido
filosófico de tal reconstrução provém justamente de sua motivação em contribuir, a
partir da história da filosofia, na investigação de um dos aspectos fundamentais da
relação entre pensamento, linguagem e realidade. Por outro lado, o sentido
filosófico de tal reconstrução é exigido pelo tema mesmo em questão, posto que
sua unidade estrutural pode ser reconstituída a partir de um ponto de vista que
ultrapassa o nível da análise hermenêutica específica, necessitando lançar mão de
teses gerais capazes de porem à luz a forma unitária do tema mesmo. Certamente,
há nisto o risco de não fidelidade à letra e ao espírito do pensador macedônio. Este
risco pode ser minimizado se estas teses filosóficas gerais, que o capazes de
“emoldurar” o tema, forem hauridas desde o espírito e a letra deste pensador.
Contudo, como todo investigador honesto sabe, é impossível, mesmo ao nível da
pura exegese e tradução (se é que há um tal nível), que o intérprete não tenha já um
conjunto de pressupostos (particulares e históricos) mais ou menos explícitos, os
15
quais tanto motivam quanto afetam o sentido da interpretação e do que é
interpretado. Uma tal tensão inevitável entre “tradução” e traição”, entre
interpretação e devaneio, só pode ser avaliada pelos benefícios e prejuízos que
uma interpretação em particular pode trazer ao que é interpretado. No caso do
tema em questão e sua situação textual, a unificação do mesmo a partir de um
ponto de vista parcialmente exógeno à letra do pensador traz um benefício filosófico
muito maior do que se a investigação simplesmente justapusesse análises dos
textos e contextos onde o estagirita trata dos e opera com os conceitos de verdade e
falsidade.
Ligado em parte a esta observação está o fato de haver dois horizontes
problemáticos abertos na época atual a todo aquele que enfrenta a questão acerca
da verdade e da falsidade. O primeiro deles diz respeito à relação que intercorre
entre os conceitos de verdade e significado. Todas as teorizações ou teorias acerca
da natureza da verdade deparam-se com a indissociabilidade entre estes conceitos,
a tal ponto que o limite preciso entre teorias da verdade e do significado parece ser
dificilmente demarcável, ou seja, as teorias da verdade são marcadas por escolhas
teóricas acerca da natureza da significação e as teorias do significado acabam tendo
que prestar contas acerca da concepção de verdade com que operam. O debate
atual acerca das relações entre verdade e significado irrompe explicitamente com
Frege dentro da tradição lógico-analítica e com Husserl (em dívida e em polêmica
também com Frege) dentro da tradição fenomenológico-hermenêutica,
16
desdobrando-se ainda hoje como uma espécie de “luta de gigantes acerca da
verdade”.
O outro horizonte problemático comum a ambas as tendências citadas (mas
como o anterior desenvolvido de modos distintos e nem sempre amistosos) é o da
relação entre verdade e temporalidade. Tal debate coloca questões como aquela
acerca do sentido das mudanças históricas dos conceitos e teorias científicas gerais,
questões acerca de como verdades atemporais como aquelas da matemática são
conhecidas ou produzidas por nós no tempo histórico, questões acerca da
temporalidade própria aos conceitos lógicos e modais, questões de como nossos
esquemas conceituais historicamente constituídos interferem e modelam nossa
compreensão dos fatos em geral, além de várias outras tão problemáticas quanto
estas.
A menção destes dois horizontes problemáticos é feita aqui para deixar claros
aqueles pressupostos históricos antes indicados que compõem, na perspectiva
desta investigação, o pano de fundo de qualquer investigação contemporânea
acerca da verdade e que, por isso, estarão necessária e implicitamente implicados
na análise reconstrutiva da teoria aristotélica da verdade. Assim, a análise
reconstrutiva de tal teoria posta em obra nesta investigação estará marcada por
estes dois horizontes problemáticos e mostrará que a discussão e determinação dos
mesmos, o obstante a distância histórica, pode se beneficiar com uma
investigação sistemática da teoria aristotélica da verdade, o que de nenhum modo
significa uma avaliação ou comparação anacrônica de temas e discussões próprios
17
à época atual com o pensamento do filósofo macedônio ou uma tentativa,
igualmente anacrônica, de “atualizar” ou “reabilitar” a concepção aristotélica da
verdade. A história das idéias e conceitos filosóficos o é nem linear e
progressiva, no sentido de que as teorias posteriores no tempo são necessariamente
melhores do que as anteriores, nem circular e “perene”, no sentido de que os temas
fundamentais invariavelmente se repetem em cada época. A história das idéias e
conceitos filosóficos é essencialmente complexa e problemática, no sentido de que
qualquer que seja a estrutura das relações históricas que intercorrem entre as
diferentes teorias, temas, esquemas conceituais e épocas, já sempre é um problema
filosófico-hermenêutico aberto a um debate que, feliz ou infelizmente, não possui
um critério último de correção ou incorreção para além das decisões filosóficas
mesmas que instanciam e analisam tal estrutura. Em suma, citando um truísmo
nem sempre levado tão a sério, a história da filosofia é um problema filosófico
(implícita ou explicitamente) para e dentro de qualquer análise filosófica. Mais um
motivo pelo qual o ceticismo metodológico antes mencionado é bem vindo
também no que diz respeito à relação entre horizontes problemáticos mencionados
e a teoria aristotélica da verdade tal como será exposta.
Uma última observação de teor geral. Parece natural a qualquer neófito acerca
do tema da verdade, ao se deparar com a multiplicidade de perspectivas de
abordagem do tema, perguntar-se: “Afinal, dentre todas estas teorizações acerca da
verdade, qual é a verdadeira ou senão a mais verdadeira?”. Esta pergunta, só
aparentemente ingênua, foi feita implicitamente já pelos céticos antigos e levou
18
Frege a considerar que qualquer análise dos conceitos de verdade e falsidade está
fadada ao fracasso lógico da circularidade, sendo necessário considerar tais
conceitos como primitivos, ou seja, o-analisáveis e a partir dos quais
(correlacionados com os conceitos de sentido e referência) se realizam todas as
análises lógico-lingüísticas. Como quer que se resolva tal pergunta, ela deverá ficar
em suspenso nas páginas que seguem para que se possa reconstituir a teoria
aristotélica da verdade e, a partir desta reconstituição, o eventual leitor possa
julgar por si mesmo se tal teoria, no modo como foi reconstruída, tem alguma força
e relevância dentro do vasto conjunto de teorias e teorizações sobre a verdade
realizadas pelos filósofos ao longo da história.
19
INTRODUÇÃO GERAL
O presente trabalho consiste em uma investigação que pretende reconstruir
filosoficamente as linhas fundamentais e gerais da teoria da verdade de
Aristóteles. Tal reconstrução não é exaustiva no sentido de analisar todos os
contextos das obras do estagirita direta ou indiretamente ligados à discussão dos
conceitos de verdade e falsidade, mas procura tão somente reconstituir – dentro de
uma perspectiva filosófica e especulativa apropriada e de um interesse analítico e
hermenêutico rigoroso as linhas fundamentais do que se pode chamar de teoria
aristotélica da verdade, sem, no entanto, apelar para as idéias comuns e pré-
conceitos historiográficos vigentes sobre a teoria da verdade de Aristóteles, tidos
no mais das vezes como verdadeiros e evidentes. Esta atitude é necessária pelo fato
de que não existe ao momento uma investigação suficientemente sistemática e
filosófica sobre esta teoria, mas apenas análises interpretativas parciais e em
diversos pontos conflitantes devido às épocas, tradições e perspectivas filosóficas
dentro das quais se inserem e se desenvolvem. Por conta desta situação filosófica e
hermenêutica das interpretações existentes sobre a teoria aristotélica da verdade,
realiza-se inicialmente uma discussão dos problemas fundamentais em torno aos
conceitos de verdade e falsidade. Tal discussão não possui nem um caráter
exegético nem exaustivo, bem antes procura caracterizar e delimitar analítica e
especulativamente a problemática em torno aos conceitos de verdade e falsidade,
tendo por base as discussões contemporâneas sobre estes conceitos, mas o se
20
restringindo às mesmas, de modo a indicar e estruturar sumariamente as
condições necessárias e suficientes para uma teoria da verdade, condições
pensadas como aqueles problemas filosóficos que, na perspectiva desta
investigação, uma teoria ou teorização da verdade deveria responder, e, no caso
específico deste trabalho, que a teoria da verdade aristotélica deve resolver. Esta
discussão não pretende refletir nenhuma teoria ou teorização existente sobre a
verdade e a falsidade, mas refletir tanto quanto possível a problemática mesma em
torno a estes conceitos.
De um lado, esta caracterização analítica e especulativa da problemática da
verdade está estruturada segundo a tese filosófica de que os problemas
fundamentais em torno aos conceitos de verdade e falsidade colocam
necessariamente em jogo a questão fundamental sobre a relação entre pensamento,
linguagem e realidade. Por isso, na perspectiva da presente investigação, defende-
se que as teorias e ou teorizações sobre a natureza da verdade e da falsidade,
inclusive as teorizações postas em obra por Aristóteles, estão sempre
inexoravelmente ligadas a esta questão filosófica fundamental.
De outro lado, porém, a intenção de tal discussão analítica e especulativa da
problemática da verdade já pressupõe, está marcada e tem em vista a análise
reconstrutiva dos temas, dos problemas e dos esquemas conceituais postos em jogo
por Aristóteles nos contextos em que discute e determina os conceitos de verdade e
falsidade, mas é anteposta à análise interpretativa mesma dos textos do filósofo
macedônio para que fiquem de antemão e inequivocamente claros os seguintes
21
aspectos: 1) a perspectiva filosófica da investigação; 2) o instrumental teórico
utilizado; 3) as estratégias metodológicas de análise do problema e 4) os esquemas
conceituais operados na reconstrução filosófica dos diversos contextos em que o
estagirita discute e determina os conceitos de verdade e falsidade de modo a
reconstituí-los dentro de uma teoria da verdade consistente e coerente.
A tese central desta investigação consiste em defender que as teorizações
aristotélicas sobre a verdade e a falsidade, espalhadas e dispersas ao longo de
diversas de suas obras, estão em última instância fundadas e podem ser unificadas
através da discussão dos princípios e critérios de verdade universais e necessários
para todas as asseverações possíveis. Tais princípios são discutidos e defendidos
em diversos níveis e aspectos pelo filósofo na Metafísica (Livros III-IV, XI), e foram
denominados pela tradição posterior como princípios de não-contradição, do
terceiro excluído e de identidade. O escopo central desta tese consiste na defesa de
uma bi-implicação necessária (modal) entre estes três princípios, ou seja, consiste
argumentar que Aristóteles propõe e defende, sobretudo no Livro IV da Metafísica,
a bi-implicação necessária e simultânea destes três princípios e não, como pensa a
tradição interpretativa corrente, que o estagirita defenderia uma anterioridade do
princípio de não-contradição em relação aos princípios do terceiro excluído e de
identidade. Assim, defende-se que estes três princípios são extensional e
intensionalmente equivalentes, formando, portanto, um único princípio de caráter
modal e complexo para todas as asseverações possíveis, aquilo que se pode chamar
de princípio transcendental de verdade, cujo caráter transcendental está no fato de
22
que sua verdade deve fundar (justificar e verificar) todos os demais sentidos do
ser-verdadeiro no pensamento, na linguagem e na realidade e, sobretudo, nas
asseverações, as quais sempre põem em correlação estes três âmbitos. O título
deste trabalho expressa justamente a defesa da existência de um tal princípio
complexo e modal no Livro IV da Metafísica de Aristóteles e seu caráter fundante e
unificante para a possível teoria da verdade aristotélica.
O texto está dividido em duas partes. A primeira parte é dedicada à
investigação dos problemas fundamentais em torno aos conceitos de verdade e
falsidade e sua estrutura conceitual enquanto condições necessárias para uma
caracterização das teorias ou teorizações sobre a verdade. Esta parte se subdivide
em uma introdução e três capítulos. Na introdução são explicitados, de modo
sumário, (a) a diferença entre teorias e teorizações da verdade e da falsidade, (b) a
historicidade desta diferenciação e necessidade de uma caracterização geral da
problemática filosófica em torno aos conceitos de verdade e falsidade e (c) o caráter
peculiar destes conceitos fundamentais. No primeiro capítulo são discutidos,
respectivamente, os problemas acerca dos portadores de verdade e acerca dos
sentidos e da definição de verdade e falsidade. No segundo capítulo, investiga-se o
problema acerca dos produtores de verdade e da produção de verdade através do
conceito de dependência ontoalética, dividindo dois tipos gerais de relação de
dependência ontoalética na produção de verdade: a produção de verdade intra-
categorial e a produção de verdade inter-categorial. Por último, defende-se o
princípio geral que todo portador de verdade possui algum produtor de verdade.
23
No terceiro e mais longo capítulo, investiga-se o problema dos princípios e
critérios de verdade das asseverações em geral enquanto problema mais
fundamental acerca da verdade e da falsidade, sendo o mais fundamental por
englobar em si todos os problemas fundamentais anteriores. Discute-se
respectivamente os aspectos noético, lógico-semântico e ontológico dos princípios
e critérios de verdade e se conclui o capítulo com uma breve indicação do caráter
transcendental dos princípios primários de verdade.
A segunda parte do trabalho es inteiramente dedicada à análise da teoria
aristotélica da verdade a partir da perspectiva geral e dos esquemas conceituais
elaborados na caracterização dos problemas fundamentais em torno aos conceitos
de verdade e falsidade, mostrando como Aristóteles os resolve em suas obras. Esta
parte está dividida em uma introdução e três capítulos. Na introdução, discute-se
sumariamente o “espírito” das teorizações da verdade realizadas por Aristóteles.
No primeiro capítulo, a investigação mostra como o filósofo macedônio responde
aos problemas acerca dos portadores, dos sentidos e da definição de verdade. No
segundo e mais extenso capítulo, mostra-se como o estagirita determina os
produtores de verdade e os tipos de produção de verdade. No terceiro capítulo,
inicia-se com uma caracterização sumária dos princípios e critérios de verdade
segundo Aristóteles, passando-se então à investigação e determinação do princípio
transcendental de verdade a partir da análise do Livro IV da Metafísica.
Uma última palavra acerca do método. A questão do método é vital para toda
investigação filosófica, quer trate diretamente de uma questão filosófica, quer trate
24
de uma questão filosófica a partir de um autor ou de um conjunto de autores. Mais
do que um conjunto de preceitos fixos, o método em filosofia consiste em uma
atitude de pensamento e num modo de investigar que pode, inclusive, concluir
com a aporia, malgrado toda vontade e necessidade de verdade inerente aos seres
humanos e, dentre os seres humanos, sobretudo aos filósofos. A perspectiva deste
trabalho, como foi indicado antes, parte de uma atitude metodológica cética.
Cético significa aqui: colocar a coisa mesma em questão através de procedimentos
argumentativos e expositivos, sem tomar alguma posição teórica prévia como mais
adequada ou evidente nem excluir outras possibilidades de pensamento e
compreensão. O único “pré-conceito” adotado foi o de não recorrer tanto quanto
possível em uma investigação sobre a história da filosofia e sobre um autor como
Aristóteles a nenhum “argumento” de autoridade. Mais do que uma postura
destrutiva, a atitude cética constitui (ao menos na perspectiva desta investigação)
um requisito básico da filosofia e do pensamento filosófico. Talvez ninguém tenha
amado mais a verdade do que os “céticos”, eminentes ou anônimos, prolixos ou
lacônicos. Cético, porém, não é apenas aquele que se declara como tal, mas todo
aquele que faz de seu modo de vida uma experiência “radical” de pensamento e
procura a verdade que é possível aos seres humanos no curto espaço de tempo de
uma individualidade. Quanto ao recorrente uso da lógica nas análises contidas
neste trabalho, deve-se tomá-lo no espírito aristotélico como um valioso
instrumento para procurar dizer a verdade e se fazer entender para além da natural
e inevitável equivocidade do pensamento, da linguagem e mesmo do mundo.
25
PRIMEIRA PARTE:
A PROBLEMÁTICA EM TORNO
AOS CONCEITOS DE VERDADE E FALSIDADE
26
INTRODUÇÃO
§ 1 – Os usos dos conceitos de verdade e falsidade e a diferença entre
as teorias e as teorizações da verdade
Usa-se muitas vezes no cotidiano as noções de verdade e falsidade com
nuances de sentido diversas e para muitos tipos de acontecimentos, tais como
enunciados, discursos, narrativas, pensamentos, imagens mentais, e até mesmo
para coisas, artefatos, ações, pessoas, percepções, etc. Quer no domínio técnico da
ciência avançada, quer no domínio problemático da filosofia, quer ainda no falar e
pensar cotidianos, opera-se com as noções de verdade e falsidade, seja de modo
literal e rigoroso, seja de modo metafórico e ambíguo. Isso mostra que a questão e
a tarefa filosóficas de delimitar, analisar e estruturar os sentidos, bem como
fornecer uma definição inequívoca dos conceitos de verdade e falsidade provém de
sua intermitente presença no modo de ser cotidiano das pessoas, comunidades,
culturas e épocas, tanto no que diz respeito à relação dos seres humanos consigo
mesmos, quanto em sua relação com os demais e com o mundo que os cerca e no
qual estão imersos. Devido à esta presença, importância e abrangência no modo de
ser cotidiano dos seres humanos, é comum associar aos conceitos de verdade e
falsidade outras noções que contextualizam e circunscrevem as nuances de sentido
com que cada vez se operam estes conceitos, noções tais como certeza, coerência,
evidência, autenticidade, realidade, etc., assim como suas negações. Estas e outras
27
noções são associadas aos conceitos de verdade e falsidade não apenas porque
tornam mais claro o sentido com que são empregados e as pretensões que se tem
ao instar estes conceitos, mas também, senão sobretudo, porque são os conceitos de
verdade e falsidade que fundamentam, legitimam e tornam compreensível o
sentido de tais noções. Pode-se dizer que os conceitos de verdade e falsidade são
histórica e existencialmente fundamentais na cultura em geral de todos os seres
humanos.
Dentre as formas da cultura, porém, duas em especial se preocupam, do modo
próprio a cada uma, com o sentido e a definição da verdade e da falsidade: são elas
a filosofia e as ciências. Cada ciência desenvolve seus próprios critérios e métodos
de verificação, critérios e métodos que concedem a determinados procedimentos e
discursos a ela pertencentes ou associados o estatuto de verdadeiros ou falsos no
que tange aos objetos e objetivos próprios à investigação de cada ciência. Dentre as
ciências, contudo, é na lógica matemática, a cujo espantoso desenvolvimento se
continua a assistir, que as noções de verdade e falsidade desempenham um papel
tão fundamental quanto o papel que a lógica como um todo desempenha hoje na
arquitetura das ciências. Não obstante esta presença inevitável em todas as
ciências, pela própria estrutura e finalidade das mesmas, os conceitos de verdade e
falsidade estão aí sempre contextualizados e operados nos limites de validade
28
dos princípios, critérios e métodos particulares de cada ciência, não se excetuando
desta “parcialidade” nem mesmo a lógica matemática enquanto ciência
1
.
Assim, tanto no mundo cotidiano quanto na comunidade científica, os
problemas com os conceitos de verdade e falsidade, quando surgem, são, de modo
geral, referentes à verdade ou falsidade de algum enunciado, discurso,
pensamento, ato ou mesmo de alguma coisa ou pessoa, ou seja, são problemas que
demandam soluções empíricas, pragmáticas e localizadas. Porém, quando se passa
ao campo da atitude filosófica tudo que diz respeito à verdade e à falsidade se
torna problemático porque não se trata mais de decidir quanto à verdade ou
falsidade de algo ou alguém, mas de encontrar uma definição e explicação geral
sobre a própria natureza da verdade e da falsidade. Por isso o questionamento e a
investigação dos sentidos e da definição geral dos conceitos de verdade e falsidade,
independente de seus âmbitos epistêmico e pragmático de circunscrição, é tarefa
própria à filosofia e ao filósofo. E efetivamente, desde o início, os filósofos tanto
pressupuseram, investigaram e operaram com os conceitos de verdade e falsidade,
quanto levantaram problemas em torno a eles. No entanto, tal proximidade
1
É preciso lembrar que os limites entre filosofia da lógica e lógica matemática como ciência são
difíceis de se encontrar (supondo-se possível e necessário encontrá-los). A filosofia da lógica e
também a filosofia analítica de espírito lógico têm investigado a questão pelo sentido em geral da
verdade e da falsidade. No entanto, não se pode confundir o desenvolvimento técnico, a operação e
aplicação da lógica a problemas específicos da matemática, da linguagem, das ciências e da
tecnologia com a investigação filosófica dos conceitos de verdade falsidade a partir e através de
instrumentos conceituais da lógica matemática. Como diz Kripke, “não existe substituto
matemático para a filosofia”. Para uma discussão desta questão, veja-se, de W. v. O. Quine,
Philosophy of logic. Cambrigde: Harvard UP, edição, 1986, cap. 7, pp. 95 ss. Veja-se também, de
Newton C. A. da Costa, Ensaio sobre os fundamentos da lógica. São Paulo: Husitec, 1994, 2ª edição, esp.
cap. 1, §§ 2-3.
29
provavelmente fez com que, por séculos a fio, a parte” da filosofia
2
que investiga
a questão pelo sentido em geral dos conceitos de verdade e falsidade se mantivesse
inominada. Foi no início do século XX que se começou a falar, identificar e
constituir explicitamente o que hoje é comum chamar de ‘teorias da verdade’, cada
uma das quais entendida como um conjunto de teses, análises e argumentações
que defendem alguma posição filosófica determinada acerca da natureza e do
sentido geral dos conceitos de verdade e falsidade.
Há nos dias atuais uma literatura vasta e em franca expansão sobre os conceitos
de verdade e falsidade; de um lado, por parte dos filósofos que propõem teorias da
verdade ou apresentam críticas quer a alguma teoria específica, quer à própria
possibilidade de qualquer teoria da verdade, e, de outro lado, por parte dos
intérpretes que apresentam e discutem estas teorias. Não é nem necessário nem
oportuno aos interesses desta investigação fazer uma listagem monótona e
enfadonha das principais teorias da verdade hoje em discussão. Diversas obras
introdutórias e críticas, bem como os textos fundamentais que expõem estas
teorias, estão disponíveis. O que importa aqui, portanto, não é fazer um apanhado
historiográfico ou crítico das atuais posições filosóficas acerca da verdade, mas
esclarecer filosoficamente os problemas fundamentais em torno aos conceitos de
verdade e falsidade e, assim, determinar a estrutura conceitual essencial que está
em jogo na noção geral de ‘teoria da verdade’ ou de teorização da verdade’ e, a
partir disso, compreender em que sentido estas noções contemporâneas podem
2
Desconsiderando aqui os problemas, a possibilidade e os critérios (muitas vezes arbitrários,
contingentes e ambíguos) de delimitação e distinção das áreas, temas, épocas e escolas da filosofia.
30
servir como um instrumento metodológico com poder retroativo de interpretação e
sistematização das teorizações acerca da verdade e da falsidade realizadas na
história da filosofia anterior, no caso específico desta investigação as teorizações
encontradas no corpus aristotelicum acerca da verdade e da falsidade.
A importância metodológica e filosófica do debate contemporâneo acerca da
verdade, levado a cabo nas e a partir das atuais teorias da verdade, consiste
precisamente em permitir circunscrever, estabelecer e identificar a fortiori os
problemas fundamentais em torno aos conceitos de verdade e falsidade. Esta
circunscrição e focalização da problemática filosófica específica a estes conceitos
abre uma perspectiva de investigação mais clara sobre as teorizações que os
filósofos, ao longo da história da filosofia, realizaram acerca dos conceitos de
verdade e falsidade, mesmo que estas teorizações não tenham nem recebido pelos
seus autores a alcunha atual de ‘teoria da verdade’, nem tenham estes conceitos
recebido um tratamento direto e unitário tal como hoje se espera de uma teoria da
verdade. Assim como, por exemplo, uma filosofia ou teoria da arte em Platão,
malgrado tal teoria tenha que ser reconstruída pelos intérpretes após o século XIX
através das teorizações sobre a arte e o belo presentes nos textos do filósofo da
Academia, assim também é possível reconstruir a partir de nossa época aquilo que
se poderia chamar de ‘teoria platônica da verdade’ através das teorizações deste
conceito encontradas nos textos deste pensador
3
.
3
Blake E. Hestir argumenta em seu A “conception” of truth in Plato’s Sophist(In Journal of the
History of Philosophy, vol. 41, 1, 2003, pp. 1-24, esp. pp. 13 ss) contra a possibilidade de se poder
visualizar e delinear uma teoria da verdade em Platão e mesmo em Aristóteles. Não poderia aqui
31
Obviamente, toda teoria da verdade é constituída por um conjunto mais ou
menos coerente de teorizações sobre a natureza e o sentido geral da verdade e da
falsidade, o que mostra que a distinção entre teorias e teorizações da verdade não
está propriamente nos temas e problemas essenciais a ambas, mas na forma de
exposição e argumentação, ou seja, na estrutura de organização das teses e suas
defesas. No entanto, é preciso frisar que nem toda teorização acerca dos conceitos
de verdade e falsidade pode assumir a forma de uma teoria da verdade, sendo um
exemplo claro disto muitas das atuais concepções deflacionárias da verdade que
procuram solapar qualquer possibilidade de se construir uma teoria da verdade,
ou ainda, na antiguidade, as teorizações de Górgias e dos céticos pirrônicos.
É possível perceber a partir disso que a distinção entre teorias da verdade e
teorizações sobre a verdade é importante tanto para que não se cometam
anacronismos hermenêuticos nem se façam pressuposições interpretativas
ambíguas, quanto para que se compreenda o caráter específico desta investigação,
que consiste justamente em uma reconstituição da teoria da verdade de Aristóteles
através dos textos e contextos onde o estagirita opera ou discute diretamente os
conceitos de verdade e falsidade, ou seja, a partir das teorizações sobre a verdade e
a falsidade postas em obra pelo mestre do Liceu. Assim, apesar de se dever
reconhecer tal distinção, toma-se como pressuposto geral neste trabalho que toda
teorização sobre a natureza e o sentido geral dos conceitos de verdade e falsidade
discutir tal opinião, certamente bem argumentada, mas demasiado restritiva quanto ao que pode
ser considerado como uma teoria da verdade. Para uma análise detalhada dos conceitos de verdade
e falsidade nas obras de Platão, veja-se o extenso trabalho de Jan Szaif, Platons Begriff der Wahrheit.
Munique: Verlag Karl Albert, 1998 (1993).
32
realizada por qualquer filósofo em qualquer época, mesmo se textualmente
fragmentada, possui a forma latente de uma teoria da verdade desde que preencha
ou possa responder a alguns dos problemas fundamentais acerca da verdade e da
falsidade que serão discutidos abaixo. A partir deste pressuposto, pode-se
reconstituir e discutir uma ‘teoria cartesiana da verdade’, uma teoria kantiana da
verdade’, uma ‘teoria tomista da verdade’, etc., e pode-se até mesmo, no limite
desta distinção, falar de uma ‘teoria fregeana da verdade’ ou de uma ‘teoria
heideggeriana da verdade’, malgrado a suspeita que ambos os autores mantêm em
relação à possibilidade de qualquer teoria deste tipo
4
. Não obstante resultar desta
distinção uma multiplicidade de teorias da verdade, todas elas podem ser e
efetivamente são agrupadas e classificadas de diferentes modos, conforme
compartilhem ou não pressupostos, noções, teses, argumentos, questões, análises e
soluções acerca dos conceitos de verdadeiro e falso, evidenciando-se que aquilo
que genericamente chamamos de ‘teorias da verdade’ não é apenas uma
classificação de cunho historiográfico, mas uma perspectiva e uma problemática
filosóficas com uma estrutura conceitual, senão “objetiva”, ao menos identificável.
A distinção entre teorizações e teorias da verdade, porém, é útil para que não se
perca de vista o tratamento peculiar e a contribuição própria a cada filósofo no que
diz respeito à elucidação e mesmo constituição dos sentidos próprios aos conceitos
4
Sobre o ceticismo de Frege a respeito da possibilidade de uma teoria da verdade, veja-se, de Scott
Soames, Understanding truth. Nova Iorque: Oxford UP, 1999, pp. 20-29. Sobre as teorizações de
Frege acerca da verdade veja-se, de P. Yourgrau, “Frege on truth and reference” in Notre Dame
Journal of Formal Logic, vol. 21, 8, 1987, pp. 132-138. Sobre as teorizações de Heidegger acerca da
verdade, veja-se, de Ernildo Stein, Seminário sobre a verdade. Petrópolis: Vozes, 1991.
33
de verdade e falsidade em determinada época, tradição e cultura. Uma tal
“individuação” e instanciação da noção de teoria da verdade permite que se possa
seguir e reconhecer os marcos históricos e teses fundamentais que constituem a
compreensão filosófica geral do esquema conceitual pressuposto e implicado nos
conceitos de verdade e falsidade, aquilo que se pode chamar de história das teorias
ou teorizações da verdade. Tal história permite compreender melhor os esquemas
conceituais pressupostos e ou implicados nos problemas fundamentais em torno
aos conceitos de verdade e falsidade, de modo análogo a como se percebeu que a
história da lógica pode contribuir significativamente na compreensão e na
expansão da própria investigação lógica
5
.
Para mostrar que e como as teorizações sobre a verdade podem conter de modo
latente a forma de uma teoria da verdade, é necessário que se faça uma
caracterização sumária da problemática envolvida na teorização dos conceitos de
verdade e falsidade e assim das condições necessárias e suficientes que compõem a
estrutura conceitual de uma teoria da verdade. É preciso lembrar novamente que
tal caracterização da problemática e a elucidação da estrutura conceitual acerca dos
conceitos de verdade e falsidade somente se apóiam na história das teorias e
teorizações sobre a verdade, mas seu caráter é filosófico e especulativo e não
historiográfico, ou seja, toma-se a história das teorias e teorizações da verdade
5
Sobre a importância e o sentido filosófico da história da lógica para a investigação lógico-
filosófica, veja-se, de Newton C. A. da Costa, Ensaio sobre os fundamentos da lógica, opus cit., esp. cap.
1, § 9. Ademais, vários filósofos lógicos eminentes tais como Russell, Lukasiewicz, Prior e Hintikka,
encontraram na história da lógica e da filosofia matéria para discutir e enriquecer suas próprias
concepções lógico-filosóficas e realizar importantes investigações para a discussão de problemas
lógicos e para o desenvolvimento de sistemas lógicos atualmente em discussão.
34
como um meio para caracterizar os problemas fundamentais e a estrutura
conceitual que tenta responder a cada um deles dentro da perspectiva particular e
dos interesses desta investigação. Como sempre, argumentos de autoridade
merecem por parte do filósofo somente o benefício da dúvida.
§ 2 – A historicidade das teorizações e teorias da verdade
e a problemática da verdade
A xima de Nietzsche segundo a qual a história da verdade ainda está quase
completamente por ser escrita pode ser aplicada também à história das teorizações
e das teorias da verdade. Somente a partir do século XIX começou a ser
considerada e a surgir aos olhos dos filósofos e historiadores a historicidade
inerente aos conceitos e esquemas conceituais em geral e, mais especificamente,
das teses e conceitos filosóficos, dentre os quais os conceitos de verdade e
falsidade. Concomitantemente, a problemática filosófica sobre a relação entre
temporalidade e verdade, anteriormente indicada, começou a se constituir devido
a vários acontecimentos históricos, tais como o desenvolvimento e a transformação
das ciências, a problematização crescente do sentido filosófico da história das
idéias e dos conceitos filosóficos, bem como ao progressivo surgimento e divisão
de temáticas e tradições filosóficas afastadas em jargão, interesses, preferências e
métodos. Começou-se a suspeitar da verdade do pressuposto geral (tanto do
senso-comum quanto da ciência e da filosofia) de associar imediatamente à
verdade a propriedade de ser atemporal e, além disso, a se colocar o problema
35
filosófico acerca das pretensões de verdade do pensamento filosófico e científico
tanto quanto dos discursos em geral.
A partir deste pano de fundo histórico, por um lado, os conceitos de verdade e
falsidade começaram a ser investigados e contextualizados conforme os filósofos e
épocas da filosofia, e, por outro lado, os filósofos passaram a teorizar
explicitamente tais conceitos, circunscrevendo suas peculiaridades e mostrando
seus problemas intrínsecos. Na tradição anglo-americana do século XX, cunhou-se
então a noção de ‘teorias da verdade’ para nomear tais teorizações explícitas. Em
certo sentido, pode-se dizer que a problemática acerca da verdade é um dos temas
filosóficos peculiares à nossa época, ainda que, como é notório e já se indicou antes,
os conceitos de verdade e falsidade tenham sido operados e teorizados pelos
filósofos desde a Grécia antiga. Na época moderna e sobretudo na atual, porém, a
problemática da verdade recebe uma tonalidade essencialmente marcada pela
aceitação do desafio cético diante das pretensões de verdade das teorias, teses e
argumentos filosóficos e científicos, incluindo as próprias pretensões de verdade
das teorias da verdade, por mais que isso possa, à primeira vista, parecer estranho.
Isto se torna claro, contudo, ao se compreender que é no contexto filosófico
contemporâneo onde se pode falar de uma história das teorizações e teorias da
verdade e mesmo de uma história da verdade em sentido pleno, não apenas
porque a época hodierna produz investigações explícitas acerca dos problemas
fundamentais em torno aos conceitos de verdade e falsidade, mas também e
sobretudo porque a suspeita cética acerca das pretensões de verdade dos discursos
36
em geral é parte essencial do espírito filosófico moderno desde seu início, posto
que se problematiza a verdade ali onde não se tem a plena garantia de que ela
vigora inconteste ou foi descoberta pura e simplesmente. Porém, ao contrário do
silêncio da suspensão, o ceticismo moderno acerca da verdade faz com que a
produção dos discursos e teses prolifere indefinidamente porque não há uma
disposição generalizada em aceitar sem discussão pressupostos teóricos de
qualquer natureza. É no contexto deste espírito filosófico marcado pelo ceticismo
que é necessário e faz sentido discutir algo assim como a história das teorizações e
teorias da verdade.
Todavia, a estrutura e a organização da história das teorizações e teorias da
verdade permanecem indeterminadas e confusas devido ao fato de que as
perspectivas de caracterização da problemática posta à luz e assumida nestas
teorias e teorizações estão marcadas pela parcialidade, tanto em relação ao tema
mesmo, quanto em relação às demais teorias, encaradas várias vezes erroneamente
como rivais, antagônicas, equivocadas, senão simplesmente subestimadas ou
ignoradas, quando na realidade são projetos teóricos com pretensões e visões
diferentes acerca dos problemas a que uma teoria da verdade deve responder. Por
tal parcialidade de perspectiva, as teorias da verdade, bem como os estudos
dedicados às mesmas, não se colocam previamente a tarefa de determinar de modo
aprofundado, ou ao menos discutir com certo vagar, as questões e elementos da
problemática sobre a verdade e, a partir disso, qual a estrutura conceitual
“mínima” necessária a uma teoria da verdade que pretenda corresponder” a esta
37
problemática. Um autor recente, mas essencial à compreensão atual das teorias
da verdade, indica um tanto ironicamente um aspecto central desta situação assim:
“É típico que livros, capítulos e artigos apresentando uma teoria da
verdade comecem com uma exposição tão breve e ambígua do
problema que ela poderia ser intercambiada com o começo de
qualquer outro livro, capítulo ou artigo sobre a verdade, e ninguém
perceberia a diferença, exceto os autores. Em outras palavras, essas
descrições do problema da verdade são muito ambíguas para que
se diferenciem as várias concepções do problema que foram
sustentadas.”
6
O que aqui é restringido às apresentações das teorias da verdade pode, e
mesmo deve, ser estendido às teorias mesmas, que estas descrições ambíguas
remontam, em última instância, às próprias teorias que pretendem expor. Uma tal
situação, porém, deve-se ao fato de que são as teorias ou teorizações da verdade
que mostram e constituem os elementos e questões envolvidas na problemática da
verdade, não sendo possível pressupor a priori uma objetividade temática anterior
e independente destas perspectivas de caracterização, ou seja, é somente a partir
6
Kirkham, R. L. Teorias da verdade, uma introdução crítica; trad.: Alessandro Zir. São Leopoldo:
Unisinos, 2003, pp. 13-14. O livro de Kirkham é, sem dúvida, um dos melhores textos atuais sobre
as teorias da verdade, propondo uma classificação filosófica (não histórica) e crítica das diversas
teorias defendidas no mundo filosófico anglo-americano desde o final do século XIX, dividindo-as
conforme suas pretensões filosóficas em três categorias, a saber: o projeto metafísico, o projeto da
justificação e o projeto dos atos-de-fala. No entanto, o autor o trata, por exemplo, do problema
atualmente bastante discutido acerca dos produtores de verdade (truthmakers), nem de algumas
teorias de cunho lógico-analítico mais recentemente propostas, tais como a teoria revisionista ou a
teoria da identidade (para uma introdução a ambas, veja-se os correspondentes verbetes na Stanford
Encyclopedia of Philosophy disponível na rede no endereço <http://plato.stanford.edu/>); não
tratando também das teorias da verdade propostas dentro da tradição continental-européia na
mesma época, ainda que tais teorias não se apresentem de forma tão explícita e sistemática como na
tradição anglo-americana. Isso não compromete de nenhum modo o brilhantismo, a
indispensabilidade e o rito extraordinário de seu livro, mas impede que se o tome como um
trabalho exaustivo acerca da problemática contemporânea da verdade, como aliás o próprio autor
adverte (p. 10). Apesar disso, muito do que é discutido neste capítulo e em várias outras partes
deste trabalho é tributário de sugestões e idéias colhidas nesta obra.
38
das teorias e teorizações da verdade que se pode tentar reunir e estruturar os
aspectos essenciais envolvidos nesta problemática.
É por conta desta situação hermenêutica inevitável que as caracterizações da
problemática em torno aos conceitos de verdade e falsidade tendem, no mais das
vezes, a simplificações, podendo chegar a ser simplistas. Um exemplo simbólico
para ilustrar como estas simplificações podem conter ou acarretar equívocos é a
simples expressão corrente ‘problema da verdade’, que pode levar à idéia de que
um único problema essencial e universalmente aceito acerca da verdade,
quando na realidade há uma multiplicidade de problemas, dado, por um lado, os
vários aspectos inerentes ao conceito em sua polissemia efetiva, e, por outro lado, a
diversidade de abordagens e teses existentes ou possíveis. Certamente se pode ver
e constituir ligações entre estes diversos problemas, mas sua não separação pode
acarretar, e de fato acarreta, equívocos teóricos cujas conseqüências não são
pequenas. Mais correto por isso é falar de uma problemática da verdade ou se
pressupor um tal sentido quando se falar em ‘problema da verdade’, como é o caso
na citação anterior.
Esta situação hermenêutica exige precauções metodológicas e cuidados
investigativos redobrados por parte de todo aquele que pretenda discutir de modo
crítico qualquer aspecto da problemática em questão. A tese de Adorno, segundo a
qual, atualmente, ao contrário da época de Kant e Hegel, não é possível construir
uma teoria estética sem um profundo conhecimento da arte, vale também no que
diz respeito à teorização da verdade, ou seja, não é possível, hoje, produzir ou
39
discutir uma teoria da verdade sem um conhecimento aprofundado dos problemas
colocados ao longo da história das teorizações deste conceito. É por isso que a
investigação e reconstituição da história das teorizações e teorias da verdade
dentro da história da filosofia podem contribuir para a investigação mesma deste
conceito e não apenas ser uma curiosidade historiográfica de caráter secundário.
Estas observações, porém, o devem induzir a pensar que a compreensão e
determinação da estrutura conceitual necessária a uma teoria da verdade viria
através de uma longa exposição histórica das teorias e teorizações acerca da
verdade, nem mesmo através de uma discussão e determinação da taxonomia dos
tipos de teorias da verdade que foram desenvolvidas ao longo e ao largo de alguns
recortes históricos ou tradições específicas, tipos dentro dos quais são agrupados
filósofos diversos sob a rubrica de uma tese geral comum, não obstante
compreendida e defendida de modos diversos por cada um deles.
Bem ao contrário, tal história é importante enquanto horizonte desde o qual se
pode haurir uma caracterização dos problemas fundamentais acerca da verdade e
da falsidade, em relação aos quais e dentro dos quais se constroem as teorias e as
teorizações da verdade. Assim, dentre os múltiplos problemas em torno aos
conceitos de verdade e falsidade constituídos e explicitados pelas teorias e
teorizações da verdade, é preciso encontrar aqueles problemas fundamentais que
toda teorização sobre a verdade deve necessariamente resolver ou tentar resolver
para que possa ser chamada uma teoria da verdade. Por isso, a descrição
cronológica não é aqui útil ao propósito de uma caracterização mínima do que
40
deve ser uma teoria da verdade para poder se aplicar a qualquer teorização sobre a
verdade que possa receber, a fortiori, esse título.
O único modo (ao menos na perspectiva desta investigação) de encontrar uma
caracterização da estrutura conceitual de uma teoria da verdade é através de uma
análise sumária dos problemas fundamentais acerca da verdade e da falsidade.
Obviamente, tal análise não pode estar completamente separada do pano de fundo
histórico antes delineado, mas se se puder focalizar os problemas historicamente
recorrentes na investigação da natureza e do sentido geral dos conceitos de
verdade e falsidade, aquele mínimo compartilhado por todas as teorizações e
teorias da verdade, então, ao se mostrar esta estrutura conceitual mínima
universalmente e necessariamente compartilhada, pode-se mostrar o sentido
ontológico das teorizações ou teorias da verdade, pode-se vislumbrar, para além
das querelas históricas e circunscritas, o que é uma teoria ou teorização da verdade,
e assim mostrar quando teorizações sobre a verdade podem ser também
consideradas teorias da verdade. As características sicas de uma teoria da
verdade serão, portanto, as questões primárias acerca dos conceitos de verdade e
falsidade a que deve responder.
§ 3 – Verdade e falsidade como propriedades da relação entre
pensamento, linguagem e realidade
Em primeira instância, os termos ‘verdade’ e falsidade’ são as formas
substantivas e abstratas dos predicados ‘verdadeiro’ e ‘falso’. Diz-se que algo
41
(pensamentos, enunciados, discursos, fatos, etc) ‘é verdadeiro’ ou ‘é falso’ (= ‘não é
verdadeiro’), e a partir destas instâncias diz-se que ou ocorre verdade ou
falsidade. teóricos de inclinação nominalista e cética que tendem a impugnar o
modo comum em se falar da verdade ou falsidade em detrimento dos adjetivos
verdadeiro e falso, alegando que não algo assim como ‘a’ verdade ou ‘a’
falsidade, senão falando de modo metafórico e ambíguo. Certamente pode haver
usos metafóricos e ambíguos destes termos, mas tal não é suficiente para que se
determine todos os seus usos como erros. Quando alguém pede a outro alguém,
por exemplo, “diga-me toda a verdade sobre o que aconteceu ontem na casa de
Pedro”, não aqui nenhuma ambigüidade, e se pode responder facilmente
“aconteceu tal e qual”, sendo possível que se diga a verdade ao se dizer, senão o
que realmente aconteceu, algo que representa de modo suficiente o que realmente
aconteceu. A pessoa que fez o pedido pode averiguar de diversos modos se o que a
outra pessoa disse é realmente verdadeiro, se o que disse é verdade, se é o que de
fato aconteceu. Aqui ‘verdade’ e ‘verdadeiro’ são equivalentes, ainda que tenham
nuances de sentido levemente distintas do ponto de vista gramatical. Compreende-
se também perfeitamente o que se quer dizer quando alguém fala que “a ciência
procura a verdade”, significando verdade aqui não apenas um conjunto de
enunciados verdadeiros, mas também, senão sobretudo, a própria natureza efetiva
das coisas investigadas. Assim, não se deve pensar que os termos ‘verdade’ e
‘falsidade’ sejam simpliciter meras ilusões gramaticais, bem antes se pode
considerar que verdade’ e ‘falsidade’ são objetos abstratos com um status lógico
42
similar àquele, por exemplo, dos termos ‘tristeza’ ou ‘alegria’, que são nomes
gerais para tipos de ocorrências de estados psicológicos sempre instanciados por
alguém em determinadas circunstâncias, tanto quanto os termos ‘verdade’ e
‘falsidade’ pertencem à classe dos nomes gerais para tipos de ocorrências, mas os
tipos de ocorrências designados por estes nomes abstratos não são tão simples de
serem identificados.
Os predicados ‘ser-verdadeiro’ e ‘ser-falso’ são, na realidade, meta-predicados,
pois seu estatuto é diverso dos predicados chamados reais ou de primeira ordem,
tais como ‘ser-grande’, ‘ser-colorido’, ser-velho’, ser-colorido’, ‘ser-brasileiro’, etc.
Os predicados ‘ser-verdadeiro’ e ‘ser-falso’ não se aplicam diretamente a estados
ônticos
7
, tal como os predicados de primeira ordem. Os meta-predicados ser-
verdadeiro e ser-falso se aplicam fundamentalmente à relação entre pensamentos,
enunciados e estados ônticos. É esta relação que pode ser dita propriamente
7
Utiliza-se neste trabalho o termo ‘estado ôntico’ como sinônimo de estado de coisas’. Com estes
termos indica-se tanto um único indivíduo ou item quanto uma relação complexa entre indivíduos
ou itens. Qualquer “coisapensável ou enunciável é um estado ôntico, mesmo em se tratando de
coisas impossíveis, não existentes ou nunca existentes de fato. Neste sentido, utiliza-se a noção de
fato como aquilo que foi, é ou poderá ocorrer no mundo. Os motivos para utilizar o termo ‘estado
ôntico’ serão esclarecidos quando da análise da teoria aristotélica da verdade. O sentido geral do
termo ‘estado ôntico’ enquanto sinônimo do termo técnico estado de coisas’, e em contraste com o
sentido do termo ‘fato’, é perfeitamente esclarecido por Kirkham:
“Utilizo o termo “estado de coisas” no seu sentido filosófico (queo é o usual): “estado de coisas”
não é um sinônimo para “fato” ou “situação”, porque fatos potenciais mas não realizados são
também estados de coisas, embora esses estados de coisas nunca ocorram em nenhum mundo
possível. Talvez a melhor maneira de se definir estados de coisas” seja dizer que qualquer coisa
cuja ocorrência possa ser asseverada (com verdade ou falsidade) por meio de uma sentença
declarativa conta como um estado de coisas, sendo que nada mais, além disso, conta. Assim, para
cada uma das sentenças seguintes, existe um estado de coisas que se diz obter por meio da
sentença: “a neve é branca”, “a neve é rosa”, “um quadrado redondo em minha mesa”. Um fato,
então, é um estado de coisas que ocorre no mundo real.”, in Teorias da verdade, uma introdução crítica,
opus cit., pp. 109-110.
43
verdadeira ou falsa. Nisto se justifica sua característica de meta-predicados. É a
partir do valor de verdade de uma determinada relação entre pensamento,
linguagem e realidade que se pode aplicar separadamente às instâncias desta
relação os predicados de ser-verdadeiro ou ser-falso, ou seja, é somente quando se
tem uma relação verdadeira ou falsa entre um certo ato de pensamento, uma
determinada estrutura gico-semântica e um estado ôntico determinado que se
pode atribuir verdade ou falsidade a cada uma destas instâncias.
Assim, por exemplo, se uma determinada asseveração (que instancia uma
determinada relação de pensamento, linguagem e realidade) é verdadeira, pode-se
então dizer que o ato de pensamento que toma parte nesta asseveração é
verdadeiro, e se pode dizer que a expressão lingüística que estrutura lógica e
semanticamente este ato de pensamento é verdadeira e, por fim, pode-se dizer que
o estado ôntico visado pelo ato de pensamento e representado pela expressão
lingüística desta asseveração é verdadeiro. Entretanto, em cada uma destas
atribuições do predicado ‘ser-verdadeiro’ a cada uma destas instâncias de uma
determinada asseveração tal predicado possui um sentido diverso, ou seja, um
pensamento é verdadeiro de um modo distinto de como uma expressão lingüística
e um estado ôntico são verdadeiros.
Tradicionalmente as teorias e teorizações da verdade tomaram como absurdo
atribuir verdade a um estado ôntico real. Porém tal sentido de ser-verdadeiro é não
apenas possível e legítimo, mas também efetivo e indispensável. Dizer que um
estado ônticos é verdadeiro consiste em dizer que foi, é ou será real, que foi, é ou
44
será efetivo, que existiu, existe ou existirá de fato, enfim, o sentido de ser-
verdadeiro atribuído a algo que o um pensamento ou um enunciado (ou
conjunto articulado de enunciados) consiste na atribuição de sua existência ou
realidade possível, atual ou necessária. É neste sentido que enunciados como
“Diga-me o que verdadeiramente aconteceu” ou “A meta da filosofia e da ciência é
a verdade”, são inteligíveis.
O equívoco, porém, consiste em se pensar que esta atribuição de verdade a
algum estado ôntico não-mental ou o-lingüístico poderia ter um sentido
separado em relação à atribuição de verdade a estados ônticos mentais e
lingüísticos. Mas também a atribuição de verdade a pensamentos ou enunciados
não pode ser realizada isoladamente, na medida em que se admite que
pensamentos e enunciados são verdadeiros ou falsos enquanto se relacionam de
um certo modo com os estados ônticos visados e representados. É por isso que a
atribuição primária de verdade ou falsidade se aplica a uma determinada
asseveração que correlaciona pensamento, linguagem e realidade, e
posteriormente a atribuição de verdade ou falsidade pode ser feita a cada uma
destas instâncias isoladamente.
Esta correlação deve, porém, ser compreendida em um sentido amplo, pois
aquilo que corresponde à realidade nesta correlação pode ser preenchido por
algum estado ôntico mental ou lógico-semântico, posto que seria absurdo dizer
que entidades mentais e lógico-semânticas não são reais em algum sentido, ainda
que sua realidade seja distinta daquela das coisas perceptíveis no mundo
45
circundante. Além disso, também se pode tomar como de algum modo reais
estados ônticos não factuais ou impossíveis tais como círculos quadrados,
unicórnios, quimeras, etc., posto que são estados ônticos pensáveis e enunciáveis, e
sobre os quais se pode dizer com verdade que são impossíveis, ou simplesmente
que são falsos no sentido de não serem factuais ou possíveis. Com efeito, os
predicados ser-verdadeiro e ser-falso são usados como sinônimos de ser-real e não-
ser-real, mas estes usos são derivados em comparação com sua aplicação
propriamente dita à relação entre pensamentos, enunciados e estados ônticos. O
modo como esta correlação pode ser verdadeira ou falsa será determinado a partir
da discussão dos outros problemas fundamentais acerca da verdade e da falsidade.
No momento é preciso reter apenas que são estas entidades a referência primária
dos conceitos de verdade e falsidade, ou seja, as asseverações são os portadores
primários de verdade.
Assim, o ser-verdadeiro ou o ser-falso são meta-predicados que qualificam
primariamente as formas de correlação entre entidades mentais, lógico-semânticas
e reais, ou seja, são predicados relacionais que, somente após sua atribuição a esta
correlação, podem ser distribuídos entre os termos ou partes desta relação, ainda
que significando algo distinto em cada um deles, pois o ser-verdadeiro ou ser-falso
como predicados de um pensamento devem ser distintos do ser-verdadeiro ou ser-
falso atribuídos a um enunciado e a um estado ôntico referido.
A partir destes esclarecimentos sumários, percebe-se que os conceitos de
verdade e falsidade não possuem um sentido único e que uma teoria ou teorização
46
abrangente destes conceitos deve poder articular seus vários sentidos de modo a
preservar as intuições e os usos comuns destes conceitos.
47
CAPÍTULO I:
OS PROBLEMAS SOBRE OS PORTADORES, OS SENTIDOS E
SOBRE A DEFINIÇÃO DA VERDADE E DA FALSIDADE
§ 1 – O problema dos portadores de verdade
O primeiro problema fundamental acerca dos conceitos de verdade e falsidade
consiste em se determinar que entidades ou tipos de entidades são verdadeiras ou
falsas, ou seja, que entidades ou tipos de entidades estão na extensão de
aplicabilidade dos conceitos de verdade e falsidade, o problema conhecido como o
problema acerca dos portadores de verdade. Os portadores de verdade são aquelas
entidades que primariamente podem ter um valor de verdade, isto é, serem
verdadeiras ou falsas. Diz-se que algo (por enquanto independente do que seja este
algo) é verdadeiro ou falso, como quando se diz que algo é vermelho ou azul.
Pergunta-se então pelo que pode ‘ser-verdadeiro’ ou ‘ser-falso’ (= ‘não-ser-
verdadeiro’), ou seja, demanda-se saber a que entidades ou tipos de entidade
pode-se aplicar tais predicados. Pergunta-se, com isso, a que se referem e a que não se
referem os predicados ‘ser-verdadeiro’ e ‘ser-falso’, de modo análogo a quando se
pergunta a que se referem ou o se referem os predicados ‘ser-vermelho’ e ‘ser-
azul’.
Ao longo da história das teorizações e teorias da verdade, muitos foram os
candidatos eleitos pelos filósofos como sendo os portadores de verdade
propriamente ditos: proposições ou pensamentos, sentenças ou tipos de sentenças,
48
fatos ou estados de coisas, enunciados ou formas enunciativas, para citar apenas
alguns dos candidatos mais representativos e controversos. Tais opções são
acompanhadas de argumentações de defesa motivadas em grande medida não
pela problemática mesma da verdade, mas pelas decisões filosóficas, esquemas
conceituais e compromissos teóricos que os autores mantêm, desde e através dos
quais concebem estes ou aqueles conceitos ou tipos de conceitos como
primariamente ligados aos conceitos de verdade e falsidade. Estes compromissos
teóricos e esquemas conceituais, apesar de em certo sentido “externos” à
problemática da verdade, são, todavia, inevitáveis às teorias e teorizações da
verdade. A questão que se coloca aqui é a de que argumentos conclusivos existem
para se poder e dever dizer que um, e apenas um, dos tipos de entidade listados é
aquele que, unicamente, pode ser considerado portador de verdade em detrimento
dos demais. Visto que a força persuasiva de tais argumentos de defesa depende da
aceitação prévia de compromissos teóricos e esquemas conceituais em certo
sentido exógenos ao problema mesmo, e admitindo-se também que tais
compromissos são inevitáveis a qualquer teorização ou teoria da verdade, deve-se
admitir ao menos que a eleição de um único tipo de entidade como sendo ‘o’
portador de verdade é lida de modo irrestrito unicamente dentro de uma
perspectiva particular de abordagem e solução da problemática da verdade, e não
válida pura e simplesmente. Aqui as palavras de Kirkham são oportunas como
corolário da argumentação:
49
“É um erro pensar que existe somente um tipo de entidade ou
somente uma classe muito pequena de tipos de entidade que
podem ser portadores de verdade, pois não restrições, em
princípio, sobre que tipos de entidades podem possuir verdade ou
falsidade. Se isso está certo, não resposta “correta” à questão de
que tipo de coisa pode possuir valores de verdade. Em todo drama
filosófico em que o conceito de verdade é uma personagem
principal, podemos escalar qualquer coisa que quisermos para o
papel de portador de verdade. Com certeza, nossa escolha vai ser
guiada pelas metas do empreendimento teórico que estamos
seguindo. Para determinado programa filosófico será mais útil
considerar uma dada entidade no lugar de outra como portador de
verdade. Para um programa diferente pode acontecer que a decisão
inversa seja a mais adequada. (...) Jamais deveríamos rejeitar um
portador de verdade proposto pelo motivo de que seria impossível
ao tipo de entidade em questão ser verdadeira ou falsa. Não
nenhum tipo de entidade que em princípio não possa ser portadora
de valores de verdade.”
8
Tal argumentação se coloca em guarda diante do pressuposto muito difundido
de que apenas entidades ou tipos de entidades lógico-lingüísticas poderiam ser os
únicos candidatos a portadores de verdade, pressuposto que provém das
abordagens predominantemente logicistas do problema dos portadores de verdade
e dos outros problemas fundamentais acerca da verdade. Isso mostra como a
problemática da verdade pode ser marcada por uma perspectiva particular de
abordagem e resolução. É certo que toda a perspectiva de abordagem dos conceitos
de verdade e falsidade tem de discutir em alguma medida problemas lógicos e
lingüísticos, tanto quanto toda perspectiva de abordagem de problemas estéticos
tem de discutir problemas levantados pelas belas artes, ou perspectivas de
abordagem dos problemas epistemológicos em geral têm de discutir problemas
levantados pelas ciências particulares. No entanto, a ligação necessária entre a
8
Kirkham, R. L. Teorias da verdade, uma introdução crítica; opus cit., pp. 91-92.
50
problemática da verdade e os problemas lógico-lingüísticos não necessariamente
determina os interesses, o foco e as soluções de todas as perspectivas possíveis de
teorização da verdade, que podem, por exemplo, tomar a direção de questões
ontológicas ou éticas.
Como foi indicado anteriormente, na perspectiva desta investigação as
entidades que primariamente possuem um valor de verdade são as asseverações.
Tais entidades complexas realizam uma correlação entre pensamento, linguagem e
realidade. É esta correlação que pode ser primariamente considerada verdadeira
ou falsa, na medida em que articula os três âmbitos a que os sentidos do ser-
verdadeiro e ser-falso se aplicam, ou seja, na medida em que esta correlação coloca
em jogo o ser-verdadeiro ou ser-falso das entidades que fazem parte das
asseverações concretas. Na medida em que as asseverações são portadores
primários do ser-verdadeiro ou do ser-falso, mas, ao mesmo tempo, enquanto
entidades relacionais, sua verdade ou falsidade depende da verdade ou falsidade
de suas partes, pode-se então dizer que as asseverações são “meta-portadores” ou
“proto-portadores” de verdade, ou seja, são portadores de possíveis portadores de
verdade. Isto pode parecer estranho à primeira vista, mas se justifica no fato de que
os predicados ser-verdadeiro e ser-falso são meta-predicados, ou seja, não são
predicados de primeira ordem, mas predicados que se aplicam às correlações entre
pensamentos, enunciados e estados ônticos realizadas nas asseverações
9
.
9
É possível tornar mais claro porque ser-verdadeiro e ser-falso são meta-predicados através do
seguinte exemplo. O enunciado condicional “Se é dia, então luz” não é um enunciado
predicativo (não possui a estrutura gramatical comum de um termo sujeito e um termo predicado),
51
Mas mesmo quando se atribui o ser-verdadeiro ou o ser-falso às partes das
asseverações verdadeiras ou falsas estes predicados não se tornam, por isso,
predicados de primeira ordem. Aplica-se a um pensamento a propriedade de ser
verdadeiro quando é correto em relação ao estado ôntico que visa e se apresenta e
se diz que é falso quando é considerado incorreto relativamente ao estado ôntico
que apresenta e visa. No entanto, ser-correto ou não-ser-correto (ser-incorreto) não
constituem predicados que acrescentam algo ao pensamento mesmo, apenas
qualificam sua relação com os estados ônticos. No caso da verdade de um
enunciado entendida como sua validade e de sua falsidade como sua invalidade,
também nada é acrescentado ao enunciado mesmo, nada a mais é dito do que
aquilo que o próprio enunciado exprime, mas apenas se qualifica sua relação com
os pensamentos que exprime e com os estados ônticos visados
10
. No caso
e, no entanto, é um enunciado verdadeiro, ou seja, é um enunciado ao qual se pode atribuir o valor
de verdade verdadeiro. A partir deste exemplo de um tipo muito comum de enunciados, percebe-se
que os predicados ser-verdadeiro e ser-falso podem se aplicar também a enunciados não
predicativos, e isto é possível justamente porque eles não são propriamente predicados comuns,
mas meta-predicados.
10
É conveniente lembrar aqui que na lógica as noções de validade (consistência) ou invalidade
(inconsistência) de um enunciado não são propriedades semânticas, mas sintáticas, ou seja, não
dizem respeito à sua verdade ou falsidade. Um enunciado é válido (consistente) quando é
compatível (não-contraditório) com outros enunciados (axiomas ou teoremas) de um sistema
lógico, sendo inválido (inconsistente) quando não é compatível (contraditório) com os outros
enunciados admitidos dentro do sistema. As noções de validade e invalidade são usadas aqui,
porém, no sentido de que um enunciado tenha uma forma lógica e um conteúdo semântico capazes
de estruturar e exprimir um pensamento acerca de um estado ôntico visado. Um enunciado é
válido se exprime e estrutura um pensamento correto, mas um pensamento é correto se é expresso
por um ou rios enunciados válidos. Um pensamento é correto e o enunciado ou conjunto de
enunciados que o exprimem e estruturam são válidos relativamente ao modo de ser do estado
ôntico visado pelo pensamento e representado pelo enunciado ou conjunto de enunciados. Assim, a
validade e invalidade de um enunciado ou conjunto de enunciados são pensadas como
propriedades aléticas dependentes de sua relação com um pensamento e as características de um
estado ôntico visado. Um enunciado ou conjunto de enunciados lidos pode ser caracterizado
como o sentido de um pensamento correto, enquanto um enunciado ou conjunto de enunciados
inválidos pode ser caracterizado como o sentido de um pensamento incorreto, sendo a correção de
52
específico dos estados ônticos que podem ser referentes das asseverações, isto se
mostra de maneira mais evidente, pois se uma asseveração é verdadeira, então o
estado ôntico por ela referido pode ser dito real (existente), ou no caso de uma
asseveração ser falsa pode-se dizer que o estado ôntico por ela referido não é real
ou não é existente. Ser real ou existente e não ser real ou não ser existente são então
tomados como sinônimos de ser-verdadeiro e ser-falso. Contudo, tais predicados,
contrariamente ao que aparentam, o são predicados reais, ou seja, nada é
acrescentado a uma predicação de primeira ordem ao se dizer que o objeto a que se
refere o predicado de primeira ordem é real ou existente, ou que não é real ou que
não é existente. É esta a lição tirada da crítica kantiana à prova ontológica da
existência de Deus. Estes sentidos de ser-verdadeiro e ser-falso são também meta-
predicados porque apenas qualificam a significação e a referência de uma
asseveração, mas o qualificam diretamente o sentido e o referente desta
asseveração, ou seja, não acrescentam nada ao que foi dito na própria
asseveração.
Assim, as asseverações são meta-portadores de verdade porque os meta-
predicados ser-verdadeiro e ser-falso se aplicam primariamente a elas, aplicando-
se também, em sentidos diversos, às partes destas asseverações, as quais são
um pensamento dependente do modo de ser dos estados ônticos por ele visados. É por isso que se
chamam aqui os enunciados de entidades lógico-semânticas. Apesar desta acepção desviante em
relação ao uso dos predicados ‘válido’ e ‘inválido’ na lógica atual, é pressuposto aqui que um
enunciado válido seja compatível (não-contraditório) como outros enunciados válidos, sendo tal
compatibilidade pensada sintática e semanticamente. A correção e validade de pensamentos e seus
enunciados pode ser considerada como coerência destes relativamente a outros pensamentos e
enunciados acerca dos mesmos estados ônticos. Tudo isto ficará mais claro (assim se espera) no
decorrer das próximas páginas.
53
propriamente portadoras de verdade, de tal modo que a verdade ou falsidade das
asseverações tem como condição de verdade a verdade ou falsidade da conjunção
de suas partes, mas estas podem ser verdadeiras ou falsas isoladamente após a
asseveração como um todo ser considerada como verdadeira ou falsa. Fica então
indicado que pensamentos, enunciados e estados ônticos em geral podem ser
portadores de um valor de verdade somente a partir da verdade ou falsidade das
asseverações como portadores primários de verdade, ou simplesmente como meta-
portadores ou proto-portadores de valores de verdade. É possível, então,
identificar as asseverações como os referentes primários dos meta-predicados ser-
verdadeiro e ser-falso e as partes das asseverações como referentes secundários
destes meta-predicados. Estas elucidações mostraram que dois tipos de
portadores de valores de verdade, sendo ambos correlacionados de modo análogo
a como se correlacionam gênero e espécies deste gênero. Foi visto que ser-
verdadeiro e ser-falso adquirem em cada um destes tipos de portadores sentidos
distintos. E é justamente este o problema que se deve esclarecer agora, a saber: o
problema acerca dos sentidos e da definição de verdade e falsidade.
§ 2 – O problema dos sentidos e da definição da verdade
Um segundo problema fundamental, intrinsecamente ligado ao anterior, mas
indicando um outro aspecto e outra direção de investigação, consiste não mais na
pergunta pela referência ou extensão de aplicabilidade dos conceitos de verdade e
54
falsidade, mas na pergunta pelo sentido, significado ou intensão destes conceitos, ou
seja, não mais se pergunta pela classe, conjunto ou extensão das entidades
denotadas por estes conceitos, mas pelo modo de apresentação destas entidades
através destes conceitos, pergunta-se então pelo que se quer dizer quando se
predica de algo que é verdadeiro ou falso
11
. Esta questão está intimamente ligada
ao problema anterior porque o tipo de resposta a ela dependerá daquilo que se está
disposto a considerar ou o como portador de verdade, ou seja, a que classe ou
conjunto de entidades se admite aplicar os valores de verdade ‘verdadeiro’ ou
‘falso’. No entanto, aqui o que se pretende saber e decidir não é mais que entidades
ou tipos de entidades possuem ou não valores de verdade, mas qual é a definição de
verdade e falsidade, ou seja, qual o sentido ou significado dos valores de verdade que se
atribui às entidades capazes de assumir tais valores (de serem portadoras de
verdade) quando se lhes aplica corretamente os predicados ‘ser-verdadeiro’ ou
11
Sobre a distinção complementar entre referência ou extensão e sentido ou intensão, veja-se, de
Gottlob Frege, “Sobre o sentido e a referência”, in Lógica e filosofia da linguagem; seleção e tradução:
Paulo Alcoforado. São Paulo: Cultrix, 1978, pp. 61-86. Veja-se também, de Rudolf Carnap, Meaning
and necessity. Chicago: Chicago UP, 1988 (1956), esp. cap. 1, onde, porém, a acepção fregeana desta
distinção complementar, também defendida por Alonzo Church, é criticada em certos aspectos e
reformulada dentro de uma tentativa geral, inversa àquela de Frege, de fundar a extensão das
proposições ou enunciados em sua intensão (sobre este ponto veja-se o cap. 3, §§ 28-32). Para uma
discussão crítica a respeito do assunto, veja-se o excelente e seminal artigo de Hilary Putnam “The
meaning of ‘meaning’”, in Mind, language and reality. Cambridge: Cambridge UP, 1995 (1975), pp.
215-271. Para uma boa introdução ao tema, veja-se também, Thomas Moro Simpson, Linguagem,
realidade e significado; trad.: Paulo Alcoforado. São Paulo/Rio de Janeiro: USP/Francisco Alves, 1976,
esp. cap. 4. Usa-se neste trecho da investigação os termos ‘sentido’ e significado’ como
equivalentes, apesar de se conceber, na perspectiva deste trabalho, o termo significado’ como o
resultado da união entre sentido e referência de uma expressão lingüística (termo, enunciado ou
discurso), ou seja, na acepção fregeana na qual expressões lingüísticas podem ter sentido sem ter
referência, mas não podem ter referência sem ter sentido (mesmo os termos dêiticos ou indexicais);
assim expressões com sentido, mas sem referência, não possuem propriamente significado ou
significação, dado que não denotam nada em particular e por isso não possuem algum valor de
verdade, mas expressões com significado possuem necessariamente sentido e são aquelas que
possuem também necessariamente algum valor de verdade, e é nesta perspectiva que ’sentido’ e
‘significado’ podem ser considerados equivalentes.
55
‘ser-falso’. Assim, o que está em questão aqui não é que tipos de entidades podem
ser portadoras de verdade, mas admitindo-se que haja e quais sejam tais entidades
qual o sentido ou significado de seu valor de verdade.
Ao se declarar a outrem ou se pensar consigo mesmo que, por exemplo, “João
era um bom amigo”, quer-se dizer que tal pessoa, chamada ‘João’, foi, em algum
tempo passado, alguém que se estimava e em quem se confiava muito. Quando,
porém, diz-se que “João era um verdadeiro amigo”, ou “o que Pedro me disse é
verdade”, ou “aquele quadro era considerado um verdadeiro Rembrandt, mas se
constatou que era falso”, ou é verdade que Graciliano Ramos escreveu Angústia”,
ou ainda “a falsidade de seu gesto passou despercebida a quase todos ali
presentes”, pergunta-se primeiramente diante destes enunciados (i) o que os
termos ‘verdadeiro’, verdade’, ‘falso’ e ‘falsidade’ querem dizer ou significam em
cada um deles, (ii) e, em um segundo momento, se pergunta se estes predicados
têm um único ou rios sentidos em todos estes enunciados, e, por fim, (iii), se
possuem vários sentidos, qual deles seria o sentido primário desde o qual os
demais podem ser compreendidos e usados, o que desloca a questão pelos sentidos
dos valores de verdade e falsidade para a pergunta pela definição primária e as
definições secundárias ou subsidiárias de verdade e falsidade.
Sobre este último ponto é possível concluir genericamente admitindo-se, de
um lado, o caráter naturalmente polissêmico dos termos na linguagem comum e,
de outro lado, o caráter vasto de aplicação dos termos em questão, tal como os
exemplos acima indicam – que dificilmente se pode (a não ser em linguagens
56
artificiais) defender que estes termos tenham apenas um único sentido e uma única
definição
12
. Apesar destas evidências são pressupostos amplamente aceitos sem
discussão, tanto que estes termos teriam um único sentido ou definição
(compreendendo-se assim seus demais usos como erros, ilusões ou abusos
praticados na linguagem comum), quanto que tudo aquilo que pode ser definido
deveria possuir uma única definição e não várias
13
.
É comum que se considerem as teorizações e teorias da verdade quase
exclusivamente através do aspecto em que dão respostas (ou procuram dar) a este
problema fundamental, visto que geralmente se espera de uma teoria que ela
forneça uma definição acerca do significado ou da natureza mesma daquilo que é
teorizado. Certamente esta crença comum é correta, mas para que uma teoria ou
12
Deve-se excetuar desta observação crítica a concepção de verdade de John Austin, o qual não
apenas menciona esta polissemia nos usos destes conceitos como também a leva seriamente em
conta em suas teorizações sobre a verdade. Cf. “Truth”, in Truth; (eds.) Simon Blackburn & Keith
Simmons. Oxford: Oxford UP, 2000, pp. 149-161, esp. 149-152. Na realidade, a teoria de Austin se
aproxima da teoria aristotélica em mais de um ponto, mas o principal consiste justamente na
utilização do esquema da significação focal (  ) para pensar
esta polissemia dos conceitos de verdade e falsidade. Austin, aliás, foi um estudioso de Aristóteles.
Sobre a relação de Austin com Aristóteles, veja-se, de Enrico Berti, Aristóteles no século XX; trad.:
Dion D. Macedo. São Paulo: Loyola, 1997, pp. 146-157. Também Strawson parece levar em conta
uma certa polissemia dos termos em questão, porém, na realidade, a teorização deste filósofo leva-o
a considerá-los como atos ilocucionários de consentimento ou recusa, carentes de um significado
próprio, em contraste com os enunciados veiculados em atos locucionários. Cf. “Truth”, in Truth;
opus cit., pp. 162-182, artigo escrito em polêmica aberta à concepção de Austin antes referida. Para
uma avaliação destas teorizações, veja-se Kirkham, R. L., Teorias da verdade, uma introdução crítica;
opus cit., pp. 180-187, 424-432.
13
Não cabe aqui considerar o mérito ou demérito destes pressupostos, discussão que deve ser por
ora postergada a um momento mais oportuno. Doravante, porém, falar-se-á não mais de sentido ou
significado, mas de sentidos ou significados dos conceitos de verdade, dada a pouca probabilidade
de que possuam um único sentido ou significado na linguagem comum, ainda que se possa
encontrar ou defender que haja um significado primário, tal como o fizeram Austin no artigo citado
na nota anterior e também Aristóteles, como ainda se verá. Contudo, por razões de estilo, falar-se-á
ainda de ‘definição da verdade e da falsidade’ ou ‘definição do verdadeiro e do falso’, pressupondo,
contudo, que mesmo havendo uma possível definição geral ou primária há, muito provavelmente,
várias definições parciais ou secundárias destes conceitos, conforme se focalize um de seus sentidos
ou significados específicos.
57
teorização da verdade responda ou uma resposta coerente e persuasiva a este
problema, é necessário que ela responda ou indique uma resposta aos demais
problemas aqui brevemente discutidos. Em todo caso, porém, são as respostas a
este problema que aparecem, prima facie e no mais das vezes, nos textos
introdutórios (sejam livros, artigos, capítulos ou verbetes) dedicados às teorias da
verdade. Quando se fala, por exemplo, em teoria da verdade como
correspondência dos pensamentos ou enunciados aos fatos, ou como coerência
entre um conjunto de crenças, ou ainda de uma teoria semântica da verdade
14
,
aquilo a que se aponta são as respostas ao problema acerca dos sentidos de
verdade e falsidade, ou seja, procura-se fornecer as definições (ou mais comumente
14
É importante notar, contudo, que a teoria semântica da verdade, tal como desenvolvida por
Tarski, implica em um esvaziamento da possível intensão ou sentido dos predicados ‘ser-
verdadeiro’ e ‘ser-falso’ em detrimento de sua extensão ou referência. Tal movimento pode ser
percebido na passagem da questão pelo sentido da verdade nas linguagens naturais em geral para a
questão da verdade em uma meta-linguagem (artificial) L. Esta passagem impede que a
possibilidade de auto-referência dos sentidos de verdade e falsidades na linguagem natural gere
paradoxos semânticos no âmbito lógico-formal (artificial). Na realidade, este movimento de
esvaziamento do sentido em detrimento da referência dos conceitos de verdade e falsidade tem
sido comum na lógica e na filosofia da lógica com o intuito de evitar os vários problemas que a
noção de sentido ou intensão traz consigo em relação sobretudo à lei de substituição, essencial à
lógica clássica. A partir de Quine, tem sido proposto que se diferencie entre uma teoria da
referência e uma teoria do significado, de tal modo que a segunda, de caráter intensional, seja
explicada e reduzida à primeira, de caráter extensional. Tal redução, aplicada ao significado ou
sentido de verdade, propugna uma explicação do mesmo em termos de extensão do conceito de
verdade e por conseguinte de falsidade, ou seja, a propriedade de algo ser verdadeiro ou falso pode
ser reduzida e definida pela classe de coisas que possuem tais propriedades. Sobre a distinção de
Quine, veja-se do mesmo Relatividade ontológica”, in col. Os Pensadores; trad.: Oswaldo Porchat
Pereira. São Paulo: Nova Cultural, pp. 67-90, esp. §§ 1-2. Sobre a aplicação desta redução ao
conceito de verdade, veja-se também de Quine Philosophy of logic, opus cit., esp. caps. 3 e 4. Apesar
desta tendência, Carnap vai na direção oposta ao propor a possibilidade de uma redução da
extensão à intensão em Meaning and necessity, opus cit., cap. 2, § 23, apesar de não levar esta redução
à análise dos conceitos de verdade e falsidade. Não é possível discutir este complexo problema
aqui. Para mais detalhes sobre tal movimento na teoria tarskiana da verdade, veja-se, de Richard
Kirkham, Teorias da verdade, uma introdução crítica; opus cit., caps. 5 e 6. Veja-se também, de Susan
Haack, Filosofia das lógicas; trad.: César A. Mortari & Luiz H. de Araújo Dutra. São Paulo: Unesp,
1998, pp. 143-176. Para uma crítica da distinção de Quine, veja-se, de Celso R. Braida, A complexidade
do nexo semântico; tese de doutorado defendida na PUCRJ, 2001, cap. 8, § 1.
58
‘a’ definição) destes conceitos em seus vários sentidos e, por vezes, também a
articulação estrutural que intercorre entre eles.
O problema acerca da definição da verdade e da falsidade passa pela questão
geral de o que é uma definição. Desde Aristóteles, as definições são divididas entre
definições reais e definições nominais. As definições reais explicitam o que é o
definido em sua própria natureza, em seu ser-essencial. São definições de um
determinado estado ôntico factual. Estas definições são aquelas em que um
conteúdo lógico-semântico (um enunciado ou mesmo um conjunto de enunciados)
está no lugar de uma “coisa”, ou seja, o definiendum da definição é algo “real”. As
definições nominais, ao contrário, são pensadas como definições não do que algo é,
mas do que significa um determinado nome ou descrição definida que serve como
nome de algo. O definiendum da definição, portanto, não é algo propriamente
“real”, mas um nome de algo que pode inclusive não ser real no sentido de não
existir no mundo normal”. Em todo caso, todas as definições de entidades lógico-
semânticas o consideradas como definições nominais, posto que se pensa que
entidades lógico-semânticas são reais apenas na medida em que significam alguma
outra entidade (possível, real, necessária, irreal ou impossível).
Neste sentido, a definição dos meta-predicados ser-verdadeiro e ser-falso
deveria ser apenas uma definição nominal, posto que não existe por aí no mundo
algo como ‘o verdadeiro’ ou ‘o falso’, tal como se encontra na rua ‘Pedro’,
‘Nythamar’, ‘Eduardo’, ‘esta pedra no meio do caminho’, etc. O problema, porém,
começa com o fato de que uma das características que se atribui essencialmente
59
(“por definição”) a uma definição é justamente que seja verdadeira ou seja
admitida como verdadeira. Assim, deve-se dar uma definição verdadeira do que
significam os meta-predicados ser-verdadeiro e ser-falso. Repare-se bem, não
apenas uma definição verdadeira ou admitida como verdadeira do ser-verdadeiro,
mas também uma definição verdadeira ou admitida como verdadeira do ser-falso.
Em primeiro lugar, sem os devidos cuidados, pode se formar um círculo, pois se
deve dar uma definição de uma condição essencial de toda e qualquer definição,
ou seja, uma definição verdadeira ou que possa ser admitida como verdadeira do
predicado ser-verdadeiro. Em segundo lugar, e novamente sem os devidos
cuidados, pode se formar uma contradição, pois se deve dar uma definição daquilo
que qualquer definição verdadeira ou admitida como verdadeira nunca pode ser,
ou seja, uma definição do ser-falso.
Pode-se dizer que não surge nenhum círculo, nem nenhuma contradição, posto
que a definição do ser-verdadeiro e do ser-falso é uma definição nominal, i. e., o
é uma definição do que o essencialmente (realmente) o ser-verdadeiro e o ser-falso,
mas do que significam, e, por isso, que tal definição não necessita ser verdadeira,
mas apenas ser tomada como verdadeira. Neste caso, porém, se se trata de uma
definição apenas nominal do que significam o ser-verdadeiro e o ser-falso, então
tal definição não pode ser retroativamente aplicada à própria definição, ou seja,
que a condição de uma definição ser verdadeira e não falsa não é uma condição
essencial de toda e qualquer definição, mas apenas uma condição convencional.
Quanto a isso não nada que protestar, pois as definições (nominais) não
60
precisam ser necessariamente (essencialmente) verdadeiras, mas devem apenas ser
necessariamente admitidas como verdadeiras.
Mas isto implica então em considerar que todas as definições ditas reais são, na
realidade, definições nominais, pois a condição de que digam o que algo é
essencialmente, a condição de que sejam necessariamente verdadeiras não pode ser
satisfeita, uma vez que a própria definição de verdade aplicada à definição é
apenas nominal e convencional, ou seja, a verdade de uma definição é apenas uma
necessidade de dicto e não de re e tudo o que é dito na definição exprime apenas o
que algo significa, mas não propriamente o que algo é. Mas então o que faz com
que se prefira esta definição de algo a qualquer outra? Porque dizer, de acordo
com as definições ditas reais, que algo é assim e assim e não que significa isto e
isto, e admitindo-se este último caso, o que quer dizer que algo real significa isto e
isto, dado que a coisa mesma não significa nada, pois o que significa são as
entidades semânticas que a designam?
Admitindo-se que a definição dos meta-predicados ser-verdadeiro e ser-falso
seja uma definição nominal e, além disso, dado que estes meta-predicados
possuem vários sentidos, então como dar uma definição do que significam? Seria
forçoso que se tivesse apenas definições e nunca uma única definição destes meta-
predicados. Isto foi aventado, mas foi também indicada a necessidade de se
encontrar, ou ao menos postular, uma definição primária desde a qual os demais
sentidos destes conceitos pudessem ser compreendidos e operados. Mas como dar
ou postular esta definição primária?
61
Além disso, dado que todas as ocorrências dos predicados ser-verdadeiro e ser-
falso devem ser tomadas como definíveis (uma vez que são apenas definições
nominais e não reais), então as aplicações destes predicados a coisas reais (objetos
perceptíveis e estados mentais) devem ser consideradas como válidas e, na
realidade, não se teria mais nenhum critério seguro para dizer que tal ou tal
aplicação destes conceitos a alguma coisa seja válida ou inválida, correta ou
incorreta, posto que não se pode dizer o que estes predicados o, mas apenas
descrever o que e como significam, o havendo, senão por pura idiossincrasia,
possibilidade de se condenar algum uso destes conceitos, já que as definições
dadas devem apenas ser admitidas como verdadeiras, mas não de fato ser
verdadeiras, o que quer dizer que se tem apenas uma prescrição “moral” que
sempre pode ser ignorada.
Todas estas e ainda outras questões congêneres surgem justamente de que se
tome a definição de verdade e falsidade como uma definição nominal. Não é
possível, nem necessário aqui responder a todas elas. Deve-se, bem antes, retomar
a própria divisão entre definições reais e definições nominais e refletir sobre a
pertinência desta divisão no que diz respeito à definição do ser-verdadeiro e do
ser-falso. Definições reais o definições de propriedades objetivas e necessárias
(essenciais) que pertencem efetivamente a algum estado ôntico real e existente de
fato no mundo. Pode-se dizer que são definições de re, ou seja, definições de
“coisas”. Definições nominais são definições de propriedades gico-semânticas
(significados) dos termos que designam estados ônticos, quer sejam reais em
62
sentido estrito, quer sejam puras entidades imaginárias e impossíveis. Pode-se
dizer que são definições de dicto, ou seja, de nomes ou descrições que servem como
nomes. As definições nominais devem ser admitidas como verdadeiras apenas em
caráter hipotético e pragmático, podendo ser reformuladas à vontade, conforme
seja necessário no andamento de uma investigação ou, no decorrer do tempo,
conforme os usos dos termos se modifiquem. “Por definição” as definições reais
devem ser admitas como necessariamente verdadeiras, pois caso se possa o
admiti-las, então não são definições reais, ainda que possam se tornar, por isso,
definições nominais.
Ora, no que diz respeito à definição dos meta-predicados ser-verdadeiro e ser-
falso, esta definição não é nem uma definição de re nem de dicto, uma vez que o ser-
verdadeiro e o ser-falso se aplicam à relação entre pensamento, linguagem e
realidade em geral, ou seja, o ser-verdadeiro e o ser-falso são meta-predicados que
dizem respeito tanto a entidades de re, quanto a entidades de dicto. Mesmo que se
tome unicamente as entidades lógico-lingüísticas como os únicos portadores de
valores de verdade, ainda assim os conceitos de verdade e falsidade aplicados a
estas entidades dizem respeito não propriamente a elas mesmas, mas à sua relação
com algum referente possível, ou seja, ainda assim estes predicados se aplicam à
relação semântica entre entidades de dicto e entidades de re
15
.
15
Isto não se altera nem mesmo se a função semântica e veritativa dos termos e dos enunciados for
pensada como sendo primariamente determinada por outras entidades lógico-lingüísticas, uma vez
que estas outras entidades lógico-lingüísticas o efetivamente algo, ou seja, são também, em certo
sentido, tomadas como entidades de re para outras entidades de dicto.
63
Assim, na definição do ser-verdadeiro e do ser-falso se identificam ser e
significar, uma vez que ser para estes meta-predicados é significar, ou seja, ser ou
significar para o ser-verdadeiro e para o ser-falso, consiste em ser de re e de dicto, e
isto justamente porque são predicados relacionais, porque são predicados lógico-
semânticos e “reais”, uma vez que a relação entre pensamento, linguagem e
realidade possui alguma realidade, a qual é justamente denotada pelos predicados
ser-verdadeiro e ser-falso, e uma vez que a realidade como tal inclui tanto
entidades estritamente reais (entidades de re), quanto entidades lógico-semânticas e
mentais (entidades de dicto), o que fica claro se se considera que as entidades
mentais e lógico-semânticas podem ser tomadas como estados ônticos referentes
pela asseverações. A definição de ser-verdadeiro e de ser-falso deve ser, portanto,
transcendental, uma vez que deve ultrapassar as delimitações categoriais entre tipos
de entidades para poder se aplicar à relação entre pensamento, linguagem e
realidade em geral
16
.
16
Este caráter transcendental constitui justamente o essencial na definição semântica da verdade de
Tarski, posto que ela não é propriamente uma definição do ser-verdadeiro e do ser-falso, mas
estabelece as condições ou critérios de adequação material e formal que qualquer definição da verdade
e da falsidade deve preencher, sem se comprometer com algum significado específico para estes
conceitos, nem com algum tipo de realismo ou anti-realismo epistêmico, lógico ou ontológico no
âmbito da teorização da verdade e da falsidade. Daí, tanto os protestos quanto ao fato de que Tarski
não teria dado propriamente uma definição de verdade, quanto que sua “definição” não teria um
valor filosófico, mas apenas lógico-matemático. A chave para esta neutralidade lógica, epistêmica e
ontológica consiste justamente em não fixar o significado das entidades envolvidas na relação
semântica, mas em determinar o verdadeiro e o falso apenas na relação móvel entre linguagem-
objeto e meta-linguagem, supondo apenas que a primeira linguagem-objeto está de alguma forma
em relação bi-unívoca direta com alguma classe não-vazia de entidades não-semânticas e que a
meta-linguagem é capaz ao menos de exprimir as mesmas sentenças que a linguagem-objeto,
apenas acrescidas dos meta-predicados “é verdade que...” ou “não é verdade que...”. Tarski, porém,
deu prova de uma lucidez e prudência, que sói aos lógicos e matemáticos, ao dizer que esta
“definição” de verdade e falsidade se aplica somente a linguagens artificiais e formais, e não para
as linguagens naturais. A aplicação do esquema T às linguagens naturais foi propugnada por
64
Se o que acaba de ser dito é correto, então, quer enquanto condição essencial e
necessária, quer como condição nominal e convencional das definições, o ser-
verdadeiro diz respeito o propriamente ao conteúdo, mas ao fato de que toda
definição só é definição enquanto realiza uma correlação tanto entre entidades de re
e de dicto, quanto entre entidades de dicto, independente de que esta correlação seja
tomada como necessariamente verdadeira de re (necessidade ontológica) ou apenas
de dicto (necessidade analítica, lógica ou hipotética).
A presente investigação propõe como portadores primários de um valor de
verdade as entidades relacionais complexas que são denominadas asseverações. A
definição de verdade, portanto, diz respeito a estas entidades relacionais e
complexas. Elas o relacionais porque constituídas pelas relações efetivas entre
pensamento, enunciados e realidade e complexas porque justamente são sempre
constituídas pela relação destas três categorias de entidades.
De modo geral, a definição de verdade das asseverações coloca em jogo a
relação de dependência alética entre pensamento, linguagem e realidade através de
três fatores distintos que simbolizam respectivamente pensamento, realidade e
linguagem: (1) a correção do sentido (intensão) de um ato de pensamento
(intenção) em relação (2) ao modo de ser ou realidade de um estado ôntico visado,
(3) através de uma estrutura lógico-semântica consistente capaz de instanciar o
sentido deste ato de pensamento (ser capaz de o exprimir de modo suficientemente
Davidson, mas encontrou dificuldades e opositores igualmente ferrenhos. Qualquer que seja o juízo
sobre o valor filosófico da “definição” semântica de verdade, ela constitui um marco incontornável
para qualquer um que queira pensar atualmente o problema da definição de verdade e falsidade.
65
unívoco) e ser capaz de representar o modo de ser do estado ôntico referido (ser
capaz de o descrever de modo suficientemente unívoco).
Esta conjunção pode ser representada do seguinte modo:
“Dado o sentido de um ato de pensamento x, o modo de ser
de um estado ôntico y e uma estrutura lógico-semântica w
válida, capaz de instanciar o sentido de x e representar o
modo de ser de y, tal que ((o sentido de x é correto
relativamente ao modo de ser de y) se e somente se (o sentido
de x está instanciado em w) e (w representa o modo de ser de
y))”.
De modo ainda mais sucinto este esquema poderia ser expresso na seguinte
forma lógica:
( Sx) ( My) (w) ((Sx C My) ((Sx I w) & (w R My))
Deste modo, a definição lógico-semântica da verdade de uma asseveração
poderia ser expressa deste modo:
A correção do sentido de um ato de pensamento, relativamente ao modo de ser de um estado
ôntico por ele visado, através de uma estrutura lógico-semântica capaz de instanciar o
sentido deste ato de pensamento e capaz de representar o modo de ser do estado ôntico
visado.
Duas são as causas lógico-semânticas da falsidade de uma asseveração, a saber:
1) Ou que uma estrutura lógico-semântica que toma parte de uma asseveração
não seja capaz de instanciar o sentido (intensão) de um ato de pensamento, i. e.,
não seja suficiente para o exprimir de modo unívoco, o que acarreta um equívoco
(para aquele que realiza a asseveração e ou para quem a aceita) quanto ao sentido
do pensamento, ou seja, quanto ao modo de apresentação do estado ôntico visado;
66
2) Ou que esta mesma estrutura lógico-semântica não seja capaz de representar o
modo de ser do estado ôntico visado pelo ato de pensamento, i. e., não seja
suficiente para descrever aquilo que é visado no estado ôntico referido, o que
acarreta um equívoco (para aquele que realiza a asseveração e ou para quem a
aceita) quanto à referência do ato de pensamento e, assim, torna incorreto seu
sentido (seu modo de apresentação do estado ôntico).
Em suma, as causas lógico-semânticas de uma asseveração ser falsa estão, ou no
equívoco quanto ao sentido de um ato de pensamento, ou no equívoco quanto à
referência de um ato de pensamento. Mas existem outras causas possíveis de
falsidade para uma asseveração, causas, porém, que o o lógico-semânticas e
sobre as quais não é possível discorrer agora.
Naturalmente, são excluídos das asseverações atos de pensamento sem sentido
(se é que existem), pois todos os atos de pensamento que tomam parte nas
asseverações possuem em seu sentido uma pretensão de verdade, assim como
estados ônticos inacessíveis, isto é, impensáveis e não representáveis por alguma
estrutura lógico-semântica, tanto quanto mentiras, posto que aquele que mente
sabe o que é verdadeiro.
Muito deveria ser ainda dito para tornar esta definição de verdade e falsidade
persuasiva, mas estes esclarecimentos devem ser postergados para um momento
mais oportuno, quando se tiver esclarecido os outros problemas fundamentais
sobre a verdade e a falsidade e se tiver esclarecido, no percurso da investigação, a
estrutura geral das asseverações.
67
Estas observações permitem trazer à tona um aspecto essencial em questão no
problema acerca dos sentidos e da definição de verdade e falsidade, a saber: o traço
essencialmente lógico-lingüístico presente nos conceitos de verdade e falsidade,
ou, mais especificamente, o que hoje é comum chamar-se de caráter lógico-
semântico da verdade e da falsidade. Contudo, o problema reside justamente em
como compreender e determinar, senão exata, ao menos aproximadamente, que
tipo de relação intercorre entre os conceitos lógico-semânticos (focados no
esclarecimento do conceito de significação enquanto núcleo das teorias semânticas)
e os conceitos de verdade e falsidade. O ponto em questão é saber em que medida
os conceitos semânticos dependem da determinação prévia dos sentidos dos
conceitos de verdade e falsidade e em que medida a determinação dos sentidos
destes conceitos depende da prévia determinação daqueles. Qualquer que seja a
estratégia argumentativa adotada frente a este dilema, uma coisa é certa: as
decisões filosóficas sobre os sentidos dos conceitos de verdade e falsidade afetam
de modo indelével as teorizações e teorias semânticas e as decisões filosóficas
acerca dos conceitos semânticos afetam também as teorias e teorizações da
verdade.
É a partir desta relação estreita entre conceitos semânticos e aléticos que se
pode compreender como e porque a pergunta pelos sentidos ou significados e pela
definição de verdade e falsidade coloca concomitantemente o problema das
condições de verdade da linguagem em geral, seja na forma dos termos que compõem
os enunciados, seja na forma dos enunciados mesmos ou na interconexão destes
68
para constituir um discurso articulado. A relação estreita entre estas temáticas
ocorre porque um dos traços essenciais da linguagem (termos, enunciados ou
discursos) consiste justamente em seu poder de expressar e estruturar
pensamentos e de representar estados ônticos de modo verdadeiro ou falso, de tal
maneira que necessariamente toda discussão acerca das propriedades semânticas
da linguagem em geral se “confunde” com a discussão acerca de suas condições de
verdade
17
.
Deve-se advertir, porém, que esta sobreposição inevitável não garante de chofre
uma identificação entre os conceitos e problemas da teorização semântica e aqueles
da teorização da verdade. A suspeita justa, antes mencionada, de que os
portadores de verdade não se restringem a entidades ou tipos de entidades
puramente lógico-lingüísticas coloca uma tal identificação também em suspenso.
Se se fizer uma tal identificação, então os problemas ontológicos e epistêmicos
envolvidos na teorização da verdade e da falsidade, devem ser ou redutíveis aos
problemas lógico-lingüísticos, ou simplesmente encarados como perspectivas
errôneas sobre a verdade (“ilusões de ótica”) daqueles que levantam tais
problemas. Tais alternativas foram aventadas, mas os problemas que trazem
17
É neste sentido que Donald Davidson identifica uma teoria do significado para alguma
linguagem natural com uma teoria da verdade para esta mesma linguagem, identificação esta o
isenta de problemas que m sido levantados por seus críticos. Para uma excelente discussão das
teses de Davidson e das críticas feitas às mesmas por Dummett, veja-se, de Richard Kirkham,
Teorias da verdade, uma introdução crítica, opus cit., cap. 8. Para uma avaliação crítica do projeto
davidsoniano, à luz de sua ligação com a teoria semântica da verdade de Tarski, veja-se, Susan
Haack, Filosofia das lógicas, opus cit., pp. 171-176. Para uma discussão da problemática geral
envolvida na tese central de Davidson e uma crítica à mesma, veja-se, de Peter Strawson,
“Significação e verdade”, in col. Os Pensadores, trad.: Balthazar Barbosa Filho. São Paulo: Nova
Cultural, 1989, pp. 221-235. Do próprio Davidson, veja-se De la verdad y de la interpretacion; trad.:
Guido Filippi. Barcelona: Gedisa, 1995, esp. os artigos da primeira parte.
69
consigo são tão grandes ou ainda maiores do que aqueles existentes na perspectiva
da não identificação entre a problemática alética e a problemática lógico-semântica.
Entrando rapidamente no mérito da questão, se os sentidos de verdade e falsidade
se reduzem a sentidos puramente lógico-lingüísticos, então se deve estar disposto a
excluir qualquer sentido de verdade e falsidade que se ligue a qualquer tipo de
pensamento ou entidade mental ou a qualquer tipo de estado ônticos não
lingüísticos. Com isso, adota-se uma concepção da semântica em que os conteúdos
e funções semânticas das expressões lingüísticas o teriam nenhuma ligação com
entidades mentais ou estados ônticos não-lingüísticos, e assim tais entidades
semânticas se resolveriam unicamente através de remissões a outras entidades
puramente semânticas, o que torna os conceitos semânticos auto-referentes e
circulares. Tal concepção tem sido sugerida por alguns teóricos, mas traz consigo
problemas filosóficos sérios e uma atitude reducionista que sacrifica intuições e
crenças comuns bastante sedimentadas sobre a relação dos seres humanos consigo
mesmos, com os demais e com o mundo em que vivem
18
. Caso se insista em
afirmar um “realismo lingüístico” em que se exclui a existência de qualquer tipo de
entidades não lingüísticas, então os limites entre lógica, epistemologia e ontologia
estarão completamente comprometidos, o que, ademais, ameaça a própria
especificidade e identidade da semântica frente a outros tipos de investigação.
18
Para uma discussão detalhada destas concepções semânticas, seus problemas e os colapsos
argumentativos gerados por elas, veja-se, de Celso Braida, A complexidade do nexo semântico, opus
cit., caps. 4 e 7.
70
Estas observações críticas permitem introduzir outros dois problemas
fundamentais acerca da verdade que solapam (ou ao menos põem em xeque) a
identificação entre teorizações semânticas e teorizações sobre a verdade, a saber: o
problema dos produtores de verdade e o problema dos princípios e critérios de verdade.
71
CAPÍTULO II:
O PROBLEMA ACERCA DOS PRODUTORES E DA PRODUÇÃO DE VERDADE
§ 1 – Introdução: produtores de verdade, portadores de verdade e
o conceito de dependência ontoalética
O problema dos produtores de verdade (truthmakers) e da produção de verdade
(truthmaking), bastante discutido atualmente, foi estabelecido de modo claro como
objeto de controvérsia recentemente
19
, mas aquilo que põe em questão é algo
presente nas teorias e teorizações da verdade desde a filosofia antiga, tal como se
verá mais adiante. De modo geral, pode-se definir um produtor de verdade como
aquela entidade (real) cuja verdade é responsável por produzir o valor de verdade
de outra entidade (real). Assim, em princípio, todo portador de um valor de
verdade (verdadeiro ou falso) possui algum estado ôntico verdadeiro que é o
produtor deste valor de verdade. Em suma, se algo é verdadeiro ou falso, então é
verdadeiro ou falso por causa de alguma outra coisa que é verdadeira. Deste
modo, se os predicados ser-verdadeiro ou ser-falso se aplicam a algo, este algo é
19
É mérito de três autores em um artigo hoje indispensável à discussão sobre a problemática da
verdade terem estabelecido e delimitado definitivamente o debate em torno aos produtores de
verdade, são eles Kevin Mulligan, Peter Simons e Barry Smith. O longo artigo intitulado Truth-
makers” e publicado em Philosophy and Phenomenological Research, vol. 44, 1984, pp. 287-321, coloca
as bases gerais para a reabilitação do problema dos produtores de verdade, levantado por Husserl,
Russell e Wittgenstein, mas sistematicamente esquecido e ocultado em detrimento problema dos
portadores de verdade e da definição de verdade a partir das análises puramente lógico-semânticas
do conceito de verdade a partir dos textos de Tarski. A expressão ‘truth-makers’ (atualmente mais
usada sem hífen) é cunhada a partir de uma passagem encontrada no § 39 da sexta Investigação
lógica de Husserl (cf. artigo citado, p. 314, n. 2).
72
verdadeiro ou falso por causa de alguma outra entidade verdadeira da qual seu
valor de verdade é dependente.
No entanto, dentro da discussão sobre os produtores de verdade, quatro
pressupostos que serão postos em dúvida na presente investigação. O primeiro
pressuposto é o de que as únicas entidades capazes de serem portadoras de um
valor de verdade são proposições, sentenças ou enunciados. O segundo
pressuposto é o de que apenas proposições, sentenças ou enunciados verdadeiros
possuem um produtor de verdade, sendo todas as proposições, sentenças ou
enunciados falsos carentes de um produtor deste valor de verdade. O terceiro
pressuposto é que apenas proposições, sentenças ou enunciados contingentes
podem, quando são verdadeiros, ter um produtor de verdade, não o tendo,
portanto, as proposições, sentenças ou enunciados analíticos ou tautológicos nem
os enunciado contraditórios. O quarto pressuposto é que portadores de verdade
não podem ser produtores de verdade. No momento serão discutidos apenas o
primeiro e o quarto pressupostos, os demais serão discutidos após uma
determinação prévia dos produtores de verdade e dos tipos gerais de produção de
verdade.
Quanto ao primeiro pressuposto. Na perspectiva desta investigação os
portadores primários de verdade são as asseverações. As asseverações o
entidades complexas e abstratas, constituídas pela relação entre pensamentos,
enunciados e estados ônticos. Os predicados ser-verdadeiro e ser-falso se aplicam
primariamente a esta relação. Uma relação é verdadeira quando o pensamento que
73
a constitui possui uma pretensão de verdade correta (justificada) relativamente ao
estado ôntico que visa, quando os enunciados que expressam este pensamento
possuem uma estrutura lógico-semântica consistente (válida) e quando o estado
ôntico referido possui realmente as características a ele atribuídas. Uma relação é
falsa quando ao menos um destes pontos falha, ou seja, quando não há correção do
pensamento, ou não consistência nos enunciados ou realidade nos estados
ônticos referidos, pois a verdade de uma asseveração é constituída pela conjunção
destes três fatores, e uma conjunção é verdadeira se, e somente se, as partes da
conjunção são conjuntamente verdadeiras. Neste sentido, se o ser-verdadeiro e o
ser-falso se aplicam primariamente à correlação entre pensamento, linguagem e
realidade efetivada nas asseverações, e a verdade desta correlação depende da
verdade de suas partes, então é necessário que tanto enunciados quanto
pensamentos e estados ônticos sejam possíveis portadores de um valor de verdade,
ainda que este valor de verdade seja sempre relativo e posterior à correlação e
conjunção entre pensamentos, enunciados e estados ônticos, ou seja, é necessário
que nenhum destes três fatores seja verdadeiro ou falso por si mesmo. Assim, se a
verdade ou a falsidade são conceitos que se aplicam primariamente à relação entre
pensamento, linguagem e realidade, é necessário que não apenas estados ônticos
lingüísticos sejam portadores de verdade, mas também estados ônticos não-
lingüísticos
20
.
20
Não se propugna aqui algum tipo de verdade misteriosa, silenciosa, mística, pré-lingüística ou
pré-predicativa que seria instanciada por pensamentos e por objetos. O que se pretende dizer é tão-
somente que entidades mentais e entidades reais em sentido amplo não são entidades propriamente
74
A partir disso, pode-se analisar o quarto pressuposto, ou seja, que portadores
de verdade não podem ser produtores de verdade. Se se admite com os teóricos da
produção de verdade que os produtores de verdade dos enunciados, sentenças ou
proposições o os estados ônticos referidos, e se se admite que qualquer
enunciado possa ser referido por uma asseveração, e que dentre os enunciados
enunciados portadores de um valor de verdade, então como não admitir que
portadores de verdade sejam ou possam ser também produtores de verdade?
Assim, tomando-se estritamente aquilo que é admitido pelos teóricos da produção
de verdade o se pode restringir os produtores de verdade apenas aos estados
ônticos que não são portadores de verdade.
Levando em conta estes dois conjuntos de argumentos, na perspectiva desta
investigação a questão pelos produtores e pela produção de verdade será
caracterizada por dois aspectos gerais complementares:
lingüísticas envolvidas na relação veritativa entre pensamento, linguagem e realidade instanciada
nas asseverações concretas. Pensamentos que podem ser verdadeiros ou falsos são sempre e
necessariamente instanciados na linguagem, assim como objetos (além dos enunciados e dos
pensamentos) que podem ser verdadeiros ou falsos são sempre e necessariamente objetos
nomeados, definíveis e representáveis através da linguagem. Aquilo que se põe em dúvida aqui é
que apenas entidades lógico-lingüísticas em sentido estrito (termos, frases declarativas, enunciados,
sentenças, proposições, formas lógicas, etc.) sejam os únicos portadores de verdade e o sejam por
sua própria natureza. Na realidade, as entidades lógico-lingüísticas são portadoras de verdade na
medida em que intermediam relações efetivas entre pensamentos e estados ônticos, ou seja,
entidades estritamente lógico-lingüísticas são portadoras de verdade apenas porque sua natureza
consiste em intermediar, de modo universal e necessário, todas as relações entre o espírito humano
e a realidade em geral, inclusive a relação do espírito humano consigo mesmo e as relações entre os
objetos entre si, além de poderem, é claro, servir como meio para se compreender e analisar a
própria linguagem tomada como objeto de investigação. Deste modo, certamente é pela linguagem
que os predicados ser-verdadeiro e ser-falso se aplicam à relação entre pensamentos, enunciados e
estados ônticos realizada nas asseverações concretas, e se aplicam a esta relação porque a
característica definitória das entidades lingüísticas é a de serem entidades relacionais. Mas
justamente por sua natureza relacional, e a partir dela, os predicados ser-verdadeiro e ser-falso se
aplicam também às entidades não-lingüísticas que são ligadas através da linguagem.
75
I Dado que as asseverações são os portadores primários de valores de
verdade, então é necessário investigar quais são os produtores de verdade das
asseverações em geral.
II – Mas dado que as partes das asseverações podem ser também portadoras de
um valor de verdade, e que para todos os portadores de verdade, em princípio,
deve haver produtores de verdade, então é preciso também determinar quais os
produtores de verdade para estas partes das asseverações.
Compreendido deste modo, o problema dos produtores de verdade está
necessariamente ligado tanto ao problema dos portadores de verdade quanto ao
problema dos sentidos e da definição de verdade e falsidade, uma vez que as
asseverações são portadoras primárias de verdade e que instanciam tipos de
entidades ou estados ônticos que podem adquirir a partir das asseverações um
valor de verdade. Perguntar-se assim, de um lado, pela causa ou porquê em geral das
asseverações, enquanto tipo primário de portador de verdade (num determinado
momento ou sempre), terem este ou aquele valor de verdade, isto é, pelo
fundamento de toda e qualquer asseveração (necessariamente, possivelmente ou
atualmente
21
) ser-verdadeira ou ser-falsa. Mas, de outro lado, pergunta-se pela causa
21
Por razões de brevidade e clareza não serão discutidas aqui as relações entre produtores de
verdade, dependência ontológica e modalidades, o que se fará, parcial e especificamente, quando se
discutir o problema acerca dos princípios e critérios de verdade e quando da reconstrução da teoria
aristotélica da verdade. Em todo caso, a abordagem dos produtores de verdade através do conceito
de dependência ontológica, proposta sumariamente aqui, tem a vantagem de estabelecer uma
ligação mais clara e direta entre modalidades aléticas e modalidades metafísicas ou ontológicas,
muitas vezes separadas pelos autores de forma inconciliável, descurando-se assim importantes usos
dos conceitos modais na linguagem e no pensamento comuns, nos quais modalidades aléticas têm
freqüentemente uma remissão a modalidades ontológicas e vice-versa. A abordagem feita aqui
também possibilita uma transitividade mais simples entre modalidades de dicto e de re, pois deixa de
76
ou pelo porquê específico de cada tipo de entidade que pode tomar parte em uma
asseveração ser-verdadeira ou ser-falsa.
Apesar desta vinculação com os problemas e questões gico-semânticas acerca
dos portadores, dos sentidos e da definição de verdade, o núcleo do problema em
questão é, visivelmente, ontológico
22
, pois aqui a questão fundamental está em se
determinar a estrutura de relações de dependência ontológica
23
que intercorrem entre
as entidades que são portadoras de um valor de verdade (são verdadeiras ou
falsas) e as entidades que são produtoras deste valor de verdade. Dado que,
conforme o estabelecido, há dois tipos gerais de portadores de verdade, o primeiro
tipo constituído pela classe de todas as asseverações possíveis, enquanto
portadoras primárias de verdade, e o segundo tipo constituído pelas três classes de
entidades que compõem as asseverações, então é necessário determinar a relação
fazer a identificação simpliciter e usual, de um lado, entre modalidades de dicto e aléticas, e, de outro,
entre modalidades de re e ontológicas, sem, contudo, propugnar algum tipo de redução de um tipo
a outro como tem sido comum se propor. Sobre este ponto, veja-se, de T. Schwartz, “De re language,
de re eliminability, and the essential limits of both”, in Journal of Philosophical Logic, vol. 26, 4,
1997, pp. 521-544. Veja-se ainda o excelente artigo de Tony Roy, “Things and de re modality”, in
Nous, vol. 34, 1, 2000, pp. 56-84, onde se mostra que a distinção entre modalidades de re e de dicto
depende da determinação dos produtores de verdade para enunciados modais, bem como da
perspectiva em que se considera a natureza própria às entidades lógico-semânticas.
22
Sobre o sentido ontológico da questão acerca dos produtores de verdade, veja-se “Truth-makers”,
art. cit., §§ 1, 2 e 3. Veja-se também, de Barry Smith, “Truthmaker realism”, in Australasian Journal of
Philosophy, vol. 77, 3, 1999, pp. 274-291. Veja-se também, de Philipp Keller, “Truthmaker realism
and the taste for desert landscapes”, in <http://www. unige.ch/lettres/philo/enseignants/philipp
/research/>.
23
Sobre o conceito de dependência ontológica, veja-se, de Kit Fine, Ontological dependence”, in
Proceedings of Aristotelian Society, vol. 45, 3, 1995, pp. 269-290. Veja-se também, de Peter Simons,
Parts a study in ontology. Oxford: Clarendon, 2000 (1987), cap. 8. Uma vinculação mida entre o
problema dos produtores e da produção de verdade com o conceito de dependência ontológica se
encontra no texto de Barry Smith, “Truthmaker realism”, art. cit., pp. 280-282. Uma vinculação
parcialmente semelhante à presente abordagem usando o o conceito de dependência ontológica,
mas o conceito de compromisso ontológico, é feita no texto de Philipp Keller, “Truthmaker realism
and the taste for desert landscapes”, art. cit., onde, porém, não se adere à tese de que todos os
portadores de verdade têm produtores de verdade, mas, como na abordagem tradicional, investiga-
se apenas os produtores de verdade para enunciados verdadeiros.
77
de dependência ontológica entre as asseverações e seus produtores de verdade,
bem como a relação de dependência ontológica entre esta três classes de entidades
e seus produtores de verdade. Tais tipos de entidade que compõem as
asseverações podem ser classificados em três categorias, a saber: entidades
mentais, entidades lógico-semânticos e entidades reais. Esta divisão entre três tipos
de entidades, todavia, não é propriamente ontológica no sentido de estabelecer
uma ontologia ou categorias ontológicas fixas, uma vez que entidades mentais e
lógico-semânticas são também entidades reais. Esta divisão é, conforme se tornará
mais claro adiante, uma divisão ontoalética, ou seja, uma divisão categorial entre
tipos de entidades que tomam parte nas asseverações, enquanto estas
correlacionam sempre pensamentos, enunciados e estados ônticos reais, quer estes
estados ônticos visados sejam entidades consideradas, do ponto de vista da
ontologia do senso-comum, como estritamente reais, isto é, objetos, fatos ou
estruturas factuais perceptíveis no mundo comum, quer sejam estados ônticos que,
desde este mesmo ponto de vista, sejam considerados irreais ou impossíveis, tais
como quimeras, unicórnios, cavalos alados, círculos quadrados, etc.
Sumária e genericamente definida, a dependência ontológica significa:
Se a entidade a depende da entidade b para ser o que é, então se b existe ou
ocorre, então a é, e se b não existe ou não ocorre, então a não é.
Transposta à relação de produção de verdade entre as categorias de entidades
indicadas, pode-se dizer de modo geral que:
Se x é um portador de verdade porque y é verdadeiro o caso, acontece), então
o valor de verdade verdadeiro ou falso) de x depende do ser-verdadeiro de y, e
78
assim, se y não é verdadeiro (não é o caso, não acontece), então x não é um
portador de verdade, ou seja, é falso que x é um portador de verdade.
Chamar-se-á este esquema geral de definição de dependência ontológico alética, ou
simplesmente de dependência ontoalética ou alética das entidades ou tipos de
entidades que podem ser portadoras de verdade em relação às entidades que
produzem seu valor de verdade.
A relação geral de dependência ontoalética pode ser expressa na seguinte forma
lógica (onde ‘V’ simboliza o predicado “ter um valor de verdade”, ‘W’ significa o
predicado “o ser-verdadeiro de” e ‘D’ significa o predicado relacional “depende
ontoaleticamente de”):
(x) (y) ((Vx) D (W y))
que quer dizer:
“Para toda entidade ou fato x, existe ao menos uma entidade y, tal que
necessariamente o valor de verdade de x depende ontoaleticamente da verdade de
y”.
A dependência ontoalética de um portador de verdade em relação a um
possível produtor de seu valor de verdade pode ser logicamente definida de modo
estrito como segue:
(x) (y) ( ((Wy) (Vx)) ( ~ ((Vx) (Wy))).
Esta forma lógica pode ser traduzida como:
“Para toda entidade x, existe ao menos uma entidade y, tal que, necessariamente,
(se y é verdadeira então x tem um valor de verdade), se e somente se
79
(necessariamente não é o caso que se x tem um valor de verdade, então y é
verdadeira)”.
24
Na realidade, esta definição serve igualmente e significa o mesmo que o
predicado relacional de produção de verdade apenas invertendo a ordem dos
argumentos (onde ‘P’ simboliza o predicado relacional “produz o valor de verdade
de”):
(x) (y) ((Wy) P (Vx))
que pode ser lido assim:
“Para toda entidade x, existe ao menos uma entidade y, tal que necessariamente o
ser-verdadeiro de y produz o valor de verdade de x”.
Assim, pode-se definir a dependência ontoalética como logicamente
equivalente de modo estrito à relação de produção de verdade, apenas invertendo
a posição dos argumentos, ou seja:
(x) (y) [((Vx) D (Wy)) ((Wy) P (Vx))] [(( ((Wy) (Vx))
( ~ ((Vx) (Wy))]
Tal inversão se justifica como formalização do caráter gramatical de cada um
dos predicados, pois a relação de dependência ontoalética é expressa
24
Note-se que o operador , indicando necessidade, torna a implicação estrita, ou seja,
formalmente expresso isto significa ‘~ ((Wy) & ~ (Vx)’, que traduzido à linguagem comum diz
“não é possível que a entidade y seja verdadeira e a entidade x não possua um valor de verdade”.
Note-se ainda que o operador modal de necessidade está dentro do escopo dos quantificadores,
sendo, portanto, uma necessidade de re, o que indica precisamente o sentido ontológico dos
conceitos de dependência ontoalética e de produção de verdade, pois se trata justamente de
determinar como e porque uma determinada entidade que é verdadeira pode ser produtora do valor
de verdade de outra entidade que é portadora de verdade, ou seja, mesmo se se permanece no nível
das entidades chamadas lógico-semânticas (entidades de dicto), trata-se ainda de determinar o
fundamento ontológico de seu ser verdadeiro ou seu ser falso, não, porém, através de uma
passagem do ser simpliciter de uma entidade real (de re) para o ser-verdadeiro ou ser-falso de outra
entidade (o que se poderia considerar uma
  ☯ ), mas através da passagem do ser-
verdadeiro (de re) de uma entidade para o ser-verdadeiro ou ser-falso de outra entidade (de re).
80
gramaticalmente no sentido passivo e a relação de produção de verdade é expressa
gramaticalmente no sentido ativo. Ambos os predicados, porém indicam o mesmo
fato de maneiras e perspectivas distintas, fato este que é apreendido pela definição
logicamente expressa acima
25
.
§ 2 – Os produtores de verdade e
a hierarquia ontoalética entre as asseverações
25
No caso haver uma interdependência ontoalética entre duas entidades, de tal modo que a
verdade de uma é produtora da verdade da outra, então tal relação pode ser representada
formalmente da seguinte maneira:
(x) (y) ((Wy) (Wx)) ((Wy) P (Wx) & (Wx) P (Wy))).
Neste caso é sempre possível intercambiar o predicado binário ‘a verdade de (_) produz o valor
de verdade de (_)pelo predicado ‘o valor de verdade de (_) depende ontologicamente da verdade
de (_)’, salva veritate. Tal interdependência ontoalética na produção de verdade ocorre, por
exemplo, no caso das essências (espécies) de um mesmo gênero ou tipo, cuja verdade é implicada
mutuamente sem que se possa estabelecer uma derivação ou dependência ontológica de uma delas
em relação à outra, ou ainda é o caso das tautologias, e, assim, desde que se esteja disposto a
quantificar proposições ou enunciados, poder-se-ia representar sua interdependência ontológico-
alética do seguinte modo:
(p) (q) ((Wp) (Wq)) ((Wp) P (Wq) & (Wq) P (Wp))),
sendo ‘pe ‘q’ abreviaturas de enunciados ou proposições tautológicas quaisquer.
Note-se, porém, que aqui não se trata de uma produção de verdade do mesmo nível ou sentido que
as anteriores, mas de uma produção de verdade sempre verdadeira, ou seja, trata-se de instâncias
analíticas ou tautológicas em que a verdade de uma entidade produz a verdade de outra e vice-
versa. Daí o uso apenas de quantificadores existenciais, posto que não se trata de exprimir que para
qualquer entidade ou tipo de entidade que é portadora de um valor de verdade, existe ao menos
uma outra entidade com o valor de verdade verdadeiro tal que esta entidade seja a produtora de
verdade da primeira. Não, aqui o valor de verdade está fixado, e a produção de verdade indica
tão somente a compatibilidade (não-contradição) entre a verdade destas duas entidades.
Na realidade, trata-se de duas entidades que o propriamente produzem a verdade uma da outra
nem são propriamente interdependentes, mas de entidades que são ontoaleticamente
independentes de outras entidades quanto à sua verdade, podendo serem, contudo,
ontologicamente dependentes umas das outras, o que mostra que não identificação simpliciter
entre o estatuto ontológico do ser-verdadeiro e do ser-falso e o estatuto ontológico em geral das
entidades que podem ser portadoras de um valor de verdade.
81
A partir destes esclarecimentos iniciais, pode-se caracterizar com mais precisão
a problemática em torno aos produtores de valor de verdade. Todas as entidades
que são ou podem ser portadoras de um valor de verdade têm algum produtor
para seu valor de verdade, ou seja, se uma entidade é verdadeira ou é falsa, então
necessariamente este valor de verdade é dependente de um produtor de verdade.
Um produtor de verdade, portanto, é de fato uma entidade que existe. Por isso,
uma diferença nas formalizações entre a verdade da entidade que desempenha o
papel de produtora de verdade (o que é simbolizado pela letra ‘W’) e o valor de
verdade de uma entidade que é portadora de verdade (o que é simbolizado pela
letra ‘V’). A diferença entre ambas as entidades consiste justamente em que uma
delas possui necessariamente o valor de verdade de ser-verdadeira e a outra possui
um valor de verdade que pode tanto se constituir como o ser-verdadeiro ou como
o ser-falso. Este valor de verdade depende ontologicamente da verdade de seu
produtor de verdade. Assim, na relação de dependência ontoalética dos portadores
de verdade em relação a seus produtores de verdade, se um portador de verdade
assume o valor de verdade do ser-falso, então este valor de verdade depende de
uma entidade que é verdadeira.
Isto não significa contrariar a tese milenar segundo a qual do verdadeiro nunca
pode se seguir o falso. Isto significa, bem antes, que a causa ontológica de que algo
seja considerado falso é a verdade de algo. Se um portador de verdade porta o
valor de ser falso, então necessariamente existe algum portador de verdade que
possui o valor de ser verdadeiro, mas se alguma entidade porta o valor de ser
82
verdadeira não necessariamente existe um portador do valor ser-falso. Isto é
contraparte ontológica da tese de que do verdadeiro necessariamente nunca pode
se seguir o falso, mas do falso pode se seguir o verdadeiro. Por isso, na forma
lógica da definição de dependência ontoalética e de produção de verdade, foi
interditada a passagem de um portador de verdade para um produtor de verdade,
ou seja, ‘( ~ ((Vx) (Wy))’. No entanto, se algo é portador de um valor de
verdade, então necessariamente existe alguma entidade verdadeira que é
produtora deste valor de verdade, ou seja, ‘( ((Wy) (Vx))’. Isto mostra que no
caso de um produtor de verdade o significado de ser-verdadeiro se identifica
necessariamente com o significado de existir para esta entidade enquanto é
produtora de verdade, enquanto no caso de um portador de verdade seu valor de
verdade (que pode ser o verdadeiro ou o falso), sua existência não é igual à sua
verdade, mas sua existência, enquanto portador de um valor de verdade, depende
necessariamente de alguma entidade cujo modo de ser é ser-verdadeira. Por que
então não simplesmente usar para a entidade produtora de verdade o meta-
predicado da existência, ou seja, ao invés de ‘Wydizer ‘Ey’? Justamente porque da
existência de algo não se pode derivar ou fazer depender a existência de algo que é
portador de verdade. Não se trata simplesmente da existência de algo que é
produtor de verdade e da existência de algo que é portador de verdade, mas da
relação entre a existência de algo no mundo que é portador de verdade e de algo
que é produtor de verdade para esta entidade que portadora de um valor de
verdade, ou seja, não se trata apenas da existência de duas coisas, mas da correlação
83
entre os modos de existência de dois tipos de entidades, mais especificamente da relação
de dependência de um modo de ser (ser portador de verdade) em relação a outro
modo de ser (ser produtor de um valor de verdade). Assim, o ser-verdadeiro para
uma entidade que é portadora de um valor de verdade é diferente do ser-
verdadeiro de uma entidade que é produtora de verdade.
Isto pode ficar mais claro ao se aplicar tal esquema às entidades que são
propriamente portadoras de um valor de verdade: as asseverações. Uma
asseveração é constituída por um ato de pensamento, um enunciado ou conjunto
de enunciados e por um estado ôntico referido (visado e representado). É este
estado ôntico ao qual se refere a asseveração que é produtor de seu valor de
verdade, ou seja, é por causa deste estado ôntico que uma asseveração é verdadeira
ou é falsa. Em qualquer asseveração a existência do estado ôntico referido é
pressuposta, pois não é possível se referir (visar e representar) o que não existe.
Uma asseveração é verdadeira quando, e somente quando, o sentido do ato de
pensamento que a constitui é correto, o enunciado ou conjunto de enunciados que
exprimem este sentido é consistente (válido) e o estado ôntico referido é ou não é
tal como a asseveração diz que é ou que não é.
No entanto, aqui um problema que se revelará intimamente ligado à
discussão do presente contexto. Uma asseveração pode ser afirmativa ou negativa
com relação ao estado ôntico referido, ela pode dizer que ele é assim e assim, e
pode dizer que ele não é assim e assim. No caso de uma asseveração afirmativa ser
verdadeira não há problemas maiores: a causa de ela ser verdadeira é justamente o
84
fato de que o estado ôntico visado é assim e assim. Mas no caso de uma
asseveração negativa ser verdadeira, então é o o ser do estado ôntico referido
que é causa dela ser verdadeira? Por mais estranho que, à primeira vista, possa
parecer, a resposta é não. A causa de uma asseveração negativa ser verdadeira é
precisamente o modo de ser do estado ôntico visado. Quando se assevera com
verdade que tal estado ôntico não é tal e tal, então esta asseveração negativa é
verdadeira porque o estado ôntico referido é de outro modo (ele de fato é não-assim
e assim, porque ele é qual e qual). Aqui se mostra a cisão entre o modo de ser
verdadeiro de um produtor de verdade e o modo de ser verdadeiro de um
portador de verdade, a saber: uma asseveração negativa verdadeira sempre
pressupõe ou implica uma asseveração afirmativa verdadeira, mas o inverso não é
o caso, ou seja, uma asseveração afirmativa verdadeira não pressupõe ou implica
necessariamente uma asseveração negativa verdadeira.
Isto se torna claro ao se analisar o caso das asseverações falsas. De modo
resumido, uma asseveração é falsa quando o estado ôntico por ela referido não é
tal como ela diz que é ou que não é. Já foi visto quais as causas lógico-semânticas
de uma asseveração ser falsa, a saber: um erro no sentido ou um erro na referência.
No entanto, estas causas são estritamente lógico-semânticas. Elas pressupõem uma
única causa ontológica ou ontoalética para sua falsidade, e esta causa é
precisamente que o modo de ser do estado ôntico referido não é tal como a asseveração diz
que é ou que não é. O modo de ser de um estado ôntico referível é tal como e quando
é, mas a asseveração diz que este modo de ser é tal e tal quando na realidade é
85
outro, ou diz que tal modo de ser não é tal e tal quando na realidade ele é tal. Aqui
é novamente o modo de ser do estado ôntico referido que é causa da falsidade da
asseveração, tanto causa de ser falsa a asseveração afirmativa, quanto a
asseveração negativa que se referem a este estado ôntico. Isto tudo significa que a
causa ontológica da falsidade de uma asseveração (afirmativa ou negativa) consiste
justamente em uma falha em seu sentido, ou seja, não propriamente uma falha
na referência, uma vez que toda asseveração possui um referente, mas é o modo
como a asseveração diz que este referente é ou não é que faz esta asseveração ser
falsa. Mais exatamente: é o modo de ser efetivo do estado ôntico visado e
representado que torna o sentido de uma asseveração falsa e que provoca o erro na
referência desta asseveração
26
. Se ela diz que ele não é tal, quando na realidade é
tal, então é este modo de ser efetivo que torna a asseveração negativa falsa, e é
também o modo de ser efetivo do estado ôntico referido que torna a asseveração
afirmativa falsa, pois ela diz que ele é tal quando na realidade ele é de outro modo.
Por isso, uma asseveração falsa, quer seja afirmativa quer negativa, pressupõe ou implica
necessariamente uma asseveração afirmativa verdadeira, mas necessariamente não o
26
A falha lógico-semântica de referência é, na realidade, resultado de uma falha no sentido, o que
justifica a tese fregeana de que, do ponto de vista lógico-semântico, a referência é uma função do
sentido de um enunciado e o o inverso. Como foi visto esta falha na referência de uma
asseveração era provocada justamente pelo fato de que uma estrutura lógico-semântica em que o
sentido de um pensamento está instanciado o é capaz de representar o modo de ser do estado
ôntico referido, o que acarreta que é o sentido instanciado nesta estrutura lógico-semântica válida
que é incorreto quando dito de um determinado referente, ou seja, a falha na referência de uma
asseveração é possível porque o modo de ser do referente da asseveração é diverso daquele que
o sentido de um pensamento assevera que é ou que não é. Se se toma a definição fregeana de
sentido como o modo de apresentação de um referente, então o modo de apresentação do referente
de uma asseveração é incorreto por causa do próprio modo de ser deste referente, ou seja, de seu
verdadeiro sentido.
86
inverso, ou seja, uma asseveração verdadeira (afirmativa ou negativa) nunca
pressupõe ou implica uma asseveração falsa (negativa ou afirmativa). Percebe-se
uma analogia entre o fato de uma asseverão negativa verdadeira pressupor ou
implicar necessariamente uma asseveração afirmativa verdadeira (mas não
necessariamente o inverso
27
) e o fato de que necessariamente uma asseveração
falsa (afirmativa ou negativa) pressupor ou implicar uma asseveração afirmativa
verdadeira, mas necessariamente não o inverso.
Com estes esclarecimentos fica claro porque uma cisão entre o modo de ser
de um produtor de verdade e o modo de ser de um portador de verdade, ou seja,
se torna claro que o modo de ser de um produtor de verdade é sempre o ser-
verdadeiro que se identifica com sua existência, enquanto é um produtor de verdade, e
que o modo de ser de um portador de verdade se identifica com seu poder ser
verdadeiro e poder ser falso e é dependente do ser-verdadeiro (do modo de
existência) de um produtor de verdade que, com efeito, é o estado ôntico referido
pelo portador de verdade, a sua causa de ser verdadeiro ou ser falso.
Além disso, o segundo pressuposto das teorizações sobre os produtores de
verdade também é refutado, ou seja, que apenas portadores do valor de verdade
verdadeiro possuem produtores de verdade. Acabou-se de ver que asseverações
falsas (afirmativas ou negativas) possuem sim um produtor deste valor de
verdade. Na realidade, aquilo que se deve fazer, é diferenciar entre tipos de
27
Ou seja, é apenas possível que uma asseveração afirmativa verdadeira pressuponha ou implique
uma asseveração negativa verdadeira. Esta possibilidade se concretiza em contextos pragmáticos
onde se deseja a clareza de uma argumentação, pois uma asseveração afirmativa verdadeira pode
se tornar mais clara expondo uma asseveração negativa igualmente verdadeira.
87
produção de valores de verdade, correspondentes aos tipos de asseveração
verdadeiras ou falsas. Assim, uma asseveração afirmativa verdadeira possui um
produtor direto de sua verdade, já as asseverações negativas verdadeiras, bem
como as asseverações afirmativas ou negativas falsas, possuem produtores
indiretos de seu valor de verdade. Mas sobre os tipos de produção de verdade
ainda se falará em mais detalhes quando da análise dos produtores de verdade
segundo Aristóteles. Mais importante no momento é perceber que aquilo que
efetivamente um produtor de verdade produz em um portador de um valor de verdade não é
apenas seu valor de verdade mas também, senão sobretudo, o sentido ou significado alético
deste valor de verdade
28
.
Justifica-se então que o modo de ser (existir) de um produtor de verdade,
enquanto produtor de valores de verdade, é o seu ser-verdadeiro, bem como que o
modo de ser das asseverações (afirmativas ou negativas), enquanto portadoras
primárias de verdade, consiste em poderem ser verdadeira ou falsas e que estes
valores de verdade possíveis são ontoaleticamente dependentes do ser-verdadeiro
(modo de ser) dos estados ônticos a que as asseverações se referem. As
asseverações são entidades relacionais. Elas correlacionam pensamento, linguagem
e realidade. Realidade aqui significa qualquer estado ôntico possível enquanto é
pensável e enunciável (referível) em uma asseveração. Assim, as asseverações
28
Na lógica e na semântica clássicas se faz a abstração do porque tal ou tal entidade (enunciado,
proposição, sentença, etc.) possui um determinado valor de verdade e, além disso, abstrai-se o
sentido ou significado deste valor de verdade. Isto não é um mal. Isto quer dizer simplesmente que
a lógica (e a semântica que a acompanha de perto) é, e deve ser o quanto possível e essencialmente,
extensional para manter seu próprio estatuto epistêmico e seu poder operativo.
88
podem se referir à totalidade dos estados ônticos que podem existir no mundo
enquanto seus referentes. Nesse sentido, qualquer entidade ou estado ôntico
possível (em um sentido amplo da possibilidade) pode ser um produtor de
verdade para as asseverações. Não apenas estados ônticos dados no mundo
perceptivo podem ser referidos pelas asseverações, mas também estados ônticos
conceituais não perceptíveis no mundo, tais como entidades lógico-matemáticas
complexas. As asseverações podem também se referir a entidades conceituais
universais (sejam conceitos individuais ou esquemas conceituais) que são usadas
para descrever, classificar e individuar os estados ônticos perceptíveis dados no
mundo, quer estas entidades estejam instanciadas nos indivíduos ou sejam simples
classificações arbitrárias e culturais, sem se comprometerem com a questão de se
seu modo de ser é real ou se é puramente mental ou se é uma “mistura” de ambos
29
. Além disso, as asseverações podem se referir a estados ônticos ditos irreais ou
impossíveis, tais como unicórnios, quimeras, hircocervos, seres humanos imortais,
círculos quadrados, etc. À primeira vista, então, no âmbito das asseverações, todos
os possíveis estados ônticos referíveis pelas asseverações são reais e são possíveis
produtores de verdade das asseverações que a eles se referem. Se isto é assim,
então, do ponto de vista das asseverações, não ainda distinção ontológica entre
29
Ou seja, no nível das asseverações não ainda um compromisso com uma posição realista ou
nominalista quanto aos universais. Para uma excelente análise lógico-lingüística desta antiga
questão, veja-se, de Peter F. Strawson, “O particular e o geral”, in col. Os Pensadores; trad.: Balthazar
B. Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1989, pp. 171-189. Para uma elucidação filosófica da noção de
esquema conceitual e sua relação com a realidade esquematizada, veja-se o clássico artigo de
Donald Davidson, De la idea misma de un esquema conceptual”, in De la verdad y de la
interpretacion, opus cit., pp. 188-203.
89
categorias de entidades no mundo, ou seja, do ponto de vista ontoalético todas as
entidades e categorias de entidades são possíveis produtoras do valor de verdade
das asseverações enquanto portadoras primárias de um valor de verdade. Neste
sentido, todos os estados ônticos referíveis pelas asseverações, enquanto seus
produtores de verdade, são verdadeiros, ou seja, existem no modo de ser de
produtores de verdade para as asseverações, inclusive os estados ônticos que, do
ponto de vista ontológico, são considerados irreais e impossíveis
30
.
Esta imensa abrangência da categoria de estados ônticos que podem ser
produtores de verdade para as asseverações permite explicar porque pensamentos,
enunciados e estados ônticos em geral podem ser tomados como portadores de
verdade, pois na medida em que uma asseveração é verdadeira, seus componentes
podem também ser ditos verdadeiros, e isto porque estes componentes podem ser
produtores de verdade paras as asseverações, de modo que, enquanto produtores
de verdade (estados ônticos referíveis), eles são considerados como verdadeiros no
sentido de serem existentes e possuírem um modo de ser próprio que pode ser
expresso diretamente nas asseverações afirmativas verdadeiras. A partir disso,
pensamentos, enunciados e “coisas” podem ser verdadeiros ou falsos (portadores
30
Para uma discussão sobre a necessidade e a utilidade de ‘mundos impossíveis’ para nosso
pensamento e para a compreensão dos mundos “normais”, veja-se, de Daniel Nolan, “Impossible
worlds: a modest aproach”, in Notre Dame Journal of Formal Logic, vol. 38, 4, 1997, pp. 535-572.
Para o estabelecimento de princípios ontológicos para mundos impossíveis, veja-se, no mesmo
volume da mesmo revista, de D. A. Vander Laan, “The ontology of impossibles worlds”, pp. 597-
620. Para uma abordagem que torna compatíveis os princípios da lógica clássica e a teoria
metafísica dos mundos impossíveis, veja-se, ainda no mesmo volume da mesma revista, de Edward
Zalta, “A classically-based theory of impossible worlds”, pp. 640-661. Veja-se ainda, de David
Lewis, On the plurality of worlds. Nova Iorque: Blackwell, 1986, esp. caps. 1 e 3, onde os mundos
impossíveis são vistos como sendo como que a “fronteira última” dos mundos possíveis, mas
mesmo assim como mundos reais, pois, caso contrário, não seriam enunciáveis ou pensáveis.
90
de um valor de verdade) por causa das asseverações afirmativas verdadeiras em que
tomam parte, ou seja, as asseverações afirmativas verdadeiras são os produtores dos
possíveis valores de verdade de pensamentos, enunciados e “coisas” considerados
separadamente.
Isto indica que todas as asseverações verdadeiras ou falsas pressupõem
indiretamente o conjunto de todas as possíveis asseverações afirmativas
verdadeiras enquanto possíveis produtoras primárias de verdade para outras
asseverações, pois todas as asseverações podem se referir às outras asseverações e
assim, quer asseverações falsas (afirmativas ou negativas), quer asseverações
negativas verdadeiras, podem ser produtoras de verdade para outras asseverações,
mas todas pressupõem as asseverações afirmativas verdadeiras. Dir-se-ia que uma
asseveração pode se referir a uma asseveração (afirmativa ou negativa) falsa, tanto
quanto a uma asseveração negativa verdadeira, de tal modo de que tanto uma
asseveração falsa quanto uma asseveração negativa poderiam ser produtoras de
verdade para uma asseveração afirmativa. No primeiro caso novamente poderia se
pensar que de algo falso surge algo verdadeiro. No segundo caso se colocaria em
dúvida que todas as asseverações tivessem como pressuposto as asseverações
afirmativas verdadeiras. Quanto ao primeiro caso, é necessário ratificar que uma
asseveração (afirmativa ou negativa) falsa pode ser tomada como referente de
uma asseveração (cujo valor de verdade pode ser verdadeiro ou falso) se, e
somente se, for compreendida e tomada como uma entidade que possui de fato o
modo de ser falso, ou seja, enquanto asseveração falsa, é sempre verdadeiro
91
asseverar que ela é falsa e sempre falso asseverar que é verdadeira, o que mostra
que o fato de ser falsa é tomado como seu ser verdadeiro, no sentido de seu modo
próprio de existência que pode ser descrito com verdade por uma outra
asseveração ou que pode ser produtor do sentido de seu ser falso. Ademais, uma
asseveração é falsa porque pressupõe ou implica uma asseveração verdadeira
acerca daquilo de que ela é falsa. No segundo caso, efetivamente uma asseveração
pode tomar uma asseveração negativa como referente, e novamente pode
descrevê-la de modo verdadeiro ou de modo falso. A asseveração negativa
verdadeira não deixa de pressupor, apenas pelo fato de ser um possível referente e
produtor de verdade de uma outra asseveração, uma asseveração afirmativa
verdadeira que descreve diretamente o modo de ser daquilo que produz a verdade
de sua negação.
§ 3 – O paradoxo da auto-referência,
as produções de verdade inter-categorial e intra-categorial
e o caráter relacional da verdade e da falsidade
Esta necessária pressuposição permite discutir um problema implicitamente
indicado anteriormente pela expressão ‘à primeira vista’. Posto que qualquer
estado ôntico referível pelas asseverações é um possível produtor do valor de
verdade das mesmas, então, como já foi acima apontado, necessariamente, todas as
asseverações podem se referir a todas as outras asseverações, uma vez que todas as
asseverações também são estados ônticos reais do e no mundo, de modo que
92
também asseverações podem ser produtoras de verdade para outras asseverações.
Isto parece não oferecer problemas, mas oferece vários. As asseverações em geral
são portadores primários de um valor de verdade porque se referem a estados
ônticos que são diferentes de si mesmas, dos quais dependem seus possíveis
valores de verdade, enquanto estes estados ônticos desempenham o papel de seus
produtores de verdade. Por isso, é necessária a diferenciação ontológica mínima
entre portadores e produtores de verdade. Se, contudo, todas as asseverações
podem tomar todas as outras asseverações como referentes, então esta diferenciação
ontológica mínima está ameaçada. Além disso, se todas as asseverações podem se
referir a todas as asseverações, nada impede que uma mesma asseveração tome a si
mesma como referente de si mesma, uma vez que ela é de fato uma asseveração e
uma vez que obviamente uma asseveração é uma entidade real. Se isto é assim,
então, necessariamente, toda asseveração pode tomar a si mesma como produtora
de verdade de seu valor de verdade, e assim todo portador de verdade poderia ser
ao mesmo tempo seu próprio produtor de verdade, o que parece contraditório,
pois então toda asseveração verdadeira ou falsa seria necessariamente verdadeira
mesmo que fosse falsa. Como caso específico e paradigmático desta auto-
referência, ter-se-ia a seguinte asseveração “eu assevero que esta asseveração é
necessariamente falsa”, ou seja, o paradoxo do mentiroso, paradoxo que ameaça a
possível tranqüilidade de toda teoria ou teorização da verdade.
Apesar destes problemas e paradoxos, é necessário manter a possibilidade das
asseverações se referirem a outras asseverações como produtoras de verdade, não
93
apenas para manter a presente teorização da verdade, mas sobretudo porque,
efetivamente, no mundo cotidiano e na linguagem comum a remissão de
asseverações a outras asseverações é absolutamente corrente e necessária para a
relação dos seres humanos consigo mesmos, com os demais seres humanos e com
o mundo em geral, uma vez que em todas as formas de saber estabelecidos (artes,
técnicas, ciências e filosofia(s)) a referência a outras asseverações é indispensável
31
.
Assim, se se quer evitar estes paradoxos, manter a diferenciação entre
portadores e produtores de verdade (o que significa em última instância manter a
diferenciação entre sentido e referência), bem como preservar a remissão das
asseverações a outras asseverações, então se impõe a diferenciação entre dois tipos
de produção de verdade. A primeira será chamada de produção de verdade inter-
categorial ou de primeira ordem, pois é aquela que intercorre entre as asseverações
enquanto portadores primários de verdade e os estados ônticos do mundo real, à
exceção das demais asseverações, ou seja, é a produção de verdade que acontece
entre duas categorias de entidades distintas, a saber: asseverações e estados ônticos
de mundo em geral. Ela também pode ser chamada de dependência ontoalética
31
Não se deve confundir tal remissão de uma asseveração a outras asseverações com a teoria
semântica geral das remissões de entidades lógico-semânticas ao conjunto das ou de outras
entidades lógico-semânticas, pois esta teoria ou tipo de teoria semântica se justifica justamente pelo
fato destas remissões historicamente efetivas de asseverações a conjuntos logicamente articulados
de outras asseverações, mas o pensa tais remissões naquilo que lhes é essencial, a saber: sua
necessária remissão a entidades não propriamente semânticas. Teorias do significado deste tipo
podem ser agrupadas como teorias inferencialistas, em oposição às teorias semânticas tradicionais
consideradas referencialistas. Uma teoria inferencialista do significado é encontrada no holismo
defendido por Quine; como exemplo de teoria referencialista do significado, pode-se mencionar a
teoria composicionalista do significado elaborada por Carnap. Para uma justificação desta divisão
geral e para um caracterização filosófica e crítica de ambas as tendências, veja-se, de Celso Braida, A
complexidade do nexo semântico, opus cit., caps. 2-3.
94
inter-categorial na medida em que representa a dependência das asseverações em
relação aos estados ônticos reais que são seus produtores de verdade. A segunda
será chamada de produção de verdade intra-categorial ou de segunda ordem, pois
diz respeito à relação ontoalética que pode haver entre asseverações, ou seja, entre
entidades de uma mesma categoria, uma tomada como portadora de verdade e a
outra como produtora de verdade. Esta relação intra-categorial pode também ser
chamada de dependência intra-categorial, na medida em que representa a
dependência das asseverações como portadoras de verdade em relação a outras
asseverações como produtoras de verdade.
É possível formalizar logicamente a relação de dependência ontoalética na
produção de verdade inter-categorial da seguinte forma:
(a)(e)(a Ca)(e Cb)(e R a) [((Va ) D (We)) & ((We) P (Va))
((We) (Va))] [~ ((Va) (~ We))]
Esta forma lógica pode ser traduzida deste modo:
“Para toda asseveração a, existe ao menos uma entidade e; dado que a pertence
à categoria a das asseverações, dado que e pertence à categoria b dos estados
ônticos do mundo; dado ainda que e é referível (representável) por a; tal que,
necessariamente, (se
(o valor de verdade de a depende ontoaleticamente da
verdade de e, e a verdade de e produz o valor de verdade de a) então
(necessariamente se e é verdadeira, então a possui um valor de verdade)) se e
somente se (não é possível que se a tem um valor de verdade, então e não seja
verdadeira)”
32
.
É possível formalizar logicamente a relação de dependência ontológica na
produção de verdade intra-categorial da seguinte forma:
32
Note-se que os predicados relacionais ‘(_) ser ontoaleticamente dependente de (_)’ e ‘(_) produzir
o valor de verdade de (_)o predicados binários de segunda ordem, e também que o predicado
unário ‘ser valor de verdade de (_)’, aplicado às asseverações, assume na fórmula discutida aqui o
papel de sujeito quando preenche o espaço aberto dos argumentos requeridos nos predicados
binários referidos.
95
(a’)(a)(a, a’ Ca)(a R a’) [((Va’ ) D (Wa)) ((Wa) P (Va’))]
((~Wa) (~Va’)) (a’ a))
Esta forma lógica pode ser traduzida deste modo:
“Para toda asseveração a’, existe ao menos uma asseveração a, dado que a’ e a
pertencem à categoria Ca das asseverações, dado ainda que a é referível
(representável) por a’, tal que, necessariamente, se (se o valor de verdade de a’
depende ontoaleticamente da verdade de a, então a verdade de a produz o valor de
verdade de a’) então (se a não é verdadeira, então a’ não possui um valor de
verdade) se e somente se (a’ é diferente de a)”.
Com estes dois esquemas gerais de dependência ontoalética entre asseverações
e estados ônticos e entre asseverações distintas, mantém-se de a validade da
diferenciação ontológica entre portadores e produtores de verdade (entre sentido e
referência), e se exclui o possível caráter paradoxal da referência das asseverações a
outras asseverações, pois uma mesma asseveração não pode ser produtora de
verdade para si mesma. Uma asseveração auto-referente o é nem verdadeira
nem falsa, ou seja, ela não é portadora de verdade e não possui, portanto, uma
asseveração que seja produtora de sua verdade. Além disso, estes esquemas gerais
mostram que as referências primárias das asseverações o são outras
asseverações, mas os estados ônticos do mundo em geral, uma vez que as
asseverações se referem a outras asseverações após estas terem sido realizadas
se referindo aos estados ônticos que não as asseverações e, sobretudo, quando
determinadas ou tomadas como verdadeiras
33
.
33
Esta anterioridade dos estados ônticos em geral, como referências das asseverações, em relação à
referência a outras asseverações, é análoga à anterioridade das asseverações em geral enquanto
portadoras primárias de verdade em relação à possibilidade das partes destas asseverações
poderem ser também portadoras de um valor de verdade.
96
Mas aquilo que estes dois tipos gerais de produção de verdade mostram de
maneira clara é que a divisão entre entidades mentais, lógico-semânticos e reais,
enquanto partes constituintes das asseverações, não deve ser considerada uma
delimitação estanque e rígida, mas um dispositivo teórico para a compreensão da
problemática da verdade, problemática que coloca diretamente em jogo a relação
entre pensamento, linguagem e realidade, ou, de modo mais direto, a relação dos
seres humanos consigo mesmos e entre si, com uma determinada cultura, lógica e
lingüisticamente estruturada, e com o mundo ambiente do qual fazem parte e no
qual estão imersos. Pode-se, e mesmo deve-se, dizer que a divisão entre entidades
ou estados ônticos mentais, lógico-semânticos e reais é uma divisão
“transcendental” de aspectos e perspectivas universais e possíveis de consideração
de uma mesma realidade que chamamos mundo em geral, dentro do qual
pensamento e linguagem são tipos de entidades com um estatuto próprio, cuja
peculiaridade consiste justamente em serem entidades sempre relativas, em última
instância, ao mundo em geral, mas de tal modo que o mundo como tal não pode
aparecer senão já sempre através das mesmas e, assim, de algum modo possuir um
ser relativo a tais tipos de entidade. No entanto, a realidade própria às entidades
mentais e lógico-semânticas ultrapassa a realidade em sentido estrito, na medida
em que se pode representar pelo pensamento e pela linguagem entidades
claramente inexistentes no mundo perceptível, entidades tais como ficções
literárias ou pictóricas, objetos e estruturas matemáticas altamente sofisticados que
muitas vezes não “correspondem” a nada na realidade em sentido estrito. Não
97
obstante esta ultrapassagem ou caráter metafísico, tais entidades dependem
ontológica e aleticamente dos fatos mentais e lógico-semânticos e somente
enquanto existem instanciadas no pensamento e na linguagem podem ser
considerados como estados ônticos reais.
Dentro do contexto específico da presente investigação, o que se mostra de
forma mais importante através destes esquemas é que, do ponto de vista da
dependência ontoalética na produção dos valores de verdade entre as
asseverações, e, sobretudo, entre as asseverações e os estados ônticos do mundo
em geral, a propriedade de uma entidade ser-verdadeira ou ser-falsa (o sentido de seu valor
de verdade) é uma propriedade essencialmente relacional
34
. E isto indica que o ser-
verdadeiro ou ser-falso de cada uma das asseverações depende ontologicamente
do ser-verdadeiro próprio aos estados ônticos em geral, isto é, do ser-verdadeiro
tal como usado no mundo e na linguagem cotidiana como sinônimo do que é real e
pensável, nos sentidos usuais de ser o caso, de acontecer
35
.
Com isso, justifica-se a visão comum de que, por exemplo, um pensamento é
verdadeiro ou falso por causa dos fatos reais ou dos enunciados que representa, e,
assim, é verdadeiro em relação a estes fatos; ou que um argumento concreto (seja
um único enunciado ou um conjunto articulado de enunciados) acerca de algo,
esquematizado em alguma forma de inferência (fato lógico-semântico), é
34
Sobre o sentido relacional da produção de verdade, veja-se, de Philipp Keller, “A world of
truthmakers?”, in <http://www. unige.ch/lettres/philo/enseignants/philipp/research/> .
35
Para uma excelente análise do sentido de ser-verdadeiro enquanto ser de fato veja-se, de John L.
Austin, “Truth”, art. cit., e também do mesmo autor a resposta às críticas de Strawson em “Unfair
to facts”, in Truth; (eds.) Simon Blackburn & Keith Simmons. Oxford: Oxford UP, 2000, pp. 183-199.
98
verdadeiro ou falso em relação ao estado ôntico que representa e estrutura através
da linguagem
36
; e mesmo, para escândalo de alguns filósofos, que um fato real
individual é verdadeiro ou falso em relação a um pensamento e ou fato lógico-
semântico que o representa. Em todos estes casos, o sentido do ser-verdadeiro ou
ser-falso de uma entidade ou fato de qualquer das três categorias em questão é
produzido por entidades ou fatos pertencentes às outras categorias de entidades
ou fatos, com o que se mostra o caráter relacional das asseverações em geral.
É preciso guardar-se de ver neste ser relativo dos fatos e entidades das três
categorias umas em relação às outras uma espécie de relativismo ontológico, tanto
de cunho anti-realista, quanto realista
37
. O ser relativo das entidades aqui diz
36
A concepção dos fatos lógico-semânticos em geral como ontoaleticamente dependentes, quer de
fatos mentais, quer reais, quer ainda de outros fatos lógico-semânticos, não propugna alguma
forma de psicologismo (definitivamente refutado por Frege e Husserl), que faria a validade universal
e necessária das leis lógico-semânticas e matemáticas depender de leis empíricas e ocorrências
psicológicas particulares e contingentes. Sobre o sentido geral da refutação do psicologismo na
lógica realizada por Frege e Husserl, veja-se, de Robert Blanché, História da lógica de Aristóteles a
Russell; trad.: Antônio J. P. Ribeiro. Lisboa: edições 70, 1985, pp. 265-270. Esta concepção visa tão-
somente preservar a intuição comum de que a linguagem em geral é o meio universal e necessário
de interligação entre pensamento e realidade, não se confundindo, porém, com um ou o outro
enquanto os representa, e assim enquanto recebe o sentido de seus valores de verdade através de uma
correlação entre pensamento e realidade. Abstraindo-se as possíveis posições filosóficas acerca da
natureza mesma das entidades lógico-semânticas, o que se indica não é que o ser como tal destas
entidades seja ontologicamente dependente ou derivado dos estados mentais ou estados de coisas
mundanos, mas que seu ser significante, no sentido alético, depende do ser como tal dos estados
mentais e ou dos estados ônticos, ou seja, pode-se, e deve-se, conceber que as entidades lógico-
semânticas, enquanto tais, não são derivadas ou dependentes ontologicamente de qualquer outra
instância ou estrutura mental ou real, mas enquanto representam (e necessariamente sempre o fazem
quando são operadas) outras entidades, mesmo que sejam outras entidades lógico-semânticas, elas
são ontoaleticamente dependentes destas entidades representadas. Para uma definição relacional
da significação das entidades lógico-semânticas e sua ligação com o conceito de verdade, veja-se, de
Celso Braida, A complexidade do nexo semântico, opus cit., caps. 2, 6 e 7. Veja-se também do mesmo
autor “A dúplice raiz da significatividade”, in Fenomenologia hoje II; (orgs.) Ricardo T. de Souza &
Nythamar F. de Oliveira. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, pp. 15-36.
37
Para uma extensa introdução às posições relativistas atuais na filosofia e nas ciências, veja-se o
vocábulo Relativism”, escrito por Chris Swoyer na Stanford Encyclopedia of Philosophy,
<http://plato.stanford.edu/>, sobre as posições relativistas acerca da verdade, veja-se
especialmente o tópico 5.9. Dentre as teorias da verdade, o as teorias de cunho pragmatista
99
respeito unicamente à relação de produção de verdade que intercorre entre as
asseverações e as entidades reais do mundo ou entre as próprias asseverações, sem
haver qualquer tipo de compromisso a priori com algum tipo de realismo ou anti-
realismo de qualquer tipo. Na verdade, tais posições decorrem da defesa de um ou
outro tipo de entidade como portador ou produtor privilegiado de verdade. A
concepção de que a categoria dos estado ônticos reais em seu sentido amplo
abrange as demais categorias (entidades mentais e lógico-semânticas) não implica
de modo algum a defesa de algum tipo determinado de realismo, mas tão somente
pressupõe o realismo “mínimo” que serve como ponto de partida a qualquer
investigação ponderada do problema dos produtores e dos portadores de verdade.
Poder-se-ia chamar este realismo aqui pressuposto de realismo primitivo, o qual
serve tanto como ponto de partida para a defesa de um realismo forte em relação
aos produtores de verdade, quanto para a defesa de um anti-realismo que, neste
caso, significa tão-somente a afirmação de uma realidade primária (em algum
sentido ou aspecto), quer dos fatos mentais, quer dos fatos gico-semânticos, em
detrimento dos fatos reais ou mundanos como produtores primários de verdade
38
.
aquelas que tradicionalmente defendem uma noção relativista sobre a verdade, sendo um exemplo
claro disso a posição de William James. Sobre este último ponto, veja-se o texto de James
“Pragmatism’s conception of truth”, in Truth, opus cit., pp. 53-68. Para uma discussão crítica desta
posição veja-se Kirkham, R. L. Teorias da verdade, uma introdução crítica, opus cit., pp. 128-152.
38
Para uma defesa de um conceito primitivo (“metafísico”) de realidade como pressuposto
necessário para toda investigação ontológica e independente de posições filosóficas realistas ou
antirealistas fortes, veja-se, de Kit Fine, The question of realism”, in Philosophers’ Imprint, vol. 1,
1, 2001, <www. philosophersimprint. org/001001/>. O autor propõe um conceito de realidade
metafísica capaz de, tomado através do conceito de fundamento (ground), se colocar para além dos
realismos e anti-realismos e poder mesmo julgar a pertinência ou não destes com respeito a âmbitos
determinados do mundo. Para uma análise crítica do conceito de realismo, veja-se o clássico
artigo de Michael Dummett, “Realism”, in The seas of language, opus cit., pp. 230-276.
100
É justamente para evitar pré-concepções relativistas (realistas ou anti-realistas)
na caracterização destas possibilidades de inter-relação de dependência ontológica
entre produtores e portadores de valores de verdade inter-categoriais e intra-
categoriais que se indica em ambos os esquemas o conceito de ser representável
enquanto sinônimo de ser referível, com o intuito de se distinguir entre a
representabilidade ou possibilidade de referência de algo por parte de uma
asseveração e a sua efetividade ou realidade, de tal modo que representações
constituem também fatos reais e representáveis (referíveis), mas nem todos os fatos
reais são representações, tal como propugna certo tipo de posição mentalista.
Todas as asseverações, enquanto portadores de verdade, podem representar e
representam (com verdade ou falsidade) outras entidades ou fatos que lhe servem
como produtores de verdade, na medida em que o sentido de seu valor de verdade
depende de uma referência ou tipo de referência a outras entidades ou fatos, quer
sejam estados ônticos do mundo em geral, quer sejam outras asseverações. Aqui o
conceito de ‘representação’ é usado no sentido de qualquer tipo de entidade ou
fato tomado enquanto símbolo ou signo (simples ou complexo) que pode estar por
outro algo ao qual remete e significa (denota), podendo ser uma relação de
representação inter-categorial ou intra-categorial, ou seja, asseverações podem
tanto representar (estar por) estados ônticos no mundo, quanto representar (estar
por) outras asseverações. Isso parece à primeira vista estranho, mas basta lembrar,
por exemplo, que notas musicais escritas representam conjunções articuladas de
sons, ou notações simbólicas escritas representam a articulação entre entidades
101
lógico-matemáticas abstratas; papéis-moeda representar valores de troca; imagens
mentais ocorridas durante uma leitura representam relações gico-semânticas
entre enunciados, e por sua vez expressões lingüísticas significantes representam
fatos mundanos ou eventos psicológicos. Certamente em cada caso o sentido da
representação é diferente, mas em todos os sentidos se mantém um significado
mínimo comum de algo estar por ou no lugar de outra coisa. No caso específico
das asseverações, esta representação significa seu ser relacional enquanto elas
colocam em correlação pensamento, linguagem e realidade, e assim representam
esta relação, ou seja, estão pelos estados ônticos a que se referem.
§ 4 – O princípio geral dos produtores de verdade
e o problema da anarquia ontológica
A partir destes esclarecimentos sumários sobre o problema fundamental acerca
da estrutura de dependência ontoalética entre os possíveis significados do ser-
verdadeiro e ser-falso que intercorre entre os portadores e os produtores de
verdade, pode-se estabelecer um princípio geral dividido em duas partes, a saber:
(a) nenhuma produção de verdade pode ocorrer sem que haja uma entidade produtora de
verdade para uma outra entidade portadora de verdade, de tal modo que um produtor de
verdade é aquilo que determina o sentido em que um portador de verdade possui um valor
de verdade e, assim, aquilo que um portador de verdade representa. Mas tal relação
102
pressupõe que (b) não pode haver nenhum portador de verdade sem que haja para ele ao
menos um produtor de verdade.
Este princípio geral, porém, esbarra em algumas dificuldades levantadas pelos
filósofos que se debruçam sobre o problema dos produtores de verdade. No que
segue, faz-se apenas indicações de como duas destas dificuldades podem ser
resolvidas de tal modo que o princípio geral postulado antes mantenha sua
validade. Estas respostas, antes rapidamente indicadas, constituem também a
refutação da validade (“verdade”) dos pressupostos dois e três presentes nas
teorizações sobre os produtores de verdade, pressupostos mencionados no início
deste capítulo.
Um primeiro problema levantado por alguns filósofos que discutem o
problema dos produtores de verdade, é o de que alguns portadores de verdade
não possuem ou o necessariamente sempre possuem produtores de verdade
39
.
Entre estes possíveis portadores de verdade sem produtores de verdade estão os
enunciados formais, cuja verdade é analítica. Mas, dentre estas proposições, a mais
elementar e problemática quanto à procura de seu(s) produtor(es) de verdade é a
proposição geral x = x(ou ainda x x’), que simboliza o chamado princípio de
identidade simples. Pode-se asseverar que, por exemplo, ‘unicórnio = unicórnio’
ou ainda o círculo quadrado = o círculo quadrado’, e praticamente ninguém, ou
ninguém em sã consciência, diria que há, no mundo real, produtores de verdade
para estes enunciados verdadeiros. No entanto, a questão pode ser deslocada e
39
Sobre esta discussão, veja-se Truth-makers”, art. cit., § 3. Veja-se também, de G. Rodriguez-
Pereyra, “Why truthmakers”, disponível em <users.ox.ac.uk/~plac0005>.
103
compreendida do seguinte modo. O princípio de identidade simples, em várias de
suas instâncias, realmente não possui produtores de verdade no mundo factual,
mas ele mesmo é produtor de verdade para qualquer de suas instâncias, inclusive
para estas instâncias anômalas”. Assim, não se trata de procurar produtores de
verdade para estas instâncias, tarefa igual a de Ctesias ao procurar unicórnios, mas
de colocar em jogo a possibilidade de que estas instâncias são verdadeiras por
causa ou em virtude da verdade logicamente (analiticamente) necessária do
princípio de identidade simples, que afirma de qualquer entidade o ser ela igual a si
mesma. Este caminho de interpretação coloca as bases para se compreender em
que sentido também entidades lógico-semânticas, na forma de enunciados cuja
verdade é analítica, podem tomar suas instâncias de aplicação como produtores de
verdade necessários e suficientes ou ser tomadas elas mesmas como produtores de
verdade para suas instâncias.
Novamente, é preciso lembrar que somente uma atitude que identifica os
produtores de verdade unicamente com entidades reais (em sentido estrito) e os
portadores de verdade com fatos lógico-semânticos e ou fatos mentais pode excluir
a possibilidade de que enunciados analiticamente verdadeiros não sejam
produtores de verdade, mesmo que somente para outros enunciados analíticos. Na
realidade, esta posição provém de uma compreensão platonizante da necessidade
que caracteriza a verdade dos enunciados analíticos. Tal necessidade é separada de
qualquer instância de preenchimento destes enunciados analíticos em sua forma
lógica geral, e, assim, sua necessidade é compreendida unicamente como uma
104
necessidade formal de dicto, nunca se referindo também a uma necessidade
material de re. É certo que a referência dos enunciados analíticos é essencialmente
aberta e não se identifica com nenhuma de suas instâncias de aplicação (tanto
quanto os enunciados quantificados, ainda que em sentido diverso), mas isso não
impede, como pensam alguns teóricos da produção de verdade, que os enunciados
analíticos, e, portanto, todos os enunciados ou fórmulas dos sistemas formais, não
representem nada. Compreendidos como possíveis produtores de verdade, tais
enunciados representam formalmente todas as suas instâncias possíveis de
aplicação formal e ou material. Compreendidos como possíveis portadores de
verdade, são suas possíveis instâncias em conjunto que os representam. Não se
porque tais enunciados, a não ser por uma separação platônica das entidades
lógico-semânticas, não possam ter produtores de verdade (ainda que sejam
múltiplos, infinitos e ou indeterminados) ou que suas instâncias não possam ter o
sentido de seus valores de verdade produzidos por aqueles enunciados, visto que
são ontologicamente dependentes dos mesmos em seu aspecto lógico-semântico.
Assim, é verdade dizer que ‘o círculo quadrado = o círculo quadrado’ é um
enunciado verdadeiro porque é irrestritamente verdadeiro o princípio ou lei gica
x = x’, de modo que a verdade do exemplo em questão é produzida por esta lei
lógica e, assim, é ontologicamente dependente de sua existência, existência esta
que coincide com sua verdade. Mas nada impede que o valor de verdade analítico
desta lei seja produzido indutivamente pela generalização de suas instanciações
verdadeiras, mesmo que tal enumeração não possa ser completa, quer estas
105
instanciações sejam de fatos reais, quer de fatos mentais ou lógico-semânticos. Na
realidade, ocorre nestes casos uma interdependência ontológica na produção de
verdade que intercorre entre a enunciação formal de uma lei lógico-semântica e o
conjunto infinito de suas instanciações materialmente determinadas
40
.
Outra questão relacionada a esta é a pergunta acerca dos produtores de
verdade dos enunciados falsos e dos enunciados ou predicados negativos
41
, ou
seja, qual o produtor ou os produtores de verdade de enunciados tais como ‘ontem
vi um círculo quadrado’ ou ‘é verdade que João não estava na sala de aula hoje’, ou
ainda ‘a água é um líquido incolor’. Para alguns a admissão de que todos os
enunciados devem ter algum produtor de verdade leva a se ter de admitir, a partir
de enunciados como os aludidos, as noções suspeitas (e contraditórias) de fatos
negativos ou fatos impossíveis. Este é um problema análogo àquele levantado por
Platão no Sofista acerca da necessidade de haver um ser do não-ser para se poder
justificar a existência de enunciados ou coisas falsas. Na realidade, o problema
40
Esta interdependência ontoalética na produção de verdade entre o princípio de identidade
simples e a conjunção infinita de suas instâncias pode ser logicamente exposta da seguinte maneira.
Dada a definição de proposições ontoaleticamente interdependentes em sua produção de verdade,
a saber:
(p) (q) ((Wp) (Wq)) ((Wp) P (Wq) & (Wq) P (Wp));
então, substituindo-se p pela lei de identidade simples, representada aqui na forma não
quantificada ‘(x = x)’, e substituindo-se q pela conjunção infinita de instâncias desta lei
representada assim ‘((a = a) & (b = b) & ... & (n +1 = n +1))’, obtendo-se a seguinte formalização
(usando colchetes para marcar as conexões entre as partes principais de modo a facilitar a leitura):
((x = x)) (((a = a) & (b = b) & ... & (n +1 = n +1))) [(W (x = x)) (W ((a = a) & (b = b) & ... & (n
+1 = n +1))] [(W (x = x)) P (W ((a = a) & (b = b) & ... & (n +1 = n +1))) & ((W ((a = a) & (b = b) & ...&
(n +1 = n +1))) P (W (x = x))].
E como foi dito na exposição desta definição, o predicado ‘P’, que representa a produção de
verdade, pode ser aqui substituído pelo predicado D’, que representa a relação de dependência
ontoalética, salva veritate. Uma tal interdependência poderia ser estendida a outras leis lógicas de
modo similar.
41
Sobre esta questão, veja-se, de G. Molnar, “Truthmakers for negative truths”, in Autralasian
Journal of Philosophy, vol. 78, nº 1, pp. 72-86. A resposta de Molnar é similar a que aqui é proposta.
106
pode ser “resolvido” se se pensar que os produtores de verdade de enunciados
falsos ou negativos o enunciados positivos e verdadeiros, ou seja, é falso que eu
tenha visto um círculo quadrado ontem porque não existem, senão verbalmente,
nem ontem, nem nunca, círculos quadrados, e é verdade que não existem círculos
quadrados porque todos os círculos são necessariamente redondos. Ademais, é
verdade que João não estava na sala de aula hoje porque ele estava em outro lugar
(qualquer que seja este lugar). E ainda, a água é um líquido incolor porque aquilo
que é totalmente transparente não possui cor, e não possui cor porque coisas
que possuem cor e o opacas e ou não-transparentes. Não fatos negativos ou
fatos impossíveis, ou seja, não produtores de falsidade, apenas fatos que
ocorrem, ocorreram ou ocorrerão ou fatos que não ocorrem ou não ocorrem,
ocorreram ou ocorrerão. E não se perca o fio do argumento com a expressão
gramatical ambígua fatos que não ocorrem, ocorreram ou ocorrerão’, pois eles
não existem senão no pensamento, na imaginação e ou na linguagem. Além disso,
eles são fatos que não ocorrem unicamente porque há, houve ou haverá fatos que
realmente ocorrem, ocorreram ou ocorrerão, e estes são os únicos produtores de
verdade, quer sejam fatos mentais, lógico-semânticos ou reais. É por isso que dizer
simplesmente que “Há unicórnios” é falso, mas dizer que “Há unicórnios na
imaginação de alguém” é verdadeiro, posto que unicórnios são de fato entidades
imaginárias existentes, ou possivelmente existentes, no espírito ou em obras
ficcionais (poemas, romances, pinturas, etc.). De forma similar, dizer simplesmente
que “Há círculos quadrados” é falso, mas dizer que “Há ocorrências lógico-
107
semânticas de círculos quadrados” é verdadeiro, pois, de fato, profere-se a
expressão ‘círculo quadrado’, ainda que tal entidade não exista no mundo (mental
ou real). Isto indica, como já foi indicado, que enunciados, pensamentos ou estados
ônticos falsos são, ontológica e aleticamente, posteriores aos e dependentes dos
enunciados, pensamentos ou estados ônticos verdadeiros que tomam parte nas
asseverações afirmativas verdadeiras, as quais são produtoras de verdade para
pensamentos, enunciados e estados ônticos considerados como portadores
(secundários) de verdade.
Com estes esclarecimentos, mantém-se de pé a possível validade universal do
princípio geral postulado para a estrutura de dependências ontoaléticas na
produção de verdade que intercorre entre os significados do ser-verdadeiro e do
ser-falso, ou seja, em toda produção de verdade ao menos um produtor de
verdade e para todo portador de verdade sempre ao menos um produtor de
verdade. O significado deste princípio para a problemática da verdade consiste em
articular os três problemas fundamentais discutidos aagora, de modo que todos
estão essencialmente relacionados, pois os portadores de verdade admitidos em
uma teorização da verdade se articulam com os sentidos de verdade admitidos
nesta mesma teorização, e os significados de verdade (sentidos dos valores de
verdade que os portadores de verdade possuem) se articulam e se relacionam entre
si no modo da dependência ontoalética na produção de verdade, assim como se
especifica o modo de ser das asseverações enquanto objeto da definição de verdade
antes proposta.
108
Contudo, se a problemática acerca dos conceitos de verdade e falsidade
permanecesse neste ponto, pode-se dizer que, então, ter-se-ia apenas as condições
necessárias, mas ainda não suficientes para uma caracterização de uma teoria ou
teorização da verdade e da falsidade. E isto porque ainda se estaria no nível das
puras possibilidades de produção dos significados dos valores de verdade, sem se
determinar efetivamente quais são os significados primários do ser-verdadeiro, a
partir dos quais se decide que uma asseveração é verdadeira ou falsa, não se teria
ainda determinado teoricamente a hierarquia ontológica dos produtores primários
de verdade para as asseverações e entre as asseverações, ou seja, a teoria ou
teorização da verdade permaneceria no nível de uma anarquia ontológica porque
abriria mão de determinar quais os princípios e critérios de verdade para todas as
asseverações possíveis. A determinação dos princípios e critérios de verdade é o
corolário de uma teoria ou teorização da verdade que pretenda estabelecer não
apenas como acontece a produção dos significados efetivos dos valores de verdade
das asseverações, mas também porque em geral e a partir de que tipos de produtores
primários de verdade a relação entre pensamento, linguagem e realidade é
realizada nas asseverações, ou seja, quais aquelas verdades primárias ou
significados primitivos de verdade desde os quais se pode julgar e regrar a
produção dos valores de verdade das asseverações em geral. Estes significados
primitivos são justamente os estados ônticos primários aos quais todas as
asseverações direta ou indiretamente se referem e os quais as asseverações
verdadeiras e primárias, que fundamentam os valores de verdade das demais
109
asseverações, descrevem. Na discussão acerca dos produtores de verdade foi
pressuposta a estrutura das asseverações em geral. É somente através da análise
dos princípios e critérios de verdade das asseverações que tal estrutura pode ser
determinada. A determinação dos princípios e critérios de verdade é a
determinação da hierarquia ontoalética dos estados ônticos primários referíveis
pelas asseverações e entre as asseverações primárias referíveis pelas asseverações
concretas. Sem esta hierarquia todos os estados ônticos referíveis e todas as
asseverações possíveis seriam considerados iguais, o que faria das teorias ou
teorizações sobre a verdade e a falsidade algo como sistemas lógicos em que se
tivessem apenas teoremas isolados sem axiomas e regras para organizá-los. Deve-
se, portanto, investigar o que são os princípios e critérios de verdade para se poder
estabelecer não uma determinada hierarquia, mas a estrutura geral e a necessidade
desta hierarquia para uma teorização abrangente da verdade e da falsidade.
CAPÍTULO III:
O PROBLEMA ACERCA DOS PRINCÍPIOS E CRITÉRIOS DE VERDADE
§ 1 – Introdução: as definições de princípio e critério de verdade, a estrutura
das asseverações e a hierarquia ontoalética dos princípios e critérios de verdade
110
Com o problema acerca da anarquia ontológica, resultante das meras
possibilidades de produção de verdade e a necessidade teórica de estabelecer uma
hierarquia ontológica entre os produtores de verdade, chega-se ao quarto e último
problema fundamental para uma investigação sobre a natureza da verdade e da
falsidade, o problema acerca dos princípios e critérios de verdade
42
. O problema
acerca dos princípios e critérios de verdade está diretamente ligado ao problema
dos produtores de verdade e, assim, articula em si os problemas acerca dos
portadores, dos sentidos e da definição de verdade. Os princípios e critérios de
verdade estabelecem a hierarquia geral de dependência ontoalética na relação
entre os produtores e os portadores de verdade, ou seja, estabelecem a hierarquia
ontoalética lida tanto para a produção de verdade inter-categorial quanto intra-
categorial.
Antes, porém, de investigar quais os princípios e critérios de verdade das
asseverações em geral é preciso estabelecer a diferença de sentido existente entre
os conceitos de princípio e de critério de verdade, de modo a encurtar a tarefa da
42
O problema acerca dos princípios e critérios de verdade é tradicionalmente considerado como um
problema especificamente epistêmico e derivado em relação aos outros problemas referentes à
verdade. É certo que este problema não pode ser colocado antes que os três anteriores tenham
alguma discussão e determinação, mas este problema, como se espera deixar claro no que segue,
não é nem apenas um problema epistêmico nem um problema secundário na tarefa de esclarecer e
determinar a natureza dos conceitos de verdade e falsidade. É certo que o aspecto epistêmico toma
parte neste problema, mas esta parte é apenas um aspecto inicial e de superfície. Ver-se-á que
apesar do problema acerca dos princípios e critérios de verdade ser o último na ordem de
teorização, por pressupor em alguma medida a determinação dos problemas anteriores, ele é, na
ordem das razões, o mais fundamental dos problemas na determinação da natureza da verdade e
da falsidade (ao menos na perspectiva desta investigação), pois é através de sua determinação que
se decidem as posições filosóficas adotadas frente aos portadores, aos sentidos, à definição e aos
produtores de verdade.
111
investigação. O que é aqui exposto sumariamente encontrará sua confirmação no
restante do capítulo. O conceito de princípio de verdade para as asseverações pode
ser descrito de modo geral como aquilo sem o que uma asseveração não pode ser o
que é, de modo que se uma asseveração acontece, então lhe é inerente seu princípio
de verdade, caso contrário não seria uma asseveração. Por conseguinte, um
princípio de verdade deve poder decidir o que é e o que não é uma asseveração.
Por sua vez, um critério de verdade para as asseverações é tudo aquilo que pode
servir como regra para distinguir, dentre o conjunto das asseverações ou dentre
um tipo específico de asseverações, quais delas são verdadeiras e aquelas que são
falsas. Assim, dado que as asseverações são definíveis por sua verdade ou
falsidade, alguns critérios de verdade podem ser considerados, por antonomásia,
como princípios de verdade, uma vez que podem se aplicar a todas as
asseverações. Tais critérios podem ser chamados de critérios primários de verdade.
Mas o contrário não ocorre, ou seja, um princípio de verdade não pode ser
considerado um critério de verdade, que enquanto os critérios pressupõem o
conjunto de todas as asseverações possíveis, os princípios de verdade estabelecem
aquelas condições mais gerais para que algo possa contar como uma asseveração e,
assim, possa fazer parte do conjunto de todas as asseverações possíveis. Assim,
pode-se diferenciar princípios e critérios de verdade dizendo que enquanto um
princípio de verdade é uma condição necessária, mas não suficiente, para as
asseverações, um critério é apenas uma condição suficiente, mas não necessária,
para as asseverações. A partir desta diferença, pode-se dizer que necessariamente
112
os critérios de verdade estão subordinados aos e dependem dos princípios de
verdade, mas o inverso necessariamente não ocorre. No entanto, em conjunto os
princípios e critérios de verdade formam as condições necessárias e suficientes de
verdade para as asseverações em geral. Além disso, percebe-se que os princípios
de verdade devem poder se aplicar a todas as asseverações possíveis, uma vez que
são condições necessárias para contarem como sendo efetivamente asseverações.
Os critérios de verdade, ao contrário, podem valer tanto para todas as asseverações
(critérios primários), quanto para alguma espécie ou tipo de asseveração (critérios
secundários). Ademais, por definição, tanto princípios quanto critérios de verdade
devem ser verdadeiros, no que podem ser considerados também como produtores
de verdade das asseverações, uma vez que o modo de ser (existir) dos produtores
de verdade é seu ser-verdadeiro. Mas, enquanto condições para o ser mesmo das
asseverações, devem ser, em algum sentido, produtores primários de verdade
para as mesmas.
Se isto é assim, então a diferença entre critérios e princípios de verdade o é
de gênero, mas de grau, o que portanto permite postular uma definição comum a
ambos, uma vez que tanto princípios quanto critérios de verdade são produtores
de verdade para as asseverações, ainda que produtores de verdade com extensões
e funções diferentes. Por conta desta situação semântica, pode-se considerar
inicialmente a diferença entre princípios e critérios de verdade como uma
diferença que diz respeito à sua aplicabilidade a um âmbito maior ou menor de
asseverações, e ao grau de dependência ontoalética que intercorre entre estes
113
princípios e critérios, desde o grau zero de dependência dos princípios primários
(sua independência ontoalética e ou ontológica relativamente aos critérios de
verdade) até um grau determinado de dependência dos critérios em relação aos
princípios de verdade
43
.
Mas então qual seria definição comum de princípios e critérios de verdade? Os
princípios e critérios de verdade exercem duas funções comuns em relação a um
mesmo tipo de entidades. A primeira aplicação ou função essencial de um
princípio ou de um critério de verdade é o de ser um padrão ou modelo a partir do
qual pode-se julgar e decidir sobre a validade (verdade) ou invalidade (falsidade)
da pretensão de verdade instanciada em um enunciado ou conjunto de enunciados
que compõe(m) uma asseveração que esteja dentro do domínio, da extensão ou
“jurisdição” deste critério ou princípio; neste sentido um critério ou princípio de
43
Pode-se falar também de níveis de critérios relativamente aos princípios, ou seja, pode-se
considerar a possibilidade de critérios primários, secundários, terciários, quaternários, etc., na
medida em que estes seriam critérios derivados e dependentes dos níveis anteriores, mas tais
diferenças de nívelo são importantes aqui, dado que não se está querendo estabelecer e defender
teoricamente uma hierarquia efetiva, mas apenas colocar uma estrutura geral válida para qualquer
teoria ou teorização da verdade, a qual pode ou não lançar mão de veis múltiplos (finitos ou
infinitos) de dependência ontoalética entre princípios e critérios ou entre critérios de ordem
superior e inferior. De qualquer forma a diferença de níveis entre princípios e critérios, ou entre
critérios de ordem superior e inferior, pode ser logicamente analisada através do seguinte esquema
(usando colchetes retos para marcar as partes principais do esquema):
(∨Pn+1) (Pn) [ ((W Pn+1) D (W Pn)) & ((W Pn) P (W Pn+1))]
[ ((W Pn) (W Pn+1)) ( ~ ((W Pn+1) (W Pn)))],
onde Pnsimboliza um princípio primário ou um critério superior de um nível qualquer e Pn+1
simboliza um critério de um nível subordinado ou posterior ao nível de Pn’. Tal esquema mostra
que a relação de produção de verdade entre critérios de um nível a outro é descendente, no sentido
de uma derivação de um ou rios critérios de um nível superior em relação a um ou vários
critérios de um nível inferior; enquanto a relação de dependência alética é ascendente no sentido de
uma fundamentação de um ou vários critérios de um nível inferior em relação a um ou vários
critérios de um nível superior. Além disso, usa-se o mbolo W’, ou seja, o símbolo do predicado
ser-verdadeiro porque, por definição, tanto princípios quanto critérios de verdade devem ser
necessariamente verdadeiros relativamente àquilo para o que o princípios e critérios, caso
contrário não seriam princípios e critérios de verdade, mas apenas asseverações contingentes, ou
seja, asseverações que poderiam ser ora verdadeiras e ora falsas.
114
verdade é uma condição de verificação da validade ou invalidade de uma pretensão de
verdade do(s) enunciado(s) que compõe(m) uma asseveração relativamente aos estados
ônticos representados por este(s) enunciado(s). O segundo uso essencial de um critério
ou princípio de verdade consiste em ser um padrão ou modelo a partir do qual se
justifica a correção (verdade) ou incorreção (falsidade) da pretensão de verdade
(sentido) de um ato de pensamento que toma parte de uma asseveração; nesta
acepção um critério ou princípio de verdade é uma condição de justificação da
correção ou incorreção do sentido de um ato de pensamento que toma parte de uma
asseveração em relação ao estado ôntico referido. Assim, um critério ou princípio de
verdade é tanto uma condição de verificação quanto uma condição de justificação de uma
dada asseveração.
Obviamente, aqueles que proferem uma asseveração pretendem que ela seja
verdadeira, no sentido de ser válida e correta, e o fazem pressupondo (consciente
ou inconscientemente) um ou vários critérios e princípios de verdade. A partir
desta definição comum dos princípios e critérios de verdade, pode-se dizer então
que uma asseveração é verdadeira se, e somente se, está justificada e pode ser
verificada ao menos por um critério de verdade, pois neste caso, ainda que seja
uma asseveração simples ou não rigorosa, ela não será incompatível com os
demais critérios de verdade e estará implicitamente fundada em algum princípio
de verdade. Isto tudo significa tão-somente: uma asseveração é verdadeira se
possui ao menos um produtor primário de verdade. É possível, portanto, afirmar
que os princípios e critérios de verdade são aquelas verdades primeiras de cada
115
âmbito ou em geral que, por sua própria natureza e estatuto, devem ser assumidas
ou pressupostas como mais” verdadeiras do que as asseverações fundadas nestas
ou avaliadas através destas verdades primárias. Enquanto verdades primárias com
respeito às asseverações, os princípios e critérios de verdade são, em conjunto, suas
condições necessárias e suficientes de verdade
44
.
Os princípios e critérios de verdade se aplicam às asseverações, ou seja, são
produtores primários de verdade para as asseverações, enquanto exercem as
funções de justificar e verificar a correção ou incorreção de seu sentido e a validade
ou invalidade do enunciados que instanciam este sentido relativamente aos
estados ônticos referidos pelas asseverações. Para compreender e determinar de
modo mais rigoroso esta definição de princípios e critérios de verdade, é preciso
caracterizar qual a estrutura em geral das asseverações.
44
Não se deve confundir a expressão ‘condições de verdade’ aplicada às asseverações com o
sentido que esta expressão adquire a partir da obra de Davidson. Davidson tende a restringir a
noção de condições de verdade às condições lógico-semânticas de verdade, o que não é o caso aqui,
pois, como se esclarecerá mais abaixo, as condições de verdade das asseverações incluem suas
condições de verdade lógico-semânticas, mas também possuem condições noéticas e ontológicas
que devem ser consideradas. No entanto, as obras e análises de Davidson, apesar da perspectiva
desta investigação considerá-las como parciais, são essenciais para uma compreensão do problema
em questão. Além das análises de Davidson, contudo, também aquelas realizadas por Dummett são
importantes para a compreensão e discussão do conceito de condições de verdade, pelo fato de
explicitarem e discutirem, em franca polêmica com a teoria de Davidson, os princípios e critérios
epistêmicos de verdade das asseverações tomados como “condições de assertibilidade”, apesar de
tais análises tenderem a restringir ou privilegiar este tipo de condições sobre os demais tipos,
atitude que, na perspectiva desta investigação, não é correta dada a natureza essencialmente
complexa e relacional das asseverações. Para a posição de Davidson, veja-se De la verdad y de la
interpretación, opus cit., esp. os artigos incluídos no cap. 1. Para a posição de Dummett, veja-se os
seguintes artigos incluídos em The seas of language. Oxford: Oxford UP, 1996 (1993): “Language and
truth”, pp. 117-146; “Truth and meaning”, pp. 147-165; “The source of concept of truth”, pp. 188-
201. Para uma discussão crítica de ambas as posições e suas limitações e colapsos argumentativos,
veja-se, de Richard Kirkham, Teorias da verdade, uma introdução crítica, opus cit., cap. 8.
116
Os elementos que constituem toda e qualquer asseveração são fatos ou
entidades mentais, lógico-semânticos e reais. Assim, em toda asseveração está em
jogo alguma relação ou tipo de relação entre pensamento, linguagem e realidade,
ou seja, uma correlação entre entidades ou fatos mentais, lógico-semânticos e reais.
A propriedade essencial (definitória) de uma asseveração é sua pretensão de verdade
em relação àquilo que assevera como verdadeiro ou falso. Assim, a estrutura básica
de uma asseveração consiste em ser um ato de pensamento com pretensão de verdade
realizado por alguém através de fatos lógico-semânticos que representam ou figuram algum
estado ôntico (seja este estado ôntico um fato mental, lógico-semântico ou real em sentido
estrito), em suma, uma asseveração consiste em alguém pensar algo através de algum tipo
de expressão lingüística e esquema conceitual sobre algum estado ôntico determinado. A
pretensão de verdade de uma asseveração é aquilo que ela quer dizer, aquilo que
ela toma como verdadeiro acerca de algo
45
. Uma pretensão de verdade pode tanto
querer dizer que algo é verdadeiro acerca de algo, quanto que é falso, ou seja, pode
querer dizer que é verdade que é verdade que algo é assim ou assim, ou que é
verdade que é falso (=que não é verdade) que algo é assim ou assim, o que também
equivale a dizer simplesmente que algo não é assim ou assim
46
. É justamente esta
aparentemente estranha duplicação que torna absurdo falar de uma pretensão de
45
Para uma elucidação da pretensão de verdade inerente a toda enunciação categórica, veja-se, de
Charles Kahn, “Sobre a teoria do verbo ser” & “Retrospectiva do verbo ser e do conceito de ser”, in
Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser, (org.) Maura Iglesias. Rio de Janeiro: PUCRJ, 1997, traduções
dos artigos, respectivamente: Fernando Rodrigues & Irley F. Franco, pp. 33-62, esp. 48 ss, & pp. 155-
195, esp. 164-170.
46
Sobre o sentido logicamente necessário desta duplicação para a compreensão correta e completa
da predicação da verdade aos enunciados, veja-se, de Georg H. von Wright, “Truth and logic”, in
Truth, knowledge and modality. Nova Iorque: Blackwell, 1984, pp. 26-41, esp. 27-30.
117
falsidade, pois ao se declarar que algo é falso, é inerente a esta declaração sua
pretensão de que aquilo que enuncia é o caso, isto é, que é verdade o caso) que
algo não é o caso. No nível da asseveração é-se condenado à pretensão de verdade
47
. A pretensão de verdade de uma asseveração pode ser expressa e composta por
um enunciado simples, por um enunciado complexo ou por um conjunto
complexo de enunciados, articulados logicamente em um discurso mais ou menos
extenso. Em última instância, todas as asseverações, consciente ou
inconscientemente, estão fundadas em critérios e princípios de verdade gerais e
específicos, desde os quais podem ser avaliadas (verificadas) a correção ou
incorreção e a validade ou invalidade de suas pretensões de verdade. Se uma
47
Uma asseveração voluntariamente falsa não seria uma asseveração, mas simplesmente uma
mentira com fins utilitários e dissimulados. Uma asseveração é falsa sempre e necessariamente
contrariamente à sua pretensão de verdade. Em uma asseveração é somente possível estar
enganado e o estar mentindo, pois, nas palavras de Nietzsche, pode mentir quem já conhece
a verdade”, ou seja, quem mente o faz porque pode fazer uma asseveração verdadeira. Mesmo
enunciados semanticamente paradoxais tais como “este enunciado é falso” ou “eu estou mentindo”,
enquanto asseverações, possuem uma pretensão de verdade. A idéia de que todos os enunciados
implicitamente predicam de si mesmos sua própria verdade encontra-se já, segundo Kirkham,
implicitamente, nos seguintes textos de Arthur N. Prior, “Epimenides the Cretan”, in Journal of
Symbolic Logic, vol. 23, 1958, pp. 261-266; e também Some problems of reference in John Buridan”,
in Proceedings of British Academy, vol. 48, 1962, pp. 281-296, apud Richard L. Kirkham, Teorias da
verdade, uma introdução crítica, opus cit., pp. 406-407. Tal idéia é usada por Prior para resolver o
paradoxo do mentiroso. Esta mesma idéia é usada também por Aristóteles para resolver este
mesmo paradoxo, como ver-se-á adiante; cf. Metafísica, IV, 8, 1012 b 1-22. Sobre a impossibilidade
de uma pretensão de falsidade cabe lembrar as palavras de Ernst Tugendhat: “Poderíamos dizer
que as sentenças na formasnão é o caso que p” trazem uma pretensão de falsidade? “Não é o caso
que p” é claramente equivalente a “que p é falsa”; assim pode-se dizer que, na verdade, com uma
sentença desta forma é asserido que o que é dito com “p” é falso. Mas “não é o caso que p”, é, claro,
equivalente não a p” mas a não-p”. Com “não é o caso que p”, é asserida portanto a falsidade da
proposição contrária; e isto é somente possível porque aqui também a proposição assere sua
própria verdade. Deste modo o uso de qualquer sentença assertórica, quer ocorra ou não um não”
nela, envolve uma pretensão de verdade. E que no uso de qualquer sentença assertórica algo é
asserido está de qualquer modo claro. Embora se possa asserir o contrário, não se pode fazer algo
que é o oposto de asserir.” In Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem; coordenação da
tradução e edição: Mário Fleig. Ijuí: UNIJUÍ, 1992, pp. 70-71. O termo ‘asserir’ e suas variações tal
como usado por Tugendhat é equivalente ao termo ‘asseverar’ e suas variações tal como usado
aqui.
118
asseveração é verdadeira, então sua verdade é derivada e dependente dos critérios
e princípios nos quais se verifica e se justifica sua validade e correção. Portanto,
uma asseveração é verdadeira se possui ao menos um produtor de verdade. Se
uma asseveração é falsa, então ou se funda em critérios ou princípios de verdade
aparentes (falsos), ou os critérios e princípios em que pretende se basear não
justificam e ou verificam sua pretensão de verdade, ou seja, ou os critérios e
princípios em que se baseia o falsos (não são realmente produtores de verdade)
ou ela não decorre necessariamente dos critérios e princípios que reivindica para se
justificar e ser verificada. Em suma, uma asseveração é falsa se não possui nenhum
produtor de verdade.
Para esclarecer de modo mais aprofundado em que sentido e de que modo os
princípios e critérios de verdade fundamentam ou produzem a verdade ou
falsidade de uma asseveração, é preciso explicitar a forma lógica geral das
asseverações. Esta forma lógica geral pode ser expressa no seguinte esquema:
X assevera que (M)
Nesta formulação abstrata ‘X’ pode ser substituído pelos pronomes do caso reto
(eu, tu, ele, nós, vós, eles), por algum nome próprio como ‘João’, ‘Carlos’, ‘Platão’,
etc., ou por algum nome coletivo como ‘os atenienses’, os brasileiros’, ‘os filósofos
franceses’, ‘os lógicos intuicionistas’, ‘os fenomenólogos’, ‘os sicos quânticos’, etc.
Pode-se dizer que esta cláusula especifica quem veicula e realiza uma dada
asseveração e, obviamente, para quem ela conta como verdadeira. No caso de
‘assevera’, este termo geral pode ser expresso com verbos intencionais tais como
119
‘crer’, ‘saber’, conhecer’, ‘perceber’, ‘ter a opinião’, ‘ser de parecer’, ‘recordar’,
‘assegurar’, ‘perceber’, etc., nas formas temporais e gramaticalmente convenientes
em cada caso. Esta cláusula especifica que tipo de ato intencional de pensamento
marca a pretensão de verdade da asseveração. A cláusula ‘(M)’ simboliza a(s)
modalidade(s) que em cada caso acompanha(m) a asseveração de , ou seja, esta
cláusula pode ser substituída por foi/é/será possível que...’, ‘foi/é/será
impossível que...’, ‘foi/é/será necessário que...’, foi/é/será contingente que...’, etc
‘foi/é/será (ou não) atual que... (=foi/é/será (ou não) o caso que...)’. Esta cláusula
especifica qual o sentido (intensão) que é assignada à pretensão de verdade da
asseveração, ou seja, qual o tipo de valor de verdade que é pretendido para a
asseveração, desde o grau mais fraco da mera possibilidade até o grau mais forte
da necessidade ou impossibilidade daquilo que é expresso no conteúdo gico-
semântico efetivo da asseveração. O símbolo representa uma estrutura
significante simples ou complexa, ou seja, representa uma estrutura lógico-
semântica constituída de um único enunciado simples ou de um conjunto
articulado de enunciados simples, cujo sentido de seu valor de verdade depende
ontoaleticamente tanto de princípios e critérios (gerais e específicos) de verdade,
quanto dos estados ônticos por ela referidos, sejam estes estados ônticos outras
entidades mentais, entidades lógico-semânticas, sejam entidades reais (em sentido
estrito).
Poder-se-ia objetar em relação à cláusula ‘(M)’ que ela não é necessária em
todas as asseverações, dado que muitos enunciados não parecem ser modalizados.
120
Esta objeção, porém, procede admitindo-se alguns pressupostos, tais como (a) é
possível reduzir todos os enunciados modalizados a enunciados não-modalizados;
(b) não se modalizam enunciados que instanciam tautologias ou contradições, tais
como “Paulo é idêntico a si mesmo” ou Paulo é diferente de si mesmo”; (c)
modalidades de re são completamente redutíveis a modalidades de dicto, e estas são
completamente redutíveis a esquemas gicos extensionais. Apesar de tais
pressupostos poderem ser válidos em perspectivas de consideração de enunciados
simpliciter, eles não o são no que diz respeito à estrutura geral das asseverações.
Nestas, todos os enunciados o modalizados implícita ou explicitamente, dado
que se não o fossem não constituiriam partes de asseverações, mas apenas
enunciados simpliciter ou partes de atitudes proposicionais, nas quais a pretensão
de verdade não é um traço definitório. Neste sentido, nas asseverações não é
possível reduzir enunciados modalizados a não-modalizados, pois isso faria com
que fosse necessário desconsiderar os atos intencionais de pensamento das
asseverações, bem como seu aspecto intensional e temporal e, por isso, admitir por
princípio que modalidades de re sejam elimináveis por modalidades de dicto, posto
que a partir das modalidades de dicto pode-se mais facilmente as analisar em
termos não modais. A partir disso é preciso fazer a ressalva de que a anteposição
da cláusula ‘(M)’ ao símbolo ‘não indica aqui que a modalidade em questão seja
apenas uma modalidade de dicto
48
. Mas sobre a questão das modalidades de dicto e
de re ainda se falará mais adiante.
48
Cabe lembrar aqui de passagem que a fórmula de Barcan é válida tanto quanto sua forma
121
Seja como for, somente retirando tal caráter intensional e temporal é possível
conceber, no plano puramente extensional, como redundante a pretensão de
verdade proposta em “X assevera que necessariamente Paulo é igual a si mesmo”
ou como absurda (impossível) a pretensão de verdade proposta em “X assevera
que necessariamente não é o caso que Paulo é igual a si mesmo”. Certamente a
correção (verdade) de uma asseveração pode tornar redundante a atitude
proposicional a ela anteposta, mas apenas no momento em que a asseveração é
verificada como correta, ainda que nem sempre torne redundante a modalidade
nela inserida. Mas se uma asseveração é falsa (incorreta) a atitude proposicional a
ela anteposta não é eliminada e, menos ainda, a modalidade do enunciado desta
asseveração, pois será verdadeiro dizer, usando um exemplo de Frege levemente
alterado, que “é verdade que Kepler acreditou no início de suas investigações ser o
caso que as órbitas planetárias são circulares” (mesmo que esta crença seja falsa a
partir dos resultados finais do próprio Kepler), posto que esta crença falsa constitui
conversa, ou seja,
[( (x) Fx (x) Fx)] [(x) Fx (x) Fx)]
É certo que foram apontados certos resultados contra-intuitivos que podem ser derivados desta
fórmula. Kripke barrou estes resultados introduzindo a idéia de uma quantificação restrita, i. e., que
se deve introduzir a função ‘dom (w)’ em cada modelo, ou seja, especificando o domínio de
indivíduos de cada mundo possível, de tal modo que somente entidades atuais possam validar as
fórmulas modais quantificadas. Com este expediente lógico mantém-se a intuição de que somente
entidades atuais existem em um mundo possível. Este expediente lógico, porém, e a concepção
atualista que o fundamenta, não está isento de problemas, entre os quais a impossibilidade de lidar
com variáveis livres e atribuir constantes à entidades contingentes. Para uma discussão introdutória
(mas minuciosa) dos motivos filosóficos e lógicos do atualismo, veja-se, de Christopher Menzel, o
vocábulo ‘actualism’ na Stanford Encyclopedia of Philosophy, disponível em <http://plato.
stanford.edu/>.
122
um fato histórico verdadeiro, diferente do simples enunciado falso “as órbitas
planetárias são circulares”.
A modalização dos enunciados em geral nas asseverações se torna mais clara se
se percebe que mesmo enunciados aparentemente não-modalizados possuem, na
realidade, modalizações implícitas, dado que se admita que o atual é a modalidade
de enunciados sobre o presente e que, desde a perspectiva presente, os fatos
passados são, se não necessários, ao menos realizados (atuais quando ocorreram) e
que todos os fatos futuros são, se não necessários, ao menos possivelmente atuais
(se e quando ocorrerem). O operador intensional e alético expresso no predicado
monádico temporal ‘ser-atual’ (=‘ser-o-caso’) ou sua negação mostra que mesmo
enunciados aparentemente não modalizados possuem esta modalidade implícita,
vigente em seu tempo verbal (asseverado afirmativa ou negativamente)
49
.
Admita-se, por ora, como suficiente esta caracterização sucinta da estrutura
geral das asseverações. Ela ainda se tornará mais clara no decorrer deste capítulo.
Tendo-se esclarecido sumariamente a estrutura geral das asseverações,
enquanto aquilo a que propriamente se aplicam os princípios e os critérios de
verdade, pode-se então fazer uma definição formal da relação entre princípios de
verdade, critérios de verdade e asseverações, na qual se torne explícito porque
49
Para uma caracterização lógico-filosófica forte da modalidade da atualidade e do ser-atual, veja-
se, de Alvin Plantinga, The nature of necessity. Oxford: Clarendon, 1982 (1974), cap. 4, §§ 3-5. Para
uma caracterização crítica à posição de Plantinga, veja-se também, de David Lewis, On the plurality
of worlds, opus cit., cap. 1, § 9, cap. 2, § 1. Em todo caso, a presente consideração sobre a modalidade
da atualidade deixa em suspenso que se a tome como uma característica essencial de todo mundo
possível (tal como no atualismo defendido por Plantinga) ou como uma mera modalidade dêitica
ou indexical para fixar e identificar o mundo possível do qual se fala e se faz parte (tal como é
defendido por Lewis). Esta suspensão de juízo deve-se ao fato de que não se decidiu o significado
do conceito de ‘mundo possível’.
123
princípios e critérios de verdade são, conjuntamente, condições necessárias e
suficientes de verdade para as asseverações; bem como, a partir desta relação,
chegar a uma definição formal de princípios e critérios de verdade mostrando sua
mútua relação e sua diferença.
É possível começar a analisar logicamente a diferença entre princípios e
critérios de verdade e a relação das asseverações com estes através do conceito de
dependência ontoalética, formalizando-as inicialmente do seguinte modo:
(a) (c) (p) ((Wc) D (Wp) & (Va) D (Wc) ((Va) D (Wp)))
Esta formalização pode ser interpretada assim:
“Para toda asseveração a, existe ao menos um critério de verdade c e existe ao
menos um princípio de verdade p, tal que, necessariamente, se (o sentido do valor
de verdade de a depende da verdade do critério c e a verdade do critério c depende
da verdade do princípio p), então (o sentido do valor de verdade de a depende da
verdade de p)”.
Tal formulação em termos de dependência ontoalética pode ser transferida para
uma formalização em termos de produção de verdade do seguinte modo:
(a) (c) (p) ((Wp) P (Wc) & (Wc) P (Va) ((Wp) P (Va)))
Esta formalização pode ser lida da seguinte maneira:
“Para toda asseveração a, existe ao menos um critério de verdade c e existe ao
menos um princípio de verdade p, tal que, necessariamente, se
(a verdade de
princípio p produz a verdade do critério c e a verdade do critério c produz o valor
de verdade da asseveração a), então (a verdade de p produz o sentido do valor de
verdade de a)”.
Dado o definiens comum à produção de verdade e à dependência ontoalética, a
saber:
(x) (y) ( ((Wy) (Vx)) ( ~ ((Vx) (Wy)),
124
então a relação de transitividade representada nas duas formulações anteriores
necessariamente não pode ser invertida, ou seja,
(a) (c) (p) ( ((Wp) P (Wc) & (Wc) P (Va) ((Wp) P (Va))) ( ~ ((Va) P (Wc))
((Wc) P (Wp))),
ou:
(a) (c) (p) ( ((Wc) D (Wp) & (Va) D (Wc) ((Va) D (Wp))) ( ~ ((Wc) D
(Va)) ((Wp) D (Wc))),
ou ainda de modo geral para ambas as formulações:
(a) (c) (p) ( ((Wp) (Wc) & (Wc) (Va)) ((Wp) (Va))) ( ~ ((Va)
(Wc)) ((Wc) (Wp))).
Destas formulações é possível retirar, por generalização indutiva e por
separação, uma definição da relação entre princípio de verdade em sentido estrito
e critério de verdade em sentido estrito, a saber:
(c)( p)( ((Wc) D (Wp)) & ((Wp) P (Wc))) ( ((Wp) (Wc)) ( ~ ((Wc) (Wp)))).
Na medida em que o valor de verdade da asseveração a depende do e é
produzido pela verdade do critério c, então se pode dizer que o critério c é, em
relação à asseveração a, um princípio de verdade em sentido lato, ainda que não
um princípio de verdade primário e em sentido estrito. Em todo caso, ele
desempenha um papel de princípio porque a verdade da asseveração a pode ser
justificada e verificada através do critério c, ainda que este seja apenas uma
condição suficiente, mas não necessária, para sua correção e validade. No entanto,
se a asseveração a não justifica e verifica sua correção e validade no critério c,
125
tampouco o fará através do princípio p, o que mostra que tanto princípios quanto
critérios são condições de justificação e verificação das asseverações em geral,
ainda que colocados em níveis diferentes. Além disso, somente os princípios
primários em relação a todos os critérios podem satisfazer plenamente as
condições da definição de princípio de verdade.
À luz destas determinações ontoaléticas, e dos esclarecimentos gerais sobre a
natureza das asseverações, fica mais claro porque os princípios e critérios de
verdade se aplicam às asseverações em geral e porque, enquanto aplicados a elas,
se diferenciam apenas quanto à sua extensão
50
. No entanto, resta ainda determinar
a diferença de sentido dos princípios e critérios tomados por si mesmos, ou seja,
determinada sua diferença quanto à extensão de aplicação, deve-se determinar sua
diferença de intensão, posto que princípios de verdade devem se aplicar a todas as
asseverações possíveis, enquanto os critérios podem tanto se aplicar a totalidade
das asseverações quanto a conjuntos isolados de asseverações.
Acabou-se de ver que, em sentido amplo e vago, todo estado ôntico que é um
produtor de verdade para uma asseveração pode ser um critério de verdade para
esta mesma asseveração enquanto portadora de um valor de verdade. No entanto,
como é possível, em princípio, que qualquer entidade seja um produtor de verdade
para as asseverações (inclusive outras asseverações) , então toda e cada uma das
entidades possíveis seriam possíveis critérios de verdade para qualquer
asseveração ou tipo de asseveração, e isto redundaria, em última instância, que
50
Ainda que esta diferença de extensão acarrete uma alteração (não essencial) de seus respectivos
sentidos.
126
qualquer entidade fosse critério de verdade para qualquer asseveração. Com isto,
todas as entidades que podem ser referidas pelas asseverações, assim como a
totalidade das asseverações, estariam igualadas, o que poderia implicar que uma
única entidade fosse critério de verdade para todas as asseverações e se perdesse
completamente a possibilidade de diferenciar não princípios e critérios de
verdade para as asseverações, mas também a possibilidade de diferenciar entre
tipos diferentes de critérios com extensões diversas. É justamente isto que foi
chamado anteriormente de anarquia ontológica na produção de verdade.
Mas em geral, constata-se que nem todas as asseverações e nem todos os
estados ônticos a que as asseverações podem se referir têm o mesmo status
ontológico e alético, pois dentre os estados ônticos e dentre as asseverações
estados ônticos que são dependentes de outros estados ônticos e asseverações que
são dependentes quer de estados ônticos do mundo, quer de outras asseverações.
Prosseguindo indutivamente nesta mesma via de argumentação, não é difícil
constatar que, em última instância, estados ônticos que são referências
primárias das asseverações e asseverações que são referências primárias para as
demais asseverações. Se isto é assim, então nem todos os estados ônticos são
produtores de verdade do mesmo tipo e nem todas as asseverações são portadoras
de verdade do mesmo tipo. De modo que é preciso haver estados ônticos que são
produtores primários de verdade e asseverações que são portadoras primárias de
verdade. São estes estados ônticos ontologicamente independentes relativamente aos
demais estados ônticos de uma mesma categoria que podem ser considerados como
127
produtores primários de verdade para as asseverações que se referem aos estados ônticos
desta categoria. De modo análogo, são estas asseverações ontoaleticamente independentes
relativamente às asseverações que as pressupõem que podem ser consideradas como
portadores primários de verdade.
Ainda nesta mesma via de argumentação e seguindo a analogia, se as
referências primárias das asseverações são os estados ônticos e secundariamente
outras asseverações, então as asseverações que são portadoras primárias de
verdade devem se referir aos estados ônticos primários de cada uma das categorias
de estados ônticos do mundo. Uma vez que quando as asseverações se referem a
outras asseverações elas se referem, direta ou indiretamente, às asseverações que
são portadoras primárias de verdade e as tomam como seus produtores de
verdade, então as asseverações em geral se referem, direta ou indiretamente, aos
estados ônticos primários de cada categoria de entidades, posto que são estes
estados ônticos que são produtores de verdade para as asseverações primárias.
Assim, ainda por via indutiva, as asseverações têm como candidatos para seus
critérios de verdade os estados ônticos primários e as asseverações que descrevem
ou definem estes estados ônticos primários e que, por isso, são portadoras
primárias de verdade. Por conseguinte, pode-se dizer que na relação de produção de
verdade inter-categorial os candidatos a critérios de verdade das asseverações são os estados
ônticos primários de cada categoria ou gênero de entidades. Em continuidade com esta
determinação, pode-se dizer que na produção de verdade intra-categorial os candidatos
128
a critérios de verdade das asseverações são as asseverações primárias que descrevem ou
definem estes estados ônticos primários.
Foi dito anteriormente que todas as asseverações negativas verdadeiras, bem
como as asseverações falsas (afirmativas ou negativas), pressupõem o conjunto das
asseverações afirmativas verdadeiras. Se as asseverações afirmativas são
pressupostas pelos demais tipos de asseveração, e se é por meio das asseverações
afirmativas que os estados ônticos primários de cada gênero de estados ônticos são
descritos e ou definidos, então as asseverações afirmativas básicas serão aquelas
que descrevem com verdade o modo de ser (o ser verdadeiro) destes estados
ônticos primários. Tais asseverações podem ser chamadas de asseverações
afirmativas básicas. Com o que as asseverações afirmativas básicas são os critérios
primários de verdade das asseverações em geral porque todas as asseverações que
se referem aos estados ônticos do mundo pressupõem os estados ônticos
primários, na medida em que os estados ônticos de uma determinada categoria ou
gênero dependem destes estados ônticos primários para serem o que são. Na
medida em que as asseverações afirmativas verdadeiras e básicas descrevem ou
definem os estados ônticos primários de cada categoria de estados ônticos do
mundo em geral, então todos os estados ônticos primários de cada categoria
ontológica de estados ônticos do mundo são critérios de verdade das asseverações
que se referem a qualquer estado ôntico desta categoria, identificando-se assim os
critérios primários intra-categoriais e inter-categoriais das asseverações e excluindo
deste modo a possibilidade de que qualquer estado ôntico referível seja um critério
129
inter-categorial autêntico de verdade para as asseverações e que qualquer
asseveração seja um critérios intra-categorial autêntico para as demais
asseverações, isto é, excluindo a anarquia ontológica e ontoalética na produção de
verdade.
Tem-se assim uma primeira determinação dos critérios de verdade das
asseverações. No entanto, ainda se está na presença de uma multiplicidade muito
grande de critérios primários de verdade, pois o número de categorias de estados
ônticos do mundo em geral é virtualmente infinito, posto que as categorias em que
os estados ônticos do mundo estão organizados nem sempre possuem uma
determinação exata. Pode-se, todavia, assumir (hipoteticamente) que existem
categorias ou gêneros de entidades que englobam uma multiplicidade de sub-
gêneros ou categorias específicas de entidades, com o que os critérios primários de
verdade das asseverações se reduziriam consideravelmente. Admitindo-se, então,
que haja categorias gerais de entidades capazes de englobar um grande número de
categorias, os critérios primários de verdade (inter-categoriais e intra-categoriais)
das asseverações seriam as definições das características gerais que são partilhadas
por todas as categorias de estados ônticos englobadas em uma mesma categoria
geral de estados ônticos, sendo os estados ônticos primários de cada uma destas
categorias específicas considerados como critérios secundários de verdade das
asseverações. Mantém-se assim a congruência entre uma hierarquia ontológica
(inter-categorial) e uma hierarquia ontoalética (intra-categorial) entre os portadores
e os produtores de verdade no nível dos critérios de verdade das asseverações.
130
Todavia, estes critérios ainda são válidos para tipos específicos de asseverações
que se referem a âmbitos gerais da realidade. Eles são condições conjuntamente
suficientes para o conjunto das asseverações possíveis distribuídas entre os diverso
âmbitos gerais em que a realidade em geral dos estados ônticos pode ser dividida.
Estes critérios são primários, mas ainda não são critérios gerais co-extensivamente
válidos para todas as asseverações tomadas em conjunto. O sentido dos critérios
gerais válidos para a todas as asseverações, portanto, ainda não foi encontrado e
determinado. O sentido destes critérios gerais pode ser encontrado juntamente
com a determinação do estatuto dos princípios de verdade, retomando a estrutura
geral das asseverações.
Toda asseveração, conforme já foi sumariamente exposto acima, é constituída
por uma relação entre atos de pensamento, estruturas lógico-semânticas e os
estados ônticos referíveis que constituem a realidade como um todo. Os princípios
de verdade para as asseverações são suas condições necessárias de verdade, ou
seja, aquelas condições mais gerais que devem estar presentes em qualquer
asseveração possível (verdadeira ou falsa), ou seja, que são condições para seu
modo de ser. Ora, se é assim, então os princípios de verdade devem ter que se
aplicar aos três âmbitos que constituem toda e qualquer asseveração, ou melhor,
devem poder especificar quais as condições necessárias de verdade para toda
relação entre pensamento, linguagem e realidade. A partir disso, os princípios de
verdade têm necessariamente que ser as referências primeiras para as entidades
mentais que tomam parte nas asseverações e para as entidades lógico-semânticas
131
enquanto estas instanciam o sentido destas entidades mentais e representam os
estados ônticos visados pelos pensamentos através e dentro da linguagem. Neste
sentido, os princípios de verdade que justificam e verificam a verdade ou falsidade
de toda e qualquer asseveração devem estar “para além” destas categorias de
entidades, pois é justamente a partir destes princípios que se pode estabelecer a
relação entre pensamento, linguagem e realidade, e que, portanto, é possível
estabelecer a hierarquia ontológica e ontoalética entre os tipos ou categorias de
produtores de verdade e os tipos gerais de asseverações, as quais devem ser
congruentes com estas categorias gerais de ser, compreendidas como os possíveis
referentes das asseverações.
Este “para além” dos princípios de verdade, porém, não significa uma
transcendência, mas significa o caráter transcendental que, por definição, deve
pertencer aos princípios de verdade. O qualificativo ‘transcendental’ tem aqui o
sentido usado pelo escolásticos para nomear aqueles conceitos que ultrapassam o
nível estrito de uma única categoria de entidades e que podem se aplicar a vários
ou a todos os gêneros de estados ônticos do mundo. No caso específico da
teorização da verdade este caráter transcendental ou transcategorial significa a
aplicação às possíveis relações entre as categorias de entidades que compõem as
asseverações em geral, a saber: entidades mentais, lógico-semânticas e estados
ônticos reais referíveis.
Os princípios de verdade das asseverações, porém, não são diretamente
aplicáveis às asseverações, porquanto eles são apenas condições necessárias e não
132
suficientes para as asseverações. São justamente os critérios gerais de verdade que
constituem a contraparte de tais princípios. Os critérios gerais de verdade das
asseverações devem ser, portanto, a contraparte dos princípios de verdade e se
aplicar a cada uma das partes de toda e qualquer asseveração possível: aos atos de
pensamento, às estruturas lógico-semânticas e aos estados ônticos que são
referidos, ou seja, os critérios gerais das asseverações constituem derivações diretas
dos princípios de verdade e formam com estes o conjunto de condições necessárias
e suficientes de verdade das asseverações em geral.
Assim, os princípios de verdade primários das asseverações possuem três
aspectos complementares que serão chamados aqui respectivamente de aspectos
noético, gico-semântico e ontológico. A estes três aspectos complementares
correspondem os critérios gerais de verdade noéticos, lógico-semânticos e
ontológicos que se aplicam a todas as asseverações possíveis em suas partes
constituintes.
Se estas definições e esclarecimentos estão corretos, então se pode esquematizar
do seguinte modo a hierarquia ontoalética entre princípios primários de verdade e
os critérios gerais de verdade das asseverações:
Princípios Primários
Aspectos: Noéticos Lógico-semânticos Ontológicos
133
Critérios
Gerais: Noéticos Lógico-semânticos Ontológicos
Relação Asseverações
efetiva entre: Pensamentos – Enunciados – Estados ônticos
Deve-se caracterizar de modo sumário e panorâmico estes três aspectos
complementares dos princípios primários e critérios gerais de verdade das
asseverações, independente de quais sejam os princípios e critérios de verdade das
asseverações defendidos por uma teoria ou tradição teórica específicas, ou seja,
deve-se caracterizar formalmente os três aspectos essenciais de qualquer princípio
ou critério de verdade que se possa defender como tal
51
.
§ 2 – O aspecto noético dos princípios de verdade
e os critérios noéticos de verdade
A delimitação formal clara do aspecto noético próprio aos princípios e critérios
de verdade é difícil. Tal dificuldade provém da multiplicidade dos problemas e
aspectos envolvidos na determinação dos atos de pensamento ou entidades
mentais. A filosofia da mente, a filosofia da psicologia, as investigações gico-
semânticas e lingüísticas, a epistemologia, a psicologia em geral e a psicologia
51
Não se espera com esta caracterização formal uma neutralidade teórica acima de qualquer
objeção, o que parece ser em todo caso impossível no âmbito da filosofia (e mesmo no âmbito da
ciência, como indicam tanto os próprios debates entre os cientistas, quanto os trabalhos dos
filósofos da ciência como Popper e Kuhn). O que se espera é o somente fazer justiça ao tema
mesmo investigado em sua complexidade essencial. Como o eventual leitor deve ter percebido,
muito do que é falado aqui não encontra um apoio explícito na discussão hoje vigente acerca da
natureza da verdade. Isto faz com que este eventual leitor deva julgar com mais rigor ainda as teses
expostas neste texto por amor à verdade mesma, ou, parafraseando um velho ditado socrático,
amicus philosophorum, sed magis amica veritas.
134
cognitiva, a neuro-psicologia, entre várias outras áreas da filosofia e da ciência
tomam os fatos mentais e os atos de pensamento como objeto de estudo e
discussão de múltiplos modos. Tal multiplicidade de abordagens mostra a
dificuldade de se delimitar os atos de pensamento ou fatos mentais em relação aos
fatos lógico-semânticos e reais, dificuldade que foi mencionada anteriormente.
No entanto, por definição, o aspecto noético dos princípios e critérios de verdade
das asseverações ultrapassa estas delimitações lógicas, epistemológicas e
ontológicas regionais e, assim, se situa em um plano metafísico ou transcendental
que considera o pensamento enquanto tal, apesar da dificuldade em se precisar
este conceito em virtude de sua polissemia efetiva
52
.
Um outro problema conceitual consiste em se identificar ou diferenciar atos de
pensamento e fatos mentais, dado que fatos mentais, enquanto disposições
psicossomáticas tais como, por exemplo, distúrbios perceptivos, emoções,
sensações e sentimentos, não parecem se enquadrar sob a rubrica do conceito de
atos de pensamento, mas, em todo caso e inversamente, não parece duvidoso
classificar atos de pensamento como fatos ou entidades mentais. Tal desnível pode
tanto ser fruto de uma inadequação destas classificações, quanto pode ser oriundo
52
É sabido que esta polissemia levou filósofos como o segundo Wittgenstein, Ryle e seus epígonos a
interditarem a possibilidade uma definição unívoca do conceito de pensamento. Esta perspectiva
parece correta apenas se se tomar a noção de definição em um sentido estrito e se não se coloca a
possibilidade de haver um sentido ou significado focal (na expressão de Aristóteles, um
  ) para os vários sentidos de pensamento, significado
primário que não necessariamente é um tipo específico de ato de pensamento, mas que pode ser,
entre outras coisas, um certo traço fisionômico” pertencente aos atos de pensamento, tal como se
postula aqui o caráter intencional. Para uma análise criteriosa da posição do segundo Wittgenstein
acerca do conceito ou noção de pensamento, veja-se, de Pilar López de Santa María Delgado,
Introducción a Wittgenstein: sujeto, mente y conducta. Barcelona: Herder, 1986, pp. 124-139. Para a
posição de Ryle, veja-se The concept of mind. Harmondsworth: Penguin, 1980, cap. 3.
135
da complexidade e amplitude dos próprios fatos em questão. Como quer que seja,
tomar-se-á aqui as duas noções como sinônimas, posto que em alguma medida
mesmo estes fatos mentais citados são representáveis e relacionados a atos de
pensamento propriamente ditos. Além disso, são os atos de pensamento que
tomam parte nas asseverações, pois dentre os fatos mentais somente os atos de
pensamento podem possuir pretensões de verdade efetivas e identificáveis.
Mas uma dificuldade específica concernente aos atos de pensamento capazes
de fazer parte de asseverações consiste em que possuem traços gerais tanto
epistêmicos quanto lógico-semânticos, o que conduz, à primeira vista, a identificar
o aspecto noético dos princípios e critérios de verdade das asseverações ou com
princípios e critérios epistêmicos ou com princípios e critérios lógico-semânticos.
No primeiro caso, o aspecto noético das asseverações seria caracterizado como
sendo unicamente referido às estruturas e processos cognitivos, e assim,
inicialmente, considerado sobremaneira como objeto de determinação da
epistemologia das ciências e ou da psicologia cognitiva, deixando assim de lado,
por princípio, qualquer caráter lógico-semântico dos atos de pensamento que
tomam parte nas asseverações, e fazendo a suspeitável identificação simpliciter
entre pensar e conhecer, o que acarretaria, entre outras coisas e em última
instância, na eliminação das relações de produção de verdade e dependência
ontoalética entre pensamento e linguagem em detrimento de uma explicação que
tende fortemente a reduzir ou dissolver os aspectos lógico-semânticos dos atos de
pensamento em estruturas cognitivas, atitude a meio passo de um psicologismo e
136
historicismo, perspectivas dificilmente defensáveis no que diz respeito às
entidades lógico-semânticas. No segundo caso, o aspecto noético dos princípios e
critérios de verdade se reduziria às determinações provenientes da lógica
matemática, da semântica e ou da lingüística e semiótica, o que primeiramente
anularia qualquer diferença entre fatos mentais e lógico-semânticos (entre
pensamento e linguagem) e, em segundo lugar, retiraria qualquer aspecto
cognitivo referente aos atos de pensamento, eliminando ou diluindo assim a
relação de produção de verdade e dependência ontoalética entre pensamento e
realidade em estruturas matemáticas e gramaticais.
Nestes breves esboços de reduções ao absurdo destas identificações apressadas
e excludentes, mostra-se que o aspecto noético dos princípios e critérios de
verdade, ou seja, destes princípios e critérios aplicados aos atos de pensamento que
tomam parte nas asseverações, é preciso levar em conta e englobar os aspectos
epistêmicos e gico-semânticos destes fatos mentais, pois em ambos o que está
diretamente em questão são as pretensões de verdade das asseverações e assim as
condições de verdade das mesmas. Na realidade, esta necessidade provém do fato
de que todos os atos de pensamento que tomam parte nas asseverações, possuem
igualmente aspectos epistêmicos e lógico-semânticos. Por conta deste duplo
aspecto dos atos de pensamento que tomam parte nas asseverações foi escolhido o
termo ‘noético’ para caracterizar este aspecto dos princípios e critérios de verdade.
Em seu aspecto epistêmico, os atos de pensamento ou fatos mentais são
considerados como estruturas e processos cognitivos simples ou complexos. Em
137
seu aspecto lógico-semântico, são considerados como estruturas e processos
significantes simples ou complexos. Em seu aspecto noético os atos de pensamento
são considerados como estruturas e processos intencionais simples ou complexos.
Postula-se, assim, como aspecto definitório fundamental dos atos de pensamento
(e dos fatos mentais em geral) o caráter intencional. A marca característica do
conceito de intencionalidade é o ser relativo a algo, quer seja um ser relativo
causado por algo e assim primariamente receptivo e passivo, quer seja um ser
relativo direcionado a algo e assim primariamente ativo e espontâneo. Enquanto
atos cognitivos e significantes, os atos de pensamento são também estruturas e
processos intencionais por serem necessariamente relativos a algo. Contudo, atos
de pensamento ou fatos mentais como, por exemplo, desejos, sensações, dúvidas,
ordens e sentimentos, são também caracterizados por intencionalidade e nem por
isso são necessária e essencialmente atos significantes e ou cognitivos, ainda que
necessariamente pressuponham ou impliquem estes tipos de atos intencionais para
poderem ser representados, interpretados e compreendidos. De qualquer forma,
todos eles são fatos ou atos intencionais relativos a algo outro, ou seja, fatos ou atos
de pensamento essencialmente causados por ou dirigidos para algo
53
. No entanto,
a importância dos atos intencionais cognitivos e significantes consiste em serem
53
Além de possibilitar uma visão unitária dos aspectos cognitivos e lógico-semânticos dos atos de
pensamento que tomam parte nas asseverações, o traço intencional dos fatos mentais em geral
permite também compreender as feições éticas e poiéticas (“técnicas”) que os atos de pensamento
podem assumir na medida em que ações morais e produções são marcadas em sua justificação e
finalidade por serem relativas a e estarem dirigidas para algo. Isso permite vislumbrar em que
sentido os princípios e critérios de verdade dos atos de pensamento são também, de certa maneira e
em certa extensão, princípios para a práxis e para a poíesis da vida cotidiana.
138
aquelas intenções marcadas essencialmente por uma pretensão de verdade e assim
aqueles tipos de fatos mentais ou atos de pensamento que são elementos essenciais
em todas as asseverações. É preciso esclarecer de modo sucinto este caráter
cognitivo e significante (noético ou intencional) próprio aos atos de pensamento
que tomam parte nas asseverações, ou seja, qual o modo de intencionalidade dos
atos de pensamento que podem tomar parte nas asseverações.
Os atos de pensamento que tomam parte nas asseverações estão essencialmente
marcados por uma pretensão de verdade. Esta pretensão de verdade, que os
caracteriza, é devida à sua estrutura cognitiva e significante, pois os atos de
pensamento que tomam parte nas asseverações exprimem e estruturam
lingüisticamente suas pretensões de verdade na medida em que pretendem
conhecer ou conhecem algo daquilo que visam. Enquanto estruturas e processos
cognitivos e significantes eles instanciam de modo conceitual e lingüístico alguma
forma de conhecimento sobre os estados ônticos por eles visados, eles são modos
de compreensão e interpretação conceitual das propriedades e das relações
intrínsecas e ou extrínsecas pertencentes aos estados ônticos objetivados (referidos
e representados). Estes modos de compreensão e interpretação conceituais podem
ir desde as simples percepções atuais até modelos científicos altamente complexos.
Em todo caso, tais modos de compreensão e interpretação da realidade estão
sempre já imersos em esquemas conceituais herdados ou construídos que
determinam sempre o sentido desta compreensão e interpretação do mundo
circundante. Tais esquemas conceituais que emolduram o sentido cognitivo dos
139
atos de pensamento possuem necessariamente um sentido gico-semântico, de tal
maneira que não é possível separar, senão de forma teórica e abstrata, o caráter
epistêmico e significante dos atos de pensamento das asseverações, ou em termos
mais diretos, separar conhecimento e linguagem, cognição e significação, conceitos
e signos, epistemologia e lógica. Por isso, o sentido epistêmico dos atos de
pensamento consiste em apreenderem conceitualmente as propriedades dos
estados ônticos visados a partir e dentro de esquemas conceituais lógico-
semânticos previamente elaborados. O conhecimento em geral, desde o mais
simples reconhecimento perceptual até as teorias lógico-matemáticas mais
afastadas da experiência sensível, é essencialmente conceitual e lingüístico.
Se a linguagem em seus aspectos históricos, concretos e pragmáticos constitui e
é constituída pelo conjunto das formas de vida de uma determinada comunidade,
e este conjunto de formas de vida é chamado comumente de cultura, então os
esquemas conceituais de cognição e significação formam a cultura desta mesma
comunidade, posto que uma determinada cultura pode ser (parcialmente) definida
como o conjunto dos esquemas conceituais de cognição e significação que
estruturam os modos de compreensão e interpretação ou perspectivas possíveis de
experiência dos estados ônticos do mundo para uma comunidade de pessoas. A
cultura de uma determinada comunidade lingüística, portanto, determina os
modos como os atos de pensamento e as asseverações do qual fazem parte visam
conceitualmente os estados ônticos do mundo em geral e, assim, determina os
possíveis sentidos de verdade ou falsidade que são instanciados nas pretensões de
140
verdade das asseverações. Deste modo, o caráter cognitivo e significante
(intencional) dos atos de pensamento que tomam parte nas asseverações está
determinado pelas possibilidades de compreensão e interpretação abertas pelos
esquemas conceituais partilhados por aqueles que realizam as asseverações
concretas, de tal maneira que não é possível separar, ao nível das asseverações, o
caráter cognitivo e significante dos atos de pensamento que tomam parte nas
mesmas, pois tais esquemas conceituais são, ao mesmo tempo, esquemas
cognitivos e lógico-semânticos, o esquemas lingüísticos que determinam as
possibilidades de compreensão e interpretação (conhecimento) dos estados ônticos
que as asseverações visam.
Por conta disso, há sempre uma sinergia ou simbiose entre o caráter cognitivo e
o caráter significante dos atos de pensamento, entre seu aspecto conceitual e
lingüístico. Mas esta sinergia específica dentro de cada asseveração indica uma
sinergia geral, pois os atos de pensamento individuais sempre pressupõem
outros atos de pensamento cognitivos e significantes (outras asseverações), bem
como supõem a realidade dos estados ônticos visados a cada vez dentro dos
esquemas conceituais que organizam as possibilidades de perspectivas da
experiência em geral. Não há puros atos de pensamento isolados, tanto quanto não
atos cognitivos separados de atos significantes, bem como não existem, senão
por abstração, estados ônticos isolados. Expressões lingüísticas e complexos
conceituais nos quais os atos de pensamento se estruturam sempre remetem a
outras expressões lingüísticas e a outros complexos conceituais, tanto quanto
141
termos lingüísticos e conceitos sempre estão ligados a outros termos lingüísticos
e conceitos. Assim, os atos de pensamento que tomam parte nas asseverações
possuem uma dupla correlação necessária tanto com outros atos de pensamento,
quanto com os estados ônticos visados, de modo análogo a como estes estados
ônticos nunca estão completamente isolados uns dos outros. Um mesmo estado
ôntico pode ser, porém, visado de modos distintos, pois os atos de pensamento
podem assignar (lingüística e conceitualmente) a ele rios sentido de ser-
verdadeiro ou ser-falso. Assim, enquanto atos cognitivos eles nunca ocorrem
isoladamente, mas sempre pressupõem outros processos e estruturas cognitivas
e significantes consideradas verdadeiras (válidas e corretas), pressupõem tanto
um aparato epistêmico e lógico-semântico já estruturado, um esquema conceitual
dentro e a partir do qual o determinados (compreendidos e interpretados) os
estados ônticos que visam, quanto pressupõem a realidade (verdade) destes
mesmos estados ônticos. Pressupõem, assim, certos critérios epistêmicos de
validade e justificação. Assim, uma determinada asseveração concreta pressupõe
tanto um esquema conceitual, quanto os estados ônticos que visa. As modalidades
epistêmicas que exprimem tipos de atitudes proposicionais específicos remetem
tanto às propriedades dos estados ônticos visados, como às propriedades lógico-
semânticas de outros atos cognitivos justificados e verificados, ou seja, os atos
cognitivos remetem tanto a outros conhecimentos prévios e aos esquemas
conceituais que os organizam, quanto aos estados ônticos que são objeto de
cognição ou recognição.
142
O aspecto intencional dos atos de pensamento ou fatos mentais em geral se
mostra mais claramente através daquilo que hoje é comum chamar de atitudes
proposicionais e modalidades epistêmicas, e é a partir delas que se pode investigar o
aspecto noético das condições (princípios e critérios) de verdade dos atos de
pensamento que fazem parte das asseverações, bem como é nelas que se mostram
reunidos de modo complementar as estruturas e processos cognitivos e
significantes que caracterizam estes mesmos atos. O aspecto noético (epistêmico e
lógico-semântico) dos atos de pensamento que tomam parte nas asseverações pode
ser compreendido através da forma geral das asseverações:
“X assevera que (M)
.
O que marca neste esquema geral o caráter noético (intencional) dos atos de
pensamento que tomam parte nas asseverações é justamente a pretensão de
verdade veiculada na intensão assignada ao conteúdo lógico-semântico estruturado
em ’, ou seja, o caráter intencional dos atos de pensamento que tomam parte nas
asseverações consiste no modo de apresentação (sentido) assignado aos estados
ônticos visados como referência destes atos de pensamento, enquanto se
estruturam nos enunciados que representam estes estados ônticos
54
. A pretensão
de verdade que caracteriza essencialmente os atos de pensamento que tomam
54
A relação proposta aqui entre os conceitos de intenção e intensão está baseada, sobretudo, na
concepção desta relação tal como apresentada por Jaakko Hintikka em seu “The intentions of
intentionality”, in The intentions of intentionality and other new models for modality. Dordrecht/Boston:
Reidel, 1975, cap. 10. John Searle, por sua vez, critica a identificação simpliciter entre atos
intencionais e intensões lingüísticas, argumentando que nem todos os atos intencionais possuem
correlatos intensionais. Esta crítica pode ser, todavia, deixada em suspenso aqui, dado que os atos
intencionais que tomam parte nas asseverações já sempre possuem correlatos em intensões lógico-
semânticas. Para os argumentos de Searle, veja-se Intencionalidade; trad. Julio Fischer & Tomás R.
Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, cap. 1, pp. 31-35 e cap. 7.
143
parte nas asseverações consiste justamente nesta intensão instanciada nos
enunciados e, por conseguinte, assignada aos estados ônticos visados. Tal intensão
ou sentido é precisamente o sentido de ser-verdadeiro ou ser-falso que estes atos
de pensamento asseveram sobre o que é visado, ou seja, o modo como estes atos de
pensamento apresentam os estados ônticos a que se referem através dos conteúdos
lógico-semânticos das asseverações. A intencionalidade (pretensão de verdade)
própria aos atos de pensamento que “animam” as asseverações se exprime no
sentido (intensão) que assignam aos conteúdos lógico-semânticos que os
estruturam, na forma como apresentam lógica e lingüisticamente os estados
ônticos visados, no sentido efetivo de verdade (realidade) ou falsidade (não-
realidade) que atribuem a estes estados ônticos através dos enunciados.
Assim, o aspecto noético dos princípios de verdade consiste em estabelecerem e
instanciarem as condições noéticas (epistêmicas e significantes) mais universais e
necessárias que verificam ou justificam as pretensões de verdade de qualquer ato
de pensamento que possa tomar parte nas asseverações, ou seja, são os princípios
de verdade e os correspondentes critérios noéticos que justificam a correção ou
incorreção de todos os possíveis sentidos de ser-verdadeiro ou ser-falso que atos
de pensamento podem assignar diretamente aos conteúdos lógico-semânticos em
que estão instanciados e que exprimem sua pretensão de verdade em relação aos
estados ônticos por eles visados e representados pelos enunciados que os
exprimem. Os princípios e critérios de verdade são assim as condições noéticas universais
e necessárias para que se possa decidir sobre o valor de verdade de qualquer ato de
144
pensamento enquanto portador de um valor de verdade. Esta decisão recai justamente
sobre o sentido de verdade ou falsidade (a pretensão de verdade) que um ato de
pensamento assigna a um estado ôntico visado e representado por enunciados. Por
isso tais princípios e critérios são os produtores indiretos do valor de verdade de
que um ato de pensamento é portador, eles determinam o sentido de seu valor de
verdade enquanto justificam ou verificam o sentido de verdade que este
pensamento atribui aos estados ônticos por ele visados. De um lado, os atos de
pensamento precisam preencher tais condições necessárias impostas por estes
princípios, mas, por outro, eles são verdadeiros (ou falsos) na medida em que o
sentido de verdade que atribuem aos estados ônticos referidos é efetivamente tal.
Com efeito, os princípios e critérios de verdade estabelecidos ou pressupostos
pelas teorias ou teorizações da verdade remetem efetivamente a uma determinada
categoria ou tipo de atos de pensamento que realizam efetivamente estas
pretensões de verdade. Pode-se chamar esta remissão de compromisso noético dos
princípios e critérios gerais de verdade. Tal compromisso significa a remissão a
algum tipo específico de processos cognitivos e esquemas conceituais primários
como representando aquele tipo de atos de pensamento que realiza sempre ou, no
mais das vezes, a pretensão de verdade inerente às asseverações em geral. Deste
modo, conforme o conteúdo dos princípios, determinados atos de pensamento são
considerados como critérios de verdade noéticos primários em relação aos demais
tipos de atos de pensamento que podem tomar parte nas asseverações em geral.
Obviamente, este tipo de atos de pensamento considerados primitivos ou
145
fundamentais será também escolhido conforme uma teoria ou teorização da
verdade determine os aspectos lógico-semântico e ontológico dos princípios de
verdade e os critérios gerais de cada um destes âmbitos das asseverações.
A vinculação entre a intencionalidade peculiar aos atos de pensamento e a
intensão assignada aos conteúdos lógico-semânticos asseverados o significa
necessariamente a invasão de uma tonalidade subjetiva no sentido do que é
asseverado, mas necessariamente significa que em toda asseveração um modo de
ser-verdadeiro do que é apresentado está em jogo, e no caso de tal pretensão de
verdade se mostrar errônea, enganosa ou falsa a partir dos princípios e critérios
instados como modelos de justificação da asseveração em questão, então o sentido
de ser-verdadeiro do que é referido se mostra falso desde o referente mesmo,
enquanto seu modo de ser-verdadeiro é outro que aquele pretendido na
asseveração, de tal modo que os princípios e critérios de verdade instados na
asseveração o suportam sua pretensão de verdade, ou seja, a asseveração em
questão é falsa justamente porque não apresenta nem representa o estado ôntico
referido tal como é.
Mas algo mais importante está contido no esquema geral das asseverações, a
saber: admitindo-se que a intencionalidade dos atos de pensamento que tomam
parte nas asseverações, em seu aspecto cognitivo e significante, sempre consiste em
estarem voltados a estados ônticos reais referíveis (em sentido amplo) e em
instanciarem e estarem estruturados enquanto fatos ou entidades gico-
semânticas, então o possível valor de verdade dos atos de pensamento presentes
146
nas asseverações depende aleticamente dos e é produzido pelas estruturas lógico-
semânticas que instanciam seu sentido e pelos estados ônticos que estas estruturas
representam. Por isso, o aspecto noético dos princípios e critérios de verdade das
asseverações não pode ser compreendido sem os aspectos lógico-semânticos e ontológicos
destes princípios e, portanto, sem os respectivos critérios gerais lógico-semânticos e
ontológicos para as asseverações. Isto também mostra que, apesar do aspecto noético
não poder ser reduzido a seu sentido epistêmico, este sentido é aquilo que os atos
de pensamento que fazem parte das asseverações possuem de próprio em relação
aos aspectos propriamente lógico-semânticos e ontológicos. Este sentido
epistêmico dos atos de pensamento que tomam parte nas asseverações se revela
através dos esquemas conceituais que eles operam e pressupõem como
estabelecidos para a compreensão e interpretação cognitiva dos estados ônticos.
Em todo caso, o aspecto noético dos princípios de verdade primários e os
critérios noéticos de verdade das asseverações decidem a correção ou incorreção
das pretensões de verdade inerentes às modalidades epistêmicas e às atitudes
proposicionais que modalizam as asseverações relativamente ao sentido (intensão)
do conteúdo lógico-semântico instanciado e estruturado em ’, intensão esta
especificada através das modalidades que preenchem a cláusula ‘(M)’. Mas a
correção ou incorreção destas modalizações (intencionais e intensionais) deve ser
decidida relativamente aos estados ônticos representados neste conteúdo gico-
semântico, ou seja, a verdade dos atos de pensamento nas asseverações depende
de seu conteúdo lógico-semântico e este do estado ôntico representado, o que
147
equivale a dizer que o possível significado do valor de verdade dos atos de
pensamento (sua correção ou incorreção) é decidido, em última instância, em
relação aos seus produtores primários de verdade, representados pelo conteúdo
lógico-semântico que instancia o sentido destes atos. Em suma, o esquema geral
das asseverações mostra que o aspecto noético dos princípios de verdade e os
critérios noéticos de verdade são relativamente separáveis do aspecto lógico-
semântico e do ontológico dos princípios e dos correspondentes critérios gerais de
verdade das asseverações. Por isso, o aspecto noético dos princípios de verdade e
os critérios noéticos ficarão mais claros na discussão destes outros aspectos.
§ 3 – O aspecto lógico-semântico dos princípios de verdade
e os critérios lógico-semânticos de verdade
No caso do aspecto lógico-semântico dos princípios de verdade e dos critérios
lógico-semânticos gerais das asseverações, as dificuldades de sua caracterização e
delimitação não são menores. As entidades ou fatos lógico-semânticos como tais
possuem um estatuto ontológico próprio, independente dos fatos mentais e reais.
Ainda que os atos de pensamento com pretensão de verdade sejam não apenas
atos cognitivos, mas também atos significantes e, assim, estejam sempre
estruturados na forma de entidades ou fatos lógico-semânticos simples ou
complexos, não se deve confundir estes fatos ou entidades como tais com os atos
de pensamento que as entidades lógico-semânticas instanciam ou que as tomam
148
como referentes, de modo que não se pode nem se deve confundir o aspecto
noético dos princípios e critérios de verdade com seu aspecto propriamente lógico-
semântico, embora a fronteira entre o noético e o lógico-semântico não seja tão
clara e distinta quanto supõem alguns como, por exemplo, Frege
55
.
Na realidade, retomando o esquema geral das asseverações, percebe-se que os
princípios de verdade relativos às asseverações em geral possuem, por definição,
tanto aspectos noéticos, quanto gico-semânticos e ontológicos, mas em cada um
destes níveis das asseverações eles atuam através de critérios gerais peculiares. No
caso do sentido noético dos princípios e dos critérios noéticos das asseverações,
estes dizem respeito às condições necessárias e suficientes para que entidades ou
fatos mentais sejam caracterizados como atos de pensamento que podem tomar
parte em asseverações. Viu-se que eles são processos intencionais cognitivos e
significantes, essencialmente definidos por sua pretensão de verdade. Tais
processos se concretizam em modalidades epistêmicas e atitudes proposicionais
que preenchem o ‘X assevera que ...’ no esquema geral das asseverações. Assim, o
aspecto noético dos princípios de verdade e os critérios de verdade noéticos
justificam que determinados atos ou tipos de atos de pensamento sejam ou não de
55
Frege, no entanto, admitiu haver uma intersecção (a seu ver delimitável) entre as representações
subjetivas associadas aos termos em seu sentido objetivo. Sobre este ponto, veja-se “Sobre o sentido
e a referência”, art. cit., pp. 64-66. Sobre a concepção madura de Frege acerca dos limites entre fatos
mentais e lógico-semânticos, veja-se “O pensamento, uma investigação lógica”, in Investigações
lógicas; trad. e notas: Paulo Alcoforado. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, pp. 9-39. Para uma
discussão crítica da posição madura de Frege a partir dos problemas que o conceito de pensamento
impõe, veja-se, de David Bell, “Thoughts”, in Notre Dame Journal of Formal Logic, vol. 28, 1, 1987,
pp. 36-50. Este texto, porém, recebeu de Dummett uma consideração crítica à luz de sua
interpretação da teoria fregeana do pensamento em “More about thoughts”, in Notre Dame Journal of
Formal Logic, vol. 30, nº 1, 1989, pp. 1-19.
149
fato portadores de uma pretensão de verdade quando tomam parte em asseverações.
Atos de pensamento como, por exemplo, dúvidas, ordens ou pedidos, o são
portadores de pretensão de verdade e assim o o justificados a partir de
princípios e critérios de verdade noéticos, ou seja, não constituem verdadeiras
(efetivas) asseverações, pois dizer, por exemplo, “X ordenou a Y que deveria visitar
seus parentes”, ou ainda “X duvida da possibilidade dos seres humanos
colonizarem Marte”, não preenchem os requisitos noéticos de uma asseveração,
apesar de serem atos de pensamento significantes que se expressam em atitudes
proposicionais. Seja como for, os critérios noéticos estão subordinados aos e
derivados dos princípios de verdade que fundamentam os três níveis da
asseveração, os princípios primários de verdade das asseverações, ou seja, a
verdade destes critérios gerais depende aleticamente e é produzida pelos
princípios de verdade que valem para os três níveis das asseverações em geral. De
modo análogo a como as lógicas modais particulares são extensões derivadas e
dependentes da lógica clássica, assim também os critérios gerais de verdade
próprios a cada um estes três níveis das asseverações são extensões dos princípios
primários, igualmente válidos para os três níveis.
Os princípios e critérios propriamente lógico-semânticos dizem respeito à
estrutura formal alética da linguagem em geral, são as condições de verdade das
asseverações em seu aspecto lingüístico. Tais princípios e critérios são as formas
lógicas que verificam a validade ou invalidade do conteúdo lógico-semântico (o
que preenche a conjunção ‘(M) do esquema geral das asseverações) em que os
150
pensamentos que tomam parte de asseverações se estruturam e são instanciados a
cada vez na linguagem
56
. Porém, na medida em que pensamentos são fatos
intencionais que se referem a algum estado ôntico específico, os critérios peculiares
às formas lógicas em geral devem também estar relacionados de algum modo ao
aspecto ontológico dos princípios de verdade e com os critérios ontológicos gerais
para as asseverações em geral. Por isso, os critérios peculiares ao aspecto lógico-
semânticos das asseverações tendem a se confundir com os princípios e critérios
peculiares ao aspecto ontológico das asseverações, assim como os critérios
propriamente noéticos tendem a se confundir com os lógico-semânticos. Como
então separar o aspecto lógico-semântico dos princípios de verdade primários das
asseverações e a partir deste aspecto compreender e separar os critérios
propriamente lógico-semânticos das asseverações em relação aos sentidos noético e
ontológico dos princípios de verdade primários e, assim, em relação aos critérios
de verdade propriamente noéticos e ontológicos das asseverações? É o que se
tentará esboçar agora.
As formas gicas estão entranhadas” na linguagem comum. Sua superfície é
reconhecível através das regras gramaticais que são a cada vez instanciadas e
realizadas nas expressões lingüísticas. Tais regras gramaticais são condições de
56
É preciso aqui fazer a ressalva de que esta estruturação lingüística dos atos de pensamento e a
instanciação dos atos de pensamento nas formas lógicas da linguagem não significa que os atos de
pensamento acompanham de modo concomitante a linguagem ou esta acompanha de modo
concomitante os atos de pensamento. A cada vez os atos de pensamento se realizam na linguagem e
a linguagem se realiza nos atos de pensamento em uma simbiose e sinergia inseparáveis, ou, em
uma paráfrase metafórica das palavras de Kant sobre a relação de entendimento e sensibilidade, a
linguagem sem pensamento é vazia e o pensamento sem a linguagem é cego.
151
significação das expressões lingüísticas tal como operadas dentro de uma
comunidade de linguagem, ou seja, dentro de uma cultura e época particulares. No
entanto, as regras gramaticais se alteram de tempos em tempos e de culturas para
culturas. Além disso, as regras gramaticais são apenas condições sintáticas de
significação, sendo portanto independentes da verdade ou falsidade atribuível às
expressões lingüísticas formadas de acordo com elas. As formas lógicas, porém,
por definição, não estão presas às regras gramaticais, apenas o indicadas através
das mesmas, pois as formas lógicas não se alteram da mesma forma, nem com a
mesma freqüência das regras gramaticais, se é que se alteram de algum modo. E
ademais, diferentemente das regras gramaticais, as formas lógicas são não apenas
“regras” de significação, mas também e simultaneamente entidades essencialmente
veritativas. Diferentes línguas e diferentes expressões nas mesmas línguas contêm
formas lógicas comuns, caso contrário não se vê como possam ser interpretadas ou
traduzidas a outras expressões
57
. Abdicar das formas lógicas é, em última
57
Na filosofia da lógica atual estas diferentes expressões lingüísticas que possuem uma forma
lógica comum o muitas vezes colocadas em termos de diferentes sentenças que expressam uma
mesma proposição. No entanto, dados os problemas com a noção de proposição, usa-se aqui a
noção de forma lógica em um sentido tanto quanto possível neutro em relação à sua natureza
mesma. Utiliza-se também o conceito de enunciado como uma noção “intermediária” entre a noção
metafísica de proposição e a noção lingüística e gramatical de sentença, de tal modo que
enunciados sejam considerados como sentenças que exprimem proposições e que podem ter um
valor de verdade, sendo que as mesmas sentenças poderiam exprimir proposições sem terem
valores de verdade, como no caso de dúvidas, desejos, ordens, etc. Os enunciados são sentenças que
exprimem proposições e que referem algum estado ôntico visado por estas. Além disso, em certo
sentido as formas lógicas da linguagem em geral são objeto de teorização tanto da lógica em geral
quanto das ciências da linguagem, à diferença, porém, de que as ciências da linguagem estão
preocupadas apenas com a função significante de tais formas lógicas dentro de culturas e épocas
específicas (como por exemplo nos estudos de gramática descritiva e filologia) ou mesmo
comparando-as e procurando as formas lógicas gerais de significação e como tais formas podem se
estruturar e se realizar na semiose em geral (como por exemplo o trabalho da lingüística e da
semiótica em seus diversos ramos e teorias); enquanto a lógica está preocupada com esta função
152
instância, abdicar do aspecto comunicativo da linguagem em geral e da idéia
intuitiva de que a linguagem como tal constitui um dos aspectos objetivos e
comuns às culturas humanas em sua diversidade. Abdicar das formas lógicas
consiste, portanto, em abandonar aquilo que Frege chamou acertadamente o
“patrimônio comum da humanidade”. É certo que a defesa da noção de forma
lógica pode conduzir a um platonismo hiperbólico que o leva em conta a
contribuição das culturas e épocas particulares para a descoberta, o
desenvolvimento e mesmo a criação de estruturas gico-semânticas objetivas
durante o sinuoso percurso da história geral da linguagem humana, mas o
abandono desta noção por um antiplatonismo igualmente hiperbólico conduz a
uma imagem relativista radical que dissolve qualquer possibilidade mínima de
entendimento dos seres humanos consigo mesmos e sobretudo entre si. É certo,
porém, que a sombra da equivocidade é inerente a toda luz de univocidade que
efetiva a comunicação dos seres humanos, de tal modo que dificilmente é possível
encontrar na linguagem natural uma expressão ou termo absolutamente unívoco.
significante apenas na medida em que ela pode conter também uma função veritativa geral. De
qualquer modo, mesmo perspectivas mais céticas quanto ao estatuto ou a existência de entidades
tais como as proposições (como por exemplo a perspectiva de Quine) admitem ainda como seu
objetivo a análise das formas lógicas da linguagem independente de sua situação contextual e
histórica específica, pois caso abdicassem disso teriam que considerar a lógica apenas como um
ramo subsidiário das ciências da linguagem. Sobre as críticas de Quine à noção de proposição, veja-
se “Objetos proposicionais”; trad.: Andréa M. A. de Campos Loparic, in col. Os Pensadores. São
Paulo: Nova Cultural, 1989, pp. 135-147. Para uma defesa da noção de proposição, veja-se, de Georg
H. von Wright, “Demytifying propositions”, in Truth, knowledge and modality, opus cit., pp. 14-25.
Sobre a noção de enunciado tal como utilizada aqui, veja-se, de P. Strawson, “Sobre o referir” &
“Referência identificadora e valores-de-verdade”, in col. Os Pensadores, trad.: Balthazar B. Filho. São
Paulo: Abril Cultural, 1989, respectivamente, pp. 151-170, 191-206. Para uma análise minuciosa da
noção de enunciados, tal como concebida por Strawson, e sua vinculação com a teoria de
Aristóteles acerca da referência, encontrada nas Categorias, veja-se, de Thomas M. Simpson,
Linguagem, realidade e significado, opus cit., cap. 6.
153
Apesar disso, é sempre possível isolar e identificar o aspecto unívoco presente nas
estruturas gramaticais semanticamente bem formadas (consistentes). É este aspecto
aquilo que se pode chamar de forma lógica de uma expressão lingüística, ou seja,
aquela condição necessária (ainda que nem sempre suficiente) que caracteriza e
diferencia uma expressão lingüística frente a qualquer outra coisa do e no mundo
(inclusive de outras expressões lingüísticas), aquilo que é o essencial de uma
expressão lingüística enquanto uma estrutura comunicativa, aquilo que pode ser
melhor ou pior comunicado, mas que em uma expressão lingüística não pode
deixar de ser comunicativo, sob pena de não ser mais uma expressão lingüística.
Assim, as formas lógicas são condições necessárias (ainda que talvez ainda não
suficientes) para a univocidade que define essencialmente as expressões
lingüísticas e que permite às mesmas serem elementos das asseverações, na exata
medida em que seu poder significante é definido por seu caráter verifuncional, ou
seja, por sua possibilidade de instanciar algum valor de verdade efetivo oriundo
de seu preenchimento por argumentos concretos através das pretensões de
verdade dos atos de pensamento.
Esta idéia mínima de forma lógica consiste em admitir que a linguagem em
geral contém a dupla potencialidade de, por um lado, representar as características
mais gerais da realidade, e, por outro lado, estruturar uma multiplicidade de atos
de pensamento com pretensão de verdade, ou seja, o específico do aspecto lógico-
semântico dos princípios de verdade das asseverações consiste em serem as formas
lógicas que possibilitam às expressões lingüísticas o papel de serem
154
intermediadoras entre pensamento e realidade, em permitirem estruturar a
realidade no pensamento e proporcionarem à intencionalidade própria aos atos de
pensamento sua correlação específica e mesmo singular com a realidade. Esta
realidade pode ser tanto alguma entidade perceptível concreta, quanto alguma das
entidades inteligíveis que caracterizam propriedades destes objetos perceptíveis,
ou ainda pode ser uma estrutura matemática altamente complexa que não tem
qualquer relação direta com a realidade perceptível ou suas propriedades gerais,
podendo mesmo ser algum objeto impossível aventado apenas no pensamento ou
na linguagem, tais como unicórnios ou rculos quadrados. A intencionalidade em
questão pode ser constituída por qualquer ato de pensamento com função
significante e cognitiva, ou seja, por qualquer ato de pensamento essencialmente
caracterizado por uma pretensão de verdade.
Em qualquer caso, as formas lógicas são aquelas estruturas ou entidades
abstratas que intermediam pensamento e realidade, ou seja, as formas lógicas são o
espaço lógico em que é possível instanciar as pretensões de verdade dos atos de
pensamento e representar os estados ônticos visados pelos mesmos. Desde estes
esclarecimentos sumários, as formas lógicas podem ser parcialmente definidas
como aquelas condições necessárias de univocidade que permitem a compreensão
e interpretação das expressões lingüísticas, sendo essa compreensão e
interpretação constituídas pela apreensão dos estados ônticos visados pelos atos de
pensamento, ou o que se pode caracterizar como a extensão ou referência destes
155
atos, bem como pelo modo como estes estados ônticos são visados, o que se pode
caracterizar como sentido ou intensão inerente aos atos de pensamento.
No entanto e a partir deste traço definitório, as formas lógicas consideradas em
si mesmas o apenas possibilidades de representação de estados ônticos e
modelos abstratos que podem instanciar o sentido dos atos de pensamento, ou
seja, seu modo de apresentação dos estados ônticos visados. Por isso, para que as
formas lógicas efetivamente representem algo e estruturem pretensões de verdade,
é necessário que aconteça alguma asseveração específica, é preciso que
efetivamente algum estado ôntico (simples ou complexo) seja intencionalmente
visado por um ato de pensamento através de algum processo cognitivo e
significante com um determinado sentido ou intensão. Assim, por si mesmas as
formas lógicas não representam nada nem estruturam nenhum ato de pensamento,
pois as formas lógicas por si mesmas não existem senão através de uma elaboração
teórica posterior às asseverações realizadas na linguagem. Elas são, como as
formas aristotélicas, sempre instanciadas pelos atos de pensamento e
representam sempre algum estado ôntico efetivo. É por isso que sua natureza é
essencialmente a de intermediar lingüisticamente pensamento e realidade, mas de
tal modo que nenhum estado ôntico “aparece” ao pensamento fora das formas
lógicas, nem nenhum pensamento com sentido (com pretensão de verdade) se
estrutura fora ou para além das mesmas. Por conta desta natureza, as formas
lógicas são, em si mesmas, necessárias e universais e, assim, a priori, mas apenas
156
conhecidas ou reconhecidas a posteriori pelas investigações lógico-matemáticas e
filosóficas.
Se for correto dizer que as formas lógicas são os intermediários entre
pensamento e realidade, então é correto dizer que os diversos sistemas lógicos
procuram caracterizar aquelas estruturas comuns que correlacionam pensamento e
realidade nas asseverações concretas de cada tipo de linguagem, estruturas que,
por definição, necessariamente transcendem contextos históricos específicos, ainda
que tais teorias lógicas não possam saltar para fora de seus próprios contextos
históricos específicos, mas a partir deles encontrar aquilo que na linguagem
permite a interligação entre o pensamento, sempre instanciado em indivíduos, e a
realidade comum a todos os seres humanos
58
. É neste sentido que se pode
considerar Aristóteles como o fundador da lógica formal propriamente dita, ou
seja, o fundador daquele tipo de investigação teórica que estabelece as formas
lógicas das asseverações e da linguagem em geral, desde os termos que compõem
o nexo semântico dos enunciados aas conexões inferenciais e apofânticas entre
58
Uma excelente, rigorosa e profunda discussão filosófica sobre o sentido em que a lógica enquanto
ciência o pode transcender a priori sua própria história, sem por isso adotar uma visão
historicista, relativista ou psicologista da mesma, é encontrada no livro Ensaio sobre os fundamentos
da lógica de Newton da Costa, opus cit., cap. 1, §§ 4-9, cap. 2, §§ 2, 6, 11, cap. 3, §§ 4-5, cap. 4, § 3.
Nesta discussão o autor trata também das relações entre pensamento (na sua expressão razão’),
linguagem e realidade, bem como indica a necessidade de separar princípios e critérios noéticos (o
que chama de ‘princípios pragmáticos da razão’) e princípios propriamente lógico-semânticos, sob
pena de se conceber a lógica como estando fora de sua própria história e de colocar uma alternativa
demasiado exclusivista em relação às lógicas heterodoxas tal como a lógica paraconsistente da qual
é um dos fundadores, exclusão esta que só se sustenta pela pressuposição não justificada da
existência de uma única lógica que abarcaria, justificaria e decidiria desde seus critérios e princípios
a validade ou invalidade de todas as outras investigações lógicas. Independente das posições
filosóficas que se possa assumir sobre a relação entre pensamento, linguagem e realidade, esta obra
de Newton da Costa constitui uma referência obrigatória para quem queira hoje considerar este
problema de modo sério e abrangente, e não a partir de preconceitos de estilo e de tendências ou
escolas “filosóficas” particulares.
157
os enunciados, tomando tais formas lógicas como esquemas gerais que interligam
pensamento e realidade. Além de poder caracterizar o início explícito da
investigação lógico-semântica, este caráter intermediário das formas lógicas
justifica atualmente as teses que compreendem a lógica (desde Frege, Husserl,
Russell e o primeiro Wittgenstein) como uma ontologia formal da realidade em
geral, assim como as tese que concebem as formas lógicas como a estrutura
lingüística primária dos atos de pensamento, sem contudo fazer tais entidades se
reduzirem a um ou a outro tipo de fatos ou entidades que intermediam
59
.
A partir destes esclarecimentos, vê-se que o aspecto lógico-semântico dos
princípios de verdade das asseverações consiste em serem postulados como as
formas lógicas mais gerais e primárias capazes de justificar e verificar em última
instância a validade ou invalidade das expressões lingüísticas em que os atos
59
Apesar das posições positivistas e científicas acerca da natureza da lógica, pode-se ver as formas
lógicas como constituindo o aspecto metafísico da lógica como tal, entendendo-se pelo adjetivo
‘aspecto metafísico’ o caráter transcendental e fundamental que se pode atribuir a alguma entidade
ou tipo de entidade em relação a outras entidades ou tipos de entidades, caráter que, aplicado às
formas lógicas, significa seu valor ontológico primário em relação às expressões lingüísticas que as
instanciam e que nelas fundam seu caráter comunicativo enquanto o traduzíveis e interpretáveis
em outras expressões lingüísticas (mesmo que o totalmente), pois uma expressão lingüística
absolutamente intraduzível e não-interpretável não seria mais uma expressão lingüística. Sobre a
caracterização da lógica como fundamento ou parte essencial da ontologia formal, sobretudo a
partir das obras de Husserl e do primeiro Wittgenstein, veja-se o texto introdutório de Barry Smith,
“An essay in formal ontology”, in Graser Philosophische Studien, nº 6, 1978, pp. 39-62. Veja-se
também, de Barry Smith & Kevin Mulligan, Framework for formal ontology”, in Topoi, 2, 1983,
pp. 73-85. Para uma investigação elaborada no sentido de uma caracterização de espírito aristotélico
da ontologia formal como investigação das formas lógicas que relacionam pensamento, linguagem
e realidade, veja-se os excelentes textos de Nino Cocchiarella, “Conceptual realism as formal
ontology”, in Formal ontology; (eds.) R. Poli & P. Simons. Dordrecht: Kluwer, 1996, pp. 27-60;
“Conceptual realism as theory of logical form”, in Revue Internationale de Philosophie, vol. 200, 2,
1997, pp. 175-199. Sobre as formas lógicas como estruturas lingüísticas primárias do pensamento,
veja-se o clássico e seminal livro de Jerry Fodor, The language of thought.
Cambridge/Massachusetts: Harvard UP, 1975, assim como o minucioso e extenso verbete “The
language of thought hypothesis”, escrito por Murat Aydede na Stanford Encyclopedia of Philosophy,
disponível em <http://plato.stanford.edu/>, onde são expostas e sumariamente discutidas as
posições pró e contra tal hipótese e onde se pode também encontrar uma bibliografia sobre o tema.
158
intencionais cognitivos e significantes se estruturam e nas quais são representados
os estados ônticos (realidades) a que estes atos de pensamento se referem,
quaisquer que sejam estes estados ônticos. Qualquer conteúdo lógico-semântico
das asseverações deve, em última instância, respeitar estas formas lógicas
primárias para que tenha algum sentido e referência, ou seja, para que seja de fato
significante e cognitivo. Estas formas lógicas primárias são como que os “axiomas”
gerais que produzem a verdade (validade) das formas lógicas secundárias e
específicas enquanto “teoremas” deles derivados, ou seja, enquanto critérios
propriamente lógico-semânticos das asseverações
60
.
Neste sentido, as formas gicas mais gerais e primárias estão instanciadas nos
princípios de verdade das asseverações, o quais, no entanto, também possuem um
sentido noético e ontológico. E estas formas lógicas primárias são aquelas que
fundamentam e conferem às formas lógicas secundárias, enquanto critérios
propriamente lógico-semânticos das asseverações, seu poder de verificar, enquanto
modelos ou padrões lógico-semânticos, a validade ou invalidade das expressões
lingüísticas nas quais as asseverações exprimem sua pretensão de verdade e
representam estados ônticos determinados. Assim, é a partir destes critérios gerais
que se decide diretamente a validade ou invalidade das expressões lingüísticas nas
60
Estas formas lógicas secundárias enquanto critérios propriamente lógico-semânticos dos tipos
particulares de asseveração são o tema específico tanto da lógica quanto das ciências da linguagem,
mas, como foi indicado antes, no caso da lógica tais formas lógicas são não apenas investigadas
em seu aspecto significante (como nas ciências da linguagem) mas também em seu aspecto
veritativo. Neste sentido, as formas lógicas, enquanto critérios de verdade das asseverações em
geral, podem ser identificadas com as leis lógicas formuladas e discutidas pelos sistemas lógicos
historicamente constituídos.
159
quais se exprimem de fato as asseverações no que diz respeito à sua pretensão de
verdade, enquanto que os princípio de verdade verificam apenas indiretamente a
validade ou invalidade destas expressões lingüísticas das asseverações, na medida
em que verificam (fundam) a verdade (validade) dos critérios gico-semânticos
gerais que se aplicam diretamente sobre as expressões lingüísticas que estruturam
as pretensões de verdade das asseverações e representam os estados ônticos
visados pelos atos de pensamento que tomam parte nas asseverações. Esta decisão
pode se referir tanto ao modo como os atos de pensamento estão instanciados nas
formas lógicas das expressões lingüísticas, quanto pode recair sobre se esta
estruturação é conveniente relativamente à realidade que os atos de pensamento
das asseverações pretendem representar através destas formas lógicas. Em todo
caso, é a realidade representada e referida a cada vez pelos atos de pensamento em
seu aspecto significante e cognitivo que lhes serve de produtor de verdade
primário. Se isso é efetivamente assim, então os critérios lógico-semânticos de
verdade das asseverações decidem sua validade ou invalidade em vista das
possibilidades de representação das formas lógicas instadas pelos atos de
pensamento em sua realização lingüística.
160
§ 4 – O aspecto ontológico dos princípios de verdade
e os critérios ontológicos de verdade
A elucidação panorâmica do aspecto lógico-semântico dos princípios de
verdade e dos critérios lógico-semânticos das asseverações forneceu algumas
pistas acerca do sentido ontológico destes mesmos princípios e dos critérios
ontológicos das asseverações em geral. Em seu aspecto lógico-semântico os
princípios de verdade das asseverações são as formas lógicas primárias a partir das
quais se funda a verdade (validade) dos critérios propriamente lógico-semânticos
que regulam a validade ou invalidade (verdade ou falsidade) das formas lógicas
instanciadas efetivamente nas expressões lingüísticas e que estruturam as
pretensões de verdade dos atos de pensamento que tomam parte nas asseverações,
bem como representam os estados ônticos visados por estes atos de pensamento,
ou seja, a verdade dos critérios que são próprios ao nível lógico-semântico das
asseverações é produzida e depende aleticamente da verdade dos princípios de
verdade em seu aspecto lógico-semântico. Isso mostra que as investigações lógico-
semânticas específicas sobre as formas lógicas entranhadas nas expressões
lingüísticas das asseverações pressupõem o ser-verdadeiro dos princípios de
verdade em seu aspecto lógico-semântico, o que equivale a dizer que os critérios
propriamente lógico-semânticos recebem o sentido de sua verdade do aspecto
lógico-semântico dos princípios primários de verdade, enquanto são considerados
como as formas lógicas fundamentais que devem necessariamente regular a
validade de todos os critérios lógico-semânticos e a validade ou invalidade de
161
todas as formas lógicas instanciadas nas asseverações, de modo análogo a como
todos os teoremas secundários derivados de outros teoremas anteriores devem ser,
como estes últimos, consistentes com os axiomas primitivos de um sistema lógico e
suas regras de derivação.
Se o caráter essencial (definitório) das formas lógicas (primárias ou
secundárias) consiste em sua possibilidade aberta de intermediar e estruturar os
atos de pensamento capazes de ter algum valor de verdade e representar os
estados ônticos (realidades) intencionalmente visados por estes atos de
pensamento, então o sentido ontológico dos princípios primários de verdade deve
consistir em determinarem as formas ontológicas mais gerais de todos os estados ônticos
possíveis que justificam e verificam a correção ou incorreção tanto dos atos de
pensamento, quanto a validade ou invalidade das formas lógicas em que estes se
estruturam e nas quais são representados os estados ônticos visados
61
.
Os princípios primários de todas as asseverações desempenham, deste modo, o
papel de condições de verdade ontológicas gerais dos estados ônticos visados, eles
são condições necessárias para qualquer modo de apresentação (sentido de um ato
61
Pode-se compreender esta analogia se se apreende que as formas lógicas constituem o traço
essencial que identifica, estrutura e configura de modo geral a matéria das expressões lingüísticas,
de modo similar a como as formas ontológicas constituem o traço essencial que identifica, estrutura
e configura de modo geral a matéria dos estados ônticos visados nas asseverações. Sobre a
necessária ligação entre formas lógicas e formas ontológicas a elas paralelas a partir dos textos de
Husserl e do primeiro Wittgenstein, veja-se o texto de Barry Smith, “Logic, form and matter”, in
Proccedings of Aristotelian Society, vol. supl. nº 55, 1981, pp. 47-63. Sobre a relação entre formas
lógicas e ontológicas em Husserl, veja-se também, de Frederick J. Crosson, “Formal logic and
formal ontology in Husserl’s phenomenolgy”, in Notre Dame Journal of Formal Logic, vol. 3, 4, pp.
259-269. Para uma análise das formas lógicas ligando atos mentais a estados ônticos e como
representando os traços mais gerais da realidade, veja-se o claríssimo (ainda que controverso) livro
de Bertrand Russell, Significado y verdad; trad.: Marco A. Galmarini. Barcelona: Ariel, 1983, caps. 12-
17 e 25. Veja-se também o excelente texto de Donald Davidson, “El método de la verdad en
metafísica”, in De la verdad y de la interpretacion, opus cit., pp. 204-219.
162
de pensamento) e para qualquer representação gico-semântica estruturada de
qualquer entidade real. Isto significa que o ser-verdadeiro próprio a estes
princípios deve representar o sentido originário do ser-verdadeiro enquanto ser-
real em sentido pleno, aquele sentido de verdade do qual dependem ontológica e
aleticamente os possíveis valores de verdade instanciados nos atos de pensamento
e nas formas lógicas das asseverações concretas. Estas formas ontológicas mais
gerais de todos os estados ônticos referíveis pelo pensamento e pela linguagem que
o estrutura indicam justamente os produtores primários de verdade anteriormente
mencionados na exposição da dependência ontoalética na produção de verdade
inter-categorial. Elas são as condições necessárias e universais de significação, ou
seja, as condições de sentido e referência dos atos de pensamento e das expressões
lingüísticas neles instanciadas e, assim, as condições primárias de verdade para as
asseverações. Enquanto formas ontológicas mais gerais de todos os estados ônticos
possíveis, os princípios primários de verdade das asseverações são princípios não
apenas do pensar (noéticos) e do dizer (lógico-semânticos), mas também do ser em
geral, ou seja, são princípios ontológicos na medida em que o ser-verdadeiro pode
ser predicado não somente de atos de pensamento e de expressões lingüísticas que
instanciam e expressam tais pensamentos, mas também, e mesmo primariamente,
dos estados ônticos referidos por ambos
62
. Por isso, o aspecto ontológico dos
62
O sentido ontológico do ser-verdadeiro foi por muito tempo e no mais das vezes negligenciado
pelos filósofos em detrimento dos sentidos noético e lógico-semântico porque se viu como
impossível que estados ônticos reais (o que comumente chama-se de coisas) pudessem ser
portadores de verdade. Os teóricos que investigam a relação de produção de verdade colocaram
novamente em discussão o sentido ontológico do ser-verdadeiro, mas continuam a negar-se a ver
163
princípios primários de verdade é fundamental e fundante em relação aos aspectos
lógico-semântico e noético destes mesmos princípios, tanto quanto em relação aos
critérios propriamente ontológicos deles derivados, pois, do contrário, dever-se-ia
abandonar a idéia mesma de princípios primários de verdade em detrimento de
critérios noéticos, lógico-semânticos e ontológicos necessariamente separados, ou
seja, seria preciso abandonar a idéia mesma de uma dependência ontoalética na
produção de verdade inter-categorial e, com isso, a intuição filosófica e cotidiana
de uma relação veritativa entre pensamento, linguagem e realidade, como quer
como legítima a reivindicação de que estados ônticos não-mentais e não-lingüísticos podem ser
portadores de verdade. No entanto, em situações comuns na linguagem cotidiana, atribuem-se aos
estados ônticos reais valores de verdade como quando, por exemplo, diz-se que “Marcos descobriu
toda a verdade sobre o que ocorreu na casa de Pedro”. Aqui o ser-verdadeiro claramente não é
atribuído a pensamentos ou a enunciados, mas a acontecimentos concretos, o ser-verdadeiro aqui
significa, literal e plenamente, ser-real, ser-o-caso, ter-lugar, acontecer. O ser-verdadeiro e o ser-
falso (=não-ser-verdadeiro) em seus sentidos ontológicos indicam as oposições correntes entre ser e
parecer, entre realidade e aparência, entre real e ilusório, bem como a oposição entre o que existe de
fato e o que não existe. Sem um sentido ontológico para o ser-verdadeiro e o ser-falso, tais
oposições, consideradas legítimas e operadas na linguagem e no pensamento comuns, não seriam
possíveis, nem inteligíveis. Tal negligência provém do fato de que, como foi indicado antes na
exposição sobre o problema acerca dos portadores de verdade, cristalizou-se a opinião de que
apenas entidades lógico-lingüísticas podem ser autênticas portadoras de verdade. Certamente o ser-
verdadeiro e o ser-falso não constituem predicados ou propriedades tais como ser-verde ou ser-
redondo, ou seja, não são predicados de primeira ordem, ou, como é comum dizer, predicados
reais. No entanto, enquanto predicados de segunda ordem, isto é, meta-predicados atribuídos a
predicados de primeira ordem, eles generalizam e representam o ser-real ou o-ser-real de modo
geral, sobretudo no que diz respeito às definições dos predicados de primeira ordem e às suas
condições de aplicabilidade aos estados ônticos reais que podem ou não instanciá-los. O que se
pretende chamar a atenção aqui é que, longe de o sentido ontológico dos predicados ser-verdadeiro
e ser-falso serem sentidos derivados, subsidiários ou mesmo ilusórios em relação aos sentidos
noéticos e lógico-semânticos, tal sentido ontológico é fundante em relação a eles, ainda que seu uso
não seja tão freqüente quanto o dos sentidos noéticos e lógico-semânticos. Tomando a sério as
observações de Charles Kahn sobre os usos do verbo ser, o ser-verdadeiro ou ser-falso em sentido
ontológico podem ser vistos como formas privilegiadas de atribuições de existência ou de
inexistência a algo (seja um objeto, uma propriedade ou uma relação), no sentido de se atribuir a
este algo seu acontecimento ou não-acontecimento em um tempo e em um lugar específicos. Se isso
é correto e se as predicações de primeira ordem possuem implicações e pressupostos existenciais,
então ao menos se deve contar entre estes pressupostos ou implicações aquilo que se pode chamar
de implicações e pressupostos ontoaléticos. Ver-se-á de modo mais detido na análise reconstrutiva
da teoria aristotélica da verdade em que sentido se pode considerar o sentido ontológico do ser-
verdadeiro mais fundamental e fundante em relação aos sentidos noéticos e lógico-semânticos.
164
que tal relação seja teoricamente determinada. Assim, o aspecto ontológico destes
princípios de verdade consiste em representarem e determinarem de modo
necessário, universal e conceitual as formas ontológicas mais gerais de todos os
estados ônticos possíveis, formas sem as quais nenhum estado ôntico poderia ser
representado pela linguagem e visado pelo pensamento, mesmo que o estado
ôntico em questão seja alguma forma lógica, expressão lingüística, pensamento ou
fato mental.
No entanto, estas formas ontológicas gerais indicam e pressupõem sempre e
necessariamente algum tipo de estados ônticos primários e fundamentais que
possibilitam ontológica e aleticamente todos os demais estados ônticos possíveis,
ou seja, as formas ontológicas mais gerais de todos os estado ônticos possíveis,
representadas pelos princípios primários de verdade, pressupõem e indicam
aqueles estados ônticos primários que instanciam de modo privilegiado tais formas
ontológicas, aqueles estados ônticos que são primordialmente verdadeiros, no
sentido daquilo que não pode ser de outro modo para que todos os demais estados
ônticos sejam ou possam ser o que são, aquilo que não pode não ser, aquilo que
representa o ser-verdadeiro em sentido originário, enquanto o que é
necessariamente real, sentido originário a partir do qual pode-se decidir sobre a
verdade ou falsidade de qualquer asseveração, inclusive das asseverações
filosóficas que enunciam os princípios de verdade primários
63
. Estes estados
63
Isto indica que não uma simetria ou isomorfismo estrutural completo dos sentidos do ser-
verdadeiro e do ser-falso, pois os princípios primários de verdade necessitam pressupor os estados
ônticos fundamentais enquanto aquilo que não pode ser falso, aquilo que é necessária e
165
ônticos fundamentais podem ser designados como a categoria ontologicamente
primária de entidades ou fatos na medida em que tanto os atos de pensamento e as
formas lógicas em que estes atos estão instanciados e que representam os estados
ônticos visados (referidos), quanto todos os demais estados ônticos,
necessariamente se referem e estão ligados (direta ou indiretamente) a estes
estados ônticos fundamentais. Por conta disso, conquanto os princípios de verdade
primários (enquanto representam as formas ontológicas mais gerais de todos os
estados ônticos possíveis) indiquem necessariamente esta categoria fundamental
de entidades ou estados ônticos, são os critérios especificamente ontológicos que
realizam a determinação desta categoria de entidades e sua relação com as demais
categorias de entidades delas dependentes (podendo-se incluir nestes estados
essencialmente verdadeiro. Estes estados ônticos primários instanciam de modo privilegiado o ser-
verdadeiro enquanto conceito primitivo a partir do qual pode-se definir os demais sentidos tanto
do ser-verdadeiro quanto do ser-falso (=não-ser-verdadeiro). Esta assimetria mostra que se deve
distinguir entre uma definição nominal do ser-verdadeiro, a qual pode usar o conceito de ser-falso
no seu definiens, e uma definição real do ser-verdadeiro, onde este é um conceito primitivo em
relação ao ser-falso e assim não pode usá-lo em seu definiens, mas apenas o conceito de ser-real pode
ser usado em sua definição, de tal modo que na definição real do ser-falso o ser-verdadeiro é usado
como parte de seu definiens, mas o inverso o é possível. Pode-se denominar a definição nominal
da verdade de definição lógico-semântica, enquanto a definição real pode ser denominada de
definição ontológica. Sem uma tal distinção entre definição lógico-semântica e definição ontológica
da verdade, ou seja, sem uma distinção entre os sentidos lógico-semânticos do ser-verdadeiro e os
sentidos ontológicos, as abordagens e definições de verdade e falsidade cairiam em uma
circularidade. Frege percebeu este perigo e por conta dele postulou o ser-verdadeiro (Wahrsein)
como predicado primitivo de todas as leis lógicas enquanto instanciadas nas entidades objetivas e
atemporais que chamou de pensamentos (die Gedanken). Sobre este ponto veja-se “O pensamento,
uma investigação lógica”, art. cit. Heidegger também, ainda que em um sentido diverso, mostrou a
necessidade do existente (Dasein) pressupor o ser-verdadeiro em sentido originário nos modos de
lidar consigo mesmo, com os demais e com o mundo, mas sobretudo em relação às asseverações
concretas sobre os estados ônticos mundanos, seguindo na realidade uma idéia aventada, mas
não desenvolvida por Husserl. Veja-se respectivamente Ser e tempo; trad.: Márcia de Cavalcante.
Petrópolis: Vozes, 1989, §§ 43-44. Investigações lógicas, sexta investigação; trad.: Zeljko Loparic &
Andréa A. de Campos Loparic. São Paulo: Abril Cultural, 1980, §§ 36-39, onde, além da idéia de
uma pressuposição do ser-verdadeiro no sentido do ser-real do que é visado por um ato
significante, explora-se o sentido ontológico do ser-verdadeiro a partir dos princípios e critérios de
evidência, no que foi, provavelmente, inspirado por Franz Brentano.
166
ônticos dependentes as entidades gico-semânticas, mentais e o conjunto das
asseverações possíveis), pois o as características e propriedades essenciais destes
estados ônticos necessariamente verdadeiros (reais) que constituem a referência
última de todas as formas lógicas e atos de pensamento que constituem as
asseverações concretas, bem como de todos os estados ônticos pensáveis e dizíveis
nestas asseverações
64
.
Pode-se chamar esta necessária indicação ou remissão formal à categoria dos
estados ônticos primários de compromisso ontoalético dos princípios de verdade, pois
tais estados ônticos são, por definição, os produtores de verdade primários
formalmente indicados e pressupostos pelos princípios primários de verdade,
enquanto estes princípios de verdade das asseverações são eles mesmos
64
Deve-se, portanto, distinguir entre o aspecto ontológico dos princípios primários de verdade,
enquanto formas ontológicas gerais de todos os estados ônticos denotáveis, e os critérios
especificamente ontológicos de verdade que determinam o modo de ser das entidades ou estados
ônticos primários, bem como a relação destes estados ônticos primários com os demais estados
ônticos deles dependentes ontoaleticamente. São as teorias filosóficas que efetivamente defendem
um ou outro tipo determinado ou categoria de estados ônticos como mais fundamentais, podendo
ser tal categoria constituída quer por entidades reais, como no caso das teorias filosóficas
classificadas como realistas, quer por entidades mentais ou por entidades lógico-semânticas, como
no caso das teorias filosóficas anti-realistas ou não-realistas. O que é necessário em qualquer caso, é
que um determinado tipo de entidades seja indicado como formando uma categoria fundamental
relativamente a todas as demais entidades, categoria que instancia em suas propriedades o sentido
do ser-verdadeiro enquanto ser-real de modo necessário e primário. É por isso que todas as teorias
ou teorizações da verdade possuem compromissos ontológicos inevitáveis, tanto quanto
compromissos noéticos e lógico-semânticos. Na realidade os compromissos noéticos, lógico-
semânticos e ontológicos das teorias ou teorizações da verdade estão em uma relação de
dependência uns com os outros, de tal forma que compromissos noéticos determinam
compromissos lógico-semânticos e ontológicos, e compromissos lógico-semânticos determinam
compromissos noéticos e ontológicos, assim como compromissos ontológicos determinam
compromissos noéticos e lógico-semânticos, ou seja, não existem, em princípio, compromissos
isolados, bem antes, as decisões e posições filosóficas quanto a que tipos de estados ônticos o
considerados como portadores e como produtores de verdade primários determina um
determinado horizonte de possibilidades teóricas que uma teoria ou teorização da verdade pode
assumir, havendo porém dentro deste horizonte um espaço livre de escolhas, de modo análogo a
como no xadrez uma determinada abertura condiciona e limita as possibilidades posteriores de
jogadas.
167
asseverações teóricas de caráter universal e necessário, e assim já sempre estão eles
mesmos essencial e necessariamente comprometidos com o sentido do ser-
verdadeiro próprio a esta categoria de estados ônticos fundamentais que indicam
formalmente, ainda que não sejam eles que determinam efetivamente este sentido
originário, mas os critérios especificamente ontológicos deles derivados e
dependentes, estes últimos que são a meta de qualquer investigação
especificamente ontológica, diferenciada das investigações especificamente lógico-
semânticas e epistemológicas
65
.
No esquema geral das asseverações, o aspecto ontológico dos princípios e
critérios de verdade das asseverações é introduzido pela cláusula (M)’, ou seja, é
introduzido pelas modalidades assignadas aos conteúdos gico-semânticos
efetivos das asseverações, simbolizados por ’. Por isso, rigorosamente falando, o
aspecto ontológico de tais princípios coloca em jogo o tipo de relação entre o
conteúdo de ‘(M)’ e ’, ou seja, a relação entre modalidades e o conteúdo lógico-
semântico das asseverações. E isto ocorre porque tal relação indica justamente a
passagem dos conteúdos lingüísticos e das formas lógicas instanciadas pelos atos
65
Na realidade, cabe à epistemologia geral determinar quais as entidades mentais primárias para as
asseverações, assim como cabe à lógica filosófica determinar quais as entidades lógico-semânticas
primárias para as asseverações e à ontologia determinar quais as entidades reais primárias para as
asseverações. Assim, epistemologia, lógica e ontologia analisam as asseverações desde um de seus
elementos constituintes, mas não analisam propriamente os princípios de verdade das asseverações
enquanto tais. Epistemologia, lógica e ontologia estão implicadas em qualquer teoria ou teorização
da verdade justamente porque toda teoria ou teorização da verdade, direta ou indiretamente, em
maior ou menor grau, concerne à investigação das asseverações e de sua estrutura ontoalética geral.
No entanto, separadamente, epistemologia, lógica e ontologia determinam apenas os critérios
primários de verdade das asseverações, sem determinar, senão indiretamente, os princípios
primários das asseverações.
168
de pensamento aos estados ônticos representados por estas formas lógicas e
visados pelos atos de pensamento. A verdade (validade) ou falsidade (invalidade)
do conteúdo lógico-semântico das asseverações depende das possibilidades de
representação dos estados ônticos pelas formas lógicas, mas estas possibilidades
dependem diretamente das formas ontológicas mesmas instanciadas nos estados
ônticos representados, dependem de seu modo de ser efetivo. É justamente este
modo de ser efetivo ou factual que é representado pelas modalidades. Enquanto de
dicto, as modalidades também fazem parte das formas lógicas da linguagem em
geral, porém enquanto de re, elas dizem respeito não mais à determinação do
sentido (intensão) das formas lógicas das expressões lingüísticas mas às formas
ontológicas dos estados ônticos visados pelos pensamentos e representados pelas
estruturas lógico-semânticas que instanciam estes pensamentos. Enquanto
modalidades de dicto, elas afetam o conteúdo lógico-semântico das asseverações
nos nexos predicativos presentes nos enunciados e ou na conexão lógico-semântica
(verifuncional) entre os enunciados. Mas a contraparte deste sentido de dicto das
modalidades aléticas é justamente o seu possível sentido de re, pois enquanto
expressões lingüísticas o ser real destas é marcado por uma intermediação entre
pensamento e realidade intencionalmente visada. Assim, as formas lógicas podem
representar um sem-número de estados ônticos diversos, mas o sentido em que a
cada vez elas o fazem tem de ser formalmente determinado pelas modalidades que
são assignadas a elas, pois estas modalidades determinam formalmente a cada vez
a intensão do conteúdo lógico-semântico das asseverações, e assim determinam o
169
sentido daquilo que é visado por este conteúdo nos estados ônticos referidos e
representados, determinam o modo de apresentação do que é visado pelas
asseverações concretas. Esta determinação implica que as modalidades assignadas
ao conteúdo lógico-semântico das asseverações possam ser também determinações
formais dos próprios estados ônticos visados e representados, ou seja, que possam
ser também critérios ontológicos que dizem respeito aos possíveis estados ônticos
referidos.
Tradicionalmente o sentido das modalidades de dicto é alético, e assim lógico-
semântico, enquanto o sentido das modalidades de re é ontológico. Mas as
modalidades de ser-verdadeiro, consideradas tradicionalmente como modalidades
aléticas e de dicto, introduzem e remetem necessariamente ao problema das
modalidades de ser, consideradas modalidades ontológicas e de re
66
. Viu-se,
66
Deve-se a Quine ter mostrado pela primeira vez que a legitimidade da lógica modal,
principalmente da lógica modal de predicados, possui um compromisso inevitável com aquilo que
denominou de “essencialismo aristotélico”, pois sem este compromisso a lógica modal seria apenas
uma extensão em parte redundante e em parte suspeita ou equivocada da lógica clássica. O ponto
de Quine consiste justamente em mostrar que a lógica modal se compromete necessariamente o
apenas com modalidades de dicto, mas sobretudo com modalidades de re, o que para o filósofo de
Harvard contraria alguns princípios básicos, bem como os compromissos ontológicos próprios à
lógica clássica, da qual a lógica modal se pretende uma extensão. Sobre este ponto, veja-se, de
Quine, “Three grades of modal involvement”, in The ways of paradox, opus cit., pp. 158-176.Para uma
crítica interna aos argumentos de Quine, veja-se, de John R. Baker, Some remarks on Quine’s
arguments against modal logic”, in Notre Dame Journal of Formal Logic, vol. 19, 4, 1978, pp. 663-
673. Para uma análise minuciosa das críticas de Quine e as respostas oferecidas a elas, sobretudo
por Kripke, veja-se, de Jaime Nubiola, El compromisso essencialista de la lógica modal, estúdio de Quine y
Kripke. Pamplona: EUNSA, 1984. Veja-se ainda, de Ruth Barcan Marcus, “Essentialism in modal
logic”; “Essential atribution”, in Modalities, philosophical essays. Nova Iorque/Oxford: Oxford UP,
1993, respectivamente, pp. 45-51, 53-73. Para uma análise lógico-filosófica das críticas de Quine e
perspectivas de respostas a elas, veja-se, de Alvin Plantinga, The nature of necessity, opus cit., pp.
222-251. Para uma visão de como surge o essencialismo na obra de Aristóteles e como tal
essencialismo não coincide com aquele descrito por Quine, veja-se, de Nicholas P. White, “The
origins of Aristotle’s essentialism”, in Review of Metaphysics, vol. 26, 1972-73, pp. 57-85. Para uma
clara introdução à problemática da distinção entre modalidades de dicto e de re, leia-se, de Michael J.
170
porém, através do conceito de dependência ontoalética que os estados ônticos reais
(em sentido amplo) são produtores de verdade primários para as asseverações,
pensadas como portadores primários de verdade e que, assim, as características
(formas ontológicas) dos estados ônticos são aquilo que, necessariamente,
pensamentos visam e formas lógicas representam. Assim, a partir da noção de
dependência ontoalética que intercorre entre portadores e produtores de verdade,
as modalidades aléticas e de dicto dependem, nas asseverações concretas, das
modalidades ontológicas e de re, de tal modo que o ser-verdadeiro ou ser-falso das
asseverações (no sentido da correção ou incorreção e da validade ou invalidade
das modalidades nelas instanciadas) dependem do ser-verdadeiro ou ser-falso no
sentido do ser-real ou ser-irreal (não-ser-real) como propriedades ou meta-
predicados dos estados ônticos referidos. Por isso, o compromisso ontoalético dos
princípios de verdade em seu sentido ontológico se mostra como uma relação de
dependência ontoalética entre modalidade de dicto ou aléticas e modalidades de re
ou ontológicas.
Admitindo-se isto, as modalidades representadas nos princípios primários de
verdade e nos critérios ontológicos de verdade devem possuir o duplo sentido de
modalidades de dicto e de re, aléticas e ontológicas, ou seja, modalidades que podem
ser chamadas por este duplo sentido de modalidades ontoaléticas, pois os princípios
de verdade primários fundam a possibilidade tanto de critérios lógico-semânticos,
onde as modalidades possuem por definição um sentido de dicto, quanto
Loux, Metaphysics: a comtemporary introduction. Londres/Nova Iorque: Routledge, 1998, cap. 5, esp.
pp. 168-180.
171
fundamentam os critérios propriamente ontológicos, onde as modalidades
possuem por definição um sentido de re. Tal sentido duplo das modalidades
próprias aos princípios e critérios primários de verdade se mostra na possibilidade
teórica de análises lógico-filosóficas que tanto reduzem modalidades de re a
modalidades de dicto quanto o inverso. Tal inter-redutibilidade ou co-
analisabilidade não seria teoricamente possível ou inteligível (independentemente
de qual tipo de redução é verdadeira ou correta) se não houvesse uma intersecção
de sentido entre estes dois tipos de modalidades, ou seja, se não houvesse uma
relação entre os sentidos do ser-verdadeiro e ser-falso instanciados e estruturados
pelas modalidades de dicto ou aléticas, aplicáveis às formas lógicas ou entidades
lógico-semânticas, e as modalidades de re ou ontológicas, aplicáveis às formas
ontológicas ou entidades reais (em sentido amplo), então o seriam possíveis tais
análises que, no entanto, padecem de unilateralidade na investigação do problema
67
. As modalidades ontoaléticas instanciadas nos princípios de verdade
67
Tal intersecção de sentidos do ser-verdadeiro ou ser-falso das modalidades de dicto e de re, não
obstante sua presença intermitente na linguagem comum, não foi ainda devidamente analisada,
nem pelos teóricos das modalidades, nem pelos teóricos da verdade, muito provavelmente por
estarem ainda preocupados em estabelecer uma anterioridade absoluta, quer das modalidades de
dicto em relação às modalidades de re, quer o inverso. Se se admite, porém, as noções de
dependência ontoalética entre portadores e produtores de verdade, bem como de um compromisso
ontoalético dos princípios de verdade em seu sentido ontológico, torna-se inevitável admitir a
noção de modalidades ontoaléticas como podendo representar sentidos do ser-verdadeiro e ser-
falso tanto de dicto quanto de re, ou seja, tanto aléticos quanto ontológicos. Na realidade, o que a
noção de modalidades ontoaléticas mostra é uma co-originariedade, no sentido de uma inter-
definibilidade, entre modalidades de dicto e de re, visível desde que se abandone a pretensão milenar
de se postular uma anterioridade epistêmica, lógico-semântica ou ontológica quer de entidades ou
fatos mentais, lógico-semânticos ou reais (em sentido estrito) em prol de uma relação co-originária e
concomitante (em um sentido mínimo necessário) entre pensamento, linguagem e realidade, ou
seja, que se admita que qualquer anterioridade filosoficamente defensável quer de caráter realista
quer de caráter anti-realista ou não-realista depende de uma inter-relação originária, mínima e
“simultânea” entre pensamento, linguagem e realidade sem a qual as tentativas filosóficas de
172
representam justamente esta região comum de sentido entre as modalidades de
dicto ou aléticas e as modalidades de re ou ontológicas, elas representam a transição
entre o aspecto lógico-semântico e o aspecto ontológico dos princípios primários
de verdade das asseverações, bem como por isso a relação entre as condições de
verdade (critérios) propriamente lógico-semânticas e as condições de verdade
propriamente ontológicas das asseverações.
Através desta noção de modalidades ontoaléticas é possível retomar o esquema
geral das asseverações e perceber que as modalidades pospostas às atitudes
proposicionais e antepostas aos conteúdos lógico-semânticos destas atitudes
(modalidades que determinam a intensão (sentido) destes conteúdos e destes atos
intencionais) são, nas asseverações, modalidades de dicto, porém recebem o sentido
de seu valor de verdade das modalidades de re, enquanto estas modalidades são os
modos de ser das propriedades formais e necessárias dos estados ônticos referidos
pelos pensamentos e representados pelos enunciados ou conjuntos de enunciados.
Tais modalidades de re, através do esquema de dependência ontoalética inter-
categorial antes esboçado, possuem um valor de verdade primário, ou seja,
representam o ser-verdadeiro em seu sentido primário, no seu sentido de ser real,
de ser o caso. Pode-se dar os seguintes exemplos para tornar mais inteligível tal
estabelecer e determinar como ocorre tal inter-relação entre estes três níveis estão expostas aos
ataques céticos ou a colapsos argumentativos muito sérios, pois necessariamente as modalidades de
re somente são cognoscíveis ou reconhecíveis enquanto são representáveis por modalidades de dicto
e as modalidades de dicto só são efetivamente verificáveis em sua estruturação das pretensões de
verdade das asseverações se remetem a modalidades de re dos estados ônticos representados e
visados. Esta inter-definibilidade, contudo, não desmente a dependência ontoalética das
modalidades de dicto em relação às modalidades de re. Não é possível, contudo, discutir aqui o
assunto em detalhe, mas sua indicação pode ajudar nas análises posteriores.
173
dependência ontoalética das modalidades de dicto em relação às modalidades de re:
é porque os seres humanos são necessariamente seres vivos que é verdade dizer
que “necessariamente os seres humanos são seres vivos” ou é porque alguns seres
humanos podem ser (e são) negros que é verdade dizer que “é possível que alguns
seres humanos sejam negros”. Assim, é pelo sentido ontológico das modalidades
de re que as modalidades aléticas de dicto recebem o sentido de seu valor de
verdade. O aspecto ontológico dos princípios de verdade das asseverações
portanto pode ser encontrado a partir do esquema geral das asseverações na
dependência ontoalética das modalidades de dicto em relação às modalidades de re,
ou seja, em relação ao modo de ser efetivo instanciado nos próprios estados ônticos
referidos pelos atos de pensamento e representados pelas formas lógicas que
estruturam sua pretensão de verdade
68
.
68
Sobre a relação de fundação das modalidades de dicto relativamente às modalidades de re, veja-se
o excelente texto de Scott A. Shalkowski, “The ontological ground of the alethic modality”, in The
Philosophical Review, vol. 103, 4, 1994, pp. 669-688. Uma análise similar encontra-se no perspicaz
texto de Tony Roy, Worlds and modality”, in The Philosophical Review, vol. 102, nº 3, 1993, pp. 335-
361, onde se sugere, porém, que tanto modalidades de dicto quanto modalidades de re se
fundamentariam em propriedades não-modais dos estados de coisas atualmente existentes, o que
parece em certo sentido inconsistente dado que se faz apelo à modalidade do atual como primária e
definitória em relação às modalidades de dicto e de re. Uma abordagem mais consistente da relação
de fundação das modalidades de dicto pelas modalidades de re, realizada posteriormente pelo
mesmo autor, levando em conta o texto de Shalkowski, é encontrada em “Things and de re
modality”, art. cit. Para uma tentativa com espírito platônico e platonizante de reduzir modalidades
de re a modalidades de dicto, veja-se, de Alvin Plantinga, The nature of necessity, opus cit., esp. caps. 4-
5, onde se defende pela primeira vez explicitamente a tese do atualismo já indicada por Saul Kripke
em seu clássico Naming and necesity. Cambridge/Massachusetts: Harvard UP, 1996 (1980), esp.
pp. 15-20. Um atualismo de espírito aristotélico é defendido por G. W.Fitch em seu “In defense of
aristotelian actualism”, in Philosophical Perspectives, (ed.) James E. Tomberlin, vol. 10, 1996, pp. 53-
71, sem, no entanto, preconizar algum tipo de redução absoluta das modalidades de dicto às
modalidades de re, de acordo com o espírito moderado do atualismo de teor aristotélico; ambos os
tipos de modalidade são, porém, definíveis a partir da modalidade ontológica da atualidade, ou nas
palavras do próprio autor: It [aristotelian] is a version of actualism that takes very seriously the
idea that the only things that exist are basic actual objects and things composed of actual objects”
(p. 57). Deve-se, porém, advertir que tal dependência ontoalética das modalidades de dicto em
174
O sentido ou aspecto ontológico dos princípios primários de verdade das
asseverações consiste justamente em tais princípios determinarem as condições
ontológicas necessárias de verdade das asseverações possíveis através do
estabelecimento dos modos de ser efetivos dos estados ônticos em geral e,
sobretudo, dos estados ônticos que fazem parte da categoria das entidades
primárias, entidades estas que são os produtores de verdade primários para todos
os atos de pensamento e para as formas lógicas em que estes atos de pensamento
estão instanciados nas asseverações concretas. o estas modalidades de ser dos
estados ônticos em geral que justificam e verificam em última instância a correção
ou incorreção e a validade ou invalidade das asseverações, assim como a validade
ou invalidade dos critérios de verdade específicos a cada um dos três níveis das
asseverações, na medida em que dentre estes três níveis é o nível ontológico mais
fundamental, tanto enquanto aspecto dos princípios primários de verdade, quanto
dentre os critérios de verdade específicos. Isto, porém, não deve ser entendido no
sentido que dos critérios propriamente ontológicos derivem os critérios
especificamente noéticos e lógico-semânticos, o que seria, de um lado, confundir
três tipos de fatos ou entidades ontologicamente distintos, e, de outro lado,
relação às modalidades de re não propugna uma redução das primeiras a estas. certamente
modalidades de dicto que intercorrem unicamente entre entidades lógico-semânticas e modalidades
de re que intercorrem unicamente entre entidades reais em sentido estrito. Tal dependência
ontoalética intercorre unicamente no sentido amplo de realidade enquanto entidades mentais,
lógico-semânticas e reais (em sentido estrito) são todas entidades reais porquanto identificáveis,
separáveis e referíveis de algum modo (segundo alguma intensão) por parte dos atos de
pensamento e das formas lógicas instanciadas nas asseverações concretas.
175
esquecer que cada um destes tipos de critérios gerais é derivável dos aspectos
correspondentes presentes nos princípios primários de verdade.
Bem antes, o que se indica com este caráter mais fundamental dos critérios
especificamente ontológicos e do aspecto ontológico dos princípios primários de
verdade é que se os atos de pensamento cognitivos e significantes, bem como as
formas lógicas que estruturam as expressões lingüísticas das asseverações, são
definidos essencialmente por estarem dirigidos e relacionados a estados ônticos
que visam e representam, então os aspectos noético e lógico-semântico dos
princípios de verdade, assim como os critérios noéticos e lógico-semânticos são,
tomados isoladamente, condições necessárias mas ainda não suficientes para a
verdade das asseverações, a não ser quando tomados conjuntamente com o aspecto
ontológico dos princípios de verdade e com os critérios especificamente
ontológicos gerais das asseverações, posto que seu caráter necessário só é definível
enquanto pressupõem e implicam o aspecto ontológico dos princípios de verdade e
os critérios ontológicos das asseverações, ou seja, a necessidade das condições de
verdade noéticas e lógico-semânticas é dependente das condições ontológicas de
verdade das asseverações, pois seu caráter necessário é ainda por si mesmo uma
necessidade de dicto, uma necessidade dependente da necessidade das condições
ontológicas (de re) de verdade das asseverações. Em um sentido análogo, os
aspectos noético e lógico-semântico dos princípios primários dependem do aspecto
ontológico dos mesmos na medida em que é somente este aspecto que pode
produzir a verdade dos princípios primários de verdade das asseverações
176
enquanto auto-evidência. Assim, através do aspecto ontológico dos princípios
primários de verdade das asseverações se põe em jogo a própria verdade destes e
de todos os critérios gerais de verdade neles fundados.
São estas modalidades de ser o objeto de controvérsia entre as posições
ontológicas classificadas hoje entre realistas e anti-realistas, dentro das quais são
encontradas um sem-número de posições particulares defendidas pelas teorias
postas em obra pelos filósofos. Assim, é por conta deste aspecto ontológico dos
princípios de verdade das asseverações que todas as teorizações e teorias da
verdade possuem sempre algum tipo de compromisso com alguma posição
ontológica específica, existente ou construída dentro destas teorizações e teorias.
As entidades ou fatos ontologicamente primários são aquilo que está a cada vez
em jogo nas teorias ontológicas e nas controvérsias de ordem metafísica. O que
estas teorias propõem é justamente estabelecer e definir a verdade própria aos
princípios e critérios de verdade que governam como modelos a possível correção
ou incorreção, bem como a validade ou a invalidade, de toda e qualquer
asseveração realizável, entendendo-os como determinando o modo de ser próprio
das entidades primárias relativamente à linguagem e ao pensamento. As
controvérsias entre as teorias ontológicas ou metafísicas consistem justamente na
discussão desta verdade (realidade ou evidência) dos princípios e critérios de
verdade, consistem em se determinar se os princípios e critérios de verdade
estabelecidos por uma outra teoria são realmente princípios e critérios de verdade
(primários ou secundários), e mesmo se são princípios ou critérios de verdade em
177
algum sentido. Assim, as teorias ontológicas ou metafísicas discutem as
asseverações das demais teorias acerca da verdade dos princípios e critérios de
verdade propostos pelas mesmas.
§ 5 – Conclusão Geral da Primeira Parte
O sentido transcendental dos princípios primários
e dos critérios gerais de verdade:
pensamento, linguagem e realidade.
Nos três últimos parágrafos foram expostos sumariamente os três aspectos
complementares que caracterizam os princípios primários de verdade, aos quais
correspondem de modo congruente três “espécies” igualmente complementares de
critérios gerais de verdade das asseverações. A conjunção destes princípios e dos
critérios gerais neles fundados formam as condições necessárias e suficientes de
verdade das asseverações, ou seja, as condições necessárias e suficientes para
verificar e justificar a correção ou incorreção e a validade ou invalidade de
qualquer correlação entre pensamentos, linguagem e realidade. Nenhum princípio
ou critério determinado foi defendido pelo simples fato de que o objetivo desta
discussão é o de apenas caracterizar formalmente o sentido geral, a estrutura
hierárquica e a necessária discussão ou pressuposição destes princípios e critérios
por parte das teorias ou teorizações da verdade.
O eventual leitor pode achar tais considerações demasiado amplas e mesmo
vagas, porém, efetivamente as teorias ou teorizações da verdade e da falsidade
sempre estão colocadas dentro do espaço destes princípios primários de verdade e
178
dos critérios gerais de verdade que lhe correspondem, na medida em que sempre
estão tentando explicitar os sentidos em que os meta-predicados ser-verdadeiro e
ser-falso são aplicados à esta correlação. Todavia, no mais das vezes tais teorias
estão imersas em algum âmbito específico desta correlação e analisam as
asseverações através de uma perspectiva ou apenas noética (“epistemo-lógica”), ou
apenas lógico-semântica, ou apenas ontológica. É, portanto, comum que se
considere com desconfiança a possibilidade de existência ou de definibilidade dos
princípios de verdade, pois, de fato, a maioria das teorias ou teorizações da verdade
e da falsidade permanecem voltadas para a postulação de critérios gerais de
verdade das asseverações, ora tendentes a seu aspecto noético, ora a seus aspectos
lógico-semântico ou ontológico. No entanto, que as atuais teorias ou teorizações da
verdade não postulem explicitamente tais princípios, em nada refuta a necessidade
conceitual e estrutural de sua existência e pressuposição, uma vez que não se trata
de uma questão de fato (quid facti), mas de direito (quid juris), ou seja, não se trata
de, como já foi dito logo ao início deste trabalho, fazer um inventário das teorias ou
teorizações da verdade e da falsidade, mas de expor as condições necessárias e
gerais para a caracterização de qualquer teoria ou teorização da verdade.
O problema acerca dos princípios e critérios de verdade coloca em jogo a
possibilidade de uma determinação teórica do aspecto alético da correlação
universal e necessária entre pensamento, linguagem e realidade. Dentro da história
da filosofia foram justamente os céticos (sobretudo os pirrônicos) aqueles que mais
detidamente pensaram esta correlação atica e mostraram os múltiplos problemas
179
que ela traz consigo. Esta impiedosa análise forçou a filosofia moderna, desde o
seu início, a responder aos argumentos céticos quanto à impossibilidade de uma
determinação definitiva sobre tal correlação. E, no entanto, a todo momento e em
todos os âmbitos da cultura humana (ciências, artes, técnicas, etc.), realiza-se uma
determinada correlação alética entre pensamento, linguagem e realidade, ou seja,
um conjunto determinado de asseverações pressupõe princípios e critérios de
verdade que organizam os portadores, sentidos e significados, definições e
produtores de verdade. É neste sentido amplo que os princípios primários e os
critérios gerais de verdade, pressupostos como instâncias últimas para justificar e
verificar os diversos tipos de asseverações, possuem um caráter transcendental,
pois eles ultrapassam os limites estritos dos critérios particulares de verdade
(estados ônticos primários) direta ou indiretamente referidos nas asseverações
sobre categorias específicas de entidades em que o mundo é organizado. Ao que
tudo indica, cada época e cultura possuem suas próprias categorias de organização
do mundo e seus próprios esquemas conceituais em que estas categorias são
internalizadas e operadas na compreensão e interpretação dos fatos e entidades
concretas. À luz desta multiplicidade, é-se tentado a dizer que os princípios e
critérios transcendentais de verdade são relativos e mutáveis. Mas este movimento
e esta multiplicidade o implicam necessariamente a aceitação ou a defesa de um
relativismo tão radical quanto simplista, hoje tão em voga. Ao contrário, estas
mutabilidade e multiplicidade impõem ainda mais fortemente o caráter
transcendental dos princípios e critérios de verdade, de modo análogo a como a
180
diversidade das línguas impõe ainda mais fortemente a necessidade de que tudo o
que existe deva ser nomeado e descrito, independentemente de como e porquê o
seja. A multiplicidade e a mutabilidade das culturas e épocas aprofunda o problema
dos princípios e critérios de verdade, de tal modo que seu caráter transcendental se
torna ainda mais enigmático e difícil de ser determinado de forma definitiva ou de
forma dogmática. No entanto, pode-se reconhecer, descrever e investigar esta
mutabilidade e multiplicidade justamente porque há princípios e critérios que
conseguem ultrapassar os limites entre épocas e culturas, independentemente de
quais sejam especificamente estes princípios e critérios e do modo como eles
consigam realizar este ultrapassar.
À filosofia, enquanto atividade de investigação analítica e crítica, corresponde a
tarefa de definir, determinar e postular estes princípios e critérios. Muitas das
polêmicas filosóficas versam precisamente sobre os tipos de determinação teórica
realizadas pelas diversas tendências, correntes e tradições, sobre a verdade ou não
dos princípios e critérios propostos por outras teorias, se o de fato princípios e
critérios de verdade válidos (verdadeiros) para todas as asseverações possíveis ou
para todas as asseverações de um determinado tipo, etc. Como foi apontado,
epistemologia, lógica e ontologia sempre estão implicadas em qualquer teoria ou
teorização da verdade e da falsidade. Sem a existência de princípios primários e
critérios gerais de verdade os limites destes âmbitos filosóficos seriam fixos e
rígidos. Mas a experiência filosófica e a história da filosofia mostram com
exemplos de sobra que a delimitação entre estes três tipos de investigação é tão
181
necessária quanto complementar, de tal modo que as fronteiras entre os três
acabam por se confundir, sem que por isso se confundam os métodos e temas
próprios a cada um destes tipos de investigação, assim como as extremidades de
um mapa mundi se juntam para formar um todo constituído de partes distintas. Se
estes tipos de investigação estão efetivamente correlacionados e se a
necessidade de pressupor a existência de princípios primários e critérios gerais de
verdade para todas as asseverações, então é possível dizer que o caráter
transcendental destes princípios e critérios constitui aquilo que unifica estes tipos
de teorização.
Além disso, se a metafísica não for compreendida como uma teoria de tudo,
mas como um modo de investigação filosófica que procura encontrar os aspectos
universais e necessários presentes na relação dos seres humanos consigo mesmos,
com os demais e com o mundo em geral, então o aspecto transcendental dos
princípios e critérios de verdade pode ser considerado como um dos temas centrais
da investigação metafísica, desde que esta investigação seja capaz de se
compreender como tributária, e mesmo como auxiliar, das investigações
epistêmicas, lógico-semânticas e ontológicas.
Tudo isto permite compreender como e porquê o problema em torno aos
princípios e critérios de verdade reúne em si os demais problemas fundamentais,
sem que estes percam sua especificidade e delimitação próprias. Ademais, como
conclusão geral, pode-se caracterizar o conjunto desta investigação sobre os problemas
fundamentais acerca dos conceitos de verdade e falsidades como uma meta-teorização das
182
condições necessárias (mas provavelmente ainda não suficientes) para caracterização de
qualquer teoria ou teorização sobre a verdade. Esta meta-teorização ou meta-teoria,
porém, não pretendeu ser completamente isenta de pressupostos, nem deixou de
apresentar um esquema geral de uma teorização sobre a verdade, posto que não
seria possível, ao menos na modesta visão do autor deste trabalho, determinar as
condições necessárias para as teorias e teorizações sobre a verdade sem que se
apresentasse uma teorização esquemática sobre a natureza da verdade e da
falsidade. Em especial, a tese central que perpassou toda esta investigação, tal
como se explicitou no começo deste trabalho, é que todas as teorizações ou
teorias sobre a verdade e a falsidade sempre estão remetidas à correlação entre
pensamento, linguagem e realidade. Esta correlação foi denotada pelo conceito de
asseveração, e toda a exposição sobre os princípios e critérios de verdade das
asseverações procurou mostrar como este problema engloba os demais problemas
fundamentais e os articula com a problemática acerca da correlação transcendental
entre pensamento, linguagem e realidade. Se houve sucesso neste
empreendimento, o eventual leitor deve julgar por si mesmo.
Com estas considerações gerais, pode-se encerrar” a discussão da
problemática em torno aos conceitos de verdade e falsidade e passar efetivamente
à reconstrução da teoria aristotélica da verdade, seguindo a perspectiva geral
constituída e aplicando os esquemas conceituais elaborados ao longo das análises e
determinações realizadas nesta primeira parte.
183
SEGUNDA PARTE:
ENSAIO DE RECONSTRUÇÃO FILOSÓFICA
DA TEORIA ARISTOTÉLICA DA VERDADE
184
PRÓLOGO
Na primeira parte foram discutidos e estabelecidos os esquemas ou estruturas
conceituais inerentes aos problemas fundamentais em torno aos conceitos de
verdade e falsidade, enquanto condições necessárias gerais para qualquer teoria ou
teorização da verdade e da falsidade. Tal investigação constitui uma meta-
teorização sobre as teorias ou teorizações sobre a verdade. Esta investigação
sumária foi necessária para que se possa agora realizar a reconstrução da teoria
aristotélica da verdade. No entanto, o espírito desta investigação geral prévia é
aristotélico em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque foi realizada com vistas a
poder fazer uma reconstrução filosófica (e não apenas histórica ou hermenêutica) da
teoria da verdade do estagirita. Em segundo lugar, porém, a própria perspectiva
de análise estava “contaminada” por intuições hauridas nos textos do filósofo
macedônio. Assim, a investigação sobre os problemas fundamentais em torno aos
conceitos de verdade e falsidade, enquanto condições necessárias das teorias ou
teorizações da verdade, é aristotélica e serve como ponto de vista geral para
reconstruir a teoria aristotélica da verdade. É certo que se poderia fazer aqui a
acusação de uma circularidade, e mesmo de uma petição de princípio
hermenêutica. No entanto, rememorando o problema exposto por Platão no
Mênon, como o ter uma certa orientação prévia diante daquilo que se
investiga? Mas, como repete amiúde Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, “esteja!”.
Admita-se sem rodeios esta circularidade. O que importa mais do que haver
185
circularidade é que ela se mostre produtiva do ponto de vista hermenêutico e
eficaz do ponto de vista filosófico.
Para se mostrar efetivamente produtiva do ponto de vista hermenêutico, esta
perspectiva deve poder tomar os diversos contextos em que Aristóteles discute os
conceitos de verdade e falsidade e mostrar que se pode haurir destas teorizações
isoladas uma única teoria consistente, ou seja, isenta de contradições internas. Mas
esta produtividade hermenêutica es condicionada, no presente caso, à eficácia
filosófica de tal perspectiva de interpretação, de tal modo que a possível coerência
da teoria aristotélica da verdade deve poder (1) responder aos problemas
fundamentais antes expostos, (2) remeter à correlação entre pensamento,
linguagem e realidade como o objeto de investigação desta teoria e que, portanto,
(3) toma de fato o problema dos princípios e critérios de verdade como parte
fundamental e fundante desta teoria.
186
INTRODUÇÃO
O CARÁTER GERAL DA TEORIA ARISTOTÉLICA DA VERDADE
Aristóteles é um herdeiro consciente de uma tradição filosófica de dois séculos.
O estagirita é o primeiro filósofo grego a tomar as opiniões de seus antecessores
como objeto de investigação aprofundada. Reza a lenda que na Academia era
chamado ‘o leitor’, pois se dedicava avidamente à leitura das obras dos filósofos
antigos e contemporâneos. Tal atitude, porém, não era a de um historiador em
sentido estrito, mas a de um filósofo que tinha consciência das teses e questões
propostas pela tradição filosófica grega e que possuía a ambição de se introduzir
nesta tradição de modo decisivo. Nos Tópicos é claramente colocada a tarefa de
conhecer as opiniões correntes, tanto quanto as teses dos filósofos mais eminentes,
como requisito para um diálogo filosófico frutífero. Em um trecho deste tratado,
indica sucintamente seu próprio método em relação aos escritos dos demais
filósofos:
“É preciso também escolher entre os argumentos escritos, e
produzir listas de cada gênero <de assunto>, dispondo-os
separadamente, como por exemplo ‘acerca do bem’, ou acerca dos
seres vivos’, e acerca do bem <tomado como um > todo, começar a
partir do que ele é. Também preciso> que se assinale
paralelamente <nestas listagens> cada uma das opiniões, como por
exemplo que Empédocles disse serem quatro os elementos dos
corpos; posto que qualquer um se posicionaria dizendo algo a
favor de uma opinião reputada.”
69
69
Tópicos, Livro I, cap. 14, 105 b 12-18:
      
   
187
Vê-se nesta breve passagem o método que o próprio Aristóteles colocou em
prática em seus tratados, que geralmente começam com uma discussão crítica das
opiniões de seus antecessores acerca do tema em questão.
No caso dos conceitos de verdade e falsidade, porém, o estagirita não escreveu
um tratado específico. No entanto, encontra-se no capítulo 1 do Livro II da
Metafísica um conjunto de considerações que mostram o caráter geral das
teorizações de Aristóteles a respeito da verdade:
“Acerca da teoria/teorização [] da verdade ela é, por
um lado, difícil, por outro, fácil; sinal disso é que ninguém pode
nem atingi-la de modo digno [⌧], nem errar
completamente, porém cada um diz algo acerca da natureza, <algo
que>, de um lado, tomado individualmente é nada ou pouco na
contribuição à sua <descoberta>, mas, de outro lado, na reunião de
todos surge uma certa grandeza. De modo que, se assim parece
ocorrer-nos, vem a calhar o provérbio: “quem erraria a porta?”
Desta maneira <a teorização da verdade> seria fácil, mas ao
possuir o todo sem poder possuir a parte indica que a <teorização
da verdade> é difícil. Dado igualmente que havendo dois modos
de dificuldade, <esta dificuldade> não está nos estados ônticos
[], porém sua causa está em nós, pois assim
como os olhos dos morcegos em relação à luz, assim também a
inteligência [] de nossa alma está em relação à mais
evidente [] natureza de todas as coisas. E é
justo estar agradecidos não apenas àqueles cujas opiniões se pode
compartilhar, mas também àqueles que se expressaram de modo
mais superficial, pois também estes contribuíram com algo, posto
que fortaleceram nosso hábito de pensar. Com efeito, se não tivesse
existido Timóteo, não teríamos muitas melodias, contudo, se não
   ☺  ☺
      
     ⌧
      
  ☺ ⌧  
  ☯   
    ☯   ☺  

⌧
188
<tivesse existido> Frinis, Timóteo não existiria. Do mesmo modo
em relação àqueles que asseveraram []
algo acerca da verdade, pois de alguns herdamos certas opiniões,
mas outros foram causa de que estes tenham chegado a ser
<filósofos>. E também é correto chamar a filosofia de ciência da
verdade. Pois, de um lado, o fim da <ciência> teórica é a verdade,
de outro, <o da ciência> prática é a obra, pois embora os práticos
teorizem o modo de ser <dos estados ônticos>, não <perscrutam
neles> o eterno, mas o que é relativo e presente. Contudo, não
conhecemos o verdadeiro sem a causa, porém cada <estado
ôntico> é ele mesmo no mais alto grau do que outros em virtude
do que subsiste aos outros como <propriedade> sinônima (como
por exemplo o fogo é o mais quente, pois isto é a causa do calor
para as demais coisas). Por conseguinte, o <estado ôntico> mais
verdadeiro é causa de que os posteriores <a ele> sejam
verdadeiros. Por isso os princípios dos entes eternos são
necessariamente mais verdadeiros (pois não são verdadeiros em
algum tempo, não havendo nenhuma causa para estes
<princípios>, mas sendo eles <causas> para o demais), de tal modo
que enquanto cada <estado ôntico> possui ser, deste modo
também possui verdade.”
70
70
Metafísica , Livro II, cap. 1, 993 a 30-993 b 31:
       
  
☺     ⌧ 
      
 
       
       
  
     
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
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  ☯ ☺     ☯
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  ⌧    
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    
   ⌧  ☺  
 
189
Neste capítulo de requintado e lacônico estilo, encontram-se algumas das linhas
gerais da teorização aristotélica da verdade. Em primeiro lugar, o estagirita indica
o duplo caráter de qualquer teorização da verdade a partir do fato de que, em certo
sentido, todos os seres humanos sabem algo verdadeiro, embora tal saber seja, no
mais das vezes, impreciso e vago. Assim, teorizar a verdade é fácil por sua
presença na vida cotidiana de todos. Mas em outro aspecto, quando se trata de
determinar de modo preciso a natureza da verdade tal teorização se torna difícil.
Tal dificuldade provém do fato de que, isoladamente, cada ser humano e cada
filósofo contribui de maneira módica para a teorização do que é verdadeiro. É
      
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190
apenas pela visão de conjunto de uma tradição que se pode teorizar a verdade de
modo digno, o que torna tal investigação difícil para um só ser humano.
Em um segundo momento o filósofo macedônio indica a causa desta
dificuldade, a saber: que as coisas mais evidentes por natureza são obscuras para
nossa inteligência, de modo análogo a como os olhos dos morcegos diante da luz.
A idéia de uma oposição entre o que é mais conhecido para nós e o que é mais
conhecido por si é recorrente ao longo dos textos do corpus aristotelicum
71
. Tal idéia
está ligada à concepção aristotélica do processo de conhecimento, partindo desde a
sensação imediata dos estados ônticos até chegar aos universais entranhados nos
mesmos, ou seja, partindo do que é imediatamente evidente para nós até chegar ao
que é evidente por si mesmo, mas que não se deixa conhecer imediatamente.
Assim, a dificuldade própria à teorização da verdade não se encontra nos estados
ônticos, mas em nossa capacidade de apreensão daquilo que são de fato
(verdadeiramente) tais estados ônticos.
Um terceiro momento reforça a importância da tradição filosófica como
horizonte no qual a teorização da verdade se encontra imersa, não se devendo
excetuar nem mesmo aqueles que não sustentaram teses essenciais, mas que
ajudaram, ainda que de forma modesta, a forjar a corrente contínua de uma
história de idéias, opiniões e teses que contribuem para a investigação da verdade.
71
A oposição entre o que é mais conhecido para nós e o que é mais conhecido por natureza
encontra-se nas seguintes passagens dos seguintes tratados: Primeiros analíticos, Livro II, cap. 23, 68
b 35-37; Segundo analíticos, cap. 2, 71 b 33-72 a 5; cap. 3, 72 b 25-32; Tópicos, Livro I, cap. 12, 105 a 17;
Livro V, cap. 3, 131 a 12-17; Livro VIII, cap. 1, 156 a 5-6; sica, Livro I, cap. 1, 184 a 16-21; cap. 5, 188
b 31-33, 189 a 4-5; Da alma, Livro II, cap. 2, 413 a 12; Metafísica, Livro VII, cap. 3, 1029 b 3-12; Ética a
Nicômaco, Livro I, cap. 4, 1095 b 2-4.
191
A importância dada por Aristóteles a esta tradição filosófica que o antecedeu é
evidente ao longo de quase todos os seus escritos. Mas é nos Tópicos onde o
estagirita opera uma determinação sistemática e explicita a importância
metodológica desta tradição ao enfatizar que as premissas discutidas nos diálogos
são justamente as opiniões geralmente aceitas ( ⌧), quer
estas opiniões sejam oriundas do senso comum, dos peritos em alguma técnica ou
ciência específica, quer sejam as teses e problemas colocados pelos filósofos, seja
pela maioria, por alguns ou mesmo por um único filósofo. Dada a função da
dialética como método mais geral para se testar as condições necessárias (ainda
que não suficientes) de verdade das asseverações que se podem realizar nas
discussões, percebe-se a importância de se ter presente uma determinada tradição
investigativa para que o método dialógico tenha uma bom término
() para os problemas () levantados e
percorridos () nas discussões
72
.
Em um quarto momento do capítulo em questão, o filósofo macedônio assinala
a filosofia em geral como a ciência da verdade. Aqui é importante a correta
compreensão do genitivo ‘da’. Este genitivo possui o duplo sentido de genitivo
objetivo e subjetivo, ou seja, por um lado, a filosofia em geral constitui a ciência da
verdade porque deve ser a ciência verdadeira por excelência, pois por princípio
72
Para uma análise da importância das tradições de investigação e como elas são decisivas na
constituição da obra aristotélica, veja-se, de Pierre Aubenque, “Sur la notion aristotélicienne
d’aporie”; de Suzanne Mansion, Le role de l’exposé et de la critique des philosophies antérieures
chez Aristote”; de G. E. L. Owen Tithenai ta phainomena”, in Aristote et les problème de méthode; (org.)
Suzanne mansion. Louvain: Institut Supérieur de Philosophie, 1980, respectivamente, pp. 3-19; 35-
56; 83-103.
192
uma filosofia falsa não preenche mais o requisito de ser um saber mais
fundamental e necessário, no qual se estabelecem os princípios e critérios de
verdade para todo saber possível acerca de algum âmbito da realidade ou mesmo
da realidade em geral. De outro lado, a filosofia em geral é ciência da verdade no
sentido de que sua meta é a verdade enquanto aquilo que é de fato e a
determinação de como isto é
73
.
O sentido geral do termo verdade aqui, como no restante do capítulo, consiste
em indicar aquilo que é, sobretudo aquilo que é sempre e necessariamente, pois, a
partir disso, aquilo que é apenas atual ou possível (e, portanto, o que é relativo)
pode ser determinado em seu ser próprio, em sua verdade específica. Este constitui
o último momento do capítulo em questão, a saber: a determinação do sentido de
verdade que Aristóteles tem em vista ao dizer que a filosofia é a ciência da
verdade. Os filósofos teóricos, segundo o mestre de Alexandre, têm por meta
determinar a verdade, enquanto os filósofos práticos ou morais têm em vista não
propriamente a verdade, mas aquilo que é factível ( ☯) através
do que é relativo e presente, malgrado tais filósofos também tenham que investigar
em certo sentido a verdade (o ser) destes estados ônticos relativos e presentes que
dizem respeito à ação. Assim, a ciência ou filosofia prática está subordinada à
ciência ou filosofia teórica na medida em que a filosofia prática tem de ser em
alguma medida teórica e, assim, conhecer a verdade acerca daquilo que teoriza
73
Um bom exemplo do uso de um genitivo simultaneamente objetivo e subjetivo por Aristóteles,
encontra-se em Metafísica, Livro I, cap. 3, 983 a 5-11, onde a filosofia primeira é considerada a
ciência do divino, tanto no sentido daquele saber que é possuído sobretudo pela divindade, quanto
no sentido de ser a mais divina das formas de saber acessível ao seres humanos.
193
com respeito à ação, mas esta verdade, enquanto visa o que é presente, relativo e
possível, deve se subordinar à verdade que é eterna, por si mesma (“absoluta”) e
necessária
74
.
A subordinação entre tipos de verdade, correspondente aos tipos de ser de cada
estado ôntico, é explicitada através do esquema de gênero e espécie, onde a causa
de ser das espécies é determinada pela propriedade que é partilhada
genericamente (de modo sinônimo) por todas as espécies incluídas num
determinado gênero. A verdade dos entes ou estados ônticos incluídos nas
espécies está subordinada à verdade mais geral que perpassa todas as espécies
dentro de um gênero. Deste modo, se se considera a forma específica de um estado
ôntico particular dado na experiência como sua causa e, determinada esta,
determina-se o seu modo de ser-verdadeiro, então, dado que a forma específica se
subordina à forma genérica, as determinações genéricas são os princípios mais
verdadeiros que desempenham a função de causas últimas da verdade específica
74
Sobre esta subordinação, veja-se Ética a Nicômaco, Livro VI, caps. 1, 7 e 12. Para uma discussão
desta subordinação à luz de outros tratados do estagirita, veja-se, de C. D. C. Reeve, Practices of
reason. Oxford: Clarendon, 1992, §§ 8-9, 12. Veja-se também, de Sarah Broadie, Ethics with Aristotle.
Nova Iorque/Londres: Oxford UP, 1991, cap. 4. Conforme Aristóteles, a racionalidade prática
() está subordinada à racionalidade teórica ou apreensão () porque
enquanto esta se volta primordialmente aos entes eternos e necessários, a primeira se volta
exclusivamente para os entes temporais/temporários e somente possíveis (futuros e contingentes).
No entanto, deve-se marcar que a phronesis é uma faculdade teórica tanto quanto o nous. Além
disso, o nous pode também atuar em conjunto com a phronesis na percepção dos meios e fins da ação
e na constituição da inferência prática. Sobre este último ponto, veja-se, de Richard Sorabji,
“Aristotle on the role of intellect in virtue”, in Essays on Aristotle’s ethics. (ed.) Amélie O. Rorty.
Berkeley/Los Angeles/Londres: California UP, 1984, pp. 200-221. O termo grego
 ☯’, ou seja, “obra/feito/realização prática” denota tanto os resultados da ação
(⌧), quanto da produção (). Sobre este último ponto é importante
lembrar que a técnica ou arte possui um papel na vida ética, mas a faculdade de realização técnica
está subordinada à inteligência prática, de modo análogo a como esta está subordinada à
inteligência.
194
dos estados ônticos particulares. O exemplo do fogo torna clara esta analogia, pois
todos os estados ônticos particulares, e as espécies destes estados ônticos que
fazem parte do gênero de todos os estados ônticos quentes, têm como princípio de
seu ser e, assim, de sua verdade específica, o fogo, enquanto aquilo que é quente
em maior medida. Assim, se é verdade que o corpo humano possui calor, é ainda
mais verdadeiro que este calor se deve ao fogo que caracteriza todas as coisas que
são ou podem ser quentes. O filósofo do Liceu estabelece deste modo o caráter
geral da teorização ou teoria da verdade enquanto teoria ou teorização do modo de
ser próprio a cada e toda coisa, mas de tal maneira que deve haver uma hierarquia
ontológica e, por conseguinte, alética entre os modos do ser-verdadeiro.
Dado que a metafísica ou filosofia primeira tem por objeto os primeiros
princípios e causas de todas os estados ônticos possíveis, então a metafísica é,
necessariamente e por antonomásia, a ciência da verdade por excelência. A teoria
ou teorização da verdade se confunde assim com aquela parte da filosofia que é
mais fundamental, ou seja, não há para Aristóteles uma teoria da verdade, em
sentido contemporâneo, separada da própria investigação filosófica do ser
enquanto ser, mas a determinação dos princípios e causas primários de tudo que
em algum sentido é, constitui a própria teorização da verdade no sentido do que é
primariamente verdadeiro. Há, certamente, uma discussão antiga sobre o que
propriamente Aristóteles considera ser a filosofia primeira, se uma ontologia geral
ou uma teologia natural, mas independente da resposta a esta questão
(provavelmente irresolúvel unicamente através dos textos), pode-se dizer, a partir
195
destes esclarecimentos sumários, que a metafísica é também uma alethologia, ou
seja, uma ciência do que é verdadeiro em grau primário e, assim, do que é causa
para todas as possíveis verdades que se seguem deste tipo de entidade mais
verdadeira, considerada como princípio primário de tudo que é. Isto se torna mais
claro e evidente ao se lembrar a frase final do capítulo em questão, a saber: “de tal
modo que enquanto cada <estado ôntico> possui ser, deste modo também possui
verdade.” O que significa, desde o que se assinalou sumariamente: o modo de ser de
cada estado ôntico é o sentido de seu ser-verdadeiro.
Por contraste, ao filósofo deve caber também determinar o sentido do que não
é, através da determinação daquilo que é, ou seja, ao ser a ciência da verdade a
filosofia deve dizer (direta ou indiretamente) não apenas o que é verdadeiro no
sentido do que é necessária, efetiva ou possivelmente real, mas dizer o que não é e
não pode ser, determinando assim o que é falso. Isto não significa que a filosofia
seja também inversamente a ciência da falsidade, mas que deve estabelecer aquilo
que é falso ao determinar o que é verdadeiramente real na forma do possível, do
efetivo e, sobretudo, do necessário. Isto é indicado pela última passagem do
capítulo analisado, pois à filosofia cabe estabelecer os princípios e causas dos entes
necessários e eternos desde os quais os entes relativos e presentes recebem seu ser
específico. O conhecimento da verdade é realizado através do conhecimento das
causas e princípios, mas sobretudo das causas e princípios primários de todos os
estados ônticos possíveis e assim, por contraste, dos estados ônticos que são
impossíveis ou necessariamente falsos.
196
Têm-se assim alguns dos traços mais gerais e fundamentais que caracterizam as
teorizações aristotélicas sobre a verdade e a falsidade. Em primeiro lugar, que a
tarefa de teorizar a verdade é inevitável dada sua recorrência na vida cotidiana,
mas que esta tarefa é difícil porque pressupõe a compreensão de uma tradição de
filósofos que falaram sobre a verdade no sentido do que é real, bem como exige
uma investigação minuciosa dos modos de ser dos estados ônticos possíveis e
necessários. Em segundo lugar, que a filosofia teórica é a ciência da verdade e,
sobretudo, a filosofia primeira. Em terceiro lugar, que a teorização da verdade
pode ser realizada tendo em vista que esta teorização pressupõe e ou implica a
teorização daquilo que é, na medida em que é esta determinação que é verdadeira
porque diz o que verdadeiramente pode acontecer, acontece ou necessariamente
acontece de fato e o que não acontece e não pode acontecer de fato. Em último
lugar e a partir dos pontos anteriores, a teorização da verdade pressupõe e ou
implica a teorização dos princípios e causas primárias de tudo que é, na medida
em que estes princípios e causas são as verdades primárias a partir das quais todos
os estados ônticos do mundo em geral recebem ou podem receber seu valor de
verdade e o sentido deste valor de verdade.
A partir disso, percebe-se que a teoria da verdade aristotélica se confunde com
sua própria concepção de filosofia e com as teses dos textos que compõem o corpus
aristotelicum. A investigação da natureza da verdade é, assim, uma parte da
determinação dos princípios primários dos âmbitos da realidade e dos princípios
primários da realidade como um todo, e, por conseguinte, se confunde com o
197
sentido em geral da investigação filosófica realizada pelo filósofo macedônio. Por
isso, para extrair a teoria aristotélica da verdade, é preciso percorrer seus textos à
procura de como o filósofo macedônio responde aos problemas fundamentais
acerca da verdade antes expostos.
CAPÍTULO I
OS PORTADORES, OS SENTIDOS E A DEFINIÇÃO
DE VERDADE E FALSIDADE
198
SEGUNDO ARISTÓTELES
§ 1- Os portadores e os sentidos de verdade segundo Aristóteles
Dentro do Livro V da Metafísica Aristóteles realiza uma elucidação semântica
acerca dos vários sentidos dos conceitos fundamentais para seu pensamento. É um
traço característico das teorizações do estagirita levar a sério a polissemia dos
conceitos fundamentais e, na esteira de Platão, realizar a análise destes conceitos
como condição prévia de clareza para as teorizações posteriores. Assim, por
exemplo, no início do Livro II do tratado Da alma, procura elucidar os vários
sentidos do conceito de alma. Também na Física, Livro II, capítulo 1, analisa os
diversos sentidos do conceito de natureza
75
. Uma característica essencial destas
elucidações e de outras é a tentativa de encontrar, dentre os sentidos dos conceitos,
um sentido primário a partir do qual os demais sentidos são derivados (definíveis)
e inteligíveis. Na elucidação dos conceitos mais universais e primários em relação a
todos os outros (a saber: os conceitos de ente e uno), realizada no início do Livro IV
da Metafísica, Aristóteles cunha a expressão clássica para este sentido primário
dentre os vários sentidos de um conceito, a expressão grega
  ’, ou seja, “o que é dito em relação a
um”, o que quer dizer, em relação a um sentido primário, expressão que tem sido
traduzida filosoficamente por ‘sentido focal’ ou ‘significação focal’ (focal meaning).
75
Uma análise muito semelhante do mesmo conceito é realizada no capítulo 4 do Livro V da
Metafísica.
199
Também a elucidação dos conceitos de verdade e falsidade é realizada pelo
estagirita conforme este modo de investigação semântica.
No Livro V da Metafísica não se encontra um capítulo dedicado aos vários
sentidos de verdade. Encontra-se neste Livro, porém, uma elucidação dos vários
sentidos do conceito de ser-falso. É o capítulo 29. Dentro deste capítulo, encontra-
se a determinação dos diversos sentidos e de que entidades e tipos de entidades
podem ser falsas. Mas, dado que os conceitos de verdade e falsidade são conceitos
correlativos, ou seja, são conceitos interdefinidos, é também que se encontra a
determinação aristotélica de que entidades podem ser verdadeiras
76
. Assim, a
análise deste capítulo deve ser o primeiro passo para a reconstrução da teoria
aristotélica da verdade, visto que, a partir dele, pode-se esclarecer que entidades
podem ser portadoras de um valor de verdade e quais os sentidos gerais destes
valores de verdade. O capítulo diz:
“O falso é dito de diversos modos, tal como um estado ôntico
[] falso; e isto, de um lado, por não estar-conjunto
[ ] ou ser impossível estar composto
[  ] (tal
como quando se diz ‘ser o diâmetro comensurável’ ou que ‘tu estás
sentado’: pois destes, um é sempre falso, o outro às vezes, de tal
modo que estes <estados ônticos> não são), de outro lado, porém,
aqueles <estados ônticos> que de fato o, e que por natureza
efetivamente aparecem [] ou como não são ou
aquilo que não são (como por exemplo, a pintura em luz e sombra
e as imagens [] nos sonhos, pois estes <estados
ônticos> são de fato algo, mas não são provenientes daquilo que
produz a imagem); assim, de fato, os estados ônticos falsos são
ditos deste modo: ou por eles mesmos não serem ou porque a
partir deles há imagem [] do que não é.
76
Esta estratégia de investigação é operada por Franz Brentano em seu clássico De la diversité des
acceptions de l’être d’après Aristote; trad. Pascal David. Paris: Vrin, 1992, cap. 3.
200
“De outro lado, enunciado/discurso [] falso é
aquele dos <estados ônticos> que não são, enquanto é falso; por
isso todo enunciado é falso <se dito> de outro <estado ôntico> ou
daquilo que é verdadeiro, como por exemplo, o <enunciado> do
círculo é falso <quando dito> do triângulo. Efetivamente o
enunciado de cada <estado ôntico> é, de um lado enquanto é
uno/um [☺ ], aquele do ser-essencial <de cada
estado ôntico> [☺    ], de
outro lado, é múltiplo, posto que de certo modo é idêntico o
<estado ôntico> mesmo e o mesmo <estado ôntico> com <uma>
afecção, como Sócrates e Sócrates músico (pois o discurso falso é
simplesmente de coisa nenhuma); por isso Antístenes sustentou de
maneira simplista que nada de válido é dito senão pelo enunciado
próprio, um único <enunciado> de um único <estado ôntico>, a
partir do que se seguiria não haver contradição
[], e mesmo quase nunca haver falsidade.
Há, porém, como dizer cada <estado ôntico> não apenas pelo
enunciado dele mesmo, mas também pelo de outro, de um lado, de
modo falso absolutamente, de outro, porém, há como <dizê-lo pelo
enunciado de outro> de modo verdadeiro, como quando o número
oito <é dito um número> duplo pelo enunciado do dois.
“Um homem é dito falso/mentiroso [] quando
sem escrúpulos [] e intencionalmente <assume
algum> dentre estes enunciados, não por outra coisa, mas pelo fato
mesmo <de serem falsos>, fazendo com que outros <acreditem>
em um destes enunciados, assim como dizemos que os estados
ônticos falsos produzem uma falsa imagem. Por isso é enganoso o
discurso <sustentado> no pias <menor>, conforme o qual o
mesmo <homem> é verdadeiro e falso. Considera falso aquele que
pode enganar (e este é o que sabe e o prudente); além disso,
<considera> melhor <aquele que é> voluntariamente maldoso. E
isto é a falsa conclusão a que chega através de <uma> indução
pois <afirma> que aquele que manca voluntariamente <é melhor>
do que o que o faz contra a vontade chamando mancar aqui ao
imitar <o mancar>; de modo que aquele que manca
voluntariamente é sem dúvida pior, como no caso dos costumes.”
77
77
Metafísica, Livro V, capítulo 29, 1024 b 17-1025 a 13:
   ☯   ☺
      
     
      
       
      ☯ 
    ☯  ☯ 
        
☯  ☺    
  ☯     
       
201
Através deste capítulo, pode-se obter uma visão sumária acerca dos portadores
e dos sentidos de verdade e falsidade segundo Aristóteles. Dividiu-se a passagem
em três partes, conforme os três horizontes de sentido do conceito de ser-falso
listados e analisados, horizontes que se podem chamar respectivamente de
ontológico/noético, lógico-semântico e ético. Não interessa aqui a análise do
terceiro horizonte de sentido, pensado claramente como subsidiário e dependente
       
      
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☺    
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   
☯       
   ☺   
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 
202
dos dois primeiros, visto que um homem falso ou mentiroso é aquele que,
intencionalmente, escolhe os enunciados que sabe serem falsos para convencer os
demais de que são verdadeiros e, por isso, é explicitamente comparado aos objetos
que produzem uma falsa imagem
78
. Por conta deste caráter derivado, será
suficiente analisar os sentidos ontológico/noético e lógico-semântico.
Percebe-se que, implicitamente, a análise semântica do conceito de ser-falso
está marcada pela assunção de que este conceito só pode ser compreendido e
aplicado corretamente através de uma compreensão do ser-verdadeiro. É preciso
notar, porém, que na passagem em questão não existe a indicação explícita de um
sentido focal do ser-falso ou do ser-verdadeiro, mas é possível extrair desta e de
outras passagens conceitualmente correlatas tal sentido focal, desde o qual é
possível compreender os vários sentidos de ser-verdadeiro e ser-falso.
O primeiro horizonte de sentido do ser-falso (e implicitamente do ser-
verdadeiro) se aplica aos estados ônticos em geral ( ). O
sentido deste termo, porém, o deve ser restringido à acepção comum de um
indivíduo atomizado, ou seja, uma coisa absolutamente individual, nem com a
existência efetiva (factual) deste indivíduo ou de um complexo de relações entre
itens. Bem antes, indica-se com este termo não apenas a um indivíduo singular,
78
Para um exame desta passagem e do sentido ético do falso e da mentira em Aristóteles, veja-se,
de Jane S. Zembaty, “Arsitotle on Lying”, in Journal of the History of Philosophy, vol. 31, nº 1, 1993, pp.
7-29, esp. 21-22. Os argumentos do Hípias menor referidos por Aristóteles se encontram entre 365-
375. É importante perceber que o mentiroso não faz uma verdadeira asseveração, mas uma
asseveração aparente, ou seja, que a aparente asseveração feita pelo mentiroso não possui uma
pretensão de verdade e muito menos uma pretensão de falsidade, mas tão-somente uma intenção
de enganar, que ele está consciente de que seu enunciado é falso e que, por isso, ele sabe qual
enunciado é verdadeiro e que pode constituir o conteúdo autêntico de uma asseveração.
203
mas também, e no mais das vezes, um estado de coisas complexo composto de
vários elementos ou itens individuais, possíveis, reais, necessários e mesmo
impossíveis. Usa-se nesta investigação o conceito de ‘estado ôntico’ como
correspondente aos termos gregos   e  ☯’. O
sentido geral de  indica tudo aquilo o apenas que existiu
ou aconteceu, existe ou acontece e existirá ou acontecerá de fato, mas também tudo
que é pensável e ou enunciável, inclusive o que não é em qualquer dos sentidos de
não ser possíveis na linguagem, quer se trate de um indivíduo simples, quer se
trate de um estado de coisas complexo constituído de vários itens correlacionados
na realidade factual, na linguagem e ou no pensamento. O termo possui, portanto,
uma amplitude de sentido e de extensão similar àquela do termo grego
 ☯’, pois tomado simpliciter este termo pode indicar tanto um item
isolado, quanto uma configuração estrutural complexa de itens correlacionados
proposicional e predicativamente, quer esta configuração ocorra ou não, pois
mesmo aquilo que não acontece ou nunca pode acontecer é um determinado
estado ôntico (possível ou impossível) sobre o qual se pode falar e mesmo pensar,
ou seja, mesmo o que não é (no sentido de não acontecer ou não poder acontecer
de fato), é algo dizível e pensável (tal como uma diagonal comensurável). Por
conta desta similaridade em extensão e intensão entre estes termos, escolheu-se a
expressão ‘estado ôntico’ para traduzir o sentido mais geral de ambos
79
. Assim,
79
Esta compreensão é tributária dos apontamentos de Lucas Angioni em seu Ontologia e predicação
em Aristóteles, col. textos didáticos. Campinas: IFCH, 2000, pp. 24-25, 99. Para uma análise sucinta
dos sentidos do termo grego em questão veja-se, de Pierre Hadot, Sur divers sens du mot pragma
204
Aristóteles indica o sentido ontológico e ou noético do ser-falso e do ser-verdadeiro
aplicável aos estados ônticos em geral como um sentido válido destes conceitos e,
como ver-se-á, como o sentido focal desde o qual pode-se compreender e aplicar
corretamente os demais sentidos do ser-verdadeiro e do ser-falso.
Na análise aristotélica do primeiro horizonte de sentido do ser-falso, percebe-se
que este se subdivide em dois âmbitos de sentido em que algum estado ôntico
pode ser falso. O primeiro destes âmbitos de sentido indica simplesmente o não-ser
na acepção de não existir de fato ou não poder existir nunca
80
, o segundo indica o
ser-aparente ou não-ser-real na acepção do ser ilusório. O primeiro âmbito ou sub-
divisão pode ser considerado propriamente ontológico, o segundo, por sua vez,
indica uma passagem do puramente ontológico para o âmbito noético do ser-falso.
O âmbito de sentido propriamente ontológico se subdivide, de um lado, entre
aquilo que o pode existir nunca enquanto realidade factual e, de outro lado,
aquilo que o existe em algum dado momento. Aristóteles “define” este sentido
do ser-falso dizendo: “e isto, de um lado, por não estar-conjunto
dans la tradition philosophique grecque”, in Concepts et catégories dans la pensée antique, (org.) Pierre
Aubenque. Paris: Vrin, 1980, pp. 309-319. Aqui, o termo estado ôntico’, como sinônimo do termo
‘estado de coisas’ (‘state of affairs’), é utilizado para indicar e estar mais próximo ao sentido
ontológico geral que o termo ‘ ’ possui em Aristóteles como sinônimo do
termo grego  ☯’. É interessante lembrar que Aristóteles alude em várias passagens à
possibilidade de se dizer com verdade: “o não ente (lit.: o que não é) é não ente.”, indicando assim
uma identidade lógica e ontológica mesmo para o que não é (não existe, não acontece), mas sobre
isto ainda se falará adiante.
80
Pace Charles Kahn. O ser-verdadeiro e o ser-falso aqui justamente desempenham o papel dos
conceitos de existência e inexistência, tal como é assinalado por Charles Kahn como o uso mais
difundido do conceito de ser e de não-ser na Grécia clássica. Cf. “Sobre a teoria do verbo ‘ser’”,
trad.: Fernando Rodrigues, pp. 33-62, esp. 39-40, 43-52; “Por que a existência não emerge como um
conceito distinto na filosofia grega?”, trad.: Irley F. Franco, pp. 91-106, esp. 97 ss; “Retrospectiva do
verbo ser e do conceito de ser”, trad.: Irley F. Franco, pp. 155-195, esp.162-165, 168-170, 175, 179,
182-183, 187-188; in Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser; (org.) Maura Iglésias. Rio de Janeiro:
PUCRJ, 1997.
205
( ) ou ser impossível estar-composto
(  )”
81
. Assim, se um
estado ôntico falso é aquele em que os elementos que constituem sua possível
estrutura, ou (i) não estão presentemente correlacionados de modo a se poder
asseverar sua conjunção, ou (ii) tais elementos não podem nunca estar compostos
no mundo factual, com o que toda asseveração de sua composição é falsa.
No primeiro caso, um estado ôntico é falso porque não ocorre efetivamente,
nada impedindo, porém, que possa ocorrer, mas apenas que o ocorre
presentemente, de modo que as asseverações acerca destes estados ônticos podem
ser verdadeiras ou falsas conforme o momento em que são proferidas se referindo
a estes estados ônticos. No segundo caso, porém, o estado ôntico nunca pode
ocorrer, ou seja, é um estado ôntico impossível e assim puramente lingüístico e
conceitual
82
. Tais estados ônticos impossíveis são sempre falsos, na medida em
que não podem ocorrer nunca no mundo factual e, assim, qualquer asseveração de
sua existência é sempre falsa, sendo por isso sempre verdadeira a asseveração que
81
Os conceitos de estar-conjunto e ser composto não se encontram apenas neste trecho, mas
também no capítulo 10 do Livro IX da Metafísica, (mais especificamente a partir de 1051 b 2 ss),
dedicado justamente à elucidação do ser no sentido do ser-verdadeiro e do não-ser no sentido do
ser-falso, capítulo do qual se falará mais adiante.
82
Em Metafísica, Livro IX, cap. 6, 1048 b 10-17, Aristóteles indica que conceitos como o vazio e o
indefinido são objetos puramente potenciais e nunca atuais em sentido estrito, pois são atualizados
unicamente no pensamento ou conhecimento (). O mesmo pode se aplicar aos estados
ônticos tais como a diagonal comensurável, o círculo quadrado, o fogo frio, e todos os objetos
puramente lingüísticos e conceituais que são contraditórios. Veja-se também Da interpretação, cap.
13, 23 a 25-26, onde, dentre os entes possíveis, colocam-se aqueles sempre em potência e nunca em
ato, ou seja, os entes que não podem existir de fato. Isto indica o caráter modal que perpassa
quase todas as teorizações dos conceitos de verdade e falsidade realizadas pelo estagirita.
206
nega sua existência ou afirma sua não existência
83
. Os exemplos do filósofo
macedônio tornam claros tais sentidos de ser-falso, pois é impossível que o
diâmetro de qualquer quadrado possa ser comensurável com seus lados, ou seja,
nunca pode ser o caso que exista um diâmetro que seja comensurável com os lados
do quadrado do qual é o diâmetro. No entanto, além deste sentido do que nunca
pode acontecer, existir ou simplesmente ser, aqueles estados ônticos que são,
ora falsos (não existem, não acontecem, não são), ora verdadeiros (existem,
acontecem, são), estados ônticos tais como o estar sentado, sobre o qual é possível
enunciar de alguém, ora com verdade, ora de modo falso.
O sentido noético do ser-falso também se refere aos estados ônticos em geral, e
é equivalente ao ser-aparente na acepção do ser ilusório, do não ser realmente o
que parece ser. Neste âmbito de sentido Aristóteles faz uma sutil relação entre o
aspecto ontológico do ser-falso e do ser-verdadeiro e o aspecto noético ou
epistêmico destes conceitos. Estados ônticos tais como as pinturas em três
dimensões e as imagens dos sonhos são os exemplos escolhidos pelo mestre do
Liceu para ilustrar este âmbito de sentido do ser-falso. Tais estados ônticos são
83
Esta idéia é exposta do seguinte modo por Aristóteles na sua análise semântica dos sentidos de
impotência, em Metafísica, Livro V, cap. 12, 1019 b 23-27: “é impossível aquilo cujo contrário é
necessariamente verdadeiro (por exemplo, que a diagonal seja da mesma medida que um lado do
quadrado é impossível, porque isto é falso, e seu contrário não é verdadeiro, mas
necessariamente <verdadeiro>). Assim, que <a diagonal> seja de mesma medida, não é somente
falso, mas necessariamente falso)”./
     ⌧ 
    
     
        
     ☯ 
      ⌧ 
 . No capítulo sobre os produtores e a produção de verdade estes objetos
serão analisados em mais detalhe, bem como as asseverações que a eles se referem.
207
efetivamente algo, mas, ou (a) não são provenientes daquilo que representam ou,
(b) são distorções daquilo de que efetivamente provêm, pois, no caso das pinturas,
estas estão efetivamente em uma superfície bidimensional, mas produzem a ilusão
de objetos em três dimensões, além de poderem figurar seres e situações
puramente imaginários e ficcionais. No caso dos sonhos, as imagens que neles
aparecem são como que decalques dos objetos percebidos na vigília e, muitas
vezes, figuram objetos e situações irreais, apesar de que, enquanto se sonha, pensa-
se que tais imagens são reais
84
.
Aristóteles indica com estes estados ônticos meramente aparentes a oposição
entre o ser de tal ou tal modo, enquanto ser-verdadeiro na acepção de ser
autêntico, e o aquilo que parece ser tal e tal, mas na realidade não é, ou seja, indica
a oposição entre ser algo e parecer ser algo. Tal oposição havia sido analisada
por Platão no Teeteto e no Sofista, quando da refutação da tese de origem
parmenídica de que tudo que é algo para alguém deve ser necessariamente
verdadeiro (ser exatamente como aparece a alguém), tese usada pelos sofistas para
justificar a idéia de que não existe erro ou engano, e que, assim, dado que tudo que
aparece é efetivamente tal como aparece, então tudo depende unicamente da
persuasão discursiva, não havendo realmente outro critério de verdade para além
das convenções comuns existentes ou instituídas em comum, uma vez que não se
pode dizer que um discurso é falso, dado que o falso, na esteira dos eleatas, era
84
Para uma análise das imagens dos sonhos em analogia com as imagens distorcidas dos espelhos,
bem como sobre o estatuto noético e ontológico destas imagens veja-se os capítulos 2 e 3 do tratado
Dos sonhos.
208
identificado ao não-ser simpliciter. Aristóteles segue aqui e em outras passagens a
crítica de Platão aos sofistas. O alvo principal destas críticas era a tese de
Protágoras (que se valia da tese parmenídica para se justificar), segundo a qual
tudo que é percebido (tudo que aparece) é verdadeiro. O centro da crítica consiste
em mostrar que aparências que distorcem a realidade daquilo de que são
manifestações sensíveis ou simplesmente são imagens de coisas que não são de
fato, mas simples composições arbitrárias de itens de estados ônticos que são
efetivamente. Aristóteles divide as aparências ou fenômenos falsos entre aqueles
que “(a)parecem ou como não são ou aquilo que não são”. Divide-se, portanto, as
causas da falsidade nos fenômenos segundo a qualidade sensível apresentada
(“como não o”) e segundo o modo de ser essencial de algo (“aquilo que não
são”). Note-se que o verbo  possui o duplo sentido de
“aparecer”, enquanto manifestação perceptiva pura e simples, e o sentido de
“parecer”, enquanto uma qualidade daquilo que preenche esta manifestação
sensível. É justamente esta dualidade que é explicitada pela diferenciação entre o
“como não o” (parecer) e o “aquilo que não são” (aparecer). Tomando os dois
exemplos dados pelo estagirita, em ambos pode ocorrer tanto o aparecer como não
são, quanto o aquilo que não são. As imagens pintadas (a)parecem como não o,
uma vez que tais imagens parecem ter três dimensões, mas estão efetivamente em
uma superfície bidimensional. Dentre estas imagens, porém, pode se dar o caso de
que não sejam imagens de pessoas, objetos e situações factuais identificáveis no
mundo perceptível, tal como o caso das pinturas representando personagens
209
mitológicas, como deuses e heróis. Estas imagens aparecem aquilo que não são. O
mesmo vale para as imagens dos sonhos, as coisas de que são imagens podem
tanto não aparecer como são, quanto ser imagens do que não é. E Aristóteles
acrescenta a causa destes dois modos de aparência falsa logo após os exemplos:
“pois com efeito estes <estados ônticos> são algo, mas não são provenientes
daquilo que produz a imagem”, ou seja, o estado ôntico de que são imagens não
está presente à percepção destas imagens ou não pode estar presente, e é por isso
que, embora sendo algo, não são imagens verdadeiras, posto que uma imagem
verdadeira deve ser aquela que provém efetivamente daquele estado ôntico que a
produz na percepção e que representa corretamente o modo de ser do estado
ôntico de que é imagem.
Neste âmbito noético de sentido do ser-falso e do ser-verdadeiro, percebe-se a
importância das noções de fenômeno ou aparência (),
imagem () e imaginação (), noções semântica e
conceitualmente aparentadas. Não é possível (nem necessário) estender aqui a
análise destes conceitos e da teoria do erro perceptivo e do erro conceitual.
Bastarão algumas indicações e esclarecimentos sumários para mostrar o estatuto ao
mesmo tempo (mas não sob o mesmo aspecto) ontológico e noético dos estados
ônticos que são referidos pelo estagirita.
A imaginação é uma faculdade que, segundo Aristóteles, possui múltiplas
funções, mas três são as principais: uma função cognitiva, uma função prática e
210
uma função poética
85
. Na primeira e na segunda funções, Aristóteles considera
que há atos imaginativos que são portadores de um valor de verdade, sobretudo
nos papeis cognitivos que desempenham em concomitância com a percepção
consciente e presente
86
. No entanto, Aristóteles é categórico quanto ao fato de que
a maior parte das imagens que são conteúdos dos atos imaginativos é falsa
87
.
85
O contexto onde mais diretamente Aristóteles discute as identificações e as diferenças da
imaginação com o discurso, com a percepção e com o pensamento, bem como atribui a
possibilidade de atos imaginativos como portadores de valores de verdade, é o capítulo 3 do Livro
III do Da alma. Sobre a função cognitiva da imaginação, veja-se, de Dorothea Frede, “The cognitive
role of phantasia in Aristotle”, in Essays in Aristotle’s De anima; (eds.) Martha C. Nussbaum &
Amélie O. Rorty. Oxford: Clarendon, 1996 (1992), pp. 279-295. Neste artigo a autora mostra a
dificuldade em se encontrar uma única definição para a imaginação cognitiva, dadas as várias
funções que exerce nos processos cognitivos. Neste mesmo volume, sobre a relação da imaginação
com as noções cognatas de imagens e aparência, veja-se, de Malcolm Schofield, “Aristotle on
imagination”, pp. 249-277. Sobre a função prática da imaginação, veja-se, de Monique Canto-
Sperber, Le rôle de l’imagination dans la philosophie aristotélicienne de l’action”, in Corps et âme,
sur le De anima d’Aristote; (ed.) Gilbert R. Dherbey & Cristina Viano. Paris: Vrin, 1996, pp. 441-462.
Neste mesmo volume encontra-se o belo texto de Jean Frère sobre a função poética da imaginação,
“Fonction représentative et représentation. Phantasia et Phantasma selon Aristote”, pp. 331-348.
Ainda sobre a função prática da imaginação, é obrigatória a menção do extenso ensaio de Martha
Nussbaum “The role of phantasia in Aristotle’s explanation of action”, in Aristotle’s De motu
animalium. Princeton: Princeton UP, 1985 (1978), pp. 221-267, esp. 241-252. Este ensaio, ainda que
direcionado ao papel prático da imaginação, analisa de modo geral as interfácies desta faculdade
com a percepção, com o pensamento e, no que tange à ação, com o desejo, especialmente no que é
dito neste tratado, o qual faz parte do repertório de passagens onde o estagirita expõe suas idéias
sobre o polêmico silogismo prático, no qual a imaginação também tem seu papel. Vale ainda
lembrar um texto um tanto negligenciado e de caráter mais especulativo, escrito por Cornelius
Castoriadis, intitulado “A descoberta da imaginação”, in Os destinos do totalitarismo e outros ensaios;
trad. Zilá Bernd & Élvio Funck. Porto Alegre: L&PM, 1985, pp. 67-100, onde o filósofo grego-francês
compara a concepção aristotélica da imaginação com a concepção kantiana, mostrando que
Aristóteles parece estar consciente da diferença entre uma imaginação reprodutiva e uma
imaginação produtiva, fazendo também um interessante paralelo entre o esquematismo kantiano e
propondo a existência de um esquematismo aristotélico.
86
Sobre a ligação entre a imaginação e o conceito de verdade, veja-se o breve mas preciso artigo de
Joyce Engmann, “Imagination and truth in Aristotle”, in Journal of the History of Philosophy, 14,
1976, pp. 259-265, onde se postula que as várias funções cognitivas em que a imaginação pode ser
portadora de verdade estão em correlação com os diferentes tipos de objetos perceptíveis e com os
diferentes tipos de pensamento, uma vez que a imaginação intermedeia percepção e pensamento,
sendo também postulada a imagem da percepção atual como critério de verdade das imaginações e
como sentido focal desde o qual os demais sentidos (funções) da imaginação são nomeados e
inteligíveis em sua unidade.
87
Da alma, Livro III, cap. 3, 428 a 12, onde Aristóteles compara as percepções dos próprios que são
sempre verdadeiras com o conteúdo dos atos imaginativos, que além de serem na maior parte das
211
No tratado Da alma, o estagirita indica a necessidade da oposição entre ser e
(a)parecer justamente ligada ao conceito de imaginação para se poder explicar
como ocorre o erro ou engano, explicação que não é possível através das teorias
apresentadas por seus antecessores no que diz respeito à natureza da percepção e
do conhecimento em geral
88
. Com efeito, o estagirita postula uma hierarquia entre
estados ou processos mentais que sempre (ou quase sempre) são verdadeiro e
aqueles que podem ser verdadeiros ou falsos. Entre os primeiros, encontram-se as
percepções dos sensíveis próprios, referentes aos objetos percebidos por cada um
dos cinco sentidos, as apreensões da unidade (indivisibilidade) dos objetos
(sobretudo de seu ser-essencial) e o conhecimento científico. No segundo grupo,
encontram-se os atos de pensamento que se referem aos estados ônticos
compostos, tais como as percepções das características trans-perceptivas, como
forma, posição, tamanho, número, assim como as percepções concomitantes
(acidentais) e os atos de pensamento (opinião, recordação, compreensão) que
compõem imagens e ou conceitos diretamente dependentes de imagens. Estes
estados ou processos mentais sujeitos ao verdadeiro e ao falso são justamente
aqueles aos quais vêm se agregar os atos imaginativos, de modo que se entende
vezes falsos, por vezes sequer possuem valor de verdade, ao contrário das percepções (próprias,
comuns ou acidentais), que sempre são portadoras de um valor de verdade.
88
Cf. Da alma, Livro III, cap. 3, 427 a 17-427 b 8. Para uma excelente análise deste trecho e do
problema do erro nele tematizado veja-se, de Victor Caston, “Aristotle and the problem of
intentionality”, in Philosophy and Phenomenological Research, vol. 58, 2, 1998, pp. 249-298, esp. 269-
279. Neste brilhante artigo, o autor mostra de forma convincente a complexidade e a necessidade da
noção de imagem () e imaginação () para a intencionalidade
dos atos mentais e para a explicação tanto do erro perceptivo, quanto do erro conceitual.
212
porque os atos imaginativos como tais são considerados falsos na maior parte das
vezes.
Há uma dualidade no ser destes processos mentais, pois, de um lado, são
estados ônticos do mundo, porquanto são ocorrências ou fatos, quer direta ou
indiretamente derivados dos entes reais, quer intencionalmente dirigidos para os
entes reais, além de serem também entidades referíveis pelo discurso, mas, de
outro lado, são entidades com um estatuto próprio, porquanto o processos
cognitivos e significantes com algum valor de verdade, na medida em que são
acompanhados pelo discurso e pela consciência
89
.
Mas são sobretudo as aparências ou fenômenos que estão na região limítrofe
entre o ontológico e o noético, na medida em que provêm dos estados ônticos
mundanos, mas são também resultado de uma atualização da capacidade
perceptiva, atualização que internaliza a forma dos estados ônticos percebidos e a
torna a matéria sobre a qual os demais processos mentais vêm se aplicar, e, dentre
os processos mentais, mais diretamente os atos imaginativos que tomam estas
formas como imagens e aparências que podem estar presentes mesmo na ausência
do estado ôntico de que provêm, tanto nas imaginações voluntárias que
acompanham e servem de matéria para os atos de apreensão, quanto nas
imaginações involuntárias, com é o caso dos sonhos.
89
Sobre esta presença do elemento discursivo no conjunto dos processos mentais (sobretudo nos
cognitivos), tanto quanto acerca da hierarquia entre os tipos de processos mentais, veja-se, de
Barbara Cassin, Aristóteles e o lógos; trad. Luiz P. Rouanet. São Paulo: Loyola, 1999, 2ª parte.
213
Também na Metafísica, quando Aristóteles enfrenta explicitamente a tradição
anterior, e sobretudo o relativismo sensualista de Protágoras, a imaginação vem
representar o modo pelo qual o erro entra nos processos mentais:
“E acerca da verdade, <é preciso sustentar> que nem todo aparecer
[ ] é verdadeiro; primeiramente
porque se nenhuma das percepções dos objetos próprios é falsa, no
entanto a imaginação [☺ ] não é idêntica à
percepção”
90
.
Percebe-se com estas indicações sucintas que o uso dos termos ‘aparecer’ e
‘imagem’, no contexto principal em análise, indica implicitamente a imaginação
como fonte principal dos enganos e do ser-falso referido aos estados ônticos que
são algo, mas não representam de modo correto aquilo de que retiram seu ser
próprio e subsidiário, no sentido do que apenas parece ser algo mas não é
91
.
Juntamente com Platão, mas com uma intenção diversa, Aristóteles insiste em
uma diferenciação entre o que é e o que aparece, podendo haver uma correlação
alética de verdade ou falsidade entre estes dois níveis ontológicos: o primeiro, o
nível da aparência, da opinião, da percepção singular; o segundo, o nível do ser
por si e essencial dos estados ônticos, descoberto através de um processo de
investigação que deve terminar nas definições e demonstrações plenamente
90
Metafísica, Livro IV, cap. 6, 1010 b 1-3:
   ☺    
 
    <> ☺ ☯ <>
      ☺ 
  
 
91
A interpretação da imaginação como fonte do erro na percepção é também defendida por Robert
Bolton em seu “Scepticisme et véracité de la perception dans le De anima et dans la Métaphysique
d’Aristote”, in Corps et âme, opus cit., pp. 306-311.
214
justificadas e verificadas. Aquilo que é, no sentido do que realmente existe, é
verdadeiro enquanto efetivamente ocorreu, ocorre, pode ocorrer ou sempre ocorre.
Os fenômenos que provêm destes entes verdadeiramente existentes podem ser,
porém, verdadeiros ou falsos, pois os fenômenos podem produzir, em
circunstâncias peculiares da percepção, uma falsa imagem daquilo de que provêm,
assim como as imagens que constituem o conteúdo das imaginações e dos sonhos
podem tanto distorcer a estrutura do que verdadeiramente existe, quanto produzir
imagens de objetos que não existem realmente. Assim, pode haver uma
continuidade entre o que verdadeira e efetivamente existe e sua manifestação
fenomênica na percepção, mas pode haver uma descontinuidade, distorção e
mesmo uma independência das aparências em relação ao que efetivamente
acontece, como é o caso das imagens das pinturas e dos sonhos.
Um outro contexto das teorizações aristotélicas sobre a verdade que pode
ilustrar a importância e a extensão desta oposição entre ser verdadeiramente algo e
parecer ser algo mas não ser de fato o que parece, encontra-se no início das
Refutações sofísticas:
“Que algumas inferências, de um lado, são efetivamente, e, de
outro lado, outras, embora não sendo, parecem <ser>, é evidente.
Com efeito, assim como em outros <estados ônticos> ocorre isto
por causa de alguma semelhança
[  ☺], assim também
ocorre no caso dos discursos. Pois também alguns <homens> se
encontram em bom estado físico e outros apenas parecem, tal como
as tribos engordam e preparam <as vítimas para sacrifícios>, e uns
são belos por causa de sua beleza, e outros parecem <ser belos> ao
adornar-se. Também entre as coisas inanimadas <ocorre> algo
semelhante: pois, dentre estas, algumas são verdadeiramente de
prata e ouro, outras não o, mas parecem ser segundo a
215
percepção, como por exemplo as <coisas feitas de> litargírio e as de
cassiterita parecem ser prata, e as <coisas> de metal amarelo
parecem ouro. Do mesmo modo <argumentos> que são
inferências e refutações, mas outros que não são, mas parecem
ser por causa da inexperiência, pois os inexperientes consideram
<os argumentos>, quando o fazem, assim como coisas
longínquas.”
92
Através desta passagem, é possível ver que a oposição entre o que é aparente e
o que é real, entre o ser de fato de algo e seu mero parecer ser, se estende a estados
ônticos sensíveis, estados ônticos lingüísticos e estados ônticos mentais, ou seja, é
uma distinção que se pode chamar de transcategorial. No caso específico desta
passagem, tal oposição é vital para o empreendimento aristotélico de desmascarar
os argumentos ardilosos empregados pelos sofistas de sua época, mostrando sua
invalidade e falsidade lógico-semântica por trás de sua aparência de validade e
verdade. Mas o mais importante nesta passagem é a indicação da causa deste
sentido de ser-falso, a saber: é por conta de alguma semelhança no âmbito da
92
Refutações sofísticas, capítulo 1, 164 a 23-164 b 7:
   ☺    ☺
 
☯      
  ☯     ☺
     ☺ ☯ 
   ⌧ ☺  ☯  ☺ 
    
 ☺   ☺  
 ☺    ☺
     ☺  
   ☯    
   
☯  ☯     ☯
       
      
       ☯
 ☺  ☯ ☺  
☯      
☺  ☯    
 
216
percepção (e, por conseguinte, do ato de pensamento referido a esta percepção)
que se toma um fenômeno como proveniente de um estado ôntico efetivo e
representando-o de modo legítimo, embora tal fenômeno não seja diretamente
proveniente, nem represente corretamente o modo de ser deste estado ôntico.
Assim, portanto, pode-se considerar que algo é feito de ouro quando o é, ou
pode-se considerar que um ser humano está saudável quando na realidade está
doente, ou ainda, pode-se tomar um argumento como sendo válido e verdadeiro
quando na realidade não é. Tem-se, portanto, uma oposição entre o ser-falso,
enquanto o que parece ser de fato mas não é, e o ser-verdadeiro, no sentido do que
aparece tal como é de fato.
Assim, o ser-falso e o ser-verdadeiro, referidos aos estados ônticos em geral,
dividem-se em dois âmbitos de sentido, o ontológico e o noético, cada um dos
quais subdivido em dois níveis. No primeiro caso, o ser-falso significa ou o que
presentemente não é ou o que nunca pode ser. Por contraste o ser-verdadeiro
significa neste âmbito, de um lado, aquilo que presentemente é o caso e que a
fortiori pode ser o caso e, de outro lado, aquilo que é sempre o caso, aquilo que
sempre e necessariamente existe e, assim, que é sempre e necessariamente
verdadeiro. No segundo âmbito de sentido, o ser-falso significa aquilo que parece
ser algo mas efetivamente não é aquilo que parece ser, ou aquilo que não provém
diretamente do que parece representar. No caso do ser-verdadeiro, este significa,
por contraste, ou aquilo que de fato é tal como aparece, ou a aparência que
217
corresponde exatamente àquilo de que é manifestação, o fenômeno de algo que
realmente existe, sem nenhuma distorção.
O segundo horizonte de sentido do ser-falso indicado por Aristóteles é o
âmbito lógico-semântico. Este horizonte de sentido é claramente vinculado ao
anterior como dependente do mesmo, ainda que com uma dinâmica própria. Os
enunciados ou os conjuntos de enunciados o ditos falsos justamente quando, de
um lado, ou exprimem como sendo estados ônticos que não são ou não podem ser
93
(o que constitui um falso sentido do que é referido), ou, de outro lado, quando
são aplicados a estados ônticos diferentes daqueles implicados ou pressupostos em
seu conteúdo lógico-semântico (o que constitui uma falsa referência em relação ao
sentido do enunciado).
Pode-se então dizer que um enunciado é falso ou (i) porque seu sentido não
possui referência, ou (i) porque, embora sua referência seja algo, ela não possui o
sentido que se lhe aplica, sendo tal sentido verdadeiro para outra referência. Num
caso, tem-se uma ausência de referência para um enunciado com sentido, de modo
que o enunciado é falso simpliciter (☺), pois é discurso/enunciado de
coisa nenhuma (), como ao se dizer que a diagonal do quadrado
é comensurável, ou que o círculo é quadrado, ou que Sócrates é água. No outro
caso, tem-se um sentido que possui de fato um referente e que é verdadeiro deste
referente, mas que em determinada ocasião é aplicado ao referente errado, fazendo
93
O que é indicado pelas breves expressões: “ou daquilo que é verdadeiro” e pois o
enunciado/discurso falso é simplesmente de coisa nenhuma”.
218
com que não haja correlação entre a pretensão de verdade da asseveração e aquilo
que pretende apresentar, assim, no exemplo do estagirita, o enunciado que define
o círculo é falso se aplicado ao triângulo ou, vice-versa, o enunciado que define o
triângulo é falso quando toma o círculo como seu referente. Trata-se, portanto, de
uma troca de referência daquilo de que o enunciado seria verdadeiro.
Em ambos os casos, o enunciado é acerca de algo que o é, ou seja, não é o
que diz que é ou não é como diz que é, havendo, portanto, dois sentidos diversos
de não ser, pois, num caso, trata-se de um não-ser em absoluto do que se pretende
referir e, no outro, de um não ser relativo ao modo como se refere a algo que é de
fato. Estas duas formas de não-ser remetem diretamente à análise do horizonte
ontológico de sentido do ser-falso, pois, em um caso, o enunciado apresenta uma
composição predicativa de entidades que não pode ser em absoluto no mundo
factual, e, no outro caso, apresenta uma conjunção predicativa sobre algo que o
está de fato conjunto ou apresenta uma separação predicativa de algo que de fato
está conjunto e não separado
94
.
Logo após esta explicação sumária dos sentidos em que um enunciado ou
discurso pode ser-falso Aristóteles indica, por contraste, os sentidos em que um
enunciado ou discurso pode ser-verdadeiro. Esta explicação é necessária
94
Este paralelismo não é à primeira vista claro por conta do exemplo usando os enunciados
definitórios do rculo e do triângulo, mas fica claro quando se retoma o exemplo do início do
capítulo, de tal modo que o enunciado tu estás sentado”, quando aplicado a alguém que está de
pé, é falso, havendo uma troca de um enunciado que pode ser verdadeiro quando aplicado a
alguém que está sentado. O exemplo do círculo e do triângulo constitui uma hipérbole que torna
evidente esta troca ou descontinuidade entre sentido e referência de um enunciado, mas de modo
algum esta troca se limita apenas aos enunciados definitórios.
219
justamente porque a explicitação do horizonte lógico-semântico do ser-falso pode
levar a crer que apenas os enunciados que constituem definições seriam
verdadeiros, uma vez que somente o enunciado definitório exprime o que algo
realmente é. Por isso, Aristóteles assinala a dupla perspectiva em que algum
estado ôntico pode ser enunciado. De um lado, o enunciado de um estado ôntico é
um único, aquele enunciado que exprime o ser-essencial deste estado ôntico. Este
discurso é necessariamente verdadeiro sempre que referido ao estado ôntico que
apresenta de modo privilegiado. De outro lado, porém, vários e mesmo muitos
enunciados podem exprimir verdadeiramente um mesmo estado ôntico, posto que
sua identidade essencial, como afirma o estagirita, não é alterada pelos acidentes
ou afecções inerentes a ele. Esta possibilidade de múltiplos modos de apresentação
ou sentidos em que um mesmo estado ôntico pode ser referido pelos enunciados
indica implicitamente uma gradação nos modos como os enunciados em geral
podem ser verdadeiros, desde os enunciados necessariamente verdadeiros (as
definições), passando pelos enunciados que podem ser verdadeiros ou falsos
conforme a ocasião de sua asseveração, até os enunciados necessariamente falsos
pelo fato de apresentarem estados ônticos que nunca podem acontecer, os estados
ônticos impossíveis antes comentados
95
.
Aristóteles, então, contrapõe esta múltipla possibilidade de predicações
enunciativas verdadeiras à tese de Antístenes, segundo a qual não enunciados
senão de identidade simples (na forma geral a é a), sendo os demais enunciados
95
Estas gradações paralelas entre tipos de enunciados e estados ônticos serão esclarecidas no
próximo capítulo.
220
destituídos de sentido. Esta tese é uma das radicalizações sofísticas mais extremas
surgidas da tese parmenídica sobre a impossibilidade de enunciar algo falso. Ela
surge de dois argumentos complementares: o primeiro consiste em pensar que
uma predicação de algum item heterogêneo ao sujeito mesmo que porta este item
pode ser ou vir a ser falsa, a partir do que Antístenes concebeu tais enunciados
como sem sentido, na medida em que não é possível enunciar nada falso; o
segundo consiste em pensar que a predicação de um item heterogêneo
pretensamente faria com que a mesma coisa fosse a e não-a, uma vez que dizer que
a é b seria equivalente a dizer que a é a, o que é evidente, mas também seria
verdadeiro dizer que a é não-a, uma vez que b, tomado por si, é não-a. A tese,
portanto, é uma derivação direta do monismo ontológico de origem eleata, para o
qual uma predicação heterogênea faria com que um mesmo estado ôntico fosse
uno e múltiplo, o que, segundo a tese de que o ser possui um único sentido, seria
um absurdo, com o que as predicações que não de identidade simples seriam
meras ilusões gramaticais da linguagem comum
96
. Assim, como o estagirita indica,
não seria possível haver contradição () e mesmo quase
96
Uma análise e crítica implícita deste sentido da tese de Antístenes se encontra já em Platão, onde
também se considera tal tese fruto de um simplismo filosófico. Cf. Sofista, 251 b-c. Para uma análise
da tese de Antístenes à luz dos comentários e críticas de Platão e Aristóteles, veja-se, de Fausto dos
Santos, A filosofia aristotélica da linguagem. Chapecó: Argos, 2002, pp. 62-69. O sentido da tese de
Antístenes seria, segundo Platão, que só se pode dizer, por exemplo, que o um homem é homem ou
que o bom é bom, mas seria sem sentido dizer que um homem é bom, ou que é alto, negro, etc, pois
se se admite múltiplos enunciados acerca de um mesmo ente, então, conforme o monismo
ontológico de origem eleata, este ente seria um e, ao mesmo tempo, múltiplo. Na base da crítica
feita por Platão e Aristóteles a esta e outras teses de inspiração eleata está toda uma reformulação
da ontologia e da lógica, realizada por ambos e que não é possível discutir aqui. Para uma extensa e
interessante discussão do monismo eleata, e das duas vias que foram encontradas para fugir a seus
resultados contra-intuitivos, respectivamente por Leucipo e Demócrito (via sica) e por Platão e
Aristóteles (via categorial), veja-se, de Francis Wolff, “Dois destinos possíveis da ontologia: a via
categorial e a via física”; trad. Marco A. Zingano, in Analytica, vol. 1, nº 3, 1996, pp. 179-225.
221
nunca falsidade
97
, o que se choca com as intuições do senso comum sobre a
natureza da verdade e da falsidade, e faz com que Aristóteles considere a tese de
Antístenes um “simplismo” ().
A tese de Antístenes serve como contraponto tanto para explicitar o contraste
entre a possibilidade de enunciados falsos, quanto dos enunciados que podem ser
necessariamente verdadeiros, necessariamente falsos, e de enunciados que podem
ser verdadeiros ou falsos conforme a ocasião de seu proferimento, ou conforme o
estado ôntico que tomam como referente. A refutação da tese de Antístenes é
rápida e tem uma motivação mais propedêutica do que filosófica. É possível que
um enunciado seja verdadeiro não apenas enquanto enunciado de identidade
simples, mas também que seja verdadeiro enquanto enunciado indireto, i. e., que,
por exemplo, o número oito seja considerado um número duplo na medida em que
é par e múltiplo de dois. Além disso, como Aristóteles já havia indicado, um estado
ôntico pode ser apresentado por um enunciado que é falso quando referido a tal
estado ôntico.
Deste modo, os enunciados podem ser portadores de valores de verdade de
dois modos distintos em cada caso. Podem ser falsos, em primeiro lugar, quando
seu sentido apresenta alguma conjunção de itens que não existiu, existe ou pode
existir de fato (verdadeiramente). Em segundo lugar, podem ser falsos quando,
ainda que se referindo a algum estado ôntico necessário, efetivo ou possível, não
97
Aristóteles não diz de que modo aconteceria esta falsidade, mas é possível depreender que a
falsidade só ocorreria se o estado ôntico tomado como referente do enunciado de identidade
simples fosse um estado ôntico impossível ou inexistente.
222
apresentam tal estado ôntico como é, mas asseveram deste estado ôntico um
enunciado que seria verdadeiro de outro estado ôntico real (verdadeiro). Em
contraste com estas duas possibilidades de falsidade, apenas uma forma geral
de um enunciado ser verdadeiro, a saber: se de algum modo acontece um
isomorfismo entre seu sentido e o modo de ser (essencial ou o) ou de não ser
daquilo a que se refere, quer o enunciado seja afirmativo, quer negativo. Mas isto
ficará mais claro através das investigações ulteriores.
A partir da análise sumária dos horizontes de sentido ontológico/noético e
lógico-semântico do ser-falso e, de modo contrastivo, do ser-verdadeiro, pode-se
ver que Aristóteles concebe como possíveis portadores de valor de verdade tanto
entidades reais e entidades mentais quanto entidades lógico-semânticas. Deste
modo, o estagirita leva em conta todos os possíveis sentidos do ser-verdadeiro e do
ser-falso tal como na linguagem comum são operados, ou seja, considera os
sentidos de verdade e falsidade que se aplicam ao pensamento, à linguagem e à
realidade enquanto tipos de entidades que podem ser portadores de um valor de
verdade. Aquilo que ainda não está claro a partir do texto analisado, é como estes
três tipos de entidades recebem seu valor de verdade, bem como qual deles (se
algum) é portador primário de verdade e, assim, instancia o sentido primário de
verdade, sentido desde o qual os demais podem ser compreendidos e aplicados de
modo coerente. São as respostas de Aristóteles a estas questões que é preciso
analisar no que segue.
223
§ 2 - A definição de verdade e falsidade segundo Aristóteles
O parágrafo anterior indicou sumariamente quais os possíveis portadores de
valores de verdade e os sentidos que estes valores de verdade possuem em cada
um destes tipos de entidades. Ao considerar entidades mentais, lógico-semânticas
e reais como possíveis portadoras de um valor de verdade, Aristóteles dá aos
conceitos de verdade e falsidade um caráter abrangente que se pode considerar
como transcendental, ou seja, que ultrapassa as delimitações dos gêneros de ser ou,
na terminologia aristotélica, que ultrapassa as categorias universais de predicação
ou gêneros primários de ser, de modo que o sentido do termo transcendental
significa aqui propriamente transcategorial. O ser-verdadeiro e o ser-falso dizem
respeito, portanto, a todos os sentidos de ser e não ser enunciáveis e pensáveis. Tal
universalidade pôde ser entrevista no parágrafo anterior. É compreensível por
isso que a determinação filosófica geral do ser-verdadeiro e do ser-falso seja feita
primariamente através da análise das estruturas lógico-semânticas entranhadas na
linguagem, pois a compreensão da estrutura formal da linguagem implica para o
224
estagirita a compreensão da estrutura formal da própria realidade em geral, bem
como das possibilidades cognitivas (noéticas) do espírito humano
98
.
O caráter transcategorial ou transcendental do ser-verdadeiro e do ser-falso
consiste, de modo análogo ao caráter transcategorial do ente, do uno e do bem
99
,
em significar em cada gênero de ser algo específico, mas o se poder identificar
seu sentido primário com nenhuma destas significações específicas, ainda que
tenha de haver uma significação primária em relação à qual as demais significações
se referem direta ou indiretamente, ou seja, tem de haver uma significação focal
(um   ) que evite a homonímia ou
equivocidade dos sentidos do ser-verdadeiro e do ser-falso, sem, no entanto, fazer
deste sentido focal um sinônimo, de tal modo que o ser-verdadeiro e o ser-falso em
sentido primário seriam determinações que constituiriam um gênero de todos os
gêneros e todos os sentidos de ser-verdadeiro e ser-falso se identificariam com e se
98
Esta interpretação é claramente sugerida por Donald Davidson em seu “El todo de la verdad
en metafísica”, art. cit., pp. 204-205. Também Lucas Angioni analisa a teoria da predicação de
Aristóteles como pondo em jogo um paralelismo entre o nível lógico-semântico e o nível ontológico
de investigação. Cf. Ontologia e predicação em Aristóteles, opus cit., introdução.
99
Na realidade, dentre os quatro horizontes gerais de significação do ser enumerados e analisados
por Aristóteles (sobretudo na Metafísica), um deles é a significação categorial que o ser assume em
cada tipo geral de predicações possíveis, sendo os outros três (a saber: o ser como acidente, como
potência e ato, e como verdadeiro ou falso) sentidos transcategoriais. O ser como acidente se refere,
primariamente, às predicações não essenciais feitas no gênero de predicação da essência
(☺ ) e secundariamente às predicações não definitórias das entidades dos gêneros
que não o gênero da essência. Os sentidos do ser como potência e ato se referem à necessidade,
possibilidade, atualidade e impossibilidade dos estados ônticos existentes ou inexistentes,
independente de qual seja a categoria de ser a que pertencem. O sentido transcendental do ser-
verdadeiro e do ser-falso é objeto da presente análise e se tornará mais claro no correr do texto. No
caso dos sentidos do uno e do bem, não é possível nem necessário aqui discorrer sobre seu caráter
transcategorial. Sobre o caráter transcategorial dos sentidos do uno, permita-se que indique minha
dissertação de mestrado, Sobre os vários sentidos do uno (a concepção do uno na Metafísica de
Aristóteles). Porto Alegre: Programa de Pós-graduação em Filosofia, 2002, esp. cap. 2. Sobre os
horizontes gerais de sentido do ser, falar-se-á no próximo capítulo em mais detalhe.
225
incluiriam neste sentido primário, pois se ser significa, de um lado, ser-verdadeiro,
e não-ser, ser-falso, e se ser e não-ser não podem ser gêneros, então, obviamente, o
ser-verdadeiro e o ser-falso também não podem ser gêneros em relação aos seus
múltiplos sentidos possíveis
100
.
Somente através de um significado focal do ser-verdadeiro e do ser-falso,
dentre os seus vários sentidos, pode-se manter a idéia de que eles são conceitos
transcategoriais, ou seja, que se aplicam a todas as formas de enunciação
predicativa do ser em geral, sem se reduzirem a nenhuma destas aplicações ou
sentidos específicos. No entanto, o caráter transcategorial do ser-verdadeiro e do
ser-falso não diz respeito primariamente às categorias do ser, mas sobretudo às
três categorias de entidades que podem receber um valor de verdade, ou seja, às
entidades mentais, lógico-semânticas e reais, pois em cada asseveração ou
enunciação predicativa sobre algo feita por alguém está em jogo uma determinada
correlação entre pensamento, linguagem e realidade. Nesta correlação, como ainda
se verá adiante, podem se realizar todas as composições possíveis das categorias
100
A questão pelo modo de significação do ser (e do uno) é tema de intenso debate. A interpretação
de que o ser se diz de modo homônimo é predominante nos dias atuais. O autor do presente
trabalho esboçou a interpretação da significação do ser e do uno como sendo a forma de
significação parônima, mas não seria possível aqui expor os argumentos desta interpretação, que foi
defendida na dissertação mencionada sobre a concepção de uno na Metafísica de Aristóteles. Para
uma clássica interpretação e defesa da significação do ser como sendo a homonímia e para a
história das interpretações antigas sobre a homonímia, veja-se, de Pierre Aubenque, Le problème de
l’être chez Aristote. Paris: PUF, 1991, cap. 2, pp. 163 ss. Para uma persuasiva defesa da homonímia do
ser, veja-se, de Marco Zingano, “L’homonymie de l’être et lê projet metaphysique d’Aristote”, in
Revue Internationale de Philosophie, nº 201, 1997, pp. 333-356. Veja-se também o minucioso e
clássico artigo de Jaakko Hintikka, “Aristotle and the ambiguity of ambiguity”, in Inquiry, vol. 2,
1959, pp. 137-151. Veja-se ainda, de Frank A. Lewis, “Aristotle on the homonymy of being”, in
Philosophy and Phenomenological Research, vol. 63, 1, 2004, pp. 1-36. De qualquer modo ainda não
foi analisada, aonde o presente autor sabe, o modo de significação do ser-verdadeiro e do ser-
falso, e se é possível manter que este modo de significação poderia ser a homonímia.
226
de ser. A análise do sentido do ser enquanto ser-verdadeiro e do não-ser enquanto
não-ser-verdadeiro (=ser-falso) é realizada pelo estagirita (sobretudo na Metafísica)
justamente com intuito de explicitar como acontece a relação entre pensamento,
linguagem e realidade, ligação que permaneceria obscura sem tal análise, o que
excluiria da investigação do ser em geral ou do ser enquanto ser as entidades
mentais e lógico-semânticas, com as quais justamente todas as ciências, inclusive a
metafísica, podem ser realizadas, apesar destas entidades serem consideradas, à
luz da ontologia e da henologia centradas no conceito de essência
(☺ ), como entidades derivadas e ontoaleticamente dependentes
das entidades reais em sentido estrito e, portanto, das essências enquanto gênero
primário das entidades reais. Ver-se-á, contudo, que o caráter separável (ou
separado) da apreensão ou inteligência (/) diante das outras
capacidades mentais desempenha um papel essencial na fundação e sustentação
epistêmica da ciência do ser enquanto ser.
Assim, se for correto admitir o caráter transcategorial do ser-verdadeiro e do
ser-falso, bem como o papel intermediador da linguagem entre atos de
pensamento e estados ônticos visados por estes atos, então a definição primária de
verdade aristotélica deve ser uma definição que tenha um caráter transcategorial
válido para qualquer tipo de correlação entre pensamento e realidade através da
linguagem, pois é efetivamente através da e na linguagem que o modo de ser dos
estados ônticos se torna acessível ao pensamento, na medida em que, de um lado,
o logos é a característica definitória dos seres humanos e instancia efetivamente
227
todas as suas capacidades e realizações noéticas, assim como é capaz de
representar em sua estrutura a realidade como tal e os modos de ser mais gerais
dos gêneros primários de entidades que organizam esta realidade.
É a correlação entre atos de pensamento e estados ônticos visados por estes atos
através de entidades lógico-semânticas que é propriamente verdadeira ou falsa,
sendo a partir de tal correlação que se pode atribuir um valor de verdade
específico aos atos de pensamento, às entidades lógico-semânticas e aos estados
ônticos envolvidos a cada vez nesta correlação. Aristóteles trata explicitamente
desta correlação, e em muitas passagens de seus textos indica que é ela o objetivo
de suas teses e argumentos. As investigações lógico-semânticas do estagirita estão
marcadas por pressupostos e implicações noéticas e epistêmicas, assim como
ontológicas, ou seja, as análises aristotélicas dos modos de ser significante da
linguagem pressupõem e implicam teses sobre os processos cognitivos do espírito
instanciados na linguagem e sobre os modos de ser dos estados ônticos em geral
representáveis pela linguagem
101
.
Mas antes de passar à análise da definição transcategorial de verdade e
falsidade proposta pelo estagirita é preciso esclarecer sumariamente sua concepção
geral da definição, pois é esta concepção que pode ajudar a compreender o estatuto
101
Mostras de que Aristóteles tem em mente esta correlação entre pensamento, linguagem e
realidade quando trata dos problemas lógico-semânticos e epistêmicos relacionados aos conceitos
de verdade e falsidade podem ser encontradas em Categorias, caps. 10-13; Da interpretação, caps. 1 e
9; Segundos analíticos, Livro I, cap. 10, 76 b 24-27, Livro II, cap. 19; Tópicos, Livro I, cap. 18, 108 a 20-
37; Refutações sofísticas, cap. 1, 165 a 10-18, cap. 10; Metafísica, Livro I, caps. 1-2; Livro IV, caps. 4-7;
Ética a Nicômaco, Livro VI, cap. 3; Da alma, Livro III, caps. 3-8. O excelente texto de Mario Mignucci,
“Sur la méthode” d’Aristote en logique”, in Revue Internationale de Philosophie, 1980, pp. 359-383,
mostra de que maneira a análise aristotélica dos problemas lógico-semânticos da linguagem comum
está na base de várias de suas concepções lógicas e metafísicas.
228
filosófico de sua definição de verdade e falsidade. A teoria aristotélica da definição
é complexa e perpassa vários textos do corpus aristotelicum
102
, não sendo aqui nem
possível nem necessário aprofundar e detalhar tal teoria. Bastará com que se faça
claro aquilo que o estagirita compreende de modo geral como definição e os
requisitos para a mesma. Nos Tópicos se encontra a definição aristotélica de
definição, que diz:
“Definição é o enunciado significando o ser essencial
[☺    ] <de algo>. Ou se
explica [] <um> enunciado no lugar de
<um> nome ou <um> enunciado em lugar de <uma parte do>
enunciado, pois é possível ser definido algum dos <itens>
significados pelo enunciado. Aqueles que, entretanto, produzem de
um modo qualquer <uma> explicação por <meio de um> nome,
evidentemente não dão deste modo como explicação a definição do
estado ôntico [], posto que toda definição é
<um> enunciado de certo <tipo>.”
103
Uma definição é, portanto, um certo discurso que significa aquilo que é o ser-
essencial de algo (  ), ou seja, aquilo que algo é
necessariamente, aquelas propriedades que não podem não ser, caso contrário este
algo o é absolutamente falando, de modo que a definição é o enunciado que
explica as propriedades que o indispensáveis para que um estado ôntico seja o
102
Veja-se, sobretudo, Da interpretação, cap. 11; Tópicos, Livro I, caps. 5-6, Livros VI-VII; Segundos
analíticos, Livro II, caps. 3-10, 13; Metafísica, Livro VII, caps. 5 e 12.
103
Tópicos, Livro I, cap. 5, 101 b 38-102 a 5:
☯     ☺    
 
       
       ☺
  
 ☺   ☺ 
    ☺  
     ☺
  ☺   .
229
que é, exprimindo, portanto, a definição aquilo que é o definido em sentido
primário, independente das possíveis características que podem lhe pertencer ou
não pertencer. O ser essencial é determinado pelo estagirita como aquilo que algo é
por si mesmo ( ☺) e não relativamente a algo
104
, sendo
identificado com a qüididade (  )
105
e, sobretudo, sendo
pertencente à essência (☺ ) de algo e, somente a partir da
essência, podendo ser também atribuído aos outros gêneros de ser que pertençam
a este algo
106
.
Aristóteles coloca duas possibilidades em que se pode produzir uma definição
e interdita uma terceira como não sendo propriamente uma definição. A primeira
possibilidade consiste em substituir um nome por um enunciado que explique o
104
Cf. Metafísica, Livro VII, cap. 4, 1029 b 13-16.
105
Cf. Metafísica, Livro VII, cap. 4, 1030 a 3. Para uma excelente análise do conceito aristotélico de
ser-essencial, análise da qual a presente investigação é tributária, veja-se, de Vittorio Sainati, Storia
dell’organon aristotelico. Florença: Felice le Monnier, 1968, pp. 82-91. O autor em questão, porém,
traduz a expressão    por a estrutura da essência’, que parece,
na perspectiva desta investigação, uma tradução demasiado conceitual, tendo-se preferido traduzi-
la por ‘ser essencial’, de modo a se manter mais próximo da literalidade sem abdicar de sua
interpretação, que é, todavia, inevitável. A importância da análise de Sainati consiste, sobretudo,
em mostrar (a partir dos Tópicos, dos Segundos analíticos e da Metafísica) o caráter tanto extensional
quanto intensional presente na expressão grega forjada por Aristóteles, posto que o ser essencial é
não apenas universal ( ) em relação ao tipo ou espécie de estados
ônticos de que é predicado, mas também necessário, ou seja, enquanto marca um conjunto de
predicados ou atributos que pertencem necessariamente ao ser por si mesmo
( ☺) de cada um dos estados ônticos a que se aplica, de tal modo que a
universalidade e a necessidade são inseparáveis (e não redutíveis uma à outra) no conceito estrito
de ser-essencial.
106
Cf. Metafísica, Livro VII, cap. 4, 1030 a 29-32: “de modo similar o ser essencial subsistirá primária
e absolutamente na essência, e a partir daí nos demais <gêneros de ser>, assim como a qüididade, e
não <um> ser essencial absoluto mas <um> ser essencial para a qualidade ou para a
quantidade.”/     ☺ ☺⌧
    ☺   ☯
  ☯
        ☺
         
.
230
que é essencial ao que o nome denota, assim, por exemplo, dado o nome ‘Sócrates’,
pode-se defini-lo como ‘ser humano, filho de Sofronisco e Fenareta, filósofo
ateniense’, e dado o nome ‘ser humano’ pode-se defini-lo como ‘animal-racional-
bípede’
107
. A segunda possibilidade consiste, ao que tudo indica, em tomar uma
das partes de um enunciado e dar desta parte sua definição, assim, por exemplo,
pode-se tomar no enunciado “Sócrates é branco” tanto ‘Sócrates’ quanto ‘ser-
branco’ e dar de ambos os termos sua definição, ou seja, explicar qual o ser
essencial do estado ôntico denotado por cada um deles
108
. Em ambas as
possibilidades é possível substituir o definiendum pelo definiens, salva veritate, ou
seja, o valor de verdade de um enunciado o se altera quando um nome ou uma
107
Sobre o conjunto e a conjunção de predicados que constituem a unidade de uma definição, veja-
se Da interpretação, cap. 11; Metafísica, Livro VII, caps. 5 e 12. É importante ressaltar que para
Aristóteles as definições de entidades singulares, contingentes e acidentais (tais como ‘Sócrates’,
‘Sócrates (é) branco’, ‘ser humano branco’) são secundárias em relação à definição de sua forma
universal, necessária e por si, da qual são acidentes concomitantes e, assim, não necessários (no caso
em questão ‘animal racional bípede’, ‘a cor mais clara’, etc.), mas não são inválidas como parece
pensar uma certa tradição interpretativa. A diferença, segundo o estagirita, consiste em que, no caso
das entidades singulares, seu ser essencial e seu ser simpliciter não são idênticos, enquanto no caso
das entidades universais (que são propriamente as formas universais tais como ‘ser humano’,
‘bom’, ‘uno’), seu ser essencial e seu ser simpliciter o idênticos. Deste modo, as definições das
entidades universais, necessárias e por si se identificam necessariamente com seu ser essencial,
enquanto no caso das entidades singulares, contingentes e acidentais não há uma identidade
necessária entre sua definição e seu ser essencial, posto que só por analogia com o ser essencial das
essências (☺ ) os estados ônticos acidentais ou concomitantes possuem um ser
essencial. Sobre este assunto, veja-se, de Norman O. Dahl, “Two kinds of essence in Aristotle: a pale
man is not the same as his essence”, in Philosophical Review, vol. 106, 2, 1997, 233-265; e, do
mesmo autor, “On substance being the same as its essence in Methaphysics Z 6: the pale man
argument”, in Journal of the History of Philosophy, vol. 37, nº 1, 1999, pp. 1-27.
108
Note-se que a substituição aqui indicada por Aristóteles não é a de um enunciado qualquer por
um outro, mas a substituição de uma parte de um enunciado que serve como nome para algum
estado ôntico e um enunciado definitório desta parte. É muito provável que haja aqui uma
similaridade entre o que o filósofo macedônio indica e a teoria russelliana das descrições definidas.
Se tal aproximação for correta então a parte do enunciado substituída por uma definição deve
servir como uma descrição definida implícita ou explícita de algum estado ôntico. Para uma
aproximação da teoria aristotélica da definição e a teoria das descrições definidas veja-se o
perspicaz artigo de C. J. F. Williams, “Aristotle’s theory of descriptions”, in The Philosophical Review,
vol. 94, nº 1, pp. 63-80.
231
parte de um enunciado que serve como um nome ou uma denotação de um objeto
referido são substituídos por suas definições. A possibilidade interditada pelo
filósofo macedônio consiste em se pensar que, dada uma parte de um enunciado
ou um nome, possa-se definir algo de um deles apenas proferindo um único nome,
como por exemplo se alguém dissesse “vermelho” é se respondesse apenas
“colorido”, ou ainda, se alguém proferisse o enunciado “Sócrates é branco” e se
dissesse apenas “homem” ou colorido”. Nenhuma destas respostas pode ser
considerada uma definição, tanto porque toda definição é um determinado tipo de
enunciado, quanto porque para o estagirita um termo isolado não pode ser
verdadeiro ou falso, mas unicamente o que pode ser verdadeiro ou falso é um
determinado tipo de nexo semântico entre termos ou entre enunciados
109
.
Assim, a definição é um enunciado que explicita o ser essencial de algo e que
pode substituir um nome ou uma parte de um enunciado. Aristóteles concebe esta
substituição como aquela em que o definiendum e o definiens se identificam
necessariamente. Em todas as predicações acontece algum tipo de identificação,
mas esta identificação não é sempre necessária e completa, a não ser no caso da
definição e, sobretudo, das definições dos estados ônticos elementares
110
. O
estagirita concebe nos Tópicos quatro tipos possíveis de atributos predicáveis que
109
Para a necessidade de dois termos para um nexo apofântico ou alético no enunciado, veja-se
Categorias, cap. 4, 2 a 4-10, cap. 10, 13 b 10-11 ; Da interpretação, caps. 3-5. Para a conexão
verifuncional entre enunciados, veja-se Da interpretação, caps. 6-7, 14; Primeiros analíticos, Livro I,
caps. 2-4.
110
Sobre a identificação ou identidade como fundamento das formas de predicação, veja-se Tópicos,
Livro I, cap. 8. Sobre os vários sentidos de idêntico veja-se ainda Metafísica, Livro V, cap. 9. Para
uma análise magistral dos sentidos do conceito de idêntico segundo Aristóteles (tomando como
ponto de partida o capítulo 8 do Livro I dos Tópicos), veja-se, de Mário Mignucci, “La noción de
identidad en los Tópicos, in Anuário Filosófico, nº 35, 2002, 313-340.
232
esgotam as possibilidades das asseverações que podem ser postas em jogo, quanto
à sua verdade ou falsidade, nos diálogos, a saber: o acidente ou concomitante, o
gênero e a diferença específica, o próprio e a definição
111
. Nesta ordem as
identificações realizadas nos enunciados vão desde uma identificação temporária,
contingente (não-necessária) e parcial na predicação do acidente (seja particular ou
universal) até a identificação necessária, essencial e completa da definição em
sentido estrito, passando pela identificação parcial, necessária e essencial quando
da predicação do gênero ou da diferença específica e pela identificação completa,
necessária mas não essencial do que é próprio a algo. Na realidade, a diferenciação
entre estes tipos de identificação ocorre a partir da identificação realizada na
definição enquanto modo de identificação mais forte, sendo os demais tipos de
identificação enfraquecimentos desta forma privilegiada de identidade entre o
definiendum e o definiens
112
.
111
Para uma análise detida dos predicáveis e sua relação com as categorias e com o conceito de
acidente, veja-se, de Madeleine van Aubel, “Accident, catégories et prédicables dans l’oeuvre
d’Aristote”, in Revue Phiosophique de Louvain, vol. 61, 4, 1963, pp. 361-401. Para uma formalização
das possibilidades de predicação de cada um dos predicáveis, veja-se, de José M. Gambra, “La
logica aristotélica de los predicables”, in Anuário Filosófico, vol. 21, nº 2, 1988, pp. 89-118.
112
Aristóteles faz explicitamente menção de que todos os tipos de predicáveis o em certo sentido
definitórios e, assim, são todos concebidos a partir da identidade necessária da definição como uma
espécie de significado focal (  ) da predicação em geral em
Tópicos, Livro I, cap. 6, 102 b 33-35: “de modo que, segundo a argumentação antes explicitada, todos
os <tipos de predicação> enumerados seriam de certo modo
definitórios”/   ☯ 
   ☯   ☺ 
 .
Poder-se-ia formalizar de modo rudimentar a identidade asseverada nas definições do seguinte
modo:
( x) ( D) ( [(x = a) & (Dx)] [Da])
O que significa: “Existe ao menos um x, existe o conjunto de predicados do definiens D, tal que
(necessariamente [se (x é igual a a) e (D define x)], então [D define a])”. O símbolo de necessidade
deve ser entendida de re, ou seja, o estado ôntico designado por a possui efetivamente e por si
233
A partir destes esclarecimentos sumários sobre a doutrina aristotélica da
definição, bem como dos esclarecimentos anteriores acerca do caráter
transcategorial do ser-verdadeiro e do ser-falso e do papel intermediador da
linguagem entre atos de pensamento e estados ônticos por eles visados, a definição
aristotélica do ser-verdadeiro e do ser-falso deve dizer o que eles significam em
sentido transcendental, explicando qual é o ser-essencial da verdade e da falsidade,
sendo tal definição transcategorial relativa ao ser-verdadeiro e ao ser-falso da
linguagem enquanto meio essencial em que pensamento e realidade se
correlacionam nas asseverações.
Viu-se que na análise dos portadores e sentidos de verdade o estagirita indicou
definições parciais (ou “semi-definições”) do ser-verdadeiro e do ser-falso,
conforme se apliquem a este ou àquele estado ôntico pertencente a alguma das
categorias de entidades que podem ser portadoras de um valor de verdade. No
entanto, a definição geral de verdade e falsidade deve ultrapassar estes sentidos
específicos, de tal modo a ser uma definição que respeite o caráter transcategorial
do ser-verdadeiro e do ser-falso e, assim, que possa ser aplicável a qualquer
mesmo as propriedades atribuídas a ele pelo definiens D. Vê-se, a partir desta formalização
rudimentar uma similaridade entre a concepção aristotélica da definição e a contemporânea
discussão acerca das proposições analíticas a posteriori, sugeridas já por Frege em seu célebre
exemplo das duas descrições definidas do planeta Vênus (“a estrela da tarde = a estrela da
manhã”), mas colocadas em debate por Saul Kripke em seu Naming and necessity, opus cit. Para
analogias e diferenças entre a investigação aristotélica sobre a definição e os problemas
contemporâneos sobre proposições analíticas a posteriori, veja-se, de Robert Bolton, Essentialism
and semantic theory in Aristotle: Posterior analytics, II, 7-10”, in The Philosophical Review, vol. 65, nº 4,
1976, pp. 514-544. Neste artigo já clássico, também é importante a dissolução da oposição levantada
pela tradição interpretativa entre definições nominais e definições reais, posto que para o estagirita
as definições nominais não são propriamente definições, mas pontos de partida ou etapas para se
chegar à definição de algo, ou seja, as definições nominais são “quase-definições” em que apenas a
necessidade de dicto, e ainda não a necessidade de re, está presente e garantida.
234
correlação entre atos de pensamento, entidades lógico-semânticas que os
estruturam e que representam estados ônticos determinados. Em dois lugares
Aristóteles enuncia tal definição geral do ser-verdadeiro e do ser-falso na
linguagem. O primeiro se encontra no tratado Da interpretação e diz:
“afirmação [] é, portanto, asseveração de algo
em relação a algo
[   ].
Negação [], pois, é asseveração de algo
separado de algo
[   ].
Portanto [1] o subsistente [ ☺] é asseverado
[] enquanto não subsistente
[☺  ☺] e [2] o não subsistente
enquanto subsistente; e [3] o subsistente enquanto subsistente e [4]
o não subsistente enquanto não subsistente, e isto igualmente para
os tempos fora do presente [ ]”.
113
Nesta passagem não se encontra propriamente uma definição em sentido
estrito do ser-verdadeiro e do ser-falso, mas a importância do trecho provém de
estabelecer as possibilidades de asseverações verdadeiras ou falsas, quer sejam elas
negativas ou afirmativas, consistindo em uma “quase-definição” do ser-verdadeiro
e do ser-falso das asseverações. Uma asseveração () é um
enunciado () significante () que pode ter um
113
Da interpretação , cap. 6, 17
a 25 ss:
      
 
 
      ☯
   ☺  ☺  ☺
 
  ☺ ☺ ☺   ☺
 ☺ ☺    ☺ ☺ 
☺  
      ☺
235
valor de verdade, ou seja, pode ser verdadeiro ou falso
114
. Toda asseveração se
realiza na forma de uma afirmação ou de uma negação. A asseveração afirmativa é
constituída de um relacionamento de itens, uma asseveração negativa é, ao
contrário, uma separação de itens. Toda asseveração possui, em princípio, um
referente, aquilo que o estagirita chama de subsistente ( ☺)
e não subsistente (  ☺)
115
. O subsistente e o não
114
Aristóteles determina no capítulo 4 do Da interpretação (17 a 2-3) que “nem todo <enunciado> é
asseverativo, mas <apenas> aquele em que subsiste [☺] o ser-verdadeiro
[ ] ou o ser-
falso[].”/    
       ☺
. Inician-do o capítulo 5 postulando (17 a 8-9) que “há uma primeira <forma> una do
enunciado asseverativo <que é> a afirmação []; depois a negação
[].”/☯   
  ☯ .
Definindo ainda, ao fim do mesmo capítulo (17 a 22-24), que “a declaração simples é <uma> voz
significante [ ] acerca do subsistir ou não subsistir de algo
[  ☺    ☺], dividida
conforme os tempos.” /☯  ☺
 ☺     
 ☺    ☺ ☺ ☺ 
 .
115
Segundo o Dictionnaire grec-français, de A. Bailly, (Paris: Hachette, 1996 (1896), pp. 1993-94) o
adjetivo substantivado  ☺ provém do polissêmico verbo ☺,
que pode significar entre outras coisas, (1) ser fundamento de algo, e assim (1.1) (pré-) existir, e
ainda (2) estar à mão, estar disponível, (3) estar, encontrar-se. Traduziu-se
 ☺ por subsistente’ para manter tanto o sentido de ser fundamento e assim
pré-existir (pelo sufixo ‘sub’), como de estar, existir ou encontrar-se aí à mão (pelo radical ‘sistente’).
Por vezes, costuma-se traduzir este termo por ‘existir’, mas esta é uma tradução polêmica que é
melhor evitar pela incerteza de saber, como mostrou Charles Kahn, se os gregos chegaram a colocar
explicitamente o conceito de existência no sentido que este conceito adquiriu a partir da filosofia
medieval desde Abelardo. O uso do termo  ☺e sua negação não é comum
ao longo dos escritos de Aristóteles. Mas a forma verbal ☺e sua negação são
extremamente utilizadas pelo estagirita para designar o modo como as asseverações em seus
diversos tipos apresentam os estados ônticos referidos pelas mesmas. Nos Primeiros analíticos, Livro
I, cap. 36, 48 b 2-4, Aristóteles afirma: “Porém, de quantos modos se diz o ser também se enuncia o
verdadeiro da mesma maneira, e é preciso conceber o significado do subsistir no mesmo número
<de sentidos>” /
 ☺      
 
   ☯  
   ☺. O que indica que os sentidos de ser, ser-verdadeiro e
subsistir nas asseverações, e, por contraste, os sentido de não ser, ser-falso e não subsistir, podem
236
subsistente estão aqui no lugar dos termos gerais   e
 ☯’. A subsistência ou não subsistência constituem, assim, as duas
forma possíveis em que um estado ôntico é apresentado por uma asseveração, ou
seja, o subsistir ou não subsistir são as duas formas de referência da asseveração
relativamente aos estados ônticos nas duas formas que necessariamente sempre
assume: a forma afirmativa e a forma negativa. Uma asseveração afirmativa refere-
se a um estado ôntico subsistente, a asseveração negativa se refere a um estado
ôntico não subsistente. De um lado, uma asseveração afirmativa diz que um
determinado estado ôntico possui uma relação de determinado tipo entre dois ou
mais itens, ela diz que determinado estado ôntico é o caso, que aconteceu, acontece
ou acontecerá. De outro lado, uma asseveração negativa diz que um determinado
estado ôntico não possui uma determinada relação entre dois ou mais itens, ela diz
que um determinado estado ôntico não é o caso, que não aconteceu, acontece ou
acontecerá. Assim, o subsistente ou não subsistente não significam uma coisa
isolada, mas uma determinada estrutura de relação associativa ou separativa entre
itens de um estado ôntico possível.
Uma asseveração afirmativa é verdadeira se diz o subsistente enquanto
subsistente, ou seja, se relaciona itens de um estado ôntico que de fato aconteceu,
acontece ou acontecerá, tendo em si unidos estes itens. Uma asseveração negativa é
ser postos em correlação de sinonímia e intersubstituídos, salva veritate. A mesma afirmação é
encontrada logo em seguida no brevíssimo capítulo 37, 49 a 6-10. Para uma minuciosa discussão e
análise dos sentidos e usos do verbo ‘☺e seus correlatos em Aristóteles e na tradição
grega posterior, veja-se, de Charles Kahn, Sobre a terminologia para cópula e existência”, trad.
Fernando Rodrigues; in Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser, opus cit., pp. 81-90.
237
verdadeira se diz o não subsistente enquanto não subsistente, ou seja, se separa
(assevera que não se relacionam) itens de um estado ôntico que de fato não
aconteceu, acontece ou acontecerá, tendo tais itens relacionados. Uma asseveração
afirmativa ou negativa é falsa se diz o inverso, ou seja, se assevera que um estado
ôntico é subsistente quando na realidade é não subsistente ou se assevera que um
estado ôntico é não subsistente quando na realidade é subsistente. Por isso, a
verdade ou falsidade de uma asseveração (afirmativa ou negativa) consiste em
apresentar um estado ôntico como subsistente ou o subsistente e, de fato, este
estado ôntico é subsistente ou não subsistente, isto é, a verdade ou falsidade de
uma asseveração consiste em que seu sentido seja uma apresentação correta
daquilo a que se refere, é preciso que haja uma correlação de identidade ou de
isomorfismo
116
entre a apresentação significante da enunciação, que constitui o
116
Aristóteles postula explicitamente o isomorfismo entre enunciado (verdadeiro) e estado ôntico
referido e sobretudo entre definição e estado ôntico definido no início do capítulo 10 no Livro VII
da Metafísica (1034 b 20-25): Posto que a definição é um enunciado, e que todo enunciado tem
partes, e assim como o enunciado está em relação com o estado ôntico <em seu todo>, de modo
semelhante as partes do enunciado se mantêm em relação com as partes do estado ôntico, então
surge a questão se o enunciado das partes deve subsistir dentro do enunciado inteiro ou o. Em
alguns casos parecem estar e em outros
não.”/   ☺ ☺   
   
☯ ☺  ☺     
        
 ☺
☯  ☯    
       
  ☯ 
      
☯.
238
sentido da asseveração, e o modo de ser ou não ser do que é referido, tal como e
quando é referido
117
.
A outra passagem em que Aristóteles enuncia a definição propriamente dita do
ser-verdadeiro e do ser-falso é um dos trechos mais referidos na literatura sobre as
teorias da verdade. Trata-se da definição dada no Livro IV da Metafísica e que diz:
“Mas, com efeito, não é possível haver nada entre <os enunciados>
contraditórios, mas é necessário afirmar ou negar um <atributo>,
qualquer que seja [☺], de um
[ ☺] <estado ôntico>. E isto é evidente
primariamente para quem tenha definido que <são> o verdadeiro e
o falso. De um lado, o dizer não ser [ ] o que é
[ ] ou <o dizer> ser o que não é
[  ], > falso; de outro lado, o <dizer> ser o
que é e <o dizer> não ser o que não é, <é> verdadeiro, de modo
que aquele que diz ser ou não <ser> está dizendo a verdade ou está
dizendo falsidade.”
118
117
Este ‘tal como e quando é referido’ diz respeito justamente ao tempo indicado no final da
passagem em questão, tempo que modifica as condições de verdade de uma asseveração.
Obviamente, no caso de a asseveração se referir a algo que é ou não é (subsiste ou não subsiste)
sempre e necessariamente a enunciação que estrutura a asseveração é sempre verdadeira ou sempre
falsa. No caso de se referir a estes tipos de estados ônticos a asseveração sempre o faz através do
tempo presente enquanto tempo verbal privilegiado, sobretudo a terceira pessoa do singular do
presente indicativo. Para este privilégio, veja-se Da interpretação, cap. 3, 16 b 17-18: “[o caso
[] do verbo] difere do verbo por que este significa relativamente ao
[] tempo presente [  ], enquanto
aqueles [os casos do verbo] <significam> os <tempos> em torno <do presente>”/
   ☺    
      
⌧. Este modo de significação relativa () dos verbos é estendido por
Aristóteles também ao modo de significação do verbo ser nas enunciações (cf. Da interpretação, cap.
3, 16 b 22-25), e sendo o verbo ser o mais universal dos verbos, presente implicitamente em todas as
enunciações (cf. Da interpretação, cap. 10, 20 a 4-6; cap. 12, 21 b 6-9; Metafísica, Livro V, cap. 7, 1017 a
27-30), então todos os tempos verbais das enunciações se referem, em última instância, ao presente
indicativo do verbo ser, de tal modo que este tempo verbal se torna uma espécie de significado
focal (  ) de todos os tempos verbais pensados como casos,
modificações ou declinações” deste tempo verbal primário, ou seja, os verbos e seus tempos nas
enunciações asseverativas não apenas significam relativamente aos nomes que correlacionam, mas
também significam relativamente ao verbo ser, e neste verbo universal se referem ao tempo
presente.
118
Metafísica, Livro IV, cap. 7, 1011 b 23-28:
   ⌧  
 
239
Muito já foi falado, direta ou indiretamente, acerca desta eminente passagem. A
partir de Alfred Tarski, tal trecho passou a ser pensado como exprimindo na
linguagem informal a definição semântica da verdade, definição que o famoso
lógico polonês formalizou, dando um novo rumo para toda a lógica posterior
119
. A
definição semântica da verdade segundo Tarski é dada pelo esquema T, ou seja:
(T) X é verdadeiro se, e somente se, p.
Onde Xestá como uma variável de um enunciado
120
qualquer e psimboliza
o estado ôntico referido pelo enunciado X. Uma formulação mais simples e até
mais difundida consiste em escrever apenas:
‘p’ p.
Onde o símbolo entre aspas simples representa o enunciado e o símbolo sem
aspas representa o estado ôntico referido pelo enunciado. Não é possível nem
      
   ☺ ☺   
 ☺ 
       
         
       
  ☺      
.
119
É o próprio Tarski quem reivindica que sua definição semântica da verdade e da falsidade
uma forma lógica para a formulação de Aristóteles. Em um de seus mais famosos artigos, publicado
em 1944, e intitulado “The semantic conception of truth and the foundations of semantics” (art. cit.,
p. 117), Tarski diz: “We should like our definition to do justice to the intuitions which adhere to the
classical conception of truth intuitions which find their expression in the well-known words of
Aristotle’s Metaphysics”, seguindo a citação da parte central do texto em questão.
120
Tarski não utiliza o conceito de ‘enunciado’ mas o de ‘sentença’ ou tipo de sentença’. o é
possível nem necessário aqui discutir este ponto, apenas indicar a primeira parte, onde já se
justificou o uso da noção de ‘enunciado’. De qualquer modo, porém, o esquema T pode também ser
aplicado em relação à noção de enunciado e mesmo de proposição, ainda que com implicações
filosóficas que também não convém discutir aqui. Para uma discussão das diferenças e semelhanças
no sentido de tais noções veja-se, de Susan Haack, Filosofia das lógicas, opus cit., cap. 2.
240
necessário aqui discutir a “adequação” da definição tarskiana relativamente à
definição aristotélica da verdade. Em todo caso, a formalização da definição
aristotélica que será aqui proposta é diversa daquela oferecida por Tarski, ainda
que não totalmente incompatível com ela
121
.
Dentro da perspectiva desta investigação aquilo que Aristóteles está
postulando nesta definição são as condições necessárias de verdade para que se
possa decidir se uma asseveração é verdadeira ou falsa, ou seja, quais as condições
necessárias de verdade para que qualquer correlação entre pensamento, linguagem
e realidade seja verdadeira ou falsa. O trecho começa justamente por colocar aquilo
que passou a ser chamado o princípio do terceiro excluído (e, conforme as decisões
lógicas que se tome, como princípio de bivalência). Pode-se formalizar este
princípio, à luz do que o estagirita propõe, deste modo:
(p ~ p)
O que se como: “necessariamente p ou não-p”. Onde a variável prepresenta
um enunciado asseverativo afirmativo qualquer e ‘não-p representa o mesmo
enunciado em sua forma negativa. No último capítulo este princípio será analisado
com mais atenção. No momento, é importante apenas perceber que a definição de
verdade explicitada por Aristóteles visa defender a validade irrestrita deste
princípio como conseqüência da impossibilidade de que entre dois enunciados
contraditórios haja algum terceiro enunciado, ou seja, que não entre uma
121
Para uma análise da definição semântica de verdade formulada por Tarski, bem como das
críticas feitas a ela, veja-se, de Susan Haack, Filosofia das lógicas, opus cit., cap. 3. Veja-se também, de
Richard L Kirkham, Teorias da verdade, uma introdução crítica, opus cit., cap. 5-6.
241
afirmação e uma negação acerca do mesmo sujeito uma terceira possibilidade de
enunciação: necessariamente ou um determinado predicado pertence ou não
pertence a um mesmo sujeito, sem que possa haver uma terceira possibilidade, a
qual teria de ser a de que um predicado pertencesse e não pertencesse ao mesmo
sujeito
122
. A necessidade de que um mesmo predicado seja afirmado ou negado de
um mesmo sujeito, sem que possa haver um terceiro tipo de atribuição, é mostrada
justamente pela definição de verdade e falsidade dada por Aristóteles, de tal modo
que é necessário que algo seja tal ou não seja tal e que, assim, seja verdadeiro ou
não seja verdadeiro (seja falso) que este algo seja ou não seja tal.
122
Note-se que esta possibilidade seria justamente a afirmação da possibilidade ou da necessidade
de que um mesmo predicado pertencesse, ao mesmo tempo, a um mesmo sujeito, ou seja, a negação
do princípio de não-contradição, o que, por redução ao absurdo, faria com que o princípio do
terceiro excluído fosse falso ou não válido para todos os casos. Note-se ainda que o princípio do
terceiro excluído é, pela lei de Morgan e pelas equivalências de definição entre os operadores
modais, logicamente equivalente ao princípio de não-contradição, ou seja,
( ~ (p & ~ p) (p ~ p)) & ( (p ~ p) ~ (p & ~ p)),
o que equivale a
( ~ (p & ~ p) (p ~ p)).
A partir disso, a definição de verdade proposta pelo filósofo macedônio exprime o princípio de
identidade sintaticamente formulável da seguinte forma:
(p ~ p) [( ((p p) (~ p ~ p)) ( ~ ((p ~ p) & (~ p p))],
onde a segunda parte representa a definição de verdade e a terceira a definição de falsidade. Note-
se que a formulação (p p) é logicamente equivalente à formulação do princípio de não-
contradição, ou seja, ~ (p & ~ p)’, equivalência que vale também para a formulação (~ p ~
p)’. Além disso, deve-se assinalar que o símbolo de negação não é aqui equivalente à falsidade de
uma enunciação asseverativa, pois segundo Aristóteles pode haver enunciados negativos
verdadeiros. Note-se ainda, na terceira parte, que sem o operador modal de necessidade não se
poderia exprimir ‘(~ p p)’ como uma parte válida da definição formal da falsidade, pois na lógica
clássica tal formulação é válida, enquanto nas lógicas modal e relevante tal formulação não é válida.
Esta formulação significa aqui (enquanto governada pelo operador modal de impossibilidade) que
não é possível que da asseveração negativa verdadeira se siga a asseveração afirmativa falsa. Aliás,
este tipo de fórmulas válidas na lógica clássica – fórmulas que passaram a ser chamadas de
“paradoxos da implicação material”, mas que na realidade são apenas contra-intuitivas e não
propriamente paradoxais – foram a motivação para a elaboração por C. I. Lewis da noção de
implicação estrita, a qual motivou a formação e desenvolvimento das lógicas modais
contemporâneas. Sobre as motivações lógico-filosóficas para a elaboração da noção de implicação
estrita, veja-se, de E. M. Curley, “The development of Lewis’ theory of strict implication”, in Notre
Dame Journal of Formal Logic, vol. 16, nº 4, 1975, pp. 517-527.
242
Mas, na realidade, a própria definição de verdade e falsidade é ela mesma um
princípio
123
que é co-implicativo relativamente ao princípio do terceiro excluído e,
como ver-se-á, também relativamente ao princípio de não-contradição. A definição
de verdade e falsidade contém em si implícita justamente o princípio de identidade
simples tal como já fora apresentado por Parmênides, a saber: que necessariamente
o ser (o que é/ ☯) é e o o-ser (o que não é/  ☯)
não é, bem como que é impossível não ser o que é e ser o que não é
124
. No entanto,
o espírito da formulação de Aristóteles dista em muitos pontos daquele que
envolve a tese original do mestre de Eléia, para quem a única coisa que se pode
dizer com verdade do não-ser é justamente que não é, ou no máximo que nunca
pode ter sido, ser ou vir a ser, enquanto para o estagirita é possível se dizer com
verdade que algo não é, ou que não possuiu, possui ou possuirá este ou aquele
123
Para o estagirita, todas as definições são princípios na medida em que, quer sejam definições
primárias quer sejam secundárias, são os princípios para todas as demonstrações científicas, como
afirma explicitamente em Segundos analíticos, Livro II, cap. 3, 90 b 24-27: “E ainda os princípios das
demonstrações <são> as definições, e, como foi mostrado antes [72 b 18-25; 84 a 30-84 b 2] acerca
dos <princípios> que não serão demonstráveis, ou os princípios serão demonstráveis e serão
princípios desde <outros> princípios, e isto <conduz> ao regresso ao infinito, ou os <princípios>
primários serão as definições
indemonstráveis.”/☯ ☺   ⌧ ☺
   
☯ ⌧    
☯ ☺     
  
  ☯     ☺
 ☯ . Para uma análise das definições
como princípios, veja-se, de Suzanne Mansion, Le jugement d’existence chez Aristote. Louvain:
Instituto Superior de Filosofia, 1976 (1946), pp. 149 ss. Veja-se também, de Oswaldo Porchat, Ciência
e dialética em Aristóteles. São Paulo: Unesp, 2000, pp. 125-136, 313 ss. Veja-se ainda, de Patrick H.
Byrne, Analysis and science in Aristotle. Nova Iorque: SUNY UP, 1997, cap. 6, esp. 125-133,
124
Cf. fragmentos II e VI, neste último encontra-se a formulação acima proposta:
☯   
   ☯. Para uma excelente análise desta passagem e dos
problemas filosóficos e interpretativos correlacionados, veja-se, de Alexander Mourelatos, The route
of Parmenides. New Haven/Londres: Yale UP, 1970, cap. 3.
243
predicado. Além disso, em Parmênides, o mais provável é que esta identidade
consistisse em uma identidade tautológica e ontológica na forma a é a’, enquanto
para Aristóteles a identidade pode ser também (e talvez seja sobretudo) expressa
na forma ‘a é b’, tal como foi visto acerca das definições e na análise dos
portadores e sentidos de verdade e falsidade, precisamente quando da recusa da
tese de Antístenes. A identidade proposta pelo estagirita consiste, portanto, na
possibilidade de que se predique algo (essencial ou não-essencial) de algo, e, assim,
trata-se de uma identidade que pode dizer aquilo que algo é para além da
repetição tautológica.
No princípio de identidade implicitamente proposto pelo mestre do Liceu,
através da definição de verdade e falsidade, a identidade é compreendida em dois
sentidos: em primeiro lugar, a identidade do que um estado ôntico é por si mesmo
ou em uma determinada circunstância, ou seja, a identidade de um estado ôntico,
quer através de seus atributos essenciais e necessários que explicitam e definem
(parcial, total ou necessariamente) o estado ôntico visado como tal
( ☺), quer através de seus atributos circunstanciais, relativos,
concomitantes ou acidentais ( ). Mas, em
segundo lugar, é uma identidade entre o estado ôntico referido e a forma de
apresentação ou sentido do enunciado que exprime o ato de pensamento que o
visa, é aquele isomorfismo antes analisado entre a asseveração e o estado ôntico a
244
que esta asseveração se refere
125
. Por conseguinte, a verdade de uma asseveração
consiste em fazer uma identificação (relativa, parcial, contingente, ou necessária,
completa, essencial) do que o estado ôntico referido é, sendo a falsidade a não
satisfação desta identificação quando o estado ôntico é diferente (parcial ou
totalmente) do que é apresentado na asseveração, acarretando assim o não-
isomorfismo entre a asseveração e o estado ôntico por ela referido. A definição de
verdade e de falsidade dada pelo estagirita, portanto, contém implicitamente o
princípio de identidade, tanto em seu sentido ontológico quanto lógico-semântico
126
.
125
Este isomorfismo havia sido postulado por Parmênides, mas em um sentido em que o falso, e
assim o não isomorfismo entre pensamento, enunciado e estado ôntico, seria impossível,
possibilitando as teses sofísticas de que todo discurso é verdadeiro ou não significa nada. Veja-se
fragmentos II, III, VII, 34-36. Para uma análise do modo como Parmênides concebe esta
identificação entre pensamento, enunciação e as entidades referidas, veja-se, de Alexander
Mourelatos, The route of Parmenides, opus cit., cap. 7. Note-se ainda que o segundo sentido de
identidade é aquele captado pela definição semântica da verdade e da falsidade proposta por
Tarski. Aristóteles postula explicitamente este isomorfismo ou identificação entre uma asseveração
verdadeira, instanciada em um ato de pensamento, com o estado ôntico visado por este ato como o
referente da enunciação, quando afirma no tratado Da alma, cap. 7, 431 a 1: “O conhecimento
[] em efetividade é idêntico ao estado ôntico <de que é
conhecimento>”/   ☺ 
   . E ainda no mesmo
tratado, cap. 7, 431 b 17: “De modo geral, porém, a capacidade de apreensão [☺ ] em
efetividade é os estados ônticos [ ] <que
apreende>”/   ☺   ☺  
  .
126
Poder-se-ia fazer aqui uma analogia entre a definição de verdade e de falsidade dada por
Aristóteles e o lema quineano: “nenhuma entidade sem identidade” (“no entity without identity”).
Para uma aproximação entre o lema quineano e a noção de identidade definitória em Aristóteles,
através de uma comparação com teses de Saul Kripke, David Wiggins e D. W. Hamlyn, veja-se, de
Enrico Berti, Aristóteles no século XX; trad.: Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1997, pp. 200-216.
Além disso, a identidade em seu sentido lógico-semântico é aquela identidade que é apreendida
pela definição semântica da verdade elaborada por Tarski, na medida em que o enunciado ‘a neve é
branca’ é verdadeiro se, e somente se, a neve, de fato, é branca, onde, portanto, há uma identificação
entre o sentido do enunciado, compreendido aqui como sendo instanciado por um ato de
pensamento, e o estado ôntico efetivo a que se refere, ou seja, p p”. Contudo, ver-se-á mais
adiante que a definição tarskiana apanha apenas parcialmente a definição aristotélica da verdade e
da falsidade. Baste apenas dizer por ora, à luz do que foi dito antes, que a definição aristotélica de
245
Além disso, é importante notar que a definição de verdade e falsidade
apresentada por Aristóteles é uma condição ou critério geral de verdade para se
decidir se um enunciado é uma definição, na medida em que uma das
propriedades das definições é sua verdade necessária, ou seja, uma definição deve
necessariamente dizer que e o que um estado ôntico é, deve exprimir o ser
essencial (   ) deste estado ôntico. Assim, a
definição de verdade e falsidade apresentada pelo estagirita pode ser considerada
mais propriamente como uma meta-definição, como um princípio, critério ou
condição necessária (ainda que não suficiente) que todas as definições devem
satisfazer para serem definições e exprimirem a identidade necessária do que é
definido, seu ser por si mesmo ( ☯  ☺). A partir
da identidade necessária e necessariamente verdadeira das definições, pode-se
aplicar a verdade ou a falsidade como propriedade de todas as outras formas de
predicação, enquanto exprimem uma identificação relativa, parcial ou não-
necessária. Neste sentido, são as definições que preenchem de modo mais
adequado a definição de verdade e, assim, podem ser o sentido de predicação que
serve como significado focal para a verdade ou falsidade dos demais sentidos ou
tipos de predicação.
Foi dito antes que a verdade ou falsidade em seu sentido transcategorial ou
transcendental está instanciada na correlação entre pensamento e realidade através
da linguagem. Esta correlação foi chamada de asseveração e corresponde ao que
verdade e falsidade exprime não apenas uma identidade ou diferença semântica, mas também
sintática, ambas pressupondo uma identidade ontológica do estado ôntico referido.
246
Aristóteles denominou de enunciação asseverativa
( ). Em toda enunciação asseverativa
está em jogo uma determinada correlação entre atos de pensamento e estados
ônticos por eles visados, através de alguma estrutura lógico-semântica adequada.
A definição de verdade e de falsidade aristotélica consiste, portanto, em uma
condição de verdade transcategorial de toda e qualquer enunciação asseverativa e,
assim, de todo o valor de verdade que entidades mentais, lógico-semânticas e reais
podem assumir a partir de sua correlação realizada nas asseverações.
A “prova” de que o estagirita postula sua definição do ser-verdadeiro e do ser-
falso em sentido transcategorial, a partir de uma tal correlação entre atos de
pensamento e aquilo que é visado pelos mesmos nas enunciações, é dada logo após
a passagem em questão quando argumenta:
“Ademais, todo o compreendido e apreendido
[   ] <é>
afirmado ou negado pela compreensão [☺ ] – e
isto é evidente pela definição <do ser-verdadeiro e do ser-falso>
quando <assevera> de modo verdadeiro ou falso: de um lado,
quando compõe de certo modo, afirmando ou negando,
<assevera> de modo verdadeiro [], de outro
lado, quando <compõe> de certo modo <assevera> de modo falso
[].”
127
127
Metafísica, Livro IV , cap. 7, 1012 a 2-5:
☯      ☺ 
 
     ⌧ ☺  
      ☺
  
    ☺ 
. Note-se que aqui diferentemente de outros textos (como o trecho do tratado Da interpretação
antes comentado), onde a negação é compreendida como uma separação e a afirmação como uma
composição a asseveração, seja afirmativa ou negativa, é pensada como uma composição
(). No entanto, tal vacilação” terminológica não compromete a teoria aristotélica
da enunciação asseverativa ( ), pois o essencial nesta
teoria consiste justamente em que os processos intencionais e cognitivos do pensamento estão
247
Nesta passagem, é clara a postulação de que as asseverações são sempre
instanciadas em atos de pensamento que compõem enunciações predicativas
referentes a estados ônticos reais.
Postos estes esclarecimentos é possível analisar e formalizar diretamente a
definição de verdade e de falsidade apresentada por Aristóteles.
Pode-se formalizar do seguinte modo a definição aristotélica de verdade
relativamente às asseverações afirmativas:
(f & Pf VPf),
onde a letra ‘f ‘ representa um fato subsistente ou estado ôntico qualquer, a letra ‘P
representa um ato de pensamento que assevera o fato f e a letra ‘V’ simboliza o
meta-predicado ser-verdadeiro atribuído ao ato de pensamento ‘P’. Assim, a forma
lógica antes proposta pode ser lida como:
fundados, se compõem e se realizam, em última instância, na afirmação e na negação e nos
possíveis valores de verdade que estas podem receber. No mesmo sentido da passagem em questão
as asseverações, afirmativas ou negativas, são pensadas como uma composição de entidades
mentais ou conceitos intencionais () também no tratado Da alma, Livro III, cap. 6,
430 a 26-430 b 5 (e ainda no cap. 8, 432 a 11-12 encontra-se a seguinte afirmação: “A fantasia é
distinta da afirmação e da negação, pois o verdadeiro e o falso são complexões de conceitos
intencionais.”/
☯  ☺     
      
  
.), passagem que, além desta proximidade terminológica, corrobora o trecho em questão,
enquanto postula a apreensão (/) e a compreensão () como se
realizando através da verdade ou falsidade das enunciações afirmativas ou negativas referidas a
algum estado ôntico, quer seja este estado ôntico complexo ou divisível (analisável) em conceitos
mais simples, quer seja um estado ôntico indivisível e, por isso, simples, na medida em que pode
entrar conceitualmente na composição de enunciações asseverativas que exprimem estados ônticos
complexos. No caso, porém, de se referirem a estados ônticos simples ou indivisíveis, as
asseverações são enunciados definitórios de identidade necessários (e por isso sempre verdadeiros),
em que os estados ônticos simples são explicados por uma afirmação (sem negação a ela
contraditória) e onde o definiens é sinônimo no mais alto grau do definiendum.
248
“necessariamente (se acontece o fato f e acontece o pensamento que assevera que é
o caso que f, então é verdadeiro o pensamento de que é o caso que o fato f
acontece).”
Tal é a formalização da condição necessária de verdade para uma asseveração
afirmativa qualquer. No caso de uma asseveração negativa verdadeira sua forma
lógica seria a seguinte:
(~ f & P ~ f VP ~ f),
formulação que pode ser traduzida como:
“necessariamente (se não é o caso que o fato f acontece e acontece o pensamento
que assevera que não é o caso que f, então é verdadeiro o pensamento de que não é
o caso que o fato f acontece).”
A partir disso, a definição de falsidade para uma asseveração negativa pode ser
formalizada do seguinte modo:
(f & P ~ f FP ~ f),
que se pode ler como:
“necessariamente (se o fato f acontece e acontece o pensamento que assevera que
não é o caso que f acontece, então é falso o pensamento que assevera que f o é o
caso)”.
No caso de uma asseveração afirmativa falsa, esta pode ser formalizada da
seguinte maneira:
(~ f & Pf FPf),
que se pode ler assim:
“necessariamente (se não é o caso que o fato f acontece e acontece o pensamento
que assevera que f é o caso, então é falso o pensamento que assevera que f é o
caso).”
249
A partir destas formalizações das possibilidades do ser-verdadeiro e do ser-
falso como meta-predicados de atos de pensamento que asseveram negativa ou
afirmativamente algo acerca de algo, pode-se fazer uma formalização geral do ser-
verdadeiro nas asseverações, que pode ser expressa do seguinte modo:
( &  V),
formulação que se pode ler do seguinte modo:
“necessariamente (dado o estado ôntico (= f ou não f) e o ato de pensamento
que assevera (afirmativa ou negativamente) ser o caso o estado ôntico , então é
verdadeiro o pensamento que assevera o estado ôntico )”.
A formulação geral do ser-falso nas asseverações pode ser expressa do seguinte
modo:
( & ~ F~),
formulação que se pode ler do seguinte modo:
“necessariamente (dado o estado ôntico e o ato de pensamento que assevera
(afirmativa ou negativamente) não ser o caso o estado ôntico , então é falso o
pensamento que assevera não ser o caso o estado ôntico ).”
Aqui a negação possui um sentido de não identificação ou não isomorfismo entre
um dado estado ôntico (que pode ser uma correlação de itens que ocorre ou não
ocorre, isto é, f ou ~ f ‘) e o pensamento que assevera sobre este estado ôntico algo
que não o apresenta corretamente, que representa este estado ôntico de forma
oposta a como ele é ou não é.
Em todas estas formalizações a definição de verdade e falsidade é interpretada
como uma implicação estrita constituída pela conjunção de um estado ôntico e de
uma asseveração realizada através de um ato de pensamento. Esta conjunção
250
representa lógica e semanticamente a correlação entre pensamento, linguagem e
realidade posta em jogo nas asseverações. O sentido de tal implicação estrita
mostra que a definição aristotélica da verdade e da falsidade compreende a
verdade ou falsidade de uma asseveração como um resultado causal de uma
correlação enunciativa entre um ato de pensamento e o estado ôntico por ele
visado. As formalizações preservam também o espírito realista que perpassa a
concepção aristotélica da verdade e da falsidade, na medida em que se deve ter
primeiramente um determinado estado ôntico que é, então, visado por uma
asseveração instanciada por um ato de pensamento, e somente então se tem como
resultado o valor de verdade desta asseveração.
Tomando-se os conseqüentes destas implicações, são válidas as seguintes
implicações estritas inversas:
(1) (VPf f)
(2) (VP ~ f ~ f)
(3) (FPf ~ f)
(4) (FP ~ f f)
Em (1) e (2), tem-se o caso de um isomorfismo entre a asseveração e o estado
ôntico visado pela mesma, o que permite fazer a passagem simples entre o
conteúdo lógico-semântico da asseveração e o estado ôntico por ela visado e
representado. Em (3) e (4), tem-se o não-isomorfismo entre a asseveração e o estado
251
ôntico por ela referido, o que faz com que a falsidade da asseveração acarrete a
existência do sentido oposto daquele instanciado na asseveração
128
.
A partir destas formulações gerais pode-se estabelecer as seguintes
equivalências ou bi-implicações necessárias entre as asseverações verdadeiras e
falsas:
(5) ((VPf ) (FP ~ f))
(6) ((FPf ) (VP ~ f))
De (5) e (6), pode-se retirar as seguintes formulações equivalentes aos
princípios de não-contradição e do terceiro excluído instanciados na definição de
verdade e de falsidade:
(7) [((VPf ) (VP ~ f)) (~ ((VPf) & (VP ~ f))]
(8) [((FPf ) (FP ~ f)) (~ ((FPf) & (FP ~ f))]
Na formulação (7), tem-se a postulação de que se necessariamente ou a
afirmação é verdadeira ou a negação de um determinado sentido de um estado
ôntico é verdadeira, então não é possível que ambas sejam verdadeiras. Tal
consiste na negação daquilo que se pode chamar de panalethia, ou seja, de que
qualquer asseveração é verdadeira. Segundo Aristóteles, a posição heraclítica
conduz à tese de que tudo é verdadeiro, o que nega a verdade tanto do princípio
128
No entanto, é preciso lembrar que estas implicações constituem o caminho inverso e posterior
àquele das implicações estritas causalmente anteriores e constituídas pela conjunção correlativa de
um estado ôntico e de um ato de pensamento que realiza e instancia uma asseveração sobre este
estado ôntico. Esta anterioridade dos estados ônticos, expressa na definição de verdade e falsidade,
será fundamentada no próximo capítulo, dedicado à resposta de Aristóteles ao problema dos
produtores e da produção de verdade.
252
de não-contradição, do terceiro excluído e de identidade (da definição de verdade
como isomorfismo entre asseveração e estado ôntico visado)
129
.
Na formulação (8), tem-se a postulação de que se necessariamente ou a
afirmação é falsa ou a negação de um determinado sentido de um estado ôntico é
falsa, então não é possível que ambas sejam falsas. Tal consiste na negação daquilo
que se pode chamar de panpseudia, ou seja, de que qualquer asseveração é falsa.
Segundo Aristóteles, a posição proveniente da tese de Anaxágoras, segundo a qual
tudo está misturado em tudo, conduz à tese de que tudo é falso, o que igualmente
nega a verdade do princípio de não-contradição, do terceiro excluído e de
identidade
130
. Assim, (7) e (8) mostram que necessariamente existem asseverações
verdadeiras e asseverações falsas.
É possível, ainda, tomar as formulações gerais das asseverações verdadeiras e
falsas e postular as seguintes implicações:
(9) (V 
(10) (F ~ )
Ou seja, em (9), dada uma asseveração verdadeira (afirmativa ou negativa) de
um estado ôntico , instanciada em um ato de pensamento , então é possível
concluir necessariamente a efetividade (verdade) do estado ôntico . Assim como,
em (10), dada uma asseveração falsa (afirmativa ou negativa) de um estado ôntico
~ , instanciada em um ato de pensamento , então é possível concluir
129
Veja-se Metafísica, Livro IV, cap. 8.
130
Veja-se Metafísica, Livro IV, cap. 8. Sobre a panalethia e a panpseudia algo mais será dito no
ultimo capítulo.
253
necessariamente a efetividade (verdade) do estado ôntico oposto, ou seja, do
estado ôntico .
Além disso, dado que, na perspectiva do estagirita, tanto estados ônticos
quanto atos de pensamento e os enunciados neles instanciados o portadores de
um valor de verdade, pode-se estender as implicações (9) e (10) de modo a
significarem do seguinte modo:
(11) ((V V  F ~ )
(12) ((F ~ V ) F ~ )
Note-se que ‘~ significa literalmente a negação do princípio do terceiro
excluído e, portanto, a afirmação da contradição, ou seja,
~ = ~ (f ~ f) = (f & ~ f)
O que indica justamente que ~ significa o mesmo que afirmar a
possibilidade de uma contradição e que a falsidade ou não-isomorfismo significa
uma contradição, no sentido de que o princípio de identidade é violado. Assim,
‘F ~ significa o mesmo que ‘F ~ ’, e isto, por sua vez significa o mesmo que
‘V ’, ou seja, ‘V (f ~ f) F (f & ~ f)’. A primeira parte da bi-implicação pode
ser expressa simplesmente como ‘V (f ~ f) V ((f f) (~ f ~ f))’. A segunda
parte da bi-implicação pode ser expressa simplesmente como ‘F (f & ~ f) F ((f
~ f)) & (~ f f))’. O que já foi indicado anteriormente. Em cada uma destas
formulações sintáticas, pode-se fazer a equivalência entre o primeiro símbolo e as
asseverações, de tal modo que a identidade ou identificação como condição
necessária para a verdade de uma asseveração se torna clara, bem como sua
254
compatibilidade com os princípios de não-contradição e do terceiro excluído, assim
como que a falsidade é justamente a incompatibilidade de uma asseveração com
estes princípios por sua violação do princípio de identidade, violação que é
inicialmente a violação da identidade própria ao que é referido no plano lógico-
semântico. Sobre a natureza desta compatibilidade ainda se falará no último
capítulo, quando se analisar o princípio transcendental de verdade tal como
postulado por Aristóteles. De qualquer modo, adiantando o que lá será comentado,
tem-se a determinação de critérios gerais de verdade para as asseverações na
definição de verdade e de falsidade.
Retomando o caminho principal da argumentação, pode-se dizer que
formulação (11) equivale a
(13) [(((VPf) (Vf)) (F ~ f)) (((VP ~ f) (V ~ f)) (Ff)]
E a formulação (12) equivale a
(14) [(((FPf) (V ~ f)) (Ff)) (((FP ~ f) (Vf)) (F ~ f))]
A partir de todas estas formalizações, pode-se perceber de que modo tanto atos
de pensamento quanto estados ônticos por estes visados podem receber seu valor
de verdade somente a partir do valor de verdade da correlação enunciativa entre
pensamento, linguagem e realidade instanciada nas asseverações, ainda que o
sentido destes valores de verdade não seja o mesmo mas signifique em cada um de
seus portadores algo diverso, tal como foi visto na primeira parte e também no
parágrafo anterior. De qualquer modo, o sentido dos valores de verdade
instanciados em cada tipo de entidade que pode ser portadora destes valores é
255
ontoaleticamente dependente do e posterior ao valor de verdade da correlação
entre atos de pensamento e estados ônticos reais, tal como se estrutura nas
enunciações asseverativas. Por conseguinte, pode-se asseverar de modo geral as
seguinte formulações:
(15) ((f & Pf VPf)) ((Vf) (f))
(16) ((~ f & P ~ f VP ~ f)) ((V ~ f) (~ f))
Em ambas as formulações o que se está fazendo é especificar aquilo que está
dito no critério de adequação material de Tarski, ou seja, (‘p p). Com isto,
mostra-se que a definição aristotélica da verdade é compatível com a definição
tarskiana, porém, apenas extensionalmente compatível, uma vez que seu sentido é
diverso.
Estes esclarecimentos são suficientes para se compreender qual o sentido geral
da definição aristotélica da verdade e como ela articula os portadores e os sentidos
de verdade que estes portadores podem ter em um âmbito transcategorial. Agora é
preciso entender porque a definição de verdade de Aristóteles possui este sentido
geral, ou seja, porque é pela conjunção entre um estado ôntico e uma asseveração
isomorfa ou não isomorfa a ele que ocorre em geral poder se aplicar primeiramente
à asseverações e posteriormente às suas partes os meta-predicados ser verdadeiro e
ser falso. Esta resposta será obtida investigando a concepção aristotélica dos
produtores de verdade.
256
CAPÍTULO II
OS PRODUTORES E A PRODUÇÃO DE VERDADE
SEGUNDO ARISTÓTELES
§ 1 – Introdução
No parágrafo anterior, foi analisada a definição transcendental de verdade e
falsidade estabelecida por Aristóteles. A verdade ou falsidade em sentido
transcendental ou transcategorial se aplica às asseverações, enquanto estas
realizam uma correlação isomorfa ou não-isomorfa entre atos de pensamento e
estados ônticos através dos enunciados
131
. A verdade ou falsidade de uma
131
Como corolário da argumentação anterior, pode-se retirar dos autos da história das
interpretações sobre a verdade em Aristóteles a seguinte passagem de Franz Brentano que concorda
plenamente com a presente interpretação:
“S’il est bien établi, ainsi, que la vérité n’a lieu au sens premier et véritable que dans le jugement de
l’entendement, cela n’exclut pas que le nom « vrai » puisse légitimement être attribué de façon
secondaire et analogue également aux facultés de la nature sensible et à la faculté de former des
concepts ainsi qu’aux choses elles-mêmes. De même que le nom « santé » s’attribue d’abord au
corps sain mais peut être étendu à quelque chose qu’on appelle « sain » parce que maintenant en
bonne santé, ou encore à quelque chose qui est signe de sanou capable de la recevoir (cf. Met. IV,
2, 1003 a 35) : de même le nom « vérité » s’attribue d’abord au jugement vrai puis au concept et à la
répresentation des sens ainsi qu’aux choses extérieures, c’est-à-dire à autant de choses étroitement
257
asseveração deriva necessariamente da conjunção entre um estado ôntico
(subsistente ou não subsistente) e um ato de pensamento que, instanciado em uma
ou várias enunciações afirmativas ou negativas, apresenta este estado ôntico
visado quer como e quando ele é (no caso da asseveração verdadeira) quer como e
quando ele não é (no caso da asseveração falsa). É esta correlação que pode ser
primariamente verdadeira ou falsa. A partir disso, percebe-se que o sentido
primário dos meta-predicados ser-verdadeiro e ser-falso é o de serem predicados
que se aplicam primariamente a esta ligação entre pensamento e realidade através
da linguagem, ou seja, de serem predicados relacionais. No caso desta correlação
ser verdadeira ela configura e realiza um isomorfismo intensional e extensional
entre pensamento e realidade através da linguagem. No caso desta correlação ser
falsa ela falha em configurar e realizar este isomorfismo. Quando uma correlação é
verdadeira, pode-se atribuir a fortiori um sentido de ser-verdadeiro ao ato de
pensamento, aos enunciados que o instanciam e ao estado ôntico visado e
representado. Quando uma correlação é falsa, pode-se também atribuir a fortiori
um sentido de ser-falso, quer ao estado ôntico visado e representado, quer aos
en rapport avec lui. Car la réalité est, comme nous l’avons vu, ce dont dépend la vérité de notre
jugement ; or ce sont les concepts qui sont reconnus précisément, par l’entendement qui juge,
conforme ou non-conformes à l’être, ils contiennent du moins une égalité avec tel objet, une
inégalité avec tel autre, même s’ils n’effectuent pas l’égalisation ; et ces remarques s’appliquent
également aux répresentations de sens.“, in De la diversité des acceptions de l’être d’après Aristote, opus
cit., p. 44.
Foi apenas após a constituição das linhas gerais da presente interpretação que esta passagem foi
encontrada. Além de corolário da investigação sobre os portadores, os sentidos e a definição de
verdade e falsidade, ela introduz já àquilo que será objeto do presente capítulo. A congruência entre
a interpretação de Brentano e a presente investigação pode constituir um sinal de que esta se
encontra em bom caminho. Aquilo que o jovem Brentano chama aqui de julgamento’ corresponde
ao que na presente investigação se chama de ‘asseveração’, e aquilo que ele chama de conceitos’ ,
‘representações conceituais’ e ‘representações sensíveis’ equivale ao que aqui é chamado de ‘atos de
pensamento’, assim como o que chama de ‘coisas’ é aqui chamado de ‘estados ônticos’.
258
enunciados que o representam e que instanciam o ato de pensamento que visa o
estado ôntico em questão.
A partir desta definição aristotélica do ser-verdadeiro e do ser-falso, enquanto
meta-predicados relacionais aplicados primariamente às asseverações, percebe-se
que a causa de uma asseveração ser verdadeira é justamente o estado ôntico por
ela referido (visado e representado), ou seja, o os estados ônticos que
efetivamente produzem a verdade de uma asseveração, ainda que estes estados
ônticos referidos sejam outras entidades ou fatos mentais ou lógico-semânticos
132
.
Neste sentido, preserva-se tanto o realismo que perpassa o espírito do pensamento
aristotélico, quanto se mostra que não apenas entidades ou fatos reais em sentido
estrito, mas também entidades ou fatos mentais e lógico-semânticos podem ser
produtores de verdade para asseverações, na medida em que também são
entidades ou estados ônticos reais e identificáveis, ou seja, são entidades que
possuem um ser-essencial definível.
Se estas observações são corretas, então o realismo aristotélico quanto à relação
de produção de verdade está de acordo com aquele realismo mínimo antes
comentado quando da elucidação do problema acerca dos produtores de verdade,
de tal modo que o sentido do ser-real é colocado como significado (referência e
sentido) primário do ser-verdadeiro aplicável às asseverações e, assim, os estados
132
Isto é evidente pelos próprios tratados do estagirita dedicados aos processos e estruturas mentais
(como por exemplo o tratado Da alma e o sexto livro da Ética a Nicômaco) e os tratados dedicados aos
processos e estruturas significantes e cognitivas (como por exemplo os tratados Da interpretação, os
Tópicos e os Segundos analíticos), pois nestes tratados são justamente os atos de pensamento e as
entidades lógico-semânticas os estados ônticos referidos e investigados.
259
ônticos são pensados como produtores primários de verdade para as asseverações
enquanto se lhes aplica o predicado de ser-real. Este realismo mínimo consiste
como já foi comentado sumariamente na discussão acerca dos produtores de
verdade em postular um tipo de relação originária, simples e fundamental entre
pensamento linguagem e realidade, a partir da qual é possível realizar outros tipos
de correlações complexas entre pensamento, linguagem e realidade, que podem ser
verdadeiras ou falsas
133
. Esta relação fundamental, porém, como será visto, é
anterior na ordem do ser, mas posterior na ordem do conhecimento, ou seja, sua
definição exata pode ser encontrada após um longo percurso de investigação,
não sendo, portanto, dada de antemão, mas pressuposta em todas as relações
derivadas entre pensamento, linguagem e realidade. Se ela não fosse pressuposta,
então não poderia ser explicitada por meio das definições primárias obtidas
através das investigações empíricas. Assim, esta relação fundamental e fundante
está efetivamente presente em todas as relações que dela dependem, mas ela é a
última a ser reconhecida como tal, ou seja, através das relações dela derivadas ou
133
Esta relação originária, simples e fundamental entre pensamento, linguagem e realidade foi
postulada por Parmênides, mas o eleata excluía qualquer outro tipo de correlação que pudesse ser
verdadeira ou falsa, no que acabou por postular um “hiper-realismo” e um isomorfismo absoluto
que não tardou em mostrar suas conseqüências contra-intuitivas e paradoxais. Este isomorfismo
postulado por Parmênides foi reformulado e de certo modo enfraquecido por Platão e Aristóteles,
mas, em ambos, colocado como um requisito necessário para a possibilidade do conhecimento da
realidade como tal, requisito sem o qual o ceticismo emergente quanto à possibilidade das ciências
em geral e da filosofia enquanto ciência fundamental seria uma conseqüência inevitável. Assim,
este enfraquecimento da tese parmenídica visava efetivamente a defesa da necessidade e da
possibilidade do isomorfismo entre pensamento, linguagem e realidade indicado pelo próprio
Parmênides, tanto frente às conseqüências céticas dele derivadas (Zenão e Górgias), quanto frente
ao crescente ceticismo oriundo dos mobilistas radicais (Heráclito, Demócrito, Protágoras).
Paradoxalmente, portanto, as críticas platônica e aristotélica a Parmênides visavam salvar o
“coração” da teoria parmenídica, ou seja, a necessidade de uma identificação entre pensamento,
linguagem e realidade como condição de possibilidade da filosofia como ciência rigorosa e
fundamental acerca da totalidade.
260
dependentes se sabe que ela acontece, mas não se sabe, senão por uma longa
investigação, porque ela acontece e como ela acontece. Dentro do esquema
conceitual aristotélico, pode-se dizer que esta relação fundamental entre
pensamento, linguagem e realidade está presente, de modo implícito, na
percepção sensível como forma primária do saber humano, mas que é somente
através do caminho através da memória, da experiência, das artes e da ciência, e,
dentre as ciências, na metafísica, que esta relação fundamental se torna explícita,
definida e, portanto, é separada das demais formas de saber, recebendo sua
determinação teórica plena
134
.
Esta relação originária, simples e fundamental pode ser chamada por direito de
relação transcendental entre pensamento, linguagem e realidade, instanciada nas
asseverações primárias que o justamente as definições primeiras e
indemonstráveis, as quais são obtidas após um longo percurso indutivo de
definições provisórias (definições nominais). É neste tipo de relação transcendental
ou transcategorial que se pode encontrar o fundamento da teoria aristotélica da
dependência ontoalética na produção de verdade inter-categorial, ou seja, da
134
Uma corroboração parcial desta tese pode ser encontrada ao longo do artigo de Robert Bolton,
“Scepticisme et véracité de la perception dans le De anima et dans la Métaphysique d’Aristote”, in
Corps et âme, opus cit., pp. 295-328. A oposição aristotélica entre o que é mais conhecido para nós e o
que é mais conhecido por natureza mostra que esta relação fundamental entre pensamento,
linguagem e realidade está presente na percepção sensível e nas opiniões, porém ela deve ser
separada das falsas percepções e opiniões aestar depurada, nas definições primárias, de todas as
relações secundárias que implicam a possibilidade do erro. Neste sentido a relação fundamental
entre pensamento, linguagem e realidade é encontrada por um processo analítico de eliminação das
relações que podem ser falsas ou que são necessariamente verdadeiras, mas ainda não essenciais e
primárias. Se isto for correto, a oposição entre o que é mais conhecido para nós e o que é mais
conhecido por natureza não é propriamente uma oposição entre tipos diferentes de conhecimento,
mas entre tipos diferentes de especificação do que é conhecido.
261
relação de dependência ontoalética entre entidades mentais, lógico-semânticas e
reais, a relação veritativa que está instanciada nas asseverações concretas que são
os portadores primários de verdade ou falsidade. É nesta relação também que a
definição de aristotélica de verdade e falsidade encontra sua justificação última.
No entanto, encontra-se na obra do filósofo macedônio também a relação de
dependência ontoalética na produção de verdade intra-categorial, ou seja, a idéia
de que, a partir das asseverações afirmativas básicas (definições primárias dos
gêneros de ser), pode-se pressupor que entidades mentais primárias que são
produtoras de verdade para outras entidades mentais, como por exemplo, as
sensações são produtoras de verdade para imaginações e recordações; assim como
certas entidades lógico-semânticas que são produtoras de verdade para outras
entidades gico-semânticas, como por exemplo, os esquemas de inferência
(Barbara, Celarent, Darii, Ferio, etc.) são produtores de verdade para as conexões
inferenciais entre enunciados efetivos que os instanciam e preenchem; bem como
há entidades reais (em sentido estrito) que são necessariamente produtoras de
verdade para outras entidades reais, como por exemplo, a essência ()
de algo é produtora de verdade para os atributos acidentais que eventualmente
nela estão presentes
135
.
135
No restante do capítulo, porém, a relação de produção de verdade intra-categorial o será
tratada para que a investigação não se torne demasiado extensa. Além disso, uma vez evidenciada a
relação de dependência ontoalética na produção de verdade nas asseverações entre entidades de
diferentes categorias, a relação intra-categorial estará virtualmente mostrada, uma vez que basta
transpor a relação ontoalética entre asseverações e estados ônticos em geral para a relação
ontoalética entre asseverações, relação que se faz primariamente através das asseverações
afirmativas básicas em que as entidades primárias das categorias de entidades mentais, lógico-
262
§ 2 – A simultaneidade lógico-semântica da verdade e
a anterioridade ontológica dos produtores de verdade
Uma primeira passagem que evidencia que Aristóteles está consciente do
problema da dependência ontoalética que intercorre entre produtores e portadores
de verdade, encontra-se no capítulo 12 do tratado Categorias, quando da elucidação
dos vários sentidos do conceito de ‘anterior’:
“Parece, contudo, que além <dos sentidos> enumerados, ainda
um outro, pois dentre os <estados ônticos> que admitem a
conversão segundo a implicação de ser
[  
  ], o causador de
ser [ ☯ (...)  ] para um
dos dois, de qualquer modo e com razão, pode ser dito anterior por
natureza. Que algo assim, é evidente: pois o ‘ser-humano’
[  ☯] converte-se, segundo a
implicação de ser, em relação ao enunciado verdadeiro acerca dele,
pois se <algo> é <um> ser humano
[☯ ☯], <então> é verdadeiro o
enunciado pelo qual enunciamos que ‘<isto> é <um> ser humano’
[ ☯ ☯], e certamente este
converte-se, pois se <é> verdadeiro o enunciado pelo qual
enunciamos que ‘<isto> é <um> ser humano’, <então este algo> é
<um> ser humano. Porém, de modo algum, o enunciado
verdadeiro é causador de ser do estado ôntico
[ ] <referido>, <mas>, ao contrário, de certo
modo parece ser o estado ôntico o causador de ser verdadeiro o
enunciado, pois é pelo ser ou não <ser> do estado ôntico que o
enunciado é dito verdadeiro ou falso.”
136
semânticas e reais estão definidas e que, portanto, vêm a ser produtoras de verdade de outras
entidades do mesmo gênero.
136
Categorias, cap. 10, 14 b 10-22:
⌧      
   
       
   ☯ ☺ 
 
    ☯  
☯       ☯
 
263
Em primeiro lugar, é importante frisar que este trecho do polêmico tratado
sobre as Categorias não se encontra na parte do texto dedicada à análise dos
gêneros de predicados, mas na parte do tratado voltada àqueles conceitos que se
convencionou chamar de pós-predicamentos
137
, ou seja, aqueles conceitos que
ultrapassam e ligam diversas categorias entre si, conceitos que se pode chamar por
isso de transcategoriais ou transcendentais. Deste modo, a determinação do ser-
verdadeiro aqui encontrada diz respeito a um conceito transcendental e, assim, é
ela mesma uma determinação transcendental, na medida em que pode ser aplicada
a várias categorias de predicamentos ou gêneros de ser, posto que o conceito de
      
       
☯ ☯
 ☺     ☯ ☯
       
 ☺   
  ☯ ☯ ☯ ☯ 
☯  ☺     ☯
  
       
 ☯      
  
       
. Para um comentário sucinto mas esclarecedor deste trecho à luz do realismo
aristotélico, veja-se, de Terence Irwin, Aristotle’s first principles. Oxford: Clarendon, 1988, cap. 1, § 2.
Para um outro comentário desta passagem à luz dos esquemas conceituais operados nos Tópicos,
veja-se, de Vittorio Sainati, Storia dell’ Organon aristotelico, opus cit., cap. 3, § 3, pp. 153-154. Para um
comentário desta passagem a partir da definição semântica de verdade postulada por Tarski, veja-
se, de Blake E. Hestir, “A “conception” of truth in Plato’s Sophist”, art. cit., pp. 18 ss.
137
Para uma minuciosa análise da querela sobre a autenticidade do tratado (e uma defesa de sua
autenticidade), bem como sobre o possível acréscimo da parte sobre os pós-predicamentos (caps.
10-15) como texto de transição entre as Categorias e o tratado Da interpretação, veja-se, de Vittorio
Sainati, Storia dell’ Organon aristotelico, opus cit., cap. 3, §§ 1-5. É importante lembrar de passagem
que os pós-predicamentos são amplamente operados como instrumentos metodológicos na
determinação dos esquemas conceituais de análise da correção noética e validade lógico-semântica
das premissas, argumentos e inferências dialéticas, justamente porque são capazes de transitar e
perpassar as categorias e assim se aplicar aos quatro tipos de predicação postas em jogo nos
diálogos.
264
anterioridade é um conceito que se aplica diretamente à categoria fundamental da
essência ()
138
e, com isso, por analogia, às demais categorias pelo fato
de que tanto quanto a essência é anterior aos demais gêneros de ser, assim também
nos gêneros de ser que não a essência entidades primárias e anteriores
relativamente às demais entidades do mesmo gênero. Por isso, o que vale aqui
nesta passagem para este sentido específico de anterioridade deve se aplicar aos
diversos gêneros de ser, sendo, por isso, uma determinação de caráter
transcategorial.
O sentido de anterioridade discutido aqui se aplica aos estados ônticos que,
segundo o estagirita, “admitem a conversão segundo a implicação de ser”
(     
). Os dois conceitos fundamentais postos em jogo aqui e
que necessitam ser esclarecidos para se compreender o que é determinado na
passagem são justamente os conceitos de ‘conversão’ () e de
‘implicação do ser’ (  ). O
primeiro conceito é muito importante em toda a lógica aristotélica, sobretudo em
sua silogística. Na silogística a conversão é um conceito fundamental e pode ser
realizada quer entre termos de um enunciado (troca de sujeito e predicado), quer
entre enunciados com sentido equivalente (sobretudo na silogística modal), quer
138
Cf. Metafísica, Livro VII, cap. 1, 1028 a-1028 b 2, onde a essência é determinada como primária (e
evidentemente, por isso, como anterior) no discurso (), no conhecimento ()
e no tempo (). Ainda acerca da anterioridade da essência veja-se o capítulo 11 do livro
V da Metafísica, dedicado justamente à análise semântica dos vários sentidos de anterior e posterior.
265
ainda na ordem dos enunciados (seja entre as premissas, seja entre as premissas e a
conclusão) de uma inferência silogística
139
.
No entanto, o sentido do termo ‘conversão’ no contexto citado o é nenhum
destes, posto que o se trata aqui de uma conversão ao nível de enunciados, mas
entre os enunciados e os estados ônticos por eles referidos e representados de
modo verdadeiro. Este tipo de conversão é por isso caracterizado através do
conceito de implicação de ser (  )
140
.
139
Sobre os diversos usos e sentidos do conceito de conversão na silogística aristotélica, veja-se, de
Mario Mignucci, Gli analitici primi. Nápoles: Luigi Loffredo, 1969, notas ao capítulo 2 do Livro I, esp.
nota 5, pp. 193-194; e notas ao capítulo 3 do Livro I, esp. nota 1 (sumário), pp. 200-201. Por amor à
verdade e à beleza, é preciso elogiar as primorosas e extremamente rigorosas e minuciosas
introdução, tradução e comentários (exegéticos, interpretativos e críticos) dos Primeiros analíticos
realizadas pelo estudioso italiano, que discute ponto por ponto esta difícil e intrincada obra do
filósofo macedônio à luz de toda sua tradição interpretativa, desde os primeiros comentadores
gregos a os contemporâneos, sem, contudo, abdicar da defesa de suas próprias decisões
interpretativas, marcadas por uma extrema elegância hermenêutica, lógica e filosófica.
140
O conceito de implicação (/) foi
definitivamente estabelecido na história da lógica a partir da lógica megárica e estóica como
sinônimo da proposição condicional. Entretanto, a noção de implicação está fortemente presente
nas investigações lógico-semânticas de Aristóteles. É certo, porém, que este conceito é apenas
operado e não propriamente analisado e definido na lógica aristotélica, além de seus usos poderem
gerar certas ambigüidades quanto a seu sentido exato. Em certos momentos é usado como
sinônimo de implicação entre enunciados ou de bi-implicação semântica entre enunciados com o
mesmo sentido (cf., v. g., Da interpretação, caps. 7, 10, 13; Tópicos, Livro II, cap. 8; Primeiros analíticos,
Livro I, cap. 46), em outros momentos é usado como sinônimo de uma relação condicional de
inclusão entre termos (ou dos estados ônticos denotados pelos termos) (cf., v. g., Primeiros analíticos,
Livro I, caps. 27-29, Livro II, caps. 2-4; Tópicos, Livro II, caps. 4-7). Além disso, é comum nos textos
do estagirita o uso dos termos ☺e como sinônimos da relação
de implicação entre antecedente e conseqüente, o que torna ainda mais confusa a situação teórica e
a delimitação de sentido do conceito de implicação em sua obra. Para interessantes observações
acerca do termo ’, tanto em sentido nominal quanto verbal, sobretudo
como operado nos Tópicos, veja-se, de Vittorio Sainati, Storia dell’ Organon aristotelico, opus cit., pp.
50-63. Para uma comparação entre o conceito de conseqüência lógica em Aristóteles e o conceito de
conseqüência lógica na lógica estóico-megárica, veja-se, de Jaakko Hintikka, “Aristotle and the
“master argument” of Diodorus”, in American Philosophical Quarterly, vol. 1, 2, 1964, pp. 101-114,
esp. 104-107. Para uma análise lógica e exegética da implicação na lógica estóica, veja-se, de Benson
Mates, Stoic logic. Berkeley: Califórnia UP, 1961, pp. 42-51. Veja-se também, de Jean-Baptiste
Gourinat, La dialectique des stoïciens. Paris: Vrin, 2000, pp. 217-234.
266
O esclarecimento do sentido do conceito de implicação de ser é encontrado em
algumas passagens adjacentes ao contexto citado. Uma primeira caracterização da
implicação de ser, encontra-se ainda quando da elucidação do segundo sentido de
anterior:
“Em segundo lugar, porém, anterior> o que não se converte
segundo a implicação de ser, como por exemplo o <número> um
<é> anterior ao <número> dois, pois, de um lado, havendo <o
número> dois, <isto> implica imediatamente
[ ] haver o <número> um;
de outro lado, porém, a <existência> do <número> um não
necessariamente <implica> haver <o número> dois; por
conseguinte, a implicação de ser dos restantes <números> em
direção ao <número> um não se converte. Portanto, parece ser
anterior aquilo a partir do qual a implicação de ser não se
converte.”
141
Um outro trecho, no qual se caracteriza a anterioridade a partir da implicação
de ser que não se converte, encontra-se no capítulo 13 das Categorias (dedicado à
elucidação semântica dos sentidos de ‘simultâneo’) e oferece um exemplo muito
similar ao da passagem acima citada, mostrando a amplitude de aplicação deste
conceito, indicando-o deste modo claramente como um conceito que se pode
chamar de transcategorial ou transcendental, pois se no trecho anterior era usado
para caracterizar a anterioridade do número um frente aos demais números, e
assim aplicado à categoria de quantidade, agora é aplicado à relação entre os
141
Categorias, cap. 12, 14 a 27-33:
       
  
        
 ☯      ☺
  ☯ 
     
   ☺ ☺   
  
        
  ☺   .
267
gêneros e as espécies neles subsumidas, de maneira que se pode considerá-lo como
um conceito que se aplica a todos gêneros de ser ou categorias na medida em que
todos os neros de ser possuem espécies a eles subordinadas e posteriores. O
trecho é o seguinte:
“Os gêneros, porém, são sempre anteriores às espécies, pois não se
convertem <com as espécies> segundo a implicação de ser. Por
exemplo: de um lado, em havendo <a espécie> aquática, <então>
<o gênero> animal; <mas>, de outro lado, em havendo <o
gênero> dos animais, não necessariamente <a espécie>
aquática.”
142
Percebe-se desde estes trechos que o conceito de implicação de ser não está
necessariamente ligado ao conceito de conversão. Aquilo que o estagirita parece
denotar com o conceito de implicação de ser em ambas as passagens referidas pode
ser caracterizado e analisado de forma modal a partir do esquema inferencial do
modus ponendo ponens
143
do seguinte modo:
(a)(b){ [((Ea Eb) & Ea) Eb))] [( ~ (Ea & ~ Eb))) & (~ (Eb Ea))]}
144
142
Categorias, cap. 13, 15 a 4-7:
        
    
     ☯
 ☯    ☯  
 ☯ .
143
Para uma excelente e minuciosa análise lógico-interpretativa do modus ponens em e desde
Aristóteles a Boécio, veja-se, de Susanne Bobzien, The development of modus ponens in
antiquity”, in Phronesis, vol. 47, 2003, pp. 359-394.
144
Note-se que é preciso introduzir os operadores modais à frente de cada uma das partes desta
simbolização por causa da última parte, ou seja,
‘~ (Eb Ea)’,
equivalente à seguinte fórmula modalizada:
~ (Eb Ea)’,
a qual é equivalente à seguinte fórmula:
(Eb & ~ Ea)’.
Esta formulação, porém, não pode ser considerada equivalente à formalização sem o operador
modal, ou seja,
‘~ (Eb Ea)’,
268
pois a negação não modalizada significaria uma impossibilidade lógico-semântica simpliciter,
quando na realidade o que Aristóteles quer dizer é que a possibilidade de que a“implique”
(em algum, mas não em todos os casos) a existência de b’, mas tal implicação de existência não é
necessária e assim logicamente inválida (no sentido que a verdade da existência de ‘a não é
conseqüência lógico-semântica (necessária) da verdade da existência de b’), mas não equivalente a
algo impossível (necessariamente falso), ou seja, tal implicação é contingente (pode ser somente
factualmente verdadeira, mas não sempre verdadeira). É importante lembrar, em primeiro lugar,
que o estagirita ressalta mais de uma vez a diferença entre o falso e o impossível (cf., e. g., Do céu,
Livro I, cap. 12, 281 b 2-25; Metafísica, Livro IX, cap. 4, 12-14). Além disso, para o mestre do Liceu o
possível tem dois sentidos, um deles co-extensivo com o necessário (cf. Da interpretação, caps. 9, 13),
o outro, porém, (considerado o possível em sentido estrito) que significa aquilo que não é
necessário nem impossível (cf., Da interpretação, caps. 9, 13; Primeiros analíticos, caps. 3, 13; Metafísica,
Livro IX, cap. 8, 1050 b 8 ss.), o que pode ser brevemente esquematizado do seguinte modo:
( p) (~ p & ~ ~ p),
formulação que é equivalente à seguinte outra:
( p) ( ~ p & p)
a partir do que a formulação
(~ ) ~ (Eb Ea)
é equivalente à formulação
(~ ) ~ (Eb Ea) (~ ~) (Eb Ea).
O problema aqui está, porém, em que do possível o se pode inferir, de modo válido, nem o real,
nem o necessário, de maneira que se alguém inferir da existência do número 1 a existência do
número 2, então tal inferência possui um caráter possível, o que não preenche a definição modal
de inferência válida enquanto implicação estrita (necessária) e, assim, como conseqüência lógico-
semântica postulada por Aristóteles (cf. Tópicos, Livro I, cap. 1, 100 a 25-27; Primeiros analíticos, Livro
I, cap. 1, 24 b 18-23).
Para uma análise minuciosa dos dois sentidos do possível veja-se, de Mario Mignucci, Gli analitici
primi, opus cit., notas aos capítulos 3, 13 e 15 do Livro I. Neste último capítulo Aristóteles se vale
desta implicação fraca na redução ao absurdo utilizada para provar a validade dos quatro modos
da primeira figura silogística com a premissa maior categórica e a premissa menor possível. Mas
uma análise mais clara, filosófica e coerente dos sentidos de possível em relação às demais
modalidades e no contexto da silogística modal é encontrada no livro de Gilles G. Granger, La
théorie aristotélicienne de la science. Paris: Aubier Montaigne, 1976, cap. 7. Para uma discussão crítica e
defesa da noção de inferência silogística, entendida como conseqüência semântica, veja-se, nesta
mesma obra de Granger, o capítulo 5. A concepção de Granger se volta contra a incontornável e
magistral análise dos silogismos a partir do conceito de implicação formal, análise realizada por Jan
Lukasiewcz e Günther Patzig, respectivamente em La silogística de Aristóteles desde el punto de vista de
la lógica formal moderna; trad.: Josefina F. Robles. Madri: Tecnos, 1977; Die Aristotelische Syllogistik.
Göttingen: Vandenhöck & Ruprecht, 1969. É interessante notar, porém, que a idéia de analisar a
inferência silogística a partir da noção de implicação estrita, tal como na perspectiva desta
investigação, eliminaria muitas incompatibilidades entre estas duas concepções interpretativas,
posto que a implicação estrita é compatível tanto com o conceito de implicação material e formal,
quanto com o conceito de conseqüência lógico-semântica. Mas, ao que parece, tal idéia ainda não foi
posta em prática na exegese do sistema lógico aristotélico, talvez pelo receio dos intérpretes de ter
que admitir pressupostos e conceitos intensionais em uma lógica que quase sempre foi interpretada
pela tradição em bases extensionais.
269
Fórmula onde o símbolo ‘E’ representa o predicado ‘existe’
145
. Tomando-se o
exemplo dado pelo estagirita na primeira passagem citada, pode-se transpô-lo a
esta fórmula lógico-semântica do seguinte modo:
(2) (1) [((E2 E1) & E2) E1))] [( ~ (E2 & ~ E1)) & (~ (E1 E2))]
A partir desta análise lógico-semântica e modal, percebe-se que para Aristóteles
a implicação de ser é o conceito definitório (o definiens) de um dos sentidos de
anterior, pois da verdade (existência) do antecedente (=anterior) não se pode
seguir a falsidade (inexistência) do conseqüente (=posterior), mas da verdade
(existência) do conseqüente (posterior) não se pode implicar com necessidade a
verdade (existência) do antecedente (anterior), ou seja, não é (necessariamente)
verdadeira a conversão da implicação de ser quando aplicada a estados ônticos
cujos significados são determinados pela relação de anterior e posterior.
Note-se, contudo, que o conceito de implicação de ser não é aplicado apenas a
estados ônticos lógico-semânticos, ou seja, não diz respeito somente às entidades
145
O predicado de existência pode ser aqui considerado, à luz do que já foi discutido antes,
equivalente ao meta-predicado ‘ser-verdadeiro’ no sentido de ser real ou efetivo. A partir da lógica
modal o predicado ‘existe’ pode ser analisado do seguinte modo:
(Ex) (( y) (y = x))
A condição de verdade do predicado ‘existe’ na semântica dos mundos possíveis é definida do
seguinte modo:
[VE] <u, w> V(E) u Dw
O que se pode ler (interpretar) do seguinte modo:
“O par ordenado constituído pelo item individual u e o mundo possível w pertence à extensão do
ser-verdadeiro próprio ao predicado ‘E’ se, e somente se, o item individual u pertence ao domínio D
de itens individuais do mundo possível w.”
Nas fórmulas lógicas seguintes esta condição semântica permanecerá implícita para torná-las mais
breves. Para uma discussão lógico-semântica da definição do predicado ‘existe’ e suas condições
semânticas de verdade, veja-se, de G. E. Hughes e M. J. Cresswell, A new introdution to modal logic.
Londres/Nova Iorque: Routledge, 2001 (1996), respect. pp. 317, 292-293.
270
lingüísticas instanciadas nos enunciados, mas se estende a todos os estados ônticos
em que haja qualquer tipo de relação de anterioridade e posterioridade ou (como
ficará claro) uma correlação de simultaneidade. Isto mostra mais uma vez que para
o estagirita a análise da estrutura da linguagem implica e pressupõe a
determinação das estruturas noéticas e ontológicas, mas sobretudo que é o ponto
de vista ontológico em sentido transcendental que vigora, ou seja, o ponto de vista
da investigação dos modos de ser necessários que constituem a relação entre
pensamento, linguagem e realidade como tarefa primordial para a filosofia
pensada como metafísica. Por isso, em contraste com os sentidos temporal e
epistêmico de anterior, o sentido de anterior aqui analisado pode ser chamado, de
acordo com o esquema conceitual desta investigação, de sentido ontoalético (e
transcategorial) de anterioridade, posto que não apenas pode ser aplicado às
categorias de ser listadas explicitamente por Aristóteles, mas também à correlação
entre as categorias de entidades postas em jogo nas asseverações.
Ora, se as análises precedentes são corretas, então se segue que aquilo que o
filósofo macedônio denota com o conceito de ‘conversão segundo a implicação de
ser’ nada mais significa senão o que se pode chamar hoje de uma bi-implicação
estrita, ou seja,
(p q),
o que significa o mesmo que:
((p q) & (q p))
271
Este conceito pode ser expresso na seguinte formulação mais de acordo com o
sentido dado por Aristóteles à conversão segundo a implicação de ser:
(a)(b) {[((Ea Eb) & Ea) Eb))] & [((Ea Eb) & Eb) Ea))]}
146
.
A confirmação desta interpretação é encontrada na elucidação semântica de um
dos sentidos de ‘simultâneo’, onde o filósofo macedônio escreve:
“Simultâneos por natureza, porém, <são> aqueles <estados
ônticos> que se convertem segundo a implicação de ser, sem que,
de nenhum modo, um seja causador de ser para o outro. <Assim>,
por exemplo, no caso do dobro e da metade, pois, de um lado, estes
se convertem, em havendo o dobro, <então> a metade, e em
havendo a metade, <então> o dobro embora, de outro lado,
nenhum dos dois seja o causador de ser do outro.”
147
Na realidade, todo o capítulo sobre os vários sentidos de ‘simultâneo’ está
estruturado em uma simetria de oposição com o capítulo dedicado aos sentidos de
‘anterior’, a saber: ao que é anterior segundo o tempo se opõe o que é simultâneo
146
Esta formalização pode ser lida do seguinte modo:
“existe algum a, existe algum b, tal que: necessariamente {se [(existe a se, e somente se existe b) e
existe a), então existe b] e [se ((existe a se, e somente se existe b) e existe b), então existe a)]}.”
147
Categorias, cap. 13, 14 b 27-32:
       
   
   ☯   
      
 ☺
      
 ☯  ☯  ☺ ☯

     ☯ 
  . Praticamente a mesma formulação é encontrada no fim do mesmo
capítulo (15 a 7-9): “Com efeito, simultâneos por natureza o ditos aqueles <estados ônticos> que,
de um lado, se convertem segundo a implicação de ser, embora, de outro, de nenhum modo um é o
causador de ser para o
outro.”/      
      
   ☯    ☺
  
.
272
no tempo, ao que é anterior na ordem do conhecimento se opõe o que é simultâneo
na ordem do conhecimento, e ao que é anterior pela implicação de ser não
convertível se opõe o que é simultâneo pela implicação de ser que se converte.
A primeira citação, que é o tema central da presente discussão, porém,
apresenta uma situação anômala, posto que põe em jogo estados ônticos que sob
um aspecto são simultâneos, mas sob outro aspecto estão em uma relação de
anterior e posterior. Para compreender melhor esta peculiaridade semântica do
sentido de anterior que envolve a relação entre o ser-verdadeiro dos enunciados e
os estados ônticos a que se referem, é preciso analisar a última passagem citada.
O exemplo dado pelo mestre do Liceu para ilustrar o sentido do que é
simultâneo por natureza é o da bi-implicação necessária entre o ser o dobro e o ser
metade. Tais entidades fazem parte da categoria dos relativos. O capítulo 7 das
Categorias é dedicado à análise semântica dos sentidos do predicado geral ser-
relativo
148
. O capítulo começa enunciando os dois traços gerais que caracterizam
os relativos, a saber: “relativos são ditos aqueles <estados ônticos> os quais são
eles mesmos ditos ser desde outros ou de qualquer outro modo se referir a outro
<estado ôntico>.
149
Quatro são as características gerais dos estados ônticos
relativos: (a) admitirem contrariedade (6 b 15-19); (b) admitirem os graus do mais e
148
Para uma minuciosa análise deste capítulo veja-se, de Françoise Caujolle-Zaslawsky, “Les relatifs
dans les Categories”, in Concepts et catégories dans la pensée antique; (ed.) Pierre Aubenque. Paris: Vrin,
1980, pp. 167-195. Para uma discussão sobre o conceito aristotélico de relativo em contraste com a
concepção russelliana das relações em predicados diádicos, veja-se, de Thomas Moro Simpson,
Linguagem, realidade e significado, opus cit., pp. 40-56.
149
Categorias, cap. 7, 6 a 36-37:
       
 ☺  
 ☺ ☯  .
273
do menos (6 b 20-26); (c) a todo ente relativo necessariamente corresponde um
correlativo (6 b 27 ss); (d) serem simultâneos por natureza (7 b 15 ss). Dentre estas
características gerais dos relativos, são as duas últimas que interessam para o
contexto da presente análise, sobretudo a quarta característica.
Primeiramente, um breve esclarecimento quanto a característica dos estados
ônticos enquanto correlativos. O termo grego correspondente a ‘correlativo’ é
justamente ’, literalmente “o que se converte”. O
sentido da correlação como uma relação de conversão é determinado no plano
lógico-semântico e pressupõe (como todas as análises lógico-semânticas na obra de
Aristóteles) um compromisso com o plano ontológico das entidades denotadas por
este predicado geral. Apesar disso, a característica da correlação diz respeito,
sobretudo, às condições semânticas de sentido e referência (significação) das
denotações do estados ônticos relativos. A correlação indica, sobretudo, que as
entidades relativas sempre estão ligadas de algum modo a outras entidades de que
são relativas, constituindo tal ligação uma condição semântica necessária para sua
interpretação, definição e aplicação efetivas como predicados. Usando os exemplos
dados pelo estagirita, o significado de ‘dobro’ é dado e compreendido por sua
ligação de correlação com o significado de ‘metade’ e o significado deste termo
depende do significado de ‘dobro’; de modo análogo o significado de
‘conhecimento’ depende do significado de cognoscível’ e vice-versa. Aristóteles
analisa vários outros casos em que tal correlação parece não ocorrer ou não ocorre
de modo direto e determina, através destes casos, as regras semânticas (e assim de
274
certa forma ontológicas) da correlação, defendendo e mostrando que a significação
de todo estado ôntico relativo depende efetivamente da significação de um estado
ôntico correlativo, ou seja, algum ente cuja denominação se converte com aquilo de
que é relativo.
Os estados ônticos relativos ou, mais propriamente, correlativos possuem a
característica de serem simultâneos por natureza. É visível no seguinte trecho que
a determinação desta simultaneidade é realizada através da conversão segundo a
implicação de ser, ainda que este conceito não seja explicitamente evocado:
“Parece, porém, serem os <estados ônticos> relativos simultâneos
por natureza. E isto é verdadeiro na maior parte dos casos, pois o
dobro e a metade são simultâneos, e em havendo a metade,
<então> há o dobro, <assim como> em havendo o escravo, <então>
há o senhor, e também do mesmo modo para os outros <relativos>.
Além disso, estes <estados ônticos> o destruídos uns pelos
outros, pois em não havendo o dobro, <então> não há metade, e
não havendo a metade, <então> o o dobro; e igualmente nos
demais casos daqueles <relativos> deste <tipo>.
150
Reaparece nesta citação o exemplo do dobro e da metade como predicados
correlativos, sendo que a existência de um implica necessariamente a existência do
outro. Além disso, a conversão na implicação de ser é ainda determinada em sua
forma negativa, o que pode ser formalizado do seguinte modo:
150
Categorias, cap. 7, 7 b 15-22:
        
     
      
   ☺ ☯ 
  
 ☯   ☺  
   ☯    
☯  ☯   ☯ 
  ☺  ☯  ☯ 
 ☺   
 ☯  .
275
(a)(b) {[((Ea Eb) & ~ Ea) ~ Eb))] & [((Ea Eb) & ~ Eb) ~ Ea))]}
151
o que pode ser reduzido ao seguinte esquema:
(a)(b) [ (~ Ea ~ Eb)] [ ~ ((~ Ea & Eb) (~ Eb & Ea))].
À primeira vista, parece que a conversão semântica segundo a correlação, que
caracteriza necessariamente todos os estados ônticos relativos, seria compatível e
mesmo equivalente à conversão ontológica segundo a implicação de ser ou
simultaneidade por natureza, de tal modo que uma implicasse necessariamente a
outra no caso dos entes relativos.
No entanto, a simultaneidade por natureza não é uma característica definitória
de todos os estados ônticos relativos ou correlativos, apenas da maior parte. Em
alguns casos, os estados ônticos que são efetivamente correlativos e, assim, estão
em uma relação de conversão semântica em seu significado, não são simultâneos
por natureza. Isto fica claro a partir do seguinte trecho que segue imediatamente a
citação anterior:
“Contudo, parece que não é em todos os casos verdadeiro que os
<estados ônticos> relativos são simultâneos por natureza, pois o
cognoscível [ ] parece ser anterior ao
conhecimento [], posto que no mais das
vezes adquirimos os conhecimentos
[ ] dos estados ônticos
[] que subsistem previamente
[] aquisição do conhecimento>, pois
em poucos casos ou em nenhum chegamos a ver algum
conhecimento surgido simultaneamente ao que é conhecido. Além
disso, de um lado, destruído o cognoscível ,destrói-se o
151
Esta formalização pode ser lida do seguinte modo:
“existe algum a, existe algum b, tal que: necessariamente {[se (existe a se, e somente se, existe b) e
não existe a), então não existe b] e [se ((existe a se, e somente, se existe b) e não existe b), então não
existe a)]}.”
276
conhecimento <do mesmo>, mas, de outro lado, <destruído> o
conhecimento não se destrói <,por isso,> o cognoscível, pois em
não havendo o cognoscível, <então> não conhecimento posto
que então será conhecimento de coisa nenhuma –; contudo, em não
havendo conhecimento, nada impede que haja o cognoscível.”
152
Esta passagem tem uma importância fundamental para a interpretação da
primeira citação acerca do ser-verdadeiro. Aqui o conceito de conhecimento
significa o mesmo que ciência, no sentido daquele saber específico e definitivo
(necessariamente verdadeiro) acerca da natureza ou do ser essencial de algo. O
conhecimento científico (☺ ) como tal é uma entidade ou
fato noético e lógico-semântico sempre relativo àquilo a que se refere, ou seja, é
correlativo ao que é objeto de conhecimento, ao que é empírica e conceitualmente
cognoscível e ou conhecido ( )
153
. Mas, inversamente,
o cognoscível ou conhecido recebe esta denominação enquanto é objeto do
152
Categorias, cap. 7, 7 b 22-31:
        
     
     
 ⌧  ☺     

     
      ☯  
   
    ☯ 
     
 
      
   ☯  ☯ 
  
 ☯ ☯    
 ☯    .
153
É importante lembrar que a forma substantivada do adjetivo grego
  pode ser vertida tanto pela forma da possibilidade como “o
cognoscível”, quanto pela forma da efetividade como “o conhecido”, sendo variável conforme o
contexto e mesmo intercambiável em certos contextos, salva veritate, mas não em todos. Na presente
passagem é visível a predominância do sentido de cognoscível”, mas este sentido não exclui de
nenhum modo o outro.
277
conhecimento, ele é cognoscível na medida em que é passível de ser conhecido ou
é conhecido, na medida em que dele conhecimento. Enquanto correlativos
conhecimento e cognoscível dependem um do outro para a correta compreensão
de seu significado, ou, nas palavras do próprio filósofo, o conhecimento é dito
conhecimento do cognoscível e o cognoscível dito> cognoscível para o
conhecimento”
154
. Assim, enquanto correlativos semanticamente convertíveis,
poder-se-ia pensar que conhecimento e cognoscível seriam também simultâneos
por natureza e se converteriam segundo a implicação de ser, tal como ocorre
efetivamente para a maioria dos correlativos, como no exemplo do dobro e da
metade.
Se este fosse o caso, então seriam válidas de modo irrestrito as seguintes
formalizações (onde cg simboliza qualquer estado ôntico cognoscível ou
conhecido e ‘co’ simboliza o conhecimento referente àquele estado ôntico):
(1) (co)(cg) {[((Eco Ecg) & Eco) Ecg))] & [((Eco Ecg) & Ecg) Eco))]},
formulação que pode ser abreviada simplesmente pela seguinte:
(2) (co)(cg) ((Eco Ecg) & (Ecg Eco)).
Na forma negativa, a simultaneidade ou conversão segundo a implicação de ser
poderia então ser expressa como:
(3) (co)(cg){[((Eco Ecg) & ~Eco) ~Ecg))]&[((Eco Ecg) & ~Ecg) ~Eco))]},
154
Categorias, cap. 7, 6 b 33-34:
☺     
   
.
278
formulação que pode ser abreviada simplesmente pela seguinte:
(4) (co)(cg) ((~ Eco ~ Ecg) & (~ Ecg ~ Eco)).
Mas Aristóteles introduz nesta bi-implicação necessária uma diferenciação
entre a conversão de correlação ao nível semântico e a conversão da implicação de
ser na simultaneidade ao nível ontológico, pois embora o significado efetivo dos
conhecimentos específicos e o significado dos estados ônticos enquanto entidades
cognoscíveis (ou conhecidas) sejam co-dependentes, esta co-dependência
semântica não reflete a hierarquia ontológica que intercorre entre estes estados
ônticos, dado que o ser essencial do conhecimento (que é equivalente a seu ser-
verdadeiro) é por natureza – i. e. ontologicamente – dependente do ser essencial do
cognoscível (ou conhecido), mas a relação inversa não é verdadeira, pois o ser
essencial do estado ôntico cognoscível ou conhecido não é ontologicamente
dependente do ser essencial do conhecimento que a ele se refere, ele é apenas
dependente em sentido noético e lógico-semântico.
Na realidade, o ser significante e assim o ser conceitual de ambos é simultâneo
do ponto de vista noético (epistêmico) e lógico-semântico, mas não
ontologicamente (“por natureza”) simultâneo. Assim, a conversão de correlação
lógico-semântica entre conhecimento e cognoscível admite a conversão segundo a
implicação de ser, porém não de seu ser simpliciter, mas apenas de seu ser
significante e conceitual, ou seja, sua simultaneidade ontológica está restrita à bi-
implicação de ser no pensamento e no discurso
(  ), mas não na realidade
279
(  ). Por isso, a conversão segundo a implicação
de ser que eles admitem é restrita ao seu ser enquanto entidades noética e lógico-
semanticamente correlacionadas, mas não a seu ser essencial simpliciter, dado que o
ser essencial que define e identifica o conhecimento é o de ser um fato ou entidade
intencional (significante e cognitiva) voltada para e dependente de outros fatos ou
entidades sem as quais não poderia ser o que é. Por conseguinte, os esquemas (1)-
(4) são válidos somente enquanto se permanece ao nível do ser correlativo e
simultâneo em sentido noético e lógico-semântico que intercorre na relação entre
conhecimento e cognoscível, mas não o válidos quando esta simultaneidade é
pensada em termos ontológicos, pois é o ser essencial do conhecimento (no qual se
inclui sua verdade) que é dependente do ser essencial do cognoscível e não o
inverso. A conversão segundo a implicação de ser é válida na correlação entre
conhecimento e cognoscível somente enquanto o cognoscível é relativo (em sentido noético e
lógico-semântico) ao conhecimento que explicita, determina, identifica e define seu ser
essencial.
Para a defesa desta diferenciação, o filósofo macedônio põe em jogo dois
argumentos intuitivamente simples (ao menos desde o ponto de vista do realismo
mínimo presente no senso comum), mas logicamente bastante sofisticados:
(1) O primeiro argumento pode ser expresso do seguinte modo: o que é
conhecido é anterior ao conhecimento que dele se pode obter, o que se pode
interpretar, à luz da implicação de ser que caracteriza a anterioridade, como
indicando que a existência do conhecimento (verdadeiro) implica necessariamente
280
a existência do conhecido ou cognoscível, mas a existência do cognoscível não
implica necessariamente a existência do conhecimento, caso contrário não faria
nenhum sentido se falar de algo que se descobriu e de que, portanto, o se tinha
conhecimento anteriormente. Este argumento pode ser formalizado segundo um
esquema antes elaborado da seguinte maneira:
(5)(co)(cg){[((Eco Ecg)&Eco) Ecg))][(~(Eco & ~Ecg)))&(~(Ecg Eco))]}
Vale lembrar que a última parte desta fórmula (~ (Ecg Eco)), ou seja, “não
necessariamente se existe o cognoscível então existe o conhecimento”, é
logicamente equivalente a ( (Ecg & ~ Eco)), ou seja, “é possível que exista o
cognoscível e não exista o conhecimento.”
155
(2) O segundo argumento pode ser dividido em duas partes, a saber:
(i) a inexistência do conhecido ou cognoscível implica necessariamente a
inexistência ou a impossibilidade (falsidade necessária) do conhecimento;
Mas
(ii) a inexistência do conhecimento não implica necessariamente a inexistência
do cognoscível ou conhecido.
155
Pode-se apresentar abreviadamente a demonstração desta equivalência deste modo:
(1) (~ (Ecg Eco)) = ( ~ (Ecg Eco))
(2) ( ~ (Ecg Eco)) = ( ~ (~ Ecg Eco))
(3) ( ~ (~ Ecg Eco)) = ( (~ ~ Ecg & ~ Eco))
(4) ( (~ ~ Ecg & ~ Eco)) = ( (Ecg & ~ Eco)).
Note-se que na formulação apresentada cgtem o sentido de “cognoscível” e o de “conhecido”,
posto que este último sentido já implica semanticamente a existência do conhecimento a seu
respeito.
281
A formalização da primeira parte do argumento pode ser feita do seguinte
modo:
(6) (cg)(co) [((~ Ecg ~ Eco) & ~ Ecg) ~ Eco)]
Note-se que a primeira premissa deste argumento é uma conseqüência
necessária do seguinte argumento retirado da primeira premissa do argumento
anterior através do modus tollens, ou seja,
(7) (co)(cg) [((Eco Ecg) & ~ Ecg) ~ Eco))] [ (~ Ecg ~ Eco)]
A formalização da segunda parte do argumento pode ser feita do seguinte
modo:
(1) Dado que o seguinte argumento é falacioso
156
(lógica e ontologicamente
inválido):
(8) (cg)(co) [((~ Ecg ~ Eco) & ~ Eco) ~ Ecg))]
(2) Então de sua negação segue-se necessariamente:
(9) (cg)(co) [~ (~ Eco ~ Ecg) (~ Eco & Ecg)].
157
156
Trata-se do argumento sofístico inválido chamado pelos medievais de falácia do conseqüente”
(fallacia consequentis), expressamente diagnosticado e analisado por Aristóteles nas Refutações
sofísticas, cap. 5, 167 b 1-21, cap. 28, 181 a 22-31. Nos Primeiros analíticos, Livro II, cap. 16, tal falácia é
determinada como um dos tipos de petição de princípio, sendo caracterizada nos Segundos analíticos
(Livro I, cap. 3) como demonstração circular, epistemicamente inválida para a grande maioria dos
objetos de conhecimento. Sua refutação repousa sobre a própria definição modal de conseqüência
semântica ou implicação estrita, enquanto forma lógico-semântica geral de todas as inferências
silogísticas válidas, segundo a qual um antecedente verdadeiro necessariamente implica um
conseqüente verdadeiro, mas que é possível para um conseqüente verdadeiro ser obtido de um
antecedente falso, definição esta fundada explicitamente pelo estagirita no princípio de não-
contradição através da lei de contraposição (cf. Primeiros analíticos, Livro II, caps. 2 e 4).
157
Na realidade, o antecedente e o conseqüente desta implicação estrita são lógica e
semanticamente equivalentes. A demonstração abreviada disto é a seguinte:
(1) ~ (~ Eco ~ Ecg) = ~ (~ Eco ~ Ecg)
282
Do que se pode derivar por separação do conseqüente:
(10) (cg)(co) (~ Eco & Ecg).
A partir destas análises, percebe-se que (10) é equivalente à última parte de (5),
ou seja, ambos os argumentos são logicamente compatíveis, de maneira que
afirmar a anterioridade do cognoscível frente ao conhecimento é o mesmo que
dizer que a inexistência do estado ôntico cognoscível implica a não existência do
conhecimento, mas que a inexistência do conhecimento não implica de modo
válido a não existência do cognoscível. Assim, os argumentos levantados por
Aristóteles mostram que da correlação e da bi-implicação estrita entre
conhecimento e cognoscível no plano semântico não se segue uma bi-implicação de
simultaneidade no plano ontológico, ou, de modo mais apropriado à perspectiva
da presente investigação, não há uma interdependência ontoalética entre estes
estados ônticos correlativos, mas uma relação de dependência ontoalética por parte
do conhecimento em relação ao cognoscível.
Com efeito, o apenas a correlação entre o conhecimento e o cognoscível é
excetuada da caracterização de ser simultânea por natureza. Também na correlação
entre a percepção e o perceptível, este último é pensado, em consonância com o
realismo aristotélico, como anterior à percepção, pois também entre a percepção e
(2) ~ (~ Eco ~ Ecg) = ~ (~ ~ Eco ~ Ecg)
(3) ~ (~ ~ Eco ~ Ecg) = ~ (Eco ~ Ecg)
(4) ~ (Eco ~ Ecg) = (~ Eco & ~ ~ Ecg)
(5) (~ Eco & ~ ~ Ecg) = (~ Eco & Ecg).
É importante lembrar que todas as regras de derivação utilizadas nesta demonstração rudimentar (e
na apresentada antes) são expressamente reconhecidas por Aristóteles em diversos de seus escritos
e investigações lógico-semânticas.
283
o perceptível a conversão semântica da correlação não é equivalente à conversão
ontológica (ou ontoalética) da implicação de ser
158
. Assim, também a correlação
semântica entre percepção e perceptível não corresponde, no plano ontoalético, a
uma interdependência entre ambos, pois uma dependência ontoalética da
percepção em relação ao perceptível.
Após esta longa análise em torno aos conceitos de conversão e de implicação de
ser, é possível retomar o trecho inicialmente citado e explicitar de modo adequado
seu sentido próprio, ligando-o ao problema da dependência ontoalética entre
portadores e produtores de verdade. É interessante, para facilitar a leitura e
análise, revocá-lo aos olhos da memória:
“Parece, contudo, que além <dos sentidos> enumerados, ainda
um outro, pois dentre os <estados ônticos> que admitem a
conversão segundo a implicação de ser
[  
  ], o causador de
ser [ ☯ (...)  ] para um
dos dois, de qualquer modo e com razão, pode ser dito anterior por
natureza. Que algo assim, é evidente: pois o ‘ser-humano’
[  ☯] converte-se, segundo a
implicação de ser, em relação ao enunciado verdadeiro acerca dele,
158
Cf. Categorias, cap. 7, 7 b 35-8 a 12. Todos os esquemas lógicos e argumentos antes analisados
valem também para a relação entre percepção e perceptível, podendo-se substituir ou ler em todos
o mbolo lógico correspondente ao conhecimento como correspondente à percepção e o símbolo
correspondente ao cognoscível como correspondente ao perceptível. A defesa da anterioridade do
sensível sobre a sensação desempenha papel fundamental na crítica ao relativismo radical de
Protágoras, crítica encontrada em Metafísica, Livro IV, cap. 6. Este contexto corrobora mais uma vez
a autenticidade do tratado sobre as Categorias frente àqueles que pretendem que o tenha sido
escrito pelo filósofo macedônio. Sem dúvida várias diferenças profundas entre este tratado e
outros, mas tais diferenças no tratamento dos temas são muito menos numerosas do que as
similaridades temáticas e argumentativas que intercorrem entre esta obra, escrita muito
provavelmente na “juventude”, e as demais obras que versam sobre os mesmos temas ou temas
afins. Para uma excelente e minuciosa análise crítica e exegética da mudança no esquema conceitual
de tratamento da essência nas Categorias frente ao esquema conceitual de tratamento do mesmo
tema em Metafísica, Livro VII, cap. 3, veja-se, de Lucas Angioni, “Não ser dito de um subjacente”,
“um isto” e “separado”: sobre o conceito de essência como subjacente e forma (Z-3)”, in Cadernos de
História da Filosofia e da Ciência, série 3, vol. 8, nº especial, pp. 69-126.
284
pois se <algo> é <um> ser humano
[☯ ☯], <então> é verdadeiro o
enunciado pelo qual enunciamos que ‘<isto> é <um> ser humano’
[ ☯ ☯], e certamente este se
converte, pois se <é> verdadeiro o enunciado pelo qual
enunciamos que ‘<isto> é <um> ser humano’, <então este algo> é
<um> ser humano. Porém, de modo algum, o enunciado
verdadeiro é causador de ser do estado ôntico
[ ] <referido>, <mas>, ao contrário, de certo
modo parece ser o estado ôntico o causador de ser verdadeiro o
enunciado, pois é pelo ser ou não <ser> do estado ôntico que o
enunciado é dito verdadeiro ou falso.”
Diante do anteriormente discutido, esta passagem revela agora seu sentido
pleno para a presente investigação. Primeiramente, o mestre do Liceu determina
qual o conjunto ou extensão dos estados ônticos aos quais se aplica o sentido de
anterioridade proposto. Trata-se daqueles estados ônticos “que admitem a
conversão segundo a implicação de ser”. De acordo com o que foi visto, tais
estados ônticos pertencem efetivamente à categoria do ser-relativo, pois para estes,
no mais das vezes, ocorre serem simultâneos por natureza e, assim, se converterem
segundo a implicação de ser que se segue de sua conversão semântica por
correlação.
Em segundo lugar, porém, o filósofo macedônio impõe uma condição para o
tipo de estados ônticos relativos de que fala, a saber: que um dos dois seja o
causador de ser ( ☯  ) para o outro e,
enquanto causador de ser, seja, por isso, anterior por natureza ao outro. Ora, como
foi visto, a simultaneidade por natureza, definida através da conversão segundo a
implicação de ser, é caracterizada justamente pelo fato de que, entre os estados
285
ônticos simultâneos, “de nenhum modo, um seja causador de ser para o outro”,
condição satisfeita, por exemplo, entre o ser dobro e o ser metade. A partir disso,
segue-se que os estados ônticos relativos a que se aplica este sentido de anterior
sejam, de um lado, convertíveis segundo a implicação de ser, mas, de outro lado,
que não sejam simultâneos por natureza.
Num terceiro momento, contudo, entrevendo a difícil inteligibilidade destas
condições, Aristóteles passa a mostrar como de fato existem estados ônticos deste
tipo a que se pode aplicar este sentido de anterioridade. Segue-se, então, a parte
central do texto e aquela parte que é central para esta investigação. Qualquer
semelhança entre o exemplo dado pelo filósofo e a condição ou critério tarskiano
de adequação material para a definição do ser-verdadeiro não é mera coincidência.
Aquilo que o estagirita exprime aqui é, segundo sua terminologia, a conversão
(necessária) segundo a implicação de ser entre uma enunciação verdadeira e o
estado ôntico a que ela se refere. A partir dos esquemas lógicos antes elaborados,
esta passagem pode ser analisada do seguinte modo (onde ‘a simboliza uma
asseveração (verdadeira) e osimboliza o estado ôntico a que esta asseveração se
refere):
(a) (o) ((Ea Eo) & (Eo Ea)),
ou ainda, de forma mais elaborada e mais próxima ao texto:
286
(a) (o) {[((Ea Eo) & Ea) Eo))] & [((Ea Eo) & Eo) Ea))]}
159
Para mostrar que aquilo que Aristóteles está dizendo aqui não é um episódio
isolado dentro de sua obra, mas desempenha um papel muito importante em suas
teorizações sobre a verdade, é interessante evocar uma passagem em que,
malgrado uma leve diferença terminológica, a noção de conversão é usada no
mesmo sentido da passagem analisada, enquanto uma conversão entre um
enunciado verdadeiro e o estado ôntico por ele referido. O trecho evocado se
encontra nos Tópicos, quando o estagirita compara o caráter contingente da
predicação acidental com o caráter necessário das predicações realizadas na
definição, no gênero e no próprio, justamente através do conceito de conversão
entre a enunciação e o estado ôntico por ela representado e visado. A passagem
indicada diz:
“Contudo, o mais difícil é a conversão da denominação
[] própria ao acidente, pois somente acerca
dos acidentes é possível que <algo subsista> em certo aspecto e não
universalmente. Com efeito, a partir da definição, do próprio e do
gênero a conversão é necessária. Por exemplo, se em algo subsiste
[☺] o ser animal pedestre bípede, conversamente
[] será verdadeiro dizer que ‘<isto> é
animal pedestre bípede’. Do mesmo modo a partir do gênero: pois
se subsiste em algo o ser animal, <então de modo converso será
verdadeiro dizer que> <isto> é animal’. O mesmo todavia acerca
do próprio: pois se subsiste em algo o ser apto a aprender
gramática [aprender a ler e escrever], <então> será <verdadeiro
dizer conversamente que> <isto é> apto a aprender gramática’.
Posto que em nenhum destes <estados ônticos> é possível o
subsistir ou não subsistir segundo algum <aspecto>
[ ], mas pura e simplesmente [☺] o
159
Note-se aqui a mudança na quantificação, devida ao fato de que a enunciação é uma entidade
geral que pode representar tanto um conhecimento quanto uma percepção, bem como outras
entidades intencionais. O sentido desta mudança ficará mais claro na seqüência do texto.
287
subsistir ou não subsistir. Porém, acerca dos <estados ônticos>
acidentais nada impede o subsistir segundo algum <aspecto>.
160
Primeiramente, desconsiderando a especificidade contextual e a diferença
terminológica, vê-se nesta passagem um uso do conceito de conversão muito
similar àquele do texto das Categorias, ainda que não acompanhado da
especificação “segundo a implicação do ser”. Nesta passagem, como na anterior,
não se trata de uma conversão entre entidades lógico-semânticas (enunciados),
mas de uma conversão que se pode chamar, à luz do esquema conceitual desta
investigação, de uma conversão ontoalética, ou seja, uma correlação isomorfa entre
a extensão e intensão do conteúdo lógico-semântico de um enunciado e o
“conteúdo” ontológico do estado ôntico referido e representado pelo enunciado
que a ele se correlaciona.
160
Tópicos, Livro II, cap. 1, 109 a 10-21:
☯      
  
      
       
 
        
   
☺  
    
☯      
 ☺  
      ☺
       
    
☺    
  ☯   
 
  ☺   ☺ 
☺ ☺   ☺  
 
    ☺.
288
Levando em conta a especificidade do contexto desta citação, percebe-se o quão
importante é o conceito de conversão ontoalética dentro das teorizações
aristotélicas sobre a verdade e a falsidade, pois este conceito é pensado como
condição necessária que determina a relação veritativa das quatro formas gerais de
todas as predicações possíveis com os estados ônticos a elas correlacionados, e,
assim, determina todos os tipos possíveis de identificação entre pensamento,
linguagem e realidade que as asseverações realizam de modo verdadeiro. É visível
neste trecho que é necessário que um ou mais atributos subsistam de fato
(verdadeiramente) no estado ôntico, de tal modo que seja verdadeiro, no nível da
enunciação asseverativa, exprimir pela predicação estes atributos inerentes
(subsistentes) ao estado ôntico visado, e se tal ocorre, então se forma uma
correlação entre o enunciado asseverativo e o estado ôntico a que se refere. Além
disso, é importante ressaltar a divisão entre, de um lado, a correlação direta ou
simpliciter entre as enunciações que representam atributos definitórios, próprios e
genéricos e, de outro lado, a correlação referente aos atributos acidentais ou
concomitantes, a qual exige especificações (condições) adequadas para poder ser
considerada verdadeira. Na realidade, para além desta divisão geral e ao longo dos
labirínticos livros e capítulos que compõem os Tópicos, cada um dos tipos de
predicação terá suas próprias condições (regras) lógico-semânticas para decisão
sobre a verdade ou falsidade das asseverações que as instanciam, condições que
são determinadas a partir dos tipos de estados ônticos (os predicáveis) a que se
referem.
289
Voltando ao texto das Categorias, Aristóteles acrescenta um quarto momento
adversativo quanto à correlação de simultaneidade entre a enunciação verdadeira
e o estado ôntico por ela referido e representado. É este momento que interessa
sobremaneira à explicitação do problema da dependência ontoalética entre os
produtores e os portadores de verdade segundo Aristóteles. Este momento
corresponde justamente à discussão daqueles estados ônticos que apesar de serem
correlativos não são, por isso, naturalmente (ontologicamente) simultâneos. Apesar
de haver uma conversão (necessariamente verdadeira) segundo a implicação de ser
entre a enunciação verdadeira e o estado ôntico por ela referido, esta bi-implicação
noética e lógico-semântica não reflete a efetiva relação de anterioridade ontológica
dos estados ônticos frente às enunciações asseverativas que se referem e
apresentam estes estados ônticos.
A análise da anterioridade ontológica do cognoscível frente ao conhecimento e
do perceptível frente à percepção revela agora sua importância para a
interpretação da anterioridade dos estados ônticos frente às enunciações
verdadeiras acerca dos mesmos. Na medida em que o enunciados dizem respeito
quer a estados ônticos sensíveis (particulares) quer a estados ônticos inteligíveis
(universais)
161
, então aquilo que vale para a correlação entre percepção e
161
Cf. Da interpretação, cap. 7, 17 a 37-17 b 3: “Posto que dentre os estados ônticos há, de um lado, os
universais e, de outro, os singulares, denomino, de um lado, universal aquilo que por natureza é
predicado de muitos, singular, de outro lado, aquilo que não <se predica de muitos>, como por
exemplo, de um lado, ‘homem’ <faz parte> dos universais, de outro lado ‘Cálias’, <faz parte> dos
singulares , então, necessariamente, assevera-se algo como subsistente ou não <subsistente> em
algo, por vezes acerca dos <estados ônticos> universais, por vezes acerca dos singulares”/
 
290
percebido e entre conhecimento e cognoscível vale também para a correlação entre
os enunciados que instanciam conhecimento e percepção e os estados ônticos
correlativos a estes enunciados, dado que todos os enunciados devem se referir, de
algum modo, a algo para serem verdadeiros ou falsos. Na realidade, dado que para
Aristóteles todas as estruturas e processos mentais cognitivos são acompanhados
pela e instanciados na linguagem, mostra-se então que a anterioridade dos estados
ônticos em relação aos enunciados verdadeiros que a eles se referem possui um
caráter geral que abarca tanto a relação entre conhecimento e cognoscível quanto a
relação entre percepção e perceptível, bem como qualquer tipo de ato de
pensamento ou estado mental correlacionado intencionalmente a algum estado
ôntico, ou seja, qualquer correlação intencional entre algum tipo específico de ato
de pensamento e o tipo específico de estado ôntico por ele visado está englobada
dentro da correlação geral entre enunciações asseverativas e estados ônticos.
A anterioridade dos estados ônticos em geral frente às enunciações
asseverativas que os representam e a eles se referem pode ser exposta segundo o
esquema lógico da anterioridade segundo a implicação de ser explicitado
anteriormente, apenas alterado quanto à extensão da quantificação (novamente
       
        
  
      
  ☯    
  
     ☺ ☺
        
☺   
.
291
tomando a como símbolo para uma asseveração verdadeira e o como símbolo
para o estado ôntico a que ela se refere):
(a) (o){ [((Ea Eo) & Ea) Eo))] [( ~ (Ea & ~ Eo))) & (~ (Eo Ea))]}
162
Através deste esquema, pode-se entender em que sentido a anterioridade em
geral dos estados ônticos frente às enunciações asseverativas indica justamente que
estes estados ônticos são os “causadores de serpara as asseverações que a eles se
referem. Dado que o ser essencial das asseverações consiste em serem portadoras
de um valor de verdade (serem verdadeiras ou falsas), então é justamente a
existência ou não existência dos estados ônticos referidos que é causa
163
de serem
verdadeiras ou falsas, ou seja, os estados ônticos são produtores de verdade para
as asseverações em geral. E dado que as asseverações instanciam atos de
pensamento ou fatos mentais, então os estados ônticos são produtores de verdade
162
Isto pode ser lido deste modo:
“Para toda asseveração verdadeira a, existe ao menos um estado ôntico o a que ela se refere, tal que
(necessariamente, se
(se ((se existe uma asseveração verdadeira a, então existe o estado ôntico o) e de
fato existe a), então existe o), então ((necessariamente não é o caso que existe a e não existe o) e (não
necessariamente se existe o estado ôntico o, então existe a asseveração verdadeira a)))”.
Note-se que a última parte do conseqüente‘~ (Eo Ea)’, ou seja, “não necessariamente se existe o
estado ôntico o, então existe a asseveração a, significa o mesmo que ‘ (Eo & ~ Ea)’, i. e., “é possível
que exista o estado ôntico o e não exista a asseveração a”. Isto mostra que a resposta aristotélica ao
problema dos produtores de verdade não é a de um realismo absoluto ou “necessitarismo” quanto
à produção de verdade, posição segundo a qual a existência de um estado ôntico implica
necessariamente a existência de uma asseveração verdadeira acerca do mesmo. Para uma
caracterização do necessitarismo e uma crítica ao mesmo, veja-se, de Barry Smith, “Truthmaker
realism”, art. cit., esp. pp. 277-280.
163
Dentre os quatro sentidos gerais de causa reconhecidos, definidos e operados por Aristóteles, é
preciso entender os estados ônticos enquanto causadores formais da verdade das asseverações,
dado que seria absurdo pensar os estados ônticos como causadores eficientes, finais e ou materiais
dos enunciados asseverativos, que estados ônticos e asseverações são materialmente diversos, e
os movimentos originados por estado ônticos não transformam as asseverações como tais nem as
têm como finalidade. Enquanto causadores formais do ser das asseverações, os estados ônticos são
responsáveis (lembre-se aqui que literalmente  ☯ significava “o que é
responsável por”) pelo ser essencial das asseverações, ou seja, os estados ônticos são causadores
daquilo que define as asseverações em geral, a saber: sua verdade ou falsidade.
292
para os processos intencionais que acompanham as estruturas significantes e
cognitivas, tais como a percepção e o conhecimento.
À luz destas análises pode-se depreender as seguintes considerações e
conclusões sobre os produtores de verdade segundo Aristóteles:
(a) a simultaneidade ou bi-implicação lógico-semântica entre as enunciações
verdadeiras e os estados ônticos a que se referem é considerada verdadeira, posto
que ambos são em certo aspecto entidades correlativas, pois o significado de ambas
é co-dependente. No entanto, da verdade desta bi-implicação lógico-semântica não
se segue que de nenhum modo uma entidade não seja a causa do ser da outra, tal
como no caso dos entes simultâneos por natureza. E dado que parece absurdo que
a enunciação seja a causa de ser para o estado ôntico que representa, então resta
admitir que é o estado ôntico referido e representado pela enunciação a causa de
ser para esta e anterior por natureza em relação à mesma.
(b) a partir de (a), percebe-se que, para o estagirita, uma definição gico-
semântica de verdade não é suficiente (ainda que necessária) para compreender e
explicar sua natureza (seu ser essencial). Assim, pode-se concluir que a pretensão
de Tarski em captar a definição aristotélica da verdade só é parcialmente alcançada
164
. Se isso é correto, mostra-se então claramente como a definição transcendental
164
É interessante lembrar aqui a observação de Kirkham de que a definição tarskiana da verdade
não propriamente exprime a noção de verdade como correspondência ou correlação transcendental
(o autor usa, porém, o termo translingüística’) entre enunciados e coisas, mas a pressupõe. Isto
seria conseqüência direta da pretensão de neutralidade epistêmica e ontológica inserida na
definição semântica e seus compromissos com uma concepção lógico-matemática e fisicalista da
semântica. Cf. Teorias da verdade, uma introdução crítica, opus cit., caps. 5-6, esp. o § 3 deste último
capítulo.
293
ou transcategorial do ser-verdadeiro apresentada no capítulo anterior está
plenamente de acordo com o espírito aristotélico, pois o ser-verdadeiro é pensado
pelo filósofo como resultado de uma correlação causal de isomorfismo entre um
estado ôntico e um ato de pensamento que visa de determinado modo este estado
ôntico e que está sempre instanciado em uma enunciação asseverativa.
(c) as asseverações verdadeiras o simultâneas aos e convertíveis com os
estados ônticos a que se referem somente em sentido noético e lógico-semântico,
mas são ontologicamente posteriores aos e ontoaleticamente dependentes dos
estados ônticos que representam. O sentido de seu valor de verdade depende
primariamente da existência ou não existência dos estados ônticos a que se referem
e que representam, enquanto o ser ou o-ser destes estados ônticos é a causa de
que as asseverações (afirmativas ou negativas) sejam verdadeiras ou falsas
165
.
165
É de extrema importância aqui compreender que o existem produtores de falsidade, de modo
análogo a como não existe uma pretensão de falsidade ou como não existem fatos negativos (e,
portanto, positivos). São justamente os produtores de verdade de uma asseveração (negativa ou
afirmativa) verdadeira que tornam uma asseveração falsa, na medida em que uma asseveração é falsa
enquanto não existe para ela (em dado momento ou sempre) um produtor de verdade, ou seja, enquanto não
para ela um estado ôntico que a torne verdadeira. Assim, dado que a negação de uma asseveração falsa é
verdadeira e para esta negação um produtor de verdade, então é este produtor de verdade que
torna uma determinada asseveração falsa, na medida em que torna sua negação verdadeira. Além
disso, é importante relembrar que negações verdadeiras possuem produtores de verdade, posto que
negações verdadeiras pressupõem ou implicam afirmações verdadeiras, de tal modo que tais
negações são verdadeiras não por conta de fatos negativos, mas simplesmente em função dos fatos
que aconteceram, acontecem ou acontecerão e que são produtores de verdade para as afirmações.
Isto se torna mais claro do seguinte modo: o não-existente é não-existente por causa do existente, mas
o existente não é existente por causa do não-existente, ainda que o significado do existente possa ser,
por vezes, compreendido em função do significado do não-existente, o que pode ser transposto à
relação entre afirmações e negações verdadeiras, pois as negações são verdadeiras por causa das
afirmações verdadeiras, mas as afirmações verdadeiras não são verdadeiras por causa das negações
verdadeiras. Deste modo, as negações verdadeiras são verdadeiras por causa dos produtores de
verdade das afirmações verdadeiras que o pressupostas ou implicadas por elas. A evidência de
que Aristóteles compreende a negação como pressupondo ou implicando a afirmação pode ser
encontrada em Segundos analíticos, Livro I, cap. 25, 86 b 33-36: “... e a <enunciação> afirmativa é
anterior e mais conhecida do que a negativa (pois através da <enunciação> afirmativa a negativa é
294
A partir destas análises, tem-se os primeiros delineamentos da resolução
aristotélica acerca do problema da dependência ontoalética dos portadores em
relação aos produtores de verdade. Mas ainda é preciso corroborar o já investigado
e mostrar outros aspectos da produção de verdade dentro do corpus aristotelicum.
Um outro trecho do tratado Categorias pode ajudar a corroborar o que até aqui
foi analisado. Este trecho se encontra no contexto em que Aristóteles defende como
a propriedade definitória da essência (☺ ) o fato de,
“permanecendo idêntica e numericamente una, ser receptáculo dos contrários”
166
.
Enquanto propriedade definitória das essências ela deve pertencer unicamente às
essências e, assim, ser uma propriedade que as identifica frente a todas as outras
entidades ou tipos (categorias) de entidades. No contexto desta defesa, porém, o
estagirita vai ao encontro de uma possível objeção que consiste em atribuir aos
enunciados e às opiniões esta mesma propriedade, ou seja, atribuir aos enunciados
e às opiniões a possibilidade de, em sendo idênticos e numericamente unos,
poderem receber os contrários, mais especificamente a verdade e a falsidade. A
resposta de Aristóteles consiste em diferenciar o modo pelo qual as essências são
receptáculos dos contrários do modo como enunciados e opiniões podem receber
os contrários, a saber: as essências recebem os contrários por causa de um
conhecida, e a afirmação é anterior negação>, assim como o ser ao não ser)”/
☺     
      ☺

   ☺  
     .
166
Categorias, cap. 5, 4 a 10-11:
       
    .
295
movimento originado nelas mesmas, mas os enunciados e as opiniões recebem os
contrários por causa de um movimento próprio aos estados ônticos a que se
referem. Como corolário desta diferenciação o filósofo macedônio explicita:
“Isto [que enunciado e opinião possam receber os contrários
por um movimento ou alteração neles mesmos] não é verdadeiro,
pois o discurso/enunciado [☺ ] e a opinião
[☺ ⌧] são ditos serem receptáculos dos contrários não
por receber algum <contrário> a partir de si mesmos, mas esta
propriedade [] vem a ser a partir de algo outro. pois
<é> pelo ser ou não ser do estado ôntico [ ]
<a que se refere> que o discurso/enunciado é dito verdadeiro ou
falso, não sendo por si mesmo receptáculo dos contrários, posto
que, de modo geral [☺], nem o enunciado nem a
opinião são modificados [] de nenhum modo por
coisa alguma; por conseguinte, <eles> o poderiam ser
receptáculos <dos contrários, pois> de modo algum <seus
contrários> vêm a ser a partir deles mesmos.
167
Vê-se novamente que a verdade ou falsidade dos enunciados é causada pelo ser
ou não ser dos estados ônticos a que se referem. Além disso, o estagirita inclui
também a opinião, dado que todas as opiniões podem ser verdadeiras ou falsas
168
,
o que mostra novamente que a linguagem é compreendida por Aristóteles como
167
Categorias, cap. 5, 4 b 5-13:
 ☯    ☺  
 ☺ ⌧    
      
       
   
       
☺      
   
    ☺  
☺  ☯ ☺   ☯
☺ ⌧  
 ☯     
 .
168
Para a concepção aristotélica de opinião como sempre verdadeira ou falsa e versando sobre todo
o possível existente (contingente e ou necessário), em contraste com a noção de ciência ou
conhecimento, enquanto aquele tipo de ato de pensamento que, por definição, é sempre verdadeiro
e versa unicamente sobre o necessário veja-se Segundo analíticos, Livro I, cap. 32.
296
sempre instanciada em atos mentais intencionalmente voltados a estados ônticos.
No caso da opinião, esta é o tipo de ato mental mais comum e que pode visar
qualquer tipo de estado ôntico, sendo próprio unicamente às opiniões visarem
estados ônticos acidentais, impossíveis e inexistentes, além do próprio conceito de
não-ser ser apenas objeto de opinião
169
. Ademais, é importante ressaltar aqui a
identidade e unidade do discurso e da opinião enquanto entidades que
permanecem inalteradas em si mesmas e que recebem o sentido de seus possíveis
valores de verdade (seu ser-verdadeiro ou ser-falso) não de si mesmas, mas dos
estados ônticos a que estão correlacionadas
170
.
169
Cf., v. g., Da interpretação, cap. 11, 21 a 31-32. O conceito de opinião possui na cultura e na língua
grega uma forte vinculação com a noção de fenômeno e aparência, dado que o verbo ‘’,
de onde provém, tem o sentido de aparência e parecer. Poder-se-ia traduzir a palavra grega
⌧mais literalmente pela expressão “ter um parecer” ou emitir um parecer” sobre algo
ou alguém e compará-la com a atitude proposicional e epistêmica expressa por “parece-me que ...”.
Toda a dialética aristotélica está fundada nesta atitude proposicional tomada como mais primitiva e
geral frente a todos os demais atos de pensamento, bem como na análise das pretensões de verdade
nela instanciadas através das regras (critérios e princípios) lógico-semânticos para estabelecer sua
correção ou incorreção. Em suma, a opinião é para Aristóteles a forma mais básica e comum em que
se estruturam as asseverações, podendo estar correlacionada a todo objeto existente ou pensável.
170
Ainda uma outra passagem muito importante poderia se aqui evocada para corroborar a mesma
idéia. Ela se encontra no capítulo 9 do tratado Da interpretação (18 b 35-19 a 1), dentro da muito
polêmica discussão acerca dos futuros singulares contingentes, contexto que motivou a criação da
lógica de mais de dois valores de verdade por Lukasiewicz. A passagem em questão diz:
“Com efeito, isto [a verdade de um dos estados ônticos opostos expressos nos enunciados
contraditórios] em nada difere, quer se alguém profere a contradição, quer se não profere, pois é
evidente que o modo de ser dos estados ônticos não é menos <aquilo que é>, quer por ter sido
afirmado, quer por ter sido negado, posto que não é por causa do afirmar ou negar que <o estado
ôntico referido> será ou não será, nem mesmo que <se o enuncie> dez mil anos antes ou em
qualquer outro tempo.”/
     ☯ 
     
    ☯   
  ☺   ☺   
    
   ☯   ☯
   ☯   ☺
 .
Discutir e analisar o sentido desta passagem exigiria uma discussão do problema acerca dos futuros
contingentes, o que desviaria a presente investigação de seus propósitos. No entanto, ao que parece,
297
§ 3 – Os sentidos do ser, o ser-verdadeiro e o ser-falso
e as formas de produção de verdade
Como última etapa desta elucidação da concepção aristotélica dos produtores e
da produção de verdade, será analisado o capítulo 10 do Livro IX da Metafísica,
onde Aristóteles expõe o sentido do ser enquanto ser-verdadeiro e do não-ser
enquanto ser-falso. A partir deste capítulo, pode-se delinear o contorno geral da
concepção aristotélica da produção de verdade em seu sentido ontológico e
transcendental, relacionando-a tanto com o problema acerca dos portadores e dos
sentidos de verdade e falsidade, quanto com a definição transcendental de
verdade, bem como introduzir a investigação acerca dos princípios e critérios de
verdade na obra de Aristóteles. O capítulo diz:
(1) “Com efeito, posto que o ente e o não ente são ditos, de um
lado, segundo as figuras das categorias, e, de outro lado, segundo
na discussão deste problema ainda não se levou em conta a concepção aristotélica dos produtores e
da produção de verdade, mas não seria possível aqui realizar esta investigação. Para uma excelente
discussão lógica e exegética do problema dos futuros contingentes, à luz das principais alternativas
de análise propostas desde a Idade dia, veja-se, de Vittorio Sainati, Storia dell’ Organon
aristotelico, opus cit., cap. 4, pp. 240-266. Um artigo já clássico e pressuposto na maioria das
abordagens atuais do capítulo é, de G. E. M. Amscombe, “Aristotle and the sea battle”, in Mind, vol.
65, 257, 1956, pp. 1-15. Para uma abordagem à luz da lógica modal temporal, veja-se, de Jaakko
Hintikka, “The once and future sea fight: Aristotle’s discussion of future contingents in De
interpetatione IX”, in The Philosophical Review, vol. 73, 1964, pp. 461-492. Para uma abordagem
probabilista, à luz da lógica modal contemporânea e da discussão do argumento dominador de
Diodoro Crono, veja-se, de Jules Vuillemin, Nécessité ou contingence. Paris: Vrin, 1984, cap. 6. Para
uma abordagem à luz da lógica e da filosofia modal aristotélica, veja-se, de Sarah Waterlow, Passage
and possibility. Oxford: Clarendon, 1982, cap. 5. E ainda, de Richard Sorabji, Necessity, cause and
blame. Londres: Duckworth, 1980, 2ª parte, caps. 5, 8.
298
potência ou ato destas <figuras> ou <de seus> contrários, e
também [que é o <sentido> mais próprio e dominante] <segundo>
o verdadeiro ou falso. Este <sentido> é, de fato, em cada um dos
estados ônticos [  ] o estar-
unido ou estar-separado
[  ], de modo
que, de um lado, diz a verdade [] aquele que
concebe [] como estando separado o que está
separado e como estando unido o que está unido, e, de outro lado,
diz o falso aquele que se comporta de modo contrário aos estados
ônticos. Mas quando acontece ou não acontece
[☯   ☯] o que é dito ser-
verdadeiro ou ser-falso?, pois é preciso investigar que dizemos
com estes <conceitos>. Posto que não é porque concebemos de
modo verdadeiro seres tu branco que és branco, mas pelo fato de
seres branco <é que> nós, que enunciamos [☺ ]
isto, dizemos a verdade.
(2) “Se, portanto, de um lado, <há> os <estados ônticos> que
sempre estão unidos e que é impossível
[ ] estarem separados, <bem como>, de
outro lado, os <estados ônticos> que estão sempre separados e que
é impossível estarem unidos, e <além destes> os <estados ônticos
em que> é possível [] <acontecer> o
contrário, <de modo que> o ser é o estar unido e o ser uno
[ ] e o não ser <é> o não estar unido mas ser
muitos mais do que <um> [ ]: com efeito,
acerca dos <estados ônticos> possíveis
[ ], a mesma opinião e o mesmo
enunciado/discurso [☺ ] vêm a ser
[] verdadeiros e falsos, e é possível, por vezes,
dizer o verdadeiro [] e por vezes dizer o
falso [], mas acerca dos <estados ônticos> que
não podem se comportar de outro modo
[ ☯ ☯] <o mesmo
enunciado e a mesma opinião> não vêm a ser por vezes verdadeiro
e por vezes falso, mas os mesmos <enunciados e opiniões o>
sempre verdadeiros e <sempre> falsos.
(3) “Mas acerca dos <estados ônticos> não-compostos
[ ], que são o ser e o não ser, e o
verdadeiro e o falso? Pois <um tal estado ôntico> não é composto,
de modo a ser, de um lado, quando está unido, e, por outro lado,
não ser quando estiver separado, assim como o <ser> a madeira
branca ou o <ser> o diâmetro incomensurável. O verdadeiro e o
falso não subsistirão [☺⌧] mais aqui de modo
semelhante a como naqueles <estados ônticos compostos>. E assim
como não é o mesmo o verdadeiro nestes <estados ônticos>, assim
também não <é o mesmo> o ser, mas o verdadeiro ou o falso <são
299
do seguinte modo>: de um lado, o verdadeiro <é> o captar e o
enunciar [  ] <este ser
simples> (pois o é o mesmo afirmar [] e
enunciar []), de outro lado, porém, ignorar
[] <é> não captar <este ser simples> (pois não
acontece estar enganado [] acerca da
qüididade [  ], senão por acidente
[ ], e de modo similar acerca
das essências não compostas
[  ], pois não acontece
estar enganado <acerca de sua qüididade>, e todas estão/são em
ato, não em potência, pois <se fossem em potência> viriam a ser e
se corromperiam, porém o que é em si mesmo
[  ] não vem a ser nem se corrompe,
pois viria a ser a partir de algo. Portanto, acerca destes <estados
ônticos> que são essenciais [  ] e
atualidades [] não engano, mas apenas
apreensão [] ou não <apreensão>, apesar disso,
investiga-se sua qüididade, <ou seja>, se são deste modo
[ ] ou não <são>).
(4) <Assim, em um sentido> o ser enquanto ser-verdadeiro
[  ☺  ], e o não
ser enquanto ser-falso
[   ☺  ]
<acontecem do seguinte modo:> de um lado, o ser-verdadeiro
acontece se <o sujeito> está unido <ao predicado>, de outro lado, o
ser-falso <acontece> se <o sujeito> não está unido <ao predicado>.
<Em outro sentido> se algo uno é
[  ☯ ☯], <então> é de
determinado modo [ ], porém, se não é
deste modo, então não é; e o verdadeiro <é> o apreender
[ ] estes <modos de ser dos estados ônticos
simples>, e o falso não acontece, nem o engano, mas apenas a
ignorância, a qual não é como a cegueira, pois a cegueira é como se
alguém não possuísse em absoluto a capacidade de apreensão
[ ].”
171
171
Metafísica, Livro IX, cap. 10, 1051 a 34-1052 a 11:
         
       
  
       [
 ]     
  
      
  ☺   
 
300
   ☯  ☺
 ☯     ☯ 
 ☯
      
       ☺
 ☯ 
       
    ☺ ☺  
 
       
      
  
      
         
      
     ☺  
    ⌧  ☺
 ☺    ☺ 
 ☺     
  ☯ ☯
  ☺   ☺  
      
      
         
       
   
      
    <> ⌧  
  
      
 ☺ ☯ ☺⌧   
    
       
  ☯     
    
     
       
  
     ☯    
 ☺      
  
 ☯     
     
  
       
 ☯       
   
     ☯ 
        
  
        
 ☺      ☺ 
    
      
     ☯ ☯  
    
301
O capítulo foi dividido em quatro partes, conforme os temas e argumentos
apresentados. O primeiro tópico inicia com a divisão (analítica) dos horizontes de
sentido de ser e não-ser. À primeira vista, trata-se de uma reiteração de uma
divisão encontrada em outras partes da Metafísica
172
. Mas esta divisão possui duas
peculiaridades frente às outras. Em primeiro lugar, diferentemente dos demais
contextos em que esta divisão aparece, neste contexto não se faz alusão ao
horizonte de sentido do ser que se divide entre o ser dito por si e o ser dito por
acidente ou concomitância. Ver-se-á logo que esta ausência não é gratuita, mas
representa uma perspectiva diversa de abordagem destes horizontes de sentido.
Em segundo lugar, esta divisão de horizontes de sentido não diz apenas respeito
(como as demais) ao ser mas também ao não-ser. Além disso, diferentemente das
outras enumerações, esta segue uma ordem sistemática, ou seja, ela mostra como
acontece a inter-relação entre estes horizontes de sentido. Tal caráter sistemático
ficará evidente nas análises que seguem.
 ☯      
    ☯  
 ☯  
☺  ☺     ☺
      ☯ . Foi omitida
a última parte do capítulo referente ao ser-verdadeiro próprio aos estados ônticos imóveis
(sobretudo entidades matemáticas), pois sua análise não é indispensável para a presente
investigação e seu sentido ficará claro a partir da análise dos quatro tópicos aqui analisados.
172
As outras alusões e explicitações dos horizontes de sentido do conceito de ser se encontram no
livro V, cap. 7 e no Livro VI, cap. 2, 1026 a 33-1026 b 2. Sobre o sentido da expressão
   e uma discussão acerca do estatuto lógico e
ontológico da noção de ‘categoria’ veja-se, de Franz Brentano, De la diversité des acceptions de l’être
d’après Aristote, opus cit., cap. 5.
302
O primeiro horizonte de sentido do ser e do não-ser é aquele instanciado nas
figuras das categorias, ou seja, nos diferentes gêneros de predicados e suas inter-
relações nos enunciados. Diferentemente de uma interpretação corrente, as figuras
das categorias não indicam somente os tipos de predicados ou entidades
predicáveis isoladamente, mas também e, sobretudo, as possibilidades de
composição entre sujeitos e predicados, ou seja, representam não apenas as
“classes gerais” de estados ônticos referíveis e analisáveis a partir das enunciações,
mas também as possibilidades de inclusão e exclusão parciais ou totais entre estas
classes de predicados. Assim, a expressão grega
   deve ser entendida como
indicando os diversos tipos de predicados correspondentes aos diversos gêneros
de estados ônticos que podem entrar na composição proposicional-predicativa do
nexo semântico instanciado nas enunciações afirmativas ou negativas, nexo lógico-
semântico realizado na correlação de sujeitos e predicados. Na realidade, a
expressão indica justamente a figuração dos estados ônticos complexos pelos e nos
enunciados, a partir dos quais se extraem os tipos de predicados que podem ser
atribuídos a um estado ônticos considerado como sujeito
173
.
173
Isto mostra o quão descabida é a tradição interpretativa que imputa a Aristóteles a idéia de que
os termos teriam uma significação fora dos enunciados de que fazem parte. Na realidade é a partir
dos enunciados que Aristóteles “abstrai” os diversos sentidos em que um termo pode ser usado.
Encaradas deste modo, as análises semânticas encontradas na obra do estagirita estão em perfeito
acordo com a tese de Frege, e da maioria da tradição que o segue, segundo a qual os termos
adquirem sentido a partir de sua função ou papel semântico nos enunciados em que tomam parte.
As análises semânticas dos diversos sentidos dos conceitos, contidas no tratado Categorias, bem
como no Livro V da Metafísica e em diversos outros contextos da obra do mestre do Liceu, são
exercícios desta abstração a partir do papel semântico e alético que estes termos adquirem nos
enunciados da linguagem natural.
303
O segundo horizonte de sentido do ser e do não-ser é aquele instanciado nos
conceitos de ato () e potência (). Este
horizonte de sentido é remetido ao anterior enquanto os conceitos de potência e
atualidade se aplicam a estas figuras e seus contrários. No entanto, se se entender
aqui a expressão ‘figuras das categorias’ simplesmente como sinônimo de cada
uma das categorias em separado (como é comum se entender), então não se
como possa ter sentido o adendo “e a seus contrários”, dado que Aristóteles
expressamente afirma que as categorias da essência e da quantidade não admitem
a contrariedade
174
. Ao invés de se imputar de modo apressado uma incoerência ao
pensador, o trecho é perfeitamente compreensível se se entende a expressão
‘figuras das categorias’ no sentido das possibilidades de composições enunciativas
realizadas nas forma da afirmação ou da negação de um predicado a um sujeito.
Esta interpretação é corroborada pelo fato de que o filósofo macedônio é explícito
quanto ao papel semântico dos meta-predicados modais: eles se aplicam à ligação
entre o sujeito e o predicado nas enunciações asseverativas
175
. E dado que os
conceitos de potência e ato indicam tão-somente dois aspectos ontológicos gerais
dos estados ônticos enquanto produtores de verdade para os enunciados
modalizados, então o adendo “a seus contrários” indica a oposição entre
enunciados afirmativos e negativos enquanto modos em que se concretizam o ser e
o o-ser nas figurações categoriais das inter-relações entre os itens que compõem
um ou vários estados ônticos.
174
Cf. Categorias, cap. 5 (sobre a essência); cap. 6, (sobre a quantidade).
175
Da interpretação, cap. 12, 21 b 27-32.
304
Assim, os conceitos de potência e atualidade são meta-predicados
transcategoriais aplicados aos termos que compõem os nexos lógico-semânticos
das enunciações asseverativas. Contudo, dado que os nexos semânticos entre
sujeitos e predicados representam, no nível lógico-semântico, os nexos ontológicos
entre os itens que compõem os estados ônticos do mundo
176
, então os conceitos de
potência e ato representam as modalidades transcategoriais destes nexos
ontológicos, ou seja, representam os modos de ser possíveis dos estados ônticos do
mundo. Se esta interpretação da relação de simetria entre o plano lógico-semântico
e o plano ontológico é correta, então os conceitos de potência e ato vêm especificar
o modo de ser destas correlações ontológicas espelhadas” ou figuradas nas
enunciações asseverativas (verdadeiras). Às figurações enunciativas que dão o
significado efetivo do ser e do não-ser referidos às configurações e correlações
entre os itens que compõem os estados ônticos do mundo, vêm se aplicar as
modalidades (lógicas e ontológicas) da potência e da atualidade como meta-
predicados que modificam e qualificam o tipo de inter-relação entre estados
ônticos figurados na relação de afirmação ou negação de um predicado a um
sujeito.
176
A partir disso, pode-se ver que a expressão ‘figuras das categorias’ possui um sentido
simultaneamente lógico-semântico e ontológico.
305
A partir da significação proposta para a expressão ‘figuras das categorias
177
e
da aplicação transcategorial dos conceitos de potência e ato a estas figurações
categoriais dos estados ônticos, mostra-se porque a divisão entre ser por acidente e
ser por si é omitida nesta passagem, posto que independentemente de uma
enunciação atribuir um predicado essencial (por si) ou acidental a um sujeito, tais
atribuições constituem formas modalizadas de relação entre as categorias de
entidades predicáveis umas das outras, ainda que a predicação por excelência seja
aquela em que o sujeito do enunciado é tomado dentre as entidades que formam a
categoria da essência (). A subsistência de um predicado ou atributo
acidental em um sujeito qualquer pode ser analisada a partir da modalidade do
possível em seu sentido de contingência (nem necessário, nem impossível),
enquanto a subsistência de um predicado essencial pode ser analisada através da
modalidade do necessário como aquilo que está sempre (necessariamente) em ato
na forma do estado ôntico visado, ou seja, os sentidos de ser por acidente e ser por
si são modos específicos de ser analisáveis a partir dos conceitos gerais de potência
177
Pode-se dizer que o sentido da expressão grega
   no presente contexto prenuncia o que Kant, em
uma alusão a esta expressão aristotélica, chamou de doutrina do esquematismo, na qual justamente
se explica (ou se tenta explicar) como as categorias, sempre instanciadas na ligação predicativa dos
juízos (sobretudo dos sintéticos e dos sintéticos a priori), recebem seu significado quando aplicadas,
por intermédio da imaginação produtiva, aos objetos representados e apresentados na sensibilidade
(cf. Crítica da razão pura, B 176-187). Certamente diferenças muito grandes entre o sentido do
conceito de ‘categoria’ tal como pensado e usado por Aristóteles e Kant. Mas, apesar destas
diferenças, Marco Zingano, em seu excelente Razão e sensação em Aristóteles. Porto Alegre: L&PM,
1998, mostra que a noética de Aristóteles, tal como desenvolvida no tratado Da alma, está mais
próxima do problema enfrentado pelos modernos (e sobretudo por Kant) do que a tradição
interpretativa supunha.
306
e atualidade aplicados às figurações categoriais que compõem sujeito e predicado
178
.
O primeiro tópico da citação continua enumerando o terceiro sentido do ser e
do o-ser como o verdadeiro e o falso. Antes de qualquer análise e determinação
deste sentido, Aristóteles o qualifica como aquele “que é o mais próprio e
dominante” ( )
179
. Mas por que este sentido seria o
178
Não se deve, porém, reduzir um ao outro ou identificar os conceitos de potência e possibilidade
e, sobretudo, os conceitos de atualidade e necessidade. Que os sentidos de potência e ato possam ser
analisados através das modalidades do possível e do necessário não significa que as modalidades
são anteriores a estes conceitos. Ao contrário, Aristóteles defende (tanto em Metafísica, VIII-IX,
quanto em Da interpretação, cap. 13, 23 a 18-26, bem como em Primeiros analíticos, I, caps. 3, 13) que
as diversas modalidades aléticas e seus sentidos (as chamadas modalidades de dicto) têm que ser
dependentes e estar fundadas ontoaleticamente nos modos de ser dos estados ônticos (nas
chamadas modalidades de re), entendidos como seus produtores de verdade. Assim, também os
sentidos de ser por acidente e ser por si não devem ser vistos como se reduzindo ou se
identificando com os conceitos modais de potência e atualidade, mas como conceitos ontológicos
que possuem um caráter modal em sua determinação de ser. O ser acidental é definido como o que
não acontece nem sempre nem no mais das vezes e como o que vem a ser não por si mesmo, mas
por meio de outro algo no qual existe e do qual depende (cf. Metafísica, V, 30), podendo assim ser
compreendido como o que não é nem necessário nem impossível, ou seja, pode ser determinado
através do conceito de contingência como o que é e pode ser atual, mas que poderia não ser. O
conceito de ser por si é definido como o ser-essencial que é causa primária de ser para cada coisa,
sendo o ser-essencial identificado com a forma atual de algo (cf. Metafísica, V, 18, 1022 a 24 ss; VIII,
3), sendo então analisável como aquela forma de atualidade que o pode não ser para que cada
estado ôntico seja o que é.
179
Várias interpretações foram dadas do adjetivo expresso pelo superlativo absoluto
’. Sir David Ross propõe que tal superlativo seja posto em dúvida e
considerado ou como uma transposição de um adjetivo que se aplicaria às figuras das categorias,
ou como uma glosa arbitrária introduzida por um copista. Ross baseia suas suspeitas em Metafísica,
Livro VI, cap. 4, 1027 b 29-31: “E dado que a complexão e a divisão estão na compreensão e não nos
estados ônticos, e o ente <dito> deste modo é outro que <os entes> em sentido
próprio”/  ☺    ☺ 
       
       .
Estes capítulos conflitantes são objeto de muita polêmica. Não é oportuno aqui entrar nos detalhes
desta querela interpretativa. Em todo caso, o brevíssimo capítulo sobre o ser-verdadeiro e o ser-
falso do Livro VI é considerado na presente investigação como um texto que representa um
primeiro ensaio de pensamento sobre o tema, cujas teses são conflitantes não apenas com o capítulo
aqui analisado, mas com as outras passagens antes examinadas, motivo pelo qual é mais coerente
colocá-lo sob suspeita do que IX, 10. Para uma recensão da querela em torno a estas passagens
conflitantes e para as razões filológicas e hermenêuticas da suspeita relativamente a todo o Livro VI
da Metafísica, veja-se, de Bertrand Dumoulin, o seu minucioso e prudente Analyse génetique de la
307
mais próprio e dominante? A resposta pode ser obtida examinando o restante do
capítulo. Com efeito, segue-se a esta qualificação a determinação ontoalética do
ser-verdadeiro e do ser-falso a partir das duas possibilidades de ser e não-ser dos
estados ônticos, a saber: num estado ôntico pode acontecer uma união de itens ou
uma separação de itens. A união de dois ou mais itens que compõem um estado
ôntico significa o ser enquanto ser-verdadeiro, união que é expressa na enunciação
afirmativa da forma S é P”. A separação de dois ou mais itens que compõem um
estado ôntico significa o não-ser enquanto ser-falso (=não-ser-verdadeiro),
separação expressa na enunciação negativa da forma “S não é P”. É importante
aqui explicar detalhadamente esta divisão para não se cometer equívocos ou
atribuir uma incoerência ao pensador grego, pois, imediatamente após esta divisão
entre o estar unido como sinônimo do ser enquanto ser-verdadeiro e do estar
separado como sinônimo do não-ser enquanto não-ser-verdadeiro (= ser-falso),
Aristóteles define o dizer verdadeiro como aquele que tanto pode assumir a forma
“S é P” quanto a forma “S não é P”.
Métaphysique d’Aristote. Montreal/Paris: Bellermin/Les Belles Lettres, 1986, pp. 121-146, esp. 142-
146; 288-292. Para as razões de Sir Ross, veja-se o comentário a este trecho em Aristotle’s Metaphysics.
Oxford: Clarendon, 1970 (1924), vol. 2, pp. 274-275. A perspectiva de compreensão deste polêmico
superlativo na presente investigação pode tomar as seguintes palavras de Charles Kahn como
corolário, ainda que não concordando totalmente com elas: “Vale a pena notar que esse significado
[ser verdade] do verbo [ser], que aparece entre os quatro usos listados no capítulo de Metafísica V
resumido acima (onde Aristóteles reconhece o sentido de verdade mesmo na construção
predicativa, quando  aparece na posição inicial enfática, 1017 a 33-35) é posteriormente
descrita por Aristóteles como o sentido “mais estrito” ou “mais autoritativo” do verbo “ser”
(Metafísica, IX, 10, 1051 b 1:   ). Editores recentes, entre os quais
são dignos de nota Ross e Jaeger, estão descontentes com esta afirmação e gostariam de “emendá-
la” de diversas maneiras. Meu argumento sugere que eles estão errados, e que o texto está
inteiramente em ordem. Eu entendo que Aristóteles está dizendo que, de um ponto de vista
filosófico, esse uso de  é o sentido mais básico e mais literal do verbo”; in “O verbo
grego “ser” e o conceito de ser”, trad. Maura Iglésias; in Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser, opus
cit., p. 9.
308
Ora, tudo fica claro justamente quando se repara que, primeiramente, o
estagirita define o ser-verdadeiro ( ) e o ser-falso
( ) e, em seguida, define o dizer verdadeiro
( ) e o dizer falso ( ). Um
dizer é verdadeiro quando, de um lado, assevera afirmativamente que “S é P” e, de
fato, P está unido a S, ou seja, quando diz que o que é verdadeiro é (verdadeiro);
mas também, de outro lado, um dizer é verdadeiro quando assevera
negativamente que “S não é P” e, de fato, P está separado de S, ou seja, quando diz
que o que não é verdadeiro não é (verdadeiro). Assim, uma enunciação afirmativa
é verdadeira porque diz que o verdadeiro é verdadeiro, mas também uma
enunciação negativa é verdadeira porque que diz que o que é falso é falso. Dito de
modo ainda mais simples e conforme a definição transcendental do ser-verdadeiro:
o dizer ser o que é, e o dizer não ser o que não é, é o verdadeiro. Assim, é verdade
dizer que o falso é falso, de modo análogo a como é verdadeiro dizer que o não-
ente é não-ente, mas desta enunciação verdadeira não se segue de nenhum modo
que o não-ente é (o que equivaleria na língua grega a dizer que o que não é, é
180
), o
que, transposto ao presente contexto, equivaleria a dizer que o falso (= o que não é)
é (= é verdadeiro). Este último ponto introduz a definição do dizer falso que é
indicado por Aristóteles como o “comporta-se de modo contrário aos estados
ônticos”, ou seja, asseverar afirmativamente que “S é P” quando, de fato, P está
separado de S, ou ainda, asseverar negativamente que “S não é P” quando, de fato,
180
Cf. Da interpretação, cap. 11, 21 a 32-33.Veja-se ainda Metafísica, IV, 2, 1003 b 10; XIV, 2, 1088 b 35-
1089 a 31; Refutações sofísticas, 5, 166 b 36-167 a 7; 25, 180 a 32-38.
309
P está unido a S. Deste modo fica claro em que sentido uma enunciação negativa
pode ser verdadeira apesar de exprimir algo que não é verdadeiro no sentido do
que não está unido, de um estado ôntico que não é (o caso), que não ocorre.
O sentido em que ‘ser’ se identifica com ‘ser-verdadeiro’ e ‘não-ser’ com ‘ser-
falso’ pode ser mais aclarado e fundamentado através da seguinte passagem do
capítulo 7 do Livro V da Metafísica, dedicado à enumeração dos sentido de ser:
“O ser’ e o ‘é’ significam ainda que <algo é> verdadeiro, e
também o ‘não-ser’ <significa> que <algo> não <é> verdadeiro,
mas falso, como no caso das afirmações e das negações, <assim>
por exemplo, <dizer> que <um> Sócrates músico”/ “Sócrates é
músico”, <significa> que isto <é> verdadeiro, ou <dizer> que
<um> Sócrates não-branco”/ “Sócrates é não-branco”, <significa>
que <isto é> verdadeiro; porém <dizer> que não o diâmetro
comensurável”/ “o diâmetro não é comensurável”, <significa> que
<isto é> falso.”
181
Nesta passagem ambígua e de difícil tradução está tudo o que neste capítulo é
dito acerca do ser enquanto ser-verdadeiro e do não-ser enquanto ser-falso, mas é o
suficiente para se compreender que está prenunciado aqui o que é desenvolvido
em IX, 10. O sentido deste trecho depende da compreensão de suas sutilezas
sintáticas e semânticas. À primeira vista, Aristóteles parece se referir e usar aqui os
termos  ’,  ☯’,   e
181
Metafísica, Livro V, cap. 7, 1017 a 31-35:
☯      ☯  
   
      ☺
     
 ☯ 
      ☯ 
       
 ☯ ☺ 
    <>. O termo 
foi adicionado por estar elíptico no contexto.
310
  ☯ naquilo que se convencionou chamar de uso
“existencial”. Neste sentido, estes termos deveriam ser vertidos respectivamente
por ‘haver’, ‘há’, ‘não haver’ e ‘não há’. Assim, estes termos indicariam nos
enunciados em que o usados que a unidade composta entre dois itens de um
determinado estado ôntico acontece (é, “existe”, é real, é verdadeira) ou que não
acontece (não é, “não existe”, não é real, é falsa). Nos exemplos dados no trecho os
termos ‘☯’ e ‘ ☯’ indicariam respectivamente que o
estado ôntico ‘Sócrates-musico’ e ‘Sócrates-não-branco’ o reais, acontecem de
fato, enquanto o estado ôntico ‘diagonal-comensurável’ não é real, não acontece de
fato.
182
Contudo, a forma “existencial” de ☯e  ☯é usada
para marcar justamente o sentido veritativo implícito na composição de sujeito e
predicado realizada nas afirmações e negações, aquilo que Charles Kahn chamou
de pretensão de verdade implícita em todo enunciado predicativo formado no
modo indicativo
183
. Do ponto de vista puramente sintático, isto é corroborado pelo
182
Esta leitura da passagem é esboçada e defendida por Mohan Matthen em seu excelente “Greek
ontology and the ‘is’ of truth”, in Phronesis, vol. 28, nº 2, 1983, pp. 126-127, artigo escrito em
polêmica com as teses de Charles Kahn. Na perspectiva desta investigação ambos os estudiosos têm
razão em vários pontos, mas, como sempre e felizmente nos trabalhos filosóficos e hermenêuticos
frutíferos, acabam por cair em hipóstases e hipérboles. A presente investigação, no espírito da
moderação aristotélica, pretende levar em conta pontos de ambos os exegetas.
183
Cf. Retrospectiva do verbo ser e do conceito de ser”, art. cit., pp. 162-170. O autor se vale desta
passagem (p. 170) como corolário para corroborar sua tese de que o sentido existencial do verbo ser
não emerge na língua e no pensamento gregos, sendo o sentido do ser como cópula o principal, e
sendo o chamado uso existencial na realidade um uso veritativo do verbo ser. A tese de Kahn é
muito bem vinda na perspectiva deste trabalho, mas deve-se atenuar sua força diante de rios
contextos em que o conceito de existir (ainda que não compreendido no sentido moderno) parece
ser o mais adequado na tradução de ‘☯’. O mais importante, porém, no presente contexto é
reter a idéia de que o uso veritativo, na maioria dos contextos, contém o sentido daquilo que
chamaríamos de existir, mas diferentemente do nosso sentido se aplicaria sobretudo à composição
311
fato de que quando o verbo ser, na forma do ‘’ em sentido de cópula, é
precedido pelas partículas e muda sua acentuação e coincide
com a forma existencial ☯ sem, todavia, perder necessariamente o
sentido de verbo de ligação. A partir disso, então os verbos aludidos deveriam ser
traduzidos respectivamente por ‘ser’, ‘é’, ‘não ser’ e ‘não é’.
Entretanto, é preciso levar em conta o seguinte. Apesar de aparecer isolada a
partícula ’ pressupõe, tal como usada no presente trecho, algum verbo
intencional. Esta função é implicitamente preenchida pelo verbo ‘dizer’, entendido
como forma geral das afirmações e das negações mencionadas como instâncias da
significação veritativa de ‘ser’ e ‘não-ser’. Isto, porém, faz com que a composição
de sujeito e predicado, presente no enunciado que segue a partícula ’, seja
tomada como sujeito daquilo que precede esta partícula, sendo assim preciso que o
que precede a partícula seja entendido como um meta-predicado do enunciado que
é colocado após a partícula ‘que’, caso contrário ter-se-ia um enunciado de sentido
incompleto. Ora, esta função meta-predicativa é justamente preenchida pelos meta-
predicados ‘é verdadeiro que...’ e ‘é falso que...’ tal como é evidente pelas
expressões    e  
<>’, usadas de modo enfático por Aristóteles após seus exemplos e
pressupondo o verbo ‘significar’ que liga os exemplos ao sentido veritativo
de itens de um estado ôntico e não a cada um destes itens em separado. Seja como for, evita-se neste
trabalho traduzir ‘☯’ e os outros casos do verbo ‘ser’ por ‘existir’, usando-se o verbo ‘haver’
no sentido de ‘acontecer’, ‘ter lugar’, ser o caso’, ocorrer’, usando o termo ‘existir’ apenas quando
inevitável. Não é possível nem necessário aqui alongar este ponto. Para uma extensa análise
(deflacionista) do conceito de existência, de resto favorável às teses de Charles Kahn, veja-se, de C.
J. F. Williams, What is existence?. Oxford: Clarendon, 2002 (1981), esp. caps. 1 e 12, e o apêndice A.
312
proposto para os termos  ’,  ☯’,
   e   ☯’, expressões nas
quais o termo (‘isto’) denota o enunciado predicativo como um todo.
Neste caso, porém, é indiferente que as expressões ☯ e
 ☯ sejam entendidas em sentido existencial e colocadas antes
dos termos sujeito e predicado que formariam assim um único termo composto
ou que sejam entendidas em sentido copulativo e postas entre estes termos, pois os
meta-predicados que precedem a partícula quetomam a composição de sujeito e
predicado com uma única função semântica dentro da enunciação completa. Deste
modo, a ambigüidade no sentido de ☯e  ☯parece não
ser prejudicial à compreensão do que Aristóteles está propondo se se esquematizar
do seguinte modo estes malabarismos sintáticos e semânticos através dos exemplos
da citação, (entendendo o símbolo ‘=’ como equivalente a “significa o mesmo
que”):
(1) Dizer que:
(a) “ um Sócrates músico” = é verdade que “Sócrates é músico”
(b) “Sócrates é músico” = é verdade que “ um Sócrates músico”
(2) Dizer que:
(a) “ um Sócrates não-branco” = é verdade que “Sócrates é não-branco”
(b) “Sócrates é não-branco” = é verdade que “ um Sócrates não-branco”
(3) Dizer que:
(a) “Não há o diâmetro comensurável” = é falso que “O diâmetro é comensurável”
= é verdade que “O diâmetro não é comensurável”
313
= é verdade que “O diâmetro é não-comensurável”
(b) “O diâmetro não é comensurável” = é falso que “ o diâmetro comensurável”
= é verdade que “Não há o diâmetro comensurável”
= é verdade que “ o diâmetro não-comensurável”
184
Deste modo, quer em sentido existencial, quer em sentido predicativo, os
termos  ’,  ☯’,   e
  ☯ mantêm seu sentido veritativo, posto que a
cláusula ‘é falso que...’ significa simplesmente ‘não é verdadeiro que...’ no sentido
de ‘não acontece que...’ ou ‘não é o caso que...’. Por isso, longe de prejudicar a tese
aristotélica este duplo sentido possível para estas expressões reforça o sentido
veritativo como um horizonte geral de sentido e não apenas como uma acepção
dependente de algum contexto lingüístico especial. Note-se que, em (1), tem-se
uma enunciação que une (afirma) um predicado simples com um sujeito, mas, em
(2), tem-se uma enunciação que une (afirma) um predicado negativo e indefinido
ao mesmo sujeito, o que mostra que, segundo Aristóteles, pode ser verdadeira a
união entre um termo definido e um predicado negativo e indefinido
185
. certos
casos em que estes predicados negativos são equivalentes às negações do
predicado positivo correspondente, mas outros casos em que isto não é correto
184
Se este esquema está correto, então o que Aristóteles postula aqui pode ser aproximado da
contemporânea teoria da redundância, aventada já por Frege, instituída por Ramsey e desdobrada
por Quine e Williams. No entanto, como se está a ver, este é apenas o ponto inicial e semântico da
teorização aristotélica da verdade, sendo, portanto, tal aproximação apenas parcial. Sobre as
“teorias” ou (mais propriamente) as teorizações da verdade como redundância, veja-se, de R. L.
Kirkham, Teorias da verdade, uma introdução crítica, opus cit., pp. 436-448.
185
Um outro contexto que corrobora esta possibilidade é encontrado em Da alma, Livro III, cap. 6,
430 a 31-430 b 3, onde Aristóteles usa como exemplos tanto a composição afirmativa verdadeira
entre ‘diagonal’ e ‘incomensurável’, quanto a composição afirmativa falsa entre ‘branco’ e ‘não-
branco’.
314
186
. Por isso, não é necessariamente (em todas as ocorrências) verdadeira a
substituição de “Sócrates é não-branco” por “Sócrates não é branco”, dado que
‘não-branco’ o é oposto contraditório de branco’, mas indica a classe que lhe é
complementar. Já no caso de (3), dizer que “O diâmetro não é comensurável”
equivale a dizer que “O diâmetro é não-comensurável” ou, na forma mais comum,
que “O diâmetro é in-comensurável”, pois o predicado ‘ser-comensurável’ é o
oposto contraditório do predicado ‘não-ser-comensurável’ (= ‘ser-
incomensurável’), quando referidos à diagonal do quadrado. Por isso, em (3),
acaba-se por obter um enunciado do mesmo tipo que em (2).
Note-se ainda o contraste entre o sentido do ‘é’ e do ‘há’, em (1) e em (2), com o
‘não é’ e o ‘não há’ em (3). Em (1) e (2), ocorre uma continuidade entre o ser-
verdadeiro e o dizer verdadeiro, enquanto em (3) ocorre uma descontinuidade
entre o ser-falso e o dizer falso. Isto pode ser compreendido pelo fato de que do
verdadeiro se pode seguir o verdadeiro, mas do falso pode se seguir o
verdadeiro, o que, aplicado à presente descontinuidade, significa que a negação
que se encontrava nos enunciados “Não S-P” ou “S não é P” é transferida para o
meta-predicado ‘é falso que...’ (que é equivalente a ‘não é verdadeiro que...’)
186
Sobre este ponto, veja-se Da interpretação, cap. 10 e Primeiros analíticos, Livro I, cap. 46 (Para uma
impecável formalização deste capítulo, veja-se as notas de Mário Mignucci à sua tradução, opus cit.,
pp. 506-513). Para um importante uso dos predicados negativos e indefinidos na obra do estagirita,
veja-se Metafísica, IV, 4. Para uma interessante discussão deste tipo de negação (comum na
linguagem natural, mas ausente nas lógicas que se atêm à negação tal como definida pelo modelo
da álgebra booleana) e sua formalização e axiomatização, juntamente com a noção aristotélica de
‘enquanto’ (/☺), veja-se, de M. la Palme Reyes/J. Macnamara/G. E. Reyes/H.
Zolfaghari, “Models for non-boolean negations in natural languages based on aspect analysis”, in
What is negation?, (eds.) D. M. Gabbay & H. Wansing. Dordrecht/Boston/Londres: Kluwer, 1999,
pp. 241-259.
315
seguido do enunciado em sua forma contrária. Isto acontece porque se passa da
enunciação negativa simples de que, de fato, “S não é P” (que, por exemplo, de fato, a
propriedade de ser-comensurável não está unida com o sujeito diagonal) para a
enunciação composta Não é verdadeiro que (de fato) ‘S é P ”, o que equivale a
Não é verdadeiro dizer que (de fato) ‘S é P’ ”, posto que, de fato, ‘S’ esseparado de
‘P’, ou seja, que ‘S’ não está unido com ‘P’ ou que ‘S’ não é ‘P’.
Retomando a análise de Metafísica, IX, 10 à luz do que acaba de ser exposto
percebe-se que a distinção entre, de um lado, o ser-verdadeiro e o ser-falso e, de
outro lado, entre o dizer verdadeiro e o dizer falso, não é apenas uma distinção
simpliciter entre um aspecto ontológico e um aspecto lógico-semântico dos
conceitos de verdade e falsidade, mas uma diferenciação ontoalética em que está
em jogo a correlação transcendental entre pensamento e realidade através da
linguagem. Isto fica claro se se entende que o ser-verdadeiro e o ser-falso se
aplicam tanto aos estados ônticos visados, quanto aos enunciados que a eles se
referem e que os representam, sendo, porém, diferentes seus sentidos quando
aplicados à relação ontológica de sujeito e predicado que intercorre entre itens que
compõem os estados ônticos e quando aplicados à relação ontoalética entre estes
mesmos estados ônticos e os enunciados que a eles se referem. A diferença em
questão fica mais clara quando pensada a partir do esquema pouco proposto:
trata-se da passagem da referência direta de ‘ser’ e ‘não-ser’ aos estados ônticos
dentro dos enunciados simples, que unem ou separam um sujeito e um predicado,
para a referência indireta de ‘ser’ e ‘não-ser’ na forma dos meta-predicados é
316
verdadeiro que...’ e é falso que...’ aplicados à relação entre sujeito e predicado dos
enunciados simples, tomados agora como o sujeito de uma enunciação composta
187
. De modo análogo a como o ser-verdadeiro significa nos estados ônticos que, de
fato, o sujeito está unido ao predicado e como o ser-falso significa que, de fato, o
sujeito não está unido ao predicado, assim também um dizer é verdadeiro quando
está unido àquilo de que é enunciado e é falso quando não está unido (quando está
separado) àquilo de que é enunciado. A correlação entre enunciação e aquilo a que se
refere é ela mesma um estado ôntico identificável e somente por isso pode ser-verdadeira ou
ser-falsa. Assim, pode-se afirmar que se o sentido do ser como ser-verdadeiro e do
não-ser como ser-falso são qualidades atribuídas tanto à relação entre dois itens de
um estado ôntico na forma de sujeito e predicado, quanto à relação entre uma
enunciação e um estado ôntico visado
188
, então se mostra mais uma vez a correção
interpretativa da definição transcategorial da verdade e da falsidade apresentada
no capítulo anterior e se começa a esboçar o porquê do horizonte de sentido do ser
enquanto ser-verdadeiro e do não-ser enquanto ser-falso ser considerado como
aquele “mais próprio e dominante”.
Mas apesar disso, fica ainda em aberto como, quando e porque acontece a
união e a separação ontoalética entre os estados ônticos e as enunciações que a eles
se referem. Na seqüência do texto o filósofo macedônio parece vir ao encontro da
187
Evidências textuais de que Aristóteles é tanto consciente deste tipo de meta-predicação, quanto
dela faz uso em importantes argumentos, podem ser encontradas em Da interpretação, cap. 12;
Primeiros analíticos, I, 46; II, caps. 2 e 4; e Metafísica, IV, 8, 1012 b 13-22
188
Sobre a determinação do ser-verdadeiro e do ser-falso como qualidades, veja-se Refutações
sofísticas, cap. 22, 178 b 26-28. Sobre a possibilidade de uma qualidade poder ser também
considerada como um predicado de relação, veja-se Categorias, cap. 8, 11 a 37-38.
317
necessidade de se esclarecer a relação ontoalética entre enunciações e estados
ônticos referidos ao formular a pergunta pelas condições em que acontece ou não
acontece (☯   ☯) o que é dito ser-verdadeiro ou
ser-falso. E a razão de ser desta questão é dada por algo tomado como um fato, a
saber: “Posto que não é porque concebemos de modo verdadeiro seres branco que
és branco, mas pelo fato de seres branco é que nós, que enunciamos isto, dizemos a
verdade”. Assim, a necessidade de expor as condições gerais do ser-verdadeiro e
do ser-falso provém justamente da constatação da dependência ontoalética das
asseverações em relação aos estados ônticos a que se referem como seus
produtores de verdade, ou, no esquema conceitual aristotélico, como seus
causadores de ser
189
. Os estados ônticos que são possíveis referências das
asseverações, são ontologicamente anteriores aos enunciados que os representam e
aos pensamentos que os visam, de tal modo que estes são ontoaleticamente
dependentes dos estados ônticos a que se referem, ainda que o ser-verdadeiro ou
ser-falso sejam propriedades que primeiramente emergem a partir da e na relação
de união ou separação entre sujeito e predicado nos enunciados e na relação de
189
Aristóteles usa aqui o exemplo de uma enunciação verdadeira, mas poderia também usar como
exemplo uma enunciação falsa, pois de modo ainda mais evidente os estados ônticos referidos
seriam a causa de tal enunciação ser falsa, lembrando novamente que isto não significa que haja
produtores de falsidade, mas que é justamente porque a enunciação falsa carece de produtores de
verdade que é falsa, ou porque aquilo que assevera não existe (ou subsiste), ou porque não existe
quando e como a asseveração afirma ou nega que existe (ou subsiste), ou seja, porque os estados
ônticos referidos tornam verdadeira uma enunciação diversa daquela asseverada e, por isso,
tornam falsa a enunciação realizada. Este é o sentido em que Aristóteles define o ser-falso como o
comportamento daquele que se opõe ao modo de ser dos estados ônticos efetivos. No ser-falso
ocorre uma contradição (sintática, semântica e pragmática) entre a enunciação e os estados ônticos,
enquanto no ser-verdadeiro acontece uma identificação formal (sintática, semântica e pragmática)
entre a enunciação e os estados ônticos.
318
união ou separação entre estas enunciações e os estados ônticos referidos, de
maneira que somente após estas relações terem se estabelecido os estados ônticos
referidos podem receber um valor de verdade.
A amplitude transcendental do horizonte de sentido do ser-verdadeiro e do ser-
falso mostra-se claramente através do segundo tópico da passagem em questão.
Nele é estabelecido o primeiro tipo geral de produtores de verdade,
correspondente às possíveis modalidades de ser e não-ser dos estado ônticos
compostos que podem ser figurados através das possíveis combinações categoriais,
ou seja, os produtores de verdade das asseverações que tomam as forma afirmativa
“S é P” ou negativa “S não é P”. ‘S’ representa um estado ôntico que desempenha o
papel de sujeito e ‘P representa um estado ôntico que desempenha o papel de
predicado atribuído a ‘S’, de tal modo que a fórmula geral S é P” significa “o
estado ôntico P está unido ao estado ôntico S” e a fórmula geral “S não é P”
significa “o estado ôntico P não está unido ao estado ôntico S”.
Em primeiro lugar, os estados ônticos que estão sempre (necessariamente)
unidos e que, por isso, é impossível estarem separados. Estes estados ônticos são
aqueles em relação aos quais é sempre (necessariamente) verdadeira a asseveração
afirmativa que os une na forma enunciativa S é P” e, portanto, em relação aos
quais é necessariamente (sempre) falsa a asseveração negativa que os separa na
forma enunciativa “S não é P”. Isto ocorre porque estes estados ônticos constituem a
classe dos estados ônticos cuja união de ser é necessária, ou seja, em que “S
necessariamente é P” e em que é efetivamente impossível acontecer que S
319
necessariamente não é P”. Estes o os estados ônticos cuja unidade é
necessariamente verdadeira no sentido de ser sempre real.
Em segundo lugar, em uma simetria perfeita de oposição, os estados ônticos
que estão sempre (necessariamente) separados e que, por isso, é impossível
estarem unidos. Estes estados ônticos são aqueles em relação aos quais é sempre
(necessariamente) verdadeira a asseveração negativa que os separa na forma
enunciativa “S não é P” e, portanto, em relação aos quais é necessariamente
(sempre) falsa a asseveração afirmativa que os une na forma enunciativa “S é P”.
Isto ocorre porque estes estados ônticos constituem a classe dos estados ônticos cuja
separação (não união) de ser é necessária, ou seja, em que S necessariamente não é P” e
em que é efetivamente impossível acontecer que S necessariamente é P”. Estes são
os estados ônticos cuja unidade é necessariamente falsa no sentido de não ser
nunca real.
Mas além destas duas classes de estado ônticos compostos, Aristóteles
determina uma terceira classe: os estados ônticos possíveis ou contingentes. Em
relação a estes estados ônticos é possível que uma mesma asseveração seja
verdadeira em um dado momento e falsa em outro momento, quer seja esta
asseveração negativa, quer seja afirmativa. Nestes estados ônticos acontece o
contrário dos dois tipos anteriores, a saber: não é nem necessário o ser de sua
união, nem necessário o não-ser de sua separação, o que equivale a dizer de modo
geral que é possível acontecer “S é P” ou acontecer “S não é P”. Assim, por
exemplo, a asseveração “tu estás sentado” é verdadeira quando tu estás, de fato,
320
sentado e falsa quando tu não estás, de fato, sentado, e posto que é possível que
estejas sentado no momento te é possível que não estejas sentado no momento t’,
então é necessariamente possível que a asseveração afirmativa “tu estás sentado
seja verdadeira ou falsa em t’, o mesmo valendo para a asseveração negativa “tu
não estás sentado”.
A partir destas três classes de estados ônticos compostos, pode-se fazer as
seguintes considerações gerais sobre os produtores de verdade. Primeiramente
será examinada a produção de verdade no que diz respeito às duas primeiras
classes de estados ônticos compostos: os necessários e os impossíveis.
Desde o ponto de vista ontológico, a unidade de ser efetiva entre os itens que
compõem os estados ônticos necessários é necessariamente verdadeira de re e de
dicto, pois é verdadeiro dizer que “S é P” quando este dizer está referido a itens
que, de fato, necessariamente estão unidos. No entanto, a separação de ser efetiva
entre os itens que compõem os estados ônticos impossíveis é necessariamente falsa
de re, o sendo falsa de dicto, pois é verdadeiro dizer que “S não é P” quando este
dizer está referido a itens que, de fato, estão necessariamente separados (não estão
unidos, o ocorrem), na medida em que enquanto uma separação de itens
significa que sua a união de ser não acontece, então a negação desta união
corresponde exatamente a esta separação e a exprime no dizer. Mas isso parece
levar ao paradoxo de que, de algum modo, existem estados ônticos impossíveis, os
quais são justamente definidos por não serem nunca reais (sempre falsos).
321
Este aparente paradoxo se resolve se se considera os estados ônticos necessários
e impossíveis desde o ponto de vista lógico-semântico. De um lado, os enunciados
que negam a união dos itens que compõem os estados ônticos impossíveis são
sempre necessariamente verdadeiros e equivalentes aos enunciados que afirmam a
união destes mesmos itens nos estados ônticos necessários. Assim, por exemplo, o
enunciado ‘É falso que “A diagonal é comensurável”’ significa o mesmo que o
enunciado verdadeiro “A diagonal não é comensurável” ou “A diagonal é não-
comensurável”. Os enunciados que negam a união de itens que compõem os
estados ônticos necessários são sempre necessariamente falsos e equivalentes aos
enunciados que afirmam a união destes mesmos itens como compondo os estados
ônticos impossíveis. Assim, por exemplo, o enunciado ‘Não é verdadeiro que “A
diagonal é o-comensurável”’ significa o mesmo que o enunciado falso A
diagonal é comensurável”. Percebe-se com isso que uma oposição lógico-
semântica de contraditoriedade simétrica entre, de um lado, a afirmação
(verdadeira) dos estados ônticos necessários e a afirmação (falsa) dos estados
ônticos impossíveis, e de outro lado, a negação (verdadeira) dos estados ônticos
impossíveis e a negação (falsa) dos estados ônticos necessários. Assim,
relativamente aos mesmos itens cuja união (ser, realidade) é necessária, a
separação é impossível, e relativamente aos mesmos itens cuja separação (não-ser,
não-realidade) é necessária, a união é impossível. Isto ocorre porque a afirmação
(união dos itens) é sempre verdadeira quando se refere aos estados ônticos
necessários (pois estão sempre unidos) e a negação (separação dos itens) sempre
322
falsa (pois nunca estão separados). Inversamente, porém, a negação (separação dos
itens) é sempre verdadeira quando se refere aos estados ônticos impossíveis (pois
estão sempre separados) e afirmação sempre falsa (pois nunca estão unidos). A
partir deste esclarecimento, desfaz-se o aparente paradoxo acerca da ‘existência’ de
estados ônticos impossíveis, dado que eles “existem” enquanto entidades
noéticas e ou lógico-semânticas (lingüísticas) sempre falsas e que resultam da
separação do que sempre está unido ou da união do que sempre está separado
190
.
Mas esta explicação, desde o ponto de vista lógico-semântico, da união e
separação ontológica dos mesmos itens ainda não responde à questão ontoalética
de como efetivamente estes enunciados recebem seu valor de verdade, quer
verdadeiro, quer falso. Pode-se considerar aqueles estados ônticos cuja união é
necessária como os produtores de verdade primários tanto para os enunciados que
a eles se referem como para os enunciados que se referem aos estados ônticos que
são necessariamente separados, ou seja, para aqueles estados ônticos que nunca
podem estar unidos. Isto significa que, por exemplo, um enunciado tal como “a
diagonal é comensurável” possui necessariamente o valor de verdade falso porque,
de fato, a diagonal é incomensurável, ou seja, a diagonal é não-comensurável
191
.
190
Apesar de sua inexistência factual ou real, os estados ônticos impossíveis são reconhecidos por
Aristóteles como tendo um alto valor epistêmico, como na prova da incomensurabilidade da
diagonal por redução ao absurdo e, em realidade, em todas as reduções ao absurdo, dentre as quais
algumas são a única maneira encontrada pelo estagirita para provar a validade de modos de
inferências silogísticas tais como Baroco e Bocardo, bem como para vários esquemas de silogismos
modais. Para uma apresentação da forma lógica da redução ao absurdo em Aristóteles, veja-se, de
Günther Patzig, Die Aristotelische Syllogitik, opus cit., cap. 5, § 29. Veja-se também, de Jan
Lukasiewicz, La silogística de Aristóteles, opus cit., cap. 3, § 18.
191
O predicado ‘não-comensurável’ é um predicado positivo, apesar de parecer negativo, posto que
‘ser não-comensurável/in-comensurável’ significa ‘ter uma medida diferente’.
323
Os enunciados que afirmam a união dos itens que compõem os estados ônticos
impossíveis são falsos não por causa da existência de estados ônticos impossíveis,
que propriamente não são (são sempre falsos, nunca reais), mas são falsos por
causa dos estados ônticos necessários. Contudo, os enunciados que afirmam a
união dos itens que compõem os estados ônticos necessários são verdadeiros por
causa destes mesmos estados ônticos necessários. Por isso, o valor de verdade falso
dos enunciados que afirmam estados ônticos impossíveis é ontoaleticamente
dependente do e produzido pelo valor de verdade verdadeiro dos enunciados que
afirmam a união dos itens que compõem os estados ônticos necessários. O valor de
verdade (verdadeiro) destes enunciados que afirmam a união de ser dos itens que
compõem os estados ônticos necessários depende unicamente destes estados
ônticos e é produzido por eles. Pois o enunciado falso “a diagonal é comensurável”
é falso porque o enunciado oposto é verdadeiro, mas o enunciado verdadeiro “a
diagonal é incomensurável” é verdadeiro porque, de fato, a diagonal é não-
comensurável e não porque é verdadeiro negar que ela seja comensurável, mas a
negação de que ela seja comensurável é verdadeira porque ela é não-
comensurável, assim como a afirmação de que ela é comensurável é falsa porque
ela, de fato, é não-comensurável. Os estados ônticos necessários que são
verdadeiros porque os itens que os compõem estão necessariamente unidos e que,
portanto, o sempre reais produzem a verdade tanto dos enunciados
afirmativos que os exprimem, quanto a falsidade dos enunciados que os negam e
que o fazendo afirmam de modo necessariamente falso os estados ônticos
324
impossíveis. Já a negação dos estados ônticos impossíveis equivale à afirmação dos
necessários e, assim, são estes mesmos que produzem a verdade destas negações.
Tem-se assim dois tipos de produção de verdade, ambas realizadas pelos
estados ônticos necessários, a produção de verdade direta e a produção de verdade
indireta:
(A) Produção de verdade direta:
As asseverações:
(1) “A diagonal é incomensurável/não-comensurável” é necessariamente
verdadeira porque, de fato, a diagonal é necessariamente incomensurável/não-
comensurável.
(2) A soma de sete mais cinco é igual a doze” é necessariamente verdadeira
porque, de fato, a soma de sete mais cinco é necessariamente igual a doze.
(3) “Sócrates é um ser humano” é necessariamente verdadeira porque, de fato,
Sócrates é necessariamente humano.
(B) Produção de verdade indireta:
As asseverações:
(1’) “A diagonal é comensurável” é necessariamente falsa porque, de fato, a
diagonal é incomensurável/não é comensurável.
(2’) “A soma de sete mais cinco não é igual a doze” é necessariamente falsa
porque, de fato, a soma de sete mais cinco é necessariamente igual a doze.
(3’) “Sócrates não é um ser humano” é necessariamente falsa porque, de fato,
Sócrates é necessariamente humano.
192
192
Note-se que, ainda que Sócrates não exista necessariamente nem sempre, é necessariamente
verdadeiro o estado ôntico composto expresso em “Sócrates é um ser humano” porque Sócrates
necessariamente é humano (caso contrário não existiria ou o nome ‘Sócrates’ teria uma denotação
diferente ou nenhuma denotação). De um certo ponto de vista lógico, uma vez que Sócrates existiu
como ser humano, continuará para sempre verdadeiro dizer que Sócrates é (foi) um ser humano,
ainda que não mais exista e, um pouco mais radicalmente, ainda que em tempos futuros não se
saiba que um ser humano com nome ‘Sócrates’ existiu, do mesmo modo que o desconhecimento
dos dinossauros até recentemente não tornou falsa a asseveração necessariamente verdadeira de
que os dinossauros são (foram) seres vivos. Do ponto de vista aristotélico, é importante lembrar que
o estagirita acreditava na perenidade e sempiternidade das formas, de modo que sempre houve,
325
A partir deste quadro sinóptico, vislumbra-se como ocorre a dependência
ontoalética das asseverações modalizadas em relação a seus produtores de
verdade. É importante notar que as modalidades de dicto são determinadas em seu
valor de verdade através de uma remissão a modalidades de re. Esta posição de
uma remissão dos modos de ser verdadeiro ou falso no dizer (correspondentes às
chamadas modalidades aléticas) aos modos do ser verdadeiro ou não-ser
verdadeiro nos estados ônticos (correspondentes às chamadas modalidades
ontológicas) revela que o sentido ontoalético das modalidades aventado na
primeira parte encontra em Aristóteles um baluarte e talvez possa, juntamente com
os conceitos de dependência ontoalética e produção de verdade, contribuir para
uma melhor compreensão da teoria das modalidades tal como desenvolvida pelo
mestre do Liceu. À luz desta remissão e da identificação dos conceitos de
necessário e de eterno (“sempre”), pode-se ver que o conceito contemporâneo de
‘mundo possível’ recebe em Aristóteles a determinação de instantes ou momentos
do tempo. Assim, aquilo que é necessário é verdadeiro em todos os mundos
e haverá indivíduos que instanciem a forma humana. Isto certamente não mais se sustenta à luz da
teoria darwinista da evolução das espécies, mas o deixará de ser verdadeiro num futuro distante
(assim se espera), em que não mais houver seres humanos, que houve entidades orgânicas que
tiveram a característica essencial de serem humanas. Seja como for, a necessidade aristotélica e seu
caráter perene não se aplicam apenas às entidades individuais eternas (como o movente não-
movido ou as inteligências das esferas) como parecem pensar certos intérpretes, mas também às
formas eternas instanciadas nos indivíduos sujeitos à geração e corrupção. Cf. Da geração e da
corrupção, Livro II, cap. 11; Metafísica, Livro VII, cap. 8.
326
possíveis no sentido de sempre ser verdadeiro, e o que é impossível é falso em
todos os mundos possíveis no sentido do que nunca é verdadeiro.
193
Uma passagem do tratado Da interpretação pode confirmar tanto esta
interpretação temporal das modalidades, como a hierarquia ontológica dos
produtores de verdade para os enunciados modalizados, tal como aqui está sendo
analisada:
“E, de fato, o necessário e o não necessário são igualmente
[☯] o princípio [] para o ser ou não ser de
todos <os estados ônticos>, e as outras <modalidades de ser>
devem <ser> examinadas como se seguindo
[] a estas. É evidente pelo que foi dito
que o que é [ ] por necessidade
[⌧ ] é segundo o ato
[ ], de modo que se os
<entes/estados ônticos> eternos [ ] <são>
anteriores, então o ato <é> anterior à potência. E de um lado estão
os <estados ônticos> atuais sem potência, como por exemplo as
essências primeiras, e de outro os <estados ônticos> potenciais, os
quais, de um lado, <são> anteriores por natureza
[ ], e, de outro, <são> posteriores por
tempo [  ], e ainda os
<estados ônticos que> nunca [] estão em ato,
mas unicamente [] em potência”.
194
193
Para uma discussão do sentido temporal das modalidades em Aristóteles, sobretudo a partir do
tratado Do céu, Livro I, caps. 11-12, veja-se, de Sarah Waterlow, Passage and possibility, opus cit.,
caps. 1-2.
194
Da interpretação, cap. 13, 23 a 18-26:
 ☯   ☯   
   
        ☯ ☺
    
   
   ⌧    
      
  
     ☯ 
      
  
       
     
  .
327
É importante ressaltar quanto a esta passagem que os primeiros estados ônticos
aludidos são sempre em ato e nunca em potência. Isto não significa de nenhum
modo que eles não sejam possíveis (o que seria absurdo), mas que o são
materiais (ainda que alguns deles estejam instanciados na matéria), o que reforça a
tese de que não se deve fazer a identificação simpliciter entre potência e
possibilidade, pois o que tem potência tem possibilidade, mas nem tudo que é
possível está em potência. Estes estados ônticos são justamente aqueles que sempre
estão unidos e não podem ser separados. Dado que Aristóteles identifica as formas
em ato como aquilo que é necessário sempre existir, então se pode concluir a partir
desta passagem que os produtores primários de verdade para as asseverações
modalizadas se referindo aos estados ônticos necessários ou impossíveis são as
formas em ato dos estados ônticos. Note-se ainda que os últimos tipos de entidades
listadas como aquelas unicamente em potência e nunca em ato correspondem aos
estados ônticos impossíveis, na medida em que estes estados ônticos nunca se
atualizam, mas estão em potência no sentido de que podem ser pensados e
Não parece convincente a observação de Ackrill de que esta passagem está “fora de lugar na
presente obra e apenas conectada de modo nue com o que precede” (“out of place in the present
work and only tenuously connected with what preceded”) e que “é seguro considerá-la como uma
adição posterior, <feita> quer por Aristóteles, quer por outro” (“it is safe to regard it as a later
addition, whether by Aritotle or by another”) (cf. Aristotle’s Categories and De interpretatione. Oxford:
Clarendon, 1978 (1963), p. 153). Se se compreende este trecho a partir da concepção aristotélica dos
produtores de verdade, então é natural que após ter exposto as modalidades das enunciações
asseverativas siga-se a determinação da hierarquia ontológica de seus produtores de verdade, ou
seja, dos tipos de estados ônticos que instanciam estas modalidades e em relação aos quais os
enunciados modalizados podem receber sua justificação, podem ser verificados e que, portanto, são
produtores de seu valor de verdade.
328
enunciados sem que, por isso, de fato sejam, o que novamente põe em dúvida a
identificação simpliciter entre os conceitos de possibilidade e de potência.
Com esta passagem, pode-se encerrar a caracterização sumária da relação de
dependência ontoalética entre produtores e portadores de verdade no que diz
respeito aos estados ônticos compostos necessários e impossíveis, sendo os estados
ônticos necessários os produtores de verdade do sentido do valor de verdade para
os enunciados necessariamente verdadeiros e para os enunciados necessariamente
falsos.
195
O trecho do tratado Da interpretação acima evocado também permite fazer a
passagem para a terceira classe de estados ônticos em relação aos quais se deve
ainda analisar como acontece a dependência ontoalética na produção de verdade:
os estados ônticos possíveis ou contingentes. Conforme Aristóteles, estes estados
ônticos são aqueles em relação aos quais um mesmo enunciado e uma mesma
opinião são por vezes verdadeiros e por vezes falsos. Dentro do esquema
conceitual da presente investigação, dir-se-ia que a mesma asseveração é por vezes
verdadeira e por vezes falsa
196
. E isto é assim porque nestes estados ônticos a
união ou a separação de itens não é nem necessária nem impossível. Tal é o
conceito aristotélico de possibilidade em sentido estrito, dado que também tudo
195
Uma derradeira observação, en passant, acerca desta concepção consiste em mostrar a
possibilidade de ser desenvolver uma teoria da produção de verdade não apenas para enunciados
contingentes, como pensam alguns teóricos atuais dos produtores de verdade, mas também uma
teoria da produção e dos produtores de verdade para enunciados analíticos, tautológicos e
contraditórios, senão para todos, ao menos para uma boa parte deles.
196
Obviamente em se tratando de asseverações sobre estado ônticos nem necessários nem
impossíveis.
329
aquilo que é necessário é necessariamente possível (no sentido lato de possível), na
medida em é definido como a negação do impossível, ou seja, como aquilo que não
pode não ser.
No entanto, nesta classe “mista” de estados ônticos compostos, a relação de
dependência ontoalética na produção de verdade é diferente daquela antes
descrita quanto aos estados ônticos necessários ou impossíveis. Aqui os produtores
de verdade tanto das enunciações afirmativas como das negativas, possuem tanto
um caráter temporal quanto uma assimetria entre si. Dado que a possibilidade
bivalente é a possibilidade de ser e de não ser
197
(ainda que necessariamente não
possam ocorrer ambos ao mesmo tempo), então todos os enunciados (afirmativos
ou negativos) devem tanto especificar sua referência com relação a algum tempo,
quanto ter o caráter simplesmente atual que implica a possibilidade de sua
verdade ou falsidade em um dado momento. Para facilitar a compreensão da
relação de dependência ontoalética na produção de verdade dos enunciados ou
asseverações acerca dos estado ônticos contingentes, atente-se para o seguinte
esquema:
197
Cf. Da interpretação, caps. 9 e 13, 23 a 37 ss; Primeiros analíticos, Livro I, caps. 3 e 13; Metafísica,
Livro IX, cap. 8, 1050 b 8-16. uma intensa discussão acerca da possibilidade contingente em
Aristóteles. De um lado, há aqueles que defendem que, segundo o filósofo macedônio, não haveria
possibilidades não realizadas ao longo do tempo, ou seja, que Aristóteles seria um partidário do
chamado “princípio de plenitude”. De outro lado, há os que defendem que o princípio de plenitude
seria válido apenas para alguns tipos de entidades, mas não de modo irrestrito, havendo de fato no
pensamento de Aristóteles espaço para a idéia de possibilidades que não se realizam. Na presente
investigação, pressupõe-se a segunda posição, mas infelizmente não é possível defendê-la e
apresentar os argumentos a seu favor. Para uma defesa da primeira posição, veja-se, de Jaakko
Hintikka, “Aristotle on the realization of possibilities in time”, in Reforging the great chain of being.
Dordrecht: Reidel, 1980, pp. 57-82. Para uma defesa da segunda posição, veja-se, de Sarah
Waterlow, Passage and possibility, opus cit., caps. 5-6. Veja-se também, de Alfonso G. Marqués,
“Potencia, finalidad y posibilidad em Metafísica, IX, 3-4”, in Anuário Filosófico, vol. 23, nº 2, 1990, pp.
147-159.
330
(1) Produção de verdade direta:
A asseveração:
“Tu estás sentado” é verdadeira em t’ porque, de fato, tu estás sentado em t’
(2) Produção de verdade indireta:
A asseveração:
“Tu não estás sentado” é falsa em t’ porque, de fato, tu estás sentado em t’
(3) Produção de verdade oblíqua:
As asseverações:
A “Tu não estás sentado” é verdadeira em tporque, de fato, é possível que: ou (Tu
estás de em t’) ou (Tu estás deitado em t’) ou (Tu estás correndo em t’) ou (Tu
estás caindo em t’) ou (Tu estás nadando em t’) ou ...
B – “Tu estás sentado” é falsa em t’ porque, de fato, é possível que: ou (Tu estás de pé
em t’) ou (Tu estás deitado em t’) ou (Tu estás correndo em t’) ou (Tu estás caindo
em t’) ou (tu estás nadando em t’) ou ...
Estes esquemas de tipos de dependência ontoalética dos enunciados sobre
estados ônticos possíveis correspondem aos três sentidos que o estagirita admite
para o ser-verdadeiro e ser-falso nesta classe de entidades. A primeira e a segunda
forma de produção de verdade são apenas variantes temporalizadas dos esquemas
de dependência ontoalética antes apresentados. Pode causar estranheza a terceira
forma de produção de verdade, que foi denominada aqui de produção de verdade
oblíqua. Parece que esta forma de produção de verdade não estaria justificada no
texto de Aristóteles. Para desfazer esta aparência e antes de explicar sua
necessidade ontoalética (lógica e ontológica) é interessante revocar o trecho do
tópico dois em análise onde o estagirita postula os estados ônticos possíveis e os
331
contrasta com os necessários e os impossíveis, de onde é depreendida a forma
oblíqua de dependência ontoalética. O trecho é o seguinte:
e <além destes> os <estados ônticos em que> é possível
[] <acontecer> o contrário, <de modo que>
o ser é o estar unido e o ser uno [ ] e o não ser
<é> o não estar unido, mas ser muitos mais do que <um>
[ ]: com efeito, acerca dos <estados
ônticos> possíveis [ ], a mesma
opinião e o mesmo enunciado/discurso [☺ ] vêm a
ser [] verdadeiros e falsos, e é possível por vezes
dizer o verdadeiro [] e por vezes dizer o
falso [], mas acerca dos <estados ônticos> que
não podem se comportar de outro modo
[ ☯ ☯] <o mesmo
enunciado e a mesma opinião> não vem a ser por vezes
verdadeiros e por vezes falsos, mas os mesmos <enunciados e
opiniões são> sempre verdadeiros e <sempre> falsos.
A caracterização dos estados ônticos possíveis consiste em neles ser possível
acontecer o contrário. Em um primeiro sentido este ‘contrário’ se refere aos estados
ônticos necessários e impossíveis, de tal modo que os possíveis, como foi
indicado, são aqueles que não são nem necessários nem impossíveis. Mas este
‘contrário’ se desdobra em uma caracterização do ser-verdadeiro e do ser-falso
tanto em sentido ontológico como lógico-semântico, a saber: (i) o ser-verdadeiro
significa estar unido e ser uno e (ii) o não-ser-verdadeiro significa o não estar
unido e ser muitos mais do que um. Quanto a (i) não parece haver problemas de
compreensão, pois indica os sentidos do ser tanto como o que é verdadeiro (é de
fato, é real), quanto o sentido do ser como ser-verdadeiro na afirmação, sendo
ambos os sentidos determinados como o ser uno e estar unido, ou seja, em formar
uma unidade verdadeira na forma “S é P”, correspondente ao ser uno e estar unido
332
do estado ôntico. A dificuldade de interpretação surge em (ii), pois o não-ser aqui
possui não apenas o sentido ontológico do não-ser como o não-ser-verdadeiro
(não-ser real) ou o sentido lógico-semântico do não-ser como o ser-falso dos
enunciados, mas também indica o sentido do não-ser na forma de “S não é P”, ou
seja, o sentido da negação, a qual pode ser verdadeira ou falsa, tanto quanto a
afirmação. Estes três sentidos de não-ser-verdadeiro no âmbito dos estados ônticos
contingentes o, contudo, indicados simplesmente como “o o estar unido, mas
ser muitos mais do que <um>”. O problema está aqui em como compreender este
“ser muitos mais do que <um>”. A expressão grega é  ’.
O termo  é um comparativo plural do substantivo plural
referencialmente indefinido  ’, “muitos”, a maior parte”.
Aristóteles indica provavelmente com este termo o conceito henológico
  (“o múltiplo”)
198
. Por isso, a expressão
 ’ foi traduzida como “ser muitos mais do que”. Dado que
é um comparativo, deve-se complementar a expressão, e este complemento sem
dúvida alguma, no contexto analisado, refere-se ao ser uno
(  ), dado que o ser-verdadeiro é caracterizado como o
ser uno e o estar unido, e o ao estar unido ( ) se opõe o
não estar unido (  ). A expressão
 ’, portanto, opõe-se ao ser uno que caracteriza o ser-
198
Sobre este conceito em Aristóteles, veja-se Metafísica, Livro V, cap. 6, 1017 a 3-6 (onde é
rapidamente determinado a partir dos sentidos de uno enumerados no mesmo capítulo) e Livro X,
caps. 3 (1054 a 20-29) e 6 (onde se encontra a discussão mais extensa sobre seus sentidos em
contraste de oposição com o conceito de uno).
333
verdadeiro. Deste modo, o sentido do “ser muitos mais do que um pode ser
elucidado através do significado do ser-verdadeiro enquanto ‘ser uno’. Ora, ser
uno significa, por exemplo, em “Sócrates é branco” que uma entidade real que,
de algum modo, forma a unidade (acidental ou concomitante) complexa ‘Sócrates-
branco’
199
. Se isto está correto, então o ser muitos mais do um” significa que
muitas outras unidades contingentes entre itens podem se formar a partir de cada
um dos itens que compõem um estado ôntico contingente, dado que o fato de
Sócrates ser branco não impede que seja muitas outras coisas e que o seja uma
infinidade de outras.
Isto se confirma através da análise das três formas de produção de verdade
acima listadas. Retomando os esquemas, pode-se ver em (1) o modo como ocorre a
produção de verdade direta. O enunciado asseverativo afirmativo “Tu estás
sentado” é verdadeiro em t’ porque, de fato, tu estás sentado em t’. Em (2) está
expresso o modo como acontece a produção de verdade indireta para a mesma
asseveração na forma negativa, ou seja, “Tu não estás sentado” é falsa em t’
porque, de fato, tu estás sentado em t’. O problema surge justamente quando se
tem que encontrar os estados ônticos que podem ser produtores de verdade para
os mesmos enunciados, que quando o enunciado afirmativo é falso e o negativo
é verdadeiro. Assim, qual o produtor de verdade do enunciado afirmativo “Tu
199
Sobre a unidade acidental ou concomitante, veja-se Metafísica, Livro V, cap. 6. Correlata é a noção
de identidade acidental em Metafísica, Livro V, cap. 9. Veja-se também a discussão da possibilidade
de uma definição destes compostos acidentais em Metafísica, Livro VII, cap. 6. Para uma análise
minuciosa do sentido de unidade e identidade acidentais ou concomitantes, veja-se, de Nicholas P.
White, “Aristotle on sameness and oneness”, art. cit., esp. pp. 183-188.
334
estás sentado” quando ele é falso em t’? A resposta a esta pergunta seria
simplesmente postergada se se dissesse que o enunciado “Tu estás sentado” é falso
em t porque, de fato, tu não estás sentado em t’. Se esta resposta fosse tomada
como definitiva, ter-se-ia então que admitir que algo no mundo tal como “o
não-estar-sentado-em-t’ ”, o que, em última instância, seria admitir a noção
contraditória de um fato negativo, ou seja, que a não ocorrência factual de algo
seria uma ocorrência factual.
O problema tem sua origem no fato de que, diferentemente dos enunciados
sobre estados ônticos necessários e impossíveis, nos enunciados que se referem a
estados ônticos possíveis ou contingentes a negação de um enunciado falso o
implica ou equivale necessariamente a existência do estado ôntico representado
pelo enunciado verdadeiro a ele oposto. Isto é assim justamente pelo fato de que
um mesmo enunciado acerca dos estados ônticos contingentes pode ser verdadeiro
e pode ser falso, dado que os itens que podem compor um estado ôntico contingente
não estão sempre unidos ou sempre separados, mas por vezes estão unidos e por
vezes separados. Apenas no plano lógico-semântico a falsidade em t’ de Tu estás
sentado” implica necessariamente a verdade em t’ de “Tu não estás sentado”. No
plano ontoalético da produção de verdade, porém, a causa do enunciado
afirmativo “Tu estás sentado” ser falso não é um fato do tipo indicado pelo
predicado ‘não-estar-sentado-em-t’ ’’ aplicado ao sujeito denotado por ‘tu’, pois
aquilo que está na extensão deste predicado negativo pode ser qualquer estado
ôntico referido ao sujeito em t’, à exceção do predicado ‘estar-sentado’, ou seja,
335
aquilo que é indicado pelo enunciado “Tu não estás sentado”, quando verdadeiro
em t’, o é um fato, mas uma multiplicidade de fatos possivelmente verdadeiros
em t’, tais como tu estares de pé, correndo, nadando, deitado, caindo, etc. É
justamente um destes fatos ou estados ônticos possíveis em tque é o produtor do
valor de verdade falso referido ao enunciado “Tu estás sentado”. Com isso,
explica-se também imediatamente o sentido da produção de verdade oblíqua do
enunciado negativo “Tu não estás sentado” verdadeiro em t’.
Se estas elucidações estão corretas então se torna claro o sentido em que o não-
ser, como o “ser muitos mais do que um”, indica, na relação de dependência
ontoalética dos enunciados em relação aos estados ônticos contingentes, que uma
multiplicidade de estados ônticos possíveis em um determinado tempo podem ser
produtores do valor de verdade de um enunciado afirmativo falso e de um
enunciado negativo verdadeiro. Assim, em ‘É verdadeiro em t’ que “Tu o estás
sentado”’, o não-ser expresso no enunciado negativo é verdadeiro porque uma
multiplicidade de estados ônticos que tornam este enunciado verdadeiro em t’, à
exceção obviamente do estado ôntico instanciado no fato de estares sentado. E se
isto é correto, então ‘É falso em t’ que “Tu estás sentado”’, enquanto equivalente de
‘É verdade em t’ que “Tu não estás sentado”’, torna-se falso, ou seja, não é
verdadeiro justamente por causa desta mesma multiplicidade de fatos possíveis
em t’, à exceção do estado ôntico instanciado no fato de estares sentado.
200
200
Pode confirmar esta interpretação o seguinte trecho referente aos sentidos de múltiplo
(Metafísica, V, 6, 1017 a 3-6):
336
Com estes esclarecimentos gerais sobre como, quando e porque acontece a
relação de dependência ontoalética na produção de verdade dos enunciados a
partir dos estados ônticos necessários, impossíveis e contingentes fica esclarecido e
interpretado o segundo tópico de Metafísica, IX, 10.
Os terceiro e quarto tópicos constituem a parte mais extensa do capítulo. Neles
são estabelecidos, respectivamente, o sentido de verdade e falsidade do estados
ônticos o-compostos e um resumo que contrasta os dois sentidos de ser-
verdadeiro e ser-falso. Estes tópicos são objeto de polêmicas interpretativas
seculares. Estas polêmicas têm sua origem no fato de que a brevidade lacônica do
trecho é inversamente proporcional à importância, singularidade e ao alcance do
que é postulado. Não é possível nem necessário fazer aqui uma exegese
exaustiva destes tópicos. Serão feitos apenas apontamentos hermenêuticos e
filosóficos gerais sobre o que mais interessa à perspectiva desta investigação e ao
tema deste capítulo.
“É evidente que ltiplo será dito pelos <sentidos> opostos ao uno: de um lado por o ser
contínuo, de outro lado, por ter a matéria divisível segundo a forma, quer a <matéria> primeira
quer a última, e ainda por <serem> múltiplos os enunciados que enunciam o ser-
essencial.”/ 
     
 ☺       
    
 ☯      
        
  
    .
A oposição aqui entre um único enunciado que exprime o ser-essencial de algo (cf. 1016 a 32-1016 b
11) e uma multiplicidade (de dois em diante, mas um mero finito) de enunciados que exprimem
o ser-essencial, pode ser transposta ao caso da unidade acidental dos itens que compõem os estados
ônticos contingentes, de tal modo que o o-ser (no sentido da negação presente em um enunciado
negativo verdadeiro, equivalente à falsidade do enunciado afirmativo oposto) possa significar uma
multiplicidade de possíveis enunciados verdadeiros em um momento t’ e os estados ônticos que
lhes correspondem, ou seja, o não-ser uno do estado ôntico possível que torna um enunciado
negativo verdadeiro, e falso o enunciado afirmativo a ele oposto.
337
O terceiro tópico começa expondo a questão pelo sentido do ser-verdadeiro e
do ser-falso instanciados nos estados ônticos não-compostos bem como com uma
exposição sumária da razão de ser desta questão. O trecho visado diz:
“Mas acerca dos <estados ônticos> não-compostos
[ ], que são o ser e o não ser, e o
verdadeiro e o falso? Pois <um tal estado ôntico> não é composto,
de modo a ser, de um lado, quando está unido, e, por outro lado,
não ser quando estiver separado, assim como o <ser> a madeira
branca ou o <ser> o diâmetro incomensurável. O verdadeiro e o
falso não subsistirão [☺⌧] mais aqui de modo
semelhante a como naqueles <estados ônticos compostos>. E assim
como não é o mesmo o verdadeiro nestes <estados ônticos>, assim
também não <é o mesmo> o ser (...).”
muita disputa sobre o que significariam aqui os o-compostos
( ). De um lado propõe-se que significariam entidades
conceituais noéticas e lógico-semânticas, de outro lado propõe-se que sejam
entidades reais e objetivas
201
. À luz do esquema conceitual desta investigação,
percebe-se que esta separação não tem razão de ser, pois não se trata, no capítulo
em questão, nem de uma determinação apenas lógico-semântica ou noética do ser-
verdadeiro e do ser-falso, nem de uma determinação apenas ontológica, trata-se,
bem antes, de uma determinação ontoalética, ou seja, uma determinação da relação
veritativa entre pensamento, linguagem e realidade.
201
Para a primeira posição, veja-se, de Mário Mignucci, “Vérité et pensée dans le De anima”, in
Corps et âme (Sur le De anima d’Aristote), (ed.) Gilbert R. Dherbey. Paris: Vrin, 1996, pp. 403-422.
Veja-se ainda, de Joseph Moreau, “Aristote et la vérité antéprédicative”, in Aristote et les problèmes de
méthode, (ed.) Susanne Mansion. Louvain: Instituto Superior de Filosofia, 1980 (1961), pp. 21-33.
Para a segunda posição veja-se (no mesmo volume do texto de Mignucci), de Enrico Berti,
“Reconsidérations sur l’intellection des “indivisibles” selon Aristote (De anima, III, 6)”, pp. 391-404.
Para uma posição intermediária, veja-se, de Pierre Aubenque, “La pensée du simple dans la
Métaphysique (VII, 17 et IX, 10)”, in Études sur la Métaphysique d’Aristote, (ed.) Pierre Aubenque.
Paris: Vrin, 1979, pp. 69-88.
338
Deixando momentaneamente em aberto o significado ou estatuto ontoalético
destas entidades ou estados ônticos não-compostos, uma primeira caracterização
pode ser retirada dos exemplos dados pelo estagirita, através dos quais se percebe
que os não-compostos indicam justamente os itens que compõem os estados
ônticos compostos através das relações ontológicas da união e separação, que
correspondem no plano noético e lógico-semântico às relações afirmativa ou
negativa entre sujeitos e predicados nos enunciados asseverativos das formas “S é
P” e “S não é P”. Por conseguinte, os não-compostos correspondem justamente aos
estados ônticos simples que desempenham a função de sujeitos e predicados dos
enunciados. Aristóteles dois exemplos de estados ônticos compostos. O
primeiro tomado dentre os estados ônticos contingentes, a saber: o estado ôntico
contingente formado quer pela união quer pela separação singular e temporária
dos itens ou estados ônticos simples (não-compostos) ‘ser-madeira’ e ‘ser-branco’,
união que pode ser expressa pelos enunciados (A/esta) madeira é branca” ou
“(A/esta) madeira não é branca”, ambos os enunciados que podem ser tanto
verdadeiros quanto falsos, na medida em que haja a união efetiva (verdade) destes
estados ônticos simples (não-compostos) ou que haja a separação de ambos. O
segundo exemplo é retirado dos estados ônticos necessários, a saber: o estado
ôntico formado pela união sempiterna e universal dos estados ônticos simples
(não-compostos) ‘ser-diagonal’ e ‘ser-(in)comensurável’, união ou unidade
complexa que pode ser expressa pelo enunciado necessariamente verdadeiro
“(A/toda) diagonal é incomensurável” ou pelo enunciado necessariamente falso
339
“(A/toda) diagonal é comensurável”. Aristóteles reitera que nos estados ônticos
compostos é nas uniões e separações que acontece o ser ou não-ser dos mesmos,
seu ser-verdadeiro ou ser-falso enquanto ser-real ou não-ser-real, ser-verdadeiro e
ser-falso que podem ser ditos com verdade ou falsidade através dos enunciados
asseverativos afirmativos (que unem) ou negativos (que separam).
Ora, o problema enfrentado aqui por Aristóteles é mais evidente do que muitas
vezes é exposto pelos comentadores e pode ser compreendido de modo simples
através de três argumentos:
Em primeiro lugar, dado que nos estados ônticos compostos o ser ou não ser
depende efetivamente da união ou separação dos itens (estados ônticos simples)
que os compõem, então esta união ou separação pressupõe que estes itens sejam
algo em separado, algo para além de sua composição (possível, necessária ou
impossível), caso contrário, a união ou separação seriam união ou separação de
coisa nenhuma, quer no nível ontológico, quer no nível noético e lógico-semântico,
mas isso é absurdo.
Em segundo lugar, mas de modo complementar, se o ser-verdadeiro enquanto
sinônimo do ser-real fosse sempre o resultado de uma composição de itens então
não haveria nenhuma unidade fundamental de ser e de significação, com o que
necessariamente se cairia ou em uma circularidade auto-referente ou em uma
regressão ao infinito na ordem das relações entre os estados ônticos.
Em terceiro lugar, se não houvesse estados ônticos simples, cujo ser-verdadeiro
(enquanto ser-real) fosse anterior ao não-ser-verdadeiro (enquanto não-ser real),
340
então não seria possível, em última instância, justificar tanto que enunciados
necessariamente verdadeiros e enunciados verdadeiros, quanto enunciados
necessariamente falsos e enunciados falsos, nem também seria possível justificar
porque possuem estes valores de verdade.
Aristóteles não aduz estes argumentos porque já parte do fato de há não-
compostos, e que se não houvesse tais estados ônticos simples se cairia em todas
estas conseqüências absurdas. Este é o pano de fundo que torna clara a necessidade
da questão pelo modo de ser (ser-verdadeiro) e não-ser (ser-falso) dos estados
ônticos o-compostos. Além disso, a frase: “E assim como não é o mesmo o
verdadeiro nestes estados ônticos, assim também não é o mesmo o ser”, mostra
como a problemática da verdade na obra do estagirita não pode ser pensada nem
apenas como uma problemática ontológica, nem apenas como uma problemática
noética e ou gico-semântica, mas como uma problemática que coloca em jogo a
relação ontoalética entre pensamento, linguagem e realidade.
Segue-se, então, a determinação dos sentidos do ser-verdadeiro e do ser-falso
próprios aos estados ônticos não-compostos e o resumo contrastivo dos sentidos
do ser-verdadeiro e do ser-falso, tanto no que se refere aos estados ônticos
compostos, quanto no que se refere aos estados ônticos não-compostos. É útil
tornar presente o trecho em questão:
o verdadeiro ou o falso <são do seguinte modo>: de um lado,
o verdadeiro <é> o captar e o enunciar
[  ] <esta entidade simples>
(pois não é o mesmo afirmar [] e enunciar
[]), de outro lado, porém, ignorar []
<é> não captar <esta entidade simples> (pois não acontece estar
341
enganado [] acerca da qüididade
[  ] senão por acidente
[ ], e de modo similar acerca
das essências não compostas
[  ], pois não acontece
estar enganado <acerca de sua qüididade>, e todas estão/são em
ato, não em potência, pois <se fossem em potência> viriam a ser e
se corromperiam, porém o que é em si mesmo
[  ] não vem a ser, nem se corrompe,
pois viria a ser a partir de algo. Portanto, acerca destes <estados
ônticos> que são essenciais [  ] e
atualidades não acontece estar enganado, mas apenas apreender
[] ou não <apreender>, apesar disso, investiga-se sua
qüididade, <ou seja>, se são deste modo
[ ] ou não <são>).
<Assim, em um sentido> o ser enquanto ser-verdadeiro
[  ☺  ], e o não
ser enquanto ser-falso
[   ☺  ]
<acontecem do seguinte modo:> de um lado, o ser-verdadeiro
acontece se <o sujeito> está unido <ao predicado>, de outro lado, o
ser-falso <acontece> se <o sujeito> não está unido <ao predicado>.
<Em outro sentido> se algo uno é
[  ☯ ☯], <então> é de
determinado modo [ ], porém se não é
deste modo, então não é; e o verdadeiro <é> o apreender
[ ] estes <modos de ser dos estados ônticos
simples>, e o falso não acontece, nem o engano, mas apenas a
ignorância, a qual não é como a cegueira, pois a cegueira é como se
alguém não possuísse em absoluto a capacidade de apreensão
[ ].
Muito já foi escrito e dito acerca deste eminente trecho. Aqui o ser-verdadeiro é
caracterizado como uma apreensão que capta e enuncia o estado ôntico não-
composto, aparentemente sem nada afirmar sobre o mesmo. O ser-falso, por sua
vez, é determinado como um ignorar, no sentido de um não captar (e não
enunciar) um estado ôntico simples.
À primeira vista, e segundo várias interpretações correntes, o filósofo
macedônio estaria falando aqui de uma espécie de intuição intelectual atemporal,
342
imediata, passiva e involuntária, interpretada por vezes como não-lingüística e por
vezes como pré-predicativa. Ficará claro que nada de mais equivocado do que isso
pode ser dito acerca deste sentido do ser-verdadeiro exposto pelo filósofo.
Antes de qualquer coisa é preciso esclarecer o sentido de alguns conceitos para
que se torne clara a estrutura formada por seu conjunto. Primeiramente, é preciso
esclarecer o sentido do termo ’. Ele é sem dúvida usado por
Aristóteles para caracterizar o ato de apreensão mental () do ser próprio
de um estado ôntico não-composto qualquer. O termo provém do
verbo ‘que pode significar, de modo mais comum, tocar, alcançar,
apoderar-se (com as próprias os), possuir, experimentar, tatear, mas também é
usado figurativamente para indicar o ato mental de chegar a entender algo. Optou-
se pela tradução por captar’ para manter a idéia de apoderar-se de algo em o
entendendo. Em todos os seus sentidos, porém, indica o final de
uma ação intencionalmente orientada, com o que se descarta que a apreensão de
um estado ôntico seja um ato imediato e passivo, mas indica bem antes o final de
um processo que, se não pode ser propriamente caracterizado como voluntário e
livre, é, em todo caso, espontâneo, ativo e temporal.
202
202
Poder-se-ia fazer uma comparação (restrita e parcial) entre esta apreensão e a espontaneidade do
entendimento segundo Kant, a qual, apesar de não ser livre, é em todo caso ativa e oposta à
receptividade (passividade) da sensibilidade. É o próprio Aristóteles quem afirma, no capítulo que
precede ao aqui analisado, e ao descrever o processo de apreensão das figuras geométricas
existentes em potência nos estados ônticos, que o ato de apreensão é
atualidade/atividade”/☺ 
 . (Metafísica, IX, 9, 1051 a 30-31). Para uma caracterização da
apreensão inspirada implicitamente na espontaneidade do entendimento segundo Kant, bem como
para a explicitação do caráter temporal da apreensão, em contraste com a atemporalidade de seu
objeto, veja-se, de Marco Zingano, Razão e sensação em Aristóteles, opus cit., cap. 3. Para uma ótima
343
Aristóteles postula de passagem que uma diferença entre ‘enunciar’
() e ‘afirmar’ (). À primeira vista parece natural
remeter esta diferenciação àquela encontrada em Da interpretação (cap. 4, 17 a 17-
19), segundo a qual os nomes e os verbos ditos em separado seriam simples
’ que não constituiriam ainda uma afirmação ou negação verdadeira ou
falsa. Se isto é assim compreendido, então o enunciar no presente contexto está em
contradição com sua definição em Da interpretação, pois aqui não só se atribui
verdade à ’, mas verdade necessária, posto que no âmbito dos não-
compostos o ser-falso não existe propriamente como oposto ao ser-verdadeiro,
apenas o não captar ou o ignorar. Tomando, porém, esta caracterização da
de acordo o Da interpretação, pode-se esquematizar do seguinte modo
a diferenciação entre enunciar e afirmar no presente contexto: (a) dado que nos
estados ôntico compostos acontecem sempre enunciações na forma “S é P” ou “S
não é P”, e (b) dado que os estados ônticos não-compostos o representados por
‘S’ e ‘P’ em separado, então o enunciar indica aqui os simples proferimentos “S” ou
“P” sem nada lhes acrescentar. Deste modo, em contraste com as asseverações
(afirmativa) “Sócrates é filósofo” ou (negativa) “Sócrates não é filósofo” (que
exprimem estados ônticos compostos), no nível dos não-compostos, dir-se-ia
apenas “Sócrates”, filósofo” ou “é filósofo”, e estas enunciações” seriam
consideradas como necessariamente verdadeiras. Assim compreendido, o sentido
defesa do caráter temporal da apreensão, veja-se, de Enrico Berti, “Reconsidérations sur
l’intellection des indivisibles” selon Aristote (De anima, III, 6)”, art. cit., pp. 395 ss. E também, de
Lambros Couloubaritsis, “Y-a-t-il une intuiton des principes chez Aristote”, in Revue Internationale
de Philosophie, 1980, pp. 440-471.
344
de  aqui constitui uma reformulação da doutrina da enunciação
asseverativa do Da interpretação, segundo a qual uma expressão lingüística (e os
conceitos mentais que ela representa ou simboliza) pode ser verdadeira ou falsa
quando é constituída ao menos de um sujeito (nome) e um predicado (verbo). É a
partir deste tipo de leitura (ou algo similar a ela) que se interpreta geralmente o
ser-verdadeiro dos estados ônticos não-compostos como sendo expresso de modo
pré-predicativo.
No entanto, pode-se esboçar outra leitura mais de acordo com o espírito da
passagem e que preserva intacta a doutrina da enunciação asseverativa, tal como
exposta no tratado Da interpretação, tornando-a, por isso, compatível com a
diferenciação feita aqui entre enunciar e afirmar. Esta leitura parte de um ponto
simples: não indica aqui a enunciação isolada de um termo-sujeito ou
um termo-predicado. Ao contrário,  indica um tipo de enunciação
asseverativa que, não possuindo como seu contrário uma negação, não pode ser identificada
com a afirmação no pleno sentido deste conceito, e isto porque este tipo de enunciação por si
composta exprime a unidade simples de um estado ôntico enquanto tal, diferenciado de sua
possível unidade complexa (contingente ou necessária) com outros estados ônticos.
Do ponto de vista puramente sintático, a toda e qualquer enunciação nas
formas “S é” ou “S é P” se opõem as negações “S não é” ou “S não é P” e vice-versa
203
. Estas enunciações predicativas podem ser todas verdadeiras ou falsas. Neste
sentido a ’ não pode possuir estas formas sintáticas. Aristóteles, porém,
203
Cf. Da interpretação, cap. 6, 17 a 31-33.
345
determina como referente da  a qüididade do estado ôntico não-
composto, de tal modo que o conteúdo (sentido) de uma consiste em
apresentar a qüididade do estado ôntico não-composto a que se refere. Dado que
os não-compostos são representados pelas partes dos enunciados predicativos nas
formas “S é P ou “S não é P”, então os referentes de uma  são as
qüididades de S’ e P’. Representando pela letra ‘X’ a ’ referente à
qüididade de um sujeito qualquer Si’ e pela letra ‘Y’ a  referente à
qüididade de um predicado qualquer ‘Pi’, ter-se-ia então que “Si é X” e “Pi é Y”.
Aparentemente, tais enunciados estão na forma de afirmações, contudo, eles não
constituem propriamente afirmações, pois as ‘’ ‘X’ e ‘Y’ não representam
estados ônticos não-compostos diferentes de ‘Si’ e Pi’, mas, ao contrário, o a
explicitação da qüididade de cada um destes estados ônticos o-compostos.
Tomando a situação em que o estado ôntico ‘Pi’ seja tomado como sujeito ‘Sj’ de
um enunciado na forma “Sj é Pn”, então este enunciado seria equivalente a “Sj=Y é
Pn”. A partir destas esquema geral, é fácil perceber que uma indica
uma espécie de descrição definida de um estado ôntico simples que pode substituí-
lo em todos os contextos em que seja tomado quer como sujeito quer como
predicado de uma composição enunciativa afirmativa ou negativa. É esta
composição enunciativa que pode ser verdadeira ou falsa, mas não pode ser
verdadeira ou falsa a descrição definida de cada um dos estados ônticos que a
compõe. Além disso, a “composição” enunciativa formada pela relação de um
estado ôntico não-composto e sua  nunca pode assumir a forma de
346
uma negação, pois neste caso se teria uma composição enunciativa entre dois
estados ônticos não-compostos. Neste sentido também, por princípio, não pode
haver uma composição enunciativa falsa entre um estado ôntico não-composto e
sua ‘’ ou descrição definida. Além disso, a enunciação simples é simples
não por ser o proferimento de um único termo, mas porque os termos que nela
estão descrevem a unidade do estado ôntico não-composto a que se referem.
A partir disso, percebe-se que diferença entre uma afirmação e uma enunciação
simples não está propriamente na forma lógica em que são estruturadas, mas no
significado ou função semântica dos termos que preenchem esta forma lógica. A
enunciação simples em sua superfície é uma afirmação. É isto que Aristóteles
determina expressamente na seguinte passagem dos Segundos analíticos a respeito
das definições primárias e indemonstráveis:
“De um lado, a definição é da qüididade e da essência
[], de outro lado, todas as demonstrações
visivelmente supõem e assumem a qüididade
[  ], como por exemplo as
<demonstrações> matemáticas <supõem e assumem> o que é a
unidade [ ] e o que é o impar
[  ], e do mesmo modo as outras
<ciências>. Além disso, todas as demonstrações mostram
[] algo de algo
[  ], que é ou não é
[ ☯   ☯], porém na
definição não se predica algo de algo
[  ☺ 
], como por exemplo, nem o animal é dito do bípede,
nem este do animal; nem a figura é dita do plano, pois o plano não
é figura, nem a figura o plano. Ademais, é diferente demonstrar
[⌧] o que <algo> é [  ] e que
<algo> é [ ☯]. É evidente que, de um lado, a
definição <é sobre> o que é [☯], de outro, a
demonstração <mostra> que isto é dito disto ou não é
347
[ ☯    
 ☯].”
204
Vê-se aqui uma diferenciação entre a demonstração e a definição, e se indica a
anterioridade desta em relação àquela. A definição é sobre a qüididade e a
essência, a demonstração é acerca da atribuição afirmativa ou negativa de algo a
algo. Aqui definição é compreendida como sinônimo do definiens e não como a
conjunção do definiendum com o definiens. Dentro do definiens propriamente dito os
predicados que o compõem não são predicados uns dos outros posto que são
predicados do definiendum. Na passagem citada, são aludidos os exemplos dos
definiens de ser humano e de círculo. Assim, ‘animal’ não é predicado de ‘bípede’,
nem ‘bípede’ de ‘animal’, pois ambos em conjunto são predicados de ‘ser humano’;
do mesmo modo ‘figura’ não se predica de ‘plano’, nem ‘plano’ de ‘figura’, porque
ambos são predicados de círculo. Ademais, estes predicados não entram nas
composições enunciativas afirmativas ou negativas que se podem demonstrar a
204
Segundos analíticos, Livro II, cap. 3, 90 b 30-91 a 2:
☺       
☺ 
⌧   ☺ 
      ☺ 
  
      ☺ ☯ ☺
 ☯  ⌧   
  
☯   ☯    ☺ 
  ☺   ☯
   
 ☯     
       
  
     ☯ 
      ☯ ⌧ ☺ 
  
  ☺  ⌧  ☯ 
    ☯.
348
respeito de ‘ser humano’ e de ‘círculo’, eles o pressupostos em todas estas
composições que podem ser provadas por meio de premissas verdadeira,
necessárias e universais. Deste modo, todas as predicações afirmativas ou
negativas de outros estados ônticos não-compostos que se podem demonstrar a
respeito de ‘ser humano’ e de ‘círculo’ já sempre pressupõem e assumem um
determinado conjunto finito de predicados anteriores à estas composições em que
entram os estados ônticos não-compostos ‘ser humano’ e ‘círculo’.
Pode-se dizer, então, usando um conceito forjado por Kripke, que a definição é
compreendida aqui como uma descrição definida gida (diferenciada de um
descrição contextual ou não-rígida) que se pode substituir pelo objeto ou conjunto
de objetos que denota em todos os momentos ou estados (mundos) possíveis, salva
veritate.
205
Enquanto descrição definida os termos que constituem a definição (=
definiens) não são predicados uns dos outros, mas é sua conjunção que é predicada
do estado ôntico definido. Esta conjunção de predicados é idêntica ao objeto, ela
denota o mesmo que o nome simples que o termo sujeito denota. Além disso,
enquanto descrição definida, ela tem a forma de uma afirmação, mas não constitui
propriamente uma afirmação, pois ela funciona como um substitutivo complexo de
uma entidade simples.
Deste modo, se a presente argumentação é correta, a indicada por
Aristóteles como o correlato lingüístico do ser-verdadeiro dos estados ôntico não-
compostos é justamente o definiens destes estados ônticos, aquele conjunto uno de
205
Esta interpretação é insinuada por Enrico Berti em seu Aristóteles no século XX; trad. Dion D.
Macedo. São Paulo: Loyola, 1997, pp. 208-209.
349
predicados necessários que exprime o ser-essencial de algo ou sua qüididade e
que, portanto, está pressuposto em qualquer contexto em que aconteça a
composição de seu definiendum com outro definiendum, o qual também levará
consigo pressuposto um determinado definiens. De modo semelhante a um nome
ou a um verbo ditos isoladamente, a enunciação por si mesma também não é
verdadeira nem falsa, posto que não forma ainda uma afirmação, mas na medida
em que é aplicada aos estados ôntico simples a que se refere ela não pode, por
princípio, ser falsa, pois então não seria uma descrição definida rígida, isto é,
intercambiável com seu referente em qualquer composição, salva veritate. Enquanto
ligada a seus referente a enunciação toma a forma de uma afirmação, mas seu
estatuto lógico-semântico é diverso das afirmações comuns, pois nesta afirmação
não se realiza propriamente uma composição de estados ônticos não-compostos, o
que se realiza é a identificação da entidade simples a que se refere, ela é a intensão
(= sentido = conotação) do termo que denota a extensão (referência) do estado
ôntico que faz as vezes do sujeito (definiendum) desta identificação. Por isso, a
’ não possui uma negação a ela oposta (não sendo, portanto, uma
autêntica afirmação) e só pode ser verdadeira referida a seu sujeito e, quando
referida a ele, necessariamente verdadeira
206
.
206
Toda esta interpretação da  como uma descrição definida rígida se confirma através
de outros textos do corpus aristotelicum, sobretudo, é importante lembrar e remeter à discussão sobre
a diferenciação entre unidade meramente sintática e unidade semântica dos enunciados
asseverativos realizada no capítulo 11 do Da interpretação, unidade semântica que tem como causa
precisamente o ser-essencial e real do que é referido pelo enunciado asseverativo. Além deste texto,
é importante também remeter à noção de identidade como o significado focal das quatro formas de
predicação, dentre as quais se pode ver na definição uma forma de descrição definida rígida,
350
Esta necessidade, contudo, não é uma necessidade puramente de dicto, mas de re
e, portanto, pode-se dizer, segundo um jargão contemporâneo, que a 
indicada por Aristóteles no contexto do ser-verdadeiro referido aos estados ônticos
não-compostos é um enunciado analítico a posteriori, ou seja, não se trata de uma
necessidade puramente derivada da significação mesma dos termos, mas como o
resultado de um lento e laborioso processo de investigação da própria realidade.
Esta investigação parte dos fenômenos e das opiniões ou crenças comuns, ou seja,
daquilo que é melhor conhecido para nós, até chegar às características essenciais de
algo, àquilo que é mais conhecido por natureza. Na passagem em análise, a prova
de que se trata deste processo complexo de investigação vem da frase: “Portanto,
acerca destes <estados ônticos> que o essenciais e atualidades não ocorre o estar
enganado, mas apenas apreensão ou não <apreensão>, apesar disso, investiga-se sua
qüididade, <ou seja>, se são deste modo ou não <são>”. Ora, no trecho destacado em
itálico, Aristóteles mostra precisamente que se parte de algum tipo de proto-
definição ou proto-descrição de modo a confirmar se os estados ônticos
investigados são do modo como o descritos ou não são. Trata-se de um processo
de investigação lógico e indutivo (dialético e analítico), que parte dos fenômenos
que são objeto das crenças e opiniões comuns (que tomam a forma das chamadas
definições nominais) até se chegar a confirmar por inferências e pela experiência
que tal ou tal descrição coincide com aquilo que a coisa é por si mesma e é capaz
de identificá-la em qualquer contexto em que ela esteja composta com outros
enquanto na identificação pelo acidente se encontram os elementos para a concepção aristotélica da
descrição contextual. Sobre este último ponto, veja-se Tópicos, Livro I, caps. 5-8.
351
estados ônticos
207
. É justamente neste ponto final da investigação que acontece a
apreensão da verdade (realidade, atualidade, efetividade) própria aos estados
ônticos o-compostos.
208
Tal processo de investigação constitui literalmente uma
produção de verdade no sentido pleno deste termo.
Se for correto compreender o ‘captar’ como o fim de uma atitude intencional e a
‘enunciação’ como uma descrição definida rígida, resultante de um processo
investigativo complexo, então a interpretação tradicional perde completamente seu
sentido e o trecho em análise ganha uma coerência e pertinência muito fortes
dentro do conjunto das teorizações aristotélicas acerca da verdade.
Retomando o fio da argumentação, à luz do que acaba de ser exposto,
compreende-se as razões profundas da distinção entre os dois sentidos do ser-
verdadeiro e do ser-falso, a partir da cisão ontológica entre estados ônticos
compostos e estados ônticos não-compostos. O ser-verdadeiro nos estados ônticos
não-compostos deixa de ter o caráter misterioso que tradicionalmente se lhe
atribuía, pois deixa de ser encarado como um ponto de partida absolutamente
207
Para um a magistral descrição deste processo “epistemo-lógico”, tal como teorizado nos Segundos
analíticos, veja-se, de Robert Bolton, “Essentialism and semantic theory in Aristotle: Posterior
analytics, II, 7-10”, art. cit. O autor mostra que as chamadas definições nominais dos termos na
linguagem comum são o ponto de partida do processo de conhecimento do ser-essencial e, assim,
da chegada às definições reais. Veja-se também, de A. C. Lloyd, “Necessity and essence in the
Posterior analytics”, in Aristotle science:the Posterior analytics; (ed.) Enrico Berti. Padova: Antenore,
1981, pp. 157-171. Veja-se ainda, de Oswaldo Porchat, Ciência e dialética em Aristóteles, opus cit., caps.
I (2.1), IV (2.2, 2.3), V. Note-se que ao partir das crenças comuns e das opiniões plausíveis
Aristóteles admite, em certo sentido, a coerência como um critério de verdade, mas este critério é
apenas um ponto de partida e uma condição necessária para a verdade, a qual deverá culminar com
a apreensão do ser-essencial dos gêneros de estados ônticos do mundo. Sobre este ponto e partida
coerentista e seu caráter provisório na investigação da realidade, veja-se, de Terence Irwin,
Aristotle’s first principles, opus cit., caps. 1-2 e 6.
208
Note-se que este processo de investigação coletivo e individual está de acordo com aquela
tradição e historicidade na busca da verdade que Aristóteles indica como devendo ser considerada
em conjunto para se poder chegar à verdade acerca das coisas mesmas.
352
anterior à composição predicativa de sujeitos e predicados para ser a finalidade de
um processo de investigação que descobre” a partir dos estados ônticos
complexos aquelas unidades simples de significação pressupostas em suas
composições. Isto impõe uma distinção (de resto bastante comum na obra de
Aristóteles) entre a anterioridade temporal do ser-verdadeiro na composição de
estados ônticos simples e uma anterioridade ontológica do ser-verdadeiro dos
estados ônticos o-compostos, anterioridade ontológica que, entretanto, é
posterior na ordem do conhecimento ao ser-verdadeiro próprio dos estados ônticos
compostos. Em suma, o que é anterior por natureza é posterior na ordem do
conhecimento
209
.
O trecho como um todo pode ser visto agora em sua estrutura geral. Nos
estados ônticos não-compostos o ser-verdadeiro equivale a apreender sua
qüididade e enunciá-la através da definição. Não ocorre o ser-falso ou o estar
enganado porque as definições das qüididades dos estados ônticos não-compostos
é o resultado final de uma investigação que só pode ter por finalidade o ser mesmo
destes estados ônticos, ou seja, seu ser-verdadeiro uno, por si e enquanto tal, e não
alguma composição (seja contingente, seja necessária) com outros estados ônticos.
Ora, o que Aristóteles está postulando é justamente que a apreensão de algo em
sua unidade essencial é equivalente ao final de um processo de procura da
209
Esta idéia de uma anterioridade e posterioridade epistêmica e ontológica invertidas no que diz
respeito ao que é complexo e ao que é simples se encontra claramente formulada em Metafísica,
Livro V, cap. 11, 1018 b 31-1019 a 4 (justamente no capítulo dedicado aos sentidos de anterior e
posterior) e Livro X, cap. 3, 1054 a 25-29 (onde se afirma que o divisível é anterior na ordem da
percepção ao indivisível).
353
definição de algo e não uma intuição imediata, anterior, pré-predicativa e
monofática. Por isso, assevera que acerca da qüididade não acontece o estar
enganado. Note-se, porém, o sentido passivo de estar enganado”. Não se diz que
não acontece enganar-se acerca da qüididade, mas estar enganado. E não é possível
estar enganado justamente porque o enganar-se só é possível enquanto se investiga
a qüididade de algo, enquanto não se estabeleceu sua descrição definida gida,
enquanto uma enunciação não foi testada e comprovada como sendo o definiens de
um estado ôntico como tal. Por isso, ou se apreendeu o ser-essencial de algo (sua
qüididade) ou não se apreendeu, ou se sabe o que uma coisa é ou não se sabe, ou
se conhece ou se ignora, ou se capta ou o se capta. Quando, porém, se apreende
o que é algo enquanto tal, então não há o falso, mas inversamente enquanto o se
sabe o que algo é em sua unidade essencial não o falso, mas apenas o ignorar
(desconhecer) o que algo é por si mesmo, pois o falso surge de uma composição
de conceitos intensionais () que não estão unidos (em dado
momento ou sempre) nos estados ônticos a que se referem, não sendo, por isso,
possível no que diz respeito às entidades indivisíveis ou não-compostas
210
.
É neste sentido que o acontece estar enganado acerca da qüididade dos não-
compostos. No entanto, o estagirita acrescenta uma possível exceção, a saber: não
210
É justamente esta a definição do ser-falso no âmbito noético apresentada no capítulo 6 do Livro
III do De anima, contexto que trata da apreensão sempre verdadeira dos indivisíveis e que está
ligado ao capítulo aqui analisado, sendo amiúde um dos dois usado para corroborar interpretações
do outro. Esta estratégia hermenêutica não foi adotada aqui, pois se correria o risco de ter em os
não apenas um capítulo intrincado e problemático, mas dois. Ademais, a remissão a Metafísica, V, 6,
é suficiente para corroborar a interpretação em curso, posto que expõe sumariamente a doutrina da
apreensão dos indivisíveis e liga-a mais fortemente à problemática da enunciação simples.
354
acontece o estar enganado senão por acidente ( ).
Esta obscura exceção se torna clara se se entende que nem todas as qüididades e
suas definições são primárias, mas uma hierarquia lógica e ontológica entre as
qüididades e, portanto, entre as definições. Esta cláusula remete ao notório,
polêmico e intrincado problema acerca da possibilidade de se obter definições por
meio de demonstrações. Aristóteles admite que as definições secundárias de um
determinado gênero de entidades teorizado por alguma ciência particular,
precisamente aquelas definições obtidas através da composição entre estados
ônticos diversos e em que o “o que é” (a qüididade/  ☯) não
coincide com o que é” ( ☯) e o “porque é”
(  ☯), podem ser parcialmente demonstradas. Mas
justamente porque elas o o resultado tanto de premissas compostas por nexos
semânticos entre sujeitos e predicados, quanto da conexão inferencial
(demonstrativa ou não) destas premissas, pode acontecer que a conclusão aponte
como definição (ididade) algo que não é propriamente uma definição. A
expressão por acidente significa aqui que ao invés de um atributo por si
( ☺) foi usado em uma ou em ambas as premissas uma
atribuição por acidente
211
, o que faz com que se tome como qüididade algo que de
fato não é tal. É importante lembrar que Aristóteles chama ‘ignorância’ a tais
enganos resultantes destes tipos de inferências, e dedica três capítulos inteiros dos
211
Mesmo em se tratando de um acidente por si, tal como a propriedade de todo triângulo de ter a
soma dos ângulos internos sempre igual a cento e oitenta graus. Sobre o sentido do acidente por si,
veja-se Segundos analíticos, I, 6, 75 a 18-22, 39-42, 10, 76 b 11-16; Metafísica, V, 30, 1025 a 30-34.
355
Segundos analíticos para esquematizar como e porque ocorrem.
212
No entanto, a
ignorância que aqui é posta no lugar do falso não se identifica com este tipo de
ignorância proveniente dos erros inferenciais, pois estes surgem apenas no que
concerne às definições secundárias, que são próprias das composições predicativas
que exprimem os estados ônticos compostos.
Contudo, logo após apresentar as qüididades em geral, dentre as quais ainda é
possível o estar enganado por acidente, o estagirita postula aqueles estados ônticos
acerca dos quais não acontece nunca o estar enganado quanto à sua qüididade: as
essências não compostas (  ). Tais
estados ônticos não-compostos estão em ato e não em potência, o que significa
justamente que são estados ônticos necessários, pois, como foi visto antes, somente
os estados ônticos que estão em potência podem ser e não ser (ainda que nunca ao
mesmo tempo são e não são). As essências não-compostas são justamente as
formas dos estados ônticos consideradas sem seu estofo material sensível.
Aristóteles esboça uma redução ao absurdo acerca da possibilidade de se
pensar que as formas possam se gerar e se corromper ao dizer: “pois <se fossem
em potência> viriam a ser e se corromperiam, porém o que é em si mesmo não
vem a ser nem se corrompe, pois viria a ser desde algo.” A redução ao absurdo
implícita aqui, consiste em tomar a hipótese de que as formas fossem geradas e se
212
Para uma minuciosa e clara análise sobre toda esta questão acerca das definições provenientes de
demonstrações, veja-se, de Oswaldo Porchat, Ciência e dialética em Aristóteles, opus cit., cap. V, 2-3.
Sobre os vários tipos de erros ou enganos que podem surgir de inferências silogísticas com
premissas falsas, veja-se Primeiros analíticos, Livro II, cap. 21. Sobre a ignorância enquanto forma de
erro resultante de inferências demonstrativas com uma ou duas premissas falsas, veja-se Segundos
analíticos, Livro I, caps. 16-18.
356
corrompessem. Ora, o que vem a ser e se corrompe tem necessariamente de vir a
ser a partir de algo. Assim, as formas teriam que ser geradas a partir de algo. Mas
justamente aquilo que vem a ser, e que, portanto, pode se corromper, vem a ser o
que é justamente a partir das formas (genérica ou específica)
213
e o que é por si
mesmo não pode ser por causa de outra coisa, logo as formas mesmas o podem
vir a ser ou se corromper, pois são aquilo a partir do que algo vem a ser o que é, e,
portanto, as formas são por si mesmas. Ainda uma outra conclusão pode ser
retirada desta redução, a saber: dado que a potência se identifica com a matéria e o
que tem matéria pode ser ou não ser, vir a ser e se corromper, então as formas não
são matéria nem potência e, portanto, sempre existem em ato, quer quando unidas
à matéria (nas essências sensíveis e sub-lunares), quer separadas da matéria (nas
essências supra-lunares).
Percebe-se a partir desta diferenciação entre tipos de qüididades
correspondente aos tipos de estados ônticos a que se referem que a noção de não-
composto não é um conceito unívoco (sinônimo), mas igualmente não é um
conceito equívoco (homônimo), consiste bem antes em um conceito ou
denominação transcategorial
(parônimo/  ), ou seja, dito em relação à
unidade de determinado tipo de entidades, a saber: em relação à unidade das
essências não-compostas. O gênero das essências não-compostas constitui o tipo
primitivo de entidades não-compostas, as unidades mínimas a partir das quais se
213
Cf. Metafísica, Livro V, cap. 24.
357
pode atribuir aos demais estados ônticos não-compostos a elas referidos sua
unidade própria e, assim, o sentido específico em que são não-compostas. Mas
dado que a unidade das essências não-compostas é uma unidade complexa
214
,
então a unidade dos demais estados ônticos não-compostos o será uma unidade
monádica e absoluta
215
. Esta unidade complexa dos estados ônticos não-
compostos se revela já na noção de enunciação simples (), tal com antes
descrita. A enunciação simples que exprime a unidade dos estados ônticos não-
compostos em um único definiens possui uma estrutura gramatical divisível, mas a
composição de seus termos constituintes expressa algo uno, algo indivisível, não-
composto. Assim, na definição composta pelo definiendum não-composto ‘ser
humano’ e pelo definiens ‘animal, racional, bípede’, faz-se uma identificação entre
um único termo e uma conjunção de predicados por si separados e que podem,
cada um deles, ter um definiens próprio. Na realidade, graus de unidade dos
estados ônticos, desde os sensíveis singulares que instanciam as formas e as
214
Sobre a unidade complexa da essência adoto aqui a tese proposta por Theodore Scaltsas de um
“holismo substancial (o autor prefere traduzir  por ‘substância ao invés de
‘essência’), segundo o qual a unidade da essência o é dada pela relação entre seus componentes,
mas pela dissolução de suas distinções enquanto são partes da essência. Veja-se do autor
“Substantial holism”, in Unity, identity andexplanation; (eds.) T. Scaltsas, D. Charles e M. L. Gill.
Oxford: Clarendon, 1994, pp. 107-128. Uma defesa mais ampla à luz de uma interpretação mais
detalhada do conceito de essência, é dada pelo autor em Substances and universals in Aristotle’s
Metaphysics. Ítaca/Londres: Cornell UP, 1994, esp. caps. 5-6.
215
É importante lembrar que a unidade absoluta é atribuída apenas ao número um ou mônada
(☺ ) e ao ponto (☺ ). Não é possível nem necessário aqui
discorrer sobre a complexa henologia aristotélica desenvolvida sobretudo na Metafísica, e mais
especificamente no capítulo 6 do Livro V e no Livro X, mais precisamente no capítulo 1 e 2 deste
último. Permita-se aqui novamente a remissão ao meu trabalho de dissertação Sobre os vários
sentidos do uno a concepção de uno na Metafísica de Aristóteles, opus cit., onde é feita a análise
minuciosa dos rios sentidos de uno e unidade e sua relação fundamental com a investigação do
ser enquanto ser. Veja-se ainda os extensos artigos de Lambros Couloubaritsis, “L’être et l’un chez
Aristote”, in Revue de Philosophie Ancienne, vol. 1, 1983, nº 1, pp. 49-98, nº 2, pp. 143-195.
358
propriedades categoriais, singulares dos quais não propriamente definição
enquanto singulares (apenas opinião), a os estados ônticos mais universais
representados justamente pelas categorias ou gêneros mais altos” de entidades,
dentre os quais é à essência que cabe propriamente a qüididade e o ser-essencial
que são objetos da definição
216
. Segundo o estagirita, o que possibilita esta
unidade da definição, apesar da multiplicidade dos predicados que a constituem é
justamente a apreensão () unitária e unificante que resulta do processo
de investigação.
A apreensão como causa de unidade dos vários predicados que constituem a
enunciação simples como definiens e a hierarquia ontológica dos tipos de unidade
dos diversos tipos de estados ônticos não-compostos referidos à unidade
fundamental e fundante da essência podem ser visualizados em sua correlação
através da seguinte passagem:
“E ainda é dito uno aquilo cujo enunciado definitório
[☺ ] que enuncia o ser-essencial é indivisível
[] em relação a outro <enunciado> que
mostra o estado ôntico [ ] (pois todo
enunciado é divisível em si e por si mesmo). Com efeito, deste
modo é uno o que aumenta e diminui, porque o enunciado
definitório <de seu ser-essencial> é uno, assim como no caso das
superfícies <de diferentes magnitudes> o <enunciado definitório>
da forma <é uno>. Pois, de modo geral [], as <entidades>
das quais o ato de apreensão [☺ ] que apreende o
ser-essencial
[☺     ] <é>
indivisível, e não <as> pode separar nem por tempo, nem por
lugar, nem pelo enunciado, tais <entidades são> unas mais do que
todas as outras, e destas aquelas que são essências. Pois de modo
universal [] aquelas que não têm divisão, e
216
Sobre esta prioridade ou antecedência da qüididade das essências frente aos demais gêneros de
entidades, veja-se Metafísica, Livro VII, cap. 4.
359
enquanto não a tem, para estas o uno se diz, como por exemplo, se
<algo> enquanto homem não tem divisão, <então é> um homem,
<ou> se <algo> enquanto animal <não tem divisão>, <então é> um
animal, <ou> se <algo é indivisível> enquanto magnitude, <então
é> uma magnitude. Assim, de fato, a maioria <das entidades> se
diz una ou por produzir ou ter ou padecer ou estar em relação a
algum outro algo uno, e as <entidades> que primeiramente
[] <são> ditas unas <são aquelas de que> a essência
<é> una, e <é> una ou por continuidade ou por espécie ou por
enunciado.”
217
Com esta passagem é possível compreender que a indivisibilidade ou unidade
própria aos não-compostos que entram nas relações predicativas é uma
indivisibilidade relativa à categoria de entidades a que pertence e cada uma destas
categorias de entidades pode possuir unidade porque está relacionada com a
categoria fundamental e fundante de entidades, a categoria das essências. Além
disso, compreende-se por esta passagem porque o critério primário da
217
Metafísica, Livro V, cap. 6, 1016 b 1-9:
☯     ☺  ☺  
  
  ☯    
    ☺   
 
  ⌧     
        ☺
  
  ☺  ☺  
       
  
      
       
 ☯ 
  ☯    
  ☯  ☯   
☯    
       
        
   ☯
         
    ☺    
   ☯
  
360
indivisibilidade dos estados ônticos não-compostos é dado justamente pela
indivisibilidade própria do ser-essencial ou qüididade das essências não-
compostas, ou seja, da forma em ato dos estados ônticos como tais. Assim, a
unidade da enunciação simples, enquanto definiens composto dos estados ônticos
não-compostos, é dada pela apreensão da qüididade destes estados ônticos, e
sobretudo pela apreensão da qüididade ou ser-essencial das essências, pois todos
os estados ônticos não-compostos pertencentes a cada uma das categorias ou
gêneros de entidades (gêneros que são eles mesmos os estados ônticos não-
compostos mais universais) estão necessariamente referidos às e são lógica,
epistêmica e ontologicamente dependentes das essências não-compostas, ou seja,
dependentes da forma em ato dos estados ônticos fundamentais e fundantes.
A partir deste conjunto de análises, a última parte do trecho, em que Aristóteles
faz uma espécie de resumo dos dois sentidos do ser enquanto ser-verdadeiro e do
não-ser enquanto ser-falso, torna-se claro. O trecho diz:
“<Assim, em um sentido> o ser enquanto ser-verdadeiro
[  ☺  ], e o não
ser enquanto ser-falso
[   ☺  ]
<acontecem do seguinte modo:> de um lado, o ser-verdadeiro
acontece se <o sujeito> está unido <ao predicado>, de outro lado, o
ser-falso <acontece> se <o sujeito> não está unido <ao predicado>.
<Em outro sentido> se algo uno é
[  ☯ ☯], <então> é de
determinado modo [ ], porém, se não é
deste modo, então não é; e o verdadeiro <é> o apreender
[ ] estes <modos de ser dos estados ônticos
simples>, e o falso não acontece, nem o engano, mas apenas a
ignorância, a qual não é como a cegueira, pois a cegueira é como se
alguém não possuísse em absoluto a capacidade de apreensão
[ ].
361
De um lado, tem-se o ser-verdadeiro e o ser-falso próprios aos estados ônticos
compostos. O ser-verdadeiro consiste na união efetiva (real) de um sujeito e um
predicado, o ser-falso (= não-ser-verdadeiro) consiste no oposto, ou seja, que não
acontece (não é real) a união entre sujeito e predicado. Tais uniões ou separações
(não uniões) compostas podem ser necessárias, impossíveis ou contingentes. A
partir deste sentido do ser-verdadeiro e do ser-falso ontologicamente determinado,
as enunciações podem ser verdadeiras ou falsas conforme aquilo que dizem está
unido com os ou está separado dos estados ônticos compostos a que se referem e
representam. De outro lado, tem-se o ser-verdadeiro dos estados ônticos não-
compostos. Neste caso o ser-verdadeiro o tem como oposto o ser-falso, tanto
porque um estado ôntico não-composto é anterior às suas possíveis uniões ou
separações e, assim, deve ser considerado fora das composições afirmativas ou
negativas nas enunciações predicativas, quanto porque o ser-verdadeiro aqui é o
resultado de um longo processo de investigação de sua qüididade. Por isso, se o
não-composto (“algo uno”) é do modo como a definição diz que é, então é, de fato,
assim (), “existe” deste modo; porém, se não é tal como se o define,
então não é de modo absoluto, não existe, pois dado que não se trata de uma
enunciação falsa que pressupõe um modo de ser verdadeiro (efetivo), então o
não-ser tem aqui um sentido absoluto, pois não se investiga ou se define o que não
é de modo nenhum. O ser-falso aqui não acontece, pois não engano quanto à
qüididade ou ao ser-essencial do que é indivisível (não-composto). Em seu lugar,
362
tem-se a ignorância, o desconhecimento daquilo que algo é por si em sua unidade.
Esta ignorância não é, contudo, como uma cegueira, que impede de modo
inexorável ao cego de ver qualquer coisa, é a ignorância de um ainda não, é a
possessão da simples possibilidade de vir a apreender o que algo é, sem ainda tê-lo
realizado, quer porque não se deseje, quer por ainda estar procurando saber o que
é uma coisa, quer ainda porque se toma uma opinião (crença) comum ou uma
aparência fenômeno particular como o que algo é, sem poder justificar se esta
crença ou aparência, de fato, diz o que algo é por si mesmo.
A partir destas análises acerca do ser-verdadeiro próprio dos estados ônticos
não-compostos, percebe-se que aqui uma forma distinta de produção de
verdade. Esta produção de verdade é uma produção de verdade em duplo sentido.
Em um sentido, ela é a produção lógico-indutiva
218
de uma definição daquilo que
algo é por si mesmo, ela consiste em uma investigação longa e complexa sobre o
ser mesmo de algo enquanto tal, separado das possíveis relações que tenha com
todos os demais estados ônticos. Esta investigação e seu possível resultadosão obra
do esforço de indivíduos e comunidades, de várias gerações, de um debate e
diálogo contínuo entre pessoas vivas e mortas, entre os antepassados e os
presentes e entre os presentes e os futuros. Este processo longo e complexo de
investigação está de acordo com aquilo que foi antes comentado, a saber: a idéia
218
Sobre os vários sentidos da indução, suas formas lógicas e o seu papel na obtenção das
definições primárias, veja-se o excelente texto de Jaakko Hintikka “Aristotle induction”, in Revue
Internationale de Philosophie, 1980, pp. 422-439. Sobre o papel filosófico-científico da dialética (que é
um método lógico-semântico universal de justificação e verificação eminentemente hipotético e
indutivo) na obtenção das definições primárias pensadas como princípios das ciências, veja-se, de
Oswaldo Porchat, Ciência e dialética em Aristóteles, opus cit., cap. 6.
363
de que individualmente cada pessoa diz pouco acerca da verdade, mas de seu
conjunto surge uma magnitude razoável e se pode chegar mais próximo “à
verdade que nos é possível”
219
, além de que a situação natural de nossa
capacidade de apreensão ou inteligência () em relação à natureza mais
evidente de todas as coisas é comparável aos olhos dos morcegos diante da luz do
dia. É por isso que Aristóteles respeita tanto seus antecessores e leva tão a sério
seus contemporâneos. Este respeito e seriedade aparecem mesmo ali onde, por
amor à verdade mesma, tem de destruir ou transformar as teses e argumentos
destes antecessores e contemporâneos, mesmo quando tem de criticar Platão, seu
mestre e amigo. E também dentro de sua própria obra, não faltam reformulações,
vacilações e incoerências (que são a crux de seus comentadores), pois persegue,
literalmente a todo custo, a verdade mesma. Neste sentido nada é mais estranho ao
pensamento de Aristóteles do que os “argumentos” de autoridade. A única
autoridade que um filósofo (e o estagirita dá aqui o exemplo) deve respeitar é a
realidade mesma, caso contrário deixa de ser filósofo. Por isso, também seria
estranho imaginar que o estagirita postularia uma intuição pura e simples do ser
mesmo das coisas. É por isso também que se pode chamá-lo, com os medievais, “o
filósofo”, não porque tenha dito a palavra final, mas porque propugnou e
impregnou em sua obra a única atitude que se espera de um autêntico, de um
219
Esta é a expressão literal que Aristóteles usa ao comentar, com certo desespero, a atitude cética
encarnada nas teses de seus antecessores acerca da natureza das coisas e do mundo em geral. Cf.
Metafísica, IV, 5, 1009 b 34.
364
verdadeiro filósofo. Por isso, ainda mais correto que chamá-lo “o filósofo”, é, com
Dante, descrevê-lo e defini-lo como “o mestre dos que sabem”.
Em outro sentido, ela é a produção de verdade de uma descrição definida
rígida pelo estado ôntico mesmo a que se refere, pois é o modo de ser por si do
estado ôntico que permite justificar e verificar se é verdadeiro o conjunto de
predicados que compõem o definiens que a ele se refere, que permite justificar e
verificar se este definiens apreende ou capta seu ser independente de qualquer
relação (contingente ou necessária) que este estado ôntico possa ter com outros
estados ônticos não-compostos, ou seja, se o definiens é uma descrição ou
designação rígida do estado ôntico a que se refere e, assim, pode ser substituído
pelo nome que designa de modo simples este estado ôntico em qualquer mundo
possível, salva veritate. Assim, é o ser-verdadeiro do estado ôntico não-composto
ele mesmo que produz a verdade do sentido (intensão) que está contido no
conjunto de predicados que constitui o definiens que se pretende como substituto
universal do nome simples que designa este estado ôntico. Caso um determinado
definiens ou descrição não seja substituível pelo nome do estado ôntico não-
composto, então não erro ou falsidade propriamente ditos, mas apenas uma
“verdade parcial”, uma verdade válida para ao menos um mundo possível (mas
não para todos os mundos possíveis), pois não aqui a composição predicativa
propriamente dita, apenas a substituição de um nome por um ou mais predicados
que pretendem exprimir o mesmo que um nome, e como não há nomes
verdadeiros ou falsos, então não falsidade em um definiens que não apreende o
365
ser-verdadeiro (real) de um estado ôntico não-composto, o que acontece é apenas o
desconhecimento do que realmente este estado ôntico é por si mesmo, ou seja, o
definiens não se aplica ao definiendum em todos os momentos (mundos) possíveis e,
assim, não se apreende realmente o que é o definiendum. Deste modo, a rigor,
o ser-verdadeiro (sua qüididade ou ser-essencial) do que é o definiendum, sem que a
ele corresponda um definiens adequado. Mas como um nome sem denotação não é
em absoluto um nome, um definiens não pode deixar de ser, em certa medida,
verdadeiro, pois não é possível pensar e nomear o que em absoluto não é. Neste
sentido, um pretenso definiens sempre designa de fato o estado ôntico a que se
refere, mas não acontece ser verdadeiro em sentido pleno enquanto o sentido ou
intensão contida no seu conjunto de predicados não expresse aquilo que o nome
apenas designa e seja, assim, substituível pelo nome em qualquer situação ou
momento (mundo) possível, salva veritate.
À luz da problemática em torno aos produtores de verdade, os estados ônticos
não-compostos podem ser considerados os produtores de verdade primários e
necessários. Eles, porém, são produtores de verdade primários não porque
produzem diretamente a verdade dos enunciados que compõem sujeitos e
predicados e que podem ser verdadeiros ou falsos, mas porque estão sempre
pressupostos nestes enunciados complexos, seu modo de ser está pressuposto em
todas as enunciações asseverativas afirmativas ou negativas em que tomam parte.
Sua produção de verdade é, portanto, indireta, no sentido de conferirem validade
ou invalidade lógico-semântica e correção ou incorreção noética (epistêmica) aos
366
enunciados que unem ou separam estes estados ônticos na forma predicativa de
relação afirmativa ou negativa entre sujeitos e predicados, sem, no entanto, que
suas definições participem destes mesmos enunciados, mas de tal modo que
qualquer enunciado que vier a contradizer alguma ou todas as características do
definiens destes estados ônticos é necessariamente falso, ainda que um enunciado
que não contradiga um ou todos os predicados do definiens de um estado ôntico
que nele comparece, quer como sujeito quer como predicado, seja necessariamente
verdadeiro. Já no caso da produção de verdade proveniente dos estados ônticos
necessários está em jogo esta produção indireta de verdade na medida em que um
enunciado falso, referente à este âmbito ou aspecto dos estados ônticos em sua
união ou separação necessárias, é falso justamente porque atribui ao sujeito um
predicado incompatível com todos ou algum dos predicados de seu definiens, ainda
que um enunciado verdadeiro, ainda que não atribuindo ao sujeito um predicado
que faça parte de seu definiens, atribui ao sujeito um predicado cuja relação com o
sujeito é necessária e que, portanto, não é incompatível com um ou todos os
predicados de seu definiens. A partir disso, percebe-se que o ser-verdadeiro dos
estados ônticos não-compostos já coloca em jogo o problema dos princípios e
critérios de verdade que se deve investigar no próximo capítulo.
Admitidas estas distinções e determinações, entende-se porque a significação
do ser como ser-verdadeiro e do não-ser como não-ser-verdadeiro (=ser-falso)
constitui seu horizonte de sentido mais próprio e dominante dentre as
significações do ser e do não-ser. Dadas, em primeira instância, as figuras das
367
categorias enquanto os tipos gerais de entidades e seus possíveis nexos lógico-
semânticos afirmativos ou negativos entre sujeitos e predicados, correspondentes
aos nexos ontológicos entre os itens que compõem os estados ônticos, dados,
ademais, os conceitos de potência e atualidade como meta-predicados
transcategoriais aplicáveis a qualquer uma destas composições categoriais, então o
ser-verdadeiro e o ser-falso vêm completar o quadro sistemático destes horizontes
de sentido, na medida em que tanto o predicados das figurações categoriais,
quanto das modalidades de ser e não-ser que se aplicam a cada uma destas
figurações
220
.
Esta predominância do ser-verdadeiro e do ser-falso não contraria de nenhum
modo a prioridade da essência como significação primária ou focal
(  ) dos diversos sentidos de ser e
considerada como a significação do ser ou ente enquanto tal
( ☺). Aquilo que é indicado com o termo grego
 não é que este horizonte de sentido seja a significação
primária do ser. Indica, outrossim, que este é o horizonte mais amplo de
significação do ser e do não-ser, o horizonte que pode ser aplicado à totalidade dos
sentidos de ser, inclusive e, sobretudo, à essência, enquanto esta instancia o ser-
220
Aristóteles coloca explicitamente os meta-predicados ‘é verdadeiro que...’ e não é verdadeiro
que...’ como primitivos para os demais meta-predicados modais em Da interpretação, cap. 12, 22 a
13. Além disso, como já foi antes referido, o papel dos meta-predicados modais segundo o filósofo é
o de se aplicarem à relação predicativa afirmativa (S é P) ou negativa (S não é P), tomando-a como
sujeito. Cf. Da interpretação, cap. 12, 21 b 26-32. Os conceitos de potência e ato são claramente
pensados pelo estagirita como correlatos ontológicos das modalidades aléticas, basta para
confirmar isto aludir tanto ao capítulo 9 do Da interpretação, quanto aos capítulos 3 e 4 do Livro IX
da Metafísica.
368
verdadeiro em sentido primário. Ademais, o ser enquanto ser-verdadeiro e o não-
ser enquanto ser-falso constituem a referência e o sentido últimos que validam ou
invalidam todas as formas de pensamento instanciadas na linguagem, sobretudo a
ciência e a filosofia, e mais ainda a filosofia primeira (metafísica), enquanto ciência
dos primeiros princípios e causas do ente enquanto tal
221
. Ver-se-á no próximo
capítulo que a investigação acerca da verdade própria dos princípios e critérios
primários de verdade implica necessariamente para Aristóteles a investigação da
essência como garantia última e instância necessária destes princípios.
CAPÍTULO III:
221
foi exposto anteriormente em que sentido a metafísica pode ser considerada uma alethologia,
tanto como ciência da verdade em sentido primário, quanto como ciência verdadeira por excelência
e por definição. Note-se, ademais, a proximidade entre Aristóteles e Frege no que diz respeito a
tomar o verdadeiro e o falso como referências universais, objetivas e necessárias do sentido de todo
pensamento e linguagem que contenham uma pretensão de verdade. Aqui, ainda, é o momento
oportuno para “rebater” a crítica de Tugendhat a Aristóteles (e à tradição da ontologia que o segue)
pelo fato deste ter priorizado o sentido “objetivista” do ser na investigação da essência e não ter se
dedicado, como o faz o próprio Tugendhat, ao sentido do ser como ser-verdadeiro. Ora, vê-se que a
investigação da essência como centro da metafísica aristotélica não exclui que esta seja uma
investigação do sentido do ser-verdadeiro, mas ao contrário, para o estagirita, a investigação do ser-
verdadeiro e da verdade implica necessariamente a investigação da essência, ou seja, a metafísica
como alethologia não poderia deixar de ser simultaneamente uma ontologia, uma henologia e, na
confluência destas, uma ousiologia, da qual fazem parte a investigação dos conceitos
transcategoriais de potência e atualidade e a qual culmina na teologia natural enquanto
investigação da essência uma, primeira e sempre atual (Deus). Obviamente, isto não constitui uma
crítica direta à concepção de Tugendhat da ontologia como parte da semântica formal, mas mostra
que a crítica do pensador alemão é procedente desde fora da concepção mesma de metafísica
presente em Aristóteles, na qual a semântica formal é um instrumento da ontologia e está a seu
serviço. Para a crítica de Tugendhat, veja-se Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem, opus
cit., caps. 3-5. Para uma excelente crítica à concepção da semântica formal como substituindo e
englobando a ontologia, veja-se, de Celso Braida, A complexidade do nexo semântico, opus cit., caps. 8-
9.
369
O PRINCÍPIO TRANSCENDENTAL DE VERDADE SEGUNDO ARISTÓTELES
§ 1 – Introdução:
A hierarquia ontoalética entre os princípios e critérios de verdade
segundo Aristóteles
A problemática em torno aos princípios no pensamento de Aristóteles é
bastante ampla e complexa. Não é possível aqui (e nem necessário) fazer uma
análise minuciosa desta problemática. Serão feitos apenas esclarecimentos gerais e
introdutórios quanto ao aspecto alético dos princípios (e critérios) segundo
Aristóteles, unicamente em vista da análise do princípio de verdade tal como
determinado no Livro IV da Metafísica. O primeiro capítulo do Livro V da
Metafísica é dedicado à análise semântica dos vários sentidos do deste conceito. De
modo geral, Aristóteles afirma que “é comum a todos os princípios ser o primeiro
desde o que <algo> ou é ou vem a ser ou é conhecido. E destes <princípios> uns
subsistem de modo intrínseco <ao estado ôntico> outros <lhe são> exteriores.”
222
Ainda segundo o estagirita, “<princípio se diz> de igual modo a como as causas
são ditas, pois todas as causas são princípios.”
223
Sendo todas as ciências,
222
Metafísica, Livro V, cap. 1, 1013 a 17-20:
        
  
☯      
☺    ☺  .
223
Metafísica, Livro V, cap. 1, 1013 a 16-17:
    ☯  
  ☯
.
370
conforme o filósofo, voltadas a descobrir e determinar as causas e princípios em
geral dos âmbitos do mundo que investigam e na perspectiva em que os
investigam, percebe-se a importância da noção de princípio em seu pensamento
224
.
No Livro I dos Segundos analíticos, capítulos 10-11, Aristóteles faz uma
diferenciação entre os princípios próprios a cada ciência e os princípios comuns a
várias ou a todas as ciências. Os princípios próprios a cada ciência particular são,
nos exemplos dados pelo estagirita, o ponto e a linha para a geometria; a mônada
(número um), o par e o ímpar para a aritmética. Percebe-se pelos exemplos que os
princípios próprios a cada ciência dizem respeito apenas àqueles estados ônticos
primários e elementares de um determinado gênero específico de coisas a partir
dos quais é possível conhecer, por meio das demonstrações, a causa dos estados
ônticos compostos e secundários em que estes estados ônticos elementares tomam
parte direta ou indiretamente. Os princípios próprios a cada ciência são, na
realidade, as definições primárias dos estados ônticos não-compostos em sentido
primário. Deve-se, segundo Aristóteles, assumir sua existência e assumir seu
significado, o que, à luz do que foi antes exposto, quer dizer: deve-se assumir a
existência do definiendum e assumir, ao mesmo tempo, a verdade do definiens que
explicita seu ser-essencial. Pode-se chamar estes princípios, constituídos pelas
definições primárias dos estados ônticos elementares, de princípios intragenéricos
224
Cf. Segundos analíticos, Livro I, cap. 2. Sobre o papel e as características dos princípios e causas na
concepção aristotélica da ciência, veja-se, de Oswaldo Porchat, Ciência e dialética em Aristóteles, opus
cit., caps. II, 5; IV, 2-3; VI, 1. Veja-se também, de Patrick H. Byrne, Analysis and science in Aristotle,
opus cit., caps. 6-7. Veja-se ainda, de Suzanne Mansion, Le jugement d’existence chez Aristote, opus
cit., 2ª parte, cap. 1.
371
de uma ciência. À luz da discussão sobre os produtores de verdade, pode-se dizer
que estes princípios são produtores de verdade diretos para todas as
demonstrações de uma determinada ciência enquanto justificam e verificam
(fundamentam) a correção e a validade de uma determinada asseveração sobre um
determinado estado ôntico composto. Além disso, conforme a investigação sobre
os princípios e critérios de verdade realizada na primeira parte, seria mais
apropriado chamar tais princípios de critérios de verdade, na medida em que
ainda estão subordinados aos princípios comuns e dizem respeito apenas a um
gênero específico de entidades.
Quanto aos princípios comuns a várias ciências, estes são aqueles que podem se
aplicar de diferentes modos a um grupo de ciências que têm em comum algum
gênero ou categoria geral de ser. Aristóteles o seguinte exemplo: quando se
retira quantidades iguais de objetos com quantidades iguais, sempre resta em
ambos uma quantidade igual. Tal princípio pode se aplicar tanto na aritmética
quanto na geometria, ainda que de maneiras diferentes em cada uma, ou seja, seu
caráter comum é analógico. A partir do exemplo, percebe-se que tal princípio ou
axioma comum é ainda um princípio próprio à matemática em geral enquanto
estuda os entes sob a perspectiva da categoria (gênero) de quantidade, sendo a
geometria o estudo do sub-gênero das quantidades contínuas e a aritmética o
estudo do sub-gênero das quantidades não contínuas. Tais tipos de princípios
comuns podem ser chamados de axiomas “congenéricos”, pois dizem respeito a
todas as ciências particulares englobadas em um gênero ou categoria geral de
372
entidades
225
. À luz da discussão sobre os princípios e critérios de verdade,
percebe-se que também estes princípios podem ser considerados como critérios de
verdade indiretos, posto que dizem respeito tanto à validade ou invalidade de
cada um dos definiens dos estados ônticos primários de cada sub-gênero, quanto a
validade ou invalidade das demonstrações que se seguem destas definições
primárias, mas não entram nem nas definições primárias nem nas demonstrações
que delas se seguem, sendo, portanto, apenas critérios reguladores de segundo
nível, condições necessárias que devem ser respeitas, mas não condições
suficientes para a verdade de cada definição primária e cada demonstração
derivada.
Segundo Aristóteles, existem ainda os princípios comuns a todas as ciências, ou
seja, a toda forma de saber humano. Os exemplos dados pelo estagirita são
justamente os princípios de não-contradição e do terceiro excluído. No caso destes
princípios, eles não são comuns a apenas uma determinada categoria geral ou
gênero de entidades, mas a todos os gêneros de ser. Pode-se dizer que eles são
princípios “transgenéricos” ou, em um termo antes usado, transcategoriais. Estes
são, efetivamente, os princípios acima de todos os critérios comuns a um gênero de
ciências ou próprios a uma determinada ciência, são efetivamente os princípios de
verdade segundo Aristóteles, aqueles princípios que devem ser respeitados por
225
Sobre esta hierarquia entre ciências, veja-se, de Walter Leszl, “Unity and diversity of sciences: the
methodology of the mathematical and of the physical sciences and the role of nominal definition”,
in Revue Internationale de Philosophie, 1980, pp. 384-421. Veja-se também, de Francis Wolff, Ciência
aristotélica e matemática euclidiana”, in Analytica, vol. 8, nº 1, 2004, pp. 43-88, esp. 57-70. Sobre toda
a terminologia matemática aristotélica no capítulo 10, veja-se, de Thomas Heath, Mathematics in
Aristotle. Bristol: Thoemmes, 1998 (1949), pp. 50-57.
373
todas as ciências, artes e por todo discurso com alguma pretensão de verdade,
mesmo em se tratando de opiniões acerca daquilo sobre o que não há possibilidade
de ciência, ou seja, mesmo nas enunciações que se referem aos acidentes ou estados
ônticos contingentes. Na realidade, mais do que os critérios congenéricos, são estes
princípios que devem, em analogia com a hierarquia conceitual da geometria
euclidiana, receber o nome de axiomas, sendo os critérios congenéricos
considerados como postulados e os critérios próprios a cada ciência como
definições (primárias). É pelo nome de axiomas que Aristóteles denotará tais
princípios primários na Metafísica. Neste sentido a metafísica, enquanto ciência ou
filosofia primeira que investiga os princípios e causas primeiras do ente uno
enquanto ente uno, é um desenvolvimento natural desta hierarquia entre
princípios e critérios de verdade do saber humano.
Também estes princípios se aplicam por analogia a todos os gêneros e sub-
gêneros de entidades e unificam todo o saber humano através da dialética e da
metafísica, que constituem respectivamente um método de investigação e uma
perspectiva transcategoriais, capazes de discutir os princípios primeiros das
ciências a partir das opiniões e crenças comuns
226
. Mas esta aplicação por analogia
226
Cf. Segundos analíticos, I, 11, 77 a 26-31. Aristóteles indica expressamente a dialética como método
comum a todas as ciências e, por isso, capaz de unificá-las tanto quanto os princípios e critérios
comuns. Neste sentido, pode-se pensar que é próprio à dialética a discussão dos princípios de não-
contradição e do terceiro excluído, mas além da dialética o estagirita aventa vagamente a
possibilidade de uma outra forma de saber que discuta estes princípios com a expressão hipotética
e lacônica
 ☯     
 que poderia ser traduzida como “e caso haja algum <saber> universal capaz de tentar
mostrar os <princípios> comuns”. Este saber universal, aqui apenas aventado, será a metafísica ou
filosofia primeira, a qual, através de procedimentos dialéticos e analíticos, investigará e procura
374
acontece de um modo diverso daquele em que os critérios comuns se aplicam às
definições primárias e às premissas das demonstrações de cada uma das ciências
de um mesmo gênero. No capítulo 11, o estagirita indica expressamente que as
ciências particulares não tomam os princípios de não-contradição e do terceiro
excluído nas premissas de suas demonstrações, a o ser em casos especiais, como
quando se deseja ressaltar o caráter apodítico (necessário) de uma conclusão em
que um predicado pertence a um sujeito e não pode o pertencer, ou quando se
utiliza a redução ao absurdo como modo de confirmação de que um predicado
pertence de fato a um sujeito, mostrando que se o pertencesse resultaria uma
contradição entre a conclusão e uma das premissas. Em ambos os casos, porém,
nada é acrescentado à demonstração propriamente dita, sendo em ambos os casos
um simples recurso que se pode considerar redundante e posterior à constituição
da demonstração mesma, em nada contribuindo para sua validade, ou seja, não
sendo tal aplicação causa do ser-verdadeiro da demonstração original.
Na realidade, isto indica que uma demonstração científica (e qualquer
inferência) não opera diretamente com aqueles princípios que o inerentes à
própria forma lógica da demonstração, pois são os princípios de não-contradição e
do terceiro excluído que conferem validade (verdade) à todas as formas lógicas das
inferência em geral, ou seja, os princípios de não-contradição e do terceiro excluído
estão presentes em toda inferência válida (verdadeira) pelo fato de que a partir
de premissas verdadeiras (ou necessariamente verdadeiras) não se pode derivar
determinar o sentido da verdade própria aos princípios comuns e primários a todas as ciências e a
todo o pensamento e discursos humanos.
375
uma conclusão falsa, ainda que de premissas falsas possa tanto surgir uma
conclusão verdadeira quanto falsa, caso em que, porém, não se tem mais uma
demonstração científica, mas apenas uma inferência cuja forma lógica não é
inválida
227
.
Além disso, estes princípios justificam e verificam, enquanto condições
necessárias (ainda que não suficientes) de verdade, também a possível verdade ou
falsidade dos enunciados que podem comparecer nas inferências como premissas,
independentemente do tipo de sujeitos e predicados que estes enunciados possam
colocar em relação. É por isso que o estagirita afirma que os princípios comuns são
comuns a todas as ciências apenas por analogia, pois enquanto princípios
reguladores da forma das inferências lidas e como condições gerais de verdade
das premissas em geral eles não comparecem como premissas das inferências em
geral, nem nas premissas das inferências demonstrativas, ou seja, enquanto
227
Sobre este ponto, veja-se Primeiros analíticos, Livro II, caps. 2 e 4 e Tópicos, Livro VIII, cap. 11, 162
a 7-12; cap. 12, 162 b 12-31. Este ponto é muito importante para a presente investigação. Na
realidade, Aristóteles explicita nestas passagens (sobretudo naquelas dos Primeiros analíticos) as
condições de verdade de toda inferência válida. De modo similar a Fílon de Mégara e à lógica
estóica, reconhece que uma implicação é falsa quando possui um antecedente verdadeiro e um
conseqüente falso (caso em que se infringe diretamente o princípio de não-contradição e,
indiretamente, os princípios do terceiro excluído e de identidade), sendo verdadeira mesmo
quando seu antecedente é falso e seu conseqüente também. Mas é importante ressaltar que a
inferência propriamente dita para o estagirita é aquela que assume a forma de uma implicação
estrita em que uma necessidade na conexão entre as premissas (verdadeiras) e a conclusão,
sendo a demonstração científica a materialização perfeita desta condição, pois uma inferência que
conclui algo verdadeiro a partir de premissas falsas é caracterizada justamente por não possuir a
capacidade de exprimir uma relação causal, ou seja, uma conclusão verdadeira retirada de
premissas falsas mostra apenas que algo é tal, mas não porque é tal. Esta necessidade modal que
define a inferência silogística se mostra justamente no fato de que é impossível retirar uma
conclusão verdadeira a partir de premissas totalmente falsas precisamente naqueles modos
primordiais da primeira figura (Barbara e Celarent), aos quais todos os outros modos, tanto da
primeira figura, quanto das duas outras figuras da inferência silogística, podem ser reduzidos
direta ou indiretamente.
376
princípios reguladores eles são condições necessárias e suficientes para a verdade (validade)
da forma das inferências em geral, mas são apenas condições necessárias e não suficientes
para a verdade das premissas que preenchem estas formas lógicas inferenciais. Assim, é
justamente na medida em que estão “presentes” como condições necessárias e
suficientes da validade (verdade) das formas lógicas de todos os tipos de
inferências e como condição necessária (mas não suficiente) para a verdade das
premissas que estes princípios são aplicados por analogia a todas as
demonstrações científicas e, na realidade, a todas as inferências e enunciações
isoladas. Com efeito, Aristóteles chama expressamente tais princípios de
“princípios das inferências silogísticas”, sobre os quais cabe à metafísica
determinar seu estatuto e seu modo de ser, posto que aqueles que operam com
estes princípios nas ciências particulares (enquanto realizam as inferências e
demonstrações) não estão preocupados com seu significado e com sua verdade.
228
Levando em conta, de um lado, este quadro sinóptico acerca da hierarquia
entre os tipos de princípios e critérios de verdade dos enunciados que
desempenham o papel de premissas, das inferências em geral e das demonstrações
científicas, e, de outro lado, retomando os esclarecimentos gerais sobre os
produtores de verdade e as relações de produção de verdade que instanciam,
percebe-se um panorama coerente dos tipos gerais de critérios e princípios de
228
Metafísica, Livro IV, cap. 3, 1005 b 5-8: “De modo que é evidente que cabe ao filósofo, aquele que
teoriza acerca do que por natureza próprio> a todas as essências, investigar também acerca dos
princípios dos
silogismos”/       
    
      
   .
377
verdade segundo Aristóteles. Na realidade, ao se determinar as relações de
produção de verdade se realizou parte da investigação acerca dos princípios e
critérios de verdade, pois os produtores de verdade e as relações de produção de
verdade que instanciam são critérios de verdade. Mas percebe-se agora que são
ainda critérios secundários de verdade.
A partir disso, pode-se esquematizar a seguinte hierarquia ascendente dos tipos
ou classes de critérios e princípios de verdade para as asseverações:
Primeiramente, tem-se aquela classe que pode ser chamada de critérios de
verdade de primeira ordem: estes o as uniões ou separações necessárias (sempre
atuais), impossíveis (nunca atuais) ou contingentes (por vezes atuais, por vezes
não) que constituem o ser-verdadeiro ou ser-falso dos estados ônticos compostos,
os quais representam a grande maioria dos fatos no mundo e são objeto das
configurações e composições categoriais realizadas, em realização ou possíveis.
Estes critérios de verdade verificam e ou justificam as asseverações sobre os fatos
do mundo, quer sejam fatos universais e necessários, quer sejam fatos singulares e
contingentes. Trata-se da união (ser-verdadeiro = ser-real, acontecer) ou separação
(não-ser-verdadeiro = não-ser-real, não acontecer) entre estados ônticos não-
compostos para formar conjunturas ou aspectos complexos expressos por relações
(necessárias, impossíveis ou contingentes) entre sujeitos, predicados e os possíveis
378
complementos de circunstância exigidos em cada caso (tempo, lugar, posição,
relação, qualidade, etc.)
229
.
Em seguida, tem-se a classe dos critérios de verdade de segunda ordem: estes
são os estados ônticos não-compostos, cujo ser-essencial ou qüididade está sempre
pressuposto nas composições categoriais. Esta classe de critérios de verdade se
subdivide em dois tipos, correspondentes aos dois tipos de estados ônticos ou
entidades não-compostos. De um lado, os estados ônticos não-compostos
secundários, cuja unidade é somente relativa à função de sujeitos e ou predicados
que desempenham ou podem desempenhar nos enunciados, mas que são, tomados
em sua constituição intrínseca, ainda compostos, ou seja, tanto os sujeitos sensíveis
(indivíduos contingentes: e. g. Sócrates, Cálias, Bucéfalo, etc.), conjuntos (com
matéria e forma: e. g. a esfera de bronze, este ou aquele ser humano de carne e osso,
etc.), ou múltiplos (termos de massa: v. g. os atenienses, a assembléia, etc.), quanto
os predicados complexos analisáveis através de outros predicados (e. g. ser
ateniense, ser de bronze, ser pálido, ser colérico, ser velho, ser belo, etc.). Em
ambos os casos, ou não uma definição propriamente dita (podendo haver
apenas uma descrição contextual ou acidental) ou uma definição secundária e
derivada de definições primárias. De outro lado, os estados ônticos não-compostos
primários, cuja unidade é intrínseca e essencial, ou seja, os sujeitos ou predicados
simples ou elementares (v. g. o ponto, a linha, o par, o ímpar, a vogal, a consoante,
229
Pode-se considerar que os tratados Categorias, Da interpretação e Primeiros analíticos investigam as
condições lógico-semânticas de verdade gerais destas possíveis uniões e separações, tal como
podem ser expressas no discurso asseverativo simples e nas inferências em geral.
379
a forma humana, a forma animal, etc.) a que correspondem as definições
propriamente ditas, as definições não analisáveis ou primitivas, a partir das quais
se pode derivar as definições dos estados ônticos não-compostos secundários. Este
último tipo de critérios de verdade corresponde aos produtores primários de
verdade anteriormente analisados e aos princípios próprios de cada ciência
particular, a partir dos quais o outro tipo de entidades não-compostas pode ser
definido e em parte demonstrado. Na realidade tem-se nos estados ônticos não-
compostos do primeiro tipo um critério de verdade para as descrições contextuais
e não rígidas que são objeto de opinião e do discurso cotidiano
230
, enquanto, no
segundo tipo, tem-se um critério de verdade para as descrições definidas rígidas
que compõem cada definiens pressuposto nas demonstrações científicas
231
.
Em terceiro lugar, tem-se a classe dos critérios de verdade de terceira ordem:
estes são justamente aqueles critérios de verdade comuns a um gênero de ciências.
Aqui não se tem mais uma relação direta e positiva na produção de verdade, nem
propriamente estados ônticos (compostos ou não-compostos), mas simples
estruturas conceituais que unificam várias possíveis perspectivas de investigação
de objetos especificamente diferentes. Tais estruturas conceituais são como que
“meta-definições”, as quais dão a medida e as condições gerais de conhecimento
para entidades elementares (não-compostas) de um mesmo gênero (quantidades,
230
As regras lógico-semânticas gerais de correção ou incorreção destas descrições contextuais são
analisadas nos Livros II e III dos Tópicos.
231
As regras lógico-semânticas para testar estas descrições definidas rígidas são descritas nos Livros
IV-VII dos Tópicos e seus problemas são investigados sobretudo no Livro II, capítulos 2-10 e 13, dos
Segundos analíticos.
380
entes imóveis, entes móveis, seres vivos, etc.), mas adquirem em cada espécie
destas entidades um significado diferente. Os critérios comuns a várias ciências
que estudam um mesmo gênero de entidades o como que condições necessárias
para todas as definições das entidades primárias pertencentes aos sub-gêneros ou
espécies estudadas pelas ciências particulares deste gênero e, por conseguinte, para
todas as demonstrações destas ciências particulares
232
.
Por último, tem-se os princípios de verdade propriamente ditos: estes são os
princípios comuns a todos os gêneros científicos e também a todas as formas de
saber e a todos os atos de pensamento humanos. Eles regulam a validade e
correção (verdade) ou invalidade e incorreção (falsidade) de todo discurso
(enunciativo e ou inferencial) porque “refletem” as formas mais gerais do
pensamento e, sobretudo, exprimem as condições e características universais
(transcendentais ou transcategoriais) dos modos de ser da realidade como tal, do
232
Ainda que o exemplo dado por Aristóteles nos Segundos analíticos seja haurido a partir da
matemática (e o modelo da ciência aristotélica é a matemática de seu tempo), pode-se encontrar em
sua obra investigações específicas sobre este tipo de estruturas conceituais comuns a várias ciências.
Efetivamente, foi o filósofo macedônio quem primeiro elevou a investigação da natureza ao
estatuto de ciência, fundando tanto a física enquanto ciência e a biologia. De fato, encontra-se no
conjunto de livros que compõem a Física um conjunto de critérios comuns ou congenéricos lidos
para suas demais obras físicas como Do u, Da geração e da corrupção e Meteorológicos, pensadas
enquanto ciências que estudam sub-gêneros ou espécies da natureza. De modo análogo, encontra-se
no tratado Da alma um conjunto geral de princípios e estruturas conceituais comuns ao nero dos
seres vivos que serão especificadas nos tratados biológicos. Contudo, este quadro sistemático,
quando comparado in nuce com estes tratados, revela mais um conjunto de investigações nascentes
que, por vezes, não respeitam uma ordem hierárquica tão sistemática. De qualquer modo, a idéia de
uma hierarquia entre ciências de um mesmo gênero de entidades idéia retirada da compreensão
de uma matemática geral “por cima” das matemáticas específicas (geometria, aritmética, óptica,
harmonia) parece ser inegável na visão de conjunto das investigações científicas levadas a cabo
pelo mestre do Liceu. Vale lembrar que se o Liceu rapidamente se apagou como escola filosófica no
debate helenístico que continuou a ter Atenas como centro, no entanto, o modelo da ciência e da
metodologia científica aristotélicas se transportou para Alexandria e de lá para o Ocidente como um
todo.
381
ente uno enquanto ente uno e não do ente enquanto circunscrito a algum gênero
específico, aspecto circunstancial, região” do mundo ou perspectiva de
compreensão e interpretação, mas de tal modo que todas estas possíveis
delimitações estão subordinadas e englobadas nestas condições e características
universais. Segundo Aristóteles trata-se sobretudo dos princípios de o-
contradição, do terceiro excluído e, como se pretende mostrar nesta investigação, o
princípio de identidade
233
.
Nesta caracterização sinóptica se encontra aquilo que se pode chamar de
hierarquia noética, lógico-semântica e ontológica dos princípios e critérios de
verdade segundo Aristóteles. Tal hierarquia é também uma hierarquia na ordem
de dependência ontoalética nas relações de produção de verdade. Pode-se dizer
que esta ordem vai desde uma dependência ontoalética direta dos atos de
pensamento e enunciados que os exprimem em relação aos estados ônticos
compostos até uma dependência transcendental entre estes mesmos atos de
pensamento e enunciados em relação aos princípios primários de verdade,
passando pela dependência ontoalética indireta ou pressuposta em relação aos
critérios secundários e terciários de verdade. Tais atos de pensamento e
enunciados são efetivamente verdadeiros se, e somente se, sua verdade é causada
pelos estados ônticos a que se refere e não contradiz nenhum destes critérios e
princípios de verdade das asseverações em geral, pois uma interligação
233
No caso destes princípios primeiros, sua investigação explícita é, inequivocamente, tema da
filosofia primeira ou metafísica. A derivação da investigação destes princípios para a investigação
da essência, como já foi comentado, não constitui uma vacilação ou inconsistência, mas uma
conseqüência inevitável desta investigação, tal como se verá adiante.
382
hierárquica entre todos os veis de critérios e princípios de verdade, o que se
pode chamar de uma coerência ou consistência estrutural entre os diferentes níveis
de ser-verdadeiro dos estados ônticos, desde o modo de ser efetivo (atual) na
percepção sensível do singular, passando pela forma universal e inteligível
instanciada neste singular, até o ser-verdadeiro universal e formal (transcendental)
da relação ontoalética entre pensamento, linguagem e realidade instanciado em
cada asseveração concreta e determinada.
É esta coerência ou consistência estrutural própria ao ser-verdadeiro no âmbito
lógico-semântico que Aristóteles exprime ao dizer nos Primeiros analíticos: “Pois
tudo que é verdadeiro em si mesmo deve estar de acordo consigo mesmo em todos
<os aspectos>.”
234
E esta coerência indica uma coerência do mundo, pensado pelo
estagirita não como um conjunto desarticulado de partes, mas como um todo
orgânico. À máxima heraclítica   (“tudo é indistintamente
uma coisa”), várias vezes criticada pelo macedônio, se contrapõe não a máxima
contrária segundo a qual tudo estaria separado de tudo, mas a máxima
 ’, ou seja, “tudo é um todo completo e articulado de
partes”
235
. Se esta visão de conjunto é verdadeira e reflete o espírito da concepção
234
Primeiros analíticos, Livro I, cap. 32, 47 a 8-9:
      ☺ ☺

 .
235
Aqui cabem as palavras de Alan Code:
“Aristotle shares with Plato the attitude that the world, ‘the all’, is a kosmos, a well-ordered and
beautiful whole which, as such, can be rendered intelligible, or understood, by intellect. One
understands things, generally speaking, by tracing them back to their sources, origins or principles
() and causes or explanatory factors (), and seeing in what manner
383
aristotélica da verdade, então sua teoria da verdade não é uma teoria da
correspondência pura e simples, mas uma teoria da correspondência coerente, ou
seja, o correspondência de uma única asseveração qualquer sem que ela
seja coerente com um conjunto de princípios e critérios de verdade que a cercam e
com os quais está em relação intrínseca e necessária, bem como com o conjunto das
asseverações verdadeiras. Este conjunto de critérios e princípios, porém, não existe
em si e por si mesmo em algum “lugar além do céu”, nem está imerso em algum
recôndito lugar da alma à espera de ser recordado, mas está presente na própria
estrutura histórica de uma língua, de uma cultura e de uma tradição constituída
por muitas opiniões e crenças comuns, cuja simples coerência (ausência de
contradições internas), porém, não é garantia da verdade. Todavia, este conjunto
de crenças e opiniões não pode ser considerado totalmente falso, pois neste caso
não poderia haver nenhum mundo comum, a cuja estrutura de organização
ontológica a linguagem e o pensamento se referissem, e se tal hipótese é vedada,
tanto pelo fato de que se pode efetivamente obter algum acordo sobre este mundo,
quanto pelo fato de que um erro total nem sequer poderia ser reconhecido como
erro, então a verdade sempre deve estar, de algum modo e em alguma medida,
presente entre os seres humanos. Se Aristóteles não pensasse deste modo, então
seria muito difícil entender todo seu respeito e interesse por seus antecessores,
they are related to these principles. We know, or understand, a thing when we grasp the why’ or
cause. Consequently, understand is systematic.
In “Aristotle’s investigation od basic logical principle: which science investigates the principle of
non-contradiction?”, in Canadian Journal of Philosophy, vol. 16, nº 3, 1986, pp. 341-358, cit. p. 341-342.
384
contemporâneos e pelo senso comum, ou estes interesse e respeito seriam pura
dissimulação, o que parece difícil de acreditar.
Com esta caracterização geral da hierarquia entre os princípios e critérios de
verdade é possível investigar aquilo que é o objeto central deste capítulo: os
princípios primários de verdade. No restante deste capítulo, a investigação se
voltará à análise apenas dos princípios de verdade propriamente ditos, enquanto
fundamento último e unificador da teoria (do conjunto de teorizações) aristotélica
da verdade. Contudo, a tese central deste capítulo (que é razão de ser ou
finalidade de toda a investigação) consiste em defender que estes princípios
formam um único princípio que fundamenta e unifica toda a teorização aristotélica
da verdade. Este princípio é aqui chamado de ‘princípio transcendental de
verdade’ e é constituído pela bi-implicação necessária (modal) de três princípios
extensional e intensionalmente equivalentes, a saber: o princípio de não-
contradição, o princípio do terceiro excluído e o princípio de identidade.
O PRINCÍPIO TRANSCENDENTAL DE VERDADE
§ 1 – Introdução: A tese: equivalência entre não-contradição, terceiro excluído e
identidade no princípio transcendental de verdade
Tradicionalmente se considera que início do Livro IV da Metafísica trata daquilo
que mais tarde foi chamado de ontologia. Mas, na realidade, Aristóteles não
apenas considera o ente enquanto ente ou ser enquanto ser, mas também afirma
385
explicitamente que a ciência procurada é ciência do uno enquanto uno. Na medida
em que a Metafísica irá colocar a pergunta pelo que é a essência como sinônimo da
pergunta pelo que é o ente e que a unidade da essência se considerada a
instância primária da unidade por si, então, retrospectivamente, pode-se
considerar que o início do Livro IV está dedicado a postular a ciência do ente uno
enquanto ente uno, ou seja, a ciência da essência, pois é esta a instância primária
tanto do ser como tal quanto do uno como tal. Neste sentido, mais do que uma
ontologia, o livro IV postula bem antes aquela ciência que pode unir ontologia e
henologia, a saber: a ousiologia. Isto se comprova facilmente se se tem em vista que
o esquema conceitual que possibilita esta ciência fundamental e fundante para
todas as demais ciências, ou seja, o esquema conceitual da significação focal
(  ), se aplica tanto aos sentidos do ser
quanto aos sentidos do uno, e que estes são, de um lado, os predicados mais
universais que se aplicam a todas as coisas, e, de outro lado, que acompanham um
ao outro, de modo que a tudo aquilo a que se predica o ser também e
simultaneamente se predica a unidade. Ora, se o significado focal tanto dos
sentidos do ser quanto do uno é justamente a essência, então é evidente que a tanto
a ontologia, enquanto investigação sobre os vários sentidos do ser, quanto a
henologia, enquanto a investigação sobre os vários sentidos do uno, estão
direcionadas e têm como finalidade a ciência que investiga o gênero das entidades
primárias, as essências. O livro IV, portanto, a despeito de sua frase inicial, não
386
postula e projeta a possibilidade de uma ontologia, mas de uma ousiologia como
ciência do ente uno enquanto ente uno considerado por si.
Ora, este breve comentário mostra que nem sempre o que parece bem
estabelecido é, de fato, bem estabelecido na ordem da exegese. De modo análogo,
as linhas que seguem se voltam contra uma interpretação tida como evidente e
bem estabelecida, a saber: que nos capítulo 3-8 do Livro IV da Metafísica Aristóteles
estaria defendendo um único princípio primário contra toda uma tradição a ele
anterior e contemporânea, ou seja, que estaria defendendo aquele princípio que foi
chamado de ‘princípio de não-contradição’. Nesta interpretação, tida como
evidente, costuma-se dizer que o chamado ‘princípio do terceiro excluído’
apareceria somente no capítulo 7 deste Livro como uma espécie de corolário
derivado do princípio de não-contradição
236
. Além disso, tornou-se comum dizer
que Aristóteles não teria reconhecido um princípio tão elementar quanto estes dois
mencionados, a saber: que Aristóteles não teria postulado o princípio de
identidade, o qual seria ainda mais fundamental (anterior e mais simples) do que o
princípio de não-contradição
237
. Esta é a caricatura de uma interpretação tida por
evidente e cuja origem se perde nos séculos passados.
236
Veja-se, por exemplo, de Enrico Berti, Contraddizione e dialettica negli antichi e nei moderni.
Palermo: Epos, 1987, cap. 4, esp. pp 115-120.
237
Veja-se, de Jan Lukasiewicz, “Sur le principe de contradiction chez Aristote”; trad. Barbara
Cassin e Michel Narcy, in Rue Descartes, 1991, pp. 9-32, esp. 17-18. Para um extenso comentário ao
texto e ao livro de Lukasiewicz, veja-se, de Venanzio Raspa, “Lukasiewicz on the principle of
contradiction”, in Journal of Philosophical Ressearch, vol. 24, pp. 57-112, sobre o ponto indicado, esp.
parte. O texto do grande lógico e filósofo polonês constitui um verdadeiro desafio para qualquer
interpretação do Livro IV de Aristóteles que deseje de alguma forma pensar seu significado
filosófico. Para uma excelente apresentação crítica das teses de Lukasiewicz, veja-se, de Newton da
Costa, Ensaio sobre os fundamentos da lógica, opus cit., pp. 100-110. É ainda interessante recordar que
387
A tese que é proposta aqui e que será defendida é a seguinte:
Aristóteles postula e defende um único princípio complexo constituído pela bi-
implicação necessária (modal) entre os princípios de não-contradição, do terceiro excluído e
de identidade, sendo os três princípios extensional e intensionalmente equivalentes. Isto
significa que: cada um destes princípios implica os outros de forma necessária (posto que
analiticamente equivalentes) de tal modo que a negação de um deles significa, para o
estagirita, a negação dos outros dois. Assim, de fato, a defesa de Aristóteles contra os
adversários do princípio de não-contradição é, ao mesmo tempo, sua defesa dos princípios do
terceiro excluído e de identidade contra estes mesmos adversários. Tal princípio é chamado
aqui de princípio transcendental de verdade e constitui o fundamento de toda teoria
aristotélica da verdade, sendo transcendental justamente por ser, ao mesmo tempo, um
princípio para o pensamento (noético), para a linguagem (lógico-semântico) e para a
realidade (ontológico), assim como para todas as possíveis relações ontoaléticas entre estes
três âmbitos do mundo em geral.
Antes de passar à defesa desta tese é útil apresentar uma primeira
esquematização geral da forma lógica deste princípio complexo:
(x) (F) (~ (Fx & ~ Fx) (Fx ~ Fx) ((Fx Fx) (~ Fx ~ Fx)))
A primeira parte ‘~ (Fx & ~ Fx)’ simboliza o princípio de não-contradição
(doravante denotado também por ‘PNC’), a segunda parte ‘(Fx ~ Fx)’ simboliza
o princípio do terceiro excluído (doravante denotado também por ‘PTE’) e a
a conclusão de Lukasiewicz (de que este princípio teria apenas uma validade ético-prática) coincide
justamente com a constatação de Nietzsche. Sobre as críticas de Nietzsche ao princípio de não-
contradição, veja-se Vontade de Potência; trad. Mário D. F. Santos. São Paulo: Ediouro, s/d, pp. 215-
240.
388
terceira parte ‘((Fx Fx) (~ Fx ~ Fx))’ simboliza o princípio de identidade
(doravante denotado também por ‘PI’). O operador modal de necessidade se
aplica a todas as três partes em separado, tanto quanto à sua bi-implicação. Este
esquema então pode ser encarado como dizendo o mesmo que:
(PNC PTE PI)
Se esta bi-implicação necessária for de fato compatível com o que Aristóteles
exprime no Livro IV, então fica claro que:
I) O fato de formular apenas o princípio de não-contradição no capítulo 3
como princípio primeiro não significa que somente este é ‘o’ princípio primeiro,
mas dado que este princípio é intensional e extensionalmente equivalente aos
princípios do terceiro excluído e de identidade, então também ao demonstrar
de modo refutativo o princípio de não-contradição demonstra os princípios do
terceiro excluído e de identidade como formulações alternativas do princípio
primeiro;
II) – A utilização de cada uma destas partes para “provar” a verdade (validade)
irrestrita das outras não incorre em uma petição de princípio nem em uma
demonstração circular, pois cada um destes princípios é intensional e
extensionalmente compatível com os outros, ainda que expresso de forma
diferente;
III) A negação da validade irrestrita do princípio de não-contradição implica
necessariamente a negação da validade irrestrita dos princípios do terceiro
excluído e de identidade, assim como a negação da validade irrestrita de um
389
destes dois últimos implica necessariamente a negação da validade irrestrita do
princípio de não-contradição.
À primeira vista pode parecer demasiado o que aqui é proposto, pois
Aristóteles assevera explicitamente no capítulo 3 apenas a primeira parte deste
esquema (PNC) em sua versão lógico-semântica
238
, noética
239
e ontológica
240
.
Apesar disso, no início do capítulo 7, o estagirita assevera explicitamente a
segunda parte do esquema acima (PTE), ainda que apenas em sua versão lógico-
semântica
241
. Mas quanto à terceira parte do esquema (PI)? Onde Aristóteles a
assevera? Aparentemente não se encontra dentro do Livro IV uma tal formulação.
Mas, como já foi dito antes, esta parte do esquema se encontra implícita justamente
na definição de verdade asseverada pelo estagirita como “prova” para o princípio
do terceiro excluído, posto que, em última instância, tal definição repousa sobre a
intuição formulada por Parmênides de que o que é, é e o que não é, o é, de
modo que seu contrário é justamente a contradição, ou seja, o que não é, é e o que
é, não é. Além disso, em outros contextos Aristóteles mostra conhecer o princípio
de identidade enquanto princípio universal aplicável a todas os estados ônticos
possíveis, pois reconhece explicitamente que ‘idêntico’ se diz em tantos sentidos
quanto uno se diz e dado que o uno se predica de todas as coisas, então a
identidade se predicará simultaneamente de todas as coisas
242
.
238
Cf. Metafísica, IV, 3, 1005 a 19-20.
239
Cf. Metafísica, IV, 3, 1005 a 23-24.
240
Cf. Metafísica, IV, 3, 1005 a 26-27.
241
Cf. Metafísica, IV, 7, 1011 b 23-24.
242
O conceito e o princípio de identidade aparecm de forma evidente nos seguintes contextos:
390
Mais importante, porém, do que encontrar a formulação inequívoca do
princípio de identidade é perceber que já se encontra implícito na própria
formulação do princípio de não-contradição (basta reparar nas três ocorrências de
 em sua formulação lógico-semântica), não como um princípio
anterior, mas como um princípio simultâneo e inerente, na medida que em sem ele
a argumentação que visa tanto defender este princípio, quanto o princípio do
terceiro excluído não seria possível. Na realidade, o que será preciso não é
Para a análise semântica dos vários sentidos do conceito:
1.1) Como conceito definitório dos quatro tipos gerais de predicação: Tópicos, Livro I, cap. 7;
1.2) Como categoria henológica fundamental: Metafísica, Livro V, cap. 9, Livro X, cap. 3, 1054 a 32-
1054 b 2;
2) Sobre as várias regras para testar a identidade entre definiendum e definiens: Tópicos, Livro VII,
caps. 1-4.
3) Para o princípio da indiscernibilidade dos idênticos (“ ((x = y) (Fx Fy))”): Tópicos, Livro
VII, cap. 1, 152 b 27-29; Refutações sofísticas, cap. 6, 168 b 32-33;
4) Relação entre o princípio de não-contradição e a identidade na falácia geral da ignoratio elenchi:
Refutações sofísticas, cap. 26;
5) Relação entre o princípio do terceiro excluído e o uso sofístico da identidade na homonímia: cap.
30, esp. 181 b 12-15;
6) Sobre o uso correto e incorreto do princípio de identidade sintática (“ ( )”) nas
demonstrações: Segundos analíticos, Livro I, cap. 3;
7) Identidade como sinônimo de por si mesmo ( ☺): Metafísica, Livro V, cap.
18, 1022 a 25-29;
8) Sobre a identidade dos estados ônticos com sua essência: Metafísica, Livro VII, cap. 6;
9) Reconhecimento da identidade enquanto forma da unidade como predicado comum a todas as
coisas: Metafísica, Livro VII, cap. 17, 1041 a 16-20;
É preciso, todavia, ressaltar que assim como o conceito de uno, o conceito de identidade tem um
papel fundamental em toda a obra de Aristóteles, ainda que aparentemente não esteja entre os
conceitos mais evidentes como o de ser, essência, qüididade, princípio, causa, forma, etc. Esta
aparência é devida tanto ao predomínio no próprio Aristóteles da problemática ontológica sobre a
problemática henológica, quanto à tradição dos comentadores do filósofo. Um sinal deste papel
fundamental da identidade pode ser visto na seguinte constatação referente à homonímia como
primeira causa dos paralogismos (Refutações sofísticas, cap. 7, 169 a 22-25): “De um lado, o engano
surge por causa da homonímia e do enunciado/discurso por não se poder/ter
capacidade/conseguir separar o que se diz de muitas maneiras (pois não é cil distinguir alguns
<conceitos>, tais como o uno, o ente e o idêntico)” /
        ☺

       
    ☯  
☯ 
         
.
391
encontrar propriamente uma formulação em separado do princípio de identidade
ou dos outros dois princípios, mas justamente perceber que a dificuldade em poder
encontrar uma tal formulação indica precisamente aquilo que se quer mostrar aqui:
que constituem efetivamente um único princípio visto em três aspectos distintos
mas complementares.
Um rápido olhar para a história da filosofia é suficiente para compreender que
os três princípios estão intimamente relacionados em sua formulação explícita a
partir do final da Idade Média. O princípio de identidade começou efetivamente a
ser formulado como forma mais breve do princípio de não-contradição, seguindo o
preceito de economia conceitual exigido por Okcham e seus discípulos. Leibniz,
apesar de tê-lo utilizado em suas obras, não lhe reconhece ainda o estatuto de
princípio independente. Com efeito, passou a ser encarado como
“independente” do princípio de não-contradição no século XVIII, mais exatamente
com a sistematização de inspiração leibniziana realizada por Wolff e Baumgarten.
Aliás, é a este último que o princípio do terceiro excluído deve tanto seu nome,
quanto seu reconhecimento como princípio “independente” (Wolff o considera um
corolário do princípio de não-contradição) e sua qualificação corrente, juntamente
com os outros dois princípios, como “princípio fundamental do pensamento”
243
.
Este relance sobre a história do reconhecimento explícito destes princípios faz
ver que, desde o início, estiveram intimamente ligados e é somente com o advento
da lógica clássica a partir do século XIX que suas peculiaridades lógico-semânticas
243
Cf., de Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia; trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes,
2003, pp. 203-205; 529-531; 954-955.
392
e seus compromissos ontológicos passaram a ser investigadas com mais detalhe, ao
mesmo tempo que deixaram de ser princípios fundamentais do pensamento para
se tornarem ora tautologias equivalentes a outras tautologias, ora teoremas
derivados de axiomas ou postulados, ora ainda como regras de inferência
244
. De
qualquer modo, deixa-se de pensá-los como fundamentos últimos da lógica e
mesmo da filosofia em geral. Além disso, lógicas heterodoxas como a lógica
intuicionista, a lógica paraconsistente e a lógica quântica negaram,
respectivamente, a validade irrestrita dos princípios do terceiro excluído, de não-
contradição e de identidade como verdades evidentes e como critérios necessários
para a consistência e ou validade dos sistemas lógicos
245
.
Este breve interlúdio histórico mostra, todavia, que a separação entre estes três
princípios foi sendo feita ao longo da história da filosofia como uma explicitação
daquilo que no princípio de não-contradição estava implícito na forma do
pressuposto e do implicado. A presente tese procura mostrar, no texto de
Aristóteles, justamente a pressuposição interna do princípio de identidade pelos
princípios de o-contradição e do terceiro excluído, bem como a implicação deste
último como correlato do princípio de não-contradição. De modo análogo a como a
análise da silogística aristotélica sob o ponto de vista da lógica formal do século XX
244
É a partir deste ponto de vista “secularizado” que Lukasiewicz analisa a argumentação de
Aristóteles em defesa do princípio de o-contradição, forçando com isto toda a exegese posterior
da argumentação de Aristóteles a se colocar em uma perspectiva mais sóbria e mais filosófica do
que a perspectiva de colocar estes princípios na condição de evidência última. Aliás, coube ao
grande lógico polonês o desenvolvimento da lógica de mais de dois valores de verdade
(enfraquecendo o princípio do terceiro excluído) e a realização de uma verdadeira “revolução
copernicana” nos estudos da silogística aristotélica.
245
Para uma excelente introdução às lógicas heterodoxas, veja-se, de Newton da Costa, Ensaio sobre
os fundamentos da lógica, opus cit., cap. 2, §§ 7-8.
393
mostrou a utilização de teses, postulados e axiomas da lógica de proposições na
fundamentação de uma lógica de termos, assim também a presente investigação
procura mostrar a unidade interna entre os princípios de não-contradição, do
terceiro excluído e de identidade no texto de Aristóteles, malgrado apenas os dois
primeiros sejam explicitamente postulados e o princípio de não-contradição pareça
ser textualmente privilegiado.
Para mostrar que estes três princípios são extensional e intensionalmente
equivalentes, bastará mostrar que na famosa defesa ou demonstração refutativa do
princípio de não-contradição o estagirita se vale dos princípios do terceiro excluído
e de identidade, pois se, como é unanimemente admitido a partir dos textos de
Aristóteles, o princípio de não-contradição não possui nenhum outro princípio
anterior a ele, então a utilização dos princípios do terceiro excluído e de identidade
para “provar” o princípio de não-contradição será evidência suficiente de que o
filósofo do Liceu pensa ou pressupõe este princípio como equivalente, não só
extensionalmente mas também intensionalmente, aos princípios do terceiro
excluído e de identidade. Se isto for efetivamente mostrado no texto de Aristóteles,
então está ao mesmo tempo claro que os “três” princípios, em sua unidade
necessária, são válidos tanto para os âmbitos noético e lógico-semântico, quanto
para o âmbito ontológico, uma vez que o princípio de não-contradição é
explicitamente formulado e defendido como sendo válido para os três âmbitos
246
.
246
Dado que a tese aqui defendida é a unidade necessária entre os três” princípios, doravante este
princípio único será apenas chamado de ‘princípio primeiro’, ‘princípio primário’, ‘princípio
394
§ 2 – Uma polêmica demonstração
A partir do capítulo 3 até seu final, o Livro IV da Metafísica é dedicado à
responder uma das aporias apresentadas no Livro III, qual seja:
“Porém, também acerca dos princípios das demonstrações é
<possível> polemizar se são <objetos próprios> de uma ciência ou
de várias (chamo demonstrativas as opiniões comuns
[  ⌧], a partir das quais
todas <as asseverações> são provadas [],
como por exemplo, que em toda <asseveração> é necessário
afirmar ou negar, e que é impossível ser e não ser
simultaneamente, e aquelas outras proposições /premissas
[] como estas; por ventura, é uma <só> a
ciência destes <princípios> e da essência ou <são> distintas? E se
não é uma, qual é preciso denominar []
a <ciência> que é presentemente procurada?”
247
A descrição da aporia segue colocando as razões para as duas partes da
polêmica, aquela que afirma serem distintas as ciências dos princípios das
demonstrações e aquela que põe em dúvida esta separação. São explicitamente
nomeados os princípios do terceiro excluído e de não-contradição, “e aquelas
outras proposições/premissas como estas”. Não nenhuma menção de quais
fundamental’ ou ‘princípio de verdade’. Quando um de seus aspectos for referido, será designado
pelo nome respectivo.
247
Metafísica, Livro III, cap. 2, 996 b 26-
33:      
  
    
      
 ⌧ ⌧ 
     
      
   
   ☯  
      
  ☺
      
  .
395
sejam estas proposições supostamente similares aos dois princípios. Nos Segundos
analíticos, Livro I, caps. 10-11, o também nomeados, como foi visto, estes dois
princípios, enquanto os princípios mais comuns às ciências. Junto com eles foi
enumerado um princípio comum apenas às matemáticas (ciências da quantidade),
com o que se pode pensar que as outras proposições referidas na presente
passagem não necessariamente têm todas a mesma amplitude de aplicação que os
princípios do terceiro excluído e de o-contradição. Trata-se de outros princípios
que servem às demonstrações e que são assumidos como verdadeiros para as
mesmas. O termo ‘’, entendido em sua acepção comum de
“premissas”, soa estranho aplicado aos dois princípios mencionados, uma vez que
estes, conforme o capítulo 11 do Livro I dos Segundos analíticos, não entram como
premissas das demonstrações a não ser subsidiariamente. Por isso, deve-se
entender este termo como significando mais provavelmente algo como proposições
gerais ou primárias. Esta compreensão do termo se confirma
pelo outro epíteto usado para denominar estes princípios das demonstrações:
“opiniões comuns”, ou seja, aquelas proposições gerais que o partilhadas por
todos os que se ocupam de alguma forma de saber.
Contudo, mais importante do que estes detalhes hermenêuticos é a questão
central posta em discussão: a ciência procurada, ou seja, a filosofia primeira,
identifica-se com a investigação dos princípios das demonstrações ou com a
investigação das essências? A resposta de Aristóteles se encontra justamente no
capítulo 3 do Livro IV, a saber: a ciência que estuda as essências (o que é enquanto
396
tal antes de tudo), à qual é própria do filósofo em sentido estrito, deve também ser
a ciência que pode discutir a verdade ou não dos axiomas, uma vez que os axiomas
dizem respeito a todos os entes enquanto entes, e o filósofo é aquele que investiga
os entes enquanto entes
248
. Assim, propõe o estagirita, a ciência da essência é a
mesma ciência que investiga a verdade ou não das opiniões comuns que estão na
base de todas das ciências particulares e que são aplicadas a cada gênero de
conhecimento apenas na medida de suas necessidades teóricas restritas, não sendo,
portanto, pensadas enquanto tais.
Logo após esta condensada argumentação defendendo os direitos do filósofo
diante dos físicos e dos matemáticos de ser o responsável pela discussão dos
princípios primeiros, o estagirita passa imediatamente à enumeração das
propriedades não dos princípios primeiros da demonstração, mas do princípio
mais firme de todos, acerca do qual é impossível estar enganado” (1005b 11-12:
      
 ). Além de sua verdade inconteste,
tal princípio possui duas características definitórias necessárias: (1) é o mais
conhecido (), uma vez que sobre ele é impossível estar
enganado e “todas as vezes está-se errado acerca daquilo que não se conhece”
(1005 b 13-14:
     
 ); e, além disso, deve ser não-hipotético
248
Cf. Metafísica, IV, 3, 1005 a 19-1005 b 11.
397
(), “o qual, porém, <deve> necessariamente ser conhecido
por aquele que pretenda vir a conhecer qualquer coisa” (1005 b 16-17:
     ☺
 ). Sua possessão deve ser, portanto, anterior a qualquer
outro conhecimento, pois qualquer conhecimento de qualquer coisa já deve estar
sob a égide deste princípio fundamental.
Assim, logo após argumentar brevemente em favor da ciência do ser enquanto
ser como responsável tanto pela investigação da essência (☺ ),
quanto pela investigação dos princípios primários, Aristóteles se põe a caminho de
realizar esta tarefa. Segue-se então a postulação do princípio fundamental.
Primeiramente em seu aspecto lógico-semântico, o qual, como corretamente
observa Lukasiewicz, é também já ontológico, uma vez que o estagirita concebe um
isomorfismo entre a estrutura da enunciação e a estrutura da realidade
249
. A
formulação diz:
“É impossível que o mesmo <predicado> subsista
[☺] e também não subsista simultaneamente
[] no mesmo <sujeito> segundo o mesmo <sentido> (e
aquelas outras determinações que poderíamos acrescentar em vista
das dificuldades lógicas).”
250
249
Cf. Sur le principe de contradiction chez Aristote, art. cit., pp. 14-15.
250
Metafísica, IV, 3, 1005 b 19-22:
    ☺    
   
      ☯ 
  ☯    
 
. Uma formulação alternativa, de caráter igualmente válido, tanto no sentido
ontológico quanto lógico-semântico, é encontrada logo em seguida como argumento para
corroborar a formulação noética do princípio (1005 b 26-27): “dado, efetivamente, que não é
possível que os contrários subsistam simultaneamente no mesmo <sujeito> (determinemos
também, com efeito, as habituais <determinações> a esta
398
O uso do verbo ☺ mostra efetivamente que o aspecto
lógico-semântico é também ontológico, uma vez que, como já se assinalou
anteriormente, este verbo é, segundo o próprio filósofo, sinônimo de ‘ser’ e ‘ser-
verdadeiro’, e sua negação sinônimo de ‘não-ser’ e ‘ser-falso’. Esta duplicidade de
aspectos fica mais clara se se atenta para o fato de que os complementos pospostos
aos três ‘mesmo o variáveis, podendo ser substituídos por termos de sentido
lógico-semântico, tanto quanto de sentido ontológico. Assim, predicado’ poderia
ser substituído por ‘atributo’, ou por propriedade’, salva veritate; também ‘sujeito’
poderia ser substituído por ‘coisa’, ou por entidade’, ou por ‘estado ôntico’, ou
ainda por ‘objeto’, também salva veritate; além disso, sentido’ poderia ser
substituído por ‘aspecto’, ou por relação’, salva veritate. Tais possibilidades de
tradução e de interpretação mostram que tal princípio possui um caráter tanto
lógico-semântico, quanto noético e ontológico.
Pouco depois, Aristóteles postula o aspecto noético do princípio do seguinte
modo:
“Pois é impossível a qualquer um conceber
[☺] o mesmo ser e não ser, conforme
alguns sustentam que Heráclito disse. Pois não é necessário que
aquilo que alguém diz, este mesmo o conceba.”
251
proposição)”/     ☺
  
   ☺    
  .
251
Metafísica, IV, 3, 1005 b 23-26:
  ☺  ☺
    
  ☯   
 ☯      
 ☺
399
Aqui é usado o verbo ☺para denotar a totalidade
dos atos de pensamento ou estados mentais possíveis
252
. Além disso, Aristóteles
reitera uma diferenciação que se encontra alhures (cf., v. g., Segundos analíticos, I,
10), entre aquilo que se pode dizer e o que se pode pensar. Muitas coisas podem
ser ditas, inclusive se pode negar o princípio primário, mas não é possível pensar
(conceber) algo que seja contraditório. É isto efetivamente que o estagirita afirmará
que fazem os que negam o princípio, unicamente porque podem fazê-lo nos
enunciados.
A partir de Lukasiewicz, tornou-se comum chamar tal formulação de
“formulação psicológica”, mas tal denominação não é correta, pois não se trata de
alguma forma de psicologismo que invade o território do lógico ou do ontológico,
tal como a entender Lukasiewicz, nem se trata de uma transgressão do caráter
próprio ao princípio primário, uma vez que lei psicológicas não podem ter caráter
a priori, enquanto o princípio deve tê-lo por definição; nem mesmo que esta
formulação “psicológica” seria “provada” pela formulação lógica
253
. Ao contrário,
.
252
O verbo ☺é muito freqüente em Aristóteles, assim como sua forma
substantivada ☺. No tratado Da alma (Livro III, caps. 3-5),
☺ e ☺ podem significar não apenas o imaginar, o
opinar, o senso prático e a compreensão, ou seja, aquelas atividades do espírito sujeitas ao erro, mas
também o conhecer científico e a apreensão, os quais, por definição, não estão sujeitos ao erro. A
sua multiplicidade de usos torna uma tradução adequada quase impossível, sendo muitas vezes,
porém, traduzido por ‘crer’, ‘acreditar’, mas também, por vezes, como é o caso aqui, por conceber’,
além de julgar’ e mesmo ‘pensar’. Para uma discussão sobre o sentido deste difícil termo, veja-se,
de Françoise Caujolle-Zalawisky, “L’emploi d’☺ dans le De anima, III, 3”, in
Corps et âme, opus cit., pp. 349-364.
253
Cf. Sur le principe de contradiction chez Aristote, art. cit., pp. 15-17.
400
trata-se de uma garantia da universalidade e necessidade do princípio
fundamental regular toda e qualquer relação entre pensamento, linguagem e
realidade. Efetivamente, a dita “formulação psicológica”, não é nem “psicológica”,
se por este termo se entende um conjunto de fenômenos empíricos contingentes,
nem propriamente uma formulação que devesse ser “provada”, uma vez que esta
mesma “formulação” é também usada para mostrar a inexorabilidade do princípio
de verdade
254
.
Apesar da importância destes esclarecimentos para o presente contexto, o que é
mais importante agora é analisar o sentido geral da famosa defesa do princípio
primário frente aos seus opositores, defesa realizada a partir do capítulo 4 até o
final do Livro IV. Com efeito, o estagirita passa da postulação de uma ciência do
ente uno enquanto ente uno e seus predicados subsistentes por si (caps.1-2) para a
defesa da universalidade e necessidade do princípio fundamental por ele
postulado. Isto indica que a fundação e posterior constituição desta ciência
depende efetivamente do esclarecimento dos aspectos deste princípio e de sua
defesa frente àqueles que pretendem negar sua validade irrestrita. Aristóteles
postula, assim, a necessidade de um fundamento seguro a partir do qual a
metafísica ou filosofia primeira possa se constituir como ciência das ciências, como
ciência transcendental (primeira) do que é transcendental (ente uno enquanto ente
254
Para uma defesa da importância dos aspectos “psicológicos” e ontológicos na defesa do princípio
primário, veja-se, de Thomas V. Upton, “Psychlogical and metaphysical dimensions of non-
contradiction in Aristotle”, in Review of Metaphysics, vol. 36, 3, 1983, 591-606, onde são
confrontadas e respondidas de modo convincente, a partir de vários contextos da obra de
Aristóteles, várias críticas ao aspecto “psicológico” do princípio feitas na esteira de Lukasiewicz.
401
uno), o que também indica não a necessidade de um fundamento seguro, mas
também, senão sobretudo, a necessidade de uma fundamentação teórica
irrecusável
255
.
Logo ao início do capítulo 4 o estagirita identifica os adversários do princípio
primário. São aqueles que “afirmam que é possível o mesmo ser e não ser e que
possível> conceber/pensar assim. E muitos dos que <investigaram> acerca da
natureza se valeram deste discurso.”
256
Com efeito, o capítulo 5 é dedicado a
enumerar os fisiólogos que negaram (implícita e explicitamente) o princípio e as
causas de terem adotado esta posição. Constitui mesmo uma espécie de contra-
senso o fato de Aristóteles afirmar que o princípio por ele proposto e defendido
tenha sido negado desde os primórdios do pensamento grego (no capítulo 5, até
mesmo Homero é citado), uma vez que a tal princípio é atribuído o caráter de
evidência, posto que anterior a e pressuposto de toda compreensão dos entes,
sendo, portanto, o mais conhecido dos princípios. Isto mostra que o caráter de ser o
mais conhecido não implica que seja também reconhecido como primário, o que
255
Esta necessidade de um fundamento transcendental, obtido através de uma fundamentação
teórica constitutiva, passou a fazer parte de todo empreendimento metafísico posterior. Esta
necessidade intrínseca de fundamento e de fundamentação pode ser vista em todos os projetos
metafísicos, desde o final da Idade Média, com Tomás de Aquino e Scotus, tendo se tornado uma
obsessão com Descartes até se tornar uma auto-contradição em Heidegger e em Wittgenstein. Estes
comentários servem apenas para introduzir de modo adequado a investigação e relembrar a
importância histórico-filosófica daquilo que aqui está em questão, não sendo porém algum tipo de
sacralização mistificadora. Para uma instrutiva e interessante comparação entre a metafísica
aristotélica e a metafísica cartesiana, veja-se, de Francis Wolff, “Le principe de la Métaphysique
d’Aristote et le principe de la métaphysique de Descartes”, in Revue Internationale de Philosophie,
201, 1997, pp. 417-443.
256
Metafísica, IV, 4, 1005 b 35-1006 a 3:
       
   
☺     
     .
402
confirma também a interpretação antes proposta acerca do caráter
epistemicamente posterior daquilo que é ontológica e ontoaleticamente primário, a
saber: a relação primária entre pensamento, linguagem e realidade. Pode-se ainda
depreender deste fato histórico, reconhecido pelo próprio Aristóteles, tanto que o
filósofo macedônio (de resto como todo grande filósofo) se concebe como
estabelecendo de modo definitivo a verdade do princípio fundamental, quanto
que, de acordo com isso, a tradição que o precedeu constituiria uma espécie de
longa investigação indutiva que culminaria com a apreensão e “definição” da
verdade originária do princípio de verdade por Aristóteles. Na introdução da
segunda parte foi comentada a descrição do estagirita de uma tradição dos que
asseveraram algo sobre a verdade e o ser-verdadeiro. É provável que esta descrição
implicitamente contivesse esta “vontade de verdade” do filósofo macedônio,
vontade que aqui aparece mais claramente. Entretanto, como se verá agora, sem
estes adversários (tanto os que “erraram ou erram por ignorância” quanto os “mal-
educados”), o princípio primário seria apenas uma proposição geral sobre a qual
nada se poderia falar
257
.
O capítulo 4 continua justamente comentando a falta de educação daqueles que
pedem uma demonstração para todas as coisas que são e que são ditas. Segundo
Aristóteles, uma tal exigência é auto-contraditória”, pois tornaria impossível
qualquer demonstração, dado que se cairia em um regresso ao infinito . Não muito
257
Para um quadro sinóptico e sistemático dos adversários e suas posições específicas, veja-se, de
Barbara Cassin, “Parle, si tu es un homme”, in La décison du sens, le livre Gamma de la Métaphysique
d’Aristote. Paris: Vrin, 1989, pp. 56-57.
403
tempo depois esta “falta de educação” () viria a ser
instituída como um dos tropos de Agrippa, com o qual os céticos incomodaram (e
continuam a incomodar) muitos filósofos. Contra estes que pedem uma
demonstração para tudo e que pedem, por isso, uma demonstração do princípio de
verdade postulado como primário, não é possível satisfazer sua vontade, uma vez
que o princípio primário é princípio de todas as demonstrações, sendo, portanto,
indemonstrável.
No entanto, imediatamente após apelar para a evidência do princípio primário,
Aristóteles afirma:
“Contudo, <como> demonstrar por refutação, acerca disto
[da pretensão de negar o princípio], que é impossível, desde que o
adversário diga algo [ ]; porém, se nada <diz>, é
ridículo procurar um discurso em relação àquele que não sustente
nenhum discurso, enquanto ele não sustenta nenhum discurso,
pois uma tal <pessoa> enquanto é tal, assemelha-se a uma planta.”
258
Muito foi dito e escrito sobre a proposta de Aristóteles de “demonstrar de
modo refutativo” (⌧ ) a verdade
do princípio de fundamental, ou seja, sua verdade irrecusável e primária enquanto
pressuposto de todo discurso significante.
259
O filósofo, porém, o se propõe a
258
Metafísica, IV, 4, 1006 a 11-15:
  ⌧    
   
   ☺    
       
☯ 
  ☯    
☺    ☯.
259
o cabe aqui fazer uma recensão da miríade de interpretações propostas para esta
demonstração refutativa. Ao longo da interpretação serão citadas na medida do necessário. Dentre
404
demonstrar o princípio, pois isto seria contraditório com sua definição mesma.
Aquilo que efetivamente propõe demonstrar é a falsidade necessária da negação
do princípio, ou seja, demonstrar que a pretensão do adversário é não só falsa, mas
necessariamente falsa. Se tal for feito, então a verdade do princípio estará
indiretamente demonstrada, ou talvez melhor seria dizer que estará mostrada.
Para tanto, basta que o adversário diga algo ( ).
Aqui é preciso esclarecer brevemente qual é a posição do adversário, ou seja, o
que ele sustenta como verdadeiro, de modo a se poder saber o que precisamente
deve ser mostrado como impossível. O princípio proposto por Aristóteles possui
visivelmente o caráter universal e necessário. No caso específico, pode-se
formalizar o princípio de não-contradição (enquanto a forma standard do princípio
primário que é negado) do seguinte modo:
(x) (F) (t) ~ [((Fx (t)) & (~ Fx (t))]
260
O que se pode ler como:
“Necessariamente, para toda entidade x, para todo predicado F, para todo
tempo t, não é o caso que ((x seja F em t) e que (x não seja F em t))”.
as interpretações que foram consideradas na perspectiva desta investigação, aquela que mais
fortemente a “influenciou” encontra-se no minucioso livro de Russell Dancy, Sense and contradiction.
Dordrecht/ Boston: Reidel, 1975. Para uma breve recensão dos tipos de interpretação propostos
atualmente, veja-se, de Barbara Cassin, “Parle, si tu es un homme”, opus cit., pp. 9-18.
260
Uma formulação muito parecida é sugerida no breve e excelente texto de Harold W. Noonan,
“An argument of Aristotle on non-contradiction”, in Analysis, 37, 1976-77, pp. 163-169, esp. 164.
Neste texto o autor mostra, de modo convincente, uma correlação entre a noção de designador
rígido’ desenvolvida por Kripke e o argumento aristotélico da unidade da significação, indicando
como a consideração do ser-homem’ como incompatível com o ser-não-homem’ pode ser
interpretada em termos de uma incompatibilidade entre designadores rígidos e não-rígidos.
405
O adversário nega a validade deste princípio. Mas a negação deste princípio
tem duas formas possíveis. A primeira destas negações pode ser chamada de
negação forte e pode ser simbolizada do seguinte modo:
(x) (F) (t) [((Fx (t)) & (~ Fx (t))]
Esta forma lógica significa:
“Necessariamente, para toda entidade x, para todo predicado F, para todo
tempo t, é o caso que ((x seja F em t) e que (x não seja F em t))”.
Esta formulação constitui, pelo contexto, aquela que Aristóteles toma como
sendo a posição de seu adversário, ou seja, este adversário do princípio
fundamental
261
afirma que toda entidade possui a todo tempo predicados
contrários.
Contudo, um outro tipo de negação da não-contradição é possível. Ela pode ser
chamada de negação fraca e simbolizada deste modo:
(x) (F) ( t’) [((Fx (t’)) & (~ Fx (t’))]
Esta fórmula pode ser lida como:
“É possível que exista ao menos uma entidade x, e que exista ao menos um
predicado F, e exista um tempo t’, tal que é o caso que ((x seja F em t’) e que (x não
seja F em t’))”.
Formulação que, na realidade, significa o mesmo que:
~ (x) (F) (t) ~ [((Fx (t)) & (~ Fx (t))]
Ou seja: “Não necessariamente, para toda entidade x, para todo predicado F,
para todo tempo t, não é o caso que ((x seja F em t) e que (x não seja F em t))”.
261
Aristóteles não tem aqui especificamente nenhum personagem histórico em vista. Seu adversário
é uma construção teórica e hipotética. Se alguém pode ser aproximado da posição que representa a
negação forte é Heráclito ou seus discípulos e epígonos. Para uma minuciosa discussão acerca deste
ponto, veja-se, de Russell Dancy, Sense and contradiction, opus cit., cap. 3.
406
Tomando o quadrado das modalidades e as relações de equivalência entre as
modalidades, tais como elaborados pelo próprio Aristóteles em Da interpretação,
caps. 12-13
262
, o primeiro tipo de negação corresponde a uma relação de oposição
ou contrariedade, o segundo tipo de negação constitui a contraditória do princípio
de não-contradição. No caso de uma oposição de contrariedade, ambas as partes
da oposição não podem ser verdadeiras, mas ambas podem ser falsas. No segundo
caso, porém, uma e apenas uma das partes é falsa e a outra, evidentemente,
verdadeira.
Retomando o caminho da argumentação, se a tese que deve ser refutada por
demonstração é a negação forte do princípio de o-contradição, então um
primeiro tipo de refutação da tese do oponente consiste em provar:
(1) (x) (F) ( t’) ~ [((Fx (t’)) & (~ Fx (t’))]
O que equivale a dizer:
“É possível que exista ao menos uma entidade x, e que exista ao menos um
predicado F, e exista um tempo t’, tal que o é o caso que ((x seja F em t’) e que (x
não seja F em t’))”.
Apesar desta formulação ser suficiente para derrogar a força da pretensão de
verdade da tese do oponente do princípio primário, esta ainda seria uma refutação
fraca, uma vez que o possível tem um valor de verdade muito próximo do falso e a
possibilidade de algo não ser o caso não necessariamente é incompatível com a
262
Para uma elaboração deste quadrado das modalidades aristotélicas, segundo as mesmas relações
lógico-semânticas do quadrado lógico, veja-se, de Martha e William Kneale, O desenvolvimento da
lógica; trad. M. S. Lourenço. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1991, pp. 87-88. Para uma sucinta
discussão sobre as equivalências modais e um quadro sinóptico das mesmas, veja-se, de Robert
Blanché, A história da lógica de Aristóteles a Russell, opus cit., pp.68-73.
407
possibilidade de algo ser o caso (i. e., [ ~ (( ~ A) ~ ( A)]). Com isso, deve-se
considerar este tipo de refutação como ainda não suficientemente comprobatória
da falsidade da tese do oponente.
A tese do adversário pode ser refutada também ao se demonstrar que:
(2) (x) (F) ( t’) ~ [((Fx (t’)) & (~ Fx (t’))]
Ou seja:
“Existe ao menos uma entidade x, e existe ao menos um predicado F, e existe
ao menos um tempo t’, tal que não é o caso que ((x seja F em t’) e que (x não seja F em
t’))”.
Neste caso, tem-se uma refutação convincente, pois se a tese do oponente é
marcada tanto pela universalidade quanto pela necessidade, então, com a
demonstração da efetividade de uma única instância que o segue a tese do
oponente ela estará refutada. No entanto, esta refutação pode ser considerada
ainda como parcial, uma vez que o oponente pode refazer sua tese e argumentar
mesmo assim que também PNC não está garantido e se mantém a possibilidade de
instâncias contraditórias necessárias.
Uma terceira possibilidade de refutação é dada por:
(3) (x) (F) ( t’) ~ [((Fx (t’)) & (~ Fx (t’))]
O que significa:
“Necessariamente existe ao menos uma entidade x, e existe ao menos um
predicado F, e existe ao menos um tempo t’, tal que não é o caso que ((x seja F em t’)
e que (x não seja F em t’))”.
408
Neste caso, tem-se uma refutação forte da tese do oponente, posto que se ainda
não se tem a universalidade, tem-se, contudo, a necessidade de que algo não possa
ser e não ser tal ou tal em determinado momento.
Uma refutação ainda mais forte da tese do oponente é dada pela seguinte
instâncias da não-contradição:
(4) (x) (F) (t) ~ [(( Fx (t)) & (~ Fx (t))]
O que pode ser lido como:
“Existe ao menos uma entidade x, e existe ao menos um predicado F, para todo
tempo t, tal que não é o caso que ((x necessariamente seja F em t) e que (x não
necessariamente seja F em t))”.
Tal instância mais forte da não-contradição indica um tipo de necessidade de re,
justamente aquilo que foi chamado de essencialismo aristotélico, e que constitui
precisamente o objeto central da Metafísica, ou seja, as essências ()
ou mais especificamente as formas essenciais enquanto conjunto de predicados que
identificam algo de modo necessário. Se isto é assim, como parece ser, então a
defesa da existência de essências constitui a refutação dos que negam o princípio
de verdade, defesa realizada ao longo dos Livros centrais da Metafísica e esta
ciência constitui, em seu todo, uma resposta (ou tentativa de resposta) ao ceticismo
nascente que Aristóteles enfrenta explicitamente no Livro IV desta obra.
Apesar das limitações presentes em cada um dos casos acima, a demonstração
de qualquer um deles torna a negação forte do princípio de não-contradição falsa,
ou, nas palavras do estagirita, é demonstrada a impossibilidade daquilo que é
409
defendido pelo adversário, e estará mantida a verdade do princípio de não-
contradição através de uma demonstração indireta.
Contudo, a refutação completa da tese que nega de modo forte a não-
contradição, afirmando a necessidade universal da contradição, seria provar por
demonstração justamente que:
(5) (x) (F) (t) [((Fx (t)) & (~ Fx (t))]
Ou seja, a refutação completa do adversário da não-contradição teria de ser a
demonstração de que não pode existir nenhuma instância contraditória no mundo, pois
somente assim a universalidade e necessidade do princípio primário estariam
preservadas diante de qualquer negação do princípio fundamental de verdade,
seja ela forte ou fraca. No entanto, tal demonstração é impossível, pois ela seria
claramente uma simples repetição tautológica sem nenhum poder de refutação
daquele que nega (quer de forma forte, quer de forma fraca) a não-contradição
como aspecto fundamental do princípio de verdade.
Na realidade, a demonstração da não-contradição necessária para toda e
qualquer entidade possível em qualquer tempo dependeria da demonstração da
identidade de todas as entidades possíveis, mas tal demonstração é igualmente
impossível, uma vez que a identidade de toda e cada coisa é uma pressuposição universal
e necessária de toda demonstração, pois antes de provar porque uma coisa é tal ou tal,
é preciso saber que a coisa em questão é algo e que é algo distinto e indivisível
410
diante de todas as outras coisas
263
. O que mostra que a não-contradição universal e
necessária é equivalente, para Aristóteles, à identidade de toda e cada coisa. Mas
isto se tornará mais claro na seqüência da investigação.
À luz destas elucidações gerais, pode-se retomar a análise dos passos da
demonstração refutativa proposta por Aristóteles. O estagirita descreve o
procedimento da demonstração refutativa (ou refutação demonstrativa) de modo
sucinto como segue:
“Digo, porém, que demonstrar de modo refutativo é diferente
de demonstrar, porque, de um lado, aquele que fizesse uma
demonstração [de PNC] pareceria reivindicar o que está no
princípio [cometeria uma petição de princípio], mas, de outro lado,
se isto [a petição de princípio = petição de PNC] for
responsabilidade do outro, então haverá refutação e não
demonstração. Ora, o ponto de partida em relação a todos estes
<argumentos> não é exigir que se diga que algo é ou não é (pois
alguém poderia tomar isto como sendo reclamar o que provém do
princípio), mas <exigir> que, ao menos, signifique algo para si
mesmo e para outro, pois isto é necessário se se diz algo.”
264
Antes de continuar na interpretação do capítulo, é preciso ressaltar que nesta
passagem se encontra o primeiro elemento textual para mostrar a equivalência
entre PNC, PTE e PI. Com efeito, ao estabelecer a exigência básica para proceder a
263
Cf. Metafísica, Livro VII, cap. 17, 1041 a 16-20.
264
Metafísica, IV, 4, 1006 a 15-22:
   ⌧  
 ⌧  ☺ 
   ⌧   
 ☯     ☯
 ☯  ☯
  ⌧    
     ⌧    
    
    ☯  ☺  ⌧
      
☺  ☯
   ☯  .
411
refutação da tese do adversário, o estagirita diz que não se deve pedir que diga que
algo é ou não é, pois isto seria cometer uma petição de princípio. Ora, dizer que algo
é ou não é significa justamente o princípio do terceiro excluído, de modo que
explicitamente o princípio de não-contradição, que é o tema de defesa, é tomado
como equivalente à necessidade de afirmar ou negar um mesmo predicado de um
mesmo sujeito. A mesma equivalência entre PNC e PTE é estabelecida em 1008 a
34- 1008 b 2. Este é um primeiro sinal da equivalência entre ambos os princípios.
Juntamente com a ligação explícita de PTE com a definição de verdade (como
foi analisado), começa a se tornar mais clara a equivalência entre os “três”
princípios enquanto formando um único princípio transcendental de verdade.
Aristóteles estabelece o sentido da demonstração por refutação em contraste
com o conceito de refutação. Demonstrar por refutação é diferente de demonstrar,
pois caso se quisesse demonstrar PNC, não se faria uma verdadeira demonstração,
uma vez que se utilizaria o próprio princípio na sua demonstração, cometendo-se
então uma petição de princípio, mais exatamente, a petição de princípio por
excelência. No entanto, se o oponente é o responsável pela petição de princípio,
então uma refutação de sua tese inicial, ou seja, se é o adversário do princípio
quem acaba por admitir alguma instância particular do princípio, então refuta-se a
tese do adversário e “demonstra-se” aquilo que ele pretendia negar. A questão será
como fazer com que o adversário se contradiga através daquilo que ele mesmo
admite, o que significa também, no contexto específico da argumentação
aristotélica, fazer com que o adversário admita a auto-contradição da tese que nega a não-
412
contradição afirmando a necessidade da contradição para todas as coisas, assim como a
auto-contradição da exigência de uma demonstração do princípio primeiro. Isto é
necessário porque a refutação deve ser feita a partir do que alguém admite como
verdadeiro e que acaba por contradizer algo que sustentava anteriormente,
procedimento ilustrado belamente em vários diálogos de Platão
265
.
Para entender de modo preciso o que está em jogo na diferença entre
demonstrar e demonstrar por refutação, é preciso analisar brevemente o que
Aristóteles entende por refutação. A “definição” sumária de refutação é feita
justamente em contraste com a definição de inferência silogística, da qual a
demonstração é um caso especial, tanto quanto o é a refutação, como fica claro a
partir do seguinte trecho:
“Pois, de um lado, o silogismo parte das <premissas>
postuladas de modo a dizer algo, por necessidade, distinto das
<premissas> estabelecidas e através das <premissas> estabelecidas;
de outro lado, a refutação é o silogismo com contradição na
conclusão.”
266
Assim, a refutação é um caso específico do gênero das inferências em geral. A
refutação é o silogismo que tem como conclusão uma contradição. Mas para
265
Infelizmente não foi possível, no âmbito deste trabalho, tratar o problema da contradição em
Platão, tema que mereceria uma investigação à parte. Vale lembrar, porém, que Platão formula o
princípio de não-contradição de modo muito parecido à formulação de Aristóteles em República,
livro IV, 436 b-c, 436 e-437 a, 439b. Além disso, vários dos argumentos do Teeteto, usados na
refutação da tese de Protágoras e do mobilismo de Heráclito, encontram-se também no Livro IV da
Metafísica, sendo Platão textualmente mencionado quando o estagirita alude o argumento acerca
dos prognósticos feitos por médicos e por leigos (1010 b 11-14).
266
Refutações sofísticas, cap. 1, 164 b 27-165 a 3:
☺       
 
  ⌧    
   ☯   
 
  . Para uma caracterização mais extensa do contraste
entre refutação e silogismo, veja-se Primeiros analíticos, Livro II, cap. 20.
413
compreender o que isto significa, é preciso remeter a uma outra passagem onde se
especifica as condições de uma verdadeira refutação, condições que distinguem
uma refutação real de uma refutação aparente, ou seja, de uma refutação sofística.
As condições de verdade de uma refutação são as seguintes:
“Refutação, efetivamente, é a contradição de um único e
mesmo <enunciado> não <o enunciado> do nome, mas do
estado ôntico <referido pelo enunciado>, e <quando> do nome,
não do sinônimo, mas do mesmo <nome> e <concluída>
necessariamente a partir do admitido <pelo respondente> (não
contando <na conclusão> com o que <está> no princípio [sc. nas
premissas]), e segundo o mesmo <aspecto do que é enunciado>,
em relação ao mesmo <estado ôntico>, do mesmo modo <que é
significado> e no mesmo tempo <do que é enunciado>.”
267
Esta definição dos critérios de verdade das refutações é bastante concisa e
requer uma boa dose de suplementos para ser traduzida de modo inteligível. Se as
suplementações estão corretas, então as condições para uma verdadeira refutação
são as seguintes:
(a)– refutar consiste em inferir uma conclusão que contradiz um dado
enunciado;
(b) – o que se refuta primariamente não é um enunciado que explicita o sentido
de um nome, mas um enunciado sobre algo não-lingüístico; caso seja o
267
Refutações sofísticas, cap. 5, 167 a 23-27:
☯      
  ☺ 
    
       
 ⌧ 
      
      ☺
   
.
414
enunciado de um nome, então se deve refutar o enunciado que se refere ao
nome mesmo em questão e não a um sinônimo do nome;
(c) A inferência que conclui com um enunciado contraditório àquele que se
pretende refutar deve se seguir necessariamente do que é admitido por quem é
o autor do enunciado a ser refutado;
(d) – Na inferência em que se realiza a refutação não pode acontecer uma
petição de princípio, ou seja, a conclusão não pode estar entre as premissas;
(e) A conclusão da inferência refutativa deve mostrar que todos os aspectos
semânticos do enunciado refutado são contraditórios em relação àquilo a que se
refere e não apenas em um ou alguns aspectos, ou seja, a conclusão que
contradiz o enunciado a ser refutado nega sua verdade com respeito ao mesmo
aspecto referido, em relação ao mesmo estado ôntico referido, do mesmo modo
como é enunciado e no mesmo tempo em que é referido.
De posse das condições para que se obtenha uma refutação autêntica, sabendo,
além disso, qual a asseveração a ser refutada, bem como quais as possíveis
asseverações contraditórias capazes de refutá-la, é possível analisar a peculiaridade
da demonstração refutativa.
Aristóteles explicitamente nega a possibilidade de uma autêntica demonstração
do princípio fundamental de verdade. Aqueles que, porém, pedem demonstrações
para tudo poderiam dizer que este princípio não é evidente e primário, mas apenas
um postulado hipotético ou se um princípio primário de fato, enquanto não
demonstrável seria incognoscível, posto que segundo estes “mal educados” o
415
conhecimento só seria obtido por demonstração, o que nega dois aspectos
definitórios atribuídos pelo estagirita ao princípio primário
268
. Além disso,
aqueles que negam o princípio primário e fazem desta negação sua tese. Se o
princípio fundamental não pode ser senão um postulado hipotético, então não
seria possível dizer com certeza que aqueles que negam o princípio de verdade
estão enganados, uma vez que sempre reside a possibilidade do erro nas hipóteses,
além do que, tal caráter hipotético negaria também a verdade necessária atribuída
por definição ao princípio primário.
Assim, a pretensão aristotélica de ter explicitado o princípio fundamental de
verdade está claramente ameaçada. O estagirita recorre então à possibilidade de
uma demonstração refutativa. No entanto, tal demonstração refutativa não seria
nem propriamente uma demonstração, nem propriamente uma refutação, posto
que, conforme foi visto pouco, uma das condições da refutação é não cometer
uma petição de princípio. Além desta condição, a refutação proposta também não
cumpre a condição de mostrar a contradição do que pretende refutar em todos os
seus aspectos semânticos, uma vez que contrapõe à tese universal e necessária do
adversário apenas instâncias particulares possíveis, contingentes e temporárias, ou
no máximo (e mais raramente) instâncias particulares necessárias.
Para demonstrar o princípio primário, enquanto primário, dever-se-ia cometer
uma petição de princípio, posto que se não fosse este o caso o princípio primário
não seria primário, e deveria ser demonstrado por um outro princípio anterior,
268
Para esta caracterização dos defensores da panapodeixia”, veja-se Segundos analíticos, Livro I, cap.
3, 72 b 12-14.
416
com o que se poderia então alegar uma regressão ao infinito. Não resta então ao
estagirita outra possibilidade que a de mostrar a verdade do princípio fundamental
senão incorrendo em petição de princípio e em tornando a “demonstração”
circular.
A estratégia do mestre do Liceu aqui é justamente a de demonstrar” o
princípio de modo circular e admitir a petição de princípio justamente enquanto se
refuta, por meio deste princípio, aquele que nega este princípio, sobretudo aquele que o
nega de maneira forte, uma vez que assevera esta negação como uma tese
afirmativa universal e necessária (1005 b 35). Deste modo, o estagirita coloca a
responsabilidade da petição de princípio naquele que pede uma demonstração e
ou que nega o princípio primário, uma vez que se admitisse a verdade necessária
deste princípio não pediria uma demonstração, nem o negaria, pois entenderia
(implícita ou explicitamente) que tal negação é necessariamente falsa
269
.
A partir destes esclarecimentos a estrutura geral da demonstração refutativa
pode ser pensada como tendo duas partes principais:
(1) – O adversário que nega de modo forte o princípio de não-contradição
através da seguinte asseveração geral, a qual pretende que seja verdadeira:
(i) (x) (F) (t) [((Fx (t)) & (~ Fx (t))]
269
Aristóteles, porém, é um realista, e sabe que existem aqueles que negam o princípio primário
unicamente por divertimento e prazer intelectual. Divide claramente os que negam o princípio
entre os que o fazem por ignorância, e os que o fazer pelo simples prazer de falar, referindo-se, de
modo quase direto, aos partidários das antilogias de Protágoras. Cf. cap. 5, 1009 a 16 ss.
417
(2) – Aquele que refuta a tese (i) mostrando que efetivamente as seguintes
instâncias são admitidas pelo adversário de PNC como conclusões de inferências
obtidas a partir do que ele aceita ao significar algo para si e para outro:
(1) (x) (F) (t’) ~ [((Fx (t’)) & (~ Fx (t’))],
(2) (x) (F) (t’) ~ [((Fx (t’)) & (~ Fx (t’))],
(3) (x) (F) (t’) ~ [((Fx (t’)) & (~ Fx (t’))]
(4) (x) (F) (t) ~ [(( Fx (t)) & (~ Fx (t))]
Se o oponente que defende (i) admitir ao menos uma destas instâncias como
resultado de alguma inferência a partir daquilo que ele admite (significa para si e
par outro), então aquele que procede a demonstração (circular) comete uma
petição de princípio, contudo é o adversário do princípio fundamental que é o
causador desta petição, pois ela não ocorreria se ele não negasse o princípio
primário e ou pedisse que se o demonstrasse. Além de ser responsável pela petição
de princípio de quem procura refutar sua tese e sua exigência de
demonstrabilidade do princípio primário, no momento em que admite alguma
instância particular do princípio, o adversário de PNC está ainda cometendo um
tipo daquilo que nos picos é chamado de “petição dos contrários”
418
( ), que ocorre “se alguém ao postular o
universal, em seguida se compromete com a contradição no particular”
270
.
Assim, Aristóteles admite que está fazendo uma petição de princípio na
medida em que está, de fato, recorrendo ao princípio de não-contradição para
mostrar instâncias particulares do mesmo, mas o responsável por esta petição não é
aquele que demonstra, mas a pretensão de verdade daquele que nega o princípio
primário, ou seja, a demonstração só é realizada por causa do oponente, para
mostrar que sua pretensão de verdade é infundada, absurda e insustentável diante
de suas conseqüências. A questão fundamental é que o oponente admita (diga,
signifique) algo “sem demonstração” (1006 a 27-28) e, a partir disso, pode haver
então uma demonstração (circular) do princípio, unicamente para mostrar a
impossibilidade (absurdo) de negá-lo. A função da “demonstração refutativa”,
portanto, não é de conhecimento, mas “purificadora” e como que maiêutica. Um
tal expediente complexo, mistura de demonstração e refutação, sem ser nenhuma
das duas e sendo as duas ao mesmo tempo, um verdadeiro tragélafo lógico-
semântico, merece ser comparado à saída de Dante e Virgílio do Inferno: descendo
subiam. Este caráter esdrúxulo do procedimento, compreendido deste modo, pode
trazer alguma luz à enigmática passagem:
“Mas se concede isto [significar algo para si e para outro], então
haverá demonstração <do princípio>, pois já haverá algo definido.
Mas o responsável <pela petição de princípio> não será quem
270
Tópicos, Livro VIII, cap. 13, 163 a 17-18:
☯    ⌧   
  
.
419
demonstra, mas quem se submete à demonstração, pois ao arruinar
o argumento, se submete ao argumento.”
271
Foi dito anteriormente que a petição de princípio realizada na demonstração
refutativa é uma demonstração circular do princípio de verdade em função da
refutação de sua negação. No contexto do Livro IV da Metafísica, Aristóteles não
faz explicitamente esta identificação entre petição de princípio e demonstração
circular. É preciso mostrar então que tal petição de princípio nesta complexa
demonstração indica justamente uma demonstração circular.
De acordo com os Primeiros analíticos, II, 16, a petição de princípio em geral
consiste em tomar o que é derivado e dependente como primário e independente,
ou seja, tomar a conclusão que deveria ser provada como meio de provar a si
mesma. Aristóteles dá um exemplo claro da forma lógica da petição de princípio:
[((B A) & (C B)) (C A)]
Até este ponto nada de extraordinário acontece. Trata-se de uma inferência
válida. No entanto, acrescenta o filósofo, “dado que fosse da natureza de ‘C’ ser
provado através de ‘A’, segue-se então que, inferindo deste modo, ‘A’ mesmo foi
provado através de si mesmo.”
272
A petição de princípio, portanto, é de natureza
271
Metafísica, IV, 4, 1006 a 24-26:
     ☯ ⌧ 
☯   ☯ ☺
  ☯  ☺  
☺ ☺    ☺
.
272
Primeiros analíticos, II, 16, 65 a 2-4:
    ☯    
  
        
.
420
semântica mais do que sintática. Ela constitui uma violação de um dos critérios
gerais das demonstrações, a saber: aquilo que deve ser provado deve ser provado
por premissas epistêmica e ontologicamente anteriores. Nesta inferência válida (C
A)’ significa, de fato, ‘(A A)’. Tal é a forma da identidade simples. Mas com
isso o que deveria ser provado é usado para provar. Algo similar acontece na
demonstração refutativa. Nesta, usa-se o princípio primário para provar a si
mesmo, quando se esperava que pudesse ser provado, se de fato provado, a partir
de algo epistêmica e ontologicamente anterior, mas nada há, por definição, anterior
a ele, com o que se prova o princípio pelo princípio.
A demonstração circular, por sua vez, é longamente tratada por Aristóteles nos
capítulo 5-7 do Livro II, dos Primeiros analíticos. Basicamente consiste em se tomar a
conclusão juntamente com uma das premissas invertida em sua predicação para
provar a outra premissa restante. É um procedimento válido do ponto de vista
sintático apenas na medida em que se mantenha nos limites dos critérios de
validade gerais das inferências silogísticas. No entanto, há uma condição semântica
para sua verdade: dois termos devem ser sinônimos ou poder ser substituídos um
pelo outro, salva veritate, ou seja, a relação semântica entre eles deve constituir uma
implicação biunívoca.
Nos Segundos analíticos, I, 3, Aristóteles se contrapõe àqueles que entendem o
conhecimento como um processo de regressão causal infinito e puramente
convencional e hipotético, posto que concebem como condição de todo
conhecimento a demonstrabilidade (são justamente “os mal educados” antes
421
aludidos, que pedem uma demonstração do princípio primário), bem como se
contrapõe àqueles que pensam o conhecimento unicamente como um processo de
demonstração circular. A concepção do conhecimento demonstrativo como
demonstração circular toma como princípio geral aplicável a qualquer
demonstração justamente o princípio de identidade simples, ou seja, ‘(A A)’.
Aplicado às demonstrações, segundo Aristóteles, tal princípio constitui “um meio
fácil para poder provar qualquer coisa”
273
. O estagirita expõe a forma lógica das
demonstrações circulares do seguinte modo:
Tomando-se o esquema geral da transitividade lógica das inferências em geral:
((x y) & (y z)) (x z)
Aplicado às predicações recíprocas nas demonstrações circulares obtém-se:
((A B) & (B A)) (A A)
Com o que se obtém a seguinte equivalência:
(A = x e z)
Isto indica que a regra de transitividade das inferências em geral, quando
instanciada nas demonstrações circulares aplicadas a termos que denotam
efetivamente estados ônticos que o anteriores ou posteriores uns aos outros,
incorre sempre em uma petição de princípio, pois torna o mesmo estado ôntico
antecedente e conseqüente de si mesmo, ou seja, viola o princípio de não-
contradição como condição geral de verdade para a relação de dependência entre
273
Segundos analíticos, I, 3, 72 b 34, 73 a 6:
   ⌧ ☺.
422
anterior e posterior, a saber: “é impossível que os mesmos <estados ônticos> sejam
simultaneamente anteriores e posteriores uns para os outros.”
274
As
demonstrações circulares violam este princípio quando aplicadas ao estados
ônticos que são efetivamente anteriores ou posteriores uns aos outros. Cometem tal
falha justamente por sempre estarem em uma predisposição formal para a
petição de princípio, ou seja, de tomar o que é posterior como sendo anterior, bem
como tomar o que é anterior como posterior. No entanto, as demonstrações
circulares podem ser aplicadas de modo válido e verdadeiro a um tipo de estados
ônticos, sem que cometam petição de princípio: naquelas entidades que possuem
propriedades que implicam umas às outras ou por terem o sentido equivalente, ou
por estarem em uma relação de simultaneidade e co-dependência ontológica
275
.
Retomando o caso das demonstrações refutativas, uma vez que está excluída a
possibilidade de vir a “demonstrar” o princípio primário por algo que lhe seja
anterior, pois neste caso ou ele não seria princípio primário ou se teria o regresso
ao infinito, então resta apenas a demonstração circular como meio de demonstrar o
princípio primário. Ora, se o princípio de identidade, como se viu há pouco, está
presente tanto nas petições de princípio, quanto nas demonstrações circulares,
então não há outro modo de se demonstrar por refutação o princípio fundamental, na forma
da não-contradição necessária, senão através do princípio de identidade. Através deste
274
Segundos analíticos, I, 3, 72 b 27-28:
       
   
 .
275
Idem, 73 a 5-6, 16-20.
423
princípio pode-se, então, partindo das coisas que são admitidas pelo adversário,
mostrar que há instâncias no mundo que invalidam a pretensão de verdade da tese
do oponente, posto que estas instâncias podem ser consideradas como
equivalentes aos ou co-dependentes do princípio primário e geral de verdade na
forma da o-contradição. Assim, apesar de ser uma petição de princípio, a
demonstração refutativa do princípio primário na forma da não-contradição
através de suas instâncias particulares constitui um uso válido e verdadeiro da
demonstração circular.
Se é assim, então o princípio de identidade simples tem de ser equivalente intensional
e extensionalmente ao princípio primário na forma da o-contradição, uma vez que na
demonstração refutativa não é usado nada além do princípio primário e as
premissas concedidas pelo opositor, para se obter, por inferência, instâncias
particulares do princípio primário de verdade, instâncias estas que devem também ser
caracterizadas pela identidade, caso contrário haveria uma auto-contradição na inferência
produzida na demonstração refutativa.
Além disso, se a demonstração refutativa mostra o princípio universal e
necessário ao contradizer a tese do adversário através de instâncias particulares
deste princípio no pensamento, na linguagem e na realidade, então este tipo de
demonstração é um procedimento indutivo. Com efeito, Aristóteles admite que as
demonstrações circulares podem ser chamadas de ‘demonstrações’ somente se se
estende o sentido do conceito de demonstração para além do conhecimento em
sentido estrito (☺), ou seja, conhecimento das causas de ser de algo
424
deduzidas por coisas epistêmica e ontologicamente anteriores ao que é conhecido.
Esta extensão para além do conhecimento demonstrativo propriamente dito
consiste em chamar de demonstrações aquelas inferências que partem do
particular, que é mais conhecido e epistemicamente anterior para nós
( ☺), em direção aos universais, enquanto aquilo que é
epistemicamente mais conhecido e ontologicamente e anterior simpliciter
(☺), ou seja, as inferências dialéticas que partem dos fenômenos, das
percepções atuais e das opiniões geralmente aceitas, encaminhando-se na direção
dos universais instanciados nos particulares, a partir dos quais são produzidas as
demonstrações em sentido estrito
276
.
Se esta caracterização da demonstração refutativa é correta, então ela consiste
em persuadir aquele que nega o princípio primário e ou seu caráter primário por
meio de inferências indutivas que tomam o que ele aceita como verdadeiro para
mostrar que esta admissão particular pressupõe a universalidade e anterioridade
absoluta do princípio primário. Assim, os capítulos 4-8 do Livro IV da Metafísica
constituem um longo inventário de demonstrações refutativas que mostram
indutivamente a validade universal e necessária do princípio primário a partir de
instâncias particulares do mesmo no pensamento, na linguagem e na realidade.
Tais demonstrações refutativas são intercaladas ou seguidas de reduções ao
absurdo da tese do adversário, mostrando as conseqüências inaceitáveis advindas
de sua tese. Tais reduções ao absurdo são, porém, dependentes das inferências que
276
Segundos analíticos, I, 3, 72 b 25-32.
425
mostram, a partir do que o adversário admite, instâncias particulares do princípio
primário, pois, conforme o próprio Aristóteles, todas as reduções ao absurdo
pressupõe provas diretas ou ostensivas, uma vez que são realizadas sempre
tomando a forma contraditória da conclusão verdadeira de uma inferência,
juntamente com uma das premissas desta inferência, deduzindo as conseqüências
desta hipótese para confirmar a conclusão da inferência original
277
.
Dado que as reduções ao absurdo pressupõem não apenas a verdade da não-
contradição, mas também a do terceiro excluído, então se as demonstrações
refutativas são intercaladas ou seguidas por reduções ao absurdo a partir das
conclusões das inferências que mostram instâncias do princípio primário, então o
princípio do terceiro excluído tem de ser também equivalente extensional e
intensionalmente aos princípios de não-contradição e de identidade usados nas
demonstrações refutativas.
Deste modo, na estrutura geral das demonstrações refutativas, uma espécie
de solidariedade ou cumplicidade entre os princípios de não-contradição, do
terceiro excluído e de identidade, de tal modo que as instâncias do princípio de
verdade obtidas nas inferências circulares devem respeitar simultaneamente as três
partes do princípio de verdade.
Pode-se mostrar este caráter solidário entre os três princípios em relação a uma
mesma instância do seguinte modo. Tomando-se a transitividade das inferências
em geral, aplicada à forma das demonstrações circulares, tomando xcomo uma
277
Cf. Primeiros analíticos, Livro II, cap.14.
426
entidade que instancia uma forma particular do princípio primário e simbolizando
com ‘Nx ~ (Fx & ~ Fx)”, com ‘Tx (Fx ~ Fx)” e com Ix ((Fx Fx)
(~ Fx ~ Fx))” (seguindo vagamente a ordem geral da argumentação anterior):
(1) (x) [((Nx Ix) & (Ix Nx)) (Nx Nx)] [(Nx = Ix)]
(2) (x) [((Tx Nx) & (Nx Tx)) (Tx Tx)] [(Tx = Nx)]
(1 + 2) (3) (x) [(Tx = Nx) & (Nx = Ix)] [(Tx = Ix)]
Assim, mostrar em uma única instância que ela é não contraditória significa
mostrar também que esta instância é caracterizada por alguma forma de
identidade, assim como que esta identidade é preservada quer um predicado seja
afirmado que seja negado deste algo.
A escolha aristotélica pela formulação da não-contradição para exprimir o
princípio de verdade em seu todo provém de seu maior poder epistêmico em
relação à formulação do terceiro excluído e da identidade, as quais possuem um
caráter mais tautológico do que normativo e explicativo. No entanto, sem
identidade não há não-contradição nem terceiro excluído, assim como sem não-
contradição não há identidade nem terceiro excluído, assim como sem este último
os outros dois também não existem.
Para mostrar de forma concreta no texto de Aristóteles esta solidariedade entre
os três princípios formando um único será suficiente analisar sucintamente uma
das demonstrações refutativas realizada pelo filósofo.
427
É a primeira demonstração refutativa
278
. Esta demonstração pode ser
esquematicamente resumida nos seguintes passos, usando as siglas dos princípios
que compõem o princípio de verdade em cada passo em que eles são usados:
(1) – Pede-se ao adversário do princípio que signifique algo uno para si e para
outro (PI);
(2) – Este pedido vem na forma da pergunta dialética:
“É verdade ou não que x é H ?” (PTE);
(3) – O adversário responde (admite/significa) que x é H (PI);
(4) – O adversário admite que ‘ser-H’ significa o mesmo que ‘ser-B’ (PI);
(5) – Se ‘ser-H’ significa o mesmo que ‘ser-B’, então necessariamente se x é H,
então x é B (PI);
(6) – Então, se necessariamente x é H, e ‘ser-H’ é igual a ‘ser-B’, então não é
possível que x não seja B, pois ou x é H ou x não é H. (PI/PNC/PTE)
(7) – Então é falso que necessariamente tudo seja e não seja ao mesmo tempo,
tal como afirma o adversário do princípio primário, e este se mantém
válido.
Entre cada um destes passos, porém, Aristóteles intercala várias distinções e
reduções ao absurdo de modo a garantir a verdade da demonstração refutativa
como um todo. É no intuito de garantir esta demonstração que Aristóteles
estabelece e distingue: (a) que uma designação significa que algo é ou que não é
278
Metafísica, IV, 4, 1006 a 28-1007 b 18.
428
tal ou tal
279
; (b) que mesmo para termos que designam inúmeros estados ônticos é
possível distinguir cada um de seus sentidos e defini-los
280
; (c) que significar uma
coisa é distinto de significar de uma coisa
281
; (d) que a significação dos acidentes é
distinta da significação da essência
282
. Se estas distinções não são aceitas, obtêm-se
as seguintes conseqüências absurdas (paradoxais e contra-intuitivas): (1) um
mesmo nome pode significar infinitos estados ônticos
283
; (2) um mesmo estado
ôntico pode infinitas vezes ser tal e infinitas vezes não ser tal ao mesmo tempo
284
;
(3) um estado ôntico é idêntico a todos os outros (“tudo é um”)
285
.
Logo após esta demonstração refutativa o estagirita se põe a analisar mais
detidamente as conseqüências da negação do princípio primário. A primeira delas
é que nada possuirá identidade própria e poderá ser distinguido de todo o resto
dos estados ônticos, o que significa a negação do princípio de identidade
286
. A
outra conseqüência, segundo Aristóteles, “que não é necessário negar ou afirmar”
(1008 a 3-4:
      
279
Metafísica, IV, 4, 1006 a 28-34.
280
Idem, 1006 a 34-1006 b 5.
281
Idem, 1006 b 13-28. Sobre este ponto veja-se o excelente texto de Lucas Angioni, “Princípio de
não-contradição e semântica da predicação em Aristóteles”, in Analytica, vol. 4, 2, 1999, pp. 121-
158.
282
Idem, 1007 a 26-1007 b 16.
283
Idem, 1006 b 5-11.
284
Idem, 1007 a 14-25.
285
Idem, 1007 a 4-11.
286
Idem, 1007 b 18-1008 a 3.
429
), ou seja, que o princípio do terceiro excluído não é universalmente
válido
287
.
Para concluir, pode-se então dizer que os princípios de não-contradição, de
identidade e do terceiro excluído estão mutuamente implicados na demonstração
refutativa proposta por Aristóteles e que as instâncias obtidas através destas
demonstrações são instâncias que respeitam igualmente os três princípios e assim
o princípio primário de verdade de todas as asseverações deve ser constituído pela
bi-implicação necessária (modal) destes três princípios. A caracterização de cada
um destes princípios de acordo com o ser-verdadeiro e o ser-falso em geral
consiste pode ser expressa assim:
(1) – O princípio de não-contradição garante que nem todas as asseverações são
verdadeiras;
(2) O princípio do terceiro excluído garante que nem todas as asseverações
são falsas;
(3) O princípio de identidade garante que as asseverações verdadeiras são
efetivamente verdadeiras e as asseverações falsas são efetivamente falsas.
A evidência destes significados ontoaléticos es na discussão realizada nos
capítulos 7 e 8, por vezes pensados como deslocados da discussão central do Livro
IV, onde são feitas demonstrações refutativas das teses de que todas as
asseverações sejam verdadeiras ou de que todas as asseverações sejam falsas. Estes
três princípios em sua unidade necessária formam um único princípio
287
Idem, 1008 a 3-1008 b1.
430
transcendental de verdade para todas as asseverações possíveis e, assim, para
qualquer tipo de relação entre pensamento, linguagem e realidade. De acordo com
ele, são estabelecidos critérios gerais de verdade noéticos, lógico-semânticos e
ontológicos para todas as asseverações.
Com isso, mostra-se que a teoria aristotélica da verdade se baseia neste
princípio universal e necessário (transcendental), de tal modo que ele constitui o
significado focal que os sentidos de verdade e falsidade podem adquirir a partir
das asseverações concretas. Este princípio organiza todas as relações de
dependência ontoalética de produção de verdade para as asseverações, tanto no
que tange à produção de verdade inter-categorial e intra-categorial, pois é um
princípio que vale para o pensamento, para a linguagem e para a realidade, assim
como para as possíveis inter-relações entre estes âmbitos do mundo em geral.
431
CONCLUSÃO GERAL
Esta investigação procurou mostrar como a questão geral sobre a relação entre
pensamento, linguagem e realidade está presente, implícita ou explicitamente, em
todas as teorias e teorizações da verdade e da falsidade. Além disso, procurou-se
mostrar que o tema ou problema fundamental para uma teoria ou teorização da
verdade é aquele acerca dos princípios e critérios de verdade, seja para estabelecê-
los, seja para discuti-los, seja ainda para refutá-los. Neste problema estão
pressupostos e implicados todos os demais problemas e questões que se possam
levantar acerca da natureza e da função dos conceitos de verdade e falsidade.
O “exemplo exemplar” para mostrar esta presença e esta pressuposição foi a
reconstrução da teoria aristotélica da verdade. Muito daquilo que o estagirita
discute acerca destes conceitos não foi considerado aqui, mas mostrou-se em linhas
gerais que suas teorizações dispersas acerca destes conceitos podem ser reunidas
em um todo consistente e organizado.
Mostrou-se que efetivamente Aristóteles possui respostas próprias para todos
os problemas fundamentais acerca da verdade e da falsidade expostos na primeira
parte deste trabalho, que toma os usos que estes termos possuem linguagem
comum como ponto de partida de suas análises lógico-semânticas sobre os
portadores e os sentidos de verdade, constituindo assim uma teoria descritiva mais
do que normativa destes conceitos, de modo análogo a como, na expressão de
432
Strawson, sua metafísica é descritiva e não normativa. Além disso, a definição de
verdade e falsidade possui um caráter transcendental que só parcialmente é
captado pela definição semântica da verdade proposta por Tarski, mas que é
plenamente compatível tanto com esta definição, quanto com o realismo de
aristotélico. Ademais, a resposta ao problema acerca dos produtores de verdade
mostrou que Aristóteles defende uma teoria abrangente da produção de verdade,
compatível com o princípio geral segundo o qual não nenhum portador de
verdade sem um produtor de verdade.
Viu-se também que o ser-verdadeiro e o ser-falso são meta-predicados
transcendentais que se aplicam à relação entre pensamento, linguagem e realidade,
que é instanciada na enunciação asseverativa. É comum classificar a teoria da
verdade de Aristóteles como uma teoria da correspondência. Tal classificação é
correta, mas de modo algum completa, uma vez que houve várias oportunidades
de ver que Aristóteles aceita teses tanto da teoria da coerência, quanto da teoria
pragmática, e mesmo das teorizações deflacionistas da verdade. Dentre estas
teorizações e teorias, porém, viu-se que a coerência é um conceito constitutivo e
necessário para toda possível correspondência entre pensamento, linguagem e
realidade, podendo-se reformular a classificação de sua teoria como sendo uma
teoria da correspondência coerente.
Além disso, mostrou-se como todos os sentidos que podem estar instanciados
nestas entidades relacionais remetem sua verdade ou falsidade ao princípio
transcendental de verdade, constituído pela bi-implicação dos princípios de não-
433
contradição, de identidade e do terceiro excluído. Cada um destes princípios
constitui um critério geral de verdade para todas as asseverações possíveis e sua
unidade constitui o princípio a partir do qual se pode caracterizar qualquer
asseveração como tal. Isto é possível porque este princípio primeiro de verdade
possui aspectos noéticos, lógico-semânticos e ontológicos. Sem este princípio,
pode-se dizer que haveria uma anarquia ontológica entre as entidades que podem
ser produtoras do valor de verdade das possíveis asseverações e nenhum critério
para decidir sobre a verdade ou falsidade das mesmas.
A partir destes pontos, pode-se avaliar em que medida a teoria da verdade
aristotélica é um episódio do passado, um documento morto nos arquivos da
história da filosofia, ou, na verdade, constitui um marco e monumento que pode
ainda hoje fazer pensar de modo original o problema da verdade e da falsidade,
talvez para além das unilateralidades que caracterizam as atuais teorias e
teorizações da verdade e da falsidade. De todo modo, a presente investigação
constitui um testemunho modesto de como um filósofo antigo pode ainda hoje
falar como um contemporâneo e um companheiro de caminho na investigação
filosófica.
434
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