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Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul
Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Da Política à Ética: O Itinerário de Santo
Tomás de Aquino
Dr. José Jivaldo Lima
Porto Alegre
2005
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8
José Jivaldo Lima
Da Política à Ética:
O Itinerário de Santo Tomás de Aquino
Tese apresentada para obtenção
de título de Doutor em Filosofia
Política junto ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, realizada sob
orientação do Prof. Dr. Luís
Alberto De Boni.
Porto Alegre
2005
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9
FICHA CATALOGRÁFICA
L732d Lima, José Jivaldo
Da política à ética: o itinerário de Santo Tomás
de Aquino / José Jivaldo Lima. – 2005.
266p.
Tese (doutorado) Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, 2005.
“Orientação: Profº Drº Luís Alberto De Boni”.
CDU –
141.30
Índice para Catálogo Sistemático
1.
Tomás de Aquino, Santo, 1225?-1274
2.
Tomismo
3.
Filosofia medieval
4.
Ética e política
10
A Deus Nosso Senhor, à Santíssima Virgem de
Lourdes, ao Glorioso São José; aos meus amados e
inestimáveis filhos Henrique, Felipe e Luciano; aos meus
queridos e amados pais Aníbel e Lindaura (in memoriam) e
aos meus estimados irmãos.
11
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à CAPES que nos concedeu uma
bolsa de estudos para que pudéssemos nos
dedicar, durante o primeiro semestre de 2002,
em tempo integral ao Doutoramento; aos
professores Dr. José Antônio de C. R. de
Souza, Dr. Roberto Hofmeister Pich, Dr.
Sérgio Ricardo Strefling e Dr. Alfredo
Culleton, que gentilmente cederam parte de
seu valioso tempo para a leitura e avaliação
deste trabalho; aos professores, cuja
dedicação à frente do Doutorado tem sido de
grande valia para todos nós, doutorandos. Ao
professor Dr. Luís Alberto De Boni por ter,
pacientemente, nos orientado, como também
pela valiosa amizade, compreensão para além
do normal para conosco, apoio em todos os
momentos e dedicação ao ofício de ensinar, de
que somente são capazes aqueles
verdadeiramente dignos de serem chamados
mestres; ao professor José Antônio de C. R.
de Souza, que tem sido mais do que amigo,
cujo apoio, orientação e incentivo nos
momentos difíceis foram imprescindíveis à
nossa vida e à nossa formação até este
momento e para com quem temos uma dívida
preter-humana e um agradecimento que não
consigo externar por palavras; à professora
Waldinice, pela simpatia, paciência, apoio e
inestimável auxílio que sempre nos dispensou.
Finalmente, aos amigos da UFMT, especialmente
ao Prof. Flávio P. Lemes, à Profa. Maria
Cristina, ao Prof. Roberto, à Profa. Josita,
Profa. Valderez, ao Prof. José Leite e Prof.
Peter, que muito nos auxiliaram, cujo
incentivo, ajuda prática, apoio moral e
acolhida nunca poderão ser suficientemente
pagos.
12
RESUMO
Este trabalho versa sobre a teoria ético-
política de Santo Tomás de Aquino, apresentada em suas mais
importantes obras relacionadas ao assunto, máxime, na Suma
Teológica”.
Como pensador político do Medievo, Tomás de
Aquino herdeiro das contribuições do helenismo, direto e
indireto, e do cristianismo não ficou à margem dos desafios que
a coexistência de ambas as correntes trouxeram às discussões de
então, principalmente às discussões ético-políticas.
Efetivamente, Tomás soube construir um
pensamento próprio a partir das fontes disponíveis até então. Dos
Padres da Igreja, Agostinho principalmente, e dos filósofos
gregos, Aristóteles entre eles, o Angélico compulsou as teses mais
contundentes a respeito do homem, do mundo e de Deus e soube
fundi-las numa síntese própria com o peso de sua linha pessoal.
Assim, tratou do ser humano, de sua
constituição íntima, de sua vida social com suas questões
pertinentes, e de seu destino intramundano e eterno, coligindo,
nas referidas fontes, o que ele julgou pertinente à sua visão
cristã, apropriando-se do linguajar do Estagirita sob o lastro do
pensamento agostiniano, sem, contudo, propender servilmente a
qualquer das duas, porquanto seu cristianismo se assemelha muito
do de Agostinho e sua filosofia se aproxima bastante da de
Aristóteles.
Mas estabeleceu um itinerário, que vai em
sentido oposto a uma certa “visão canônica”, cuja orientação tem
seu termo numa Ética, ou Teologia Moral, como ciência
arquitetônica dentre as demais e em última instância.
PALAVRAS-CHAVES: Tomás de Aquino. Idade Média. Ética e Política.
Virtudes. Leis e Direitos. Alteridade. Sociedade.
13
Abstract
This work tells about the ethical-political
theory of Saint Thomas Aquinas, presented in his more important
works related to the subject, maxime, in the Highest Theological.
As a political thinker of Medieval, Thomas
Aquinas heir of the contributions of the Hellenism, direct and
indirect and of the Christianity he was not on the margin of the
challenges that the coexistence of both tendencies led to the
discussions of the time, mainly to the ethical-political
discussions.
Indeed, Thomas knew how to build an own
thought, starting from the available sources until then. From the
Priests of the Church, mainly Augustine, and from the greek
philosophers, Aristotle among them, the Angelic compared the most
incisive theses regarding to the man, to the world and to God, and
he knew how to incorporate them in an own synthesis with the
importance of his personal tendency.
Thus, he was concerned with the human being,
their intimate constitution, their social life with their
pertinent subjects, and their intra-mundane and eternal destiny,
compiling, in the referred sources, which he judged pertinent to
his Christian vision, taking advantage of the Estagirita language
under the ballast of the Augustinian thought, without, however,
being servilely inclined to any of them, considering that his
Christianity is similar to the one of Saint Augustine and his
philosophy approaches a lot of the one of Aristotle.
But he established an itinerary that is
opposite to a certain canonical vision, whose orientation has its
expression in an Ethics or Moral Theology, as architectural
science among the others and ultimately.
Key-words: Thomas Aquinas. Middle Ages.
Ethics and Politics. Virtues. Laws and Rights. Alterity. Society.
14
Introdução
Na concepção de Fabro,
1
Tomás de Aquino foi destinado a
realizar um dos maiores projetos para a humanidade, qual seja, o
de conciliar, numa síntese coerente, fé e razão, natureza e graça.
Se o Angélico foi tudo isso, menos ou mais, pode haver
discordâncias a respeito, conquanto após uma despretensiosa
análise, que se convir em que o Ocidente católico é outro a
partir dele,
2
mesmo que, com a Idade Moderna, outras filosofias e
valores tenham se imposto ao mundo.
3
De qualquer modo, mesmo a partir de nossa “modernidade”
talvez atéia, deísta, agnóstica, ou “pós-cristã” —, é sempre
oportuno “revisitar” o pensamento de Tomás, dada a sua relevante
contribuição para a história do pensamento ocidental.
4
É sob esse prisma que nos propusemos “revisitar” o
pensamento do Angélico, enfocando os âmbitos da Ética e da
Filosofia Política.
5
Ou, mais precisamente, postular que Tomás
1
FABRO. Introducción al Tomismo. 2ª. ed. Trad. Maria F. de Castro.
Madrid: Rialp, 1999, p. 11: Tomás de Aquino estuvo destinado por la
providencia a la más extraordinaria obra de pensamiento, la de realizar
la síntesis entre fe y razón, entre naturaleza y gracia, obra que exigía
la máxima concentracíon interior [...]”.
2
GARDEIL. Iniciação à Filosofia de S. Tomás de Aquino. Trad. Wanda
Figueiredo. São Paulo: Duas Cidades, 1967, p. 11: Não necessidade de
acentuar aqui a importância excepcional que o magistério da Igreja
reconheceu, séculos, à obra de S. Tomás de Aquino que ela considera a
mais perfeita expressão especulativa de seu pensamento”.
3
MARCHI. Grandes Pecadores, Grandes Catedrais. Trad. Pier L. Cabra. São
Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 10: “Com a Idade Moderna impuseram-se
outras filosofias, outros valores, e a distância entre céu e Terra
aumentou”.
4
AQUINO. A Remodelação da Ética Clássica Greco-Romana por Tomás de
Aquino. FILOSOFIA UNISINOS. Porto Alegre, v. 2, nº. 03, p. 281, 2001:
“Revisitar Tomás de Aquino, em plena modernidade pós-cristã, significa
rememorar sua experiência histórica e sua contribuição teórica no
contexto das novas questões levantadas pela cosmologia científica
contemporânea, pela teoria geral contemporânea da evolução, pelos novos
campos epistemológicos abertos pelo conhecimento digital e, last but non
least, pela recriação simbólica do conceito de justiça como fundamento
do viver em comum dos humanos, isto é, da comunidade ético-política.”
5
OLIVEIRA. Tractatus Ethico-Politicus: genealogia do Ethos Moderno.
Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 11: “Um tratado ético-político é
fundamentalmente um tratado político-filosófico, na medida em que trata
da natureza e fundamentação filosófica do político em sua relação
específica com a ética ou a moral”.
15
coloca, inicialmente, a Ética como ciência arquitetônica em
relação à Política, numa direção oposta ao discurso de
Aristóteles, para, em seguida, enquadrar sua Ética no âmbito da
Teologia Moral. E, conquanto o Angélico compulse os textos do
Estagirita, ele não abandona o universo cristão, desde a
patrística até então, da reflexão sobre a Política, ou do que se
pensava ser ela. Ora, a Filosofia Política tem como um de seus
objetivos
6
mais prementes indagar a respeito da gênese e da
natureza das formações políticas e, nas palavras de Sterba,
“provide a justification for coercive institutions”.
7
Detendo-nos
neste último aspecto talvez o mais tangível e, hodiernamente, o
mais elegido —, sabemos que uma instituição
8
detentora de poder
coercivo compreende qualquer organização social que se serve da
força ou, às vezes, da ameaça do uso da força, para exercer o
controle do comportamento das pessoas que fazem parte dela. Mas,
outra tarefa da Filosofia Política é também demonstrar que aquelas
referidas instituições têm e exercem uma autoridade legítima,
sobre os seus membros. Todas elas possuem em sua estrutura interna
dois elementos essenciais para o seu funcionamento: autoridades
que gozam do direito de serem obedecidas e indivíduos que têm o
dever de lhes obedecer.
Nessa sua tarefa, a Filosofia Política depara-se com dois
problemas práticos decorrentes da própria natureza de tais
instituições e do poder coercivo que possuem, a saber, a liberdade
individual e o bem comum ou o bem-estar coletivo. Uma determinada
forma de Filosofia Política, p. ex., ao tratar do primeiro
problema, pode defender a tese de que uma instituição detentora de
6
Cf. AUDI (ed.). The Cambridge University Dictionary of Philosophy.
Cambridge: CUP. Press, 1996, p. 628-629. Nenhuma Filosofia Política,
porém, esgota todas as possibilidades de investigação que aqueles
problemas puderam ou podem suscitar. Mesmo que tenha a pretensão de ser
um trabalho de análise metaempírica, ela varia de acordo com a realidade
em que está inserida.
7
STERBA. Social and Political Philosophy: Classical Western Texts in
Feminist and Multcultural Perspectives. Belmont, Wadsworth Publishing,
1994, p. 1. Nesta obra, podemos encontrar textos comentados de Platão,
Aristóteles, Tomás de Aquino, Foucault, Rawls, Alasdair MacIntyre, entre
outros.
8
Entre as quais podemos enumerar a família, a Igreja, o Estado e a
O.N.U.
16
poder coercivo é perfeitamente legítima na medida em que ela
existe para assegurar aos seus membros e grupos sociais o
exercício da liberdade. Por outro lado, ao focalizar o segundo
problema, ela pode sustentar a tese de que aquela forma de
organização é legítima, quando o comportamento de seus membros e
de seus grupos está direcionado para o bem comum que eles
conceberam como sendo a sua causa final. Essas variações
acontecem, porque a sociedade humana encontra-se em permanente
mudança e, por conseguinte, também as instituições detentoras do
poder coercivo.
É plenamente cabível e justificável que alguém se
pergunte sobre a finalidade, para o mundo de hoje, do estudo da
Filosofia Política medieval, período esse levado a termo por
homens que viveram há tantos séculos e que nada têm em comum com a
cultura de nosso tempo, marcadamente individualista e egoísta.
Entretanto, ninguém em consciência julgaria inútil a
análise do passado, dos erros e dos acertos que, bem ou mal,
construíram a Modernidade. Falar de Filosofia Política, em
qualquer tempo, é relevante, pois são as idéias que modificam o
mundo. Quando tratamos de Teoria Política Medieval, tratamos de um
dos períodos mais ricos em debates de toda a história da
humanidade. Visitar, pois, este período significa conhecer as
idéias que, respaldadas pela autoridade da fé, construíram toda
uma sociedade e, mais ainda, estabeleceram as bases para o que
chamamos de Filosofia Moderna.
Se, neste trabalho, precisamente, tencionamos indagar e
analisar qual a concepção de homem, de Comunidade Política, de fim
último em Tomás de Aquino, esse fito pode ser alcançado se,
igual e precedentemente, analisarmos também qual é, natureza e o
fundamento próprio de cada um deles.
Advertimos o leitor de que os temas aqui tratados,
conquanto consagrados e abordados por muitos estudiosos,
9
serão
9
Para nomear alguns: CARLYLE, R. y A. A History of Medieval Political
Theory in the West. Edinburgh & London: s. ed., 1903/1917; DE LAGARDE,
G. La naissance de l’espirit laïque au déclin du Moyen Age.
Louvain/Paris: s. ed. 1956; GIERKE, O. Political Theories of the Middle
Ages. Cambridge: s. ed. 1938.
17
vistos naquela perspectiva que parte de uma leitura, talvez, menos
“canônica” do pensamento do Santo, mas, mais afim com as pesquisas
modernas coligidas, aqui e acolá, em artigos e trabalhos diversos,
de grande relevância, pelos quais nos pautamos como fio condutor e
impulso motriz. Advertimos, ainda, que nossa consideração sobre a
obra do Angélico, parte do pressuposto segundo o qual, conquanto
sua obra enquadre-se no projeto teológico que tinha em mente,
tendo-o sempre à vista, Tomás abordou igualmente temas relativos à
antropologia, à ética social e individual e à política. Nossa
convicção da propriedade desse enfoque se estriba na postura de
outros pesquisadores, os quais nos ensinam que até mesmo temas
teológicos trabalhados por autores do período em questão como é
o caso de Santo Tomás de Aquino tinham uma base, um suporte
filosófico.
10
Este trabalho consiste, portanto, em uma investigação
documental e bibliográfica no âmbito da História da Filosofia
Medieval e da Filosofia Política coetânea do autor.
A escolha desse tema deveu-se, principalmente, à série de
questionamentos que podem e devem ser levantados a partir das
posições apresentadas pelo Autor, as quais são de grande
relevância para a história da Filosofia Política em qualquer época
e cultura.
Partindo do pressuposto que, hodiernamente, o termo
cultura é tomado em várias acepções, cujo consenso inexiste entre
os pesquisadores,
11
sentimos a necessidade de circunscrever o
sentido deste termo, conforme o estamos utilizando. Assim, de modo
geral, podemos definir cultura política como o conjunto de
10
SOUZA. O Pensamento Social de Santo Antônio. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2001, p. 25: “Conquanto, pois, alguém possa dizer que a opera antoniana
se enquadra no âmbito da Teologia positiva, especialmente aquelas partes
relativas à ética individual e social, [...], respondemos e acreditamos,
afirmando que um sistema ou pensamento dum autor, particularmente dos
que viveram na Idade Média e ao princípio da Alta Escolástica [...],
quando não estavam bem-definidas as esferas específicas da e da
razão, embora a interdisciplinaridade estivesse sempre presente, tal
sistema e pensamento para além de respeitarem ao comportamento moral das
pessoas, subordinados ao fim último a que aspiram e se destinam,
pressupõe uma base filosófica”. (itálico do original).
11
THOMPSON. Costumes em comum — Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 17.
18
símbolos, idéias e produtos materiais criados pelos homens,
associados a um sistema social, à prática política, às forças
políticas operantes num determinado contexto.
12
A cultura política dispõe os conhecimentos, as
tendências, as normas, os papéis sociais de uma determinada
sociedade como instrumentos de controle, com o fito de conduzir e
ordenar tudo quanto se passa no interior dela.
13
O termo “cultura
política” engloba ainda distintos aspectos, como, por exemplo, as
relações recorrentes (sociedade civil e corpo político, sociedade
civil e governo, entre outros) ao modo de um palco onde os
interlocutores desempenham, cada um, seu papel.
Sem embargo, cultura política é, entre outras coisas,
tendência valorativa levada a cabo como realização social.
14
O
homem, em sua vida social, mostra-se também um ser produtor de
cultura,
15
porque produz conhecimento e valores que respondem aos
apelos mais profundos e existenciais de seu ser, no meio social em
que vive.
16
Neste sentido, sob o aspecto da produção intelectual, o
que o homem faz são as respostas aos questionamentos de sua época.
Em relação aos intelectuais do Medievo entre eles, Santo Tomás
de Aquino é incontestável que eles criaram uma cultura
filosófica e teológica social e política, voltadas para a
consecução do seu Fim Último, a Bem-aventurança Eterna, o que nos
levou, para redigir este trabalho, a compulsarmos os estudos e a
nos valermos dos modelos de análise preconizados por E. Gilson, E.
Galán Gutierrez, H. C. de Lima Vaz, C. A. R. do Nascimento, J.
Miethke, J.-I. Saranyana, J. A. de C. R. de Souza, E. Cassirer, L.
A. De Boni e I. Sangalli, entre outros renomados estudiosos do
pensamento político, filosófico e teológico da Idade Média.
12
BOBBIO. Dicionário de Política. 11
a
. ed. Trad. Carmem C. Varriale, et
al. Brasília: EdUnB, 1998, verbete cultura política, p. 306; JOHNSON.
Dicionário de Sociologia. Guia prático da linguagem sociológica. Rio de
Janeiro: Zahar, 1997, p. 59.
13
BOBBIO. Op. Cit. verbete, p. 308.
14
Idem. Ibidem, p. 306.
15
Idem. Ibidem, p. 306.
16
MESSNER. Etica General y Aplicada. Una etica para el hombre de hoy.
Madrid: Rialp, s. d., p. 135.
19
Outrossim, porque julgamos importante ressaltar que o
pensamento do Frade Pregador de Rocasseca foi inovador,
17
a partir
e apesar de sua condição de frade dominicano, seguidor, até certo
ponto, das pegadas de Santo Agostinho de Hipona, de sua condição
de leitor e comentador de Aristóteles, em vista das teses que
defendeu, entre outras, por exemplo, a unidade substancial da alma
e corpo em uma natureza decaída quanto à graça, mas não decaída
quanto à sua natureza intrínseca; a relação intrínseca do direito
natural e positivo com o Bem Comum Político e a Lei Divina
18
; o
direito à propriedade privada; o povo como co-causa do poder
político; o direito — relativo — de ingerência entre as esferas de
poder; o direito de deposição dos potentados.
Efetivamente em suas obras mesmo sem o caráter
específico de Filosofia Política
19
Tomás de Aquino tratou de
temas relativos à vida social, tendo-os discutido num contexto
teológico mais abrangente. Não teceu cabalmente, por isso, uma
teoria política acabada, nem tomou posições políticas favoráveis,
seja aos gibelinos,
20
seja aos guelfos.
21
Mas acenou com pistas
17
SARANYANA. La ciência política de Tomás de Aquino. In: DE BONI. Idade
Média: ética e política. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 233. Cf. LIMA
VAZ. Escritos de Filosofia I: Problemas de Fronteira. São Paulo: Loyola,
1986, p. 29-70.
18
OLIVEIRA. Op.Cit. p. 11: “Uma das grandes contribuições da Antigüidade
e da Idade Média consiste precisamente em situar a questão da natureza
humana em termos ético-político, ou seja, na gênese racional da
sociabilidade e no ato livre de transcender toda natureza”.
19
Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino foram os primeiros a
comentar a Política de Aristóteles, cujo conteúdo da respectiva ciência
na Idade Média era preenchido com o Direito Romano e o Canônico, não
obstante sua existência nominal entre as ciências práticas. Cf.
BERTELLONI. El Lugar de la Política dentro de la Tripartición de la
Philosophia Práctica antes de la recepción medieval de la Política de
Aristóteles. In: DE BONI. A Ciência e a Organização dos Saberes na Idade
Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 161-176.
20
LE GOFF. A Civilização do Ocidente Medieval. 2
a
. ed. Lisboa: Editorial
Estampa, 1995. v. II, p. 300: “GIBELINOS. Por morte do imperador Lotário
(1138), tiveram este nome os partidários de Conrad III de Hohestaufen,
dito Waibling (Gibelino) devido ao seu castelo de Waibling, que se
opunham aos partidários de Henrique da Baviera, da família dos Welf
(Guelfos). Estes dois termos, que designaram na Alemanha dos séculos XII
e XIII os partidários dos pretendentes ao trono imperial pertencentes às
duas famílias rivais, designaram em Itália, entre os séculos XII e XV,
os partidários do papa (Guelfos) e os do imperador (Gibelinos)”.
21
SARANYANA. Op. Cit. In DE BONI. Idade Média: ética e política. 1996,
p. 241: “Tal doctrina [guelfa] había surgido [para Eschmann] como un
desarrollo unilateral de la herencia gelasiana. Según los güelfos, toda
20
valiosíssimas, para seu tempo e para o nosso, que contribuem para
a discussão da teleologia
22
do Estado onde ele acabou “abrindo
caminho para um tratado autônomo sobre a Política, baseado na
ordem natural das coisas”,
23
e dos elementos convergentes a essa
teleologia, “lançando os fundamentos para o estudo da lei divina,
enquanto lei de uma comunidade”,
24
direcionando-a ao transcendente.
Se, também nisto, ele se aproxima das concepções do Estagirita e
suas posições são similares, contudo, como assinala Owens,
25
guardam pontos muito específicos e próprios que permitem apontar
uma originalidade de pensamento.
Elegemos a Suma Teológica,
26
ou Suma de Teologia
27
(1268-
1273
28
), como instrumento — fundamental deste nosso trabalho, por
ser ela o projeto maior e a obra mais acabada acerca do pensamento
de Santo Tomás, conquanto incompleta, na qual podemos coligir os
autoridad, incluso la del emperador y la de los reyes, deriva de la
autoridad del papa. Por ello, los papas pueden deponer a los
gobernantes, como de hecho había sucedido en vida de Aquino, cuando el
concilio I de Lyon (1245), a propuesta de Inocencio IV, había depeusto
al emperador Federico II”.
22
KANT. Primeira Introdução à Crítica do Juízo. Trad. Rubens R. T.
Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974, IX, p. 287: “O conceito dos fins
naturais é, pois, exclusivamente um conceito do Juízo reflexionante para
seu próprio uso, para ocupar-se da vinculação causal em objetos da
experiência. Por um princípio teleológico de explicação da possibilidade
interna de certas formas naturais, é deixado indeterminado se a
finalidade das mesmas é intencional ou não intencional. O juízo que
afirmasse um dos dois não seria mais reflexionante, mas determinante, e
o conceito de um fim natural também não seria mais um mero conceito do
Juízo, para uso imanente (de experiência), mas estaria vinculado com um
conceito da razão, de uma causa posta acima da natureza e atuando
intencionalmente, cujo uso é transcendente, quer nesse caso se julgue
afirmativamente, ou mesmo negativamente”. (itálico do original).
23
DE BONI. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na
Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003, p. 84.
24
Idem, Ibidem, p. 84.
25
OWENS. Aristotle and Aquinas. In: KRETZMANN, STUMP. The Cambridge
Companion to Aquinas. New York: CUP, 1999, p. 38-59.
26
Para um singular estudo sobre a Suma Teológica, além da introdução
de GRABMANN na edição de Alexandre Corrêa —, cf. CHENU. Introduction à
l’Étude de Saint Thomas d’Aquin. 2
a
. ed. Montréal: Institut d’Études
Médiévales. 1954, p. 255-276.
27
Fizemos uso da consagrada tradução de Alexandre Corrêa, por não
dispormos de outra completa em língua vernácula e, portanto, nós a
chamaremos tal qual seu tulo foi traduzido: TOMÁS DE AQUINO. Suma
Teológica. 2
a
. ed. Trad. Alexandre Corrêa. Porto Alegre: EST/Sulina/UCS,
1980. 11 v.
28
Cf. TORRELL. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e sua obra.
Trad. Luiz P. Rouanet. São Paulo: Loyola, 1999, p. 389.
21
elementos principais de seu pensamento político e sua
originalidade.
29
As outras obras
30
fornecem elementos mais escassos devido
não terem por intuito tratar do tema, ou estarem inscritas numa
categoria menor de sua reflexão pessoal sobre a Política. Entre
elas, destacam-se os Comentários à Ética a Nicômaco, os
Comentários à Política e o Do Reino ou do Governo dos Príncipes.
Os Comentários à Ética a Nicômaco (1271-1272) constituem-
se em uma obra na qual o Aquinate não fez apreciações mais
profundas sobre a ética do Estagirita,
31
nem mostrou todo seu
gênio, não obstante tenha dado seu toque pessoal ao texto que
comentava,
32
enriquecendo-o com todo o universo conceitual e
doutrinal que o Cristianismo tinha produzido.
33
Isto também é
devido ao fato de que os comentários eram leituras de cunho
29
DE BONI. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na
Idade dia. Porto Alegre: Edipucrs, 2003, p. 107: “Ora, o grande
projeto de Tomás foram as Sumas, para as quais direcionou seus demais
empreendimentos acadêmicos. Por isso, é nelas, antes de tudo, que
devemos procurar-lhe a originalidade”.
30
Para todas as obras em latim citadas neste trabalho, fizemos uso da
versão eletrônica Corpus Thomisticum-CD-ROM, s. l, s. ed., 2003, de
Roberto Busa, salvo indicação em contrário.
31
TORRELL. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e sua obra.
Trad. Luiz P. Rouanet. São Paulo: Loyola, 1999, p. 265: “Se quisermos,
porém, ter uma idéia das características dessa obra, será preciso
especificar que se trata de uma sentencia, isto é, de uma explicação
sumária e de caráter muito mais doutrinal e não de uma expositio,
comentário aprofundado com discussões textuais”.
32
Idem, ibidem, p. 266: “Mas, se for nossa intenção prevenir equívocos,
é preciso acrescentar que ao comentar Aristóteles Tomás não o deixa a
seu próprio encargo. Afirmou-se com freqüência que Tomás seria o mais
fiel e penetrante dos comentadores de Aristóteles; isso significa
esquecer que entre a moral de ambos toda a diferença trazida pelo
Evangelho”.
33
LÉRTORA MENDONZA. Estúdio Preliminar. In: TOMÁS DE AQUINO. Comentario
a la Ética a Nicómaco de Aristóteles. 2ª. ed. rev. y corr. Trad. Ana
Mallea. Pamplona: EUNSA, 2001, p. 28: “En cuanto a su valor exegético,
es decir, en qué medida interpretaba correctamente a Aristóteles, la
apreciación moderna tiende a ser muy cuidadosa y cada vez más crítica.
Se le reconece sobre todo el aporte para la clarificación literal del
texto, la presentación más amplia de textos muy sintéticos y a veces
oscuros por su brevedad, la buena ejemplificación. En suma, estos
valores didácticos que la tradición la asignó no han variado. Pero hoy
se reconoce que el Aquinate ha modificado a Aristóteles en puntos
decisivos de cada una de las grandes obras. Así, por ejemplo, Jaffa ha
señalado en lo que hace a nuestro tema, que toda la concepción moral
ínsita en el Comentario supone el principio específicamente cristiano de
la visión beatífica, que era totalmente ajeno al pensamiento de
Aristóteles”.
22
pessoal que preparavam o Doutor Angélico para trabalhos mais
importantes, como é o caso da Suma Teológica, onde Tomás
desenvolveu temas apenas comentados.
34
Os Comentários à Política (1269-1272) possuem contexto e
procedimentos análogos ao precedente em sua elaboração, de modo
que, igualmente, é uma fonte de menos importância para dela
retirarmos ensinamentos a respeito do pensamento político do Frade
de Rocasseca,
35
mas a grande contribuição desse texto
36
é que
justamente a Política de Aristóteles, foi traduzida (1260?)
37
por
Guilherme de Moerbecke O.P. (1220/35-1286)
38
diretamente do grego
para o latim.
O Do Reino ou do Governo dos Príncipes (1267),
39
texto
apenas em parte de autoria do Aquinate,
40
assume,
incontestavelmente, o caráter de “espelho do príncipe”, gênero
literário muito comum na época de Tomás e mesmo antes dela
41
. É
34
TORRELL. Op. Cit. p. 266: “Compreenderemos melhor o intento de Tomás
se recordarmos que seus comentários não eram cursos que teria ministrado
a estudantes. Eram antes o equivalente a uma leitura pessoal devidamente
anotada como forma de condicionar-se a uma incisiva penetração no texto
de Aristóteles a título de preparação para a redação da parte moral da
Suma Teológica”.
35
DE BONI. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na
Idade Média. 2003, p. 104: “Mas, mesmo em se tratando deste tipo de
texto, para quem leu os comentários tomasianos à Metafísica, ao De Anima
e à Ética, o não despiciendo trabalho sobre a Política coloca-se em
plano secundário. Não é este, portanto, o local mais apropriado para se
desvelar a originalidade do pensamento político de Tomás de Aquino”.
36
LÉRTORA MENDOZA (Prólogo. In: TOMÁS DE AQUINO. Comentario a la
Política de Aristóteles. Trad. Ana Mallea. Pamplona: EUNSA, 2001, p. 11)
refere que Santo Alberto Magno, mesmo sendo coetâneo da tradução de
Moerbecke (1260), usó un manuscrito de calidad muy inferior que Tomás”.
(itálico do original).
37
Cf. WEISHEIPL, James A. Tomás de Aquino: Vida, obras y doctrina.
Pamplona: EUNSA, 1994, p. 434.
38
TORRELL. Op. Cit. p. 204.
39
TOMÁS DE AQUINO. Do Reino ou Do Governo dos Príncipes ao Rei de
Chipre. Trad. Carlos A. R. do Nascimento. Petrópolis: Vozes, 1997.
40
TORRELL. Op. Cit. p. 406: “Dirigida ao rei de Chipre, provavelmente
Hugo II de Lusignan, o De Regno pode ser datado de aproximadamente 1267.
Esse escrito, igualmente conhecido sob o nome de De regimine principum,
é um opúsculo pedagógico e moral para uso de um príncipe mais do que um
verdadeiro tratado de teoria política. Inacabado, sua parte autêntica
detém-se na metade do capítulo II, 8 (antigamente II, 4)”.
41
DE BONI. Ibidem, p. 2003, p. 104: “Estudos contemporâneos relativizam-
lhe a importância, observando que, além de compará-lo com as teorias
aristotélicas, é interessante cotejá-lo também como então abundante
literatura chamada ‘espelho do príncipe’, dentro da qual ele pode muito
bem ser classificado”.
23
evidente a influência aristotélica no texto,
42
contudo sua marca
maior não é o tom peripatético, mas o viés agostiniano, cuja
presença no opúsculo em apreço é marcante. Vale lembrar aqui
quanto dissemos a respeito do caráter inovador do Aquinate, tanto
em relação a Aristóteles, quando insere a visão cristã nos temas
do Estagirita, quanto no tocante ao pensamento augustinista
(Agostinho, Pseudo Dionísio, Isidoro de Sevilha), ao fugir dele e
adotar Aristóteles como seu guia, assumindo posição pessoal, por
exemplo, ao tratar da origem do poder político, estribando-o na
natureza social do homem
43
e sem fazer menção alguma aos
ensinamentos do Gênesis.
Mas esses novos caminhos adotados pelo Angélico também
suscitaram novos problemas. Assim, se, na visão agostiniana, a
natureza humana é decaída e completamente dependente da graça para
superar suas limitações, na perspectiva peripatética, ela possui
condições naturais a partir das quais pode realizar suas
potencialidades no convívio em sociedade. Se, por um lado, o homem
vive na Cristandade, a sociedade de todos os batizados, por isso,
deve pautar sua conduta conforme a lei divina. Não pode, por outro
lado, eximir-se da submissão às leis humanas e deve respeitar a
esfera de competência do temporal. Se o cidadão
44
tem o dever de
42
LÉRTORA MENDONZA, Ibidem, p. 13: “Tomás de Aquino aúna ambas
vertientes, la científica, con el Comentario a la Política y el espejo
con el De Regno, ambos inacabados [...]. Hay que señalar que los
‘espejos de príncipes’ del s. XIII, entre ellos el de Tomás, están ya
muy influidos por la doctrina aristotélica y son diferentes a los
anteriores (por ejemplo, el Polycraticus de Juan de Salusbury, escrito
hacia 1159-60)”.
43
SOUZA; BARBOSA. O reino de Deus e o reino dos homens: As relações
entre os poderes espiritual e temporal na Baixa Idade Média (da Reforma
Gregoriana a João Quidort). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 127:
“Começa o De regimine principum por justificar a necessidade do governo
temporal, que, para Tomás, e ao invés dos autores da linha agostiniana,
não tinha a sua ratio no pecado original, mas sim na natural
sociabilidade do homem”.
44
Usamos aqui o termo “cidadão” no sentido utilizado na Suma Teológica,
I-II, 92, 1, ad 3: “[...] nisi cives sint virtuosi [...]. […] non autem
eadem est virtus cuiuscumque civis et boni viri”; 105, 3, ad 2um: “[...]
dupliciter aliquis dicitur esse civis: uno modo simpliciter; alio modo
secundum quid. Simpliciter quidem civis est qui potest agere ea quae
sunt civium; puta dare consilium vel iudicium in populo. Secundum quid
autem civis dici potest quicumque civitatem inhabitat [...]”. Cf. também
MARTÍNEZ LORCA. El Concepto de “Civitas en la Teoria Política de Tomás
de Aquino. VERITAS. Porto Alegre, v. 38, nº. 150, p. 254. 257, jun.
24
submeter-se ao poder político, entretanto, tem de saber quais os
âmbitos desse poder e se sua obediência é irrestrita e a sua
liberdade limitada, ou, noutras palavras, se têm os potentados e
os dignitários eclesiásticos um poder governativo ilimitado ou
não. Se todo poder vem de Deus, como postulam hierocratas e
teocratas, consoante o ensinamento do Apóstolo, em Rm 13, 1-7,
Tomás sustenta que é a Comunidade Política que outorga o poder
temporal aos seus dirigentes, para descontentamento de ambas as
correntes. Se era consenso a necessidade de envidar forças para a
construção da justiça política, cujo ofício os clérigos não podem
obstruir, não se pode, frisa o Aquinate, esquecer que Deus é o fim
último verdadeiro, horizonte que o potentado secular deve ter
presente e almejar.
Com vistas a responder a esses problemas, mesmo que
aparentemente mudem de roupagem, consoante as transformações
culturais das sociedades através dos tempos, os quais, entretanto,
sempre estão a acompanhar os seres humanos e, em especial, o
Filósofo Político, a quem cabe precipuamente oferecer pistas para
solucioná-los, primeiramente, sob o aspecto metodológico, partimos
da análise da Suma Teológica e de outras obras tomasianas, como as
assinaladas mais acima, e de suas fontes mais imediatas,
enriquecidas, posteriormente, com os dados encontrados numa
bibliografia de apoio, em parte, relativa ao seu pensamento,
conquanto esta seja profusa em nosso país e, em parte, respeitante
à época e ao ambiente cultural em que viveu nosso Autor, a
primeira metade do século XIII.
A natureza deste trabalho veio confirmar a principal
opção teórica que fizemos, qual seja a de que, para construir o
tema ou o objeto em apreço, tínhamos de esquadrinhar a obra de
1993: “Em resumen, el civis medieval es el que habitaba una civitas o
sede de un obispado pero carecía de status jurídico especial. Es decir,
no equivalía en absoluto al polites griego ni al moderno citoyen,
miembros ambos de pleno derecho de un Estado democrático. Sin embargo,
el civis tomista encarnaba [...] algo nuevo, al menos en el terreno de
la teoría política: formaba parte de un Estado constitucional […] En
sentido absoluto, no podrá llamarse civis o ciudadano al mero residente
en una civitas sino a quien posea derechos civiles”. Mais à frente,
Martínez Lorca afirma que no Comentários à Política Tomás identifica
civis com polítes.
25
Tomás de Aquino e, acima de tudo, analisá-la e comentá-la segundo
os conceitos por ele utilizados e pelos autores e fontes em que,
provavelmente ou não, teria se inspirado para expressar seu
pensamento.
Por isso, sob o aspecto metodológico, assim procedemos:
a) lemos e fichamos as sobreditas fontes; b) organizamos arquivos
temáticos dos textos relacionados com o objeto escolhido; c)
analisamo-los e comentamo-los; d) adotamos procedimento semelhante
com o corpus bibliográfico que, aos poucos, conseguimos reunir.
Ademais, por outro lado, “[...] as regras hermenêuticas,
universalizadas pelos critérios modernos de objetividade, não são
de modo algum suficientes para interpretar um texto [...]”.
45
Portanto, parece-nos incongruente compulsar e analisar os textos
do Angélico a partir de um esquema teórico-metodológico ou de uma
sistematização doutrinal que não são coetâneos do autor. Referimo-
nos à teoria hermenêutica, como modelo de abordagem textual,
segundo a qual as partes se relacionam com o todo circularmente,
isto é, enquanto as partes dão a compreender o significado do
todo, é somente sob a luz deste que “as partes adquirem sua função
esclarecedora”.
46
Isso significa a metábole “existencial” que ocorre no
pesquisador, abandonando sua pré-compreensão original, ao se
defrontar com as fontes de seu trabalho, ao percorrer sua análise
e ao comentá-las, consoante um objeto/tema proposto, respeitando a
alteridade textual desde o princípio da interlocução
47
. Efetivando-
se isso, o pesquisador mostra consciência hermenêutica para com o
texto que merece ser visto no seu gênero literário e consoante o
45
SCHUBACK. Para ler os Medievais: ensaio de hermenêutica imaginativa.
Petrópolis: Vozes, 2000 p. 17.
46
GADAMER. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998, p. 58: “Trata-se de uma relação circular entre o
todo e suas partes: o significado antecipado de um todo se compreende
por suas partes, mas é à luz do todo que as partes adquirem a sua função
esclarecedora [...]”.
47
Idem. Verdade e Método traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 405: “[...] uma consciência
formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o
princípio, para a alteridade do texto [...]”.
26
conjunto das obras do autor.
48
Assentimos, portanto, nas palavras
de Schuback ao se referir a Schleiermacher:
Em primeiro lugar [Schleiermacher], definindo o texto
não como um resto simplesmente dado e sim como um
momento singular da vida de seu autor, isto é, como o
que resulta da vivência subjetiva do autor e da
subjetividade de sua época histórica. Uma vez que o
texto define a sua objetividade material com base numa
vivência subjetiva, a interpretação passa a consistir
num trabalho de exposição da vivência originária do
texto.
49
É, portanto, nosso intento buscar no pensamento de Tomás
de Aquino, através de sua principal tese política: a Teologia
moral como ciência principal, arquitetônica, máxime direcionada ao
fim último verdadeiro, Deus, as chaves para entender o fio
condutor de seu pensamento desde o seu ponto de partida até às
conclusões a que ele chegou. Numa palavra, esquadrinhar os temas
filosóficos tratados por Tomás (antropologia, natureza social do
homem, leis, direitos, amizade, poderes políticos), evidenciando
que, ao tratar deles, o Angélico não perdia de vista o âmbito
cristão no qual eles estão inseridos e sob o qual devem ser
apreciados. Igualmente, é nosso projeto evidenciar que, em Santo
Tomás, não é a Política, a ciência arquitetônica, mas a Ética,
embasada com os princípios cristãos, ou mais precisamente, a
Teologia Moral, por ele ter sentido na proposta peripatética a
insuficiência do contexto intramundano em que ela se insere.
Também indicar e analisar que é o aspecto alterativo cristão o
fundante dessa Teologia Moral, que exige, para a efetivação do
consórcio com Deus, a satisfação das exigências do convívio
social. Queremos ressaltar ainda como, partindo dos dados
essenciais da filosofia política do Estagirita e das concepções
político-cristãs do Santo Bispo de Hipona, o Aquinate chegou a uma
concepção própria acerca da Ética e da Política.
Para lograrmos alcançar os sobreditos objetivos e,
consoante o que foi anteriormente exposto, concebemos este
48
Idem. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998, p. 58.
49
SCHUBACK. Op. Cit. p. 17.
27
trabalho em quatro capítulos, que respectivamente têm os seguintes
títulos: I. A Pessoa Humana como Sujeito Político do Pensamento de
Tomás de Aquino; II. A Ética Social de Tomás de Aquino; III. Leis
e Direitos no Pensamento do Angélico; IV. A Alteridade Teológico-
Política.
28
Capítulo I
1. A Pessoa Humana como sujeito Político do
Pensamento de Tomás de Aquino
1.1. Tomás de Aquino e as filosofias de seu Tempo
A importância de Tomás de Aquino no culo XIII na
história do pensamento político e, talvez, para além dele não
é menor dentre os filósofos cristãos, segundo assinala De Boni:
Tomás de Aquino ocupa um lugar de relevo na história
da Filosofia Política. Creio não estar errado ao
afirmar que ele, juntamente com Aristóteles, são os
nomes mais importantes do pensamento clássico anterior
a Maquiavel e Hobbes.
50
E Saranyana salienta sua inovação e preeminência como
leitor do Estagirita dentro da Societas Christiana:
Tomás de Aquino foi inovador não somente em Metafísica
ou em Ética. Seus escritos sobre a Política,
incorporando o pensamento aristotélico, permitem
colocá-lo como o primeiro politólogo medieval.
51
Sua carreira literária coincide, aproximadamente, com a
plena repercussão e, em alguns casos, com a repercussão inicial
das obras de Aristóteles no mundo ocidental.
52
Tanto a Política
50
DE BONI. De Abelardo a Lutero. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.
FILOSOFIA-161. p. 103.
51
SARANYANA. La ciência política de Tomás de Aquino. In: DE BONI. Idade
Média: Ética e Política. 2
a
. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. p. 233;
Cf. LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I. 3
a
. ed. cor. São Paulo: Loyola,
1993. FILOSOFIA-15. p. 29-70.
52
Cf. MIETHKE. Las ideas políticas de la Edad Media. Trad. F.
Bertelloni. Buenos Aires, 1993. p. 78; TORREL. Iniciação a Santo Tomás
de Aquino. Trad. Luiz P. Rouanet. Loyola, 1999. p. 30-37. 43-63. 384;
WEISHEIPL. Tomás de Aquino: vida, obras y doctrina. Pamplona: EUNSA,
1994. p. 399; VAN STEENBERGHEN. História da Filosofia: período Cristão.
Trad. J. M. da Cruz Pontes. Lisboa: Gradiva, 1973. p. 86-90. 115;
BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. 7
a
. ed. Trad. Raimundo
Vier. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 448.
29
como o texto completo da Ética, em particular, foram traduzidos
pela primeira vez para o latim durante a vida do Angélico. Por
meio de seus detalhados comentários, virtualmente de todos os
grandes tratados do Estagirita, e pelo extenso uso que fez dos
textos aristotélicos em suas obras teológicas, Santo Tomás foi um
dos que mais cooperaram para estabelecer o Estagirita como
principal autoridade filosófica no Ocidente Cristão:
Homens como [...] Tomás de Aquino [...] viram
claramente que estava em jogo a unidade ‘ideológica’
do Ocidente. [...]. Sem dúvida, foi decisiva para
tanto [a secularização do saber] a contribuição de
Aristóteles. Depois da chegada dele e de seus
comentadores, o mundo cristão jamais seria o mesmo.
53
O melhor modo de compreender a filosofia política do
Angélico reside em ele ter integrado Aristóteles na anterior
tradição do pensamento político-ocidental, representada pelos
Padres da Igreja e seus seguidores medievais e composta, em sua
maior parte, por elementos Escriturísticos, neoplatônicos e
estribados no Direito Romano.
Segundo significativos historiadores da Filosofia
Medieval e biógrafos do Angélico
54
, o esforço do Frade Dominicano
por reinterpretar o Filósofo a partir da Fé Cristã e de reformar a
teologia católica em função da filosofia aristotélica pode
comparar-se com o dos filósofos islâmicos e judeus da Idade Média,
os quais também consideraram Aristóteles como o maior dos
filósofos pagãos e se viram com semelhante problema de harmonizar
a filosofia grega com uma religião revelada. Com esses filósofos
judeus e muçulmanos, Tomás de Aquino dividiu uma herança comum que
incluiu o Órganon, a Metafísica, a Física, juntamente com vários
outros tratados de filosofia natural e a Ética a Nicômaco. E, como
eles, lidou com o problema peripatético da distinção entre
53
DE BONI. A Entrada de Aristóteles no Ocidente Medieval. In:
DISSERTATIO. Pelotas, nº. 19-20, p. 171. 172, inverno-verão, 2004. Ed.
Comemorativa.
54
TORREL. Iniciação a Santo Tomás de Aquino. 1999 p. 49; WEISHEIPL.
Tomás de Aquino: vida, obras y doctrina. 1994, p. 399; VAN STEENBERGHEN.
História da Filosofia: período Cristão. 1973, p. 86-88; BOEHNER, GILSON.
30
ciência especulativa e ciência prática, assim como com o da
divisão da ciência prática em ética, economia e política. Enquanto
a filosofia natural
55
, a ética e a filosofia política do Angélico
foram inspiradas em Aristóteles, a filosofia política das
comunidades islâmicas e judaicas
56
que viviam nos países muçulmanos
se baseou, em grande parte, nas obras de Platão ou num Aristóteles
plotinizado.
57
Cremos possível e, mesmo, provável que esta primeira e
mais óbvia diferença entre as tradições cristã e judeu-árabe não
se deve à simples casualidade histórica da disponibilidade ou não
das fontes literárias em questão, no mundo latino ou no árabe. Os
testemunhos de que dispomos parecem indicar que a Política do
História da Filosofia Cristã. 2000, p. 357-362; LIMA VAZ. Escritos de
Filosofia I. 1986, p. 11-20.
55
Ver o artigo de Celina A. Lértora Mendoza. Tomás de Aquino y la re-
fundación de la filosofia natural. Véritas. Porto Alegre, v. 47, nº. 3,
p. 269-286, set. 2002.
56
FALBEL. Neoplatonismo na filosofia judaica medieval. In: Souza.
(org.). Pensamento Medieval. São Paulo, 1983. p. 50-51: “É através do
contato com os pensadores muçulmanos que os judeus tomam conhecimento
das filosofias de Aristóteles, Platão e, em particular, com o
neoplatonismo [...]. Os judeus vivendo na órbita da cultura islâmica se
expressaram em árabe e escreveram nessa língua vindo mais tarde suas
obras filosóficas a serem traduzidas para o hebraico. Mas os pensadores
judeus medievais da Península Ibérica, África do Norte e Egito
utilizaram o árabe durante muito tempo como sua língua filosófica. [...]
Na verdade essa literatura filosófica islâmico-judaica se baseou nas
obras estudadas nas escolas helênicas que acabaram ficando sob o domínio
islâmico devido à expansão muçulmana que teve início no século VII.
[...] Textos de Platão, e entre os mais importantes o Timeo, a República
e as Leis, foram difundidos assim como os de Aristóteles e seus
comentadores, entre eles Alexandre de Afrodisias, Teofrasto, Temístio,
Simplício e João Filiponus. O conhecimento da obra de Plotino também se
deu devido a traduções de uma coleção de excertos das Enneadas conhecida
sob o título de “Teologia de Aristóteles” [...]. [...] E assim como os
judeus foram influenciados pelos trabalhos dos filósofos islâmicos do
período, a saber: al-Kindi, al-Razi, al-Farabi, Avicena (Ibn Sina), al-
Gazali, e Averróis (Ib Rushd), tiveram também contato com a série de
textos neoplatônicos do século X [...]. O pensamento neoplatônico
contido nesses textos influenciou mais tarde aos filósofos neoplatônicos
judeus [...]”. Ver também: DE LIBERA. A Filosofia Medieval. 1998, p.
191-245.
57
DE LIBERA. A Filosofia Medieval. 1998, p. 83. 114: “Parte considerável
das Enéadas de Plotino foi traduzida para o árabe e circulou amplamente
em terras do Islã. O paradoxo é que circulou tanto sob o nome de
Aristóteles como a célebre Teologia de Aristóteles —, como sob o
qualificativo ambíguo de ‘Ancião (ou Sábio) grego (al Shaikh al
Yûnânî)’. O plotinismo a plotinização da metafísica “aristotélica”
assume em Alfarabi a forma de uma verdadeira teoria cosmológica da
emanação [...]”.
31
Estagirita era conhecida no mundo árabe pelos filósofos muçulmanos
e judeus por meio de fragmentos de tal obra, assim como pela Ética
a Nicômaco e outras obras de Aristóteles. Não obstante, contra o
que poderia ocorrer em casos semelhantes, parece que nenhum grupo
fez esforço algum para obter cópias ou traduções dos textos
faltantes. Com base nisso podemos afirmar que o uso da Política
por autores cristãos resulta de uma eleição deliberada imposta
pelas circunstâncias da vida política de então.
Sabemos que as obras de Alfarabi
58
foram motivadas pela
preocupação de introduzir a filosofia em uma sociedade na qual
estava ausente. A situação específica a que se dirigem essas obras
exigiria uma defesa pública da filosofia ou sua justificação ante
o tribunal da opinião e da crença religiosa comumente aceitas.
Impunha ou propugnava um enfoque ao estudo da política que fizesse
frente à hostilidade original do estabelecimento político e
religioso a toda a ciência e, ao fazê-lo, ameaçava derrocar seus
fundamentos.
Diversamente de Alfarabi, o Angélico raras vezes se viu
obrigado a enfrentar uma tendência antifilosófica da parte das
autoridades eclesiásticas. Como cristão, simplesmente pôde adotar
a filosofia sem ter que participar em público de um debate
favorável ou contrário a ela. A filosofia não estava
acreditada no Ocidente e, oficialmente sancionada, mas, mais
ainda, exigia certo conhecimento de todos os estudantes de
teologia. É típico da sociedade cristã na Idade Média, ao
contrário da islâmica e judaica, que seus clérigos também fossem
eruditos. Nas obras do frade dominicano é a teologia que é
justificada ante o tribunal da razão ou da filosofia. A primeira
questão de sua obra mais célebre, a Suma Teológica, não pergunta
se o estudo da filosofia é possível e desejável, mas se, ao lado
58
GILSON. A Filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 1995, p. 427: “O segundo nome da filosofia árabe é
Alfarabi [Abu Nasr Alfarabi, 870-950] que estudou e ensinou em Bagdá.
Além de suas traduções e comentários de Porfírio e do Órganon de
Aristóteles, compôs tratados sobre a Inteligência e o inteligível (De
intellectu et intellecto), sobre A alma, sobre A Unidade e o Uno, etc.
Uma de suas obras mais significativas é sua Concordância de Platão e
Aristóteles”; Cf. DE LIBERA. Op. Cit. p. 18. 67. passim.
32
das disciplinas filosóficas, outra ciência é necessária, qual
seja, a doutrina sagrada.
59
Não menos revelador desse ponto de
vista é o fato de que as razões que Maimônides havia invocado para
justificar o ocultar das verdades filosóficas à multidão pudessem
ser utilizadas por Santo Tomás para mostrar por que, além das
verdades sobrenaturais, Deus havia considerado útil revelar certas
verdades naturais ou verdades que fossem acessíveis à razão humana
pela experiência.
60
O estado das coisas parece haver dado lugar a uma
preferência pela Política de Aristóteles que pressupõe uma maior
medida de acordo entre a filosofia e a cidade e, portanto, uma
maior abertura à filosofia por parte da cidade. A categoria
“canônica” que desfrutava a filosofia no mundo cristão ajuda a
explicar, ao mesmo tempo, por que Santo Tomás pôde descartar como
59
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. Alexandre Corrêa. Porto Alegre:
Sulinas/EST/UCS, 1980, I parte, q. 1, p. 1 (preliminares aos artigos):
“Para que fique bem delimitado o nosso intento, cumpre investigar,
primeiro, qual seja a doutrina sagrada, em si mesma, e a que objetos se
estende. Sobre este assunto discutem-se dez artigos: 1
o
.) da necessidade
de tal doutrina; 2
o
.) se é ciência; 3
o
.) se é uma ciência ou várias;
4
o
.) se é especulativa ou prática; 5
o
.) sua comparação com outras
ciências; 6
o
.) se é sabedoria; 7
o
.) qual o seu objeto; 8
o
.) se é
argumentativa; 9
o
.) se deve usar de metáforas ou locuções simbólicas; e
10
o
.) se a Escritura Sagrada que dessa doutrina faz parte, deve ser
exposta em mais de um sentido”. Usaremos essa edição em todas as
citações e referências a esta obra de Santo Tomás, citando-a pelo modo
mais usual, segundo o qual indica-se, com algarismo romano, a parte,
depois em arábico a questão, o artigo e as demais subdivisões.
60
TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. Trad. Odilão Moura. Porto
Alegre:Sulinas/EST/UCS, 1990, I, c. 4, caput, p. 24: “A verdade divina
acessível à razão é convenientemente proposta à dos homens”. Usaremos
essa edição em todas as citações e referências a esta obra de Santo
Tomás, citando-a pelo modo mais usual, segundo o qual indica-se, com
algarismo romano, a parte, depois, em arábico, o capítulo, o parágrafo e
as demais subdivisões; Idem. Suma Teológica. 1980, I, 1, p. 1: “Para que
fique bem delimitado o nosso intento, cumpre investigar, primeiro, qual
seja a doutrina sagrada, em si mesma, e a que objetos se estende. Sobre
este assunto discutem-se dez artigos: 1
o
.) da necessidade de tal
doutrina; 2
o
.) se é ciência; 3
o
.) se éuma ciência ou várias; 4
o
.) se é
especulativa ou prática; 5
o
.) sua comparação com outras ciências; 6
o
.) se
é sabedoria; 7
o
.) qual o seu objeto; 8
o
.) se é argumentativa; 9
o
.) se deve
usar de metáforas ou locuções simbólicas e; 10
o
.) se a Escritura Sagrada
que dessa doutrina faz parte, deve ser exposta em mais de um sentido”;
Idem. Ibidem. I-II, 99, 2, ad 2
um
: “[...] Assim também, entre as verdades
que devemos crer, são nos propostas, não aquelas que a razão não pode
alcançar, como a Trindade de Deus; mas também, as que o pode a razão
reta, como a unidade divina”.
33
desnecessário ou improcedente o esoterismo
61
que era comum à grande
parte da tradição filosófica antiga e, intencionalmente, adotado
por muitos dos Padres da Igreja, cujas obras ele conhecia.
O traço mais distinto do Islã e do Judaísmo é que ambos
se apresentam como leis divinamente reveladas, ou como ordens
sociais que tudo abarcam, regulando cada segmento da vida privada
e pública dos homens e proibindo, desde o princípio, toda esfera
de atividade em que a razão pudesse operar independentemente da
lei divina. O cristianismo, por sua parte, aparece como uma ou
como doutrina que exige adesão a um conjunto de crenças
fundamentais, porém deixa seus seguidores livres para organizar
sua vida social e política de acordo com normas e princípios que
não são especificamente religiosos. Esta diferença básica corre
paralela à diferença que notamos com respeito à ordem das ciências
sagradas dentro de cada comunidade religiosa. A ciência mais alta
no Islã e no Judaísmo foi a jurisprudência (fiqh), à qual
correspondia a importantíssima tarefa de interpretar, adaptar as
prescrições da Lei Divina que estava claramente subordinada à
teologia dialética (kalam).
62
A ciência suprema do cristianismo era
a Teologia, cujo prestígio excedia, em muito, tudo o que houvesse
dado à especulação teológica nas tradições judaica e árabe.
A mesma diferença essencial teve, por conseqüência, a
sociedade cristã, e ela foi governada por dois poderes distintos e
dois códigos distintos, um eclesiástico ou canônico e outro civil,
cada um com sua própria esfera de competência e cada um
relativamente livre em princípio de intervenção da parte do
outro, como nos sugere José Antônio de C. R. de Souza:
Quanto à plenitude do poder, note-se que se trata de
uma plenitudo potestatis in spiritualibus, atribuída
ao Papa [...]. Quase ao término do século V, o Papa
Gelásio I (492-496), procurando frear o cesaropapismo
bizantino [...], o fez magistralmente numa carta
dirigida ao Imperador Anastácio I (491-518). Desse
61
Idem. Suma Teológica. 1980, III, 42, 3, p. 3868: “Se Cristo devia
ensinar tudo publicamente”.
62
DE LIBERA. Op. Cit. 1998, p. 61-140. 191-225; FALBEL. O Kalam, sua
origem e sua influência no pensamento de Saadia B. Josef Gaon Al-
Faiyumi. SOUZA. (Org.). Leopoldianum (Temas de Filosofia Medieval), v.
XVII, 48 (1990): 59-88.
34
texto legal quatro teses básicas irão marcadamente
influenciar o pensamento político medieval relativo à
questão das relações entre os poderes: a) o Papa
possui a auctoritas; o imperador e os Reis detêm a
potestas. [...] d) As esferas de atuação próprias do
espiritual e do temporal são distintas entre si.
63
Essa tendência vinha desde os tempos dos Padres da Igreja
que se debruçavam sobre assuntos relativos à fé, mas não
desdenhavam os assuntos temporais.
64
Ao primeiro correspondia o trabalho de dirigir os homens
a seu fim sobrenatural; ao segundo, o de dirigi-los ao fim terreno
ou temporal. Efetivamente, o resultado foi que habitualmente os
fenômenos políticos puderam ser estudados à luz da razão sem
desafiar por isto, inicial e diretamente, a autoridade religiosa
estabelecida, ou correr o risco de uma confrontação aberta com
ela. Em conseqüência, questões específicas, como a origem das leis
divinas e humanas, a relação entre umas e outras e a comunicação
das leis divinas por meio da profecia ou da revelação que são
analisadas como temas políticos por Platão, porém, não por
Aristóteles, não pareciam pertencentes aos filósofos cristãos
como haviam parecido aos muçulmanos e judeus. Em suma, a estrutura
mesma da sociedade cristã, com sua clara distinção entre a esfera
espiritual e temporal
65
, mostrou uma patente afinidade com a
maneira limitada e um tanto independente com que são tratadas as
coisas políticas na Política de Aristóteles.
As sintéticas observações que até aqui se têm feito, a
respeito das características gerais da filosofia política dentro
da tradição judeu-árabe e da cristã, assinalam um problema final
que foi de suma importância para ambos os grupos: o da relação
63
SOUZA. O reino de Deus e o reino dos homens. Porto Alegre: Edipucrs,
1997. p. 15. 16.
64
RIBEIRO. A Igreja nascente em face do Estado Romano. In: SOUZA (org.).
O reino e o Sacerdócio. Porto Alegre: Edipucrs, 1995. p. 11: “A
literatura patrística reflete a doutrina paulina. Embora as questões
pertinentes ao dogma constituíssem a preocupação dominante, aos Padres
da Igreja não escapavam as implicações da vida política”.
65
WECKMANN. El pensamiento político medieval y las bases para um nuevo
Derecho Internacional. México: Universidad Autonoma, 1950. p. 4: “A
diferencia de la Antigüedad, en donde la esfera eclesiástica se
subordina al Estado e se confunde con él, la tendencia ortodoxa medieval
35
entre a filosofia e a religião revelada. A solução do Aquinate a
este problema pretende fazer cabal justiça tanto aos direitos da
razão, como aos da Revelação. Difere da maioria dos filósofos
muçulmanos, que, ainda proclamando exteriormente a supremacia da
Lei, consideravam a filosofia como a ciência perfeita e único juiz
da verdade da Revelação
66
. Também difere de Agostinho e de seus
predecessores cristãos, que tendem a analisar todos os problemas
humanos à luz do fim último do homem tal como é conhecido pelas
Sagradas Escrituras e em cujas obras as ciências mundanas à
medida que se lhes cultiva formam parte de um todo integrado ou
uma sabedoria iluminada pela Fé. O Angélico começa distinguindo
claramente os domínios da e da Razão, ou da Filosofia e da
Teologia, cada uma das quais é concebida como ciência completa e
independente.
67
A primeira procede à luz de princípios conhecidos
naturalmente e evidentes em si mesmos e representa a perfeição do
entendimento da ordem natural do universo pelo homem. Culmina na
Metafísica ou Filosofia Primeira, que é suprema em seu próprio
âmbito e que não é destronada pela Teologia como rainha das
ciências humanas. Ainda sem a graça divina, a natureza
68
humana é
completa em si mesma e possui sua própria perfeição intrínseca,
que em si mesma tem os meios pelos quais é capaz de alcançar seu
fim ou de voltar a seu princípio. A Teologia, ao contrário,
oferece uma explicação completa do começo e do fim de todas as
coisas como aparecem à luz da Revelação divina. Suas premissas
derivam da e servem-se das doutrinas filosóficas que podem ser
es la de separar ambas potestades [...] Si bien el Sacerdocio y la
Realeza son en el Medioevo dos dignidades distintas [...]”.
66
SARANYANA. Op. Cit. In: DE BONI. Idade dia: ética e política. 1996,
p. 244: “Como se sabe, los averroístas dejemos de lado ahora las
discusiones terminológicas deificam a Aristóteles a tal extremo que
consideraban que el Estagirita monopolizaba toda la verdad asequible a
la razón humana [...]”.
67
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 1, 1,p. 2: “Se além das
ciências filosóficas, é necessária outra doutrina”; 2, p. 3: “Se a
doutrina sagrada é ciência”; 6, p. 7:“Se esta doutrina é Sabedoria”; 8,
p. 9: “Se esta doutrina é argumentativa”; Idem. Suma Contra os Gentios,
1990 I, 4, p. 24: “A verdade divina é acessível à razão é
convenientemente proposta à fé dos homens”.
68
Discutiremos mais adiante este termo ao tratarmos da beatitude e de
suas divisões. A título de sugestão, para um maior aprofundamento,
recomendamos a obra de González. Moral, Razón y Naturaleza. Pamplona:
EUNSA, 1998. p. 48-82, da qual também nos servimos.
36
pertinentes a seu propósito, não como princípios, mas como
instrumentos em sua investigação metódica do conteúdo da
Revelação.
Segundo Santo Tomás, a graça divina longe de destruir a
natureza a pressupõe e a aperfeiçoa
69
, elevando-a a um fim que é
superior a tudo aquilo a que pode aspirar por seus próprios meios.
Portanto, entre as verdades da Revelação e o conhecimento
adquirido, mediante o uso da razão e da experiência, uma
distinção, porém não pode haver um desacordo fundamental. A
harmonia preestabelecida entre as duas ordens está fundada
teoricamente sobre a suposição de que Deus, revelador da verdade
divina, também é autor da natureza humana.
70
Toda discrepância
entre a Bíblia e os ensinamentos dos filósofos pode atribuir-se à
imperfeição do espírito humano que, ou bem tem interpretado mal os
fatos da Revelação, ou bem tem errado em sua busca da verdade
natural.
Vamos nos debruçar sobre a principal criatura saída das
mãos divinas, o homem, e vislumbrar sua constituição mais profunda
e quanto dela decorre segundo o pensamento do Doutor Comum.
1.2. O Homem como Pessoa
1.2.1. Constituição Metafísica da Pessoa
Um dos conceitos mais valiosos no pensamento do Doutor
Comum que lhe serve em seu labor no discurso sobre o homem e em
torno do qual se desenvolve toda a discussão dele dependente é o
conceito de pessoa. Afinal, não como falar de Salvação operada
por Cristo sem referir-se ao homem como pessoa e nem há como falar
de Ética e Política sem fazer a mesma referência. É mister, pois,
69
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 8, ad. 2
um
, p. 11: “[...] a
graça o tolhe, mas aperfeiçoa a natureza [...]”; Vide também nas
questões I-II, 85, a. 1, p. 1687: “Se o pecado diminui o bem da
natureza”; a. 2, p. 1689: “Se a natureza humana pode ser privada
totalmente do seu bem pelo pecado”.
37
deter-nos, por um pouco de tempo, num punhado de linhas sobre o
que caracteriza o “ser pessoal” do homem.
Afirma De Boni que “é dizer o óbvio afirmar que cada
época possui pressupostos e também dogmas —, a partir dos quais
elabora as próprias teorias, a respeito do mundo, do homem e de
Deus”.
71
Assim, podemos concordar com Lima Vaz em que “a
antropologia tomásica pode ser situada, desta sorte, num espaço
conceptual delimitado entre outras pela “concepção
neoplatônica do homem na hierarquia dos seres, como ser
fronteiriço entre o espiritual e o corporal”.
72
Por conseguinte,
asseverar que dentro da “fronteira” do corporal, ou seja, no reino
das substâncias materiais, destas o mais alto grau de perfeição é
a pessoa. E ilustramos com as palavras de Gilson:
At the summit of the world of forms are the
Intelligences which are completely separated from
matter angels. At the bottom are those forms, which
we have just been discussing, which are entirely
embedded in matter. Between the two come human souls
which are neither separated forms nor forms whose
existence is tied to matter.
73
Este autor diz, em outros termos, o mesmo que o Angélico,
quando este afirma que “a alma intelectual é como que o horizonte
e a fronteira entre o corpóreo e o incorpóreo [...] como que
existindo no horizonte da eternidade e do tempo”.
74
Estas palavras
resumem “o que de mais específico na antropologia de Tomás”,
75
nas palavras do prof. De Boni.
Ora, decorre que a pessoa é a substância singular,
completa, incomunicavelmente subsistente e racional; ou, mais
70
Idem. Suma Contra os Gentios, 1990, I, 7, p. 28: “A verdade da razão
natural não é contrária à verdade da cristã”; Idem. De Veritate. 14,
10, ad 7
um
. ad 9
um
In: Corpus Thomisticum. 2003.
71
DE BONI. A Antropologia Cristã de Tomás de Aquino. In: Temas Tomistas
em Debates. Recife, 2003. p. 66.
72
LIMA VAZ. Antropologia Filosófica I. 3
a
. ed. corrigida. São Paulo:
Loyola, 1993. FILOSOFIA-15. p. 69.
73
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. Trad. L. K.
Shook. Indiana: University of Notre Dame, 1994. p. 187.
74
TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. 1990, II, 68, n. 4, p. 287.
c. 81, n. 11, p. 326.
75
DE BONI. A Antropologia Cristã de Tomás de Aquino. In: Temas Tomistas
em Debates. 2003, p. 104.
38
brevemente, é o suposto racional, é o subsistente de natureza
racional; ou, ainda, é a substância individual de natureza
racional. Tal é o homem conforme encontramos na Suma Teológica:
Ora, o composto de tal matéria e de tal forma é por
natureza hipóstase e pessoa. [...] Logo, a hipóstase e
a pessoa acrescentam à noção de essência a de
princípios individuais [...].
76
O nome próprio de uma
pessoa significa aquilo pelo qual ela se distingue de
todas as outras. Assim, pois, como da natureza do
homem é o ter alma e corpo, assim da idéia de tal
homem é tal alma e tal corpo, como diz o Filósofo
[Met. VII, lec. X); porquanto é dessa maneira que tal
homem se distingue dos outros.
77
Mas vejamos o que, por último, dissemos.
Quando se diz que a pessoa é uma substância individual, o
termo “individual” denota que a pessoa é dotada de perfeita
incomunicabilidade e, por isso, equivale aos termos: singular,
completa e incomunicavelmente subsistente. Com efeito, uma
verdadeira individualidade deve excluir a tríplice
comunicabilidade que pode verificar-se numa coisa em relação à
outra:
a comunicabilidade do universal ao singular (tal é a da
animalidade a cada um dos brutos);
a comunicabilidade da parte ao todo (tal é a alma do homem);
a comunicabilidade de uma natureza a uma substância superior
(tal é a da Humanidade à Pessoa do Verbo Divino).
Portanto, a primeira comunicabilidade é excluída pelo
termo “singular”; a segunda, pelo termo “completa”; a terceira,
pelo termo “incomunicavelmente subsistente”. A pessoa deve ser de
76
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 29, 2, ad 3um, p. 280:
“[...] Sed compositum ex hac materia et ex hac forma, habet rationem
hypostasis et personae [...]. Et ideo hypostasis et persona addunt supra
rationem essentiae principia individualia [...]”.
77
Idem. Ibidem. q. 33, 2, c., p. 311: “Respondeo dicendum quod nomen
proprium cuiuslibet personae significat id per quod illa persona
distinguitur ab omnibus aliis. Sicut enim de ratione hominis est anima
et corpus, ita de intellectu huius hominis est haec anima et hoc corpus,
ut dicitur in VII Metaphys; his autem hic homo ab omnibus aliis
distinguitur”. A acepção tomista de indivíduo como pessoa: Idem. Ibidem.
I-II, 51, 1, c., p. 1397: “A coisa pode ser natural de dois modos. Ou
pela natureza da espécie [...]. Ou pela natureza do indivíduo; assim é
natural a Sócrates ou a Platão ser doentio ou sadio [...]”.
39
natureza racional, porque essa denominação foi reservada para os
indivíduos mais nobres, que são os dotados de razão. A perfeição
pela qual a pessoa existe em si e por si, de um modo distinto ou
incomunicável, diz-se subsistência
78
, ou, mais propriamente,
personalidade.
79
Antes de continuarmos nossa reflexão sobre a pessoa, faz-
se mister uma pequena digressão, a propósito da questão de se
dirigir ao homem e a Deus com o termo pessoa.
O nome pessoa atribui-se à criatura racional e a Deus.
Vejamos o que ele significa, quando se atribui à criatura e a
Deus. Atribuído à criatura, pessoa significa o subsistente numa
natureza racional que, pelo fato de subsistir nessa natureza, é
distinta de toda outra pessoa, é incomunicável, distinção, ou
incomunicabilidade, que constitui a essência da pessoa. Atribuído
a Deus, pessoa não significa apenas o subsistente na divina
natureza; visto que a subsistência, em Deus, identifica-se com a
essência ou natureza, e como a essência é comum às três
augustíssimas Pessoas, a subsistência não distingue uma Pessoa de
outra, não As torna incomunicáveis. É preciso, portanto,
acrescentar, sempre e explicitamente, à definição de pessoa algum
78
GALÁN GUTIÉRREZ. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino.
Madrid: Editorial Rev. de Derecho Privado, 1945, p. 42: “Lo que
diferencia a las substancias completas de las incompletas, es decir, lo
que distingue al supuesto de la substancia que no es, esa perfección por
la que el supuesto se constituye en su individualidad e
incomunicabilidad, es la subsistencia. Pues bien: la persona no es sino
supuesto de naturaleza racional, la substancia individual de naturalez
racional”.
79
Tomás aprova e explica a definição de pessoa, dada por Boécio (Suma
Teológica. 1980, I, q. 29). Diz o Angélico que o indivíduo, o
particular, se encontra, de um modo especialíssimo e perfeitíssimo, na
substância racional, que tem o domínio de seus atos e que por isso é
denotada pelo nome de pessoa (a. 1). Adverte o Doutor que o termo
substância pode significar não o suposto e a pessoa, mas também a
essência ou natureza (a. 2), e que a substância, que denota a pessoa,
não é a segunda (gênero, espécie), mas é a primeira, é o indivíduo, o
singular, o ente completo e subsistente em si, porque a substância
segunda não subsiste em si, mas no indivíduo (a. 1, ad. 2
um
). Por isso, a
alma humana, embora, quando separada do corpo, continue a existir,
contudo, por ser uma parte da natureza humana, não é pessoa (a. 1, ad
5
um
). O mesmo Angélico, definindo a pessoa, diz que é “subsistente de
natureza racional: persona significat id quod est perfectissimum in tota
natura, scilicet: subsistens in rationali natura” (a. 3). Esta definição
é equivalente à de Boécio. Com efeito, quando, no mundo, um ente
40
outro elemento, isto é, é necessário acrescentar uma diferença, de
modo que esta se torne própria de uma pessoa, e não de outra, de
modo que seja uma subsistência distinta ou incomunicável e seja
distinta e incomunicável sob o mesmo respeito e pelo mesmo título,
sob o qual e pelo qual constitui uma Pessoa. Ora, não podendo ser
tal diferença uma coisa absoluta (porque o que é absoluto, em
Deus, é comum às três pessoas), deve ser uma coisa relativa, dever
ser a própria relação. Na verdade, as relações (opostas) são, em
Deus, incomunicáveis e são a razão de distinção entre as Pessoas.
80
Por isso, segundo o nosso modo de entender, nas Pessoas divinas
distinguimos um elemento comum e um elemento próprio, que é o
princípio de individuação. O elemento comum é a subsistência, ou a
essência; o elemento próprio é a relação pessoal. Dizemos, segundo
o nosso modo de entender, porque deve excluir-se de Deus toda a
espécie de composição.
81
Dos princípios expostos derivam dois corolários e dois
axiomas: 1) A pessoa, em Deus, significa, própria e adequadamente,
o subsistente na divina natureza, distinto pela relação pessoal
(Paternidade, Filiação, Processão ou Espiração passiva); e a
personalidade é a subsistência, possuída, por um modo distinto ou
incomunicável, pela relação pessoal. Pode também se dizer que a
pessoa, em Deus, é o relativo (Pai, Filho, Espírito Santo)
subsistente na divina natureza, ou é a própria relação, enquanto
subsistente na divina natureza. Por isso, a Essência divina,
embora se identifique com o seu ser e seja por si subsistente,
todavia, considerada em absoluto, não exprime distinção ou
verdadeiramente subsistente, ele é substância individual, isto é,
singular, completa, distinta ou incomunicável.
80
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 32, 2, c., p. 305: “E tais
são as propriedades ou noções expressas em abstrato, como paternidade e
filiação. E, assim, em Deus, a essência significa o que é, a Pessoa,
quem é, e a propriedade, enfim, pelo que é. A segunda é que, em Deus,
uma Pessoa se refere a duas, a saber, a Pessoa do Pai, à do Filho e à do
Espírito Santo. Não porém pela mesma relação; porque daí resultaria
referirem-se também o Filho e o Espírito Santo ao Pai por uma e mesma
relação; e assim como em Deus a relação multiplica a Trindade,
seguir-se-ia não serem duas Pessoas o Filho e o Espírito Santo”.
(itálico do original)
81
Cf. Idem. Ibidem. I, 13, 7, c., p. 120; ad 4
um
, p. 122; I, 28, 1, c, p.
269; ad 3
um
p. 270; I, 32, 2, c, p. 304; IBÁÑEZ, MENDOZA. Dios Trino en
41
incomunicabilidade, e não é pessoa. Para que a Essência divina
possa chamar-se pessoa, é necessário considerá-la relativamente,
isto é, enquanto está sujeita às relações
82
de Paternidade, de
Filiação e de Espiração passiva, porque só assim é que tem a razão
ou a índole de subsistente distinto ou incomunicável, e esta
distinção ou incomunicabilidade deriva do mesmo elemento que
constitui a pessoa e que, como dissemos, é a relação oposta.
83
Nota
o Angélico
84
que a substância se atribui a Deus, não enquanto
significa o sujeito dos acidentes, mas enquanto exprime uma coisa
subsistente, e que Deus pode dizer-se dotado de natureza racional,
enquanto a razão significa a natureza intelectual. 2) A Santíssima
Humanidade do Verbo não é pessoa, porquanto a pessoa deve
subsistir em si e por si, de um modo distinto ou incomunicável,
deve sustentar-se a si mesma, possuir-se, ser sui juris, deve ser
um todo completo, e por isso deve ser o princípio e o sujeito de
que derivam e a quem se atribuem todas as propriedades e
operações. Ora, a Humanidade do Verbo, embora seja uma substância
singular e completa, enquanto se distingue de todas as outras e
possui todos os elementos específicos, não tem subsistência
própria, isto é, não subsiste em si, pelo ser próprio, mas
subsiste pelo ser e no ser do Verbo divino, que se dignou assumi-
la e uni-la a si mesmo e a quem por isso pertence e se atribuem
todas as propriedades e operações dela. Logo a Humanidade do Verbo
não é pessoa. Diz o Aquinate:
A hipóstase significa uma substância particular, não
de qualquer modo, mas enquanto existente no seu
complemento. [...] E semelhantemente, a natureza
humana em Cristo, embora seja uma substância
particular, como porém entra na união de um ser
completo, isto é, de Cristo na sua totalidade,
enquanto Deus e homem, não pode chamar-se hipóstase ou
suposto; mas é esse ser completo, para o qual
concorre, que se chama hipóstase ou suposto.
85
À
Personas. Madrid; Palabra, 1988, p. 67-166; PATFOORT. O Mistério do Deus
vivo. Rio: Lumen Christi, 1983, p. 154-162.
82
Cf. Idem. Ibidem. I, 39, 5, ad 1
um
, p. 353.
83
Idem. Ibidem. I, q. 29, a. 4, p. 283ss; q. 30, a. 2, p. 287ss.
84
Idem. Ibidem. I, q. 29, a. 3, ad 3
um
, p. 282 e 4
um
, p. 282.
85
Idem. Ibidem. III, 2, 3, ad 2um, p. 3503: “Ad secundum dicendum quod
hypostasis significat substantiam particularem non quocumque modo, sed
prout est in suo complemento. [...] Et similiter humana natura in
42
natureza assumida não lhe falta uma personalidade
própria, não por não lhe faltar nada do que exige a
perfeição da natureza humana, mas por lhe ser
acrescentada a união com a divina Pessoa, a qual é
superior à natureza humana.
86
Acima dizíamos que a pessoa é o mais alto grau dentre as
substâncias materiais. Pois bem, verificamos que tudo o que do
universo está contido na natureza deve participar da matéria e de
suas leis, estando sujeito a elas necessariamente.
87
Notemos, de antemão, que a união com a matéria não é
acidental aos seres naturais, mas lhes é conatural, necessária,
pela lei da essência mesma, da qual é parte constitutiva. Se é
parte, como acabamos de afirmar, então funde-se, naturalmente, com
outra parte, também constitutiva da respectiva essência, a forma.
88
Lima Vaz propõe magistralmente a densidade desta questão ao
afirmar que:
Na perspectiva da definição clássica, o grande
problema com o qual se defronta Sto. Tomás é o da
unidade do homem ou da relação da alma racional com o
corpo, que se apresenta como um dos temas mais
vivamente polêmicos da filosofia medieval.
89
Esta doutrina era postulada por Santo Tomás desde o
opúsculo Princípios da Natureza
90
[De Principiis Naturae]
91
(1252-
Christo, quamvis sit substantia particularis, quia tamen venit in
unionem cuiusdam completi, scilicet totius Christi prout est Deus et
homo, non potest dici hypostasis vel suppositum, sed illud completum ad
quod concurrit, dicitur esse hypostasis vel suppositum”.
86
Idem. Ibidem. III, 4, 2, ad 2um, p. 3533: “Ad secundum dicendum quod
naturae assumptae non deest propria personalitas propter defectum
alicuius quod ad perfectionem humanae naturae pertineat, sed propter
additionem alicuius quod est supra humanam naturam, quod est unio ad
divinam personam”.
87
Idem. Commentaria in octo libros Physicorum. I, lec. 1, 2. 3. In:
Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003: “[...] quaedam sunt quorum esse
dependet a materia, nec sine materia definiri possunt [...]”; “[...]
quae dependent a materia non solum secundum esse sed etiam secundum
rationem [...]”.
88
GALÁN GUTIÉRREZ. Op. Cit. p. 43: “La esencia del hombre, o sea su ser
personal, no se cifra en el alma por sola, como forma substancial, ni
menos por sola en la materia informada por el alma, y, en cuanto tal,
cuerpo, sino en la unión íntima y substancial de ambos elementos”.
89
LIMA VAZ. Antropologia Filosófica I. 1993, p. 69.
90
TOMÁS DE AQUINO. Princípios da Natureza. Trad. Ramiro D. B. de
Meneses. Porto: Porto Editora, 2001.
43
1256?), que não deixou de tratar mais pormenorizadamente dela no
segundo livro do Comentário da Física (1268-1269?) e da Metafísica
(1270-1271?), ou em outros termos, percorreu toda sua carreira
discente e docente. Certamente, o incremento dos textos do
Estagirita lhe deu lastro para um exame mais elaborado da questão.
O fato é que, podemos asseverar, de certo modo, o
princípio da união da matéria e forma, na pessoa, é todo singular,
pois das formas, de acordo com Davies, “Aquinas begins by
reminding us what anima means i. e. ‘that which makes living
things live’”, quer dizer, o corpo “it is alive because of a
principle of life which is not a body”.
92
E, ainda, a pessoa mesmo
estando submetida em grande parte às leis materiais as ultrapassa
em razão da especificidade da forma.
93
Esta especificidade é
salientada no “tratado antropológico” da Suma Teológica:
A alma comunica à matéria corpórea o ser no qual
subsiste; e, deste e da alma intelectiva, constitui-se
uma unidade, de modo que o ser de todo o composto é
também o da alma mesma; o que não se com as outras
formas não subsistentes. E, por isso, a alma humana
permanece no ser, destruído o corpo; não, porém, as
outras formas.
94
Destarte, essa prerrogativa permite à pessoa escapar da
corrupção inerente a toda forma imersa na matéria, pois é em
91
TORREL. Iniciação a Santo Tomás de Aquino. 1999, p. 57: “Sem ter o
mesmo sucesso, o De Principiis Naturae tem, também ele, uma difusão mais
do que honrosa para uma pequena obra de juventude [...]. [...] sua data
é incerta. Mandonnet defendia 1255, Roland-Gosselin julgava-o anterior
ao De Ente, seu editor leonino, H. Dondaine, pensa numa data ainda
anterior [...]”. (itálico do original)
92
DAVIES. The Thought of Thomas Aquinas. Oxford: Clarendon Press, 1993,
p. 212.
93
GALÁN GUTIÉRREZ. Op. Cit. p. 43s: “Claro que el alma puede existir
separada del cuerpo y ejercer las funciones espirituales superiores;
pero, en estado tal, falta al alma la plenitud personal, porque le falta
el ejercicio de aquellas funciones vitales que son posibles únicamente
cuando el alma está encarnada en el cuerpo. Separada del cuerpo, el alma
tiene una tendencia natural a unirse a él y a cumplirse en él.
94
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 76, 1, ad 5
um
, p. 650: “[...]
anima illud esse in quo ipsa subsistit, communicat materiae corporali,
ex qua et anima intellectiva fit unum, ita quod illud esse quod est
totius compositi, est etiam ipsius animae. Quod non accidit in aliis
formis, quae non sunt subsistentes. Et propter hoc anima humana remanet
in suo esse, destructo corpore, non autem aliae formae”. Idem. Suma
Contra os Gentios, 1990, IV, 81, p. 879ss.
44
virtude da eminente perfeição da alma e, igualmente, da distinção
do ser e da essência que ocorre o fenômeno de que uma parte
essencial da pessoa subsista em si
95
, o que o Estagirita não pôde
prever consoante sua filosofia pois, “ao afirmar a
corporeidade, reduzia o homem todo, corpo e alma, à condição
mortal”.
96
Mesmo assim a pessoa, como tal, não subsiste, mas
unicamente uma parte sua, a mais excelente. Esta leva consigo uma
“ausência” que se desfará na derradeira união com o corpo. E na
verdade, “o que, para o cristão, é um dado da a ressurreição
dos corpos — para Tomás acaba parecendo quase uma exigência lógica
da antropologia”.
97
Este último raciocínio o Angélico o deduz em conformidade
com a Tradição Cristã, mesmo que seus elementos tenham sido
tomados da tradição peripatética. Isto, entre outras coisas,
demonstra a brilhante síntese das correntes ou, no dizer de Lima
Vaz, “coordenadas
98
de que dispunha “a antropologia tomásica” sem
olvidar que “no ocidente, é mérito de Agostinho haver incorporado,
à doutrina cristã, a argumentação filosófica sobre a
espiritualidade e imortalidade da alma”.
99
Esta “dependência” marcante do Angélico para com o
pensamento do Santo Bispo de Hipona não foi pura, pois:
95
GALÁN GUTIÉRREZ. Op. Cit. p. 45: “[...] el fundamento de la
resurrección: ésta constituye una operación sobrenatural sólo en
atención a que no puede ocurrir en virtude del juego de las causas
naturales, sólo en consideración al principio eficiente que le lleva a
cabo; pero tiene, al mismo tiempo, un lado natural y es un fenómeno
natural, en atención a que lo natural del alma es estar unida al cuerpo
y no separada del”.
96
DE BONI. A Antropologia Cristã de Tomás de Aquino. In: Temas Tomistas
em Debates. 2003, p. 68. Aqui o Prof. Dr. DE BONI remete o leitor a
GILSON. L’esprit de la philosophie médiévale. 2a. ed. Paris: Vrin, 1978.
p. 183.
97
Idem. Ibidem. p. 105.
98
LIMA VAZ. Antropologia Filosófica I. 1993, p. 69: “[...] a concepção
clássica do homem como animal rationale; a concepção neoplatônica do
homem na hierarquia dos seres, como ser fronteiriço entre o espiritual e
o corporal; a concepção bíblica do homem como criatura, imagem e
semelhança de Deus”. (itálico do original).
99
DE BONI. A Antropologia Cristã de Tomás de Aquino. In: Temas Tomistas
em Debates. 2003, p. 69.
45
Os estudos sobre o homem haviam feito um longo
percurso, durante o qual a leitura agostiniana fora
sendo enriquecida com a tradução dos Padres gregos e,
a partir de fins do séc. XII, com a tradução de
Aristóteles e de seus comentadores árabes.
100
Da constituição metafísica do ser humano emanam os
horizontes intrínsecos de sua existência. Esses mesmos horizontes
são-lhe os âmbitos precisos do seu modo de existir no mundo, ou,
dito doutro modo, são os limites impostos pela sua mesma
constituição que, se demarcam seu existir, são fonte de seu atuar.
Nossa atenção se deterá, numas poucas linhas, a respeito desses
limites.
1.2.2. Limites Metafísicos da Pessoa
Longe de aprofundar qualquer, pretensa, separação, no
homem, dos elementos metafísicos constitutivos do ser humano, essa
distinção remete à solidariedade que entre a perfeição primeira
e a perfeição segunda, as quais marcam as relações que entre o
que precede e o que segue
101
, tomadas, não de pressupostos a
priori, mas da observação da realidade viva.
Os potentados têm por objetivo promover os homens ao
recebê-los da natureza em estado primeiro de perfeição até a
plenitude de sua perfeição segunda; informar-se sobre os
instrumentos de que a natureza os tem provido, assim como sobre a
100
Idem. Ibidem. p. 74. Nesse artigo, o autor discute, sem querer ser
exaustivo, nas duas primeiras partes o ponto de partida teórico usado
por Tomás ao debater o tema.
101
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 73, 1, c, p. 622: “Dupla é a
perfeição de uma coisa: a primeira e a segunda. A primeira torna
perfeitas as coisas, na sua substância; e essa perfeição é a forma do
todo, resultante da integridade das partes. Porém a perfeição segunda é
fim. E este ou é operação; é assim que o fim do citarista é tocar a
cítara; ou é algo a que se chega pela operação; assim, o fim do
edificador é a casa que edifica. Ora, como a forma é o princípio da
operação, a perfeição primeira é causa da segunda. [...]”; Idem. Ibidem.
III, 29, 2, c.: “(…) Ora, dupla pode ser a perfeição de uma coisa:
primária e secundária. A perfeição primária de uma coisa consiste na sua
forma, donde tira a sua espécie. A perfeição secundária consiste na sua
operação, pela qual de certo modo atinge o seu fim”; Idem. In Libri
Ethicorum, 1, 1, nº. 12. In: Corpus Thomisticum. 2003: “[...] Prima
46
condição e o modo de empregar esses instrumentos, pois o resultado
de seu governo deve ser assegurar seu bom rendimento, que a
natureza o faz no caso do homem um ser imperfeito, o que quer
dizer que o indivíduo que nasce está em estado de privação total
perante a sua perfeição segunda.
102
Significa, também, que as
pessoas humanas que caem sob a jurisdição do Estado
103
são sujeitos
imperfeitos.
Quando se trata da perfeição primeira da pessoa humana,
temos a faculdade de invocar a alta perfeição da alma, fazendo-a
extensiva a todas as riquezas da parte. Quando se trata da
perfeição segunda, a única de que se ocupam os saberes práticos,
não temos essa alternativa. Levanta-se a questão: Acaso não se
encontra a alma na necessidade de unir-se ao corpo precisamente
devido à sua incapacidade radical de consecução da perfeição
segunda? Se o corpo do que vimos é para a alma, dando-lhe
acesso ao sensível, serve-lhe de instrumento para a conquista de
sua perfeição.
Disso decorre que a pessoa humana, quando se trata de sua
perfeição adquirida, é por natureza um ser imperfeito. O elemento
principal de que resulta, isto é, a alma, está em estado de
autem perfectio se habet per modum formae. Secunda autem per modum
operationis. [...]”.
102
GALÁN GUTIÉRREZ. Op. Cit. p. 53: Por lo tanto, la persona no es un
ser ya hecho, sino algo que cada cual tiene que hacer por mismo, algo
que tiene que desplegarse y que cumplirse. Ser persona es un cometido a
realizar, un programa que llenar, una empresa en la que el hombre está
de continuo empeñado y que exige de él la sublimación espiritual de
todas sus maneras y modos de comportarse y de existir”.
103
Usaremos o termo moderno Estado (como nação) ou Comunidade
Política como que por uma “licença” tomada (de pressuposto) ao
Angélico, visto neste termo podermos traduzir o que dele entendemos e o
que queremos significar no pensamento do Santo. Sabemos da dificuldade
que isto representada, tanto porque Santo Tomás o desconhecia, quanto
porque sua compreensão não era, exatamente, a mesma nossa. Cf. FINNIS,
John. Aquinas, Moral, Political, and Legal Theory. Oxford: Oxford
University Press, 1998, p. 219: Civitas and synonymously communitas
politica or communitas civilis, in Aquinas, can usually be translated by
‘a state’, ‘state’, or ‘the state’, but never mean ‘the State’ as
government, organs of government, or subject of public law”; NASCIMENTO,
Carlos A. R. do. O Comentário de Tomás de Aquino à “Política” de
Aristóteles e os inícios do uso do termo Estado para designar a forma do
poder Político. VERITAS. Porto Alegre, v. 38, nº. 150, p. 243-252, jun.
1993; MARTINEZ LORCA, Andrés. El concepto de “civitas en la teoria
política de Tomás de Aquino. VERITAS. Porto Alegre, v. 38, nº. 150, p.
253-261, jun. 1993.
47
privação total a respeito do que lhe aperfeiçoa, e seu elemento
secundário, o corpo, não faz senão colocar todas as suas potências
à sua disposição.
104
Longe de o Doutor Comum postular um “uso”, simplesmente,
instrumental
105
do corpo pela alma, como uma janela que abrisse a
ela o mundo sensível, sua influência, ao contrário, é mais
profunda, tão profunda que toda “economia” da atividade psíquica
do indivíduo humano se essencialmente afetada. É de outra
espécie para não dizer outra coisa em relação aos espíritos
puros.
106
Efetivamente, como é o todo — o suposto quem atua com a
mediação da natureza, e como por outra parte deve haver harmonia
preestabelecida entre o objeto próprio de uma natureza e sua
condição, disso deriva que todo o dinamismo sensível e espiritual
do homem recebe sua especificação do mundo material.
107
E isto o
Angélico o percebeu muito bem: nossas idéias se diferenciam
especificamente das idéias dos espíritos puros, precisamente
porque estão feitas sob a medida do sensível, estão regidas em sua
estrutura íntima pelas representações sensíveis de onde provêm e a
respeito das quais conserva uma proporção intrínseca.
108
Por
104
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980. I, 84, 3, sc, p. 743: “O
Filósofo, falando do intelecto, diz no livro III da alma que ‘ele é como
uma tábula em que nada está escrito’”; ARISTÓTELES. Da Alma (De Anima).
III, 430a1. Lisboa: Edições 70, 2001.: “Aquilo que o intelecto pensa
deve nele encontrar-se incluído, tal como as cartas contidas numa
tabuinha: nela coisa alguma pode encontrar-se inscrita enquanto
enteléquia; ora é precisamente isto aquilo que sucede com o intelecto.
[...]”. (itálico do original)
105
Este termo analogicamente é que pode ser empregado e o é por Santo
Tomás (Cf.: Suma Teológica. 1980, III, 8, 2, c, p. 3577: “O corpo humano
se ordena naturalmente à alma racional, dele a forma própria e o motor.
E enquanto sua forma, dela recebe ele a vida e as outras propriedades
convenientes ao corpo humano segundo a sua espécie. E enquanto a alma é
o motor do corpo, este lhe serve a ela instrumentalmente”.)
106
Idem. De Anima. 7, ad 1
um
. In: Idem. Corpus Thomisticum. 2003.: “[...]
Species autem intelligibiles quibus animae intelligunt sunt a
phantasmatibus abstractae; et ita non sunt eiusdem rationis cum
speciebus intelligibilibus quibus Angeli intelligunt [...]”.
107
Para ilustração do que afirmamos no pensamento do Aquinate, ver Suma
Teológica. 1980, III, q. 9-12, onde ele, ao comparar os diversos saberes
de Cristo, assinala — de um modo singular julgamos — esta distinção.
108
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 84, 7, c, p. 753: “[...] E,
a razão disto, é que a potência cognoscitiva é proporcionada ao
cognoscível. [...] Porém o intelecto humano, unido ao corpo, tem como
objeto próprio a qüididade ou natureza existente na matéria corpórea; e,
por tais naturezas, do conhecimento das coisas visíveis ascende a um
certo conhecimento das invisíveis. [...]”.
48
conseguinte, a influência do corpo sobre nosso comportamento
mental não é irrelevante, senão verdadeiramente “instrumental”. As
coisas têm que se insinuar a um organismo que, com suas
qualidades, sua modalidade particular, sua constituição própria,
filtra e condiciona essas coisas, exerce sobre elas uma certa
causalidade. Uma causalidade instrumental não pode ser exercida
sem que produza uma certa modificação do influxo causal com
repercussão no efeito.
109
Tudo isso nos pode parecer, à primeira vista, bastante
estranho, bem como a Santo Tomás. Contudo se verá sua utilidade se
se considerar que a idéia que nosso frade tem da política depende
da que tem, primeiro, da vida, e que esta — não é demais dizê-lo —
é conseqüência da concepção que ele tem do homem. Pensamos ser
muito difícil compreender a dependência da pessoa humana a
respeito das instituições políticas e sociais, sem, em lugar de
começar pelo exame das condições da “indigência” em que a natureza
a dispôs, se adotar como postulado a priori que possui
suficientemente os meios em ato para elevar-se ao grau de
perfeição previsto pela natureza.
110
Não fosse assim, julgaríamos
mais coerente abandonarmos os trilhos tomistas e encetarmos nossos
esforços nos pensadores que postulam o homem “bom” e “perfeito
por natureza.
109
Idem. Ibidem. I, 85, 1, ad 4
um
, p. 759: “Os fantasmas são iluminados
pelo intelecto agente; e, depois, por virtude desse mesmo intelecto, as
espécies inteligíveis são abstraídas deles. São, pois, iluminados,
porque, assim como a parte sensitiva, pela união com a intelectiva,
torna-se de maior virtude, assim os fantasmas, por virtude do intelecto
agente, tornam-se aptos para que sejam abstraídas as intenções
inteligíveis. E, depois, o intelecto agente abstrai, dos fantasmas, as
espécies inteligíveis, enquanto, por virtude desse mesmo intelecto,
podemos fazer entrar, em a nossa consideração, as naturezas das
espécies, sem as condições individuais, pelas semelhanças das quais é
informado o intelecto possível”.
110
GALÁN GUTIÉRREZ. Op. Cit. p. 57: “[...] aunque la comunidad humana
tenga ontologicamente como presupuesto la personalidad individual, no
por eso la convivencia o coexistencia deja de representar algo tan
esencial al ser del hombre como la personalidad misma. El hombre ha de
vivir, pues, siempre, inserto en una comunidad, porque éste es el modo
indeclinablemente suyo de ser y de existir. Pero como también es un modo
indeclinablemente suyo de ser y de existir el ser personal, resulta que
el hombre sólo puede ser enquadrado en la comunidad a condición de que
siempre quede a salvo i intangible su dignidad personal y lo que ella
significa”.
49
A fim de poder exercer suas funções de intelecto, a alma
humana, dissemos, une-se ao corpo. E esta união, ainda que não
tenha por efeito imediato tirá-la de seu estado de privação total,
comporta vantagens preciosas. Ao ser resultado de uma estrutura
complexa, põe, por este mesmo fato, à disposição da pessoa humana,
um número e uma variedade de funções entre as quais esta, em
todo o cosmos, se beneficia.
111
Santo Tomás também nisto uma
conseqüência de sua imperfeição.
112
Não é necessário, aqui
113
, determinar se se trata, em
concreto, da felicidade sobrenatural ou terrena, porém o argumento
tem duplo uso. O homem, por sua imperfeição, chegará a
compartilhar a sorte dos espíritos se tem a seu serviço uma
multidão ordenada de possibilidades.
O homem se na necessidade de tomar da natureza o
conteúdo das regras fundamentais de sua atividade moral e de
deixar-se guiar por elas como por um pedagogo em perseguição de
sua perfeição segunda. Além disso, a debilidade humana seria
relativa e suas dificuldades comodamente superáveis, se estas
regras estivessem traçadas em fórmulas distintas e completas.
Todavia, assinala o Aquinate, a natureza tem determinado que os
primeiros passos da nossa vida mental se dêem na obscuridade e na
confusão, no vago e no universal:
111
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 77, 2, c, p. 672: “É
necessário admitirem-se várias potências ativas na alma [...]. Estando,
porém, [o homem] no último grau dos seres que, por natureza, são capazes
da beatitude, necessita a alma humana de muitas e diversas operações e
virtudes. [...] Mas ainda outra razão por que a alma humana abunda em
diversidade de potências, a saber, por estar nos confins das criaturas
espirituais e corporais; e por isso, nela concorrem as virtudes de umas
e de outras”; Idem. In libri De anima 1, 14, nº. 10. In: Corpus
Thomisticum. 2003: “[...] Quia vero anima rationalis, quanto nobilior et
perfectior est, tanto exigit maiorem diversitatem organorum [...]”.
112
Idem. Ibidem. I, 77, 2, c, p. 673: “[...] o homem pode conseguir a
bondade universal e perfeita, porque pode alcançar a beatitude. Estando,
porém, no último grau dos seres, que, por natureza, são capazes da
beatitude, necessita a alma humana de muitas e diversas operações e
virtudes. [...]”.
113
Pois o faremos mais tarde. Porém é oportuno lembrar a pontual e
apropriada observação feita por Sangalli [O Fim Último do Homem. Porto
Alegre: Edipucrs, 1998, p. 48], segundo o qual “o equivalente
escolástico deste termo aristotélico [] é duplo, ou seja, o
50
Duas coisas devem-se considerar no conhecimento do
nosso intelecto. A primeira é que o conhecimento
intelectivo tem o seu princípio, de certo modo, no
sensitivo. E como o sentido conhece o singular e o
intelecto, o universal, forçoso é que o conhecimento
do singular seja, quanto a nós, anterior ao do
universal. A segunda consideração é que o nosso
intelecto procede da potência para o ato. [...] O ato
incompleto, porém, é a ciência imperfeita, pela qual
as coisas são conhecidas indistintamente, com certa
confusão; e o que é assim conhecido sob certo aspecto
o é em ato e, de certo modo, em potência. Por onde,
diz o Filósofo: o mais confuso é o que, primariamente,
nos é manifesto e certo; depois, é que conhecemos os
princípios e os elementos distintos. Ora, é claro que
conhecer uma coisa na qual várias outras se contêm,
sem ter conhecimento próprio de cada uma das coisas
naquela contidas, é conhecê-las com certa confusão.
114
Por sermos compostos de alma e corpo, estamos sujeitos ao
procedimento abstrativo. É possível imaginar, facilmente, quantos
inconvenientes engendra semelhante condição. Ao abstrairmo-nos,
forçosamente, deparamo-nos com inúmeras noções. Seguidamente, para
determos em cada uma dessas noções, para ordená-las e perceber sua
relação, na maioria das vezes, que raciocinar firmemente, às
vezes, até o esgotamento. E se, ao menos, fôssemos dotados pela
natureza da arte de raciocinar, seríamos mais bem afortunados.
Mas, ainda, temos que aprender isto.
115
termo laico felicitas (intramundano) e, o mais usado, o termo cristão
beatitudo (ultramundano) [...]”. (itálico do original).
114
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 85, 3, c, p. 763: “[...] in
cognitione nostri intellectus duo oportet considerare. Primo quidem,
quod cognitio intellectiva aliquo modo a sensitiva primordium sumit. Et
quia sensus est singularium, intellectus autem universalium; necesse est
quod cognitio singularium, quoad nos, prior sit quam universalium
cognitio. Secundo oportet considerare quod intellectus noster de
potentia in actum procedit. [...] Actus autem incompletus est scientia
imperfecta, per quam sciuntur res indistincte sub quadam confusione,
quod enim sic cognoscitur, secundum quid cognoscitur in actu, et
quodammodo in potentia. Unde philosophus dicit, in I Physic., quod sunt
primo nobis manifesta et certa confusa magis; posterius autem
cognoscimus distinguendo distincte principia et elementa. Manifestum est
autem quod cognoscere aliquid in quo plura continentur, sine hoc quod
habeatur propria notitia uniuscuiusque eorum quae continentur in illo,
est cognoscere aliquid sub confusione quadam”. Idem. In Physic., 1, 1
nº. 7. In: Corpus Thomisticum. 2003.
115
Idem. Ibidem. I, 117, 1, c, p. 1004: “[...] Pois, é ínsito em cada
homem um certo princípio ciência, a saber, a luz do intelecto agente,
pelo qual conhece, logo, inicial e naturalmente, certos princípios
universais de todas as coisas. Por onde, quando alguém aplica esses
princípios universais a casos particulares, dos quais o sentido lhes
51
Também em relação às nossas ações, não estamos mais bem-
providos. Alguém que possuísse o uso instantâneo da eleição se
pareceria de longe conosco.
116
Seria propriamente um anjo. Para
alcançar o cumprimento de uma ação digna de nosso caráter
racional, devemos prestar-nos a uma série de passos e de
precauções para os quais a natureza não nos tem preparado, mais
imediatamente, do que para o raciocínio especulativo. Se alguma
diferença, é para deixar-nos mais e mais impotentes. Ao
desenvolver-se em meio ao sensível, a ação depende, em parte, do
sensível e está condenada a experimentar todas as pressões
inimagináveis do corpo, que não tem sempre por resultado fazê-las
menos complicadas e menos difíceis.
117
Parece-nos, ao contrário,
não ser nem de um nem de outro a opinião de que a imperfeição
física do homem seja a responsável pelo fato social.
É o âmbito da ordem prática na qual a pessoa exerce as
tarefas mais significativas de seu ser-no-mundo, que se determina
e determina o meio ao derredor.
118
Por ser imperiosa, essa lei
119
ministra a memória e a experiência, adquire, por invenção própria, a
ciência do que ignorava, partindo do conhecido para o desconhecido”.
116
Idem. Ibidem. I-II, 14, 1, c, p. 1131: “[...] Ora, relativamente ao
que se deve fazer muita incerteza porque os atos versam sobre os
singulares contingentes, pela sua variabilidade incertos. Ora, nas
coisas duvidosas e incertas, a razão não profere o juízo sem uma
inquirição precedente. Logo, é necessária a inquirição da razão antes do
juízo relativo ao que se deve escolher. [...]”.
117
Finnis (Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. Oxford: Oxford
University Press, 1998, p. 63) nos oferece uma ilustração trivial mas
valiosa: “Here is a group of eight students, occupying a corridor of
eight rooms and a small kitchen in the college hostel. They are deciding
whether or not to establish for themselves, by agreement, a curfew on
cooking conversation after 9:00 p. m. The walls are thin, the doors even
thinner, voices and kitchen noises travel, some of the students find it
hard to study at nights with these distractions. But they enjoy company,
and like relaxed night-time talking; and some of them get back late from
libraries and would prefer to cook late. From time to time, most of them
get really interested in the work, and want to read late and do the
note-taking that brings comprehension. More constantly, they want to
succeed in examinations, to get employment and the buntle of benefits
loosely envisaged and named ‘a future’. They see the point of getting
along together, and understand how in this debate that cuts both ways.
As an individual student in this situation, what are the elements in
one’s deliberating and choosing? ”.
118
GALÁN GUTIÉRREZ. Op. Cit. p. 56: “A pesar de que el hombre es como
persona un ser para sí, un autofín, sólo subordinado a Dios y
supraordinado a todo lo demás, en ningún aspecto ni momento de su vida
hace dejación de su vocación de comunidad ni puede producirse al margen
de ella. Hombre y comunidad están vinculados esencialmente”.
52
faz-se mister aportar, do pensamento do Angélico, os passos em que
ela se efetiva. Então tomamos a sua consideração como nossa
próxima tarefa.
1.2.3. A Pessoa e a ordem Prática
Se, conforme afirma González, “la razón humana no tiene
solo un uso especulativo, sino también un uso práctico: no se
orienta solo a la verdad simpliciter, sino también a la operación
producción o acción en el sentido de dirigirla”
120
, e ainda
Gilson “[...] the soul is not only capable of knowing; it is also
capable of desiring […]
121
, então não há, no ser humano, oposição
entre o especulativo e o prático. Nele, especulação e ação
prestam-se apoio mútuo e recíproco, pressupõem-se e condicionam-se
mutuamente, dão lugar a um fenômeno de autoridade recíproca, mesmo
em planos diversos. Mediante suas intuições primitivas, o
pensamento abre perspectivas ao indivíduo, dirige a ação e lhe
serve de fundamento. No plano existencial, a ação lhe prepara o
terreno à especulação, assegurando o estabelecimento das condições
que lhe permitem o exercício e o desenvolvimento.
De fato ambos o especulativo e o prático tendem, no
fundo, à mesma aspiração. O primeiro se esforça para que o
pensamento esteja na posse serena das verdades que lhe permitam a
ascensão ao conhecimento de si e do mundo; satisfaz,
imperfeitamente, é certo, porém, efetivamente, sua necessidade de
infinito; o segundo impulsiona a vontade a uma retidão benéfica;
pretende a redefinição do temporal e do efêmero; mantém o
necessário no contingente e o absoluto no relativo. Porém, se
forem submetidos a uma observação mais escrupulosa e estrita, sua
semelhança desaparece. Percebemos que entre eles considerando
119
Idem. Ibidem. p. 57: “Tan esencial es al hombre el ser para sí, la
mismidad, propria de su ser personal, como el ser con otros y para
otros, es decir, la coexistencia con otros. Desde luego, la
coexistencia, la comunidad, tiene su presuposto ontológico en las
existencias individuales y personales”.
120
GONZÁLEZ. Op. cit. p. 245.
121
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 236.
53
a liberdade ruptura completa, distinção radical, e que a pessoa
deve estar organizada de forma diversa para afrontar as exigências
de um e de outro. Por conseguinte, percebemos ainda que
irredutibilidade entre as definições especulativa e prática do
homem, pois uma consigna as leis de seu ser — abstrato ou concreto
e a outra revela as condições existenciais em que se encontra e
os meios de que está provido para a consecução imperiosa dos seus
fins. É o que concluímos das palavras de Gilson, segundo o qual
“through its essence, the intellect's function is to apprehend
being and truth taken in its universality. The will is, in its
essence, the appetite for Good in general”.
122
O Angélico assevera como conclusão do exposto que “a
virtude cognoscitiva não move senão mediante a apetitiva”.
123
Ou em
outros termos, está dizendo que o aspecto do homem que concerne
aos saberes práticos é o que representa sua vontade, seu apetite
próprio. E, pelo fato de ter uma vontade, ser sensível à atração
do bem e se deixar introduzir nas vias da ação, a pessoa humana é
uma realidade prática. O uso verdadeiro das atividades voluntárias
é, sem dúvida, o que se encontra completo conforme o conjunto das
realidades exteriores, porém é sobretudo o que convém ao homem, o
que concorda com as condições e com as leis de sua natureza de
agente livre, o que tem como efeito acercá-lo sem cessar do bem
ansiado por sua inclinação transcendente.
Por oposição ao especulativo, o prático, pois, refere-se
ao atuar, e como este procede de uma vontade que é faculdade de
uma pessoa, deriva imediatamente tanto da vontade como da pessoa.
Esta é o sujeito da vontade da qual procede o atuar, o que
equivale a afirmar que está dotada de uma inclinação que possui,
por sua vez, as propriedades do apetite natural e do apetite
elícito.
Na concepção tomasiana, a vontade é antes de tudo uma
natureza.
124
Mas com isso não se pretende designar uma formalidade
separada, porém se quer ressaltar que
122
Idem. Ibidem, p. 243.
123
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 20, 1, ad 1
um
, p. 210.
124
Idem. Ibidem. I, 80, 1, ad 3um, p. 717: “Cada potência da alma é uma
forma ou natureza, com inclinação natural para alguma coisa.”
54
A vontade é uma divisão que se opõe à natureza, do
mesmo modo que uma causa se divide de outra, por
oposição; pois, certas coisas se fazem natural e
outras, voluntariamente. porém outra maneira de
causar própria à vontade, senhora dos seus atos, além
do modo próprio à natureza, que é determinada a um
termo.
125
O que quer dizer que a natureza é ínsita no ser de nossa
vontade como uma causa, uma causa que atua sem cessar, uma causa
que se afirma em nossas eleições mais arbitrárias, uma causa cuja
influência se prolonga até os últimos desenvolvimentos de nossa
atividade deliberada, ou seja, esta causalidade da natureza na
vontade é fundamental, determinante. Nossas iniciativas reflexas
dela dependem. Alimenta toda a vida espiritual e afetiva e lhe
impõe seus traços fundamentais.
126
Disso, ponderamos que por derivação de sentido o
termo apetite deriva da vontade como sua inclinação natural,
porque: “The distinction, then, between sensuality and will is
made first on the grounds that the one is determined in its
inclinations while the other determinates itself. This supposes
two powers of different order.”
127
Quer dizer, produziu-se por um vínculo interior. A
tendência implicada nas formas da natureza imita verdadeiramente o
apetite, reproduz de longe o instinto dos animais. Quanto ao
apetite em sentido primitivo, representa um caso de analogia
própria. Por conseguinte, seria fazer uma idéia por demais, e
exclusivamente, metafísica, estática, formal, concebê-la como uma
125
Idem. Ibidem. I-II, 10, 1, ad 1
um
, p. 1109: “[...] voluntas dividitur
contra naturam, sicut una causa contra aliam, quaedam enim fiunt
naturaliter, et quaedam fiunt voluntarie. Est autem alius modus causandi
proprius voluntati, quae est domina sui actus, praeter modum qui
convenit naturae, quae est determinata ad unum”. Idem. De Malo, 16, 4,
ad 5
um
. In: Corpus Thomisticum. 2003: “[...] quia semper actio naturalis
praesupponitur aliis actionibus. [...]”.
126
Idem. Ibidem. I, 60, 2, c, p. 525: “[...] E dessa vontade natural
resultam todas as demais vontades, porque o homem quer, por causa de um
fim, tudo o que quer. Portanto, a dileção do bem, que o homem
naturalmente quer como fim, é uma dileção natural; porém, a dileção do
bem, amado por causa do fim, é derivada da primeira e é a dileção
eletiva”; Idem. De Veritate. 22, 5, c. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003.
127
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 238.
55
proporção, uma relação implicada em uma pré-formação. É suficiente
considerá-la do ponto de vista psicológico e moral para que
apareça melhor como uma afinidade, uma conaturalidade.
128
E vale
ainda ressaltar que o que distingue, em geral, as inclinações
afetivas das faculdades cognitivas é que, dado que são princípios
de um fieri concreto, tendem até o bem tal como o bem se apresenta
em suas condições existenciais.
129
Não é o sujeito quem, mediante uma misteriosa chamada,
convoca em seu interior os objetos, mas são estes que, por efeito
de sua conveniência, o inclinam e o atraem.
130
O movimento do
apetite, ainda que surgido no interior da alma, tem no bem
existente exterior, concreto não somente seu princípio, mas
igualmente seu termo imediato. As coisas boas, as realizações
efetivas, são o que lhe satisfazem e aquietam, não a idéia do bem.
Quais são, portanto, essas coisas boas que são o objeto
dessas iniciativas espontâneas? O Frade Alventino, ao longo de
seus estudos, faz um inventário sobre o ato inicial da vontade,
chamado volição. Diz-nos que o que a vontade quer por volição
natural é o bonum in communi:
[...] o princípio, relativamente ao que convém ao ser,
sempre seja natural. [...] E também de modo
semelhante, é forçoso que o princípio dos movimentos
voluntários seja algo de naturalmente querido. Ora,
128
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 26, 1, c, p. 1222: “[...]
Outra espécie de apetite porém conseqüente à apreensão do apetente,
mas necessária e não livremente, tal é o apetite sensitivo, dos brutos,
que contudo nos homens participa algo da liberdade, enquanto obedece à
razão. Enfim, outro apetite que acompanha a apreensão do apetente,
conforme um juízo livre, e é o racional ou intelectivo chamado vontade”;
I-II, 29, 1, c. (itálico do original).
129
Idem. Ibidem. I, 16, 1, c, p. 165: “Assim como o bem designa o termo
para o qual tende o apetite, assim, a verdade, o termo para o qual tende
o intelecto. Ora, a diferença entre o apetite e o intelecto, ou qualquer
conhecimento, está em que o conhecimento supõe o objeto conhecido, no
conhecente, ao passo que o apetite supõe que o apetente se inclina para
a coisa mesma apetecida. E, assim, o termo do apetite, que é o bem, está
na coisa apetecível, enquanto o termo do conhecimento, que é a verdade,
está no próprio intelecto”.
130
Idem. De Veritate, 22, 12, c. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“[...] movere per modum causae agentis est voluntatis, et non
intellectus: eo quod voluntas comparatur ad res secundum quod in seipsis
sunt; intellectus autem comparatur ad res secundum quod sunt per modum
spiritualem in anima. Agere autem et moveri convenit rebus secundum esse
proprium quo in seipsis subsistunt [...]”.
56
isto é o bem em comum, para o qual a vontade
naturalmente tende, como qualquer potência tende para
seu objeto [...].
131
Nas palavras do Doutor Angélico, a vontade é uma certa
inclinação da razão
132
, que adota o modo dela e que “vive” de sua
“vida”. Assim, é suscetível de uma variedade indefinida de
formulações análogas a “criações”, e seus instintos naturais e
irreprimíveis, como a sociabilidade, podem dar-se de muitos modos:
[...] o anjo e o homem naturalmente se amam a si
mesmos. Ora, o que com outro ser se unifica com este
se identifica e, por isso, cada ser ama o que consigo
se unifica. E se o for por união natural, ama-lo-á por
dileção natural; se por união não-natural, ama-lo-á
por dileção não-natural. Assim, o homem ama o seu
concidadão por dileção da virtude política; o
consangüíneo, porém, por dileção natural, pois se
unifica com ele pelo princípio da geração natural.
133
Podemos prosseguir assentindo que a razão é um intérprete
eminentemente consciente de todas as forças que se expressam em
nós. Dispensa dizer que a inclinação que se lhe segue, busca nela
um objeto às suas aspirações, possui forçosamente, também ela, o
controle de todas as tendências inferiores e superiores que se
131
Idem. Suma Teológica. 1980, I-II, 10, 1, c, p. 1108: “[...] principium
in his quae conveniunt rei, sit naturale. [...] Similiter etiam
principium motuum voluntariorum oportet esse aliquid naturaliter
volitum. Hoc autem est bonum in communi, in quod voluntas naturaliter
tendit, sicut etiam quaelibet potentia in suum obiectum [...]”.
132
Idem. Ibidem. I, 87, 4, c, p. 786: “[...] o ato da vontade não é senão
uma certa inclinação conseqüente à forma inteligida; assim como o
apetite natural é a inclinação conseqüente à forma natural. Ora, a
inclinação está, a seu modo, na causa à qual pertença. Por onde, a
inclinação natural está naturalmente na coisa natural; a do apetite
sensível está, sensivelmente, no ser que sente; e semelhantemente a
inteligível, que é ato da vontade, está, inteligivelmente, no ser que
intelige, como no primeiro princípio e no sujeito próprio. Por isso, o
Filósofo usa a locução: ‘a vontade está na razão’”.
133
Idem. Ibidem. I, 60, 4, c, p. 527: “[...] Angelus et homo naturaliter
seipsum diligit. Illud autem quod est unum cum aliquo, est ipsummet,
unde unumquodque diligit id quod est unum sibi. Et si quidem sit unum
sibi unione naturali, diligit illud dilectione naturali, si vero sit
unum secum unione non naturali, diligit ipsum dilectione non naturali.
Sicut homo diligit civem suum dilectione politicae virtutis;
consanguineum autem suum dilectione naturali, inquantum est unum cum eo
in principio generationis naturalis. [...]”.Idem. Ibidem. 5, c, p. 530:
“[...] e se o homem fosse parte natural de tal cidade [civitatis]
natural lhe seria essa inclinação”.
57
agitam em nosso ser, e, portanto, a vontade vale pela totalidade
de nosso ser; é o motor supremo do vivente:
Pois, com a vontade apetecemos não o que pertence a
tal potência, mas ainda o que pertence a cada uma das
outras potências e ao homem total. Por onde, o homem
quer naturalmente, não o objeto da vontade, mas
também tudo o que convém às outras faculdades. Assim,
o conhecimento da verdade, conveniente ao intelecto; o
existir, o viver e coisas semelhantes, que respeitam à
consistência natural; o que tudo compreende no objeto
da vontade, como determinados bens particulares.
134
A vontade é levada, por sua sujeição essencial à razão,
do plano do determinismo e do implícito ao da formulação livre e
adaptada. Esta condição lhe permite manifestar em suas atividades
uma feliz combinação de “conformismo” e novidade, sem que, por
isto, comprometa sua interioridade ou sua espontaneidade. E quando
o sujeito, mediante o conhecimento, faz imanentes não o fim,
mas também sua noção mesma, quando se lança com uma consciência
clara de suas exigências, então sua ação procede de uma
interioridade verdadeiramente perfeita.
135
Entre os princípios que presidem a elaboração de nosso
atuar, somos conduzidos pela lógica de nosso discurso a
incluir a razão. Há, segundo isso, duas causas do atuar,
136
a
134
Idem. Ibidem. I-II, 10, 1, c, p. 1109: “Non enim per voluntatem
appetimus solum ea quae pertinent ad potentiam voluntatis; sed etiam ea
quae pertinent ad singulas potentias, et ad totum hominem. Unde
naturaliter homo vult non solum obiectum voluntatis, sed etiam alia quae
conveniunt aliis potentiis, ut cognitionem veri, quae convenit
intellectui; et esse et vivere et alia huiusmodi, quae respiciunt
consistentiam naturalem; quae omnia comprehenduntur sub obiecto
voluntatis, sicut quadam particularia bona”.
135
Idem. Ibidem. I-II, 6, 1, c, p. 1081: “[...] E como todo agente ou ser
movido age ou é movido para um fim, são perfeitamente movidos por um
princípio intrínseco ou seres em que um princípio intrínseco, não
de serem movidos, mas de serem movidos para um fim. [...]”.
136
FINNIS. Op. Cit. p. 65: ‘Reason’ and ‘will’ are nouns, and reason
and will are spoken of as doing this and that. But they are not like
little persons or machines installed inside the acting person. They
are factors in the acting of the single, unitary agent, the acting
person (or group of persons). Aquinas makes an objector say that reason
can’t direct will to do anything because one’s will, not being one’s
understanding can’t understand directions. Aquinas then gives the
pertinent reply: I, the acting person, give myself directions, inasmuch
as I am intelligent and willing”. (itálico do original)
58
saber: a razão e a vontade.
137
E o que é mais, destas duas causas
do atuar a razão é a que ocupa a precedência.
138
É, inclusive, o
primeiro princípio propriamente humano, participando com os homens
o privilégio de perseguir um fim objetivo.
139
A concepção de uma razão operante, constitutiva dos seres
inteligentes, é comum, desde os mais antigos filósofos. Porém,
antes do Estagirita, a vontade de considerá-la como uma fonte de
atividade e de criação, distinta da natureza, não parece haver
sido manifestada explicitamente. Parece que teve que chegar até
ele para que se precisasse a oposição que existe entre estes dois
princípios de realização. Em sua Física contêm os primeiros
lampejos. Santo Tomás os sublinha com firmeza dizendo que:
[...] Haec autem est differentia inter agens per
intellectum et agens materiale, quia actio agentis
materialis proportionatur naturae agentis [...]. [...]
sed actio agentis per intellectum, non proportionatur
naturae ipsius, sed formae apprehensae [...].
140
A coisa conhecida é princípio de sua ação, ao mesmo
título que a forma nos agentes naturais. Nestes, a ação é
proporcionada à sua natureza, naquela, à forma conhecida. Em outra
parte, a antítese também se sustém. Os agentes naturais têm um
movimento único, invariável, enquanto os que atuam pela
137
Idem. Ibidem. I-II, 58, 3, c, p. 1451: “[...] Ora, os atos humanos têm
dois princípios: o intelecto, ou razão, e o apetite; estes são os
dois princípios motores no homem, como se disse [III De Anima, lect.
15]”.
138
Idem. Ibidem. I-II, 58, 2, c, p. 1450: “O princípio primeiro de todas
as obras humanas é a razão; e quaisquer outros princípios, que existam,
dessas obras, obedecem-lhe, de certo modo, mas de maneiras diversas.
[...]”.
139
Idem. Ibidem. I-II, 66, 1, c, p. 1507: “[...] a causa e a raiz do bem
humano é a razão. [...]”; Idem. Ibidem. 90, 1, c, p. 1732: “[...] Ora, a
regra e a medida dos atos humanos é razão, pois é deles o princípio
primeiro, como do sobredito resulta [q. 2, a. 1, ad 3
um
]. Porque é
próprio da razão ordenar para o fim, princípio do agir, segundo o
Filósofo [VIII Ethic. Lect. 8]”.
140
Idem. In Phys. VIII, lect. 21, n
o
. 10. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003.
59
inteligência são capazes de movimentos contrários, são ad
opposita,
141
mesmo que, no tocante à vontade:
A potência racional não busca quaisquer contrários,
mas os que se contêm no seu objeto conveniente;
pois nenhuma potência busca senão o objeto que lhe
convém. Ora, o objeto da vontade é o bem, e por isso
ela busca os contrários compreendidos no bem
[...].
142
E González, muito propriamente, acrescenta quanto a esta
passagem que:
Importa subrayarlo: la apertura ad opposita de las
potencias racionales no significa en modo alguno una
total indiferencia hacia un objeto u otro. Santo Tomás
lo dirá explícitamente en la Summa: las potencias
racionales no se orientan indiferentemente a
cualquiera de los contrários, sino que se ordenam per
primo o per se a aquellos que se contienen bajo su
objeto conveniente.
143
Por oportuno salientamos, agora, uma passagem da
Metafísica e seu respectivo comentário da pena do Angélico
144
em que se diz que os saberes especulativos consideram realidades
constituídas que levam em si mesmas o princípio de seu
movimento, enquanto nas disciplinas práticas não é assim. O
princípio destas se encontra no sujeito que atua, no artífice, em
seu intelecto, e seu objeto necessita ser elaborado e construído:
141
Idem. Ibidem, n
o
. 7.: “Agentia enim per intellectum, videntur se ad
opposita habere absque aliqua sui mutatione: unde videtur quod possint
movere et non movere, absque aliqua mutatione”.
142
Idem. Suma Teológica. 1980, I-II, 8, 1, ad 2
um
, p. 1097: “[...]
potentia rationalis non se habet ad quaelibet opposita prosequenda, sed
ad ea quae sub suo obiecto convenienti continentur, nam nulla potentia
prosequitur nisi suum conveniens obiectum. Obiectum autem voluntatis est
bonum. Unde ad illa opposita prosequenda se habet voluntas, quae sub
bono comprehenduntur [...]”.
143
GONZÁLEZ. Moral, Razón y Naturaleza. 1998, p. 179.
144
TOMAS DE AQUINO. In Metaphysic., 6, 1, nº. 10. in Corpus Thomisticum,
CD-ROM, 2003: “Quod autem scientia naturalis non sit factiva, patet;
quia principium scientiarum factivarum est in faciente, non in facto,
quod est artificiatum; sed principium motus rerum naturalium est in
ipsis rebus naturalibus. Hoc autem principium rerum artificialium, quod
est in faciente, est primo intellectus, qui primo artem adinvenit; et
secundo ars, quae est habitus intellectus; et tertio aliqua potentia
exequens, sicut potentia motiva, per quam artifex exequitur conceptionem
artis. Unde patet, quod scientia naturalis non est factiva”.
60
Pois bem, é evidente que a física o é ciência
prática nem produtiva: de fato, o princípio das
produções está naquele que produz, seja no intelecto,
na arte ou noutra faculdade; e o princípio das ações
práticas está no agente, isto é, na volição, enquanto
coincidem o objeto da ação prática e da volição.
Portanto, se todo conhecimento racional é prático, ou
produtivo, ou teorético, a física deverá ser
conhecimento teorético, mas conhecimento teorético
daquele gênero de ser que tem potência para mover-se e
da substância entendida segundo a forma, mas
principalmente considerada como inseparável da
matéria.
145
O Angélico chega a afirmar que, nelas, o intelecto é
princípio e possui uma atividade fabricadora e reguladora. As
obras produzidas extraem dele, em primeiro lugar, suas linhas
interiores, seu esqueleto espiritual. Também dele recebem
imediatamente o sopro imaterial e indivisível que, surgido das
“profundezas” do querer, lhes dá consistência e vida.
Vistos simpliciter e em si mesmos, nem o intelecto, nem a
ciência, nem a verdade, são práticos. O intelecto não é senão uma
faculdade de “percepção”, que tem por fim conhecer e “traduzirem
termos inteligíveis a realidade imanente ao universo. A ciência,
por sua vez, é a qualidade que o complementa a respeito de sua
função essencial. A verdade é a conformidade de suas
representações e de suas atividades às exigências do real: “Truth
is only the agreement between reason which judges and reality
which the judgment affirms”
146
, diz Gilson, de maneira que, de
certo modo, o prático é estranho e exterior a estas três idéias.
Provém de um dado extrínseco à sua ciência ou, porque o intelecto
não está só, pois o homem, em cuja alma ele radica, tem, também,
tendências afetivas que deve satisfazer ou, ao menos, se lhe clama
minimamente os cuidados. Se o intelecto só tivesse que se
aperfeiçoar a si mesmo, se tivesse que assegurar seu próprio
145
ARISTÓTELES. Metafísica. 2001, 6 (E), 1025b 20-25; REALE. In:
ARISTÓTELES. Metafísica. 2001, III: Sumário e Comentário, p. 305, nota
8.: “[...] Mas, na verdade (e justamente este é o ponto para o qual o
Estagirita quer chamar a atenção) existe entre a sica e as ciências
prático-teoréticas uma diferença radical: naquela, o princípio de
movimento está no objeto, nestas está no próprio sujeito. [...]”.
(itálico do original). Depois, Reale remete à passagem supracitada do
comentário de Santo Tomás ao respectivo texto da Metafísica.
146
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 231.
61
desenvolvimento, não teria que ser prático. Porém, como as
inclinações que assume iluminar são essencialmente realizadoras e
buscam necessariamente a realização de um bem, suas luzes são
forçosamente direções, e seus juízos são valores, porque trabalham
por conta da liberdade, cuja verdade é retidão, ajuste eficaz.
Nosso intelecto é prático, porque seu objeto, o verdadeiro, tem
ido alojar-se em uma inclinação cujo modo tendencial e realizador
deve assumir. Porém, dado que o intelecto humano forma parte de um
todo e ocupa nele o primeiro posto, deve ter a aptidão inata de
dirigir todas as faculdades do todo a que pertence, e, para isso,
ser naturalmente prático. Igualmente, o conjunto dos princípios
apropriados para ajudá-lo nesta função é da mesma natureza.
Indo um pouco mais adiante, diremos que, se bem que é
errôneo pretender que o querer livre seja a regra primeira no
plano das realizações práticas, temos que admitir que goza nele de
uma primazia de ordem material e eficiente. As energias motrizes
da vontade com o selo do verdadeiro, enquanto estas são, às vezes,
material a modelar e força propulsora, são marcadas pela razão.
Esta, pois, faz-se realizadora graças ao apetite. De modo que o
apetite é a causa própria do prático. Seus movimentos constituem o
material por ordenar segundo os requisitos do verdadeiro. A
particularidade da ordem prática é que seus materiais não são
realizados com anterioridade, mas proporcionados pela marcha mesma
do apetite. Através dela e mediante uma participação em sua força
de propulsão, a razão exerce seu ministério de regulação. Na
concepção do Angélico, a razão conserva sua prioridade reguladora
e formal, mas necessita ser inclinada desde o exterior, isto é,
“torna-se” prática em virtude de uma conjunção com o apetite:
“[...] a forma inteligível não designa um princípio de ação,
enquanto existe somente no ser inteligente, se não se lhe
acrescenta uma inclinação para o efeito, o que se realiza pela
vontade.”
147
147
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 14, 8, c, p. 145: “[...] Et
similiter forma intelligibilis non nominat principium actionis secundum
quod est tantum in intelligente, nisi adiungatur ei inclinatio ad
effectum, quae est per voluntatem”; Idem. Ibidem. ad 1
um
, p. 145; Idem.
Ibidem. 19, 4, ad 4
um
, p. 196: “De um mesmo efeito, ainda em nós, é causa
62
A razão prática e a vontade são os dois princípios
parciais e complementares dos quais procede o nosso atuar. A
primeira, ao assegurar às nossas obras sua determinação e sua
medida intrínsecas de onde provém seu próprio valor —, goza de
uma primazia absoluta; a segunda, ao contribuir com suas energias
motrizes, possui, também ela uma primazia, porém relativa somente
à ordem da matéria e da execução. Não obstante, resulta fácil
conceber que estes dois princípios, ainda que unidos um ao
outro, por uma subordinação essencial, necessitam encontrar em um
objeto comum, uma razão de ser de sua conjunção adventícia. A
estrutura da obra por realizar é determinante a respeito da
atitude do sujeito. E, aqui, o objeto comum não pode ser outro
senão que o dado que domina como um gênero supremo toda a ordem do
atuar, a saber: o bem ou fim.
148
Para que duas faculdades diversas
se solidarizem de maneira que só formem uma causa e só produzam um
efeito, é necessário que seus movimentos obedeçam a uma mesma
força, de cuja influência unificadora participem ambas, cada uma
segundo seu modo. O objeto próprio do apetite tem que se revestir
de algo verdadeiro e passar a ser o da razão. A razão, pois, “faz-
se” prática, efetivamente, mediante uma inclusão do aspecto de bem
em seu objeto próprio. De seu contato vital com o concreto, advém
um conteúdo que tem o poder de pôr em marcha a vontade, e esta, ao
reagir, mobiliza por sua vez aquela e a faz entrar no processo da
deliberação e da execução.
149
Podemos, pois, extrair da reflexão precedente duas
conclusões particularmente importantes a respeito do fim que
perseguimos. A primeira é que o imutável de que temos falado antes
a ciência, como dirigente, pois ela é a que concebe a forma da obra; e a
vontade, como imperante; pois a forma, enquanto existente no intelecto,
não é determinada, senão pela vontade, a existir ou não no efeito. Por
isso, o intelecto especulativo em nada se ocupa com a operação”; Idem.
Ibidem. 19, 11, ad 1
um
, p. 207: “A ciência não é causa do que fazemos,
senão pela vontade; pois, não fazemos o que sabemos, sem querermos”;
Idem. Ibidem. 20, 1, ad 1
um
, p. 210: “A virtude cognoscitiva não move
senão mediante a apetitiva”.
148
Idem. In De Anima 3, 15 n
o
. 7. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“(…) Et hoc rationabile est, quod haec duo moventia reducantur in unum,
quod est appetibile [...]”.
149
Cf. Idem. Ibidem. 14-16. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003; Idem.
In Ethica 6, 2. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003.
63
e em que o sujeito necessita apoiar-se para mover-se com
liberdade, é em primeiro lugar objeto da razão. Mediante esta
faculdade, ficamos fixados primeiramente ao móvel supremo da vida.
E como este móvel, ao dirigir toda a cadeia de nossos
comportamentos, é o que em primeiro lugar os regula e os mede,
corresponde à razão proporcionar à vontade sua regulação primeira.
É esta a faculdade dotada pela natureza com a “adaptação” inata às
necessidades primordiais e permanentes da vida, “adaptação”
chamada pela Escolástica de sindérese ou “um hábito natural
especial”.
150
É este o que “instiga ao bem e murmura contra o mal,
enquanto, pelos primeiros princípios, procedemos a descobrir e
julgamos a respeito do descoberto”.
151
E em germe na consideração supra a segunda conclusão
da qual resulta que do mesmo modo que o apetite não tem
representações ideais, senão bens concretos
152
, também a razão
prática, salvo se cede ao efeito de uma ilusão, orienta-se
essencialmente para o bem real e concreto. Todo seu peso e todo
seu dinamismo tomados do apetite a conduzem a realizações
efetivas.
153
Assim, pois, dado que o bem humano perfeito não se
materializa em um bem particular, mas no Bem Comum, a razão
prática toma deste sua regulação primeira, sua imutabilidade, seu
valor, sua “infalibilidade”. É o que propõe Santo Tomás ao dizer:
Assim como na ordem da razão especulativa nada tem
firmeza senão pela resolução aos primeiros princípios
indemonstráveis, assim também nada a tem, na ordem da
razão prática, senão pela ordenação ao fim último, que
é o Bem Comum.
154
150
Idem. Suma Teológica. 1980, I, 79, 12, c, p. 713.
151
Idem. Ibidem.
152
Idem. In De Anima 3, 15, n
o
. 4. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“[...] Stultum enim est dicere, quod aliquis appetat propter appetere”.
Para um estudo sobre “tolice” no pensamento do Angélico, recomendamos
LAUAND. Em Diálogo com Tomás de Aquino: conferências e ensaios. São
Paulo: Mandruvá, 2002. p. 59-68.
153
Idem. De Veritate 3, 3, c. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“[...] tunc consideratur res ut est operabilis, quando considerantur in
ipsa omnia quae ad eius esse requiruntur simul. [...]”.
154
Idem. Suma Teológica. 1980, I-II, 90, 2, ad 3um, p. 1734: “sicut nihil
constat firmiter secundum rationem speculativam nisi per resolutionem ad
prima principia indemonstrabilia, ita firmiter nihil constat per
64
Aditamos que a noção de Bem Comum, assim como os
princípios primeiros do direito e da vida coletiva, estão
implicados na definição da razão prática e, por último, na da
pessoa. Pelo destino natural das inclinações espirituais, nas
quais elabora sua atividade própria, o homem é animal social ou
político. Efetivamente, a razão é o órgão do universal, não menos
na ordem prática que na especulativa. Suas energias profundas a
orientam ao bem humano acabado ou ao Bem Comum, o que significa,
sem equívoco, que seu bem próprio o alcançará plenamente mediante
a submissão a uma ordem política.
155
Do que temos visto, resulta que a natureza em nós é
suscetível de ser considerada sob numerosos aspectos. Se se
observa o fator que nos constitui e nos diferencia,
convencionalmente, temos o que se chama “natureza específica”.
Doutro modo, se se concentra a atenção nos caracteres particulares
que a natureza se reveste em concreto, obtém-se a natureza
individual. Por último, se se observa que a natureza é sujeito do
ser, do pensamento e da ação, chega-se à idéia de pessoa. E, além
disso, fica a possibilidade, fazendo o exame de nossa natureza
específica, de insistirmos em seu caráter livre ou em seu caráter
racional. Portanto, dado que o todo é afetado pela sociabilidade,
tem lugar perguntar-se qual destas diversas acepções é causa
precisa desta atribuição.
Desnecessário se faz dizer, como o mostramos, que o que é
em nós a raiz da sociabilidade não é a natureza individual ou
rationem practicam nisi per ordinationem ad ultimum finem, qui est bonum
commune”.
155
Idem. Ibidem. II-II, 188, 8, ad 5
um
, p. 3459: “O homem pode viver
solitário de dois modos. Primeiro, quase não suportando a sociedade
humana, por fereza de alma. O que é próprio da fera. Segundo, por se
ter totalmente dado às coisas divinas. O que é superior ao homem. E
por isso o Filósofo (Pol. I, 1) diz: Quem o vive com os seus
semelhantes, ou é uma fera ou um deus’, i. é, um varão divino”; Idem.
Suma Contra os Gentios, 1990, III, 128, nº. 1, p. 619.: “Depreende-se do
exposto (c. XXIss), que o homem é induzido pela lei divina a seguir a
ordenação da razão em todas as coisas de que venha a usar. Ora, entre
elas as principais são também ou outros homens, pois o homem é
naturalmente um animal social (I Ética 5, 1097b, Cmt 9, 112), porque
necessita de muitas coisas que não podem ser conseguidas por um só.
Logo, é necessário ter sido a lei divina instituída para que o homem se
relacione com os outros segundo a razão”; (itálicos do autor) Idem. De
Veritate, 12, 3, nº. 11. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003.
65
genérica, mas a especificamente humana. Isto aparece ao se
constatar que identidade entre os fatores que nos especificam e
os que nos orientam radicalmente aos bens, cuja conquista postula
imperiosamente em nós o curso da vida segundo o modo social.
Efetivamente, quando se observa que os fatores que nos especificam
estão ligados, sobretudo, à alma, enquanto os que nos
individualizam se vinculam, sobretudo, ao corpo, pois:
[...] devemos considerar que o vocábulo natural pode
ser aplicado ao homem em duplo sentido: por natureza
específica e por natureza individual. Ora, todos os
seres se especificam pela sua forma e se
individualizam pela matéria. E como a forma do homem é
a alma racional, e a matéria, o corpo, o que lhe
convém à alma racional lhe é especificamente natural;
e o que lhe é natural pela determinada compleição do
corpo, há de lho ser pela natureza individual.
156
Constata-se que são indubitavelmente aqueles que nos
especificam, os que nos estabelecem na relação com os valores
espirituais e universais. Os que nos individuam têm por
resultado particularizar tudo o que nos afeta em nossa
subjetividade. Nossa natureza, como conseqüência de ser humana,
como conseqüência de exteriorizar-se em pensamentos e em desejos,
encerra exigências de ordem superior. Está sujeita à necessidades
tão excelentes que não se poderia intentar satisfazê-las
minimamente sem as facilidades oferecidas pela vida coletiva. E,
quando não se procede torcidamente, vê-se que o homem está
inserido em um organismo político, não porque tenha inclinações
individuais e egoístas, nem unicamente porque deva fazer frente a
necessidades materiais, mas, principalmente e antes de tudo,
porque tem um ideal intelectual, moral e artístico a realizar e
156
Idem. Ibidem. I-II, 63, 1, c, p. 1486: “[...] oportet considerare quod
aliquid dicitur alicui homini naturale dupliciter, uno modo, ex natura
speciei; alio modo, ex natura individui. Et quia unumquodque habet
speciem secundum suam formam, individuatur vero secundum materiam; forma
vero hominis est anima rationalis, materia vero corpus, id quod convenit
homini secundum animam rationalem, est ei naturale secundum rationem
speciei; id vero quod est ei naturale secundum determinatam corporis
complexionem, est ei naturale secundum naturam individui”.
66
porque este ideal não se alcança com uma certa plenitude, se não
mediante a vida comunitária.
157
A realização integral do bem especificamente humano está
condicionada ao concurso uno e múltiplo da coletividade. O homem,
pois, é sociável a título de homem. Se não houvesse bens
espirituais a perseguir, bastar-lhe-ia como é o caso de muitas
espécies de animais viver em estado gregário. Mas, perguntando-
nos se nossa natureza é sociável porque é livre ou racional,
poderemos responder perguntando qual destes dois poderes nos
permite dar-nos à ordem política imanente e fazer disto um
princípio de conduta. Assentimos que é a razão, lembrando que
seria um despropósito opor estes aspectos.
É aceite que a sociedade tem seu ponto de inserção no
nosso querer. Também não é menos certo que implica a aptidão de
ser objeto de uma diretriz de conjunto. E haveria uma certa
contradição em que o sujeito por dirigir neste caso, o querer
humano fosse ele mesmo, e nesse aspecto em que o necessita, o
princípio de direção: “[...] a vontade criada não é luz, nem regra
da verdade, mas participante da luz. [...]”.
158
Mais ainda,
precisamente na razão, na qual funda suas raízes, nosso querer
encontra a causa própria de seu privilégio de dominação ativa
sobre o universo inteiro:
157
Idem. In Libri Ethicorum, 1, 1, nº. 4. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003: “Sciendum est autem, quod quia homo naturaliter est animal
sociale, utpote qui indiget ad suam vitam multis, quae sibi ipse solus
praeparare non potest; consequens est, quod homo naturaliter sit pars
alicuius multitudinis, per quam praestetur sibi auxilium ad bene
vivendum. Quo quidem auxilio indiget ad duo. Primo quidem ad ea quae
sunt vitae necessaria, sine quibus praesens vita transigi non potest: et
ad hoc auxiliatur homini domestica multitudo, cuius est pars. Nam
quilibet homo a parentibus habet generationem et nutrimentum et
disciplinam et similiter etiam singuli, qui sunt partes domesticae
familiae, seinvicem iuvant ad necessaria vitae. Alio modo iuvatur homo a
multitudine, cuius est pars, ad vitae sufficientiam perfectam; scilicet
ut homo non solum vivat, sed et bene vivat, habens omnia quae sibi
sufficiunt ad vitam: et sic homini auxiliatur multitudo civilis, cuius
ipse est pars, non solum quantum ad corporalia, prout scilicet in
civitate sunt multa artificia, ad quae una domus sufficere non potest,
sed etiam quantum ad moralia; inquantum scilicet per publicam potestatem
coercentur insolentes iuvenes metu poenae, quos paterna monitio
corrigere non valet”.
158
Idem. Suma Teológica. 1980, I, 107, a. 2, c, p. 928.:
67
A liberdade está radicalmente na vontade, como
sujeito; mas tem como causa a razão; pois se a vontade
pode se exercer livremente sobre objetos diversos, é
porque a razão pode ter várias concepções do bem.
159
Não se é, pois, livre contra a razão; não se vai contra
suas luzes sem ir contra si mesmo. Os direitos da liberdade são os
mesmos que os da razão.
160
Do que vimos, o sujeito sociável é o homem; o motivo
preciso pelo qual tem esta propriedade reside em que goza da
razão: esta faculdade o orienta até fins que pode perseguir
perfeitamente quando chega a organizar sua vida em coletividade.
Portanto, é na racionalidade, em última análise, que se encontra a
causa própria da sociabilidade.
Localizar no homem o impulso a constituir a sociedade e a
vida política decorre de quanto vimos a respeito da ordem prática,
como uma sua conseqüência natural. Nas linhas a seguir, sob a
orientação do Angélico, impomo-nos essa lida, cuja reflexão
imputamos coroar toda a reflexão precedentemente feita neste
capítulo.
1.2.4. A Pessoa e a ordem Política
159
Idem. Ibidem. I-II, 17, 1, ad 2
um
, p. 1146: “[...] radix libertatis
est voluntas sicut subiectum, sed sicut causa, est ratio. Ex hoc enim
voluntas libere potest ad diversa ferri, quia ratio potest habere
diversas conceptiones boni”. 77, 3, c, p. 1634: “[...] assim também
desordenadas consideram-se as partes da alma quando fogem à ordem da
razão, que as rege”.
160
Idem. Suma Contra os Gentios, 1990 III, 112, nº. 1-9 (2856-2866), p.
592ss: “Por conseguinte, deve-se primeiramente considerar que a própria
condição humana da natureza intelectual, que a faz senhora de seus atos,
exige da providência um cuidado de modo a ser atendida por causa dela
mesma, ao passo que a condição das outras naturezas, que não têm domínio
sobre os atos, está a indicar que elas não são cuidadas por causa delas
mesmas, mas como ordenadas para outras coisas. [...] Além disso, quem
tem o domínio sobre o seu próprio ato é livre na operação, pois é livre
o que é causa de si mesmo (I Metafísica 2, 982b; Cmt 3, 58). [...] Ora,
depreende-se do que acima foi dito [c. 17], que somente Deus é o fim
último do universo e que é atingido em si mesmo somente pela criatura
intelectual, conhecendo-o e amando-o, o que também se depreende do que
foi dito em outro capítulo [c. 25ss]. [...] Quando dizemos que as
substâncias intelectuais são ordenadas pela providência divina por causa
68
O pilar da estrutura do ordenamento social é o bem, o bem
humano concreto, ou seja, o que se apresenta sob a modalidade de
um Bem Comum. Depois vem a ordem política que se centra nele e
que, só com esta condição, é válida, revela-se apta para indicar à
pessoa o fim que lhe corresponda. De modo que nos pareceria
irrisório querer, ao mesmo tempo, ordenar a pessoa ao bem humano e
subtraí-la à ordem que tem a missão de conduzi-la a ele.
Por isso, julgamos oportuno fazer a reflexão precedente
sobre a pessoa humana. E pensamos que não se poderia proceder
doutro modo, que o princípio de um saber é sempre a definição
do sujeito tratado por ele, ou mais precisamente a do aspecto
que lhe interessa.
161
Efetivamente, as artes e os saberes, pelo
fato de se dirigirem ao desenvolvimento das aptidões (ou
habilidades, como é o “gosto” hodierno) implicadas na natureza,
devem estar em continuidade com elas, ou seja, orientadas para
seus respectivos objetos. Um desenvolvimento contrário à natureza
seria forçosamente uma deformação. Há de se convir assim que, para
conhecer em que consiste o bem humano, objeto da política, é
necessário previamente perguntar-se sobre os gêneros das
atividades de que o homem é capaz e determinar as perfeições que
cada uma delas busca.
Isso mostra no pensamento de Santo Tomás uma
convergência entre o bem último da pessoa humana e o bem
específico do Estado: “O Bem Comum é o fim das pessoas
particulares que vivem em comunidade; assim como o bem do todo é o
de cada parte. Ao passo que o bem de um particular não é o fim do
outro”.
162
Devemos ter em mente que nas totalidades de ordem ou de
harmonia as partes não se fundem na unidade do todo formando um
conjunto homogêneo: estes tipos implicam a diversidade específica
de si mesmas, não queremos dizer que elas ulteriormente não se ordenem
para Deus e para a perfeição do universo”. (itálico do original).
161
Idem. In Physic., I, 1, nº. 01. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“[...] necesse est secundum diversum definitionis modum scientias
diversificari”.
162
Idem. Suma Teológica. 1980, II-II, 58, 9, ad 3
um
, p. 2497; I-II, 19,
10, c, p. 1183s; 90, 3, ad 1
um
, p. 1812; II-II, 47, 10, ad 2
um
, p. 2420;
11, ad 3
um
, p. 2422.
69
das partes e sua disposição hierárquica. nisso também uma
necessidade de direito. Cada uma das partes deve conservar, além
de sua integração com o todo, sua estrutura distintiva e sua
atividade diferenciada, pois as aptidões próprias das partes são o
fundamento e a condição necessária do exercício das funções que
deverão assumir no seio da coletividade. É a sua perfeição pessoal
que uma vez ordenada a um fim transcendente dispõe
imediatamente o indivíduo ao cumprimento das funções sociais
consoante sua colocação na comunidade.
Numa palavra, definir socialmente a pessoa humana
equivale a defini-la em função de seu bem ou de seu fim; defini-la
em função de seu bem equivale a defini-la como parte; e defini-la
como parte faz com que ela se submeta à ordem política. Com
efeito, quando se fala do bem da pessoa, não se pretende somente
designar o bem particular e próprio, mas também o bem humano num
todo. E o bem humano no todo se confunde, na realidade, com o Bem
Comum.
163
Portanto, em plena consciência ou sem ela, considera-se a
pessoa como parte, pois se inclui o bem do todo em sua definição.
Assim, estabelece-se que ela é o sujeito próprio da ordem
política.
Do ponto de vista do Filósofo, o caráter social do homem
caráter que implica ser por natureza parte da Sociedade
representa um dado de fato, dado que se tem generalizado por
experiência e sobretudo pelo estudo de um grande número de
constituições. Sua filosofia social, portanto, baseia-se em dados
sociopolíticos mesmo assim, não se olvida de determinar a razão
precisa pela qual este caráter é atributo exclusivo do homem e a
encontra em uma necessidade profunda da natureza humana. o
Frade de Rocasseca, diversamente, em muitos de seus numerosos
escritos, tem a ocasião de tratar sobre o caráter do homem e, às
vezes, cede à tentação de assumir uma consideração que explicite
seu significado ou mostre sua razão de ser:
163
GALÁN GUTIÉRREZ. Op. Cit. p. 99: “El bien común atrae y orienta la
actividad de los miembros del Estado en el sentido del todo y evita que
éste se disuelva a causa del obrar puramente individualista y egoísta de
aquéllos. Es el fundamento, le meta, el  de la integración
70
[...] o homem é induzido pela lei divina a seguir a
ordenação da razão em todas as coisas de que venha a
usar. Ora, entre elas as principais são também os
outros homens, pois, o homem é naturalmente um animal
social.
164
Prosseguindo no raciocínio, o indivíduo humano não é um
todo que baste a si mesmo, mas é naturalmente parte: parte física
e parte moral. Convenhamos que seu meio físico é o cosmos, porém
parece que se esquece de que ele está integrado nele. De fato,
toma dele os elementos necessários para a formação e mantença de
seu corpo; está dominado pelo determinismo das leis físicas e
biológicas que regem os seres vivos; participa nos movimentos de
rotação e revolução do planeta em que vive; encontra nos
semelhantes a quem recorre a fonte de suas sensações, de suas
emoções, de suas recordações, de sua cultura e de sua erudição. É
do mesmo modo parte da sociedade que o acolhe. Esta não somente
constitui seu meio social, mas também o integra na ordem que a
rege e nos ritmos que marcam sua dinâmica, “[...] pois a lei
humana se ordena à comunidade civil, a constituída pelos homens
entre si; e estes se ordenam uns para os outros pelos atos
exteriores, com que se entrecomunicam”.
165
Precisamos levar em conta que o homem não se vincula ao
Estado mediante uma relação única e imediata. Localizado,
primeiramente, pelo nascimento na célula de base a família —,
entra depois em uma multidão de associações particulares, à medida
que a vida do grupo a que pertence se aperfeiçoa e se complica, à
medida que experimenta a necessidade de materializar em um número
mais ou menos grande de gêneros de atividades seus recursos
espirituais e sentimentais. Usamos as palavras de Cassirer ao
comentar o pensamento político de Tomás: “É esse instinto [social]
estatal. El concepto de bien común constituye una de las piezas
cardinales de la filosofía tomista del derecho e del Estado”.
164
TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios, 1990, III, 128, nº. 01, p.
619: “[...] manifestum est quod secundum legem divinam homo inducitur ut
ordinem rationis servet in omnibus quae in eius usum venire possunt.
Inter omnia autem quae in usum hominis veniunt, praecipua sunt etiam
alii homines. Homo enim naturaliter est animal sociale [...]”.
165
Idem. Suma Teológica. 1980, I-II, 100, 2, c, p. 1811.
71
que primeiro leva à constituição da família e, a partir daí, por
um desenvolvimento constante, às outras formas mais complexas de
comunidade”
166
, quer dizer, isso se de modo gradativo,
entrecortado de atrasos, demoras, de retrocessos, porém acaba por
realizar-se. A lei que dirige a inclinação natural de associação
acaba triunfando sobre as vicissitudes e os obstáculos e
efetivando seu império.
167
Observamos, em seguida, que se as necessidades idênticas
se manifestam em todos os povos, é sempre segundo modos concretos
que variam, à medida que divergem as condições étnicas,
históricas, climáticas, geográficas entre outras. Essas condições
se inscrevem no biológico para repercutir depois, como modalidades
particulares, na expressão das tendências espirituais e na
liberação dos instintos. Por conseguinte, nos agrupamentos
humanos, a organização social apresenta uma grande variedade
exterior, levando sempre as inclinações essenciais o selo das
contingências históricas.
Vemos que no seio do Estado tem surgido uma proliferação
de células novas. Hoje tudo e todos buscam socializar-se. Os modos
mais imateriais da ação devem, para ser eficazes, exercer-se no
interior de um molde social e contar com os benefícios da ajuda
mútua. A partir do momento em que começa a despontar no seio de
uma aglomeração a idéia de interesse político ou de Bem Comum, um
novo embrião de ordem se organiza ao redor desta idéia, a que se
subordinam todas as formas elementares de associação como partes
potenciais e que lhes confere, em virtude de sua universalidade, o
caráter de funções quase públicas, dado que lhes faz colaborar,
sem frustrar seu fim imediato, no estabelecimento do bem-estar
material e espiritual da nação total. Seu objeto próprio consiste,
pois, no ordenamento das funções humanas, não absolutamente, mas
em sua relação com o Bem Comum.
166
CASSIRER. O Mito do Estado. 2003, p. 143.
167
TOMÁS DE AQUINO. In Politic., 1, 1 nº. 23. In: Corpus Thomisticum, CD-
ROM, 2003: “(…) Tertio ostendit ad quid est civitas ordinata: est enim
primitus facta gratia vivendi, ut scilicet homines sufficienter
invenirent unde vivere possent: sed ex eius esse provenit, quod homines
non solum vivant, sed quod bene vivant, inquantum per leges civitatis
ordinatur vita hominum ad virtutes”. (o itálico é nosso).
72
Vemos quanto isto nos ilustra a perfeição sobre sua
natureza e sobre sua heterogeneidade. Se as funções do homem
fossem unívocas, a ordem política, que se modela sobre elas,
deveria ser uniforme, igualitária. Teria, sobre todas as
instituições e sobre todas as associações destinadas a favorecer o
desdobrar das atividades do indivíduo, a mesma autoridade e a
mesma competência. Assentimos que não é assim; que diversidade
entre os tipos de atividades de que o homem é capaz e que resulta
de seu bem. O único vínculo que os une é o da analogia. Por
conseguinte, se a ordem política se modela sobre o real, se supõe
e respeita a natureza das funções cujo uso assume dirigir, segue-
se disso que a ordem política deve ser o bastante amplo e o
bastante flexível para alcançar e regulamentar cada categoria de
associações particulares segundo o modo que lhe convém.
Sem este espírito de adaptação da variabilidade da vida,
sem este cuidado de aderência à complexidade do real, sem este
caráter fundamental hierárquico, converte-se em um molde vazio, um
mecanismo destinado a aniquilar o humano do ser humano e, não
obstante este, como ser, subsista, desliza-se até às aberrações do
totalitarismo absoluto. Ademais, como conseqüência de ser uma
realidade moral, a ordem política deve detalhar-se. Seu esqueleto
deve modificar-se segundo as exigências dos fatores: tempo, espaço
e outros mais. Deve, portanto, individuar-se, “contaminar-se” de
realismo, ser condicionado pelo meio físico e social.
Esse realismo se faz mais concreto no fim último da vida
social, sobre o qual passaremos a refletir no próximo capítulo.
73
Capítulo II
2. A Ética Social de Tomás de Aquino
Neste ponto de nosso trabalho, como em todos os outros,
vamos percorrer os passos do Aquinate quanto àquilo que diz
respeito ao ponto central do que almejamos postular, qual seja, a
proposição segundo a qual Santo Tomás, apropriando-se de termos do
Estagirita, constrói, mediante sua própria linguagem e a partir de
seus próprios pressupostos, sua ciência arquitetônica, a Ética, na
linha oposta a Aristóteles, como se fosse este a tomá-lo pela mão
e a conduzi-lo por entre o pensamento estóico e o cristão.
168
2.1. A Teleologia do Estado
O paradigma moderno de finalidade da sociedade parece
coincidir, em linhas gerais, com o pensamento do Angélico exposto
no Comentário à Política de Aristóteles:
Secundo dicit, quod civitas est communitas perfecta:
quod ex hoc probat, quia cum omnis communicatio omnium
hominum ordinetur ad aliquid necessarium vitae, illa
erit perfecta communitas, quae ordinatur ad hoc quod
homo habeat sufficienter quicquid est necessarium ad
vitam: talis autem est communitas civitatis. Est enim
de ratione civitatis, quod in ea inveniantur omnia
quae sufficiunt ad vitam humanam, sicut contingit
esse.
169
168
Para usarmos um exemplo dos mais fortes e ilustrativos, no corpo do
artigo 1, da questão 182 da Segunda Parte da Segunda Parte (1980), o
Aquinate assim começa: “Ora, devemos dizer que a vida contemplativa é,
absolutamente considerada, melhor que a ativa. O que o Filósofo [X
Ethic., lect. X-XII] o prova por oito razões.” Depois de se referir ao
Estagirita, Tomás nem sequer menciona mais Aristóteles, valendo-se, sim,
de textos Patrísticos e Escriturísticos para propor as “oito razões”.
(itálico nosso).
169
TOMÁS DE AQUINO. In libri politicorum, 1, 1, no. 23. In: Corpus
Thomisticum, CD-ROM, 2003.
74
Tanto Eric Weil
170
como John Rawls
171
, para citarmos autores
contemporâneos, ilustram essa nossa assertiva, segundo a qual,
para a contemporaneidade, a finalidade do Estado não seria outra
que, em linhas gerais, garantir as liberdades básicas e o bem-
estar mínimo dos indivíduos. É certo que, especificamente Rawls,
em tese, posiciona-se na antípoda do teleologismo
172
. Todavia, a
perícope tomada como exemplo mostra que ele, igualmente, concebe
aqueles valores como básicos aos indivíduos dentro de uma
deontologia do Estado. É o que podemos constatar, também, do
estudo de Oliveira a respeito da teoria política de Rawls.
173
Porém, sustentamos que, para Tomás, a finalidade do
Estado é mais do que isso. A satisfação do homem em suas diversas
necessidades é resultado do alcance do verdadeiro fim, do Bem
Comum Político, cuja integração do homem
174
na sociedade para
170
WEIL. Filosofia Política. 1990, § 16a. 28b. (p. 62. 131): “O educador
deve formar um indivíduo que, nas suas ações, leve em consideração o
interesse universal concreto, o que a comunidade define, por seus
costumes, regras e leis, como o seu interesse [...]. A sociedade promete
ao indivíduo a satisfação da necessidade (e do desejo normal) [...].
Segundo a sociedade, nisso consiste o seu interesse. Ora, é preciso ter
necessidade para sentir esse interesse: a sociedade sabe que nada tem a
lhe oferecer além das suas satisfações”. J.-J. Rousseau disse algo
parecido em Discurso sobre as Ciências e as Artes. 1754, 1
a
. parte. In:
OS PENSADORES-ROUSSEAU, 1978, p. 334: “Como o corpo, o espírito tem suas
necessidades. Estas são o fundamento da sociedade, aquelas constituem
seu deleite. Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança e ao bem-
estar dos homens reunidos [...]”.
171
RAWLS. O Liberalismo Político. 2
a
. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 272.
273: “Esse conteúdo é formulado pelo que chamei de ‘concepção política
de justiça’ [...]. Com isso, quero dizer três coisas: a primeira é que
esse conteúdo especifica certos direitos, liberdades e oportunidades
fundamentais [...]; a segunda é que atribui uma prioridade especial a
esses direitos, liberdades e oportunidades, principalmente no que diz
respeito à exigências do bem geral e de valores perfeccionistas; e a
terceira é que esse conteúdo endossa medidas que garantem a todos os
cidadãos os meios polivalentes adequados para tornar efetivo o uso de
suas liberdades e oportunidades básicas”.
172
Cf. OLIVEIRA. Rawls. Rio: Zahar, 2003, p. 24-27
173
Cf. Idem. Ibidem.
174
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia II. São Paulo: Loyola, 1993, p. 138s:
“É conveniente, pois, distinguir entre a prática política de determinada
sociedade ou época histórica com a idéia do homem que lhe é imanente (já
que a prática política postula do indivíduo que ele se pense como ser
moral, isto é, universal), e as teorias políticas que visam explicitar,
justificando ou criticando, tal prática, e são levadas assim a tematizar
a concepção do homem que sustenta a racionalidade implícita dessa
prática. Temos assim, de um lado, a idéia do homem presente no ethos das
sociedades políticas e que orienta e regula, como uma espécie de norma
rectrix, o seu desempenho histórico; de outro, as teorias do homem como
75
“experimentar
175
o objeto de suas inclinações porque o bem, o
dissemos, não é algo abstrato é conditio sine qua non de sua
consecução.
Esta integração do homem se se quer superar um
utilitarismo e individualismo hodierno realiza-se numa
interdependência ético
176
-política entre os homens. Deveras se faz
mister estabelecer certa cooperação ético-política entre os
indivíduos nos mais diversos âmbitos da vida social: moradia,
saúde, alimentação, infra-estrutura, cultura etc., cujo fim dessa
integração consiste em ver satisfeitos certos desejos e
necessidades individuais, mas que estejam contidos na definição do
bem-viver no sentido de eupraxía
177
, como causa da vida social, ou,
em outros termos, o que impulsiona o consentimento e a colaboração
entre os indivíduos e que, como tal, caracteriza-se por objeto de
desejo e de intenção. Portanto, o Bem Comum Político é aquele bem
cuja força ocupa o ápice quanto à importância na formação da
sociedade política.
Podemos afirmar, portanto, que o aspecto sob o qual os
indivíduos têm suas necessidades básicas e seu bem-estar
satisfeitos é nada mais que o conteúdo material do Bem Comum
Político. O modo de identificá-lo ajudará a identificar o bem
ser político que se formulam em momentos cruciais de ascensão, crise
ou declínio nos quais a sociedade política se volta sobre si mesma e
se interroga sobre a validez e consistência das idéias fundamentais que
dão razão da sua existência”.
175
CALDERA. Le Jugement par Inclination chez Saint Thomas D’Aquin. Paris:
Vrin, 1980, p. 37.: “Experimenter le bien c’est alors, et en premier
lieu, subir son attrait, ressentir le désir qui nous incline l’objet
saisi, et qui sous des formes différentes nous met en marche pour le
recontrer et nous unir à lui. L’union à son tour accompit un certain
achèvement de notre être”.
176
GALÁN GUTIÉRREZ. Op. Cit. p. 98: “Porque hay una escala de los seres,
hay también una escala de los bienes; a mayor elevación en el orden
óntico, mayor dignidad en el orden deontológico o axiológico. Llámase en
particular bien ético al que corresponde al ser racional en cuanto tal.
Denomínase valores, los aspectos o momentos parciales de un bien. Los
conceptos de bien y valor se hallan, pues, fundados en el ser; tienen un
sentido óntico”.
177
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1098b 22; 1140b 7. São Paulo: Nova
Cultural, 1987. OS PENSADORES. Este termo é, oportunamente, salientado
por Martínez Barrera (Reconsideraciones sobre el Pensamiento Político de
S. Tomás de Aquino. Mendonza: Ed. Fac. Fil. y Let. Univ. Nac. De Cuyo,
1999, p. 158) a quem seguimos, bem como por Sangalli. O Fim Último do
Homem. 1998, p. 56: “uma forma de viver bem e conduzir-se bem”.
76
comum de todos. Assim, para identificar o bem comum de todos é
necessário analisar o bem do indivíduo, mas abstraindo-se dele o
seu caráter individual. É o que nos indica o Aquinate numa
passagem lapidar ao apontar qual beatitude ou felicidade
178
é
própria da vida no Estado, dizendo que “é a reunião dos bens
suficientes à mais perfeita atividade desta vida”.
179
Esta reunião, como tudo na vida do homem, é submetida às
leis naturais e, portanto, a uma unidade de ordem. Isto porque os
“bens suficientes” ao indivíduo em sua vida social, por si mesmos,
não dão conta de possibilitar a eupraxía, a não ser ordenados
hierarquicamente, consoante a natureza humana para a consecução
dessa mesma eupraxía. Seguem, analogamente, a ordem natural entre
os bens do corpo e os da alma.
180
Os bens próprios da alma, como as
suas potências
181
, estão organizados de modo ordenado.
Antes de adentrarmos no assunto em questão, é mister
retermos nossa atenção em algumas poucas considerações a respeito
do local de onde hauriremos, principalmente, o pensamento do Frade
de Rocasseca, ou seja, a Segunda Parte da Segunda Parte da Suma
Teológica, complementada com o Comentário, contemporaneamente à
Suma, feito por ele à Ética a Nicômaco.
É ponto pacífico daqueles cujas “obviedades [...] por
vezes não são tão óbvias”
182
na literatura filosófica e histórica
que “é preciso insistir no fato de que Tomás de Aquino tem do
ensinamento cristão, da sagrada doutrina, uma concepção unitária.
178
Não poderemos desenvolver a discussão sobre a  em
Aristóteles, mas remetemos ao trabalho de HOBUS. Eudamonia e Auto-
Suficiência em Aristóteles. Pelotas: EGUPel, 2002. DISSERTATIO
FILOSOFIA. Dele nos serviremos oportunamente, conforme auxilie a
compreensão do nosso assunto. Aditamos que a referida questão, do modo e
no contexto em que é posta, inexiste no contexto e no pensamento do
Angélico.
179
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 3, 3, ad. 2um, p. 1050.
180
Idem. Ibidem. I-II, 2, 5, c, p. 1041: “[...] todos os bens do corpo se
ordenam aos da alma, como fim”; Idem. Ibidem. ad 1
um
, p. 1041: “Como o
corpo se ordena para a alma, que é o seu fim, assim os bens exteriores,
para o corpo. Por onde, é racional seja o bem deste preferível aos bens
exteriores [...]; do mesmo modo, o bem da alma é preferível a todos os
bens do corpo”.
181
Idem. Ibidem. I, 77, 4, c, p. 675: “Sendo a alma una, e as potências
várias, e sendo numa certa ordem que se passa da unidade para a
multidão, necessário é que haja uma ordem entre as potências da alma”.
182
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 82.
77
[...] Dessa consideração, Tomás deriva as três partes da Suma de
Teologia”.
183
Lima Vaz completa afirmando que “a especulação
filosófico-teológica tomásica da Ia. Parte da Summa Theologiae é o
fundamento e o necessário preâmbulo das admiráveis análises sobre
a práxis humana e cristã da IIa. Parte da Summa Theologiae”.
184
E
ainda: “Como essas duas tradições
185
se integram harmoniosamente e
criativamente numa obra de ciência e de sabedoria é o que deverá
mostrar-nos a análise da IIa. Parte da Summa”.
186
Podemos,
igualmente, ainda com De Boni, afirmar que “a Suma Teológica é
especificamente um tratado de Teologia”
187
e, enfim, concluir com
Torrell que, após apresentar o debate sobre o esquema “exitus-
reditus
188
que Tomás teria seguido em toda ou em parte da Suma
, parece assentir com Leroy “que ‘antes de ser neoplatônico (esse
esquema) é simplesmente cristão’. Tomás o enfatiza alhures
explicitamente quando diz, com o Apocalipse, que Deus é o Alfa e o
Ômega de toda a criação”.
189
Não obstante isso, com respeito à Segunda Parte da Suma
Teológica, Nascimento observa a especificidade sobre a qual o
Angélico versa sobre o homem e quanto dele emana:
Tomás anuncia que vai falar do ser humano, não mais à
medida que este é obra do poder divino. [...] mas ‘à
medida que também ele é princípio de suas obras, por
ter decisão livre e domínio de suas obras’.
190
A
segunda parte da Suma vai tratar do ser humano não
enquanto saído pronto das mãos de Deus, mas à medida
que é também capaz de se fazer e de fazer o seu mundo,
de escolher o que ele quer e fazer ser. Isso o ser
humano pode, porque é dotado de intelecto, de decisão
livre e de autodomínio. Isso ele o é justamente como
183
NASCIMENTO. A Moral de Santo Tomás de Aquino: A Segunda Parte da Suma
de Teologia, 2004. In: COSTA; DE BONI. A Ética Medieval Face... 2004, p.
267.
184
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia IV. 2
a
. ed. São Paulo: Loyola, 2002,
p. 212.
185
Idem, ibidem, p. 215: “[...] a tradição Teológica, sobretudo
agostiniana, e a tradição filosófica, sobretudo aristotélica [...]”.
186
Idem, ibidem, p. 215.
187
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 82.
188
TORRELL. Iniciação a Santo Tomás de Aquino. 1999, p. 176-180.
189
Idem. Ibidem. p. 179s.
190
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, Prol., p. 1025.
78
imagem de Deus. Na sua própria escala, ele se faz e
faz o seu mundo [...].
191
É, pois, nesta perspectiva de uma certa “epoché” que irão
se delinear as reflexões infra. E como “o fim último é por onde
começa o desenrolar da segunda parte da Suma”
192
, talvez seja esse
“itinerário” o melhor para provocar a pergunta de Lima Vaz:
Entre o télos de uma contemplação intelectual, em que
a eternidade anula o tempo, e o éschaton de um
itinerário histórico, em que a eternidade transfigura
o tempo, para qual direção se inclinará a busca humana
da beatitude?
193
É o que descobriremos, segundo o pensamento de Santo
Tomás de Aquino, na parte subseqüente que passamos a perfilar.
2.2. Beatitude Sobrenatural e Natural: algumas noções
Para tentarmos uma resposta à pergunta feita
precedentemente, julgamos imprescindível trazer à lume a distinção
que imputamos pertinente e necessária no pensamento tomasiano
entre os termos: beatitude sobrenatural ou beatitude e
felicidade terrena
194
decorrente da eupraxía. Não exauriremos toda
a amplitude da discussão sobre estes termos, mas deles extrairemos
um uso instrumental que sirva ao nosso propósito, procurando
seguir as fontes. Também nos absteremos de seguir estritamente a
191
NASCIMENTO. A Moral de Santo Tomás de Aquino: A Segunda Parte da Suma
de Teologia, 2004. In: COSTA; DE BONI. A Ética Medieval Face... 2004, p.
268.
192
Idem, ibidem, p. 269.
193
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I. 1986, p. 41.
194
FINNIS. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. Oxford: Oxford
University Press, 1998, p. 109: “It must be admitted that Aquinas, being
much more interested in perfect than in imperfect human fulfilment,
never fully clarified imperfecta beatitudo, and in that sense never
resolved the tensions within Aristotle’s accounts of human flourishing”.
O fato de Tomás não ter se dedicado a esclarecer exaustivamente a
imperfecta beatitudo não quer dizer que ele não a tenha definido,
máxime para distingüi-la da perfecta beatitudo”. Seria temerário tentar
fazê-lo porque na imperfecta beatitudo entram conteúdos de ordem
material de número variado e supomos que Tomás era muito consciente
disso.
79
tríplice divisão da noção de beatitude apresentada por Martínez
Barrera, baseado em De Corte, por assumirmos as duas primeiras
numa só — embora com elas concordemos:
¿Habría entonces para el Aquinate tres nociones de la
beatitud? En efecto, hay una beatitud imperfecta, la
felicidad de la vita activa; otra, todavía imperfecta
pero superior a la anterior, la felicidad de la vida-
contemplativa intramundana; y finalmente la beatitud
perfecta ultramundana. Ver M. DE CORTE (L’Ethique à
Nicomaque: Introducion à la Politique).
195
De fato, entendemos, com Lima Vaz, que o homem no
pensamento do Aquinate possui apenas dupla destinação, uma
próxima e uma outra remota.
196
Em apoio disso são inúmeras as
passagens do Angélico em que este concebe a dupla destinação do
homem, cujos exemplares De Boni os apresenta na nota 35 da página
66 da obra De Abelardo a Lutero.
197
Não obstante parecer ponto
pacífico esta dupla destinação em Tomás, Lima Vaz a entende como
“cisão ontológica do homem”, querela de cunho kantiano, solúvel
sob um prisma hegeliano de leitura da questão.
198
Concordamos que
195
MARTÍNEZ BARRERA. Op. Cit. p. 159.
196
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I. 1986, p. 55.: “Duplex beatitudo:
numerosos textos de Santo Tomás, de resto longamente discutidos pelos
comentadores [H. de Lubac, “Duplex beatitudo, in Rech des sciences rel.
35 (1948), pp. 290-299], parecem sugerir esta solução. Uma beatitude
realizando-se no plano da natureza, que a crítica kantiana transformará
mais tarde em mundo fenomenal, de onde a finalidade terá desaparecido, e
uma beatitude verdadeiramente última, que se situa na ordem numenal do
Fim”.
197
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 66.: São inúmeras as
referências à distinção entre “esta vida” e “outra vida”. Assim, [...]
SCG III, c. 44; […] 47; 63. O mesmo acontece tanto na Summa Theologiae
I-II, q. 3, a. 2, ad 4
um
; a. 8, in c; q. 4, a. 5 in c; a. 6, in c; a. 7,
in c; 8, in c; q. 6, a. 3; a. 4 in c. et ad 1
um
; a. 5, in c; quanto na
Expositio I, 1. lect. 10; lect. 15; lect. 16; 1-2, lect. 8; 1. 10, lect.
11; lect. 13 […]”. (itálico do original)
198
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I. 1986, p. 55s. “Mas, prescindindo de
outros aspectos que distanciam a perspectiva de santo Tomás da visão
kantiana, essa espécie de cisão ontológica do homem seria sem dúvida
inaceitável aos olhos de um pensador tão profundamente marcado pela
noção clássica de “unidade de ordem” como era santo Tomás. Talvez seja
necessário, para escapar à inextrincável teia de intermináveis querelas,
inverter os termos do problema e interpretar a duplex beatitude no
contexto de uma dialética da unidade ou identidade radical, a partir da
qual a diferença ou a dualidade é posta, mas como refletida na unidade
original e assumida dialeticamente na unidade final ou na beatitude como
visão da divina essência. Trata-se, como é evidente, de um esquema de
inspiração hegeliana. Não se pretende, no entanto, ler santo Tomás com
80
ela pode não ser admitida pelo Santo Bispo de Hipona — por curiosa
divergência com o Aquinate, seu grande leitor séculos depois
para quem:
[...] a beatitude, assim também a salvação não a
possuímos como presente, mas aguardamo-la como futura
[...]. Uma tal salvação, que existirá no século
futuro, esta é que será a beatitude final. Esta
beatitude, nela não querem crer esses filósofos porque
a não vêem; procuram fabricar uma, absolutamente
falsa, com uma virtude tanto mais mentirosa quanto
mais orgulhosa.
199
De qualquer modo, inicialmente devemos tratar da
felicidade sobrenatural ou beatitude máxima e completiva da
aspiração humana, beatitude essa que se diretamente entre o
homem e Deus
200
, cognominada por Santo Tomás de Aquino como
simplesmente beatitude: “[...] ultimus finis hominum est
beatitudo; quam omnes appetunt, ut Augustinus dicit [...]”.
201
É
as categorias de Hegel. Pretende-se apenas mostrar que o pensamento de
santo Tomás, como o de Hegel, é um pensamento da totalidade ou da
identidade na diferença, e que qualquer dualidade como pressuposição
fundamental lhe é intolerável, como o foi para Hegel, o dualismo
kantiano”.
199
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 2
a
. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
2000, XIX, c. 4, p. 1889 (in fine) [por comodidade, indicaremos, após o
ano, o livro e o capítulo]. O comentário de Sangalli [O Fim Último do
Homem. 1998, p. 190] o corrobora.: “Se a verdadeira beatitudo é
possível na vida futura de uma visio beatifica, então toda tentativa de
concebe-la no âmbito da finitude existencial humana deste mundo [...],
na prática das virtudes políticas ou na atividade especulativa de nossa
melhor parte voltada às coisas divinas, não passa de mera sombra da real
vita beata”.
200
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I. 1986, p. 50s: “[...] beatitude
perfeita [...] que somente pode ter lugar na visão imediata de Deus,
excluída a mediação de qualquer bem limitado [...].”
201
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 1, 8, sc, p. 1034;
MERCKEN (Transformation of the Ethics of Aristotle in the Moral
Philosophy of Thomas Aquinas. 1974, p. 159. Atti dei Congresso
Internazzionale Tommazo d’Aquino nel suo tulimo centenario. Roma, 1974)
observa: “The universal human wish for happiness Express the basic
natural tendency of the faculty of the will toward its ultimate adequate
end, the general and perfect good, God, the attainment of which
constitutes happiness”. E na respectiva nota: “See I, X, n
o
.120, where
the distinction in made between the final good of man as his “proper
operation” (n
o
. 119) and “something he attains by his operation, as God
is said to be the beatitude of man”. The latter thesis is a theological
one, found in the very beginning of the I-II (a. 1, q. 8). The way to
this thesis is paved by the distinction between the subjective
(happiness as the operation of the subject) and the objective (God as
the object attained is that operation) final good of man”.
81
sobre ela que o Santo discorre na Primeira Parte da Segunda Parte
da Suma Teológica, da Primeira até a Quinta questão, num total de
40 artigos. O que a caracteriza por antonomásia é ser ela “ultimus
finis hominum”, transcendente, sobrenatural. Este último termo é
chave para se entender do que realmente se trata na visão
beatífica.
Não obstante possamos lançar mão de definições mais
precisas de natureza
202
, mas que não nos ajudarão muito em nosso
intento, definiremos, instrumentalmente, natureza como um
princípio remoto do qual procedem, no homem, tanto as ações quanto
as paixões de modo a conseguir um fim proporcional.
203
Em oposição à natureza e natural, o sobrenatural,
positivamente:
Es efecto de una causa más alta que a propia
naturaleza del agente, la cual, sin embargo, lejos de
ir contra a causalidad propia de éste, la asume y la
eleva, en la línea de su perfección propia en el
contexto del universo, si bien de una manera
extraordinaria, es decir, fuera del curso normal del
ser natural en cuestión: extra natural.
204
Que é caracterizado como “o que se debe a la acción de
una causa superior; en una línea compatible con la finalidad
intrínseca del ser natural sobre el que actúa si se tiene en
202
ARISTÓTELES. Física, II, 1, 192b 21-23. In: GILSON. The Christian
Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 166: “[...] for nature is a
principle and a cause of movement and repose for the thing in which it
resides immediately, by essence and not by accident [...]”; TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 29, 1, ad 4
um
, p. 278; I-II, 85, 6, c,
p. 1696: “A natureza particular é a virtude ativa e conservativa própria
do ser. [...] a natureza universal é a virtude ativa existente num
princípio universal da natureza. [natureza naturante] [...]”. Sendo a
natureza naturada a própria totalidade das coisas. GONZÁLEZ (Moral,
Razón y Naturaleza. 1998, p. 67) nota que “[...] es interessante
advertir que la diferencia entre natura particularis y natura
universalis empleada por Aristóteles en el De Caelo como parte de su
teoría física, Tomás de Aquino la traslada al plano teológico e la
emplea para explicar los milagros y la elevación al fin sobrenatural”.
Idem. Ibidem. Nota 122: “De Ver., q. 13, a. 1, ad 2, 193-215; Idem,
sol., 126-138; 148-160”; REALE. In: ARISTÓTELES. Metafísica. 2001, III:
Sumário e Comentário, p. 213. v. III.: “O princípio de movimento
intrínseco às coisas e que lhes pertence em virtude da sua própria
essência”.
203
GONZÁLEZ. Moral, Razón y Naturaleza. 1998, p. 49 e seguintes.
204
Idem, ibidem, p. 63.
82
cuenta el orden total del universo”
205
, e, negativamente, o que
está além da natureza, no sentido de não lhe pertencer nem
constitutiva, nem consecutiva e nem ao modo de exigência.
Assim, por natural, concebemos o que pertence à natureza
segundo as três propriedades acima referidas: ao modo de
exigência, consecutiva e constitutivamente. Exemplificando,
segundo esta última, a alma e o corpo (no caso do homem) fazem
parte constitutivamente da sua natureza porque são seus elementos
essenciais; consecutivamente pertencem a uma natureza (humana, por
exemplo) as faculdades vegetativa, sensitiva e racional e suas
respectivas funções, porque dimanam de sua essência e, por fim,
pertencem à natureza ao modo de exigência os elementos requeridos
para que a natureza possa realizar ações e recebê-las em ordem à
consecução de seu fim natural, tal é a conservação que pede a
natureza para que esta tenha seu fim natural.
De outra parte, sobrenatural constitutivo é o que supera
a essência de um ser; consecutivo, o que lhe transcende as
propriedades e a energia; e, necessário o que está além das
exigências da natureza desse mesmo ser.
É neste sentido (positivo e negativo) de sobrenatural que
o Angélico explicita o “ultimus finis hominum” asseverando:
[...] Ora, objeto da vontade, que é o apetite humano,
é o bem universal, como o do intelecto é a verdade
universal. Donde resulta claro que nada pode
satisfazer a vontade do homem senão o bem universal.
Ora, disto não é capaz nenhum bem criado, mas Deus
[...]. Por onde, Deus pode satisfazer a vontade do
homem [...]. Logo, em Deus consiste a beatitude
dele. [...] A beatitude última e perfeita não pode
estar senão na visão da divina essência [...].
Portanto, para a felicidade perfeita é necessário o
intelecto atingir a essência mesma da causa primeira.
E assim, terá a sua perfeição pela união com Deus como
objeto em que consiste a beatitude do homem
[...].
206
205
Idem, ibidem, p. 64.
206
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 2, 8, c, p. 1045: “[...]
Obiectum autem voluntatis, quae est appetitus humanus, est universale
bonum; sicut obiectum intellectus est universale verum. Ex quo patet
quod nihil potest quietare voluntatem hominis, nisi bonum universale.
Quod non invenitur in aliquo creato, sed solum in Deo [...] Unde solus
Deus voluntatem hominis implere potest [...] In solo igitur Deo
beatitudo hominis consistit ”; Idem. Ibidem. q. 3, 8, c, p. 1057:
83
Em outros termos, o Aquinate raciocina a partir da
perspectiva clássica do teleologismo, consoante a qual a causa
motriz da práxis e do apetite do homem é um fim. Ora, o bem é o
que satisfaz o apetite e é seu termo. Por conseguinte, o bem e o
fim se identificam. Transladando essa reflexão para um plano
maior, o fim último do homem será o bem supremo, e este é Deus,
possuído pela contemplação, cume e verdadeira felicidade do
homem.
207
Depreende-se disso que “há um fim último que proporciona
a plena felicidade, i. é, Deus”
208
, o fim último sobrenatural do
homem porque, efetivamente, “o teocentrismo da beatitude implica,
da parte da criatura, uma relação de indigência, mas não de
exigência”.
209
Ora, este como se deduz do que vimos não possui
ordenação per se ao sobrenatural, mas recebida
210
, pois “podemos
alcançar nesta vida uma certa participação
211
da beatitude”,
212
porque:
“Respondeo dicendum quod ultima et perfecta beatitudo non potest esse
nisi in visione divinae essentiae. [...]Ad perfectam igitur beatitudinem
requiritur quod intellectus pertingat ad ipsam essentiam primae causae.
Et sic perfectionem suam habebit per unionem ad Deum sicut ad obiectum,
in quo solo beatitudo hominis consistit […]”.
207
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 65, 66: “Dentro do
teleologismo clássico, Tomás observa que todo o agente age por um fim. O
fim é aquilo onde descansa o apetite do agente e do que é movido. Ora, é
da natureza do bem que seja ele o término do apetite. Conclui-se, pois,
que o bem e o fim se identificam. [...] Este fim supremo é também o bem
supremo. [...] Tomás afirma, então, que a contemplação de Deus é a
felicidade do homem.” O mesmo texto encontra-se em Idade Média: ética e
política. 1996, p. 296.297.
208
LISBOA. A unidade do fim como condição do discurso moral e político.
In: DE BONI. Idade Média: ética e política. 1996, p. 320.
209
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I. 1986, p. 54.
210
TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. 1990, I, 5, n. 1-7, p. 25s.
211
CARDONA (La Metafísica Del Bien Común. Madrid: Rialp, 1966, p. 24)
sintetiza o pensamento do Angélico nestas palavras: “En la participación
sobrenatural, y en particular en la visión beatífica, no se tiene
propiamente un participare similitudinem, como se verifica en las
participaciones naturales, sino que es en la misma Divinidad, como es en
sí, donde termina el acto de criatura. Es un participar que es también
un attingere, alcanzar, que podría ser llamado el tercer modo de
participación, por encima del unívoco y del análogo como se verifican en
el orden natural. El attingere caracteriza el modo más perfecto de
participación; indica cómo de hecho se efectúa aquel vínculo metafísico
que ordena y conecta, tanto a los seres entre sí, como a algunas
criaturas privilegiadas, las intelectivas, directamente a Dios. El
attingere expresa un participar según un grado más o menos perfecto,
pero siempre propio, de asimilación del inferior respecto del superior.
Y Santo Tomás distingue dos modos de alcanzar: per similitudinem y per
84
[...] o em que especialmente consiste a beatitude a
visão da essência divina a que o homem não pode
chegar nesta vida
213
[...] a vida eterna é um bem
excedente à capacidade da natureza criada, por que lhe
excede o conhecimento e o desejo [...].
214
Demais, […]
et ideo de ratione perfectae felicitatis est
continuitas et perpetuitas, quam tamen praesens vita
non patitur. Unde in praesenti vita non potest esse
perfecta felicitas.
215
Não obstante Tomás de Aquino admita o que é um traço
importante seu “que, no íntimo da natureza humana, como
constitutivo dela, encontra-se a capacidade para o
sobrenatural”
216
, é preciso salientar que o fato é que a visão da
operationem, en donde el primero señala la participación natural, y el
segundo el ápice de la participación natural y mediante la gracia la
participación sobrenatural”; SOUZA NETO (Introdução. In: TOMÁS DE
AQUINO. Do Reino ou do Governo dos Príncipes ao Rei de Chipre.
Petrópolis: Vozes, 1997, p. 10) lembra que a doutrina platônica da
participação é algo do qual Tomás de Aquino “jamais abriu mão”.
212
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 5, 3, c, p. 1071.
213
Idem. Ibidem. I-II, 5, 3, c, p. 1071: “[...] perfecta autem et vera
beatitudo non potest haberi in hac vita”.
214
Idem. Ibidem. I-II, 114, 2, c, p. 2009: “[...] Vita autem aeterna est
quoddam bonum excedens proportionem naturae creatae, quia etiam excedit
cognitionem et desiderium eius [...]”.
215
Idem. In Ethic., L. 1, lect. 10, n
o
. 12. In: Corpus Thomisticum, CD-
ROM, 2003. Quanto a esta passagem, comenta Camello (A Felicidade como
bem supremo, 1996. In: DE BONI. Idade Média: ética e política. 1996, p.
282): “[...] o próprio Aristóteles, ao encontrar-se com Tomás nalgum
canto feliz do paraíso, o teria polidamente repreendido, porque o frade
medieval o levara a sério demais. Polidamente, porque o próprio
Aristóteles tinha consciência da ‘impossibilidade’ desse ideal na vida
mortal, embora não achasse inconveniência em ‘na medida do possível
imortalizar-nos e fazer tudo ao nosso alcance para viver de acordo com o
mais excelente que há em nós.’ (EN 1197 b 34-35)”.
216
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 69. Ressalvamos que a
“capacidade” que reside na natureza humana é, na verdade, ativamente, a
disposição da natureza humana em tender ao transcendente e,
passivamente, o que tecnicamente em teologia se chama potência
obediencial (TOMÁS DE AQUINO. De Virtutibus, q. 1, a. 10, ad 13. In:
Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003: “Sicut enim ex aqua vel terra potest
aliquid fieri virtute corporis caelestis, quod non potest fieri virtute
ignis; ita ex eis potest aliquid fieri virtute supernaturalis agentis
quod non potest fieri virtute alicuius naturalis agentis; et secundum
hoc dicimus, quod in tota creatura est quaedam obedientialis potentia,
prout tota creatura obedit Deo ad suscipiendum in se quidquid Deus
voluerit”; TOMÁS DE AQUINO. De Veritate, q. 8, a. 4, ad 13. In: Corpus
Thomisticum, CD-ROM, 2003: “Quaedam vero potentia est obedientiae
tantum, sicut dicitur aliquid esse in potentia ad illa quae supra
naturam Deus in eo potest facere; et si talis potentia non reducatur ad
actum, non erit potentia imperfecta [...]”.).
85
essência divina é, essencialmente, efeito da graça sobrenatural,
217
pois “[...] nenhuma criatura é princípio suficiente do ato
meritório da vida eterna, sem se lhe acrescentar o bem
sobrenatural, chamado graça”
218
, que significa “um dom
sobrenatural, procedente de Deus para o homem”.
219
Para tanto,
“[...] Deus infunde nos seres que move à consecução do bem
sobrenatural eterno, certas qualidades sobrenaturais pelas quais
os move, suave e prontamente, para a obtenção do bem eterno”.
220
Para dispor o homem à consecução da vida sobrenatural,
Deus dispôs recursos proporcionais a esse fim, porque “a razão e a
vontade não se ordenam suficientemente [a Ele] por natureza”
221
, e
“a beatitude do homem é um dom que mana da infinita gratuidade da
fonte primeira do ser”.
222
Esses recursos são, as graças
genericamente falando, dado que divisões de tipos de graças — e
as virtudes
223
sobrenaturais infusas (por Deus):
A virtude aperfeiçoa o homem para os atos pelos quais
se ordena para a felicidade [...]. Ora, a felicidade
do homem é dupla [...]. Uma, proporcionada à natureza
[...]. Outra excede-lhe a natureza e pode alcançá-
la pelo auxílio divino [...]. E como esta beatitude
excede as proporções da natureza humana, os princípios
naturais, que dirigem o homem no agir proporcionado ao
seu ser, não bastam a ordená-lo à referida beatitude.
Portanto, é necessário lhe sejam acrescentadas por
Deus certos princípios pelos quais se ordene à
beatitude sobrenatural [...]. Ora, esses princípios se
chamam virtudes teologais, quer por terem Deus como
217
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 12, 12, ad 3um, p. 105: “O
conhecimento da essência de Deus, sendo efeito da graça, os bons o
podem ter [...]”; II-II, 175, 3, c, p. 3308: “Ora, o mesmo se com a
visão dos bem-aventurados, que excede a condição da vida presente
[...]”.
218
Idem. Ibidem. I-II, 114, 2, c, p. 2009.
219
Idem. Ibidem. I-II, 110, 1, c, p. 1968.
220
Idem. Ibidem. I-II, 110, 2, c, p. 1969.
221
Idem. Ibidem. I-II, 62, 1, ad 3
um
, p. 1481.
222
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I. 1986, p. 54.
223
Idem.. Escritos de Filosofia V. São Paulo: Loyola, 2000, p. 149: “A
noção de virtude, apresentando-se como veículo principal da tradição
socrática, ofereceu à Ética clássica ao mesmo tempo a estrutura de
sustentação de seu discurso orientado pela intenção primeira de ser a
expressão universal da vida ética, e a possibilidade das variantes dessa
expressão que encontramos nas éticas platônica e aristotélica, nas
éticas helenísticas e na ética cristã”.
86
objeto [...], quer por nos serem infundidos por
Deus [...].
224
No pensamento tomasiano, pois, esses auxílios têm
razão de ser por causa dessa predestinação genérica e objetiva do
homem ao sobrenatural, os quais para ele são instituídos e
ordenados.
225
Na historiografia do medievo, Tomás de Aquino é então
o ponto do feliz encontro, sem confusão, de duas vertentes de
pensamento de sua época, a saber, a teológica e a filosófica
quanto à concepção das virtudes.
226
A ordem psicológica da atuação desses auxílios, segundo o
pensamento tomista, é como segue:
Assim, primeiramente, ao intelecto se lhe acrescentam
certos princípios sobrenaturais, apreendidos por
iluminação divina, e que são os princípios da crença,
objeto da fé. Em seguida, a vontade se ordena para o
fim sobrenatural, pelo movimento intencional, tendendo
para ele, como o que é possível conseguir, o que
pertence à esperança; e por uma como união espiritual,
pela qual, de certo modo, se transforma nesse fim, o
que se realiza pela caridade.
227
224
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 62, 1, c, p. 1481: “[...]
per virtutem perficitur homo ad actus quibus in beatitudinem ordinatur
[...]. Est autem duplex hominis beatitudo sive felicitas [...]. Una
quidem proportionata humanae naturae [...]. Alia autem est beatitudo
naturam hominis excedens, ad quam homo sola divina virtute pervenire
potest [...]. Et quia huiusmodi beatitudo proportionem humanae naturae
excedit, principia naturalia hominis, ex quibus procedit ad bene agendum
secundum suam proportionem, non sufficiunt ad ordinandum hominem in
beatitudinem praedictam. Unde oportet quod superaddantur homini
divinitus aliqua principia, per quae ita ordinetur ad beatitudinem
supernaturalem [...]. Et huiusmodi principia virtutes dicuntur
theologicae, tum quia habent Deum pro obiecto, [...]; tum quia a solo
Deo nobis infunduntur [...]”.
225
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 112: “O teólogo Tomás o
mundo em seu conjunto como obra do ato de criação, pelo qual a sabedoria
divina não apenas colocou os seres na existência, mas também ordenou-
os”.
226
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia IV. 2002, p. 238: “O tópico dos dons e
das virtudes morais infundidas constitui justamente um dos lugares
teóricos onde a vertente Teológica e a vertente filosófica da Ética
tomásica se encontram sem se confundir”.
227
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 62, 3, c, p. 1483: “Et
primo quidem, quantum ad intellectum, adduntur homini quaedam principia
supernaturalia, quae divino lumine capiuntur, et haec sunt credibilia,
de quibus est fides. Secundo vero, voluntas ordinatur in illum finem et
quantum ad motum intentionis, in ipsum tendentem sicut in id quod est
possibile consequi, quod pertinet ad spem, et quantum ad unionem quandam
spiritualem, per quam quodammodo transformatur in illum finem, quod fit
per caritatem”.
87
Esta última ocupa um lugar de primazia “na ordem da
perfeição” dentre as demais. Efetivamente:
Na ordem da perfeição, a caridade precede a e a
esperança, porque tanto esta como aquela se formam e
adquirem a perfeição de virtude, pela caridade. Por
onde, a caridade é a mãe de todas as virtudes,
enquanto forma de todos [...].
228
Mas ainda é preciso admitir a existência de outras,
auxiliares, de modo a subsidiar as virtudes teologais, as quais
são “a temperança e a justiça, a prudência e a fortaleza”
229
, cujas
diferenças das naturais precipuamente dão-se:
Pelas noções especiais e formais dos objetos [...] e
conforme aquilo para o que se ordenam. [...] E, desta
maneira, as virtudes morais infusas, pelas quais os
homens se ordenam convenientemente para virem a ser
cidadãos dos santos e domésticos de Deus, diferem
especificamente das virtudes adquiridas, pelas quais
os homens se ordenam convenientemente para as coisas
humanas.
230
Posteriormente, trataremos da caridade e das virtudes
homônimas a estas últimas, as quais são adquiridas pela indústria
humana e, por conseguinte, são naturais. A todas as virtudes
sobrenaturais infusas é que se propriamente o nome de virtudes,
porque elas é que dispõem o homem nesta vida, adequadamente,
para o fim sobrenatural a que ele — por graça — está destinado.
231
228
Idem. Ibidem. I-II, 62, 4, c, p. 1485: Ordine vero perfectionis,
caritas praecedit fidem et spem, eo quod tam fides quam spes per
caritatem formatur, et perfectionem virtutis acquirit. Sic enim caritas
est mater omnium virtutum et radix, inquantum est omnium virtutum forma
[...]”.
229
Idem. Ibidem. I-II, 63, 3, sc, p. 1489.
230
Idem. Ibidem. I-II, 63, 4, c, p. 1490: “[…] secundum speciales et
formales rationes obiectorum. […] Et per hunc etiam modum differunt
specie virtutes morales infusae, per quas homines bene se habent in
ordine ad hoc quod sint cives sanctorum et domestici Dei; et aliae
virtutes acquisitae, secundum quas homo se bene habet in ordine ad res
humanas”.
231
Idem. Ibidem. I-II, 65, 2, c, p. 1502: “Do sobredito consta portanto,
com clareza, que as virtudes infusas são perfeitas e se chamam
virtudes, absolutamente falando. Ao passo que as adquiridas que são as
outras o são parcial e não absolutamente, porque ordenam bem o homem
para um fim último, não absoluta, mas genericamente”.
88
Por acaso essa beatitude sobrenatural é a mesma do
Estagirita? Devemos notar com De Boni que “se o esquema [da
beatitude elaborado por Tomás] é boeciano, a argumentação é
aristotélica [...]”
232
. Não obstante, o que importa é que “a fonte
primeira do tratado do Aquinate é, sem dúvida, Severino Boécio,
que lhe forneceu um modelo acabado de desenvolvimento do tema.
[...]”
233
, que Santo Tomás
234
hauriu da obra A Consolação da
Filosofia, em que Boécio propõe: “[...] a felicidade é um estado
de perfeição, pelo fato de reunir em si mesma todos os bens”.
235
Ora, devemos notar que o Estagirita se questiona acerca
da felicidade ou beatitude dentro dos limites da vida
intramundana,
236
e, ainda que no pensamento de Aristóteles o
indivíduo, relativamente, seja absorvido pela pólis, que é seu
destino ulterior, não outro.
237
Ao comparar as reflexões entre
Boécio da Dácia e Tomás, De Boni afirma que, aquele, “juntamente
com Tomás, mantém a distinção entre ‘esta vida’ e a vida futura’
[...]”.
238
Assim, do sobredito resulta que, quanto à felicidade
sobrenatural, o Angélico “não segue” os passos do Estagirita
porque, de seu contexto grego e pagão, este último não deu passos
além
239
embora use sua terminologia. Vai mais além deles, o que
era de se esperar, dadas suas convicções filosóficas e
teológicas.
240
232
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 64s.
233
Idem. Ibidem.
234
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 26, 1, c, p. 259; I-II, q.
1-5, p. 1025-1079.
235
BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, L.
III, 2-5. Esta definição segundo Jolivet Boécio a tira de Cícero,
que essa definição de felicidade: “[...] secretis malis omnibus,
cumulata bonorum omnium complexio [...]”. (Tusculanes, V, 10). In:
JOLIVET. Tratado de Filosofia: Moral. Rio: Agir, 1966, p. 54.
236
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 66: “Aristóteles pergunta-se
sobre a felicidade que é possível ao homem nesta vida, e nada mais”.
237
Idem. Ibidem. p. 108: “[...] para Aristóteles, a pólis, de certo modo,
esgota o indivíduo este não possui uma realização maior que aquela que
a cidade lhe possibilita [...]”
238
Idem. Ibidem. p. 70.
239
Idem. Ibidem. p. 69: “O Aristóteles de Tomás de Aquino disse coisas
que o Aristóteles histórico jamais imaginou, extraiu conclusões que
nunca foram suas, embora fossem suas as premissas, porque faltaram ao
pensador grego noções filosóficas fundamentais, como a de criação por
bondade divina e a de providência”.
240
Idem. Ibidem. p. 66: “Tomás afirma, então que a contemplação de Deus é
a felicidade do homem”.
89
Quanto a este último ponto, De Boni diz que a ilação
tomasiana de que a verdadeira contemplação reside na visão
beatífica da essência divina “[...] força o texto aristotélico
[...]”.
241
Martínez Barrera diz que Gauthier e Mercken
242
na mesma
linha postulam que o Aquinate transforma a moral do Estagirita,
ao inserir nela a perspectiva cristã
243
, não obstante tenha ele
opinião um tanto diversa.
244
A julgar pela linha de raciocínio
apresentada por De Boni corroborada pelos pressupostos
oferecidos pelos demais críticos e pelos textos de Santo Tomás,
somos inclinados a assentir com ela, observando que, em se
tratando da vida contemplativa ápice de ambas as beatitudes —,
lemos na Suma Teológica que “a vida contemplativa [tanto nesta
vida quanto na outra] se chama à daqueles que principalmente se
aplicam à contemplação da verdade.
245
[...] a vida contemplativa,
pela própria essência mesma da sua ação, pertence ao intelecto
[...]”.
246
241
Idem. Ibidem. p. 66: “Tomás afirma, então que a contemplação de Deus é
a felicidade do homem. Ora, esta conclusão força o texto aristotélico,
ao interpretar o vivere secundum virtutem, como sendo referência à
virtude dianoética suprema, e prescrevendo às virtudes morais a função
de meio na hierarquia da busca da felicidade”. [itálico do original]
242
MERCKEN. Op. cit.. p. 151-161ss. Neste trabalho o próprio Mercken
apóia-se, em boa parte, em R. A. Gauthier.
243
MARTÍNEZ BARRERA. Op. Cit. p. 159s: “Algunos autores, como P. GAUTHIER
(Aristote, L’Etique à Nicomaque, Introd. p. 131; Sententia Libri
Ethicorum, Introd. [Ed. Leonina] 47, 235-257) y P. MERCKEN
(Transformation of the Ethics of Aristotle in the Moral Philosophy of
Thomas Aquinas), sostienen que Santo Tomás opera una trasformación de la
moral aristotélica al introducir una perspectiva cristiana que
relativizaria las afirmaciones de la Etica”.
244
Idem, ibidem, p. 160: “[...] No parece que pueda concluirse de manera
tajante sobre esta cuestión, sobre todo si se tiene en cuenta que el
mismo Aristóteles introduce en 1101a 20-21 la expresión makarious
d’anthrôpou, lo cual es el beatus ut homines latino del que se ocupa
Santo Tomás en repetidas ocasiones.
245
Aqui vale lembrar que, ao contrário da afirmação de Sangalli [O Fim
Último do Homem. 1998, p. 83], o termo  em Tomás é traduzido,
além de contemplatio em sentido teológico, também em sentido filosófico.
No 1
o
. argumento, o Aquinate evoca a Metafísica 993b 20 ().
246
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 1980, II-II, 180, 1, c, p. 3330;
CAMELLO. A felicidade como bem supremo. In: DE BONI. Idade Média: ética
e política. 1996, p. 285.: “Contemplar é pois, para Aristóteles, como
para Santo Tomás, o ponto mais elevado a que pode chegar o homem, na
realização de sua natureza ou, nessa, daquilo que é a fonte e o
princípio da substancialidade humana: a forma. A inteligência que
contempla a verdade (ao limite, a Verdade de Deus ou a Verdade
simplesmente), exerce-se”.
90
Essa posição do Santo de Aquino é análoga à de
Aristóteles ressalvadas as devidas peculiaridades no âmbito
epistemológico de cada um —, pois este a contemplação como
resultante da virtude, como a felicidade última do homem.
247
No
postulado aristotélico, a relação entre a vida virtuosa e a
contemplação tem a característica de complementaridade, desta
última àquela, sendo a segunda a perfeição da primeira.
248
Essa
felicidade última é levada a efeito pela potência mais eminente do
homem, o intelecto
249
que, no universo da concepção peripatética, é
o que mais caracteriza o homem e lhe essa condição ímpar de
transcender a si mesmo.
Para uma boa síntese dos argumentos coligidos por Tomás,
a partir da leitura de Aristóteles, para justificar a conclusão
segundo a qual é a vida especulativa que consiste na felicidade,
podemos nos servir de Rezende, bem como de Camello
250
, que,
resumidamente, oferece seis pontos:
1. “A felicidade reside na melhor operação”
251
;
2. “Consiste na atividade especulativa”
252
;
3. “Vem acompanhada de prazer”
253
;
247
SANGALLI. O Fim Último do Homem. 1998, p. 78: “[...] a atividade da
faculdade racional, ou seja, tanto a atividade virtuosa (a prática) como
a atividade pura da mente (a teoria) ‘são sem dúvida as partes
constitutivas essenciais e indispensáveis da felicidade’”.
248
Idem. Ibidem. p. 80: “Tem bastante ênfase a relação de
complementaridade ou de subordinação (as virtudes como meio) ou, ainda,
de interação entre estes dois tipos de vida”
249
Idem. Ibidem. p. 82: “A  é a atividade conforme a virtude
mais elevada e ‘a virtude mais elevada é o  e sua operação
; logo, a felicidade funda-se no , na contemplação”.
250
CAMELLO. A Felicidade como bem supremo. In: DE BONI. Idade Média:
ética e política. 1996, p. 284.
251
REZENDE. Da Contemplação Aristotélica segundo Santo Tomás. In: DE
BONI. Idade Média: ética e política. 1996, p. 309: “1 A felicidade
reside na melhor operação. Ora, o entendimento é a potência dessa
operação. Assim, fica claro que a atividade teorética é a melhor, uma
vez que o entendimento é o que de melhor em nós. Além disso, o objeto
de sua atividade também é melhor, a saber, as realidades cognoscíveis
que são as mais altas, as mais inteligíveis e as melhores”.
252
Idem, ibidem: “2 A felicidade perfeita consiste na atividade
especulativa, ainda, porque essa operação é mais contínua. De fato,
podemos nos dedicar à contemplação (da verdade) de modo mais contínuo do
que realizar qualquer outra ação”.
253
Idem, ibidem: “3 A felicidade vem acompanhada de prazer. Dentre as
operações virtuosas a mais aprazível é a contemplação (da sabedoria). A
consideração da verdade se de duas maneiras: uma, a busca da verdade
91
4. “É auto-suficiente”
254
;
5. “E buscada por si mesma”
255
, e,
6. “Consiste no lazer”.
256
Sangalli mostra a eminência da contemplação intelectual
no pensamento do Estagirita, entendida por este como uma certa
“participaçãodo homem na natureza divina (dos deuses), como que
apontando um modo pelo qual o homem pudesse imortalizar-se:
Aristóteles, ao dizer que a  é a
atividade intelectual, ou seja, o , ressalva
que ‘uma vida como esta seria demasiadamente elevada
para o homem, pois não seria como homem que ele
viveria assim, mas como se algo de divino estivesse
presente nele’ (EN 1177b 8). [...] Sendo o  a
melhor parte existente em nós, ‘devemos tanto quanto
possível agir como se fôssemos imortais e esforçar-nos
ao máximo para viver de acordo com o que de melhor
em nós’ (EN 1178a 35).
257
Um pouco antes Sangalli afirmara a possibilidade de se
entender a  num sentido místico
258
, mesmo que a
e outra, a contemplação da verdade encontrada e conhecida. Esta
última produz mais deleite que a primeira”.
254
Idem, ibidem: “4 A felicidade é auto-suficiente. Tal auto-
suficiência é encontrada sobretudo na atividade especulativa. Tanto o
sábio (ou o homem especulativo) como o homem dotado de virtude moral têm
necessidades básicas relativas à vida. Contudo, o sábio pode considerar
a verdade especulativa estando só, isso porque a contemplação da verdade
é um ato interior que não passa para o exterior. O mesmo não se com
as pessoas possuidoras de virtude moral, pois estas precisam de outros
no exercício de sua virtude”.
255
Idem, ibidem, p. 310.: “5 A felicidade é buscada por si mesma e de
maneira alguma em função de outra coisa. Fato que se verifica apenas em
relação à sabedoria. Pois, pela contemplação nada se acrescenta ao homem
a não ser a própria consideração da verdade”.
256
Idem, ibidem: “6 (…) a felicidade consiste no lazer (o termo grego é
skholé). Santo Tomás torna essa passagem mais clara dizendo que a
felicidade consiste em um certo lazer ou descanso, se entendemos que
alguém descansa quando não restou nada que ainda precisa fazer e isso
ocorre quando certa operação chegou ao fim. [...] O lazer é o repouso no
fim da operação. Assim, o lazer vincula-se à felicidade, por ser ela o
fim último”.
257
SANGALLI. O Fim Último do Homem. 1998, p. 84; HOBUS. Op. Cit. p. 128.:
“[...] pois para Aristóteles esta atividade pertinente à atividade
teorética é realmente perfeita em relação às demais [...]. Várias
passagens da EN atestam tal superioridade e EN X 6-9 é a maior prova
disso. [...] A atividade contemplativa é a  ‘mais alta’[ou
em mais alto grau (1178a 7-8), ‘mais contínua’, ‘mais auto-suficiente’,
a ‘mais prazerosa das atividades conforme à virtude (1177a 24)’ ”.
258
Idem. Ibidem. p. 84.: “[...] a  pode significar algo que
transcende os limites da pura filosofia. Pode ser uma contemplação do
92
propriedade dessa interpretação seja, de fato, efetivada “com os
estóicos [...], passando, de certa forma, por Plotino e pelo
próprio Agostinho”, do que se depreende que até no Estagirita se
pode pensar no homem predisposto ao transcendente a este mundo.
Aliás:
A atividade dos deuses, que supera todas as outras em
bem-aventurança, deve ser contemplativa;
conseqüentemente, entre as atividades humanas a que
tiver mais afinidades com a atividade de Deus será a
que proporciona a maior felicidade’ (EN 1178b 25). s
humanos, desfrutamos de alguma semelhança com a
atividade divina e, assim, podemos participar da
atividade contemplativa, isto é, na medida do possível
e com um pouco de sorte, seremos também
.
259
Se podemos, sem temor, assumir a perspectiva de
Sangalli
260
, a partir da leitura que faz do Livro X da Ética a
Nicômaco, outrossim, podemos asseverar que, em consonância com
Aristóteles, o Aquinate, fazendo leitura do mesmo Livro X da Ética
tipo mística (contemplatio). O contemplar como uma espécie de visão
(visio) e fruição (fruitio) das coisas divinas próprias de uma vida dos
bem-aventurados ()”.
259
Idem. Ibidem. p. 84s. AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles. São Paulo:
Discurso Editorial, 2003, p. 241: “[...] os homens podem se aproximar da
felicidade, inteiramente presente em Deus, mas somente ‘na medida em que
uma certa semelhança com o ato de Deus está presente neles
()’”; LIMA VAZ.
Escritos de Filosofia II, 1993, p. 130.: “O bios theoretikós revela-se,
então, como a vida mais excelente do homem, tendo seu ato mais perfeito
na theoría. Como não celebrar nessa forma devida, que nos é comum com os
deuses, o alvo a que tende a vida segundo a virtude, que é a vida
propriamente humana?”
260
Idem. Ibidem. p. 85: “Aristóteles parece defender uma concepção não-
antropocêntrica, contrariamente ao caráter antropocêntrico evidenciado
nos livros anteriores [...], uma vez que identifica a  com a
atividade contemplativa, deixando à prática das virtudes morais um papel
secundário. O destaque está na atividade do intelecto, do entendimento
intuitivo. Quem vive na prática das virtudes morais ‘é feliz somente de
um modo secundário, pois as atividades conforme a estas espécies são
puramente humanas (EN 1178a 10)”; L. Ollé-Laprune. Essai sur la morale
d’Aristote (1881). p. 272. In: AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles. São
Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 279: “[...] quanto mais examino a
concepção de Aristóteles sobre a felicidade, mais me convenço que seu
defeito, de qualquer forma, o único dessa admirável concepção, é o de
ser restrita aos limites da existência atual [...]”; L. Ollé-Laprune.
Op. cit. p. 170.: “[...] as condições impostas ao homem, sendo o que
são, a felicidade em sua plenitude é um ideal; tende-se para ela sem
cessar, mas quase não se pode pretende-la. Encontramo-la às vezes, mas
93
nicomaquéia, ensina que a prática das virtudes possui um caráter
secundário em relação à contemplação da verdade pelo intelecto.
Elas possuem, portanto, um status de elemento dispositivo na
consecução da contemplação e não de sua constituição, outorgando
ao homem uma felicidade ativa, enquanto a contemplação outorga uma
felicidade “estática”:
O que pertence à vida contemplativa de dois modos pode
lhe pertencer: essencialmente ou dispositivamente.
Essencialmente, as virtudes morais não pertencem à
vida contemplativa, por ser o fim dela a contemplação
da verdade. Ora, o saber, que respeita o conhecimento
da verdade, vale pouco para adquirirmos as virtudes
morais, como ensina o Filósofo. Por isso, diz ele
também que pelas virtudes morais obtemos a felicidade
ativa e não a contemplativa. Mas, dispositivamente, as
virtudes morais pertencem à vida contemplativa.
261
Adentrar no debate quanto à coerência interna das partes
da Ética a Nicômaco a respeito da felicidade ou ”,
não obstante sua relevância, escapa aos limites de nosso trabalho.
Apenas para sinalizar uma proposta parece-nos que João Hobus
262
estabeleceu bem a possibilidade pretendida em seu trabalho de
se entender a harmonia entre a parte inicial e o Livro X da Ética
do Estagirita.
as circunstâncias são como podem ser, e com matérias que não se domina,
faz-se o melhor”.
261
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 180, 2, c, p. 3331:
“[...] quod ad vitam contemplativam potest aliquid pertinere dupliciter,
uno modo, essentialiter; alio modo, dispositive. Essentialiter quidem
virtutes morales non pertinent ad vitam contemplativam. Quia finis
contemplativae vitae est consideratio veritatis. Ad virtutes autem
morales scire quidem, quod pertinet ad considerationem veritatis, parvam
potestatem habet, ut philosophus dicit, in II Ethic. Unde et ipse, in X
Ethic., virtutes morales dicit pertinere ad felicitatem activam, non
autem ad contemplativam. Dispositive autem virtutes morales pertinent ad
vitam contemplativam. [...]”.
262
HOBUS. Eudaimonia e Auto-Suficiência em Aristóteles. 2002, p. 23: “Por
outro lado haverá uma tentativa de harmonizar o que parece, à primeira
vista, uma contradição entre os mesmos livros, na tentativa de
demonstrar que EN I não restringe o que é peculiar ao homem, ou seja,
sua atividade racional, à razão teorética, mas abre espaço para compor
uma concepção de bem supremo, que não exclua as atividades relativas à
virtude, reservando um espaço mais nobre para a vida contemplativa
estabelecida em EN X, isto é, a compreensão da  perfeita como
um conjunto de bens”.
94
Efetivamente, segundo a leitura de Hobus
263
que assumimos
como nossa —, o que Aristóteles se propôs no Livro I da Ética a
Nicômaco, ele levou a cabo no Livro X da mesma obra. Aliás, para
Hobus
264
, “qualquer interpretação que de encontro a tal
perspectiva, dar-se-á por um equívoco em estabelecer as distinções
operadas por Aristóteles, no desenvolvimento de sua argumentação”.
No tocante, especificamente, ao assunto da
 aristotélica, Sangalli
265
, não deixa de mostrar,
com muita propriedade, um certo “cunho teológico dessa mesma
”. Dispensa dizer que, para se entender bem qualquer
aproximação e analogia entre a teologia do Estagirita e a do
Aquinate, a Teologia peripatética dista da Teologia tomista como o
natural do sobrenatural. Tanto é que Sangalli ressalta que:
É mais razoável entender o contemplar como uma
atividade específica da inteligência humana e, como
humano, o melhor é ocupar-se tão-somente com a busca
da verdade pelos caminhos e limites da razão auxiliada
pela experiência.
266
263
Idem, Ibidem, p. 27: “Não há, por parte de Aristóteles, nenhuma
intenção [...] de estabelecer uma divergência no que tange aos livros I
e X da EN: ‘Muitos comentadores concordam, e eu assumirei, aqui, que
Aristóteles não intenta nenhuma divergência nas concepções dos livros I
e X. No livro I Aristóteles promete que, mais tarde, ele discutirá tanto
a vida teorética como uma candidata para a  (1096a 4-5), bem
como providenciará uma concepção mais específica da  (1098a
20-22).’ Ora, isto teria sido realizado em EN X, ou seja, os requisitos
específicos em I, foram adequadamente preenchidos em X 6-8”.
264
Idem. Ibidem. p. 27.
265
SANGALLI. O Fim Último do Homem. 1998, p. 88: “[...] não dá para negar
que a idéia de  aristotélica comporta uma moral também com um
certo cunho teológico, isto é, a idéia de uma forma de vida do tipo
ascético, voltada para a atividade do puro exercitar contemplativo das
divindades, dos astros, dos números, etc... Seria o ocupar-se com o
objeto ou os objetos mais adequados a parte mais divina que o homem
possui [...]”; L. Ollé-Laprune. Essai sur la morale d’Aristote (1881).
p. 173. In: AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso
Editorial, 2003, p. 279: “[...] a vida contemplativa é rara, mas tender
na sua direção já é começar a possuí-la”.
266
Idem. Ibidem. p. 88. E com Hobus (Op. cit. p. 134): “Embora seja o que
há de mais divino no homem, a  é especificamente humana, e o
homem não tem possibilidade de viver do mesmo modo que os deuses: o
exercício daquilo que é divino em nós, a contemplação, pode ser a
atividade mais contínua, mas não pode eliminar o seu caráter
propriamente humano”.
95
Em suma, quisemos evidenciar que, no pensamento de Tomás,
uma dupla espécie de beatitude, cuja primeira espécie, que
corresponde ao sentido pleno do termo, dá-se ulteriormente,
somente na visão da essência divina, alvo muito além da concepção
peripatética. Contudo, naquilo em que dela pode o homem participar
nesta vida, ele o deve encetar. É a efetivação da beatitude no
segundo sentido, que corresponde ao sentido relativo do termo, não
obstante não menos verdadeiro e existencial. Tanto que a beatitude
sobrenatural, se não deriva da terrena, pressupõe-na. Razão da
necessidade de sua busca e realização pela Comunidade Política,
enquanto ente jurídico, e pelos cidadãos, enquanto indivíduos e
consortes.
267
Esta segunda espécie de beatitude possui, enfim, dois
modos de realização. O primeiro, no sentido de eupraxía
(), menos perfeito em relação ao segundo, no sentido de
contemplação, que prepara para a beatitude perfeita e dela, de
certo modo, participa.
Desvelar como Santo Tomás delineia essa beatitude terrena
é o próximo assunto sobre o qual deteremos nossa atenção.
2.3. Bem Comum Natural e Político
Por tudo quanto vimos, certos de que a beatitude
sobrenatural, a visão da essência divina, não pode ser objeto
direto da política ou da ética. Podemos, então, palmilhar com o
Angélico os temas inerentes a essa ordenação terrena, sem
deixarmos de levar em conta o arcabouço de riquezas que a
constituem.
268
Certos, outrossim, de que, se a causa final é, para
267
Por isso divergimos de Finnis (Op. Cit. p. 109) para o qual “[...]
Aquinas never treated contemplation as an organizing or integrating
principle of social and political theory. Indeed, even in his conception
of personal ethics, contemplation has an uncertain role”.
268
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia IV. 2002, p. 234: “Seria arbitrário,
no entanto, separar na Ética tomásica o nível filosófico e o nível
teológico que se integram na unidade de um discurso no qual Tomás de
Aquino recolhe e organiza toda a rica tradição da Ética antiga sobre as
virtudes e pode articulá-la organicamente [...]”.
96
o Doutor Comum, “causa causarum
269
, nada melhor que retornarmos a
ela do ponto em que paramos. E paramos no ponto que coincide com a
conclusão a que chega Sangalli: “Ser feliz, ser ,
consiste em viver bem e conduzir-se bem ()”.
270
Voltando, pois, nosso foco sobre o homem considerando-o
antropológica e ontologicamente, por primeiro —, este é destinado
à ordem natural das coisas com as quais deve estar bem ordenado.
Aliás a disposição da ordenação dos seres incluso o homem é,
primeiramente, entre si e, depois, para Deus.
271
É o que devemos
asseverar, pois, segundo o Angélico, “pela inclinação natural, ele
se ordena a um fim que lhe é conatural”
272
; e, não menos, “[...] o
homem, faz parte da casa, assim, esta, da cidade, que é uma
comunidade política perfeita”.
273
Ressaltando o que acabamos de afirmar, julgamos de tal
densidade uma referência em Tomás, salientada por De Boni, da qual
não podemos deixar de nos abeberarmos:
Ora, uma dupla ordem a se considerar nas coisas.
Uma, pela qual uma criatura se ordena para a outra;
assim, as partes, ao todo [...], e cada coisa, ao seu
fim. Outra, pela qual todas as criaturas se ordenam
para Deus.
274
269
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 1980, I, 5, 2, ad. 1
um
, p. 40: “Ora,
o bem, sendo de natureza desejável, implica relação de causa final, cuja
causalidade é a primeira de todas; pois o fim é considerado causa das
causas porque faz agir o agente [...]”.
270
SANGALLI. O Fim Último do Homem. 1998, p. 87.
271
A esta dupla ordenação De Boni (De Abelardo a Lutero. 2003, p. 84)
chama a atenção classificando-a como “[...] uma noção fundamental e
revolucionária do Aquinate, ao elaborar sua teoria política [...]”;
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 47, 3, ad. 3
um
, p. 439: “O fim
último de todos os seres é Deus. todavia outros fins subordinados a
este, enquanto uma criatura é ordenada para outra como para seu fim
[...]”; 4, c, p. 440: “[...] todos os seres criados por Deus mantêm
entre si e para com Ele uma ordem [...]”.
272
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 62, 3, c, p. 1483.
273
Idem. Ibidem. I-II, 90, 3, ad 3
um
, p. 1735; 94, 2, c, p. 1760: “Em
terceiro lugar, existe no homem uma inclinação para o bem fundada em a
natureza racional, que lhe é própria. Assim, tem inclinação natural para
conhecer a verdade a respeito de Deus, e a que concerne à sua vida em
sociedade”.
274
Idem. Ibidem. I, 21, 1, ad 3
um
, p. 217: “Est autem duplex ordo
considerandus in rebus. Unus, quo aliquid creatum ordinatur ad aliud
creatum, sicut partes ordinantur ad totum [...], et unaquaeque res ad
suum finem. Alius ordo, quo omnia creata ordinantur in Deum”.
97
Imediatamente antes, o Angélico, num pequeno “ensaio” de
semântica, precisa o termo “devido” como segue: “[...] a palavra
devidoimplica uma certa ordem de exigência ou de necessidade de
um ser em relação a outro, ao qual se ordena”.
275
No início deste
argumento, ele assim pontifica: “A cada um é devido o que lhe
pertence. Ora, dizemos que uma coisa pertence a alguém quando se
lhe ordena [...]”.
276
Disso depreendemos que o homem está
primeiramente o que não quer dizer unicamente ordenado à vida
política por disposição de sua própria compleição entitativa e,
depois, ordenado não mais entitativamente à outra ordem
ulterior. E tanto maior convicção temos disso quanto imputamos
que, mesmo no estado paradisíaco, o homem estava — primeiramente —
ordenando à vida presente e ao seu Bem Comum Político “[...]
porque sendo o homem animal naturalmente social, os homens, no
estado de inocência, viveriam socialmente. Ora, não podia haver
vida social de muitos, sem que presidisse alguém, que os dirigisse
para o bem comum”.
277
Estamos entrando, pois, na ordem dos fins que é a
primeira na ordem da ação, sendo seu princípio e seu termo
278
,
porque o bem, como fim, é o objetivo precípuo da vontade
279
,
lembrando-nos de que o bem tem razão de fim e de móbil, “a
primeira de todas as causas é a final”
280
; também “um ser tende
para um fim pela sua ação ou pelo seu movimento [...], movendo-se
a si mesmo para o fim, como o homem”.
281
O homem “movendo-se a si mesmo para o fim” implica nele a
possibilidade de autodeterminação que acrescente algo a seu ser e
pelo qual ao mesmo tempo tenda livremente a seu fim ulterior.
275
Idem. Ibidem.
276
Idem. Ibidem.
277
Idem. Ibidem. I, 96, 4, c. E em Idem. Ibidem. II-II, 47, 10, ad 2
um
.:
“[...] o bem particular não pode existir sem o bem comum ou da família,
da cidade, ou do reino. [...] fazendo o homem parte de uma casa ou de
uma cidade, é preciso levar em conta o que lhe constitui o bem [...]”.
278
Idem. Ibidem. I-II, 1, 3, c. “Ora, o objeto da vontade é o bem e o
fim. Por onde é manifesto, que o princípio dos atos humanos, como tais,
é o fim; e semelhantemente, também é o termo deles”.
279
Idem. Ibidem. II-II, 47, 4, c, p. 2413: “[...] o bem, como tal, é o
objeto da potência apetitiva”.
280
Idem. Ibidem. I-II, 1, 2, c, p. 1027.
281
Idem. Ibidem.
98
E isto, como dissemos, é a ação do homem, derivada da livre
vontade humana
282
, a qual sempre será moral, enquanto livre.
283
Em
relação a isto, convém pontuar, na senda de Martínez Barrera, que
uma distinção entre “humano ou moral” e “bom ou mau”. No
primeiro aspecto, o “humano ou moral” se em relação à
vontade que é quem exerce a função de agente do ato; no segundo
aspecto, “o bom ou mau” é a razão que apresenta algo sob esse
aspecto cujo objeto a vontade adere, consoante tenha se
determinado.
284
Essa ordem é apresentada pelo próprio Angélico na
Suma Teológica, nas questões 6 a 17, em que ele aborda o primeiro
aspecto
285
, e nas questões 18 a 21, da Primeira Parte da Segunda
Parte, onde ele aborda o outro aspecto
286
, segundo uma conveniente
disposição metodológica, pela qual ele, inicialmente, está
propondo a questão sobre a essência do ato humano e,
posteriormente, os distingue pela sua qualificação em ordem às
eleições possíveis.
287
Ora, no pensamento tomista, toda ciência moral o é por
tratar do ato humano livre que por isto mesmo e enquanto
282
Idem. Ibidem. I, 19, 1, c, p. 190: “Por onde, também a natureza
intelectual tem uma inclinação semelhante para o bem apreendido pela
forma inteligível; de modo que, quando o possui, nele repousa, e o
deseja enquanto não possui. Ora, uma e outra coisa pertencem à vontade”;
Idem. Ibidem. 83, 1, ad 3
um
, p. 733: “O livre arbítrio é causa do seu
movimento, porque o homem, pelo livre-arbítrio, é levado a agir”; Idem,
Suma Contra os Gentios, 1990, I, c. 88, nº. 2, p. 148: “[...] ora, diz-
se que o homem [...] tem livre arbítrio, porque é inclinado a querer por
um juízo da razão, não por um impulso natural [...]”; 3, p. 148:
“[...] conforme diz o Filósofo [III Ethic., 4, 1111b; Cmt 5, 446; 7,
1113b; Cmt 11, 496]: a vontade dirige-se para o fim, mas a eleição, para
as coisas ordenadas ao fim”. Passim.
283
Idem. Ibidem. I-II, 1, 3, c, p. 1029: “[...] atos morais e atos
humanos são o mesmo”.
284
MARTÍNEZ BARRERA. Op. Cit. p. 267: “[...] en primer caso, es la
intervención de la voluntad quien determina como causa agente la
‘humanidad’ del acto; enel segundo, es el objeto al cual la voluntad
adhiere y que le es presentado por la razón, quien ponde la nota de
bondad o maldad”.
285
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, qq. 6-17, p. 1079-1155.
286
Idem. Ibidem. I-II, q. 18-21, p. 1155-1199.
287
MARTÍNEZ BARRERA. Op. Cit. p. 267: “Por una razón de conveniencia
metodológica, Santo Tomás considera primero la condición misma de los
actos humanos en cuanto tales, es decir, la respuesta a la pregunta ¿qué
es un acto humano?, y luego la distinción entre ellos como buenos o
malos”.
99
voluntário se define como ato moral.
288
Mas longe de lançar o
homem num individualismo perante a comunidade, o caráter moral diz
respeito, inclusive, ao convívio social para o qual o homem todo
está naturalmente inclinado. De fato, esse aspecto corre dentro da
consciência do sujeito, mas conjugado com princípios que o
transcendem, não obstante sejam evidenciados a si pela razão mesma
do sujeito enquanto se descobre membro de uma comunidade.
É nesse prisma que se deve discutir a questão da regra do
querer humano, referente a um ponto que sirva de regra e medida do
agir decorrente da vontade humana, mas conforme sua natureza:
“Ora, a ordem devida para com um fim é medida por uma determinada
regra, que é, para os seres que agem conforme a natureza, a
virtude mesma desta que inclina para o fim”.
289
E como que
assinalando um critério de discernimento geral para se qualificar
a vontade humana, Santo Tomás indica o objeto desejado proposto
pela razão e sua concordância com o bem universal
290
que na
própria razão deve ser buscado, mesmo se da retidão prática ou
especulativa
A razão humana, em si mesma, não é regra das coisas;
mas os princípios que lhe são naturalmente inerentes,
são certas regras gerais, e medidas de tudo o que o
homem deve fazer; do que a razão natural é a regra e
medida, embora não seja a medida do natural.
291
288
Idem, ibidem, p. 267: “[...] si tomamos en cuenta que todo acto humano
se define como tal por su carácter de voluntario (o moral), resulta
claro que toda ciencia del obrar es ciencia moral”.
289
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 21, 1, c, p. 1194.
290
Idem. Ibidem. I-II, 19, 3, c, p. 1174: “[...] a bondade da vontade
depende propriamente, do objeto, e este lhe é proposto pela razão; pois
o bem conhecido pelo intelecto é o objeto proporcionado à vontade [...].
[...] Logo, a bondade da vontade depende da razão, do mesmo modo por que
depende do objeto”; Idem. Ibidem. 19, 4, c, p. 1175: “Em todas as coisas
ordenadas o efeito depende mais da causa primeira que da segunda, porque
esta não age senão em virtude daquela. Ora, é em virtude da lei eterna,
que é a razão divina, que a razão humana é a regra da vontade humana,
pela qual se lhe mede a bondade”.
291
Idem. Ibidem. I-II, 91, 3, ad 2
um
, p. 1740: “[...] ratio humana
secundum se non est regula rerum, sed principia ei naturaliter indita,
sunt quaedam regulae generales et mensurae omnium eorum quae sunt per
hominem agenda, quorum ratio naturalis est regula et mensura, licet non
sit mensura eorum quae sunt a natura”.
Se, ao perscrutar a razão, optamos por princípios de
cunho estritamente individual, debandamos para o individualismo;
se, ao invés, decidimos por princípios de cunho comunitário, nossa
vida moral mesmo sua labuta interna ocorrendo no foro da
consciência terá alcance social. É, portanto, a exigência do
critério alterativo na vida social. Negá-lo será negar a própria
sociedade e suas exigências inerentes como condição sine qua non
do alcance de sua plenitude. Tal é o quilate dessa alteridade
social que, quando alguém ordena diretamente sua ação ao bem ou ao
mal de toda a coletividade, a retribuição lhe é devida primeira e
principalmente da parte da sociedade e, somente depois, da parte
de cada um enquanto membro dela.
292
Mesmo na hipótese de alguém,
recôndito consigo mesmo, se afligir algum mal, esse mal recai — ao
menos remotamente sobre a sociedade.
293
E Santo Tomás não precisa
mais explicar o porquê disso, pois antes, no corpo do artigo
havia ponderado que “devemos considerar que quem vive em
sociedade é de certo modo parte e membro de toda ela”.
294
Esse comprometimento é imperioso, porque nossa potência
volitiva não funciona à margem de todo o ser da pessoa. Ela lança
a pessoa em suas eleições, pois é da pessoa que recebe seu ser e
sua força. A vontade é o que possibilita o alcance do móbil, é a
força motriz, é o princípio do dinamismo subjetivo, é o
instrumento de efetivação do ser moral da pessoa, é poder
livremente determinar a moralidade. Comunga com a razão da
universalidade, mas sem ela a razão não pode atingir, pelo sujeito
todo, o bem. Aqui, inscreve-se, como algo necessário, aquilo que
serve à vontade, ora como força; ora como hábito; ora como
potência; ora como medida; ora como contenção, mesmo do melhor
295
292
Idem. Ibidem. I-II, 21, 3, c, p. 1197: “Se porém ordenar o seu ato
diretamente para o bem ou mal de toda a sociedade, esta deve-lhe
retribuir primária e principalmente; secundariamente, devem-na todas as
suas partes”.
293
Idem. Ibidem. I-II, 21, 3, ad 3
um
, p. 1197: “O próprio bem ou mal que
alguém faz a si mesmo, pelo seu ato, redunda na comunidade [...]”.
294
Idem. Ibidem. I-II, 21, 3, c, p. 1197.
295
Idem. Ibidem. I-II, 64, 1, ad 1
um
, p. 1493: “[...] por outro lado [a
virtude] enquanto sendo o que é ótimo e bom, isto é, enquanto conforme
com a razão, ocupa um extremo”.
para, por seu excesso, não incidir em posição análoga àquela
ocasionada pela falta do melhor.
O ser humano, porque inteligente, é um ente dialógico
ou discursive nas palavras de Gilson que precisa de uma vida
temporal para exercer essa sua faculdade em ordem à consecução de
seu fim, sob pena de frustrar o intento mais profundo de sua
natureza. Nesta vida temporal, o homem é um dado eminentemente
variável em seu modo de ser, justamente porque é um ente vivo
296
;
ou em outros termos, o comportamento humano não é homogêneo em
suas manifestações, ele oscila consoante oscilam os ditames da
razão e as determinações da vontade. Porém, desse modo, o homem
não consegue dirigir-se bem, nem seguramente a seu fim, precisa,
pois, de regras que o auxiliem e auxiliares para bem dispor a
vontade nessa difícil e árdua empresa. Necessários se fazem,
então, a lei e seu efeito, que é a virtude, genericamente falando,
os quais são os instrumentais adequados que podem dirigir o homem
ao bem comum, para tal direção devem orientar as suas ações, sob
pena de não ter a qualidade moral necessária para a vida social
297
,
isto porque, segundo o Aquinate, “[...] do fim provém a como que
razão formal do querer o que se lhe ordenem”.
298
Também o mérito e
o demérito provêm dessa mesma “razão formal”: “Por onde é claro
que o ato bom ou mau implica o louvor ou a culpa na medida em que
cai no poder da vontade; implica a retidão e o pecado,
relativamente ao fim [...]”.
299
A lei perpassa a vida social dos membros da comunidade,
dá-lhes uma estrutura ideal enquanto virtude pessoal, é o que
dispõe Santo Tomás, logo no início do tratado da lei:
296
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 256:
“Man is a discursive being whose life must be of some duration if he is
to attain his end. Now this duration is not that of an inorganic body
whose remains invariable throughout its whole curse, but the duration of
a living being”.
297
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 19, 10, c, p. 1184:
“[...] Não é porém reta a vontade do homem que quer um bem particular,
quando não o referir ao bem comum, como fim; pois também o apetite
natural de qualquer das partes deve se ordenar ao bem comum do todo”.
298
Idem. Ibidem.
299
Idem. Ibidem. I-II, 21, 3, c, p. 1197.
A bondade da parte é considerada relativamente à do
todo; por isso, diz Agostinho, ‘é toda parte que
não se coaduna com o todo’. Sendo pois cada homem
parte da cidade, é impossível seja bom sem ser bem
proporcionado ao bem comum; nem o todo pode ter boa
consistência senão pelas partes que lhe sejam
proporcionadas.
300
Explicitar mais que isso a dependência alterativa da
qualidade formal do agir humano é impossível. O bem de cada um
como parte é o bem próprio de cada pessoa na mesma medida em que é
coerente com sua natureza viver em sociedade, pois, conforme a
natureza mesma, as virtudes morais, adquiridas ou infusas,
destinam-se à vida em coletividade
301
, do que são chamadas de civis
porque “[...] habent bonum civile pro fine”.
302
É oportuno salientar que, mesmo a lei cujo fim é o bem
comum
303
regulando o uso da virtude, não lhe determina
diretamente, mas genericamente o objeto, uma vez que o bem comum:
[...] consta de muitos elementos, que, portanto, a lei
de necessariamente visar, no concernente às
pessoas, aos atos e aos tempos. Pois, a comunidade
civil é composta de muitas pessoas, cujo bem é buscado
por meio de ações.
304
Porém, antes de nos determos sobre a lei em si mesma,
devemos voltar nossos olhos para os “princípios” que
interiormente, isto é, na própria alma humana funcionam como
aquilo que qualifica, valora as ações humanas, nas suas
disposições. Esse valor advindo desses “princípios”, mesmo que
300
Idem. Ibidem. I-II, 92, 1, ad 3
um
, p. 1746: “[...] bonitas cuiuslibet
partis consideratur in proportione ad suum totum, unde et Augustinus
dicit, in III Confess., quod turpis omnis pars est quae suo toti non
congruit. Cum igitur quilibet homo sit pars civitatis, impossibile est
quod aliquis homo sit bonus, nisi sit bene proportionatus bono communi,
nec totum potest bene consistere nisi ex partibus sibi proportionatis.
[...]”. (itálico do original)
301
Idem. III Sent., d 33, q. 1, a. 4. sol. In: Corpus Thomisticum, CD-
ROM, 2003: “[..] dictum est autem [...] virtutes morales quaedam sunt
infusae, et quaedam acquisitae, et quod acquisitae dirigunt in vita
civili [..]”.
302
Idem. Ibidem.
303
Idem. Suma Teológica. 1980, I-II, 96, 1, c, p. 1774s.
304
Idem. Ibidem. I-II, 96, 1, c, p. 1775: “[…] constat ex multis. Et ideo
oportet quod lex ad multa respiciat, et secundum personas, et secundum
relativo à lei, é anterior a uma espécie dela, mas não de toda
ela. Esses “princípios”, como veremos, devem acompanhar o agir
humano e o acompanham, salvo se, por não terem sido procurados,
seu espaço é ocupado pelo seu contrário, que também serve como
“princípio” valorativo da práxis humana, isto porque é impossível
o agir humano, qualificado como tal, sem valoração, por inclinação
à lei ou em oposição a ela. A esses princípios, inclinados à lei,
chamamos de virtudes, consoante o pensamento do Santo Aquinate,
cujo “tratado” se estende na Suma Teológica, na Primeira Parte da
Segunda Parte, das questões Quarenta e Nove a Sessenta e Sete,
divididas em dois grupos: o primeiro, especificamente sobre os
hábitos, vai da questão Quarenta e Nove à Cinqüenta e Quatro; o
segundo, especificamente, sobre as virtudes (em geral), vai da
questão Cinqüenta e Cinco à Sessenta e Sete. Mais adiante, na
Segunda Parte da Segunda Parte, Tomás tratará cada uma,
“subdividas” se assim o podemos dizer em infusas ou
sobrenaturais (Fé, Esperança e Caridade) e em adquiridas
(Prudência, Justiça inclusa a Religião —, Fortaleza e
Temperança).
Tenhamos presente que as virtudes são hábitos que de
modo permanente e duradouro dispõem a vontade para uma práxis
conforme a lei moral.
305
Ou, para sermos mais precisos, a virtude
nas palavras de Santo Tomás tomadas de Aristóteles — “consiste num
meio termo relativo a nós conforme a razão o determina”.
306
vimos, anteriormente, a distinção entre as virtudes infusas e as
adquiridas e não é necessário especificar que, aqui, referimo-nos
a estas últimas.
307
negotia, et secundum tempora. Constituitur enim communitas civitatis ex
multis personis; et eius bonum per multiplices actiones procuratur […]”.
305
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 259:
“[…] virtues are habits which dispose us in a lasting way to perform
good actions”.
306
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 64, 2, sc, p. 1494.
Gilson (1994, p. 261) privilegia a definição encontrada em I-II, 58, 2,
c, e assim ele a expõe: “Its consists essentialy and primarily in a
permanent disposition to act in conformity with reason”.
307
Gilson (The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 479,
n. 26), fornece uma útil distinção entre “virtus”, “honestum” e
“decorum”: “The term honestum signifies in effect quod est honore
dignum; now honor rightly pertains to excellence [...]; and since men
Julgamos oportuno fazer uma pequena e rápida digressão
quanto à questão da relação entre a arte e a virtude (da
prudência) que o Aquinate trata no artigo 3 da questão 57 (da
Primeira Parte da Segunda Parte da Suma Teológica), ao abordar a
distinção entre as virtudes intelectuais e, a retoma no artigo 4
da questão 47 da Segunda Parte da Segunda Parte, ao refletir sobre
a virtude da prudência em si mesma. Nesse sentido, entendemos que
a questão da proximidade e distinção entre a arte e a virtude (da
prudência, mais especificamente), questão esta que havia sido
“travada” entre o Estagirita nos seus textos e os textos de
seu mestre Platão (principalmente no Hípias Menor 373c), foi muito
bem resolvida pelo Angélico ao ler e comentar a obra ética de
Aristóteles, tanto no Comentário à Ética a Nicômaco como na Suma
Teológica. Em linhas gerais a questão foi resolvida pela
formalidade própria de ambas e, conseqüentemente, pela
superioridade da virtude
308
(da prudência) sobre a arte.
Vejamos o que sentencia Tomás de Aquino especificamente
sobre a arte em geral e sua relação com a virtude (da prudência) —
que também discutiu a arte enquanto “técnica” (factionis)
309
no Comentário à Ética e, paralelamente, na Suma Teológica:
Comentário à Ética a Nicômaco
“[...]
virtus est melior quam ars;
quia per artem est homo potens
Suma Teológica, 1980, II-
II, 47,
4, ad 2um
are excellent through virtues, honestum properly taken is identical with
virtue. Decorum, however, is the kind of beauty proper to moral
excellence. More exactly, it is the ‘spiritual beauty’ which consists in
agreement between action or moral life and the spiritual clarity of
reason […]”.
308
Cf. AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles. 2003, p. 61-63.
309
TOMÁS DE AQUINO. In Ethic. 6, lect. 4, 7. In: Corpus Thomisticum.
2003: Manifestum est enim, quod semper finis factionis est aliquid
alterum ab ipsa factione, sicut finis aedificationis est aedificium
constructum. Ex quo patet, quod bonum ipsius factionis non est in
faciente, sed in facto. Sic igitur ars, quae est circa factiones, non
est circa hominis bona vel mala, sed circa bona vel mala artificiatorum.
Sed finis actionis non semper est aliquid alterum ab actione, quia
quandoque euprasia, idest bona operatio est finis ipsi, idest sibimet,
vel etiam agenti: quod tamen non est semper, nihil enim prohibet unam
actionem ordinari ad aliam sicut ad finem: sicut consideratio effectuum
ordinatur ad considerationem causae. Finis autem est bonum
uniuscuiusque. Et sic patet, quod bonum actionis est in ipso agente.
Unde prudentia, quae est circa actiones, dicitur esse circa hominis
bona”.
quia per artem est homo potens
facere bonum opus; non tamen ex
arte est ei quod faciat bonum o
pus:
potest enim pravum opus agere; quia
ars non inclinat ad bonum usum
artis; sicut grammaticus potest
incongrue loqui; sed per virtutem
fit aliquis non solum potens bene
operari, sed etiam bene operans:
quia virtus inclinat ad bonam
operationem, sicut et
natura, ars
autem facit solam cognitionem bonae
operationis”.
310
“O Filósofo diz que uma virtude
da arte, porque, a arte não implica
a retidão do apetite. Por onde,
para o homem usar bem da arte é
necessário t
er a virtude que produz
a retidão do apetite. Ora, não há
lugar para a prudência no
concernente à arte; quer pela arte
se ordenar a um fim particular;
quer por ter meios determinados
para chegar ao seu fim. Dizemos
contudo, que alguém obra
prudentemente, n
o domínio da arte,
por uma certa semelhança. Pois, em
certas artes, pela incerteza dos
meios de se chegar ao fim, é
necessário o conselho; tais as
artes de curar e de navegar, como
diz Aristóteles”.
311
Dos textos compulsados, podemos afirmar que, conforme o
pensamento do Frade Alventino, as boas obras habitualmente
resultam, possivelmente, do influxo da arte (máxime se produtivas)
e, determinantemente, do influxo da virtude (da prudência). No
plano da práxis, a aporia que se pode levantar é solúvel pela
preeminência da virtude sobre a arte, mas não o contrário. Esta
não torna, de per si, o homem bom, mas aquela, pelo seu influxo,
inclina o homem ao bem, tanto na obra artística quanto em qualquer
operação.
312
310
Idem. Ibidem. lect. 6, nº. 11. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM
311
Idem. Suma Teológica, 1980, II-II, 47, 4, ad 2um, p. 2413: “[...]
philosophus dicit artis esse virtutem, quia non importat rectitudinem
appetitus, et ideo ad hoc quod homo recte utatur arte, requiritur quod
habeat virtutem, quae faciat rectitudinem appetitus. Prudentia autem non
habet locum in his quae sunt artis, tum quia ars ordinatur ad aliquem
particularem finem; tum quia ars habet determinata media per quae
pervenitur ad finem. Dicitur tamen aliquis prudenter operari in his quae
sunt artis per similitudinem quandam, in quibusdam enim artibus, propter
incertitudinem eorum quibus pervenitur ad finem, necessarium est
consilium, sicut in medicinali et in navigatoria, ut dicitur in III
Ethic”.
312
GONZÁLEZ. Moral, Razón y Naturaleza. 1998, p. 196: “Gracias al arte
podemos efectuar buenas obras; gracias a la virtud no sólo podemos, sino
que lo hacemos de hecho. Este punto es de capital importancia, pues es
aquí donde en la práctica se plantean los problemas: estos no suelen
plantearse en el nivel de las normas universales, sino a la hora de
usarlas. En este sentido la respuesta de Aristóteles es nítida: la
prudencia es el saber que lleva anejo el saber usar. Y por ello, como no
existe prudencia sin virtud moral, ésta es irrenunciable para saber
obrar. Esa es también la respuesta de Santo Tomás [...]”.
Estabelecido isso, entramos na enumeração “instrumental”
das virtudes intelectuais, as quais, em número de quatro, são: a
inteligência, a ciência, a sabedoria e a prudência. Destas, as
três primeiras são puramente intelectuais, sob a égide da
sabedoria, cuja regência é análoga ao governo da parte racional da
alma em relação às potências inferiores.
313
A prudência, porém, não
obstante seja intelectual, é mais bem-enumerada entre as virtudes
morais, por se referir ao operar humano.
314
Também porque na
questão do operar humano entra a relação de o homem tender a um
fim e, para isso, é necessário uma virtude, não intelectual, mas
moral, que na operação os fins têm função análoga à função do
princípios nas ciências especulativas. Elegido o fim, é uma
virtude moral que disporá dos meios adequados a esse fim, e esta
virtude é, justamente, a prudência
315
recta ratio
316
agibilium
317
313
GILSON. Ibidem, p. 262: “Four intellectual virtues stand out as most
important: understanding, knowledge, wisdom and prudence. The first
three are purely intellectual and are arranged in order under wisdom as
the lower powers of the soul are under the rational soul”.
314
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 58, 3, ad. 1
um
, p. 1452:
“A prudência é essencialmente uma virtude intelectual; mas, pela sua
matéria, convém com as virtudes morais, pois é a razão reta das nossas
ações [...], e portanto, se enumera entre as virtudes morais”.
315
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 370. Um pouco antes, Nascimento tinha dado
um referencial etimológico de prudência: “Mas, Tomás cita também à q.
49, a. 6, ad 1
um
a etimologia correta: nomen ipsius prudentiae simitur a
providentia (o nome da própria prudência deriva de providência). Ao que
Aubenque (Op. cit. p. 63) comenta: “É Cícero que, para traduzir a
 estóica, recorreu à palavra prudentia (contração de
providentia, que evoca a idéia de previdência, de saber eficaz) e,
finalmente, do De Officiis de Cícero que Santo Ambrósio (De Officiis
Ministrorum, I, 24, 115) e, através dele, toda Idade Média latina, toma
a lista das quatro virtudes cardiais (que Santo Ambrósio chama de
virtutes principales)”; FINNIS, John. Aquinas, Moral, Political, and
Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 167s.
316
Idem. Ibidem. p. 369, n. 5: “Parece difícil encontrar equivalentes
adequados em português para as fórmulas utilizadas por Sto. Tomás para
caracterizar a prudência [...]. Recta ratio agibilium designa o ‘reto
proporcionamento do que é matéria de ação’ [...]”.
317
AUBENQUE (A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial,
2003, p. 60) mostra-se reservado quanto a esta definição: “Santo Tomás
dará uma definição condensada de prudência, inspirada em Aristóteles:
recta ratio agibilium (II-II, 47, 2, sc), mas veremos que esta
simplificação (sugerida, entretanto, EN VI,13, 1144b 28) é contestável”;
Mais tarde (Op. Cit. p. 294) ele reitera: “De fato, Cícero assimila
geralmente o prudens e o sapiens, e a tradição medieval tardiamente
encontrará o sentido aristotélico de uma prudentia que, na lista das
virtudes cardiais que atesta definitivamente o De Officiis de Santo
Ambrósio, não é senão a phrónesis estóica”. Com respeito a esta última
imprescindível para a vida virtuosa
318
, ou, em outros termos, é
aquela que determina e preceitua o que se há de fazer em cada caso
concreto para obrar virtuosamente em vista de um fim:
A prudência é virtude soberanamente necessária à vida
humana. Pois, viver bem consiste em obrar bem. Ora,
para obrarmos bem é necessário levarmos em conta não
o que façamos, mas ainda como o façamos: i. é,
devemos obrar segundo uma eleição reta [...]. Ora,
como a eleição visa aos meios, a sua retidão exige
dois elementos: o fim devido e o que convenientemente
se lhe ordena. Ora, ao fim devido o homem se dispõe
convenientemente pela virtude, que aperfeiçoa a parte
apetitiva da alma, cujo objeto é o bem e o fim. E para
que o homem se ordene retamente ao fim devido é
preciso seja diretamente disposto pelo hábito
racional, pois aconselhar e eleger, que dizem respeito
aos meios, são atos da razão. E portanto é necessário
haver nesta alguma virtude intelectual, que aperfeiçoe
a razão, pela qual proceda acertadamente em relação
aos meios. E tal virtude é a prudência, que, portanto,
é uma virtude necessária ao bem viver.
319
observação Tomás faz distinção entre as concepções aristotélica,
ambrosiana e ciceroniana da prudência (Cf. II-II, 47, 2), salientando
que [...] quem raciocina certo relativamente ao bem viver, chama-se
prudente, em absoluto. [...] a prudência é a sabedoria concernente às
coisas humanas. Não porém a sabedoria, absolutamente falando; porque não
versa sobre a causa altíssima absoluta [Deus], pois diz respeito ao bem
humano [...]”. Mas o motivo maior de Aubenque (Op. cit. p. 64s) é frisar
que (devido a substituição estóica de  por ) “quer se
trate de uma classificação subjetiva ou objetiva, a teoria das virtudes,
partindo de uma totalidade dividida em suas articulações naturais, visa
à exaustão, ao sistema. Ao contrário, o caráter não sistemático da
descrição aristotélica foi freqüentemente sublinhado, seja para deplorá-
lo, seja para saudá-lo”. NASCIMENTO (A Prudência segundo Santo Tomás de
Aquino, 2004. In: COSTA; DE BONI, A Ética Medieval Face..., 2004, p.
374, na análise da crítica de R. A. Gauthier à concepção tomista de
“prudência” (embora C. Arthur esteja nuançando a sindérese) concorda em
que “sem dúvida, a construção de Tomás de Aquino difere notavelmente da
concepção aristotélica na Ética a Nicômaco [...]”. Mas contra algum
excesso, NASCIMENTO (Op. cit.) pondera: “De modo geral, parece-nos que a
intenção perfeitamente legítima e necessária de salvaguardar o conteúdo
original de Aristóteles, e não subsumi-lo automaticamente sob a leitura
e transposição de Tomás de Aquino, leva freqüentemente Gauthier a tender
desfigurar, não tanto Aristóteles, mas Tomás de Aquino”.
318
GILSON. Ibidem, p. 263: “Once the end is willed, it is an intellectual
virtue which will deliberate and choose the means suited to that end.
Thus there must be an intellectual virtue which will put reason into a
state where it can fittingly determine the means to the end. This virtue
is prudence, recta ratio agibilium, and it is a virtue necessary for
right living”.
319
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 1980, I-II, 57, 5, c, p. 1444: “[...]
prudentia est virtus maxime necessaria ad vitam humanam. Bene enim
vivere consistit in bene operari. Ad hoc autem quod aliquis bene
operetur, non solum requiritur quid faciat, sed etiam quomodo faciat; ut
Contudo, a prudência não é a única virtude que conta
da práxis humana. São necessárias outras virtudes
320
, conforme os
aspectos do agir humano. Assim, no que diz respeito à paixão
irascível quanto àquilo a suportar ou a enfrentar —, é
necessário haver uma virtude adequada que lhe uma reta
condução, e esta é a fortaleza; semelhantemente, no que diz
respeito à paixão concupiscível quanto àquilo a moderar nos
apetites e prazeres sensuais —, é imperioso que haja uma virtude
que canalize essa paixão para o bem da vida privada e social, a
qual é a temperança.
321
E, para completar o rol, dentre as virtudes aquela que
regula nossas ações na sua exterioridade e alteridade precípua,
cuja independência de nossas disposições subjetivas é tanto maior
quanto mais essa virtude é sobressalente no momento mesmo do
agir
322
. Tal é o caso, especificamente, da justiça que garante a
retidão e a qualidade moral de nossas ações para com o próximo,
naquilo que elas podem ter de devido e não-devido.
323
Como ela
merece um tratamento à parte, será discutida quando se discutir a
lei.
scilicet secundum electionem rectam operetur [...]. Cum autem electio
sit eorum quae sunt ad finem, rectitudo electionis duo requirit,
scilicet debitum finem; et id quod convenienter ordinatur ad debitum
finem. Ad debitum autem finem homo convenienter disponitur per virtutem
quae perficit partem animae appetitivam, cuius obiectum est bonum et
finis. Ad id autem quod convenienter in finem debitum ordinatur, oportet
quod homo directe disponatur per habitum rationis, quia consiliari et
eligere, quae sunt eorum quae sunt ad finem, sunt actus rationis. Et
ideo necesse est in ratione esse aliquam virtutem intellectualem, per
quam perficiatur ratio ad hoc quod convenienter se habeat ad ea quae
sunt ad finem. Et haec virtus est prudentia. Unde prudentia est virtus
necessaria ad bene vivendum”.
320
Idem. Ibidem. I-II, 61, 1, c, p. 1472.
321
GILSON. Ibidem, p. 263: “If the agent is drawn by passion toward an
act contrary to reason, he has to call on that virtue whose particular
function is to retrain and check passion; namely, the virtue of
temperance. If the agent far from being drawn into action by some
passion, is actually prevented from acting by fear of danger or of
effort or the like, he needs another moral virtue to strengthen him in
the resolutions his reason dictates. This is the virtue of fortitude”.
322
Idem, Ibidem, p. 263: “Some moral virtues regulate the content and
nature of our operations themselves, independently of our personal,
dispositions at the moment of acting”.
Esta divisão quatripartida
324
das virtudes morais se
sustenta no pensamento de Santo Tomás por dupla análise de
seus sujeitos e objetos.
325
Porém não se deve olvidar que como
bem salienta Nascimento “a enumeração das virtudes cardeais
fazia parte da tradição cristã”.
326
Ele exemplifica com a perícope
da obra De Moribus Eclesiae (I. 15) do Santo Bispo de Hipona:
Deste modo, também não terei dúvida em definir da
seguinte maneira aquelas quatro virtudes cuja força
oxalá esteja presente do mesmo modo nas mentes como
seus nomes estão na boca de todo mundo.
327
323
Idem, Ibidem. p. 263: “This is the particular case of justice, which
assures the moral value and rectitude of all operations in which ideas
of what is due and note due are implied”.
324
AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial,
2003, p. 63,: Com efeito, a teoria das quatro virtudes (sabedoria ou
prudência, justiça, coragem, temperança), sugerida por Platão se
tornará clássica com os estóicos (ainda que presente no Protrético, fr.
52, p. 62, 2 e 58, p. 68, 6-9 Rose, e nas partes antigas da Política,
VII, 1, 1323a 27ss, b 33-36 e 15, 1334a 22, é ignorada nas Éticas de
Aristóteles [...]. É Cícero que, para traduzir a  estóica,
recorreu à palavra prudentia (contração de providentia, que evoca a
idéia de previdência, de saber eficaz) e, finalmente, do De Officiis de
Cícero que Santo Ambrósio (De Officiis Ministrorum, I, 24, 115) e,
através dele, toda Idade Média latina, toma a lista das quatro virtudes
cardiais (que Santo Ambrósio chama de virtutes principales)”. De fato, o
Aquinate (Suma Teológica. 1980, I-II, 61, 1, sc) cita Santo Ambrósio
(Super Lucam¸ L. V) para denominar e enumerar as virtudes morais, embora
antes, q. 57, 5, sc cite a própria Sagrada Escritura.
325
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 61, 2, c, p. 1473: “Pois
o princípio formal da virtude, de que agora tratamos, é o bem da razão,
que pode ser considerado sob duplo aspecto. Ou enquanto consiste na
própria consideração da razão, e então a prudência é a virtude
principal; ou, enquanto a ordem da razão é relativa a algum objeto. E
isto será ou relativamente às obras, e então há lugar para a justiça; ou
às paixões, e então é necessário haver duas virtudes. Pois é necessário
estabelecer a ordem da razão relativamente às paixões, levando-se em
conta a repugnância por elas opostas à razão; o que se pode dar de dois
modos. Primeiro, quando a paixão impele a algo de contrário à razão; e
nesse caso é necessário uma virtude que a reprima, e tal é a temperança.
Depois, quando a paixão afasta do que a razão dita, como o temor dos
perigos ou dos trabalhos; e então é necessária uma virtude pela qual o
homem se firme, para não recuar, naquilo que é racional, e isso designa
a fortaleza. E semelhantemente, quanto aos sujeitos, achamos o mesmo
número. Pois, as virtudes de que ora tratamos têm quádruplo sujeito: o
racional por essência, que a prudência aperfeiçoa; e o racional por
participação que comporta tríplice divisão: a vontade, sujeito da
justiça; o concupiscível, sujeito da temperança; e o irascível, sujeito
da fortaleza”.
326
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. (AGOSTINHO, De
Moribus Eclesiae). Síntese Nova Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 370.
327
Idem, ibidem, p. 370.
A prudência ou sabedoria prática
328
gozava de
preeminência sobre as demais virtudes, nos escritos de
Aristóteles.
329
Talvez, por isto mesmo, o termo “prudência” sofreu
um certo desgaste, ou “desqualificação”
330
, como o foi a palavra
“ética
331
, certamente também pelo uso reiterado, matizado
consoante as vicissitudes históricas do pensamento filosófico e da
leitura direta ou indireta das obras de Aristóteles. Todavia,
Tomás o recuperou em seus escritos, conforme o pensamento do
Estagirita
332
, e não lhe menor importância, como o demonstra
Nascimento:
Mas, se hoje precisaríamos recuperar o papel da
phrónesis-prudência aristotélica, houve um momento no
pensamento ocidental em que ela foi posta neste lugar
privilegiado que Aristóteles lhe reserva. Este momento
encontra sua expressão acabada na obra de Tomás de
Aquino.
333
A importância dada pelo Aquinate à prudência chega ao
ponto dele a considerar a “alma” das demais virtudes, pois, sem
ela, seria difícil o exercício da práxis humana, mesmo sendo o
homem dotado de vontade, porque, efetivamente, não basta a vontade
328
LIMA VAZ (Escritos de Filosofia I, 1986, p. 104) ressalta a
inadequabilidade do termo prudentia “consagrada por Sto. Tomás e pelos
moralistas medievais e vulgarizada pelas línguas modernas” o qual “não
exprime, como observa R. A. Gauthier, os matizes próprios de phrónesis.
A tradução mais aproximada é, pois, ‘sabedoria prática’ (practical
wisdom) ou, simplesmente, ‘sabedoria’, desde que contradistinta de
‘sapiência’ (sabedoria teórica, em italiano sagezza-sapienza,
correspondendo a phrónesis-sophia)”. Parece ter sido esta a opção de
Reale (História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1997, v. II, p.
417), conforme aponta M. Perine. Mais tarde (Op. cit. p. 112), Lima Vaz
justifica o uso moderno de “phrónesis” como “prudência”.
329
HUTCHINSON. Ethics. In: BARNES (Org.). The Cambridge Companion to
Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1999, p. 207:
“Practical wisdom is the intellectual virtue which mainly interests
Aristotle”.
330
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 366: “A palavra prudência foi vítima também
desta desqualificação”.
331
Parece que muitos termos sofreram ligeiras ou profundas transformações
no seu aporte desde a filosofia grega, passando pelo estoicismo,
patrística e medievo. Para exemplificar podemos citar GILSON. The Spirit
of Medieval Philosophy. Notre Dame: University Press, 1991, p. 324ss,
onde ele mostra algumas dessas transformações.
332
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 366.
para agir bem, é preciso “canalizar” os esforços para tanto. É
necessário, por exemplo, saber num determinado ponto da práxis
humana quando se deve enfrentar o perigo sem ser temerário nem
covarde.
No sentido de “canalizar” a vontade é que se deve
reconhecer na prudência seu ato basilar, ou seja, o preceituar:
“[...] o Filósofo diz que a prudência é preceptiva”
334
, afirma
Tomás. Por conseguinte, o “preceituar” é o ato pelo qual a razão
prática aplica o que foi, respectivamente, deliberado e julgado
para agir, o que lhe coloca no âmbito principal da prudência.
335
Preceitua a execução ou suspensão dela às forças
sensíveis e volitivas, de acordo com as exigências mais profundas
do bem racional e, desse modo, dirige seu uso, adequando essas
mesmas forças à necessidade efetiva do homem, tornando-as
eficazes. Como isso se no âmbito do racional (a vontade
pertence a essa ordem humana), nada ocorre às cegas, mas precedido
pelo deliberar que, como lembra Nascimento, “pertence à
investigação, pois, deliberar é procurar (I-II, 14, 1)”,
336
e pelo
julgar “acerca do encontrado”.
337
É sob essa “tríplice luz” que a
prudência permite que suas ordens sejam direção imanente e
reguladora tanto do processo volitivo quanto do processo cego
dos sentidos. Conseqüentemente, ficarão marcas em nossa vida
afetiva, que nossos atos modificam e solidificam nossas
inclinações, dando-lhes uma gama enorme de qualidades espirituais
que serão o “decalque” psicológico de virtudes, definidas
consoante o procedimento prudencial à “tríplice luz”.
338
333
Idem, ibidem, p. 366.
334
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 47, 8, sc, p. 2418.
335
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 375: “Este ato consiste em aplicar o que foi
deliberado e julgado para operar. Como este ato está mais próximo do fim
da razão prática, daí resulta que ele é o ato principal da razão prática
e, por conseguinte, da prudência”.
336
Idem, ibidem, p. 375.
337
Idem, ibidem, p. 375.
338
Aqui Tomás está sob dupla influência, a saber, do Estagirita e do
Hiponense: “Daí, inclusive, Aristóteles (EN, VI 9, 1142b 4) dizer que
convém executar rapidamente o que foi deliberado, mas deliberar
vagarosamente. Agostinho (De Moribus Ecclesiae, I, 24.) diz também que
compete à prudência montar guarda e exercer uma vigilância
diligentíssima para que não erremos por causa de uma falsa persuasão
A atividade da prudência tem, assim, uma certa
complexidade que nos convida a analisá-la — claro que sem
pretensões de nos aprofundarmos e resolvê-la.
339
Iniciaremos nossa
tarefa ponderando o que chamaremos doravante de império
340
prudencial.
Devemos, antes de tudo, indicar o status quaestionis da
“díade preceito-império. A identificação pretendida dos termos
desta díade tem sido tema de debates entre os estudiosos do
pensamento de Tomás, a partir do texto da Suma Teológica, Primeira
Parte da Segunda Parte, questão 17.
341
Tomás faz uso dos dois
termos
342
, tratando de assuntos reciprocamente imbricados. Os
devidos pressupostos implicados na análise do debate foram
liminarmente levantados por Nascimento
343
, a partir dos quais
sub-reptícia e gradual”. (NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de
Aquino. Síntese Nova Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 375).
339
Idem, ibidem, p. 376: “O ad 3
um
do a. 8 se refere muito provavelmente
a I-II, 17, 1, que trata do império ou comando. Aliás, esta última
referência, bem como uma a propósito da deliberação no corpo do artigo
8, e a própria estruturação deste nos remete ao estudo dos atos humanos
no início da I-II, q. 8-17. Assim, o próprio texto das questões da II-II
referentes à prudência estabelece o cruzamento desta com o que
poderíamos denominar a lógica da ação humana na perspectiva de Tomás de
Aquino. Esta temática voltou à ordem do dia graças a discussões que
ocupam espaço significativo na filosofia contemporânea. Foi também
objeto de acirrados e complexos debates entre os intérpretes de Tomás de
Aquino na década de 50. Estes o parecem ter ainda se posto
inteiramente de acordo”.
340
CORREIA. Definição Tomista de Lei. p. 114. Verbum, Rio, 1944: “Imperar
imperare, praecipere, é mandar ato essencialmente racional,
intimando uma realização, quer indicativamente, quando dizemos a quem
mandamos deves fazer isto; ou imperativamente, quando lhe determinamos
faze isto [I-II, 17, 1; II-II, 83, 1]. É o ato principal da razão
prática, da qual é o fim próximo: aplicar à obra o aconselhado e julgado
[II-II, 47, 8], reconhecido deliberadamente como possível, pois nela non
habet praecipere quae per hominem fieri non possunt. [I-II, 57, 6]”.
341
NASCIMENTO. Op. cit. p. 376: “[...] um terceiro pico muito debatido
entre os intérpretes de Tomás de Aquino: a identificação ou não do ato
próprio da prudência (o preceito) com o império tratado na I-II, 17”.
342
Idem. Ibidem. p. 376: “A este respeito, cabe perguntar por que Tomás
de Aquino utiliza essa dupla terminologia: o preceito, ao tratar da
prudência, império, no estudo geral sobre a ação humana.”
343
Idem. Ibidem. p. 377: Cabe ter em conta que, se adotarmos uma
seqüência cronológica na concatenação das etapas da ação humana, o
império ou comando é posterior à decisão ou escolha (electio), sendo
essa a fase central da ação humana. Neste sentido, identificar o
preceito da prudência com o império, sem nenhuma consideração adicional,
seria fazer o ato principal da prudência intervir quando tudo está
acabado, isto é, depois de tomada a decisão ou feita a escolha. A
perspectiva de análise da ação humana por Tomás de Aquino é, sem dúvida,
predominantemente estrutural e lógica. Tomás de Aquino faz um corte
podemos sacar elementos conjugados com os pontos de vista
apontados
344
— que direcionem para um posicionamento possível.
Efetivamente, ao tratar da prudência, o Santo Aquinate
faz uso do termo “preceito”, ao passo que, quando trata da ação
humana, usa o termo “império”. Se seguirmos a contribuição de
Nascimento o que nos parece indicado fazer confrontada com o
próprio texto tomasiano, desembocamos no entendimento de que a
aporia tem uma solução, admitindo-se que o império implica a
ordenação racional da vontade, e o preceito anterior ao império
a adesão dela para a ação, configurando que ambos —preceito e
império por sua íntima conexão constituem “os dois lados de uma
mesma moeda”, sendo que o preceito tem seu prolongamento no
império.
345
Por um lado, esse império pressupõe o ato intencional das
virtudes morais e, por outro, é pressuposto pelo ato eletivo
delas, ou seja, como sua norma. De fato, a necessidade do
sincrônico do ato humano e não uma análise diacrônica do mesmo. O que é
evidenciado pela própria ordem dos temas abordados nas questões 8-17 da
I-II. Isto não quer, porém, dizer que elementos diacrônicos não possam
se inserir e que não se possa construir, a partir dos elementos
fornecidos por Tomás de Aquino, uma análise diacrônica da ação humana
com pretensões à completude, como tentaram seus comentadores a partir de
Carlos Renato Billuart (1685-1757)”.
344
Idem. Ibidem. p. 377: “Seguindo ainda uma sugestão, que S. Pinckaers
retoma de Th. Deman, podemos explicar a dualidade terminológica entre
preceito e império, tendo em vista as ligações do estudo da prudência
com Aristóteles e dos atos humanos com São João Damasceno. A questão
teórica da identificação entre o preceito e o império depende,
acompanhando também nisso S. Pinckaers, das relações entre império e
escolha. Ao que parece, argumenta este convincentemente a favor da
interpretação tradicional dos textos de Tomás de Aquino, no sentido de
afirmar tal identificação do preceito prudencial com o império ou
comando na seqüência dos atos humanos. Mantém ele a posteridade lógica
ou estrutural do império em relação à escolha. Isto não significa,
porém, que a prudência intervenha na ação humana depois que tudo
acabou. Ela intervém na escolha através da deliberação e do juízo que
encerra esta deliberação. Mas, não basta que a vontade se incline em
determinada direção. A decisão estará completa na execução (usus) e é
(logicamente) entre a decisão e a execução que intervirá então o império
que dirige e impulsiona a execução. [...] Isto não significa que haja
uma distância temporal entre a escolha e o império. Eles são
simultâneos”.
345
Idem. Ibidem. p. 377: “Talvez seja possível dizer que a escolha e o
império, são como que as duas faces de uma etapa da ação humana. A
escolha representa a opção ou adesão (consensus) da vontade e o império
ou preceito o impulso para a ação que supõe a propulsão da vontade a
escolha que se prolonga) e a ordenação racional que é específica do
império”.
discernimento prudencial decorre da variabilidade e multiplicidade
das condições muito particulares e concretas do homem pela práxis,
daí que a prudência estará sempre condicionada à inserção do homem
na vida coletiva
346
, ou seja, é na vida comunitária e nunca fora
dela — que o homem pode vivenciar os modos concretos da prática da
prudência, em cujas ações a prudência determina efetivação das
respectivas virtudes,
347
e devemos convir com Nascimento que “a
prudência é uma virtude de ação e não da decisão ineficaz”.
348
A solução apontada logo acima nos parece acenar no
sentido de que a virtude da prudência está estreitamente ligada ao
ato eletivo da virtude moral, à eleição virtuosa. O Alventino
chega a afirmar, em algumas perícopes
349
, que a eleição é um ato da
prudência, embora tenhamos que frisar que, se estamos certos, a
eleição procede da prudência no que o ato eletivo tem de
conhecimento. Assim, podemos afirmar que a prudência é o saber
diretivo e normativo da eleição
350
ou, ainda, que a retidão da
eleição virtuosa é participativamente prudencial.
351
Em
conseqüência disso, o aspecto cognoscitivo da eleição é o que
propriamente dever ser chamado prudência. A razão é necessária
para uma reta eleição
352
, isto é, antes da eleição uma
deliberação, um juízo e um preceito, mas o último juízo prático
que guia a eleição é um império, que nos parece o principal ato da
prudência, pois a razão impera a eleição virtuosa com a energia da
346
GONZÁLEZ. Moral, Razón y Naturaleza. 1998, p. 228: “[...] la
adquisición de tal virtud esté en parte condicionada por la integración
en una comunidad concreta [...]”.
347
Idem. Ibidem: “[...] la prudencia determina qué tipos de actividad y
qué acciones específicas concretarían las virtudes en las situaciones
concretas que configuran nuestras vidas”.
348
NASCIMENTO. Ibidem, p. 377.
349
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 65, 1, c, p. 1498s; In I
Sent., d. 1, q. 1, a. 2. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003; passim.
350
GONZÁLEZ. Op. Cit. p, 239: “Aunque la electio es más propiamente un
acto de la voluntad que de la razón, de una manera derivada podría
decirse que entra también a formar parte de la prudencia, ya que en la
elección permanece algo de la razón el consilium e el juicio o
sentencia en que concluye la deliberación”; TOMÁS DE AQUINO. Suma
Teológica. 1980, II-II, 47, 1, ad 2
um
, p. 2410; In I Ethic., lect. 1, nº.
8. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003.
351
TOMÁS DE AQUINO. In III Sent., d. 9, q. 1, a. 1, sol. 2. In: Corpus
Thomisticum, CD-ROM, 2003.
352
Idem. Suma Teológica. 1980, I-II, 58, 4, p. 1453s; Idem. Ibidem. q.
61, a. 1, p. 1472.
intenção do fim da virtude e impera o uso ativo com a força da
eleição prévia.
353
Devemos notar que Santo Tomás diz que
“ignorantia quae opponitur prudentiae, est ignorantia electionis,
secundum quam omnis malus est ignorans; quae provenit ex eo quod
iudicium rationis intercipitur per appetitus [...]”
354
, quer dizer,
a corrupção ou privação (ou ainda, a ausência) da prudência
operada pelas paixões no conhecimento, o qual deve presidir as
eleições, é cognominada de “ignorantia electionis.
355
Ainda, no sentido de que o último ato pelo qual a
prudência dirige a eleição é um preceito ou império e, por
conseguinte, este é, em parte ao menos, um império de eleição,
esta seria o ato basilar da virtude, tanto no seu aspecto
gnosiológico quanto apetitivo. Nesta direção, o império prudencial
se distingue do juízo da sínese
356
, também anterior à eleição, sem
chegar a ser um juízo ulteriormente prático e diretivo da decisão.
Mas também difere da eubulia e da gnome:
E, portanto, à prudência, virtude a que é próprio o
mandar acertadamente, adjungem-se, como a principal, e
na qualidade de secundárias, a eubulia, que aconselha
retamente, a sínese e a gnome, partes da potência
judicativa [...].
357
E mais adiante: A sínese porém e a
353
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 166.: “A deliberação e a
escolha devem, pois, levar necessariamente em conta as condições do agir
ético. Vale dizer que nelas se exercem na espessura concreta da situação
do sujeito sempre complexa e muitas vezes ambígua”.
354
TOMÁS DE AQUINO. De Virtutibus, q. 1, a. 6, ad 3. In: Corpus
Thomisticum, CD-ROM, 2003.
355
O que, indiretamente, concorda com Aubenque (A Prudência em
Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 231): “E se, no
livro VI da Ética Nicomaquéia, Aristóteles insiste que não escolha
sem disposição moral, também acrescenta que não escolha sem intelecto
e sem pensamento, ”.
356
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 57, 6, p. 1446s; II-II,
51, 3, p. 2448s.
357
Idem. Ibidem. I-II, 57, 6, c, p. 1446: “Et ideo virtuti quae est bene
praeceptiva, scilicet prudentiae, tanquam principaliori, adiunguntur
tanquam secundariae, eubulia, quae est bene consiliativa, et synesis et
gnome, quae sunt partes iudicativae [...]”; AUBENQUE. A Prudência em
Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 239s: “Juntamente
com o estudo sobre a phronêsis, Aristóteles examina um certo número de
qualidades, as quais o figuram na lista das cinco grandes virtudes
dianoéticas (), mas que se pode,
no entanto, considerar como ‘virtudes intelectuais menores’. havíamos
encontrado uma delas: a boa deliberação ou , que Aristóteles a
um tempo aproxima e distingue das duas vizinhas [...]. Depois vem
duas outras ‘virtudes’: a inteligência () e o juízo ()”.
1
16
gnome diferem pelas regras diversas por que julgam.
Pois, a sínese julga dos atos, segundo a lei comum; ao
passo que a gnome o faz, segundo a razão natural, nos
casos em que a lei comum é deficiente [...].
358
Prosseguindo, se “o fim das virtudes morais inclusa a
prudência é o bem humano que consiste na conformidade com a
razão”
359
, então concluímos com Lima Vaz
360
que a prudência, para o
Angélico, exerce a função de “norma próxima objetiva” que se
coloca como intermediária e mediadora entre a subjetividade da
decisão inscrita em cada sujeito — e a objetividade da lei, como
dado confrontante.
De modo sumário, de quanto vimos, o ato próprio da
vontade a intenção determina os atos subseqüentes do
entendimento a deliberação, o juízo e o império e da própria
vontade (consentimento, eleição, uso). O impulso do entendimento a
deliberar, isto é, a buscar os meios convenientes para o devido
fim é dado pela intenção, impulso a este mesmo fim. Considerados
de modo absoluto, esses referidos meios são apreciados no que têm
de valor, possibilitando o consentimento. De maneira contínua,
porém, são considerados comparativamente a respeito da
conveniência de uns sobre os outros e ao momento, possibilitando o
juízo prático e a eleição. Tudo isso prepara o ato do império
prudencial, que preside e determina a execução ou a ação
propriamente dita. Ora, a intenção da vontade não se refere ao
358
Idem. Ibidem. I-II, 57, 6, ad 3
um
, p. 1447: “Distinguuntur autem
synesis et gnome secundum diversas regulas quibus iudicatur, nam synesis
est iudicativa de agendis secundum communem legem; gnome autem secundum
ipsam rationem naturalem, in his in quibus deficit lex communis [...]”;
AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial,
2003, p. 241: “Como se vê, a  não designa a inteligência do
teólogo, nem a do físico, mas antes a capacidade de analisar e discernir
as situações concretas. A inteligência tem, pois o mesmo domínio da
prudência (ou seja, o que devém enquanto depende de nós) e dela difere
somente pelo fato de que é crítica, enquanto a prudência é normativa
(). Resta, enfim, a : ela designa o julgamento no
sentido em que se diz de qualquer um que ele julga ().
Ora, julgar não é somente uma qualidade intelectual”.
359
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 371.
360
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia IV. 2002, p. 239: “A phrónesis
aristotélica sobrelevada e dilatada ao horizonte universal das coisas
humanas às quais se estende a prudentia, em Santo Tomás de Aquino, passa
fim último da vida humana, mas, igualmente, aos fins próprios das
virtudes morais da vontade e da sensibilidade. E, como guia de
tudo isso, o ser humano possui um hábito natural “quase” inato
361
a sindérese
362
que determina o fim último da vida humana o Bem
Comum —, cujos meios mais adequados de o alcançar são indicados
pela prudência por ela guiada
363
, pois, como diz Ferreira, a
“prudência vincula-se à ação humana pela maneira correta da
execução dos meios, tendo em vista o fim estabelecido pela
sindérese”.
364
Inicialmente, devemos notar que o conceito de sindérese é
alheio ao contexto da obras peripatéticas.
365
Seguramente, Tomás de
Aquino deve ter haurido este termo da tradição vinda desde São
Jerônimo
366
no seu comentário ao Livro do Profeta Ezequiel.
367
Mas
a ser a norma próxima objetiva do agir moral, exercendo uma função
mediadora entre a objetividade da lei e o ato subjetivo da decisão”.
361
TOMÁS DE AQUINO. In II Sent., d. 24, q. 2, a. 3, c. In: Corpus
Thomisticum, CD-ROM, 2003.: “Unde dico, quod synderesis a ratione
practica distinguitur non quidem per substantiam potentiae, sed per
habitum, qui est quodammodo innatus menti nostrae ex ipso lumine
intellectus agentis, sicut et habitus principiorum speculativorum
[...]”.
362
Idem. Suma Teológica. 1980, I, 79, 12, c, p. 713: “A sindérese não é
potência, mas hábito [...]. Por onde os princípios de coisas operáveis,
naturalmente ínsitos em nós, não pertencem a uma potência em especial,
mas a um hábito natural especial, a que chamamos sindérese. [...] Logo,
é claro, a sindérese não é uma potência, mas um hábito natural”.
363
Idem. Ibidem. II-II, 47, 6, ad 3
um
, p. 2416: “O fim concerne às
virtudes morais, não pelo estabelecerem elas, mas por tenderem elas para
o fim preestabelecido pela razão natural. E para isso são auxiliadas
pela prudência, que lhes prepara o caminho. [...] Ao passo que a
sindérese move a prudência, assim como o intelecto dos princípios, a
ciência”; Idem. Ibidem. I, 79, 12, p. 713.
364
FERREIRA. A prudência em Santo Tomás de Aquino. p. 279. In: COSTA; DE
BONI. A Ética Medieval Face aos Desafios da Contemporaneidade. Porto
Alegre: Edipucrs, 2004.
365
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 372: “É no entanto, estranha ao pensamento
aristotélico a idéia de sindérese [...]”.
366
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia IV. 2002, p. 207: “O segundo tema que
se impõe à atenção dos teólogos é o tema da sindérese (termo oriundo de
uma leitura defeituosa do grego synteresis, empregada por São Jerônimo
para designar a syneidesis estóica em seu Commentarium in Ezechielem, I.
c. 1), ou seja, do hábito dos primeiros princípios na ordem moral que se
apresenta como normativo em ordem à especificação dos atos em todo o
campo da moralidade. Era inevitável que ao tema da sindérese fosse
associado o tema da consciência que constitui igualmente a norma interna
última dos atos morais. O tratado da sindérese foi definitivamente
estabelecido em suas grandes linhas por Felipe, o Chanceler (cerca de
1230). A partir de então, ele estará intimamente ligado ao problema da
isso não quer dizer que o Aquinate não faça uma analogia
368
e
ilação a partir da filosofia peripatética. Ou seja, Tomás,
espelhando-se na relação entre ciência e intelecto, concebe um
intellectus principiorum na ordem prática a sindérese que
rege a prudência, ao modo como a inteligência dos princípios, na
ordem teórica, subordina a ciência.
369
Depois, devemos notar com González que o Doutor
Angélico se refere à sindérese em três lugares, dois dos quais,
com mais extensão: “[...] el primero de esos lugares es el
Comentario al segundo libro de las Sentencias [...]; también en el
De Veritate [...]; e por fin, en la S. Th. I, q. 79, a. 12 […]”.
370
Quanto a este último, ela levanta, em diversos autores
371
, algumas
hipóteses da menor extensão dele, justamente numa obra das mais
importantes do Angélico. Ela mesma opta pelo cunho mais voltado à
virtude do trato na Suma Teológica, que tornaria “supérflua al
menos desde un punto de vista práctico la referencia a la
sindéresis.
372
O importante, para além de tudo isso, é que esses
“primeiros princípios da ordem prática são, na verdade, o que
estabelece a “luz fundamental” pela qual a razão humana se
constitui como razão moral, e o hábito da sindérese, por sua
própria natureza, também apresenta os fins das virtudes como bens
consciência moral como norma obrigatória interior ao sujeito da
moralidade”.
367
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 373; LALANDE. Vocabulário Técnico e Crítico
da Filosofia. 3
a
. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Verbete. p. 1025s.
368
Idem, ibidem, p. 374: “Na analogia entre intellectus principiorum-
scientia, por um lado, e, por outro, sindérese-prudência, seria melhor
falar de intellectus principiorum-sabedoria e sindérese-prudência, para
ressaltar o caráter de ‘sabedoria prática’ desta última”.
369
Idem, ibidem, p. 373: “Partindo da concepção aristotélica das relações
entre a razão (ratio) e inteligência (intellectus) ou, mais
precisamente, das relações entre ciência (scientia) e inteligência
(intellectus), Tomás de Aquino postula um intellectus principiorum na
esfera da práxis e lhe subordina a prudência, à semelhança do que
acontece com a scientia que se subordina ao intellectus principiorum no
domínio da teoria. Esse intellectus principiorum da ordem prática é
justamente o que ele chama de sindérese, o hábito dos primeiros
princípios da ordem prática, isto é, dos preceitos da lei moral”.
370
GONZÁLEZ. Op. Cit. p. 205.
371
Idem. Ibidem. p. 205. nota 97.
372
Idem. Ibidem. p. 205.
que devem ser realizados através da ação.
373
Assim, a intenção
moral é guiada por ela, que estabelece as bases do juízo moral,
porque as virtudes, entendidas como fins representados com uma
certa universalidade, são o princípio desse mesmo juízo.
374
E na
relação entre a sindérese e a prudência, aquela dirige as regras
universais enquanto são conexas às operações de intenção e
volição, enquanto a segunda aplica essas mesmas regras à práxis
humana, caracterizada pela particularidade.
375
Em outras palavras,
o que é patente no âmbito próprio da sindérese é a conexão
universal e necessária entre a vida boa e feliz
376
e as virtudes,
pois fica patente tanto a inclusão destas naquela como a
determinação do conteúdo geral das diversas virtudes.
377
Essa
determinação, não obstante seja precisa, é abstrata enquanto não
se indica o modo “existencial” no qual as virtudes devem
“encarnar-se” na práxis atual hic et nunc em circunstâncias
não menos “existenciais”.
O “processo” de interação entre a prudência e a sindérese
na hora da ação concreta pode ser descrita como segue:
[...] o silogismo prático, em que a [premissa] maior é
o princípio [universal] da lei natural [a sindérese] e
a menor [particular], uma questão de fato.
378
E em
outros termos: [...] como nem todos os meios, supondo-
os vários, se adequam do mesmo modo ao fim, é mister
perquirir o mais adaptável a ele per quid facilius
perveniatur. Demonstra-o um juízo da razão quod
pertinet ad judicium. É o chamado judicium de
373
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 79, 12, p. 713; II-II, 47,
6, ad 1
um
, p. 2416.
374
Idem. Ibidem. II-II, 47, 7, p. 2416s; Idem. In III Sent., d. 33, q. 2,
a. 3, sol. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003.
375
FERREIRA. A prudência em Santo Tomás de Aquino. p. 278. In COSTA; DE
BONI. A Ética Medieval Face aos Desafios da Contemporaneidade. Porto
Alegre: Edipucrs, 2004: “A sindérese trabalha com as regras que ocorrem
de forma universal, dirigindo aquilo que se liga ao movimento de volição
e de intenção. [...] É a virtude da prudência quem irá aplicar as regras
gerais aos casos particulares”.
376
Em (Moral, Razón y Naturaleza. 1998, p. 215) González nota que “la
sindéresis, ciertamente, orienta el bien, pero de una manera universal:
bonum est faciendum et prosequendum, malum est vitandum. La
universalidad de la sindéresis responde a la intelección de la razón de
bueno: bonum est quod omnia appetunt, y presupone la voluntas ut natura,
que, en expresión de Polo, es ‘puro respecto del fin’ ”.
377
GONZÁLEZ. Moral, Razón y Naturaleza. 1998, p. 216.
378
CORREIA. Ensaios Políticos e Filosóficos. São Paulo: EDUSP, 1984, p.
151.
consiliatis vel inventis, conclusão do exame — ad quem
inquisitio terminatur. Derradeiro estádio nesse
trabalho da razão especulativa et hic sistit
speculativa ratio. Já aqui intervém a sindérese.
379
Retornando à definição — standard
380
da prudência,
compete assinalar que, de algum modo, as virtudes são os
princípios da reta razão. Portanto, cabe à reta razão, a partir
das outras virtudes, estipular o modo de efetivá-las nas
determinadas circunstâncias. O Frade de Rocasseca assim diz a
partir do De Veritate:
[...] ideo ad hoc quod aliquis sit prudens, requiritur
quod bene se habeat circa ipsos fines. Non enim potest
esse recta ratio, nisi principia rationis salventur.
Et ideo ad prudentiam requiritur et intellectus
finium, et virtutes morales, quibus affectus recte
collocatur in fine […].
381
Assim, pressupõe-se a compreensão dos fins das virtudes
e, igualmente, um firme desejo ou amor por elas (no âmbito
psicológico). Se a razão prática requer um elemento apetitivo, a
reta razão requer a retidão do apetite, ou seja, para deliberar e
julgar retamente as relações alterativas, não é suficiente saber o
que seja alguma virtude (a justiça, por exemplo), mas,
sobremaneira, querer ser tal qual é o investido da virtude (o
justo, seguindo o exemplo). O âmbito da ação será, por
antonomásia, o do particular, pois as ações são sempre
particulares e dadas na realidade.
Portanto, a virtude da prudência traz consigo uma
realidade múltipla de sua extensão. Em outras palavras, designa um
gênero ordenado de outras disposições adquiridas que permitem ao
sujeito superar e enfrentar as vicissitudes da vida. Nascimento
apresenta em seu trabalho
382
o “plano das questões 47-56 da II-II”
da Suma Teológica, onde Santo Tomás distingue um certo número de
disposições e de virtudes que não realizam propriamente a noção de
379
Idem. Definição Tomista de Lei. p. 112s. Verbum, Rio, 1944.
380
recta ratio agibilium
381
TOMÁS DE AQUINO. De Veritate, q. 5, a. 1, c. In: Corpus Thomisticum,
CD-ROM, 2003.
prudência, mas formam seu “universo” e concorrem para sua
mantença.
383
Nos artigos 10-12 da questão 47, o Frade Alventino trata
da divisão da prudência em partes nas quais ainda se encontra o
mesmo conceito, isto é, opondo uma espécie de prudência individual
a uma prudência coletiva, e, esta última em outras quantas,
segundo as espécies de comunidades políticas (a família e a
cidade).
O tom inicial, dado no artigo 10, pelo recurso a São
Paulo e a Aristóteles,
384
“deixa clara a perspectiva teológica que
Tomás de Aquino escreve”.
385
Mas o foco aqui é mostrar que se
orienta, além do bem particular, ao Bem Comum:
Como diz o Filósofo, alguns ensinaram que a prudência
não se estende ao bem comum, mas só ao próprio. E isto
por pensarem que o homem não de buscar senão o bem
próprio. Mas esta doutrina repugna à caridade, que o
busca os seus próprios interesses, como diz a
Escritura. [...] E também repugna à reta razão, que
considera o bem comum melhor que o particular. Ora, à
prudência pertence aconselhar retamente, julgar e
ordenar sobre os meios conducentes ao fim devido. Por
onde, é manifesto que a prudência se ocupa, não só com
o bem particular de cada um, mas também, com o comum,
de todos.
386
Nosso interesse maior está no enfoque dado a partir do
artigo 11 da mesma questão. Aqui, Tomás postula que a razão formal
dos meios depende do fim ao qual estão ordenados e, neste sentido,
382
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 368.
383
Idem. Ibidem. p. 368: “Este conjunto de dez questões se distribui de
modo perfeitamente sistemático e obedece a um plano comum ao estudo de
cada uma das virtudes em particular na II-II”.
384
Idem. Ibidem. p. 378: A origem destes artigos está na Ética a
Nicômaco VI, 8, 1141 b, 23-1142 a 10”.
385
Idem. Ibidem.
386
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 47, 10, c, p. 2420:
“[...] sicut philosophus dicit, in VI Ethic., quidam posuerunt quod
prudentia non se extendit ad bonum commune, sed solum ad bonum proprium.
Et hoc ideo quia existimabant quod non oportet hominem quaerere nisi
bonum proprium. Sed haec aestimatio repugnat caritati, quae non quaerit
quae sua sunt, ut dicitur I ad Cor. XIII. [...] Repugnat etiam rationi
rectae, quae hoc iudicat, quod bonum commune sit melius quam bonum
unius. Quia igitur ad prudentiam pertinet recte consiliari, iudicare et
praecipere de his per quae pervenitur ad debitum finem, manifestum est
torna-se necessário haver diversidade nas formas de prudência,
porque o bem próprio de cada parte em questão (indivíduo, família
e Estado) se constitui em fins diversos.
387
Com efeito, as diversas
formas de prudência é muito importante que se diga não são
formas de virtudes opostas, mas formas como partes subordinadas
entre si da mesma prudência, passíveis, portanto, de coexistir num
mesmo sujeito. De fato, os fins que são partes integrantes uns
dos outros podem se diversificar materialmente, todavia não o
podem formalmente.
388
Não fosse assim, haveria uma colisão, difícil
de se admitir no pensamento tomasiano, que prejudicaria o
equilíbrio e a unidade prudencial e moral do mesmo sujeito. O
objeto em questão é constituído pelas “três espécies de prudência:
a prudência pura e simples, a prudência doméstica e a prudência
política”.
389
A primeira delas a prudência “pura e simples” —, cujo
escopo é atentar no que satisfaz as necessidades do indivíduo, não
deixa de integrar-se às demais e contém em sua estrutura a
inclinação de ser movida, eminentemente, pela última, a “prudência
política”. Isto está plenamente de acordo com o visto, que o
homem “é um animal social e político”, ordenado que está ao
convívio social. Ela possui, de modo geral, três raios de
“controle”:
1. Entre os que comungam da mesma comunidade de pessoas,
regulando as relações interpessoais;
2. Entre as pessoas e a Divindade, regulando as relações da
pessoa com Deus;
quod prudentia non solum se habet ad bonum privatum unius hominis, sed
etiam ad bonum commune multitudinis”.
387
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 378.: “Sua tese [...] é que fins
especificamente distintos (bem comum da cidade e do reino, bem comum da
casa ou família, bem de uma pessoa) determinam espécies distintas de
prudência [...]”.
388
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 47, 11, ad 3
um
, p. 2422:
“[...] fins diversos, dos quais um se ordena para o outro, diversificam
a espécie do hábito. [...] E do mesmo modo, embora o bem do particular
se ordene ao da multidão, contudo isto não obsta que essa diversidade
torne os hábitos diferentes especificamente. Mas daqui resulta que o
hábito ordenado ao fim último é o principal e impere sobre os outros
hábitos”.
3. Das pessoas consigo mesmas, em sua relação de intimidade.
Por sua parte, a prudência doméstica possui dois
objetivos precípuos:
1. O primeiro deles, o cuidado da prole, naquilo em que ela
tenha de necessidades básicas de sobrevivência como pessoas
que são;
2. O segundo deles é a manutenção de sua vida na família e na
comunidade, assim a educação moral e a instrução, por
exemplo.
E, por fim, a prudência política, cujo escopo não é outro
senão o Bem Comum Político, vista no artigo 10, e igualmente
tratada na questão 50, artigos 1 a 4. Ela é de competência do
governante em qualquer esfera de poder que diga respeito à
comunidade política. Dentro da perspectiva trabalhada na questão
50, a prudência política é tanto do governante, como do governo.
390
Assim, portanto, podemos afirmar sem temor que a
prudência nos governados é correlativa à prudência nos governantes
e que ao fazê-los participar das diretrizes do governante, está
integrando-os no todo que é o Estado. Nos governantes, a prudência
confere a capacidade de mandar bem e nos governados, a prudência
confere a capacidade de executar o que lhes foi mandado fazer.
391
E
como o indivíduo, de fato, se liga do modo como lhe convém, isto
é, segundo sua condição de indivíduo consciente, racional e
livre
392
, ele se ordena às ordens que fazem a dinâmica do convívio
social. Nos governados, graças a essa dinâmica, a prudência é
completiva e, nos governantes, ela tem caráter diretivo,
permitindo que partilhem dela os que possuem cargo de mando.
Guardadas as similitudes com a prudência “pura e simples”, dela
difere, pois, enquanto ela se dirige para conformar a práxis
389
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 378.
390
Idem. Ibidem. p. 379.
391
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 47, 11, ad 2
um
, p. 2422.
392
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 379.: “O corpo do artigo ressalta, mais do
que o artigo 12 da questão 47, como Tomás de Aquino se contrapõe à
teorização de Aristóteles a respeito do súdito e do escravo, como seres
meramente passivos, comparáveis, sobretudo o último aos animais de
carga”.
pessoal às exigências do bem comum, esta última se especifica por
adaptá-la à variabilidade das disposições subjetivas e das
situações existenciais, em vista do próprio bem. Assim afirma
Santo Tomás na resposta ao terceiro argumento da questão 50,
artigo 2: “Pela prudência chamada geral, o homem se dirige a si
mesmo em ordem ao seu próprio bem; pela política, porém de que
agora tratamos, em ordem ao bem comum”.
A práxis pessoal assim fica equilibrada, sem choques e
lhe possibilita uma conduta realmente virtuosa. Se a prudência
“pura e simples” leva a pessoa a realizar o próprio bem, a
prudência política o faz transcender para a consecução do Bem
Comum Político. A economia prudencial faz a relação indivíduo-
comunidade reproduzir a ordem cósmica em sua harmonia e coloca o
predomínio do foro comunitário em evidência na vida da pessoa pelo
lugar que ela ocupa em sua formação. Essa harmonia, o Aquinate a
consegue pela maior diversidade de contextos em relação ao meio e
às condições do Estagirita que lhe permitem — nas palavras de Lima
Vaz
393
— “sobrelevar” e “dilatar” o conceito peripatético de
phrónesis na prudentiatomasiana:
Ora, as condições concretas da vida ética não são
apenas, para o teólogo Tomás de Aquino, as condições
oferecidas pela natureza ao indivíduo para a
realização do ideal da vida filosófica como vida
eticamente perfeita segundo o ensinamento da Ética
antiga. Elas são radicalmente transformadas pela
suprassunção da natureza ao plano sobrenatural da
graça [...].
394
Essa prudentia politica como sabedoria é a que é
necessária para a direção das coisas humanas, sendo, pois,
conforme o Comentário à Ética a Nicômaco,
395
a virtude
“arquitetônica”, virtude motriz das outras formas de prudência e
instaladora de um modus faciendi delas na práxis humana dentro
393
LIMA VAZ, Escritos de Filosofia IV. 2002, p. 239. Vide nota 360 deste
capítulo.
394
Idem. Ibidem. p. 239.
395
TOMÁS DE AQUINO. In VI Ethic., lect. 7, nº. 1. In: Corpus Thomisticum,
CD-ROM, 2003.
do Estado.
396
O entusiasmo do Aquinate é tamanho que ele chega a
enaltecer tal prudência sobre as demais por sua destinação ao Bem
Comum Político.
397
Isso faz sentido se voltarmos ao contexto do
artigo 10 da questão 47, em que o Angélico repugna admitir que a
reta razão consinta em que o bem particular sobressaia ao comum,
e, assim, ao homem, em hipótese alguma, será possível contentar-se
com somente a prudência pessoal.
398
Não podemos nos esquecer da
advertência de Nascimento, segundo o qual:
O ad 2
um
relembra a subordinação do bem próprio ao bem
comum. Tese a ser equilibrada com a exposta na II-II,
25, 4, ad 3
um
: ‘O ser humano não se ordena à
comunidade política na sua totalidade e de acordo com
tudo que é seu ser’. Nesta última referência temos a
formulação, nos termos de Tomás de Aquino, do que Lord
Acton chamou de ‘lealdade dividida’ do cristão em
relação à comunidade política.
399
De todo modo, a prudentia politica é a expressão mais
acabada não obstante seja análoga da prudência “pura e simples”
embora mais nobre que esta, consoante o entendimento dado, mais
396
Idem. Ibidem.: “Est etiam considerandum, quod quia totum principalius
est parte et per consequens civitas quam domus, et domus quam unus homo,
oportet quod prudentia politica sit principalior quam oeconomica, et
haec quam illa quae est sui ipsius directiva. Unde et legis positiva est
principalior inter partes politicae et simpliciter praecipua circa omnia
agibilia humana”.
397
Idem.. In X Ethic. lect. 11, nº. 5. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003.: “Si igitur inter omnes actiones virtutum moralium excellunt
politicae et bellicae, tam pulchritudine, quia sunt maxime honorabiles,
quam etiam magnitudine, quia sunt circa maximum bonum, quod est bonum
commune [...]”.
398
Idem. Suma Teológica. 1980, II-II, 47, 10, ad 2
um
, p. 2420: “Quem
busca o Bem Comum da multidão busca, por conseqüência, também o seu bem
próprio, por duas razões. Primeiro, porque o bem particular não pode
existir sem o comum ou da família, da cidade, ou do reino. Por isso
Valério Máximo diz, que os antigos Romanos preferiam ser pobres num
império rico, que ricos num império pobre. Segundo, porque fazendo o
homem parte de uma casa ou de uma cidade, é preciso levar em conta o que
lhe constitui o bem, procedendo como prudente relativamente ao bem da
multidão. Pois, a boa disposição das partes depende da sua relação com o
todo; porque, como diz Agostinho [III Conf., c. VIII], é disforme toda
parte que não está ligada ao todo.”
399
NASCIMENTO. A Prudência segundo Santo Tomás de Aquino. Síntese Nova
Fase, v. 20, nº. 62 (1993): 378.
adiante na questão 50, artigo 1, corpo
400
do artigo e no artigo 2,
na resposta ao primeiro argumento:
[...] a arte de reinar é a espécie mais perfeita de
prudência. Por onde, a prudência dos súditos, por
natureza inferior à prudência governativa, conserva a
denominação geral, sendo chamada política.
401
Isso denota o sabido, que o ápice da perfeição própria
da pessoa humana in hoc mundo se pela ordenação natural ao
Bem Comum Político.
Neste momento faz-se mister percorrermos os meios humanos,
previstos pelo Angélico, conducentes ao Bem Comum Político, visto o
homem deles necessitar imperiosamente em sua vida social.
400
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 50, 1, c, p. 2442:
“[...] à prudência pertence dirigir e ordenar. Por isso, onde se
encontra uma razão especial de dirigir e ordenar os atos humanos, se
manifesta também uma prudência de natureza especial. Ora, como é claro,
naquele que deve dirigir, não somente a si mesmo, mas ainda a comunidade
perfeita da cidade ou do reino, deve existir também uma razão especial e
perfeita de governar. Pois, tanto mais um regimen será perfeito quanto
mais universal e maior extensão tiver, e quanto mais alto for o fim que
atingir. Por onde, ao rei, a quem compete governar uma cidade ou um
reino, convém uma prudência de natureza especial e perfeitíssima. E por
isso a arte de reinar é considerada uma espécie de prudência”.
401
Idem. Ibidem. II-II, 50, 2, ad 1
um
, p. 2443: “[...] regnativa est
perfectissima species prudentiae. Et ideo prudentia subditorum, quae
deficit a prudentia regnativa, retinet sibi nomen commune, ut politica
dicatur, sicut in logicis convertibile quod non significat essentiam
retinet sibi commune nomen proprii”.
Capítulo III
3. Leis e Direitos no Pensamento de Tomás de Aquino
As virtudes, anteriormente vistas, regulam desde o mais
íntimo os atos humanos rumo ao seu Bem Comum, mas temos os
princípios externos do agir humano que também lhes são regras
anteriores ou posteriores à sua determinação.
402
Esses princípios
externos são as leis
403
, ou mais precisamente são Deus e o
Diabo; Deus usa a graça — desde o coração humanopara auxiliar o
homem em sua empreita rumo ao fim último e a lei para instruir o
homem como se portar enquanto peregrina na vida temporal.
404
Na
Suma Contra os Gentios, Tomás muda um pouco o jeito de expor o
assunto, ou a ordem entre os elementos concorrentes para o alcance
da verdadeira felicidade, propondo primeiramente a lei e, depois,
a graça.
405
Sem olvidar o pano de fundo
406
e a “dívida
407
para com os
predecessores
408
, falar de leis em Tomás é discorrer sobre o que
402
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 264.:
“Voluntary acts dictated by practical reason, habits, and especially
virtuous habits: these are the internal principles which regulate our
moral activity. We have now to deal with the principles regulating this
activity from without, that is, with laws”.
403
AMOROSO LIMA. Introdução do Direito Moderno. 4
a
. ed. São Paulo:
Loyola, 2001, p. 156.: “Esse naturalismo [moderno, oriundo do humanismo
renascentista e do evangelismo protestante] se processou por uma
deturpação do conceito de natureza e por uma redução dos três grandes
tipos de lei a lei em sentido moral e jurídico, em sentido político e
em sentido físico — a um tipo único, exatamente o das leis físicas”.
404
NASCIMENTO. A Moral de Santo Tomás de Aquino. In: COSTA; DE BONI. A
Ética Medieval Face aos Desafios da Contemporaneidade. Porto Alegre:
Edipucrs, 2004. p. 270: “No que se refere aos princípios externos, Tomás
indica dois: Deus e o Diabo. [...] Quanto a Deus, Tomás usa uma
expressão lapidar: Ele nos ‘instrui pela lei e nos auxilia pela graça’”.
405
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 82.: “Não era este o esquema
da Suma Contra os Gentios, onde a ordem fora: lei pecado graça,
influenciada certamente pela leitura paulina, que associava a lei ao
pecado. Tem-se agora uma divisão de cunho mais filosófico, baseado nos
princípios externos dos atos humanos”.
406
VILLEY. Compendio de Filosofía del Derecho. Pamplona: EUNSA, 1979, p.
133: “Y uno de los rasgos personales de su teología será el
reconocimiento del valor de la filosofía pagana. No cultiva las ‘artes’
profanas como mero instrumentum; estudia la cultura de los paganos en
cuanto rica de suyo en verdades. En esto, Santo Tomás manifiesta un
ele tratou na Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teológica,
questões 90-108
409
, mas, é claro, sem nos esquecermos da enorme
bibliografia existente a respeito.
410
Porém, examinando e
catolicismo universal, abierto a todos: para él, todo conocimiento,
judío, cristiano e grecorromano, procede de Dios por dos canales que es
preciso distinguir”. Não obstante estas considerações ou mesmo por
causa delas —, o mesmo autor dirá em outra obra (Le Droit et les droits
de l’homme. 2a. ed. Paris: Press Universitaire de France, 1990, p. 116):
“Corollaire: chez le théologien officiel du catholicisme, nouveau
constat de carence des droit de l'homme”, imediatamente após o capítulo
7 (Op. Cit. p. 81) intitulado Sur l’inexistence des droits de l’homme
dans l’Antiquité, subtítulo (p. 100), Le droit n’est pas fait pour tous
les hommes.
407
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 82: “[...] Tomás deve muito a
seus antecessores, principalmente a Guilherme de Auxerre e João de la
Rochelle”.
408
VILLEY. Compendio de Filosofía del Derecho. 1979, p. 133: “Una de las
ventajas de que gozaba este teólogo, era la de las lecturas amplias y
profundas. [...] Información doble: Primeramente bíblica, religiosa.
Pues era primeramente un religioso, que había meditado y comentado
largamente la Biblia, a San Agustín, a los Padres griegos. También
información profana: [...] era familiar el estudio de la filosofía
grecorromana [...]. Asimiló, sobre todo, la obra de Aristóteles [...].
Se interesó en el movimiento del renacer del Derecho romano”; DE BONI
(Seminário sobre Ética e Política na Idade Média, 1999. In: MIGOT. A
Propriedade: Natureza e Conflito em Tomás de Aquino. Caxias do Sul:
EDUCS, 2003, p. 68, aduz a outras fontes presentes na obra do Aquinate:
“Aristóteles, que fala em direito natural e direito civil, na Retórica;
Cícero, que conhece a Retórica de Aristóteles e, sobretudo, o
Estoicismo; Sêneca, que disserta sobre direito natural e direito civil,
para quem o direito natural é generalíssimo e atinge todos os seres
[...]; Gaio, que se dedica ao direito civil e ao direito das gentes;
Ulpiano: direito público e direito privado; Santo Agostinho, que se
refere à lei natural como interioridade [...]; Isidoro, compilador;
Graciano: Código de Graciano e os predecessores do autor: Alberto Magno
e os Franciscanos”. Cf. LIMA VAZ. Escritos de Filosofia IV. 2002, p.
234; Cf. AUBERT Le Droit Romain dans L’Oeuvre de Saint Thomas. Paris:
Vrin, 1955.
409
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 78.: “Ora, por uma série de
motivos, ao estudar-se o De Lege, uma compreensível tendência em
ater-se à questões 90-97. De fato, ao se procurar elaborar uma teoria da
lei, de cunho filosófico e/ou jurídico, não vida que elas são as
que mais interessam [...]”. É, aliás, o que também faz Aubert Op. Cit.
p. 97-100).
410
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 77: “Escrever um texto sobre o
De Lege (STh I-II, q. 90-108) de Tomás de Aquino e pretender apresentar
algo de novo é ousadia ou ingenuidade. Dispersos pelas bibliotecas de
todo o mundo alguns milhares de trabalhos a respeito”. Para citar uns
poucos: NASCIMENTO, Carlos A. R. do. A Moral de Santo Tomás de Aquino.
In: COSTA; DE BONI. A Ética Medieval Face aos Desafios da
Contemporaneidade. 2004; Idem. A Justiça Geral em Tomás de Aquino. In:
DE BONI. Idade Média: ética e política. 1996; MOURA, Odilão. A Doutrina
do direito natural em Tomás de Aquino. In: Op. Cit; SANTOS, Bento S. A
Lei Natural em Santo Tomás de Aquino. Ágora Filosófica, Recife, Ano 3,
nº. 1, 2, jan./dez. 2003; CORREIA, Alexandre. Definição Tomista de Lei.
VERBUM, Rio, p. 99-118, 1944; Idem. Ensaios Políticos e Filosóficos. São
analisando aquela fonte, ainda podemos “re-entrar no assunto,
trilhando, relativamente, “novos” atalhos.
411
Trataremos, a seguir, dos princípios externos dos atos
humanos pelos quais Deus instrui os homens rumo ao Bem Comum
Político.
3.1. Lei em Geral
Parece unânime a concepção, segundo a qual, a razão tem
aqui um papel todo singular.
412
Efetivamente, para Tomás, a razão
413
é o que possibilita ao ser humano estabelecer o estatuto moral de
sua práxis, discriminando o que está de acordo ou se opõe a ela.
414
Paulo: Edusp/Convívio, 1984; COSTA, Elcias Ferreira da. A Conceituação
do Direito em Santo Tomás de Aquino. In: COSTA; DE BONI, Luís. A. A
Ética Medieval Face aos Desafios da Contemporaneidade. Porto Alegre:
Edipucrs, 2004; GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas.
Trad. L. K. Shook. Indiana: University of Notre Dame, 1994; Idem. Saint
Thomas D’Aquin. 5
a
. ed. rev. cor. Paris: Librairie Lecoffre, 1930;
KRITSCH, Raquel. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo:
Humanistas/Imprensa Oficial, 2002; SIGMUND, Paul E. Law and Politics.
In: KRETZMANN, Norma; STUMP, Eleonnore. (Org.) The Cambridge Companion
to Aquinas. New York: Cambridge University Press, 1999; FINNIS, John.
Aquinas, Moral, Political, and Legal Theory. Oxford: Oxford University
Press, 1998; GILBY, Thomas. The Political Thought of Thomas Aquinas.
Chicago: University of Chicago Press, 1958; AUBERT, Jean-Marie. Le Droit
Romain dans L’œuvre de Saint Thomas. Paris: Vrin, 1955.
411
Idem. Ibidem. p. 77: “[...] volto-me para o tema por parecer-me que
boa parte dos estudos modernos permitem que se possa retomá-los, não
tanto para apresentar novidades, mas para, numa leitura de conjunto,
fazer algumas correções de rumo no que se constitui, se assim podemos
chamar, a leitura canônica do mesmo”.
412
CORREIA. Definição Tomista de Lei. Verbum, 1944, p. 99-118; Também em
seu trabalho Ensaios Políticos e Filosóficos. 1984, p. 154: “O conceito
tomista de direito natural é, pois, eminentemente racional; não
racionalista. Porque o princípio básico em que se assenta é formulado
pela razão, fundada na experiência sensível”.
413
SOUZA NETO. Introdução. In: TOMÁS DE AQUINO. Do Reino ou do Governo
dos Príncipes ao Rei de Chipre. 1997, p. 9: “Pode-se afirmar, pois, que
dito isto, atribui-se à razão a dignidade de mediadora imanente de toda
legislação, sem detrimento de seu primeiro princípio transcendente,
Deus. Este prestígio da razão é ainda reforçado no artigo primeiro [da
questão 90], quando da resposta à segunda sentença, ao se estabelecer
certo paralelismo entre a razão prática, à qual cabe instaurar a lei, e
a razão especulativa”.
414
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 18, 5, c, p. 1161: “Ora,
a bondade e a malícia dos atos humanos são relativos à razão”. Idem.
Ibidem. q. 100, 1, c, p. 1809: “Ora, como os costumes humanos se
consideram em relação com a razão, que é o princípio próprio dos atos
Não quem não admita que, sem haver relação de conformidade com
a razão, não pode haver lei para o Angélico.
415
Essa conformidade
garante o estatuto racional normativo da lei a partir da própria
realidade humana, bem como a objetividade da realidade ética e
cuja expressão, formalmente, normativa é dada pela própria lei em
geral.
416
De um modo ainda geral, Santo Tomás conceitua a lei como
uma “regra e medida dos atos, pela qual somos levados à ação ou
dela impedidos”.
417
Explicado essa definição, isso quer dizer que o
sujeito deve agir ou abster-se da ação consoante os limites
determinados por essa regra e medida.
418
Assim, a lei designa a
realização de uma ordem, ou ainda, uma demanda de determinados
fins a realizar, coordenando esses mesmos fins, preferindo uns aos
outros, sob a égide da parte operativa mais excelente do homem
todo pelo que vimos de sua constituição a qual o impera ao
agir ou ao operar.
419
A famosa definição, mais estrita, de lei
420
dada pelo
Angélico na questão 90, artigo 4
421
, da Primeira Parte da Segunda
Parte da Suma Teológica assim versa: “[...] a definição da lei,
humanos, chamam-se bons os costumes congruentes com a razão, e maus, os
que dela se afastam”.
415
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003. p. 88: “Todos os intérpretes do
pensamento tomasiano são concordes e os textos do autor são claros a
respeito em afirmar que, para ele, não existe lei, se lhe faltar a
conformidade com a razão”.
416
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia IV. 2002, p. 234: “No limiar da II-II,
Tomás de Aquino insere as importantes e célebres questões sobre a Lei em
geral (90-97), ou seja, a categoria que exprime formalmente o caráter
normativo da realidade intencionada pelo agir ético e que define,
portanto, a estrutura objetiva da existência ética”.
417
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 90, 1, c, p. 1732.
418
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia IV. 2002, p. 235: “A lei significa
sempre uma regra ou medida (metron) dos atos, segundo a qual o sujeito
deve ou não agir”.
419
Idem. Ibidem. p. 236: “Nessa passagem da forma ao exercício da lei, a
vontade exerce papel fundamental, pois ela, enquanto capaz de mover a
razão (q. 90, a. 1, ad. 3), confere ao mandamento (imperium) da lei a
eficácia na prossecução do bem comum”.
420
Segundo Amoroso Lima, Tomás influenciou Grocius, como vemos nesta
perícope. H. GROTII. De Jure Belli ac Pacis. L. I, nº. X. In: AMOROSO
LIMA. Introdução do Direito Moderno. 2001, p. 164.: “O direito natural é
uma regra que a reta razão nos sugere e nos faz conhecer que uma ação,
segundo é ou não conforme a natureza racional, está viciada por uma
deformação moral ou é moralmente necessária e que, por conseguinte, Deus
autor da natureza interdiz ou a ordena”.
421
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 90, 4, c. p. 1736.
que não é mais do que uma ordenação da razão para o bem comum,
promulgada pelo chefe da comunidade”. Nesta definição de lei,
Tomás esforçou-se para contemplar todo o caráter formal
422
que
julgou necessário para que, por ela, a sociedade tivesse um
princípio normativo. Esse princípio normativo possui, pois,
enquanto regra e medida dos atos humanos, dois aspectos, um ativo
e outro passivo. Pelo primeiro aspecto, a lei se configura como
exteriorização racional da vontade do legislador; e, pelo segundo
aspecto, a lei está, participativamente, nos cidadãos enquanto a
sentem no seu agir ético.
423
É importante salientar que esses dois aspectos, de fato,
existem sob a única realidade da lei, enquanto derivada da razão
prática, pois a própria razão prática está, por natureza,
subordinada a um princípio externo orientador comum a todos
que a regula e orienta suas operações e disposições para dirigir a
práxis humana, dentro da sociedade, rumo ao alcance do fim comum e
último.
424
Cabe, agora, perscrutar o que fundamenta a realidade
ética do agir humano e o valor ontológico desse fundamento.
422
LIMA VAZ. Ibidem, p. 236: “Essa definição contém explicitamente a sua
causa formal (universalidade como ordenação da razão), a causa final (o
bem comum) e a causa eficiente (a promulgação pela autoridade legítima)
da lei, ou seja, a especificação (diferença última) da ordenação da
razão (gênero próximo) pelo bem comum a ser realizado e pelo promotor
legítimo dessa realização”.
423
CORREIA. Definição Tomista de Lei. p. 100. Verbum, Rio, 1944: “Mas a
lei é regra e medida, ativa e passivamente: Ativamente, aplica-se como
expressão da razão e da vontade do legislador, [...]. Passivamente,
existe no regulado e medido e acusa a sua presença em todas as
inclinações que provoca, embora estas não na constituam em sentido
próprio, senão apenas enquanto dela participantes sed quase
participative”. Em outros termos, LIMA VAZ Escritos de Filosofia IV, p.
235s afirma: “[...] sendo normativa e prescritiva em razão da sua
natureza de medida e regra, a lei requer como sua causa eficiente o
exercício ativo da medida ou regulação dos atos tanto da parte do
legislador na promulgação da lei (q. 90, a. 4), quanto da parte do
sujeito ao qual a lei se aplica, que a recebe como princípio do seu ato
enquanto ato moralmente especificado”.
424
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 265:
“[…] this practical reason in its turn, depends upon a principle with
controls it and according to with it rules itself. It only prescribes a
given act with a view to leading us to a given end. Consequently, if
there exists an end common to all our acts, that end constitutes the
first principle on which all the decisions of practical reason depend”.
3.2. Lei Natural e Direito
Estabelecida essa dependência, o espírito volta a se
perguntar se a mesma lei reguladora da razão prática possui,
também ela, seu referencial, ou, melhor ainda, seu fundamento. A
esta justa indagação do espírito, Ferreira da Costa responde que,
no pensamento do Aquinate, como a lei é o fundamento ontológico do
Direito, Deus é o fundamento ontológico da lei.
425
Tanto a
indagação quanto sua resposta são plenamente cabíveis, que o
mundo de Tomás é também, a seu modo, um mundo governado pela
lei
426
, cuja existência se alicerça, portanto, em dois valores: um
imanente, outro transcendente.
427
E ao avaliarmos a situação
hodierna do agir humano sob uma perspectiva ética, havemos de
convir em que uma das fontes da dificuldade contemporânea, na
questão da universalização normativa, está na ausência de um
fundamento universal para o agir com ética.
428
Tomás reconhece, assim, segundo a tradição de seu tempo,
que Deus governa o mundo pela Divina Providência, isto é “[...]
pela razão divina. Por onde a razão mesma do governo das coisas,
em Deus, [...], tem a natureza de lei. E como a razão divina nada
concebe temporalmente, [...] é forçoso dar a essa lei a
425
FERREIRA DA COSTA. A Constituição do Direito em Santo Tomás de Aquino.
In: COSTA; DE BONI. A Ética Medieval Face aos Desafios da
Contemporaneidade. 2004, p. 301.
426
GROSSI. L’Ordine Giuridico Medievale. Roma: Gius, 1994, p. 14: “La
società medievale è giuridica perché si compie e si salva nel diritto,
giuridica è la sua constituzione piú profonda”.
427
Idem, ibidem, 1994, p. 14.: “Ordine [...] collocato nel terreno fondo
e sicuro delle radicazioni supreme, dei valori. Un valore immanente
la natura delle cose, un valore transcendente Il Dio nomoteta della
tradizione canonica, l’uno in assoluta armonia con l’altro secondo i
dettami della teologia cristiana, constituiscomo un ordo, un ordo
iuris”.
428
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 113: “Uma das raízes das
dificuldades enfrentadas pelo problema atual da universalização das
normas e da relação entre norma e valor, reside, sem dúvida, no abandono
da pressuposição de um fundamento universal na análise do agir ético”. E
em nota a esta perícope ele acrescenta: “Daqui provém a ênfase no estudo
metaético da noção de norma ou de sua estrutura lógico-lingüística, cuja
inegável importância não pode, porém, relegar à margem a consideração da
natureza especificamente ética da norma e sua função mediadora na
estrutura do agir ético”.
denominação de eterna”.
429
E que “a primeira forma da lei era a lei
eterna (lex aeterna), da qual participam as demais formas de lei
[...]”.
430
Portanto, a lei eterna é o supremo governo de todo ente,
que todo ente possui sua lei (natural) da qual participa
431
em
sua medida e a seu modo — da lei eterna.
432
No artigo 2, da questão 91, Tomás estabelece o
obstante suas vicissitudes
433
a primeira lei que participa da lei
eterna: a lei natural. Essa participação não é unívoca, mas
análoga e proporcional a cada modo de ser. No ser humano essa lei
é o modo como ele participa da Providência divina pela sua
razão.
434
Assim sendo, a lei natural no homem chama-se mais
propriamente de lei porque ele se vale da sua razão
435
que o leva
ao conhecimento dela.
436
429
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 91, 1, c, p. 1737. E.
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 266,
assim sintetiza: “Now, God’s rule for the government of the universe is,
like God Himself, necessarily eternal. Thus the name eternal law is
given to is given to this first law, sole source of all others”. O
Doutor de Hipona outrora assim se pronunciava quanto à lei eterna: “Lex
vero aeterna est, ratio divina vel voluntas Dei, ordinem naturalem
conservari jubens, pertubari vetans”. AGOSTINHO. Contra Faustum
Manichaeum, L. XXII, c. XXVII, PL 42, 418. In: ARMAS, 1955, p. 147.
430
KRITSCH. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo: Humanitas,
2002, p. 306.
431
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 94: “Duas são as noções de que
se vale para formular sua explicação: a primeira, a de providência
divina que, dirigindo o mundo através da lei eterna, faz com que esta
seja o fundamento de todas as demais leis; a segunda, a de participação:
todas as coisas, enquanto medidas e reguladas pela lei eterna,
participam dela de certo modo, enquanto são levadas a praticar aqueles
atos que as inclinam para seu fim”.
432
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 91, 2, c, p. 1738: “Ora,
todas as coisas sujeitas à Divina Providência são reguladas e medidas
pela lei eterna [...]. Por onde é manifesto que todas participam, de
certo modo, da lei eterna, enquanto que por estarem impregnadas dela se
inclinam para os próprios atos e fins”.
433
DE BONI. Ibidem. p. 94: “Contudo é lugar comum observar que, ao
tentar dizer o que é lei natural, Tomás, defrontando-se com uma longa
história de diferentes proveniências, apresenta oscilações e mesmo tenta
conciliar tradições inconciliáveis”.
434
SOUZA NETO. Introdução. In: TOMÁS DE AQUINO. Do Reino ou do Governo
dos Príncipes ao Rei de Chipre. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 10: “Esta
participação ocorre de forma especificamente diferenciada e, no homem,
criatura racional, se eleva a uma verdadeira participação na
providência, na medida em que cabe à razão ser providente para o homem e
os demais entes”.
435
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 94: “Mas a participação do
homem possui uma característica especial, pois dá-se graças à razão,
pela qual ele, assemelhando-se a Deus, é capaz de prover a si mesmo e
A lei natural goza do estatuto de fundamento da lei que o
homem, por indústria própria
437
industriam rationis —, faz em
função da consecução do Bem Comum Político, pois tanto a lei
eterna, mais remota, quanto a lei natural, próxima, são
constituídas como normas últimas da práxis humana.
438
A este
“modelo nomotético” de interação entre as leis natural e divina
439
,
Lima Vaz o nome de teonômico
440
que, nas palavras de Correia, é
um regime “pelo império da lei, uma semelhança do governo divino
do universo espiritual e corpóreo. Porque sic quodam modo se habet
ratio in homine sicut Deus in mundo”.
441
Decorrente desse modelo
teonômico
442
, uma das prerrogativas da lei natural é que ela está
gravada tão profundamente no coração humano que quanto a seus
aos demais, salvando-se com isso a exigência de racionalidade que entra
como primeira característica na definição da lei”.
436
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 91, 2, ad 3
um
, p. 1739:
“Mas como esta [criatura racional] dela participa intelectual e
racionalmente, por isso essa participação da lei eterna pela criatura
racional chama-se propriamente lei; pois a lei é algo de racional
[...]”.
437
DE BONI. Ibidem, p. 96: “No rigor dos termos, portanto, a lei natural
não possui preceitos secundários, pois estes se classificam como
pertencentes ao ius gentium. Do mesmo modo, não lhe cabendo propriamente
a definição de ‘determinação da razão’ o que convém ao direito
positivo —, pois ela se caracteriza muito mais como descoberta por parte
da razão. De forma resumida, e com as simplificações necessariamente
implicadas, isto é o que se entende aqui por lei natural”.
438
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 114: “[...] a lei natural
e a lei divina (idênticas no Estoicismo, distintas na Ética cristã) são
consideradas as normas últimas do agir ético”.
439
AMOROSO LIMA. Introdução do Direito Moderno. São Paulo: Loyola, p.
156.: “A concepção de direito natural, que dominou toda essa época
[moderna], ia sofrer a repercussão desse naturalismo [oriundo do
humanismo renascentista e do evangelismo protestante], que pouco a pouco
substituía o conceito do direito natural como reflexo no homem da lei
eterna, provinda de Deus a idéia do direito natural como sendo apenas
a teoria da origem natural e não sobrenatural do direito”.
440
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 118. Por oposição aos
modelos cosmonômicos da ética clássica e estóica e ao modelo hipotético
de essência politonômico da Ética moderna. Ele havia, antes,
ponderado na obra Escritos de Filosofia II. 1993, p. 160: “A estrutura
teonômica da universalidade objetiva da physis presente no
Estoicismo e no neoplatonismo encontra uma forma sistemática
definitiva na teologia de Sto. Tomás pela proposição de um teocentrismo
rigoroso, fundado na transcendência absoluta de Deus Criador, que
estende seu influxo ordenador à realidade política”.
441
CORREIA. Definição Tomista de Lei. p. 116. Verbum, Rio, 1944.
442
Amoroso Lima Introdução do Direito Moderno. 2001, p. 155, o chama de
“direito integral”.
primeiros princípios
443
ela, de modo algum, não pode ser apagada
do coração do homem
444
, o que lhe um caráter de universalidade,
necessária para a garantia da universalidade da vida ética e seus
valores sobre a terra, já que o homem, reitera Santo Tomás, possui
essa inclinação por natureza.
445
É bem verdade que o existir
humano, no pensamento tomasiano, é variado em sua concretude
histórica, o que lhe impõe aplicar, nas diversas comunidades dos
povos, a lei natural à sua realidade, mas também é preciso partir
de um conjunto de valores e bens que pertençam à comunidade humana
enquanto tal.
446
A questão da lei natural traz consigo, também, a questão
do direito natural com o qual não se identifica
447
, embora lhe
determine as regras principais, o que, certamente, leva o Aquinate
a usar os termos como sinônimos.
448
443
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 94, 6, c, p. 1766: “[...]
à lei natural pertencem, primeiro, certos preceitos generalíssimos,
conhecidos de todos [...]. Ora, quanto aos princípios gerais, a lei
natural de nenhum modo pode, em geral, delir-se do coração dos homens
[...]”.
444
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas, 1994, p. 267:
“Thus understood, natural law is literally and indelibly written on the
fleshy tablets of the heart”. E em The Spirit of Medieval Philosophy.
1991, p. 335: “The eternal law, then, may be said to be ‘written’ in our
hearts”.
445
TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 94, 2, c, p. 1760: “[...]
Pois, a primeira inclinação existente no homem, conforme a natureza
[...] é para o bem [...]. E segundo esta inclinação, pertence à lei
natural aquilo por que a vida humana é conservada e o contrário
impedido”; FINNIS. Op. Cit. p. 140: “Human life itself, which is lost or
destroyed by death, is a basic human good, and the subject-matter of a
primary reason for action (first principle of practical reason and
natural law)”.
446
McINERNY. Ethica Thomista. Washington: s. ed. 1982, p. 124: “Such
truths are implicit in any particular decision; their articulation is of
value since they suggest that, despite the contingency and continuous
alteration of the circumstances in which we act, despite the historical
changes human action: some goods which will ever be constitutive of the
human moral ideal, some kinds of action which are always destructive of
the human good. This is the conviction that Thomas develops in his
theory of natural law”.
447
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 57, 1, ad 2um, p. 2481:
“Por onde, a lei, propriamente falando, não é o direito mesmo, mas uma
certa razão do direito”.
448
MOURA. A Doutrina do Direito Natural em Tomás de Aquino. In: DE BONI.
Idade Média: ética e política. 1996, p. 226: “[...] a lei propriamente
não se identifica com o direito (Cf. II-II, 57, 1, ad 2
um
), mas
determina-lhe as normas principais. Não obstante esta distinção, Santo
Tomás, por vezes, usa os termos lei e direito como sinônimos, e as
expressões direito natural e lei natural correspondentes”; FINNIS. Op.
Hodiernamente, segundo Bobbio, dá-se algo análogo com o
termo “direito”, usado tanto para indicar uma “norma jurídica
particular” como para indicar “um determinado complexo de normas
jurídicas”.
449
Ele também lembra que uma coisa é a “norma jurídica”
e outra coisa é o “ordenamento jurídico”.
450
Mas Bobbio refere-se,
aqui, já ao direito positivo, enquanto estamos, ainda, tratando do
natural. De qualquer modo, a concepção de direito natural segundo
Santo Tomás pode ser cognominada de racional, não, porém, de
racionalista, uma vez que seu lastro é, efetivamente, a razão, mas
fundada no dado empírico.
451
Nossa reflexão se volta para a realidade que é
conseqüência natural e necessária da existência da lei natural, da
posse e aplicação que o homem faz, e deve fazer, dela no convívio
social.
3.3. Lei Positiva e Direito Positivo
Vimos que a lei natural goza do estatuto de fundamento da
lei que o homem, por indústria própria, faz com vistas à
consecução do Bem Comum Político, pois “a lei se ordena para o Bem
Comum”
452
, e é por isso que “from natural law we can derive laws
governing society, laws which aim at the good of society and which
Cit. p. 135, n. 16: “[...] the relevant law thus stands to the right as
the plan in the builder’s mind stands to the building. (This response to
an objection is complicated by the specialized Roman law use of lex to
mean written, i. e. statutory, law. Consequently, ratio iuris has
sometimes been mistranslated ‘expression of law’; but the argument as a
whole makes the sense clear.)”. (itálico do original)
449
BOBBIO. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10
a
. ed. Brasília: EdUnb,
1999, p. 19.
450
Idem, ibidem, p. 22.: “[...] digamos que não foi possível dar uma
definição do Direito do ponto de vista da norma jurídica, considerada
isoladamente, mas tivemos de alargar nosso horizonte para a consideração
do modo pelo qual uma determinada norma se torna eficaz a partir de uma
complexa organização que determina a natureza e a entidade das sanções,
as pessoas que devam exerce-las e a sua execução. [...] Significa,
portanto, que uma definição satisfatória do Direito é possível se nos
colocarmos do ponto de vista do ordenamento jurídico”.
451
CORREIA. Ensaios Filosóficos e Políticos. 1984, p. 154: “O conceito
tomista de direito natural é, pois, eminentemente racional; não
racionalista. Porque o princípio básico em que se assenta é formulado
pela razão, fundada na experiência sensível”.
are promulgated somehow”.
453
Faz-se mister derivar as leis
positivas
454
, que custodiarão o consórcio humano, da lei natural,
sob pena de se estatuírem princípios anômalos para a prática ética
da sociedade política, devido ao vínculo inerente entre leis
positivas legítimas e sua derivação da lei natural. Com efeito, a
lei humana não pode ser lei em sentido verdadeiro e pleno e
gozar de suas prerrogativas
455
se não assumir como princípios os
preceitos da lei natural e deles fazer derivar
456
disposições
particulares para a práxis humana concreta.
457
Derivar leis em vista do agir humano é tarefa do poder
458
político da Comunidade. Para Tomás, contudo, o poder político
corresponde à Comunidade Política mesma, porque, na verdade,
“ordenar para o fim é próprio de quem por si mesmo se dirige para
ele. Ao passo que ser ordenado para o fim é próprio do ser, que
452
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 96, 3, c, p. 1777.
453
DAVIES. The Thought of Thomas Aquinas. 1993, p. 247.
454
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 119: “O Direito é relativo
à lei e, como tal, está presente no horizonte objetivo do agir ético.
[...]. O Direito é concebido como sendo a realidade objetiva ou a res
(coisa) enquanto, ao ser submetida à medida da lei, pode ser partilhada
entre os que a ela estão submetidos”. (itálico do original).
455
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994. p. 267.
“Human law aim at prescribing acts which natural law imposes upon
individuals for the common good, and they only bind in the measure in
which they are just, that is, to the extent they satisfy their own
definition”.
456
SOUZA NETO. Introdução. In: TOMÁS DE AQUINO. Do Reino ou do Governo
dos Príncipes ao Rei de Chipre. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 11. : “[...]
assumindo como princípios os preceitos da lei natural, destes faz
derivar disposições mais particulares, as quais, em seu conjunto, são
chamadas de lei humana, respeitadas todas as condições inerentes à razão
de lei”.
457
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 267:
“From this arise two important consequences touching the nature this
law. First, it is clear that human law has no principle of its own to
invoke. It is strictly limited to defining ways of applying natural law.
When princes or States legislate, they only deduce from the universal
principle of natural law the particular consequences necessary for life
in society. Secondly, it is clear, through the preceding, that he who
spontaneously follows natural law is more or less predisposed to
acknowledge human law and to receive it willingly. When human law is
promulgated, it embarrasses the vicious or rebellious man, but the just
man conforms to it with so perfect a spontaneity that it is as though,
so far as he is concerned, civil, law does not exist”.
458
FINNIS. Op. Cit. p. 275: “The ‘power of the sword’, as Aquinas
understands it, is essentially the public authority of the state’s
rulers, and their judicial and military officers, to execute criminals
and wage war”.
para o mesmo é levado por outro [...]”.
459
O Angélico, ciente de
que, esta é incapaz enquanto multidão de exercer por si mesma
algum ato de poder propriamente dito, postula que ela tem que
conferir o poder à determinada ou a determinadas pessoas.
460
Não é
dispensável acrescentar que é somente pela autoridade da
Comunidade Política como tal, mormente representada de algum modo
pelo potentado, que a lei mede e regula a práxis no âmbito ético-
jurídico.
461
A nosso ver, Tomás ficaria satisfeito com a definição
bobbiana de “poder soberano”: “Com a expressão muito genérica
‘poder soberano’ refere-se àquele conjunto de órgãos através dos
quais um ordenamento normativo é posto, conservado e se faz
aplicar”
462
, porquanto, igualmente, Tomás
463
admite a possibilidade
de a própria comunidade política autodeterminar legalmente desde
que consoante a reta razão quanto ao tipo de poder a se
estabelecer. Também não deixaria de subscrever a proposta de
Bobbio
464
do estabelecimento dos órgãos de poder pela lei, bem como
459
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 1, 2, ad 2
um
, p. 1028.
460
Idem. Ibidem. I-II, 90, 3, c, p. 1735: “[...] Ora, ordenar para o Bem
Comum é próprio para todo o povo ou de quem governa em lugar dele.
[...]”.
461
Idem. Ibidem. I-II, 92, 2, c, p. 1748.
462
BOBBIO. Teoria do Ordenamento Jurídico. 1999, p. 25.
463
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 97, 1, c, p. 1784: “[...]
Assim, Agostinho o exemplo seguinte. Se um povo for de boa moderação,
grave e guarda diligentíssimo da utilidade comum, a lei é justamente
feita para que tal povo seja lícito estabelecer os seus magistrados, que
administrem a república. Mas se, depravado esse povo, paulatinamente,
venha a tornar venal o seu sufrágio e entregar o governo a homens
flagiciosos e celerados, é justo cassar-se-lhe o poder de distribuir as
honras, e transferi-lo ao arbítrio de uns poucos bons”; Idem. Ibidem.
97, 3, ad 3
um
, p. 1787: “O povo em que se realiza o costume, pode ter
dupla condição. Se for livre e capaz de legislar, vale mais o consenso
de toda a multidão, para o fim de se observar alguma disposição
manifestada pelo costume, do que a autoridade do chefe, que não tem o
poder de legislar senão enquanto representa a personalidade do povo. Por
onde, embora pessoas singulares não possam legislar, contudo a
totalidade do povo o pode. Outro caso é o do povo que não tem poder
livre de legislar para si ou de remover a lei estabelecida por um poder
superior. Em tal caso, contudo, o próprio costume, que prevalece na
multidão, obtém força de lei, por ser tolerado por aqueles a quem
pertence impor a lei ao povo. Pois, por isso mesmo, são considerados
como tendo aprovado o que o costume introduziu”.
464
BOBBIO. Ibidem, p. 25: “E quais são esses órgãos é o próprio
ordenamento que o estabelece”.
a proposta de o mesmo “ordenamentoser definido pela soberania e
vice-versa.
465
Não é demais lembrar que aquele que, porventura, dirige a
Comunidade Política não aliena o poder da comunidade. O que é
mais bem-definido em termos de “concessão”, em virtude da qual se
transfere meramente o exercício do poder como um officium
público, enquanto o poder em si mesmo permanece na comunidade como
seu único titular terreno. Portanto, o poder político pode ser
exercido por alguém ou algumas ou muitas pessoas na condição de
representante(s) ou de gerente(s) da comunidade; afora isso, o que
ocorre é uma violação deste princípio, da própria lei.
Na senda de Kritsch, podemos perguntar: “mas o que se
devia entender então por populus?”
466
Como resposta a esta
indagação, ela elege a definição que Tomás dá no corpo do artigo 2
da questão 105 da Primeira Parte da Segunda Parte da Suma
Teológica: “Como diz Agostinho, citando Túlio, um povo é a
associação de muitos indivíduos, baseada no consenso jurídico e na
utilidade comum”.
Não obstante a passagem mostrar a ligação de Tomás com a
tradição, o uso mais freqüente nos textos tomásicos é o de
“communitas perfecta ou simplesmente multitudo”, que melhor
traduz a acepção que o Angélico tinha da Comunidade Política
467
,
sujeito titular do referido poder
:
465
Idem, ibidem, p. 25: “Se é verdade que um ordenamento jurídico é
definido através da soberania, é também verdade que a soberania em uma
determinada sociedade se define através do ordenamento jurídico. Poder
soberano e ordenamento jurídico são dois conceitos que se referem um ao
outro”.
466
KRITSCH. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo:
Humanistas, 2002, p. 321. Lima Vaz (Escritos de Filosofia II, p. 136s),
apresenta o seguinte comentário quanto à definição vinda de Cícero: “A
sociedade política se apresenta exatamente como intento de desvincular a
necessidade natural da associação e a utilidade comum dela resultante,
do exercício do poder como força ou como violência, e assumi-la na
esfera legitimadora da lei e do Direito. Esse intento virá a
concretizar-se historicamente na invenção da pólis como Estado onde o
poder é deferido à lei ou à constituição (politeia) e cuja essência o
filósofo estóico Panécio de Rodes traduzirá na definição lapidar que nos
foi transmitida por M. T. Cícero: coetus multitudinis juris consensu et
utilitatis communione sociatus”. (itálico do original).
467
Da Comunidade Política, no sentido de Estado (no conceito moderno) ou
como Comunidade Perfeita (na acepção de Santo Tomás) veja nota 103 do
capítulo I.
Como o homem faz parte da casa, assim, esta, da
cidade, que é uma comunidade perfeita, segundo
Aristóteles [I Política, 1]. Por onde, assim como o
bem de um homem não é o fim último, mas se ordena ao
Bem Comum; assim o bem de uma casa se ordena ao de
toda a cidade, que é uma comunidade perfeita [...].
468
Para não nos distanciarmos muito do período histórico em
questão e do autor, voltemos a lembrar que, acima do poder
político, normatizando-o e limitando sua ação no pensamento do
Doutor Comum —, está sempre e em toda situação a lei natural e a
lei eterna, até o ponto em que as decisões do poder político que
se oponham a elas são nulas, absolutamente carecem de força
coerciva e devem, até mesmo, ser desobedecidas.
469
Por força de tais leis, o poder político está sujeito às
próprias leis emanadas da Comunidade Política, não no sentido de
que seja impotente para propor reformas de modo que a vida
política fique condenada ao estancamento e à imobilidade, mas, ao
contrário, enquanto se mantenham em vigor, obrigam e valem também
para aquele que as promulga para a comunidade.
470
468
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 90, 3, ad 3
um
: “[…] sicut
homo est pars domus, ita domus est pars civitatis, civitas autem est
communitas perfecta, ut dicitur in I Politic. Et ideo sicut bonum unius
hominis non est ultimus finis, sed ordinatur ad commune bonum; ita etiam
et bonum unius domus ordinatur ad bonum unius civitatis, quae est
communitas perfecta. [...]”, p. 1735. Passim.
469
Idem. Ibidem. I-II, 96, 4, c, p. 1779: “[...] E assim sendo, as leis,
que impõem tais ônus proporcionais, são justas, obrigam no foro da
consciência e são leis legais. Por outro lado, as leis injustas podem
sê-lo de dois modos Por contrariedade com o bem humano, de modo oposto
às razões que as tornam justas [...]. Pelo fim, como quando um chefe
impõe leis onerosas aos súditos, não pertinentes à utilidade pública
[...]; ou também pelo autor, quando impõe leis que ultrapassam o poder
que lhe foi cometido; ou ainda pela forma, por exemplo, quando impõe
desigualmente ônus à multidão, mesmo que se ordenem para o Bem Comum. E
estas são, antes, violência, que leis, pois como diz Agostinho, não se
considera lei o que não for justo. Por onde, tais leis não obrigam no
foro da consciência, salvo talvez para evitar escândalo ou perturbações,
por causa do que o homem deve ceder mesmo do seu direito [...]”.
470
Idem. Ibidem. I-II, 96, 5, ad 3
um
, p. 1781: “Diz-se que o príncipe
está a salvo da lei, quanto à força coativa dela. Pois ninguém pode ser
obrigado por si mesmo; e a lei não tem força coativa senão pelo poder do
príncipe. Por onde, diz-se que o príncipe está a salvo da lei, porque
ninguém pode pronunciar contra ele um juízo condenatório, se agir contra
ela. [...] Mas quanto à força diretiva da lei, o príncipe, por vontade
própria, a ela está sujeito, conforme esta disposição: Quem estabeleceu
uma lei para outrem também deve se lhe submeter. E a autoridade do Sábio
É que, para Santo Tomás, toda lei é feita para uma
comunidade, que é, imperiosamente, sua destinatária
471
, razão de
ser do corpo das leis, porque ordenam os cidadãos enquanto estes
são membros da comunidade civil, no caso da lei humana, religiosa,
no caso da lei divina.
472
E o que especifica a lei humana é que ela
diz respeito à vida temporal, na qual a sua função é ordenar de
tal maneira a Comunidade Política, de modo que os homens vivam
bem, consoante a reta razão, para cujo fim a lei estatui os
devidos preceitos.
473
Se as leis se referem às comunidades concretas, estas,
por sua vez, terão suas leis positivas apropriadas
474
, cujo
fundamento nunca deixará de ser a lei natural:
[...] o direito positivo
475
se divide em direito das
gentes e direito civil, conforme aos dois modos porque
se a derivação da lei natural [...]. O que, porém
deriva da lei na natureza, por determinação
particular, pertence ao direito civil, pelo qual cada
Estado determina o que lhe é acomodado. [...] é da
essência da lei humana ser instituída pelo governador
da comunidade civil [...]. E assim sendo, as leis
o diz: Obedece à lei que fizeste. E no código dos imperadores, Teodósio
e Valentiano escrevem ao prefeito Volusiano: É palavra digna de
majestade reinante, que o príncipe se considere ligado pelas leis, pois,
da autoridade da lei depende a nossa autoridade. E por certo, é mais que
o império sujeitar-se o principado às leis. [...]”.
471
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 85: “[...] a lei, para Tomás,
somente existe quando há um povo apto a recebê-la”.
472
Idem. Ibidem. p. 85: “Ambas [lei divina e humana] ordenam indivíduos,
enquanto membros de uma coletividade”.
473
Idem. Ibidem. p. 85: “A lei humana destina-se à vida presente, na qual
quer não apenas que a comunidade dos homens viva, mas que viva bem, e em
função deste bem-viver promulga seus preceitos”.
474
AUBERT. Le Droit Romain dans L’Oeuvre de Saint Thomas. 1955, p. 81:
“En particulier, la loi devant régler les rapports entre les hommes,
ordonnée qu’elle est à l’intérêt commun, doit facilement pouvoir être
applicable en des temps et en des lieux divers”.
475
Quanto à dependência de Tomás na definição de ius positivum”, Aubert
(Op. Cit. p. 105) pondera: “La notion de jus positivum est plus
complexe. Elle ne remonte pas au droit romain; à ce titre, elle ne nous
intéresserait pas; cependant comme elle était couramment employée per
les juristes du temps de saint Thomas, l’usage que celui-ci en fit peut
nous éclairer sur son attitude vis-à-vis du droit romain médiéval, le
seul qu’il connut directement. […] Ce terme de jus positivum se
rencontre pour la première fois en France, au XII siècle, par exemple
chez Abélard, chez le canoniste français Odo de Doura, chez Simon de
Tournai; ce n'est qu'après 1210 qu'on le trouve employé pour la première
fois par l'école de droit de Bologne”.
humanas se distinguem conforme aos diversos regimes da
cidade.
476
E em outro lugar da mesma Suma Teológica, trazendo
consigo o peso da milenar
477
tradição jurídica, Tomás afirma a
distinção fundamental entre ambos os tipos do direito, o direito
natural e o direito positivo
478
:
[...] o direito ou o justo implica uma obra adequada a
outra por algum modo de igualdade. Ora, de dois modos
pode uma coisa ser adequada a um homem. De um modo,
pela natureza mesma da coisa, por exemplo, quando
alguém tanto para receber tanto. E este se chama
direito natural. De outro modo, uma coisa é adequada
ou proporcionada a outra, em virtude de uma convenção
ou de um acordo, por exemplo, quando alguém se julga
satisfeito se receber tanto, o que pode se dar de dois
modos. De um modo, por uma convenção particular, como
quando pessoas privadas firmam entre si um pacto. De
outro modo, por convenção pública, por exemplo, quando
todo o povo consente que uma coisa seja tida como que
adequada e proporcionada a outra, ou quando o
príncipe, que governa o povo e o representa, assim o
ordena. E a este se chama direito positivo.
479
476
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 95, 4, c, p. 1773: “Et
secundum hoc dividitur ius positivum in ius gentium et ius civile,
secundum duos modos quibus aliquid derivatur a lege naturae [...]. Quae
vero derivantur a lege naturae per modum particularis determinationis,
pertinent ad ius civile, secundum quod quaelibet civitas aliquid sibi
accommodum determinat. […] est de ratione legis humanae ut instituatur a
gubernante communitatem civitatis […]. Et secundum hoc distinguuntur
leges humanae secundum diversa regimina civitatum”.
477
MOURA. A Doutrina do Direito Natural em Tomás de Aquino. In: DE BONI.
Idade Média: ética e política. 1996, p. 223: “A distinção entre direito
natural e direito positivo vem de tradição milenar”.
478
Idem, ibidem, p. 223: “Sto. Tomás, sempre fiel às legítimas tradições,
afirma a distinção entre direito natural e positivo, em sólido artigo da
Suma Teológica [...]”.
479
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 57, 2, c, p. 2482:
“[...] ius, sive iustum, est aliquod opus adaequatum alteri secundum
aliquem aequalitatis modum. Dupliciter autem potest alicui homini
aliquid esse adaequatum. Uno quidem modo, ex ipsa natura rei, puta cum
aliquis tantum dat ut tantundem recipiat. Et hoc vocatur ius naturale.
Alio modo aliquid est adaequatum vel commensuratum alteri ex condicto,
sive ex communi placito, quando scilicet aliquis reputat se contentum si
tantum accipiat. Quod quidem potest fieri dupliciter. Uno modo, per
aliquod privatum condictum, sicut quod firmatur aliquo pacto inter
privatas personas. Alio modo, ex condicto publico, puta cum totus
populus consentit quod aliquid habeatur quasi adaequatum et
commensuratum alteri; vel cum hoc ordinat princeps, qui curam populi
habet et eius personam gerit. Et hoc dicitur ius positivum”.
Portanto, o direito positivo, não sendo uma negação do
direito natural, é seu complemento, devido ao fato de que o
direito natural somente estipula uns princípios generalíssimos que
originam um direito ainda rudimentar, o que não quer dizer
incerto.
480
Isto implica que o direito possui dois modos pelos
quais se apresenta.
481
Num primeiro modo do ponto de vista
natural, como instituído e dado por Deus e reconhecido pela razão
humana
482
temos o direito natural pelo qual uma igualdade
natural
483
, portanto perfeita, entre as partes em questão, os
membros da humanidade. Num segundo modo de igualdade imperfeita
temos o direito positivo, quando temos uma convenção, sem
importar sua ordem; nele uma equivalência decorrente da
convenção e, portanto, é um direito mutável em si, cuja função de
480
CORREIA. Ensaios Políticos e Filosóficos. 1994, p. 155: “Os princípios
fundamentais da ordem jurídica natural constituídos assim pela razão,
são, porém, princípios muito gerais universalia juris. Donde se
conclui que não bastam à construção de toda a ordem jurídica. Base,
alicerce, ponto de partida apenas, não formam um direito ideal [...];
mas um direito rudimentar. O juiz, adstrito a decidir, não daria nunca a
sua sentença se ficasse a pensar no bem que deve fazer e no mal a
evitar; portanto, deve obedecer à legislação positiva, do seu país. Mas
isso não prova que o direito natural é insuficiente e incompleto e tem
necessidade de ser completado pelo direito positivo [...]”.
481
Um “terceiro” modo seria o “direito” que regula as relações
domésticas. Como, porém, na visão do Divus Thomas (Suma Teológica. 1980,
II-II, 57, 4, c.) essas relações realizam algo bem distante do
que ocorre na cidade, então elas não se pautam pelo direito, em seu
sentido pleno. Isto porque, na visão tomásica, os membros da família são
quase como membros do pai de família. E como não relação de direito
para consigo mesmo, não relação de direito pleno dentro da
família. Daí, Tomás, dá, a esse “direito” doméstico o nome de ‘paterno’,
nas relações entre pais e filhos; direito ‘do senhor’, nas relações
entre o senhor e seu servo e; poderíamos acrescentar o “direito”
matrimonial, para as relações entre maridos e mulheres, “because the
relations of right are here governed by the common good of the family as
their end”. (GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas.
1994, p. 307.)
482
MOURA. A Doutrina do Direito Natural em Tomás de Aquino. In: DE BONI.
Idade Média: ética e política. 1996, p. 223: “O primeiro direito [o
natural] é instituído e promulgado por Deus, que possibilita ao homem,
pela sua natureza racional reconhecê-lo, e Deus pode alterá-lo, mas
não o faz, porque a sabedoria divina não é contraditória”.
483
FINNIS. Op. Cit. p. 136: “If the right in question is a natural right,
the equality must be a natural equality, not merely a ‘status’ conferred
by the norms of natural law”.
adaptá-lo à utilidade comum sempre que seja exigido é de quem
possuir o poder político.
484
ainda um modo do direito natural que também comunga
com o modo do direito positivo
485
que o Angélico denomina de
Direito das Gentes
486
, direito comum a todos os humanos, máxime
em suas relações intercomunitárias:
Pois o direito das gentes pertence o que deriva da lei
natural como as conclusões derivam dos princípios;
tais as justas compras, vendas e outras transações sem
as quais os homens não podem ter convivência, que é de
direito natural, porque o homem é um animal
naturalmente social, como o prova Aristóteles.
487
Quanto às fontes de que o Santo Frade se utilizou,
afirmamos que ele compulsou, de um modo geral e, não pouco
crítico, tudo o que se lhe apresentava a partir da tradição
jurídica ocidental, baseada nos trabalhos dos juristas romanos, de
filósofos como o Estagirita e dos estóicos, e também das obras de
teólogos consagrados como Santo Agostinho e Santo Isidoro de
Sevilha. E, mais proximamente de Tomás, ele serviu-se dos textos
de canonistas e teólogos do século XII, entre outros, Anselmo de
Laon, Hugo de São Victor, Abelardo, Pedro Lombardo e Graciano e
484
MOURA. Op. Cit. p. 223: “O segundo direito é firmado por convenção
humana, cabendo ao homem promulgá-lo, anulá-lo ou modificá-lo, se
necessário for. É de sua estrutura ser mutável”.
485
CORREIA. Ensaios Políticos e Filosóficos. 1984, p. 180: “Entre o
direito natural e o positivo, participando de um e de outro, insere-se o
direito das gentes, ius gentium. [...] Ora, essas instituições,
derivadas da lei natural à guisa de conclusões próximas, constituem o
domínio do direito das gentes, ius gentium. E assim considerado, o ius
gentium pode ser definido, com Gaio, quase quo jure omnes gentes
utuntur. É um direito natural especificamente humano quod naturalis
ratio inter omnes gentes constituit. Porque comparar e concluir é
próprio da razão; e assim a conclusão será natural, secundum rationem
naturalem”. (itálico do original).
486
OLIVEIRA. Carlos. Notas de aula no Estúdio Dominicano. São Paulo:
(datilografado), 1962, p. 15: “Diríamos, portanto, que o direito das
gentes tem algo de natural e algo de positivo; dentro da própria
sistematização de Sto. Tomás se qualificaria de ‘direito natural
secundário’, na linha das explanações da Q. 94, da I-II, arts. 2-4”.
487
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 95, 4, c, p. 1773: “Nam
ad ius gentium pertinent ea quae derivantur ex lege naturae sicut
conclusiones ex principiis, ut iustae emptiones, venditiones, et alia
huiusmodi, sine quibus homines ad invicem convivere non possent; quod
est de lege naturae, quia homo est naturaliter animal sociale, ut
probatur in I Polit”.
seu Decreto, bem como das obras dos pensadores que partilhavam de
seu contexto histórico, como Guilherme de Auxerre, Pedro de
Tarantaise e, mais proximamente, das escritas por seu mestre e
inspirador, Santo Alberto Magno.
488
Assim, no corpo do Art. da questão 95, da Primeira
Parte da Segunda Parte da Suma Teológica, a definição de Ius
gentium, oferecida por Tomás, na resposta ao primeiro argumento do
mesmo artigo,
489
como um dos lugares onde mais sintomaticamente se
percebe o esforço do Angélico em conciliar
490
toda a riqueza da
filosofia peripatética, do direito romano e de Isidoro de Sevilha.
Quanto à divisão dos diversos tipos de direito, Aubert
491
traz uma lista bem ilustrativa com duas divisões, sendo a primeira
488
MOURA. A Doutrina do Direito Natural em Tomás de Aquino. In: DE BONI.
Idade Média: ética e política. 1996, p. 225: “Sob o aspecto histórico-
doutrinário, a fonte remota da concepção tomista de direito natural é
toda a tradição jurídica do Ocidente, contido nos pronunciamentos dos
mestres romanos do direito, nas proposições de filósofos como
Aristóteles e os estóicos, nas obras de teólogos, como Agostinho e
Isidoro. [...] As fontes imediatas encontram-se naqueles teólogos e
canonistas que trataram do direito natural no século XII (Anselmo de
Laon, Hugo de São Vitor, Abelardo, Pedro Lombardo), não podendo ser
esquecido o famoso Graciano, com seu Decreto. Houve também, é lógico, a
contribuição de seus contemporâneos, citando-se, entre eles, Guilherme
de Auxerre e o dominicano Pedro de Tarantaise (mais tarde papa Inocêncio
V) [...] a fonte mais próxima foram as lições recebidas de Santo Alberto
[...]. Na obra Summa de Bono [...]”.
489
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980,I-II, 95, 4, ad 1um, p. 1773: “O
direito das gentes, sendo racional, é, de certo modo, natural ao homem,
enquanto derivado da lei natural, a modo de conclusão não muito remota
dos princípios; por isso os homens facilmente se põem de acordo
relativamente a ele. Distinguem-se, contudo, do direito natural,
sobretudo do que é comum a todos os animais”.
490
CORREIA. Ensaios Políticos e Filosóficos. 1984, p. 183, n. 75:
visivelmente um esforço, por parte de S. Tomás, para conciliar
Aristóteles, os jurisconsultos romanos e Isidoro de Sevilha na questão
da tripartição do direito. Cf. O. Lottin, Le Droit Naturel chez saint
Thomas d’Aquin et ses prédécesseus, ed. cit. 3
me
ptie., ch. I”.
491
AUBERT. Le Droit Romain dans L’Oeuvre de Saint Thomas. 1955, p. 92s:
I. Une classification bipartite, celle de Gaius:
i. jus gentium = ensemble de règles respectées par tous
les peuples et établi par l’ordre naturel des choses
(ratio naturalis); il s’agit donc d’um véritable droit
naturel;
ii. jus civile = droit propre à chaque civitas.
II.Deux divisions tripartites, portant la marque du stoïcisme, et d’um
caractère plus moral que juridique.
1. Celle attribuée à Ulpien qui distingue:
a) jus naturale = droit commun à l’homme et aux animaux;
b) jus gentium = droit essentiellement humain;
c) jus civile = droit propre à la cité.
bipartida e a segunda, com mais duas outras divisões tripartidas,
oriundas da tradição do Direito Romano
492
, com as quais o Santo de
Aquino trabalhou. E nada mais natural a Tomás que beber das fontes
disponíveis de seus predecessores
493
e propor sua síntese sob seu
próprio perfil.
494
Tomás de Aquino, herdeiro do pensamento jurídico
precedente e coetâneo de seu tempo, não passou ao largo da
discussão sobre a justiça e suas relações com as virtudes morais e
a lei, mas se propôs e efetivou uma síntese enriquecida com as
perspectivas cristã e pagã de sua época, como veremos logo
adiante.
3.4. A Justiça e suas Modalidades
Para Tomás de Aquino, a virtude da justiça “é um hábito
pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribuímos a cada um
2. Celle d’Hermogénien, qui se situe surtout sur un
plan historique:
a. jus naturale = droit primitif, en référence à un âge
ignorant la guerre, la propriété;
b. jus gentium = droit actuel, par lequel ont été
introduits la propriété privée, l’esclavage, la
guerre, les contrats, etc;
c. jus civile = droit de la cité.’’
492
Aqui como demonstra Jean-Marie Aubert em sua obra (op. Cit.),
especialmente a partir da p. 78 (La loi humaine vue à travers les textes
de droit romain) é preciso também admitir, não menos, a influência da
tradição do Direito Romano. Não obstante o autor (op. Cit. p. 87) pontue
que “Saint Thomas n’a jamais eu à commenter um texte juridique, de façon
officielle”. Embora, em nota admita: “Exception faite pour deux
décrétales; mais la brièveté du commentaire ne permet guère de les
prendre en considération.’’
493
Quanto à dependência de Tomás do Direito Romano na definição de jus
civile”, Aubert (op. Cit. p. 105) pondera: “La transmission de la notion
de jus civile tel que lo droit romain le définissait se fit sans
difficulté par l’intermédiaire d’Isidore et de Gratien, pour parvenir à
saint Thomas qui, nous l’avons vu, l’intégra dans as synthèse, en le
faisant dériver de la loi naturelle par mode de détermination (…)”.
494
NASCIMENTO. A Justiça Geral em Tomás de Aquino. In: DE BONI. Idade
Média: ética e política. 1996, p. 214: “Como E. Gilson relembra várias
vezes, Tomás de Aquino reinterpreta seus predecessores (inclusive
Aristóteles) à luz de seus próprios princípios, dando a impressão de que
se equivoca constantemente sobre a doutrina destes. Pura ilusão, pois o
resultado é constante: Tomás está sempre fazendo seus predecessores
dizerem o que ele próprio pretende dizer”.
o que lhe pertence”.
495
Sobre esse conceito, Aubert
496
salienta a
independência e a liberdade do Angélico quanto a tomá-la
diretamente do Direito Romano (conquanto o mesmo tenha sido
concebido pelos Estóicos e deles tenha sido absorvido pelos
juristas romanos), não obstante inseri-la em suas reflexões sobre
o pensamento do Estagirita
497
e ter ressaltado sua perenidade e
validade.
498
Hodiernamente, entretanto, a Justiça parece pertencer à
categoria de conceito normativo
499
com finalidade social —, ou
possuir um sentido lato de eqüidade
500
enquanto traz consigo as
idéias basilares de igualdade e liberdade
501
—, o que a coloca, por
causa desses novos sentidos, a uma boa “distância” histórico-
conceitual da concepção tomasiana. De qualquer forma, sua acepção
atual contém no seu bojo uma certa idéia de justiça, pois, se não
o tivesse, os atuais debates em torno da ética perderiam sua razão
de ser
502
, conquanto, na prática, verifiquemos que, muitas vezes, a
sua efetiva aplicação esteja condicionada à subjetividade daqueles
que exercem o poder judiciário e ao relativismo instável de muitas
das leis positivas. As outras virtudes, ou algo delas, igualmente,
495
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 58, 1, c, p. 2487;
JUSTINIANO. DIGESTO. 2
a
. ed. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2000, L. 1,
1, 10, pr: “Justitiam est constans et perpetua voluntas jus suum cuique
tribuendi”.
496
AUBERT. Le Droit Romain dans L’Oeuvre de Saint Thomas. 1955, p. 89:
“Mais nouvelle preuve d'indépendance et d'originalité, lorsque saint
Thomas veut définir cette vertu de façon officielle, il délaisse Cicéron
pour recourir au droit romain directement [...]”.
497
Idem. Ibidem. p. 89: “Toutefois dans la suite de l'étude de la
justice, c'est tout l'arrière fond doctrinal aristotélicien qui revient.
Aristote, délaissé comme autori officielle, reprend sa place comme
pourvoyeur du contexte rationnel dans lequel la définition du juriste
est insérée”.
498
Idem, ibidem, p. 89: “Le texte romain n'est pas commenté pour lui-même
c'est une préoccupation que n'a pas l'auteur, il fournit simplement
une définition idéale. Il est adopté non comme un souvenir du passé,
mais comme un texte vivant auquel on fait dire des choses nouvelles,
contenues cependant en germe”.
499
BOBBIO et al. Dicionário de Política. 1998, verbete justiça, p. 660s.
500
RAWLS. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
501
OLIVEIRA. Rawls, 2003.
502
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia IV. 2002, p. 233: “O declínio da noção
de virtude na Ética moderna lançou na sombra esse tema fundamental da
Ética antigo-medieval, mas os tempos recentes assistem a várias
tentativas de recuperação de um conceito sem o qual a vida ética
dificilmente poderá ser pensada”.
parecem existir, sob diversas roupagens, no cenário político e
ético — no sentido hodierno desses termos —, a compor a gama de
predicados requeridos para o mundo das relações interpessoais e
interinstituicionais.
Se, no pensamento de Tomás de Aquino, o conjunto das
virtudes (morais e intelectuais), que se entreajudam como
verdadeiro organismo, corrobora para o desenvolvimento e a
manutenção da vida ética
503
, talvez seja porque na vida social
à justiça podemos atribuir o encargo de sua execução. Portanto, a
justiça tem um caráter soberanamente espiritual, enquanto por
espiritual entendemos aquilo que também se identifica com o
formal, conquanto nele não se esgote nem a ele se limite. Dito
noutros termos, para o Angélico a justiça, como deveria ser em
nossos dias, “é máximo o esplendor da virtude”
504
, termos tomados
de empréstimo a Cícero.
Na definição usada por Tomás em seu aspecto genérico e
também subjetivo
505
—, a justiça, para que seja uma virtude, um
hábito da boa práxis, precisa ser um hábito estável, permanente,
que torne boas as obras do agente e, conseqüentemente, o próprio
agente. Neste aspecto, a justiça pode ser enquadrada junto com as
demais virtudes adquiridas, máxime, com as virtudes morais
operativas. Seu sujeito próprio é a potência racional da
vontade
506
, pois que é seu bom hábito, de modo diverso, porém, da
503
Idem. Ibidem. p. 239: “O organismo das virtudes é, pois, para Tomás de
Aquino, a estrutura normal da existência ética, que sustenta a
perseverança e o crescimento no exercício da vida ética”. (itálico do
original).
504
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 58, 3, c, p. 2489.
505
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 177.: “Não obstante as
variantes históricas que a idéia de justiça conheceu nos seus dois
aspectos que podemos designar como subjetivo e objetivo virtude e lei
[…]”.
506
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 58, 4, c, p. 2490: “É
sujeito de uma potência a potência, cujos atos a virtude é ordenada a
retificar. Ora, a justiça não se ordena a dirigir nenhum ato
cognoscitivo; pois, não somos considerados justos por conhecermos com
retidão alguma coisa. Logo, o sujeito da vontade o é o intelecto ou a
razão, que é uma potência cognoscitiva. Mas, como somos considerados
justos por agirmos retamente, e o princípio próximo do agir é a potência
apetitiva, necessariamente a justiça tem nalguma potência apetitiva o
seu sujeito. Ora, um duplo apetite, a saber: a vontade, que se funda
na razão, e o sensitivo [...]. Ora, dar a cada um o que lhe pertence não
pode proceder do apetite sensitivo, porque a apreensão sensitiva não
prudência ou da sindérese, que são hábitos relativos ao intelecto,
e da fortaleza e da temperança que são hábitos relativos aos
apetites sensíveis.
Assim, esta virtude se caracteriza por uma certa
tendência ou inclinação adquiridas estável e permanente da
própria potência da vontade, isto porque “o recebido está no
recipiente ao modo deste”
507
, e no caso presente, a vontade é o
sujeito da virtude. A justiça está, pois, na vontade se
adquirida — ao modo, à natureza desta. Assim, não está na vontade,
auxiliando, por exemplo, o conhecimento e o raciocínio, ou mesmo
no julgar e efetivar outras operações exteriores, como falar,
andar ou produzir obras de arte. Sua função está em possibilitar
uma espécie de volição — como ato intencional e elícito da vontade
—, inclinando-a para o querer “permanente e constante” em “jus
suum cuique tribuendi”. Este é seu aspecto genérico e subjetivo
“permanente e constante” que —, se não é o único que completa a
valoração da vontade, também lhe caracteriza, diferenciando-a das
outras virtudes.
O outro aspecto “jus suum cuique tribuendié o lado
objetivo, aquilo sobre o que versa a dita virtude, ou o dado real
que transcende ao sujeito e sobre o qual se estipula o devido a
cada parte, inserindo a disposição da vontade no universo real do
outro, da alteridade imperiosa, termo ad quem da própria justiça.
Uma das passagens referentes a essa alteridade é tão luminosa
embora não a única — que exige seu devido destaque:
pode chegar até a consideração da proporcionalidade entre uma coisa e
outra, o que é próprio da razão. Por onde a justiça não pode ter como
sujeito o irascível ou o concupiscível, mas, a vontade. Por isso o
Filósofo define a justiça pelo ato da vontade [...]”; Idem. Ibidem. a.
8, ad 1um, p. 2495: “A justiça pertence, certo, a uma parte da alma na
qual tem seu sujeito, a saber, à vontade, que, pelo seu império, move
todas as partes da alma. E assim, a justiça, não diretamente, mas por
uma como redundância, pertence a todas as outras partes da alma”; Idem.
Ibidem. a. 8, c; a. 12, c, p. 2500: “Mas, mesmo tratando-se da justiça
particular, podemos dizer que ela é mais excelente que as outras
virtudes morais, por duas razões. Das quais a primeira pode ser deduzida
do sujeito, isto é, porque reside na parte mais nobre da alma, a saber,
o apetite racional ou a vontade. Ao passo que as outras virtudes morais
residem no apetite sensitivo, a que pertencem as paixões, que são
matéria das referidas virtudes”; passim.
[...] é próprio da justiça ordenar os nossos atos que
dizem respeito a outrem. Porquanto, implica uma certa
igualdade, como o próprio nome o indica; pois, do que
implica igualdade se diz vulgarmente, que está
ajustado. Ora, a igualdade supõe relação com outrem.
Ao passo que as outras virtudes aperfeiçoam o homem só
no referente a si próprio. [...] A retidão, porém, que
implica a obra da justiça, além da relação com o
agente, supõe a relação com outrem. Pois, consideramos
justa uma ação nossa, quando corresponde, segundo uma
certa igualdade, a uma ação de outro [...].
508
Em outro aspecto, é o direito o objeto próprio da
justiça. É o que indica Tomás no trecho a seguir:
Por onde chama-se justo o ato que, por assim dizer,
implica a retidão da justiça, e no qual termina a
atividade desta, mesmo sem considerarmos de que modo
ela é feita pelo agente. [...] E, por isso, a justiça,
especialmente e de preferência às outras virtudes, tem
o seu objeto em si mesmo determinado, e que é chamado
justo. E este certamente é o direito. Por onde, é
manifesto que o direito é o objeto da justiça.
509
507
Idem. Ibidem. I, 84, 1, c, p. 740.
508
Idem. Ibidem. II-II, 57, 1, c, p. 2480: “[...] quod iustitiae proprium
est inter alias virtutes ut ordinet hominem in his quae sunt ad alterum.
Importat enim aequalitatem quandam, ut ipsum nomen demonstrat, dicuntur
enim vulgariter ea quae adaequantur iustari. Aequalitas autem ad alterum
est. Aliae autem virtutes perficiunt hominem solum in his quae ei
conveniunt secundum seipsum. [...] Rectum vero quod est in opere
iustitiae, etiam praeter comparationem ad agentem, constituitur per
comparationem ad alium, illud enim in opere nostro dicitur esse iustum
quod respondet secundum aliquam aequalitatem alteri [...]”; Lima Vaz
observa (Escritos de Filosofia V. 2000, p. 180): “Já a justiça enquanto
propriamente virtude ao exprimir-se na reciprocidade da relação ética
entre os indivíduos por ela tornados iguais (embora desiguais sob outros
aspectos) participa, de alguma maneira, da universalidade da justiça
como lei na medida em que, em sua natureza de hábito, implica nos
indivíduos a vontade permanente de reconhecer o outro na esfera do
direito que a ele compete de consentir em respeitar esse direito”;
FINNIS. Op. Cit. p. 138: The moral norms which answer the question what
human rights every person has, and what responsibilities one has in
relation to oneself and others, must be specifications of that supreme
principle of practical reasonableness, love of neighbour as oneself”.
509
Idem. Ibidem. II-II, 57, 1, c, p. 2481: “[...] Sic igitur iustum
dicitur aliquid, quasi habens rectitudinem iustitiae, ad quod terminatur
actio iustitiae, etiam non considerato qualiter ab agente fiat. Sed in
aliis virtutibus non determinatur aliquid rectum nisi secundum quod
aliqualiter fit ab agente. Et propter hoc specialiter iustitiae prae
aliis virtutibus determinatur secundum se obiectum, quod vocatur iustum.
Et hoc quidem est ius. Unde manifestum est quod ius est obiectum
iustitiae”.
De fato, por um lado, define-se a virtude da justiça em
relação a seu objeto que é o direito e, por outro, define-se o
direito em relação à justiça, como seu objeto. A circularidade
parece estabelecida se o Doutor Comum não dispusesse a noção do
justo, do devido ao outro, do “suum (de cada um) que é,
efetivamente, o direito objetivamente considerado. A passagem,
citada, do corpo do artigo 1 da questão 57 referente à alteridade
inerente à justiça se bem considerada, o aclara.
510
Nas
palavras do Santo de Aquino:
A matéria da justiça é a ação exterior, enquanto esta
ação mesma ou a coisa sobre o qual ela se exerce tem
relação com outra pessoa, relação que deve ser
regulada pela justiça. Ora, chama-se nosso o que nos é
devido por alguma igualdade proporcional. Por onde, o
ato próprio da justiça não consiste senão em dar a
cada um o que lhe pertence.
511
Fica patente que o suum (do outro) ou o justum é
aquilo que é devido ou ajustado entre uma pessoa em sua relação
com outrem, podendo esse “devido ou ajustado ser uma operação
externa, ou uma coisa. Assim, se alguém faz algo a outrem, este
último para que se efetive um ajustamento proporcional nessa
relação deve, de alguma maneira, fazer algo em troca. Isso se
verifica nas transações ou contratos, em que se concretiza a noção
primeira de “ajustado” ou “devido”.
Não obstante isso, é preciso frisar que a noção de
justum” requer relações mais amplas; assim, às pessoas pela
justiça se lhes deve algo não somente pelo que fazem,
reciprocamente, mas também pelo que elas são. Obviamente,
510
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 179: “A justiça que
consiste no acordo com a lei é o fundamento da extensão intersubjetiva
da vida ética no plano de uma convivência universal, ou seja, na
sociedade política. A justiça que se exprime na igualdade torna possível
a relação recíproca dos indivíduos na comunidade ética. Por sua vez, a
lei que regula a prática universal da justiça na sociedade política é
acolhida na mente dos cidadãos como a razão de seu agir eticamente e
politicamente justo, e recebe sua objetivação social no direito”.
511
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 58, 11, c, p. 2498:
“[...] materia iustitiae est operatio exterior secundum quod ipsa, vel
res qua per eam utimur, proportionatur alteri personae, ad quam per
iustitiam ordinamur. Hoc autem dicitur esse suum uniuscuiusque personae
introduz-se algo mais na noção de direito, isto é, a noção de
“direito fundamental” conquanto não seja explícita nos textos
tomasianos, depreende-se da acepção que ele tem da pessoa humana e
de sua dignidade, especialmente após seu ingresso no corpo
(jurídico e místico) da Igreja —, grêmio específico dos eleitos
mediante o Batismo, aspecto esse que não iremos considerar, porque
foge do objeto e do escopo de nossa pesquisa.
Mas é necessário explicitar quais são esses direitos
primários
512
, fundamentais e naturais do ser humano, conquanto
criatura mais perfeita entre as que vivem neste mundo.
Primeiramente, eles derivam da própria lei natural
513
e, do
fundamento desta, da lei eterna, porque o homem possui
inclinações
514
ou apetites naturais a diversos tipos de bens que
integram o Bem Comum. Essas inclinações ou apetites, Tomás os
classifica em três níveis:
Ora, conforme à ordem das inclinações naturais é a dos
preceitos da lei da natureza. Pois a primeira
inclinação existente no homem, conforme a natureza que
ele tem em comum com todas as substâncias, é para o
bem [...]. Em segundo lugar, existem no homem
inclinações mais específicas, fundadas em a natureza
que lhe é comum com os animais irracionais. [...] Em
terceiro lugar, existe no homem uma inclinação para o
bem, fundada em a natureza racional, que lhe é
própria.
515
quod ei secundum proportionis aequalitatem debetur. Et ideo proprius
actus iustitiae nihil est aliud quam reddere unicuique quod suum est”.
512
ROSENFIELD. Lições de Filosofia Política. Porto Alegre: L&PM, 1996, p.
77: “Vejam bem, o que eu estou tentando mostrar é que não nenhuma
relação entre o conceito de democracia e o de direitos humanos. [...] Do
ponto de vista jurídico, os direitos humanos provêm da escola do
jusnaturalismo e não da tradição democrática, tal como nós a temos
considerado a partir das formulações críticas de Aristóteles e Hobbes”.
513
FERREIRA DA COSTA. A Constituição do Direito em Santo Tomás de Aquino.
In: COSTA; DE BONI. A Ética Medieval Face aos Desafios da
Contemporaneidade. 2004, p. 306.
514
Precisamos salientar que nem toda inclinação mesmo natural
constitui, por isso mesmo, um direito de todo ser apetente, mas
propriamente um seu fundamento. Constituem verdadeiramente direitos as
inclinações que o racionalmente assumidas enquanto tomam a forma de
lei moral. Neste âmbito, somente o homem possui propriamente direitos
naturais. Os outros seres animados, porém irracionais, possuem, por
analogia, certos “direitos” máxime quando beneficiam o ser humano.
515
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 94, 2, c, p. 1760:
“Secundum igitur ordinem inclinationum naturalium, est ordo praeceptorum
legis naturae. Inest enim primo inclinatio homini ad bonum secundum
naturam in qua communicat cum omnibus substantiis [...]. [...] Tertio
Do exposto, infere-se que todo ser humano possui, como
primeiro direito, a vida, assunto esse que o Angélico trata, de um
modo apofático
516
, justamente quando discorre sobre o homicídio, no
artigo 6 da questão 64, da Primeira Parte da Segunda Parte da Suma
Teológica, convicto que está de que os preceitos negativos (as
proibições) são mais facilmente apreendidos que os positivos,
porquanto, infringir, violar o primado da vida repugna à
inteligência e à vontade, não afetadas por alguma distorção
interior ou exterior:
Um homem pode ser considerado à dupla luz: em si mesmo
ou nas relações com outro. Considerado em si mesmo, a
nenhum homem podemos matar; porque em todos, ainda nos
pecadores [entendamos também os malfeitores da ordem
social] devemos amar a natureza feita por Deus, e que
fica destruída pela morte. Mas, como dissemos, a
morte do pecador torna-se lícita, se levarmos em conta
o bem comum, que o pecado [entendamos aqui a desordem
social] destrói. Ao contrário, a vida dos justos
conserva e promove o bem comum, porque são a parte
mais principal da sociedade. Logo, de nenhum modo é
lícito matar um inocente.
517
Fica patente, por esta perícope luminosa e muito clara do
pensamento de Tomás, que o direito à vida não obstante seja
primeiro e fundamental — não é onímodo.
518
Congruente com o
modo inest homini inclinatio ad bonum secundum naturam rationis, quae
est sibi propria [...]”.
516
Idem. Ibidem. I-II, 100, 5, ad 4
um
, p. 1818: “A razão natural logo
dita ao homem que a ninguém faça injúria; e por isso, os preceitos que
proíbem o dano estendem-se a todos. A razão natural, porém, não dita
imediatamente que se deva fazer alguma coisa em benefício de outrem,
senão para com quem se tenha algum dever”.
517
Idem. Ibidem. II-II, 64, 6, c, p. 2546: “[...] homo dupliciter
considerari potest, uno modo, secundum se; alio modo, per comparationem
ad aliud. Secundum se quidem considerando hominem, nullum occidere
licet, quia in quolibet, etiam peccatore, debemus amare naturam, quam
Deus fecit, quae per occisionem corrumpitur. Sed sicut supra dictum est,
occisio peccatoris fit licita per comparationem ad bonum commune, quod
per peccatum corrumpitur. Vita autem iustorum est conservativa et
promotiva boni communis, quia ipsi sunt principalior pars multitudinis.
Et ideo nullo modo licet occidere innocentem”; FINNIS. Op. Cit. p. 141:
“Or are against the will of the person killed? No, but rather: every act
which is intended, whether as end or means, to kill an innocent human
being […]”.
518
Remetemos o leitor à obra de SILVA. Pena de Muerte, Ya. México: s.
ed., 1987. A Igreja Católica Romana reconhece em seu novo Catecismo da
Igreja Católica (1992), nos números 2263-2267 a possibilidade da pena
de morte, malgrado a opinião pessoal do pontífice in memoriam que o
enunciado na perícope, o Angélico declara como admissível a pena
de morte em casos claramente específicos. Os argumentos
conclusivos o Aquinate os elencou desde o artigo 1 da questão 64
(composta de 8 artigos) sobre o homicídio, onde ele inicia
dizendo: “Ninguém peca por usar de uma coisa para um fim ao qual
ela é destinada”.
519
Mas é no artigo 7 da mesma questão que ele é
incisivo, especificando tanto a legítima defesa individual na
qual é necessário que a intenção de matar seja per accidens para
ser lícita quanto a pena de morte, cuja aplicação é reservada
sem excessos, para que seja lícita exclusivamente ao Estado, na
pessoa de seu representante ou delegado, unicamente para o Bem
Comum Político:
[...] a cada um é natural conservar a existência, na
medida do possível. [...] Nem é necessário, para a
salvação, deixarmos de praticar o ato de defesa
moderada, para evitar a morte de outrem; pois estamos
mais obrigados a cuidar da nossa vida que da alheia.
Mas não sendo lícito matar um homem senão por
autoridade pública, por causa do bem comum, [...], é
ilícita a intenção de matar a outrem, para nos
defendermos a nós mesmos, salvo àquele que tem a
autoridade pública, por causa do bem comum. Pois,
este, tendo a intenção de matar a outrem, para a sua
defesa, refere esse ato ao bem público como o
demonstra o soldado que combate o inimigo e o agente
do juiz, que age contra os ladrões.
520
promulgou em 11 de outubro de 1992. O valor, para a Igreja, então, deste
novo Catecismo é apontado pelo mesmo pontífice, segundo o qual esta obra
“trata-se de um valioso instrumento para a Nova Evangelização onde se
compendia toda a doutrina que a Igreja deve ensinar”. (DSD, 9) In: F.
AQUINO. O Catecismo da Igreja responde de A a Z. São Paulo: Loyola,
2003, p. 17.
519
TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 64, 1, c, p. 2539.
520
Idem. Ibidem. II-II, 64, 7, c, p. 2548: “[...] cum hoc sit cuilibet
naturale quod se conservet in esse quantum potest. [...] Nec est
necessarium ad salutem ut homo actum moderatae tutelae praetermittat ad
evitandum occisionem alterius, quia plus tenetur homo vitae suae
providere quam vitae alienae. Sed quia occidere hominem non licet nisi
publica auctoritate propter bonum commune [...]; illicitum est quod homo
intendat occidere hominem ut seipsum defendat, nisi ei qui habet
publicam auctoritatem, qui, intendens hominem occidere ad sui
defensionem, refert hoc ad publicum bonum, ut patet in milite pugnante
contra hostes, et in ministro iudicis pugnante contra latrones”; FINNIS.
Op. Cit. p. 141: “There are no exceptions to the norm when it is
accurately stated in all its terms (‘private’, ‘intending’…). It does
not, however, exclude lethal acts of defence against serious attack,
provided that in defending oneself (or another) one (a) is not motivated
by private desire {privata libido} for revenge or by feelings of hatred,
Decorrente do predito direito à vida, Tomás aponta,
igualmente, o direito à integridade corporal. Ele está na Segunda
Parte da Segunda Parte da Suma Teológica, no artigo 1 da questão
65. Ele subdivide os atentados contra esse direito em três tipos,
cada um, num artigo. Assim temos:
No artigo 1: a questão da mutilação;
No artigo 2: a questão da flagelação;
No artigo 3: a questão da carceragem indevida.
Quanto ao primeiro artigo, Tomás mostra a razão
proporcional entre os membros e o todo que é o corpo. Nessa
lógica, a existência e a razão de ser dos membros são relativas à
existência e à razão de ser de todo o corpo. Assim, para sabermos
se, em casos extremos, devemos dispor ou não de qualquer dos
membros, temos que procurar o bem que esse membro representa para
todo o corpo, pois é ao bem deste que o bem dos membros deve
conformar-se, tal como é estabelecido pela própria natureza do
todo.
Por conseguinte, ninguém pode sofrer mutilação em seu
corpo, nem perpetrado por outrem, nem mesmo por si mesmo.
521
A
razão, próxima e remota disso, é que o indivíduo, imediatamente
vive para si, mas, não somente. A razão comunitária da vida do
indivíduo, mesmo sendo a razão remota, é mesmo superior à própria
razão da vida em si. Santo Tomás tem em vista tudo quanto já havia
dito sobre a constituição radical da pessoa e sua ordenação
intrínseca à Comunidade Política. Portanto, não faz mais que ser
congruente com o que já havia proposto.
Portanto, o Angélico veta qualquer direito privado de
alguém se mutilar, submetendo esse poder à Comunidade Política, na
pessoa de seu representante legítimo, conforme está na resposta ao
segundo argumento.
522
E, para afastar qualquer perplexidade no
and so (b) does not intend the destruction of the attacker, whether as
an end (revenge or hatred) or as a means”.
521
Idem. Ibidem. II-II, 64, 1, c, p. 2539s.
522
Idem. Ibidem. 65, 1, ad 2um, p. 2551: “A vida humana, na sua
totalidade, não se ordena a nenhum bem próprio do homem mesmo; antes, a
ela se ordena tudo quanto o homem tem. Portanto, privar alguém da vida
tocante ao direito à integridade corporal, cujo direito é
entendido — como os outros — sempre de modo analógico, não onímodo
e equívoco, Tomás explica que, nos casos previstos de mutilação,
se ela atenta, materialmente, contra a integridade física — por ir
contra a incolumidade do indivíduo —, não atenta, formalmente,
contra o bem da pessoa, cuja existência inscrita que está no bem
comum.
523
O Bem Comum Político, finalidade precípua da vida
comunitária, para o qual estão ordenados todos os membros da
Comunidade Política, é a razão maior e proporcional para se
valorar o que convém a cada um pela disposição solidária mais
profunda entre os membros e entre estes e a coletividade. É o que
o Santo Aquinate afirma peremptoriamente:
Ora, devemos considerar que quem vive em sociedade é
de certo modo parte e membro de toda ela. Por onde, o
bem ou o mal que fizer a outra pessoa redundará em bem
ou mal de toda a sociedade, assim como quem lesa a mão
lesa por conseqüência todo o homem. [...] Por outro
lado, se age bem ou mal de si mesmo, também
retribuição lhe é devida por vir isso a repercutir no
Bem Comum da sociedade de que é membro; não se lhe
deve muito embora retribuição pelo bem ou mal da
pessoa singular, que é no caso o próprio agente, senão
por parte deste mesmo, na medida em que por analogia o
homem é suscetível de fazer justiça a si próprio.
524
em nenhum caso nos pertence, senão ao poder público, a quem foi cometido
zelar pelo bem comum”.
523
Idem. Ibidem. 65, 1, ad 1um, p. 2551: “E semelhantemente, mutilar um
membro, embora seja contra a natureza particular do corpo daquele que é
mutilado, é contudo conforme à razão natural, relativamente ao bem
comum”.
524
Idem. Ibidem. I-II, 21, 3, c: “Est autem considerandum quod
unusquisque in aliqua societate vivens, est aliquo modo pars et membrum
totius societatis. Quicumque ergo agit aliquid in bonum vel malum
alicuius in societate existentis, hoc redundat in totam societatem sicut
qui laedit manum, per consequens laedit hominem. [...] Cum vero aliquis
agit quod in bonum proprium vel malum vergit, etiam debetur ei
retributio, inquantum etiam hoc vergit in commune secundum quod ipse est
pars collegii, licet non debeatur ei retributio inquantum est bonum vel
malum singularis personae, quae est eadem agenti, nisi forte a seipso
secundum quandam similitudinem, prout est iustitia hominis ad seipsum.
Sic igitur patet quod actus bonus vel malus habet rationem laudabilis
vel culpabilis, secundum quod est in potestate voluntatis; rationem vero
rectitudinis et peccati, secundum ordinem ad finem; rationem vero meriti
et demeriti, secundum retributionem iustitiae ad alterum”.
Em razão, pois, do Bem Comum Político, além de que, por
outras razões, fica proibido o suicídio.
525
Privar-se da própria
vida é, conforme o Aquinate, sob qualquer ponto de vista, algo
ilícito, por três motivos: primeiramente, porque se falta com a
caridade, que nos manda amarmos a nós mesmos; em segundo, porque
se falta com a justiça para com Deus, que a vida de cada um é
um dom de Deus e a Ele pertence o juízo da morte e da vida; e,
em terceiro, porque dar cabo da própria vida constitui um ato
antijurídico (“injuriam communitati facti”) em relação com a
comunidade, à qual pertence o indivíduo, como a parte ao todo.
526
Como ilustração, vale lembrar que no Comentário à Ética a Nicômaco
Santo Tomás interpreta o costume bárbaro daqueles tempos de deixar
insepulto o cadáver do suicida e, inclusive, de arrastá-lo, como
uma reação da comunidade ofendida contra quem, de modo tão radical
525
Idem. In Ethic., L. 5, lect. 17, n
o
. 4. In: Corpus Thomisticum, CD-
ROM, 2003: “[...] sed considerandum est cui iniustum faciat. Facit enim
iniustum civitati quam privat uno cive, sed non facit iniustum sibi
ipsi”. ARISTOTELES. Ética a Nicômaco. 1987, 5, 11, 1138a 9-14: “[...] e
quem, levado pela cólera, voluntariamente se apunhala, pratica esse ato
contrariando a reta razão da vida, e isso a lei não permite; portanto,
ele age injustamente. Mas para com quem? Certamente que para com o
Estado, e não para consigo mesmo. [...] Por essa mesma razão, o Estado
pune o suicida, inflingindo-lhe uma certa perda de direitos civis, pois
que ele trata o Estado injustamente”. E, ainda a respeito disso, quanto
às “outras razões” que mencionamos, Kantorowicz (Os Dois Corpos do Rei.
p. 167) adita que o suicida “prejudicava a pólis, a república na
linguagem cristã: o corpus mysticum, ou seja, sua cabeça”. Remete à
passagem em Tomás por nós supra citada. (itálico do original).
526
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 64, 5, c, p. 2544:
“Matar-se a si mesmo é absolutamente ilícito,por tríplice razão.
Primeiro, porque naturalmente todas as coisas a si mesmas se amam; por
isso é que todas naturalmente conservam o próprio ser e resistem, o mais
que podem, ao que procura destruí-las. Portanto, quem se mata a si mesmo
vai contra a inclinação natural e contra a caridade que todos a si
mesmos se devem. Logo, matar-se a si mesmo é sempre pecado mortal, por
ser ato contrário tanto à lei natural como à caridade. Segundo, porque
qualquer parte, pelo que é, pertence ao todo. Ora, cada homem é parte da
comunidade e, portanto, o que é da comunidade o é. Logo, matando-se um a
si mesmo, comete uma injustiça contra a comunidade, como está claro no
Filósofo. Terceiro, porque a vida é um dom divino feito ao homem e
dependente do poder de Deus, que mata e faz viver. Logo, quem se priva a
si mesmo, da vida, peca contra Deus; assim como quem mata um escravo
alheio peca contra o dono do mesmo; e como também peca quem usurpa um
juízo sobre uma coisa que lhe não foi confiada. Pois, a Deus pertence
julgar da morte e da vida [...]”.(itálico do original)
e definitivo, subtrai suas forças e suas faculdades à cooperação
comunitária.
527
Quanto ao segundo artigo da questão em apreço, relativo à
flagelação/açoitamento, como castigos a serem aplicados nalgum
delinqüente, Tomás admite a licitude desse ato, mas conforme o
tipo de comunidade a que ele pertencer. Assim, o chefe de família
pode açoitar seus filhos ou mandar castigar seus servos, mas, por
outro lado, os cidadãos infratores estão sob a alçada do poder
público da cidade ou do reino, comunidades perfeitas, cujas
autoridades não podem cominar-lhes castigos semelhantes aos que o
chefe de família aplica em seus filhos e servos, porquanto a
cidade ou o reino são comunidades perfeitas, e os castigos que
infligem aos delinqüentes devem ser proporcionais à sua
natureza.
528
O terceiro artigo diz respeito à liberdade “política” da
pessoa, a qual, de acordo com o Angélico, guarda uma relação
direta com o bem comum. Assim, quem a ameaça
529
, ou pior ainda,
atenta contra ela, pode legitimamente vir a perdê-la por ordem
daquele que governa a comunidade.
530
Análogo a este direito, e mais importante que ele
conquanto mais implícito, temos o direito à liberdade moral. Esta
se define consoante sua relação, ou adesão, com o bem moral do
homem e com os seus ditames que são as leis, natural e positiva.
Também como as virtudes, a liberdade moral é conquistável mediante
527
Idem. In Ethic., 5, 17, n
o
. 6. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“Videmus enim quod civitas infert damnum quale possibile est, scilicet
inhonorationem sive vituperium ei qui occidit seipsum; puta quod facit
trahi cadaver eius vel dimittit ipsum insepultum, ut per hoc detur
intelligi quod ipse fecit iniuriam civitati”.
528
Idem. Suma Teológica. 1980, II-II, 65, 2, ad 2um, p. 2553: “Um poder
maior implica uma coação mais forte. Pois, assim como a cidade é uma
comunidade perfeita, assim o seu chefe tem o poder perfeito de coagir.
Por isso, pode infligir penas irreparáveis como a de morte ou mutilação.
Mas, o pai e o senhor, chefes da família doméstica, que é uma comunidade
imperfeita, têm o poder imperfeito de coagir, impondo penas mais leves,
que não causem dano irreparável. E tal é o açoite”.
529
Idem. Ibidem. II-II, 65, 3, ad 3um, p. 2554: “Prender alguém por
alguns momentos para impedi-lo de cometer um ato ilícito, que está a
ponto de perpetrar, a todos é lícito”.
530
Idem. Ibidem. II-II, 65, 3, c, p. 2554: “E, portanto, encarcerar ou
prender alguém, de qualquer modo, é ilícito. Salvo por ordem da justiça
ou como pena, ou como precaução para evitar algum mal”.
o exercício interno (e externo) das operações que lhe efetivam. A
este tipo de liberdade, Tomás certamente pensava ao dizer no De
Veritate (q. 22. a. 6. c)
531
: “[...] quod velle malum nec est
libertas, nec pars libertatis, quamvis sit quoddam libertatis
signum.
Também nos deparamos no pensamento do Aquinate com o
direito que, modernamente, chamamos de “liberdade de consciência”,
expressão essa tomada num sentido muito lato. De fato, Tomás de
Aquino trabalha mais especificamente a questão do dever moral,
imperioso e subjetivo, de se seguir, no momento do agir, o ditame
da própria consciência. Antes de tudo, cabe esclarecer que, para
Tomás, o termo consciência tem duas acepções básicas, a saber, uma
em sentido ético como “consciência moral”, enquanto ditame interno
que nos manda executar algo ou nos proíbe de fazer alguma coisa,
e, a outra em sentido psicológico, como “consciência psicológica”,
enquanto ato interno da inteligência pelo qual aplicamos o
conhecimento deliberado e elícito a qualquer operação interna ou
externa a nós.
532
A “liberdade de consciência”, aqui tratada,
refere-se propriamente ao primeiro tipo de consciência, cuja
existência ou objeto podem ser compelidos, por diversas instâncias
coercivas, a virem à tona.
533
Contudo, no pensamento tomasiano, a única obrigação moral
subjetiva e próxima é a do próprio ditame de consciência do
sujeito, supondo, é claro, uma consciência reta. Faltando esse
531
Idem. De Veritate, 22, 6, c, in fine. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003.
532
Idem. Suma Teológica. 1980, I, 79, 13, c, p. 714s.
533
Idem. De Veritate, q. 17, a. 3, c. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003: “Unde nullus ligatur per praeceptum aliquod nisi mediante scientia
illius praecepti. Et ideo ille qui non est capax notitiae praecepti, non
ligatur praecepto; nec aliquis ignorans praeceptum dicitur esse ligatus
ad praeceptum faciendum, nisi quatenus tenetur scire praeceptum. Si
autem non teneatur scire, nec sciat, nullo modo ex praecepto ligatur.
Sicut igitur in corporalibus agens corporale non agit nisi per
contactum, ita in spiritualibus praeceptum non ligat nisi per scientiam.
Et ideo, sicut est eadem vis qua tactus agit, et qua virtus agentis
agit, cum tactus non agat nisi per virtutem agentis, nec virtus agentis
nisi mediante tactu; ita etiam eadem vis est qua praeceptum ligat et qua
scientia ligat: cum scientia non liget nisi per virtutem praecepti, nec
praeceptum nisi per scientiam. Unde, cum conscientia nihil aliud sit
quam applicatio notitiae ad actum, constat quod conscientia ligare
dicitur in vi praecepti [...]”.
quesito, a obrigação de segui-la é relativa, embora mantenha sua
inviolabilidade.
534
Quanto à obrigação de se seguir até mesmo a
consciência errônea, Tomás, na Suma Teológica, Primeira Parte da
Segunda Parte, 19, 6. c., faz a ressalva de que a consciência deve
estar no estado de ignorância não-culpável, senão seria uma
consciência má, que nem obriga nem desculpa.
Além disso, o ser humano também possui o direito a todas
as demais coisas necessárias à sobrevivência individual e social,
desde que seja congruente com a consecução do seu destino que é
alcançar seu fim último
535
, assunto esse que será retomado mais
adiante, ao tratarmos das várias espécies de justiça.
Retornando à nossa reflexão sobre a justiça objetivamente
considerada, observamos que ela é especificada pelo “justo”, mas o
“justoobjeto da justiça necessita em concreto de outrem com
quem haja uma relação objetiva do “suum”, pois “é formalmente na
relação com o outro no espaço simbólico da vida-em-comum que a
virtude, ou a excelência do agir individual, se faz justiça, vem a
ser excelência do agir na relação com o outro ou agir
comunitário”.
536
Como essas situações são potencialmente em número
534
Idem. De Veritate, q. 17, a. 4, c. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003: “Diversimode tamen recta conscientia et erronea ligat: recta
quidem ligat simpliciter et per se; erronea autem secundum quid et per
accidens. Dico autem rectam ligare simpliciter, quia ligat absolute et
in omnem eventum. [...] Unde absolute ligat et in omnem eventum. Sed
conscientia erronea non ligat nisi secundum quid quia sub conditione.
[...] Unde talis conscientia non obligat in omnem eventum: potest enim
aliquid contingere, scilicet depositio conscientiae, quo contingente,
aliquis ulterius non ligatur. Quod autem sub conditione tantum est,
secundum quid esse dicitur. Dico etiam quod conscientia recta per se
ligat, erronea autem per accidens; quod ex hoc patet. Qui enim unum vult
vel amat propter alterum, illud quidem propter quod amat reliquum per se
amat; quod vero propter alterum amat quasi per accidens, sicut qui vinum
amat propter dulce, amat dulce per se, vinum autem per accidens. Ille
autem qui conscientiam erroneam habet credens eam esse rectam (alias non
erraret), inhaeret conscientiae erroneae propter rectitudinem quam in ea
credit; inhaeret quidem, per se loquendo, rectae conscientiae, sed
erroneae quasi per accidens: in quantum hanc conscientiam, quam credit
esse rectam, contingit esse erroneam. Et exinde est quod, per se
loquendo, ligatur a conscientia recta, per accidens autem ab erronea”.
535
Para uma discussão mais pormenorizada sobre os “direitos humanos” no
pensamento do Angélico, cf. GARCÍA LÓPEZ. Los Derechos Humanos en Santo
Tomás de Aquino. Pamplona, 1979. Especificamente sobre a propriedade
privada em Tomás, remetemos às obras de: MIGOT. A Propriedade: Natureza
e Conflito em Tomás de Aquino. Caxias do Sul, 2003; FINNIS. Op. Cit. p.
188-196.
536
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 178.
infinito, a vontade sujeito da justiça não pode tender
naturalmente a esse suum”, porque ele excede o bem próprio e
específico da vontade que é o bem em geral.
537
Mas para um bem
“excedente”, a vontade necessita de auxílio ao modo de “disposição
adquirida” como ensina o Angélico, afirmando o seguinte:
Como o ato da potência se aperfeiçoa pelo hábito, ela
precisa desse hábito que é uma virtude, para bem sair
com perfeição quando para isso ela, pela sua própria
natureza, não baste. Ora, toda potência por natureza
se ordena ao seu objeto. Por onde, sendo, [...] o
objeto da vontade o bem da razão à vontade
proporcionado, esta última não precisa, por este lado,
da virtude que aperfeiçoa. Mas dela precisa quando ao
homem se lhe apresenta à vontade um bem que o excede,
pela desproporção, quer relativamente a toda a espécie
humana, como o bem divino, que transcende os limites
da natureza humana, quer quanto ao indivíduo, como o
bem do próximo.
538
Tomás quer dizer que, no tocante ao fim último do homem
em qualquer aspecto —, o sujeito apetente não necessitaad hoc
de uma virtude que o auxilie na inclinação a esse bem, visto essa
inclinação estar inserida no âmbito da necessidade da natureza do
próprio apetente e, por sua vez, essa inclinação é sempre reta.
539
Neste sentido não podemos falar de “justiça natural” senão por
equivocidade ou analogia imprópria à justiça —, posto que a
lei e o direito naturais.
537
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 82, 1, c, p. 724; Idem.
Ibidem. I-II, 10, 1, c, p. 1108s; Idem. Ibidem. I-II, 56, 6, ad 1
um
, p.
1436.
538
Idem. Ibidem. I-II, 56, 6, c, p. 1436: “[...] cum per habitum
perficiatur potentia ad agendum, ibi indiget potentia habitu perficiente
ad bene agendum, qui quidem habitus est virtus, ubi ad hoc non sufficit
propria ratio potentiae. Omnis autem potentiae propria ratio attenditur
in ordine ad obiectum. Unde cum [...] obiectum voluntati sit bonum
rationis voluntati proportionatum, quantum ad hoc non indiget voluntas
virtute perficiente. Sed si quod bonum immineat homini volendum, quod
excedat proportionem volentis; sive quantum ad totam speciem humanam,
sicut bonum divinum, quod transcendit limites humanae naturae, sive
quantum ad individuum, sicut bonum proximi; ibi voluntas indiget
virtute. Et ideo huiusmodi virtutes quae ordinant affectum hominis in
Deum vel in proximum, sunt in voluntate sicut in subiecto; ut caritas,
iustitia et huiusmodi”.
539
Idem. Ibidem. I, 60, 1, ad 3
um
, p. 524: “Assim como o conhecimento
intelectual sempre é verdadeiro, a dileção natural sempre é reta, pois o
amor natural nada mais é do que a inclinação da natureza, nela infundida
pelo autor”.
Portanto, para os bens que não “excedem” o âmbito do
apetite intelectual, a vontade pode tender a eles e precisará de
disposição, ou seja, de hábito adquirido que a conduza bem. É o
caso, por exemplo, do Bem Comum Político que a vontade pode
apetecer e o deve, se o sujeito está inserido numa comunidade
política e necessita da devida disposição que o conduza na
consecução deste bem, como disposição mais profunda da volição
“social” humana, porque “[...] o existir-em-comum não é mais do
que a efetivação concreta da vida ética individual”.
540
No tocante ao Bem Comum Político, é a justiça que se
requer como fundamento da convivência social, porque ela deve
regular a conduta das pessoas entre si e delas em relação às
exigências da comunidade. Eis as palavras do Divus Thomas:
A justiça [...] ordena o homem nas suas relações com
outrem. O que pode ser de dois modos: com outrem
singularmente considerado; ou, com outrem, em geral,
isto é, no sentido em que quem serve a uma comunidade
serve a todos os indivíduos nela contidos. Ora, de um
e outro modo pode-se aplicar a justiça, na sua idéia
própria. Pois, é manifesto que todos os que fazem
parte de uma comunidade, estão para esta como a parte
para o todo. Ora, por tudo o que é, a parte pertence
ao todo; por onde, qualquer bem da parte se ordena ao
bem do todo. Portanto, assim sendo, o bem de qualquer
virtude, quer o da que o ordena o homem para consigo
mesmo, quer o da que o ordena a qualquer outra pessoa
singular, é referível ao bem comum, para o qual a
justiça se ordena.
541
540
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 180.
541
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 58, 5, c, p. 2491:
“[...] iustitia [...] ordinat hominem in comparatione ad alium. Quod
quidem potest esse dupliciter. Uno modo, ad alium singulariter
consideratum. Alio modo, ad alium in communi, secundum scilicet quod
ille qui servit alicui communitati servit omnibus hominibus qui sub
communitate illa continentur. Ad utrumque igitur se potest habere
iustitia secundum propriam rationem. Manifestum est autem quod omnes qui
sub communitate aliqua continentur comparantur ad communitatem sicut
partes ad totum. Pars autem id quod est totius est, unde et quodlibet
bonum partis est ordinabile in bonum totius. Secundum hoc igitur bonum
cuiuslibet virtutis, sive ordinantis aliquem hominem ad seipsum sive
ordinantis ipsum ad aliquas alias personas singulares, est referibile ad
bonum commune, ad quod ordinat iustitia. Et secundum hoc actus omnium
virtutum possunt ad iustitiam pertinere, secundum quod ordinat hominem
ad bonum commune”.
Portanto, como acabamos de ver, a especificação é feita
tanto à justiça geral quanto à justiça especial. Nascimento
542
mostra que essa classificação — grosso modo Tomás a compulsou do
Estagirita
543
, mas lhe cunhou uma divisão própria. Assim temos:
JUSTIÇA:
1. Geral (idêntica ao conjunto das virtudes toda virtude é uma
forma de justeza ou retidão)
2. Especial: 2.1. Geral (legal)ordenação do homem imediatamente
ao bem comum;
2.2. Particular
544
(cardeal) ordenação do homem imediatamente a
bens particulares
545
:
2.2.1. Distributiva
2.2.2. Comutativa
546
542
NASCIMENTO. A Justiça Geral em Tomás de Aquino. In: Idade Média: ética
e política. 1996, p. 217.
543
Segundo a Ética a Nicômaco, no livro V, Aristóteles assim esquematiza
a justiça:
Justiça: Geral = idêntica ao conjunto das virtudes;
Justiça Particular = 1. Distributiva; 2. Comutativa. (Cf. NASCIMENTO.
Op. Cit.); CORREIA. Ensaios Políticos e Filosóficos. 1984, p. 177s. : “O
justo político (politikón díkaion) é legal (nomikón). Este apresenta em
toda parte a mesma natureza; aquele é o resultando de uma convenção
(katá synthéken)”.
544
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 180, n. 17: “O fato das
diferentes formas de igualdade que se apresentam na prática da justiça
levou Aristóteles (Étic. a Nic., V. cc. 3 e 4) a distinguir entre
igualdade segundo uma proporção geométrica na relação entre os sujeitos,
denominada justiça distributiva, e a igualdade segundo uma proporção
aritmética, dando origem à modalidade da justiça denominada
diorthotikón, literalmente justiça corretiva, que a tradição escolástica
denominou diretiva, podendo ser ou corretiva (estabelecimento da
igualdade pelo juiz) ou comutativa”.
545
FINNIS. Op. Cit. p. 133: “General justice can be specified into the
forms of particular justice, primarily fairness in the distribution of
the benefits and burdens of social life, and proper respect for others
{reverential personae} in any conduct that affects them. The object of
particular justice (hence-forth simply ‘justice’) is the other person’s
right(s) {ius}”. (itálico do original)
546
CORREIA. Ibidem, p. 178: “Ora, essa concepção S. Tomás, nos seus
comentários à Ethica do Filósofo, a identifica com a divisão dos
juristas romanos, que denominavam jus ao que Aristóteles chama justum
(díkaion), e biparte o direito em natural e positivo. Há, porém,
diferença em que Aristóteles deriva a denominação de justo ou civil
(justum vel civile) do uso que dele fazem os cidadãos, e os juristas
romanos explicam o direito político ou civil (jus politicum vel civile)
pela causa, pois é o direito que a cidade (civitas) para si constitui.
Assim, o chamado por Aristóteles justo legal (justum legale, nomikón
Para mais, “[...] os atos de todas as virtudes podem
pertencer à justiça, enquanto esta ordena o homem para o bem
comum”.
547
E seguindo o próprio Aristóteles, Tomás não faz senão
concordar que “[…] ostendit, quod non est simpliciter eadem virtus
civis, et virtus boni viri”.
548
Assim, as virtudes “pessoais”
necessitam todas serem catalisadas e orientadas para o bem maior
do homem enquanto animal social, e, nessa perspectiva, a justiça
geral configura-se como justiça legal “porque obedecendo-lhe o
homem procede de acordo com a lei, ordenadora de todos os atos
para o bem comum”
549
, quer dizer, o homem justo, que observa a lei,
tende a ser uma pessoa moralmente reta, porque a justiça que ele
porta, fecunda as outras virtudes que deve praticar em vista de
seu fim próximo ou imediato e remoto:
[...] assim a justiça não nos torna de vontade
pronta a obrar justamente, mas também faz com que
obremos justamente. E como nada se chama bem, assim
como ser absolutamente falando, pelo que tem de
potencial, senão enquanto atual, assim também tais
hábitos levam o homem, absolutamente a obrar o bem e a
ser bom; assim se com o que é justo temperante, ou
tem virtudes semelhantes.
550
Lima Vaz explica o ensinamento do Angélico:
Se o conceito da virtude em geral é a categoria que
exprime a universalidade da vida ética em sua vivência
subjetiva, o conceito de justiça exprime a mesma
universalidade em sua extensão intersubjetiva: vivida
comunitariamente, a vida ética como vida virtuosa é,
primeiramente, uma vida na justiça.
551
díkaion) é o direito positivo (jus positivum), dos jurisconsultos,
constituindo para estes o direito civil parte do positivo”.
547
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 58, 5, c, p. 2492.
548
Idem.. In III Pol., lect. 3, nº. 1. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003.
549
Idem. Suma Teológica. 1980, II-II, 58, 5, c, p. 2492.
550
Idem. Ibidem. I-II, 56, 3, c, p. 1431: “[...] sicut iustitia non solum
facit quod homo sit promptae voluntatis ad iusta operandum, sed etiam
facit ut iuste operetur. Et quia bonum, sicut et ens, non dicitur
simpliciter aliquid secundum id quod est in potentia, sed secundum id
quod est in actu; ideo ab huiusmodi habitibus simpliciter dicitur homo
bonum operari, et esse bonus, puta quia est iustus vel temperatus; et
eadem ratio est de similibus”.
551
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 178s.
A primazia — política — do Bem Comum sobre o bem
particular ou individual exige que tudo quanto lhe diga respeito
tenha, congruentemente, a mesma primazia. Assim, a justiça legal,
cujo fim é o Bem Comum Político, tem, no tocante às demais
virtudes, uma primazia consoante ao seu fim. Por isso, Tomás
reconhece-lhe a primazia sobre as demais virtudes e imputa-lhe o
encargo de dirigi-las todas em vista ao fim último:
Ora, a justiça que ordena o homem para o bem comum,
tem um império geral, pois ordena todos os atos das
virtudes ao devido fim que é o bem comum. Mas também a
virtude se chama justiça, que é ordenada pela justiça
no primeiro sentido.
552
Vemos, portanto, que a justiça legal move as outras
virtudes para o aperfeiçoamento da pessoa sem tal perfeição o
todo não é devidamente aperfeiçoado e, posteriormente, para que
juntas, sob sua égide, produza-se o bem humano. Isto quer dizer
que a justiça legal, após catalisar as virtudes de cunho
“pessoal”, direciona-as para auxiliar o desempenho das virtudes
“sociais” como as demais justiças (particulares) que concorrem
mais estreitamente ao Bem Comum Político.
A virtude da justiça particular se especifica como se
do exposto acima por ter seu direcionamento no termo ad quem
particular. Assim, ela diz respeito, sempre, à relação direta com
o indivíduo. Ela, pois, divide-se em dois tipos, a saber, a
justiça comutativa e a justiça distributiva. Estas se distinguem
porque, enquanto a comutativa regula as relações entre as pessoas,
a distributiva regula as relações da pessoa com a Comunidade
Política:
[...] a justiça particular se ordena a uma pessoa
privada, que está para a comunidade como a parte, para
o todo. Ora, as partes são suscetíveis de dupla
relação. Uma, entre si, a que se assemelham às
552
TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 60, 3, ad 2
um
, p. 1467:
“Sed iustitia ordinans hominem ad bonum commune, est generalis per
imperium, quia omnes actus virtutum ordinat ad finem suum, scilicet ad
bonum commune. Virtus autem secundum quod a tali iustitia imperatur,
etiam iustitiae nomen accipit”.
relações das pessoas particulares entre si. E esta
relação é dirigida pela justiça comutativa, que regula
os atos entre duas pessoas particulares. Outra é a
relação entre o todo e as partes, à qual é comparável
à relação entre o comum e o particular. E essas
relações as dirige a justiça distributiva, que
distribui os bens comuns proporcionalmente. Por onde
são duas as espécies de justiça: a distributiva e a
comutativa.
553
É patente que a diversidade entre ambas também concerne
ao “justo meio” de acordo com suas especificidades, de modo que a
justiça distributiva estabelece o seu “justo meio” pela proporção
que é almejada entre as partes envolvidas no caso, o todo que é
a Comunidade, e as partes que são as pessoas; por sua vez, a
justiça comutativa estabelece seu “justo meio” pela igualdade a
ser colimada entre as partes envolvidas. Mas vejamos os termos com
os quais Santo Tomás propõe seu raciocínio:
[...] na justiça distributiva não se considera a
mediedade levando em conta a igualdade entre uma coisa
e outra, mas sim a proporção entre as coisas e as
pessoas; de modo que, assim como uma pessoa excede
outra, assim também a coisa que lhe é dada excede a
que é dada à outra. [...] Nas comutações, porém, uma
pessoa uma coisa à outra em troca daquilo que
recebeu desta última, como é o caso, sobretudo, da
compra e venda, onde se manifesta primariamente a
idéia de comutação.
554
A partir da natureza, bem precisada de ambas as espécies
de justiça, podemos, ainda, aprofundar melhor a relação entre
553
Idem. Ibidem. II-II, 61, 1, c, p. 2515: “[...] iustitia particularis
ordinatur ad aliquam privatam personam, quae comparatur ad communitatem
sicut pars ad totum. Potest autem ad aliquam partem duplex ordo attendi.
Unus quidem partis ad partem, cui similis est ordo unius privatae
personae ad aliam. Et hunc ordinem dirigit commutativa iustitia, quae
consistit in his quae mutuo fiunt inter duas personas ad invicem. Alius
ordo attenditur totius ad partes, et huic ordini assimilatur ordo eius
quod est commune ad singulas personas. Quem quidem ordinem dirigit
iustitia distributiva, quae est distributiva communium secundum
proportionalitatem. Et ideo duae sunt iustitiae species, scilicet
commutativa et distributiva”.
554
Idem. Ibidem. II-II, 61, 2, c, p. 2516: “Et ideo in iustitia
distributiva non accipitur medium secundum aequalitatem rei ad rem, sed
secundum proportionem rerum ad personas, ut scilicet, sicut una persona
excedit aliam, ita etiam res quae datur uni personae excedit rem quae
datur alii. [...] Sed in commutationibus redditur aliquid alicui
singulari personae propter rem eius quae accepta est, ut maxime patet in
emptione et venditione, in quibus primo invenitur ratio commutationis”.
elas, pois elas podem possuir algo que as assemelha e podem se
tornar causa de equívoco entre elas. De semelhante, elas possuem o
que se chama de matéria remota da justiça, porque, neste caso,
elas versam sobre “o mesmo objeto”, quais sejam, aquilo que entra
nas comutações e distribuições. Mas, quanto à matéria próxima,
nisto elas se diversificam inequivocamente, qual seja, as próprias
operações de cada uma das espécies de justiça. Claro que,
igualmente, elas se diversificam em função da pessoa que está num
dos termos da relação justa. Se na relação, um dos termos é a
pessoa jurídica da Comunidade Política, então a justiça em causa
será a distributiva; se na relação, os dois termos são pessoas
particulares, então se trata de justiça comutativa.
Se, pois, considerarmos como a matéria de uma e outra
justiça as coisas de que nos aproveitamos por nossas
ações, a mesma é a matéria da justiça distributiva e
da comutativa. Pois, as coisas tanto podem ser
distribuídas pela comunidade aos particulares como
comutadas pelos particulares entre si; e ainda uma
certa distribuição dos trabalhos onerosos e da
recompensa que merecem. Se, porém, considerarmos, como
a matéria de uma e outra justiça, as ações principais
mesmas, pelas quais nos aproveitamos das pessoas, das
coisas e das obras, então elas têm matérias
diferentes. Pois, a justiça distributiva regula as
distribuições, ao passo que a comutativa regula as
comutações que podem ter lugar entre duas pessoas.
555
Este norteamento da justiça particular tanto da
distributiva quanto da comutativa é precipuamente dado pela
justiça legal, porque ambas dizem respeito ao Bem Comum Político.
A justiça distributiva é auxiliada a poder responder às funções
eminentes e profícuas com vistas à utilidade de toda a Comunidade
Política como tal, isto é, à distribuição de cargos, funções,
direitos e deveres proporcionais para se promoverem a ordem e a
555
Idem. Ibidem. II-II, 61, 3, c, p. 2518: “Si igitur accipiamus ut
materiam utriusque iustitiae ea quorum operationes sunt usus, eadem est
materia distributivae et commutativae iustitiae, nam et res distribui
possunt a communi in singulos, et commutari de uno in alium; et etiam
est quaedam distributio laboriosorum operum, et recompensatio. Si autem
accipiamus ut materiam utriusque iustitiae actiones ipsas principales
quibus utimur personis, rebus et operibus, sic invenitur utrobique alia
materia. Nam distributiva iustitia est directiva distributionis,
paz públicas que se lhe são objetos extrínsecos, são inerentes à
sua realização e, portanto, indiretamente dependentes dela. A
justiça comutativa é auxiliada a responder à reciprocidade exigida
e adequada a cada transação, cuja realização resulte não menos —
na ordem e na paz públicas, também extrínsecas à justiça
comutativa, mas igualmente dependentes delas, mesmo que não
diretamente.
A conseqüência da relação entre a justiça legal e as
demais espécies encontramo-la também no Comentário à Política de
Aristóteles
556
onde o Frade de Rocasseca afirma que a justiça
legal, em relação à particular e às demais virtudes, pode ser
comparada a uma rainha
557
, precipuamente porque o bem comum, para o
qual ela tende, é soberanamente superior ao particular que dele
depende — e coloca-se mesmo como um luminar a este
558
.
Neste momento faz-se mister introduzir a questão de
outros auxiliares na consecução do Bem Comum, visto Santo Tomás
não prever a suficiência da lei, e mesmo unicamente da justiça, em
levar o homem a este fim.
3.5. A Virtude Moral e a Virtude Política
Sabemos que “[...] o hábito da virtude moral torna o
homem pronto no escolher o meio, nas ações e nas paixões”
559
,
porque é “[...] a virtude humana, que torna o homem bom e boa a
commutativa vero iustitia est directiva commutationum quae attendi
possunt inter duas personas”.
556
Idem. I Pol., lect. 1, nº. 3. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“[...] ipsa communitas politica est communitas principalissima. Est ergo
coniectatrix principalissimi boni inter omnia bona humana: intendit enim
bonum commune quod est melius et divinius quam bonum unius, ut dicitur
in principio Ethicorum”.
557
CORREIA. Ensaios Políticos e Filosóficos. 1984, p. 232s: “A justiça
legal pode mesmo considerar-se a rainha das virtudes morais, e tanto
mais superior à justiça particular, quanto sobreleva o bem comum ao
particular”.
558
Idem. Ibidem. p. 232: “O bem comum é melhor e mais divino que o
privado; por isso a justiça legal esplende entre as virtudes como
Lúcifer entre as estrelas. Nem é por comparação com elas [as estrelas]
que lhes é preeminente, mas por comparação com o bem particular, a que
elas respeitam; e o bem comum, que esta colima”. (itálico do original)
559
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 53, 3, c, p. 1414.
sua obra [...]”.
560
Se isso vale para o ser humano considerado
individualmente, valeria também ao relacionar-se com seus
semelhantes e com o Estado?
Convém recordar o que escrevemos páginas atrás. De fato,
seguindo o Estagirita, Tomás afirma: “quod non est simpliciter
eadem virtus civis, et virtus boni viri”.
561
Na Segunda Parte da
Segunda Parte da Suma Teológica, no sed contra do artigo 6, da
questão 58, o Aquinate reitera seu ponto de vista:
[...] diz o Filósofo que muitos podem praticar a
virtude relativamente aos seus atos próprios; não
podem, em relação a outrem. E em outro lugar: a
virtude do homem bom e a do bom cidadão não são
absolutamente idênticas.
562
Igualmente, devemos recordar que a assimilação da
concepção peripatética, contudo, não deve enganar, pois ela não
deixa como as demais de se inserir numa visão cristã, própria
do autor e do seu tempo. Portanto, devemos notar a transformação
que o Aquinate opera na visão do texto grego, a partir do momento
em que o no contexto da Societas Christiana, buscando o texto
de Mateus, 5, 6 pelas palavras de São João Crisóstomo no sed
contra do artigo 7, da mesma questão 58.
563
560
Idem. Ibidem. I-II, 71, 2, c, p. 1562.
561
Idem. In III Pol., lect. 3, nº. 1. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003.
562
Idem. Suma Teológica. 1980, II-II, 58, 6, sc, p. 2493: “philosophus
dicit, in V Ethic., quod multi in propriis quidem possunt virtute uti,
in his autem quae ad alterum non possunt. Et in III Polit. dicit quod
non est simpliciter eadem virtus boni viri et boni civis”; Relativamente
a esse mesmo sentido no pensamento do Estagirita, ver LIMA VAZ. Escritos
de Filosofia V. 2000, p. 180; BITTAR. A Justiça em Aristóteles. 2
a
. ed.
Rio: Forense, 2001, p. 118; VERGNIÈRES. Ética e Política em Aristóteles.
São Paulo: Paulus: 1999, p. 188. 189. 193; SILVEIRA. Os Sentidos da
Justiça em Aristóteles. 2001, p. 88.
563
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 308:
“This time it is no longer in Aristotle that St. Thomas finds the text
which authorizes him to proclaim that this justice exists, it is in St.
Mathew’s Gospel: ‘Blessed are they who hunger and thirst after justice’
(V, 6). Here we see how striking a metamorphosis through which Greek
morality must pass in order to be able to endure in a Christian climate.
Like the other virtues, justice must be interiorized if it is to become
Christian. Before being just in the City, we must be just on our own
eyes in order to be just in the eyes of God”. Em nota, Gilson remete a
seu trabalho cuja tradução em inglês é The Spirit of Medieval
Philosophy. 1991, p. 324-342 (Chapter XVI: Christian Law and Morality).
Esta observação é imperiosa e importante porque a
partir das considerações de Gilson devemos ter em mente que o
“homem bom” tomasiano necessita estar “constituído” moralmente não
das virtudes naturais, mas também daquelas acerca das quais
antes falávamos quando tratamos a respeito da felicidade —,
quais sejam, as virtudes sobrenaturais das quais destacamos a
caridade (que consideraremos mais adiante). Claro que, no âmbito
político, a bondade cívica refere-se à virtude política, enquanto
a bondade da virtude “pessoal refere-se à excelência humana, e
esta no pensamento tomasiano, como foi assinalado
subsiste perfeitamente no contexto da graça sobrenatural, dádiva
de Deus, Último Fim verdadeiro do homem.
Tomás toma partido pela solidariedade das virtudes tanto
no homem quanto no cidadão, de modo que as virtudes do homem se
revertem nas do bom cidadão e as destes são geradoras das
daquele.
564
Como na vida em sociedade organizada não basta ser
individualmente bom, mas toda e qualquer bondade deve se reverter
em benefício comum, o homem sendo individualmente bom por isto
mesmo tem que fazer com que sua bondade se espraie para a
comunidade, pois, “sendo cada homem parte da cidade, é impossível
que seja bom sem ser bem proporcionado ao bem comum”
565
, e o que o
induz a isso são as virtudes políticas, e, a justiça legal é a
primeira a nortear esse ideário.
Sem sombra de dúvida, segundo o pensamento do Aquinate,
não podemos identificar uma obra justa com a virtude da justiça,
e, muito menos, um ato injusto com o respectivo vício oposto da
justiça.
566
O homem bom ao fazer atos justos isolados não se torna
um bom cidadão
567
, mas é necessário como foi assinalado acima
564
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 92, 1, c, p. 1746.
565
Idem. Ibidem. I-II, 92, 1, ad 3
um
, p. 1747.
566
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 309:
“We must not, however, blandly identify the doing of something just with
justice or the doing of something unjust with injustice”.
567
Idem. Ibidem. p. 309s: “The just and the unjust are, as it were, the
matter of justice or injustice, but they are not enough to constitute
it. A just man may, through ignorance or error commit an injustice and
be no less just because it. [...] For all this, we do not lose our
virtue of justice but show that it is incomplete and still lacks the
stability of a true virtue. [...] The habitual intention to do what is
que haja a “disposição permanente”, como previa o Filósofo
568
na
Ética a Nicômaco, texto esse compulsado pelo Angélico.
Não obstante a assinalada conexão entre as virtudes do
homem bom e do bom cidadão, e se aquele não o pode ser, senão como
este último, a recíproca não é totalmente verdadeira. No início do
Tratado da Lei, Tomás assinala que “[...] basta, para o bem comum
da comunidade, que os cidadãos sejam virtuosos na medida em que
obedecem às ordens do chefe
569
, e o fazem na medida em que
observam a justiça legal, orientados pela prudência (política), a
qual, “relativa ao bem comum, chama-se prudência política”.
570
Ambas as virtudes a prudência política e a justiça
legal constituem as virtudes precípuas do bom cidadão. Mas,
levando em conta a solidariedade das virtudes, o Frade de
Rocasseca entende que o bom cidadão, mesmo munido das virtudes
básicas para a vida política, é um cidadão imperfeito se as outras
virtudes não existirem nele plenamente.
571
Aliás, a perfeição moral
do ser humano consiste em que ele desenvolva em grau eminente
segundo as diretrizes de sua reta razão, todo o potencial de sua
natureza.
572
Disso decorre para o Santo Aquinate um homem
completo, sem excluir suas paixões, face às quais as virtudes lhe
fornecem forças sempre novas na consecução do seu fim último que é
a felicidade.
573
Tomás quer dizer, então, que dois tipos de virtudes
que os indivíduos têm de cultivar. Um, é o daquelas virtudes cujo
objeto precípuo é o Bem Comum Político como a justiça legal e a
prudência política —, as quais refletem seu “raio de ação” nas
unjust is, therefore, essential to the vice of injustice, as the
contrary intention is co-essential to justice taken as a virtue”.
568
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 59, 2, c, p. 2502.
569
Idem. Ibidem. I-II, 92, 1, ad 3
um
, p. 1747.
570
Idem. Ibidem. II-II, 47, 10, ad 1
um
, p. 2420: “De modo que a política
está para a justiça legal, como a prudência, absolutamente considerada,
para a virtude moral”.
571
Idem. In V Ethic., lect. 2, 13. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003.
572
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 287:
“The moral life of man consists in the highest development of the
potentialities of his mature by acting at all times an in all
circumstances under the direction of his reason”.
outras, mesmo que indireta e mediatamente. O outro tipo, o
daquelas virtudes cujo objeto direto é a perfeição do próprio
indivíduo — como a coragem e a temperança —, as quais refletem seu
“raio de ação” nas políticas, redundando em benefício do todo
574
,
ambos os tipos se pautando pelo princípio de solidariedade. De
todas elas, as primeiras são as que tornam o homem um bom cidadão,
e as últimas o fazem um homem moralmente bom. Ambas, pois, não
obstante conexas e compreendam o mesmo conjunto de virtudes
supõem um modus operandi específico.
Na hipótese da valoração de cada um dos conjuntos
isoladamente considerados a vantagem fica com o segundo
conjunto, levando-se em consideração todo o pensamento tomasiano,
pois neste caso vale o princípio tomista segundo o qual “todos os
seres criados por Deus mantêm entre si e para com Ele uma
ordem”
575
, e de acordo com essa idéia, a relação do indivíduo para
com Deus é sobressalente em face à relação do indivíduo com seu
semelhante, enquanto vivem politicamente, pois, como lembra De
Boni:
Há, pois, duas comunidades nas quais os homens vivem:
aquela na qual se relacionam entre si e aquela na qual
se relacionam com Deus. Mas elas não se correspondem
de forma unívoca, devendo-se, pois, levar em
consideração as adaptações e analogias subjacentes.
576
Na linha da argumentação ora proposta, chegamos a um dos
mais belos pontos do pensamento tomista, como um rio que recebe
seus afluentes, a unidade da paz como decorrente das virtudes,
cuja discussão propomos a partir deste momento.
573
Idem, ibidem, p. 292: “He [St. Thomas] aimed at the cultivation of the
whole man, including his passions. He assigns him virtues whose object
is to provide strength for the conquest of happiness”.
574
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 21, 3, c, p. 1197: “[...]
quem vive em sociedade é de certo modo parte e membro de toda ela. Por
onde, o bem ou mal que fizer a outra pessoa redundará em bem ou mal de
toda a sociedade, assim como quem lesa a mão, lesa por conseqüência todo
o homem”.
575
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 47, 4, c, p. 440.
576
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 86.
3.6. A Conseqüência da Virtude: a Unidade da Paz
As considerações precedentes nos levam a um novo ponto em
nossa reflexão, decorrente de quanto vimos.
Quando o homem é virtuoso — em relação a si próprio e é
bom cidadão enquanto considerado em suas relações sociais a
Comunidade Política ganha em termos de paz
577
e, conseqüentemente,
de unidade
578
. Aliás, toda sociedade, como todo ser, forma-se,
tendo a unidade como almejo.
579
Não obstante sua necessária
multiplicidade, a Comunidade Política goza de entidade enquanto
una, pois “nada impede que uma realidade dividida, de um certo
modo, seja indivisa, de outro [...] De modo que um ente uno sob um
aspecto, pode ser múltiplo sob outro”.
580
Sem deixar de ser
constituída por pessoas, ela é unidade e não multiplicidade, ela é
uma totalidade unitária supra-individual.
581
A Comunidade Política ou o Estado é unidade, porém não
unidade absoluta, é, em certo sentido, unidade da ordem, de modo
que sua unidade não é, de fato, algo indestrutível, mas que se
baseia em uma multiplicidade de sujeitos.
582
Em outros termos, a
577
FINNIS. Op. Cit. p. 226: “As the public good, the elements of the
specifically political common good are not all-round virtue but goods
(and virtues) which are intrinsically interpersonal, other-directed {ad
alterum}, person to person {hominun ad adinvicem}: justice and peace”.
578
Idem. Ibidem. p. 232: “So the preservation of public good needs people
to have the virtue, the inner dispositions, of justice. This objective
of inculcating virtue for the sake of peace and just conduct is coherent
with Aquinas’ constant teaching […]”.
579
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 11, 1, c, p. 80: “A unidade
não acrescenta nada ao ser, mas a negação da divisão; pois ser uno
não é senão ser indiviso [...]. Este não recebe o ser enquanto as suas
partes estiverem divididas. Mas depois que elas o constituem e
compõem. Por onde, é manifesto que o ser de qualquer coisa consiste na
sua indivisão; e daí vem que todo ente conserva o seu ser na medida em
que encerra a unidade”.
580
Idem. Ibidem. I, 11, 1, ad 2
um
, p. 80.
581
Idem. Do Reino ou do Governo dos Príncipes ao Rei de Chipre. 1997 1,
2, 4, p. 128: [...] Que, se houvera muitos homens e tratasse cada um
do que lhe conviesse, dispersar-se-ia multidão em diversidade, caso
também não houvesse algo cuidando do que pertence ao bem da multidão,
assim como se corromperia o corpo do homem e de qualquer animal, se não
existira alguma potência regedora comum, visando ao Bem Comum de todos
os membros. [...]”.
582
Idem. Suma Teológica. 1980, I, 31, 1, ad 2
um
, p. 294: “Duas coisas
implica o nome coletivo: a pluralidade dos supostos e uma certa unidade,
unidade da Comunidade Política não é a unidade de um organismo
biológico, baseado em leis naturais, mas a unidade de um
“organismo” moral estribado, principalmente, em deveres éticos que
podem ser efetivados mediante a livre ação humana “para o
melhor e o mais conveniente, em suma para o Bem, como causa final
da sua auto-realização como indivíduos e como comunidade”.
583
Certamente, a unidade de ordem é a mínima das unidades
584
, mas nem
por isso constitui mera ficção, pois ela existe de algum modo,
contudo não é de um modo substancial.
585
Como no caso das virtudes, a unidade da paz requer uma
relação de alteridade e admite alguns modos.
Ao primeiro modo, Tomás chama de concórdia que,
estritamente falando, não coincide com a paz
586
. Dela trataremos
agora, pois, como, precisamente, diz o Aquinate, a paz resulta da
caridade, virtude teologal, não obstante como no caso da
felicidade o Aquinate também admita a possibilidade duma paz
imperfeita:
A verdadeira paz não podendo fundar-se senão no bem; e assim
como possuímos o verdadeiro bem de dois modos perfeita e
imperfeitamente, assim também dupla é a paz. Uma perfeita,
consistente no gozo perfeito do sumo bem, pelo qual todos os
apetites se unem na quietude da união. E este é o fim da
criatura racional [...]. Outra é a paz imperfeita, possuída
neste mundo; porque embora a tendência principal da alma
descanse em Deus, contudo certos obstáculos, internos e
externos, que perturbem essa paz.
587
a saber, a de uma determinada ordem. Assim, o povo é uma multidão de
homens compreendidos numa mesma ordem. [...]”.
583
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia V. 2000, p. 215.
584
TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os Gentios. 1990, II, 58, nº.4, p. 267:
“[...] Com efeito, o ser uno segundo a ordem não é o ser uno
simplesmente, porque a unidade de ordem é a mínima das unidades”.
585
Idem. Suma Teológica. 1980, III, 2, 1 c, p. 3498.
586
FINNIS. Op. Cit. p. 227: ‘Peace’, of course, should not be
understood thinly. In its fullest sense, peace {pax} involves not only
concord (absence of dissension, especially on fundamentals) and willing
agreement between on person or group and another, but also harmony
{unio} amongst each individual’s own desires”.
587
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 29, 2, ad 4
um
, p. 2283:
“[...] cum vera pax non sit nisi de bono, sicut dupliciter habetur verum
bonum, scilicet perfecte et imperfecte, ita est duplex pax vera. Una
quidem perfecta, quae consistit in perfecta fruitione summi boni, per
quam omnes appetitus uniuntur quietati in uno. Et hic est ultimus finis
creaturae rationalis [...]. Alia vero est pax imperfecta, quae habetur
Na acepção do Doutor Comum, a concórdia, “no sentido
próprio, é sempre relativa a outrem; pois ela faz as vontades de
diversos corações convirem num mesmo consenso”.
588
Podemos dizer
que ainda estamos num âmbito “menos sobrenatural” se assim nos
podemos expressar do pensamento do Angélico. Nesse âmbito,
encontramos ressonância no Comentário à Ética a Nicômaco. Nela,
Tomás afirma “quod ad amicos pertinet, quod eadem eligant, in quo
consistit ratio concordiae”.
589
Seu caráter “menos sobrenatural
ou mesmo natural fica patente, pois, como veremos ao tratarmos
da caridade, na paz total harmonia e catalisação das intenções
em torno do Fim Último verdadeiro, o que não se requer para a
concórdia devido nesta poder haver alguma “dissensão”, ou uma
certa heterodoxia”, sem detrimento da harmonia relativa nela
encontrada: Et ex hoc patet, quod concordia non est homodoxia,
per quod significatur unitas opinionis”.
590
Mesmo na Suma Teológica
ao discutir a questão da vida contemplativa —, Tomás de Aquino
cunha a relação “intramundana deste tipo de paz, sem deixar de
mostrar sua implicação alterativa: “Ora, a paz é causada pela
justiça, que tem por objeto os nossos atos [...]. No sentido em
que quem se abstém de danificar os outros elimina ocasiões de
litígios e perturbações.”
591
Temos, na perícope apontada, que, quando a ordem da
justiça (legal) porque política impera na vida do grupo
social, permeando cada um de seus membros, advém a almejada paz
social.
Ora, como sabemos um é o fim da lei humana, e outro, o
da divina. O fim da lei humana é a tranqüilidade
temporal da cidade. E esse fim a lei o consegue
in hoc mundo. Quia etsi principalis animae motus quiescat in Deo, sunt
tamen aliqua repugnantia et intus et extra quae perturbant hanc pacem”.
588
Idem. Ibidem. II-II, 29, 1, c, p. 2281.
589
Idem. In IX Ethic., lect. 6, nº. 1. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM,
2003.
590
Idem. Ibidem.
591
Idem. Suma Teológica. 1980, II-II, 180, 2, ad 2
um
, p. 3332: “Pax autem
causatur ex iustitia, quae est circa operationes[...] opus iustitiae
pax, inquantum scilicet ille qui ab iniuriis aliorum abstinet, subtrahit
litigiorum et tumultuum occasiones”.
coibindo os atos exteriores, excluindo os males
capazes de perturbar a paz civil.
592
É notória de quanto vimos a vigorosa herança
agostiniana, embora relida e muito bem elaborada de modo pessoal,
graças é sabido ao “esforço perseverante de integração da
moral antiga, sobretudo da moral aristotélica, ao personalismo
cristão
593
[...]”, para usarmos a terminologia de Lima Vaz.
594
Não podemos, pois, deixar de tocar mesmo que de longe
nessa “herança agostiniana”, qual seja, a dicotomia no
pensamento de Santo Agostinho entre dois tipos de paz: a paz
temporal e a paz eterna. Isso nos trará mais presente a riqueza
inerente a essa fonte de Tomás: o modo como o Santo de Hipona
traçou essa dicotomia entre os dois tipos de paz; e isso nos
mostrará, de modo mais claro, a dependência ou “sobrevivência” de
Agostinho no pensamento do Aquinate, conquanto o Angélico preserve
seu traço pessoal ao se apropriar da reflexão agostiniana.
Nossa fonte principal é a obra A Cidade de Deus. Nela, o
Santo Hiponense ensina que a finalidade de toda associação é a
paz.
595
Pela sua experiência de vida e senso pedagógico, o
Hiponense inicia seu discurso por um argumento “apofático”,
trazendo à tona um exemplo forte, de cunho negativo: como a paz é
algo universalmente colimado, mesmo o pior dos malfeitores busca
alguma paz no consórcio com os seus semelhantes: “Mesmo aqueles
que pretendem perturbar a paz em que estão, não odeiam a paz, mas
antes desejam mudá-la a seu gosto. Não querem que não haja paz,
mas que ela seja a que eles querem”.
596
Ainda que este malfeitor num modo radical de atuar
não seja sociável, sequer com seus semelhantes, buscará alguém com
quem dividir seus momentos de paz: a família (uma companheira e
592
Idem. Ibidem. I-II,98, 1, c, p. 1790: “Est autem sciendum quod est
alius finis legis humanae, et alius legis divinae. Legis enim humanae
finis est temporalis tranquillitas civitatis, ad quem finem pervenit lex
cohibendo exteriores actus, quantum ad illa mala quae possunt perturbare
pacificum statum civitatis”.
593
Leia-se “agostiniano”.
594
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I, 1986, p. 40.
595
AGOSTINHO. A CIDADE DE DEUS. 2000, XIX, 12-13, p. 1909-1918.
596
Idem, ibidem, p. 1909
prole).
597
É um fato tão óbvio que dificilmente alguém se lhe
oporá.
598
O referido malfeitor terá com sua família uma relação
análoga a de um potentado qualquer com sua cidade. Caso, então,
esse malfeitor regesse alguma cidade, ele procuraria manter com
ela uma paz semelhante à que goza com sua família.
E para falar mais acidamente contra os adversários
Agostinho lança mão de outra ilustração, tirada da Eneida (Canto
VIII, v. 190s) de Virgílio: Caco, filho de Vulcano, “o seu reino
era a solidão [...], e a sua maldade era tão singular que dela
tiraram o seu nome [...]”.
599
Era semi-homem, sem qualquer laço com
alguém com quem pudesse manter alguma relação de governo, sequer
com uma família.
600
Então, em busca da paz que não gozava nem com
seus próprios membros corporais, roubava, matava e devorava suas
vítimas, cujo sangue banhava o solo em que pisava.
Antes de apresentar seu último exemplo, Agostinho lança
uma ponta de reflexão perguntando: “Quanto mais não é o homem como
que impelido pelas leis da natureza a entrar numa sociedade com os
homens e, tanto quanto na sua mão estiver, a com todos viver em
paz?”
601
O último exemplo é tirado da hipótese de alguém ser posto
“dependurado de cabeça para baixo”.
602
Se nada for feito, isto é,
se não lhe for restabelecida a paz ou seja, a ordem da
disposição dos membros em relação à disposição natural do corpo —,
a conseqüência será aquela paz da morte, pelo retorno aos
elementos do mundo. Os fenômenos decorrentes da inversão
constituem-se num clamor pela paz natural perturbada à revelia.
Resulta, então, que é da natureza humana o desejo mais
profundo e o envidar os mais árduos esforços por este estado
597
Idem. Ibidem. p. 1910: “Mesmo na sua casa, procura com certeza viver
em paz com sua mulher e filhos e com o que lá tiver”.
598
ECO; MARTINI. Em que crêem os que não crêem? 7
a
. ed. Rio: Record,
2002, p. 83.: “Mesmo quem mata, estupra, rouba, espanca,o faz em
momentos excepcionais, e pelo resto da vida estará a mendigar
aprovação, amor, respeito, elogios de seus semelhantes. E mesmo àqueles
a quem humilha ele pede o reconhecimento do medo e da submissão”.
599
Agostinho. ibidem, p. 1910.
600
Idem, ibidem, p. 1911: “[...] não podia gozar de nenhuma conversa de
amigo, nem mesmo com Vulcano, seu pai [...]”.
601
AGOSTINHO. Ibidem, p. 1912.
602
Idem, ibidem, p. 1913.
positivo de paz, inicialmente identificado com o restabelecimento
de algum transtorno, externo ou interno. Entretanto, como
seguramente Agostinho conhecia bem a história da humanidade, sabia
muito bem que ela está eivada de conflitos menos motivados pela
necessidade de alguma paz interna do que pela ambição interna e
externa dos potentados. Ora, esse dado parece desmentir a
premissa, segundo a qual, todos os homens desejam verdadeiramente
a paz, salvo se “paz” não passar de um termo vácuo de sentido,
pretexto útil para as mais inesperadas e indefensáveis atrocidades
cometidas entre os homens e instigada por governantes belicosos.
Mas Agostinho mantém sua premissa e identifica dois tipos de paz:
uma paz da carne e outra paz do espírito.
603
Essa distinção
fundamental torna-se, então, “a chave” que permite validar a
referida premissa.
A “paz da carne” se opõe à “paz do espírito”. E tal é a
oposição entre ambas que, mesmo se estabelecendo a paz da carne,
ela continua em atrito, em desavença com a outra, pois, afinal,
suas naturezas e origens são, por sua vez, também
irreconciliáveis. A primeira é frágil, inconstante e vulnerável às
inclinações que assolam o corpo e seus humores, enquanto a segunda
goza das prerrogativas inerentes ao espírito. A cada qual,
portanto, corresponde um tipo de sociedade (civitas) congruente.
Esses dois tipos de sociedades
604
transcendem na visão
agostiniana as vicissitudes de cada povo concreto e suas
circunstâncias históricas.
605
603
É mister fazer aqui uma ponte com outra passagem do pensamento de
Agostinho (A CIDADE DE DEUS. 2000, XIV, 4, p. 1243-1246) onde ele
utilizou expressões conexas às usadas aqui. Com o termo “carne” (caro),
quer significar o homem todo, em seu corpo constituído de paixões. Com o
termo “espírito” (spiritus), quer significar as coisas referentes a
Deus, cognoscível somente pelo Seu Espírito que a nós comunicado. Assim,
neste contexto, deve se entender “viver segundo Deus” e “viver segundo o
homem”.
604
Idem, ibidem, p. 1233: “E por isso aconteceu que, entre tantos e o
grandes povos espalhados por toda a Terra, apesar da diversidade dos
usos e costumes, da imensa variedade de línguas, armas e vestuário, não
se encontram senão dois tipos de sociedades humanas que nós podemos à
vontade, segundo as nossas Escrituras, chamar de as duas Cidades [...]”.
605
Idem, ibidem, p. 1233: “[...] uma, a [cidade] dos homens que querem
viver segundo a carne, e a outra, a [cidade] dos que pretendem seguir o
espírito, conseguindo cada um viver na paz do seu gênero quando eles
conseguem o que pretendem”.
Para que seu interlocutor não se sinta perdido quanto a
saber, efetivamente, o que ele entende por paz e, igualmente,
conseguir estabelecer a diferença que entre as duas cidades
Santo Agostinho introduz a noção de ordem (ordo) como constitutiva
de cada respectiva paz
606
e, então, apresenta cerca de dez
definições do termo paz. Para começar, considera o ser humano em
sua individualidade (e constituição) e, depois, em sua relação com
o Criador.
607
Em seguida, ele trata do homem inserido na sociedade,
desde a mais tenra — a família —, até a mais elaboradaa cidade.
Transparecem, portanto, as três esferas da associação humana, a
mais próxima a casa —, a cidade e a mais remota a terra —,
ordenadas, progressivamente, consoante a especificação dos grupos
em que a organização mais restrita determina, a dos conjuntos
posteriores. Esta construção reveste-se duma progressão
pedagógico-psicológica, conforme Agostinho entende que a paz se
constrói e é assimilada.
A noção subjacente às “definições” agostinianas de paz é
a de ordem, analógica à noção do amor enquanto motriz do homem
rumo a uma determinação. Assim do que vimos duas espécies
de paz, como duas espécies de homens. Uma espécie de homens é
daqueles que “vivem segundo a carne” e a outra, a dos que “vivem
segundo o espírito”, quer dizer, “segundo Deus”. A ordem dos
homens que “vivem segundo a carne”, ou dos homens terrenos,
consiste na ordem temporal deste mundo, onde emerge a instituição
de leis políticas e sociais que regem a cidade, as quais, sendo
obedecidas, outorgam certa paz relativa, porque carnal aos
homens. Esta paz, a pax temporalis”, se guardada, não atenta
606
Idem, ibidem, p. 1915: “[...] a paz dos homens é a concórdia ordenada;
a paz da casa é a ordenada concórdia dos seus habitantes no mando e na
obediência; a paz da cidade é a concórdia ordenada dos cidadãos no mando
e na obediência; a paz da Cidade Celeste é a comunidade absolutamente
ordenada e absolutamente harmoniosa no gozo de Deus, no gozo mútuo em
Deus; a paz de todas as coisas é a tranqüilidade da ordem. A ordem é a
disposição dos seres iguais e desiguais que distribui a cada um os seus
lugares”.
607
Idem, ibidem, p.. 1915: “A paz do corpo é a composição ordenada das
suas partes; a paz da alma irracional é a tranqüilidade ordenada dos
seus apetites; a paz da alma racional é o consenso ordenado da cognição
e da ação; a paz do corpo e da alma é a vida e a saúde ordenadas do ser
animado; a paz do homem mortal com Deus é a obediência ordenada na
sob a eterna lei [...]”.
contra a ordem natural imposta por Deus, porque o Criador é Bom e
tudo quanto faz o é também, pois “não pode haver uma natureza na
qual não haja algum bem”.
608
Tamanha é a convicção do Santo de
Hipona na bondade natural, vinda da bondade de Deus, que até ao
artífice do mal o Diabo ele imputa um modo de bondade, porque
criatura de Deus. O Criador ao castigar o Diabo justamente — não
lhe destruiu a natureza, antes a preservou para que nela, havendo
algo de bem, houvesse o clamor por todo o bem perdido, devido à
sua prevaricação e corrupção no mal.
609
De modo semelhante Deus agiu no tocante ao ser humano,
pois este igualmente prevaricou, tendo perdido a bondade original
com a qual fora criado. Permanece, não obstante, a bondade de sua
natureza e clama a ausência do bem devido que já não possui como o
tivera. O bem remanescente no ser do homem é o lastro que lhe
possibilita amar sua natureza mesmo atentando contra a paz
natural —, compor uma vida social minimamente ordenada e pacífica
e tentar recuperar a paz eterna com Deus.
610
Por oposto, o gozo da paz eterna é de outra ordem,
infinitamente superior mesmo ao entendimento humano porque
implica o gozo (frui) de Deus “e do próximo em Deus”.
611
Mas, ainda
na vida terrestre, o homem precisa, necessariamente, guardar a
ordem da disposição natural querida por Deus a qual está
estabelecida.
612
608
AGOSTINHO. Ibidem, p. 1916.
609
Idem. Ibidem. p. 1916.: “Portanto, a natureza do próprio Diabo, como
natureza, não é um mal. A perversidade é que a torna má. De fato, ‘não
se manteve na verdade’(Jo 8, 44), mas não escapou ao juízo da verdade;
não se manteve na tranqüilidade da ordem, mas não fugiu ao poder do
Ordenador”.
610
Idem, ibidem, p. 1919: “Deus [...] deu aos homens determinados bens
apropriados a esta vida, ou sejam: a paz temporal à medida da vida
mortal na sua própria saúde e segurança, assim como na vida social com
os seus semelhantes, e, além disso, tudo aquilo que é necessário para a
proteção ou recuperação desta paz [...]”. “Por conseguinte, todo o uso
dos bens temporais tem em vista o gozo da paz terrestre na Cidade
Terrestre e o gozo da paz eterna na Cidade de Deus”.
611
Idem, ibidem, p. 1918.
612
Idem, ibidem, p. 1920, 1921: “E a ordem nesta paz consiste: primeiro,
em a ninguém prejudicar; e depois em tornar-se útil a quem se puder.
Pertence-lhe, pois, em primeiro lugar o cuidado dos seus. Efetivamente
ele tem ocasião mais oportuna e mais fácil de os ajudar em virtude da
ordem da natureza ou da própria sociedade humana. [...] Daí nasce também
a paz do lar, isto é, a concórdia harmoniosa em mandar e obedecer dos
Vê-se, portanto, que a paz terrena é possível e mesmo
necessária para a vida nesta terra, enquanto é um anteposto para a
futura. Esta vida futura é construída, aqui, com os labores
pela manutenção dessa “paz social”, não obstante frágil e
temporal, cujos esforços distinguem os homens da Cidade Celeste
daqueles da Cidade Terrestre:
Mas também a Cidade Celeste, ou antes esta parte que
peregrina nesta vida mortal, e vive da fé, tem
necessidade desta paz e usa-a até passar a vida mortal
a que essa paz é necessária; e por tal razão, enquanto
decorre, no meio da Cidade Terrena, a sua como que
cativa vida de peregrinação, mas com a promessa de
redenção e com o dom espiritual como que em garantia,
ele não hesita em obedecer às leis da Cidade Terrestre
promulgação para a boa administração de maneira que,
visto a vida mortal lhes ser comum, para tudo o que
lhes respeita, a concórdia das duas Cidades se
mantenha.
613
A busca da paz terrena é, assim, uma espécie de ordem
suficiente para a manutenção atual ou presente do convívio social
humano, cujo labor é justo e proporcional. Esta paz resulta,
então, não do isolamento, mas do convívio bem-estabelecido,
amalgamado pela concórdia — ainda que terrena, frágil e temporal —
daqueles que almejam algo mais a Cidade Eterna e utilizam
desta Cidade Terrena e de quanto nela houver de bem e bom para uma
vida condigna da vocação a que são destinados e chamados.
Tudo isto não deixa de reforçar a dicotomia entre as duas
espécies de Cidades e, conseqüentemente, das duas espécies de paz,
congruentes, cada uma com uma espécie respectiva de Cidade. Mas
Agostinho postula a necessidade da paz terrena enquanto ambas as
Cidades coexistirem nos mesmos homens, mas enquanto coexistirem as
duas Cidades, o homem ordenado à Cidade Eterna não pode prescindir
— mesmo no convívio como “homem terreno” — da paz temporal.
614
que coabitam. [...] Mas, na casa do justo que vive da e que ainda
peregrina afastado dessa Cidade Celeste, os que mandam estão a serviço
daqueles sobre os quais parece que mandam”.
613
Idem. Ibidem. p. 1929-1930.
614
Idem, ibidem, p. 1930, 1931: “Esta Cidade Celeste, enquanto peregrina
na Terra, recruta cidadãos de todos os povos e constitui uma sociedade
peregrina de todas as línguas, sem se preocupar com o que haja de
diferente nos costumes, leis e instituições com que se conquista ou se
Dessa bagagem no seu Do Governo dos Príncipes —, Tomás
pôde dizer
615
que a Comunidade Política — na pessoa de seu
dirigente tem como escopo a obtenção e a manutenção da paz
terrena como necessária para a consecução do Bem Comum Político:
Ora, o bem e salvamento da multidão consorciada é
conservar-lhe a unidade, dita paz, perdida a qual,
perece a utilidade da vida social, uma vez que é
onerosa a si mesma a multidão dissensiosa. Por
conseguinte, o máximo intento do governante deve ser o
cuidar da unidade da paz. Nem é reto deliberar ele a
não ser que produza a paz da multidão a ele sujeita
[...]. Assim, tanto mais útil será um regime, quanto
mais eficaz for para conservar a unidade da paz.
616
Decorre, pois, que a paz como concórdia pertence ao
fim último do consórcio humano não enquanto beatitude —, mas
enquanto condição necessária e mínima para a manteneção da
Comunidade Política humana e predisposição para a verdadeira e
eterna felicidade.
617
Esta paz deve ser almejada, porque “[...] aquilo para o
que tende a intenção de quem governa a multidão é a unidade ou a
conserva a paz eterna; nada lhes suprime, nada lhes destrói; mas antes
conserva e favorece tudo o que de diverso nos diversos países tenda para
o mesmo fim a paz terrena contanto que tudo isso não impeça a
religião [...]. Nesta sua peregrinação a Cidade Celeste também se serve,
portanto, da paz terrena, protege e deseja a composição das vontades dos
homens até onde lho permita a piedade e a religião refere essa paz
terrena à paz celeste [...]”.
615
Convém ponderar que de acordo com DE BONI (De Abelardo a Lutero.
2003, p. 103-126) “o grande projeto de Tomás foram as Sumas”, e que
“Tomás acabou nos enganando”. Em outros termos, a leitura da obra Do
Reino ou do Governo dos Príncipes deve ser lida em seu contexto, com a
perspectiva cristã do autor, a qual supõe toda a contribuição de Santo
Agostinho. (itálico do original)
616
TOMÁS DE AQUINO. Do Reino ou do Governo dos Príncipes ao Rei de
Chipre. 1997, L. I, c. 3., nº. 8, p. 130: “Bonum autem et salus
consociatae multitudinis est ut eius unitas conservetur, quae dicitur
pax, qua remota, socialis vitae perit utilitas, quinimmo multitudo
dissentiens sibi ipsi sit onerosa. Hoc igitur est ad quod maxime rector
multitudinis intendere debet, ut pacis unitatem procuret. Nec recte
consiliatur, an pacem faciat in multitudine sibi subiecta [...]. [...]
Quanto igitur regimen efficacius fuerit ad unitatem pacis servandam,
tanto erit utilius”.
617
Idem. Suma Teológica. 1980, I-II, 3, 4, ad 1um, p. 1051s: “A paz diz
respeito ao fim último do homem; não que seja essencialmente a beatitude
mesma, mas por lhe ser relativa, antecedente e conseqüentemente.
Antecedentemente, enquanto está removido tudo o que perturba e impede
o último fim. E conseqüentemente, quando o homem, alcançado esse fim,
fica em paz, com o desejo satisfeito”.
paz”
618
, pois a natureza da Comunidade Política, como a de qualquer
ente, requer uma certa unidade “sem a qual não podem existir”.
619
Essa paz o homem a consegue, primeiramente consigo mesmo, na
prática das virtudes morais “pessoais”, e no segundo momento,
não menos importante e imperioso na prática das virtudes morais
políticas.
É bem verdade que ainda falta um amálgama para se
constituir essa paz e, por conseguinte, a vida social, isto é, a
amizade. Mas dela falaremos logo a seguir, no capítulo seguinte,
pelo fato de ela estar intimamente ligada à caridade, ou ser um
modo dela.
Em suma, pudemos acompanhar até aqui a construção de
alguns dos elementos internos e necessários à Comunidade Política,
para a constituição e manteneção do Bem Comum Político, segundo o
pensamento de Santo Tomás de Aquino, bem como a influência que
sofreu da novidade das obras de Aristóteles, as quais foram lidas,
não por um leigo, num mundo acatólico, mas por um clérigo, com
toda a bagagem vivencial de um frade mendicante, de um sacerdote
cristão e de um teólogo, atento à sua época, que respirava o clima
de cristandade, mas também de um filósofo que, mesmo com “lentes”
cristãs por vezes tomadas de “empréstimo a Agostinho se
posiciona, com certa distância em pontos bem localizados, cuja
contribuição também acena para a cisão das duas Cidades, que
estaria por vir. Mas, em seu olhar para o Fim Último Verdadeiro,
Tomás não pôde transpor seu mundo, sua cultura e suas convicções.
Ele aponta para Deus, Alfa e Ômega de tudo.
Estando de posse, minimamente, dos pressupostos até este
momento visitados, podemos direcionar nosso olhar para os últimos
elementos alterativos da Comunidade Política e para aquilo em que
Tomás faz presente, sempre a seu modo, a tradição cristã, estóica e
aristotélica.
618
Idem. Ibidem. I, 103, 3, c, p. 891.
619
Idem. Ibidem. I, 103, 3, c, p. 891.
Capítulo IV
Nesta última parte do trabalho, almejamos explorar como,
para Santo Tomás de Aquino, o sentido cristão de amizade e amor
pressupõe seus correlativos humanos, conquanto tenham estes um
embasamento peripatético, mas os sobrepassam devido sua origem
divina cuja influência envolve e sobreleva a existência humana ao
nível do convívio com Deus. A linguagem tomasiana nessa questão é
embebida pela de Agostinho, autor que muito contribuiu para a
construção dessa temática na obra de Santo Tomás.
Almejamos, ainda, mostrar a superação, nos textos do
Aquinate, da aporia hierocracia versus teocracia, com uma
autonomia em relação às tendências vigentes. Por último colocar o
que Tomás pensa em relação às formas possíveis de governo e,
dentre as possíveis, consoante o Bem Comum Político, qual, em
tese, a melhor.
4. A Alteridade Político-Teológica
A partir da reflexão que fizemos até aqui, percebemos o
quanto é caro para Santo Tomás o agir humano. De fato, como nos
lembra De Boni
620
a quem seguiremos neste capítulo em suas linhas
gerais —, o Angélico concede boa parte de seu melhor trabalho
intelectual a esse tema, tamanha sua relevância.
É preciso recordar que o agir humano é a exteriorização
da pessoa em sua vivência consigo e com o outro
621
. Este pode ser
tanto o semelhante considerado individual e socialmente — quanto
Deus. Assim, vamos passar uma vista d’olhos nos desdobramentos
dessa questão.
620
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 115: “A importância concedida
ao estudo do agir humano pode ser medida pelo fato de haver sido
reservado a ele mais da metade de todo o texto da Suma Teológica”.
621
Remetemos à interessante discussão de Bauman.Ética Pós-Moderna. Trad.
João R. Costa. São Paulo: Paulus, 1997, p. 83ss sobre a “moralidade
antes da liberdade”, ou separação radical ontológica entre os
indivíduos, bem como a anterioridade da ética sobre a ontologia.
4.1. A amizade
Temos visto nas partes anteriores deste trabalho que, por
natureza, o homem se constitui e se percebe um ser social, e uma
parte da Comunidade Política
622
, porém, conserva antes de tudo sua
natureza pessoal, permanece um ser para si. A hierarquia natural e
ética do homem o impede de sujeitar-se totalmente, com o exclusivo
caráter de meio ou instrumento, a outro homem ou a uma comunidade.
Já vimos que o homem é parte da Comunidade Política
623
, ou,
em outros termos, os homens, considerados singularmente, o, com
relação à Comunidade Política, como as partes ou membros do homem
a respeito de todo o organismo humano, pois assim como nenhum
membro pode subsistir sem o homem, tampouco o homem pode subsistir
sem o convívio social
624
. E Santo Tomás também escreve com intenção
analógica que a parte é naturalmente para o todo e a pessoa
singular para toda a Comunidade
625
. Neste sentido, insiste ele
afirmando que qualquer parte o que é o é do todo, e o homem,
por ser parte da comunidade — o que é — é parte dela.
626
Mas Tomás não deixa de observar que a pessoa não é, de
modo absoluto, parte da Comunidade: “O homem não se ordena, em si
mesmo, totalmente e com tudo o que lhe pertence à comunidade
política [...]”.
627
Ora, considerando a relação da parte com o
622
Para matizar as diferenças da proposta tomista, sugerimos o estudo da
distinção entre societas”e communitas”proposta por ctor W. Turner em
Bauman. Ética Pós-Moderna. 1997, p. 135ss: “Estrutura e contra-
estrutura”.
623
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 21, 3, c, p. 1197.
624
Idem. In Politic., 1, 1 n
o
. 31. In: Corpus Thomisticum. CD-ROM, 2003:
“Sed singuli homines comparantur ad totam civitatem, sicut partes
hominis ad hominem. Quia sicut manus aut pes non potest esse sine
homine, ita nec unus homo est per se sufficiens ad vivendum separatus a
civitate”.
625
Idem. Suma Teológica. 1980, II-II, 64, 2, c, p. 2540: “Pois toda parte
se ordena para o todo como o imperfeito para o perfeito. Por onde, toda
parte é naturalmente para o todo. [...] Ora, cada indivíduo [persona
singularis] está para toda a comunidade como a parte, para o todo”.
626
Idem. Ibidem. II-II, 64, 5, c, p. 2544: “[...] porque qualquer parte,
pelo que é, pertence ao todo. Ora, cada homem é parte da comunidade e,
portanto, o que é da comunidade o é”.
627
Idem. Ibidem. I-II, 21, 4, ad 3
um
, p. 1199.
todo, é preciso ter em conta que existem “todos” de diferentes
espécies e que, portanto, o modo de ser da parte para o todo está
em consonância com o modo de ser próprio de cada todo.
Em outros termos, partes que são meramente partes e
carecem de unidade própria, enquanto outras têm um ser próprio e o
conservam, ainda desfeita a unidade de um todo maior que integram
ou formam. Num caso, algumas coisas, o que são e tudo o que são,
decorrem de sua natureza de partes, ou seja, são formalmente
partes. Noutro caso, algumas coisas são partes enquanto entram
como elementos materiais a compor totalidades mais complexas, mas
nem por isso deixam de ser o que são por si mesmas e nem perdem o
ser que em si mesmas são. Em suma, são partes materialmente, porém
não são formalmente partes.
Coisa análoga ocorre com os indivíduos humanos ou pessoas
singulares que compõem a Comunidade Política, pois os homens têm
uma tendência natural a unir-se em comunidade e, por sua vez, uma
inclinação essencial a ser para si
628
independentemente da
Comunidade.
Pois bem, é do fato do convívio social do homem que
decorre sua relação com seus semelhantes
629
, como reflexo de sua
natureza e participação na lei eterna. Esta, sendo a razão do
próprio Deus, haveria de fazer o homem reproduzir o que Nele
ocorre de modo sobrenatural: o convívio dileto com o semelhante. É
o que a ordem da natureza tanto das coisas entre si, como do
homem coloca a pessoa numa dupla ordenação alterativa, como
vimos:
Ora, uma dupla ordem a se considerar nas coisas.
Uma, pela qual uma criatura se ordena para a outra;
assim, as partes, ao todo [...], e cada coisa, ao seu
fim. Outra, pela qual todas as criaturas se ordenam
para Deus.
630
628
Idem. In Politic., 1, 1, nº. 30-31a. In: Corpus Thomisticum. CD-ROM,
2003.
629
Contraposto muito interessante colocado por Bauman. Ética Pós-Moderna.
1997, p. 103ss: “A aporia da proximidade”; p. 168ss: “Conhecer o Outro,
saber sobre o Outro”.
630
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 21, 1, ad 3
um
, p. 217: “Est
autem duplex ordo considerandus in rebus. Unus, quo aliquid creatum
ordinatur ad aliud creatum, sicut partes ordinantur ad totum […] et
Podemos ver que, segundo o Frade Pregador, é natural que
os homens se sintam inclinados uns aos outros por laços familiares
e de convívio. Dessa inclinação decorre a benevolência como algo
congênito ao ser racional do homem. Essa benevolência é chamada de
amor. Este, em si, possui diversas ordens e vários modos de se
configurar, mas o certo é que ele é o catalisador do agir humano,
a força que aproxima a pessoa de seu semelhante e os unifica em
diversas ordens.
631
Também Gilson o afirma ao dizer que “love, the
root of all the passions, is many-sided”.
632
Meneses cita a questão da complexidade do tema no
pensamento de Santo Tomás de Aquino e aponta para uma “evolução”
que ele imputa “nem sempre para melhor”, devido o Aquinate, ainda
segundo ele, “deixar escapar muita coisa do espírito dionisiano
[...] da análise fenomenológica mais rica do Scriptum super
Sententiis
633
. Não sendo nosso intento entrar nesse debate, da
contribuição do autor, nós nos utilizaremos dele consoante as
luzes que ele nos aponta em seu trabalho.
Vamos nos deter, maiormente, nos textos da Suma Teológica
onde estão as passagens mais ricas. Inicialmente, já nos detivemos
na Primeira Parte da Segunda Parte, nas questões 26 e seguintes.
De fato, o amor é, inicialmente, paixão. Santo Tomás, no
local supracitado, trata dele entre as demais paixões. Como paixão
unaquaeque res ad suum finem. Alius ordo, quo omnia creata ordinantur in
Deum”.
631
Dito de modo um pouco diverso, pela pena de vinas, citado por
Bauman. Op. Cit. p. 109: “O pathos do amor consiste na insuperável
dualidade de seres. O amor é relacionamento com o que está sempre
escondido. Esse relacionamento não neutraliza a alteridade, senão que a
conserva. O pathos do desejo repousa no fato de ser dois. O outro como
outro não é objeto destinado a se tornar meu ou que ficou meu; ele se
retira, pelo contrário, em seu mistério”. (itálico do original).
632
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 272.
633
MENESES. O Conhecimento Afetivo em Santo Tomás. 2000, p. 55: “O
problema do amor em Santo Tomás é complexo e encerra um conjunto de
perspectivas, uma encruzilhada de antinomias. [...] Mesmo dentro do
assunto delimitado que nos ocupa, o pensamento de Santo Tomás é
suficientemente complexo, pois do Comentário às Sentenças às Questões
Disputadas, e daí à Suma [Teológica], o seu ensino representa uma
evolução. Nem sempre para melhor. Parece que as idéias claras e
distintas, que prevalecem na Suma, deixam, no problema em foco, escapar
muita coisa do espírito dionisiano, ou mesmo “dionisíaco”, da análise
é raiz do desejo por um bem sensível ainda não possuído e do gozo
quando do bem sensível já possuído.
634
Mas a vontade possui, propriamente falando, dois modos de
querer
635
. Um primeiro ato de querer ou simples volição, que é a
inclinação para o bem em si
636
, como fim, que lhe é conatural e
“necessário”. O segundo, que depende de eleição precedente e é
denominado dileção.
637
Desse modo, podemos, seguindo o pensamento do Aquinate,
encontrar um paralelo entre o amor racional e o amor sensível, por
oposição à intenção e o desejo, de um lado, e lembrando Agostinho,
à fruição e o gozo, de outro lado. Portanto, o que constitui o
desejo no plano sensível, constitui a intenção (quanto ao fim
almejado) no plano racional. Paralelamente, o que configura como
gozo na ordem sensível, configura como a fruição (quanto ao fim
almejado) na ordem racional. Daí que o amor no plano sensível
corresponde à volição, propriamente dita, no plano racional. Mas a
dileção, anteriormente mencionada, está mais além até deste último
tipo de volição, segundo o próprio Tomás pondera:
Assim, o mais geral deles é o amor, pois toda dileção
ou caridade a ele se reduz, mas não inversamente;
assim, a dileção acrescenta-lhe a eleição precedente,
como o próprio nome o indica. Por onde, a dileção não
fenomenológica mais rica do Scriptum super Sententiis”. (itálico do
original).
634
Idem. Ibidem. p 55: “A dialética da afetividade tem três momentos: o
primeiro é o amor [complacentia, inclinatio (inclinação... movimento
gozo, descanso, paz, quietação)]; o segundo é o desejo (motus); e o
terceiro é o gozo (gaudium, fruitio, quies, pax, quietatio)”. (colchetes
e itálicos são do autor)
635
GILSON. Op. Cit. p. 273: “Man experiences this passion of love in his
capacity of animal, but in quite different way, because in him it stands
in relation to a higher appetite, the rational or intellectual appetite,
which we have called will”. (itálico do original)
636
CALDERA. Le jugement par Inclination chez Saint Thomas D’Aquin. 1980,
p. 33: “Etre désirable, donc, est la marque singulière du bien, comme
l’acte est celle de l’être. Remarquons toutefois qu’il s’agit ici d’une
caractérisation formelle du bien, c’est-à-dire que nous parlons du bien
en général sous la raison universelle de bien sans vouloir indiquer
poar que le désirable comme tel est un objet concret, le même pour
tout appétit”.
637
GILSON. Op. Cit. p. 273: “Because love has dealings with reason it is
diversified in man according to several aspects, each with its special
name. First, there must be some way of indicating that a rational being
can freely choose the object of its love; accordingly we speak of
dilection”. (itálico do original).
pertence ao concupiscível, mas exclusivamente à
vontade, e só é própria da natureza racional.
638
Em seguida, o Angélico especifica os modos dessa dileção
ou amor racional que pode ser tanto de domínio como de
comunhão:
Como diz o Filósofo, amar é querer bem a alguém. Assim
pois o movimento do amor tende para um duplo termo: o
bem que queremos a alguém, seja essa a nossa própria
pessoa ou a de outrem; e a pessoa a quem o queremos.
Ora, o bem que queremos para outrem diz respeito ao
amor de concupiscência; a pessoa a quem o queremos, o
amor de amizade.
639
Efetivamente, com isto Santo Tomás está dizendo que no
amor de domínio — ou da concupiscência — o seu termo está em outra
coisa ou pessoa enquanto bens relativos e deleitáveis e, portanto,
como meios e não como fins em si mesmos
640
. quanto ao amor de
amizade ou amor de comunhão, este possui seu termo alterativo em
outra pessoa, como um bem de si mesmo amável não com vistas
noutra coisa, mas nela mesma. Não foi preciso esperar Kant
641
para
638
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 26, 3. c, p. 1224: “Nam
amor communius est inter ea, omnis enim dilectio vel caritas est amor,
sed non e converso. Addit enim dilectio supra amorem, electionem
praecedentem, ut ipsum nomen sonat. Unde dilectio non est in
concupiscibili, sed in voluntate tantum, et est in sola rationali
natura”. (itálico do original).
639
Idem. Ibidem. I-II, 26, 4. c, p. 1225: “[...] sicut philosophus dicit
in II Rhetoric., amare est velle alicui bonum. Sic ergo motus amoris in
duo tendit, scilicet in bonum quod quis vult alicui, vel sibi vel alii;
et in illud cui vult bonum. Ad illud ergo bonum quod quis vult alteri,
habetur amor concupiscentiae, ad illud autem cui aliquis vult bonum,
habetur amor amicitiae”. (itálico do original)
640
GONZÁLEZ. Moral, Razón y Naturaleza. 1998, p. 118, n. 108: “Como
pasión, en efecto, el amor no discrimina su objeto: da igual que se ame
a una persona, a una mascota de peluche o a una farola. Quien discrimina
el objeto es la razón. Y precisamente en este sentido, una consideración
ontológica de la realidad manifesta su relevancia: el hombre es querido
por mesmo, y por tanto no puede jamás ser querido sólo como medio
para fines privados. El resto de la naturaleza es querida para el
hombre, y por eso [...] éste puede usarla para sus fines, lo cual
insisto — nada tiene que ver com ejercer un dominio cruel sobre ella”.
641
BAUMAN. Op. Cit. p. 60 refere que “Lévinas tira uma conclusão muito
radical da solução de Kant para os mistérios da ‘lei moral dentro de
mim’, mas tal radicalismo pode fazer justiça à concepção de Kant da
moralidade como postura guiada pelo interesse pelo Outro por causa do
Outro, e o respeito pelo Outro como sujeito livre e ‘fim em si mesmo’”.
E mais adiante Bauman coloca o pensamento de Lévinas cujo período mais
forte: “se eu te trato como tu antes que como coisa, é precisamente
se saber disso. Por isto o amor de amizade ou simplesmente
amizade é um amor em sentido verdadeiramente humano e pleno.
Nele a intenção é a comunicação e não a posse, cuja distinção
somos capazes de discernir.
642
Consideramos ser prescindível frisar que uma dicotomia,
ou mesmo, uma contraposição radical entre as sensações de toda
ordem e a razão humana e da ordem moral e sentimental são
inexistentes no pensamento de Santo Tomás, tal qual encontramos no
pensamento moderno, máxime em e a partir de Kant
643
como bem o
expõe Bauman.
644
Sob esse aspecto, podemos trazer uma outra passagem, das
mais belas, relativa a esta questão, na qual Santo Tomás coloca o
amor como um dom e designa a pessoa como termo de um amor de
comunhão e de entrega (subjacentes à amizade):
[...] dom, propriamente, é uma doação irretribuível,
segundo o Filósofo; isto é, dado sem intenção de
retribuição, e portanto é, por natureza, gratuita.
Ora, a razão da doação gratuita é o amor; pois, a quem
damos uma coisa gratuitamente a esse lhe queremos bem;
e, portanto, a primeira coisa que lhe damos é esse
amor pelo qual lhe queremos bem. Por onde, é manifesto
que o amor é por essência um dom primeiro, pelo qual
todos dão gratuitamente.
645
porque eu estipulei (espero, trabalho para) ser também tratado por ti
como teu Tu”. (itálico do original).
642
MARTÍNEZ BARRERA. Reconsideraciones sobre el Pensamiento Político de
Santo Tomás de Aquino. 1999, p. 144s: “[...] la más elevada acción
humama implica una relación con el prójimo en tanto tal, no en tanto
alguien ‘disponible’. La relación humana sabe discernir dónde termina el
lazo al otro como instrumento y dónde comienza el vínculo de amistad,
que puede esperar legítimamente ventajas útiles”. (itálico do original).
643
BAUMAN. Op. Cit. p. 81: “A maioria dos argumentos seguiam sem
parcimônia a invalidação feita por Kant das emoções como poderosos
fatores morais: admitiu-se axiomaticamente que os sentimentos, assim
como o agir por afeições, não têm nenhum significado moral somente a
escolha, a faculdade racional e as decisões que ela dita podem refletir
sobre o agente como pessoa moral”.
644
Idem. Ibidem. p. 81: “De fato, a própria virtude significava para Kant
e seus seguidores a capacidade de dominar as próprias inclinações
emotivas, e neutralizá-las e rejeitá-las em nome da razão. A razão tinha
que ser não-emocional, assim como as emoções eram não-racionais; e a
moralidade era relegada pura e simplesmente ao domínio não-senciente da
razão. [...] o medo de Kant das emoções assombrou sua busca da autonomia
moral; a razão foi, afinal, a abertura pela qual pressões heterônomas
podiam penetrar no ‘interior emocional’ das escolhas dos agentes”.
645
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 38, 2. c, p. 344: “[…]
sciendum est quod donum proprie est datio irreddibilis, secundum
Barrera reforça essa nossa leitura afirmando que “para
que haya amistad verdadera, se requiere algo más que la
communicatio’; es necessaria la benevolencia o el amor mutuo”.
646
E, para nos locupletarmos ainda mais da melifluidade do
Angélico, devemos ressaltar que a amizade, do modo como ele a
concebe, leva as pessoas em questão a se satisfazerem nos mais
nobres e belos sentimentos que alguém pode nutrir para com outrem:
Pois e primeiramente cada amigo quer que o amigo
exista e viva; segundo, quer-lhe bens; terceiro, faz-
lhe bens; quarto, tem prazer em conviver com ele;
quinto, concorda com ele, alegrando-se e
entristecendo-se ambos com as mesmas coisas.
647
Daí se deduz o quanto a amizade em muito supera a pura
justiça, embora dela não prescinda
648
. Se ambas justiça e amizade
implicam uma certa reciprocidade
649
, o fazem de modo diverso. A
justiça, pelo que vimos, em sua alteridade, requer uma
reciprocidade tangível, como restituição de algo devido um
débito que a relação entre as partes estabelece
650
. a amizade
philosophum, idest quod non datur intentione retributionis, et sic
importat gratuitam donationem. Ratio autem gratuitae donationis est
amor, ideo enim damus gratis alicui aliquid, quia volumus ei bonum.
Primum ergo quod damus ei, est amor quo volumus ei bonum. Unde
manifestum est quod amor habet rationem primi doni, per quod omnia dona
gratuita donantur”. (itálico do original).
646
MARTÍNEZ BARRERA. Op. Cit. p. 152. (itálico do original).
647
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 25, 7. c, p. 2238:
“Unusquisque enim amicus primo quidem vult suum amicum esse et vivere;
secundo, vult ei bona; tertio, operatur bona ad ipsum; quarto, convivit
ei delectabiliter; quinto, concordat cum ipso, quasi in iisdem
delectatus et contristatus”.
648
MARTÍNEZ BARRERA. Op. Cit. p. 152: “La amistad política perfecta tiene
como fundamento, como cosa en la cual comunican los amigos de la ciudad,
algo más que los negocios y el territorio: los cuidadanos-amigos tienen
como patrimonio común un bien honesto al cual se vinculan como a su fin
los demás bienes serviles, igualmente necessarios. Y sobre la base de
este patrimonio común honesto, los conciudadanos se vinculan entre si,
es decir, comunican actualmente, mediante ejecución de actos imperados
por el juicio práctico prudencial, favoreciendo así la eclosión del
mayor bien de la ciudad: la amistad virtuosa”.
649
Para Bauman. Op. Cit. p. 68: “Então a reciprocidade é o atributo vital
que a moralidade não possui, mas deve possuir, se se quisesse que ela
fosse universalizável”.
650
O que, de certo modo, satisfaz a exigência de Lévinas, citado por
Bauman. Op. Cit. p. 132: “[...] esse é o domínio do Estado, da Justiça,
da política. A Justiça difere da caridade pelo fato de ela permitir a
requer, em sua alteridade, que a reciprocidade seja absolutamente
benevolente, muito além de qualquer débito entre as partes, pois é
do caráter mesmo da amizade prescindir do débito, do algo devido:
Pois, a justiça tem por objeto os atos relativos a
outrem, mas levando-se em conta o débito legal; ao
passo que a amizade leva em conta um débito amigável e
moral, ou melhor, o benefício gratuito, como diz o
Filósofo.
651
Num diálogo epistolar, Umberto Eco
652
nos faz notar a
implicação alterativa no mesmo fato ético. Aliás, para ele, a
implicação alterativa tem sua razão de ser porque o outro é o seu
ponto fundante.
A constatação e a reflexão sobre esse fato radical
certamente levaram Tomás de Aquino a incluir a amizade entre as
partes potenciais da virtude da justiça. Também deve ter efetuado
essa inclusão levado pelo caráter alterativo da amizade — um certo
débito e, ainda, pelo tanto que ele havia considerado de
diverso entre ambas, qual seja, a excelência da amizade sobre a
justiça:
Esta virtude [a amizade] faz parte da justiça, por lhe
estar anexa, como à virtude principal. Pois, tem de
comum com a justiça o ser, como ela, relativa a
terceiro. Mas, separa-se da idéia da justiça por não
implicar a noção plena de débito, que obriga um para
com o outro pelo débito legal, cujo pagamento a lei
obriga; nem por qualquer outro débito resultante de
algum benefício recebido; mas concerne a um débito
de honestidade mais da parte e que possui essa
intervenção de alguma forma de igualdade e medida, um conjunto de normas
sociais estabelecidas de acordo com o juízo do Estado, e assim também da
política. O relacionamento entre mim e o outro deve agora deixar espaço
para o terceiro, um juiz soberano que decide entre dois iguais”.
651
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 23, 3, ad 1um, p. 2201:
“Nam iustitia est circa operationes quae sunt ad alium sub ratione
debiti legalis, amicitia autem sub ratione cuiusdam debiti amicabilis et
moralis, vel magis sub ratione beneficii gratuiti, ut patet per
philosophum, in VIII Ethic”.
652
ECO; MARTINI. Em que crêem os que não crêem? 7
a
. ed. Rio: Record,
2002, p. 83: “A dimensão ética começa quando entra em cena o outro. Toda
lei, moral ou jurídica, regula relações interpessoais, inclusive aquelas
com um Outro que a impõe. [...] não se trata, porém, de uma vaga
propensão sentimental, mas de uma condição fundadora”.
virtude, do que de outrem, e que o leva a lhe fazer ao
outro o que a si mesmo quer que lhe faça.
653
Martínez Barrera
654
, citando Gillon, levanta a questão de,
em Tomás de Aquino, haver duas considerações, aparentemente
“problemáticas”, sobre a amizade. Uma da amizade enquanto ato e,
outra, da amizade enquanto hábito ou virtude. A posição de Gillon,
apresentada por Martínez Barrera, é a de que, no artigo 5 da
questão 23 da Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teológica,
Tomás reflete sobre a amizade no sentido de virtude no contexto
de virtude da caridade e não como ato. O artigo, efetivamente,
está tratando da virtude sobrenatural da caridade, e o Angélico
lança mão da analogia com a amizade, no sentido, também, de
virtude moral, para matizar suas especificidades. De qualquer
modo, a opção de Barrera é por um interesse “político” da amizade
por sua oposição e semelhança com a virtude da justiça que, de
certo modo, supera a aporia.
Tudo vem ao encontro no sentido de reforçar a necessidade
de ambas à vida comunitária e implica a precedência da justiça
relativamente à amizade para o bem-estar social
655
. Conquanto
653
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 114, 2, c, p. 2899:
“[...] haec virtus est pars iustitiae, inquantum adiungitur ei sicut
principali virtuti. Convenit enim cum iustitia in hoc quod ad alterum
est, sicut et iustitia. Deficit autem a ratione iustitiae, quia non
habet plenam debiti rationem, prout aliquis alteri obligatur vel debito
legali, ad cuius solutionem lex cogit, vel etiam aliquo debito
proveniente ex aliquo beneficio suscepto, sed solum attendit quoddam
debitum honestatis, quod magis est ex parte ipsius virtuosi quam ex
parte alterius, ut scilicet faciat alteri quod decet eum facere”.
654
MARTÍNEZ BARRERA. Op. Cit. p. 148s: Para Santo Tomás, la amistad
tiene algo de virtud moral, y en cuanto su objeto son las operaciones ad
alium, comunica con la justicia. Difere de ella, como vimos, en que la
justicia es alterativa ‘sub ratione debiti legalis’. Pero en misma la
amistad no es una virtud distinta, sino más bien una consecuencia de la
virtud (Ver II-II, 23, 3, ad 1um; 106, 1, ad 3um). Sin embargo, en II-
II, 114 Santo Tomás habla de la amistad como de una virtud especial.
¿Habría pues una contradicción? No, en la medida en que la amistad
perfecta es consecuente a la virtud, mientras que hay una amistad
imperfecta llamada ‘afabilidad’ que es una virtud del caráter y
consiste en una corrección de maneras necesaria al mantenimiento del
orden comunitario. El hombre afable es aquel a quien se puede hablar, no
es un intratable o un iracundo, ni un aduldor complaciente (Eth. Nic.
1126b 11-1127a 6)”. (itálico do original)
655
Idem. Ibidem. p. 154: “Y para Tomás la amistad es superior a la
justicia en tanto objeto de la ciencia moral porque entre los amigos
reina ya la justicia, pero entre quienes no hay más que la justicia, no
tenhamos isso em vista, postulamos que o Angélico entende a
posição precedente no âmbito formalmente político. Mas, como
argumentaremos a seguir, julgamos que o Aquinate, pela formalidade
maior ou ulterior da vida humana, dá a relevância e preeminência à
amizade em relação à justiça dentro da Comunidade Política
656
,
visto ela ser um certo modo de amor, humano, útil para a vida
política, divino, perfectivo dessa mesma vida política e
conducente à Vida Sobrenatural.
Talvez por isso é que Santo Tomás de Aquino afirme que,
sem a amizade, a Comunidade Política não subsiste por muito
tempo
657
, o que é indiscutível, posto que, se as leis não formarem
no cidadão as virtudes e a amizade
658
entre elas —, as sedições,
motins e demais manifestações decorrentes da discórdia levarão o
convívio social à sua inviabilidade
659
. Também na Suma Contra os
Gentios, o Santo Aquinate declara que a amizade é imprescindível
para a vida social: “[...] é sobremodo necessário que haja na
sociedade amizade entre muitos”.
660
Contudo, é possível estabelecer a amizade, consoante o
pensamento de Santo Tomás, onde houver uma certa igualdade.
Podemos, ainda, nessa perspectiva, reproduzir o que ele afirma no
opúsculo Do Governo dos Príncipes, onde ele enaltece a amizade
denotando seu caráter de amálgama social:
siempre hay amistad. Pero de esto se concluye también el papel fundante
de la justicia respecto del orden político”. (itálico do original)
656
GONZÁLEZ. Op. Cit. p. 159: “La amistad nace cuando una mínima igualdad
ya está presente, en razón de lo cual puede decirse que presupone la
justicia; no obstante, la amistad va más allá de la justicia, la
trasciende es una virtud distinta y, en cierto modo, puede verse
como una cierta perfeccíon de aquella”.
657
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 114, 2, ad 1um, p. 2900.
658
Idem. Ibidem. II-II, 114, 1, c, p. 2898.
659
MARTÍNEZ BARRERA. Op. Cit. p. 148-149: “Lo significativo es que Santo
Tomás, retomando este pasaje [II-II, 114, 1, c.] de la Ética, señala la
importancia de esta amistad imperfecta para el mantenimiento del ordem
político. [...] La alusión al bien y al orden otorgan al texto citdo un
alcance politicamente más vasto que su propio comentario al pasaje
aristotélico (In IV Eth. 247-248; cfr. II-II, 114, 1, ad 1um). Debe
señalarse también que el análisis aristotélico de las virtudes políticas
continúa con la veracidad como medio entre la vanidad y la falsa
modestia, y que Santo Tomás escribe en II-II, 114, 2, ad 1um que la
manifestación de la verdad en la comunidad política es esencial para su
duración”. (itálico do original).
E, em primeiro lugar, parece que nada há, entre tudo o
que é do mundo, que se haja de preferir à amizade
honesta. Dela é que todos têm necessidade no trato de
todos os negócios [...]. Ora, toda amizade se funda
nalguma comunhão. Vemos, verdadeiramente, unirem-se
pela amizade aqueles que se afinam pela origem
natural dos costumes, pela comunhão de qualquer
sociedade.
661
E reforça essa linha de pensamento nos Comentários à
Ética a Nicômaco de Aristóteles, onde reconhece uma certa
artimanha de alguns legisladores em manter alguma amizade, mesmo
em detrimento da justiça, por verem nela maior “segurançacontra
sedições ou demais desordens do que na mesma justiça
662
. Também,
logo depois, assinala que a amizade produz um laço tão forte entre
os homens, que passa a haver certa identidade entre os elementos
da Comunidade Política, decorrente de uma forte união entre eles,
que a justiça torna-se, relativamente, supérflua, pois se não
justiça para consigo mesmo, pelo amor a si próprio, não haverá
justiça entre esses cidadãos:
Et dicit quod, si aliqui sint amici, in nullo
indigerent justitia proprie dicta, quia haberent omnia
quasi communia, cum amicus sit alter ipse; non est
autem justitia ad seipsum. Sed si sint justi,
nihilominus indigent amicitia ad invicem. Et illud
quod est maxime justum videtur esse conservativum et
reparativum amicitiae. Multo ergo magis ad moralem
pertinet considerare de amicitia quam de justitia.
663
Tanto a unidade, quanto a paz e a ordem são os mais belos
frutos resultantes da própria justiça, cujo laço perfectivo é esse
sentimento nobre de benevolência que é a amizade, pela qual o
660
TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. 1990, III, 125, 5, p. 615.
661
Idem. Do Reino ou Do Governo dos Príncipes ao Rei de Chipre. 1997, L.
1, c. 11, nº. 33, p. 152: “Primo namque inter mundana omnia nihil est,
quod amicitiae dignae praeferendum videatur. Ipsa namque est quae
virtuosos in unum conciliat, virtutem conservat atque promovet. Ipsa est
qua omnes indigent in quibuscumque negotiis peragendis. […] Omnis autem
amicitia super aliqua communione firmatur. Eos enim qui conveniunt, vel
per naturae originem, vel per morum similitudinem, vel per cuiuscumque
societatis communionem, videmus amicitia coniungi”.
662
Idem. In VIII Ethic. lect. 1, nº. 5. In: Corpus Thomisticum. CD-ROM,
2003.
663
Idem. Ibidem. lect. 1, nº. 6. In: Corpus Thomisticum. CD-ROM, 2003.
amigo é visto como um alter ipse
664
, aquele a quem queremos,
maximamente, o bem.
665
Sem sombra de vidas, a justiça política é
suficiente para produzir na Comunidade Política a concórdia. Não
obstante isso, o fim da própria Comunidade tomasiana não é
criar laços puramente formais entre os cidadãos, talvez, como
presenciamos hoje. Isso foge da realidade na qual o Aquinate vivia
em sua Ordem religiosa e pensava ser uma certa semelhança da vida
política. Para que a Sociedade Política tivesse perenidade, julga
necessário haver nela algo que una os cidadãos, como aos cristãos.
A similaridade com os escritos de Aristóteles, mesmo que
notória, mais uma vez engana. A letra, de fato, é do Estagirita,
mas são bem outros os parâmetros do Aquinate
666
. Portanto, o
horizonte histórico e político de ambos, não obstante a profunda
semelhança conceitual, são bem diversos. A “natureza para o
Estagirita é onde ele encontra motivos para admitir toda espécie
de desigualdade social, e a “pólis” é o espaço máximo de
completude humana e é, também, o lugar adequado para essa mesma
desigualdade, em torno de cuja existência, inclusive, gira a
cidade
667
. Bem, outra é a perspectiva e orientação de Tomás,
conquanto ele tenha estabelecido um equilíbrio
668
para a tensão
664
Idem. Suma Teológica, 1980, I-II, 28, 1, c, p. 1232. Veremos mais
abaixo esta passagem do Aquinate.
665
GONZÁLEZ. Op. Cit. p. 159s: “La razón que da Santo Tomás es que el
amigo es como un ‘segundo yo’, y, propriamente, no se puede hablar de
justicia con uno mismo. Ciertamente, no es un ‘segundo yo’ en sentido
literal, pues se mantiene la distinción de personas; sin embargo, esas
personas distintas se caracterizan por llevar una ‘vida común’. Hasta
tal extremo es esto caracterítico de los amigos, que la misma perfección
de su amistad se mide, precisamente, por la intensidad con que viven en
común alegrías, penas, etc”.
666
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 116s: “Tomás de Aquino [...] é
um cristão, em cuja bagagem cultural palpita uma milenar visão de homem
e de mundo que não necessariamente coincide com a do grego”.
667
Idem. Ibidem. p. 116: Tratar, porém da vida na cidade, para o
Filósofo é tratar da desigualdade natural entre os humanos, pois aqueles
que nela residem são diferentes entre si por natureza: uns são cidadãos
outros escravos; uns com plenos direitos, outros são artesãos, ou
camponeses, e pouco diferem dos escravos; ou são estrangeiros, aos quais
não compete a cidadania; uns são homens que vão à ágora e às
assembléias, outros são mulheres, cuja obrigação é com o lar, não com o
debate sobre a coisa pública”.
668
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I. 1993, p. 40: “Com efeito, o Doutor
Angélico tentará construir um equilíbrio delicado e complexo entre a
consistência da natureza humana essencial ao cosmocentrismo antigo e a
entre a visão peripatética, a visão estóica e a visão cristã do
homem, da política e do mundo
669
—, cujos conteúdos serviram de
postulados à teoria medieval do Estado, não no sistema do
Angélico
670
.
Nesse sentido, é nossa proposição maior que, aquilo que
corresponde em Aristóteles à Política, corresponde em Santo Tomás
à Ética. E não apenas à Ética tal como foi pensada pelo Filósofo
grego e pelos estóicos, mas corresponde a uma Ética cristã, ou,
mais concisamente, a uma Teologia
671
. De fato, devemos observar que
no Estagirita é a Política que ocupa o lugar de supremacia no
saber prático
672
, no Angélico, pelo lastro cristão e agostiniano
que o envolve, a ciência arquitetônica não é a Política, pois,
como já vimos, a liso esgota o indivíduo.
Com isto queremos postular que, pela dupla ordenação da
natureza humana, a destinação à Bem-Aventurança Celeste é o
verdadeiro e profundo motivo da criação e existência do homem. É
bem verdade que todo o seu “aparato” natural, orgânico e
espiritual, enquanto “perfeito” em sua ordem pois conta da
vida humana —, é incapaz de lhe proporcionar algo além de uma vida
humana mesmo em nível preternatural cheia de “altos e baixos”
quanto à consecução da colimada verdadeira felicidade:
[...] poderia parecer a alguém que o homem jamais
atingirá esse estado, no qual o intelecto humano se
descentração do homem histórico implicada no teocentrismo cristão”.
(itálico do original).
669
Idem. Ibidem. p. 40: “O pensamento de santo Tomás, no seu esforço
perseverante de integração da moral antiga, sobretudo da moral
aristotélica, ao personalismo cristão, encaminhará a solução do problema
numa direção diferente. [...] É nessa direção de pensamento que se
manifestará o caráter ‘epocal’ da sua obra, que vem a ser sua
significação para nós e sua presença no nosso próprio horizonte
histórico-cultural”.
670
CASSIRER. O Mito do Estado. São Paulo: Codex, 2003, p. 134: “A ‘teoria
medieval do Estado’ foi um sistema coerente baseado em dois postulados:
o conteúdo da revelação cristã e a concepção estóica da igualdade”.
671
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 117: “A nostra philosophia
christiana de Agostinho é um saber a respeito de Deus e do homem que se
inspira na revelação bíblica e se traduz na reflexão da Teo-logia: o
lógos sobre Deus revelado. Esta é a ciência das ciências e, neste
sentido, a verdadeira ciência arquitetônica”. (itálico do original).
672
Idem. Ibidem. p. 116: “a ciência arquitetônica da Política o saber
supremo da Filosofia Prática resolve-se em um tratado da arquitetônica
desigualdade entre os humanos”.
une imediatamente à essência divina como o intelecto
ao inteligível, porque é imensa a distância das duas
naturezas. Assim sendo, o homem se cansaria de buscar
a bem-aventurança, pressionado pelo desespero.
673
Para Tomás de Aquino, o objetivo absoluto de toda a ordem
cósmica é a união do homem com Deus, na visão beatífica, cujo
auxílio, magnanimamente, Deus oferece ao homem e o colocou à sua
disposição, a graça
674
(e a lei divina
675
). Portanto, somente com a
iniciativa divina é que o homem chega a seu verdadeiro destino
676
,
cujo desejo se veria frustrado caso Deus dispusesse doutro modo:
[...] consistindo a felicidade última do homem na sua
altíssima operação, que é o intelecto, se o intelecto
criado não pudesse nunca ver a essência de Deus, ou
não alcançaria nunca a beatitude, ou esta haveria de
consistir em outro ser que não Deus, o que é contrário
à fé. Pois, a perfeição última da criatura racional
está no que é o princípio da sua existência, e um ser
perfeito na medida em que atinge o seu princípio.
[...] é ínsito ao homem o desejo natural de conhecer a
causa, depois de conhecido o efeito, nascendo daqui a
admiração. Se, portanto, a inteligência da criatura
racional não pudesse atingir a causa primeira das
coisas, seria vão o desejo da natureza.
677
673
TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. 1990, L. IV, c. 54, nº. 1, p.
826: “Posset autem alicui videri quod homo ad hunc statum nunquam possit
pertingere quod intellectus humanus immediate ipsi divinae essentiae
uniretur ut intellectus intelligibili, propter immensam distantiam
naturarum: et sic circa inquisitionem beatitudinis homo tepesceret, ipsa
desperatione detentus”.
674
CASSIRER. Op. Cit. p. 144: A visio beatifica, a visão mística de
Deus, continua sendo o objetivo absoluto e esse objetivo depende
sempre de um ato de graça divina”.
675
Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 91, 4, c, p. 1742s.
676
Idem. Suma Contra os Gentios. 1990, L. IV, c. 54, nº. 1, p. 826: “Em
primeiro lugar, deve-se dizer que a Encarnação de Deus foi um
eficacíssimo auxílio para o homem que busca a bem-aventurança. Ora,
acima foi demonstrado que a perfeita bem-aventurança humana consiste na
imediata visão de Deus”.
677
Idem. Suma Teológica. 1980, I, 12, 1, c, p. 87: “Cum enim ultima
hominis beatitudo in altissima eius operatione consistat, quae est
operatio intellectus, si nunquam essentiam Dei videre potest intellectus
creatus, vel nunquam beatitudinem obtinebit, vel in alio eius beatitudo
consistet quam in Deo. Quod est alienum a fide. In ipso enim est ultima
perfectio rationalis creaturae, quia est ei principium essendi, intantum
enim unumquodque perfectum est, inquantum ad suum principium attingit.
[…] Inest enim homini naturale desiderium cognoscendi causam, cum
intuetur effectum; et ex hoc admiratio in hominibus consurgit. Si igitur
intellectus rationalis creaturae pertingere non possit ad primam causam
A ciência que trata vimos disso ultrapassa os
horizontes do raciocinar e inteligir humanos. Esta ciência é
ciência sobre Deus e quanto a Ele se relaciona, máxime quanto
envolve ao homem.
Sob este prisma, Santo Tomás faz Aristóteles “concordar”
com a visão cristã principalmente no comentário à Ética de
Aristóteles
678
, mas também na Suma Teológica
679
sobre uma certa
igualdade necessária entre os homens.
A amizade se apóia, por conseguinte, na igualdade
realizada pela ordem da justiça. Efetivamente, ela é a realização
do direito, e este se funda, em sua totalidade, na igualdade,
“aritmética” e “geométrica
680
. Essa igualdade configura-se como
princípio da amizade e como culminância da justiça. Assim,
consoante os modos de igualdade, firmam-se os laços de amizade
que, de acordo com esses mesmos laços, se diversificam e se
especificam:
Ora, há tantas amizades diversas quantos o os seus
diversos fins. Daí, três espécies de amizade: a útil,
a deleitável e a honesta. De outro modo, a amizade se
diversifica pela diversidade de comunicação dos
sujeitos em que ela se funda. Assim, uma é a amizade
para com os consangüíneos; outra, para com os
concidadãos ou os estrangeiros. Das quais, a primeira
se funda na comunicação natural; a outra na
comunicação civil, ou na que é própria dos
estrangeiros, como claramente diz o Filósofo.
681
Mas a tentativa resulta muito relativa, pois, como
vimos, o homem para o Filósofo é desigual por natureza, enquanto
rerum, remanebit inane desiderium naturae. Unde simpliciter concedendum
est quod beati Dei essentiam videant”.
678
Idem. In VIII Ethic. lect. 7, nº. 8. in: Corpus Thomisticum. CD-ROM,
2003. Passim.
679
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 61, p. 1473ss. Passim.
680
Idem. Ibidem. I-II, 61, p. 1473.
681
Idem. Ibidem. II-II, 23, 5, c, p. 2203s: “Diversae autem amicitiarum
species accipiuntur quidem uno modo secundum diversitatem finis, et
secundum hoc dicuntur tres species amicitiae, scilicet amicitia utilis,
delectabilis et honesti. Alio modo, secundum diversitatem
communicationum in quibus amicitiae fundantur, sicut alia species
amicitiae est consanguineorum, et alia concivium aut peregrinantium,
quarum una fundatur super communicatione naturali, aliae super
communicatione civili vel peregrinationis; ut patet per philosophum, in
VIII Ethic”.
para o Aquinate, em sua ciência arquitetônica, a Teologia, os
homens, por filiação divina, gozam de igualdade perante esse Pai,
O qual abre a possibilidade do Seu convívio a todos quantos o
queiram.
682
Segundo o pensamento do Santo Doutor, a igualdade da
constituição substancial dos seres humanos, com a qual ele se
identifica com Aristóteles, é completada pela igualdade natural
num âmbito muito maior, porque a igualdade dos homens entre si, no
pensamento do Aquinate, é fruto da vontade positiva de Deus, não
apenas da natureza ontológica
683
. A igualdade entre os homens
decorre de que todos, indistintamente, homens e mulheres, são
criados à imagem e semelhança de seu próprio Deus Criador
684
.
Esta concepção, de longe, ultrapassa qualquer analogia
entre o efeito e sua causa prevista na filosofia de Aristóteles
—, porque na visão de Tomás, a semelhança entre o homem e seu
Criador chega ao ponto de o primeiro gozar do convívio d’Este
último para satisfazer o desejo mais profundo do homem viver com
Deus
685
, ressalvando-se, é claro, a condição de que isto, pela
própria ordem do criado, não se nesta vida, mas na vindoura
686
.
Não obstante se tenha isso em mente, mais abaixo trataremos de um
682
DE BONI. Op. Cit. p. 117: “os homens são filhos do mesmo pai, iguais
entre si e chamados todos à salvação. ‘Não judeu, nem grego; não
servo, nem livre; não há varão, nem mulher. Vós todos sois um em Cristo
Jesus’ (Gl 3, 28). A pólis da salvação não faz distinção entre pessoas,
ou melhor, como, pelos anos 200 de nossa era, já anota Minúcio Félix, um
dos primeiros escritores cristãos: ‘Por nascimento somos todos iguais,
distinguimo-nos somente pela virtude’. Esta idéia de igualdade é
iterativa na Patrística, não havendo pensador cristão dos primeiros
séculos que a ignore”. (itálico do original).
683
Idem. Ibidem. p. 118: Para Tomás de Aquino, a natureza, no sentido
daquela força interior que faz com que as coisas sejam o que são, é
expressão da vontade criadora de Deus, pela qual os homens foram criados
todos iguais entre si”.
684
Idem. Ibidem. p. 118: “Do mesmo modo, ancorado no texto bíblico,
[Tomás] afirma que o homem é imagem de Deus; mas se aquilo que nos torna
imagem do criador é a nossa natureza intelectual, então tanto no homem
como na mulher existe do mesmo modo tal imagem, porque a natureza
intelectual é a mesma em ambos, não havendo, a este nível, distinção
entre sexos”.
685
AQUINO. A Remodelação da Ética Clássica Greco-Romana por Tomás de
Aquino. FILOSOFIA UNISINOS, Porto Alegre, v. 2, nº. 3, p. 245, 2001:
desiderium naturale videndi Deum [...]”.
686
Idem. Ibidem. p. 245: “Se, por um lado, esse desejo é natural ao ser
humano, por outro lado, o êxtase que lhe é inerente não se realiza nesta
vida, e sim na vida futura”.
modo real, conquanto imperfeito na criatura, no qual o homem,
nesta vida, participa, a seu modo, da vida divina, pela caridade.
Voltando nosso foco para o convívio humano dentro da
Comunidade Política, para o Doutor Angélico, a amizade e,
principalmente, a política no pensamento tomasiano são
eminentemente holísticas, porque implicam transcender os limites
convencionais que separam os homens
687
.
Nesse âmbito, a função mais importante do legislador
terreno será, consoante tudo o que foi dito, estabelecer um tipo
de laço capaz de unir, numa vontade, os concidadãos,
analogamente ao que pretende a Lei Divina que une os homens com
Deus: “Pois, assim como a intenção principal da lei humana é
procurar a amizade dos homens entre si, assim a da lei divina é
constituir principalmente a amizade entre o homem e Deus”.
688
Visto essa discussão se dar no contexto da Ética
tomásica, parece-nos proveitoso inserir, neste momento, algumas
reflexões sobre uns pontos sumários do pensamento de Agostinho
quanto ao que ele discorreu, na obra A Cidade de Deus, sobre a
vigência de dois amores capazes de instituir duas cidades diversas
e coexistentes
689
, cuja leitura, entre outras, embasou Tomás para
suas próprias reflexões.
Antes de trabalharmos a questão ora proposta, faz-se
mister salientar que, seguindo Cunha
690
, verificamos que uma
687
DE BONI. Op. Cit. p. 121: “Para Tomás, ao contrário, o bem comum,
sobre o qual se articulam as relações entre os homens, encerra consigo a
noção de que a amizade, por natureza, deve abranger a todos, pois o amor
que dela provém não deve unir apenas os indivíduos, enquanto
particulares, ou os cidadãos entre si, mas, e acima de tudo, ela deve
expandir-se entre todos os moradores de todas as cidades”.
688
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 99, 2, c, p. 1801.
689
CUNHA. O Movimento da Alma. Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 17:
“Conforme seus amores o homem dirige-se para diferentes lugares,
conforme seus amores desenrola-se sua vida; em uma escala maior, podemos
também compreender a história através deles. Na Cidade de Deus vemos o
surgimento de duas cidades conforme dois amores (XIV, 28); o amor
próprio funda a cidade terrena, e o amor a Deus a celestial”.
690
Idem. Ibidem. p. 15, n. 3: “No De Civitate Dei XIV, 6, Agostinho
defende o uso de amor, dilectio e charitas como sinônimos [...]. Apesar
dessa afirmação, encontramos em algumas obras agostinianas uma variação
no emprego desta terminologia. Por exemplo, na questão 35 (De Diversis
Quaestionibus 83, 35, 2), escrita durante os anos 388-395/6 (portanto
anterior ao De Civitate Dei, do ano de 413), as palavras charitas e
dilectio são reservadas ao amor bom [...]. [...] conforme E. Gilson
certa variação no pensamento agostiniano da acepção de amor, não
obstante ao menos da Cidade de Deus o termo amor ser
entendido, mormente, como caridade
691
.
Fazendo aqui um parêntese, pensamos ser essa a opção de
Tomás ao efetuar sua própria síntese do pensamento agostiniano,
embora na Segunda Parte da Segunda Parte, Questão 23, Artigo 2,
sed contra, o Aquinate se valha da acepção agostiniana encontrada
na obra A Doutrina Cristã: “Chamo caridade ao movimento da alma
que nos leva a gozar de Deus em si mesmo”. Davies
692
vê, nesta
opção pelo texto agostiniano, uma natural continuidade do que
Tomás havia postulado imediatamente antes na solução do artigo
1, bem como a conexão disso com a visão tomasiana da nova Lei do
Evangelho.
Feito o parêntese, precisamos esclarecer, no entanto,
que, na obra A Doutrina Cristã
693
de Santo Agostinho, amor não é,
exatamente, o mesmo que caridade. Pois, pelo termo “amor”,
Agostinho entende, aqui, um certo desejo que pode ser dirigido,
tanto a Deus ser eterno e imutável que comunica essas
propriedades ao amor quanto às coisas mundanas perecíveis,
consoante as vicissitudes da vida. No primeiro momento, o amor é
referido a Deus e, portanto, é entendido no sentido de caridade;
no segundo momento, amor é referido ao temporal e possui o
mesmo sentido de cupidez (cupiditas).
[...], visto que amores bons ou maus e visto que amor e charitas são
termos correspondentes, deve haver também caridades boas ou más, mas
excepcionalmente Agostinho fala em caridades ilícitas. Por fim, ainda
conforme Gilson, apesar de serem os termos correspondentes, o termo
amor, segundo o próprio Agostinho, seria o mais adequado para se referir
ao amor do bem e do mal; o termo dilectio, apesar de se referir também
ao amor desregrado, designaria entretanto o amor ao bem [...]”.
(itálicos do autor).
691
Idem. Ibidem. p. 16: “No De Civitate Dei XIV, 6, Agostinho defende o
uso de amor, dilectio e charitas como sinônimos [...]. O amor bom do ser
humano ao homem e a Deus é designado mais freqüentemente nas Escrituras
como charitas (De Civ. Dei, ibid) [...]”. (itálico do original).
692
DAVIES. The Thought of Thomas Aquinas. 1993, p. 290: “On this basis
Aquinas can go on to cite a definition of charity from Augustine.
‘Charity I call a movement of the soul towards enjoying God for his own
sake’. This ‘God for his own sake’ motif is especially worth noting, for
it lies behind what we have already found Aquinas saying about the New
Law or the Law of the Gospel”.
693
AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. São Paulo: Paulinas, 1991, I, 3-7, p.
53-57.
Mas, se retornamos à obra A Cidade de Deus (XIV, 5-7),
veremos que os dois sentidos são diversos, precipuamente, pelas
respectivas coisas amadas: o desejo carnal e mundano, ou cupidez,
cria um laço de desejo entre o ser humano e o mundo,
caracterizado, principalmente, pelo medo da perda do objeto
almejado. Por sua vez, a caridade, que se define pelo amor a Deus,
dispensa, por si mesma, o medo de perdê-lo pela sua perpetuidade e
constância, salvo se, por própria vontade, o queiramos.
Assim, Santo Agostinho emprega a noção de amor para
elucidar a idéia de caridade e poder, portanto, traçar a linha
demarcatória entre ambas as cidades. A perícope em questão é
consagrada como epígrafe e, por sua não menor beleza, deve ser
salientada:
Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até
ao desprezo de Deus a terrestre; o amor de Deus até
ao desprezo de si a celeste. [...] nesta servem
mutuamente na caridade: os chefes dirigindo, os
súditos obedecendo; aquela ama a sua própria força nos
seus potentados esta diz ao seu Deus: Amar-te-ei,
Senhor, minha fortaleza [...].
694
O amor, portanto, vem a ser esse sentimento que cumpre a
função, dentro da vida social, de colocar os cidadãos de ambas as
cidades dirigindo-os, respectivamente, a um desejo comum. Porém,
consoante cada um dos amores, constitui-se em um agrupamento
diverso de homens unidos pelo vínculo do mesmo amor. Decorre que o
número das cidades será tanto quanto for o número das espécies de
amor
695
.
O Santo Bispo de Hipona enumera, portanto, somente dois
tipos de amor dentro do convívio humano:
[...] do próprio gênero humano, que separamos em dois
grupos: o dos que vivem como ao homem apraz e o dos
que vivem como apraz a Deus. Em linguagem figurada
694
Idem. A CIDADE DE DEUS. 2000, XIV, 28, p. 1319. (itálico do original)
695
CUNHA. Op. Cit. p. 17: “Conforme seus amores o homem dirige-se para
diferentes lugares, conforme seus amores desenrola-se sua vida; em uma
escala maior, podemos também compreender a história através deles. Na
Cidade de Deus vemos o surgimento de duas cidades conforme dois amores
(XIV, 28): o amor próprio funda a cidade terrena, e o amor a Deus a
celestial”.
chamamos-lhes [mystice appelamus] também duas cidades,
isto é, duas sociedades de homens [...].
696
Os termos utilizados por Agostinho “como ao homem
apraz” e “como apraz a Deus” denotam, por um lado, o amor que
sela os homens ao redor das coisas mundanas e perecíveis e, por
outro lado, o amor que vincula os homens ao redor das coisas
divinas. Se assim é, como também entende Cunha, então para Santo
Agostinho o amor está intimamente ligado à sua finalidade e também
à vontade que é o que permite a força dos movimentos interiores no
homem
697
, que nele operam ao modo de força centrípeta
698
.
Dito de outro modo, a vontade determina os movimentos
internos do homem, consoante seu amor para o objeto amado, o que
denota que esses mesmos movimentos serão bons ou maus de acordo
com o tipo de amor que os impulsiona
699
. O amor
700
do homem pode
levá-lo, por determinação da vontade, para atos nefastos de toda
sorte, mas também pode culminar no que, nas Confissões, Agostinho
chama de caridade:
Como falar da caridade que nos eleva pelo vosso
Espírito adejante sobre as águas? Que termos
empregarei? [...] Por outro é a vossa santidade que
nos eleva por amor da tranqüilidade, para junto de
Vós, onde o vosso Espírito paira sobre as águas, e,
para que cheguemos à excelsa paz, depois de ‘a nossa
alma ter atravessado as águas desta vida, que nada têm
de firme’.
701
Vimos que o amor age sobre a vontade que a catalisa para
um centro específico. A caridade, conforme propõe o Hiponense, é o
que impulsiona o homem para o verdadeiro repouso, paz e
696
AGOSTINHO. A CIDADE DE DEUS. 2000, XV, 1, p. 1323.
697
Para maior fundamentação ver NUNES COSTA. O problema do Mal. Porto
Alegre: Edipucrs, 2002, p. 296-307.
698
CUNHA. Op. Cit. p. 16: “a vontade é apresentada como movimento não
espacial, ora, o amor também, e é para Agostinho princípio de movimento
do ser humano, sua lei de gravidade, Ele é o peso dos seres humanos, que
os conduz para seus lugares”; Cf. AGOSTINHO. Op. Cit. XI, 28; Idem.
Confissões. São Paulo: Abril, 1980, XIII, 9, 10, p. 264.
699
AGOSTINHO. Op. Cit. XIV, 6, p. 1249.
700
CUNHA. Op. Cit. p. 18: “O amor, visto ser vontade e sendo esta um bem
médio, pode tanto dirigir-se para o bem quanto para o mal (isto é, para
o desprezo do que permanece). Na verdade, o amor às coisas que devem ser
amadas implica, tal como a boa vontade, seu direcionamento ao eterno”.
tranqüilidade, fazendo-o amar o que, mais que tudo, lhe convém.
Assim, os homens utilizarão as coisas terrenas depondo seu amor
nas eternas, onde se encontra o verdadeiro gozo. Esses homens,
como se sabe, constituem a Cidade Celeste, os quais submeteram
o amor de si ao amor de Deus. Passa, portanto, a haver uma
“trilogia” do amor, apontada na obra A Trindade, não obstante
sejam dois os termos da caridade:
O que é o amor ou caridade, tão louvada e exaltada
pela Escritura, senão o amor do Bem? O amor, porém,
supõe alguém que ame e alguém que seja amado com amor.
Assim, encontram-se três realidades: o que ama, o que
é amado e o mesmo amor. O que é, portanto, o amor,
senão uma certa vida que enlaça dois seres, ou tenta
enlaçar, a saber, o que é o que é Amado?
702
E este é um tema dos mais importantes para o Angélico,
pois somente com ela, a caridade, o homem é capaz de unir-se em
laço de verdadeira amizade com seu Criador e Senhor, não obstante
sua condição de criatura, e realizar conforme dissemos a
sua mais bela vocação implantada pelo próprio Deus.
Passamos, então, a considerar a maior de todas as
virtudes no pensamento de Santo Tomás de Aquino: a caridade.
4.2. A Caridade ou Amor Sobrenatural
Ao se perguntar pela causa do amor
703
, Gilson oferece a
chave pela qual podemos entender por que os diversos tipos de
amizade natural como a amizade sobrenatural nos são tão
importantes. Em sua resposta, ele assinala que o bem satisfaz
nossa tendência de tal modo que nos comprazemos e nos detemos
nesse bem
704
.
701
AGOSTINHO. Confissões. 1980, XIII, 7, p. 262.
702
Idem. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995, VIII, 10, nº. 14, p. 284.
703
GILSON. Op. Cit. p. 274: “What, then, is the cause of love?”
704
Idem. Ibidem. p. 274: “First […], the good, because our appetite for
something or our tendency toward something finds in the good the full
satisfaction that makes it pleasure and repose therein”.
outro aspecto relacional, inerente ao ser,
convertível
705
com o bem e inseparável deste, o qual embora não
venhamos a trabalhar com ele propriamente, pois lhe é convergente
deve ser considerado numa discussão maior
706
. Esse outro aspecto
relacional o belo possui não menor importância no pensamento
do Aquinate, e, para além de seu objetivismo, sem sair dele, como
pondera Eco, o homem o focaliza também sob a razão de belo
707
.
Abstraindo deste último aspecto, vamos considerar apenas
o primeiro, que é mais diretamente ligado à vontade, que é o bem,
e, assim, discutir sobre o amor, aqui entendido como caridade,
porque, consoante a observação de Davies
708
, Tomás postula que em
nós uma verdadeira tendência intelectual e volitiva ao bem,
cujo exercício próprio é querer esse bem na forma de amor:
[...] o primeiro movimento da vontade e de qualquer
virtude apetitiva é o amor. Ora, o ato da vontade e de
qualquer virtude apetitiva tende para o bem [...],
como para seus objetos próprios: para o bem,
principalmente e em si mesmo, como objeto da vontade e
do apetite [...]. Por onde e necessariamente, os atos
da vontade e do apetite, que dizem respeito ao bem,
naturalmente têm prioridade sobre os que dizem
respeito ao mal. [...] O amor visa ao bem em geral, já
obtido, quer ainda por obter; donde, o ser
naturalmente o primeiro ato da vontade e do apetite.
709
705
Para uma discussão da relação entre a beleza e a arte, no contexto do
medievo, recomendamos, entre outras, a obra de Umberto Eco. Arte e
Beleza na Estética Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 2000.
706
GILSON. Op. Cit. p. 274: “Added to the good, however, is that other
object of love, the beautiful. Between the good and the beautiful, both
inseparable from being, there is only a distinction of reason. In the
good, the will is at rest. In the beautiful, it is the sensible or
intellectual apprehension which is at rest”.
707
ECO. Op. Cit. p. 41: “Perante este objectivismo metafísico para o qual
a beleza é propriedade das coisas e reluz objectivamente sem que o homem
o possa determinar e impedir, existe um outro tipo de objectivismo para
o qual o belo, mesmo sendo uma propriedade transcendental do ser, se
revela no entanto numa relação em que o homem focaliza o objeto sub
ratione pulchri. Este segundo tipo de objectivismo será o de São Tomás”.
(itálico do original).
708
DAVIES. Op. Cit. p. 150: “[…] will, for Aquinas, is what we have when
intellectual creatures are drawn to or attracted by good, known or
understood. And this being drawn to or attracted by can, says Aquinas,
be called love”.
709
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 20, 1, c, p. 209s: “Primus
enim motus voluntatis, et cuiuslibet appetitivae virtutis, est amor. Cum
enim actus voluntatis, et cuiuslibet appetitivae virtutis tendat in
bonum […], sicut in propria obiecta; bonum autem principalius et per se
est obiectum voluntatis et appetitus,[…] Semper enim quod est per se,
E, mais adiante, ao discorrer sobre a graça no pensamento
de Santo Tomás, Davies
710
propõe a questão que naturalmente emerge
à inteligência, qual seja da “origem da caridade”. Sua resposta
não podia ser outra que não Deus.
711
Portanto, no pensamento do Frade Alventino, a questão da
caridade é uma questão da graça, desta, aquela depende. Mas
pergunta Davies
712
o porquê desta dependência, ao que ele responde
afirmando que para Tomás todas as coisas, as sobrenaturais
precipuamente, dependem de Deus.
Efetivamente, como vimos nos capítulos precedentes, Deus
é a fonte da graça e das virtudes sobrenaturais que, tendo a Deus
por objeto, capacitam o homem para a consecução de seu destino
último. É o que, como vimos, dispõe Santo Tomás: “Ora, esses
princípios se chamam virtudes teologais, quer por terem Deus como
objeto [...] quer por nos serem infundidos só por Deus [...]”.
713
Meneses, a quem seguiremos nos próximos passos, procura
mostrar o que ele denomina de “a ordem existencial do amor” que
não é outra coisa senão a relação do homem com o amor, enquanto
este pertence aos vários aspectos transcendentais do ser, no caso,
o bem e a verdade.
714
Efetivamente, os dois transcendentais verdade e bondade
referem-se às atividades imanentes da vida humana, quais sejam a
intelecção e a volição, cujas faculdades distintas entre si,
devido à distinção de seus objetos, coexistem na mesma pessoa
como foi visto no primeiro capítulo e resultam no operar e
prius est eo quod est per aliud. […] Amor autem respicit bonum in
communi, sive sit habitum, sive non habitum. Unde amor naturaliter est
primus actus voluntatis et appetitus”.
710
DAVIES. Op. Cit. p. 291: “source of Charity”
711
Idem. Ibidem. p. 292: “This attaining to God of which Aquinas speaks
is in his view, of course, only produced by God. That is because it is a
matter of grace. But it is worth spelling out why he thinks charity is a
matter of grace”.
712
Idem. Ibidem. p. 292: “Why does charity depend on grace? Aquinas’s
answer is that charity depends on grace for the same reason that any
other effect of grace does because it cannot be produced by anything
less than God”.
713
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 62, 1, c, p. 1481.
714
MENESES. Op. Cit. p. 62: “É uma comunhão de existência, uma união na
ordem do esse, e não da forma ou da essência”.
agir humano voluntários que o aperfeiçoam
715
. Observe-se que é no
agir humano que concorrem, concomitantemente, o cognoscitivo e o
apetitivo ou amável, conquanto é o cognoscitivo que diz respeito
ao verum
716
.
Isto quer dizer que a verdade consiste na identificação
intencional ou adequação entre o cognoscente e o cognoscido. Deste
modo, o conhecimento não é outra coisa senão a assimilação
intencional entre sujeito e objeto, onde ambos se identificam no
sujeito, embora o objeto sempre seja reconhecido como “um outro”
no próprio ato. Esta alteridade é requerida em todo o momento do
processo psicológico do conhecimento humano.
Ao contrário, o amor requer a saída do sujeito de si
mesmo rumo ao termo de seu ato que é o ser amado, e, assim, a
identidade se para fora do sujeito. Nesta realidade, dois
aspectos concorrem: o de bem e o de fim
717
.
Levada essa reflexão ao tema do qual vimos tratando, não
podemos senão pontuar que a parte motora e perfectiva final do ato
humano está no amor, que o faz sair de si rumo a seu maior bem e
fim último que é Deus. Isto marca o encontro entre os aspectos de
causa e fim atribuídos, com propriedade, a Deus que difunde
analogicamente no efeito a criatura humana, mais excelentemente
— suas propriedades
718
.
715
Idem. Ibidem. p. 62: “o Bonum e o Verum conotam ambos no ser a sua
aptidão de perfazer um sujeito respectum perfectivi’”. (itálico do
original).
716
Idem. Ibidem. p. 63: “O verum está no espírito, e é atribuído às
coisas pela sua conveniência, ao menos eventual, com o intelecto.
Impossível defini-lo sem mencionar a faculdade que aperfeiçoa”. (itálico
do original).
717
Idem. Ibidem. p 63: “Tal, precisamente, a ordem do bem: o bem está nas
coisas. Perfazer desta maneira um ser é representar a seu respeito a
função de fim. O conceito de fim entra, pois, em toda a definição justa
do bem, por isso o Filósofo preza tanto a fórmula: ‘Bonum est quod omnia
appetunt’ (O bem é o que todas as coisas desejam)”.
718
Idem. Ibidem. p. 63: “A rmula dionisiana: ‘bonum est diffusivum sui
esse’ (o bem é difusivo de si) parecia referir o bem à causa eficiente.
Santo Tomás observa que expandir, diffundere, pode dizer-se, em sentido
amplo, da causa final. É bem neste sentido que precisa entender-se no
caso. A causa eficiente comunica ao efeito apenas uma semelhança formal;
o fim, ao contrário, é de ordem existencial: ‘finem consequitur secundum
totum esse suum’ (obtém o fim segundo todo o seu ser); ora, tal é
justamente a ordem própria do bem”. (itálico do original).
Neste prisma é que se entende que, no pensamento
tomasiano, o homem sai de si, tende a Deus em seu Ser mesmo e, em
se realizando a união verdadeira, une-se ao Criador em Sua difusão
do bem d’Ele mesmo, da qual o homem vem participar. Isto denota
que o ato mais eminentemente humano é o amor do homem por seu fim
último verdadeiro, como ato voluntário e completivo de sua
natureza.
Na filosofia do Frade Pregador, a mesma potência que
diferencia radicalmente o homem dos demais animais é o que o
coloca na perspectiva do amor. A dileção, como vimos mais acima, é
a propulsora de todas as potências sensitivas e intelectuais
rumo ao bem:
Doutro modo como agente [...]. E desta maneira, a
vontade move o intelecto e todas as virtudes da alma
[...]. E a razão é que, em todas as potências ativas
ordenadas, a potência que visa ao fim universal move
as que visam a fins particulares. [...] Por onde, a
vontade, a modo de agente, move todas as potências da
alma para os atos próprios delas [...].
719
O amor, portanto, tende ao bem, sendo este o fim último e
causa última e mais excelente de todas as outras causas, cuja
consecução a quietude à vontade, na qual esta se deleita e
frui, naquele aspecto inerente ao bem como felicidade. Mas o
verdadeiro repouso de onde decorre a felicidade é a posse do bem.
Como o bem transcende a própria vontade que o apetece — quer dizer
o ama —, a felicidade será mais bem-definida em termos não da
posse da vontade, mas dela ser possuída pelo bem, aqui,
identificado com Deus, pois Ele é o bem verdadeiro capaz de, sendo
“possuído”, possuir
720
.
719
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 82, 4, c, p. 728: “Alio modo
dicitur aliquid movere per modum agentis [...] Et hoc modo voluntas
movet intellectum, et omnes animae vires. […] Cuius ratio est, quia in
omnibus potentiis activis ordinatis, illa potentia quae respicit finem
universalem, movet potentias quae respiciunt fines particulares. […]Et
ideo voluntas per modum agentis movet omnes animae potentias ad suos
actus [...]”.
720
MENESES. O Conhecimento Afetivo em Santo Tomás. 2000, p 68, 69: “A
‘existencialidade’ do amor é transcendental como o próprio amor, como o
próprio bem. [...] É a bondade do amor, a ágape do esse subsistens
[...]: fazer participar ‘ut ita dixerim, essendi naturam’ [...]. A união
Meneses, ao discorrer sobre o que ele chama de
“existencialidade do amor”, procura mostrar, seguindo o Comentário
ao Livro das Sentenças
721
, que Santo Tomás de Aquino reflete sobre
a questão do amor como transformação, ou seja, no sentido de
passagem de uma forma a outra ou, mais precisamente em sentido
afetivo, quando um dos amantes adquire a forma do amado e, por
isto, se transforma nela e com ela se identifica. Pelo amor,
portanto, o amante “torna-se” no amado, pela forma que dele tem.
do amor realiza uma intimidade para além do conhecimento conceitual, por
ser união com o ato de existir, que é, por sua vez, ‘illud quod est
magis intimum cuilibet rei, et quod profundis omnibus inest.’ [aquilo
que é mais íntimo a toda coisa e que está inerente mais profundamente a
tudo]”. (itálico do original)
721
TOMÁS DE AQUINO. In III Sent., d. 27, 1, 1. In: Corpus Thomisticum.
CD-ROM, 2003: “Similiter quando affectus vel appetitus omnino imbuitur
forma boni quod est sibi objectum, complacet sibi in illo, et adhaeret
ei quasi fixus in ipso; et tunc dicitur amare ipsum. Unde amor nihil
aliud est quam quaedam transformatio affectus in rem amatam. Et quia
omne quod efficitur forma alicujus, efficitur unum cum illo; ideo per
amorem amans fit unum cum amato, quod est factum forma amantis; et ideo
dicit philosophus 9 Ethic., quod amicus est alter ipse; et 1 Corinth. 6,
17: qui adhaeret Deo unus spiritus est. Unumquodque autem agit secundum
exigentiam suae formae, quae est principium agendi et regula operis.
Bonum autem amatum est finis: finis autem est principium in operabilibus
sicut prima principia in cognoscendis. Unde sicut intellectus formatus
per quidditates rerum ex hoc dirigitur in cognitione principiorum, quae
scitis terminis cognoscuntur; et ulterius in cognitionibus conclusionum,
quae notae fiunt ex principiis; ita amans, cujus affectus est informatus
ipso bono, quod habet rationem finis, quamvis non semper ultimi,
inclinatur per amorem ad operandum secundum exigentiam amati; et talis
operatio est maxime sibi delectabilis, quasi formae suae conveniens;
unde amans quidquid facit vel patitur pro amato, totum est sibi
delectabile, et semper magis accenditur in amatum, inquantum majorem
delectationem in amato experitur in his quae propter ipsum facit vel
patitur. Et sicut ignis non potest retineri a motu qui competit sibi
secundum exigentiam suae formae, nisi per violentiam; ita neque amans
quin agat secundum amorem; et propter hoc dicit Gregorius, quod non
potest esse otiosus, immo magna operatur, si est. Et quia omne violentum
est tristabile, quasi voluntati repugnans, ut dicitur 5 Metaphys; ideo
etiam est poenosum contra inclinationem amoris operari, vel etiam
praeter eam; operari autem secundum eam, est operari ea quae amato
competunt. Cum enim amans amatum assumpserit quasi idem sibi, oportet ut
quasi personam amati amans gerat in omnibus quae ad amatum spectant; et
sic quodammodo amans amato inservit, inquantum amati terminis regulatur.
Sic ergo Dionysius completissime rationem amoris in praedicta
assignatione ponit. Ponit enim ipsam unionem amantis ad amatum, quae est
facta per transformationem affectus amantis in amatum, in hoc quod dicit
amorem esse unitivam et concretivam virtutem; et ponit inclinationem
ipsius amoris ad operandum ea quae ad amatum spectant, sive sit
superius, sive inferius, sive aequale, in hoc quod dicit: movens
superiora et cetera”. (itálico do original).
Decorre, assim, que somente tal união porque faz ambos
os termos participarem um do outro propicia um verdadeiro
conhecimento. Santo Tomás assim o expressa: “Por onde, a sabedoria
infusa, que é um dom, não é causa, mas antes, efeito da
caridade”.
722
É preciso muito mais do que uma presença externa do
homem perante Deus, o que denota adoração, possível, até mesmo a
um grego não-cristão. Mas, para a realidade da caridade, faz-se
mister, como conditio sine qua non, que o homem partilhe,
realmente, da intimamente mesma vida divina.
723
Por isso, Tomás
precisa decolar do âmbito horizontal da filosofia e alçar vôo nas
asas da Teologia, cuja fonte é a Sagrada Escritura, que lhe
fornece a essência desse ato que, conquanto espiritual, é mais
real porque eterno da parte de Deus que qualquer união
humana.
724
De fato, a caridade é tida como a virtude mais importante
no pensamento tomasiano, ao modo da virtude da prudência, entre as
demais virtudes puramente humanas:
Por isso e necessariamente, mesmo entre as virtudes
teologais é mais importante a que mais de perto tem
Deus por objeto. [...] Enquanto que a caridade o busca
para nele satisfazer-se e não dele nos resultar algum
bem. Por onde a caridade sobreleva em excelência a
e a esperança, e por conseqüência as outras virtudes.
Assim como a prudência, concernente à razão, em si
mesma, vence em excelência todas as outras virtudes
morais [...].
725
722
Idem. Suma Teológica. 1980, II-II, 45, 6, ad 2
um
, p. 2404.
723
GILSON. The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas. 1994, p. 349:
“To be ‘in sympathy with’ the divine, as Dionysius says, that is, to see
it from within rater than from without, to be impregnated with it, to
absorb it into one’s very substance, it must be loved with a love of
friendship: ‘Sympathy with or connaturality with divine things is
brought about by charity which unites us with God’. This is why
supernatural Wisdom, whose essence has its seat in the understanding,
has its cause in the will. This cause is Charity”.
724
Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 45, 2, c, p. 2399.
725
Idem. Ibidem. II-II, 23, 6, c, p. 2205: “Propter quod oportet quod
etiam inter ipsas virtutes theologicas illa sit potior quae magis Deum
attingit. Semper autem id quod est per se magis est eo quod est per
aliud. […] sed caritas attingit ipsum Deum ut in ipso sistat, non ut ex
eo aliquid nobis proveniat. Et ideo caritas est excellentior fide et
spe; et per consequens omnibus aliis virtutibus. Sicut etiam prudentia,
quae attingit rationem secundum se, est excellentior quam aliae virtutes
morales […]”.
Todavia, a discussão sobre a caridade entra na
perspectiva do “outro lado da moeda” da amizade, não possível de
ser prevista por Aristóteles, para quem a amizade alcança,
unicamente, o horizonte humano, sendo vetada a possibilidade da
amizade com as divindades
726
. Por conta disso, a perspectiva cristã
de Tomás, por ter a caridade ou o amor unitivo de Deus com o
homem, muda radical e profundamente a perspectiva humanista de
Aristóteles e de toda a visão grega
727
. A realidade que fundamenta
esta visão possibilita a relação de amizade vertical do homem para
com esse Deus
728
.
Essa “mútua benevolência” é requerida, pois, numa relação
de amizade necessariamente alterativa e não menos recíproca —,
deve sempre haver um contraposto que caracterize a relação, mesmo
com Deus, sem embargo de nossa incongruência como um dos termos
— na amizade com Deus:
Mas também não basta a benevolência para haver a
amizade: é preciso um certo amor mútuo, porque um
amigo é amigo de seu amigo. Ora, essa mútua
benevolência se funda em alguma comunicação. E tal é o
caso do homem que comunica com Deus, porque ele nos
comunica a sua felicidade; e dessa amizade, em que
de fundar-se a amizade [...]. Ora, o amor fundado
nessa comunicação é a caridade. Por onde é manifesto,
que a caridade é amizade entre o homem e Deus.
729
726
DE BONI. Op. Cit. p. 120: “Assim, para Aristóteles, a amizade se
realiza ao nível humano, pois não podemos ser amigos dos deuses”. Cf.
ARISTÓTELES. Ética, 1987, VIII, 7, 1158b 35.
727
AQUINO. Op. Cit. p. 247: “A visão cristã do mundo e dos seres humanos,
ao enfatizar o amor de Deus à criação, remodela de maneira substantiva o
humanismo grego”.
728
DE BONI. Op. Cit. p. 121: “Para Tomás, pelo contrário, um espaço
vertical que possibilita ao homem abrir-se à amizade divina. Deus se
revela ao homem, manifesta-se como felicidade em si mesmo e como
possível felicidade para o homem, e com isto constitui-se um estado de
mútua benevolência entre ambos. Este é o amor de caridade que nos une a
Deus”.
729
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 23, 1, c, p. 2197. 2198:
“Sed nec benevolentia sufficit ad rationem amicitiae, sed requiritur
quaedam mutua amatio, quia amicus est amico amicus. Talis autem mutua
benevolentia fundatur super aliqua communicatione. Cum igitur sit aliqua
communicatio hominis ad Deum secundum quod nobis suam beatitudinem
communicat, super hac communicatione oportet aliquam amicitiam fundari.
[…] Amor autem super hac communicatione fundatus est caritas. Unde
manifestum est quod caritas amicitia quaedam est hominis ad Deum.”.
Essa amizade estabelece uma realidade nova no homem,
muito bem expressada por Gilson
730
, segundo o qual, nesta vida,
nenhuma outra coisa pode nos tornar co-participantes da vida
divina (sermos parentes de Deus) que a caridade. Realmente, por
iniciativa divina, o homem passa a ser “parente” de Deus, recebe,
mesmo ontológica, embora não indelevelmente, uma qualidade em sua
alma que lhe permite tal consórcio.
Esse convívio com Deus proporciona ao homem gozar dEle de
um modo “bivalente”, ou seja, relativamente ao querer a Deus com
duplo amor, o amor amicitiae e o amor concupiscentiae
731
. Este,
como um amor a algo sob o aspecto de bem não pessoal, pois “o
amamos para outrem e não absolutamente e em si mesmo”
732
; e aquele,
propriamente, como um amor a alguém, como pessoa, porque “a quem
amamos por amor de amizade amamos absolutamente e em si mesmo”
733
:
Como diz o Filósofo, amar é querer bem a alguém. Assim
pois o movimento do amor tende para um duplo termo: o
bem que queremos a alguém, seja esse a nossa própria
pessoa ou a de outrem; e a pessoa a quem o queremos.
Ora, ao bem que queremos para outrem diz respeito ao
amor de concupiscência; a pessoa a quem o queremos, ao
amor de amizade.
734
A título de ressalva, devemos ponderar que a reta ordem
entre ambos os amores o de concupiscência e o de amizade,
outrora existente na natureza humana — foi, conforme o mesmo Frade
730
GILSON. Op. Cit. p. 349: “Now it is only charity that can give man
kinship with God”.
731
Sabemos que Tomás fez um aporte do livro VIII da Ética a Nicômaco para
conceber os três amores possíveis, relativos a três tipos de bens.
Contudo, o “amor de benevolência”que se configura como amor ao outro,
é amor em sentido pleno. Os outros dois não são outros tipos dentro do
“gênero”amor. Mas é feita uma analogia de atribuição, sendo o amor
benevolente o analogado principal, visto que os outros são, mais
exatamente, desejos ou apetências.
732
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 26, 4, c, p. 1226.
733
Idem. Ibidem. I-II, 26, 4, c, p. 1226.
734
Idem. Ibidem. I-II, 26, 4, c, p. 1225: “[...] sicut philosophus dicit
in II Rhetoric., amare est velle alicui bonum. Sic ergo motus amoris in
duo tendit, scilicet in bonum quod quis vult alicui, vel sibi vel alii;
et in illud cui vult bonum. Ad illud ergo bonum quod quis vult alteri,
habetur amor concupiscentiae, ad illud autem cui aliquis vult bonum,
habetur amor amicitiae”. (itálico do original)
Pregador
735
, transtornada pelo pecado, passível, porém, de
restauração pela graça. Essa mesma sentença é partilhada por
Gilson
736
a partir dos termos usados por Santo Tomás de Aquino:
De Deus podemos receber duas espécies de bens: o da
natureza e o da graça. Na participação dos bens
naturais, que Deus nos deu, funda-se o amor natural,
pelo qual não somente o homem, na integridade da sua
natureza, ama a Deus sobre todas as coisas, e mais que
a si mesmo, mas também qualquer outra criatura, como
as pedras ou outros, que não têm conhecimento a seu
modo, isto é, com amor intelectual, racional, animal
ou, pelo menos, natural.
737
É oportuno considerar que no pensamento do Angélico, em
contraposição ao conhecimento, o amor é mais unitivo
738
. Nesta
questão, Tomás recebe toda a belíssima contribuição de
735
GONZÁLEZ. Op. Cit. p. 118, n. 109: “Para Santo Tomás, en el estado de
natureza íntegra, el hombre ama naturalmente a Dios más que a mesmo.
Esa situación cambia con el pecado, por el que comienzan a diferenciarse
un recto amor de y el amor próprio. Pero vuelve a ser possible por la
gracia. Sanado por la gracia, el hombre puede amarlo todo incluido a
mismo con el mismo amor de Dios (la caridad). Es decir, el hombre
es capacitado para amar su propia felicidad porque Dios lo quiere”. Ao
que ela acrescenta no mesmo lugar: “Esta observación es relevante sobre
todo para matizar las objeciones que, preferentemente desde posiciones
escotistas, se dirigen contra la fundamentacíon eudemista de la moral en
Tomás de Aquino”.
736
GILSON. Op. Cit. p. 350. “Perhaps we should say, should love Him,
because man’s nature is no longer sound. The first effect of Grace is to
restore this natural love of God above all things. It will not destroy
is but integrate it with the supernatural love of man for God”. (itálico
do original).
737
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 1980, II-II, 26,3, c, p. 2248: “[...]
a Deo duplex bonum accipere possumus, scilicet bonum naturae, et bonum
gratiae. Super communicatione autem bonorum naturalium nobis a Deo facta
fundatur amor naturalis, quo non solum homo in suae integritate naturae
super omnia diligit Deum et plus quam seipsum, sed etiam quaelibet
creatura suo modo, idest vel intellectuali vel rationali vel animali,
vel saltem naturali amore [...]”.
738
MENESES. O Conhecimento Afetivo em Santo Tomás. 2000, p 59: “A união
que o amor realiza, a intimidade que atinge, é expressa por Santo Tomás
em fórmulas encarecedoras da sua vantagem sobre o conhecimento. ‘Amor,
unitiva et concretiva virtus (amor, virtude unitiva e aglutinativa)
[...]”; DIONÍSIO. Dos Nomes Divinos. São Paulo: Attar, 2004, c. 4, §15
[180], p. 108: “‘Quanto falamos do amor quer divino, quer angélico, quer
intelectual, quer animal, quer natural, pensamos em uma força de
unificação e de conexão que move as coisas superiores a exercerem sua
providência para com as inferiores, e as iguais a entreterem uma relação
recíproca comum, e as inferiores, situadas no último lugar a voltarem-se
para as melhores e colocadas acima delas’”. passim. (colchetes do
autor).
Dionísio (Pseudo-Areopagita)
739
, com a qual Tomás constrói sua
argumentação, tanto no Comentário às Sentenças
740
, como na Suma
Teológica não sem a conciliação, ao seu modo, da concepção
peripatética de amor/amizade e a concepção estóico-cristã —,
conforme passamos a considerar logo em seguida.
739
DIONÍSIO. Dos Nomes Divinos. 2004, c. 4, §11ss[160], p. 102ss.
(colchetes do tradutor).
740
TOMÁS DE AQUINO. Super Sent. III, d, 27,1, 1, c. In: Corpus
Thomisticum, CD-ROM, 2003: “[...] amor ad appetitum pertinet; appetitus
autem est virtus passiva; unde in 3 de anima, dicit philosophus, quod
appetibile movet sicut movens motum. Omne autem passivum perficitur
secundum quod informatur per formam sui activi; et in hoc motus ejus
terminatur et quiescit; sicut intellectus, antequam formetur per forma
intelligibilis, inquirit et dubitat: qua cum informatus fuerit,
inquisitio cessat, et intellectus in illo figitur; et tunc dicitur
intellectus firmiter illi rei inhaerere. Similiter quando affectus vel
appetitus omnino imbuitur forma boni quod est sibi objectum, complacet
sibi in illo, et adhaeret ei quasi fixus in ipso; et tunc dicitur amare
ipsum. Unde amor nihil aliud est quam quaedam transformatio affectus in
rem amatam. Et quia omne quod efficitur forma alicujus, efficitur unum
cum illo; ideo per amorem amans fit unum cum amato, quod est factum
forma amantis; et ideo dicit philosophus 9 Ethic., quod amicus est alter
ipse; et 1 Corinth. 6, 17: qui adhaeret Deo unus spiritus est.
Unumquodque autem agit secundum exigentiam suae formae, quae est
principium agendi et regula operis. Bonum autem amatum est finis: finis
autem est principium in operabilibus sicut prima principia in
cognoscendis. Unde sicut intellectus formatus per quidditates rerum ex
hoc dirigitur in cognitione principiorum, quae scitis terminis
cognoscuntur; et ulterius in cognitionibus conclusionum, quae notae
fiunt ex principiis; ita amans, cujus affectus est informatus ipso bono,
quod habet rationem finis, quamvis non semper ultimi, inclinatur per
amorem ad operandum secundum exigentiam amati; et talis operatio est
maxime sibi delectabilis, quasi formae suae conveniens; unde amans
quidquid facit vel patitur pro amato, totum est sibi delectabile, et
semper magis accenditur in amatum, inquantum majorem delectationem in
amato experitur in his quae propter ipsum facit vel patitur. Et sicut
ignis non potest retineri a motu qui competit sibi secundum exigentiam
suae formae, nisi per violentiam; ita neque amans quin agat secundum
amorem; et propter hoc dicit Gregorius, quod non potest esse otiosus,
immo magna operatur, si est. Et quia omne violentum est tristabile,
quasi voluntati repugnans, ut dicitur 5 Metaphys; ideo etiam est
poenosum contra inclinationem amoris operari, vel etiam praeter eam;
operari autem secundum eam, est operari ea quae amato competunt. Cum
enim amans amatum assumpserit quasi idem sibi, oportet ut quasi personam
amati amans gerat in omnibus quae ad amatum spectant; et sic quodammodo
amans amato inservit, inquantum amati terminis regulatur. Sic ergo
Dionysius completissime rationem amoris in praedicta assignatione ponit.
Ponit enim ipsam unionem amantis ad amatum, quae est facta per
transformationem affectus amantis in amatum, in hoc quod dicit amorem
esse unitivam et concretivam virtutem; et ponit inclinationem ipsius
amoris ad operandum ea quae ad amatum spectant, sive sit superius, sive
inferius, sive aequale, in hoc quod dicit: movens superiora
[...]”.(itálico do original).
Estamos na questão 28, em seu artigo primeiro (Dos
efeitos do amor) da Primeira Parte da Segunda Parte da Suma
Teológica a partir da qual Tomás coloca os tipos principais de
união, consoante os tipos de amor:
É de dupla forma a união do amante com o amado. Uma
real, quando este está presencialmente naquele; outra
porém pelo afeto. [...] Ora, sendo o amor de duas
espécies o de concupiscência e o de amizade, um e
outro procedem de uma certa apreensão de unidade entre
o amado e o amante. Pois quem ama alguma coisa, quase
desejando-a, apreende-a como necessário ao seu bem-
estar. Semelhantemente, quem ama alguém por amor de
amizade quer-lhe o bem que quer a si mesmo, e por isso
o apreende como outro eu, enquanto lhe quer o bem, do
referido modo. E daí vem o dizer-se que o amigo é um
outro eu; e Agostinho: Bem disse aquele que considerou
o amigo como metade de sua alma.
741
Seguindo a sugestão proposta por Meneses
742
, percebemos uma
primeira espécie de união, a união amorosa, chamada de
“substancial”, causa do amor
743
, conforme o texto da resposta ao
segundo argumento. Depois, encontramos uma outra forma de união
secundum coaptationem affectus
744
de amor essencialmente
considerado.
745
E, por fim, o último dos tipos de união, neste
741
Idem. Suma Teológica, 1980, I-II, 28, 1, c, p. 1232: “[...] duplex est
unio amantis ad amatum. Una quidem secundum rem, puta cum amatum
praesentialiter adest amanti. Alia vero secundum affectum. [...] Cum
autem sit duplex amor, scilicet concupiscentiae et amicitiae, uterque
procedit ex quadam apprehensione unitatis amati ad amantem. Cum enim
aliquis amat aliquid quasi concupiscens illud, apprehendit illud quasi
pertinens ad suum bene esse. Similiter cum aliquis amat aliquem amore
amicitiae, vult ei bonum sicut et sibi vult bonum, unde apprehendit eum
ut alterum se, inquantum scilicet vult ei bonum sicut et sibi ipsi. Et
inde est quod amicus dicitur esse alter ipse, et Augustinus dicit, in IV
Confess., bene quidam dixit de amico suo, dimidium animae suae ”.
742
Idem. Ibidem. I-II, 28, 1, ad 2
um
, p. 1233: “Uma [união] o causa e
esta é substancial, no amor pelo qual nos amamos a nós mesmos; é porém
união de semelhança, no amor pelo qual amamos os outros seres [...]”.
743
MENESES. OP. Cit. p 59: “Uma [união], que é causa do amor. (União
substancial, no amor de si mesmo; união de semelhança, no amor de outros
seres)”
744
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 28, 1, ad 2
um
, p. 1233:
“Há outra união porém, na qual consiste essencialmente o amor, e esta se
funda na coaptação do afeto, e se assimila à união substancial, enquanto
o amante tem relação com o amado como se fosse consigo mesmo, pelo amor
de amizade, e como se fosse algo de si, pelo amor de concupiscência”.
745
MENESES. O Conhecimento Afetivo em Santo Tomás. 2000, p 59.
caso, trata-se da união real
746
, como efeito do amor, onde a
busca pela identificação entre amante e amado pela convivência.
747
Em conclusão, devemos assentir que, de todas essas formas
de união, a que melhor traduz a relação entre o homem e Deus é a
segunda forma,
748
como vemos no texto do Aquinate: “O amor se diz
força unitiva formalmente, por ser a própria união ou o nexo ou a
transformação pela qual o amante se transforma no amado e, de
certo modo, se converte nele”.
749
No tocante à relação de amizade entre o homem e Deus,
para a qual converge toda a nossa reflexão ora feita, o desejo do
homem impelido pela caridade deve ser todo ele voltado para Deus
em si mesmo, e tudo quanto quiser, deve querê-lo em união de
vontades com Deus, querendo do que Ele quer e não querendo o que
Ele não quer, pois nisto consiste a verdadeira amizade, cuja
comunhão do homem com Deus se realiza na contrapartida divina em
que Deus mesmo é a bem-aventurança do homem
750
.
Na continuidade do caminho que percorremos com Meneses
751
para desvelarmos a riqueza do texto tomasiano, vemos que o
resultado da caridade, ou dessa amizade entre o homem e Deus, não
pode ser outro senão o êxtase, conforme o Angélico sinaliza com
singular beleza e lirismo
752
— no Comentário às Sentenças:
746
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 28,1, ad 2
um
, p. 1233:
“Há por fim outra união, efeito do amor, e esta é a real, que o amante
busca no ser amado e que se funda na convivência do amor”.
747
MENESES. O Conhecimento Afetivo em Santo Tomás. 2000, p. 59.
748
Idem. Ibidem. p 59: “a mais importante é a segunda consideração”.
749
TOMÁS DE AQUINO. In III Sent., d. 27, 1, 1, apud MENESES. Op. Cit. p
59. (tradução).
750
GILSON. Op. Cit. p. 349-350: “A soul living by supernatural Charity is
no longer able to will anything but God Himself, or if is wants anything
else it can only be in union with His will. To love what God loves as He
loves it is indeed that ‘to will the same things, not to will the same
things’ (eadem velle, eadem nolle) in which friendship consists. […]
this friendship depends upon the fact that God shares with man a very
definite good, His beatitude, which is Himself”. (itálico do original).
751
MENESES. O Conhecimento Afetivo em Santo Tomás. 2000, p 96s: “Antes de
indagar a transposição possível no caso das substâncias separadas para o
espírito encarnado na intimidade do amor pessoal, vamos ver como o
‘êxtase’ do amor corresponde, ao menos analogamente, às condições
postuladas acima”.
752
Idem. Ibidem. p 97: “O caráter do amor está expresso [...] em termos
líricos”.
[...] no amor união do amante com o amado: faz
entrar o amante no íntimo do amado, e vice-versa, de
forma que nada fique no amante que não esteja unido
[...]. Portanto, o amante de certo modo penetra no
amado, e é nesse sentido que o amor se diz agudo. É
próprio do agudo, dividindo, chegar ao íntimo da
coisa. De modo análogo, o amado penetra o amante,
chegando ao seu íntimo. [...] Porém, como nada pode
transformar-se no Outro, a não ser na medida em que,
por assim dizer, se afasta de sua forma porque cada
um tem uma forma —, assim a divisão da penetração é
precedida por outra divisão pela qual o amante é
separado de si mesmo, tendendo para o amado... Por
isso se diz que o amor produz êxtase e que ferve, pois
o que ferve entra em ebulição para fora de si e
evapora. [...] é preciso que sejam excluídas pelo
amante as fronteiras que o mantinham em seus
limites.
753
O êxtase que, na proposta de Santo Tomás, é o cume da
união do humano com o divino, produz, no homem, a saciedade, ou,
mais exatamente, a quietude (quietatio)
754
, que o amor se no
âmbito da vontade, e é dela o desejo incansável pelo repouso
755
no
bem supremo: “O amor é ato produzido pela vontade, que importa
753
TOMÁS DE AQUINO. In III Sent., d. 27, 1, 1, apud MENESES. Op. Cit. p
97: “[...] in amore est unio amantis ad amatum, sed est ibi triplex
divisio. Ex hoc enim quod amor transformat amantem in amatum, facit
amantem intrare ad interiora amati, et e contra; ut nihil amati amanti
remaneat non unitum; sicut forma pervenit ad intima formati, et e
converso; et ideo amans quodammodo penetrat in amatum, et secundum hoc
amor dicitur acutus: acuti enim est dividendo ad intima rei devenire; et
similiter amatum penetrat amantem, ad interiora ejus perveniens [...]
Sed quia nihil potest in alterum transformari nisi secundum quod a sua
forma quodammodo recedit, quia unius una est forma, ideo hanc divisionem
penetrationis praecedit alia divisio, qua amans a seipso separatur in
amatum tendens; et secundum hoc dicitur amor extasim facere, et fervere,
quia quod fervet extra se bullit, et exhalat. [...] ideo oportet quod ab
amante terminatio illa, qua infra terminos suos tantum continebatur,
amoveatur [...]”. (itálico do original; tradução).
754
MENESES. Op. Cit. p. 99: “À saída (extasis) que o amor representa
corresponde uma chegada (quietatio); ao surto incontido, um espraiar-se
quieto e definitivo”.
755
Idem. Ibidem. p 102: “Parece, portanto, estabelecido que o amor põe
condições favoráveis para um contato espiritual e direto, além da
experiência comum do conhecimento abstrativo. E que torna o sujeito apto
a receber uma impressão, uma experiência privilegiada. Enquanto
extático, põe o sujeito fora de seus limites costumados; enquanto
quietatio, aquela serenidade análoga do sono, cessando o tumulto
dispersivo que impede a recepção duma forma superior de experiência
espiritual”. (itálico do original).
uma quietação da vontade e uma certa transformação na coisa
amada”.
756
A partir da conclusão a que chegou, Meneses procede a
indagações sobre a existência dessa “experiência espiritual”
preconizada, como vimos, por Tomás —, e sua efetivação entre os
seres espirituais (anjos e homens e destes entre si), ao que ele
nada encontra senão uma “margem, talvez não sistematizada”, que
explique essa mesma experiência, qual seja, “o AMOR”.
757
E, nas
partes subseqüentes de seu trabalho
758
, sinaliza a possibilidade de
que tal experiência passe por textos significativos de Santo Tomás
que lhe permitem afirmar a necessidade dessa relação de
continuidade
759
. Contudo, até sua conclusão final, Meneses não fez
qualquer acréscimo, sequer, quanto à possibilidade de o homem
estender o objeto ou o laço de amor para com a divindade. Ele se
valeu de perícopes inseridas em discussões em que Deus é um dos
termos da questão do amor, pacificamente entendido como amizade;
portanto, julgamos que, desse modo, fazemos jus a seu próprio
raciocínio, completando essa lacuna com subsídios trazidos por
Gilson
760
, segundo o qual essa amizade sobrenatural, constituída
pela partilha ou co-participação na vida divina, restitui ao homem
a amizade natural da qual ele gozava primordialmente com Deus.
Portanto, o homem pode falar em entrar em comunhão
íntima, espiritual e não menos efetiva com Deus, pois, diz Santo
756
TOMÁS DE AQUINO. In III Sent., d. 27, 2, 3, 5
um
, apud MENESES. Op.
Cit. p 101. (tradução).
757
MENESES. Op. Cit. p 102: “Porém, essa experiência espiritual existe?
As pessoas humanas podem estabelecer entre si esse contato, ‘imprimir’
umas nas outras, permeabilizar-se desse modo ao influxo do outro
enquanto tal? margem no sistema de Santo Tomás para explicar tal
experiência? No sistema, não garanto. Mas margem, talvez não
sistematizada, talvez suspensa a analogias com que ele não relacionou
tal caso. Essa margem é o AMOR”.
758
Idem. Ibidem. p. 102-112.
759
Idem. Ibidem. p 108: “O amor espiritual, dom de si, liberalidade,
difusão do ato, faz entrar em comunhão com o outro enquanto tal,
permeabiliza a subjetividade, é uma comunicação (II-II, 23, 1, 6),
realiza uma unidade (I-II, 28, 1, 2um; 3 d. 27, passim). Santo Tomás
exigia como condição para o contato espiritual entre as substâncias
separadas certa ordo, proportio, continuitas. Ora, o amor, unitiva et
concretiva virtus (força unitiva e aglutinativa), estabelece uma relação
de continuidade entre as pessoas”. (itálico do original).
Tomás, “dele não nos aproximamos pelos passos do corpo, mas pelos
afetos da mente”.
761
E, justamente, esses afetos são o que
“dilatam” o coração, fazendo o homem passível de um amor porque
“a caridade é uma espécie de amor”
762
sempre progressivo, até o
homem encontrar a paz.
Essa paz não é mais aquela da qual tratamos na parte
anterior de nosso trabalho conquanto aquela desta participe —,
mas a paz que o Aquinate, com o Hiponense, denomina de “perfeita”,
que é fruto da caridade para com Deus:
A verdadeira paz não podendo fundar-se senão no bem; e
assim como possuímos o verdadeiro bem de dois modos
perfeita e imperfeitamente, assim também dupla é a
paz. Uma perfeita, consistente no gozo perfeito do
sumo bem, pelo qual todos os apetites se unem na
quietude da união. E este é o fim da criatura racional
[...].
763
E, em última instância, é esta paz que pode manter a
Comunidade Política realmente pacificada, consoante o modelo da
proposta cristã desde a Cidade de Deus de Agostinho. Santo Tomás o
afirma ao declarar que a paz é efeito próprio da caridade:
Dupla união exige, por essência, a paz [...]. A
primeira se funda na ordenação dos nossos próprios
apetites à unidade; a outra, na união do nosso próprio
apetite com o de outrem. E ambas essas uniões a
caridade as produz. A primeira, quando amamos a Deus de
todo o nosso coração, de modo a lhe referirmos tudo; e
assim todos os nossos apetites se reduzem à unidade.
764
760
GILSON. Op. Cit. p. 350: “Supernatural friendship, based on the
sharing of divine beatitude, restores to man the natural friendship
which he originally had with God”.
761
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 24, 4, c, p. 2213.
762
Idem. Ibidem. II-II, 25, 2, c, p. 2231.
763
Idem. Ibidem. II-II, 29, 2, ad 4
um
, p. 2283: “[...] cum vera pax non
sit nisi de bono, sicut dupliciter habetur verum bonum, scilicet
perfecte et imperfecte, ita est duplex pax vera. Una quidem perfecta,
quae consistit in perfecta fruitione summi boni, per quam omnes
appetitus uniuntur quietati in uno. Et hic est ultimus finis creaturae
rationalis […]”.
764
Idem. Ibidem. II-II, 29, 3, c, p. 2283: “[...] duplex unio est de
ratione pacis, [...] quarum una est secundum ordinationem propriorum
appetituum in unum; alia vero est secundum unionem appetitus proprii cum
appetitu alterius. Et utramque unionem efficit caritas. Primam quidem
Essa mesma proposta, baseada na caridade, implica duas
dimensões radicalmente alterativas e interdependentes, quais
sejam, a dimensão vertical, da qual vimos tratando, e a dimensão
horizontal. É o que Santo Agostinho afirma ao dizer:
No hay sino una sola caridad. Con la misma caridad con
que amamos al prójimo amamos también a Dios. [...]
Recibes el Espíritu Santo en la terra para que
entiendas que con El amas tu hermano; recebeslo del
cielo para que entendas que con El amas juntamente a
Dios.
765
E Santo Tomás, praticamente, o repetirá no primeiro
artigo da questão 25, da
Segunda Parte da Segunda Parte
da
Suma
Teológica
,
onde trata do objeto da caridade:
Ora, a razão de amarmos o próximo é Deus, pois, o que
devemos amar no próximo é que ele esteja unido com
Deus. Por onde, é manifesto que o ato pelo qual amamos
a Deus é especificamente o mesmo pelo qual amamos o
próximo. E por isso o hábito da caridade não se
estende ao amor de Deus, mas também, ao do próximo.
766
Desta última dimensão horizontal da caridade do
homem, para com seus concidadãos, tratamos no início deste quarto
capítulo
,
quando refletimos sobre a amizade. Mas, naquele momento,
procuramos circunscrever nossa reflexão no âmbito da amizade ainda
na ordem natural. Ora, essa amizade natural participa da amizade
sobrenatural. Por esta, aquela é enriquecida e dirigida ao fim
último verdadeiro. Como o é toda a ordem humana.
767
unionem, secundum quod Deus diligitur ex toto corde, ut scilicet omnia
referamus in ipsum, et sic omnes appetitus nostri in unum feruntur”.
765
AGOSTINHO.
Sermo
265, VIII, nº. 9. In: ARMAS, Gregório. La Moral de
San Agustín. 1955, p. 450. (tradução).
766
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 25, 1, c, p. 2230:
“Ratio autem diligendi proximum Deus est, hoc enim debemus in proximo
diligere, ut in Deo sit. Unde manifestum est quod idem specie actus est
quo diligitur Deus, et quo diligitur proximus. Et propter hoc habitus
caritatis non solum se extendit ad dilectionem Dei, sed etiam ad
dilectionem proximi”.
767
AQUINO.
Op. Cit.
p. 281: “a relação do ser humano com Deus constitui o
núcleo inteligível da plena auto-realização humana no mundo, isto é, o
chamado divino à auto-realização humana mediante o agir com os outros no
mundo . O ato de amar a Deus é o mesmo ato com o qual se ama o próximo.
[...] Ele [o bem] impera a caridade que é o amor de Deus como
participação vivencial no amor de Deus pelos humanos e pelo mundo”.
Por conseguinte, se a paz verdadeira é necessária para a
vida realmente humana e social na Comunidade Política, então, ao
se envidarem esforços para implantá-la, ou melhor, não lhe
obstruírem os caminhos, será necessário não se curar daquilo
que se refere a Deus, mas também do que se refere ao próximo,
porque se a paz é efeito da caridade e esta possui dupla dimensão,
a paz também o terá. Confiramos o que diz Tomás:
Dupla união exige, por essência, a paz [...]. A
primeira se funda na ordenação dos nossos próprios
apetites à unidade; a outra, na união do nosso próprio
apetite com o de outrem. E ambas essas uniões a
caridade as produz. [...] A outra [a segunda], quando
amamos o próximo como a s mesmos, donde resulta
querermos satisfazer-lhe a vontade como se fosse a
nossa própria [...].
768
Tratando da união no amor, cujo cume é o êxtase, Meneses
769
alerta contra os impedimentos advindos tanto das vicissitudes
inerentes à própria existência, quanto dos advindos da mesma fonte
de sua eleição, isto é, da vontade.
O contraposto a isto é uma posição dificilmente senão
de modo algum — localizável em Tomás, segundo a qual:
Não podemos nos obrigar a amar alguém... Nossa razão,
porém, é capaz de conceber o dever como uma
necessidade. Se falta a espontaneidade do sentimento
do amor, a moralidade seria não obstante possível
graças à existência do dever. O dever preenche o vazio
deixado pelo amor... Uma vez que não podemos contar
com o amor, esse sentimento espontâneo, aceitamos
voluntariamente seu equivalente que tem as mesmas
conseqüências práticas. A moralidade força-nos a agir
como se estivéssemos
no amor. O dever ‘parececom o
amor.
770
768
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 29, 3, c, p. 2283:
“[...] duplex unio est de ratione pacis, sicut dictum est, quarum una
est secundum ordinationem propriorum appetituum in unum; alia vero est
secundum unionem appetitus proprii cum appetitu alterius. Et utramque
unionem efficit caritas. [...] Aliam vero, prout diligimus proximum
sicut nosipsos, ex quo contingit quod homo vult implere voluntatem
proximi sicut et sui ipsius”.
769
MENESES.
Op. Cit.
p 108: “Outro obstáculo, e fundamental, é a vontade
fechando os seus segredos numa impenetrável liberdade”.
770
ALBERIONI; VECA. L’Altruisme et la morale. Paris: Ramsay, 1990, p. 77
apud BAUMAN.
OP. Cit.
p. 116. (itálico do original; tradução).
Quanto a isso, para o Angélico, nada resume melhor seu
pensamento do que suas próprias palavras fincadas, certamente não
despercebidamente, no
Do Reino ou do Governo dos Príncipes
: “O
amor torna leves e quase nulas todas as asperezas [...]”.
771
E, se
devemos amar ao próximo, devemos não menos, e primeiramente, amar
a Deus, cujos atos de reconhecimento de Sua divindade e soberania
são expressos nas operações e atos da religião.
4.3. A Religião como espaço da Alteridade Transcendente
Homo religiosus
”, assim denomina Mondin o ser humano,
num de seus trabalhos.
772
Efetivamente, ele constata que o fenômeno
religioso é atestado, pelos antropólogos, desde a mais remota
notícia que se tem das manifestações culturais do homem.
773
No
âmbito filosófico, como afirma Marcel, também se constata esse
“lançar-se para fora” do homem em direção ao transcendente
774
, cuja
manifestação se constitui na busca de um “fundamento último” para
o próprio “eu”, que não se encontra circunscrito a este mundo,
forçando o homem a ir além do “Mundo e da História”.
775
Se fôssemos seguir a disposição tal como se encontra na
Suma Teológica
, deveríamos tratar da religião no mesmo momento em
que tratamos da justiça, pois, conforme o pensamento de Santo
771
TOMÁS DE AQUINO. Do Reino ou do Governo dos Príncipes ao Rei de
Chipre. 1997, L. 1, 11, nº. 33, p. 152,
772
MONDIN. Antropologia Filosófica. 7
a
. ed. São Paulo: Paulinas, 1980, p.
218: “É, portanto, razoável afirmar que o homem além de
sapiens, volens,
faber, loquens, ludens
é também
religiosus
”. (itálico do original)
773
Idem. Ibidem.
p. 218.: “Os antropólogos informam-nos que o homem
desenvolveu uma atividade religiosa desde a sua primeira aparição na
cena da história e que todas as tribos e todas as populações de qualquer
nível cultural cultivaram alguma forma de religião”.
774
SIDEKUM. Ética e Alteridade. São Leopoldo: UNISINOS, 2002, p. 112:
“Marcel diz: ‘A encarnação [do homem] é o ponto de referência central da
reflexão filosófica’. É o ponto de partida e o ponto de chegada, embora
através de um transcender-se na direção da transcendência que é, em
última análise, o ser em virtude do qual o homem existe”.
775
LIMA VAZ. Antropologia Filosófica II. 1995, p. 93s: “A relação de
transcendência
resulta, na verdade, do excesso ontológico pelo qual o
sujeito se sobrepõe ao Mundo e à História e avança além do ser-no-mundo
e do ser-com-o-outro na busca do fundamento último para o
Eu sou
primordial que o constitui e do termo último ao qual referir o dinamismo
dessa afirmação primeira”. (itálico do original).
Tomás de Aquino, a religião “é considerada parte da justiça”.
776
Também porque a religião não se refere, diretamente, ao próximo,
pois, enquanto pelo mesmo amor caridade amamos a Deus e ao
próximo, para além da justiça, pela religião diretamente nos
referimos a Deus enquanto nos é devido
777
.
Assim, nossa eleição se justifica por julgarmos que a
religião possui, eminentemente, um caráter alterativo, não menor
que o caráter alterativo da justiça e “não tão distante”
778
do
caráter alterativo da caridade e que, portanto, dado a ressalva
pretendida sobre essa alteridade, a questão da religião melhor
seria vista aqui.
Embora Gilson
779
, a quem seguiremos nas reflexões
subseqüentes como Santo Tomás —, trate da religião antes da
caridade, todavia, seguindo seu argumento quanto à necessidade da
religião, esta vem como resposta, mesmo natural, ao desvelo divino
para com o homem e como meio deste último de responder à dívida
que tem para com Deus.
Notemos que o Doutor Comum traz à tona outros casos de
virtudes que “fogem” à justiça, mesmo permanecendo em seu âmbito,
ao que justifica serem denominadas de virtudes anexas. Comportam o
débito inerente à virtude da justiça por isto se lhe pertencem —
, mas fogem da relação de igualdade, porque um dos termos (o filho
776
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 81, 4, sc, p. 2648.
777
Idem. Ibidem.
II-II, 81, 4, ad 3
um
, p. 2648: “O objeto do amor é o
bem, ao passo que o objeto da honra ou da reverência é alguma
excelência. Ora, é a bondade de Deus que se comunica às criaturas, e não
a excelência dessa bondade. Por onde, a caridade, com que amamos a Deus,
não é virtude distinta da com que amamos ao próximo. Ao passo que a
religião, com que honramos a Deus, distingue-se das virtudes com que
honramos o próximo”.
778
Sabemos da nossa parcimônia. Gilson (
Op. Cit.
p. 334) nos adverte:
“The goodness of the infinite being is not only
very much greater
than
that of the best of finite beings, it is
essentially something else
”.
(itálico do original).
779
GILSON.
Op. Cit.
p. 333: “Assuredly, such benefactions cannot be
repaid [o do convívio divino pela caridade]. But not being able to repay
a debit is no authorization to deny it. On the contrary, we are thereby
the more strictly bound to acknowledge it and to declare ourselves under
obligation to him to whom we know we are indebted. For this a special
virtue is required, a substitute for justice which cannot in this case
be exercised. The virtue by which we acknowledge a debt toward God which
we are unable to acquit is the virtue of religion”.
para com seu pai, por exemplo) está sempre numa posição de
impossibilidade de saldar o débito
780
.
Efetivamente, consoante os textos do
Divus Thomas
, a
virtude da religião em muito se assemelha à da justiça. Assemelha-
se na alteridade que é inerente a ambas, pois, se a justiça requer
um “próximo político”, a religião requer um “próximo
transcendente
781
. Todavia, a religião se diferencia da justiça
porquanto nesta uma relação de igualdade entre as partes ou
proporção tangível, onde ao homem é possível restituir o que deve;
naquela, a relação é por demais desproporcional para que o homem
restitua o que deve reverência —, por conta do outro termo da
relação que é a divindade
782
. Também, religião e justiça
diferenciam-se porque esta regula os atos externos do homem
relativos ao convívio social e ao Estado; enquanto a religião
regula os atos internos do homem para com Deus
783
e os modos como
estes podem ser externados
784
. Mesmo a estes, a religião não pode
legislar sobre todos, mas somente sobre aqueles que dizem respeito
780
Idem. Ibidem.
p. 488, n. 2: “S T, II-II, 80, 1. It is the same with
the other annexed to justice. A child cannot give its parents all it
owes them. Hence we speak of
filial piety
. There are merits which have
to be acknowledge, but which it is impossible to recompense. Hence we
have the virtue or respect. On the contrary, we can morally bound to
render another his due where there is no legal indebtedness, properly
speaking. In these cases it is not the equality which parents the
difficulty as the debt. For example, ‘everyone has a right to the
truth’, but such indebtedness is rather metaphorical. Our debt here is
really our strict obligation to tell the truth. Hence a further annexed
virtue to justice,
veracity
or truthfulness […]. We can hardly speak of
indebtedness here, save in the sense that we have to do our best to
increate honest manners. But this is enough to permit us to attach such
virtues to justice”. (itálico do original).
781
Em Sartre temos um testemunho, não obstante negativo. Deveras, ele tem
asseverado liminarmente: “Assim, não natureza humana, visto que não
Deus para a conceber”. (SARTRE. O existencialismo é um humanismo. o
Paulo: Abril, 1973, p. 12.).
782
GILSON.
Op. Cit.
p. 334: “The act by which man renders to God the
worship due to Him is, to be sure, directed toward God, but it does not
reach Him”.
783
Idem. Ibidem.
p. 335: “Insofar as possible religious worship consists
primarily in interior acts by which we recognize that we subject to God
and by which we affirm His glory. These acts constitute the main part of
religion”.
784
Idem. Ibidem.
p. 334: “What gives such an act its value is the
intention of rendering homage to God which inspires. A sacrifice, for
example, is the concrete manifestation of one’s desire to acknowledge
the infinite excellence of the divine nature”.
ao que deriva da lei natural, como a devoção e a oração, naquilo
que externam em forma de atos de religião
785
.
Portanto, os atos de religião constituem o meio pelo qual
o homem se relaciona com essa alteridade transcendente Deus —,
tendo-a como fim e não como meio
786
. E, como os atos bons criam em
nós um hábito conseqüentemente bom, esse hábito de religião vem a
constituir a virtude moral da religião a qual dignifica o homem,
como, aliás, as demais virtudes. O dado novo, aqui, como diz
Gilson
787
, é que Tomás cunha essa qualificação com um nome
específico, qual seja, a santidade
788
.
A santidade é a exigência natural de uma verdadeira
virtude da religião, isto é, é a vivência interna dos atos
externos praticados como atos de religião e, não menos, é a
exteriorização dos atos internos prestados pelo indivíduo ao Ser
Supremo. Neste sentido, Tomás está sempre no lastro de Santo
Agostinho que, melhor que qualquer outro, exprimiu o fato dessa
dualidade de dimensões e a exigência dessa “síntese”
789
. E devemos
785
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 81, 3, ad 2um, p. 2647:
“Pelo mesmo ato o homem serve a Deus e o cultua; pois, o culto respeita
à excelência divina, a quem é devida a reverência; ao passo que a
servitude respeita à sujeição do homem que, pela sua condição, está
obrigado a prestar reverência a Deus. E ao culto e à servitude pertencem
todos os atos atribuídos à religião; porque por todos o homem proclama a
divina excelência e a sua sujeição a Deus, quer oferecendo-lhe alguma
coisa, quer também considerando-se coisa de Deus”.
786
GILSON.
Op. Cit.
p. 334: “St. Thomas formulates this important
distinction when he says that by the virtue or religion God is not
object but end”.
787
Idem. Ibidem.
p. 335s: “Thus religion is established as a moral
virtue. But after this rather surprising step, St. Thomas takes a second
and perhaps even more surprising one. He identifies religion and
sanctity. […] Sanctity or holiness is not a virtue distinct from
religion. It does not differ from it a all, save with regard to reason
which considers in religion not so much ceremonies, offerings,
sacrifices taken in themselves, as the intention which confers upon them
their religious sense”.
788
TOMÁS DE AQUINO.Suma Teológica. 1980, II-II, 81, 8, c, p. 2653:
“Assim, pois, chama-se santidade a aplicação que faz a mente do homem,
de si mesmo e de seus atos, a Deus. Por onde, não difere da religião
essencialmente, mas só racionalmente. Pois, a religião consiste em
prestarmos a Deus a submissão devida, no que respeita em especial o seu
culto, como fazendo sacrifícios, oblações e coisas semelhantes. A
santidade, por seu lado, consiste em referirmos a Deus não tais
coisas, mas também as obras das outras virtudes, ou dispondo-nos pelas
boas obras ao culto divino”.
789
LIMA VAZ. 1995, p. 95: “Essa síntese de interioridade e exterioridade,
que Santo Agostinho exprimiu na dialética do
superior summo
e do
considerar que se Tomás não pensa, exclusivamente, na religião
revelada como tal, mas também em modos positivos de religião
790
,
pois os atos internos e externos, referidos pelo Angélico no corpo
do Artigo 7 da questão 81, bem como a etimologia do termo
“religião” levantada no artigo 8, não se aplicam exclusivamente
nem ao Judaísmo, nem ao Cristianismo
791
.
Todavia, se recordarmos as admoestações feitas por De
Boni, páginas atrás, levaremos em conta que o Angélico, partindo
de seu contexto de
Societas Christiana
, concebe a religião naquele
sentido indicado por Agostinho:
O caminho de toda vida feliz é encontrado na
verdadeira religião. Por ela, é adorado o único Deus,
com piedade muito pura. E é ele reconhecido como o
princípio de todos os seres, origem, aperfeiçoamento e
coesão de todo universo.
792
O que justifica afirmar que, quanto aos atos de oração e
demais práticas de religião, Santo Tomás tem em mente o
cristianismo, única religião capaz, segundo o Aquinate, de
satisfazer plenamente a sede humana da transcendência, cujos atos
são os adequados para, devidamente, se prestar culto à
divindade
793
.
De todas as religiões, máxime das monoteístas, a religião
cristã é a única que professa que a união entre Deus e o homem foi
efetivada, de uma vez por todas, pela Encarnação (e união
interior intimo
, ou seja, identidade na diferença (identidade
em-si
,
diferença
para-nós
) entre o transcendente e o imanente apresenta-se,
para o sujeito, como a estrutura conceptual fundamental do pensamento do
Absoluto”. (itálico do original).
790
GILSON.
Op. Cit.
p. 337: “How could he, after all, ignore the fact
that false religions, even paganism itself, were still religions? […]
But everything points to the fact that St. Thomas is not unmindful of
natural morality. […] St. Thomas often affirms that the pagans knew and
practiced virtue. This very human nature demanded it. The germ and seed
of the acquired moral virtues are innate in every man”.
791
Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 81, 7, c, p. 2651;
Idem. Ibidem
. q. 8, c, p. 2652.
792
AGOSTINHO. A Verdadeira Religião. São Paulo: Paulinas, 1987, c. 1, nº.
1, p. 34.
793
GILSON.
Op. Cit.
p. 337: “St. Thomas is clearly thinking here of
Christian prayer [...]. Assuredly, since we are following the
Summa
Theologiae
, it is a question of Christian and supernatural morality. […]
hipostática) da pessoa do Verbo em Cristo; é o modo positivo como
Deus quer que o homem Lhe renda culto
794
.
Esta nova religião instaurada por Cristo é estribada nas
virtudes teologais que, conforme vimos, são os laços do homem
com Deus, as quais aperfeiçoam as práticas humanas e mesmo o ser
humano, colocando-o “em condições” de, existencialmente,
relacionar-se com Deus, de modo que esta é a grande novidade e
inefável beleza do Cristianismo de Tomás Deus também se
relacione com ele.
795
É no âmbito desta religião que podemos conceber, em
Tomás, a herança agostiniana das duas cidades. De fato, Agostinho
imputa como incontrovertida a escolha do cristianismo como o único
caminho para se encontrar a verdadeira felicidade
796
. Na cidade
terrena, os cristãos vivem as virtudes morais de um modo todo
embebido na realidade sobrenatural, resultando que essas virtudes
morais são aperfeiçoadas pelas correspondentes de natureza divina.
Assim, coexistem a cidade terrena e a outra cidade a Cidade de
Deus
797
, na qual os homens, os cristãos, devem viver na amizade com
Deus e na perspectiva da vida eterna
798
.
Once more does the revealed take hold of the revealable or order to
perfect and rectify it”. (itálico do original).
794
Idem. Ibidem.
p. 337s: “Now the Incarnation, which is at the very
center of Christianity, has completely transformed man’s condition. By
making human nature divine in the person of Christ, God has made us
sharers in the divine nature:
consortes divinae naturae
(II Pet. 2, 4).
(…) The Incarnation is the miracle of miracles, the absolute miracle,
the norm and measure of all others”. (itálico do original).
795
Idem. Ibidem.
p. 338: “The supernatural moral virtues allow him to act
for God
; the theological virtues allow him to act
with God
and
in God
.
By faith we believe God and in God. By hope we entrust ourselves to God
and hope in Him because He is very substance of our faith and hope. By
charity the act of human love attains to God Himself. We cherish Him as
a friend whom we love and by Whom we are loved, and Who through
friendship is transported into us and we into Him. For my friend I am a
friend; hence for God I am what He is for me”. (itálico do original) Cf.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 23, 1, p. 2197. passim.
796
AGOSTINHO. A Verdadeira Religião. 1987, c. 3, nº. 3, p. 36: “Não
ofendendo àqueles que obstinadamente se apegam aos livros desses
filósofos, eu direi com plena segurança, que nesta era cristã não há
lugar para dúvidas sobre a religião a que se deve aderir de preferência
a todas as outras. Só ela leva, de fato, à verdade e à felicidade”.
797
antes de
A Cidade de Deus
, Agostinho (Enarraciones sobre los
Salmos. Madrid: BAC, 1967, 136, 1.) havia proposto a teoria das duas
cidades: “Oístes y sabéis que curren, en el desenvolvimiento de los
siglos hasta el fin, dos ciudades, mezcladas (permixtas) ahora
corporalmente entre sí, pero separadas espiritualmente: una para la cual
Efetivamente, a concepção dessas duas cidades indica, não
obstante a coexistência, o “afastamentoentre ambas, cuja vida do
cidadão não se sem a radicalidade da opção por uma dentre elas,
ou seja, o percurso denota uma bifurcação existencial em que, como
vimos, a linha demarcatória é o amor.
Portanto, os cidadãos da comunidade celeste ou Cidade
de Deus haverão de viver na Comunidade Política mediante os
valores da primeira, embora não sem os dissabores da segunda
799
.
Mas esta convivência é imperiosa, conforme o Bispo de Hipona
admitira:
Querem que a vida do sábio seja uma vida social. Isto
aprovamo-lo nós muito mais que eles. Efetivamente,
donde surgiria esta Cidade de Deus, da qual trata esta
obra e cujo livro décimo nono temos em os, ou
avançaria no seu desenvolvimento ou atingiria os fins
que lhe são devidos, se a vida dos santos não fosse
uma vida social?
800
Concebendo a vida social como necessária
801
, mesmo aos
santos, emergem algumas questões como: a) a unidade ou distinção
do poder civil e religioso; b) em havendo dois poderes, qual a
relação entre ambos? Estas questões e seus possíveis
desdobramentos nos remetem a um outro ponto, que passamos a tratar
na seqüência.
el fin es la vida eterna [...]; otra para la cual todo su gozo es la
vida temporal [...]”.
798
GILSON.
Op. Cit.
p. 338: “For the Christian at least, it is the source
of a new life, the pledge of a new society, a society founded on
friendship between man and God, and among all those who love one another
in God. This friendship is charity itself. (…) In other words, as the
terrestrial city has its own virtues, so too has the City of God
virtues by which we become no longer merely fellow-citizens of the
Athenian or Romans but ‘fellow citizens with the saints and the
domestics of God’ (Ephes. 2, 19)”. Cf. TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica.
1980, I-II, 63, 4, p. 1490.
799
AGOSTINHO. A CIDADE DE DEUS. 2000, XIX, 5, p. 1891: “Mas quem será
capaz de enumerar quantos e quão grandes são os males da sociedade
humana mergulhada nas desditas desta vida moral?”
800
Idem. Ibidem.
p. 1891.
801
GALÁN GUTIERREZ. La Filosofía Política de Sto. Tomás de Aquino.
Madrid: Editorial Rev. de Derecho Privado, 1945
.
, p. 60: “Puesto que la
religiosidad es connatural al alma racional de hombre, y toda vez que
también resulta propio de la naturaleza humana la convivencia en
comunidades políticas, se comprende que el problema de las relaciones
entre Iglesia y Estado tuvo que haber sido considerado por Santo Tomás”.
4.4. Hierocracia e Teocracia: superação das aporias no
pensamento de Tomás de Aquino
Santo Tomás admite, como Agostinho, a coexistência de
ambas as realidades humana e divina e a convivência dos dois
tipos de cidadãos.
802
Reconhece ainda, com um matiz próprio seu,
que cada uma das “cidades” terá seu próprio dirigente, consoante
seu fim
803
, conforme De Boni, que nos guiará a seguir:
Além disso, na comunidade humana, o governante e o fim
da sociedade são diferentes e o bom governante é
aquele que se empenha para que os cidadãos possam
alcançar a finalidade a que se destina a
pólis
, que é
o bem-viver; na comunidade de salvação, o soberano
é o fim da comunidade.
804
Isto quer dizer que a finalidade primordial do potentado
da Comunidade Política é terrena e mundana e consiste em procurar,
para o homem, a felicidade da vida temporal, conquanto imperfeita,
o bem-estar material, em possibilitar-lhe cumprir as exigências
irrefreáveis de sua própria conservação que são o imperativo
primeiríssimo da lei natural —, para que em seu interior possa
perceber a voz da realização sobrenatural de sua natureza
805
,
porque, como já dizia Santo Agostinho, o poder terreno foi
instituído por Deus: “É seguramente a Providência divina que
802
FINNIS. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. Oxford: Oxford
University Press, 1998, p. 322: “On the one side is the ‘temporal’or
‘secular’: the names connote a time-bound association and role; Aquinas
uses them, in relevant context, as synonymous with ‘worldly’ {mundanus}
and ‘civil’ or ‘political’ {civilis}. The contrast is with a ‘spiritual’
association organized, by divine inspiration, towards eternal
participation (albeit in a somehow way) in the non-bodily (spiritual,
mind-like) life of God”.
803
Idem. Ibidem
. p. 323: “The Church’s leaders have no juridiction over
secular matters except in so far as the choice of a member of the Church
[…]”.
804
DE BONI.
Op. Cit.
p. 87.
805
GALÁN GUTIERREZ.
Op. Cit.
p. 59: “Para lograrlo [o fim sobrenatural],
se extiende sobre los hombres de todo el orbe un reino más alto que el
de los magnates e reyes terrenos, un reino que no es de este mundo, que
por tanto, no puede identificarse con las causas políticas de los
hombres, ya que Cristo no es un príncipe político, sino un rey de gracia
y de caridad, por el cual, llegado el caso, se debe morir, pero ne cuyo
nombre, propiamente, no se puede matar”.
estabelece os reinos humanos”.
806
Ao poder espiritual, na concepção
tomasiana, cabe gerir o que respeita à salvação da alma:
Assim como pertence aos príncipes seculares
estabelecer determinações sobre os preceitos legais do
direito natural, no atinente à utilidade comum, e à
ordem natural, assim também aos superiores
eclesiásticos pertence estatuir os preceitos relativos
à utilidade comum dos fiéis, na ordem dos bens
espirituais.
807
Contudo, enquanto a Comunidade Política é detentora do
poder político e sua co-causa eficiente, a causa eficiente do
poder espiritual é o próprio Cristo, que utiliza sinais sensíveis
para alcançar o fim desejado: a salvação dos homens. Os
sacramentos da Igreja constituem a causa instrumental dessa ação
salvífica.
Tomás propõe um certo “transtorno” na ordem
estabelecida
808
, sugerindo que o Sumo Pontífice é somente ministro
do poder espiritual. Segundo isso, o Papa fica fora, portanto, de
qualquer participação na ordem das causas do poder, mesmo da mera
causalidade instrumental, sendo ele mesmo, como ministro, um
instrumento.
809
Isto porque, para o Aquinate, o sacerdócio é um
806
AGOSTINHO. A CIDADE DE DEUS. 2000, V, 1, p. 463.
807
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 147, 3. c, p. 3084:
“[...] ad saeculares principes pertinet praecepta legalia, iuris
naturalis determinativa, tradere de his quae pertinent ad utilitatem
communem in temporalibus rebus; ita etiam ad praelatos ecclesiasticos
pertinet ea statutis praecipere quae ad utilitatem communem fidelium
pertinent in spiritualibus bonis”.
808
SOUZA; BARBOSA. O Reino de Deus e o Reino dos Homens. Porto Alegre:
Edipucrs, 1997, p. 13: “A Igreja, durante a Idade Média, sempre assumiu,
relativamente à questão das relações entre os poderes espiritual e
temporal, uma posição bem definida, que pode ser considerada como o seu
pensamento oficial. [...] É inegável que durante o citado período alguns
Pontífices, entre os quais, por exemplo, Gregório VII, Inocêncio III,
Bonifácio VIII, dotados de uma capacidade de ação política excepcional e
apoiados em teóricos de enorme gabarito, souberam definir o programa da
Igreja de modo ímpar. Mas, em maior ou menor grau, todos eles fizeram
parte duma escola de pensamento eclesiológico-político que os
transcendia e que, ela sim, procurava impor-se na sociedade medieval.
Designamos essa escola de
hierocrata
, e a teoria política que
gradualmente foi sendo elaborada e defendida,
hierocracia
”. (itálico do
original).
809
TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. 1990, IV, 74, nº. 2, p. 867:
“Ora, o ministro está para o senhor como o instrumento para o agente
principal; pois, como o agente move o instrumento para alguma operação,
o ministro também é movido pela ordem do Senhor para executar alguma
serviço ministerial instituído para a distribuição dos
sacramentos.
810
Assim, tanto o poder espiritual, que compete a Cristo,
como o temporal, que compete ao potentado secular, são distintos
e, igualmente, são suas esferas de competência
811
. Não obstante,
Santo Tomás admite a dependência do último ao primeiro quanto
àquelas coisas que se relacionam com a salvação das almas
812
, visto
esta constituir o fim último do homem e a ele tender também o
ofício secular.
813
Mas não prevê a causalidade do espiritual sobre
o secular
814
, sendo ambos provenientes de Deus:
[...] quod potestas spiritualis et saecularis, utraque
deducitur a potestate divina; et ideo intantum
saecularis potestas est sub spirituali, inquantum est
coisa. Ademais, o instrumento deve estar proporcionado ao agente. Por
isso, é conveniente aos ministros estarem conformados com Cristo. [...]
Por esse motivo é conveniente que os ministros de Cristo sejam homens e
participem da sua divindade com poder espiritual, como também o
instrumento participa da virtude do agente principal”.
810
Idem. Ibidem.
p. 866: “Mas, como Cristo iria retirar da Igreja a sua
presença corpórea, foi necessário instituir a outros como seus ministros
para distribuírem aos fiéis os sacramentos [...]”.
811
GALÁN GUTIÉRREZ.
Op. Cit.
p. 61: Por mucho que la pasión de los
hombres haya enturbiado estas cuestiones, no es cierto que Santo Tomás
haya reconocido con carácter generalmente válido la legitimidad de una
injerencia inmediata del poder del Papa en la esfera mundana del Estado
[...]”.
812
Idem. Ibidem
. p. 63: “Santo Tomás ve en Dios el origem común de ambos
poderes. Y en cuanto que cada uno de ellos tiene su fin propio, son uno
y otro independientes entre si en orden a la prosecución del respectivo
fin. Sólo en virtude de la superioridad del fin sobrenatural a que se
encamina la Iglesia, con respecto a los fienes terrenos que incumbem al
Estado, existe una subordinación de éste a aquélla; pero limitada
exclusivamente a las cuestiones que se refieren a la salvacíon del
alma”.
813
SARANYANA. La Ciencia Política de Tomás de Aquino. In: DE BONI. Idade
Média: Ética e Política. 1997, p. 240: “Su [de Tomás] concepción del
orden social exige imperiosamente a Dios como su término y su fin. Y
así, aunque el Aquinate postule la autonomía de la ciudad y su
‘suficiencia’, articula la ciudad en un orden mucho más vasto, que es el
orden de la política tomada en general, en donde se plantean sus
relaciones con el organismo sobrenatural que es la Iglesia”.
814
GALÁN GUTIÉRREZ.
Op. Cit.
p. 62: “[...] y menos aún que [Santo Tomás]
haya afirmado la derivación del poder temporal respecto del espiritual
en cuanto a su origen. Desde luego, no tienen fundamento afirmaciones
cual la de que Santo Tomás haya sostenido como principio doctrinal
incondicionalmente válido para todos los tiempos y lugares la
atribuición a la Iglesia de un poder absoluto al que debería quedar
sojuzgado el Estado, o que haya querido mediatizarlo clericalmente,
convertirlo en una sociedad de tono religioso, es decir, hacer de él una
teocracia [...]”.
ei a Deo supposita, scilicet in his quae ad salutem
animae pertinent; et ideo in his magis est obediendum
potestati spirituali quam saeculari. In his autem quae
ad bonum civile pertinent, est magis obediendum
potestati saeculari quam spirituali, secundum illud
Matth. 22, 21:
reddite quae sunt Caesaris Caesari
[...]”.
815
O Doutor Comum admite que o espiritual se imiscua no
temporal quanto a assuntos da esfera religiosa, porém não noutra
ocasião.
816
Por hipótese, seria, sim, uma ocasião normal quando o
poder secular outorga ao espiritual alguma competência em sua
esfera ou quando o poder espiritual ocupa um cargo secular. Daí
ser o Angélico favorável à secularização do poder temporal
817
, sem
que este prescinda da esfera religiosa. Em suma, conforme sinaliza
De Boni
818
, Santo Tomás não propendeu para a
hierocracia
, porque
exige do poder espiritual o respeito à esfera de competência
relativa ao poder secular:
Parece ser falsa a assertiva segundo a qual se deve
obedecer mais ao poder superior do que ao inferior,
visto que o primeiro está no ápice em dignidade
relativamente ao poder terreno. Se assim fosse, o
prelado espiritual poderia isentar qualquer pessoa do
cumprimento de uma lei emanada do poder secular, fato
esse que não condiz com a realidade. [...] os poderes
espiritual e secular procedem do poder divino. Por
isso, este último subordina-se ao primeiro naqueles
aspectos que Deus estabeleceu, isto é, no respeitante
à salvação das almas. Daí, nesse aspecto, deve-se
obedecer mais ao espiritual do que ao secular. Porém,
no concernente à consecução do bem terreno, deve-se
obedecer mais ao poder secular do que ao espiritual,
815
TOMÁS DE AQUINO. In IV Petr. Lomb. L. II, dist. 44, q. II, art. 4, ad
4um. In: Corpus Thomisticum. CD-ROM, 2003
816
SOUZA; BARBOSA.
Op. Cit.
p. 129: “[...] o Doutor Angélico só em causas
espirituais, isto é, as que concernem à salvação das almas, atribui ao
poder papal a prerrogativa de se impor ao secular. Nos casos regulares,
sustenta a autonomia dos dois poderes, cada qual na sua esfera própria
de atuação”.
817
KRITSCH. Soberania. 2002, p. 364: “Wilks argumenta que, ao admitir a
legitimidade do governo temporal numa época sacra, Tomás de Aquino dava
início a um processo de secularização que iria, ao final, destruir o
poder ideológico e intelectual da Igreja Católica”.
818
DE BONI. De Abelardo a Lutero. 2003, p. 87: “Tomás não tira as
conseqüências disso [...], pois tocou por alto num ponto nevrálgico
dos debates políticos de seu tempo, qual seja o da relação entre os dois
poderes, e até hoje pergunta-se qual sua posição a respeito, podendo-se
citar textos que o caracterizam tanto como guelfo, quanto como
gibelino”.
[...]. A menos que aconteça que os poderes espiritual
e secular estejam nas mãos do Sumo Pontífice, que
detém o ápice de ambos [...].
819
E igualmente não pendeu para a
teocracia régia
, porque
prevê que as questões religiosas são do foro exclusivo da Igreja,
inclusive quando elas caem, também, sob a esfera do gládio
temporal:
O poder secular está sujeito ao espiritual, como o
corpo à alma. Por onde, não é usurpado o juízo do
prelado espiritual que se intromete com as coisas
temporais, na medida em que o poder secular lhe está
sujeito, ou que lhe são confiadas coisas da alçada
desse poder.
820
Tendo isso como parâmetro, resta ao “potentado
tomasiano”, quer dizer, cristão, buscar luzes em outra obra do
Angélico,
Do Reino ou Do Governo dos Príncipes
, onde encontrará
conselhos, mais de índole agostiniana que peripatética, porém, de
qualquer modo, tendo como pano de fundo o horizonte vertical da
salvação eterna, seja de si mesmo, seja de seus súditos. Quanto a
um potentado que não tenha os traços sugeridos, restará ao povo
819
TOMÁS DE AQUINO. Comentários às Sentenças, IV, dist. 44, q. II, art.
3. In: SOUZA; BARBOSA.
Op. Cit.
p. 146-147: “Ergo non semper majori
potestati obediendum est magis. Praeterea, potestas spiritualis est
altior quam saecularis. Si ergo majori potestati magis est obediendum,
praelatus spiritualis semper absolvere poterit a praecepto potestatis
saecularis: quod est falsum. [...] quod potestas spiritualis et
saecularis, utraque deducitur a potestate divina; et ideo intantum
saecularis potestas est sub spirituali, inquantum est ei a Deo
supposita, scilicet in his quae ad salutem animae pertinent; et ideo in
his magis est obediendum potestati spirituali quam saeculari. In his
autem quae ad bonum civile pertinent, est magis obediendum potestati
saeculari quam spirituali [...] Nisi forte potestati spirituali etiam
saecularis potestas conjungatur, sicut in Papa, qui utriusque potestatis
apicem tenet [...]”. Na edição do Corpus Thomisticum, da qual
compulsamos o texto latino, a referência do texto é um tanto diversa:
“lib. 2 d. 44 q. 2 a. 3”. Cf. no § [7387].
820
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, II-II, 60, 6, ad 3um, p. 2513:
“[...] potestas saecularis subditur spirituali sicut corpus animae. Et
ideo non est usurpatum iudicium si spiritualis praelatus se intromittat
de temporalibus quantum ad ea in quibus subditur ei saecularis potestas,
vel quae ei a saeculari potestate relinquuntur”.
resistir
821
, sob certas circunstâncias,
822
ou rezar como a velha de
Siracusa.
823
Mas, mais que tudo, é preciso ter presente, a respeito do
pensamento político de Santo Tomás de Aquino, as palavras pontuais
expressas por De Boni:
Mas nem tudo é claro e lindo em Tomás. [...] Não se
pode negar que ele foi homem de seu tempo, de seu
mundo cultural, e por vezes decepcionam [...]. Tais
aporias, que não são apenas dele, se explicam
quando somos capazes de perceber a tensão reinante
entre os grandes enunciados teóricos de sua visão
cristã da existência e a realidade social do mundo em
que viveu.
824
Não obstante, parece-nos que não seria temerário afirmar
que, feitas as devidas proporções entre os potentados e
compreendido o conceito de Bem Comum Político, a grande maioria
acataria sem relutância a seguinte afirmação lapidar do Angélico:
Daí manifestamente se mostra fazer parte do conceito
de rei ser o que preside único e pastor que busca o
bem comum da multidão e não o seu próprio. [...] Do
que vai dito fica patente ser rei aquele único que
governa, para o bem comum, a multidão de uma cidade ou
país.
825
Esta última reflexão tomasiana nos leva a questionar como
Santo Tomás pensa, ao menos formalmente, as formas de governo onde
se o exercício do poder. Por isso não podemos deixar de tocar
nessa questão, cuja tarefa realizamos a seguir.
821
Idem.
Do Reino ou Do Governo dos Príncipes ao Rei de Chipre. 1997, L.
1, c. 7, nº. 18ss, p. 139.
822
Cf. FINNIS.
Op. Cit.
p. 287-291.
823
TOMÁS DE AQUINO.
Op. Cit.
p. 139: “[...] como outrora, em Siracusa,
todos desejassem a morte de Dionísio, certa velha orava continuamente a
fim de que ele ficasse incólume e sobrevivesse a ela. Disso sabendo,
interrogou o tirano por que fazia assim. Ao que respondeu: “Quando eu
era menina, como tivéssemos pesado tirano, desejava a morte dele: morto
esse, sucedeu-lhe outro algo mais rude, cujo fim de dominação eu tinha
por grande bem. E começamos a ter um governo mais intolerável, que és
tu. Portanto, se forres derrubado, sucederá um pior no teu lugar”.
824
DE BONI.
Op. Cit.
p. 124.
825
TOMÁS DE AQUINO.
Op. Cit.
c. 2, nº. 7, p. 129: Ex quo manifeste
ostenditur quod de ratione regis est quod sit unus, qui praesit, et quod
sit pastor commune multitudinis bonum, et non suum commodum quaerens.
4.5. As formas de governo da Comunidade Política
Vimos, no Capítulo III deste trabalho, que a Comunidade
Política consoante a proposta política de Tomás é representada
pelo potentado legítimo para a confecção das leis que hão de reger
a mesma comunidade, visto a Comunidade Política, enquanto
multidão, não poder, de fato, exercer esse seu poder, devendo, por
conseguinte, estipular um seu representante cujo poder imprimirá a
forma de governo.
Mas, da prática histórica, que se fazer duas
perguntas: 1) Na obra do Angélico, quais formas de governo são
possíveis num Estado? 2) A qual delas Tomás imputa como a ideal?
Galán Gutiérrez nos servirá de auxilio principal a esclarecer
estas questões no âmbito do pensamento tomasiano.
A partir de seu contexto histórico e de seu embasamento
teórico, o Santo Doutor, para responder à primeira questão,
postula que se deve levar em conta dois critérios básicos para se
determinar qual forma de governo está sendo exercido, a saber,
quem exerce o poder político, e se o poder político é exercido
consoante as exigências do Bem Comum Político
826
.
Supondo que o segundo critério esteja garantido, o
Angélico é de opinião que, se o potentado for um indivíduo, então
o governo da Comunidade será monárquico (
regnum
). Mantendo-se,
sempre, a garantia do segundo critério, se o governo for exercido
por uma minoria, elegida pela virtude moral, então a Comunidade
Política será governada por uma aristocracia. Por fim, se o
governo é exercido pela multidão como um todo, mediante os meios
[…] Ex dictis igitur patet, quod rex est qui unius multitudinem
civitatis vel provinciae, et propter bonum commune, regit”.
826
GALÁN GUTIÉRREZ.
Op. Cit.
p. 152: “Para la determinación de las formas
de ejercicio del poder, es decir, de las formas de Estado, Santo Tomás
se atiene a un doble criterio, a saber: 1º.) quién ejerce el poder
público, y 2º.) si el poder público es ejerce con miras al bien común”.
cabíveis, então o governo será o democrático (
politia,
democratia
).
827
Perdendo-se o segundo critério o Bem Comum Político —,
o regime que era monárquico passa a tirânico (
tyrannis
). O regime
que era aristocrático passa a ser oligárquico. Enfim, o regime que
era democrático passa a ser demagógico. Portanto, estas três
formas de governo são tidas por corruptas, por atentarem,
per se
,
contra a finalidade política do Estado.
828
De conformidade com o
ethos
político moderno
829
, usaremos
a palavra democracia para designar a forma reta e do regime
popular, cientes de que isto é cabível no pensamento do Frade
Dominicano, como constataremos mais abaixo. Igualmente o faremos
com o termo tirania para o qual conservaremos o significado de
forma corrupta de governo em geral. Este último uso nos parece
conveniente porque, sem razão, as democracias do séc. XX têm
querido fazer olvidar que também elas podem se degenerar em
tirania, que o povo pode converter-se em um tirano de muitas
cabeças. Assim, para facilitar a interlocução, assumiremos a
seguinte terminologia: como formas retas de governo,
monarquia
,
aristocracia
e
democracia
; como formas corruptas,
tirania
,
oligarquia
e
demagogia
.
Conquanto pareça linear essa classificação, o modo como o
Aquinate circunscreve essas formas de governo não é sempre
uniforme
830
. Na verdade, em diversas passagens de diversas obras,
apresenta-se-nos uma diversidade de regimes de governo, boas e
corruptas.
827
Idem. Ibidem
. p. 152: “Si con miras ao bien común ejerce el poder un
solo hombre virtuoso, tenemos la monarquia (
regnum
); si una minoría
selecta por su virtud, resulta la aristocracia; si el pueblo en general,
tenemos la democracia (
politia, democratia
). [...] Monarquía,
aristocracia y democracia son tres formas de gobierno, en general,
buenas”.
828
Idem. Ibidem
. p. 152: “Pero si no se atiende al bien común, el régimen
es llamado tiranía cuando el poder lo ejerce uno solo (
tyrannis
);
oligarquía, cuando lo detentan unos pocos (
oligarchia
) y demagogia,
cuando lo tiene la multitud. [...] La tiranía, la oligarquía y la
demagofia, tres formas de gobierno, en general, corruptas”.
829
Cf. BOBBIO, 1999. v. 1, p. 369ss; v. 2, p. 776ss; .
verbetes
:
monarquia; tirania.
830
GALÁN GUTIÉRREZ.
Op. Cit.
p. 153: “La terminología de Santo Tomás para
designar las formas de gobierno es bastante varia”.
Começando pela
Suma Teológica
, Tomás coloca a
classificação das formas de governo consoante uma classificação
tipológica das leis positivas. Assim, as leis promulgadas pelo
príncipe, no regime monárquico, chamam-se constituições reais; as
que são promulgadas pela aristocracia se lhes chama senatus-
consultos e, por fim, chama de plebiscitos às correspondentes ao
regime popular
831
. Na acepção dada por Tomás, deve-se entender que
nessa passagem ele faz referência às formas retas de governo, pois
nos casos em que o poder é oposto a estas, não se têm,
efetivamente, verdadeiras leis. Aos regimes corruptos, ajunta-se-
lhes sob o nome comum de tirania.
832
A proposta do Aquinate, no
Livro Segundo
dos
Comentários à Política
do Estagirita
833
, passa a
ser a contraposição entre “rex” e “tyrannis”, entre “principatus
optimatum” e “principatus
paucorum”, entre “politia” e “potestas
populi”. no
Livro Terceiro
da mesma obra, Tomás contrapõe
831
Cf.
Idem. Ibidem
. p. 156s.
832
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 1980, I-II, 95, 4, c, p. 1773: “Em
terceiro lugar, é da essência da lei humana ser instituída pelo
governador da comunidade civil, como dissemos. E assim sendo, as leis
humanas se distinguem conforme os diversos regimes da cidade [*]. dos
quais um, segundo o Filósofo [III
Politic.
, VI], se chama reino, isto é,
quando a cidade é governada por um chefe. Ao qual correspondem as
constituições
. Outro regime é chamado aristocracia, que é o principado
dos melhores ou optimates. E a estes correspondem as
respostas dos
prudentes
e também os
senatus-consultos
. Outro é a oligarquia, isto é,
o principado de poucos, ricos e poderosos ao qual corresponde o
direito
pretoriano
, também chamado
honorário
. Outro, ainda, é o regime do
povo, chamado democracia, ao qual correspondem os
plebiscitos
. Outro
por fim é o tirânico, absolutamente corrupto, e por isso nenhuma lei lhe
corresponde”. (itálico do original);* Cf. ARISTÓTELES. Política, 1998,
1282b5.
833
TOMÁS DE AQUINO. In Politic
.
, L. 2, lect. 7, nº. 1. In: Corpus
Thomisticum, CD-ROM, 2003: “Omnis enim civitas, aut regitur ab uno, aut
a paucis, aut a multis. Si ab uno; aut ille unus est rex, aut tyrannus.
Rex quidem, si sit virtuosus tenens communem utilitatem subditorum.
Tyrannus autem, si sit malus omnia retorquens ad suum commodum,
utilitate subditorum contempta. Si vero regatur civitas a paucis; aut
illi eligentur propter virtutem qui bonum multitudinis procurent; et
tale regimen dicitur aristocratia id est potestas virtuosorum vel
optimorum. Aut eligentur aliqui pauci propter potentiam, aut divitias,
et non propter virtutem, qui omnia quae sunt multitudinis ad suam
propriam utilitatem retorquebunt; et tale regimen dicitur oligarchia, id
est principatus paucorum. Si vero civitas regitur a multis, similiter,
siquidem regatur a multis virtuosis, tale regimen vocabitur communi
nomine politia. Non autem contingit multos inveniri virtuosos in
civitate, nisi forte secundum bellicam virtutem: et ideo hoc regimen est
quando viri bellatores in civitate dominantur. Si vero tota multitudo
populi dominari velit, vocatur democratia id est potestas populi”.
“regia
potestas” ou “monarhia” à “tyrannis”, “status optimatum” ao
“status paucorum”, “respublica” ao “status populis”
834
. Tomás
também diferencia as formas de governo em retas e corruptas nos
Comentários à Ética a Nicômaco
. Das primeiras se enumeram o
regnum
”, a
aristocratia
e a
timocratia
”; das últimas enumeram-
se a
tyrannis
”, a
oligarchia
e a
democratia
835
. Passando, por
fim, ao opúsculo
Do Reino ou Do Governo dos Príncipes
, vemos que
834
Idem. Ibidem.
3, 6, nº. 2-5. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“Dicit ergo primo, quod (quia) politia nihil est aliud quam politeuma,
quod significat ordinem dominantium in civitate. Necesse est quod
distinguantur politiae secundum diversitatem dominantium. Aut enim in
civitate dominatur unus, aut pauci, aut multi. Et quodlibet horum trium
fuerit, potest dupliciter contingere. Uno modo quando principantur ad
utilitatem communem, et tunc erunt rectae politiae. Alio modo quando
principantur ad propriam utilitatem eorum qui dominantur, sive sit unus,
sive pauci, sive plures; et tunc sunt transgressiones politiarum; [...]
distinguit utrasque politias per propria nomina. Et primo rectas.
Secundo vitiosas, ibi, transgressiones autem et cetera. Dicit ergo
primo, quod si sit monarchia, id est principatus unius, vocatur regnum
consueto nomine si intendat utilitatem communem. Illa vero politia in
qua pauci principantur propter bonum commune, plures tamen uno, vocatur
aristocratia, id est potestas optimorum vel optima, vel quia optimi
principantur, scilicet virtuosi; vel quia ordinatur talis politia ad id
quod est optimum civitati et omnium civium. Sed quando multitudo
principatur intendens ad utilitatem communem, vocatur politia, quod est
nomen commune omnibus politiis. Et hoc quod ista politia vocetur tali
nomine, rationabiliter accidit: de facili enim contingit quod in
civitate inveniatur unus vel pauci qui multum excedant alios in virtute:
sed valde difficile quod multi inveniantur qui perveniant ad perfectum
virtutis; sed maxime hoc contingit circa bellicam virtutem, ut scilicet
multi in ea sint perfecti. [...] distinguit corruptiones dictarum
politiarum per nomina. Et dicit quod dictarum politiarum sunt istae
transgressiones: tyrannis quidem regni; oligarchia autem, id est
principatus paucorum, aristocratiae transgressio est; democratia autem,
id est potestas populi, id est vulgalis multitudinis, est transgressio
politiae in qua multi principantur saltem propter virtutem bellicam. Ex
quo concludit quod tyrannis est monarchia, id est principatus unius
intendens utilitatem principantis. Oligarchia vero est tendens ad
utilitatem divitum. Democratia vero ad utilitatem pauperum: nulla vero
earum intendit ad utilitatem communem. [...] Dictum est autem quod
tyrannis est quaedam monarchia despotica id est dominativa politicae
communitatis, quia scilicet utitur civibus ut servis. Oligarchia vero
est quando dominantur politiae illi qui abundant in divitiis. Democratia
vero est quando dominantur politiae non illi qui possident multitudinem
divitiarum, sed magis pauperes”.
835
Idem.
In Ethic
.
, 8, 10, nº. 2ss. Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“Dicit ergo primo quod tres sunt species politicae communicationis, et
totidem sunt corruptiones sive transgressiones earum. Rectae politicae
sunt tres: scilicet
regnum
aristocratia
timocratia
”. (itálico do
original).
Santo Tomás desenha a contraposição de monarquia e tirania,
aristocracia e oligarquia,
politia
e democracia
836
.
Em absoluto, qualquer dos regimes de governo, nos
escritos do Aquinate, goza de defesa incondicionada, mesmo a
monarquia pura, aparentemente defendida na obra
Do Reino ou Do
Governo dos Príncipes
, onde um homem concentra em sua mão a
totalidade do poder
837
. Antes de qualquer outra consideração pela
totalidade de seu pensamento, devemos lançar mão das informações
oferecidas por Torrell,
838
o qual postula que se deve levar em
conta não somente a circunstância histórica e política
839
do
836
Idem.
Do Reino ou Do Governo dos Príncipes ao Rei de Chipre. 1997, L.
I, c. 2, nº. 6, p. 129: “Caso, então, seja exercido por um governo
injusto, buscando pelo governo os seus interesses e não o bem da
multidão a si sujeita, tal governante se chama tirano, nome derivado de
força, porque oprime pelo poder, ao invés de governar pela justiça; por
isso também, entre os antigos, os potentados se chamavam tiranos.
Fazendo-se, entretanto, não por um , senão por vários, se bem que
poucos, chama-se oligarquia, isto é, principado de poucos, dado que
esses poucos, por terem riquezas, oprimem sua plebe, diferindo do tirano
apenas no número. Se, porém, o regime iníquo se exerce por muitos,
nomeia-se democracia, quer dizer, poder do povo, sempre que o povo dos
plebeus oprime os ricos pelo poder da multidão, sendo então todo o povo
como que um tirano. Semelhantemente se há de também fazer distinção
quanto ao regime justo. Se a administração está com a multidão, se lhe
chama com o nome de politia, como quando a turbamulta dos guerreiros
domina na cidade ou no país. E, se administram poucos, mas virtuosos,
chama-se aristocracia tal governo, isto é, poder melhor, ou dos
melhores, que, por isso, se chamam optimates. Pertencendo, porém, a um
só o governo justo, chama-se ele, propriamente, rei [...]”.
837
GALÁN GUTIÉRREZ.
Op. Cit.
p. 158: “Ninguna de las rectas formas de
gobierno admitidas por Santo Tomás es absoluta, es decir, no sujeta a
límites, no conforme a principios y normas, aun que en el caso de que se
trate de la monarquía pura, donde un solo hombre concentra en su mano la
totalidad del poder y lo ejerce sin compartido con el pueblo o con una
asamblea aristocrática”.
838
TORRELL. Iniciação ao Estudo de Santo Tomás de Aquino. 1999, p. 199:
“Enquanto o mais das vezes ele [Tomás] recomenda um governo misto, em
que o rei colabora com uma aristocracia eleita pelo conjunto da
população, aqui Tomás recomenda uma monarquia absoluta. Talvez seja o
caso de ver a razão para isso no que ele conhecia da situação particular
de Chipre na época em que escrevia. Mas é preciso acentuar também o
estado da obra, que não pôde ser revista pelo autor”.
839
CHENU. Introduction à l’Étude de Saint Thomas d’Aquin, 1954, p. 287:
“L’opuscule en effet fut adressé, en 1266, au roi de Chypre, Hugues II,
alors placé dans des conjonctures délicates. ‘Nous connaissons mal la
situation politique de ce pays en 1266. Nous savons, d’une part, que, en
1233, pour légitimer juridiquement, une révolte contre leur chef
seigneur, les Chypriotes adoptèrent la législation du royaune de
Jérusalem. Or cette législation obligeait le prince à ne jamais prendre
aucune mesure sans l’octroi des liges; les liges avaient intérêt à
refuser tout service public et l’Etat se dissocia. […] Si, en 1266, les
liges apparaissaient en Chypre comme des champions de l’anarchie et le
destinatário, mas também a impossibilidade de revisão por parte do
próprio Aquinate, motivos, aliás, que explicam a divergência com a
totalidade do pensamento de Santo Tomás de Aquino.
840
Aditamos a
isso tudo que, no pensamento tomasiano, todo regime político
encontra sua finalidade e parâmetro no Bem Comum.
841
Aliás, a lei
divina, em última instância, está sempre e em todo caso acima do
poder político, regulamentando e cerceando sua ação, pela lei
natural e pela lei positiva,
842
podendo, até mesmo, retirar-lhe
qualquer caráter vinculante.
843
Quanto à segunda questão feita mais acima, inicialmente,
Tomás parte de considerações de cunho mais geral e, tomando as
coisas abstratamente e no terreno dos princípios, o melhor regime
é o regime monárquico. O governo de um parece, efetivamente, a
forma de governo mais apropriada para a consecução do fim precípuo
roi comme se seul défenseur possible de l’ordre public, on pourrait
s’expliquer que dans le
De regimine principum
saint Thomas n’ait pas
exprimé sa préférence pour le gouvernement mixte et ait recommandé la
monarchie pure’”.
840
DE BONI.
Op. Cit.
p. 107: “Com este pressuposto, a partir do
De Regno
,
situar o pensamento político de Tomás no contexto maior de sua síntese,
tentando mostrar como a leitura que geralmente fazemos da qual não
negamos a validade passa por cima da
intentio autoris
(algo em que
Tomás tanto insistia em procurar no texto de Aristóteles) por ignorarmos
geralmente a moldura teológica dentro da qual ela foi elaborada”.
841
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I-II, 96, 4, c, p. 1778: “Ora,
as leis se consideram justas: pelo fim, isto é, quando se ordenam para o
Bem Comum [...]”.
842
Idem. Ibidem.
I-II, 95, 3, c, p. 1771: “A forma de um ser, que tende
para um fim, de necessariamente ser determinada por proporção com
esse fim. [....] Assim também tudo o que é reto e medido de
necessariamente ter a forma proporcionada à sua regra e medida. Ora, uma
e outra coisa se encontra na lei humana, pois, ordena-se a um fim; e é
uma regra ou medida, regulada ou medida por uma medida superior. E esta
é dupla, a saber, a lei divina e a lei da natureza, como do sobredito
resulta. Ora, o fim da lei humana é a utilidade dos homens, como também
o diz o jurisperito”.
843
Idem. Ibidem.
I-II, 96, 4, c, p. 1779: “E assim sendo, as leis, que
impõem tais ônus proporcionais, são justas, obrigam no foro da
consciência e são leis legais. Por outro lado as leis injustas podem sê-
lo de dois modos Por contrariedade com o bem humano, de modo oposto às
razões que as tornam justas [...]. Pelo fim, como quando um chefe impõe
leis onerosas aos súditos, não pertinentes à utilidade pública [...]; ou
também pelo autor, quando impõe leis que ultrapassam o poder que lhe foi
cometido; ou ainda pela forma, por exemplo, quando impõe desigualmente
ônus à multidão, mesmo que se ordenem para o Bem Comum. E estas são,
antes, violência, que leis, pois como diz Agostinho,
não se considera
lei o que não for justo
Por onde, tais leis não obrigam no foro da
consciência, salvo talvez para evitar escândalo ou perturbações, por
causa do que o homem deve ceder mesmo do seu direito [...]”.
da
Comunidade Política
. Essa modalidade de governo catalisa a
multiplicidade das vontades políticas individuais, integrando-as e
direcionando-as ao Bem Comum sob a propulsão de um programa
político comum
844
. A visão do Frade Dominicano é que a
possibilidade e o fato, historicamente comprovado da dissensão
política, engendrada por interesses particulares, impede a
formação de uma unidade social, ou, se esta existir, a destrói,
porque a união consiste, precisamente, em que todos concorram a um
mesmo fim. Deste modo, a finalidade principal do ofício do poder
político é envidar esforços que concorram para a consecução da
unidade social. Para essa egrégia tarefa, possui maior força e
capacidade o que é uno do que o que é múltiplo, resultando em que,
por analogia, a monarquia é preferível a qualquer governo
múltiplo.
845
844
KRITSCH.
Op. Cit.
p. 342s: “E [Tomás] justificava: quanto mais
eficazmente um governo alcançava a unidade, tanto mais útil ele era à
comunidade. E quanto maior fosse a unidade dentro dele, tanto mais
eficaz ele seria. [...] Por isso podia afirmar que o governo monárquico,
dada a unidade do governante, constituía, entre todas as formas justas
de governo, a mais apta para dirigir a comunidade política”.
845
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 1980, I, 103, 3, c, p. 891: “Ora,
ótimo é o governo de um só. E a razão é que o governo não é senão a
direção dos governados para um fim, que é certo bem. Ora, a unidade se
implica em a ação da bondade [...], pois como todas as coisas desejam o
bem, desejam ao mesmo tempo a unidade, sem a qual não podem existir,
porquanto, um ser existe na medida em que é uno. [...] Ao passo que o
ser uno, em si, pode ser causa da unidade mais convenientemente que
muitos unidos; e por isso, a multidão é melhor governada por um só, do
que por vários. [...] E é isto mesmo que o Filósofo ensina [
Metaph
.,
XII, 1076a]:
os entes não querem ser mal dispostos; nem é boa a
pluralidade dos princípios; haja, pois, um príncipe
”;
Idem. Ibidem
,
108, 1, 1.: “Mas, como diz claramente o Filósofo [
Metaph
., XII, 1076a;
Polit.
, III, 1] a melhor disposição é a da multidão regida por um
chefe”. ad 1
um
.: “A objeção é procedente, quanto à chefia, relativamente
ao chefe, porquanto é ótimo que o povo seja governado por um chefe,
como explica o Filósofo nos passos citados”;
Idem
. Do Reino ou do
Governo dos Príncipes, L. 1, c. 2, nº. 04, p. 128: Que, se houvera
muitos homens e tratasse cada um do que lhe conviesse, dispersar-se-ia a
multidão em diversidade, caso também não houvesse algo cuidando do que
pertence ao bem da multidão, assim como se corromperia o corpo do homem
e de qualquer animal, se o existiria alguma potência regedora comum,
visando o Bem Comum de todos os membros”; Idem Ibidem. c. 3, nº. 8. 9,
p. 130s: “[...] cumpre indagar o que mais convém ao país ou à cidade:
ser governado por muitos ou por um só. E isto se pode considerar a
partir do próprio fim do governo. Deve ser a intenção de qualquer
governante o procurar a salvação daquele cujo governo recebeu. [...]
Ora, o bem e salvamento da multidão consorciada é conservar-lhe a
unidade, dita paz, perdida a qual, perece a utilidade da vida social,
uma vez que é onerosa a si mesma a multidão dissensiosa. Por
Conquanto seja a monarquia o regime, em tese, mais
adequado para a condução da vida política, Tomás não deixa de se
questionar como pôr limites a esse poder que, se perder de vista a
finalidade da Comunidade Política, de ótimo se degenera em
péssimo.
846
O único caminho aventado pelo Doutor Comum parece ser
aquele segundo o qual o regime monárquico interaja com os outros
regimes, cedendo parcela do seu exercício de poder, aceitando
instâncias inferiores de decisão e controle. Em outros termos,
Tomás propõe a elaboração de uma forma mista de governo. Esse
regime misto não constitui um regime novo, em que haja algo a
acrescentar para além dos três outros. Constitui-se em uma
balanceada combinação do que de bom nos três principais
regimes, resultando num regime político em que as forças capazes
de emergir em cada uma das modalidades de regimes concorram para o
mesmo fim.
847
Buscando algum exemplo histórico-ilustrativo do que
quis apresentar, Tomás, ao comentar a
Política de Aristóteles
,
conseguinte, o máximo intento do governante deve ser o cuidar da unidade
da paz. [...] Dizemos, de fato, mais útil aquilo que melhor conduz ao
fim. Ora, manifesto é poder melhor realizar unidade o que é de per si um
só, que muitos [...]. Logo, é o governo de um mais útil que o de
muitos. Além do mais, é claro que muitos não governam de modo algum a
multidão, se dissentirem totalmente. Assim, requer-se, em muitos, certa
união para poderem, de algum modo, governar, porquanto muitos nem
poderiam levar um navio para uma parte, a não ser que dalguma forma
conjuntos. Mas, diz-se que muitos são um pela aproximação deles a um só.
Portanto, melhor governa um só, do que muitos, por aproximação de um”.
846
Idem. Ibidem.
I-II, 105, 1, ad 2
um
, p. 1903: “O governo real é o
melhor regime para o povo, se não se corromper. Mas, por causa do grande
poder de que o rei é dotado, o seu governo facilmente degenera em
tirania, se não for perfeita a virtude de quem foi investido nesse
poder. Pois como diz Aristóteles [
Ethic.
, 9],
o virtuoso pode
suportar a boa fortuna
. Ora, são poucos os de virtude perfeita [...]”.
847
Idem. Ibidem.
I-II, 95, 4, c, p. 1773: “Em terceiro lugar, é da
essência da lei humana ser instituída pelo governador da comunidade
civil, como já dissemos. E assim sendo, as leis humanas se distinguem
conforme aos diversos regimes da cidade [*]. dos quais um, segundo o
Filósofo, se chama reino, isto é, quando a cidade é governada por um
chefe. Ao qual correspondem as
constituições
. Outro regime é chamado
aristocracia, que é o principado dos melhores ou optimates. E a estes
correspondem as
respostas dos prudentes
e também os
senatus-consultos
.
Outro é a oligarquia, isto é, o principado de poucos, ricos e poderosos
ao qual corresponde o
direito pretoriano
, também chamado
honorário
.
Outro, ainda, é o regime do povo, chamado democracia, ao qual
correspondem os
plebiscitos
. Outro por fim é o tirânico, absolutamente
corrupto, e por isso nenhuma lei lhe corresponde. Mas também um
regime composto de todos esses, que é o melhor. E a esse corresponde a
lei
, estabelecida simultaneamente pelos patrícios e pelos plebeus, como
diz Isidoro”. [*] Cf. ARISTÓTELES. Política. 1998, 1282b5.
2
44
apresenta a organização política de Lacedemônia, com sua
constituição mista, na qual um rei (princípio monárquico), um
corpo de senadores (princípio aristocrático) e uma assembléia de
éforos de eleição popular (princípio democrático).
848
O enfoque mais cabal dado pelo Angélico foi na
Suma
Teológica
, na qual se ocupou em dar umas diretrizes gerais para a
organização dessa forma mista que cifra o melhor sistema prático
de governo:
A respeito da boa constituição dos chefes de uma
cidade ou nação, duas coisas devemos considerar. Uma,
que todos tenham parte no governo; assim se conserva a
paz do povo, e todos amam e guardam um tal governo,
como diz Aristóteles. A outra é relativa à espécie do
regime ou à constituição dos governos. E tendo estes
diversas espécies, como diz o Filósofo, as principais
são as seguintes. A monarquia, onde o chefe único
governa segundo o exige a virtude; a aristocracia,
isto é, o governo dos melhores, na qual alguns poucos
governam segundo também o exige a virtude. Ora, o
governo melhor constituído, de qualquer cidade ou
reino, é aquele onde um chefe, que governa
segundo a exigência da virtude e é o superior de
todos. E, dependentes dele, há outros que governam,
também conforme a mesma exigência. Contudo esse
governo pertence a todos, quer por poderem os chefes
ser escolhidos dentre todos, quer também por serem
eleitos por todos. Por onde, essa forma de governo é a
melhor, quando combinada: monarquia: por ser um
chefe; aristocracia, por muitos governarem conforme o
exige a virtude; democracia, isto é, governo do povo,
por, deste, poderem ser eleitos os chefes e ao mesmo
pertencer a eleição deles.
849
848
Idem.
In Politic
.
, 2, 7, nº. 4. In: Corpus Thomisticum, CD-ROM, 2003:
“(…) Dicit ergo primo, quod quidam dicunt quod optimum regimen civitatis
est quod est quasi commixtum ex omnibus praedictis regiminibus. Et huius
ratio est, quia unum regimen temperatur ex admixtione alterius, et minus
datur seditionis materia, si omnes habeant partem in principatu
civitatis; puta si in aliquo dominetur populus, in aliquo potentes, in
aliquo rex: et secundum hoc maxime laudabitur ordinatio civitatis
Lacedaemoniorum: de qua tamen erant duae opiniones. Quidam enim dicebant
eam componi ex tribus civilitatibus, scilicet ex oligarchia, id est
principatus divitum, et monarchia, id est potestate unius, et
democratia, id est potentia populi: habebant enim in civitate regem,
quod pertinebat ad monarchiam: habebant etiam seniores quosdam ex
maioribus civitatis assumptos, quod pertinebat ad oligarchiam: habebant
etiam quosdam principes qui eligebantur ex populo, et vocabantur ephori,
idest provisores, et hoc pertinebat ad democratiam”.
849
Idem.
Suma Teológica. 1980, I-II, 105, 1, c, p. 1902: “[...] circa
bonam ordinationem principum in aliqua civitate vel gente, duo sunt
attendenda. Quorum unum est ut omnes aliquam partem habeant in
principatu, per hoc enim conservatur pax populi, et omnes talem
Nesta perícope, Tomás propõe o regime engendrado do
melhor de cada um dos envolvidos: a unidade superior de ação e
direção, do regime monárquico; a seleção dos governantes, do
regime aristocrático; e do regime democrático, o imprescindível
envolvimento popular e das bases, sem o qual o regime político
está, de antemão, arruinado. É preciso notar que neste regime
misto entram, em boa medida, elementos democráticos, pois,
efetivamente, são democráticos o princípio do sufrágio universal e
o princípio dos cargos eletivos, não excluído o governo. Na
verdade, o que Santo Tomás propõe não é alguma forma concreta de
organização política, mas, mais exatamente, princípios de eficácia
técnica.
Esse modelo, espontaneamente, evoca uma monarquia
eletiva, com participação popular moderada. Mas coloca-se aqui
para não falsear o pensamento tomista a idéia de um potentado
eleito, assessorado por homens capacitados, elegidos do sufrágio
universal.
850
Em uma palavra, Santo Tomás, propondo o regime misto como
princípio geral para a constituição política, tem em vista qualquer
ordinationem amant et custodiunt, ut dicitur in II Polit. Aliud est quod
attenditur secundum speciem regiminis, vel ordinationis principatuum.
Cuius cum sint diversae species, ut philosophus tradit, in III Polit.,
praecipuae tamen sunt regnum, in quo unus principatur secundum virtutem;
et aristocratia, idest potestas optimorum, in qua aliqui pauci
principantur secundum virtutem. Unde optima ordinatio principum est in
aliqua civitate vel regno, in qua unus praeficitur secundum virtutem qui
omnibus praesit; et sub ipso sunt aliqui principantes secundum virtutem;
et tamen talis principatus ad omnes pertinet, tum quia ex omnibus eligi
possunt, tum quia etiam ab omnibus eliguntur. Talis enim est optima
politia, bene commixta ex regno, inquantum unus praeest; et
aristocratia, inquantum multi principantur secundum virtutem; et ex
democratia, idest potestate populi, inquantum ex popularibus possunt
eligi principes, et ad populum pertinet electio principum”.
850
J. ZARAGÜETA. La crisis del régimen constituicional. Academia de
Ciencias Morales y Políticas. Madrid: Separata, 1923. p. 22. In: GALÁN
GUTIÉRREZ.
Op. Cit.
p. 176: “Este es un texto sorpreendente en plena
Edad Media, pues en él se preconiza el régimen republicano o, por lo
menos, el monárquico electivo. Sin embargo, yo no encuentro aquí un
rigoroso paralelismo con el sistema constituicional moderno, porque no
parece entrever la existencia de un parlamento, a menos que este grupo
de magistrados fuera una cosa análoga. De representar algo análogo a
nuestros ministros, este tipo de gobierno quizá correspondería mejor al
régimen presidencial [...], salvo el procedimiento democrático de
regime político que contemple, a um tempo, o melhor dos três
regimes conhecidos, desde que, em concreto, se oriente, almeje e
realize o Bem Comum da Comunidade Política.
851
elección, de que Santo Tomás tampoco exime a los consejeros
colaboradores del principe”.
851
GALÁN GUTIÉRREZ.
Op. Cit.
p. 177: “Pero una cosa es preciso advertir
para terminar: no entenderá la filosofía política tomista quien crea que
el Aquinate se abona mezquina y miopemente, con sentido partidarista, a
una determinada forma de gobierno. Porque una forma de gobierno no es
nunca buena en abstrato, sino buena para éste o el otro pueblo
determinado, buena para ésta o la otra circunstancia histórica concreta,
por lo cual, formas qu en su tiempo fueron convenientes dejan de serlo
al variar las condiciones. Podríamos decir que la filosofía política de
Santo Tomás tenía un sentido experimental: en sus textos pueden buscar
justificación todas las formas o regímenes, sean los que fueren, con tal
que sean ejercidos justamente y en bien del pueblo. Mas cuando esto no
ocurre, cuando el bien común es despreciado y en su lugar se pone el
interés personal de los gobernantes, toda forma de gobierno se hace mala
en general y se convierte en tiranía”.
Considerações Finais
Tivemos por intuito, com este trabalho, propor que Santo
Tomás de Aquino concebe como ciência arquitetônica, em relação à
Política, a Ética enquadrando-a no âmbito da Teologia Moral. Para
isso, foi preciso “revisitar” o pensamento de Santo Tomás de
Aquino, conforme o proposto nas primeiras páginas. Portanto, como
uma retomada sintética do que foi exposto, ressaltamos os
seguintes aspectos tratados que julgamos os mais relevantes.
As obras de Tomás que compulsamos para construir nossa
tese foram:
Princípios da Natureza
,
Sobre o Princípio de
Individuação
, os
Comentários à Física de Aristóteles
, os
Comentários dos Analíticos Posteriores
, as
Questões Disputadas
sobre a Alma
e
sobre as Virtudes em Geral
,
Comentários às
Sentenças de Pedro Lombardo
, a obra
Do Reino ou do Governo dos
Príncipes ao Rei de Chipre
, os
Comentários à Ética
e
à Política de
Aristóteles
, a
Suma Contra os Gentios
e a
Suma Teológica
. As mais
importantes delas são as sete últimas por tocarem ao menos
indiretamente no assunto em questão. E, destas sete, a última
a
Suma Teológica
possui a preeminência em relação às demais por
seu caráter mais abrangente quanto ao próprio homem; por ser um
escrito no qual transparece mais a reflexão do próprio Tomás
naqueles assuntos ética e política em que ele, nos
Comentários
, somente procedeu a um “fichamento”; por ser o escrito
no qual o Angélico colocou seu empenho maior, como obra cabal de
sua reflexão filosófica e teológica.
Nossa tarefa consistiu, pois, em compulsar, na obra
tomasiana, a visão do homem, da sociedade e de Deus, consoante a
mundividência coetânea ao Aquinate, da qual ele, por suas
convicções muito bem claras e definidas, foi um legítimo “filho” e
um atuante protagonista, tanto em seu
métier
como além dele.
Emolduramos a análise dos textos tomasianos, com o auxílio das
obras de pesquisadores contemporâneos, com o fito de construir o
tema ou o objeto da investigação que elegemos. A partir disso,
procuramos trazer a lume as concepções de Tomás sobre as questões
mais pertinentes ao nosso tema, especialmente em sua obra “magna”,
a
Suma Teológica.
De fato, foi principalmente na
Suma Teológica
que Tomás
expôs sua teoria sobre Deus, a criação (especialmente do homem),
sobre o agir humano; sobre a influência do divino no humano; sobre
a confluência de ambos os fins a que o homem está destinado; sobre
a inserção da Política na Ética; e sobre os meios salvíficos a que
o homem deve aceder para a consecução de seu último fim
verdadeiro, a Bem-aventurança Eterna, o seu encontro com Deus.
Resumidamente, é o modo como Santo Tomás de Aquino “encarnou” em
seu edifício teórico o processo de cunho neoplatônico do
exitus et reditus
852
, muito bem apontado por Chenu.
853
Com efeito, a natureza humana, para o Doutor Angélico,
foi atingida pelo pecado, quanto aos dons que das mãos de Deus
recebera, os dons sobrenaturais e os preternaturais, mas Tomás
igualmente afirma que ela manteve sua integridade constitutiva que
impulsiona o homem viver em sociedade e desenvolver aquelas
atividades tipicamente oriundas das inclinações de sua natureza
racional.
Partindo deste princípio, o Aquinate pôde construir sua
teoria antropológica articulando o melhor dos textos patrísticos e
aristotélicos juntamente com os de sua contribuição pessoal
854
—,
fundindo-os todos numa síntese que constitui sua concepção do
homem, ferido pelo pecado, cuja desordem interfere profunda e
permanentemente na constituição de seu ser; “condenado a ser
livre” para usar uma expressão de Sartre por sua
racionalidade; capaz de construir a vida social em resposta ao
apelo de seu ser “animal político e social”; e, acima de tudo,
aspirante do sobrenatural, de Deus como alteridade capaz de
satisfazer suas mais eminentes aspirações. Essa Antropologia prevê
852
CHENU.
Op. Cit.
p. 261-265.
853
Idem. Ibidem
. p. 261: Mangnifique ressource d’intelligibilitté: voice
que toute chose, tout être, toute action, toute destinée, vont être
situes, connus, jugés, dans cette causalité suprême leur raison
d’être sera totalement révélée, sous la lumière même de Dieu”.
854
FABRO
et. al
.
Op. Cit
.. p. 110.: “La aportación personal de Santo
Tomás está en la unificación bajo el concepto metafísico central de ser
(esto corresponde exactamente a la doctrina sobre el principio del
pensamiento ...).”
uma natureza com suas faculdades e paixões sensíveis e
intelectuais boas em si mesmas, a servirem como instrumentos
para o aperfeiçoamento humano, naquele sentido helenisticamente
falado por Aristóteles, mas mais “perfeitamente” apresentado por
Agostinho. Aquele, por meio das virtudes intelectuais e morais,
este por meio dos auxílios divinos a elevarem as virtudes humanas,
infinitamente mais eficazes na consecução do objetivo último
próprio do homem. Tomás assimila as virtudes aristotélicas, mas
pela visão advinda dos estóicos, por meio de Agostinho.
Ora, a mesma natureza humana possui — como impulso
natural mais forte a inclinação à vida social. É por ela que o
ser humano buscou e busca se realizar, constituindo uma família e
a Comunidade Política. Busca encontrar no outro o apoio à
realização do seu anseio mais profundo de compartilhar suas
alegrias, suas desditas e sua aspiração a uma vida boa. Tomás
admite, portanto, como princípio da Sociedade Política ou
multidão perfeita
a natureza comum aos homens; como sua causa
motriz a inclinação radical e profunda dos homens a se associarem,
muito mais eficaz que as necessidades que assolam o homem,
fazendo-o buscar auxílio; e como causa final o Bem Comum Político
da sua “cidade”.
É na perspectiva da vida social e da conseqüente
alteridade que se a instauração da justiça como disposição
capaz de auxiliar o homem a instaurar a paz entre seus semelhantes
e entre si e a Comunidade Política enquanto pessoa jurídica. O
Aquinate defende a necessidade de leis positivas, oriundas do
Estado, legítimas por derivarem da lei natural, por meio da
determinação da razão reta, promulgadas por quem de direito, com o
intuito de realizar o Bem Comum Político. Segundo Tomás, essas
leis gozam de vigor, inclusive no foro íntimo, desde que não se
oponham à lei natural, pois esta é a participação, no homem, da
lei eterna. E como tudo é disposto pela Providência Divina, toda
lei assim estatuída não afrontará a Lei Divina que, de um modo
positivo, destina o homem, adequadamente com meios proporcionais,
ao convívio eterno ao qual ele está vocacionado a Beatitude
Eterna.
Na senda de Agostinho, Tomás coloca na sociedade humana a
necessidade de encontrar a paz, não a paz humana, mas a que advém
da amizade do homem com Deus, o que está muito além das
perspectivas previstas por Aristóteles, para quem os horizontes
das relações humanas não vão além dos limites da
pólis
. O primeiro
tipo de paz resulta, politicamente, da prática da virtude justiça
em suas duas facetas: a comutativa e a distributiva, do convívio
harmônico do homem com o Estado e com seu semelhante. Esta última
é conseqüência do convívio de amizade entre o homem e seu Criador,
da qual resultam as verdadeiras e perfeitas virtudes que
“deificam”
855
o homem, as virtudes teologais a fé, a esperança e
a caridade
856
que, elevando tudo quanto o homem tem de bom, em
sentido inverso, conseguem de Deus, por essa mesma amizade
recíproca,
857
tudo quanto o homem necessita para sua vida social de
modo melhor possível nesta vida. De fato, é um discurso “estranho”
à Política secularizada de nossos dias, mas é imperioso no
contexto e na pessoa do Angélico.
858
De fato, a mais importante dessas virtudes teologais é a
caridade, que transforma o convívio dos homens num convívio
fraterno. É por ela que a escravidão perde seu sentido e a
discriminação sexual deixa de encontrar eco. Por ela os governos
zelam pela salvação de seus súditos, os cidadãos cumprem exímia
e sobrenaturalmente seus deveres para com o Estado e socorrem os
855
ABBAGNANO. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998,
p. 238 (verbete): (

) “[...] Esse termo acha-se em Dionísio
Areopagita (
De Eccl. Hyer., 2
) e foi retomado por Scotus Erígena (
De
Div. Nat.
, V, 31) e pela mística medieval.”
856
GILSON. Saint Thomas D’Aquin. 5
a
. ed. rev. cor. Paris: Librairie
Lecoffre, 1930, p. 252.: “La charité est essentiellement un amour
d’amitié, c’est-à-dire, conformément à la distinction que nous avons
déjá posée, um amour par lequel on veut du bien à quelqu’un.”
857
GILSON.
Op. Cit
. p. 252s.: ‘Il y faut encore un amour réciproque,
car l’ami est un ami pour son ami; une telle bienveillance ne va jamais
en effet sans une certaine communication, et comme il existe entre
l’homme et Dieu une communication par laquelle il nous communique sa
béatitude, il faut bien que cette communication devienne le fondement
d’une certaine amitie’.”
858
DE BONI. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na
Idade Média, 2003, p. 123: “Sem dúvida, soa um tanto estranho aos
ouvidos modernos que, ao tratarmos dos fundamentos do agir humano,
falemos de amor , de amizade.
Amare, diligere, amor, amicitia, dilectio
,
são palavras pouco encontráveis nos tratados que geralmente compulsamos,
mas que afluem constantemente nos textos do Doutor Angélico.”
mais fracos. A fonte tomasiana para refletir sobre a caridade é o
Evangelho de São João
, bem como as
Epístolas
deste apóstolo que,
mais do que outros, discorreu sobre o amor de Deus para com o
homem — como filho do Pai e como amigo do Filho — e do dever deste
de comunicar aos semelhantes.
859
Para legislar em nome da Comunidade Política, o frade de
Rocasseca concebe um potentado secular cujo poder político-
temporal tem seu princípio em Deus; a co-causa eficiente está na
vontade do povo que, pelo consentimento ao estatuído máxime
consuetudinariamente —, permite o acesso do potentado ao poder; e
a causa final do poder político está na obtenção do Bem Comum
Político da
communitas perfecta
”. O Aquinate não discute como
deve ser o acesso ao poder, somente prevê a resistência legítima
ao mau governante, sua justa destituição, e o critério primeiro é
o Bem Comum Político. A forma de governo “preferível” do Santo de
Aquino é uma monarquia mista, respeitadas as culturas peculiares
de cada povo, pela qual ficariam atendidas, ao menos em tese, as
necessidades de participação popular, controle do “executivo” e
contrabalanço pela nobreza, marcadamente esta pela virtude moral.
Tomás reconhece, outrossim, que a vida em sociedade,
organizada politicamente, não é o fim último derradeiro do homem
pois o cristão está ordenado a um fim sobrenatural —, mas, a seu
próprio juízo, afirmou que se essa Comunidade existe, possui uma
finalidade próxima imanente, de modo que a autoridade política,
não desconhecendo a existência da vida sobrenatural e os meios
adequados para alcançá-la, por isso mesmo não pode dela
prescindir, sob pena de dificultar, senão impedir os cidadãos de
chegarem a adquirir as virtudes sobrenaturais suficientes para
dirigir a vida neste mundo.
Nesse discurso Santo Tomás, usando de instrumentos da
dialética aristotélica, constrói um edifício de espírito
agostiniano, por ser este o mais bem elaborado dentro da
859
DE BONI.
Op. Cit
. p. 122s.: “A amizade que eleva não ao nível da
philia
aristotélica, mas ao nível da
caritas
evangélica, é algo que une
os homens entre si, é algo que se opõe à servidão, onde um exclui o
outro, como anota Tomás em seu um tanto relegado
Comentário sobre o
Evangelho de João
”. (itálico do original)
perspectiva cristã, universo comum entre a época do Aquinate e a
de Agostinho. Nisto, mantém entre si e o Estagirita um fosso tanto
mais profundo quanto mais saliente, pois, para este, a Política
esgota a compreensão do indivíduo, enquanto, para o Aquinate,
somente a Ética embasada no cristianismo, como Teologia Moral
é capaz de dimensionar a compreensão do indivíduo adequadamente ao
fim próprio e superior da natureza humana. Portanto, o homem de
Aristóteles se encontra na pólis, o de Tomás se encontra
plenamente na visão de Deus. Daí que, conquanto para o Estagirita
a ciência arquitetônica seja a Política, para o Aquinate a ciência
a reger a vida prática na Comunidade Política é a Teologia Moral.
Os aspectos até aqui abordados também levam às relações
políticas entre os detentores do poder espiritual e do temporal,
entre o poder do governante terreno e o poder do papa. Não
obstante a difícil tarefa de fazê-lo e a, não menor, facilidade e
comodidade em pender para um dos lados, então litigantes, Santo
Tomás, esparsamente em suas obras, leva a cabo mais essa empresa,
conseqüente das anteriores.
O Aquinate é partidário da coexistência de “duas cidades”
a temporal e a espiritual e de seus cidadãos. Os fins
precípuos de cada uma são distintos, sendo a finalidade da cidade
temporal o bem-viver e o fim da cidade espiritual a salvação
eterna, a fruição de Deus. Assim, seus dirigentes possuem missões
específicas, consoante a natureza de cada uma das “cidades” ou
comunidades, ao potentado terreno cabe levar a bom termo a
finalidade da Comunidade Política, ao potentado espiritual cabe
levar a bom termo a possibilidade de todos alcançarem a Beatitude
Eterna. A questão específica que se coloca neste momento é que o
potentado terreno é aquele legitimamente colocado no poder,
enquanto o potentado espiritual não é o papa, mas Cristo.
Portanto, na concepção da relação entre a esfera político-temporal
e a esfera da administração religiosa, Tomás afirma que Jesus
Cristo é como que uma contraparte espiritual do rei terreno,
abalando indireta, mas efetivamente a tese da autoridade
política do papa. Como, por analogia, o potentado é o soberano, a
cabeça da Comunidade Política, assim Cristo é o soberano, a cabeça
da Igreja. O lugar, pois, determinado ao papa por conseqüência —
não é o de fonte do poder, mas é o de ministro, não de soberano,
e, por conseguinte, nunca um termo de comparação com o rei. O
verdadeiro rei espiritual é Jesus Cristo, que efetivamente leva os
homens à vida sobrenatural oferecendo os meios proporcionais que
lhes permitem sua consecução, como ao rei cabe fazê-lo na ordem
natural, no tocante à obtenção do Bem Comum Político.
O Santo Doutor conclui que o poder espiritual precede em
dignidade ao temporal, pelo fato de aquele se relacionar como Fim
Último Verdadeiro do homem que é a vida sobrenatural, enquanto o
poder secular vincula-se ao fim imediato e subalterno. Entretanto,
ele os considera relativamente autônomos, mas bem distintos em
suas respectivas esferas, e afirma que poderes de natureza
distinta não precisam estar subordinados entre si, mas podem
ambos, igualmente, ser dependentes de um terceiro. Assim, para o
Aquinate, tanto o poder eclesiástico como o temporal são
dependentes do poder de Deus e, ambos são independentes e
autônomos em suas respectivas esferas de ação, política uma, e
espiritual a outra.
Por conseguinte, na visão tomasiana, a distinção quanto à
dignidade dos dois poderes não advém de uma relação causal entre
ambos, o temporal advindo do espiritual ou inversamente. Na
concepção do Angélico, o poder papal não é causa instituidora do
poder secular, aliás por conseqüência o poder papal não
institui qualquer outro poder, mesmo o poder espiritual, o papa
apenas exerce o poder sacerdotal em grau máximo, o qual foi
instituído por Jesus Cristo e não por ele, quer dizer, não foi o
primeiro Papa, o Apóstolo Pedro, que instituiu os demais Apóstolos
e lhes deu poderes e enviou-os a pregar. O Papa não chega até
mesmo a ser o intermediário na distribuição do poder e da
jurisdição espiritual para os demais bispos, mas apenas o ministro
para dirigir a Igreja. O meio é o Sacramento da Ordem, que todos
os bispos, inclusive o Romano Pontífice, o possuem em plenitude,
no entanto, o poder sacramental vem diretamente de Cristo e não
lhes outorga, por isso, algum poder temporal.
A argumentação de Santo Tomás de Aquino se constitui,
pois, na superação da aporia entre Hierocracia e Teocracia Régia
sem fazer concessões comprometedoras a uma ou a outra tendência
político-religiosa de sua época, cujas origens e extensões
transcendem o seu tempo. O Aquinate é consciente disso e enceta
esse caminho por opção, coerente aos seus postulados cristãos,
filosóficos e políticos hauridos nas referidas fontes
disponíveis então. E não poderia se de outro modo para este frade
dominicano, aluno de Alberto Magno, leitor dos Padres da Igreja e
de Aristóteles e de espírito independente.
Em suma, com um equilíbrio singular, Tomás de Aquino
consegue salvar o princípio segundo o qual, a ordem natural, em si
mesma, constitui um fim relativo, com seu próprio valor, embora,
somente seus discípulos tirarão disso conseqüências mais radicais.
O Estado vai tornar-se sem indicação positiva sua secular em
sua esfera própria de ação, e a Igreja, em tese, menos terrena e
mais espiritual, ambos auxiliando-se reciprocamente, com vistas a
propiciar aos seres humanos tudo aquilo de que necessitam para
atingir seus fins, na ordem imanente e na transcendente sendo esta
última a preeminente.
Daqui, porém, vai advir cada vez mais intensamente o
caminho da separação entre Igreja e Estado, a perda do poder
papal, a quebra da unidade político-religiosa da Cristandade,
cujas conseqüências hoje podemos avaliar bem, sendo a mais
delicada, talvez, a política e a economia sem uma ética que as
sustente.
No tocante aos regimes políticos, o Aquinate propõe,
finalmente, um único modelo como regime mais apropriado à
Comunidade Política chamado de
Regime Misto
—, de acordo com o
princípio da utilidade do Bem Comum Político. Esse regime, não
sendo uma fusão dos outros dois, utiliza-se do que de melhor
neles, o equilíbrio oferecido por homens provados na virtude que
conterão possíveis excessos e a participação popular que, por um
lado, satisfará os anseios democráticos, e, por outro,
possibilitará o ingresso de diversos cidadãos em cargos eletivos.
Mas, o mais importante da proposta tomasiana é o
princípio, segundo o qual, a bondade de um regime é medida pela
sua consonância com o Bem Comum Político e não pelo número
material de seus dirigentes, de menor importância. Este é o
critério a ser aplicado na valoração de qualquer forma de governo
realizada de acordo com a índole de cada povo. Em cada etapa de
sua constituição.
Essas reflexões nos levam a ponderar que no âmbito da
produção intelectual como no caso do Angélico —, nenhum
pensador, por mais arguto que seja, foi ou é capaz de imaginar o
que os pósteros irão fazer com suas idéias. Isso lhe foge ao
controle, certamente porque, como afirma Foucault, os discursos
caem sobre uma “apropriação social”, chegam ao domínio público e
os leitores, sem prescindir de suas idiossincrasias, fazem suas
leituras buscando luzes para as questões que lhes são emergentes:
Enfim, em escala muito mais ampla, é preciso
reconhecer grandes planos no que poderíamos denominar
a apropriação social dos discursos. [...] Bem sei que
é muito abstrato separar [...] os rituais da palavra,
as sociedades do discurso, os grupos doutrinários e as
apropriações sociais. [...] Digamos, em uma palavra,
que são esses os grandes procedimentos de sujeição do
discurso.
.860
Em relação a seu trabalho, como leitor e escritor, talvez
não seja demasiado impróprio imputar ao Aquinate ter realizado
aquele pensamento de Foucault
861
que o queríamos também para nós
a partir do qual podemos asseverar que Tomás deixou-se envolver
pela palavra, pelo discurso com o qual quis falar aos seus e aos
pósteros. Ao falar e escrever, ele abriu trilhas e apontou pistas,
mas também não se restringiu a perfilar as posições,
previsivelmente mais cômodas, defendidas tanto por teólogos
“conservadores” quanto pelos árabes aristotelizantes. Sem ser um
mero repetidor do que tinham escrito os antepassados, mas um
pensador amadurecido pelas atividades de pesquisa, de reflexão e
de ensino, procurou oferecer respostas
,
próprias dos verdadeiros
filósofos, para os problemas de seu tempo, máxime para o problema
do diálogo, com seus diversos matizes, entre as duas principais
860
FOUCAULT. A Ordem do Discurso. Trad. Laura P. de A. Sampaio. São
Paulo: Loyola, 1996, p. 43. 44.
861
FOUCAULT.
Op. Cit.
p. 5: “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser
envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de
perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia muito
tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me
correntes de pensamento de então, o helenismo e o cristianismo,
que, nas palavras de Lima Vaz, constituem um “diálogo nunca
acabado”.
862
Mas, se Foucault tem alguma razão, e é o que também
tentamos salientar com nosso trabalho, o Aquinate não deixou de,
no conjunto de seu pensamento, discursar para fora das
“disciplinas” de então, emergindo de seu ofício de leitor,
comentador, escritor, filósofo, teólogo e professor uma certa
“teratologia do saber”
863
, configurando-se como “externo” ao saber
de sua época. Seguindo nosso raciocínio, teria havido com o Doutor
Angélico
864
principalmente pelas condenações que pesariam sobre
ele e as perseguições a seus discípulos o que Foucault diz ter
acontecido com Mendel
865
, que esteve “fora” da ciência de seu tempo
até que ela adquirisse os mesmos mecanismos de leitura que ele. A
alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me
houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa”.
862
LIMA VAZ. Escritos de Filosofia I: Problemas de Fronteira, 1986, p.
35.
863
FOUCAULT.
Op. Cit.
p. 33.: “No interior de seus limites, cada
disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele,
para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber.”
864
SARANYANA. La ciencia política de Tomás de Aquino. In: DE BONI. Idade
Média: Ética e Política. 1996. p. 244s: “Es indiscutible, cualquiera que
sea la actitud del medievalista, que en la Universidad de París se había
desarrollado, por aquellos años, un ambiente doctrinal proclive a la
separación entre la fe y la razón, la teología y la filosofía, la
Iglesia y el
imperium
. Tal clima era impensable en un contexto doctrinal
dominado por el agustinismo, más o menos transformado por la herencia
aviceniana y avicebrociana. Era posible, en cambio, en un marco
doctrinal de carácter aristotélico, sobre todo si tal aristotelismo era
recibido de la mano de Averroes. Tomás de Aquino lo sabía, como también
lo sabían las autoridades eclesiásticas parisinas. El famoso preámbulo o
exposición de motivos de las condenas de 1277 es una muestra fehaciente
de que la jerarquía eclesiástica conocía bien la raíz del problema.
[...] En definitiva, Tomás de Aquino conocía la causa del problema tan
bien como su colega San Buenaventura, que residía en las cercanías de
París desde tiempo atrás. Ambos sabían que se había desencadenado un
proceso de larga duración, cuyas consecuencias eran entonces difíciles
de medir”.
865
FOUCAULT.
Op. Cit
. p. 35: “Mendel dizia a verdade, mas não estava ‘no
verdadeiro do discurso biológico de sua época: o era segundo tais
regras que se constituíam objetos e conceitos biológicos; foi preciso
toda uma mudança de escala, o desdobramento de todo um novo plano de
objetos na biologia para que Mendel entrasse ‘no verdadeiro’ e suas
proposições aparecessem, então, (em boa parte), exatas. Mendel era um
monstro verdadeiro, o que fazia com que a ciência não pudesse falar nele
[...]”.
história póstuma ao Angélico o tem confirmado pela sua consagração
como um dos grandes Teólogos e Filósofos do século XIII.
Por oportuno, sabemos que de modo algum esgotamos o
assunto proposto, nem encerramos qualquer discussão relativa aos
pontos aqui abordados. Estamos, pois, cientes da multiplicidade de
“chaves de leitura” possível no texto tomasiano, e ao elegermos
uma, não fazemos menoscabo das demais, o que nos fez seguir um
determinado caminho, imposto por nossa opção teórica. Por isso
continuamos abertos a correções, precisões e redirecionamentos
conforme juízos abalizados.
As pesquisas atuais sobre os originais e as edições
críticas que estão por vir a lume trarão novas perspectivas e
novos esclarecimentos que nos ajudarão a melhor adentrarmos e
entendermos as cogitações de Tomás em sua época.
Estamos, por fim, convictos de que a contribuição do
pensamento de Santo Tomás de Aquino, conquanto sua mundividência e
concepção possam divergir das nossas, transcende estes limites e
oferece luzeiros para as discussões de nossa época, não menos
conturbada, se não por disputas entre cristianismo e helenismo,
porém por profundas crises de base de valores humanos, máxime
éticas; também porque os valores humanos guardam suas semelhanças
com os valores cristãos da época e foram trabalhados pelo Aquinate.
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SUMÁRIO
Introdução......................................................... 7
1. A Pessoa Humana como sujeito Político do Pensamento de Tomás de
Aquino............................................................ 28
1.1. Tomás de Aquino e as filosofias de seu Tempo ............... 28
1.2. O Homem como Pessoa ........................................ 36
1.2.1. Constituição Metafísica da Pessoa ...................... 36
1.2.2. Limites Metafísicos da Pessoa .......................... 45
1.2.3. A Pessoa e a ordem Prática ............................. 52
1.2.4. A Pessoa e a ordem Política ............................ 67
2. A Ética Social de Tomás de Aquino.............................. 73
2.1. A Teleologia do Estado ..................................... 73
2.2. Beatitude Sobrenatural e Natural: algumas noções ........... 78
2.3. Bem Comum Natural e Político ............................... 95
3. Leis e Direitos no Pensamento de Tomás de Aquino ............. 127
3.1. Lei em Geral .............................................. 129
3.2. Lei Natural e Direito ..................................... 132
3.3. Lei Positiva e Direito Positivo ........................... 136
3.4. A Justiça e suas Modalidades .............................. 146
3.5. A Virtude Moral e a Virtude Política ...................... 168
3.6. A Conseqüência da Virtude: a Unidade da Paz ............... 173
4. A Alteridade Político-Teológica............................... 184
4.1. A amizade ................................................. 185
4.2. A Caridade ou Amor Sobrenatural ........................... 205
4.3. A Religião como espaço da Alteridade Transcendente ........ 223
4.4. Hierocracia e Teocracia: superação das aporias no
pensamento de Tomás de Aquino .................................. 230
4.5. As formas de governo da Comunidade Política ............... 236
Considerações Finais............................................. 247
Referências...................................................... 258
Obras de Santo Tomás de Aquino ................................. 258
Referências Auxiliares ......................................... 258
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