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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A CONTRADIÇÃO DA
LINGUAGEM
EM WALTER BENJAMIN
ALUNO: PAULO RUDI SCHNEIDER
ORIENTADOR: DR. ERNILDO JACOB STEIN
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Agradecimentos
Agradeço à minha FAMÍLIA pela paciência e compreensão nos tempos de minha
ausência em recolhimento, meditação e trabalho de escrita da tese.
Agradeço ao PROFESSOR DR. ERNILDO JAKOB STEIN pela grande amizade
e por toda a segurança no apoio nas horas de fato decisivas.
Agradeço à UNIJUÍ e, especialmente, aos COLEGAS do Departamento de
Filosofia e Psicologia pela oportunidade dos períodos de meu afastamento temporário para
os estudos de mestrado e doutorado.
Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa para a realização do doutorado
sanduíche junto à EBERHARDT-KARLS-UNIVERSITÄT TÜBINGEN sob a
orientação do PROF. DR. OTFRIED HÖFFE de agosto de 2004 a janeiro de 2005.
Porto Alegre, outubro de 2005
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RESUMO
A presente tese tem o intuito de indiciar a contradição da linguagem em suas duas
dimensões à medida que a expõe como o fio condutor e critério para a compreensão da
obra de Walter Benjamin, a fim de poder mostrar que ele por intermédio da mesma avalia
grande parte das manifestações da cultura humana. A primeira delas é a concepção que
dimensiona a linguagem como instrumento de sinalização de objetos fora da sua
circunscrição e que o falante então aponta como se fosse separado de si mesmo,
inaugurando, em intenção implícita, a subjetividade como fundante da totalidade do saber.
A segunda caracteriza a linguagem enquanto intermitente expressão da própria totalidade
que implícita e inevitavelmente sempre deve supor, sem poder nominá-la jamais. Qualquer
intenção de fundamentação será simultaneamente acompanhada pela linguagem, que lhe
antecede como âmbito de atividade e em que participa, mas o que está a esquecer na
objetivação absoluta à base de pretensão de subjetividade enquanto princípio fundante.
A contradição da linguagem é o paradoxo da ambivalência em que o ser humano se
encontra e que lhe possibilita a compreensão esquecida de si enquanto conhecimento
objetivado, por um lado, e, por outro, também a compreensão enquanto recordação do
encontro que já sempre é numa unidade total, que, porém, nunca poderá definir por
explicações de causa e efeito, pois também elas mesmas já se dão na expressão de si
mesmo na linguagem em ocorrência.
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Zusammenfassung
Die vorliegende Tese beabsichtigt den Widerspruch der Sprache in seinen zwei
Dimensionen anzuzeigen, indem sie ihn als roter Faden und Kriterium für das Verständnis
des Werkes von Walter Benjamin darlegt, um zeigen zu können, dass er mit demselben
einen grossenTeil der Erscheinungen der menschlichen Kultur bewertet. Die erste von
ihnen ist das Ansehen, dass die Sprache ein Werkzeug zur Kennzeichnung der
Gegenstände ausser ihres Bereiches sei und welche der Sprecher dann anzeigt, als ob sie
von ihm getrennt seien, und so in impliziter Absicht die Subjektivität als das Begründende
der Totalität des Wissens inauguriert. Die zweite charakterisiert die Sprache als
beständiger Ausdruck der Totalität selbst, welche sie implizit und unausweichlich immer
vorraussetzt muss, ohne sie jemals bennenen zu können. Jegliche Absicht der Begründung
wird simultan von der Sprache, die ihr vorausgeht als Bereich der Aktivität und in dem sie
mitteilt, begleitet, was sie aber in der absoluten Objektivation, in der Absicht der
Subjektivierung als begründendes Prinzip, vergisst.
Der Widerspruch der Sprache ist das Paradox der Ambivalenz, in dem der Mensch
sich befindet und das ihm, erstens, das vergessene Verstehen über sich selbst als
objektiviertes Wissen ermöglicht, und dann auch das Verständnis als Erinnerung der
Begegnung in einer totaler Einheit, die er immer schon ist, die er aber nie durch
Kausalerklärungen umschreiben kann, weil auch sie selbst sich im Ausdruck seiner selbt
als Ereignis in der Sprache ergibt.
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SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO................................................................................................................... 6
II. O MOVIMENTO CULTURAL DA JUVENTUDE...................................................... 36
1. INDICAÇÃO DA CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM: CONVERSAÇÃO ........... 51
2. ENSAIO APLICATIVO DA CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM: DUAS
POESIAS DE HOELDERLIN ...................................................................................... 154
3. APRESENTAÇÃO DA CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM: SOBRE A
LINGUAGEM EM GERAL E A LINGUAGEM DOS HOMENS........................... 172
4. POSICIONAMENTO FILOSÓFICO: SOBRE A FILOSOFIA
VINDOURA................................................................................................................... 221
5. A CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM NA TAREFA DO TRADUTOR .............. 240
6. A CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM NA FILOSOFIA E NA ARTE................. 252
7. A CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM ENTRE A DILUIÇÃO TOTAL E A
OBJETIVAÇÃO DELIRANTE: AO SOL .................................................................286
8. COMPLEMENTAÇÃO À CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM: DOUTRINA
DO SEMELHANTE .....................................................................................................315
8.1 SOBRE A FACULDADE MIMÉTICA............................................................... 320
9. A APLICAÇÃO DA CONTRADIÇÃO NA LINGUAGEM: FRANZ
KAFKA ..........................................................................................................................327
10. ENTRE O DIZER E O DITO....................................................................................... 365
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 372
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................................384
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I. INTRODUÇÃO
A.
Para a manutenção da sua idéia fundamental a Universidade ainda hoje necessita
conviver com a imposição histórica de uma coordenação geral de um núcleo básico de
estudos de caráter humanístico e de formação geral, os quais fazem parte da maioria dos
cursos obrigatoriamente. Desse núcleo básico de estudos, a filosofia em grande parte era e
ainda é responsável pela contribuição na formação de todos os alunos da Universidade com
disciplinas como Ética, Epistemologia, Teoria do Conhecimento e Introdução à Filosofia
em geral. Isso significa que todos os professores de filosofia da Universidade, além do
contato, das obrigações e das relações típicas com tudo o que concerne a um curso
específico de filosofia, tem a oportunidade e a obrigação de articular com eficiente
capacidade pedagógica o seu saber em áreas que, à primeira vista, parecem distantes das
preocupações teóricas do filósofo, como, por exemplo, as variações das engenharias, a
saúde, a administração, a economia, o direito, todo o âmbito de estudos da área empírico-
analítica, bem como em áreas consideradas mais próximas da filosofia, denominadas
costumeiramente por ciências humanas. Significa também que uma grande parte da
totalidade dos estudantes da universidade ainda hoje tem contato com assuntos filosóficos,
mesmo que precariamente, oportunizando as mais diversas reações, discussões e tentativas
de solução a esse respeito.
Qual o conteúdo a ser elaborado conjuntamente em todos os cursos por professores
e alunos e que satisfaça às exigências da universalidade evidentemente presente como
suposto no todo da universidade e em cada uma das suas áreas de pesquisa, ensino e
extensão? Por que exatamente estas e não outras disciplinas são consideradas como
capazes de formação humanística, universal e visão relacional? O que é filosofia? Para que
filosofia? Por que que estudar filosofia se não é imediatamente transformável em valor
de sobrevivência econômica? Qual a capacidade de aproveitamento positivo da filosofia na
construção da utopia social? O estudo e o exercício da filosofia rende indicações utilizáveis
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para a construção de um sistema produtivo justo e democrático para a sociedade em geral?
Qual, enfim, a utilidade da filosofia em cada um dos cursos? Deve a filosofia fazer a
tentativa de adaptar-se à promoção da fundamentação do que as mais diversas áreas
elaboraram como especificidade? Deve a filosofia oferecer uma rede de conceitos a todas
as áreas, a qual fosse capaz de formar um pano de fundo teórico cultural comum a todas
elas para que nele pudessem reconhecer-se? Qual a função do curso de filosofia na
universidade de hoje e a sua relação com todos os outros? Essas perguntas, entre outras,
surgem na relação prática e efetiva de cada professor de filosofia na universidade: se não
for capaz de pelo menos aceitá-las entrando no jogo da argumentação e o vislumbrando
solução alguma, a sua atuação perde imediatamente o sentido de solidificação relacional
atribuído desde sempre à filosofia e o seu significado descamba para o irracionalismo, ou
para o cinismo utilitarista sem maiores reflexões e preocupações. Tais perguntas, entre
outras, por isso também levam necessariamente à busca constante do conhecimento de
filósofos, cujo pensamento aborda desde questões de fundamentação na e da filosofia até
preocupações e discussões sobre formas específicas de relação com áreas específicas da
cultura.
Na Pós-modernidade, época em que temos um acúmulo de informações e uma
divisão cada vez maior nas mais diversas áreas do conhecimento notoriamente causam
enormes dificuldades de arregimentação contra o relativismo desistente de qualquer
reflexão na busca de uma suposição fundamental comum, algumas perguntas
anteriormente descritas até já se desenvolvem como acusação, dando a entender que para a
perfeita preservação da unidade da Universidade bastam os aspectos administrativos,
econômicos e jurídicos. A filosofia como rainha das ciências, ou até mesmo como somente
guardiã da racionalidade a muitas áreas da cultura universitária, voltadas à
profissionalização e atentas aos apelos do mercado, já não mais convence e, para alguns
filósofos, até começa a parecer duvidoso todo o esforço empenhado em discursos de
convencimento a respeito dos acertos e das receitas da filosofia para a salvação e felicidade
gerais da sociedade humana.
No transcurso das discussões sobre a relação da filosofia com todas as áreas do
saber ao longo dos anos, estudos e ensaios foram escritos, textos foram lidos e traduzidos,
entre os quais especificamente as Teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin.
Percebemos que este texto, traduzido pela primeira vez para o português em 1984 no
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âmbito da Unijuí e internamente ativado como motivo de interlocução com as diversas
áreas do conhecimento, trouxe novas luzes para a questão da filosofia e da universidade e
instigou ao estudo continuado da obra do autor. O conceito de filosofia de Walter
Benjamin confunde-se com a sua forma de apresentá-la em seus textos, os quais ao longo
dos anos da sua vida abordam questões de várias áreas do saber, o que possibilitou ao
filósofo um profícuo diálogo com elas. É notório o fato de que Benjamin é estudado e
consultado não apenas por autores que se interessam especificamente por filosofia, mas
também por estudiosos da área da estética, da literatura, da sociologia, da comunicação, do
direito, da ciência e da tecnologia. Diz-se até que Benjamin é impossível de ser
sistematizado, que a sua obra diversifica-se tanto que é impossível vislumbrar alguma
rede conceitual que pudesse unir uma tal proliferação de interesses de estudos diferentes.
A essa característica de complexidade na abordagem de assuntos agrega-se a
facilidade e a diversidade com que Benjamin os apresenta em seus textos. O filósofo
escritor expressa-se mostrando o domínio de um amplo repertório de formas literárias: O
tratado monográfico, o ensaio, o comentário, o aforismo, o fragmento, a crítica, a resenha,
a montagem, a peça radiofônica, a narrativa e o ensaio radiofônicos, o relato de sonhos e
dos efeitos de drogas, o conto, a novela, o relato de viagem e a descrição de cidades, a
imagem de pensamentos, o poema, o diálogo, a entrevista, o relatório, a crônica, a anotação
autobiográfica, a tradução, a carta, a poesia.
Outra característica de Benjamin que chama a atenção era a sua capacidade de viver
convivendo com o contraditório: cultivava a amizade com Brecht, Adorno, Buber,
Scholem, Bloch, e lia Heidegger, quando cada um desses autores entre si nutria a antipatia
mútua, a discordância explícita nas questões teóricas e práticas, ou até má-vontade e
inimizade mais grosseiras. Para ilustrar este aspecto do jeito de ser de Benjamin, Juergen
Habermas sugere uma cena inusitada, apenas possível para uma imaginação surrealista, ou
seja, em que se sentassem para um banquete pacífico Scholem, Adorno e Brecht em torno
de uma mesa, embaixo da qual estariam acocorados Breton ou Aragon, enquanto Wyneken
estaria à porta, todos reunidos para uma discussão sobre o Espírito da utopia ou até sobre
O espírito como o adversário da alma (Habermas, J., 1981, 338). Poderíamos acrescentar a
esta lista certamente Franz Rosenzweig com “A estrela da redenção” que inicia com as
palavras: “É da morte, do medo da morte, que todo o conhecer da totalidade se inicia”.
(Rosenzweig, F., 3).
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Estudioso do Romantismo e do Idealismo da filosofia alemã, tradutor das obras de
Baudelaire e Proust do francês para o alemão, ligado de maneira tênue à Escola de
Frankfurt, atento a todas as manifestações culturais, políticas, científicas e filosóficas da
primeira metade do século XX, ciente das suas determinações religiosas pela ortodoxia da
teologia judaica e pela cabala com sua ligação com a filosofia pré-socrática e neoplatônica,
conhecedor das questões teológicas centrais do cristianismo, elaborador de teorias sobre a
questão da arte e da estética em geral ligada ao mundo técnico cada vez mais imperante,
interessado em práticas provisoriamente recalcadas no cotidiano público com possibilidade
de virem a se constituir em pesquisa e ciência normal (quiromancia, astrologia, teorias
espíritas, etc), Benjamin a impressão de configurar a própria dispersão pós-moderna no
mau sentido, incapaz de qualquer relação conjugada em condições de sustentar uma
fragmentação de interesses, que parece definitiva. A analogia com o desenvolvimento da
universidade sob os auspícios não suficientemente explícitos dos mitos administrativos,
econômicos e jurídicos parece evidente.
Na aposta de que uma posição filosófica enquanto ponto focal determinante e
subjacente esteja a determinar todo o percurso teórico do autor aparentemente em
dispersão acelerada, a presente tese almeja indiciar, elucidar, apresentar e tematizar, num
percurso meditativo e crítico imanente aos textos, a sua concepção de filosofia como a
contradição da linguagem. Tal posição filosófica vai bem mais além do que a mera
assunção, discussão ou defesa de grupos de conceitos epistemológicos dando a estes
mesmos, exatamente por isso, as condições de um diálogo que não esteja pautado pelo
desejo fundamental de competição e de eliminação mútua. Mais do que apenas um verniz
epistemológico sofisticado em favor de uma retórica de manutenção da filosofia no ápice
da cultura, ela permanece na retaguarda e em meio ao exercício da escuta, da notícia mútua
em admiração e da organização concreta de inter-relações. Independentemente das
aproximações com a arte, a teologia, a história e a política, a filosofia para Benjamin é um
determinado âmbito de abstração reflexiva que se expressa numa postura de avaliação de
auto-compreensão como jeito de ser à medida que constantemente se dá conta e descobre a
contradição da linguagem.
O resultado das mais variadas abordagens da filosofia de Walter Benjamin feitas até
agora não esgotou as possibilidades que acenam desde o enfoque proposto pela presente
tese. A mera afirmação corrente de que não há como sistematizar a produção intelectual do
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autor por certo não deverá desencorajar estudos de compreensão e apresentação filosóficas
de sua obra, sob pena de se estar entendendo a atividade filosófica definitivamente como
simples elaboração e apresentação de sistemas fechados. Como se observou, o próprio
conceito de filosofia é merecedor de atenção acurada na trama de conceitos do autor,
apresentados mais à superfície, e a maior parte da escrita de Walter Benjamin pretende ser
entendida como filosófica. A sua apresentação fragmentada e multifacetada possibilita
entrever uma constelação de elementos capaz de dinamizar as relações da filosofia com as
mais diversas áreas do saber constituídas e da cultura em seus aspectos emergentes.
Geralmente se toma por evidente que o caráter de uma dispersão dialógica, segura de si em
seu movimento, forma-se na suposição de esteios fundamentais e assumidos que o
suportam.
O objetivo específico constitui-se, portanto, no indiciamento, apresentação e
aplicação da contradição da linguagem nos textos do autor, a qual intermitentemente
suscita a curiosidade a respeito das relações que se dão no diálogo entre a tradição factual e
agente sempre presente e o indivíduo em decisão constante, bem como a mesma tradição
identificável no outro e o mesmo indivíduo em atitude de silêncio e atenção ao significado
para si, uma atitude que, por sua vez, constituiria a possibilidade de ampliação da
experiência sobre si mesmo. O percurso de vida na linguagem como condição de
possibilidade fundamental sedimenta ou destrói caminhos de significação relacionados a
conceitos, tais como: jogo, máquina-automação, transparência, fundamentação,
objetivação, reificação, esquecimento, construção em correspondência infinita, interno e
externo, materialismo, história, política e teologia.
Pelo exposto, o método empregado do presente trabalho será o constante diálogo
crítico com os textos em questão, visando uma interpretação interna e seqüente
apresentação do sentido do texto e nele enfocando insistentemente a tese de que o
pensamento filosófico de Walter Benjamin se pauta pela descoberta, apresentação e
aplicação da contradição da linguagem. Pelo fato do comprometimento intransferível que
a própria contradição da linguagem aponta, a interpretação e a apresentação exigem cunho
meditativo e reflexivo.
Desde já, porém, é possível e, quem sabe, necessário visualizar alguns parâmetros
em relação ao pensamento de Benjamin, quais sejam:
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A concepção de filosofia de Benjamin caracteriza-se primeiramente como um
exercício em que se apresenta constantemente a possibilidade de relação com todas as
áreas de saber, mesmo em meio à proliferação das idéias de descentramento desesperado
da pós-modernidade. A sua aposta e descoberta fundamental é a de que, pela contradição
da linguagem, uma relação entre todas as áreas e que exatamente lhes condições,
mesmo que estejam sendo negadas em exercício empírico. Tudo provém como que de um
fundo não identificável, mas suposto inevitavelmente, e esse todo fundamental, quando
exposto, é nessa manifestação sempre parte precária e parcial de si mesmo, pois no próprio
dizer, descrever, definir e nomear constantes chama a atenção para o fato de que sua
exposição descritiva é apenas atividade participativa nele, mas de evidente importância.
Todos os temas abordados nas diversas regiões do saber indiciam esse fundo ambivalente
que se mostra na ocorrência do empírico em evolução operatória construtiva. É
transcendental? É theos a forçar a tematização do aspecto teológico como constante
referência do logos a si mesmo? Ou, é no máximo a possibilidade de apenas se poder
apontar de que condição de possibilidade, sem a capacidade e o direito de nomear algo
como se fosse um ente constantemente suposto em forma de figura definível e possível de
ser circunscrita por conceitos de modo cabal, pois que quando nomeado é apenas
descoberto retraindo-se cada vez mais, como se fosse a destruição da apodicidade com que
no empírico se justificam os julgamentos? Toda a tematização de Benjamin, por exemplo,
sobre a conservação da aura ou a sua destruição na arte contemporânea tem a haver com
esse quadro; pois motivos de se poder entender a discussão sobre a aura como se fosse
um constante indício ao modo de um dar-se conta e de uma recordação involuntária do
acontecer além da mera mecanicidade normal do empírico já em operação geral.
Na tematização das mais diversas áreas do saber Benjamin preocupa-se com a
postura e o papel da filosofia. A pergunta central que transparece é a de como se pode ou
deve entender a atividade filosófica em meio aos fenômenos mais diversos da pós-
modernidade em seus deslocamentos radicais em termos de teorização no âmbito das
ciências humanas, das ciências exatas, das artes e da teologia. Sem poder substituir a
vitalidade emergente da atividade nos campos mencionados ela acontece como procura de
relação pelo próprio processo de sua auto-limitação tendo a contradição da linguagem por
pano de fundo como que avaliador do que acontece à frente.
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Por isso, caso a filosofia arvorar-se a ser como as ciências, erra; pois estaria
abandonando o seu próprio aspecto enquanto âmbito descritivo à procura das condições de
possibilidade do que se apresenta como efetiva realidade exatamente através das mesmas
ciências. O aspecto construtivo da filosofia, que Benjamin por vezes menciona, deve ser
entendido pelo viés da destruição do caráter ingênuo da sua positividade científica
caracterizada pelo esquecimento de que seus próprios supostos epistemológicos e
fundamentações teóricas são possibilitados por condições que a suportam e que
desconhece. Esse caráter destrutivo é especificamente mencionado no texto intitulado O
caráter destrutivo. Por isso, explica-se o construtivo não como mera positividade
esquecida na auto-sedução da sua promoção estratégica, mas como atividade de encontros
e oferta de cenário pelo pano de fundo relacional aventado, pela procura e descoberta de
princípios, quando não até como alargamento de horizontes além de totalizações
provisórias com falso aspecto de definição última.
Caso a filosofia arvorar-se a promover a suspensão das ciências, erra; pois a
atividade filosófica mesma depende delas, está em seu meio fazendo uso das conquistas
dos seus resultados histórico-sociais em sua própria elaboração e considera-as como, no
mínimo, uma das condições reais da sua atividade de descrição e de surgimento da sua
temática própria. Exemplos, metáforas e conceitos fundamentais que sustentam as
argumentações científicas são constantemente usados, analisados e dinamizados na
evolução temática do diálogo da filosofia com as ciências, bem como nas conversações
entre direções filosóficas gerais no intuito de visualizar possibilidades de justificação do
estatuto da sua existência.
Caso a filosofia arvorar-se a querer fundamentar as ciências no sentido de justificá-
las, erra; pois estaria na situação de mera construção estratégica e desistindo da sua
atividade como elucidação descritiva dos pressupostos que as constituem. As ciências, em
sua positividade em constante elaboração operatória e experimentação e em sua constante
auto-construção por dedução de princípios e axiomas aceitos em caráter definitivo,
realimentando-se sem cessar da sua própria evolução sem necessidade do suporte
estrangeiro e sacerdotal das especulações filosóficas, ressente-se da falta de interlocutores
para o diálogo possibilitador da emergência do sentido do seu fazer, bem como da
visualização de horizontes indicadores da sua localização no todo da cultura humana.
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Caso a filosofia entender-se como sistema capaz de englobar o todo em tudo
sempre, erra; que a descrição, mesmo que inclua em si inevitavelmente algum aspecto
ordenador, pode existir na suposição de emergência em nova compreensão e
experiência.
A filosofia pode, a partir das ciências, elaborar-se especulativamente e de forma
relacional com elas tendo-as como suposto; pois seria ingenuidade querer prescindir da sua
existência pelo simples fato de fazerem parte do todo da compreensão ocorrente
enquanto desenvolvimentos, deslocamentos e constelações de idéias arcaicas primeiras
sempre presentes na linguagem do uso cotidiano, pleno de senso comum científico, quando
não em forma das mais diversas metáforas, analogias e comparações.
A filosofia a partir da contradição da linguagem sempre relacionada com a história,
com a pesquisa e com o aspecto criativo da arte descobre deslocamentos, novas formações,
transformações a partir de elementos comuns e aponta a transfiguração dos mesmos em
novas constelações ativadas como travejamento para a compreensão normalizada de
épocas inteiras. A essa temática agregam-se os conceitos de tradição, origem, aura e tempo
para serem relacionados à compreensão do que seja a aventada normalidade da conexão
entre sujeito e objeto.
A filosofia é como que o âmbito de atenção ao que se apresenta como realidade
natural fenomênica em todas as áreas para a constante descoberta das suas condições de
possibilidade em termos relacionais. Ela se reveste de especial importância pelo fato de ser
a participação privilegiada na totalidade inevitavelmente suposta como a tarefa do
pensamento, assim como foi elaborada pelos pensadores pré-socráticos. O aporte que
promove das mais diversas tradições pela relação que com elas tem e o seu aproveitamento
em exemplificação reflexiva para a compreensão da contemporaneidade -lhe a
característica de concretude, complexidade e veracidade.
Exatamente pelo fato de que a obra de Benjamin se apresente minada de alusões e
sugestões e, por isso, usada para os fins mais contraditórios, é necessário um esforço no
trabalho de garimpo do fio condutor dos seus textos. Ainda em abril de 1940 Benjamin em
carta menciona a permanência de idéias fundamentais que povoavam o seu espírito e que
aproveitava no texto das teses Sobre o conceito de História, o qual seria o seu derradeiro,
apenas seguido do seu Curriculum Vitae em fins de julho de 1940:
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A guerra e a constelação que a trouxe consigo levou-me a
por no papel alguns pensamentos, dos quais posso dizer que por
volta de vinte anos guardei comigo, sim, até de mim mesmo...Em
todo o caso, quero chamar a tua atenção especialmente para a
reflexão XVII; é ela que deverá fazer reconhecer o nexo velado,
mas concludente, dessas considerações com os meus trabalhos
anteriores, na medida em que ela se manifesta sem rodeios sobre o
método das últimas [das teses].(GS 1226)
O texto da tese em questão junta de forma sucinta filosófico-criticamente
preocupações quanto à linguagem sobre narrativas historiográficas, ou seja, de um lado, o
historicismo em seu viés objetal a fundamentar-se numa base teórica ingênua, que não
subsiste à crítica pelo fato de se esquecer da sua auto-inclusão no que diz e, de outro, a
historiografia materialista proposta, que sabe do seu comprometimento construtivo quando
promove a ruptura com o fluxo explicativo normalizado imobilizando o pensamento em
nova configuração de presente e passado, capaz de fazer emergir o não pensado, o
recalcado ou o esquecido em seu valor de compreensão atual. Na linguagem ocorrente da
narrativa histórica que se em tensão com todo o passado presente esquecido, o próprio
tempo se gera possibilitando nova objetivação: o tempo é carente do gosto da objetivação e
da sedimentação de novas configurações de sentido que se estruturam para normalizar-se
de época em época.
O historicismo culmina na História Universal. Pelo seu
método, a historiografia materialista se distingue dessa história
mais nitidamente, talvez, do que todas as outras historiografias.
Falta ao historicismo arcabouço teórico. Ele procede por adição;
convoca a massa dos fatos a fim de preencher o tempo homogêneo
e vazio. A historiografia materialista, ao contrário, repousa sobre
um princípio construtivo. Não é movimentar o pensamento que
é próprio ao pensar, mas, igualmente, imobilizá-lo. Ali onde o
pensamento se imobiliza em uma constelação saturada de tensões,
ele comunica a essa um choque que faz com que ele próprio se
cristalize em mônada. O materialista histórico se aproxima de
um objeto histórico quando vai ao encontro desse objeto como
uma mônada. Ele reconhece nessa estrutura o sinal de uma
imobilização messiânica do acontecer; em outras palavras, uma
oportunidade revolucionária no combate pela libertação de um
passado de opressão. Ele percebe essa oportunidade de fazer com
que uma determinada época irrompa do transcurso homogêneo da
História; assim, ele faz explodir, de dentro de uma época, uma
determinada vida; de dentro de uma obra de vida, uma
determinada obra. O resultado de seu procedimento é que, na
obra, é conservada e subsumida a obra de sua vida; na obra, todo
o transcurso da História. O fruto nutritivo daquilo que é
historicamente conceptualizado contém em si o tempo qual
semente preciosa, mas carente de gosto (GS I-2, 691).
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Numa abordagem preliminar da questão da linguagem é possível afirmar que os
textos Metafísica da juventude, Dois poemas de Friedrich Hölderlin (1915) e Drama e
tragédia (1916), bem como Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana
(1916) e Sobre o programa da filosofia vindoura (1918) determinam em grande parte as
escolhas conceituais de Walter Benjamin neste campo, dando como que a direção dos seus
interesses e da sua posição filosófica. Muitos autores mencionam uma filosofia da
linguagem, o que se constitui em interpretação do próprio conceito de filosofia assim
como Benjamin o entende. Não se trata de construção sistemática e de explicitação de uma
teoria, mas de uma tentativa de exposição prévia e reflexiva da tarefa do pensador por meio
de materiais literários da tradição em forma de mito, sempre na circunscrição da linguagem
que em seu exercício perfaz uma contradição fundamental, ou seja, aponta para algo
externo a si na suposição de fundamento absoluto também externo, mas tendo que se
recolher a si mesma a cada instante na compreensão de que as suas suposições igualmente
fazem parte do seu repertório. Desde logo um interesse pela elaboração significativa e
atual das experiências da humanidade em forma de textos das mais diversas tradições ao
dispor de todos.
A linguagem não é uma particularidade do homem. Na criação tudo é linguagem e,
por isso, entre a linguagem em geral encontra-se a do homem.
O que a linguagem comunica? Comunica a essência
espiritual correspondente. É fundamental saber que essa essência
espiritual comunica-se na linguagem e não pela linguagem. Não
existe, pois, nenhum locutor de linguagens quando se designa
deste modo aquele que se comunica por estas linguagens (GS II-1,
143).
A linguagem comunica-se por si mesma de forma absoluta imediatamente
como as coisas e os acontecimentos e não pode ser compreendida como meramente
instrumental veiculando somente conteúdos sobre algo como algo.
A opinião de que a essência espiritual de uma coisa
consista exatamente em sua linguagem essa opinião entendida
como hipótese é o grande abismo, no qual toda a teoria da
linguagem ameaça decair, enquanto que a tarefa é conservar-se
flutuando acima, exatamente sobre ele. (GS II-1, 141)
16
A linguagem é a expressão em locução ocorrente da essência e nunca a própria
essência em si nela somente objetivada. A idéia é que a linguagem descreve o ser humano
seja qual for o conteúdo a que se atém, havendo, portanto, uma ambigüidade fundamental
nela mesma quando sempre exerce a capacidade de apresentação de si e dos conteúdos
veiculados em seu querer dizer. Numa nota à frase citada Benjamin pergunta: “Ou não é
antes a tentação de pôr a hipótese no início que faz o abismo de todo o filosofar?” (GS II-1,
141). A pergunta é pertinente e é a indicação de uma das questões filosóficas fundamentais
de Benjamin, ou seja, a constante objetivação necessária para que a linguagem possa
existir como atividade de apontar para algo, mesmo que espiritual, em constante
dependência das hipóteses que, desconhecendo-as ou não, possibilitam o seu exercício
atual. O flutuar acima do precipício parece ser possível como equilíbrio entre a atração do
irracionalismo místico desinteressado de suas origens e a objetivação seduzida
definitivamente por sua própria consistência. As possibilidades entre ambos Benjamin
descreve com a ajuda dos textos conhecidos do AT, através dos quais consegue expor as
dificuldades da situação humana como se fosse uma teatralização. Todos os textos são
elevados hermeneuticamente como que a uma segunda potência para se tornarem
significativos na cultura atual à qual eles mesmos servem de suporte, por vezes
completamente esquecido nas operações de superfície.
Juntamente com as questões sobre a linguagem uma determinada concepção de
teologia perpassa toda a obra de Benjamin. Desde os textos da juventude em que diz: “No
gênio Deus fala e escuta a contradição da linguagem (...)” (GS II-1, 93). “O gênio falante é
mais silencioso do que aquele que escuta como o que reza é mais silencioso do que Deus”
(GS II-1, 93), até a primeira tese de “Sobre o conceito de história” encontramos referências
sobre teologia:
É conhecido o caso do autômato construído de forma
a ser capaz de responder a todos os lances de seus
adversários no jogo de xadrez, vencendo assim todas as
partidas. Um boneco vestido à turca, narguilé na boca, está
sentado diante do tabuleiro, que repousa sobre uma larga
mesa. Um jogo de espelhos cria a ilusão de que a mesa é
totalmente transparente ao olhar. Na realidade, esconde-se
nela um anão corcunda, mestre na arte do xadrez, que,
através de fios, dirige a mão do boneco.
2
No campo da
filosofia, pode-se imaginar um equivalente desse aparelho. O
boneco chamado “materialismo histórico” deverá ganhar
17
sempre. Ele poderá desafiar ousadamente qualquer um, se
puser a seu serviço a Teologia, que hoje, como se sabe, é anã
e feia e, além disso, não ousa aparecer.(Benjamin W, GS,
Band I-2, pg 504).
É necessário atentar para o fato de que as questões teológicas não podem ser
entendidas de forma alguma como reiteração das simplificações religiosas e confessionais.
O sagrado em Benjamin é muito mais imanente ao próprio acontecer do real entendido
como operação concreta acompanhada da multiplicidade multifacetada e complexa das
suas justificações teóricas e, exatamente por isso, é muito mais distante do que a
compreensão ingênua construída pelos postulados interesseiros da esperançosa em
certeza e segurança num sonho em sono dogmático. A teologia constitui-se como o
conjunto das próprias condições de possibilidade da compreensão ocorrente em todas as
áreas da cultura, mas completamente esquecida enquanto origem de todas as manifestações
que fenomenalmente perfazem a sua construção positiva em forma de normalidade
naturalizada. A teologia fala construtivamente determinando as relações, os meandros e as
sistematizações do mundo da vida, englobando até as tentativas de administração geral do
mundo científico em sua dinâmica em aceleração atordoante e difícil de visualizar pela
quantidade de suas fragmentações. O anão esquecido na máquina é a farsa da inexistência
da teologia. No interior da máquina está a manipular um jogo desde o início viciado
quando esquecido e transparente ao olhar. A sua descoberta é essencial, e essa é a tarefa da
filosofia como âmbito em que se possibilita a abertura de portas para a liquidação de
transparências falsas.
Quanto à história, nos textos sobre o sentido autêntico da crítica romântica, ou
sobre afinidades eletivas de Goethe, sobre o drama barroco ou sobre a poesia de
Baudelaire, Benjamin defende a idéia da salvação de uma significação que está ameaçada e
que forma ou pode formar uma relação em termos de constelação com uma experiência
crítica bem determinada do presente. Os sentidos ocultos, esquecidos ou escamoteados por
interesses da história construída pelo viés do historicismo com intenções positivistas,
podem tornar-se altamente esclarecedores e vitais para a atualidade, estabelecendo, assim,
uma importância política a partir da ruptura que promovem com a quebra da narrativa
comum que perfaz a compreensão de todos. Não se trata somente sobre discussões a
respeito de fatos históricos à disposição na linha do tempo, mas muito mais da descoberta,
relativização ou até destruição de certos princípios das narrativas históricas como, por
18
exemplo, a crença ingênua no progresso, a tese subjacente de uma linha do tempo
homogêneo e vazio, ou a projeção de uma história universal com intenções de mapeamento
científico e absoluto de dados até estatisticamente disponíveis. Também aqui a história é
entendida como narrativa em forma de linguagem e que deve merecer a análise sob duas
perspectivas, ou seja, uma vez como fala em sua intenção explicativa de conteúdos e fatos
e, outra, como um conjunto discursivo possível a partir de critérios e compromissos, os
quais nem sempre são declarados pelo narrador por inconsciência ou por interesse
específico.
O passado na história do presente do historiador narrador é constante citação
conforme as determinações da sua compreensão, a qual, por sua vez, é de constituição
multiforme e não enfeixada pelos princípios meramente científicos que apresenta como
suporte. A consciência desse estado de coisas muda a mentalidade do historiador
obrigando-o ao constante re-exame da conveniência da escolha das suas citações e
elaborações interpretativas, re-exame que é remetido ao que subjaz à narração histórica
enquanto princípios ainda não descobertos ou não justificados por argumentação mais
abrangente e convincente.
A história naturalizada assim entendida pelo conjunto das forças compreensivas da
atualidade é a normalização da catástrofe em andamento vislumbrada com olhos de pavor
pelo anjo da história, do qual fala a IX tese de Sobre o conceito de história. A mesma
história na XIX tese do mesmo texto é considerada como o catastrófico saque durante
séculos de grande parte da humanidade e que, por uma inversão em forma de esquecimento
programado, leva, além de tudo, a honra de ser a herança cultural da humanidade.
Na questão da história que ter cuidados com a questão da verdade apofântica e a
verdade enquanto acontecimento narrativo comprometido com pressupostos
desconhecidos. Não é possível imaginar que se trata de justificar a mera pregação a favor
de um sistema doutrinário e com isso capaz de permanecer em permanente ortodoxia com
ares de juventude, mas exatamente do seu contrário: a narrativa histórica consciente do seu
estatuto de narrativa pode despender cada vez maiores esforços para aprofundar a sua
verdade em termos de verdade entendida como adequação sem, porém, esquecer da sua
condição de verdade perpetuamente no âmbito de uma apresentação inevitavelmente
pragmática.
19
A arte é também uma linguagem e é tal que com mais autenticidade representa a
verdade, pelo fato de preservar a capacidade humana de nomear. Benjamin em sua análise
da linguagem considera que a faculdade de nomear sofreu uma cisão em que permanecem
separadas a imagem e a significação abstrata e que ambas podem estar unidas nas obras de
arte dependendo da sua maior ou menor autenticidade. que, então, constantemente
depender das análises possíveis da arte atual como se fossem acessos diretos à verdade, à
manifestação do sagrado e à origem sempre pronta a promover a ruptura com as
normalidades catastróficas de cada época. É por isso que Benjamin busca apaixonadamente
o entendimento de Hölderlin, de Goethe, do período barroco e, entre outros mais, os
movimentos teóricos e autores de vanguarda como o Surrealismo, Kraus, Kafka, Klee,
Proust e Brecht.
O romantismo de Iena fez uma interpretação da Crítica do juízo de Kant, na qual
Benjamin se inscreve. Desde Kant até Hölderlin na filosofia uma grande discussão
sobre as proibições de saltos à metafísica por parte do pensamento crítico. Tal discussão a
respeito da coisa em si, de uma natureza além da natureza articulada pelo acesso do
entendimento e de uma origem única, fundamental e exprimível conceitualmente por meio
de processos reflexivos ocupou filósofos da grandeza de Fichte, Schelling, Hegel, os
irmãos Schlegel e Novalis. Transgredir os impedimentos que os laços da conceituação
racional apresentava foi a solução que mais seduziu a partir dos parágrafos 76 e 77 da
Faculdade do juízo, os quais propõem uma natureza que de certa forma trabalha às costas
ou coincidentemente com o ser humano propondo através das obras do gênio novas origens
em forma da expressão do belo em termos de manifestação do absoluto. O belo assim seria
sinal sensível da idéia ou do absoluto inacessíveis ao conhecimento racional. Hölderlin
interpretava esse estado de coisas no sentido de que o gênio poeta é responsável pela tarefa
de dar forma ao sentido último a que até Deus deve servir.
No seu trabalho investigativo sobre “O conceito de arte no Romantismo alemão”,
Benjamin adere à especulação romântica com o seu conceito central de reflexão e
apresentando o mesmo em três níveis, quais sejam, o conceito filosófico desenvolvido por
Fichte e interpretado pelos românticos, o princípio estético de reflexão como crítica
romântica e o conceito artístico de reflexão enquanto cuidado e oposto ao êxtase criador
que nada deixa restar para o trabalho crítico e conceitual.
20
O método de Benjamin não pode ser apenas circunscrito às suas explicações da
Origem do drama barroco alemão como sendo tratado e desvio com todas as suas
implicações teóricas, nem o método de citação na perspectiva de montagem, mas, mais
além, também a descrição das decisões fundamentais que transparecem como pressupostos
em parte em seu procedimento de análise descritivo e em parte expressos como indicação
de rumo imprimido à sua concepção de filosofia e circunscrevendo a sua posição. Tanto o
uso técnico de formas de linguagem fazendo parte da sua própria pragmática discursiva
como a apresentação objetiva de conteúdos definidos em tempo de transmissão fazem parte
do seu método efetivo. Também que ser lembrada, por um lado, a grande versatilidade
de Benjamin no uso de formas literárias para a expressão máxima dos seus conteúdos e,
por outro, as suas indicações da tarefa de pensar, de atenção, de escuta, de experimentação
com pensamentos, de elogios, de construção e destruição, de desenterrar, de silêncio e de
diálogo.
Desde a análise da tarefa e das possibilidades da linguagem até a posição segura
quanto ao trabalho do narrador historiador, encontra-se em Benjamin a questão política em
maior ou menor grau. Nas teses Sobre o conceito de história temos advertências, anátemas
e juízos desfavoráveis à ortodoxia marxista e à social democracia traidoras por
permanecerem renitentes em posições de cunho meramente estratégico para a manutenção
de uma positividade embotada, mas também encorajamento à esperança, à participação e
ao orgulho de camadas sociais desfavorecidas na construção da catástrofe histórica da
humanidade. Encontramos desde o início a alusão de que a linguagem humana por si
mesma na sua contradição, por um lado, objetiva-se por motivos de estratégia política e,
por outro, é expressão com a sugestão de que ela seja participação ativa no todo da
linguagem em geral. que valorizar todas as elucubrações teóricas de Benjamin como
sendo ensaios e experimentações participantes para o ordenamento, deslocamento e
configuração da constelação do todo da cultura como o seu destinatário e o seu remetente
ao mesmo tempo. A idéia é a de que toda a sua obra se inscreve de forma conscientemente
ativa no todo da participação universal.
Conforme o expressa a I tese de Sobre o conceito de história, a filosofia é um
âmbito. Nesse âmbito há projeção, experimentação, exemplificação e, com tudo isso,
produção de tensão ao molde da imagem dialética, que é paralisação do pensamento como
se fosse mônada plena de tensões entre sentidos emergentes do passado presente e o fluxo
21
compreensivo tradicional no comando gerencial dos passos do atual. Assim, quem estuda
Walter Benjamin dever-se-á dar conta de pelo menos três aspectos centrais da sua obra,
quais sejam:
Em primeiro lugar, a menção dos filósofos e a relação teórica de Benjamin com
eles. Encontram-se menções desde os pré-socráticos, Sócrates e Platão até Adorno, o que
evidencia o profundo arraigamento de Benjamin na filosofia ocidental com o seu viés de
entender-se e conduzir-se como tarefa do pensamento a relacionar a totalidade dos
fenômenos. Tal dependência da centralidade da filosofia do ocidente não elimina a força
arcaica de significação metafórica dos textos da tradição veiculados pelo AT e NT e pela
tradição da Cabala judaica, brilhantemente pesquisada e reconstituída pelo amigo de
Benjamin Gershom Sholem.
Em segundo lugar, a descrição da apresentação própria de Benjamin nos textos do
que seja filosofia enquanto conteúdo e exercício. É notório o fato de que em todos os
textos mais importantes Benjamin se esmera na oferta de parâmetros epistêmico-filosóficos
para o que quer dizer. Basta que se mencione a introdução à Origem do drama barroco
alemão e as conhecidas teses de Sobre o conceito de História, que estavam destinadas para
servir como moldura para todo o pensar a ser exposto no trabalho sobre A Obra das
passagens.
Em terceiro lugar, a atenção principalmente à relação entre as questões do método e
os supostos que o possibilitam, bem como dos conteúdos por meio dele tratados.
Como foi expresso anteriormente, um dos interesses maiores da pesquisa e da
elaboração da tese intitulada A contradição da linguagem em Walter Benjamin surge do
aspecto relacional da filosofia com todas as áreas do saber que a contradição possibilita, a
começar com a teologia como exemplo. Na teologia, projetada anteriormente como sempre
presente, mesmo que negada, encontram-se semelhanças entre os aspectos religiosos e os
científicos. Trata-se do fato de que anão teológico na máquina da vida administrada e a
filosofia, então, é o embarque na aventura da aposta e do exercício de encontrá-lo
descobrindo-o a comandar o jogo instituído até nos nimos detalhes do cotidiano. A
própria possibilidade de um constante exercício de hermenêutica sobre cada um dos
fundamentos que constitui a constelação anã com pretensão de exclusividade em todos os
meandros do dia a dia, a própria condição de atividade de tematização sobre qualquer
justificativa filosófica fundamental, denuncia a extrema dificuldade de fixar de uma vez
22
por todas os arcanos do universo e do ser. Além disso, quando se tem a pretensão da
análise, do diagnóstico de uma determinada estrutura do mundo, tal atividade acontece no
suposto de explicação em termos de causa e efeito na linha do tempo: a explicação
acontece e existe como produto de causas passadas pelo modelo genético de compreensão.
Porém, na relação entre filosofia e teologia, o articulador-enunciador da explicação é visto
como a autor-criador da explicação existente, mesmo quando não se dá conta disso. As
dificuldades do articulador-enunciador são as de uma cisão fundamental que
resumidamente pode ser assim descrita: a linguagem e a racionalidade ativadas ao que
vieram, num primeiro instante, têm a pretensão de excluírem a si mesmas de todas as
implicações do estatuto de dependência da presença dos resultados da explicação e
interpretação realizada. O autor não se compromete com a sua obra e relega-a a um mundo
independente de si. O autor se aliena da sua obra e não se compreende e não se vê mais
nela. Mas o autor enquanto articulador-enunciador constitui-se da sua própria explicação e
interpretação, tanto que é a totalidade daquilo que compreende que seja. Dá-se o caso,
então, que até a explicação dos fatos em termos de causa e efeito em linha do tempo
reservada à compreensão do que seja o exercício externo a si deve ser a ele aplicada, a tal
ponto de exclusiva particularidade, que a sua pretensão de ativar algum olhar fora do
mundo e além dele é inteiramente relativizada. Permanece a explicação e o sentido dado
independentemente do autor, mas de qualquer forma ele é identificado enquanto autor e
promotor de explicações e interpretações e por elas responsabilizado. Autor e autoria e
obra identificam-se completamente e não possibilidade de ser autor independente sem
compromissos com a sua obra e os seus supostos. O autor de explicações e interpretações é
ator, agente de si mesmo a se expressar e identificar pela linguagem das suas obras.
Não é possível à filosofia abordar ao mesmo tempo todas as áreas do saber em
apresentação e aplicação na Universidade, pelo simples fato de que as ciências se mantêm
num processo acelerado de fragmentação, o qual força a vista de todos os mortais que
queiram visualizar a sua amplitude em termos de simples quantificação e ridiculariza a
quem se atrever a posar de perito em cada uma das suas especificidades, mesmo que seja
sob o viés único da epistemologia. Por isso, a intenção de visualização possível pode
concretizar-se por meio de caracterizações gerais, comuns a todas as áreas científicas e
tecnológicas, e os exemplos trazidos para a descrição da relação e da descoberta na obra de
Benjamin talvez nunca possam fazer justiça à totalidade das reivindicações trazidas desde
23
os aspectos da amplitude e da especificidade. Mas eles devem valer por isso mesmo, ou
seja, exemplos de descoberta.
É necessário acentuar que no rol das ciências e das tecnologias também estão
incluídas as ciências humanas que abordam analiticamente outras ciências, que se trata
em grande parte da mesma intenção de objetividade científica e de competência
tecnológica na manipulação de resultados obtidos e do seu possível aproveitamento num
mundo tido por administrável por meio dessa atividade.
Na relação entre filosofia e ciências certamente as questões epistemológicas,
ligadas ao mesmo tempo com as questões sociais, são as mais salientes, o que podemos
inferir da forma com que Benjamin apresenta essa temática no seu texto “A arte na era da
reprodutibilidade técnica”, em que encontramos imbricadas as questões da arte, da ciência
exata e da técnica, dos aspectos sociológicos, dos aspectos teológicos, da política, e de
execução de análise filosófica. Na obra de Benjamin encontram-se concentradas as
descrições do aspecto maquinal do mundo, com todas as suas promoções na área da
teologia e das ciências de forma prática, na férrea tentativa de unilateral condução
organizada da vida por supostos e suportes teóricos, mas também com todas as suas
implicações subjacentes em termos de produção de sentimento da necessidade de
recorrência de idênticos círculos compreensivos visualizáveis, transparentes, objetiváveis
e, por isso, domináveis por quem tem acesso ao repertório estatístico do que foi, é assim e
talvez será construído sem o concurso do âmbito da filosofia.
A presente tese sobre A contradição da linguagem em Walter Benjamin deverá ser
vista como emergente do ambiente de conferências, discussões e estudos de Pós-
Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre com o aporte da
experiência de docência na Unijuí. Tal convivência possibilitou a compreensão mais
acurada da fundamental inserção do pensamento de Walter Benjamin na tradição da
filosofia alemã, pois é nela e na sua relação com a filosofia européia em geral, desde a
origem no pensamento pré-socrático, que todos os temas ligados ao núcleo mencionado
têm uma vasta elaboração precedente. A menção em diversos textos de filósofos como
Leibniz, Kant, Fichte, Hegel, Schelling, os irmãos Schlegel, Novalis, Nietzsche, Marx,
Simmel, Rosenzweig, Heidegger, Bloch, Lukács, bem como os poetas e escritores Goethe,
Schiller, Hoelderlin e Brecht entre outros, atestam a relação de profunda inserção numa
24
tradição cultural resultando na recepção de um conjunto de temas que Benjamin re-elabora
procurando desenvolver criativamente.
A título de exemplo mencionamos algumas aproximações, recepções e
aproveitamentos temáticos que evidenciam a profunda ligação com a filosofia alemã, sem
com isso querer negar o diálogo realizado com a filosofia européia em geral..
na sua juventude Benjamin participou de um movimento pedagógico
determinado em parte pela filosofia de Hegel e que foi dirigido por Gustav Wyneken.
Chegou até a colaborar com esse assim chamado Movimento da Juventude Livre Alemã
(Freideutsche Jugendbewegung) na edição de uma revista intitulada Anfang (Começo), na
qual os seus próprios artigos indicam a influência de Nietzsche e da sua visão sobre a
Grécia clássica. Mais tarde, do texto de 1915 A vida dos estudantes, inferimos influências
dos primeiros românticos, também ainda de Nietzsche, bem como de temáticas metafísicas
de Platão e Espinoza. As questões abordadas tratam da revalorização da teoria, combate à
petrificação do estudo como simples superposição de conhecimentos, inserção no espírito
de totalidade, consciência quanto à utilização de teorias em sua capacidade de expressar a
plenitude do espírito humano.
No texto intitulado Programa da filosofia vindoura, de 1918, registram-se
preocupações teóricas ligadas ao filósofo Kant e ao kantismo da época: a questão do
transcendental posto em termos definitivos ou históricos na filosofia; a possibilidade de
conservar em toda a filosofia uma determinada tipologia kantiana, mas aduzindo
preocupações com a linguagem, a religião, ao conceito de identidade; reformulação do
conceito de experiência para que se torne muito mais rico do que aquele que foi concebido
na época de Kant; produção de uma concepção de história que Kant teria deixado em
aberto. É possível aqui afirmar que Kant será um dos grandes interlocutores de Walter
Benjamin em todas produções pela presença dos seus pensamentos em torno da moral, da
liberdade, da revolução, da violência, dos critérios para o diagnóstico de produção de
teorias capazes de erigir um conceito de história plausível, além daquele elaborado pelo
historicismo. Além disso, é inegável que todos os temas ligados às questões estéticas em
geral e da beleza, sobre os quais Benjamin escreve, têm profunda ligação com a terceira
crítica kantiana, a Crítica do Juízo, principalmente os conteúdos dos seus parágrafos 76 e
77, já fartamente elaborados interpretativamente até então pelo idealismo alemão e o
primeiro romantismo na direção de uma grande valorização do termo Natur, ou seja, uma
25
natureza além daquela que segundo a CRP é produzida pelas condições transcendentais do
conhecimento humano.
No texto “O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão” mencionam-se
algumas perspectivas da filosofia de Fichte, dos irmãos Schlegel e de Novalis, rastreando
desde Fichte o conceito de reflexão e o seu aproveitamento no primeiro romantismo. A
crítica romântica é descrita em sua pretensão de ser equiparada à própria criação artística
de maneira inteiramente positiva, prolongando de modo ininterrupto a fruição estética, mas
também acusada de não apresentar em si um momento negativo.
Origem do drama barroco alemão é um texto de Benjamin fartamente comentado
por muitos peritos, mas que, mesmo assim, ainda apresenta grandes dificuldades para o seu
entendimento pelo fato de o autor supor em cada leitor o conhecimento de uma grande
herança filosófica pelos conceitos com que se expressa. Jeanne-Marie Gagnebin sobre ele
assim se expressa: “Tenta-se lê-lo, não se o entende, tenta-se esquecê-lo, retorna-se a ele,
pressentindo que se encontram algumas das noções-chave de toda a filosofia
bejaminiana: origem, salvação, mônada, alegoria, melancolia, para citar as mais
conhecidas” (Folha de São Paulo, 9-12-1984). Contrapondo o drama barroco à tragédia
clássica, Benjamin aproxima por pré-figuração tal drama à nossa forma de compreender
contemporânea em que os valores absolutos estão morrendo ou morreram, restando um
luto em que nós nos reconhecemos incessantemente sentindo-nos culpados e, por isso,
alegorizando intermitentemente ao dizer uma coisa e sabendo, ao mesmo tempo, que
significa outra, remetendo-nos sempre a outros níveis de significação. Nas questões
mencionadas na “Origem do drama barroco alemão” aparecem discussões quanto ao
estatuto da idéia em relação aos conceitos e fenômenos, à linguagem, à verdade, ao método
e propriamente à filosofia, todas elas enredadas pela tradição da filosofia alemã, devendo,
por isso, tal teia merecer a pesquisa mais intensa e a atenção cada vez mais acurada.
A relação entre idéias, conceitos e fenômenos que é articulada, por exemplo, na
Origem do drama barroco alemão parece oferecer um contraponto à filosofia de Hegel.
Quando em Hegel o conceito é a consumação de todo o trabalho do espírito, pelo qual a
razão alcança a visão e a assunção dos seus próprios limites para, então, poder superar-se a
si mesma, em Benjamin o mesmo cumpre o papel de mediação entre idéia universal e
fenômenos singulares. A fim de que não sejam dispersos os fenômenos são arrebanhados
pelos conceitos, os quais, por sua vez, se configuram em idéias universais. Estas idéias
26
dão, então, sentido a tudo, como se fossem constelações formadas do material conceitual e
fenomenal. As idéias o pensadas como um campo de forças com características de
universalidade dinâmica, conforme a terminologia de Leibniz, isto é, como mônadas: não
como realidade superior e à parte de acordo com a conhecida interpretação platônica, mas
como concretamente ligadas à linguagem como um elemento simbólico essencial à
palavra. Essa forma de ver releva imediatamente a importância do papel da linguagem na
filosofia de Benjamin, a qual efetivamente representou uma preocupação constante no
conjunto do seu pensamento. Já em 1916 havia surgido o texto Sobre a linguagem em
geral e sobre a linguagem do ser humano e, depois, em 1933, A doutrina da semelhança e
Sobre a faculdade mimética. Mais tarde ainda, em 1935, Benjamin escreveu Problemas de
sociologia da linguagem. Haman e Humboldt são nomes da filosofia alemã, que
imediatamente se apresentam como referências para esse círculo de preocupações à
procura de dar conta da concretude dos termos da linguagem sempre em perigo de se
desvincularem do seu chão para se exilarem em abstrações muitas vezes inúteis.
Ao conhecer Bloch no ano de 1919 e seu livro O espírito da Utopia, com o passar
do tempo Benjamin foi influenciado por este filósofo à leitura e estudo de História e
consciência de classes de Lukács, o que lhe abriu as possibilidades de pensar mais
acentuadamente as relações entre a teorização e a ão, assim como Marx o propunha. Os
seus esforços no âmbito do pensamento político levam-no a encontrar Bertold Brecht para
dele receber uma influência definitivamente marcante, a ponto de suscitar os protestos
tanto de Adorno, este comprometido com uma visão de esquerda capaz de achar
soluções relacionando Marx e Hegel, como também do seu amigo Sholem, mais
interessado pelo possível viés unilateralmente teológico que Benjamin talvez pudesse
conferir à sua obra. A tentação constante do engajamento político direto não consegue
embotá-lo a ponto de renunciar às elaborações teóricas, levando-o, pelo contrário, a cada
vez mais pensar e escrever sobre a possibilidade de juntar questões teológicas, políticas e
estéticas para aproveitar, de forma criativa e por vezes chocante, os resultados da própria
cultura em que estava imerso, como mostra o livro “Rua de mão única” (Einbahnstrasse),
em que reúne idéias políticas, filosóficas, estéticas e literárias, bem como notas de viagem,
reflexões gerais sobre amor, infância, sonhos e selos postais, propondo, além disso, um
novo uso de citações, as quais, em vez de um uso acadêmico de erudição, deveriam ser
aproveitadas para surpreender o leitor desestabilizando-o dos seus hábitos de compreensão
normalizada e construída pela ideologia meramente conservadora para a manutenção do
27
que assim se encontra em forma de comercialização da própria vida. As temáticas do
livro trazem sugestões de aproveitamento cultural filosófico de todos os lados,
imprimindo-lhes uma torção que os torna sempre atuais pelas intuições e relações que
sugerem.
O Trabalho das passagens (Passagen-Werk), pesquisa de Benjamin que não
chegou a ter forma de livro, foi-lhe sugerida pela leitura de O camponês de Paris (Le
Paysan de Paris) do surrealista Louis Aragon. A pesquisa levou Benjamin à conclusão de
que deveria retomar a filosofia de Hegel, o O capital de Marx, bem como se cruzar com os
caminhos de Heidegger no que tange a concepção do tempo e da história. Sobre Heidegger
afirma que seria praticamente “o teatro de todos os meus combates e de todas as minhas
idéias” (Benjamin, W., Gesammelte Briefe II, 506).
Os desafios da escrita histórica existente mesclada com questões políticas,
teológicas e ideológicas em geral provocaram Benjamin cada vez mais em meio à
dinâmica política e social em que se encontrava, por exemplo, desde 1933, exilado da
Alemanha pelo evidente perigo de perseguição por parte do partido nazista em ascensão.
As reflexões sobre a história e conseqüentes discordâncias da maneira historicista
de compreensão guiam-no ao aprofundamento teórico e às hipóteses alternativas que se
esboçam em seu texto Infância berlinense em torno de 1900, em que o historiador é visto
como alguém que parte do seu condicionamento presente para a investigação da matéria do
passado, o qual por sua vez, nunca comparece de forma neutra em sua menção presente: o
passado carregado de possibilidades de futuro sempre tem algo de nós pelo fato de carregar
ainda consigo os sonhos que não se realizaram, as promessas que não se cumpriram e a
felicidade que não veio. Tempo e história também surgem em relação à obra de Franz
Kafka. Na comparação que faz entre Kafka e Lukács Benjamin entende que Kafka se
interessa por períodos extremamente longos em ritmos muito lentos, porque pensa em
períodos cósmicos, enquanto que Lukács pensaria em tempos históricos bem mais curtos
de acordo com História e consciência de classe.
Apesar da afinidade de Benjamin com os integrantes expoentes da “Escola de
Frankfurt” Adorno e Horkheimer no que concerne a vários assuntos, várias divergências
emergem em pontos centrais do seu pensar como, por exemplo, na recusa por mediações
por demais sofisticadas e características dos dois frankfurtianos mencionados, ou na
diferença quanto à positividade determinista ou não dos fatos históricos, ou quanto à
28
concepção da totalidade, ou ainda na recusa da indústria cultural, sobre a qual Benjamin
cultivava idéias próprias, já que procurava captar as suas contradições e reconhecer os seus
avanços técnicos.
Pelo exposto é compreensível que a posição filosófica de Walter Benjamin é
imediatamente relacionada com a filosofia alemã pelos nomes dos filósofos mencionados e
pelas temáticas encetadas. Divergindo dela ou não, consciente dela ou não, a carga
tradicional de idéias, conceitos e sugestões metódicas de articulação filosófica, textual e
temática cultural com que trabalhou em sua obra é enorme, tanto que em seu último escrito
intitulado Sobre o conceito de história, além do pano de fundo geral difuso e possibilitador
da articulação geral das teses, encontramos a menção, a aplicação e o aproveitamento
diretos de todos os resultados da história como programa consciente por parte do autor, e
até de exigência da afirmação da essencialidade desse gesto para que um novo conceito de
história pudesse ser elaborado em relação com a sua posição filosófica pautada na
linguagem e, especificamente, na contradição da linguagem.
B
Conforme já afirmado, a tese sobre Walter Benjamin se propõe acompanhar a
presença do que ele mesmo denomina de a contradição da linguagem e verificar a sua
importância como vetor de compreensão da sua obra em determinados escritos
fundamentais. Em seguida a uma secção que trata de apresentar especificamente a inserção
teórica de Benjamin quando jovem no Movimento cultural da juventude sob a liderança de
Wyneken, são analisados os escritos em que a contradição da linguagem aparece, quando
não explicitamente, pelo menos, então, implicitamente. São dez escritos que assim
constituem as secções em que a contradição da linguagem é vista como o ponto focal ou o
fio condutor para a compreensão da obra do autor.
As dez manifestações literárias analisadas estão, portanto, sob a égide da
contradição da linguagem como, aliás, se depreende da organização dos tulos das dez
secções. A expressão em si mesma refere-se ao fato de que na linguagem e com a
linguagem se pressupõem duas dimensões fundamentais.
A primeira delas é a concepção que dimensiona a linguagem como instrumento de
denotação, ou de sinalização objetiva e externa de algo que o falante aponta como se fosse
29
separado de si mesmo. Por esse viés se intenta reproduzir no pensamento e pela linguagem
algo que se apresenta como objeto de realidade em si e fora dos limites da mesma
linguagem, bem como também externa ao falante, o qual, assim, se constitui em sujeito
articulador do processo. O sujeito supõe suas capacidade de conhecer para representar em
si figurativamente uma realidade objetiva externa a si com os recursos instrumentais da
linguagem. A partir de então, necessita controlar e analisar sem cessar as modificações da
realidade externa e suas próprias capacidades quanto à eficiência da representação que faz
em termos de adequação. O sujeito tanto mais suporte e fundamento do seu discurso será,
quanto mais puder observar, calcular e analisar o que se lhe apresenta enquanto externo e
separado de si e quanto mais puder estabelecer, também por análise, as próprias condições
internas que lhe possibilitam que explique a correspondência entre ambos os pólos. Num
processo de infinita recorrência necessita, então, assegurar-se de que as condições da
fundamentação em si mesmo e o uso da linguagem instrumental estejam corretas para que
a adequação à realidade seja realizada por representação perfeita. Para tal processo de
objetivação, portanto, o sujeito deve instaurar um fundamento sempre separado de si
mesmo que precisamente o fundamente como sujeito, a fim de que seja possível o
julgamento sobre a correção do trabalho de análise e elaboração do objeto separado e fixo
em frente. A exemplo da adoração de ídolo, necessita instaurar de modo recorrente uma
divindade separada e provisória que suposta e hipoteticamente justifique e legitime como
fundamento a correção do discurso elaborado.
Todas as fundamentações objetivadas resultam fictícias por pretenderem
estabelecer a totalidade absoluta por um discurso dela separado. Totalidade sempre suposta
que não inclua o seu proponente, totalidade não é. O resultado é a impossibilidade de
fundamentação total e absoluta de qualquer discurso que suponha fundamentação possível.
Sempre será totalidade parcial, geralmente esquecida depois de implementada como
sistema compreensivo e atividade de aplicação dedutiva em todos os campos do saber.
Esse estado de coisas permanentemente recorrente constitui a metáfora do mundo após a
queda em que o ser humano é vítima das próprias construções feitas à base de
fundamentações várias, comendo o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal e da
vida, ao promover a separação entre fundamento posto e separado além da linguagem,
sujeito que propõe a separação e objeto absolutamente externo às articulações da
linguagem. A proibição é precisamente a da invenção do ídolo nomeado enquanto
fundamento separado de um todo que sempre escapa à compreensão, possibilitando-lhe
30
assim a abertura pela liquidação da recorrente e reduzida totalidade em que se movimenta
em épocas de esquecimento. A filosofia sob este aspecto se configura como a atividade da
descoberta das totalidades dogmática e eficientemente redutoras da compreensão com o
indiciamento das suas precárias e provisórias fundamentações, que se manifestam no
exercício da linguagem proposicional de objetos absolutamente fora da linguagem.
A segunda dimensão da contradição da linguagem trata da compreensão da mesma
enquanto intermitente expressão da própria totalidade que necessária e inevitavelmente
sempre supõe pelo fato de nela participar. Tal expressão inclui todas as formas de
explicação porventura elaboradas a respeito de fundamentação, subjetividade e
objetividade. Sendo a própria linguagem com todas as suas virtualidades imediatamente
expressão da totalidade que inevitavelmente supõe, então todas as tentativas de
fundamentação fazem parte do seu acervo expressivo, pois não como elaborar algo
expressiva e significativamente sem linguagem. Desse modo o homem se define pela
linguagem humana que mesmo é enquanto sempre relacionado com a linguagem total das
coisas que está precisamente a traduzir. Qualquer manifestação intencional de construir
edifícios de fundamentação será acompanhada pela linguagem que é, mas que está a
esquecer na ilusão da objetivação com o que, enquanto intenção de sujeito, está a cada
passo edificando o seu próprio degredo como que em intermitente expulsão quando
esquecido desta mesma condição.
A contradição da linguagem é o paradoxo da ambivalência pelo qual o ser humano
se define e que lhe possibilita a compreensão enquanto conhecimento objetivado, por um
lado, e, por outro, a compreensão enquanto recordação do encontro que já sempre é numa
unidade total que nunca poderá definir por explicações de causa e efeito, pois também
estas categorias se dão como expressão de si mesmo no nome, ou seja, na linguagem.
Tal linguagem deixa de ser meramente proposicional objetal para se tornar expressiva e
não proposicional.
Pelo menos desde o texto Conversação de Metafísica da juventude Benjamin conta
com a contradição da linguagem, variando a sua maneira de abordá-la e tendo-a sempre
presente como critério de avaliação para a sua própria condição de autor e tradutor, e
crítico da obra de outros autores. O presente trabalho procura expor esta dinâmica em dez
seções, prefaciando-as com uma introdução geral sobre a formação e a obra de Benjamin
quando jovem:
31
A introdução à obra de Benjamin quando jovem trata de algumas questões centrais
da formação de Benjamin quando jovem, principalmente da sua atuação no O movimento
cultural da juventude”, bem como de algumas idéias dos seus escritos iniciais. Benjamin,
provindo da escola convencional de Berlin, passa a fazer parte da Comunidade escolar
livre (Freie Schulgemeinde), fundada por Gustav Wyneken como reação à crescente
mudança estrutural da sociedade promovida pela industrialização e possibilitada pelo
avanço das ciências naturais implementadas na tecnologia. Os textos apresentados
sucintamente nesta introdução geral no segundo ponto e que abordam em gérmen temáticas
posteriores que se referem à produção literária da época da juventude de Benjamin são:
Leben der Studenten (Vida dos estudantes), Dialog ueber die Religiositaet der Gegenwart
(Diálogo sobre a religiosidade contemporânea), Der Moralunterricht (Ensino da moral),
Die drei Religionssucher (Três à procura de religião) e já a carta a Martin Buber em que se
nega a cooperar com uma literatura de intenções estratégicas.
1. Indicação da contradição da linguagem. Nesta primeira seção específica quanto à
contradição da linguagem o texto críptico “Conversação” é interpretado no sentido de se
constituir em descoberta da mesma e paulatina segurança para exposição e aplicação em
textos posteriores. No texto são mencionados personagens e seus movimentos que a nosso
ver procuram teatralizar todos os recursos da linguagem. Para a compreensão, o texto
críptico exige um acompanhamento meditativo numa leitura constante do não dito, mas
sugerido entre uma sentença e outra, parecendo cada uma delas, por vezes, aforismos
completamente desconexos a uma primeira leitura. Pelo recurso da teatralização das
perspectivas e possibilidades da linguagem aos poucos vai emergindo a compreensão da
contradição da linguagem da condição humana. O título desta secção tem a intenção de
apresentar o indiciamento enquanto descoberta compreensiva da contradição da linguagem.
2. Ensaio aplicativo da contradição da linguagem. Duas poesias de Hoelderlin. Esta
segunda secção da temática central trata da questão da linguagem na poesia. Nessa seção, o
texto Duas poesias de Hoelderlin apresenta uma reflexão tendo como pano de fundo a
contradição da linguagem que transparece em sua ambivalência quando da acentuação do
pólo da linguagem e compreensão repetitiva, por um lado, e, por outro, do pólo da notícia
do poetizado que a poesia traz inerente a si. Restringimo-nos à abordagem da primeira
parte do texto de Benjamin, que traz as reflexões preliminares à análise concreta das duas
poesias. Basta aí enfatizar o que parece ser a primeira aplicação da descoberta.
32
3. Apresentação da contradição da linguagem: Sobre a linguagem em geral e a
linguagem dos homens. Nesse texto Benjamin expõe explicitamente a ambivalência da
linguagem tendo como um dos seus los o seu lado objetal na pressuposição da
possibilidade de descrição de algo além dela, e como outro, a dimensão da recordação do
esquecimento de que ela é o âmbito e ao mesmo tempo a expressão do ser humano em
todas as suas manifestações. A unidade absoluta suposta não é possível de se verificar por
fundamento último, pois cada instauração em termos de raciocínio pela categoria de causa
e efeito sempre também a pressupõe, sendo apenas acessível como expressão na
compreensão do itinerário de uma compreensão sempre emergente na recordação de uma
participação ocorrente.
4. Posicionamento filosófico: Sobre o programa da filosofia vindoura. Nesse texto
Benjamin estabelece a sua concepção filosófica em relação a Kant, decidindo-se pela
conservação e apoio parcial à sua tipologia, que consiste em aprofundar-se na busca das
condições de possibilidade do conhecimento como Platão iniciara a fazê-lo. Distancia-
se, porém, de Kant quando em sua obra percebe a falta de tematização da linguagem que a
tudo inclui e carrega, inclusive a busca das condições de possibilidade por um sujeito que
nessa procura intenta instituir a si mesmo como fundamento último possível no intuito de
constituir um mundo de objetos a partir de si. O sujeito assim posto é mito em meio a um
tempo pobre de experiência por imaginar a captação de sensações sem a interferência da
história, presentada na doutrina enquanto a pletora do sentido sempre subjacente em
quaisquer decisões e explicações atuais. A filosofia vindoura deve, portanto, preocupar-se
com a linguagem em que o ser humano sempre se movimenta e a religião como suposto
sistemático sempre a ser descoberto, o que vem a configurar novamente os dois pólos da
contradição da linguagem.
5. A contradição da linguagem na tarefa do tradutor. No texto A tarefa do tradutor
trata-se da seguinte questão: como se pode traduzir a dimensão da linguagem, que, de
acordo com a contradição da mesma, não comunica, não repassa um conteúdo, não
transmite algo além de si mesma? A obra de arte não precisa minimamente levar em conta
o conhecimento de qualquer receptor pelo fato de que não pode haver estratégia de
conhecimento ou intenção competente na transmissão de algum conteúdo. A obra não deve
prestar-se à comunicação no sentido costumeiro e, por isso, não é necessário o
conhecimento, ou a captação do que comunica. Tudo depende da possibilidade de se a
33
verdade inscrita na obra é traduzível ou não, e isso quem decide é a obra, pois é ela que por
sua própria força aspira e leva à tradução. A necessidade da tradução decorre da essência
da obra que deste modo exige a continuidade da sua existência. Numa tradução interlinear
as palavras e as frases do original tornam-se citações na escrita de vida do próprio tradutor,
pois do texto emerge a verdade que, por um lado, o inclui na obra e, por outro, ao
mesmo tempo, atualiza a mesma na concreção da vida. A contradição da linguagem se
localiza enquanto preocupação de não se esmerar numa tradução a carregar conteúdos
como se fossem objetos de uma língua à outra.
6. A contradição da linguagem na filosofia e na arte. No texto Origem do drama
barroco alemão Benjamin insiste na afirmação de que a forma da filosofia deve ser ao
modo da apresentação expositiva, sem as pretensões de sistema que tipificam o
conhecimento objetivado. O conhecimento objetivado, portanto, não tem o problema da
apresentação pelo fato de estar pronto e ao dispor da possível aplicação prática
automatizada e tendente ao esquecimento. Ele subsiste sob as condições da combinada
adequação às coisas e promove seguramente a certeza da compreensão que se reitera
recorrentemente à base de princípios aceitos e assim estabelecidos. O sistema entendido
como rede tecida com conceitos e entre conceitos para apanhar a verdade como se fosse
objeto separado é próprio da modernidade. Os conhecimentos, nesse caso, ocupam a
função de capturar e enredar uma verdade vista como mera objetivação enquanto alvo a ser
constantemente alcançado por conquista. O pretenso resultado é a posse da verdade pelos
conhecimentos como se ela fosse coisa e manipulável a qualquer hora. Mas a filosofia em
sua tarefa crítica, portanto, não pode esquecer o seu próprio comprometimento na atividade
de escuta e recordação, bem como não pode esquecer-se do fato de que a obra também não
é um produto que se pudesse desvincular da atividade da sua realização. Na comparação
entre filosofia e sistema, Benjamin decide que o ser reduzido às determinações categoriais
e aos sistemas de classes em geral merece a desconfiança e a discordância, e também por
isso se expressa no sentido de que as classificações histórico-literárias não conseguem se
legitimar, devendo ser compreendidas antes a partir da idéia. A filosofia é a atividade que
percebe as duas dimensões da história: a do fenômeno articulado enquanto objeto pelos
recursos da racionalidade da sua mítica autonomia, e a como quase paisagem, como idéia,
como recordação, como saber participativo de um retorno ao local onde sempre se esteve
exatamente a fazer parte da idéia e da paisagem e onde os nomes se dão. Além da história
articulada por proposições na intenção de objetivação, encontra-se a idéia de origem que
34
tem a história como que por dentro, pois engloba e assume o comprometimento com toda a
forma de explicação possível. Na concepção da idéia de origem, que já traz consigo a
compreensão inevitável do ser ativo e em totalidade mesmo que sempre indefinível por
definitivo, a história caracterizada pelo viés de causa e efeito é uma imagem, um teor, um
mosaico para a contemplação, e não mais diretamente o acontecer bruto que pudesse afetá-
la. Novamente aí encontramos em outra roupagem a contradição da linguagem.
7. A contradição da linguagem entre a diluição total e a objetivação delirante: Ao
sol. No texto Ao sol Benjamin descreve o percurso entre a condição de linguagem objetiva
enquanto instrumento de sinalização exterior e a percepção da imagem que se faz sonora
no nome enquanto integração à paisagem até quase à diluição de si no todo circundante. A
tentativa é descrever os extremos possíveis da própria contradição da linguagem.
8. Complementação à contradição a linguagem: Doutrina do semelhante. O texto
conserva os resultados básicos de A linguagem em geral e a linguagem dos homens, mas
com a complementação de algumas questões, principalmente pelo conceito de semelhança
não sensível em forma de linguagem. Como a natureza em geral, o homem reconhece e
produz semelhanças, as quais ao longo do tempo deslocaram-se e se metamorfosearam em
semelhanças não sensíveis na linguagem. O que se reputa como pura dimensão semiótica,
na verdade seria o funcionamento do código de semelhanças esquecido, que na velocidade
do relâmpago faz a junção de som de palavra e coisa. O deslocamento e a velocidade do
processo impede de percebê-lo sensivelmente a ponto de muito tempo estar
automatizado levando aos enganos sobre a significação da própria linguagem.
9. A aplicação da contradição na linguagem. Franz Kafka. Personagens que se dão
conta da contradição da linguagem agem de maneira muito estranha, pois são capazes de
expressar a ruptura com a normalidade da objetivação para promover um movimento de
retorno que primeiramente os capta como um processo de melancolia e angústia para
libertá-los na dinâmica da recordação e da compreensão em que existem na própria
ambivalência da contradição da linguagem que sempre já são.
10. Entre o dizer e o dito. No artigo Hoffnung im Vergangenen (Esperança no que
passou), Peter Szondi percebe claramente a postura de Benjamin que é a de se voltar ao
passado de si com as circunstâncias da época a fim de vasculhar o significado inscrito,
como se fosse uma escrita presente e póstuma ao mesmo tempo, mas ainda capaz de
acordar no tempo presente o bom leitor. A pergunta que se faz ouvir é: o que impede que
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na época exata se leia corretamente? O que impede que muitos não acordem pela
rememoração nem em tempos posteriores? um impedimento fatal, uma dificuldade
enorme por vencer a fim de que se chegue ao entendimento considerado correto. Que
impedimento é esse?
A tese é a de que se trata da contradição da linguagem quando esta se concentra
exclusivamente na objetivação, pois em suas metamorfoses a linguagem determina o
tempo relacionando o passado com o presente, como se fosse acessível à atualidade qual
um objeto analisável cientificamente a partir de fundamento absoluto e fixo. A descoberta,
a apresentação e a aplicação da contradição da linguagem como ponto focal, ou fio
condutor para a leitura da obra de Walter Benjamin configura o núcleo da presente tese.
36
II. O MOVIMENTO CULTURAL DA JUVENTUDE
É certo que os interesses de Walter Benjamin não se reduzem às questões do âmbito
da filosofia da linguagem, pois os mais variados aspectos da cultura mereceram a sua
atenção. Mesmo assim a referência da sua filosofia voltada à linguagem é essencial em
toda a sua obra. Ademais, se pode dizer que a filosofia em geral é simplesmente una e
independe das perspectivas em que se ativa, de modo que, enquanto voltada à linguagem,
ela está necessariamente também relacionada com todas as áreas.
Na idade de vinte e quatro anos Benjamin escreveu o texto programático sobre a
filosofia da linguagem A linguagem em geral e a linguagem humana, que marca
definitivamente a sua obra. Algo sobre formação anterior do autor facilita o entendimento
desse importante texto. Aos quatorze anos de idade Benjamin encontrou Gustav Wyneken,
filósofo e pedagogo reformador do ensino médio e fundador da Comunidade escolar livre
(Freie Schulgemeinde). Provindo da escola convencional de Berlin, instituição de
orientação rigidamente orientada (Gilherminisches Gymnasium) para a profissionalização,
defrontou-se com as idéias de reforma pedagógica voltada para a mudança da sociedade
em geral por meio de um movimento cultural jovem. O professor Wyneken em sua
Comunidade escolar livre em Hausbinda apresentava a exigência da realização do espírito
numa nova religião contra os imperativos do mundo capitalista mecanizado e de uma
sociedade em franco desenvolvimento de racionalização em tudo, desde o fim do século
XIX. O mestre insurgia-se contra a derrocada de todas as relações sociais tradicionais, que
a seu ver era promovida pela marcha vitoriosa do capital, fenômeno que para ele
significava a subserviência à lógica da razão meramente instrumental. O espírito e a nova
religião representavam de imediato a liquidação do alvo posto pela sociedade agora
vigente, alvo visto como realizável pela relação instrumental meio-fim. O tema central da
nova religião proposta era o incondicionado, ou seja, aquilo que não pode ser reduzido a
37
qualquer fundamento e que se furta a qualquer racionalização elaborada conceitualmente.
Tal concepção religiosa, pelo visto, apresenta um cunho político que Wyneken e, então,
Benjamin coadunavam com metas e conteúdos da práxis, da ação humana em si. O
conceito de religião, portanto, trazia consigo uma intenção política que se exercitava na
crítica das condições sociais vigentes e do entendimento da razão como autônoma,
dominadora e cada vez mais prestigiada pela violenta ascendência e prestígio cada vez
maior do processo de industrialização e mecanização geral. O movimento de organização
de uma juventude que resgatasse o espírito humano aprisionado e embotado nas malhas da
instrumentalização redutora era visto como alvo até teológico.
esta percepção de seu próprio tempo a entender a razão de por que Benjamin
se contrapunha à concepção de uma razão autônoma e sugerir um conceito de
conhecimento que possibilitasse pensar a união entre mundo e si mesmo, longe, portanto,
do divórcio fundamental e necessário à racionalidade instrumental entre subjetividade
racional articuladora de um lado e, de outro, natureza tornada objeto de manipulação. Um
si mesmo abstrato, frente a um material abstrato denominado natureza e que se dá de
acordo com os critérios do entendimento, é o desenho de um esquema geral que fortalece a
vigência de uma compreensão comprometida com os aspectos da relação geral meio-fim.
Esse esquema é combatido, pois é entendido como a concepção kantiana que estipula os
princípios da experiência possível como sendo as leis gerais da natureza conhecíveis a
priori. Em seu lugar Benjamin propõe uma concepção de experiência segura da sua
unidade original na linguagem, portanto, além do transcurso por vezes triunfante de uma
consciência que se e solitariamente como fundamental. Numa unidade entre razão e
natureza já sempre ocorrentes e em processo de efetivação, na suposição do que as
possibilita, as coisas em geral dão a sua participação, elas se revelam em sua própria
linguagem ao homem na linguagem sonora pela qual este se identifica. A totalidade da
linguagem jamais pode ser objetivada pelo pensamento sempre relacionado com a palavra,
pois se trata de um conhecimento que ultrapassa a capacidade conceitual em seu aspecto
proposicional, o qual em cada momento se inevitavelmente na circunscrição que deve
supor. A inevitabilidade da suposição da linguagem ocorrente dá-se como um saber de um
incondicionado que se furta a qualquer tentativa de vislumbre numa perspectiva teórica,
em fala discursiva na intenção de fundamentação por argumentos e tentativa de edificação
de meta a ser alcançada reflexivamente, pois estas mesmas intenções estariam a evocá-la
de forma imanente e imediata. A experiência da unidade no incondicionado pela sua
38
expressão e necessária suposição na linguagem possibilita a experiência da sua quebra
proposta pela autonomia da razão e as suas conseqüências na história.
As idéias pedagógicas e reformistas de Gustav Wyneken, com o seu ideal concreto
de uma vida livre e antiburguesa, figuram como centro focal das preocupações teóricas
iniciais de Benjamin. Depois de voltar daquela instituição do interior para Berlin,
continuou a ler os escritos de Wyneken formando logo um círculo de amigos para a
divulgação do mestre. Assim iniciava-se uma carreira de divulgador e ativista do
movimento da cultura jovem. Benjamin afasta-se de Wyneken em março de 1915 por carta
discordando da atitude do mestre no apoio à Primeira Guerra Mundial. Além disso, a
recusa do seu amigo Heinle de ser recrutado para a guerra a ponto de se suicidar pôs fim à
sua compreensão de que as idéias do movimento jovem pudessem e devessem pretender
cunho imediatamente político. Mesmo assim, tais idéias parecem permanecer como pano
de fundo e orientação geral na obra de Benjamin, se bem que o artigo de 1915 “A vida dos
estudantes” tenha abordado diretamente a temática do movimento jovem pela última vez.
O movimento cultural jovem de Wyneken caracterizava-se, à diferença de outros,
por ser uma revolta de boa parte da sociedade alemã, portanto, também dos pais dos jovens
imediatamente envolvidos. Não se tratava apenas de uma reação contra a crise do sistema
educativo enquanto tal, mas de uma resistência contra a modernização e industrialização da
sociedade alemã. Os esforços de industrialização do império levaram à crise uma grande
parte da tradicional burguesia alemã deslocando-a de sua situação de importância social e
da sua compreensão de mundo enquanto resultado de formação geral humanística. Desde o
fim do século dezenove aos intelectuais publicamente firmavam a consciência de que os
tempos eram de grave crise cultural. Diversas ligas e comunidades à época se formaram
para resistir aos novos tempos da maquinaria para a formação de uma nova ordem cultural
e social e, entre eles, a já mencionada Comunidade escolar livre de Wyneken.
O projeto da comunidade justificava-se, portanto, pela crítica à concepção de
cultura modernista em vias de sedimentar a industrialização com a sua decorrente
valorização exagerada das ciências naturais em detrimento dos tradicionais conteúdos de
formação humanística. Tratava-se assim de crítica cultural enquanto crítica dirigida à
moderna sociedade burguesa. Wyneken radicalizava a sua crítica com uma concepção
dualista contrapondo a falta de sentido de mundo empírico vigente por um lado e, por
outro, o espírito autônomo capaz de garantir valores absolutos. Tal espírito ele concebia
39
como força eficiente em cada ser humano a ponto de cada um poder reconhecê-lo em si
mesmo. É claro que a vontade e a capacidade livre deste reconhecimento estava reservada
apenas a poucos escolhidos que se tornavam os guias de uma comunidade, a qual, por sua
vez, representavam a realização do espírito. O mundo burguês Wyneken caracterizava
como profano em contraposição com o mundo nobre e sagrado, ou seja, o mundo dos
interesses partidários particulares em contraste com o mundo do espírito. No mundo dos
interesses reina uma razão cunhada pelas ciências naturais totalmente organizadas por
sistemas de conceitos e sinais orientados para fins que levam à absolutização e ao
predomínio da técnica sobre o homem, à entronização dos meios sobre os mesmos fins, à
mercantilização do espírito e à descoberta da mediocridade. Em decorrência disso, a meta
do movimento cultural constitui-se na relativização e no combate ao pensar em termos de
racionalidade dirigida a fins e na substituição desta por um saber imediato da própria vida
espiritual. A falsa autonomia da razão assim deveria ser substituída pela autonomia da vida
espiritual por meio dos princípios da formação própria da vida a partir do seu centro que
possibilitaria ao mesmo a sua unidade e a sua maior abrangência cultural. Esse aspecto
poderia ser denominado de religioso à medida que visualiza a única totalidade racional
possível capaz de se fazer acompanhar por uma orientação ética. (Wyneken, G.
Weltanschauung, 1947, 234).
Em Der Moralunterricht Benjamin diverge da possibilidade de uma instrução
racional e psicológica nas questões éticas. Aborda primeiramente a diferença kantiana
entre legalidade e moralidade e estabelece que o moralmente bom não pode ser constituído
apenas pela conformidade com a lei, mas que também a vontade deve estar de acordo com
a mesma, pois só assim há determinação legítima livre de motivos de acordo com a norma
que manda agir conforme o bem. (GS II, 48). A boa vontade é assim a vontade pura
dirigida para um valor absoluto, sem se desviar para algum outro fim e sem poder ser
manipulada por alguma orientação pedagógica. Trata-se de uma disposição fundamental,
que se caracteriza pela renegação e renúncia, e não de uma motivação para proveito
próprio. A dificuldade disso está em que não há possibilidade de domínio discursivo do
âmbito da moralidade. O que resta, então, é apenas a consideração de uma moralidade
vivida enquanto religiosidade. E essa é a concepção de Wyneken, ou seja, de que a
comunidade livre possibilitasse por si mesma um processo criador do aspecto religioso e
suscitasse a contemplação religiosa como modo de formação de uma moralidade em si
mesma avessa às possibilidades de análise conceitual. Logo se que a religião enquanto
40
invólucro de um conteúdo como a vontade livre põe em cheque a filosofia moral
racionalista de Kant. A idéia geral era a de que a razão prática de algum modo deveria
conter antes de tudo princípios de ação sem os quais permaneceria inevitavelmente
abstrata. Haveria de ter um fundamento que a definisse melhor e o achado é exatamente o
conceito de religiosidade, que paradoxalmente não firma a autonomia da razão em si
mesma, mas num mundo do espírito anterior à pretensa liberdade da mesma razão. Este
resultado é fundamental para toda a obra de Benjamin, pois indica um mundo religioso que
de forma alguma se deixa apanhar por aproximações analíticas e que coloca todas as
atividades do ser humano num quadro, numa figura, num Bild sempre anterior às mesmas e
que se deve descobrir.
Um aspecto interessante em relação à filosofia da linguagem de Benjamin dá-se
numa questão da crítica à moral racional que é o problema da liberdade. Kant defende a
liberdade humana de toda a causalidade, bem como as leis morais por princípios a priori
que então se fundamentam numa necessidade absoluta e, assim, põe a vontade sob a lei da
sua própria liberdade. Essa lei é a conseqüência imprescindível da autodeterminação da
razão que deve se confirmar no processo intersubjetivo à base do melhor argumento para
que a efetivação do dever na ação moral aconteça. Desse modo institui-se uma
circularidade, ou seja, trata-se da tentativa de fundamentar racionalmente a liberdade da
ação, a qual por definição não pode ser provada. Por um lado Benjamin percebe que o bem
desejado só pode acontecer enquanto livre de interesses externos e, por outro, que a
compreensão da vontade livre não comporta fundamentação. A dúvida é quanto ao saber
sobre as motivações pessoais nos textos escritos, sobre os seus possíveis efeitos nos
leitores e, portanto, motivações e efeitos não conforme a liberdade da vontade que se põe
como exigência. Numa carta à sua amiga Carla Seligson ele trata do assunto resolvendo a
questão do seguinte modo:
Penso que sempre devemos estar preparados para o fato de que
nenhuma pessoa no presente e no futuro em sua alma, onde é livre,
possa ser influenciada e forçada por nossa vontade...o bem
acontece por liberdade. Finalmente qualquer boa ação é apenas
símbolo da liberdade daquele que a pratica...O “Início” [revista
editada pelo grupo para a divulgação das idéias do movimento] é
apenas um mbolo, tudo no que ele, além disso, se torna eficaz é
graça, incompreensibilidade. (Benjamin: Briefe, Hg. Von G. Scholem
und T.W.Adorno, 1978, 89).
Trata-se da dúvida sobre bem e mal na atuação da escrita. Se o bem é inacessível a
qualquer abordagem discursiva, então surge a pergunta pela legitimidade da atividade de
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publicação, isto é, sobre se ela na prática não contraria as próprias idéias que promove. A
pergunta era por Benjamin respondida no sentido de que a revista Anfang (Início), bem
como a própria Comunidade livre escolar seria um símbolo, uma ação de liberdade. Se
bem que a questão neste caso seja insolúvel - pois qual a publicação que de fato não quer
convencer o leitor ela, porém, se desloca na preocupação de Benjamin para o âmbito da
linguagem, especificamente para a apresentação da sua teoria no artigo Sobre a linguagem
em geral e a linguagem dos homens de 1916. Mas antes do referido artigo ele havia
recusado o convite de Martin Buber para colaborar na revista Der Jude [O judeu]
apresentando em carta a diferenciação entre um conceito de linguagem vista como
instrumento de comunicação e outra como linguagem imediatamente revelativa:
Constitui-se em opinião vigente, largamente difundida e, em todos
os lugares até vista como evidente que a literatura possa influenciar o
mundo moral e a ação dos homens à medida que oferece motivos para
ações. Neste sentido, portanto, a linguagem é apenas um instrumento de
preparação de motivos mais ou menos sugestivos, os quais preparam o
agente no interior da alma. A característica dessa concepção que em
geral não chega nem a considerar uma relação da linguagem com a
ação em que a primeira não fosse instrumento da segunda. Esta relação
é concernente a uma linguagem como que impotente e degradada
enquanto ão pobre e fraca, cuja fonte não se encontra nela mesma,
mas em quaisquer motivos dizíveis e exprimíveis. Sobre estes motivos,
por sua vez, pode-se debater, contrapor outros e desse modo (em
princípio) a ação é posta como fim enquanto resultado de um processo
de cálculo examinado por todos os lados. Toda a ação que se pela
expansiva tendência de encarreirar palavra atrás de palavra parece-me
tanto mais devastadora, onde toda esta relação de palavra e ação como
que entre nós se estende de modo sempre crescente enquanto mecanismo
para a realização do absoluto correto (!). (...) Literatura em geral eu
posso acompanhar na compreensão como poética, profética, objetiva no
que concerne ao efeito, mas de qualquer modo apenas enquanto mágica,
isto é, imediata. Todo o efeito saudável da escrita, sim, todo aquele que
não é devastador em seu íntimo consiste no seu mistério (da palavra, da
linguagem). Seja de quantos modos a linguagem possa comprovar-se
eficaz, ela não o conseguirá pela intermediação de conteúdos, mas pela
mais pura acessibilidade da sua dignidade e da sua essência. Minha
concepção de estilo e escrita objetivos e altamente políticos é: conduzir
ao que foi negado à palavra; apenas onde aquela esfera do sem-palavra
se abre em indizível poder puro, a centelha mágica entre palavra e ato
movente pode saltar, onde a unidade desses dois é igualmente
eficaz.(...). Eu não acredito que a palavra em qualquer lugar possa estar
mais distante do divino do que o agir “eficaz”, de modo que também
não é capaz de conduzir ao divino de outro modo do que por si mesma e
por sua própria pureza. Enquanto instrumento ela cai na usura. (idem,
126).
É um documento claro que descreve o horizonte dos problemas de Benjamin e a
indicação das suas soluções quanto à concepção filosófica sobre a linguagem. No centro da
42
questão está a relação entre estratégia política e conhecimento, ou seja, o problema da
mediação pela linguagem de um comportamento orientado por valores. Surge aí, então, a
contradição de forma e conteúdo com a exigência de que o conteúdo deva ser absoluto,
divino, livre de metas empíricas. A linguagem como mero sistema de sinais, pelo contrário,
reflete a racionalidade instrumental em termos da relação meio-fim. Benjamin quer
apresentar um conceito de linguagem que não esteja somente ao serviço da comunicação
de acordo com algum discurso racional, orientado por reivindicações de validade com
pretensões de repasse de conteúdos absolutamente certos, mas que seja expressão do
incondicionado. O incondicionado é capaz de apresentar em si mesmo o seu fundamento,
pois carrega consigo uma força motivadora imediata em analogia com a questão da
liberdade e da moral. O âmbito do sem-palavra que a cada vez possibilita a linguagem é
imediato por estar fora de qualquer relação em que se trata de objetos ao modo da estrutura
predicativa. Exatamente essa imediação, em que a linguagem se encontra e se dá, significa
a eliminação do indizível, pois, ao não comunicar o absoluto em termos de objeto, ela
mesma o expressa em constante exercício.
Esse conjunto de idéias talvez explique as dificuldades do movimento cultural
jovem quanto a um programa mais concreto e quanto a alguma estratégia política: o fato é
que o seu próprio alvo como realização do incondicionado, por enquanto denominado de
idéia, proibia qualquer expressão mais contundente em termos de conteúdo e ação
orientada para fins. Wyneken mesmo proclamava que por meio de uma nova maneira de
ser ter-se-ia alcançado o alvo. E isso não deveria significar mero idealismo, mas a
inseparabilidade de saber e ação. O incondicionado enquanto idéia não intenta colocar
questões de conteúdo, não faz parte do saber proposicional, mas, mesmo assim, determina
os princípios da ação, pois tal idéia se realiza praticamente. Como já dito, Benjamin
entende que a escrita veiculada pela revista Anfang, bem como a própria Comunidade
escolar livre devem ser vistas como a realização simbólica de uma nova moralidade, livre,
portanto, das injunções de motivações para determinados fins. A perspectiva intencional
desaparece no símbolo que praticamente se realiza e com ele o sujeito que antes procurava
comunicar-se de forma intencional. Tal imediação na ação significa uma profunda solidão,
pois o específico humano é liquidado. (Benjamin, W. Briefe, Hg von G. Scholem und T.
W. Adorno, 87). uma situação em que o Eu não mais se contrapõe a qualquer objeto e
paradoxalmente assim conquista a sua liberdade. No movimento de se chegar a essa
situação, a procura por uma nova religião além dos comandos do mito de uma
43
racionalidade absolutamente autônoma, esquecida em seu absolutismo por não se dar conta
das dependências das condições de sua auto-explicação, termina por aspirar à anulação de
qualquer contraposição entre mundo empírico e mundo inteligível, entre Deus e natureza.
Como se chega a uma unidade que suplanta sujeito e objeto e não permite o seu
conhecimento? Como Hölderlin, Benjamin tentará resolver a questão pela reminiscência,
sem antes, porém, conforme a Bíblia, deixar de rotular alegoricamente todo o
conhecimento sobre bem e mal como culpa e a ação como inocência. (Benjamin, W.
Briefe, 88). O aventado teor bíblico com a questão da culpa constitui-se em horizonte
teológico para um problema epistêmico e aponta claramente para o artigo sobre a
Linguagem em geral e a linguagem dos homens, onde é abordada a hipótese da queda do
espírito da linguagem e a da expulsão do paraíso. A queda acontece pela quebra da unidade
imediata de mundo empírico e inteligível por meio do conhecimento ligado à linguagem,
quando as coisas começam a ser consideradas como contrapostas em forma de objeto e um
sujeito absolutamente consciente de si.
Seguindo os passos de Wyneken, Benjamin também considera a arte em geral, mas
principalmente a poesia, como forma de manifestação do absoluto. Tal idéia, porém, é bem
mais antiga no mundo cultural alemão, pois se encontra em Herder. Ela procura traduzir
a sagrada dignidade da arte, principalmente da poesia, e representa a crítica à forma
iluminista da racionalidade. Encontra-se também no famoso Ältestes Systemprogram des
deutschen Idealismus. Tal idéia também foi defendida nos aspectos estéticos pelos
primeiros românticos estendendo a sua influência até o início do século 20, em autores e
poetas como George, Rilke e Benn. (Frank, M. Gott im Exil, 1988). Conforme a tradicional
crítica à racionalidade dos primeiros românticos, Wyneken viu a supremacia da faculdade
estética sobre o entendimento do seguinte modo: o entendimento é caracterizado por seu
procedimento analítico e depende da receptividade de dados dos sentidos para cumprir com
a sua função cognoscitiva, enquanto que na faculdade estética o poeta dispõe de uma força
criativa capaz de sintetizar espírito e matéria, de tal modo que, enquanto criador autônomo,
o próprio espírito pode reconhecer-se na matéria da obra. A contraposição de espírito e
matéria parece superada a ponto de a vivência da arte constituir-se revelação. (Wyneken,
G. Schule und Jugendkultur, 1914, 153). A própria filosofia pode transverter-se em poesia,
pois nela exatamente a suposição da superação dos limites da consciência para perfazer
a aludida unidade de sujeito e objeto. A verdade escapa das arremetidas intencionais da
razão, bem como da objetivação conceitual, estabelecendo uma crise na consciência tanto
44
na circunscrição da arte quanto da linguagem. Apoiando-se em Platão, Wyneken propõe-se
captar o absoluto apenas numa condição extática em que a consciência racional abdica das
suas funções normais para se deixar guiar pela força do Eros. (Fedro, 265 E).
O Eros é a grande e fundamental experiência do espírito, a
experiência de uma expansão infinita do sentimento de vida, de modo
que aquele que, mesmo em sonho alguma vez saboreou, dela não mais
pode prescindir e nem quer. A experiência de tal enlevo torna-se critério
para o valor da vida em geral. (Wyneken, G. Schule und Jugendkultur,
1947, 222).
A obra de arte deste modo atinge a condição de tornar visível o novo e se torna o
meio em que se realiza o conhecimento da religião.
Benjamin, por sua vez, em 1910, sob o pseudônimo de Ardor, publicou Die drei
Religionssucher (Três à procura de religião) em que a entender o conceito de religião
enquanto uma conexão geral de vida. O texto trata de três jovens que saem da sua pátria à
procura da única e verdadeira religião. O primeiro jovem vai em direção de uma poderosa
cidade, “pois coisas admiráveis ele havia escutado sobre as grandes cidades: todos os
tesouros da arte estariam preservados, poderosos livros sobre sabedoria milenar e
finalmente também muitas igrejas...Aí certamente deveria estar a religião”. (GS II-3, 892).
Fracassa, porém, o propósito de entender a religião com a ajuda da razão, apesar da
atenção dada à tradição cultural, do aporte dos testemunhos da história e do entendimento
humano. Diz o primeiro jovem: “Pois em toda a grande cidade não uma igreja, cujos
dogmas e princípios eu não pudesse contestar”. (GS II-3, 894). O segundo jovem propõe-se
encontrar Deus na natureza “quando se deitava na grama e observava a passagem das
nuvens brancas no céu azul, quando na floresta como um raio repentinamente via um lago
escondido obscuramente atrás das árvores, então era feliz e pensava que teria encontrado a
religião...”.(GS II-3, 992). Mas a razão não alcança o conhecimento de Deus, sendo, pelo
contrário, capaz de se deixar levar pelas suas próprias produções até a condição de se
esquecer no dogmatismo e, finalmente, terminar no ceticismo geral deixando vazio o mero
sentimento. Deste modo o segundo jovem nunca conseguia explicar o seu ponto de vista,
resumindo os seus relatos com a expressão: “Tal coisa há que sentir!” (Idem, 894).
Tornava-se, então, motivo de risos. Não havendo resposta para a questão religiosa nem
pelo caminho da razão, nem pelo caminho do sentimento, o terceiro jovem procura
descrever em seu relato uma possível síntese de ambos os caminhos. Relata que as
dificuldades materiais o levaram a desistir da procura de algo do qual nem sabia ao certo o
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que era e o forçaram a seguir a profissão de ferreiro até aos trinta anos, quando resolve
encetar o caminho de volta para a sua aldeia natal. O caminho de volta significa ao mesmo
tempo o caminho da recordação, pois tanto o caminho de volta à terra natal enquanto
recordação o leva ao cume da montanha em que, olhando para trás,
no clarão do sol da manhã...a vasta planície diante de si...com
todas as aldeias em que anteriormente trabalhava e igualmente a
cidade em que se havia consagrado mestre. E todos os caminhos ele via
nitidamente diante de si, os caminhos que havia andado, bem como os
locais do seu trabalho...Mas quando desviou o olhar e o fixou no alto em
direção ao brilho do sol, aos poucos por entre as nuvens viu surgir
então diante dos seus olhos um novo mundo em aparência trêmula.(GS
II-3, 893).
O sentido dessa descrição é a possibilidade da síntese entre ser e consciência
no poder da recordação que se à distância numa situação superior, como se o olhar da
montanha para a planície fosse o Eu enquanto si mesmo a se recordar do seu fundamento
próprio vendo ao mesmo tempo um novo mundo na recordação, o futuro no passado.
No texto Dialog über die Religiosität der Gegenwart (Diálogo sobre a religiosidade
contemporânea) Benjamin defende a necessidade de uma nova religião, dado o fato de que
a praxis racional é insuficiente, pois, ela mesma, não se constituindo como fim da ação e
não tendo por alvo a universalidade racional, esgota-se na procura de quaisquer fins. A
totalidade racional tem como causa central a coisificação da natureza pelo entendimento e
a necessidade de uma nova religião se impõe exatamente pelo fato de Kant ter interposto
um abismo entre sensibilidade e entendimento e ver em tudo a vigência da razão prática
moral.
Estremeço diante do quadro de autonomia moral que você evoca.
Religião é conhecimento dos nossos deveres enquanto mandamentos
divinos, diz Kant. Isto é: a religião nos garante algo eterno em nosso
trabalho cotidiano e é isto que antes de tudo é preciso. A sua famosa
autonomia moral transformaria o homem em máquina de trabalho para
fins que se condicionam um ao outro numa seqüência sem fim. Como
você opina, a autonomia moral é uma monstruosidade. Trata-se da
degradação de todo o trabalho ao aspecto técnico. (GS II-1, 20).
Benjamin no fim das contas defende que a superação da razão instrumental
seja a aproximação entre espírito e sensibilidade no âmbito da religiosidade, no qual se
pode ingressar desde que a consciência não mais esteja contraposta ao mundo dos objetos e
os objetos não mais apareçam de acordo com os critérios das condições da subjetividade. A
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concepção necessária é a de que a subjetividade não se arrogue ao direito nem de se
entronizar a si mesma instância tirana sobre a natureza, nem de se compreender enquanto
substância abstrata que se pudesse voltar sobre si mesma de modo puramente reflexivo. “O
movimento da juventude a despertar indica a direção daquele ponto infinitamente distante,
que conhecemos por religião” (GSII-1,72).
No texto Leben der Studenten (Vida dos estudantes) Benjamin apresenta a
exigência de que os estudantes zelassem pela formação da sua existência enquanto unidade
consciente, além disso, que se submetessem a um princípio, deixassem que a idéia
prevalecesse em suas vidas, que em sua própria vida finita o espírito devesse realizar-se
praticamente pela ação como uma totalidade individual (GS II-76). De acordo com essa
exigência, a inteligência da juventude deveria estar determinada em se constituir suporte de
uma nova religião, cuja tarefa e obrigação seria a formação de uma comunidade religiosa
enquanto vanguarda de uma revolução cultural. A dificuldade da efetuação desse modo de
vida estaria nas exigências da própria ciência como costumeiramente representada. A
concepção rotineira de ciência todo o saber subjugado sob uma estrutura meramente
proposicional e propõe uma relação de ação por mediação em que o saber se apresenta
enquanto proposição sobre um objeto numa conexão de sujeito com objeto, resultando
disso uma separação de conteúdo e objeto. Surge então uma separação de sujeito e
predicado que corresponde com aquela de sujeito e objeto. O objeto aparece como objeto
resultado de uma proposição intencional que, por sua vez, procura fundamentar-se no
sujeito. O saber daquele que conhece, porém, o pode imediatamente ser motivador de
ações e por esta razão, na Crítica da razão prática, Kant teve de apresentar não um
princípio da determinação da vontade, mas também um princípio da obrigação absoluta da
vontade, o que é um efeito da separação entre ração prática e teórica. Quando a razão
teórica propõe o mundo objetivo como a extensão de todas as determinações predicativas,
forma-se a intransponível fenda entre ser e dever ser, condição esta que levou Kant a
procurar um substrato inteligível da natureza para fins de mediação entre teoria e prática na
Crítica do juízo. Assim a unidade de vida que é exigida tem como pressuposto que o saber
acumulado pelos estudos não se separe em saber técnico-prático de um lado e, de outro,
saber racional moral-prático. Trata-se de um saber que superou a separação entre conhecer
e agir pelo fato de ser imediatamente motivado ao colocar de lado a relação sujeito-objeto.
De acordo com Benjamin, então, a vida unitária dos estudantes deveria ter incorporado esta
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relação com a ciência, ou seja, que ela não deveria ser considerada como um agregado
externo de conhecimentos, muito apropriada para os fins de exercícios profissionais.
O fato de ‘a ciência nada ter com a vida’ leva-a obrigatoriamente
a formar de modo exclusivo a vida daquele que a segue. Uma das
reservas mais inocentes e mentirosas sobre ela é a de que deveria
promover X e Y a uma profissão. A profissão decorre tão pouco da
ciência a ponto de poder até excluí-la. Pois, de acordo com a sua
essência, a ciência não tolera a solução de si mesma, ela compromete o
pesquisador de certo modo sempre como professor, mas nunca enquanto
formas de profissão estatais de médico, jurista, professor universitário.
Não conduz a nenhum bem quando institutos se denominam de locais de
ciência, nos quais títulos, autorizações, possibilidades de vida e
profissão podem ser conquistados. A objeção que pergunta sobre a
forma de como o estado de hoje deve contar com os seus médicos,
juristas e professores, nada prova contra isso. Ela apenas mostra o
revolucionário tamanho da tarefa: fundar uma comunidade de
conhecedores no lugar da corporação de funcionários e estudantes. Ela
apenas mostra até que grau as ciências de hoje no desenvolvimento do
seu aparato profissional (por saber e aptidões) foram desviadas da sua
origem unitária na idéia do saber, a qual para eles se tornou um
segredo, quando não uma ficção. (GS II-1,76).
A superação do estudo em áreas específicas, estudo orientado para fins
externos é apenas possível pela unidade de teoria e prática, pela concretização de uma
comunidade de estudantes que, num saber vivido, considera o saber mais do que a mera
soma das faculdades divididas em áreas específicas. Dar conta desse processo só é possível
pela filosofia.
A comunidade de homens criativos eleva aquele estudo à
universalidade: sob a forma da filosofia. Tal universalidade não se
conquista quando se apresentam perguntas literárias ao jurista e
perguntas jurídicas ao médico...mas à medida que a comunidade
providencia e por si mesma aja no sentido de que, antes de qualquer
especificação por área de estudo, ela mesma, a comunidade da
universidade enquanto tal, seja produtora e guarda da forma
comunitária filosófica, porém, também não com questões da filosofia
especializada dentro dos limites da sua cientificidade, mas com
perguntas metafísicas de Platão e Espinoza, dos românticos e de
Nietzsche. (GS II-1, 82)
Este modelo de ciência significa nada mais e nada menos do que a ruptura com a
filosofia da consciência e com os fundamentos do racionalismo moderno. A razão à
procura de algo está novamente frente à conhecida aporia do Menon de Platão que em
resumo diz: o homem não pode procurar por nada, nem por aquilo que sabe e nem por
aquilo que não sabe, pois, no primeiro caso, não pode procurar pelo que possui e, no
48
segundo, não pode procurar por algo que desconhece (Menon 80 C). O que se procura está
além do ser e da consciência e que se encontra na superação da relação entre sujeito e
objeto. Benjamin busca soluções em Platão quando apresenta o desejo erótico como aquilo
que determina a totalidade do homem, tanto os seus sentimentos quanto o seu intelecto.
No Symposion Eros aparece como o guia no caminho do conhecimento do belo sagrado.
Eros se define como a aspiração ao todo (Symposion 192 E). Eros, filho de Poros e
Penia tem a incumbência de ser tradutor e emissário entre os deuses e os homens. E Platão
considera a efetividade erótica, o espírito e a sensibilidade, o desejo que faz a mediação
entre o finito e o infinito como aquilo que proporciona sentido de forma cabal e
incondicional. Pelo Eros o homem chega à experiência da sua dependência da natureza e
nisso, ao mesmo tempo, desta união entre si mesmo e o mundo, ele pode perceber a sua
unidade, mas também liberdade, pois agora se encontra na situação de não se compreender
como absolutamente subjugado pela natureza por um lado, e, por outro, livre da ânsia de
simplesmente dominá-la pelo entendimento. A mediação do Eros é um processo criativo
que, quando suspenso, faz desaparecer a união aludida e a vida recai nas velhas oposições
fixas de sujeito e objeto, entendimento e natureza. De acordo com este processo criativo,
não pode então haver conhecimento positivo do que é divino. A consciência nunca poderá
contar o divino como posse. É apenas na ação prática que o saber da idéia se comprova e
nunca poderá ser fixado em proposições. Esta é a razão da crítica de Platão à linguagem e à
escrita. Mas Benjamin, pelo contrário, como se verá, considera exatamente a linguagem
como a circunscrição, o medium, no qual ser e consciência têm a sua morada e onde a
verdade se revela. Enquanto Eros, na acepção de mediador elaborada, ele tem uma tarefa
hermenêutica e histórica, pois a sua função não teria significado sem a suposição de uma
separação havida e que agora cumpre unir. Tendo sido quebrada a unidade original, tem-se
agora a história como conseqüência. A unidade original Benjamin denomina paraíso e ele
se entende na tarefa de restituir a imediação perdida. Conforme bem mais tarde na XIV
tese de Sobre o conceito de história citará Karl Kraus “A origem é o alvo” (GS I-2, 631),
assim o conhecimento deve especificar-se como um modo de recordação.
Onde a razão se reduzida a meio para alcance de determinados fins com a
seqüente divisão entre vida espiritual e sentimental, surge também um outro fenômeno
semelhante à ideologia da formação profissional, que é o casamento. (GS II-1, 83). À
semelhança do intelecto, também os sentimentos são degradados a simples meios. O
entendimento é degradado para a formação profissional e os sentimentos para a formação
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da família. A tarefa dos estudantes, portanto, é a formação de um ambiente em que os
sentimentos, a razão e a natureza sejam uma unidade.
Nas escolas superiores encontra-se soterrada uma ingente tarefa,
sem solução, negada: maior do que as inúmeras soluçõles em que a
ocupação social se atrita. Trata-se desta: a partir da vida espiritual
elaborar em unidade aquela espiritual independência criadora (no
corpo estudantil) e o que tristemente nos observa enquanto força da
natureza ainda não dominada (na prostituição) desfigurada e
despedaçada como Torso do Eros espiritual.(GS II-1, 84).
Conforme a exigência de Benjamin em relação aos estudantes, uma existência
criativa deve ser revolucionária e messiânica ao mesmo tempo, pois a superação da
separação entre sensibilidade e inteligibilidade apenas é possível na compreensão do teor
original da natureza, destruído uma vez em sua totalidade, mas ainda presente em lascas e
estilhaços em que é reconhecível. As formas de ação guiam-se por esse registro: quanto
menos for a ação racional voltada a fins, tanto menos será possível pautar o presente pelo
futuro, pois como a ação não é medida por alguma utilidade vindoura, também o presente
não pode ser medido pelo futuro. Por isso, a ação deve efetivar o seu sentido na realização
dela mesma, o que significa que deverá reconhecer as suas determinações e os seus
conteúdos naquilo que passou. Assim, em vez de o messianismo extenuar-se na procura
por realizações utópicas, ele se concentra na reconstituição do que passou, do que
supostamente desapareceu no esquecimento, ou seja, nos rastros da unidade original
paradoxalmente ainda possíveis de serem seguidos na história.
O comportamento voltado a fins dos estudantes à procura de somente segurança
profissional e casamento é determinado por um tipo de concepção da história que
Benjamin descreve assim:
Uma concepção de história que, em confiança na eternidade do
tempo, somente diferencia o tempo dos homens e das épocas que
rapidamente ou devagar se sucedem nos trilhos do progresso. A isso
corresponde falta de conexão, carência de precisão e rigidez da
exigência que ela faz ao presente. (GS II-1, 75).
Nesta acepção, o futuro somente tem sentido quando toda a atividade do presente é
considerada como meio. Deste modo, porém, o presente é degradado e paradoxalmente não
consegue moldar o futuro. A história, então, não pode ser compreendida pela relação de
um meio para um fim como na técnica e, conseqüentemente não continuidade entre
50
presente e futuro enquanto novidade como se supõe normalmente, que é a continuidade
do velho. O que é novo supõe a ruptura com o velho e, exatamente por isso, é nele
reconhecível. Trata-se de novamente lembrar a possibilidade da ação livre da dicotomia
entre razão e natureza, entre liberdade e necessidade. A verdade, então, não estando no ser
e nem na consciência, diz respeito à unidade perdida na história e seus rastros, mesmo
assim, estão presentes enquanto fundamento sempre procurado da unidade do si mesmo
(pois não pode ser o sujeito) e do mundo. Todo o presente sempre está numa determinada
constelação com o infinito. Benjamin explica:
em um determinado estado, no qual a história reunida descansa
como num ponto focal, como desde sempre nas figuras dos pensadores
utópicos. Os elementos do estado final não estão ao dispor enquanto
tendências informes de progresso, mas estão profundamente aninhadas
em cada presente como criações e pensamentos ameaçados,
desacreditados e escarnecidos. A tarefa histórica é a de moldar o estado
imanente da perfeição em estado absoluto, torná-lo visível e dominante
no presente. (GS II-1, 75).
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1. A INDICAÇÃO DA CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM: A CONVERSAÇÃO
Onde tu estás, juventude! o que a mim sempre
Na hora acorda de manhã, onde tu estás, luz?
(Hölderlin)
Os versos de Hölderlin como dístico inicial do texto Metafísica da juventude
chamam à atenção para o fenômeno do acordar de cada manhã, que, no momento do seu
acontecer, possibilita a pergunta pela condição da consciência de um novo início do
compreender, continuando de algum modo o que foi interrompido pelo sono e pelo sonho
durante a noite que passou. A compreensão a cada manhã se renova qual novo início de
mundo em nova juventude, que, então, o poeta experimenta como se fosse luz, igual à luz
que se faz toda a manhã que está coincidentemente quando acorda. Cada manhã ele se
encontra na situação de compreender o que veio a ser, o que é e o que possivelmente será,
e a cada manhã poderá ter perguntas e respostas diferentes sobre qualquer coisa que seja.
Mas o que não pode mudar é que acorde sem que queira e, de alguma forma, compreenda e
se faça luz no processo de compreensão situando-o numa continuidade de si e de mundo
sobre a qual, de início e em princípio, não tem domínio. Ao poeta surge assim a questão da
fonte da compreensão sobre o local do vir a ser da luz que compreende a própria luz e a si
mesma compreende como luz.
O processo de compreensão ativa-se iniciando inevitavelmente sobre o que quer
que seja, e isso em forma de imediatos juízos apofânticos a objetivar conteúdos sobre o
mundo, a vida, as preocupações, emoções, anseios e esperanças. Coisas, compreensões,
preocupações, esperanças e anseios simplesmente se impõem, se encostam e se desenrolam
automaticamente exigindo a atenção de um observador que inapelavelmente parece ao
mesmo tempo ser obrigado a se identificar com o que assim lhe aparece ao espírito, pois
como poderia separar-se do que assim compreende? O observador de si e a atividade de
observação compreensiva parecem identificar-se: eis a dificuldade. Pois, como poderia o
observador desvincular-se do que é em preocupações, anseios e expectativas? Além disso,
52
como poderia o observador desvincular-se dos conteúdos que compreende, quem sabe
apontando para qualquer coisa na intenção de se desfazer daquilo com que propriamente,
imanente e imediatamente está a se identificar? É levado, então, a compreender que é
compreensão fática de qualquer maneira com tudo o que ela traz consigo mesma, sem
poder indicar a origem de tal atividade para, quem sabe, poder dominar inteiramente o
processo, que percebe muito bem o fato de que as próprias pretensões de domínio
analítico obedecem ao mesmo ritmo e se afinam pelo mesmo diapasão.
O sono e o sonho que compreende ao acordar também estão envoltos na luz da
compreensão agora ocorrente. O acontecimento do acordar para a compreensão do que seja
mundo, do que seja sono e sonho e do que ele mesmo seja pela atividade de compreensão,
leva-o a procurar pela fonte do que percebe de si mesmo e que ocorre enquanto
compreensão. Como a poderá encontrar sem que seja pela mesma compreensão em que se
percebe a ocorrer? Ele a chama de fonte da juventude como um local de emergência de
todas as águas que adiante estão a correr numa paisagem feita de visualização
consciente. Não lhe pode indicar a causa, pois a sua indicação evidenciaria o defeito do
esquecimento de que tal forma de explicação também faz parte do repertório da
compreensão em ocorrência. Chama-a de fonte da juventude talvez já para indicar a
intenção de se afastar das repetidas velharias ilusórias, esclerosadas e esquecidas do
compreendido como conhecimento sistematizado em estado de objetivação, que se
reputam como absolutamente normais e naturalizadas. Mas como se afastar do fluxo
impositivo do que veio e sempre vem intermitentemente à luz? Como é possível
apanhar-se na determinação consciente de tal processo como juventude analisante, crítica e
observadora daquilo que advém em contraposição a uma compreensão ativada no descanso
da normalidade do dia a dia, a qual, por sua vez, não consegue perceber o milagre da sua
proveniência, manutenção e aceitação social costumeira em meio a todos os outros? Mas,
ao mesmo tempo e de igual modo, qual o critério de separação do velho a advir e do novo a
observar o que advém, e, ainda mais, qual o estatuto de adveniência da pergunta que
procura ver novidade no contínuo? Não seria aquilo que se reputa o velho em continuidade
de compreensão exatamente o novo que procura observar-se em fluxo? E, junto com a
pretensão proponente da pergunta sobre ambos, não seriam os três apenas aspectos
diferentes do mesmo advento?
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A dificuldade de fato não está em que se tente e consiga dar respostas em forma de
sentido somente objetivado, mas sim, em que a fonte da luz chega a ponto de se obnubilar
e, então, confundir-se com aquele que se dá conta e pergunta no ato mesmo de
compreender. Então, possivelmente, o que chama de juventude faz-se ocorrência nele
mesmo, ou é ele mesmo de algum modo, apesar de entender que qualquer coisa que
aconteça no mundo, na sociedade, ou consigo mesmo neste exato processo, será
novamente a compreensão do acontecido. O distanciamento de si para a análise de si e a
pergunta por si para se encontrar deixam-se envolver na mesma compreensão. Quem afinal
de contas pergunta e quem responde? Quem fala e quem ouve? Qual é o estatuto da palavra
com que está a compreender a si mesmo enquanto compreensão a se perguntar pelo
mistério de tal ocorrência? Possivelmente esteja a se perceber num diálogo constante com
a totalidade do que foi elaborado e que o assusta, aponta e escolhe como interlocutor em
acontecimento de compreensão. Possivelmente, como ele, somos todos apenas falantes a
nós mesmos e aos outros e, por vezes, apenas ouvintes de nós mesmos e dos outros.
Talvez a primazia da atenção deva ser dada a uma das dimensões aventadas e,
por isso, considerada mais uma vez: Benjamin poderia estar fazendo uso dos versos de
Hölderlin para indicar alegoricamente o acordar na manhã de um sono e sonho instituído
compreensivamente em estado de normalidade funcional e inconsciência geral, ou seja, do
fluxo geral do pensamento rotineiro, da naturalidade de uma totalidade compreendida de
forma absoluta e positiva como se o conteúdo compreendido em nada dependesse de quem
assim compreende; em outras palavras, estaria a perguntar pela luz da clarividência na
manhã da existência para além do normatizado, ou, dele tentando tomar distância, desde
que a palavra existência significasse, por correção etimológica, a saída (ex) de uma
compreensão que imediatamente se como sistematizada (sistência) e no esquecimento
desse fato; além disso, estaria a perguntar pelo lugar da luz, pela sua condição de
possibilidade, pelo local de seu surgimento, como a dizer que o domínio sobre ela, a qual
rompe com a tranqüilidade do ondular pacífico e rotineiro de um pensamento domesticado
pelo ofuscamento do imediato, não é possível por parte do sujeito que a si mesmo quer
supor-se autônomo, atento e desperto, porque a própria entidade chamada de sujeito se
configura em rotineira decisão de fundamentação justificada por consenso em percurso
histórico, comprometida com determinada compreensão de si, mas esquecida da sua
precariedade na conjugação epocal em que está em uso. Não haveria método para a
arregimentação própria e seqüente auto-execução de um programa de libertação da
54
dormência no leito de uma determinada totalidade instaurada sistemicamente como
entendimento histórico e social. Ao se compreender como fonte, o próprio sujeito
perceber-se-ia comprometido como compreensão na intenção de fundamento que ao
mesmo tempo pareceria compreendê-lo, circunscrevê-lo e, até, acossá-lo por seu aspecto
de colagem identificatória e crítica. É como se, de acordo com a tipologia dos primeiros
capítulos do Gênesis, após a queda Deus-Algo inominável no interior do Adão que mesmo
é lhe perguntasse de maneira intermitente: “Adão, onde estás?” Isto é, em que estágio, em
que local compreensivo podes ser encontrado? Em que matagal compreensivo te
escondeste para fugir da percepção da tua nudez que procuras inutilmente encobrir pelo
viés da roupagem de toda a objetivação inscrita na linguagem?
A juventude indicada por Hölderlin ativa-se como evocação da rememoração atual
de tudo o que foi e que está a contribuir na fixação de sentido a acontecer de modo
inevitável na atualidade e, também, como o despontar da consciência de que no abrupto do
instante de agora existe a possibilidade de renovação, perdição, perigo, ou redenção por
meio de nova direção compreensiva. Assim, a humanidade de agora, sem método e sem
jeito de acordar, isto é, sem se dar conta do auto-retrato em que trabalha, está fadada a ser a
velhice do mundo. A mesma velhice do mundo vampiriza o agora para eternamente se
rejuvenescer, e o tempo, enquanto instaurada moldura compreensiva de todo o acontecer,
afia o seu aguilhão sem cessar, pois recebe a licença de ele mesmo acontecer por
determinação do ser enquanto compreensão instituída e a se instituir por repetições
sucessivas.
A fala em diálogo e sobre a conversação em Metafísica da juventude tem a sua
razão de ser no olho do furacão de uma compreensão que está à procura da compreensão
de si, e na expectativa de que sempre haja a possibilidade de se falar com o resultado
presente de toda a humanidade em si mesmo e no outro; assim que o próprio exercício da
conversação talvez possa ser a possibilidade do acordar na juventude de se perceber a
situação de compreender. A anuência e a imersão no imediato da compreensão
primeiramente tem as características da inevitabilidade intuitiva, da indagação reflexiva
sobre fundamentação inerente e das condições de construção gica ao mesmo tempo. É
possível perguntar a respeito da impossibilidade de separação dessas características, mas a
própria pergunta já estaria nelas incluída de algum modo.
55
Por que os místicos são lógicos por excelência? Porque muito tempo
compreenderam que tudo o que dizem não passa de uma grande falácia que a própria
lógica denomina ad hominem e que se procura eternizar na simulação continuada de
objetividade. É a experiência do espanto da juventude enquanto se dar conta da
compreensão e da luz como metáforas constantes a possibilitar objetivações continuadas,
gerais e inevitáveis na angustiada lembrança de si estar a acontecer assim.
Num texto que prima pelo seu hermetismo encontramos afirmações que à primeira
vista sugerem um corpo teórico-dogmático completamente desinteressado da compreensão
de quem o lê, mas que aos poucos assusta pela amplidão e profundidade do seu sentido
quando acrescido das suas possibilidades entre uma frase e outra. No primeiro capítulo de
Metafísica da Juventude temos:
Diariamente utilizamos forças desmedidas, como
os que dormem. O que fazemos e pensamos está pleno do ser dos
pais e dos ancestrais. Um simbolismo incompreendido nos
escraviza sem cerimônia. Às vezes nos lembramos, ao acordar, de
um sonho. Desse modo, raras vezes, clarividências iluminam os
montes de destroços de nossa força, pelas quais o tempo passou
voando. Nós éramos espírito acostumado como o bater do
coração, com o qual levantamos cargas e digerimos. Cada
conteúdo de conversação é conhecimento do passado como nossa
juventude e pavor ante as massas espirituais dos campos de ruína.
Nunca jamais vimos o local da luta silenciosa que o Eu encetou
contra os pais. A conversação queixa-se da grandeza
desperdiçada. (GS II-1, pg 92).
O que movimentamos diariamente são as mais variadas forças das nossas
explicações instituídas para a aplicabilidade na sociedade e na cultura em todas as suas
perspectivas a cada milésimo de segundo num tempo objetivado que percebemos como
a passar. Tais forças mostram-se na prática concreta diária de todos como a normalidade
do pensar, do falar e do agir justificados comunitariamente ou em processo de
justificação e intenção de fundamentação da certeza coletivamente padronizada.
Estamos como que mergulhados numa realidade que nos compreende e que
compreendemos sem podermos acordar por conta própria para promover a análise e a
elucidação definitiva dos fundamentos que pudessem explicar o que sempre está em
andamento e não pára. O ordenamento explicativo de tudo no mundo é um conjunto de
forças postas a atuar exatamente desta maneira vista como concreta e real e compromete
a todos os que em seu meio manejam os diversos conjuntos teórico-compreensivos para
56
a sua manutenção e o seu desenvolvimento. A participação compreensiva desde a
percepção estética da época até os pretensos fundamentos teóricos do real faz parte da
inevitabilidade de um uso em aplicação concreta, sem oportunidade de emergir para o
âmbito de alguma meta-compreensão capaz de algum julgamento imparcial, sem poder
alçar-se a um belvedere para a visão da paisagem compreensiva em que já se esteve. Tal
pretensão e possível execução seriam apenas mais um detalhe da própria paisagem. A
inconsciência da totalidade das forças que utilizamos e que define de maneira inevitável
a nossa forma de ser resulta numa espécie de sonambulismo em que agimos como que
sonhando. Não conhecemos de modo algum a totalidade das determinações da nossa
compreensão, mas nos encontramos na situação de ter que compreender como se
destino fosse. Fixamo-nos numa totalidade de explicações que parecem convincentes
sem conhecer sequer a profundidade da sua proveniência. Deslizamos de superfície em
superfície explicativa e nesse embalo estamos a dormir manipulando enormes forças
desconhecidas na inconsciência do envolvimento de agora.
Como os que dormem sonham as explicações que movimentam encantamentos e
monstruosidades no percurso normal do sono, assim, na pretensa situação de acordados,
movimentamos sonhos, encantos e monstros que desconhecemos, mas com os quais nos
identificamos por costume e repetição rotineira. É possível que a explicação do sonho se
torne nova forma de sonho, sonho do sonho como expulsão metafórica constante: a
explicação da explicação, quem a poderia explicar?
A explicação com que se compreende e apresenta a compreensão deveria
supostamente poder ser explicada também. E assim acontece uma espécie de eterno
retorno em que a compreensão da compreensão se coagula e dá oportunidade de
experiência e nova compreensão de acordo com a lenda de Sísifo que sempre tem uma
pedra a rolar ladeira acima, como uma situação de castigo ou de divertimento, depende
do ponto de vista.
Como os gregos conheciam o sentido precário e talvez nefasto dos ingentes
esforços do sonambulismo compreensivamente construtivo de armações absolutas,
assim também o AT o conhece pela constante peregrinação de Abraão desde o “Sai
da tua terra, da tua parentela e da casa do teu pai, e vai para a terra que te mostrarei”
(Gênesis, 12,1) até as suas fugas para desviar-se de situações comprometedoras e
57
respirar novos ares. Abraão migra, ou pelo mandado da voz, ou forçado pelas
circunstâncias.
Novas terras, nova situação e circunstâncias compreensivas. Os demônios são os
seres que se querem eternizar como uma compreensão determinada e instalada e devem ser
expulsos. No filme de Akiro Kurosawa, Os sonhos, na cena O demônio chorão, os
demônios tornam-se imortais e urram de dor. Por que? Porque seu castigo é a falta da
metonímia, do deslocamento, da transformação e metamorfose significativa. A catástrofe é
a falta de superação por prática na significância e assim de itinerância significativa. Não há
metonímia para eles, mas sim, apenas a lei que desconhecem e à qual, por isso mesmo,
devem obedecer em fidelidade eivada de mediocridade: são capazes de perceber a sua
própria compreensão catastrófica e condenados a subscrevê-la infinitamente. São eternos
por estarem num eterno presente que se alastra empedernindo-se num bloco eterno como
que sepulcros caiados de branco, luzentes, fixamente fundamentados, mas morte e
podridão por dentro, aparência que se expressa por retórica auto-afirmativa, repetitiva,
absoluta em seus juízos de condenação ou absolvição, incapaz de se voltar ao silêncio na
escuta da compreensão do seu dizer.
Os demônios são horríveis e culpados, porque não sabem da sua condição e nunca
compreenderão; apesar de todo o universo ecoar a sua sentença e a sua culpa não
conseguem nem ouvir acusação alguma.
Benjamin lembra que no mundo de Kafka a beleza aparece nos locais mais
ocultos e como exemplo exatamente os acusados: “É notável de qualquer modo, de
certo modo é um fenômeno científico...também não pode ser a culpa que os fizesse
belos...também não pode ser o castigo justo que os faz belos já agora...portanto, pode
tratar-se do processo movido contra eles, que de algum modo adere ao seu corpo”. [II-
2,413]. Os acusados sentem-se injustiçados e estão seguros da sua inocência, porque eles
permanecem fixos, luzentes, radiantemente obedientes aos ditames das forças que
apascentam a realidade e, em sono profundo, dificilmente ouvem o comando das mesmas.
Mas a idéia é que não são como os demônios que não conseguem ouvir a acusação de
modo algum, ao contrário dos acusados que pelo menos percebem o processo. Por isso, ao
contrário dos demônios, são belos pelo fato de inevitavelmente estarem a ouvir a acusação
e este é o início do processo, o qual é mais importante do que a culpa e o castigo. Os
acusados ouvem, reagem e estão em processo. Os demônios, porém, são timas de um
58
embotamento definitivo. Eles pensam que não tem culpa e esta é exatamente a culpa
maior: imaginar que não se seja culpado A ação individual e coletiva da manipulação usual
de forças desmedidas, desconhecidas, inconscientes deveria induzir a se perceber culpado
como pertencente à continuidade de uma catástrofe em andamento normal. A desgraça,
porém, é que estamos na situação demoníaca de porta-vozes da catástrofe, ou, em outros
termos, somos a continuidade dela pelo que compreendemos e promovemos via um
entendimento participativo e solidário.
Como os que dormem estão na inconsciência do sono e do sonho, assim em nossa
pretensa vigília no cotidiano tarefeiro estamos sendo sonhados pela força estruturada da
compreensão de todos os séculos. São forças de todos os tempos, estruturadas e
presentificadas no agora de nossa compreensão do falar compreendendo e da compreensão
do nosso falar. A compreensão e o falar brotam de um chão nosso em que estamos deitados
e que desconhecemos, sendo que na modorra ocorrente como operação prática e social
loucamente atarefada geralmente não atinamos com o que nos identificar: o chão, o brotar,
a própria modorra ou tudo de uma vez. O sentido, a atividade, a velocidade, o
deslocamento, a condensação e a concentração, tudo ocorre organizada, ou, caoticamente,
sempre na percepção de sermos a instância capaz de descrever de maneira acurada o
processo que somos. Na intenção de sair do que somos para a descrição dos rastros de
nossa própria ocorrência, acontecemos enquanto relativo apagamento deles para a repetida
feitura de mais recentes pistas. A música da dinâmica das forças compreensivas, que nos
compromete no âmago do compreender o que quer que seja, procura impedir-nos do
afastamento para o lado, para cima, para baixo, para antes e para depois, impossibilitando
uma visão privilegiada da evolução da dança que estamos a dançar e a ser.
Pais e funcionários têm certa semelhança entre si, como menciona Benjamin a
respeito de Kafka (GW, II-2,411). “O que fazemos e pensamos está pleno do ser dos pais e
dos ancestrais”. (GS II-1, 92) São funcionários da cultura estabelecida. Eles são a própria
tradição viva a exigir repetição dos seus padrões inscritos na inconsciência da significação
dos conteúdos da linguagem em uso e dos gestos padronizados em jeito de ser. Pensar,
falar e fazer são atividade que se exercitam e se dão pela naturalidade da continuidade da
tradição que em conjunto cultivamos e somos. Todas as determinações culturais presentes
ativam-se e se manifestam por nosso intermédio a ponto de estarmos impossibilitados de
arrancar a máscara da compreensão imposta e de nos vermos diferentemente no espelho do
59
imediato cotidiano em expressão contínua. Somos levados a compreender o que
compreendemos e o imediato cotidiano é tal, porque perfaz e resume a expressão
automatizada de uma compreensão determinada de acordo com o fluxo a borbulhar no
agora e provindo de tempos ancestrais. A obra dos pais como funcionários da construção
da Torre de Babel à espera da dispersão visualiza-se no aconchego vocabular feito de uma
centena de conceitos costurados como colcha na espiritualidade de cada um. Na fala, a
compreensão ruidosa e operatória do cotidiano é ostentada com volúpia. Somos feitos de
palavras, um texto escrito que se reescreve em recapitulação contínua. As palavras são o
nosso chão e possivelmente a fonte jorrando uma burocracia obedientemente falante capaz
de nos adormecer, ninar e fazer sonhar com a plenitude da explicação do que é, do que não
é e do que deve ser. Adormecidos num sonambulismo delirante, esquecemos que somos
exatamente o sono e o sonho, confiados às ações concretas. Pois “Um simbolismo
incompreendido nos escraviza sem cerimônia”. (Idem)
Sem sermos avisados, pelo fato de não haver quem nos pudesse avisar, e sem
cerimônia, pelo fato de nos sentirmos em casa com a alma tranqüilamente a calçar chinelos
na penumbra de uma atenção adormecida, permanecemos escravos de uma
incompreendida força concretamente ativada pela maneira com que estamos a ser como
incompreensão teatralizada. São palavras a comandar processos que se impõem na minúcia
dos procedimentos do dia a dia alegando naturalidade lógica, e o ser a se oferecer como
palavra em processo e concretude de ação em todas as instituições sociais, bem como na
particularidade de cada um. A dificuldade está em se perceber esse simbolismo
incompreendido além da compreensão normatizada. Como se viu, a compreensão
comprometida com aquilo que para si é tem extrema dificuldade de sair da sua letargia que
exatamente desconhece. Mas “Às vezes nos lembramos, ao acordar, de um sonho. (Idem).
Sabemos por experiência que a maioria dos sonhos é rapidamente esquecida ao
acordar. O fabular do sonho constitui-se de excelente material para a reflexão. Os sonhos
são construções que de uma ou outra forma dão notícias de nós mesmos sobre questões que
normalmente desconhecemos ou não lembramos com a devida atenção. O sonho como
construção, aproveitável ou não pela psicanálise, é apenas um sonho que fomos em sua
travessia. Na normalidade do sonhar que fomos, o seu conteúdo geralmente se desfaz
rapidamente para permanecer apenas a percepção da atividade do sonho que foi seja qual
for. Lembrar-se do acontecimento do sonhar, isto é, de que acontecemos enquanto sonho, é
60
bom exemplo e proveitoso alerta para a nossa opinião de que sempre nos encontramos na
situação de acordados quando descrevemos o que designamos como a realidade positiva.
Na situação de supostamente estarmos despertos se primeiramente o inverso do que
pensamos do sonho, isto é, julgamos o conteúdo do nosso julgamento como absoluta e
justificadamente positivo, real, veraz e desvinculado de qualquer sonhar esquecido em
atividade delirante. Quando despertos, parece que estamos certos de que o sonhar e sonho
juntos constituem aquilo que possibilitaria a lembrança necessária pela qual o sonho como
conteúdo é relacionado e relativizado como mera atividade de sonhar. Após o sonho, o
conteúdo não mereceria estatuto de realidade absolutamente objetiva e positivada, ao
contrário da situação de nossa pretensa produção julgante e positiva quando acordados.
Às vezes, pois, ao acordar, lembramo-nos de um sonho após o sono, mas isso talvez
também possa implicar a lembrança de que ingressamos em outro sonho que é a totalidade
da compreensão instituída, em que a compreensão então imersa opera no esquecimento de
si, ou seja, no esquecimento de que é compreensão de conteúdos organizados em operação
concreta. No esquecimento continuamos a repetir critérios em utilização desde sempre na
tradição e a produzir por seu intermédio a ilusão da objetividade de um conhecimento com
pretensão de validade e separado de quem o promulga. Conceber-se sujeito a participar do
sonho é ilusão que desaparece ao acordar para dar lugar à impressão de autonomia ao
sonho de uma objetividade separada de quem a professa; são reais tanto quanto uma ilusão
e um sonho possam ser. Quando despertamos? Quando podemos ser nós mesmos sem a
interferência e o peso de um passado que levamos como que às costas, ou talvez, um
passado do qual não nos podemos descolar e que, então, sempre também somos sem o
conhecer, ou somos, sem nos conhecer na profundidade das nossas raízes? Parte do acordar
possivelmente é acontecimento de se dar conta dessa dependência, ou desse
desconhecimento. Como se institui o dar-se conta? Como se sabe a respeito da situação de
estar acordado? Quem nos alcança um método clarividente que se pudesse apresentar como
critério de consciência de vigília com sobranceira tranqüilidade? “Desse modo, raras vezes,
clarividências iluminam os montes de destroços de nossa força, pelas quais o tempo passou
voando”. (Idem).
No sonho acordado de uma compreensão dormente nos lençóis da alienação
objetivada como sistema, em que o fluxo informativo sobre ofertas de certezas parece
61
nutrir e satisfazer todas as ansiedades e desejos cultivados administrativamente,
clarividências podem acontecer possibilitando a recordação do sonho que se está a sonhar.
Mas, enquanto o despertar clarividente não chega, apenas um sonho construtor-
destruidor em que estamos a empregar a nossa força, ou, em que as construções são a nossa
força em emprego e atividade, e se revelam como montes de ruínas, que são os nossos
rastros, o tempo perdido em inconsciência sobre o que de fato está a acontecer. As ruínas
produzidas pela nossa força ao serviço do desconhecido, que nos condiciona num sonho,
são difíceis de se verem e nas quais, talvez por inércia na atenção compreensiva, não
conseguimos interferir em sua seqüência ou para o seu término. A clarividência é como
que o pesadelo que acontece como surgimento da dúvida sobre o sentido do que se é
enquanto tentativa de continuar a expressar certeza natural e absoluta no uso da linguagem
com um vocabulário viciado nas aplicações de suporte para imediatas sistematizações.
Nas nossas aplicações viciadas acionamos uma força que não conhecemos, o que
significa que inconsciência na nossa compreensão alocada num tempo que passa como
se fosse linha em que progredimos conforme os ditames desconhecidos, mas que trabalham
com afinco em nosso próprio ser. Na maioria das vezes somos convencidos pela totalidade
do espetáculo montado socialmente de que nada valemos pelo que pensamos e, quando
convencidos, trabalhamos para tais forças estranhas que nos comandam por convencimento
normalizado em nossa compreensão ativada na socialização, coletivização, fluxo histórico
de compreensão afirmativa, organizada e estrategicamente dinamizada.
A percepção do tempo a voar é o sintoma da escravidão programada
compreensivamente pela tradição inconsciente em que estamos a ser e que, ao final,
mesmo somos de modo imediato. De onde surgem as clarividências? É uma das facetas da
pergunta de Hölderlin: “Onde tu estás, luz?” Quando se o acordar? Às vezes
clarividências em forma de presente no instante de agora possibilitam o vôo do tempo para
o passado a fim de iluminar destroços de construções que amontoamos e somos, o que nos
recupera a situação capaz de nos identificar com o papel de Adão e Eva, no início do
Gênesis, envergonhados pela visão de sua nudez por ocasião do seu ingresso na recordação
compreensiva do feito: as construções edificadas eram eles mesmos e significavam
exatamente. Eram esquecida construção ou construção esquecida do esquecimento da
construção positivada objetivamente.
62
A árvore do conhecimento separado de quem conhece produz o fruto extremamente
perigoso que é o esquecimento de que é fruto oferecido pela cobra enquanto tempo feita
objetivação de linha, a qual, mesmo nessa abstração geométrica, apresenta de modo
fragmentado o passado, o presente e o futuro. A cobra enquanto tempo com o seu fruto
instaura o desejo da procura por validade incontestável em forma de divindade separada,
isto é, ela absolutiza a ficção de si em forma de objetivação alienada de si. Deus só se pode
contestar e desafiar quando supostamente visto qual entidade de todo separada: como
externo e compreendido enquanto critério para julgar absolutamente. Assim é que é agora
contestado e desafiado em seu absolutismo objetivado como fundamentação última. A
cobra prognostica: Não morrereis, e tem razão, pois passamos a viver morrendo sempre na
procura da falta ou culpa inicial, ou seja, o divórcio objetivante. A proibição dos frutos da
árvore já aponta para a possibilidade do esquecimento que é a morte intermitente na
pretensão da definição julgante em base de fixidez definitiva.
Mesmo as ficções da pretensão sociológica em erigir critérios coletivos de validade
mostram-se precárias. Temos por experiência histórica que os concílios, congressos e
parlamentos são constantemente contestados pelo fato de também errarem. E, ao contrário
do que sugerem concepções historicamente mais próximas, o coletivo absolutamente
legitimado não existe e nem está absolutamente legitimado por regime de representação,
que também o que denominamos passado, presente na pletora do sentido do mundo,
reivindica participação insistentemente, e o futuro também não se resume a mero não ser.
No texto: A vida dos estudantes nós lemos:
uma concepção de história que na confiança na
infinidade do tempo apenas diferencia o ritmo dos homens e das
épocas, as quais se desenrolam rapidamente ou devagar na
trajetória do progresso. Corresponde-lhe a desconexão, carência
de precisão e rigor na exigência que faz ao presente. (GS I-2 , 75).
Na seqüência do raciocínio que valoriza um passado ainda plenamente presente e
ativo a ponto de apresentar uma concepção de história alternativa àquela que se desenrola
na trajetória do progresso nós lemos: “Nós éramos espírito acostumado como o bater do
coração, com o qual levantamos cargas e digerimos”. (GS, II-1,92) E a carta de Benjamin a
Carla Seligson de 15 de setembro de 1913 (GS II, 3-865) elucida:
Hoje eu sinto a extraordinária verdade da palavra de
Cristo: que o Reino de Deus não é nem aqui e nem lá, mas
dentro de nós. Eu quero ler consigo o diálogo de Platão sobre o
amor, onde isso é dito de forma tão bela e pensado tão
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profundamente como talvez em lugar algum. (parágrafo) Antes do
meio dia pensei adiante: ser jovem não significa tanto servir ao
espírito, quanto esperá-lo. Vê-lo em cada pessoa e no pensamento
mais distante. Isso é o mais importante: não podemos nos fixar
num determinado pensamento.......Quando, portanto, (quando não
nos reduzimos a mero trabalhador de um movimento) quando
preservamos o olhar livre de ver o espírito seja onde for, então
seremos aqueles que o concretizam. Quase todos esquecem que
eles próprios são o local em que espírito se concretiza. Mas
porque se fizeram rígidos em pilares de uma construção em vez de
vasos, taças que conseguem receber e guardar um conteúdo
sempre mais puro, por essa razão eles desesperam quanto a
concretização que sentimos em nós. Essa alma é o Eterno
Concretizar-se...
A primeira coisa a observar é a tranqüilidade de Benjamin em citar textos da
cultura humana em geral, sejam eles considerados sagrados ou não pela coletividade
cultural, e sem o receio de parecer interessado em aspectos motivados por interesses de
edificação religiosa. Observa-se preliminarmente neste exemplo que o autor é capaz de
considerar qualquer texto escrito como digno de nota, como um fenômeno que chama à
atenção e sobre o qual vale a pena debruçar-se, talvez pelo fato de ser resultado de
determinações culturais e, ao mesmo tempo, de ser veículo e forma de sua transmissão e
tradução.
O bater do coração nota-se no susto e no enlevo, por ocasião de atenção específica
ou por acontecimentos extraordinários. Normalmente o bater do coração passa
desapercebido. Assim somos costumeiramente espírito-compreensão a definir, carregar,
articular sentido na linguagem como se compreensão e espírito não fosse, e tudo, então,
apenas fosse objetividade fundamentada de alguma forma em local e tempo externo ao que
imediatamente somos. Produzimos coisas, erguemos bandeiras, combatemos, promovemos
e transformamos a tradição, contra ela lutamos, empenhamo-nos em favor do velho e do
novo, lutamos pelo regresso de antigos valores ou pela implementação política ou estética
das expressões da vanguarda. Digerimos objetividades antigas tornando-as, quem sabe, em
erro ou acerto e plantamos novas plantas no espaço-chão para que se resguarde a
continuada possibilidade da ilusão de direcionamento absoluto em sua certeza. Éramos
espírito-compreensão e não sabíamos. Mas isso somente se torna claro na atenção acirrada
e na violência do susto, do choque por ocasião da interrupção do acordar. Somos o que
digerimos: a lembrança do sonhar e o conteúdo do sonho devem estar constantemente
presentes para que se possa falar de algum despertar. Como e quando acordamos? Seria o
susto o acontecer da clarividência? A afirmação de Benjamin é a de que “Cada conteúdo
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de conversação é conhecimento do passado como nossa juventude e pavor ante as massas
espirituais dos campos de ruína”. (GS II-1, 92).
O conhecer e se conhecer são fundamentais e vêm pela conversação. Trata-se de
um tipo de conhecimento que pode advir da conversação e não da solidão de um
discurso viciado em sua auto-afirmação. Quando existem dúvidas de como acordar do seu
próprio sono dogmático a conversação aparece como uma espécie de despertador, pois o
suposto é o de que um personagem do diálogo se encontra com todo o conteúdo do passado
resumido sui generis e de forma diferente da sua no outro personagem. Se não for mera
comunicação de ordens de aplicação do que foi milenarmente combinado, a conversação
pode chamar à atenção para a dimensão da diferença de compreensão existente entre os
dois personagens, para as explicações que intentam o entendimento das compreensões que
se sucedem, para os supostos das mesmas explicações e para a sensação e talvez certeza de
dependência milenar em relação às mesmas suposições. O conteúdo elaborado assim vai se
definindo como conhecimento do passado de cada um. Tal forma de conhecer é designada
por juventude, ou seja, a capacidade de ver além do que imediatamente se à visão e de
compreender a realidade de agora como provinda a partir de condições de possibilidade
que são da experiência, da história e da linguagem em que todos estão envolvidos. Na
totalidade do processo compreensivo aquele que está à nossa frente representa um índice
do ocorrido, resumido na maneira em que o mesmo se encontra, mesmo que não saiba
disso.
O conhecer é uma espécie de nomeação do outro que nunca pode já estar nomeado
definitivamente, pois a notícia que é exatamente a infinita novidade do passado nele
presente. Cada um dos personagens da conversação é cria do passado em que nessa
dimensão presente elaboram o conteúdo de si que formalmente aplicam como sendo a
costumeira realidade do cotidiano assumido simplesmente como natural. Cavoucar nas
condições de possibilidades de si tem como resultado o conteúdo da conversação, que é
conhecimento do passado presente e determinante de todos os sonhos dogmáticos. Tal
processo dialogante chama-se juventude que se ativa num acordar constante. Mas tal
processo também significa choque e pavor frente ao conteúdo elaborado, pois a descoberta
dos supostos, das fundamentações e das motivações dos discursos, das convicções e das
ações de implementação de realidade compreensiva pode parecer assustadora ao extremo.
Trata-se de ter a sensibilidade de perceber a quantidade de louça que foi quebrada para
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apresentar aquilo que se chama de realidade concreta com toda a sua organização
funcional. A prata luzente da realidade apresenta-se minúscula no apoio que recebe
situando-se no topo de um campo de ruínas que mesmo produziu. Juventude,
conhecimento e pavor evocam na conversação um conteúdo muito além do entendimento
costumeiro: a linguagem na conversação está carregada de um passado soterrado no
presente de sua elocução, e a escuta atenta à fala da linguagem do outro e de si mesmo faz
ouvir as massas espirituais de uma riqueza inconcebivelmente esbanjada, ou seja, a
grandeza sublime do que não foi, a totalidade do que foi destruído para que se possa
compreender a necessidade da azáfama do cotidiano com suas escolhas a comando e
imposição de urgências. Mas o que não foi e não é fala na representação do que foi e é e,
por isso, sempre pode ser descoberto, re-instaurado, remodelado com os cacos à
disposição, com as massas espirituais dos campos de ruínas.
O conteúdo, portanto, remete à questão do significado, falado, tema em questão,
que está suposto como esquecimento para agora ser tematizado pela conversação. Tem-
se a pragmática da conversação - diálogo e o conteúdo da mesma que sempre se pode
referir ao passado, ou seja, ao que está presente fixamente no ser do dialogante a se
expressar. Conhecer-se a si mesmo como tarefa infinita é tematizar o passado, contar com
ele já a fazer parte da própria forma, dos valores e dos critérios do pensar ocorrente em
diálogo. Infinitas determinações subjazem ao nosso pensar ocorrente e a prática da
conversação aborda inevitavelmente a presença de um passado preso à nossa pele em
forma de automatismo normalizado, naturalizado e, assim, esquecido: é construção-
máquina transparente com que se está a operar e ajuizar sobre bem e mal.
Uma vez, trata-se do passado que se faz presente na prática da conversação: o
passado fixado enquanto historicismo esclerosado que tem condições de ser lembrado
em sua parte nima, objetivado como se fosse autônomo, externo e separado das
ocorrências no presente. Outra vez, trata-se do mesmo processo de atividade conversativa
que capacita a perceber as massas espirituais que restaram dos campos de ruínas do
passado em forma exatamente de presente configurado pelas mesmas: o edifício do
presente real construído por incontáveis artefatos destruídos, ruínas que falam naquilo que
somos daquilo que foi e, assim falando, a participar do presente de forma efetiva sem
nunca terem passado. Os campos de massas espirituais que são sucessivos epocalmente e
esquecidos na distância do esquecimento em nosso interior, nunca são assumidos e citados
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conscientemente, mas sempre afirmados inconscientemente como eu-agora, produto da
barbárie dos séculos. Campos de ruínas presentificam-se como massas espirituais quase
que completamente incompreendidas para, em momentos de clarividência, serem
assumidas em nós e por nós por um movimento do conhecimento juvenil e apavorado. Tal
presentificação clarividente se na conversação quando ativada na caça a supostos e
pressupostos do que vem no instante perfazer a atividade da conversa e os próprios
critérios de julgamento do que sejam tais determinações, julgamento a produzir explicação
do eu em objetivação conteudística separada de si e, portanto, nova alienação, destruição
por nova formação de constelação fixa. O eu que é construído na intenção da objetivação
em conteúdo é percebido sempre como diferente do eu que se afirma de modo pragmático
exatamente em seus balbucios semânticos. Em ambos a tradição presentifica-se
constantemente cindida pela linguagem.
O conhecimento do passado presente na nossa fala elabora-se num reconhecer que
a si mesmo se dá o significado de juventude; ou ainda, cada conteúdo do diálogo é
constante reconhecimento do passado presente no que nele objetivamos. Perceber que isso
seja assim, representa a juventude, e essa juventude é exatamente a destruição constante, o
caráter destrutivo de uma compreensão que conhece por nomeação, a compreensão das
construções gerais de que somos feitos e nessa compreensão estamos a destruir. Massas
espirituais passam pela nossa visão: nós éramos parte delas e ainda somos, elas nos
comandavam e ainda nos comandam, e na mudança ocorrente da compreensão que somos
elas restam como ruínas objetivadas em parte, definições do que éramos e que se tornam
rastros no caminho de mudança que deixamos para trás, mas que ainda nos definem. A
objetivação que acontece na verbalização de pensamentos, dos seus critérios e valores
subjacentes, é fruto de pretensão de validade sobre a realidade que se está a diagnosticar.
Na conversação há, portanto, a possibilidade de um reconhecimento da dinâmica
dominadora do espírito dos ancestrais que muito tempo nos escraviza em determinada
compreensão, mesmo que tal reconhecimento não elimine e não queira eliminar as forças
que nos carregam e que, por carregá-las, também somos. Na medida em que acontece o
despertar, o conteúdo da fala que somos é a juventude sempre se renovando pela
vampirização compreensiva do que nós denominamos como passado, ou pelo
acontecimento jovem do passado agora, ou do constante rejuvenecer-se do passado em nós
como força ativamente compreensiva: qualquer coisa que decidamos tem a sua relação
67
com o que foi e que agora ainda é. A cada decisão ajuiza-se: a consciência do ajuizar causa
pavor sobre o que foi decidido, o que se está a decidir e o que se deverá decidir para ser
formação de campos de ruína - objetivação em meio às massas espirituais que somos a
nos comandar inconscientemente talvez na maior parte. A conversação é o diálogo que
somos e, como diálogo, é a imediata juventude a ser; pois no diálogo liquida-se o
embotamento e se aguça a atenção para notícia do que vem a ser, provindo das brumas do
passado.
Juventude como conhecimento e pavor é também o reconhecimento do conteúdo da
fala, das decisões a estipular construções enquanto realidade. O que falamos a
compreender e compreendemos ao falar expressa a imediatidade do compromisso com o
que sempre imediatamente antes foi. A compreensão jovem atual vê-se herdeira de tudo o
que foi destruição e empurrada pelo pavor de si mesma a se envolver em construções de
castelos objetivos, cujos projetos desconhece em grande parte. Podemos falar do pavor
do próprio Hölderlin: Onde tu estás, luz, que me acordas toda as manhãs. A juventude é
uma situação perigosa, bem como a consciência dela.
A fala traz muito consigo. A semântica que acontece na fala evoca as folhas e flores
da planta cujas raízes são inúmeras e vão fundo na terra do tempo inaugurado como
seqüência infinita e da história nele possibilitada em termos historicistas. O acontecer da
semântica (o sentido como conteúdo) é conhecimento enquanto rastro de passado, pois,
falamos do que chegamos a ser; e, como objetivações cristalizadas do que fomos e somos
externamo-nos expressivamente em forma de fala-discurso. Erkenntnis (conhecimento) é,
também, o reconhecimento de que assim seja e tal reconhecimento como clarividência
perfaz a juventude, é juventude, é o velho novo.
Isso, por outro lado, faz ver campos em ruínas feitas de massas espirituais, vida
passada parecendo perdida pela falta de sentido, pavor diante da catástrofe em andamento
que mesmo se é pelo fato de nelas participar na compreensão sonolenta no aguardo da
clarividência qual o anjo da história desta IX Tese, que reconhece não poder voar, que
não lhe é permitido afastar-se, pois de forma imanente faz parte do processo catastrófico:
Minhas asas estão prontas para o vôo, / de bom grado voltaria
atrás,/ pois mesmo se eu permanecesse tempo vivo/ minha
felicidade seria menor (Gershom Scholem, Saudações do
Angelus)”.
68
um quadro de Klee denominado "Angelus
Novus". Representa ele um anjo que parece estar na iminência de
se afastar de algo em que crava fixamente os olhos. Tem os olhos
esbugalhados, a boca aberta, as asas desdobradas. Tal o aspecto
que deve ter o anjo da História. Tem este o semblante voltado para
o passado. onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele
apenas uma única catástrofe que não cessa de amontoar
escombros sobre escombros e de arremessar esses escombros a
seus pés. Bem que ele gostaria de se demorar, de ressuscitar os
mortos e juntar o destroçado. Mas, do paraíso, sopra uma
tempestade que se prende a suas asas, tão fortemente, que o anjo
não as pode mais fechar. Essa tempestade o empurra
incessantemente para o futuro, a que ele as costas, enquanto
diante dele o monte de destroços se acumula até o céu. Essa
tempestade vem a ser precisamente o que se chama progresso.(GS
I-2, 697).
O rosto do anjo expressa o pavor de quem não mais consegue voar para frente em
direção ao passado onde pudesse visualizar claramente o acontecimento de si, mas, ao
contrário, apenas reconhece o passado como força paradisíaca de progresso violento em
direção ao futuro: faz parte da inconsciência de um movimento que o ataca e empurra para
o futuro desconhecido.
O rosto do anjo expressa o momento da clarividência da juventude enquanto
reconhecimento do passado que somos e, nele, o pavor pelo que produzimos e que
somos em andamento. Massas espirituais que permanecem a durar mesmo em forma de
ruínas, as quais expressamos no conteúdo da nossa fala e que, por sua vez, como
compreensão própria, percebemos pela reflexão solidária da conversação em seu acontecer
semântico.
A conversação, portanto, é o acontecimento da instituição de um diálogo
acompanhado do reconhecimento do passado a viger como força atual, e por meio dele se
chega à conscientização de pré-conceitos, automatismos, determinações em que se está
numa embretada em agenciamentos de pensar e agir. Mas exatamente o reconhecimento
disso é que promove a juventude e o pavor ante as massas espirituais dos campos em ruína
constante que somos, mas tendentes a enfeitar o cimo dos montes de escombros com algo
de realidade como se fosse porcelana rara, e não o passado como fantasma a ser visto
separadamente de quem dele fala. A acentuação que se intenta é no reconhecimento que
ocorre enquanto conteúdo no diálogo. A fala dialogante acontece nas dimensões do
automatismo e da determinação pela tradição e incorporação de materiais pensantes de um
69
lado, e do outro, pela libertação na juventude do diálogo reconhecedor das mesmas
determinações.
A metafísica é entendida como transcendência do imediato sistematizado a
reconhecer determinações transcendentais, condições de possibilidade da própria
libertação. A expressão Éramos espírito (Wir waren Geist) (GS II-1,92) pode ser
comparada com a célebre frase de Tales de Mileto sobre os afazeres cotidianos de um
padeiro: Aqui também há daimones. O cotidiano instalado só não causa curiosidade a quem
nele embarcou completamente e assim não pode ver nem descrever a sua relação com e na
totalidade do que é.
As massas espirituais dos campos de ruína são a nossa presença como compreensão
enquanto vítimas e algozes de todas as violências já havidas: a expressão neotestamentária
Filho do Homem (Marcos 14, 21) elucida a consciência que é possível ter como
compreensão ocorrente a se perceber carregada de toda a plenitude do sentido existente,
responsável por ela e decidindo inevitavelmente no tempo agora.
“Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são
idênticos para Kafka” (GW II-2,411). “Nunca jamais vimos o local da luta silenciosa que o
Eu encetou contra os pais”. (GW II-1, 92).
Os pais são os administradores mensageiros do que está estabelecido: nós os somos
por interpretação total instituída: estamos como que fundidos ao que foram e, por outro
lado, ainda são por nosso intermédio. Repetimo-los de todos os modos por inércia ou até
por revolta na intenção de implantar nova interpretação para referência geral. Mas há o fato
presentificado do Eu que se constitui como possibilidade de juntar em si mesmo todos os
liames de sentido em andamento costumeiro ou a inaugurar rumos diferenciados. Um Eu
acontecendo assumidamente como passado agora reconhecido, fala e, com isso, na
compreensão faz surgir fontes de inesperado sobressalto de sentido em ação operatória de
diversas formas; um Eu a elucidar e a inaugurar o próprio passado tematizando o seu
condicionamento de compreender como compreende e agir como age. Poder-se-ia
perguntar pelo local da postura, da separação, do cindir-se entre passado e presente entre
pais e filhos, entre objetivo e subjetivo. Esse local nunca alguém viu! Todo passado está no
útero do presente e participa inevitavelmente de toda a nova compreensão em gestação,
como toda a esperança está no que passou. Qualquer coisa que seja dita do que ou que
seja passado é auto-posição, proposição, acontecimento do EU para ser a sua continuidade.
70
Nunca se como passado, pois toda a definição objetiva é instauração. Como mais
adiante é expresso: “Sempre o falante é possuído pelo presente. Portanto, ele é
amaldiçoado: nunca poder dizer o passado que ele quer exatamente mostrar”. (GS II-1,93).
Não há, portanto, a oportunidade de separar-se do passado que se diz para uma
apresentação objetivamente separada de si mesmo no ato de dizer. Aliás, a intenção de
dizer o passado é a própria intenção da objetividade, pois todo o definido pode sê-lo,
como dito, enquanto morto e passado definido, não mais para ser revisto na
emergência da sua fonte, pelo menos não imediatamente, já que está sistematizado
firmemente na compreensão que possibilitou a própria compreensão.
Toda a fala está condenada a primeiramente expressar a instituição de si: é
performativa inevitavelmente. Onde, portanto, objetivamente, a localização do desespero
em delírio para apanhar-se no imediato surgir de si, da guerra silenciosa, se é ela mesma a
inauguração do tempo em clarividência a iluminar enquanto sentido na fala? A
compreensão de que somos compreensão comprometida desde logo traz a angústia
ensombrecida pela camada de natureza automatizada em compreensão de ser, a angústia
pelo ser a se modificar pela mudança itinerante da compreensão. Somos compreensão
instituída e, que a somos, não conseguimos vê-la em completude de auto-reflexão. Do
rastro do caminho andado faz parte o local em que se está e o ponto de vista que ele
representa.
Tal estado de coisas parece lembrar a Aufhebung hegeliana, mas com a diferença
essencial de que é vista no imediato presente a esmagar qualquer tentativa de organização
absoluta inicial, ou início organizativo absoluto. Estamos no meio de um jogo que
iniciou muito tempo com regras em grande parte desconhecidas e juízes invisíveis de
quem se escutam por vezes o apito. Mas o fato de experiência é que mudamos conhecendo
e nomeando e tal experiência é como uma cabana no deserto a demarcar instante por
instante junto com os seus horizontes uma situação, ou um estado possível. Por isso
“Agora contemplamos o que sem saber destroçamos e elevamos”. (GS, II-1, 92).
No diálogo em que estamos a mudar, peregrinar, abandonar ninhos teóricos
petrificados e decidir futuros enquanto interpretação do condicionamento do passado, nós
percebemos o próprio destroçar, o perecer, a direção da destruição, da morte. A destruição
e o destroçar ressurgem como elevação de algo, como nova constelação, ou transfiguração.
71
A angústia acontecente da travessia é a da destruição do que somos e a elevação do que
vamos ser inaugurando constantemente o tempo de conhecer e nomear.
O agora se define pelo ver o que se e se compreende. O Eu auto-constituidor de
si incorpora a compreensão da destruição que ele mesmo é em processo. Destroçamos sem
saber ao compreender, falando e compreendendo de modo instituinte. O local do surgir da
guerra não é visto, e sim, a inevitabilidade de compreender destroçando; mas,
destroçando e ao mesmo tempo elevando, conservando, qual fonte de luz que consegue
perceber-se forte nos raios que emite. A compreensão que se dá pela linguagem é constante
construção com ruínas compreensivas que assim se incorporam. Mas a fatalidade da
compreensão é exatamente a compreensão disso e que desse jeito constantemente a si
mesma tenciona ao se ver estendida como rastro de si e projeto de si feito ruína. Fazemos
isso sem saber, ohne wissen”, porque o somos e acontece: compreendemos e a
compreensão no rastro-tempo que deixa faz ver os vestígios da ruína que fomos e que se
incorporou para ser na compreensão como passado, ou como pai, ancestral, ou como
funcionário. Qual a fonte que se percebe a si a não ser pela luz ou água que dela decorre?
Cada construção já feita e recordada é coleção de artefatos da tradição, é retirada de
pedaços de rios conjuntos teóricos para a formação de nova constelação, é novo arranjo
em forma de totalidade que não consegue abarcar e levar junto o que não foi escolhido para
a figura compreensiva produzida, é produção de sobras que cumprem o papel do erro em
relação à verdade instituída e programada, é o nada que faz o papel do reverso do tudo. No
discurso normal e monológico, a compreensão travada e sem o eco de si no outro se
convence de sua boa totalização. Exatamente isso muda radicalmente na conversação. Ela
tem a característica da nostalgia da amplidão: “A conversação queixa-se da grandeza
desperdiçada”. (Idem).
A conversação em sua imediata ocorrência pode ser entendida primeiramente como
queixa pelo consenso socialmente alcançado, mas pequeno demais diante da grandeza de
uma compreensão ainda possível, pois, “grandeza é o eterno silenciar após a conversa”
(GS II-1, 93). O que é a grandeza além do não dito que faz compreender o dito? Percebe-se
a riqueza do que há por nomear e conhecer e o abismo de um fundamento sem
fundamentação em que se está embretado, a precariedade dos argumentos fundantes para o
que se compreende como conteúdo definido. É a queixa pelo sair de si para a oscilação
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entre falante e ouvinte a constituir o que mais adiante se diz da contradição da linguagem:
“No gênio Deus fala e aprecia (lauscht) a contradição da linguagem”. (GW, II-1, 93).
A conversação é queixa pela embretada escolhida, pelo caminho discursivo que é
em meio à totalidade do ser supondo o que não pode compreender e dizer. Queixa-se por
ser objetivação inevitável que sempre significa um reducionismo com pretensões de
apresentar a totalidade do sentido possível, mas sabe que pode ser discurso finito e não
absoluto. Queixa-se por ser aparelho armado necessariamente para compreender o que
compreende, sendo que somente nesta situação exatamente pode expressar o
acontecimento que é. A verdade pode ser pela recordação do discurso apofântico por
meio da verdade adequativa de acordo com a aceitação de constelação de idéias e
conceitos. Como mais tarde na obra Origem do drama barroco alemão é afirmado: “A
verdade, presentificada no bailado das idéias apresentadas esquiva-se a qualquer forma de
projeção no âmbito do saber. Saber é posse...sempre de novo irá comprovar-se a tese... de
que o objeto do saber não coincide com a verdade”. (GS I-1, 209).
A compreensão da grandeza é a lamentação da necessidade de se ter que
permanecer no posto, a consciência de se ter encharcado por demais na areia movediça do
discurso congelado. Sendo conversação, necessariamente deperecimento, mudança,
metamorfose, crise, deslocamento, o soar do som com melodias estranhas em meio às
constelações de compreensões fixas. Além disso, também a percepção aguda da
diferença antes de toda a diferença, ou seja, a diferença entre constelações sucessivas,
rupturas semânticas em que até o sentido de totalidade muda de acordo com a fatalidade do
mandado “Sai da tua terra e vai para a que eu te mostrarei” (Gênesis 12,1). Nada se
mostrou ao sair, mas o que se mostra quando se fica na terra é o engano demoníaco da
intenção de transparência de si e o lamento da fixidez eterna. A conversação é queixa de se
ter permanecido no mesmo lugar e decisão de sair, sem ainda saber para onde se vai como
inevitável construção por vir, como construção de cabana no deserto, ou até rochedo de
amarração de Prometeu em seu castigo com o chato do abutre da realidade alimentando-se
do seu fígado que sempre cresce. A conversação suscita sentimentos de melancolia e luto
pela morte de pequenas certezas construídas e vislumbre da pavorosa imensidão das
possibilidades perdidas em favor de uma realidade opressora em sua redução e na qual o
caminho é apenas o da imitação monotonamente repetitiva.
73
Assim, a conversação é queixa, a linguagem da juventude em conhecimento e pavor
é lamento, é expressão da dor, ou ainda, é a própria dor no processo de libertação pelo
esforço da nomeação do outro e de si.
Mas outra dimensão a ser considerada. Não se pode esquecer que a fala em
conversação institui-se e no ato esgota a sua possibilidade, pois como execução de
definição morre para apenas ressurgir transfigurada no acontecimento compreensivo do
interlocutor. A fala é compreensão acontecida a se lamentar pelo seu ingresso na alienação
e no vazio da objetividade; e tal objetividade é compreendida como artefato independente
da fala.
A fala é intenção de instituição performativa, aspiração de reiteração ou instauração
de sentido a se expressar constantemente. A fala apequena-se em seu constante ajuizar
predicativo, apofântico, julgador e construtor de dispersão por auto-fragmentação. É como
se a culpa fosse a fala que em si carrega o seu próprio juízo, pois na medida em que o falar
é julgamento objetivante, a si faz voltar o mesmo julgamento: a construção que promove é,
ao mesmo tempo desconstrução: sua intenção é a definição, que por sua vez é o movimento
da morte e esclerose. A fala é a morte a caminho, a culpa em processo de formação, a
divisão em bem e mal da grandeza pressentida além de bem e de mal. A fala é ferida aberta
da qual o sentido meramente comunicativo apofântico sangra apequenado em sua nudez
somente funcional. A fala é acontecimento em que inevitavelmente se inaugurou o
rastro de si passado como julgamento a afastar o conteúdo como se pudesse ser separado
de si em tempo ordenador e espaço fundante. Assim a fala enquanto acontecente com
pretensões de simples verdade por adequação já é desperdício da grandeza e a conversação
é queixa disso. A grandeza suposta e sempre desperdiçada é sem cisão, sem fratura, sem
instituição de julgamento sobre o que seja vida-sentido, ou o que seja a repartição entre
bem e mal no instante mesmo da fala.
Em suma, a atividade da conversação em seu acontecer é queixa e
reconhecimento do que o homem não percebeu como acontecimento de si mesmo. A
inevitável tendência objetivante do logos apofântico traz sempre consigo o acontecimento
da cisão que imediatamente promove a sugestão do descompromisso com o objetivado e
do esquecimento a respeito do promotor do sentido assim instaurado. O sentido
objetivamente instaurado torna-se assim alienado e, como que de fora, permanece a
comandar o esquecido de si. Versäumte Grösse (grandeza desperdiçada), ou seja,
74
desperdício de si na máquina compreensiva implantada: somos partes da máquina em
comprometimento de vastíssimo sentido. O choro maquinal e melancólico, um imenso
julgamento já promovido e em promoção de constante julgamento, quer ser ouvido no
silêncio criador de recordações de objetivações cada vez mais alienantes. É por isso que “A
conversação aspira ao silêncio e o escutante é antes o silente”. (GS II-1, 92).
A palavra portuguesa conversa, formada de con-versus, dá, entre outras, a idéia do
conjunto e do encontro de versões em apresentação, e conversação sugere a atividade do
encontro para a apresentação de versões em que, para tanto, a escuta silenciosa é parte
imprescindível. Também a palavra aleGespräch, formada de ge e de Sprache lembra a
possibilidade do cultivo conjunto da palavra, ou da reflexão sobre o sentido das palavras
em uso na discursividade efetiva do cotidiano. Nessa dimensão as palavras não pretendem
ser mais usadas na comunicação para a aplicação prática das lides diárias, mas pretendem
concentrar a atenção no conteúdo e na forma que estão a expressar, isto é, em termos de
sentido, de proveniência das situações históricas, de transformações semânticas ocorridas e
a sua estranha intenção da capacidade de apresentar a realidade de cada vez bem como a
transformação da mesma. As palavras na conversação procuram inibir a sua mera
instrumentalização como materiais de comando aplicado nas ações concretas para se
ensimesmarem na procura do sentido da sua existência a partir do seu próprio surgir e do
que com elas foi feito posteriormente. A linguagem aí promove como que um recuo diante
da sua praticidade no movimento alucinado da sua alienação meramente comunicativa na
construção de edifícios semânticos para, então, prestar atenção ao que foi feito disso e à
sua própria participação nisso. O recolhimento meditativo das palavras na linguagem
necessita do silêncio do seu uso no sono e no sonho prático para se dar conta do modo de
seu uso e se admirar do seu envolvimento na marcação da fixidez da vida geral de que
mesmo fazem parte. As palavras escutam a si mesmas no silêncio das suas tarefas
costumeiras que se dão no palavreado intermitentemente repetitivo em sinalizações
automáticas. Na conversação as palavras procuram escutar o sentido delas mesmas
aspirando ao silêncio do ruído ensurdecedor da catástrofe em movimento em que estão
envolvidas. Após terem vendido a sua alma para o demônio urrante de dor pela lei imposta
como realidade com pretensões de eternidade, procuram o silêncio da conversação longe
dos locais em que estão sendo prostituídas enquanto comércio progressista que, para se
manter, sempre alardeia seriedade de uso. O recuo das palavras em relação ao seu uso
imediato é uma espécie de arrependimento pelas explosões que já promoveram na
75
participação das mais estapafúrdias configurações teóricas que foram e são capazes de
simular praticamente os argumentos fundantes para a produção geral de ruínas. A
formação de massas espirituais dos campos de ruína foi feita com a sua participação
ajuizante, barulhenta e zangada. As palavras na conversação dão-se conta do poder que
tem em seu comprometimento com as formações teórico-explicativas de todos os tempos a
impor aquilo que é como se fosse o último ídolo de adoração possível.
O escutante que silencia não é um Eu como sujeito determinado, pois esse tipo de
escutante procura escutar também as determinações históricas do Eu de que se conta:
ele sabe que o Eu é um campo de forças elaborado por significações que ainda desconhece
por não ter ouvido suficientemente. A atividade do máximo da capacidade de análise dá-se
justamente no escutante silente. O silente procura silenciar as vozes de comando do
palavreado geral que configuram tenazmente o seu Eu para escutar longe dentro de si
mesmo os ecos das vozes de deuses e demônios que desconhece, mas que o dominam
concretamente pela bruxaria da sopa teórica com que o cozinharam. O escutante silente
procura ver o lado receptor das palavras que são capazes de carregar as mais diversas
misturas de líquidos semânticos como se fossem vasos à disposição. O silente na escuta
solidariza-se ou até se identifica com as palavras em seu recuo da praticidade imediata para
a análise de seu poder de nomeação. O silente está na situação do conhecimento de que
mesmo ele é feito de palavras na escuta de si e do outro em conversação: assim as palavras
retomam a sua importância enquanto consciência do seu poder de nomeação e voltam a
atenção à sua atividade desde os primórdios da criação. A essência do silente torna-se a
atividade das palavras em recuo diante do ruído das significações automatizadas para
proveito imediato no comprometimento prático-funcional. O silente na essência da
linguagem em recuo vai à direção daquilo que nunca viu, ou seja, o local da luta silenciosa
em que o Eu encetou contra os pais. O local da luta nunca é marcado visivelmente à
primeira vista. Em Experiência e pobreza os filhos tardiamente a partir da própria
experiência e reflexão descobrem a influência da experiência dos pais:
Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho
que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um
tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não
descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do
outono as vinhas produzem mais que qualquer outra da região. Só
então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa
experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais
experiências nos foram transmitidas de modo benevolente ou
ameaçador, à medida que crescíamos: “Jovem, ainda em verdes
76
anos e quer participar da conversa”. “Certamente ainda terás
a experiência”. (GS II-1, 213-214).
A conversação é capaz de descobrir os deslocamentos e sobre-determinações com
que antigos preceitos nos foram inculcados.
O silêncio do silente, portanto, aqui denota admiração atenta ao que se apresenta e
significa a escuta da exposição que é feita pelo outro da conversação e da própria
contribuição do silente. A escuta compreensiva e silenciosa é, pois, altamente ativa pelo
fato de se ver acompanhada da tradição, ou até ela mesma ser de forma sui generis em
nova articulação de si pelo que se apresenta. A conversação (Gespräch) é um
acontecimento da tradição consigo por meio dos personagens em compreensão vital: a
suposição do total da tradição em sentido é inevitável aos que estão em diálogo. A
compreensão daquele que escuta e está silenciosamente atento pode ocorrer na
suposição da tradição que o carrega, no suposto do que até agora compreendeu
consciente ou inconscientemente por meio da linguagem, que o estabelece no aspecto
meramente comunicativo para usar palavras como instrumentos e para analisar com os
mesmos instrumentos os instrumentos que usa ao compreender. Quem compreende não
pode diluir-se em absoluta nova compreensão a partir de si mesmo como se fosse à parte
da tradição. A tradição urde o sentido novo de si através da competência silente do
escutante. A tradição fala e escuta na conversa e assim se torna criativa, jovem, renovada
na mudança de si. que ter fala e escuta, apresentação e recordação das condições de
possibilidade presente sempre e inevitavelmente.
Aquele que escuta é antes de tudo o silente. Na conversação, o primeiro que cala
em seu discurso, ou o que mais cala, é aquele que mais escuta, mais ouve, mais recebe a
revelação do uso feito das palavras, mais muda, mais rejuvenece, mais cala sobre a sua
própria construção, pois está disposto a concordar com que sua construção babélica seja
derrubada. A conversação aspira, portanto, ao silêncio, pois, pelo visto, é exatamente
também um processo de escuta, de destruição, de passagem para outra postura, ou estágio
do voltar-se, da conversão analisante de caminhos andados. Em tal regresso, todas as
certezas retornam ao estatuto de hipóteses ensaiadas, experimentações iniciadas, mutação e
até deperecimento. Benjamin em texto posterior, em Origem do drama Barroco alemão,
utiliza uma excelente imagem para tal atividade: “Cada idéia é um sol e se relaciona com
seu semelhante como sóis se relacionam entre si. A relação sonante dessas essências é a
verdade”. (GS I-1, 218). Ou seja, a relação sonante (tönendes Verhältnis) que se na
77
passagem de uma idéia como constelação compreensiva a outra é o próprio acontecer da
verdade. O passado pragmaticamente ativo, mas silencioso, presentifica-se na articulação
silente e indiciante do agora.
A conversação aspira (strebt), ou seja, é aspiração, tendência, intenção, assim que o
acontecimento do conteúdo em forma de sentido não poderia ser dividido em sentido de
algo a indicar sinalizando de um lado, e de outro em acontecimento-pragmático de puro
dizer a acontecer. Pois a fala é o sentido que acontece indicando, é tradutora, intérprete em
expressão sonora. O início não é a dualidade de algo a ser interpretado por sinais chamados
a perfazerem linguagem, que na linguagem um ser acontecente em sua imediatidade
impossível de ser objetivada em termos de verdade meramente adequativa. O início ou o
ponto de fuga parece ser a grandeza e totalidade passível de ser vislumbrada somente no
exercício da conversação em que a compreensão em itinerância percebe-se dependente
delas como supostos inelimináveis. Em tal compreensão as descobertas nomeadas a
acontecerem são assumidas como mera manifestação, Erleuchtung, iluminação, acordar de
sonho, resplandecência, esforço de compreensão da totalidade sempre suposta, apenas
parcialmente visualizada, e já na tranqüila ciência disso.
Enquanto sentido ocorrente em termos de palavras é na recepção ativamente
silenciosa. O acontecimento do sentido pode dar-se no silêncio da recepção, pois, sem
isso, não é. A fala enquanto acontecimento do sentido é manifestação em meio ao total
silente-escutante na conversação que a possibilita: o total sentido possível recebe a fala
ocorrente.
O sentido em fala ocorrente é na escuta compreensiva. O silêncio é escuta e a
escuta é o silêncio em que o sentido acontece.
a possibilidade de algo como que um esgotamento enfraquecedor da fala, um
palavreado dissoluto que se dissolve pela multiplicação das compreensões armadas sem
saber que são compreensões e que se amontoa em pedaços de teorias fragmentadas como
ruínas em direção ao céu, uma riqueza acumulada durante milênios e esquecida de si, mas
que aspira (strebt) ao silêncio enquanto ruptura de um movimento em si mesmo alucinado.
A atividade da fala na conversação construtiva supõe aquele que escuta, silencia e é capaz
de contemplar a razão construtiva comprometida com a máquina produtora da repetição
compreensiva. Assim, a aspiração ao silêncio expressa-se também pelo desejo da atenção
do que está na escuta. Assim, “a conversação aspira ao silêncio e o ouvinte é antes o
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silente. É dele que o falante recebe sentido, o silente é a fonte inconcepta do sentido”. (GS
II-1, 91).
Na conversação que promove a mudança do estatuto da linguagem pelo silêncio do
seu uso imediato nas artimanhas do esquecimento tarefeiro, a tradição olha-se a si mesma
nos olhos e fala consigo mesma, pois a expressão do falante, sempre na situação de
proponente da atividade de construção fixa de alguma compreensão, e o ouvinte que
compreende as palavras a partir das suas condições de possibilidades também ditadas pela
tradição. O acontecimento da sua compreensão pelo silente é o que determina o sentido das
palavras. Quanto mais a compreensão imediata do falante for ouvida como forma a
envolver conteúdos pontuais tanto mais a aspiração do silêncio ao conversação se
concretiza. O inevitável sentido surgente no silêncio da escuta da tradição falante no outro
é a efetivação da revelação, ou da descoberta mútua que a conversação em suas versões
apresenta.
Aquele que silencia e escuta dá sentido ao conteúdo falado. Aquele que fala sempre
está possuído pelo desejo da continuidade repetitiva do sentido elaborado que imagina ser
evidente, enquanto que o escutante está fora disso, alegoriza, conserva a seu modo o que
ouve, ouvindo diferentemente, e renova a construção traduzindo e traindo por interpretação
necessariamente tendenciosa: não é o conteúdo que ouve, mas as palavras que o formam.
Aquele que escuta é o renovador, a fonte do sentido. Reordena as palavras colecionando-as
e arranjando-as de acordo com os seus parâmetros ainda desconhecidos por ele mesmo.
Dá-se uma curiosa conjugação de externo e interno. O externo está com o interno que
sempre está exposto no externo: espírito objetivo que se realiza como subjetividade
itinerante. O colecionador de palavras do discurso alheio escuta e silencia, a catástrofe
grita, monologa em forma de discurso articulado, mas o monólogo na conversação não é
escutado como ordem aplicável e sim como a expressão do que na performance está
esquecido e encoberto.
O silente como colecionador atento e silencioso coleciona palavras como fatos e as
coloca na ordem histórico-narrativa de acordo com o seu próprio índice de compreensão.
Escolhe as palavras como se fossem objetos em um ambiente caótico para fazê-las renascer
em nova ordem. Ao fazê-lo, a coleção impregna-se, incorpora-se nele, tanto que o
colecionador é determinado pelos objetos colecionados: ele mesmo é uma coleção, uma
configuração, um re-ordenamento de si em auto-escolha: enxerga-se e possibilita a análise
79
de si pela coleção que faz. Coleciona impressões, interpretações e compreensões.
“O silente é a fonte inconcepta do sentido” (GS II-1, 91), isto é, o sentido ocorrente
acontece naquele que escuta. Pois o que é a fonte? A explicação que alguém dá do que seja
a origem, a fonte, é a própria fonte? Não pode ser assim, pois é fala de novo. A
origem pode ser apanhada no sentido discursivo argumentativo em forma de apresentação
competente no próprio ato de dizer? O dizer consegue dizer a sua fonte ou é sempre
simples dizer novo e constante ficando a dever o anúncio de sua fonte que o poderia
explicar? Em suma, tudo isso significa que o dizer, qualquer que seja, nunca poderá
apresentar discursiva e objetivamente sua fonte a não ser como suposição da escuta silente
e compreensiva do outro. A recepção compreensiva do outro representa a fonte do sentido
do que é falado. A fala no vazio pode ser barulhenta, mas nada é sem alguém que a escute
e a entenda de algum modo.
Mas na conversação supõe-se a escuta que é fonte para a compreensão exatamente
das determinações e dos motivos da compreensão ocorrente. Quem está a falar na
conversação é obrigado à objetivação inevitável, à sistematização constante, sem, portanto,
poder estar atento às pressuposições do seu próprio falar. A fala é imposição de
determinado sentido na suposição de avaliador competente, de algo que esteja a
fundamentar definitivamente o que se diz. E isso, mesmo quando se fala com ressalvas a
respeito do próprio dizer no sentido de apresentá-lo como provisório e sem intenção de
absolutismo. A fala inevitavelmente se expressa como intenção sistematizada que se
apresenta na suposição de estabelecer conteúdo compreensivo desvinculado e
independente do que está a falar. Mas o silente vê o verdadeiro rosto de quem fala
exatamente no conteúdo que este está a estabelecer. O silente identifica o falante com a sua
fala e o expressa nomeando-o compreensivamente ao modo de sua própria constelação de
conhecimento.
como que um nada silencioso a possibilitar o espaço e o tempo do ruído de
construção do dizer do falante, que o escutante capta como suposição na atenção total, um
nada consciente, ou seja, o tudo ainda em possibilidade, o total do sentido subterrâneo
relacionado com o que surgiu e que começa a vibrar para borbulhar como fonte para o
surgimento de novo sentido: assim, haveria uma reunião num diálogo, um encontro
possível no âmbito do nada em que tudo é possível.
80
O silencioso a escutar é a fonte do sentido, porque é nele que acontece a constante
renovação da articulação do que é falado, em que o passado a se expressar em forma de
ruínas falantes oportuniza a sua própria reconstrução, nova articulação de sentido. O
passado a acompanhar o presente na fala ressurge na lembrança compreensiva do ouvinte
que assim lhe é fonte para saciar a sua sede de vida. Por outro lado, o silente é a fonte
do novo sentido, porque escuta o que as palavras na sua imediação operatória não dizem.
Ao captar a fala das ruínas do passado a silenciosa fonte ouvinte da atualidade em
compreensão operatória jorra a presença renascida de todos os séculos.
Existe um âmbito interno à linguagem que não pode ser dito completamente, pois
para dizê-lo a fala é sempre necessária por suas suposições ainda a serem apresentadas. É a
zona do silêncio e da grandeza que sempre permanece, mesmo após a conversação que se
ativa na compreensão da instituição dos supostos da comunicação para fins operatórios. A
operação comunicativa instrumentalizada para a construção de artefatos teóricos e práticos
supõe um consenso a respeito de modelos subjacentes ao processo construtivo
(procedimento, bem como idealização/figura a ser construída: são problemas técnicos). A
conversação é a processualidade da apresentação de supostos da comunicação, que após a
fala e a escuta pode finalizar no silêncio do abismar-se frente ao que a compreensão é
capaz, ou em novo ruído pela decisão conjunta sobre a possível configuração de um pano
de fundo a ser escolhida.
A conversação é sempre o local da fonte do sentido pelo lado do silente pelo fato de
fazer acontecer uma ruptura no fluxo da compreensão contínua objetivada em determinada
direção. Explode com a compreensão costumeira e indica novos caminhos possíveis. A
própria possibilidade de ruptura para inícios originais supõe o interno à compreensão até
então: a conversação avança, por assim dizer, em direção ao espaço do silêncio, ou do até
então silenciado, transformando-o em significado. O silente e o silenciado conjugam-se. O
gênio como possibilidade de adveniência do que é novo é gênio por ser silencioso, isto é,
porque cria escutando o que advém na totalidade dos discursos e escuta criando a partir do
silêncio. Ele é mais silencioso do que Deus, porque Deus é a totalidade do falado da fala a
ser escutada. Além disso, Deus pode querer ter a característica da repetição eterna,
enquanto que o gênio é filho do percurso da sua descoberta no silêncio dos discursos em
que as divindades se escondem. O gênio é o que na atenção silencia explodindo o que até
agora é em efetividade compreensiva para escutar o que vem a ser. Assim, ele mesmo
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acontece como fonte em obra e vida identificadas, mas sem poder jamais dizer as últimas
palavras sobre si mesmo.
A conversação pode acontecer entre duas participações que estão igualmente à
procura da sua origem, dos seus fundamentos, do seu modelo de configuração. E isso
pode dar-se na escuta do que está entre ambos. Em não havendo escuta, o ruído da
dialética em que as posições embatem-se por estarem sedimentadas sofisticamente e a
conversação fracassa. É a perdição dos homens no desvario da utilidade oca utilizando a
linguagem feito porrete e machadinha. Também, em não havendo escuta, a
possibilidade do discurso quase fanatizado em que o falante fala para se deixar convencer:
é ele o ouvinte primeiro e crente da e na sua fala, pois está a organizá-la, decidi-la sendo o
seu próprio julgamento a enveredar numa certa direção. É o embate dos discursos ruidosos
que apresentam o espetáculo da dialética feroz e cruel. Mas na verdadeira conversação
uma nova perspectiva: “A conversação eleva palavras para ele [o escutante] enquanto
captantes, os cântaros”. (GS II-1, 91).
No decorrer da conversação as palavras do discurso que se apresenta despojam-se
da significação do imediato do uso cotidiano e se tornam como cântaros que se oferecem
para a recepção de novo sentido. As palavras apresentam-se como receptáculo, pois são
analisadas, percebidas e compreendidas como participantes específicos de um discurso
armado que no seu todo está sob a lupa e é objeto de atenção silente daquele que escuta.
A conversação feita de dois personagens tem também a característica de ativar-se
numa pessoa só, pois quem é capaz de escuta silente tem a força de direcionar a sua
atenção ao próprio discurso, às suas próprias épocas de envolvimento faceiro nas festas das
certezas na dança do passo sempre certo. Escutar-se desde o passado de si é fazer o
inventário do repertório de certezas que se teve, desde as catástrofes cometidas até os
momentos de suspeição em tempos de mudança de fundamentos com novos argumentos
construtivos para se estabelecer na segurança de novas frentes de batalha. Escutar o
passado de si é dar a devida atenção às palavras com que foram produzidas as couraças do
tempo de guerra, esta urdida pelo embotamento, cuja causa é o esquecimento de que para o
silente não eternidade em verdade fixa a ser vencida e conquistada. Na conversação que
o silente pode ser, o seu próprio passado e presente discursivo está diante dele elevando-
lhe as palavras do que mesmo foi e é. O conjunto do discurso em pauta relativiza-se
perdendo a sua absolutidade e as palavras que o sustentavam rapidamente tendem a
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desfazer-se das significações comprometedoramente suspeitas. As palavras são esvaziadas
do líquido venenoso e azedo que carregavam e retornam à condição de cântaros ao dispor
de novo uso. O silente é capaz de ver compreendendo os ntaros e os materiais com que
podem ser preenchidos. O silente torna-se a sua própria conversação na escuta da fala que
o estabeleceu ou está a estabelecê-lo e, assim, a conversação continuamente lhe
apresenta palavras enquanto cântaros captantes cheios, ou esvaziados, ou em vias de
recepção. As palavras que se evidenciam como cântaros evidentemente não são todas, mas
aquelas que chamam mais à atenção e sobressaem na conversação que no seu decorrer as
escolhe e eleva ao estatuto de receptáculos.
Pelo visto, a conversação pode efetivar-se na relação com outro ser humano em
forma de diálogo na conhecida e costumeira situação de prestação de respeitabilidades
mútuas quanto ao que está em jogo. Também pode concretizar-se frente à imposição
falante da tradição à disposição em todo o tipo de escrita, nos monumentos e nas
instituições instauradas em processo de funcionamento de que se faz parte.
Mas a conversação tem o poder de ir mais além: pode deslocar-se sendo produtiva com
aquilo que nos surge no pensar como desencontro com o fluxo pensante da mimese sob o
comando de determinados conceitos fundamentais aceitos, ou uma mistura e um sistema
deles, ou até um mosaico com eles elaborado. O curioso é que às vezes se esquece que
tal conversação elabora-se e acontece por preenchimento ou esvaziamento de cântaros que
são as palavras. A convicção no estatuto do Eu encharcado de palavras e gestos
desconhecidos e esquecido estatui-se qual fantasma temporário na noite de si e que
desaparece como por encanto frente à luminosidade da questão Onde estás tu, luz?
A conversação desloca-se como conversa com a própria tradição dentro de si numa
suposição da totalidade do que foi elaborado na cultura humana e do que foi esquecido.
A conversação enquanto conversa com a própria tradição dentro de si é possível como
aceitação crítica de crise paradigmática sucessiva, em que aquilo que foi estabelecido ou
quer se estabelecer merece a escuta do silêncio dentro de si em acurada atenção. Em todo o
caso, a suposição é a de que somos feitos de milhares de artefatos culturais gerais, feitos de
palavras, espalhados, ou acavalados, ou imprensados e que se desenvolvem e se elaboram
sucessivamente ao sabor da casualidade rotineira quando vigentes como que separados em
objetividade e sem a oportunidade da escuta na conversação.
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“O falante aprofunda a lembrança de sua força em palavras e procura formas, nas
quais o escutante se revela”. (GS II-1, 91) O falante agora solidarizado na conversação
concentra-se na lembrança da força das palavras que configuram uma compreensão fixa
em operação, esquecida de si e a amontoar escombros sobre escombros. O falante quase
que escutante afunda-se, ou se aprofunda nessa lembrança da sua força feita de palavras
e procura angustiadamente formas para que o escutante silencie e escute e se revele em
seus próprios parâmetros de escuta. O falante em conversação já sabe da força que existe
na conjugação das palavras sui generis do seu discurso e procura lembrar e por em
evidência o perigo do esquecimento das massas espirituais que vazam por todos os lados e,
então, procura formas de encontro em que o escutante possa ser eficiente a tal ponto que
também revele as suas suposições em ocorrência de escuta. O escutante, por sua vez, dá-se
conta de que é falante também e de que o silêncio deve ser muito mais abissal, de que a
recordação como processo é a fonte da revelação numa exigência silenciosa de anuência
constante e fiel à escuta do próprio silêncio, o qual, quando da sua imediação, pode
revelar-se eivado de pressupostos baseando discursos.
A fala como descrição de si, até mesmo no sentido de representação e de metafísica
realista, pode ser a do falante testando o que até se pensou e contando com a
complementação em forma de anuência ou de negação daquele com quem está em
conversação. O resultado será sempre imponderável, será constante travessia de campo
seguro para campo ainda minado, será tentativa de abandono de sistematizações
identificadas.
As palavras e as expressões, que por seu intermédio são possíveis, estão também
saturadas de possibilidade de recordação e força do passado presentificado. Palavras e
formas em que o ouvinte se revela são também força e recordação. O ouvinte silente
revela-se na compreensão captante dessas palavras e formas enquanto força renovada e
concentrada: nele se resume também ao seu modo a totalidade do passado que foi e que ele
exatamente é.
O passado assim impositivamente falador é a percepção da força no presente ao ser
ouvido e compreendido pelo ouvinte que precisamente assim se revela. O ouvinte a se
perceber feito também de palavras como cântaros captantes guarda em seu silêncio a fala
futura, o novo em suas formas a se revolver dormitando no leito do passado. Os cântaros
guardam e repassam a água da fonte do sentido.
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Tudo é guardado, pois o sentido acontecido na fala assim o foi por ser e para ser
erguido e guardado. Os lamentos, as queixas, os desejos de felicidade nos cântaros plenos
de sentido municiam o presente agora ouvinte com a mais variada selvageria e o mais
incompreensível sentimento de solidariedade, de acordo com toda a gama do sentido
possível.
O passado a falar no ouvinte a fala do mecanismo, instaurado como compreensão
esquecida que lhe é peculiar, é o choro instituído e continuado na fala chorosa do falante
ruidoso em repetição. É a visão da catástrofe. A catástrofe em andamento continuado é
culpa e castigo ao mesmo tempo, é doença da tradição que procura perpetuar-se na mimese
de si somente pela transmissão dos seus conteúdos para um futuro vazio. Tal futuro é vazio
porque é concebido como mera repetição do que foi balizado pela intenção de obediência
cega proposto pela tradição como estreito caminho de possibilidades. O passado a falar
assim no ouvinte constitui-se em catástrofe poderosa, mas simultaneamente em choro,
pavor culpa e castigo.
A percepção da força na fala da tradição está no silêncio compreensivo e apavorado
do ouvinte que do choro faz revelação de todas as feridas abertas do passado. O passado
metafísico que fala a partir de um quadro de fixidez com as mais variadas fundamentações
significa possibilidade de conversão, voltar-se transfigurado dos seus materiais de
compreensão que no agora habitam. O passado falante de qualquer modo fala para ser
escutado e convertido em nova fala, quem sabe rememorativa. O falante fala para se deixar
converter na conversação.
A fala procura a revelação de si no escutante, porque ela mesma enquanto fala está
afetada pelo paradoxo da objetividade separada, alienação de conteúdo falado na intenção
de ser fundado incondicionalmente. A fala pode procurar a forma em que se revela na
forma em que, porém, o escutante se revela ao compreender captando-a do seu jeito.
A fala vem à superfície da compreensibilidade de si na imediatez compreensiva do
silêncio do escutante. O sentido não comunicativo vem à tona pela compreensão
silenciosa do escutante, mas também e principalmente o que ressoa além da comunicação.
O mero ruído mútuo de personagens em apenas ação comunicativa não consegue ouvir o
eco das vozes das gerações passadas pelo fato de ser operação construtiva esquecida e
mergulhada em palavras de comando comunicativo da tradição somente impositiva por ser
comando esquecido no agora. Mas épocas de conversação são épocas de conversão. “Pois
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o falante fala para se deixar converter”. (GS II-1,91)
A palavra conversão traduz o termo bekehren que, por sua vez, está ligada à
mudança de perspectiva em relação ao compreendido e praticado até o momento e até ao
arrependimento por uma situação de falsa visão anterior. Conversão vem de vertere, sendo
que, então, convertere traz a imagem de verter junto. É como se a fala do falante fosse
captada, compreendida como vertida e convertida na forma dos captantes cântaros
ouvintes. O falante na conversação obriga-se a ensaiar a apresentação competente do
discurso de vida que o caracteriza de modo fixo, mas disposto à conversão de também
ouvir os ecos do não dito naquilo que diz, já que o dito e o dizer são prova viva do não dito
que os sustenta como suposto e contrafação, como nada que possibilita a totalidade deles.
O falante na conversação fala como que ensaiando arrependimentos: a palavra
arrependimento é formada por paeniteo, ou poeniteo com o significado original de ter
insatisfação com o que foi feito, dito e pensado até então.
Em geral o falante fala construindo necessariamente para depois se esquecer
daquilo que pelo julgamento falante construiu e daquilo em que mesmo se converteu como
construído. Dessa forma o falante revela-se em fala sistematizada e tornada absoluta
criação autônoma, agora a prescindir, por esquecimento, da dependência de revelação de
sentido a ser desenvolvido e reinterpretado por novo curso revelativo por meio da
atenciosa escuta silente. Na frase pois o falante fala para se deixar converter a conjunção
pois se refere à frase anterior que dizia O falante aprofunda a lembrança de sua força em
palavras e procura formas, nas quais o escutante se revela. Isto significa que o falante
ativa-se para que a compreensão acontecente que às palavras possa ter ressurgências
inesperadas a partir do que fala, para que o sentido no escutante possibilite novo
situacionamento e permaneça a lembrança ou a conservação da força, agora mergulhada na
nova forma. O falante envolvido ou à procura de conversação está disposto à mudança de
si, é penitente quanto ao que estabeleceu sobre si, arrependido por insatisfação e percepção
de insuficiência quanto ao todo que compreende.
O falante ao ser ouvido é convertido em novo sentido, pois é compreendido pela
compreensão articulada de quem escuta e certamente faz parte de nova paisagem
sistematizada compreensivamente. O falante fala e é transfigurado imediatamente na
compreensão do ouvinte doador de novo sentido. Conversão assim se por interpretação
e escuta atenta que proporciona a experiência de mudança por vezes radical. O passado
86
converte-se, ou quer agora a conversão na interpretação da apokatastasis, a qual poderia
ser entendida como hermenêutica da assunção gradativa, em outras palavras, paulatino
assumir dos juízos já objetivados e esquecidos de si em maneira alienada.
Na conversação toda a fala, mesmo que esclerosada, instituída como aparelho
comunicativo para a aplicação de procedimentos a envolver conteúdos, tende a ser
interpretada alegoricamente, convertida em compreensão diferenciada de si, captada de
forma em que seu sentido é o novo que flui para a captação dos cântaros. A fala desse
modo nunca é si mesma para si quando há escuta.
A fala na conversação compromete-se pelo fato de haver escuta silenciosa: ela sabe
que acontece compreensão, mas não absolutamente idêntica a si. Ela sabe que encontro
na atividade de que participa. A fala é convertida para novos rumos possíveis pela
silenciosa compreensão. O falante é convertido no que dele foi compreendido: ele é o que
dele se pensa e diz. E o que se pensa e diz é o espelho em que a estatura do que é, do
que foi dito e lido dele, da nomeação de que faz parte. O espelho da compreensão do outro
sobre a sua compreensão lhe dá a dimensão de seu próprio automatismo. Há a fala disposta
à conversão e a escuta em silêncio para entendimento do rosto de ambas: objeto e sujeito
mudam constantemente de posição num movimento de imersão no desconhecido não dito.
“Ele compreende o escutante apesar de suas próprias palavras: que alguém está diante dele,
cujas feições são sérias e boas de modo inextinguível, enquanto que o falante conspurca a
linguagem”. (GS II-1, 91).
O falante na conversação sabe que na sua atividade está a supor a totalidade da
compreensibilidade, na qual está a se instituir a sua própria compreensão como em
separado: o falante é linguagem parcializada e diferenciada do todo pelo seu ajuizar e pelo
rastro decorrente disso. Em sua fala sabe que, por mais que haja linguagem em intenção de
diferenciação, não como escapar ao infinito suposto no próprio exercício do seu
discurso. A queixa, a culpa e a dor no esquecimento disso configuram a catástrofe inicial
que se prolonga como situação original. A conversação como movimento de interrupção
do falante disposto à escuta atenta promove a cura, a lembrança, o alívio e o linimento.
Na expressão Ele compreende o escutante indica-se o falante a intuir que a fala de
si para si sem a escuta não tem sentido algum. Tudo se pelo fato de haver escuta e na
aposta de que não será ruído no nada a resultar em nada.
Além do conteúdo continente nas palavras a indicarem positivação até a alienação
87
de si, o falante conta com o ouvinte a escutar as questões sobre que fala. O falante
necessariamente seciona conteúdos positivados de si e do outro como quem fala sobre
algo. No exercício da fala paradoxalmente é obrigado a esquecer que é ele mesmo o fato de
ser o que compreende como expressão falante, legível ao silencioso escutante e leitor.
Apesar das suas palavras... separadas de modo conteudista como objeto à parte, o falante
fala e compreende aquele que escuta como alguém diante dele: o silencioso, fértil e
generoso campo de frutificação de seu falar e vertente de sentido diferenciado de sua fala.
Diante dele o eterno esquecido está a lhe indicar o não esquecimento de si enquanto
criação e a lhe proibir comer da árvore da discórdia por separação de bem e mal: o outro a
ser constantemente visto é a visão de si como lembrado de que é o conteúdo do seu dizer.
Seriedade e bondade são os traços são característicos daquele que está à escuta, porque
também este sabe que necessita da fala do que diz o falante. O discurso do falante na
conversação é sério e importantíssimo ao que escuta e a sua construção é boa, porque,
fundamentada como está, oferece a oportunidade de ir cada vez mais além até pairar sobre
o abismo do possível. E é exatamente isso que o falante tende a ver comprovado no
ouvinte, o qual desempenha realmente tal papel e pelo qual é reconhecido pelo falante
como sendo caracterizado por feições sérias e boas. O ouvinte faz as honras à linguagem
indo na direção do sentido mais profundo dela: antes de tudo indicia a aparelhagem da
linguagem para a montagem significativa de conteúdos compreensivos então supostos
como fundamentados separadamente do falante e da fala. Libera o falante do peso morto
que carrega como marca identificatória de si para que seja identificada e vista. Pois nele,
em tudo que fala acontece o passado em forma de narrativa cotidiana obnubilada na
recordação das suas infinitas determinações. O que fala insere-se na contradição.
O falante agora compreende que há alguém diante dele, que é o outro a lhe recordar
a necessidade da suposição da presença de tudo, da pletora do sentido de todo o passado, e
é por isso que pode falar a respeito de tudo como num ensaio de positividade, sem pejo de
nada do que aconteceu em termos de compreensão e sua aplicação multifacetada, sem
querer poder escamotear julgamentos, decisões e veredictos, sem demonstrar vergonha do
que procura acentuar, relevar, diminuir, liquidar. O ouvinte, por sua vez, tem a
oportunidade de escutar também a voz do silêncio que possibilita a fala necessariamente
unilateral mesmo do melhor falante com os seus recortes definidores, o reverso existente
como pano de fundo do acontecido e da fala, sem o qual não acontecido, nem fala. O
falante a expressar o passado é certamente melhor compreendido pelo ouvinte no instante
88
de agora com a capacidade de escutar a sua fala, bem como também as condições do seu
existir. As falantes ruínas do passado erguem-se presentificadas com força redobrada por
meio da observação silenciosa e compreensiva do ouvinte. Nesse sentido, a linguagem
conspurcada, julgadora e ruinosa do falante passado é ampliada e redimida pelos traços
sérios e bons do ouvinte a compreender dando sentido continuado ao aparentemente morto.
A construção de um discurso envolvido em conversação dá-se no imediato suposto
de ser vista por alguém à distância, que lhe sentido diferente e continuador. Toda a
construção em conversação é concentração local-temporal no esforço para ser percebida,
que para tanto necessita da instauração de critério externo que institua a percepção deste
mesmo esforço. A construção afirmativa é na aceitação de que seja, e a instituição de
que é acontece somente pelo outro que é ouvinte. Aquele que fala em construção
compreende o outro que o cerca, o enlaça e o revela como falante dando-lhe sentido
diverso da imanência falante-expressiva. As feições sérias e boas de quem escuta são
inextinguíveis, pois indicam assim a inevitabilidade de compreensão que acontece
relacionada pelo acontecimento da fala. De qualquer forma haverá significação, avaliação,
recepção.
Mas falante de qualquer maneira sempre conspurca a linguagem na sua fala pelo
fato de incorrer em contradição fundamental na própria construção do seu discurso pelas
suposições absolutas para tanto necessárias. Qualquer que seja o tema a ser desenvolvido, a
contradição está presente na intenção de definição de algo separado de quem o diz supondo
critério que absoluto não pode ser, o que perfaz um paradoxo na construção da fala. O
falante conspurca a linguagem porque fala e o consegue apequenando a possibilidade
absoluta pelo delineamento definidor da construção específica. A fala em construção na
conversação não deixa de ser resolução para a continuação efetiva em alegoria de comer do
fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. na fala a intenção imanente de
ultimar progressivamente as explicações sobre o que é, de modo que ela está
fundamentalmente referida a alguma progressividade enquanto intenção de fixação de
conteúdo e de domínio construtivo da vida com base em suposições sempre insuficientes.
O lado falante e ativo na construção do sentido é a perspectiva da póiesij e desta mesma
característica se esquece no instante imediato em que articula a elocução.
“Mas mesmo que pudesse vivificar orgiasticamente também um passado vazio, o
ouvinte não compreende palavras, mas apenas o silêncio do que está presente”. (GS II-1,
89
91-92). Um passado vazio seria uma determinada narrativa dele ainda restante no presente,
ou seja, algo entendido como não mais existente e apenas vivificado no presente na
forma da lembrança fixada como objeto. Um tal passado seria como que uma espécie de
espaço em que as ocorrências não mais existem, pois foram recolhidas no espaço da
lembrança do presente que assim pode analisá-las, dissecá-las e defini-las como
objetivação feita. O passado estaria completamente morto quanto às determinações que
ainda pudesse causar no presente, pois teria sido recolhido totalmente no presente que
então o teria sempre à sua disposição. O passado seria aquilo que simplesmente passou
para nunca mais voltar dando o seu espaço apenas ao presente que com as análises do seu
conteúdo incorporado prepararia o seu próprio futuro no mesmo instante. A decretação da
morte do passado seria simultânea à sua vivificação na consciência do presente como algo
que foi definitivamente posto e capaz de justificar plenamente agora no presente as
evoluções discursivas desse mesmo presente. O passado vazio e morto seria, enfim, a presa
fácil da compreensão autônoma competente e consciente de um presente que sabe
perfeitamente o que quer de si mesmo.
O passado histórico feito apenas narrativa em discurso positivado no presente é
vazio e apenas pode aparecer ao modo de orgia repetitiva no engano de que seja material
para a construção progressiva do futuro, imaginado como espaço aberto. Assim o ouvinte
solidariza-se com o falante na compreensão vivificada ao modo da orgia repetitiva de um
discurso pronto, mas ouve de fato o silêncio do que está presente ao modo do discurso,
pois ele escuta o não dito a ser nomeado enquanto as palavras, na ânsia comunicativa para
a apresentação de um desenho acabado, desestruturam-se em seu sistema intencionado
dando notícia de outras possibilidades de compreensão talvez mais originais. Mesmo que o
ouvinte vivifique o passado deste modo, tal atividade representa a notícia de um passado
silencioso presente, impronunciado, fundamento abissal sobre o qual pairam tanto o
próprio ouvinte como também o falante. É por isso que o ouvinte ouve o silêncio do que
está presente: escuta o abismo do não dito e a precariedade silenciada dos fundamentos do
dito.
O passado vazio equivaleria, portanto, à objetivação no sentido da expressão era
uma vez, de acordo com determinada versão narrativa. Ele é vazio porque é visto como
conjunto de eventos definitivamente transcorridos apenas numa linha de tempo
imaginária traçada até o presente e que se estende futuro afora. É um passado que, mesmo
90
presente em sua forma de discurso positivado, entende-se e procura mostrar-se
completamente diferente de um presente dele também diferente em ocorrência. O ouvinte
percebe a vacuidade de um tal passado presente em forma de objeto para substituí-lo pela
compreensão como manifestação de um passado sempre presente, mas amplificado em
totalidade ocorrente e a envolver o discurso de agora. É como se a totalidade silenciosa do
não dito fosse infinitamente mais ruidosa a ponto de silenciar o evento discursivo de agora
na sua intenção de objetivação fixa e entendida apenas como conteúdo a aspirar o estatuto
de verdade por adequação numa repetição silenciosa quanto à nomeação criativa.
O ouvinte entende que que ter a escuta da tradição em si mesmo enquanto
reivindicação por solução de interpretação de ruptura com o que tenta apresentar-se como
definitivo. O presente verdadeiro é a recepção atenta às considerações do que vem ao
pensamento do ouvinte como compreensão e explicação e como forma de entender no
exato momento do seu acontecer. Independentemente da localização do falante, se em si
mesmo ou no outro frente a si, que escutar a tradição ingente em sua força na
linguagem. Essa escuta de si da tradição faz-se no silêncio: mas é escuta de si na
linguagem com que se a compreensão ou na escuta do outro indivíduo a falar e que se
está a compreender na escuta. Por isso, a fala é reconhecida como tal pelo silenciar e
ela, por isso, tende e aspira ao silêncio: tal silenciar é a escuta de si ao falar. À fala de
agora, mesmo ruidosa pode corresponder uma escuta que a silencia em meio à imensidão
oceânica do sentido de que faz parte. O falante de agora é a representação apequenada de
todos os falantes de todos os séculos: seu discurso representa uma partícula ínfima da
tradição presente como suposto em seu conteúdo e em sua força.
Na orgia ordenada pela lógica da repetição não compreensão verdadeira das
palavras, mas apenas a intenção da visualização viciada do constante retorno do igual num
âmbito sistematizado comunicativamente. As palavras assim instrumentalizadas são vazias
e ambos, o falante e o ouvinte, permanecem como que em silêncio ante a grandeza
desperdiçada, mas o ouvinte conserva as possibilidades da verdadeira linguagem. O falante
em seu doutrinário silêncio palrador oportuniza ao ouvinte interlocutor a análise do
fenômeno ocorrente que ele mesmo é. A compreensão do passado assim silenciado como
objeto definido e apartado caracteriza a orgia do esquecimento, da irreflexão, do ser levado
pelas valorações fixas na canalização de instintos, do automatismo da felicidade
mimética, o qual epicuristas mais atentos condenariam por ser imediato demais. Enfim,
91
vivificar passado vazio seria repetir ao infinito as positivações presentes como se fosse o
passado por inteiro a serem repetidas de modo obediente e reverente a ponto da
inconsciência: um passado vazio, morto, mumificado e infrutífero, casca podre e inútil de
fruta já deglutida, resultado de objeto entendido como separado de quem o diz, um passado
destituído de sua infinita passagem. Tudo isso se constitui como uma espécie de fuga das
injunções da compreensão atenta de um agora sempre decisivo. “Pois o falante está
presente apesar da fuga d'alma e do vazio das palavras, seu rosto está manifesto e os
esforços de seus lábios são visíveis”. (GS II-1, 92).
Uma alma que foge do falante é a sua própria alma alienada em objetivações não
assumidas, a qual é compreendida como se estivesse apartada do falante e a viver
unicamente no reino da verdade adequativa em que vige o sistema da representação. A
alma foge junto com a construção fictícia de um mundo separado da linguagem e do
pensamento do falante. A fuga d’alma é a expressão de um pensamento que procura
duplicar-se na formação de um espelho de si em que pudesse ver-se para avaliação
autônoma e competente de sua própria figura. O pensamento entrelaçado com a linguagem
deste modo não consegue assumir-se como ocorrência de fonte a desconhecer os seus
próprios mananciais. A fuga da alma pode ser entendida como a necessária teatralização
sistematizadora do discurso, a objetivação constante do que ocorre imediatamente e que
então não é mais captável na fala.
O vazio das palavras trata da sua desvalorização como mero instrumento num
sistema comunicativo. As palavras são compreendidas como apenas veículos a carregar
uma carga semântica para uma construção cuja planta está definitivamente resolvida. A
compreensão acontecente no ouvinte então preenche o vazio morto das palavras na
adivinhação e na evocação das fontes ocultas do discurso que imediatamente se como
força ruidosa de uma verdade que tenta escamotear a sua proveniência. O ouvinte ouve as
palavras em forma de som como vê o rosto imediatamente manifesto e o esforço dos lábios
do falante promovendo a comunicação, mas, além disso, ouve também o que tal esforço
está a silenciar e a esquecer: a emergência do passado em força discursiva presente pela
qual o falante a si mesmo se define.
Por sua vez, “O ouvinte conserva a verdadeira linguagem à disposição, nele as
palavras penetram e ao mesmo tempo ele o falante”. (GS II-1, 92). O falante
necessariamente comprometido com a comunicação de suas objetivações apresenta-as em
92
forma de verdade que tem a característica de tentar adequar o sentido que as palavras
carregam a uma realidade completamente diferente delas, necessitando para tanto de um
critério que sirva de fundamento. A linguagem como tal veículo de comunicação ao
serviço da adequação assim perde a característica de verdadeira linguagem, que
aconteceria como intermediação representativa de dois campos distintos. Mas o ouvinte
não ouve palavras para delas receber sentido sobre alguma realidade que lhe trazem,
mas ele se considera feito das palavras que ouve: as palavras são algo que com ele mesmo
acontece. O ouvinte sabe que as palavras ouvidas significam a ocorrência de uma mudança
de si mesmo à medida que compreende o que compreende e, ao mesmo tempo, o
falante, ou seja, o esforço deste em apresentar um conjunto discursivo no esforço de
sistematização lógica. Na escuta do ouvinte acontece a leitura como reorganização
compreensiva qual metamorfose, pois suspensão de imediatismos compreensivos que
pudessem comprometer, dificultar a relação com o que se expressa o acontecimento. A
recepção compreensiva mutante do ouvinte é a possibilidade da expressão do falante de ser
lida e se firmar como expressão. O outro falante é compreendido como a se expressar num
acontecer de verdade por adequação e essa mesma recepção compreensiva é considerada
como mudança a acontecer no ouvinte. Assim, não há palavra sem escuta do que é
expressão. Não há expressão sem sentido seu organizado para sê-lo na escuta. Não
linguagem verdadeira sem a continuada interpretação imediata a transformar a realidade do
ouvinte silencioso. O ingresso do sentido e das palavras formadores de mundo tem a sua
chave privilegiada na escuta atenta e interpretativa do ouvinte. Duas concepções de
verdade se conjugam na linguagem: o seu acontecer como expressão no falante e no
ouvinte, como também o esforço de adequação conforme um critério fixo e supostamente
inabalável.
Quem fala dissolve-se no que escuta. O silenciar,
portanto, a si mesmo se gera da conversa. Cada grande tem
apenas uma conversa em cuja borda a grandeza silenciosa está à
espera. No silêncio a força renovou-se: o ouvinte guiou a conversa
para a borda da linguagem e o falante criou o silêncio de uma
nova língua, ele, o seu primeiro ouvinte. (GS II-1, 92).
A expressão falante torna-se metamorfose do próprio ouvinte na escuta atenta, pois
a fala nele se dissolve promovendo a mudança de si, de modo que o falante torna-se a
expressão do que o ouvinte compreendeu, isto é, ele se dissolve no ouvinte. Ambos estão
em passagem intermitente e não simplesmente a se tornarem passado morto. O silêncio da
passagem na conversa é capaz de silenciar a fixidez aguda de qualquer fala. Portanto, desse
93
modo também se torna compreensível que na conversa, em que há falante e ouvinte atento,
o silêncio a si mesmo se gera como dinâmica própria nos limites da conversa. A grandeza
silenciosa e dinâmica está sempre à espera enquanto um âmbito a abrigar as possibilidades
da mutação compreensiva de toda a fala que acontece. Por isso, cada grande poeta,
pensador, profeta ou santo apenas se concentra numa conversa em que fala a si mesmo
com uma coragem profundamente honesta quanto ao que é em definição e escuta a si
mesmo de modo radical, abismando-se na transformação de si. O silêncio de um discurso
ruidoso pavoneando fundamentação definitiva gera-se na passagem para a profundeza de si
cada vez mais longínqua num constante abismar-se. Na dinâmica do silêncio gerado na
conversa desestruturam-se as forças cegas de qualquer sistema compreensivo esquecido de
si e se renovam, porque foram indiciadas em sua eficácia na inconsciência de suas
aplicações. As bordas da linguagem são a sua força maior: é o local das transformações
que afetam a totalidade da compreensão. As bordas são os limites da compreensão em
palavras e pensamento que se transformam na escuta do ouvinte atento. Cria-se o silêncio
de uma nova linguagem pela inevitável compreensão sistematizada do próprio ouvinte
desde as suas próprias condições de possibilidades também a espera de escuta muita atenta.
O ouvinte abisma-se, porque ao ouvir também é obrigado a se dar conta das condições que
tornam sua escuta possível: ele sabe que a compreensão no ouvir depende de estruturas de
entendimento ainda não tematizadas. Desse modo o ouvinte é levado a ouvir o que o
transforma e a escutar mais atentamente ainda as condições da sua metamorfose: ele é o
seu primeiro ouvinte, isso é, aquele que antes de tudo está à espreita de si mesmo.
“Silenciar é o limite interno da conversa”. (GS II-1, 92).
A conversação não procura ter a característica da produção de ampliação de
horizontes compreensivos e estranhos, mas a oportunidade de simplesmente descobrir o
que sempre se supôs na linguagem. As bordas e os limites da linguagem sempre são
internos a ela porque contém dentro de si toda a riqueza e amplidão de horizontes
possíveis, mas que são paisagem esquecida e não mais vista na mera aplicação lutadora na
defesa do pequeno ninho compreensivo construído como definição fixa. As perspectivas
envolvidas na conversação representam as figuras de sistemas que nela exatamente
mudam internamente quanto às suposições que os sustentam. Neste caso substitui-se a
idéia de expansão infinita de horizontes de uma compreensão mais abrangente por um
entendimento de que um infinito a ser percebido internamente à linguagem usada
como instrumento de comunicação no cotidiano com os seus supostos a agirem como
94
forças desconhecidas. Desse modo a conversação não expande os limites da conversa
como que espacialmente, mas verifica núcleos de concentração da linguagem que de forma
automatizada perfazem o equívoco de uma naturalidade evidente.
Por óbvio que acrescentar ainda que a fala nunca é só, pois silêncio é atitude
ante a fala. O limite interno delineia-se dinamicamente pelo interstício, a quebra e a ruptura
que acontece na interpretação do ouvinte interpretador, destinatário do que o falante diz e
que para ele se torna revelação para a sua própria transformação.
O silêncio como limite interno divide a conversa entre o que fala e o que escuta. Do
lado da fala pode haver simples repetição imanente de discursos solidamente tempo
instaurados, o que caracteriza a falta de produção de discurso e de sentido. Assim, desse
lado, essa fala não chega a se tangenciar com o silêncio, pois é ruído sem criatividade pelo
fato de repetir dogmaticamente, doutrinariamente, a mesma visão de si. “Nunca o
improdutivo chega ao limite, ele toma as suas conversas como monólogos”. (GS II-1, 92).
Improdutivo é quem está numa situação de engajamento total comunicando-se
aplicadamente em alguma construção já em andamento, cujos alicerces, então, foram
colocados e que está em fase de erguer-se aos céus qual torre de Babel. É a fase em que
não mais se julga necessária a reflexão sobre o que em geral está sendo feito e diante de
todos paira a imagem de um futuro completamente programado. O improdutivo julga não
ser mais necessário pensar o que ainda não foi pensado e dizer o que ainda não foi dito.
Paradoxalmente a repetição seria a característica principal de quem é improdutivo. O
improdutivo, portanto, não consegue chegar aos limites da conversação pelo fato de que o
caminho para é pavimentado pela necessidade da tematização sobre a linguagem em
termos de pragmática e de semântica. Ele se nega à reflexão sobre a linguagem em geral,
porque é de todo cooptado pela forma de raciocinar em termos de critério de verdade em
que se prima pela correção do pensamento em refletir adequadamente uma realidade
absolutamente externa. O improdutivo exerce a repetição do juízo meramente operatório
do que foi posto a operar. Ele é um funcionário da operação iniciada: exerce apenas a
sua capacidade de juízo dedutivo em relação ao que aparece como fenômeno para
subsumi-lo aos planos preconcebidos sem mais a intenção de qualquer revisão. Seria,
então, improdutivo pelo fato de não exercer a reflexão atenciosa aos supostos pelos quais
raciocina, já que está seguro de que os fundamentos do seu pensar rotineiro não podem
jamais ser contestados. A sua conversação não chega à verificação e indiciamento dos
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alicerces de si enquanto sujeito formado e se apresenta agora como um monólogo
constante em forma de retórica, sedução, missão, propaganda e sofística que tem a sua
meta na esclerose do fanatismo como esquecimento total empedernido e embotado. O
improdutivo é o incapaz de se exercitar na escuta de si quanto àquilo que lhe acontece
enquanto reflexão e sua forma de apresentação quando atenta ao surgimento do sentido
instituído e a se repetir ininterruptamente. “Da conversa ele se afasta encaminhando-se ao
diário ou ao café. Nos recintos almofadados tempo reinava o silêncio. ele tem
permissão de fazer barulho. Encaminha-se às prostitutas e aos garçons como o pregador
aos devotos - ele, o convertido de seu último discurso”. (GS II-1, 92)
Quando o improdutivo guarda distância da conversa compromete-se cada vez mais
com a edificação e sedimentação do seu discurso que então tem a possibilidade de qualquer
escrita em que sempre haverá a expressão do que mesmo é em auto-exposição como se
fosse um diário. Qualquer discurso escrito é auto-apresentação, mesmo que seja eivado de
argumentos que procuram sustentar objetivamente os fundamentos do assunto aventado
como se fosse externo ao que se expressa. O improdutivo estaria a se esvair e a se desviar
da sua grandeza possível no esforço da produção de um artefato teórico retoricamente
eficiente para o convencimento quem sabe de muitos, mas esquecido de cavoucar em seu
próprio chão. Além do diário que representa qualquer escrita, o improdutivo tem a
possibilidade de se exercer em sua auto-exposição na publicidade do café. Em texto
anterior (A vida dos estudantes, GS II,-1, 86) Benjamin mencionava que sem a condição
da saudade de uma bela infância e juventude digna não possibilidade de criação, que
jovens sem assumirem a sua condição de criadores em solidão e paulatino envelhecer, sem
a possibilidade de renovação de sua vida provinda da “queixa pela grandeza desperdiçada”
e que se caracterizam por “uma limitada e devassa irmanação que se iguala no boteco e na
formação de clube no café”. (Ibidem).
Todas essas instituições de vida são um mercado do
provisório, como a ocupação em colégios e cafés,
preenchimentos de tempo de vazio tempo de espera,
desvio do chamado da voz para construir a sua vida a
partir do espírito da criação, do Eros, da juventude.
(Ibidem)
Prostitutas e garçons representam personagens que nos cafés e botecos são
obrigados a expressar a solicitude da aceitação do mando de um regime imposto sem
contestação, ou pensamento próprio. O garçom e a prostituta estão para servir a bebida,
96
os sabores e os agrados convencionais dos prazeres naturalizados. São vítimas promotoras
de um processo social cultural e estético em pleno andamento. Pretende-se expressar
através dos personagens toda a montagem naturalizada do sistema operatório em ação
produtiva de acordo com critérios e valores em pleno vigor, mas por isso mesmo
esquecidos. As prostitutas e os garçons, como exemplo de toda a ação, entendimento e
sentimento geral da média da sociedade, ouvem o que já há muito tempo se assemelha com
a sua atividade, ou seja, a sedimentação de uma forma de vida que se compraz em aplicar
de modo mais eficaz possível os próprios alicerces do sistema em vigor, ou seja, o
convencimento pela retórica à obediência e até sujeição à ação e aos prazeres
convencionados. O pregador é paradigmático porque joga o jogo dos valores do sistema
promovendo a propaganda da conversão junto aos que estão em meditação. A forma do seu
discurso, seja qual for, irmana-se com a forma e os matizes em vigor. É convertido por seu
próprio discurso e com ele participa solidariamente na fixação da fórmula geral. Converte-
se continuamente pela construção que estabelece ao modo de explicação fundamental,
assumindo a força que mesmo desconhece, isto é, sem apropriação pensante na
conversação capaz de ir sempre além de resultados imediatamente evidentes. O seu último
discurso fundamentado sempre é o discurso da moda, é a nova teoria, a nova explicação, a
nova crença, a nova anestesia aplicada à feição para qualquer sistema pedagógico ativado
em favor de um mundo em progressão repetitiva. Tal discurso é o resultado de uma
conversação que se tornou monólogo por ter sido tomada apenas como seqüência de
pergunta e resposta de um sujeito autônomo e articulador único do conteúdo e em que a
perspectiva do ouvinte em silêncio atento não é levada em conta: “ele toma suas conversas
como monólogos”. (GS, II-1, 92).
“Como um pregador entre os que meditam” (GS II-1, 92), assim o improdutivo
ruidoso irrompe entre prostitutas e garçons, um ambiente em que tempo reina o
silêncio. Trata-se do silêncio daqueles que são constrangidos e obrigados ao silêncio na
escuta de centenas de discursos da moda com conteúdos diferentes, mas todos eles
semelhantes na sua forma de apresentação ao modo da intenção de elocução de verdade
definitiva. A necessidade de sobrevivência obriga-os à tolerância constrangida, silenciando
resignadamente como que acostumados com o fato indiferente do eterno retorno do igual.
A anuência à idéia da naturalização do mundo assim estabelecido faz o resto: O ruído do
improdutivo se torna exatamente a apresentação de objetivação coagulada do que é, em
forma de uma natureza que, apesar de todo o alarido, é muda, triste e silenciosa à espera de
97
uma escuta atenta para a sua expressão e nomeação posterior.
Pregador e devoto são os mestres do silêncio-ruído improdutivo, pois ambos estão
muito aquém dos limites do calar-se. Eles expressam o barulho tonitruante da falta de
criatividade, da não compreensão sobre o que falam e aceitam, e o que em verdade são.
Expressam a compreensão objetivada do passado como tendo sido de uma vez por todas a
justificação do seu dizer: é a inevitável ilusão de que o que passou, passou, de que o
instituído de agora nada tem a ver com o que passou, de que a passado não esteja de
alguma forma presente a determinar o agora e, assim, a repetir-se; é, ainda, um dado da
consciência enquanto atuante na ilusão da autonomia, esquecida de que esse estado
inclusive é a prisão no todo de uma determinada compreensão da sociedade. O pregador é
identificado como o improdutivo incapaz de refletir sobre os supostos do discurso que
repete sem cessar após a última conversação, talvez até mesmo com uma performance
pedagógica excelente. Repete palavras, frases, discursos inteiros, pelos quais repete
critérios, valores, padrões esclerosados pela ausência reflexiva. É ele, portanto, incapaz de
escutar as possibilidades da interpretação de si pela reflexão sobre o seu palavrório, do
mundo que promove e implementa e do desastre que perpetua. O pregador improdutivo é
alguém encantado consigo mesmo, convertido ao seu último discurso em forma de
construção teórica e necessariamente no esquecimento de que ele mesmo enquanto
discurso vivo é mera construção; é Sísifo a rolar a pedra montanha acima, esquecido de
que a sua atividade atual é apenas mais uma depois de tantas e outras mais que poderão vir;
é construção de Torre Babel, esquecida de que o próprio processo da construção leva à
dispersão de si, e, por isso, a necessidade de tradução de si para a implementação da
perdição de uma identidade por demais à superfície. “Agora ele é versado em duas línguas,
em pergunta e resposta. (Um perguntador é alguém que durante toda sua vida não se
lembrou da linguagem, e agora ele lhe quer fazer bem. Um perguntador é afável com os
deuses)”. (GS II-1, 92).
O ser versado em duas línguas, que são pergunta e resposta, refere-se à ânsia por
descoberta e explicações finais e a sua posterior implementação apenas estratégica, ou seja,
não consegue levar em conta a tranqüilidade reflexiva da participação universal, o estar no
meio, no centro, na vertente constante da própria possibilidade. A visão de totalidade
subjacente às duas línguas mencionadas é a de supor um sujeito homem, ou humanidade,
em contraposição a um objeto universo a ser elucidado, sem se dar conta de que qualquer
98
suposição e participação fazem parte do mesmo universo. As perguntas e respostas,
nesse caso, limitam-se às informações ao dispor no conjunto do conhecimento tido
como consagrado e estabelecido como conteúdo. Novamente então se verifica o
esquecimento da linguagem, a qual a tudo abarca em seu seio e que nesse gesto possibilita
a compreensão de que qualquer manifestação de objetivação é expressão de seu acontecer.
Mesmo que o perguntador durante grande parte da sua vida não se tenha lembrado da
linguagem e, agora, tardiamente procure tematizá-la, o viés da sua abordagem é novamente
objetivador, pois a percebe como um objeto analisável a partir da concepção de sujeito
com que se compreende, sem se dar conta do fato de que lhe é impossível sair dela para
exercer qualquer atividade de análise e compreensão. O perguntador mesmo interessado na
linguagem não chega aos seus limites internos pela conversação continuada em que a
escuta radical é possível. Apesar de se ocupar com a linguagem ele a tem como um objeto
manipulável ao invés de supô-la e apreciá-la como falante e respondente nas suas próprias
formulações a seu respeito. É necessário relacionar a isso rapidamente os deuses a quem o
perguntador é afável conforme a expressão: O perguntador é afável com os deuses.
Deuses são valores e critérios consagrados como naturais para fundamentar e justificar de
modo argumentativo o discurso em andamento: exatamente o discurso do perguntador
esquecido de escutar em meditação a fundamentação das suas certezas. Ele é afável com os
deuses, porque lhes rende preito de forma inocente e esquecida, isto é, porque crê
profundamente e exatamente ao negar qualquer tipo de crença, de preconceito e pré-juízo.
Ele crê nos deuses que desconhece ou não quer conhecer. O perguntador concentra-se no
assunto, no conteúdo, na positivação separada da linguagem, na objetivação do dito em que
o dizer é mero instrumento de descrição e comunicação. Os deuses são provocados e
homenageados em sua transcendência objetivada em forma de conteúdo fundamentado:
são fantasmas instituídos para os sucessos da alienação e pelos quais o perguntador
pergunta para que algum deles seja instaurado. O perguntador não consegue lembrar-se da
linguagem que somos quando imersos no jogo da construção visível à procura da verdade
do bem. Ele é afável com os deuses no esquecimento de que os instaurou fetiches que o
apodrecem em sua autonomia dele separada. Nunca pensou na linguagem como o próprio
âmbito em que as coisas são compreendidas, mas como quem pensa nos objetos banhados
pela luz e nunca na própria luz que possibilita os mesmos. Esse zelo em construir uma
configuração teórica de modo ativo e autônomo é visto como improdutividade, ao
contrário da opinião contrária do próprio perguntador.
99
O improdutivo pergunta - para dentro do silêncio,
em meio aos ativos, pensadores e mulheres - por revelação. Ele,
por fim, é elevado; ele permaneceu irredutível. A abundância de
suas palavras como que lhe escapa, enlevado ele espreita a sua
voz; ele não percebe nem palavras, nem silêncio. (GS II-1, 92)
O improdutivo pergunta por revelação como se a mesma pudesse vir ao seu
encontro a partir da sua própria atividade esforçada, ou na provocação do “silêncio, entre
os atuantes, pensadores e mulheres”. (GS, II-1, 92). O improdutivo pergunta e a sua
pergunta é indicação de resposta, melhor, é pergunta comprometida com a exigência de
um determinado tipo de resposta no âmbito do jogo em operação construtiva. A
curiosidade neste caso é movida pelo funcionamento da maquinaria a serviço da Torre
de Babel da época. Não compreende palavras da linguagem a acontecerem em forma de
notícia do que está sendo esquecido e do que é rememorado, e não compreende a situação
de silêncio em escuta meditativa para que isso seja possível. A pergunta já é induzida pelas
regras da resposta objetivada possível. A repetição do mesmo em inconsciência ao modo
da afirmação de certezas tornou-se dogma.
À primeira vista pode causar curiosidade a menção simultânea de mulheres e
pensadores como os primeiros atuantes, porque silentes e alvos da pergunta por revelação
feita pelo improdutivo levado pela naturalidade com que aceitou a rede de explicações
com que enreda as suas verdades. A perspectiva do ouvinte em silêncio e escuta atenta é
descrita como a atitude de que os pensadores e as mulheres são capazes. Os pensadores
como as mulheres são ouvintes das falas que se apresentam ouvindo mais do que
meramente o conteúdo em forma de comunicação organizada no presente da elocução.
Eles percebem e procuram avaliar a força do entendimento e da explicação presentes a
partir de supostos diferentes e por vezes mais profundos daqueles dos improdutivos em sua
vitalidade elocutória. Pelo viés de pensar o que não é imediatamente pensado como
conteúdo no discurso em apresentação e numa postura de escuta atenta, os pensadores e as
mulheres em seu necessário silêncio como que atraem os exibicionismos falantes que se
apresentam como as penas do pavão a serem avaliadas em sua beleza pelos circunstantes.
É inerente ao pensador, como caso particular do universo masculino, a postura da escuta da
manifestação da tradição presente. Além da igualdade do talento ao pensamento em geral a
postura de escuta atenta ao dito, é inerente à mulher talvez pelo fato social de que por
séculos a sua intenção de produção de discursos seja reprimida em favor do exercício de
ouvinte silenciosa dos discursos a serem avaliados pelos critérios de segurança na escolha
100
do consorte para a posterior resignação ao papel atrativo de amante e mãe. A leitura
silenciosa da tradição presente, inconsciente, mas fixa em forma de discursos em repetição
improdutiva é atividade constante do pensador e da mulher, mesmo que o improdutivo
nunca chegue à proximidade das bordas e dos limiares da linguagem. O olho que o
passado em tudo presente, porém, para o improdutivo representa uma atração sem par, pois
se trata do olho avaliador na escuta do que possa ser revelado a partir da sua agressividade
esquecida de um discurso que tenta impor-se como futuro inconteste, como estatuto para
escolha de rumo de vida e como indicação de rumo para o que considera o progresso geral.
A revelação interessa à agressividade daquele que pergunta, desde um discurso
preconcebido, como uma reação à sua provocação para que ele no fim seja elevado e possa
parecer irredutível por meio da contabilização própria e egoísta de qualquer resultado. “A
abundância das suas palavras como que lhe escapa, enlevado ele espreita a sua voz; ele não
percebe nem palavras, nem silêncio” (GS II01, 92). Trata-se da descrição de uma atividade
morta em sua repetição explicativa, automatizada em seu pleno gozo e assim incapaz da
percepção de si. “Mas ele se safa para a erótica. Seu olhar desvirgina. Quer ver e escutar a
si mesmo e quer, portanto, apoderar-se do observador e do ouvinte”. (GS II-1, 92).
A assunção esquecida e imediata de si na fórmula encalhada na repetição de um
gesto com intenção apenas construtiva por explicações fixas perfaz o desenho de alguém
que se erotiza com a sua própria figura numa espécie de gozo no limiar da morte por
inanição criativa. Escutar a si mesmo num palavrório indicando o andamento da repetição
fanatizada e doentiamente mimética, num constante espelhamento de si com ares de
satisfação pelo ponto e pela situação a que se chegou, sem mais a mínima intenção de
continuidade reflexiva, significa querer apossar-se do ponto de vista do observador e do
ouvinte em meditação para que, então, seja anulado como promotor. A auto-satisfação por
si em intermitente rodopio explicativo liquida com qualquer possibilidade de integração
compreensiva com o todo da tradição presente a ponto de o improdutivo permanecer em
embotamento completo. O observador e o ouvinte para ele se tornam meros objetos de
missão presente e futura na aspiração da repetência de si. “Daí é que, falando, ele engana a
si mesmo e a sua grandeza, ele foge falando”. (GS II-1, 92).
O verbo alemão versprechen traduz o sentido de falar prometendo, enquanto que,
no sentido reflexo, em sich versprechen transverte-se em comprometer-se e, mais
especificamente, em enganar-se falando. É o que precisamente acontece com o
101
improdutivo que, além disso, compromete a sua grandeza, a qual permanece desperdiçada
como fonte possível na verificação das bases do seu próprio discurso. Ele foge de si
mesmo falando ao exercer sem cessar a fuga d’alma. Na procura de uma auto-afirmação
absoluta perde-se na objetivação como se fosse separada de si mesmo. Fugir falando é não
perceber que se está a dizer e que o que se diz é exatamente o que se é. A fala em sua fuga
é não compreender o fato de que comprometimento de si mesmo na construção babélica
até aos us supostamente objetivada e separada de si, além da incapacidade de observar a
grandeza presente na dispersão de si, na necessidade da constante tradução de si pela
feitura que se é a partir da pletora do sentido da tradição em geral com todos os seus
matizes. Fugir falando significa o exercício pleno do esquecimento e o pavor da recordação
de que se é apenas a expressão do amestramento em que tal fuga se cunhou. A justificação
acirradamente argumentativa que em favor dessa fuga acontece vem a ser apenas uma
faceta da própria fuga.
“Mas sempre ele afunda, liquidado, ante a humanidade no outro; ele sempre
permanece incompreensível” (GS II-1, 92). foi dito que o falante se dissolve naquele
que escuta com atenção silenciosa tornando-se fenômeno a ser constantemente elucidado.
Esta dissolução enquanto tradução atenciosa é a humanidade no outro que não pode cessar
em sua atividade de compreensão a não ser ao preço de se tornar também mero falante
esquecido das determinações de um discurso em formação. A postura de escuta pode
permanecer legitimamente pela insistência do ouvinte em descobrir aos poucos a
profundidade das águas que possibilitam a evidência da fala qual onda espumante na
superfície. A fuga improdutiva e falante é a técnica do esquecimento da objetivação pura.
Há, porém, um limite, pois a fuga doutrinária afunda ante o outro que sempre vem a ser
compreensão direcionadora do dito. O outro é o que compreende no silêncio, um fato que o
falante nunca poderá dominar: precisamente a novidade emergente que o silente em
meditação possibilita a partir do instituído que o falante mesmo é. É no outro silente e
ouvinte que a humanidade sempre tem a possibilidade de renovar e exercer as suas
potencialidades criativas. “E, em atitude de procura, o olhar dos silenciosos resvala através
dele para aquele que virá silenciosamente”. (GS II-1, 92).
A permanência da procura do olhar dos silenciosos através e além das
configurações teóricas em seu imediatismo aplicado tende à revelação constante enquanto
força de direcionamento do futuro. A verdadeira esperança se debruça sobre os fenômenos
102
que aparecem sob a forma de discursos gerais e neles imerge trazendo à tona as
possibilidades do futuro. Aquele que virá aproximar-se-á silenciosamente em meio ao
máximo de escuta, reflexão, descoberta, revelação, pois será a própria atitude da força do
silêncio fazendo ver o grandioso abismo que cerca toda a compreensão humana e, assim, a
precariedade das suas fundamentações. O futuro sempre estará num passado presente em
que tudo muito tempo é e sempre ainda passível de ser vislumbrado na conversação
pelo ouvir atento e silencioso.
A atitude de procura dos silenciosos em atenção meditativa, em que facetas do
passado presente nos fenômenos discursivos se revelam, concretizam a esperança do futuro
não apenas como acúmulo catastrófico dos resultados de um progresso em sua intenção e
nas suas linhas de aplicação geral totalmente repetitivo. A cooptação inteligentemente
convincente para a anuência inconteste à implantação de um enorme automatismo na terra
é somente percebida pela procura da humanidade em compreensão, quando o olhar resvala
para a direção contrária à procura daquele que silenciosamente virá como força de
libertação. Quem poderia ser? Pelo exposto nada mais do que o verdadeiro novo que assim
silenciosamente se gesta em forma de futuro. Por isso, em meio a todos os discursos,
que perceber que a “Grandeza é o silêncio eterno após a conversa. Chama-se perceber o
ritmo de suas próprias palavras no vazio”. (GS II-1, 93).
Após a conversação o improdutivo considera-se apto a transformá-la e substituí-la
pelo monólogo em termos de pergunta e resposta num amálgama de ruído e volúpia erótica
falaz em que o silêncio é quebrado e a grandeza é desperdiçada novamente. Por isso, após
a conversa não porque decidir que a revelação definiu-se por completo e que os tempos
de execução das verdades descobertas chegaram para a divisão das águas num movimento
agressivamente pedagógico e estratégico. A grandeza justamente não se aloca no campo de
execuções sob a justificativa de fundamentação de acordo com verdades e critérios
decretados eternos, mas, pelo contrário, é o eterno silenciar após a conversação. A
sublime grandeza em eterno silêncio permanece como vislumbre da totalidade das
possibilidades para onde o silencioso volve o seu olhar e, em silêncio atento, ouve. É certo
que as palavras do silencioso estão relacionadas em configuração explicativa estatuída por
pressupostos cujo vigor lhe é desconhecido pelo fato de ainda pertencer ao âmbito do
silêncio. O âmbito do silêncio é um vazio que possibilita escutar as suas palavras no ritmo
que sempre tiveram e que justamente agora percebe. A percepção do comprometimento em
103
versão rítmica das suas palavras no vazio do silêncio é a permanência na grandeza. Mesmo
após a conversação a possibilidade da sua continuidade no estágio da escuta do ritmo
relacionando as palavras num vazio, ou, talvez, nada, que representa a constante
possibilidade da grandeza. Portanto, a grandeza após a conversa é a possibilidade total no
meio do mundo que se adivinha na permanente continuidade da escuta do sentido que
emerge: grandeza é a dimensão do futuro à espera do pensar humano, o qual, descobrindo
as determinações do que já é em silêncio, é a fonte capaz de instaurar nova vida debaixo do
sol. Mas exatamente esta nova vida é a emergência da maldição do espírito criativo.
Benjamin o designa como gênio: “O gênio amaldiçoou completamente as suas lembranças
na criação. Está fraco de memória e perplexo [desnorteado]”. (GS II-1, 93).
Como se diz o silêncio sem dizer? Como se descreve a grandeza sem descrição
compreensível pela organização rítmica da linguagem? A perspectiva do gênio é a
inquietação ouvinte atenta à descoberta dos esteios da sua compreensão e se ativa
radicalmente na lembrança do que assim é. Descobre mundos avulsos e distantes em si
mesmo elaborando-os criativamente em nova figuração ao modo de linguagem
compreensiva em que muitos outros se reconhecem. A descoberta das injunções do que é
perfaz o desenho da mudança de si, e a elaboração ordenada para o entendimento disso
significa, por sua vez, a criação do novo, a instauração compreensiva do que estava
encoberto e esquecido. A descoberta e a instauração elaboradas discursivamente na criação
do gênio em mudança de si lhe fazem ver a dimensão da maldição que promove pela
lembrança do que sempre foi como força catastrófica sem se dar conta da cooptação por
adestramento retoricamente competente. Assim é instado a dizer o silêncio como maldição
paradoxal. O gênio em seu silêncio atento percebe a descoberta e a inevitabilidade da
instauração e nas bordas da linguagem é obrigado a amaldiçoar constantemente as suas
recordações em elaboração criativa e, então, objetivada. Nos limites internos da
conversação a sua lembrança vai escasseando a ponto de perplexidade e de desnorteio.
A perplexidade do gênio firma-se cada vez mais na medida em que a recordação do
passado agora presente em compreensão lhe elucida o seu próprio destino que está a dizer
com as suas próprias palavras. A descoberta e a instauração alocam-se em sua vida como
compreensão do seu próprio destino em silêncio de escuta atenta e elaboração falante. O
passado presente torna-se destino duplamente: uma vez pelo olhar do nio
constantemente atento a ele voltado, e outra, pelo resultante que do passado recebe e
104
elabora em instauração criativa, de modo que o passado o define na medida em que define
o passado em intermitente passagem. O gênio tem o passado como destino e não consegue
mais se situar num presente objetivado em que pudesse descansar. Ele se encontra na
situação de responsável pela elucidação do acontecimento da compreensão que mesmo
instituiu. Na condição de gênio ele mesmo se decidiu por um caminho de determinada
trajetória compreensiva sempre no perigo iminente de fixar o esqueleto instituidor de si e
positivar o passado num presente apequenado para não mais ouvi-lo e interpretá-lo,
engessando-se assim novamente no presente mimético e improdutivo de um discurso
pretensamente autônomo em sua blasfêmia. “Seu passado já se tornou destino e não poderá
mais se tornar presencial”. (GS II-1, 92).
A perspectiva do gênio enquanto decisão compreensiva, falante e sonora na
linguagem é a possibilidade-Deus, ou seja, a possibilidade fixada e realizada que em sua
fixidez oportuniza, faz ver, traz em si, carrega a possibilidade do infinito da compreensão.
O resultante possível pela escuta atenta no âmbito do silêncio que aparece em forma de
fixidez de um novo emergente, é a possibilidade infinita em seus indícios pela decisão
compreensiva inevitável, é como que ouvir um paradoxo na própria linguagem, a qual,
mesmo em processo de fixação em sentido estrito, conserva em seus limites a totalidade do
possível. O gênio percebe que qualquer elocução sua fará parte do destino de seu ser, sem
que jamais pudesse esgotar o que supõe como grandeza e fonte da sua compreensão e do
seu dizer. Essa é justamente a experiência da contradição da linguagem. “No gênio Deus
fala e escuta a contradição da linguagem”. (GS II-1, 92).
A perplexidade do gênio tem a sua razão de ser, pois em sua fala acontece a
revelação como um acontecer simultaneamente com a fixação de sentido compreensível
capaz de se reproduzir em aplicações sucessivas na exibição de um estatuto de verdade
como intenção de certeza absoluta. É oportuno repetir as perguntas e acrescentar mais uma:
Como se diz o silêncio sem dizer? Como se descreve a grandeza sem descrição
compreensível pela organização rítmica da linguagem? E, resumindo, por que todo o dizer
é contradição performativa?
Dizer que algo é, descrever que algo é desse ou daquele modo, implica supor que
mesmo se é no e como exercício de descrição, explicação e interpretação; implica a
veracidade do seu exercício e, mais ainda, implica supor que aquele que diz, ele mesmo
está sendo ao falar, o que poderá tentar provar na atividade explicativa em objetivação e
105
não o consegue, pois, para o conseguir, terá de mencionar algo além de si, dentro de si ou
ao lado de si, ou seja, para ser, precisa dizer algo outro dizendo a si mesmo, isto é, está na
condição de se afirmar a si mesmo no exercício de afirmar algo outro. O outro em
objetivação além de si como se fosse fora de si, e que ele intenta expressar apontando-o,
também não pode ser sem a afirmação definidora daquele que se identifica pelo ser que se
expressa ao dizer a si mesmo justamente desta forma.
Sem dúvida, a perplexidade do gênio leva-o ao limiar da linguagem em que a
pensa como sempre apontando para algo que julga não poder ser: ela sempre quer dizer
algo totalmente outro de si mesma sem o conseguir.
Afirmar-se a si no exercício de afirmar é ser afirmando algo que se coaduna com
o que é como compreensão, um conteúdo sobre o qual se julga. Mas, exatamente o
conteúdo julgado com pretensão de objetividade comunicativa é a afirmação feita que
descreve expressivamente aquele que a faz. Não há como dizer algo outro sem se descrever
a si mesmo no que diz e descreve, ou ainda, sem fazer expressivamente o desenho de si
pelo próprio exercício do dizer. Tudo o que se compreende ao dizer é inevitavelmente a
própria compreensão que é um acontecer constante sem possibilidade da garantia de
objetivar algo enquanto absolutamente outro como separado, à parte de si. A separação, a
dicotomia entre o conteúdo e o próprio exercício de falar, entre objetivação necessária e
atividade pragmática em ocorrência efetiva é uma intenção sem sucesso, inexistente, mas é
como se fosse possibilitada por um determinado esquecimento, de modo que acontece um
constante descrever-se a si mesmo, porém, na intenção de descrever o outro em termos de
objeto. Por este viés, qualquer julgamento feito é julgamento de si mesmo e a divisão
tentada é divisão de si mesmo. Definição explicativa apenas de outro é hermenêutica
parcial e morte de si como alienação, separação e estranhamento no reino da objetivação
pura, caso houver esquecimento de que não há meios de haver separação.
A contradição da linguagem percebida pelo gênio, em que ocorre a conversação
como um amálgama paradoxal de revelação constante e escuta já referida a alguma decisão
para objetivação compreensiva, impele-o a dizer na continuidade da consciência da
danação pensante em que se encontra:
Sou o significado que digo. Objetivo algo como sentido e sou tal significado que
objetivo. Sou o mundo que digo. Desse modo, tudo o que eu digo também sou em
significação, exposição de mim, estilo e modo de ser. A contradição está no esquecimento
106
disso mesmo que agora estou a dizer: denomino, ajuízo objetivando, analiso, sou o que
produzo como significado imediato. uma força ingente na própria linguagem que me
leva a não querer incluir-me no que digo e, ao mesmo tempo, outra que pela recordação me
inclui. O não, o limite de mim com que me identifico, a condenação de tudo o que é outro
de mim, tudo isso é a minha produção significativa pelos critérios com que sou, que me
definem no acontecer do dizer algo outro e, por isso, em constante contradição.
O não, a condenação é parte da auto-posição, pintura de si, limitação de si,
instituição da diferença de si. Assim a linguagem, a expressão, o falar, construir sentido é
sempre a contradição na dinâmica de duas forças contrapostas, isto é, a recordação da
ocorrência da revelação e o esquecimento na constituição da separação de algo outro. O
não esquecimento seria a constante consciência do deperecimento de si enquanto natureza
quase ou totalmente impossível de se dizer e querer ser. No Fragmento teológico-político
(GS II-1, 203) encontra-se a tentativa de verbalizar o fato da contradição da linguagem de
outro modo:
Somente o Messias mesmo consuma todo o
acontecer histórico, a saber, no sentido de que ele próprio
primeiramente consuma, resgata, cria sua relação com o
messiânico. Por isso, nada do que é histórico pode querer
relacionar-se a partir de si com o messiânico. Por isso o reino de
Deus não é o telos da dinamis histórica; ele não pode ser posto
como alvo. Na perspectiva histórica ele não é alvo, mas final. Por
isso a ordem do profano não pode ser construída com base no
reino de Deus; por isso a teocracia não tem nenhum sentido
político, mas unicamente um sentido religioso. O maior mérito do
Espírito da utopia de Bloch é ter negado com toda a intensidade a
importância política da teocracia.
A ordem do profano deve ser erigida com base na
idéia da felicidade. A relação dessa ordem com o messiânico é um
dos ensinamentos essenciais da filosofia da história. E,
precisamente, a partir dela se determina uma concepção mística
da história, cujo problema permite ser exposto numa figura.
Quando uma seta designa o alvo no qual a dinamis do profano
age, uma outra indica a direção da intensidade messiânica, sem
dúvida assim a procura por felicidade da humanidade livre aspira
distanciar-se daquela direção messiânica; mas, como uma força
por sua direção é capaz de promover uma outra direcionada em
caminho contraposto, assim também a ordem profana do profano
em relação à vinda do reino messiânico. O profano, portanto,
certamente não é uma categoria do reino, mas uma categoria da
sua silenciosa aproximação, e, sem dúvida, uma das mais exatas.
Pois todo o mundano aspira ao seu declínio na felicidade, mas
na felicidade lhe é determinado encontrar o declínio.- Enquanto
que, certamente, a intensidade messiânica do coração, do interior
do homem individual, atravessa por infelicidade no sentido do
107
sofrimento. À restitutio in integrum espiritual, que introduz na
imortalidade, corresponde uma mundana que leva à eternidade de
um declínio e o ritmo desse mundano em desvanecimento,
desvanecendo-se em sua totalidade, desvanecendo em sua
totalidade espacial, mas também temporal, o ritmo da natureza
messiânica, é felicidade. Pois messiânica é a natureza a partir da
sua eterna e total passagem.
A aspiração disto, também para aquelas camadas
de homens que são natureza, é a tarefa da política mundial, cujo
método deve ser chamado nihilismo.
A força da revelação pela recordação do passado sempre presente a ocorrer
juntamente com as produções significativas recebe o nome de força messiânica no
Fragmento teológico-político, força sobre a qual o sujeito que se põe como autônomo e
absoluto articulador e aplicador dos seus saberes não tem qualquer domínio. Antes pelo
contrário, como sujeito do discurso da vontade manipuladora, ele pode ser identificado
com a força política da ordem profana que como somente parte da dinamis histórica vai de
encontro à perspectiva messiânica. Mas quem realmente cria e consuma todo o acontecer
histórico é a força da recordação que se revela na atenção silenciosa, agora chamada de
messiânica. O aspecto político, construtivo e denominado mundano não é capaz de aplicar,
somente a partir de si, algum método de escuta realmente determinante para o acontecer
histórico. Esse mesmo aspecto político antes procura distanciar-se da região do silêncio na
escuta do que está por vir. Mesmo assim, ele inevitavelmente se constitui em sinal da
silenciosa aproximação do resgate total do que foi esquecido e que está virtualmente
presente na recordação possível. O aspecto construtivo identifica-se com o improdutivo
que na construção política da felicidade se indicia pelo eterno deperecimento de todos os
castelos de sonhos construídos. Bem se que a política da procura por felicidade é
condição inevitável do ser humano por ser inerente à sua compreensão em meio à
contradição da linguagem.
Por este viés a teocracia como construção política é uma balela em plena blasfêmia
impostora, pois está eternamente fora do alcance de qualquer vontade articuladora. Na
como politizar estrategicamente a força messiânica da recordação atenta e silenciosa que
sempre é capaz de exatamente interromper uma construção compreensiva esquecida da
ocorrência que é em forma de revelação. Mas simultaneamente a força mundana da história
e da política, esquecida da suas condições a ponto de representar o contraponto à força
messiânica, exatamente por isso é sinal da aproximação silenciosa da restitutio ad
integrum, o resgate total. A inevitável continuidade da construção compreensiva e a sua
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imediata aplicação como concepção de vida constitui justamente o paradoxo, ou seja, a
contradição da linguagem que o gênio percebe e no qual Deus fala e escuta. Deus é falante
como sinal na consciência da instituição do dito e compreendido e ao mesmo tempo é
dinamis messiânica na leitura das fundamentações precárias do seu dizer.
A danação do gênio é a sua condição de se compreender situado na contradição da
linguagem. A completa assunção e implementação do âmbito do silêncio continuado são
um sonho construtivo impossível de se realizar, pois seria o estupor da teocracia como
prática política possível. O gênio encontra-se no estágio de ter que amaldiçoar as suas
recordações ao dar forma às criações que por elas se tornaram possíveis. No momento em
que consagra apenas uma criação capaz de se instituir e nela permanece identificado, aí,
então, abandona a sua própria condição. A força messiânica que o impulsiona para a
consciência da sua condição faz com que não se possa identificar completamente com o
lado instituído e de si esquecido de acordo com uma compreensão automatizada a se
repetir indefinidamente. Por isso a perspectiva chamada mundana e que permanece à
procura da construção da felicidade, mas lembrada do seu acontecer em revelação, aspira
ao seu declínio e consumação na própria felicidade.
Uma perspectiva não está em detrimento da outra, pois ambas, messiânica e
mundana, são entendidas como forças em relação e correspondência, cujo problema é
oferecido visualmente na figura das setas em contraposição que mutuamente se geram
provocando-se. Não há uma sem a outra. Uma força que fosse sem contraposição nunca
seria reconhecida como força, e mesmo força não seria, já que só pode ser quando
percebida e sustentada por outra força que se lhe contrapõe. A correspondência entre
ambas as forças é tanta que uma é denominada o ritmo da outra, ou seja, a necessária
objetivação compreensiva pela linguagem vem a ser o ritmo do acontecer messiânico, da
natureza messiânica que engloba por suposto qualquer tentativa de divisão em termos de
sujeito constituído e objeto a constituir. É por isso que a suposição da retitutio in integrum,
o resgate final, o suposto da totalidade, que aponta para a imortalidade real de tudo, tem a
sua correspondência, a sua reverberação rítmica na eternidade de um declínio mundano.
A compreensão mundana que se percebe na totalidade da passagem das suas
instaurações temporais e espaciais corresponde à felicidade, que é o ritmo messiânico. A
natureza inteligível como suposição necessária para o todo da atividade racional no sentido
de Kant revela-se em ritmo messiânico numa eterna e total passagem. A expressão Aufgabe
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der Weltpolitik pode, então, ser traduzida por tarefa ou desistência (Aufgabe) da política
mundana e procura indicar a dupla polaridade que angustia o gênio: as descobertas das
determinações da sua compreensão fazem-se ritmo sonoro na linguagem em objetivação
necessária. A Aufgabe como tarefa de escuta atenciosa ao próprio discurso mundano em
geral indica a Aufgabe como desistência da política de se perceber articuladora subjetiva de
todas as objetivações a acontecerem. O coração doído, sofrido, roído e em crise pela
infelicidade do homem interior, que compreende o seu acordar rompendo constantemente
com o sonho em que se julgava feliz, é o indício da intensidade messiânica. Mas o método
nihilista para a tarefa e a desistência deve ser cultivado em atenção silenciosa como a
melhor política para a constituição do mundo.
Seria oportuna a pergunta sobre qual a construção que ao gênio interessa,
construção em que Deus fala e escuta a contradição da linguagem? Tal questão não se
pode mais pôr, pois já seria sono de novo a espera de um acordar para a continuidade da
visibilidade de si. A própria pergunta já acusaria a intenção de uma construção
comprometida com critérios vigendo em esquecimento fixo do que seria melhor ou pior.
Todas as construções possivelmente fazendo parte do ritmo messiânico são marcas,
cicatrizes, rastros visíveis do esquecimento do vir a ser de si e, por isso, ao mesmo tempo,
por outro lado, são condições de possibilidade, isto é, eles proporcionam a memória, a
relembrança, o pavor dos desastres acontecidos à espera de redenção rememorativa em
significação por intermédio da perspectiva do gênio. É assim que as construções
exatamente são as indicações de todo o esquecimento e repetição. São as marcas que
possibilitam a experiência radical do paradoxo fundamental.
Ao mesmo tempo em que tais marcas oportunizam a lembrança do esquecido, a
mesma lembrança torna-se nova construção, pois o esquecido é o passado que na
lembrança e por intermédio dela está a se tornar futuro. As marcas das construções
esquecidas daquilo que lhes subjaze são motivos de novas construções também esquecidas
de suas determinações; os rastros interpretados são estacas de fundação e de intenção de
fundamentação de novas construções.
O surgir de si mesmo do esquecimento, a construção em rememoração que ocorre,
o vir a ser do significado de si pelo sentido que se diz na linguagem não é articulável, não
está disponível, não se dispõe à previsibilidade e desse modo, então, não é programável. A
110
sua condição de emergência e oportunidade de expressão está na postura do silente à escuta
na conversação para que aconteça a nomeação.
Parte essencial do pano de fundo da questão elaborada sobre a contradição provém
de uma determinada compreensão do pecado original conforme os primeiros capítulos do
Gênesis e que Benjamin aventa nos escrito sobre a linguagem, Über Sprache überhaupt
und über die Sprache der Menschen (II-1, 140).
A proibição de se comer do fruto da árvore do bem e do mal na história da criação
trata simplesmente do esquecimento do fato fundamental de que não há sagrado como
ponto fixo absolutamente separado para a pretensão da prática do julgamento.
A proibição trata da recordação de não esquecer de que o julgamento qualquer que
seja sempre será descrição de si, pois quem separado de si proíbe? Quem afastado da
instância do dizer poderia proibir sem que passasse pela instância de si? Quem ou o que
separado da própria linguagem e leitura haveria e que, então, pudesse proibir? Ninguém,
nada. Mas também nada proíbe a construção do esquecer que é a possibilidade da
construção do outro no que fosse esquecimento de que é si mesmo. O acontecer da
proibição em seu sentido positivo é a identidade entre si e a compreensão do mundo, e em
si a própria proibição aponta para o esquecimento pela separação possível do que sempre
há como compreensão por intermédio daquilo que foi dito. O acontecer do que foi proibido
é o dizer em forma de sobre-nomear na intenção de verdade separada de si e o produzir do
esquecimento na construção feita. Esquecer-se da árvore do julgamento e da vida é
esquecer-se a si mesmo, pois sempre é si mesmo ou sobre si mesmo. A construção de si
como outro construído, no esquecimento de que o outro intentado é, preciosamente,
construção própria da queda e o esquecimento da proibição. A culpa do homem é não se
julgar culpado: é vítima da sua própria ilusão. Isso porque quem julgar e pela
argumentação estrategicamente quiser convencer de que não é culpado pelo julgamento
que comete terá de fazê-lo inventando o ídolo absoluto esquecido a fundamentar a sua
pretensão. Para tanto Benjamin cita Kafka:
O pecado original, a velha injustiça que o homem
cometeu, consiste na censura, que o homem faz e da qual não
desiste, de que lhe aconteceu uma injustiça, de que foi contra ele
que o pecado original foi cometido. (GS II-2, pg. 412).
Dizer o externo à linguagem é o externo que se diz? Como dizer o externo que se
visa na linguagem sem dizer? Dizer o externo é dizer apontando o externo que se visa, mas
111
sem precisar dizer? Resultam essas questões na concepção de que na linguagem não
externo nem interno, mas se dá simplesmente linguagem em que o seu exercício em
pragmática pode ser significado semanticamente, e o seu sentido semântico também. O
pretenso externo à linguagem que possibilitasse a sua condição de puro instrumento
pode ser significado pela própria linguagem como suposição e até necessidade de
suposição, mas também dita. Tudo o que se está a dizer tece-se com os supostos já ditos,
mas o dizer é quem diz os mesmos supostos colocando-os como seus esteios, fantasmas,
deuses, bonecos que lhe possibilitam a atividade.
No ritmo do dizer o tempo comanda o processo inaugurando-se sem cessar de
modo sub-reptício como lastro, suporte e quadro do sentido que se diz à base do dito e
contando com ele, e do dizer o passado como futuro pelo aspecto da inauguração do
mesmo passado no dizer atuante.
na mitologia grega a racionalidade, como se sabe, é o reino de Júpiter enquanto
narrativa a instaurar o comando da recordação organizada, positivada e inevitavelmente
parcial para prender o tempo Saturno, que, então, parece dominado. A linha do tempo
começa com a entronização e ordenação de Júpiter quando derrota e prende o tempo
original forçando-o a ser suporte da razão lógica na seqüência do antes, do agora e do
depois lógico e causal. Essa narrativa de entronização na mitologia grega tem semelhança
com a queda de Adão e Eva na narrativa do Gênesis. Em ambas as narrativas a questão do
direito e da justiça está posta. Kafka é um balançar entre uma coisa e outra: a questão ele
entendeu muito bem. A porta da justiça é porta para quem ainda acredita que haja a porta
da justiça, o fundamento que lhe pudesse servir de alicerce. Benjamin percebe que Kafka
não mais admite nenhuma doutrina por fundamento definitivo para qualquer interpretação
sistematizada, mas, ao mesmo tempo, que ele é obrigado a admitir as imposições de
interpretações sistematizadas sem fundamento algum além da mera e bruta efetividade já
em andamento como aplicação de poder na burocracia do direito, da religião e até da arte.
É a relação entre a hagadah e halaca em que a doutrina hagadah está completamente
esquecida pela halaca e não mais pode ser exercida como fundamento para coisa alguma.
O mencionado gênio, em sua perplexidade, permanece numa angustiada questão,
ou seja, sobre se a fala como contradição da linguagem pode ser. Afinal de contas, ele pode
dizer que a fala é contradição? Expressando-se ao falar no sentido de que a fala é alienação
ou objetivação descritiva de si a ser, consegue, então, não objetivar tal conteúdo? O gênio
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assim se desnorteia, porque sabe que a fala ocorrente em tempo de intenção de objetivação
pode acontecer na escuta do silêncio nos limites da interpretação silente. Ele sabe que é
como Adão enquanto nomeador do outro de si na criação ocorrente de si mesmo, pois que
quem fala acontece falando, mas também que é o ouvinte que direciona o acontecer. O
ouvinte de si a nomear acontecendo é o sentido da própria proibição dos frutos do
conhecimento objetivado. Então, o gênio sabe que esquecer a auto-nomeação pelo nomear
acontecente é a dúvida originária sobre a objetivação separadora com a necessidade de
fundamentos como imagens primeiras justificadoras e legitimadoras a promover, além
disso também, a separação do tempo em suas três fases de presente, passado e futuro. A
apokatastasis enquanto perdão consentido pela própria situação de angústia gerada na
contradição da linguagem tem a sua vertente, pois qualquer sistema de julgamento, por
mais justificado que fosse, tem legalidade apenas relativa, ou provisória, pois não pode
esquecer que em seu exercício aplicativo precisamente esqueceu a entronização de uma
divindade como fundamento que, por sua vez, não consegue mais fundamentar. Por isso
tudo, o sentido e a indicação de que “Deus fala no gênio e escuta a contradição da
linguagem”, (II-1, 93), não é, de modo algum entendido pelo tagarela.
“Ao tagarela o gênio parece a evasiva ante a grandeza”. (II-1, 93). O transcendente
é a impossibilidade de se dizer o suposto de que se faz parte, pois sempre se supõe
dizendo, e é isto que o tagarela nunca entenderá. O próprio dizer faz parte do transcendente
enquanto suposto, permanecendo todo o dizer apenas a possibilidade de sua expressão. O
silêncio é o sinal da aproximação maior possível do suposto, enquanto que todo o dizer
afirmativo é intenção de afastamento além da mera nomeação. Mas o silêncio é também o
silêncio do dizer na perplexidade próxima à equivalência ao nada, que, em não havendo
sentido, silencia-se também até o suposto enquanto sentido possível. Em relação a isso, o
tagarela fala, diz e procura tudo esclarecer em termos de uma grandeza como âmbito dele
mesmo separado e, por isso, definível por uma linguagem que imagina desvinculada e,
portanto, manipulável para os fins do seu dizer. Na ilusão de uma tal linguagem é que lhe
parecem fuga e evasiva aquilo que para o gênio é a angústia da contradição da linguagem,
a cisão em que o transcendente fala e ao mesmo tempo escuta o paradoxo de um dizer
sempre em processo de irremediável comprometimento com o pano de fundo de uma
imagem justificadora da sua ocorrência.
Já a concepção de grandeza do tagarela é problemática sem que se dê conta disso. A
113
definição da grandeza como âmbito separado lhe parece um infinito capaz de proporcionar
a possibilidade de uma produção autônoma de sentido a qualquer preço e a qualquer hora.
Tem-se, assim, uma contraposição entre o tagarela e o gênio. Este primeiramente é
silencioso, como sabemos, escuta atentamente e é acossado pelos escrúpulos de promover,
ou não, a objetivação que, por parte do mesmo, é extremamente acurada e cuidadosa,
movimento que pode ser entendida como fuga pela própria tendência à tagarelice normal
do dia a dia.
O tagarela pode ser considerado o artista da mimese; o pregador repetidor
incansável dos ditames provindos de fundamentos deificados que lhe são, porém,
desconhecidos ou que mesmo se nega descobrir; o convencido da progressividade positiva
do seu próprio discurso; o que não escuta e nem cria; o encastelado para a construção do
seu castelo; aquele que surge após o instituído e é o instituído e que a partir do instituído
não com bons olhos o gênio instituidor de nova compreensão e nova sensibilidade; o
homem em queda na ilusão da construção objetiva. Esse mesmo tagarela julga o gênio e
não nota que o julgamento se a partir da instituição que ele mesmo é; julga o gênio
em juízo engessador e instituidor, mas se esquece que, no caso do gênio, houve escuta,
além de consciência e saber da escuta na continuidade da angústia na contradição da
linguagem. Ele esquece que de ter sempre a instituição, mas no saber rememorativo de
que há, e sem o esquecimento de que o julgamento é o esquecimento e a fala
necessariamente sem a mínima escuta.
Na corrosão de qualquer sentido justificado por origem suspeita, a arte é o melhor
meio para o que está fora dos limites da definição: a arte prescinde de qualquer
fundamentação e definição últimas, pois desde a “Crítica do Juízo” de Kant é entendida
como livre de ser acossada pelos interesses de fundamentação do conhecimento e da
moralidade, um livre jogo entre o entendimento e a razão. As dificuldades que a
contradição da linguagem impõe ao viés objetivador de algum modo se amenizam na
circunscrição da arte, que nela não se encontra a mesma pretensão. A imensidão
tempestuosa do desconcerto que leva à pura perplexidade imobilizadora pode desanuviar-
se em favor daquilo que enquanto beleza desde sempre se propõe como produto
representativo do incomensurável, do indefinível por princípio, da desistência das rígidas
determinações causais. “Por isso, a arte é o melhor meio frente ao inominável (paralisia
frente ao inexprimível)”. (II-1,93). A arte consegue por em questão e até destruir as
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pretensões do instituído, pois o seu estatuto não decorre de instaurações desejosas de
justificação argumentativa. Não há como não se ter a instituição no dizer, mas o meio de
não se comprometer com a contradição da linguagem, que pode até acarretar a desfaçatez
de querer nominar o inominável, é a postura do gênio em configuração artística
descobrindo e rearticulando citações daquilo que foi destituído para comandar como pano
de fundo feito transparência. O velho pano de fundo, fundamentando a transparência das
aplicações rotineiras, é destroçado para ser conservado na figuração de nova coleção para a
possibilidade de nova compreensão que se sabe precisamente assim, ou seja, compreensão
instaurada como marca destinadora. A arte da citação é a descoberta do que obscuramente
comanda os processos de julgamento, é a sua destruição e a sua conservação em nova
perspectiva de compreensão eivada de nova sensibilidade. Na arte melancólica o gênio,
entediado com as circunvoluções repetitivas do cotidiano, ativa-se no exercício de destruir
e articular salvificamente o velho instituído e obscurecido nas aplicações acintosamente
evidentes e encobridoras do que as determina. O gênio torna possível a revivescência do
velho na nova citação em que possivelmente nesse processo tudo está presente na dinâmica
da reminiscência. Ademais, o gênio sabe que a totalidade do sentido permite aqui e ali
encontros mais profícuos do que os rotineiros, pois percebe a si mesmo na imensidão em
que tudo se perde e tudo se acha e na qual está a entoar o seu curto canto em forma de
oração participativa.
A conversa do gênio, porém, é oração”. (II-1,93). O gênio ora, porque
compreende que no silêncio a recordação é dádiva de sentido novo, descoberto nas brumas
do passado de si. A atenção silenciosa é a oração descobridora capaz de articulação do
novo por meio do re-ordenamento em citações do antigo presente, mas até então encoberto.
A conversa do gênio enquanto oração silente e atenta é a percepção da dádiva do
pensamento compreensivo, mas até então esquecida no deslumbramento da sua tomada de
posse pela fala meramente proposicional e afundada no precipício da imagem ilusória
alegando justificação de direito à separação, à cisão definitiva de sujeito e objeto, nada
mais do que a afirmação da contradição da linguagem.
Enquanto na situação de oração, o gênio ao mesmo tempo sabe que a sua
compreensão em instituição re-ordenadora expressa uma possibilidade em meio à
totalidade do sentido. Na oração atenta e reflexiva dá-se conta de que ele mesmo enquanto
ocorrência é gota d’água no oceano e, como quer que se decida e fale, é diálogo em que o
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total das presentes possibilidades oferece a dádiva que mesmo é por reminiscência. Por
isso, o gênio, manifesta-se, destruindo, desnudando e desnudando-se: o conjunto das suas
palavras é ele mesmo e ele o sabe, a sua compreensão é ele e ele o sabe; as palavras novas
recordativas são o que ele é em itinerário de si e que deixa cair a descrever a si mesmo, a
ele que é o que precisamente está a acontecer. “Ao falar, as palavras vêm caindo dele como
mantos”. (II-1,93).
Ao desnudar-se, colocando sob a luz a instituição de si, apresentando o sentido que
mesmo o define, a palavra-compreensão que é e que sabe que é, então, pode oferecer
abrigos ao derredor que o escuta. A sua instauração criadora oferece sugestões de
compreensão que são paragens de pensamento em que cabe mais gente disposta a apreciar
as novas paisagens e constituir a sua morada própria. Está a vestir o ouvinte com a
vestimenta de sua compreensão que então permanece ao dispor, muitas vezes à margem do
instituído oficialmente na compreensão naturalizada. Pois, “as palavras do gênio
desnudam, e são invólucros nos quais o ouvinte se sente vestido”. (II-1,93). Mas o próprio
gênio tem a sua primeira e principal característica na escuta silenciosa e atenciosa daquilo
que sempre o constituiu, pois pressente que está vestido com vestimentas que por ele
mesmo ainda são completamente desconhecidas: sempre é algo a mais do que
propriamente sabe. A conversa do gênio é oração na busca e no pedido pela descoberta do
que sempre está a determiná-lo em sua compreensão. A própria resposta presente, mas
agora sobrevindo e se descobrindo na oração como o cair das vestimentas é o passado do
grande falante. O grande falante que no gênio escuta a contradição da linguagem é o
mesmo que nele fala como passado presente descobrindo-se. “Quem escuta é o passado do
grande falante, seu objeto e sua força morta”. (II-1,93). O grande falante que no gênio em
atenção silente fala enquanto passado presente é o discurso do cotidiano sistematizado, a
força morta encaixotada num sistema compreensivo regular, ordenado e construtivo de
felicidade programada, mas que traz em si as determinações com as quais se está vestido
sem se dar conta. O cotidiano precisamente como força morta constituindo a compreensão
do gênio é o seu objeto de atenção, que tal objeto é a fala do grande falante enquanto
força morta quando não merecedora da escuta silente. Desse modo, o cotidiano constitui o
passado presente do grande falante, a força morta, o objeto de atenção do gênio, o seu
motivo de oração enquanto pedido e procura por seu significado, a efetivação constante de
um processo em que Deus fala e escuta a contradição da linguagem enquanto intermitente
possibilidade de descontrução do reducionismo imediato de um todo sistematizado em
116
forma de crença enquanto a pretensão esquecida como verdade absoluta.
Realmente quem escuta é o próprio passado falante instituído de modo reduzido
como atualidade. O grande falante é o passado instituído como a compreensão oficial, a
objetivação e a sua força morta em comparação com a atividade do gênio. A força morta
tonitruante, barulhenta e esquecida de um cotidiano em afirmação festiva e segura na
certeza do seu objetivar está em contradição com o gênio que, no mesmo cotidiano,
desnuda a si e a todos em oração atenciosa. Desse modo a fala do gênio é silenciosa em
meio ao alarido afirmativo geral, o qual, para sê-lo, necessita do ritmo da fala silente e
descontrutora, apontando mais além para determinações também presentes e insuspeitadas.
O sentido da expressão o grande falante estende-se, portanto, ao total do sentido no
presente de agora já sedimentado por construções do passado e suas próprias
determinações, mesmo que o todo permaneça invisível, embaçado que está pela névoa de
uma totalidade atual com pretensões de absoluto. O gênio procura a e)poxh^ (epoché)
suspensiva para compreender a compreensão em suas determinações mais abrangentes
anulando-se na contemplação do mais imediato, pelo fato de querer compreender
suprimindo a sua compreensão rotineira em ocorrência, e no ouvir mais profunda e
atentamente os ecos de cantos mais distantes em meio à algazarra do cotidiano. “O gênio
falante é mais silencioso do que o ouvinte, como o que ora é mais silencioso do que Deus”.
(II-1, 93).
Aquele que ora em atenção igual ao gênio é silencioso por que ocorre como
reminiscência e desnudamento da compreensão artificialmente consagrada e absolutamente
positivada. Além disso, conta com determinações que não estejam imediatamente à
superfície da realidade administrada pelos princípios objetivados para a recorrência do
mesmo.
Benjamin menciona, a propósito de Kafka, um dito de Malebranche: “A atenção é a
oração natural da alma”. (II-2, 432). Quem ora é mais silencioso que Deus pelo fato da
escuta, da atenção e do silêncio para a compreensão possível do novo por meio do que foi
posto como ser fixo. A oração constitui-se em silêncio criador na escuta do que virá a ser
instituído como compreensão em ruptura para novos tempos. O gênio lembra em oração
atenta e silenciosa o que mais foi silenciado fazendo ver a repetição da máquina barulhenta
em seus mecanismos de defesa e justificação. Como qualquer máquina, ela faz todo o
esforço para se manter funcionando. O gênio, ao contrário, desobstrui silenciando e
117
desconstruindo os motivos e as justificativas de todo o alarido lembrando que tudo é
apenas a obra em criação de si sem poder e sem necessidade de fundamentação definitiva,
já que é constante resultado da condição de cisão da contradição da linguagem.
A afirmação de que o gênio falante seja mais silencioso do que o ouvinte supõe o
estado em que o gênio é a voz que fala no e a partir do interior daquele que escuta, isto é, a
voz da significação possível, o todo recalcado ainda não significado, a massa escura da
totalidade do oceano em cuja superfície a luz da compreensão se faz possibilidade. Não há,
portanto a possibilidade de um afastamento para a contemplação de um objeto a ser
analisado conforme uma das perspectivas da contradição da linguagem. A voz da
significação possível a si mesmo se gesta enquanto instauração em que o silêncio é sempre
o intervalo descobridor. Trata-se da possibilidade do som significativo de acordo com o
ritmo da fala humana que inclui em si o silêncio comandando o rumo do sentido. De
acordo com o paradoxo da linguagem (GS II-1,93), o escutante significa, nesse caso, a
perspectiva da articulação de sentido de acordo com os seus próprios esquemas que de
forma inevitável distorcem o dito, pois apresentam inevitável interpretação tendenciosa de
acordo com a sua configuração cultural tradicional.
No ritmo da fala humana “O falante permanece sempre possuído pela presença” (II-
1,93), ou seja, está em pleno desempenho, esquecido da escuta e ocupado no ordenamento
interpretativo do que lhe advém como acontecimento de si. Todo o falante está implicado
no julgamento a acontecer de acordo com critérios e valores consagrados que supõe e, ao
mesmo tempo, está impedido da escuta. Como vimos, até o nio precisa falar após a
escuta, o que o faz perceber a angústia original da contradição da linguagem. Ele é
possuído, enlouquecido a repetir gestos compreensivos ao infinito, ocupado exatamente na
expressão do passado de si, das determinações de que se desveste como mantos que caem
em postura de oração atenta aos comandos em si já sempre subjacentes.
O falante é e permanece sempre possuído pelo exercício presente da elocução do
sentido que articula. Por mais que se esforce na trilha da positivação de um passado
separado, tal positivação historicista só pode ser a ilusão que se dá pela constante repetição
do mesmo de acordo com uma compreensão fixada ou não. A positivação do passado, que
o falante projeta mesmo numa intenção historicista, permanece inevitavelmente a
expressão ocorrente de si. Desse modo, nunca poderá dizê-lo de forma absolutamente
objetiva, mas sempre como ocorrência interpretante de si pela imediatidade do
118
acontecimento. Tudo o que for que fale está a ser acontecimento falante na articulação de
uma compreensão presente, tanto que todo o seu exercício da linguagem é sempre
percebido como comprometedor, perigoso e decisivo pelas instituições compreensivas
sempre acompanhadas da possibilidade do esquecimento das suas fundamentações.
Portanto ele é amaldiçoado: a nunca dizer o passado que ele, porém, indica”. (II-2,
93). O presente constante é exatamente a impossibilidade do falante dizer o passado, pois
ao dizê-lo é presente e é instauração. O dizer paradoxal contraditório é exatamente o dizer
analisante, interrogativo e instituidor do que é a se tornar passado positivo na intenção. O
falante é amaldiçoado.
Não como pedir ou exigir que se inicie algo de modo absoluto, que o pedido
compromete a quem tenha a intenção de deixar ou partir para tal início, pois dizer o
passado é não dizê-lo como se fosse a absoluta descrição do acontecido, mas reinventá-lo
sob determinada perspectiva. A pretensão de dizer interpretando é o constante afastamento
e a expulsão de onde se está e o dar-se conta disso é a peregrinação no sentido. uma
constante vestimenta mascarada do novo suporte como sujeito absoluto para se justificar a
pretensão do que se está a dizer, o que é inevitável e constitui o paradoxo. A vestimenta do
deus instituído é sempre diversamente escamoteada num constante deslocamento
Parece que a questão é realmente o início, que não há, e a dependência das próprias
condições de possibilidade por parte de interações e relações já sempre havidas.
A ficção do início é a invenção de um deus objetivamente separado e garantidor da
objetividade do que se está a dizer, tendo o castigo por conseqüência na consciência do
afastamento de si mesmo: é a alienação e o seqüente afastamento constitutivo que o falante
em si mesmo percebe quando diz o outro-natureza num ordenamento de tempo controlado
por metrificação. O início absoluto possibilita a metrificação e a inauguração da culpa e do
direito, ao contrário da idéia de constante dependência e relação.
Na linguagem qualquer explicação traz a necessidade da descrição da
gênese do conteúdo, das preocupações, da frase, do conceito, de cada palavra: palavra a
descrever sentido de palavra num círculo constante e sem fim em que a cobra tempo é
fantasma criado e tentador de uma divisão fundamental. Toda a vez que se conta com a
tentação da cobra, linha do tempo, tem-se estado de objetivação das coisas. A objetivação
exige a fixidez instrumental da linguagem bem como a tentativa de exatidão fundamentada
do significado.
119
Ao falar objetivando se está na intenção de dizer sempre o passado, mas que trata
de nova inauguração, ou expulsão do local em que se esteve: Portanto ele é amaldiçoado:
a nunca dizer o passado que ele, porém, indica”. (GS II-1, 93).
A objetivação da linguagem é paradoxal: ajuiza inevitavelmente sempre, mesmo o
geral, o universal e as suas próprias condições, pois o que se compreende como condições
e é dito pela linguagem é pelo modo da proposição objetivadora inevitável. Qualquer
compreensão ocorrente é, assim, exatamente pela ocorrência julgante e a sua suspensão
seria a eliminação da compreensão. Mesmo o dizer da sua ocorrência não escapa do
processo, pois é julgante recordação a ser dita também. É inevitável que o julgar se
como ser em ou como ser em divisão, ou diferença na suposição de uma identidade que a
acompanha em termos de totalidade que a possibilitam. A corda bamba, o fio da navalha
está entre, ou como divisa entre o todo como identidade suposta e o diferente absoluto a
formar mundos compreensíveis possivelmente infinitos. Mas ser em é a própria
impossibilidade de começo e a eterna dependência, e qualquer proposição de totalidade é,
sob esse ponto de vista, um aspecto de mero deslocamento itinerante, que também ela
necessita de suposição da parte que é enquanto diferença e do todo em termos de
identidade.
O termo metafísica encontra um modo de centração quando é entendido não
como fundamento fixo e separado para a justificação de juízo ocorrente, mas como ir ao
fundo (Untergang), como passagem à desaparição (Vergängnis) até onde dá, um
movimento em que as explicações objetivantes se separam e se distanciam cada vez mais.
A fu^sij (fysis) de metafísica denota a parada de ir ao fundo como funcionamento
estacionado, ou emperramento repetitivo, e o termo completo de metafísica abre-se para o
sentido de uma movimentação dialogante e itinerante, além dos limites impostos pela
compreensão momentaneamente em mera operação repetitiva de sedimentação. É este
também o sentido do fim do Fragmento político teológico quando afirma da natureza:
“Pois messiânica é a natureza a partir da sua eterna e total passagem”.(GS II-1, 203)
O dizer que assim é, é o instituinte para que assim seja. O dizer seria ação
inexplicável e não analisável, pois explicação e análise seriam comprometimento com o
próprio exercício do dizer. E se consciência do comprometimento, qual o sentido da
explicação, análise, reflexão, ou alegoria? Não seria isso o próprio exercício da contradição
da linguagem? Ou seja, dizer que o dizer é estatuinte; instituir que toda a explicação,
120
análise é instituinte? Desse modo a explicação de que toda a explicação seja
comprometida a si mesmo compromete por exercitar a mesma atividade que se propõe
denunciar como esquecida do fato do comprometimento. O que resta? O dar-se conta
desse fato e dessa situação.
Trata-se aqui da questão da experiência no sentido mais amplo possível, isto é, a
percepção de que surgem explicações, teorias, constelações, todas construções que se
podem seguir, denunciar, perseguir em suas miríades de manifestações, ou repetições na
geografia do tempo positivado. Junto a isso se conjuga a observação de si, da
compreensão e na compreensão que mesmo se é.
Ao querer fazer considerações sobre o passado, o falante terá de se ater sempre ao
instante do exercício narrativo da linguagem a presentificar conteúdos como se o próprio
passado estivesse presente, mas objetivamente separado e sem o acontecimento decisivo da
compreensão ocorrente. Indica o passado inaugurando o tempo em forma de narrativa e
diálogo constante que sempre todos somos. Mas mesmo assim, fala inevitavelmente da
boca de um passado que agora precisamente é por tudo aquilo que foi. Ele constantemente
se engana falando (er verspricht sich): objetiva indicando um passado que foi e com isso
expressa o passado que no presente é e está a inaugurar. Eu seu discurso carrega, sem se
dar conta na maioria das vezes, a voz de todos os silenciosos e emudecidos, ou seja, o
recado, a esperança e o desejo de todos os que se foram. O seu discurso de agora está pleno
das indicações, do sentido e das expectativas dos emudecidos e também ele nunca viu “o
local da luta silenciosa que o eu encetou contra os pais e os ancestrais”. (GS II-1, 91). Na
contradição da linguagem, numa espécie de sonho, “Utilizamos diariamente forças
desmedidas como os que dormem”. (GS II-1, 91). A catástrofe continua na boca do falante
pelos julgamentos que promove “E o que ele diz já tempo incluiu em si a muda
pergunta dos calados e os seus olhares lhe perguntam quando irá terminar”. (GS II-1, 93).
O falante compromete a sua alma com um passado fixo, figura objetivada, imagem
proibida desde o início, paisagem morta, e assim ele blasfema na continuidade da
produção da catástrofe. Ele deve confiar-se à ouvinte que é dinâmica do mesmo passado
compreendida enquanto incrustada na própria compreensão presente. Vergangenheit
(passado) é um passado entendido como passagem constante a acompanhar as instâncias
do atual e, caso assim compreendido e a ser contínua e atentamente escutado e procurado,
é como que se tal infinita dinâmica, presente na compreensão, levasse o falante pela mão a
121
fim de ver o precipício em que jaz a sua alma como parte da paisagem morta e petrificada
de um passado precariamente compreendido como objetivado por fundamentações, sobre
as quais crê que possam ser cada vez mais profundas a ponto de constituir a imagem de um
buraco sem fundo desesperador. Na contradição da linguagem, o esquecimento da
ocorrência de si como compreensão ordenada por fundamentações do dizer tem um efeito
devastador. Mas Vergangenheit, ou seja, a passagem do passado como ouvinte na
compreensão presente, é capaz de levar o falante em conversação à visão do abismo, ao
vislumbre do infinito após a liquidação de fundamentos rasos demais e tendentes a se
constituírem em absolutos. A Vergangenheit como dinâmica de atração a descobrir-se pelo
ordenamento da reminiscência leva o falante pela mão para levá-lo à situação de retorno,
na qual inicia a visualizar o seu pertencimento ao todo infinitamente maior do que a
totalidade catastrófica, redutora e empedernida, em que enlouquece a sua alma
comprometendo-lhe a essência numa compreensão apequenada. O passado como passagem
presente pode ser lembrança e geração de infinitas formas de compreensão a partir da
riqueza subjacente às palavras propiciando a percepção do todo sempre maior do que as
conceituações discursivas, de qualquer modo inevitáveis e separadas por objetivação
conforme a contradição da linguagem. O gênio em conversação, que percebe a si na
contradição da linguagem, angustia-se na cisão entre um passado presente sempre falante
em termos de objetivação e um passado presente em passagem capaz de reminiscência da
ocorrência que se num infinito abismo suposto, o qual nunca poderá nominar, mas que
ao mesmo tempo o constitui. De qualquer modo em conversação, o nio enquanto falante
não pode deixar de acentuar o discurso presente e pelo qual necessita polemizar. “Mas já
a prostituta o espera”. (GS II-2, 93). A fixação do discurso que assim se institui, apesar da
dinâmica da reminiscência, é a compreensão da história apequenada como positividade a
reger causalmente o presente sempre a ressurgir, é a explicação histórica que se coagula
em forma de sistema numa comunicação cada vez mais mimética; é de novo a história
naturalizada como passado fixo, mas que, qual prostituta, aceita qualquer parceria
interpretativa como dado somente objetivo sem a assunção da ocorrência de si; qual
prostituta é a fixação do passado que sempre se vende pela moeda alienada da
fundamentação garantida por deuses imaginários, que conseguem fazê-la esquecer dos seus
compromissos consigo mesmo. A prostituição pode curiosamente ser a ouvinte como
passado em passagem que se detém na possibilidade de nova construção fixa, ou seja, a
compreensão comprometida com o que compreendeu e, então, definiu num novo
122
engessamento. Ela é a predisposição para novas construções de sentido desde que
positivadas, desbancando sem pejo qualquer rumo da tradição que se queira intocável e
absoluto. Ela é fundamentalmente infiel na aceitação de qualquer positividade, mas ao
mesmo tempo é a companheira inseparável da angústia do gênio.
A prostituta no sentido de si mesmo como passado abre-se, compreende-se e vê a si
mesma como vida vadia e mentirosa, como disfarce, como confusão na relatividade da
abstração teórica que desenha o esquema figurativo e imagético da licenciosidade das
interpretações, sem o peso da assunção da ocorrência de vida em sentido concreto. No
sentido de uma dubiedade comprometedora, o passado (Verganhenheit) desloca-se como
infidelidade de seu positivo ser compreendido para tornar-se relativo, aberto, dúbio,
passado presente somente aleatório, e até como possibilidade de somente crise quanto a
qualquer compreensão positivada, ou somente passividade na aceitação de qualquer
emergência de sentido. tempo em que a prostituta está a esperar, pois se trata da
venda de si, da infidelidade de si, do desmoronamento da vida abotoada, novamente
engessada e administrada por princípios solidamente esclerosados, a respeito dos quais se
desistiu de refletir. Em suma, é a relativização absoluta que como positividade entra pela
porta dos fundos igual a historicismo reducionista. “Pois toda a mulher tem o passado e em
todo o caso nenhum presente”. (GS II-1, 93).
A perspectiva da linguagem garantidora das suas próprias condições de
possibilidade enquanto sentido conservado por determinada organização da tradição tem
características femininas. À diferença da prostituta que tudo aceita numa relativização pela
qual o próprio caos tem as suas possibilidades, mas que tudo não pode conservar, a mulher
em geral é cultora do passado a ser conservado e repassado, da tradição, do entendimento
definido, da compreensão normalizada, pois a situação de dubiedade e indefinição de
sentido não lhe agrada. O presente que a mulher não tem é a consciência da trama da
tradição presente que ao gênio interessa e, à medida que não acontece, permanece sempre a
vigência de algo instituído como significado, o que, por sua vez expressa uma
necessidade inerente à linguagem, ou seja, a fidelidade à cultura tradicional como esteio
para qualquer mudança de rumos de sentido. O presente como repetição por critérios
seguros do passado em forma de cotidiano presente normalizado seduz a mulher-
linguagem como necessidade para a tranqüilidade de pelo menos uma compreensão
possível. O presente como corte intermitente, ruptura e crise aguda constante do
123
esquecimento instaurado não lhe interessa, pois há que ter sempre em qualquer processo de
origem o viés do ordenamento construtivo, pelo qual algo se sedimenta em repetição a fim
de que o próprio sentido na linguagem seja possível. A fidelidade da mulher a qualquer
projeto posto por inauguração, sem, portanto, a volubilidade da prostituta, espelha o
sentido fixo da linguagem configurada em discurso sempre necessário como parte da
contradição da linguagem, pois permanecer sempre flutuando sem ritmo algum sobre o
abismo feito de fundamentação sem fim e sem fundo de um lado, e de outro, da
compreensão enquanto ocorrência de si no suposto de uma totalidade inominável, não é
possível. Um presente capaz de flutuação sem paragens de construção, mesmo que
enganosa ou ilusória, seria como Ulisses navegando somente pelos mares, sem desvio
algum pelas ilhas de descanso e perdição, diretamente de Tróia para Ítaca, o seu lar
definitivo, mas sujeito à constante ira de Netuno. O ritmo feito de navegação ocorrente
com paradas em novas paisagens para o abastecimento de sentido a ser negado ou afirmado
é necessário à constituição da contradição da linguagem, que o não e o sim dela são a
expressão do seu ser em ocorrência de qualquer modo. “Por isso ela guarda o sentido antes
da compreensão, ela impede o abuso das palavras e não permite que dela abusem”. (GS II-
1, 93).
A fixação do sentido seria impossível se não houvesse fidelidade mínima às
palavras em exercício, pois significaria a destruição da linguagem por relatividade absoluta
e por não haver ordem que exigisse o exercício da repetição continuada de sentido
determinado para que possa existir o reconhecimento de ser conforme o logos de Heráclito,
além da necessidade de existir condição de possibilidade de um dizer compreensível para a
percepção de qualquer mudança. No abuso absoluto das palavras não há compreensão, nem
consciência de si. A fixidez de um sentido pelo menos epocal em exercício deve haver para
que inclusive possa haver análise e, além disso, escuta do que, além do mero cotidiano,
possa significar. A escuta das palavras pode acontecer na condição de possibilidade de
haver sentido fixo, mesmo que dogmatizado, hirto, funcionando como cadáver definido e
enclausurado em determinadas situações.
A mulher espelha a linguagem que representa, com sua fidelidade, o equilíbrio
entre o precipício abissal entrevisto por Anaximandro, em que recorrência alguma é
possível, e o logos de Heráclito, ordenador na repetição de mundos favorecendo a
compreensão da recordação.
124
Impedir o abuso das palavras é confiar no sentido de alguma forma fixo como
condição de possibilidade para que a própria percepção de ocorrência seja possível, isto é,
para que não se institua o delírio fora de qualquer órbita de um canto de sereias que
silenciaram à passagem do esperto Ulisses, conforme o relato de Benjamin sobre Kafka
(GS II-2, 415). A mulher, como representante da perspectiva central da linguagem, mesmo
em qualquer inovação possibilita a ligação do falante em palavras costumeiras com a
novidade do ainda não dito. Ela é o repositório do possível na conservação, manutenção e
lembrança da totalidade do passado, mas também da indefinição sempre possível e à
espreita de nova construção em fidelidade. Ela traz em si a lembrança do possível como as
mulheres no Processo de Kafka, as quais espiam e observam o julgamento e a execução,
isto é, são testemunhas da possibilidade existente de todo o passado que foi e que nelas se
conserva à espreita de oportunidade de surgimento de nova construção. São também como
as mulheres, criaturas hetáiricas de Kafka, (GS II-2, 428) que lembram o início da vida da
humanidade nos pântanos do passado mais remoto. Enquanto a prostituta é descrente por
relativizar qualquer construção, a personagem da mulher representa a decisão por uma
delas e a seqüente fidelidade necessária para que haja sobrevivência. “Ela cuida do tesouro
do cotidiano, mas também de todas as noites, o bem maior”. (GS II-1, 93).
O tesouro do cotidiano é o instituído que precisamente lembra as possibilidades das
noites do passado presente, o bem maior, do ainda sono e sonho que podem ser recordados.
Sem a oração atenta e reflexiva do gênio, o cotidiano permaneceria força morta, mas
com o seu concurso, tendo-o ao mesmo tempo como seu âmbito e objeto, é a própria
possibilidade do encontro com os tesouros nele resguardados. A mulher, portanto, traz
consigo a riqueza da tradição presente no cotidiano que é condição de possibilidade de toda
a riqueza da criatividade posterior. Mas inversamente, a noite angustiada do gênio em
desnorteio pode ser amenizada pela lembrança presente do sentido fixamente guardado nas
palavras em uso e que lhe são a condição de pensar, pois se as palavras possibilitam o
deslocamento do sentido, também são elas que estão a viabilizar qualquer desvio
semântico como se fosse o próprio veículo que de modo seguro carrega o perplexo
desviando-o da perdição total na mais escura noite da loucura. A linguagem assim é como
a mulher que na firmeza do sentido em uso fixo torna mais amenas as noites da
perplexidade, do desnorteio e da ruptura possível. É por isso que também cuida e
possibilita o bem maior que são todas as noites.
125
Todo o gesto do cotidiano da linguagem em funcionamento e constituído em objeto
de atenção pode ser compreendido como referência ao ancestral, uma vez, como a
normalidade instituída enquanto respeitabilidade e justificada sobrevida, e, outra, enquanto
possível revelação de motivos presentes, mas por enquanto ocultos pelo mistério da sua
transparência.
“Por isso a prostituta é a ouvinte”. (GS II-1, 93). O lado da prostituição da
linguagem, como visto, é a escuta de si mesmo na tentativa de programaticamente por
em suspenso qualquer organização compreensiva inaugurando sucessivamente
fundamentações descobertas e com elas convivendo de modo relativista. Trata-se da
possibilidade da mesma linguagem esquecer a fidelidade da sua ocorrência em sentido
sempre fixo e se esvair na atividade da sua dissolução acompanhando aleatoriamente
qualquer proposta de construção. A prostituta é ouvinte exatamente por ser infiel ao
estabelecido e notícia de um mundo de possibilidades. É ouvinte, porque ouvidos às
vozes da análise e porque não é obediente ao cotidiano organizado muitas vezes ao modo
do disfarce. Ela ouvidos a novas fantasias construtivas de rumos culturais e atravessa o
sentido consagrado à tradição e conservação familiar. É mercadoria corporal que aceita
mudança de preço, ou, pelo menos, trata disso. Mas, talvez o mais importante seja o caráter
sugerido pela própria palavra prostituta: a banalização e o deboche do disfarce cotidiano
que ela representa; ela até indica o não cotidiano, bem como o desprezo e o ataque a ele, o
contraponto em que o próprio cotidiano pode tomar consciência de si, ou seja, o certo, o
correto, o respeitável e ao sagrado é desocultado em sua banalidade e em seu disfarce.
Tem-se no seu olhar escutante e perscrutador o afastamento necessário para a análise do
que se é no cotidiano. Assim, “Ela resguarda a conversa de pequenez, e dela a grandeza
nada reivindica, pois diante dela a grandeza termina”. (GS II-1, 93). A linguagem nessas
condições abre-se abandonando a pequenez suposta do cotidiano para todas as suas
possibilidades de sentido a ponto de constituir uma grandeza a caótica. A grandeza
enquanto sentido possível na atividade da conversação nada reivindica da prostituta pelo
fato de ela mesma significar a relativização por simples aceitação de todas as construções
significativas edificadas pela linguagem. Por isso, qualquer possível deslocamento
semântico em direção ao aproveitamento da grandeza de um sentido possível na
conversação para além do cotidiano termina por ter que relativizar significados fixos
prostituindo de qualquer maneira o ordenamento da compreensão rotineira.
126
“Toda a virilidade diante dela se extinguiu, agora se derrama uma torrente de
palavras em suas noites”. (GS I-1, 93). Qualquer tipo de construção significativa consegue
ter o seu lugar ao sol pelas possibilidades relativizantes de sentido da linguagem. Ela aceita
aplicações narcísicas variáveis de critérios postos, como também inseminações do gênio
que está em fase de implementação artística do que escutou em tempos de atenção à
rotina da vida que traz o ancestral em seu bojo. A prostituta que se torna volúvel aceitação
efetiva e passiva de qualquer narrativa histórica de cunho historicista, sempre escuta a fim
de sempre em seqüência fixar-se em qualquer tipo de transparência conceitual, que,
inversamente, se torna a obscuridade do esquecimento mais completo aspecto caótico que
expressa, ou seja, é a linguagem em delírio: “Agora se derrama uma torrente de palavras
em suas noites.(GS-1, 93).
“O eterno passado presente novamente será”. (GS II-1, 93) De qualquer modo se
confirma a suposição de um passado (Vergangenheit) eternamente presente como
acontecer às margens da oficialidade compreensiva em repetição somente comunicativa,
ou, um presente eternamente sido que se descobre por auto-nomeação, portanto, por
auto-referência. Caso não acontecer a sua visão e escuta, a alma do falante permanece
presa do passado apequenado que é também um presente em compreensão apequenada,
sem grandeza, sem nomeação, sem volta a si, um presente em continuidade de queda e
somente sobre-nomeação na construção de uma catastrófica Babel. Isso significa também
que o todo entrevisto nunca pode ser a totalidade compreensiva completamente suposta,
obrigando à continuidade da descrição expressiva ou nomeação dos fenômenos que surgem
pela boca do gênio em forma dos movimentos culturais, que, por sua vez, são escutados e
avaliados na intenção da perspectiva ou da prostituição da linguagem em que tudo vale de
modo relativista, ou na perspectiva de uma tradição determinada. Aí até os sistemas
filosóficos, como também a própria filosofia é fenômeno entre outros como, por exemplo,
o Surrealismo, o Comunismo, o movimento Dadá e o Romantismo.
No limite pode dizer-se que o eterno passado presente novamente será como
dimensão do futuro que nele está inscrito como infinita possibilidade de emergência à
compreensão. O que se poderia querer mais do que o infinito absoluto, sempre suposto em
cada volteio do cotidiano? A linguagem sempre dele fará parte assinalando algo como algo
e ao mesmo tempo sendo assim a sua compreensão expressiva ocorrente, que de forma
alguma e em momento algum pode ser prescindindo da sua suposição como condição de
127
sua própria possibilidade. A compreensão é, portanto, necessariamente peregrina em sua
discursividade na linguagem que se dá por conversação.
Por isso, “A outra conversação do silêncio é gozo” (GS II-1, 93), isto é, talvez a
fruição estética da beleza, a rigidez absoluta da morte e os instantes do gozo sexual,
situações em que uma passagem para a suspensão abrupta de qualquer possibilidade de
compreensão, como se o silêncio dela resumisse a suposição de infinito num momento só:
as luzes apagam-se num curto circuito quando a compreensão quer abarcar em
perplexidade o seu próprio suposto num gesto impossível. O suposto de se dizer na
compreensão itinerante sempre será suposto como a priori absoluto e o indizível dito será
apenas uma pálida referência a uma totalidade inaugurada que supõe o que nunca poderá
dizer em seu processo de emergência localizado. O verdadeiro futuro busca a si mesmo nas
brumas de um passado em que sempre está inscrito e a compreensão de agora voltada
aos seus supostos é a possibilidade da sua efetividade. O gozo, a morte e a percepção da
beleza são o silêncio de tudo, após o que a compreensão, que pergunta pela luz de si,
também se dá como percepção da sua constante limitação.
A consciência aguda da contradição da linguagem é região extremamente perigosa
em que gozo, desespero e perplexidade se conjugam como se fosse um diálogo, uma
conversação entre o gênio e a meretriz:
O Gênio - Eu venho a ti para descansar em tua companhia.
A Meretriz - Então te senta
O Gênio - Eu quero sentar-me junto a ti - há pouco
eu te toquei, e tenho a impressão de já ter descansado
durante anos.
A Meretriz - Tu me deixas inquieta. Se eu deitasse
ao teu lado não poderia dormir.
O Gênio - Em cada noite há pessoas contigo no
quarto. Tenho a impressão como se eu as tivesse recebido a
todas e elas me tivessem olhado gentilmente e se tivessem
ido.
A Meretriz - Dá-me a tua mão - em tua mão
adormecida eu sinto que tu esqueceste agora todas as tuas
poesias.
O Gênio - Eu penso apenas em minha mãe. Posso
falar-te dela? Ela me gerou. Ela gerou como tu: cem poesias
mortas. Ela não conheceu seus filhos, como tu. Seus filhos
prostituiram-se com pessoas estranhas.
A Meretriz - Como os meus.
O Gênio - Minha mãe sempre me olhou, me
perguntou, escreveu para mim. Nela eu desaprendi todas as
pessoas. Todas se tornaram mãe para mim. Todas as
mulheres me pariram, nenhum homem me gerou.
128
A Meretriz - Assim se lastimam todos os que
dormem comigo. Quando eles comigo olham para dentro da
sua vida, dá-lhes a impressão como se cinza grossa os
sufocasse até o pescoço. Ninguém os gerou e a mim eles vêm
a fim de não gerar.
O gênio – todas as mulheres, para as quais venho,
são como tu. Elas me pariram morto e querem receber coisa
morta de mim. (GS II-1, 94).
O gênio analisante de si, em travessia constante e ao tentar descrever-se nessa
mesma experiência-travessia, percebe a sua inevitável ligação com o passado coletivo
agora presente em que ele mesmo deixa o seu próprio rastro. Ele percebe que qualquer
compreensão que trouxer à luz, ou lhe suceder, é instauração compreensiva
comprometida com materiais oriundos de todo o passado e à disposição no presente, isto é,
a mãe tradição é a própria condição de possibilidade de o gênio expressar-se em
compreensão e ser precisamente assim. E ao ser decidido por uma compreensão
sistematizada por explicação construtiva, tais crianças, ou seja, constructos nascem mortos
por imediato processo de sedimentação positivada, sistematização compreensiva e
esquecimento de sua ocorrência alegórica e metafórica.
A prostituta como tradição morta por repetição em um cotidiano vasto e
transparente ao senso comum aceita e incorpora as mais diferentes excentricidades. Não
sabe de si enquanto tradição presente em situação de intermitente decisão, imaginando-se
naturalizada, sistematizada, com progressividade programada de acordo com o mesmo
senso comum, este convicto de seu acerto por cultuar a cientificidade absoluta em que os
fregueses da inovação são esperados e aceitos como mera novidade. Por isso a prostituta é
sempre também a ouvinte, é agente da novidade mercadológica, consumista do que vier a
se apresentar numa posição relativista radical. Mas essa prostituta é esperta porque sabe de
si: sabe do não que o sistema significa para todas as outras possibilidades que não foram
implementadas, pois o sistema compreensivo dogmaticamente oficializado mata muitas
crianças na periferia do seu âmbito. A prostituta generalizante e relativista é o seu sintoma:
é contraponto enquanto positivação possível. Por isso, o gênio na contradição da
linguagem confessa: “Eu penso apenas em minha mãe. Posso falar-te dela? Ela me gerou.
Ela gerou como tu: cem poesias mortas. Ela não conheceu seus filhos, como tu. Seus filhos
prostituíram-se com pessoas estranhas”. (Idem, 94).
O gênio pode falar de sua mãe como tradição presente na linguagem e
responsável pela luz da sua compreensão ocorrente quando supõe também a ocorrência no
129
esquecimento da sua positivação. Na escuta atenciosa como forma de oração, o gênio está
entre o receber o presente das intuições da criatividade de que se conta em sua própria
compreensão, das quais não pode indicar a procedência diretamente na linguagem, e, de
acordo com a contradição da linguagem, a inevitabilidade da positivação das suas criações,
das quais é obrigado a dizer que são suas e sobre elas ter a experiência de que muitas jazem
no chão simplesmente liquidadas: Cem crianças mortas. Ambos, gênio e prostituta são o
diálogo na suposição de interno e externo, pela qual a experiência se processa. O gênio na
contradição da linguagem intui a dádiva da compreensão em todo o cotidiano e se dispõe a
receber as reivindicações do passado presente. Por outro lado, o seu processamento em
positividade de tudo o que surge para ser construído fixamente para a repetição é a
meretriz (Dirne).
A Dirne, portanto, trata da temporalização, da possibilidade de história construída
enquanto significado fixo, o ser automatizado em semelhança mimética. Por que Dirne
(meretriz)? Mais uma vez, pelo fato de a narrativa em termos de Era uma vez sempre estar
ao dispor de qualquer que queira repetir qualquer compreensão que surja, de ser
exatamente a possibilidade da mimese em automatismo, de expressar o fator responsável
pela instituição do resultado tradicional que somos e que repetimos em constante auto-
instituição sem a intuição da dádiva, mas que ao mesmo tempo é sempre material de
possível recordação, des-esquecer, ou desvelamento.
O gênio é responsável pela interrupção, ou ele é ela mesma, o fundante, o
originário, Ursprung, e, por isso, descansa com a prostituta que tudo aceita, ou seja,
qualquer coisa que se apresente como possibilidade de positivação fixa e capaz de
repetição.
De acordo com a citação, o gênio vai à prostituta para descansar, pois na sua
condição não há descanso possível pelo fato de sua compreensão estar ativada num retorno
para si, num se volver à consciência de toda a compreensão objetivada em andamento
em si para que seja admirada, nomeada e precisamente inaugurada como possibilidade de
futuro: não tem onde reclinar a cabeça. O gênio senta-se para conversar, toca a prostituta e
se sente como se estivesse descansando muitos anos, como se tudo o que o tivesse
angustiado, o que tivesse compreendido e nomeado criativamente fosse a prova do seu
sono de positivação constante, o rastro de um sonho que agora termina quando também
percebe e leva em conta a inevitável compreensão da necessidade de positivação na
130
linguagem. Tanto é assim que, na conversação entre as duas perspectivas da contradição da
linguagem, a prostituta primeiramente diz que se deitasse com o gênio não poderia dormir,
isto é, se simplesmente fosse cooptada a assumir também o outro lado da linguagem não
haveria qualquer positivação e, com isso, qualquer possibilidade de compreensão
organizada. A inquietação da voragem que o retorno insistente do gênio representa
simplesmente destruiria até a existência provisória de uma compreensão prudente em sua
recepção de sentido.
Cada positivação pela qual se faz a noite aquartelada do esquecimento merece a
atenção receptiva por parte do gênio para que o olhar significativo dela seja visto antes de
ir-se esvanecendo em novo significado. No encontro com a tradição o gênio recebe como
dádiva a compreensão positivada das pessoas, pois delas depende para a leitura de novos
atalhos em direção ao caminho de retorno para onde se volta a sua atenção.
A prostituta pede a mão obreira do gênio e na qual então sente agora a dormência
para o pôr da poesia, para a instauração do novo e nomeável nos caminhos de retorno. Gib
mir deine Hand (Dá-me a tua mão): pegando em sua mão obreira faz o gênio esquecer-se
da sua itinerância poética, pois é a mão que figura o pôr do que é possível ser poetizado. É
como se a prostituta indicasse que agora é tempo de narrativa de tradução do que foi posto
para que a própria tradição possa ser constituída no tempo de compreensão determinada,
organizada e construtiva para a continuidade de si. Precisamente por isso o gênio recorda-
se da sua mãe, a totalidade da tradição virtualmente presente na linguagem.
A tradição viva e em processo de recordação constante no gênio como uma das suas
características é a própria possibilidade, a fonte, o nascedouro de que tudo provém. Ele
recebe notícias dela em seu próprio pensar e naquilo que compreende das outras pessoas.
Quem poderia deixar de ser um índice dela, pois todas as pessoas o são mesmo na assim
considerada menor participação no sistema comunicativo a perfazer a compreensão epocal
coletiva. A quem contará sobre a sua mãe? A narrativa acontece pela linguagem como
uma de suas expressões nas formas de positivação na compreensão fixa por parâmetros
epocais.
A mãe tradição e a prostituta da positividade do Era uma vez se entrecruzam na
contradição da linguagem. Trata-se de outra versão da situação de queda relatada no
Gênesis. Ambas, a mãe e a prostituta geram filhos: cem poesias mortas. A mãe não
conheceu os seus filhos, pois ou são positivados e dela se esqueceram, ou são por ela
131
mesma destruídos em favor de nova significação que surge de seu seio. Também a
prostituta não conhece os seus filhos, pois sempre muda em nova positivação. Os filhos de
ambas prostituem-se constantemente: não podem permanecer na consciência da tradição,
nem permanecer com a prostituta que sempre outros gera em detrimento dos anteriores
numa positivação sem fim.
Como filho de toda a tradição da humanidade, como filho do homem, o gênio
compreende que tanto ele mesmo, como todos os outros, é a ocorrência do encontro no
seio da tradição, ou seja, de uma forma ou outra, todos estão como que no colo da grande
mãe, chamada tradição, que sempre falou e fala, manda notícias do acontecimento que ela
mesma é por meio da compreensão efetiva de todos. O gênio a todos vê como seus
representantes, ou como sua expressão a ponto de confundir a mãe tradição com todas as
pessoas que então se tornam como que mãe para ele na escuta em que está, todas as
mulheres o pariram pelos significados daí advindos, recebidos e guardados, e nenhum
homem o gerou, porque tal representação no momento indicaria novamente a intenção da
explicação por meio das categorias de causa e efeito e isso, por sua vez, significaria a volta
à atividade das construções apequenadas com a sua inevitável entronização de um critério
absoluto para fins de proceder a julgamentos determinando o que pode e o que não pode
fazer parte do sistema em crescimento. Deste modo, cada um é como que um resumo, ou
índice do total da tradição em acontecimento. Cada um é fragmento de um todo sempre
suposto, pars pro toto, ou seja, metonímia concreta e atuante da totalidade sempre suposta.
A prostituta explica o lamento de todos os que a ela recorrem como positivação
pelo fato de olharem para dentro das suas vidas, isto é, para todo o passado positivado na
presença de determinada biografia, tendo a impressão de sufocamento, de limitação do ar
da possibilidade de abertura para novo sentido. O significado que se inscreveu como
compreensão de vida afigura-se como destino limitante. O que foi compreendido e dito
mesmo na percepção da ocorrência torna-se escrita e destino sedimentado e, por isso, cada
vez mais difícil de combater. Além do mais também o gênio dorme com a prostituta que é
uma das perspectivas da contradição da linguagem. Quando os homens com ela olham para
a sua vida, ou seja, a partir da sua perspectiva, parece que a cinza do vivido os sufoca e,
então, ninguém os gerou, pois a história parece naturalizada como destino e a grande mãe
tradição que possibilita a compreensão é esquecida. Eles vão à prostituta para não gerar,
ou seja, a sua compreensão é naturalizada e, portanto, esquecem-se da pergunta inicial
132
plena de admiração pela ocorrência da compreensão: O que me acorda todas as manhãs,
onde estás, luz?
Na positivação da queda, da prostituição da linguagem, as cinzas do vivido sobem a
uma altura capaz de tudo sufocar numa sistematização dogmática cerceando toda a
possibilidade de retorno a uma visão mais ampla do que já sempre está suposto, queimando
tudo à volta para liquidar com qualquer oportunidade de continuidade de relação. Tudo o
que com a prostituta for positivado se faz narrativa histórica fixa compreendida e, nessa
positivação prostituída, todos compreendem que ninguém os gerou, pois com ela tudo se
tornou naturalização e os homens à ela vão para cumprir o seu destino automático sem a
consciência da geração que mesmo promovem e são no apoio que dão ao que já aí está.
Ninguém os gerou, porque são e sempre serão as repetições do igual, mas agora
sob a influência do encantamento alienado das explicações pela categoria de causa e efeito,
ou seja, prisioneiros da fala estratégica para fins de convencimento de acordo com alguma
construção teórica em funcionamento, alguma configuração ideológica ordenando todos
os fenômenos de acordo com a linha do tempo e resultando na prostituta Era uma vez
como Benjamin mais tarde dirá na XVI Tese de Sobre o conceito de história (GS I-2, 632).
A idéia da prostituição é a idéia da repetição do que se apresente como sugestão
ordenadora, em parte, porque supõe a necessidade do instinto implantado para
funcionamento automático sem necessidade de reflexão. A prostituição é a
degenerescência, decadência que se expressa pela tranqüilidade da mera inovação a se
tornar costumeira, repetição satisfeita em forma de normalidade instituída seja qual for, o
gozo da repetição nas redes do instinto sedimentado.
Assim como a prostituta é a positivação constante a ponto da relativização de
qualquer sistema, qualquer poesia, qualquer construção que se apresente, toda a mulher é
como ela, mas no sentido de uma decisão sempre tomada, mesmo que provisória, por
pelo menos um discurso que apresente a pretensão da segurança numa paisagem possível e
com horizontes definidos. Juntar os rastros de si para uma significação concreta e coerente
do agora com fins de contar com a construção de um ponto lógico e se viver o tempo
adequado no ritmo do nascer e da morte das coisas é a característica da significação
inscrita no uso imediato da linguagem. Benjamin identifica tal característica com a mulher
em geral. Toda a mulher quer a positivação de um lugar ao sol numa paisagem cujos
horizontes não sejam vítima da insistente destruição criativa, como na perspectiva
133
necessária do gênio, e também não se obscureçam pela instalação da indefinição de uma
infidelidade como que programada e sem possibilidade de aconchego que se paute por
alguma menos regularidade, e ainda, além disso, não imprensem a compreensão entre
limites sufocantemente definidos a ponto de suscitar a claustrofobia para quem neles sofre
por embotamento esquecido das suas possibilidades. Toda a mulher aí aparece como
reconstituidora de paisagens possíveis a exemplo dessa outra perspectiva da linguagem que
inevitavelmente permanece em exercício com sentido definido para que tanto o gênio com
as suas descobertas possa ser, quanto a prostituta na imediatidade da sua positiva
infidelidade a qualquer poesia apresentada. Entre o gênio descobridor e a prostituta da
aceitação da positividade cambiante está a mulher como suposição de exercício e uso da
linguagem sempre acompanhante de qualquer definição ou destruição de sentido.
O gênio sabe que nasce como morte do sentido em uso inscrito nas palavras. O
gênio destrói desconstruindo a normalidade da função das palavras nos edifícios
compreensivos construídos. Mas essa mesma destruição significa precisamente o vir a ser
de um natimorto possibilitado pela linguagem sempre em uso, mesmo nas mais
tresloucadas intuições geniais. A constância do uso das palavras na efetividade do seu
exercício presente, dinâmico e jamais definível por completo é a possibilidade de ser tanto
da genialidade da linguagem quanto da sua prostituição. As palavras morrem na boca do
gênio em constante passagem devido à perda de seu sentido fixo e as próprias palavras
esperam-no em novo sentido, por sua vez fixo também em nova narrativa figurando
compreensão determinada. A genialidade é a morte que se faz presente na passagem de
uma constelação compreensiva a outra e a linguagem em uso efetivo entende-se como um
sentido de antes e um sentido de depois. Assim a linguagem sempre pariu um gênio morto
e sempre espera a sua morte como se tudo fosse a exemplo dos dois lados que sustentam a
ponte. Mas, mesmo assim, as paisagens da vida significativa necessitam da ponte como
passagem flutuante em seus interstícios.
O gênio nesses termos nasce morto, mas é ao mesmo tempo a única instância que
sabe disso: sabe que seu nascimento como ponte depende dos esteios da instituição feitos
instinto cultural, que foi produzido em série pela máquina competentemente repetidora, na
qual a formação do eu na luta travada contra os ancestrais é a luta contra a morte em favor
do nascimento do mesmo eu em outro lugar, desta vez tentando descolar-se da tradição
pelo início de nova construção. A linguagem em uso na figura de todas as mulheres, às
134
quais venho são sempre a paisagem antes e depois da ponte sobre o precipício da morte. É
precisamente por isso que a prostituta diz: “Mas eu sou a mais corajosa para a morte” (GS
II-1, 94).
A prostituta aceita todo o tipo de morte: ela é a expressão da morte, o abandono do
consagrado para o aceite e embarque em qualquer discurso estratégico, inclusive o novo
surgente do gênio, tanto que com ela se põe a dormir. Seria a possibilidade do início de
cada construção, de incessante começo de trabalho de empurrar a pedra morro acima como
Sísifo, a infidelidade que se traduz na facilidade de se convencer para o esforço de sempre
nova construção.
O elemento feminino-construtivo de apoio na empreitada parece-se com a força de
atração divina a recolher a sua própria luz em ntaros sempre prestes a se quebrarem no
esforço de seleção e recolha. A prostituta diz que sempre está disposta à travessia de
qualquer ponte que leve a novas paisagens e, com isso eles, após a conversação, gênio e
prostituta vão dormir, ou seja, de algum modo ambos identificam-se pelo destemor em
aventurar-se sobre as profundezas dos precipícios nas passagens em que fundamentos não
são visíveis. Era uma vez sempre servirá de corpo para a atividade do gênio a vislumbrar
novas significações para a feitura de novas constelações também existentes pelo
exercício expressivo de palavras em uso na simultaneidade da ocorrência da compreensão.
No uso inevitável da linguagem em exercício -se a possibilidade da escuta do
gênio e das elocuções sempre positivadas da prostituta: “A mulher cuida das conversações”
(GS II-1, 94). Ela concebe possibilitando a morte anunciada pelo gênio, ou seja, o silêncio
ouvinte e criador inscrito em seu ritmo, e a meretriz (Dirne) que em sua infidelidade recebe
qualquer proposta provinda do baú do passado presente para a execução, isto é, o criador
do sido em exibição prostituída numa compreensão de si que é esquecida e
sistematizada. Portanto, a conversação mesmo entre as perspectivas da contradição da
linguagem se dá pelo cuidado dela mesma enquanto linguagem em não se perder no
imponderável da mudança do seu sentido, seja pela criação constante, seja pela
infidelidade de imposições de sentido em relativizações sucessivas.
O que em silêncio se gesta a mulher recebe em silêncio aderindo, cooperando e
apoiando. O elemento feminino simboliza a necessidade de desenvolvimento prático e
continuidade em uso da instauração efetiva do sentido surgido. O que surgiu à luz do sol
enquanto sentido deverá ser de alguma forma velado, cuidado e desenvolvido, mantido na
135
duração para o florescimento no próprio uso da linguagem. Nessa acepção a fidelidade
silenciosa na guarda, educação, alimentação ininterrupta representa a própria condição de
possibilidade da transmissão do surgido, produzido, inventado, ou seja, da totalidade da
tradição. Toda a linguagem tem como parcela maior esse elemento feminino
necessariamente conservador da concepção e do descortino surgidos. Ela recebe o fruto do
silêncio no calar-se do sentido das suas palavras e com elas o acalanta, como se delas fosse
objetivamente separado assistindo ao seu desenvolvimento nas repetições
convencionalmente estabelecidas. Mas essa característica pode transverter-se em outra, ou
melhor, significar uma faceta a mais desse mesmo desenvolvimento: A prostituta infiel.
Ela é feminina, infiel, mas curiosamente fiel ao elemento feminino de outro modo. Pois,
quem sempre recebe a nova direção a ser instituída? Quem abriga, por pouco tempo que
seja, o novo sentido a ser consagrado por repetições interpretativas? Quem acalanta a nova
espécie de criança a ser desenvolvida a não ser a infiel-fiel ao receber o criador do sido
na forma do gênio? O criador do sido é o personagem que rearticula, renova,
revoluciona re-agrupa significativamente o que foi e que está virtualmente presente
enquanto possibilidade no presente. O gênio escava por baixo da tumba das instituições em
decomposição e encontra tesouros que ofuscam a tristeza melancólica das repetições, isto
é, encontra os fundamentos do instituído que tem sempre a possibilidade de abrigar pelo
menos a memória da totalidade epocal do sentido em processo e são, por isso, a fonte
maior de que podem jorrar novos sentidos em novos tempos. Devem eles então merecer a
escuta das infiéis para que o próprio passado possa presentar-se renascendo no agora, um
agora fruto do processo de libertação de instituições automatizadas, naturalizadas,
banalizadas, desumanizadas. O sido é recebido enquanto criação em forma de nova
compreensão e modifica o cotidiano instalado em seu fluxo de repetições tranqüilas,
domesticado e esquecido da instituição. A lembrança criativa re-institui instaurando o
sido. Todo o novo é instituição em forma de lembrança do sido, que a criação é feita
de materiais do passado presente oculto na instituição geral presente.
Às das dimensões da linguagem que são as do gênio criador, da prostituta relativista
e da mulher mantenedora agrega-se uma quarta perspectiva que é a do “lamento quando
homens falam e que ninguém vigia” (GS II-1, 94).
A mulher cuida das conversas. Ela recebe o
silenciar e a prostituta recebe o criador do sido. Mas
ninguém vigia o lamento quando homens conversam. A sua
conversação torna-se desespero, ela ecoa no recinto surdo e
136
blasfemando ela se alça à grandeza. Dois homens juntos
sempre são revoltosos, por fim recorrem a ferro e fogo. Eles
destroem a mulher pela obscenidade, o paradoxo estupra a
grandeza. As palavras de sexos semelhantes reúnem-se e se
excitam pela secreta simpatia, surge uma ambigüidade sem
alma, mal encoberta pela dialética cruel. A revelação está
risonha diante deles e os força ao silêncio. A obscenidade
vence, o mundo era construído de palavras.
Agora eles precisam erguer-se e assassinar os seus
livros e raptar uma fêmea, pois do contrário irão enforcar
secretamente as suas almas (GS II-1, 94-95).
Quando os homens conversam instala-se o lamento, pois a linguagem interpretativa
que se desvia e afasta da repetição automatizada é lamento, crise, revolta, pergunta,
suspeita e, precisamente assim, possibilidade de criação do novo. Primeiramente é
insatisfação com a situação interna e externa que mesmo são enquanto instalados, a qual se
expressa como linguagem-lamento. A linguagem descritiva e interpretativa da sua própria
compreensão é constante afastamento e lamento de si, que, o que é, é linguagem em
processo e percurso de mutação.
De onde a insatisfação, a pergunta, a crise e o lamento que leva à tentativa de nova
construção e à necessidade de adesão, de infidelidade e de fidelidade do elemento feminino
perito na arte do desvelo em relação ao velho novo que surge? De onde no homem a
irrupção do gênio com o seu ímpeto de reformulação e rearticulação das regras da
compreensão estabelecida para a implantação de sentidos de passado diferenciados? A
grande mãe tradição na linguagem não consente nenhuma guarda, não segurança, não
há possibilidade de previsão, não há jeito de administração regular da irrupção do novo que
sempre significa nova vida debaixo do sol, mas sempre imprevisível em seu surgimento
como, aliás, a força messiânica que, conforme o Fragmento teológico político, não permite
a construção da teocracia. Messias é força contrária pela compreensão iluminada do
retorno, o surgir do inseto kafkiano da Metamorfose pela visão aguda das circunstâncias e
da percepção do sentido da liberdade kantiana como instauração abrupta de nova seqüência
na maquinaria das produções do entendimento, liberdade sem possibilidade de processo
adaptativo regulamentado socialmente, ou seja, simples interrupção da fluência
ininterrupta esperançosa dos valores em busca de felicidade enquanto dor do ausente.
A linguagem em mutação é lamento e evolui para o desespero que ecoa como
catástrofe frente ou diante de ouvidos moucos: ninguém escuta, ninguém compreende a
intrepidez de afrontar o que já é em curso de compreensão normal. Não espaço no
137
recinto da compreensão estabelecida para aquilo que intenta liquidar o próprio espaço,
agora surdo para a linguagem não convencional. Quem poderia organizar o não
convencional? “A sua conversação torna-se desespero, ela ecoa no recinto surdo e
blasfemando ela se alça à grandeza” (GS II-1, 94). De algum modo a própria linguagem se
contorce rebelando-se contra o estatuto da sua naturalização na mera comunicação de
objetividade instalada e maquinal, e contra, então, a escravidão que impede o afastamento
de horizontes viciados e a travessia para novos ares: “Mas ninguém vigia quando homens
conversam”.(GS II-1, 94). São épocas de mutação e de desespero em que a linguagem se
alça à sua grandeza possível, ao repertório insuspeitado da pletora do sentido a se descobrir
como contorção na compreensão do cotidiano. É evidente, então, que a blasfêmia, com seu
hálito perigoso, bafeja a boa consciência instalada nos processos repetitivos.
Pretender alçar-se à grandeza, por outro lado, é querer alçar vôo na pretensão de se
despoluir das catástrofes em andamento em que se está comprometido: voar para se
perceber a si mesmo no vôo em andamento, o que é impossível. Visibilidade total de si
não há, pois ela sempre estará comprometida com a condição de possibilidade da
compreensão que é o que desde sempre em totalidade foi instaurado para qualquer
possibilidade passada ou futura. O anjo encalacrado e apavorado da IX Tese de Sobre o
conceito de história (GS I-2, 697) é também um anjo perplexo que, pelo peso da poluição
feita do que ele como tradição esclerosada e que lhe serve de condição de possibilidade
da compreensão que tem e que o afeta, não consegue alçar o seu vôo a alturas em que a
contradição da linguagem não se exerça. O desespero traz a revolta, podendo finalizar com
a utilização do fogo e do ferro em encrenca geral e guerra programada.
O choque dialético emerge firmando posições contrárias e profundamente
contrariadas a ponto de “recorrerem a ferro e fogo” para impor-se como simples
descoberta. “Dois homens juntos sempre são revoltosos....”. “Eles destroem a mulher pela
obscenidade...”. As novas noções que se agregam para a formação de nova configuração
compreensiva são levadas a se impor pelo descarte das antigas por meio do vilipêndio
obsceno do que exatamente as possibilita na situação de contraponto. As acusações que se
sucedem são dirigidas de parte a parte à unidade entre conteúdo assumido como objetivo e
o acontecer da sua defesa de existência como sentido, de modo que “o paradoxo estupra a
grandeza”, isto é, a revelação do novo aí se possibilita até no esforço alienado da firmação
das posições em contraponto, mas sem, portanto, o acompanhamento compreensivo do
138
deslocamento de horizontes. O próprio paradoxo da linguagem transfigura-se como local
da emergência de compreensões em revelação confundindo indicações objetivas de
conteúdo com a percepção do seu acontecer. São “as palavras de sexos semelhantes” que
se reúnem e se acirram em excitação “numa secreta simpatia” exercitando o mesmo que na
atividade do outro condena. É a linguagem em uso na construção guerreira na defesa de
fundamentos assumidos. A linguagem se imbui da intenção de se tornar eficiente em
efeito formal no convencimento para a aceitação de um conteúdo como se ele fosse
objetiva e absolutamente separado, a exemplo da discussão sofística retórica da estratégia
política, da missão para conversão dos que ainda não aderiram, da propaganda eficiente
para o consumo e o lucro, na programada defesa ou acusação jurídica e em toda
programática pedagógica do sistema educacional esquecida da reflexão sobre si.
A alma humana, definida pelo cuidado e pela criatividade constantes na linguagem,
embate-se em ambigüidades semânticas entre esquecimento e vaga recordação, e se
percebe em dialética cruel entre a duração pela guarda do sentido e a sua efetiva nova e
diferenciada emergência. Todos os percursos de travessia acarretam sofrimentos pela crise
de se assumir e tomar posse do novo espaço no deslocamento de compreensão.
Possibilidades de objetividades e subjetividades tornam-se fantasmas nas noites e nos
clarões de percurso em que qualquer norte não se sabe ou parcamente se adivinha. É a
expulsão constante para fora do falso paraíso da definição alocada como imagem
verdadeira e absoluta em direção à precariedade da peregrinação em busca de nova terra e
formação de pátria. É povo geral no deserto a sofrer os percalços inerentes e necessários à
pedagogia de sua formação. Mas é também a possibilidade de se ouvir, entre o alarido
desesperante, guerreiro e cego pela noite escura ou pela luz ofuscante em torno, o
murmúrio da fonte da revelação que tudo isso significa.
Nos percalços da contradição da linguagem surge o novo que poderia ser ouvido e
recebido pelo instituído apoiado num determinado uso. O novo para si exige em deboche o
aviltamento desse mesmo uso, a prostituição da mulher fiel ao estatuído em mutação. Pela
destruição da guarda feminina por meio de ridicularização e obscenidade o novo tem a
possibilidade de vir à luz da regulamentação cotidiana. Ou seja, não vôo para além das
possibilidades da linguagem. O novo velho em seu retorno consegue introduzir-se por
rupturas no ataque à inércia da força histórica por meio de embates gerais no seio da
linguagem. A interrupção que o novo representa em seu ataque obsceno à instituição
139
estabelecida e estabilizada instaura um jogo de forças historicamente ativas enquanto nova
configuração compreensiva. A grandeza de uma recepção calma e tranqüila é difícil de
ocorrer entre os que estão embalados pela velocidade do estabelecido. O canto dos anjos de
um nascimento inovador só os simples pastores nos limites dos campos e os demais
despossuídos das regalias do sistema geral de compreensão podem ouvir. A recepção
compreensiva para a construção organizada do novo é uma quimera que a totalidade epocal
consegue ouvir e apreciar como a sua própria decomposição. O homem que lamenta o
instituído que é em linguagem, desgraça a mulher instituição e se torna amante infiel da
infidelidade. As forças compreensivas historicamente agora agentes estupram a grandeza
de um encontro receptivo possível. Em meio ao embate comprometido e profano do
sentido a fundar a história e o tempo em construção da felicidade, o nascimento do sentido
em revelação impõe-se como dinâmica de interrupção forçando ao silêncio da escuta.
“Risonha a revelação está diante deles e os força ao silêncio”. (GS II-1, 94)
Uma “ambigüidade sem alma” surge porque tal “dialética cruel” escamoteia a
beleza de uma conversação possível em escuta mútua para a escavação dos fundamentos
das posições em jogo num retorno que fizesse ver a precariedade das justificações em
guerra de sentido. Na ambigüidade sem alma, uma parte acusa a outra de defesa de
posições meramente interesseiras, ou erradas, ou mal intencionadas num processo até
risível a ponto de poderem perceber a revelação diante de si, o caminho andado e os rastros
feitos e recolhidos no riso dos resultados presentes. Então que fazer silêncio frente ao
que a linguagem em contorção pedagogicamente deu a entender. O que a linguagem ensina
é que até o seu uso guerreiro e obsceno na confusão excitada da contradição da linguagem
obriga à compreensão de que “a obscenidade vence, o mundo era construído de palavras”.
Quem vence é a derrocada da tradição segura e costumeira na mão e na guarda da mulher.
A transformação pelo deboche sobre o construído e guardado como sagrado e naturalizado
durante gerações é acontecimento destrutivo e violento, feito de criatividade e imposição,
na maioria das vezes sem a percepção de sua relação com a justificação e a fundamentação
que em novo patamar o estabelece na continuidade da contradição da linguagem. A
obscenidade a vencer é a sugestão de mudança agora efetivada, outro rumo possível pelos
sentidos em embate e a interrupção da revelação audível no silêncio da escuta. Nisso é
possível perceber que o mundo era feito de palavras, de compreensão esquecida de que o
fosse e alienada na configuração das objetividades e subjetividades. A expulsão do paraíso
continua. A obscenidade é visível e surge a vergonha do que se na visão em retorno:
140
rastro, história, Babel, catástrofes gerais. E não se sabia, poder-se-ia acrescentar. O mundo
era construído de sentido, de compreensão de si e não de circunstâncias externas e
inexoráveis como destino. A obscenidade que vence é a que os homens são e que eles
fazem vencer: é seu novo auto-julgamento pela sua auto-afirmação com o
acompanhamento das possibilidades da linguagem em novo uso e em nova fidelidade para
que haja compreensão. “Agora eles precisam levantar e assassinar os seus livros e raptar
uma fêmea, pois do contrário irão enforcar secretamente as suas almas”.(GS II-1, 95).
É o que precisa ser feito por ser o único a fazer: mudar todas a versões existentes e
fixadas na escrita, incrementar a nova versão, decidir-se à construção das novas
instituições e trabalhar e zelar pela reprodução. O rapto de fêmeas como metáfora da
possibilidade de introdução e implantação do sentido acentua que o mundo é feito de
palavras e que fora do sentido e das palavras o mundo humano. que construir
levantando bem alto a bandeira da decisão. Enforcar a sua alma equivaleria à loucura da
falta de decisão na incompreensão total sem o aporte de qualquer linguagem em uso, um
onanismo teórico incapaz de promover a frutificação da linguagem em qualquer paisagem
compreensiva, uma guarda secreta por ocultação e negação de extroverter a sua paixão
surgida precisamente na revelação da monotonia dos dias. Assim, o silêncio da escuta que
possibilita a revelação somente pode ser identificado enquanto extroversão quando deságua
como fonte visível no prazer do encontro na conversação ou na altercação guerreira, mas
ambas responsáveis pela inseminação na guarda, no anelo e no desenvolvimento do novo
sentido do mundo em que se juntam as palavras para a formação da circunscrição da nova
constelação fundamental.
Benjamin menciona a poetisa Safo de Lesbos como falante e pergunta como falava
com as suas amigas. “Como falavam Safo e suas amigas? Como veio a ser que mulheres
falassem? Pois a linguagem as torna sem vida. As mulheres não recebem dela nenhum som
e nenhuma libertação” (Idem, 95). A questão que coloca é a de que Safo é mulher, mas é
também genial poetisa cuja lembrança permanece por todos os séculos, ou seja, fala na
consciência da contradição da linguagem sabendo do retorno da fala sobre si mesma na
auscultação do que consigo traz desde as características de todo o sentido possível inscrito
no total da tradição, em seu reducionismo epocal em configuração transitória, em suas
possibilidades guerreiras na dialética cruel, em sua atividade de uso na feminilidade da
espera, da recepção, do desenvolvimento e da conservação do antigo para o nascimento do
141
novo sentido na emergência genial, até a inevitável e, por isso, sempre presente ficção de
objetividade absolutamente fundamentada para a compreensão possível. Por isso tudo, a
poetisa Safo é escrita poética presente que na conversação ainda é capaz de ruptura pela
dinâmica do retorno que impõe como acontecimento.
A linguagem em seu uso como que apenas ainda à disposição da manipulação das
objetividades do dia a dia então não se consuma em sua plenitude, pois permanece somente
como atividade comunicativa de acordo com os critérios de julgamento subjacentes. Do
mesmo modo, mesmo que plena de possibilidade de reconstituição do esquecido sentido
dos milênios, toda a escrita necessita da reativação vibrante da escuta e do direcionamento
objetivo que se lhe dá. Sem a angústia da contradição da linguagem com todos os seus
percalços a escrita é muda e estéril, não chegando a constituir objetividade e nem
emergência do sentido de si como linguagem plena. E a escrita da qual aqui se trata não é
a dos livros, mas a escrita fixada como compreensão ocorrente na fala da mulher no
cotidiano que Benjamin utiliza como analogia. A verdade do acontecer e a verdade da
ficção objetiva por fundamentos, o que perfaz a contradição e a angústia do gênio, não
conseguem separar-se para qualquer feitura de linguagem plena em que tais condições de
possibilidade em exercício concreto estivessem superadas.
Já sabemos que na caracterização das perspectivas da linguagem “a mulher cuida da
conversação e recebe o silêncio” configurando o acalanto quieto e o ritmo do tempo do que
vem a ser para que a compreensão seja possível e tudo não se perca na demência de
diferenciações infinitas num imediato absoluto. Trata-se da capacidade de manutenção da
linguagem em atividade numa configuração definida de determinada época. A linguagem,
porém, não se completa apenas na manutenção das condições de compreensão normalizada
para a construção de futuro à base de fundamentos postos e aceitos como sugestão de
desenvolvimento e a respeito dos quais na há mais tematização.
A mulher, então, ainda distante de Safo, aparece como representação da
convenção geral em sedimentação histórica de acordo com a qual se implementa a
construção do tempo e da época. A escravidão aos fundamentos agora postos e aceitos
no uso imediato da “linguagem torna-as sem vida”. Elas devem seguir ditames agora
esquecidos e, por isso, desconhecidos e da linguagem “elas não recebem nenhum som e
nenhuma libertação dela (GS II-1, 95), isto é, na atividade construtivista não recebem
nenhuma notícia do passado presente, que estão obrigadas a se direcionar
142
completamente à repetição em forma de futuro e não ao voltar-se para a verificação das
condições de possibilidade que ainda no presente estão a viger. Por isso a tagarelice as
caracteriza: “As palavras esvoaçam sobre as mulheres quando estão juntas, mas o sopro é
pesado e mudo, elas se tornam tagarelas” (GS II-1, 95).
Apesar da tagarelice sobre os assuntos do cotidiano, permanece nas mulheres a
capacidade de escuta e a disposição para a aceitação do novo e ao seu apoio: “O seu
silenciar, porém, reina sobre o seu falar” (GS II-1, 95). Elas não estão de todo
comprometidas com o que está em andamento, pois as suas possibilidades são em número
infinitamente maior do que o acalanto do filho do momento epocal. Elas têm muito mais a
contribuir em termos de aceitação do diferente inscrito na linguagem, pois sabem que o
novo provém precisamente do mais antigo, do hetáirico: “A linguagem não carrega a alma
das mulheres, pois elas nada lhe confiaram; o seu passado nunca está concluído” (GS II-1,
95). Assim, num presente de ruptura compreensiva a inconclusão do passado pode
significar a cada instante a instauração de uma recuperação parcial. O presente sempre está
sujeito à uma recepção compreensiva modificando a percepção acerca do passado que
jamais se conclui. Nessa perspectiva da linguagem nada é estranho à mulher. “Ao seu redor
as palavras dedilham-nas e qualquer habilidade rapidamente lhes responde” (Idem, 95). A
capacidade de adaptação a qualquer nova configuração é inerente à mulher, pois nela todo
o passado está virtualmente presente.
As mulheres agora são o que os homens delas fizeram e isso indica uma analogia
com o processo ambivalente que se também na linguagem. Como a mulher que
continuamente se dispõe ao desvelo do novo para a sua conservação e com isso demonstra
a ancestralidade das suas múltiplas aptidões, assim também a linguagem em cada uma das
suas contorções assinala a ambivalência de no presente inovar novos caminhos de
compreensão dirigindo-se às condições de possibilidade inscritas e descobertas no passado
e atuantes no agora.
A rede que o gênio falante tece a partir da sua angústia criativa e que lhe
proporciona a consciência da mudança de si no retorno à observação e à descrição do vir a
ser a partir do cotidiano é o surgimento da linguagem para a mulher. A linguagem lhe
aparece no gênio falante que com dificuldade e muito cuidado procura cunhar com
palavras o molde da imagem da amada que o silêncio dela inspirou e ela silenciando então
escuta o que é inovação e mudança de ambos na conversação: “Mas apenas no falante lhes
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surge a linguagem, o qual atormentado espreme as palavras, pelas quais ele cunhou o
silêncio da amada” (GS II-1, 95) O falante da conversação é criativo e retratou a amada
criativamente: ele é aceito com a sua novidade feita de deslocamento de sentido. O falante-
gênio nomeia instaurando o já dito e agora lembrado. Sem nomeação em direção ao
passado presente na admiração do já dito e entalhado mesmo na tagarelice de agora, sem a
conclamação da relação temporal ocorrente, sem um retorno ao que sempre era para a
instauração do novo em forma de futuro, as palavras emudecem: “Palavras são mudas”
(GS II-1, 95). Que as palavras sem a sua relação com o suposto que não conseguem indicar
possam ser mudas mostra a própria experiência da contradição da linguagem.
Não como entender a linguagem enquanto apenas demonstrativa e denotativa,
significante de significado, pois a própria denotação e o próprio significado são palavra e
significado que não conseguem jamais escapar da jurisdição que instauram.
A linguagem não é apenas a existência do som organizado de determinado modo. É
certo que o som é sinal, mas também isso é significado sem, portanto, a possibilidade de se
alçar ao nada, ao ponto zero do sentido, para de promover indicações absolutas. Cada
uma das palavras é um significado para dizer e articular outra, tanto que não há palavra que
exista sem apoio de outra para ser significado instituído em termos de compreensão.
Temos palavras a explicar outras, e tais outras a perfazerem a compreensão das primeiras.
Uma palavra como significante a apontar uma sensação, um conjunto de sensações a
denotar coisa qualquer que seja, é palavra significante, porque o fato-coisa está a
supor significados anteriores que estão em correspondência com a primeira palavra
como significante. Ou seja, qualquer coisa só pode ser mencionada pelo significante com o
significado, porque a coisa, qualquer que seja, é significado suposto. Assim, qualquer
palavra significante sempre se como exercício de leitura interpretativa de significante-
significado dado. O emergir de um sentido não pode ser explicado a não ser por outra
explicação numa seqüência sem fim, e o outro modo de concebe-lo é a figura cunhada pelo
Romantismo, que é a da subitaneidade do relâmpago. Só resta a constatação atenta na
ocorrência de si em compreensão com a sua tentativa inerente de implementar alguma
construção. A angústia reflexiva do gênio na situação de experiência da contradição da
linguagem é a descrição mais refinada do já ser em uso dos significados.
O sentido como palavra é a designação de um passivo acontecido a receber
atenção de um ouvinte doador de revelação e o significado é o passado de um ativo
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sedimentado. A significação é a consciência da elaboração de direção significante atual.
Deste modo significante e significado sempre estão irremediavelmente juntos, mesmo que
indeterminados entre uma situação epocal e outra. Palavras são mudas quando isoladas,
enquistadas e cooptadas num sistema comunicativo no qual a transparência parece total
quando faz brilhar em demasia a objetividade separada dos objetos que indica. Pelo apoio
obcecado para o sucesso de novas e múltiplas sugestões de configuração de falantes
instauradores de novos fundamentos descobertos, “A linguagem das mulheres permaneceu
incriada” (GS II-1, 95), mas seguidora do novo em implantação, o que é, por outro lado,
uma necessidade da própria linguagem numa das suas perspectivas, ou seja, voltada
unicamente ao futuro no esquecimento de que o mesmo é relacionado com o que no
passado foi instituído. É por isso que “Mulheres falantes são possuídas por uma linguagem
desvairada” (GS II-2, 95), por vezes num delírio futurista, missionário, sofístico,
propagandista e incentivador pela adoção e acalanto de todos os filhos postos à luz do dia.
“Como falavam Safo e as suas amigas? - Permanece a questão fundamental de
como Safo e as suas amigas falavam, pois a poetisa representa a genialidade da linguagem.
A questão é a de saber como a contradição da linguagem era encarada entre ela e suas
amigas, ou como resolviam a angústia provinda da escuta atenta no silêncio e a necessária
instauração positiva, já agora na consciência de todas as implicações da linguagem.
Sob o véu do presente encontra-se o passado com as suas infinitas determinações,
de modo que a totalidade do já sido está relacionada com o que agora presentemente ocorre
sem que tal relação possa esgotar-se como compreensão definitiva e absoluta. No uso
presente e efetivo da linguagem encontra-se de modo encoberto a totalidade da riqueza do
sentido daquilo que foi. A presença encoberta do passado no presente da linguagem de
agora perfaz a condição de suposto de todo o seu uso efetivo, tanto da pretensão de sua
objetividade, como da compreensão do seu acontecer. Pela descoberta paulatina das
relações do presente com o seu passado instaura-se o futuro. A descoberta do passado e a
instauração do futuro dão-se na ocorrência da compreensão na linguagem que procura
romper o fluxo contínuo e repetitivo em que está enredada para se voltar em retorno às
determinações de si mesma. Tais descobertas e simultâneas instaurações alocam-se no
presente e são veladas na linguagem como nova compreensão do próprio passado, até
mesmo na forma de um entendimento que privilegia explicações pela lógica de um
desenvolvimento positivo da história de modo dialético ou não. Toda a explicação histórica
145
tem o viés da instauração compreensiva enquanto pretensão de objetividade separada do
seu dizer, mas não deveria esquecer o seu comprometimento com o acontecer da sua
compreensão no exato momento da sua elocução. “- A linguagem é encoberta como o que
passou, vindoura como o silenciar. Aquele que fala nela traz o passado à tona.
Dissimulado com linguagem, ele recebe o seu já-sido-feminino na conversação”. (GS II-
2, 95) A característica da mulher em analogia com a linguagem, que é a de acalanto das
novas configurações compreensivas, na convulsão da linguagem é agora compreendida por
aquele que fala na conversação precisamente como o seu já-sido-feminino enquanto
passividade de uma compreensão em fluxo, mas que neste momento recebe como se
agregando à sua experiência de mudança de si. Aquele que fala na conversação dá-se conta
do que era como compreensão em temporalmente esquecido e encoberto automatismo e, na
recolha dos seus rastros, recebe-a agora na compreensão atual. O falante percebe a sua
compreensão normalizada em forma de explicação e se conta de que em sua linguagem
em uso ela se ativava como sua pré-compreensão sempre subjacente nos juízos e feitos e
decisões tomadas.
Na linguagem carregada de sentido está o passado virtual, ou seja, a possibilidade
de resgatá-lo como relação com o agora em efetividade. O passado vindouro enquanto
interpretação surge pela escuta no silêncio do significado que possivelmente se dá. Quem
fala, fala pela linguagem dos seus ancestrais, mesmo sem o saber: ou em forma de
repetição, ou em forma de interrupção da estrutura vigente para valorizar e promover uma
versão contrária. E, ao falar ele ativa novamente o seu já-sido-feminino de acordo com o
paradoxo da própria linguagem na sua intenção de acalanto de nova objetividade, ou ainda,
na construção e no necessário engajamento na mesma pela formação de coerência
sistematizadora interna, justificação por supostos ainda não descobertos por tematização
competente e anelo pela construção de si mesmo em acentuação da subjetividade. No
silêncio atento à compreensão ocorrente está a possibilidade da leitura do futuro no
passado.
Na presença de Safo as mulheres continuam a silenciar na escuta do que ela diz
instaurando pela sua poesia um passado presente pleno de possibilidades de futuro. As
companheiras de Safo apreciam em silêncio atento o que ela vem a dizer em novo volteio
de linguagem, cultivando até a solidariedade corporal em afago mútuo para amimar novas
compreensões e novos sentimentos a surgir das brumas de um tempo esquecido. “Mas as
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mulheres silenciam. Para o lado a que elas dão ouvidos, as palavras estão impronunciadas.
Elas aproximam os seus corpos e se acariciam mutuamente” (GS II-2, 95). No retorno aos
primevos clarões em que os seres se afagam e acalantam, o futuro ao ritmo da poesia, a
conversação libertou do objeto e da própria linguagem. Nessa condição não mais o
esquecimento de que tudo o que se está a dizer provém de um todo que conjuga a
participação nele como suposição constante da linguagem com a possibilidade de ensaios
de fundamentação provisória e itinerante. A contradição da linguagem desmancha-se pela
recusa de um tempo de edificação absoluta, a qual fomenta a distração da fragmentação
sem relação, voltando-se para perceber a beleza do criado e vivente para nomeá-lo como
ocorrência de uma compreensão relacionada. “A sua conversação libertou-as do objeto e
da linguagem” (GS II-2, 95).
O silêncio entre as mulheres na escuta da poesia de Safo não é demonstração de
preocupação quanto à revelação de alguma verdade intencionada discursivamente, mas é a
atenção voltada à emergência da recordação de um percurso verdadeiro e já realizado, mas
esquecido. No silêncio das mulheres trata-se do despontar da recordação maior de que o
murmúrio da linguagem ocorre como participação na totalidade inominável do existente, e
isso enquanto plena atividade de organização compreensiva, acariciante e sedutora no
percurso das inovações escavadas no chão do todo do ser. A linguagem renuncia ao seu
exílio reflexivo em que a si se esquecera e volta à compreensão de permanência da
imanência dos seus significados em que mesmo o seu viés de escuta se como
possibilidade de movimentação criativa no todo que sempre supõe. A linguagem retorna à
compreensão do acontecimento no todo que é a sua própria condição que sempre a
acompanha. “Mesmo assim, ela chegou a determinado ponto. Pois somente entre elas e
quando estão juntas a conversação mesmo se extinguiu e se acalmou” (GS II-2, 95).
No estado de calma a conversação chega a si mesma depois de configurar a sua
própria circunscrição, pois chega a determinado ponto em que a angústia decorrente da
contradição da linguagem alivia o seu peso pela percepção da participação na nomeação do
todo já sempre suposto. Safo na fala e as mulheres na escuta são a expressão do olhar da
grandeza. “Agora finalmente alcançou a si mesma: tornou-se grandeza sob o seu olhar,
como a vida era antes da inútil conversação” (GS II-2, 96). A árvore do julgamento sobre
bem e mal é também a árvore da vida conforme o Gênesis. Se o julgamento pela
linguagem que se perde na instituição de critérios fantasmáticos de fundamentações para a
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produção de verdades absolutas é silenciado por sua própria desistência e se reinicia a
compreensão da ocorrência da nomeação criativa, então se tem a dádiva da vida sem o
esquecimento em pretensões absolutistas. O olhar como se fosse a partir da totalidade do
suposto, em que toda a fala é divisão e reunião participativa nele, é o olhar da grandeza e,
simultaneamente, a instituição dela na consciência da sua inevitabilidade.
Nesta nova dimensão compreensiva “as mulheres silentes são as falantes do falado”
(GS II-2, 96), mas na superação de uma objetividade separada, alienada, fixa para fins
operatórios num esquecimento das suas suposições. As mulheres como representação da
linguagem são as falantes a interpretar o que ouvem sem mais ter, nesse caso, o problema
da angústia exacerbada a respeito do falar enquanto pragmática e significação. A questão
do sentido e do sentido da pragmática desanuvia-se sob o olhar da grandeza. Não há mais o
problema da fonte que se é, e então resta a tarefa do reconhecimento da implantação, da
concretização, da efetuação operatória e da adequação de uma verdade já estabelecida e em
acontecimento que mesmo se é. como que um entendimento de que se é o corpo da
escrita da tradição naquilo que se compreende e o meio pelo qual a mesma tradição
desenvolve as suas potencialidades a partir da pletora do seu sentido sempre presente como
suposto em conversação ocorrente.
As preocupações quanto a alguma fundamentação última que a tudo pudesse
sustentar e a intenção da sua justificação absoluta como um Atlas sustentando o mundo
descambam num círculo de fogo ao infinito que tudo queima em sua segurança ou numa
dialética cruel que tudo devasta em seus processos de digestão incorporativa. Tais
preocupações com seus resultados são formas de compreensão instaurada que sempre se
autoriza a julgamentos supostamente baseados em chão tão firme que não permite uma
escavação ulterior. Fora do círculo de fogo da procura pelo achado definitivo que pudesse
posar de escudo para julgamentos absolutos, a busca por fundamentações não se esgota na
defesa intransigente de uma delas, mas apresenta-se como modo de ser numa postura de
continuidade para admiração do encontrado e no prazer da recordação pelo caminho de
busca andado. Sair do círculo significa o abandono das preocupações quanto à
fundamentação positiva, à sua negação completa ou ao acerto da sua forma, vindo a situar-
se, então fora dele, no assombro admirado do que se apresenta no fenômeno do
encontro. “Elas saem do círculo, elas vêem a concretização da sua curvatura” (GS II-2,
96).
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A generosidade inerente ao sentimento de admiração pelo acontecer da construção
significativa à base de fundamentos possíveis liberta do vício de se esquecer da própria
construção compreensiva mesmo na recepção silenciosa e, por conseguinte, também da
petulância acusatória. Qualquer acusação sempre se arroga ao direito de esquecer que os
critérios que a movem são como a fogueira de Caim, cuja fumaça e faíscas voltam ao chão
para o sufocar e lhe deixar as marcas de fogo no seu rosto. O lamento acusatório
direcionado aos outros é como que movido pelo esquecimento da fogueira com que se
construiu a si mesmo, cujo resultado sufoca e deixa marcas profundas vincando o próprio
destino como rastro de si. O círculo de fogo construído por fogueiras, cuja má construção é
o desacerto do esquecimento dos seus absolutizados fundamentos e critérios de validação e
justificação, impede que se veja a sua curvatura. Os lamentos e as acusações, que se voltam
aos acusadores julgantes, cessam quando saem desse círculo e vêem a sua curvatura.
Então, “todas elas não se acusam e lamentam entre si, elas contemplam admiradas” (GS II-
1, 96). Em vez de lamento e acusação emerge a admiração contemplativa do belo
entrevisto nas construções compreensivas que se apresentam como sugestão e
possibilidade.
A poesia de Safo na escuta de suas companheiras é o símbolo da beleza em
ocorrência. Na poesia a linguagem leva à contemplação meditativa porque não tem
pretensão científica ou qualquer intenção de produção de conhecimento ao modo da
objetivação justificada por princípios arcaicos ainda agora esquecidos e ativados para
operações de dominação, mas, pelo contrário, ela se reveste do caráter de expressão do
indiciamento e da descoberta dos mesmos, que nas operações cotidianas em andamento
se mostram transparentes na lógica da comunicação funcional. As palavras da poesia
captadas na meditação compreensiva e silenciosa por aquele que ouve apresentam-se
desnudadas da intenção da procriação repetitiva à espera da formação de futuros rebanhos
massificados pela pobreza e pequenez de um discurso comum. As palavras da poesia
sinalizam percursos feitos, caminhos andados, desvelo do que fomos a se somar ao que
agora somos, recordação de que estamos num âmbito intermediário entre a imediação da
forma de uma compreensão recorrentemente consolidada e o que advém como significado
inscrito neste modo de ser que agora se desdobra. Sem a preocupação pela produção de
conteúdos que pudessem ser objetivados como que separadamente para a aceitação geral
enquanto verdades coletivas engessadas numa percepção única e somente funcional, a
poesia no presente liberta pela reunião da recordação do que foi guardado nas arcas da
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memória e do indiciamento dos laços que amarram a compreensão para o esquecimento de
si. A poesia não tem interesse para a produção do sempre igual movida pela cegueira de
um desejo repetitivo e renitente à tematização. “O amor dos seus corpos é sem procriação”
(GS II-2, 96). Toda vez em que se instaura qualquer afirmação de conteúdo de mera
objetivação, sucede a subtração da compreensão de que ocorre a intenção de afastamento
do imediato de si para se ter uma visão privilegiada, mas que se constitui em novo
acontecimento a cada instante. A linguagem em ocorrência de uso pode então potencializar
a sua capacidade de discurso, aliada à imediação da suposição de um todo em que se
encontra e se estabelece dinamicamente. A recordação dinamiza-se a ponto de chegar ao
limiar de uma imediação que não permite qualquer deslocamento de si para a possibilidade
de mera descrição de cunho analítico. Trata-se do acontecer da palavra poética que assim
nunca é meramente descritiva. Falece, então, a pretensão a uma perspectiva que pudesse
analisar e definir a impossibilidade meramente descritiva da palavra poética, sem que ao
mesmo tempo se subjugasse ao próprio veredicto. O olho divino descritivo que julga num
discurso em processo de definições elimina-se no instante da compreensão do inevitável
insucesso da sua pretensão. A tentação de ajuizar, desde uma perspectiva absoluta, é ilusão
que remete à percepção da contradição da linguagem como anuência identificatória com
a ocorrência de si na infinita totalidade suposta sempre aberta precisamente a qualquer
participação. Na poesia, o caminho da linguagem agradece como que se dando conta de
que é possibilitado por todas as margens paisagísticas que o ladeiam. O caminho não se
consegue dizer poeticamente a si mesmo sem ao mesmo tempo expressar o infinito
multifacetado das margens que o acompanham. A compreensão poética enquanto caminho
andado agradece às margens que o negam, incluindo-as simultaneamente para que possa
propriamente ser. A compreensão poética é, por isso, espessa, fechada, comprimida e
dobrada, podendo a qualquer hora desdobrar-se como percepção continuada dos seus
horizontes. As margens não descritas, mas, mesmo assim, feitas da presença de todo o
passado que se manifesta como acompanhamento na elaboração discursiva do agora como
sua expressão, dão notícia de si enquanto percepção de beleza. A elaboração discursiva e
afirmativa de agora carrega consigo o conjunto das vozes dos séculos no registro do
cotidiano. A fala de agora conta com o silêncio dos séculos que o acompanham a cada
instante como se ela fosse a espuma brilhante na superfície do imenso e profundo oceano
que a possibilita e a carrega em seu tempo e seu espaço sem fim. Todo o burburinho das
ondas em sua evolução expressa a dança do oceano em que até os seus entrechoques, como
150
que acusações mútuas, significam o descompasso e o seqüente tropeço no ensaio
necessário para a coreografia do todo.
“O amor dos seus corpos é sem procriação, mas o seu amor é belo de se
contemplar”. (GS II-2 96). No espanto, na admiração, na permanente insistência de
interrupção do cotidiano não lugar para constituir casa, família e frutificar filhos. O
esforço despendido na edificação objetiva de qualquer construção que se decidisse por
qualquer fundamento capaz de dar suporte à emissão de juízos definitivos, que favorecesse
a promulgação de uma rede de julgamentos para a burocratização da vida, é substituído
pela decisão a um florescimento permanente, à insistente volta num retorno à visão do que
a cada instante emerge enquanto beleza descoberta. A vida humana, feita de corpo e
palavra em relação mútua, expressa, na imediação de si, a ocorrência simultânea dos
séculos que se afundaram no esquecimento da compreensão reduzida a suas abreviações
fragmentadas em ordenamento após ordenamento entremeados de crise em crise, de susto a
susto, de interrupção a interrupção. A permanência no florescimento de um amor sempre
belo de se contemplar traduz-se pela insistência da visão da ocorrência da paixão, da
genialidade, da inteligência, do talento com que a vida se apresenta assim como ela é em
corpo e palavra, desnudando vez por vez genialmente os séculos sempre presentes e
encobertos. Suspender as oscilações entre frutificação e florescimento em favor do último
é perceber as forças reunidas e renovadas dos séculos em expressão muitas vezes
paradoxal, desarticulada e apaixonada na vida de si e do outro. Voltar-se para a beleza do
que está assim em expressão na vida que transcorre em corpo e palavra é acontecimento
belo de se contemplar, pois é o brilho da beleza subjacente a cada manifestação de vida.
Voltar-se nesses termos é ver a configuração do agora em manifestação com tudo o que foi
e perceber o luzir de forças que geralmente não são percebidas por uma compreensão
reduzida às simples execuções dos ordenamentos em mera promoção de si mesmos.
A observação acurada de preceitos como se fossem imposições absolutas a ponto de
escravização rotineira como forma de vida acostuma o olhar com as viseiras programadas.
um obediente afã em enxergar apenas para o alto de edifícios compreensivos em
construção e nunca para a verificação da sua totalidade com a inclusão dos seus
fundamentos propostos. Ordenamentos compreensivos totalmente coletivizados tendem a
produzir a incapacidade do olhar reduzido e a inibir desse modo a capacidade de visão. O
idêntico e o diferente são circunscritos exatamente ao ordenamento proposto para os fins
151
da coletivização. Arriscar-se a olhar as próprias fundamentações e suas aplicações nos
meandros funcionais da coletivização compreensiva é parte do descortino da beleza
encoberta. Além da padronização administrada descobrem-se identidades e diferenças
insuspeitas à primeira vista, longe de qualquer engessamento pela reiteração do igual, mas
próximo da coragem de afirmar tranqüilamente a interrupção promovida pela recordação
de um infinito imponderável presente. “E elas arriscam o olhar juntas uma à outra”. (GS II-
2, 96). Trata-se, então de um olhar mútuo, desanuviado, aberto e plenamente voltado à
admiração pelo que o outro construiu como experiência de si como que própria e vital obra
de arte a luzir em beleza pelo encontro dos séculos que promove. Tal olhar livra da asfixia
da ânsia em exercitar julgamentos à base de critérios esquecidos da admiração mútua em
espantada análise. As palavras deixam de ser escudo e espada para a guerra na defesa de
fantasmas criados, cuja fantasmagoria não vale a pena defender. Tal olhar faz respirar
enquanto as palavras extinguem-se no espaço. (GS II-2, 96). Um olhar que faz respirar a
asfixia e palavras que se extinguem no espaço aponta para uma linguagem que não se quer
unicamente conceitual no sentido da imposição de limites absolutos de significado, mas é
movida pela força contrária no sentido de se voltar e se abrir à recordação dos seus
movimentos de origem esquecidos na fixidez de posições conquistadas. Tanto a afirmação
falante e voluptuosa de um lado, quanto de outro, a atenção silenciosa na conversa
separadas, ambas agora se conjugam, porque também a fala na linguagem é voltada a
circunspeção e ao exame cuidadoso e admirado de si. como que a volúpia do silenciar
mesmo numa fala, já que se compreende como agora ensaio, coletando em sua trajetória
ao mesmo tempo os indícios das origens dos conceitos que articula: não tem a pretensão
preconcebida da sedução convincente para uma posição previamente estabelecida. De
dialética construtiva na intenção de mútua destruição chega-se à interrupção pelo espanto e
pela admiração mútua do que na fala e no silêncio se manifesta, ou seja, uma constelação
conjugando passado e presente numa compreensão maximamente abrangente. “O silenciar
e a volúpia eternamente separados na conversa tornaram-se um só”. (GS II-2, 96). A
satisfação na admiração pela nova compreensão no redirecionar do sentido a partir da
escuta silente e contemplativa, não mais como dialética cruel, mas como fruição, é o
acontecimento da descoberta sobre si a exemplo de Ulisses, na volta para Ítaca, depois de
ter saído ao mar e à guerra e voltando de ilha em ilha, de sedução em sedução, de
necessidade em necessidade, de susto em susto e de desastre em desastre. No estranhar da
vivência na viagem pedagógica, oscilando entre o mar aberto e as várias ilhas
152
aconchegantes ou perigosas, a conversa tende ao retorno para o seu lugar de origem em
que a recordação presente instaura o passado em forma de história. A conversa como que
termina em sua oscilação e mais compreensão sobre o passado mútuo e que consegue
manifestar-se pela escuta silenciosa e atenta. O presente conjuga-se com o passado a vir.
“O silenciar da conversa era volúpia vindoura. Por outro lado, volúpia era o silenciar
passado”, (GS II-2, 96), ou seja, da escuta silente passada tem-se agora o desenho do
caminho andado, a visão do rastro, bem como a compreensão da itinerância da própria
compreensão dos implicados na conversa. O vindouro no passado e o passado vindouro
conjugam-se na volúpia do silenciar.
“Entre as mulheres, porém, aconteceu a visão das conversas sobre o limite da
volúpia silenciosa”. (GS II-2, 96) Os limites definidos sempre se encontram na impaciência
da escuta e na pressa do julgamento para o ordenamento de tudo o que advém. Por isso,
uma conversação que se entabula tendo por tema o limite da volúpia gerada pela atenção
silenciosa é precisamente a linguagem na permanência da admiração, do espanto, até do
susto sobre si: os falantes deleitam-se na expansão da compreensão alargando a sua
circunscrição e liquidando com a sua imobilidade e pequenez. O que muitos poderiam
chamar de infelicidade pela insegurança, crise, e pavor pelo abandono do ninho teórico
acalentado para dar condições às defesas absolutistas em ataques falantes e doutrinários,
aqui no silenciar sobre os limites há a volúpia do desnudamento total das vestes que
caracterizam as palavras do gênio, o mestre da escuta. O próprio gênio oscilante e
primeiramente desesperado entre a escuta atenciosa do que lhe advém e a necessidade da
objetivação falante, da qual sabe que cunha as marcas do seu ser, pode sentir o prazer
voluptuoso quando encontra companheiros em seu itinerário de procura insistente e
descoberta. Assim, parece que Benjamin responde a sua pergunta sobre como Safo
conversava com as suas companheiras. surgiu a juventude das conversas obscuras”.
(GS II-2, 96). Trata-se dos limites entre o sonho e o despertar e a pergunta sempre será
sobre quando é sonho e quando é acordar. A visibilidade máxima dá-se como intenção de
estabelecer os limites precisos dos conceitos em uso a fim de que possam ser considerados
indiscutíveis: a clareza e a distinção que intenta possibilitar a transparência de qualquer
conversa procura-se atender pela exata circunscrição dos conceitos utilizados. Mas também
isso é construção que a edificação da delimitação asséptica de determinado número de
conceitos depende de mãos conceituais e cabeças compreensivas mergulhadas no imenso
mar de possibilidades da linguagem que então assinala que os absolutos conceituais são
153
apenas esquecidas possibilidades inscritas em seu meio. A juventude das conversas
obscuras é iconoclasta em relação aos altares da visibilidade ofuscante, já que o brilho
destes é falso e escravocrata por obrigar os adoradores a se prostrarem apenas nas suas
proximidades, sem direito à movimentação mais ampla. À primeira vista o altar da
visibilidade parece ser o símbolo da saúde da linguagem e da vida pela segurança da
terapêutica que supostamente oferece, mas logo se manifesta como apenas deslocamento
para o túmulo de uma compreensão compenetrada na aplicação de objetividade à base de
fundamentos que esqueceu de compreender como possibilidades advindas no âmbito da
linguagem. Por isso, o surgir das conversas obscuras significando juventude conjuga-se
com a recordação de escutar as determinações da compreensão ocorrente de agora, no
volver-se em admiração ao que surge para ser inaugurado e constituir a verdade da
experiência. “A essência irradiou”. (Idem, 96). Na compreensão da contradição da
linguagem, o esforço de edificação por fundamento torna-se vão, pois a irradiação da
essência dá-se na movimentação de se voltar num retorno à procura pela descoberta dos
fundamentos que sempre estão infinitamente subjacentes. As fundamentações
descobertas e inauguradas irradiam a essência enquanto continuidade da linguagem criativa
e nomeadora. A tentação da pergunta da cobra do paraíso no Gênese procura tudo inverter:
“Teria Deus dito?” (Gênesis 3,1). Ela inaugura uma discussão à base de um fundamento
objetivado e separado da linguagem e com isso o engano da possibilidade de uma
construção de significações que pudesse ser absoluta num tempo como que no leito de um
espaço inexistente. Em tal construção absoluta o homem nunca está em casa e se engana na
perdição com tal familiaridade, pois ele é na verdade da viagem compreensiva que lhe
apresenta paisagens primeiramente estranhas e, mesmo assim, estranhamente familiares.
“A essência irradiou”. (GS II-1, 96).
154
2. ENSAIO APLICATIVO DA CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM: DUAS
POESIAS DE FRIEDRICH HÖLDERLIN.
Num artigo escrito no inverno de 1915, Benjamin propõe-se comentar duas poesias
do poeta Hölderlin e a relação entre elas a partir de um método. Antes de abordar
diretamente o conteúdo e o teor das duas poesias, Benjamin elabora uma reflexão sobre a
relação estética e filosófica entre o poetizado, o poeta, a poesia e o crítico ocupado com a
análise da obra. Nessa reflexão a contradição da linguagem transparece em sua
ambivalência quando da acentuação do pólo da linguagem e compreensão repetitiva, por
um lado, e, por outro, do pólo da notícia do poetizado que a poesia traz. Restringimo-nos à
abordagem da primeira parte do texto de Benjamin que traz as suas reflexões preliminares.
Benjamin inicia com a constatação de que por tradição a estética da arte poética
como ciência pura inicialmente deu mais atenção à identificação dos gêneros e teceu
comentários apenas sobre as grandes obras do classicismo, enquanto que o exame das obras
não pertencentes à dramaturgia clássica na maioria dos casos restringiu-se a questões
filológicas em vez de estéticas no sentido estrito. É necessário reter logo do início desse
texto a importância dos conceitos de método e tarefa:
A tarefa da seguinte investigação não se deixa enquadrar sem
explicação na estética da arte da poesia. Essa ciência como pura
estética dedicou suas forças mais nobres à sondagem de cada um
dos gêneros da arte da poesia, entre eles à tragédia com maior
freqüência. Dispensou-se algum comentário quase às grandes
obras do classicismo, porém, onde ele [o comentário] surgiu fora
dos limites da dramaturgia clássica foi, então, em maior grau
filológico do que estético. Deve aqui ser experimentado um
comentário estético sobre duas poesias líricas, e essa intenção
exige um comentário preliminar sobre o método. (GS II-1, 105).
155
Preliminarmente é possível afirmar que o conceito de tarefa procura denotar um
determinado método que se entende numa continuidade da própria questão articulada pela
arte poética. A tarefa vem a ser a ativação de um método. O método, por sua vez, refere-se
propriamente à investigação do poema, e a investigação metódica ver-se-á ao mesmo
tempo como tarefa comprometida com o próprio poema. É impositiva a imediata conclusão
de que o comentário investigativo como método liquida com qualquer pretensão a alguma
neutralidade para a produção de uma objetividade asséptica em relação ao poema.
Embarcar nas questões da poesia implica comprometimento com a compreensão do seu
conteúdo e qualquer coisa que se disser já será a comprovação da ligação com a essência da
poesia. Comentar o conteúdo da poesia de algum modo é a própria continuidade das
forças de sentido que lhe são inerentes a ponto de que a sua avaliação tem como suposição
a própria tarefa poética.
A forma interna, aquilo que Goethe designava por teor [Gehalt],
deve ser exposta nessas poesias. Deve ser averiguada a tarefa
poética como suposição de uma avaliação da poesia. A avaliação
não pode orientar-se pelo modo com que o poeta resolveu a sua
tarefa, mas muito mais, é a seriedade e a grandeza da própria
tarefa que determina a avaliação. (GS II-1, 105).
A crítica analítica e avaliativa da poesia é determinada e reivindicada pela própria
grandeza que origina e carrega a poesia. Já os românticos pensavam assim, ou seja, que a
crítica é necessária à poesia e constitui a sua continuidade em outras configurações
compreensivas: a obra poética continua a desenvolver as suas virtualidades na prosa do
crítico. A grandeza da tarefa é exatamente o voltar-se às pressuposições e não ser apenas
vítima dos mitos instalados com os quais se coopera encarcerado numa compreensão que a
si mesma não pode ou não quer compreender.
Pois essa tarefa é derivada da própria poesia. Ela também deve
ser compreendida como pressuposição da poesia, como a
estrutura espiritual-intuitiva daquele mundo que a poesia
testemunha. Essa tarefa, essa pressuposição deve aqui ser
compreendida como o fundamento último acessível a uma análise.
(GS II-1, 105).
Benjamin certamente quer dizer que se trata do fundamento último acessível à uma
análise imanente, mas não do fundamento último absoluto. A análise é um método que vai
até onde pode, sem ter o direito ou a pretensão de ultimar o seu próprio processo. A procura
do fundamento último assim é substituída por uma continuidade de análise que a si mesma
156
se põe como tarefa numa identificação com a suposição da própria poesia e a sua
possibilidade de avaliação.
Nada sobre o processo do produzir lírico [lyrisches Schaffen],
nada sobre a pessoa ou a concepção de mundo do criador é
averiguado, mas a esfera especial e única em que se situam tarefa
e pressuposição da poesia. (GS II-1, 105).
Mesmo nesses conceitos é possível ouvir as reverberações da
compreensão sobre a condição de possibilidade sempre presente - suposição - e a
inevitabilidade do performativo instaurador de sentido a tarefa comprometida - como
Dichten, pôr, inventar, responsabilidade quanto à objetivação e ao tempo, o ordenamento
mítico do objetivado. Uma forma de pensamento experimental está implicada como que
um florescer em forma de possibilidade de mundo.
“Essa esfera é ao mesmo tempo produto e objeto da investigação” (GS II-1, 105). A
análise investigativa também se como comprometida em percurso e exercício, pois
diz que analisa o âmbito e ao mesmo tempo sabe que o está produzindo como método e
caminho. A análise não se apenas como pura produção objetiva, mas também agora
enquanto ocorrência em decorrência da poesia, ou seja, o poetado continua a se manifestar
na atividade da própria análise.
Ela mesma não pode mais ser comparada com a poesia, mas é
antes o único verificável da investigação. Essa esfera que para
toda a poesia tem uma figura especial [feição, aspecto, molde
Gestalt] é designada como o poetizado. Nela deve tornar-se
acessível aquele âmbito característico que contem a verdade da
poesia. Essa “verdade” que exatamente os mais sérios artistas
afirmam tão veementemente a respeito das suas criações deve ser
entendida como objetivação do seu fazer, como o cumprimento da
respectiva tarefa artística. (GS II-1, 105).
A objetivação Gegenständlichkeit - como cumprimento da tarefa traduz a idéia da
criação de algo novo em direção ao aspecto intuitivo e espiritual, além da mera descrição
do existente no cotidiano repetitivo, costumeiro, caótico ou ordenado. É aquilo com que
o gênio se desespera em “Metafísica da juventude”, ou seja, a contradição da linguagem
em que Deus espera. O gênio está sempre na condição de ter que apresentar as suas
descobertas na objetivação da linguagem. Toda obra de arte está aí à vista de todos para ser
objeto de análise no que significa pela linguagem paradoxalmente objetivante na sua
expressão imediata. O poeta que permanecesse severamente no silêncio a fruir o que lhe
157
advém sem qualquer elaboração concreta cometeria uma traição à revelação concedida. De
qualquer modo é ingentemente seduzido pela novidade descoberta e como que obrigado a
por mãos à obra para dar forma à sua criação singular que vem a ser a figura de uma
unidade sintética da ordem espiritual e intuitiva.
Cada obra de arte tem um ideal a priori, uma necessidade
inerente a si de estar aí. ( Novalis).
O poetizado em sua forma geral é unidade sintética da ordem
espiritual e intuitiva. Essa unidade recebe a sua figura especial
como a forma interna da criação singular. (GS II-1, 106).
A criação singular é representante reveladora de uma totalidade sempre presente
virtualmente. O poetizado é suposição e tarefa, e ao mesmo tempo é produto e objeto da
investigação. O poetizado se vislumbra no imenso sentido condensado em cada poesia
particular, um sentido condensado através de milênios e que rege e comanda a vida em
todos os caminhos e escaninhos de forma que os regidos e comandados mesmo na crença
de sua própria autonomia seguem como que inconscientemente os seus preceitos. O poeta
na poesia vislumbra, identifica o suposto de si e de toda a vida e inaugura objetivando o
início de um conhecimento mais amplo do que a cientificidade em aplicação ou o senso
comum corrente. Por essa razão é que a crítica, a análise, o comentário tem na poesia o
poetado como fonte inesgotável em amplitude de interpretação.
“O conceito do poetizado é um conceito limite em dupla perspectiva. Ele é conceito
limite primeiramente em relação ao conceito de poema”. (GS II-1, 106). O termo conceito-
limite, como se sabe, provém da filosofia kantiana e significa a região não definível pelo
pensamento conceitual referido às intuições puras do tempo e do espaço. A coisa em si é
um conceito que nada define exatamente por indicar um âmbito além de qualquer definição
possível, pois uma definição é sempre necessariamente referida às suas condições de
possibilidade de acordo com a síntese das categorias e das intuições a ordenarem os dados
da sensibilidade. Querer definir o âmbito do indefinível é intentar descrever o nada, o sem
sentido, ou, talvez, o ainda sem sentido. Para Kant, em todo o caso, o conceito limite indica
o corte entre a linguagem conceitual com fundamento verificável intersubjetivamente e a
fantasia a projetar delírios incapazes de consenso universal possível. Benjamin em seu
texto sobre a filosofia vindoura, baseado justamente numa acentuação da linguagem,
pensa diferentemente: mesmo conservando a tipologia da filosofia kantiana, propõe ir além
dela quando a percebe como um produto de uma época pobre em experiência e quando
158
indica a intuição como plenamente senhora de si para ingressar compreensivamente nos
âmbitos existentes além da meras definições epistemológicas obedientes a configurações
épocais subjacentes e, portanto, ordenadoras.
O conceito de poetizado como conceito limite em relação ao conceito de poema
significa que este nunca poderá por si representar aquele. O poema é como que o local
em que o poetado faz a sua apresentação no encontro com a investigação que a respeito
dele é feita. As palavras do poema são o limiar em que se poderá vir ao encontro do
poetado numa criatividade continuada pela análise crítica.
O poetizado diferencia-se decisivamente como categoria de
investigação estética do esquema-forma-matéria pelo fato de
conservar a fundamental unidade estética de forma e conteúdo e,
em vez de separar a ambos, cunhar em si a sua imanente ligação
necessária. (GS II-1, 106).
O poetizado é, portanto, categoria de investigação estética que não separa forma e
conteúdo, mas em seu exercício continua a conter a ambos. Essa afirmação verifica-se de
caso a caso nas poesias concretamente. Por outro lado, não é o caso de se transformar o
poetado numa entidade transcendente, pois ele está ligado direta e organicamente às
palavras da poesia passível de interpretação também organicamente relacionada com
aquele crítico analisante que sobre ela se debruça em reflexão. A poesia desse modo é
limiar e ponto de encontro.
No que segue, isso não poderá ser observado teoricamente, mas
apenas no caso individual, que se trata do poetizado de poemas
individuais. E aqui também não é o lugar para uma crítica teórica
do conceito de forma e matéria na significação estética. Na unidade
de forma e matéria, portanto, o poetizado partilha com o próprio
poema uma das características essenciais. Ele mesmo é construído
conforme a lei fundamental do organismo artístico. Diferenciado do
poema ele é como um conceito limite, como conceito de sua tarefa,
não simplesmente ainda por uma característica fundamental. (GS II-
1, 106).
Como anteriormente, aventa-se a indeterminabilidade quanto ao fundamento
último do poetizado, já que ele instiga à análise e a análise o produz sem cessar pela escuta
hermenêutica. A diferença no poema entre poema e poetizado é o conceito de tarefa deste,
qual seja, o de ocupar o âmbito da possibilidade do que aparece incessantemente, mesmo
na continuidade da análise do poema, pois a vida em seu sentido cotidiano transcorre
159
inconsciente de suas determinações ticas: é determinada e ordenada em diversos
automatismos de explicação naturalizada, mas sem o entendimento de constelações que a
preestabelecem como tal. O poetado não pode, portanto, ser compreendido como um
âmbito de fundamento último ou definição única e cabal. O poetado sinaliza uma abertura
que instiga ao seu próprio desenvolvimento pela crítica imanente: ele é um ser potencial
e passível de desvelamento.
Ao contrário, somente por sua maior determinabilidade: não por
uma carência quantitativa de determinações, mas por um ser
[Dasein] potencial daquelas determinações que no poema
atualmente estão disponíveis e de outras. (GS II-1, 106).
Maior determinabilidade significa maior âmbito e extensão de determinação e não o
contrário, ou seja, uma determinação mais rigorosa em termos de redução das
possibilidades extensivas do conceito. O poema significa a sedimentação em unidade
funcional e essa funcionalidade por si não é o que deve reger o poetizado, pois este faz
parte de uma esfera intuitivo-espiritual que se vai descobrindo como resultado e objeto da
própria investigação, a qual, portanto, também se em relação com o mesmo âmbito
em processo. Tornar visível tal entrelaçamento que antes não se via é aspecto da tarefa: a
unidade funcional do poema em si mesmo.
O poema é filho de seu tempo e, portanto, do conjunto da conceituação
característica de sua época. A linguagem formal do poema não pode atravessar o limite da
coisa em si pelo fato de permanecer costumeiramente conceitual
O poetizado é um relaxamento da firme união funcional que reina
no próprio poema e ele não pode surgir a não ser por uma
desconsideração [Absehen] de certas determinações; enquanto
que por meio disso torna-se visível o entrelaçamento, a unidade
funcional dos elementos restantes. (GS II-1, 106).
A visão e a análise da função já pressupõem um horizonte maior do que o âmbito da
função observada. Por isso, o poetizado está além, ou seja, é mais abrangente do que a
poesia em sua linguagem formal funcional. Benjamin conta constantemente com o sentido
da própria análise que está a fazer. Ele arca com a responsabilidade de elucidação do papel
crítico do poema que nesta atividade está intimamente relacionado com o poetizado.
“Pois ele [o poema] é determinado pela existência atual de todas as determinações
de tal forma que somente como tal ainda é concebível uniformemente”. (GS II-1, 106). Caso
160
o poetizado se restringisse somente às determinações do poema, o mesmo apenas seria
descrição de algo já sabido em termos conceituais costumeiros. A soltura pela tarefa
consiste nessa fuga da precisão do já determinado com seu convite à mimesis. Aliás,
permanecendo-se meramente na precisão conceitual das palavras utilizadas no poema,
então apenas comunicação sem a possibilidade da análise reflexiva sobre o mesmo e o
posterior alargamento e a maior abrangência de sentido que ele em suas linhas sugere.
Quem se propõe a uma intravisão no poema pressupõe a possibilidade de mais do que
somente a elucidação conceitual das suas palavras.
“O tomar conhecimento [Einsicht - introspecção, intravisão] da função, porém,
pressupõe a pluralidade das possibilidades de ligação”. (GS II-1, 106). A função intuitiva e
espiritual do poema só pode ser representada e executada pelo poetizado que nele se
desenvolve como que num avanço ao encontro do âmbito da coisa em si e que bruscamente
torna visível o que antes era invisível. O poetizado no poema concebe-se assim como
revelação de um sentido ordenador possivelmente sempre presente, mas nunca
vislumbrado até o momento da descoberta criativa, da instauração por parte do poeta, o que
explica em parte a expressão de Novalis, acima, toda a obra de arte tem um ideal a priori,
uma necessidade inerente a si de estar . Tal modo de ver lembra novamente a
interpretação das idéias platônicas como sempre presentes nas mais diversas cópias do
cotidiano em repetição, as quais podem ser indicadas no movimento de retorno do filósofo
numa exigência de soltura ou libertação do esquecimento empedernido para se chegar ao
patamar e à tarefa de as contemplar em sua força de ordenamento. Tal modo de ver também
pode indicar que o poetizado é no poema a constante notícia condensada de todo o sentido
havido e que determina a vida em toda a sua multiformidade. A condensação ordenada
do poema exige, por sua vez, que se perceba de maneira acurada a direção que está a
imprimir para não se perder em devaneios e para que o poetizado possa aflorar cada vez
mais liberto de determinações especificamente contingentes.
Assim, o tomar conhecimento [Einsicht] do arranjo
[ordenamento] do poema consiste na captação da sua precisão
[Bestimmtheit] cada vez mais rigorosa. Para conduzir a essa
máxima precisão no poema, o poetizado deve prescindir [absehen
von] de certas determinações. (GS II-1, 106).
161
Se a primeira tarefa era a intravisão que o poema em suas determinações
possibilitava indicando o poetizado para além dos seus limites meramente conceituais,
agora a tarefa constitui-se como assunção de soltura concretamente pedagógica relacionada
diretamente com a vida amarrada e a sua possibilidade de libertação para mais vida. Poema
e poetizado, ambos relacionados por seus limiares, não se esgotam em devaneios
semânticos como que à parte de qualquer concretude, mas têm sempre preservada a sua
aderência nas soluções da vida imersa na imediação da compreensão. Quando o poetizado
incita à tarefa e à soltura está a indicar termos que se completam, que a tarefa é soltar, e
se soltar das amarras do cotidiano comunicativo, portanto, é a verdadeira vida como tarefa.
Por meio dessa relação com a unidade de função intuitiva e
espiritual do poema o poetizado em relação a ele mostra-se como
determinação limite. [107] Ao mesmo tempo, porém, é conceito
limite em relação a uma outra unidade de função, como com um
conceito limite sempre, com efeito, apenas é possível como limite
entre dois conceitos. Essa outra unidade de função é, então, a
idéia de tarefa, correspondente à idéia de soltura, tal como o
poema o é. (GS II-1, 106).
De um lado a unidade de função intuitiva e espiritual do poema e agora do outro a
tarefa e libertação que para o criador é a vida como unidade funcional extrema. A fronteira,
ou o limite entre os dois é o poetizado, antes descrito como um afrouxamento da firme
ligação funcional que reina no poema. Agora aqui a vida significa o extremo possível de
extensão de ser vislumbrado como unidade funcional, mas ao mesmo tempo parece que
a idéia de que o poetizado beira a criação como limite, ou pode expandir o limite para
além da estrutura existente desta vez não do poema, mas da vida. O termo Aufgabe, assim,
indicaria a possibilidade de uma desistência do fixo repetitivo e normatizado da vida e, ao
mesmo tempo, tal desistência seria solução e desligamento como tarefa constante de
expansão do limite via o poetizado em direção ao novo na própria vida, quando em que tal
possibilidade de maior abrangência de vida pelo menos também denota a compreensão
diferenciada por amplificação de horizontes.
Pois tarefa e soltura apenas in abstracto são separáveis. Para o
criador essa idéia da tarefa é sempre a vida. O poetizado se
evidencia, portanto, como a passagem da unidade de função da vida
para a do poema. (GS II-1, 107).
Eis aí, então, a indicação de que a unidade extrema em extensão funcional da vida é
tarefa do poetizado, que esse tem como função de avançar além do limite além das
162
limitações da compreensão cotidiana. A vida amarrada liberta-se pelo poetizado no poema
para uma perspectiva maior: o poema consegue isso pela identificação que promove e
mesmo representa, ou seja, ele indicia, descobre, identifica e inaugura parte do que é
pressuposto de tudo que está a viger. O poetizado é como que um contínuo deslocamento
de fronteiras em direção ao exterior dos limites da caverna platônica configurada como
uma compreensão cotidiana alienadamente naturalizada em automatismos supostamente
legitimados por sua mera existência esquecida das razões de sua imposição. O
deslocamento da fronteira faz com que ela seja a passagem da vida normatizada para o
âmbito do poema a incluir em si o poetizado: o poema assim faz o papel de revelação do
que desde sempre é, mas que estava envolto na penumbra da eficácia aplicativa na
normalidade do cotidiano em geral.
A libertação, solução, ou soltura agora é vista como nova situação pela Aufgabe,
isto é, desistência de fixidez do posto no poema; como também a vida significa o
movimento imprimido pelo poetizado e a nova situação captada no poema. Além disso, os
termos tarefa e soltura, ou libertação, parecem novamente remeter diretamente ao
imaginário do Mito da Caverna de Platão em que as pessoas amarradas e obrigadas a ver o
movimento das sombras-cópias devem ser soltas pela tarefa do filósofo pedagogo,
provocador e evocador de constelações esquecidas por operação repetitiva. O poema como
soltura cumpriria a tarefa de perceber e criar inaugurando a constelação ideal mítica pela
qual a vida cotidiana aparentemente caótica se move.
Nele [no poetizado] a vida determina-se pelo poema, a tarefa pela libertação” (GS II-1,
107). Não se trata de tematizar a vida assim chamada histórico-biográfica do poeta artista e
que pudesse, a partir da sua vida elucidar algo e representar o poetizado. Também não se
trata de evocar e deslindar a subjetividade criadora do artista para explicar a questão em
pauta. O que interessa é a arte que cria, produz, determina um contexto de vida numa
compreensão mais abrangente. O artista poeta como filho do seu tempo indicia as raízes da
compreensão comum.
Não é a disposição individual da vida do artista que se encontra
como fundamento, mas uma relação de vida determinada por meio
da arte. (GS II-1, 107).
Benjamin sugere que o conceito de mito pode ajudar na elucidação da diferenciação
entre uma circunscrição e outra:
163
As categorias pelas quais essa esfera é concebível, a esfera de
passagem de ambas as unidades de função, ainda não estão
prefiguradas e talvez tenham um apoio mais próximo nos
conceitos do mito. (GS II-1, 107).
Fica-se primeiramente em dúvida sobre se a frase tem sentido positivo ou negativo,
pois o mito é a forma da própria alienação, do sempre se estar determinado por idéias-
força de que não se tem consciência. Mas o mito neste contexto tem em parte um
tratamento positivo. Trata-se precisamente do poetizado aparentado com o mito, mas a ser
descoberto e inaugurado. Poder-se-ia dizer que a tarefa é constante em direção à descoberta
do mito, que não é apenas o mito grego, mas que neste contexto chega a significar toda a
determinação das idéias que num passado presente oprimem o cérebro dos vivos.
Como no mito da caverna de Platão, que procura explicar a ascese da vida imediata
em direção ao reconhecimento das idéias fundamentais que estão a reger a mesma vida, o
poetizado enquanto tarefa e método tratam da intenção do poeta em sua arte. A expressão a
vida é em geral o poetizado dos poemas da citação a seguir está a primeiramente indicar
que os poemas são uma espécie de ascese a instituir performativamente e pedagogicamente
uma compreensão de maior abrangência do imediatamente vivido. O acontecer de tal
compreensão assemelha-se à revelação de algo que sempre acompanha a própria vida
como fator organizador, mítico e impositivo de relações. O poetizado, portanto, deve fazer
parte dessa esfera, dessa procura, como, aliás, também a análise de Benjamin em questão,
que procura depurar o poetizado em seu momento específico como conceito-limite entre o
poema, de que o poetizado faz parte, e a vida de que o poetizado também faz parte. Nesse
contexto um poema a descrever sentimentos, lances sentimentalóides, erra por completo a
sua tarefa e vocação;
Exatamente as mais fracas produções da arte referem-se ao imediato
sentimento da vida, mas as mais fortes, de acordo com a sua
verdade, a uma esfera aparentada com o mito: o poetizado. A vida é
em geral o poetizado dos poemas - assim se poderia dizer; (GS II-1,
107).
Toda a vida é uma instituição poética, uma forma instaurada de compreensão
naturalizada, mesmo em suas explicações históricas, e não há como ser diferente, pois o
provisoriamente fixo em forma de preconceitos é a própria condição de possibilidade de
ordenamento criativo performativo posterior. O esquecimento promovido e fundamentado
por valores absolutos, porém, constitui-se de amarras em que a vida como processo de
164
nomeação é olvidada para então se esquentar em inferno repetitivo de Sísifo feito de
demônios, sombras e sofrimento.
Mas a possibilidade da obtusidade do poeta. Tal obtusidade do poeta manifesta-
se exatamente na sua intenção de revivescer na sua poesia a repetição de situações
sentimentalóides, manifestando a sua incapacidade reflexiva, criativa, intuitiva e espiritual
e, assim, vendo-se impossibilitado de vislumbrar a mitologia presente e vindoura, as idéias
a reger a vida na prática efetiva e sentimental em geral. A incompetência poética contenta-
se em meramente descrever os seus estados de alma ou ânimo como vítima de um processo
que desconhece totalmente e que julga dever cantar sem a tarefa de indiciá-lo; não percebe
nem o aspecto a priori da vida enquanto prática imediata em mimesis infinita objetivada
como jogo de sombras no fundo da caverna que percebe como se fosse a própria clareza e
transparência, nem a possibilidade de existência de tarefa e soltura.
...mas quanto mais o poeta quer transferir sem transformação a
unidade de vida para a unidade da arte, tanto mais ele se mostra
como grosseiro. Estamos acostumados a encontrar a defesa e até a
exigência dessa obtusidade em forma de “imediato sentimento de
vida”, “calor do coração”, como “disposição”. No exemplo de
Hoelderlin torna-se claro como o poetizado oferece a possibilidade
do julgamento da poesia, isto é, pelo grau de unidade e grandeza de
seus elementos. (GS II-1, 107).
O grau de união relacional e de grandeza dos elementos ticos perfaz o poetizado
a ser descoberto, o qual, descobre-se ele próprio, sendo, então, o fator ou a dimensão que
possibilita o julgamento da poesia quanto a ela ser meramente repetição ou desvelamento
do subjacente. A análise enquanto método imanente acompanha o grau de união e grandeza
mencionadas e, com isso, ela mesma se capacita para o julgamento avaliador, fazendo de
qualquer modo parte do próprio processo poético. As características de união relacional e
grandeza dos elementos míticos indicam a relação de todos os fenômenos percebidos
ligados com a profundidade das justificativas, visões dos elementos míticos descobertos.
Assim, união e profundidade no sentido de grandeza são inseparáveis, pois de qualquer
outro modo ter-se-ia a apresentação de apenas mais uma faceirice aplicada em seu
embotamento.
Ambas as características são inseparáveis. Pois quanto mais uma
expansão frouxa do sentimento substitui a grandeza e a
configuração dos elementos (que designamos como míticos
aproximadamente), tanto menor torna-se a união, tanto mais
165
origina-se - seja um amável produto natural sem arte, seja uma obra
mal feita estranha à natureza. (GS II-1, 107).
A expressão naturfremdes Machwerk [obra estranha à natureza] obriga a perceber o
sentido de natureza neste caso como natureza não alienada por objetivação esquecida, isto
é, perceber que se entende a natureza sempre com a inclusão da nomeação poética: tanto
que Machwerk, obra do fazer por fazer, artesanato repetitivo seria assim a expressão da
própria inconsciência embotada por desconhecimento e esquecimento dos preconceitos
míticos que nela atuam. A consciência naturalizada seria a condição de um esquecimento
alienado e objetivado por meio do próprio obscurecimento seguro de si, que prima pela
desistência de cavoucar à procura dos seus fundamentados.
A coisa em si, o reino do nada, o além do conceito limite não denota uma
transcendência de outro mundo, mas pode ser simplesmente entendido como o âmbito da
possibilidade enquanto vida. Sem a vida que é a unidade total, extrema e constante em que
se dá a possibilidade de ser, o próprio poetizado não se torna possível. A vida é condição de
possibilidade mesmo em estado cotidiano, amarrado, automatizado e alienado, pois o
deixa de possibilitar a partir desse estado a continuidade ou a transformação criativa de si,
o que vem a ser a tarefa do poeta artista não perdido em obtusidade.
“A vida está na base do poetizado como a sua última unidade”. (GS II-1, 107).
Quando na poesia não se depara com intuição organizada e desvelamento de um mundo
espiritual, um mundo que antes da poesia acobertava-se com o brilho das suas aplicações
repetitivas, nenhuma novidade acontece. A expressão a vida mesma na citação a seguir
denota não a vida na plenitude das suas possibilidades efetivadas, mas apenas a vida em
seu transcurso normatizado em alienação organizada. A tarefa é justamente a interrupção, a
ruptura com tal modo de vida para que em seu chão a intuição e o mundo espiritual possam
revelar-se não a partir de algo externo a si, mas do seio de si como algo sempre presente
e vislumbrado pela instauração criativa da arte. Note-se que a análise do poema assume
o seu papel de comprometimento com o resultado de sua atividade.
Mas quanto mais cedo a análise do poema levar à vida mesma
enquanto seu poetizado, sem encontrar formação de intuição e
construção de um mundo espiritual, tanto mais a poesia mostra-se -
no sentido estrito - material, sem forma, insignificante. (GS II-1,
107).
166
A análise não conseguirá depurar o mito absoluto subjacente à totalidade do
acontecer, mas irá topar com elementos diversos organizados em constelação dinâmica. O
ponto de vista da análise faz parte desse dinamismo, que não lhe é possível o
distanciamento de uma visão privilegiada desde fora de todo acontecer. A vida nesse caso
seria feita de oposições míticas, elementos instalados no fundo da sua teia organizando-a
dinamicamente e de forma necessária.
Ao passo que, na verdade, a análise das grandes poesias não se
encontra [stossen auf – topar] com o mito, mas com a unidade
engendrada pela violência dos elementos míticos em oposição
dinâmica [strebend tendente] como verdadeira expressão da vida.
(GS II-1, 108).
O método de apresentação, ou seja, a análise crítica profundamente comprometida a
ponto de se expressar precisamente na elaboração do conteúdo que propõe, trata dos limites
aventados que seriam o da poesia e o da vida.
Precisamente dessa natureza do poetizado como âmbito contraposto a dois limites
testemunha o método da sua apresentação”. (GS II-1, 108). Não fundo a ser visto, pois é o
abismo sem fundo que por ser sem fundo faz com que se paire sobre ele. A apresentação
não se pode perder na intenção de objetivar algum fundamento último que pudesse tudo
esclarecer. Qualquer esclarecimento definitivo com intenções de transparência total
significaria a queda no esquecimento de que a apresentação como o retorno proporcionado
pelo poetado na poesia não cessou, aliás, a exemplo da própria vida. O interessante é que a
atividade do poetizado em elaboração dá-se como consciência da situação exatamente no
suposto ou no sentimento irônico de que ele no poema não se deixa definir de todo, mas
somente apontar como indicação de participação numa totalidade jamais objetivável.
“Ela [a apresentação] não deve tratar da prova a respeito dos assim chamados
últimos elementos. Pois não há tais elementos nos limites do poetizado”. (GS II-1, 108). Não
elementos que possam constituir-se em limites, fundamentos gerais. Caso houvesse tais
elementos o próprio poetizado perderia o seu sentido.
A incompreensibilidade de elementos últimos que pudessem fundamentar a unidade
total da poesia e a unidade extrema da vida é a razão de ser da poesia, a garantia da
inesgotabilidade da vida e da dádiva da própria vida como criação e poesia nomeadora. O
esgotamento da compreensão por meio de uma definição definitivamente absoluta é um
absurdo do tamanho do seu esquecimento, que não leva em conta a total falta de
167
possibilidade de alguma perspectiva fora, além do todo do acontecer em compreensão, e,
além disso, não se dá conta de que a objetivação de qualquer absoluto deixa de ser absoluto
pelo próprio processo de objetivação nomeadora que se põe à parte do absoluto nomeado a
inaugurar novamente o esquecimento. A análise do poetizado como esfera de relações
compreende a compreensão como a fazer parte ativa da mesma esfera e assim se entende a
caminho enquanto método em exercício.
Pelo contrário, que se comprovar nada mais do que a
intensidade da ligação dos elementos intuitivos e espirituais e, sem
dúvida, primeiramente em exemplos individuais. Mas precisamente
nessa comprovação deve estar claro de que não se trata de
elementos, mas de relações, como já o próprio poetizado vem a ser
uma esfera de relações de obra de arte e vida, cujas próprias
unidades de modo algum são compreensíveis. (GS II-1, 108).
O verdadeiro poema sempre visará o poetizado como tarefa, pois é a sua
pressuposição. A verdadeira poesia não tem outra função a não ser vislumbrar e constante e
insistentemente descobrir o condensado poetizado comandando os processos vivenciais.
O poeta é poeta porque institui o que já sempre era, o que pode fazer dada a sua atenção
genial que o capacita para ver o disperso condensado e o condensado fragmentando-se ao
infinito. A sua descoberta é nova vida debaixo do sol, pois é o acordar de um sono e sonho
que só são notados na narração poética que promove.
O poetizado irá mostrar-se assim como a pressuposição do poema,
como a sua forma interna, como tarefa artística. A lei de acordo
com a qual todos os aparentes elementos da sensibilidade e das
idéias mostram-se como conteúdos das funções essenciais,
fundamentalmente eternas é chamada a lei da identidade. Com
isso é indicada a unidade sintética das funções. (GS II-1, 108).
O vocabulário utilizado remete em parte a Platão e Kant conforme anteriormente
mencionado. Mencionam-se a sensibilidade e as idéias entre as quais o entendimento
compreensivo se constrói e com as quais a própria compreensão novamente se compromete
por contar com elas como hipóteses da sua ocorrência. É como se houvesse um movimento
constante de duas funções em que o entendimento se cria e que tudo isso supusesse a
identidade como lei suposta a tudo, uma totalidade indizível, da qual, no máximo, se pode
dizer que dela se participa. É por isso que, em todo o caso, há que se acentuar a consciência
presente de que qualquer afirmação e definição fazem parte do processo dinâmico da
unidade sintética como suposição fundamental e inevitável.
168
Ela é reconhecida a cada vez em sua forma específica como um a priori do poema”. (GS
II-1, 108). A identidade, o tautológico em que sempre se esteve, se está e se estará, a
unidade sintética das funções: é disso que se trata. O universal dinâmico presente e visível
no poema singular ou o singular dinâmico criativo representando a unidade sintética
universal são as duas faces da mesma moeda.
Toda a tematização até agora é execução e exercício de método em que a fixidez
definitiva viria a ser a sua própria anulação, aniquilamento. Portanto, a caminho não
nem puro método, nem puro poetizado e nem tarefa absoluta. Encontrar-se como
compreensão dinâmica numa suposta constelação dinâmica de relações é o nível de soltura
do esquecimento e da assunção da tarefa em vida e poesia.
Depois de tudo o que foi dito, a averiguação do puro
poetizado, da tarefa absoluta, deve permanecer o alvo ideal
puramente metódico. O puro poetizado cessaria de ser conceito
limite: seria vida ou poesia. (GS II-1, 108).
O poetizado permanece como compreensão de tarefa de soltura e soltura para a
tarefa como dinâmica processual a vislumbrar a vida e a poesia. É o reino do possível aos
poucos concretizado e a constantemente se concretizar, sempre além da compreensão
imediata da vida e da poesia. .
Não como falar do ponto de vista da totalidade sempre suposta, o que leva ao
reconhecimento da necessidade do exercício enquanto tal que se efetua no constante
singular. A própria movimentação analítica é aqui posta como prova ou fundamento
enquanto singularização de um suposto inevitável da própria análise. Isto quer dizer ainda
que se tem como claro que toda a fundamentação é apenas experimental, provisória,
itinerante num espaço absoluto indefinível qual abismo de Anaximandro em que apenas
a oportunidade de pairar sobre ele. Procurar a fundamentação mais abissal não é o mal, mas
sim atribuir valor absoluto a qualquer fundamentação liquidando com o próprio processo.
- Antes que a aplicabilidade do método seja posta à prova em prol
da estética da lírica em geral, talvez também para âmbitos mais
amplos, interditam-se desenvolvimentos mais amplos. Somente
então se poderá ter claramente como resultado o que é o a priori
do poema singular, o que tal coisa é do poema em geral ou até de
outros gêneros de poesia, ou mesmo da poesia em geral. Mais
claramente, porém, mostrar-se-á que sobre poesia lírica há que, se
não provar, todavia então fundamentar. (GS II-1, 108).
169
Benjamin propõe cuidado com a implementação do método na análise da lírica em
geral. Na teorização apresentada por Benjamin, porém, é possível perceber um
agrupamento de concepções que indicam determinados pressupostos, os quais não mais
serão por ele esquecidos em grande parte da sua obra. Trata-se dos seguintes
A suposição de uma totalidade que não é acessível ao entendimento referido apenas à
consciência racional.
A suposição da mesma totalidade expressando-se na atividade da arte e da filosofia crítica.
O envolvimento do analisante com a sua atividade. Mesmo que o analisante tenha a poesia
por objeto da sua análise, como sujeito está diretamente envolvido diretamente na
consecução da obra precisamente por sua crítica. A sua crítica significa a continuidade da
obra que assim tem um significado maior do que a objetividade do autor, do crítico e da
própria obra individual.
A continuidade da obra na crítica que o crítico apresenta já é forma de tradução.
A categoria do poetizado que é o Gehalt, isto é, teor posterior.
A questão da inconsistência e vanidade da procura por fundamentação absoluta e a
permanência do flutuar sobre o abismo enquanto expressão do que objetivamente não é
objetivável.
O aspecto de retorno para a liquidação de falsas totalidades, mitos, fundamentos
esquecidos.
As poesias de Hoelderlin que Benjamin se propõe a comentar pontualmente de
acordo com a sua elaboração filosófica prévia são as que seguem:
Dichtermut [Coragem Poética]
Hölderlin I, 428 - 1
a
versão
Então não te são aparentados todos os viventes? /Então a própria
parca não te sustenta para prestares serviço?
Por isso! Assim, anda simplesmente desarmado
Adiante pela vida e não te preocupes!
O que acontece, tudo seja por ti abençoado,
170
Esteja voltado para a alegria! Ou então o que poderia
Ofender-te, coração! O que poderia
Acontecer, lá para onde tu deves ir?
Pois, como quieto na margem, ou na prateada
Maré soando à distância, ou sobre silentes
Águas profundas o leve
Nadador avança, assim estamos também nós,
Nós, os poetas do povo, com prazer, onde o que é vivo
Respira e flutua ao nosso redor, alegremente, e afeiçoado a cada
um,
Confiante em cada um; como cantaríamos
De outro modo a cada um o deus próprio?
Então, quando a vaga um dos corajosos,
Onde fielmente confiou, afunda lisonjeira,
E a voz do cantor
Agora silencia no salão azulante,
Alegre ele morreu e ainda se lamentam os solitários,
Seus arvoredos, a queda de seu maior amor;
Reiteradamente soa da virgem
A partir da ramada o seu canto amigo.
Quando após o cair da tarde um dos nossos vem,
Onde o irmão naufragou, de certo em muito pensa
No advertente local,
Silencia e anda mais armado.
Blödigkeit [Imbecilidade-Timidez]
Hölderlin I, 445
Então não te são conhecidos muitos viventes?
171
O teu pé não anda sobre o verdadeiro, como sobre tapetes?
Por isso, meu gênio! Simplesmente entra
Puramente na vida, e não te preocupes!
O que acontece, tudo seja oportuno para ti!
Sejas concordante com a alegria, ou o que então poderia
Ofender-te, coração, o que
Aí suceder, para onde tu deves [ir, para onde tu avanças]?
Pois, desde que celestiais qual humanos, um selvagem solitário,
E os próprios celestiais, guia em direção ao recolhimento [à
meditação]
O canto e dos príncipes
O coro, por classes, assim também estávamos
Nós, as línguas do povo, com prazer junto aos viventes,
Onde muito se associa, alegremente e cada um igual,
Aberto a cada um, assim, pois, até
Nosso Pai, o Deus do Céu,
Que concede o dia pensativo a pobres e ricos,
Que, na transição do tempo, nós os adormecidos
Eretos sobre douradas
Andadeiras, como crianças, conduz.
Também bons e aptos a alguém para algo somos nós,
Quando chegamos, com arte, e dos celestiais
Trazemos um. Mas nós mesmos
Trazemos mãos hábeis.
172
3. APRESENTAÇÃO DA CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM
In den Flüssen nördlich der Zukunft
Werf ich das Netz aus, das du
Zögernd beschwerst
Mit von Steinen geschriebenen
Schatten.
(Nos rios ao norte do futuro
Eu lanço a rede que tu
Hesitante pesada tornas
Com sombras escritas
Com pedras).
(Celan, P. Ausgewählte Gedichte,
Frankfurt am Main, Edition Suhrkamp, 1968.)
O artigo Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem foi escrito em
novembro de 1916, em Munique. .
Benjamin inicia o artigo sobre a linguagem de um modo que exige atenção acurada,
pois foi construído de tal maneira que parece querer estabelecer desde o princípio a
compreensão de que ele mesmo se inclui no sentido que expressa a ponto de toda a
manifestação não poder contar com qualquer entidade ou fator externo à linguagem em
expressão, os quais pudessem observar a sua ocorrência em exposição própria.
Cada manifestação da vida espiritual humana pode ser concebida
como um modo de linguagem, e essa concepção, ao modo de um
verdadeiro método, torna acessível, por toda a parte novas
construções interrogativas. (GS II-1, 140).
A própria frase em sua ocorrência quer ser compreendida como expressão da
vida espiritual do homem comprometida ao modo da linguagem por um lado. Por outro, ela
173
apresenta a relação entre vida espiritual do homem sempre em forma de linguagem como
um caso particular a fazer parte da linguagem em geral que passa a explicitar em seguida.
Portanto, a vida espiritual do homem está como que imersa no âmbito da linguagem,
porém, é apenas uma espécie do total dele. O homem sabe da sua linguagem e, ao mesmo
tempo por ela mesmo sabe que é apenas um modo, mas que não representa o todo da
linguagem. Em suma, toda a vida espiritual do homem é uma espécie de linguagem no
âmbito geral do todo da linguagem e essa concepção expressa pela linguagem, por sua vez,
não pode ser entendida como algo extra-lingüístico que a estivesse analisando de algum
local afastado para uma apreciação meramente objetivada. Por isso, essa concepção
proporciona uma abertura ao modo de um verdadeiro método, um caminho que se cria e se
anda por meio das interrogações que surgem exatamente no seio da mesma linguagem.
Porém, que se ter cuidado. O verdadeiro método que se cria e se anda é possibilitado
pela concepção aludida, que nesses termos, não induz apenas à reduzida atividade de
perguntar, mas ele mesmo se percebe na consciência de que qualquer pergunta está
comprometida com uma construção. Questões que se colocam já sempre trazem consigo as
preocupações surgidas do meio de que provêm. Isto quer dizer que não porto para a
observação geral em que fossem possíveis descrições seguras de algo afastado e sem
relação com a própria pergunta, com a observação, com as descrições e precisamente com
a distância instaurada. A linguagem, portanto, não pode ser suspensa para a análise dela
mesma e, por isso, qualquer pergunta fundamental embutida na análise da linguagem sobre
si mesma deve estar acompanhada da consciência de que também este gesto faz parte da
sua expressão.
Se cada manifestação da vida espiritual do homem pode ser concebida como um
modo de linguagem, então, estão incluídas todas as produções culturais, científicas e
artísticas. É extremamente significativo que a linguagem em geral e a especificamente
humana logo de início são ligadas ao verbo mitteilen que significa comunicar, participar,
notificar. Mas mitteilen é uma junção de mit (com) com teilen (repartir) evocando
imediatamente a imagem de que se está repartindo algo com alguém, ou repartido num
conjunto dado sendo parte de uma totalidade. Os verbos mais adequados para conservar tal
imagem são partilhar, participar, compartilhar. Mesmo o verbo comunicar, isto é, tornar
comum, poderia ajudar na formação dessa imagem, se ele não fosse por demais
comprometido em seu uso costumeiro com uma acepção de linguagem que Benjamin quer
exatamente evitar por considerá-la burguesa. O falar da linguagem é tido como a própria
174
forma de participação numa totalidade desde sempre dada. É evidente que tal idéia evoca
imediatamente a filosofia pré-socrática que nos primórdios da cultura ocidental
propunha o lógoj heracliteano ou o nou^^j anaxagórico como os ordenadores de cada uma
das infinitas partes num todo sempre suposto. Assim, a língua ou a linguagem é entendida
como o elo de ligação e, de algum modo, o próprio medium, o meio em que todas as partes
estão a fazer parte. A participação é linguagem, bem como toda linguagem é participação.
É fundamental notar que Benjamin não tem prurido algum de utilizar qualquer tipo
de material cultural para explicar as suas questões. Percebemos nesse artigo que tanto o
lógoj grego, mencionado mais adiante, como também todas as narrativas dos primeiros
capítulos de Gênesis usadas para a elaboração explicativa, já são considerados como
patrimônio lingüístico comum da humanidade, sem que se deva deixar intimidar a ponto de
prescindir do seu grande potencial elucidativo.
A constatação fundamental, portanto, é a de que tudo é linguagem, sendo a do
homem um caso particular e privilegiado.
Pode-se falar de uma linguagem da música e da plástica; de uma
linguagem da justiça que, de imediato, em nada se refere àquelas
sentenças redigidas em alemão ou inglês; uma linguagem da
técnica, que não é a linguagem técnica dos técnicos. Em tal
contexto, linguagem significa o princípio voltado à participação
[comunicação] nos respectivos objetos: na técnica, arte, justiça
ou religião.(GS II-1, 140)
Essas considerações levam a concluir que a matemática, a técnica e outros não se
pode reduzir a objetividade absoluta do seu funcionamento objetivo e à parte da linguagem
como talvez se pudesse almejar, mas as suas formas de expressão em linguagem cifrada
reivindicam fatalmente a comunhão participativa da linguagem pelo sentido que têm e até
pela própria intenção explícita de se expressar como objetiva no seio da linguagem.
Tudo isso leva ao resultado de que não há conteúdo separado da sua expressão.
Qualquer conteúdo tomado como objetivamente separado da sua participação na
linguagem é esquecimento fundamental, ou seja, de que pode ser em participação e,
portanto, precisamente em forma de linguagem. Benjamin chama à atenção para o fato de
que a linguagem humana é ou baseada, ou funda a justiça e a poesia. A justiça está
intimamente ligada à linguagem, pois sempre emitimos juízos na imediação da fala,
restando saber qual é a relação entre linguagem e juízo, o que é um dos temas centrais em
175
toda a obra de Benjamin. A poesia está evidentemente ligada à linguagem, mas de um
outro modo, que não se propõe a emitir juízos absolutos. Justiça e poesia estão na base
da linguagem ou fundam perspectivas da linguagem, diferentemente da técnica e da
plástica não imediatamente a ela referidas.
Em uma palavra: cada participação de conteúdos espirituais é
linguagem, pelo que a participação por meio da palavra é apenas
um caso especial, ou seja, da linguagem humana, e do que lhe
está na base ou nela fundada (justiça, poesia) (GS II-1, 140).
Quando a linguagem é estendida à totalidade das manifestações humanas e, ainda
mais além, à própria natureza, parece que se institui uma separação drástica entre fala da
natureza e fala humana, pois a afirmação de uma natureza aparece primeiramente com os
sinais de uma objetivação absoluta. É preciso lembrar que a linguagem humana fala de
uma natureza como se fosse uma entidade absolutamente separada. Mas Benjamin está a
elaborar tudo pelo raciocínio da participação enquanto linguagem. Quando o homem fala,
está participando, e quando a natureza fala, está participando também, tanto que de algum
modo um encontro participativo em que os papéis de cada um ainda devem ser
elucidados. Mesmo assim, deve-se logo levar em conta que o homem só pode participar
com a sua linguagem e compreensão da forma com que o todo que ele mesmo propõe.
Essa mesma totalidade pode ser elaborada pela linguagem, sendo, então, que o próprio
todo é falante na interação que o homem está a estabelecer dele fazendo parte. Um todo
não pode ser separado de si enquanto a sua própria expressão, pois se fosse separado da
sua expressão e de algo outro, todo não seria. Portanto, não sendo separado, tem como
característica a linguagem que é precisamente participação, compartilhamento necessário
para que o todo seja de fato todo. A essência de qualquer coisa é ser parte relacionando-se
assim, pois sem esta característica simplesmente não é. O simples estar depende da
suposição de um contexto totalizante e mesmo essa situação é participação no todo. Por
isso:
Mas existência da linguagem não se estende apenas aos campos
da expressão espiritual humana, à qual linguagem sempre é
inerente em sentido estrito, mas se estende a simplesmente tudo.
Não acontecimento ou coisa na natureza orgânica ou
inorgânica, que não faça parte da linguagem de algum modo, pois
é essencial a cada um participar o seu conteúdo espiritual (GS II-
1,140).
176
Estamos sempre na linguagem compreendendo nela, articulando com ela,
objetivando nela. Somos participantes por imersão num todo que de forma alguma
dominamos, o que exatamente é esquecido na objetivação de um conhecimento que se quer
separado da circunscrição lingüística: a linguagem fala muito mais e mais além do que a
mera subjetividade intentando apontar um objeto separado de si; na fala manifestamos
muito mais do que intentamos expressar, pois carregamos conosco todo o sentido
necessário para a construção do sentido reduzido que queremos expressar. Toda a fala
carrega consigo a totalidade da linguagem como sua condição de possibilidade. A fala é
imediata situação de se fazer parte compartilhando de um modo que nunca enxergamos de
todo. Por isso, é necessário alertar que na suposição inevitável do todo articulado em
linguagem, a cada instante é participação.
“Mas a palavra linguagem nesse uso de forma alguma é metáfora” (GS II-1, 141). Nada do que
podemos pensar está fora da linguagem, até mesmo o nada e o tudo que se diz. O silêncio
pode ser cheio de ruídos de vozes que nos acossam do passado presente. A representação
depende da linguagem com os perigos que ela mesma aponta: o esquecimento da
objetivação separada. Esse esquecimento está no centro da tematização sobre a linguagem
humana.
Pois se trata de um conhecimento pleno de conteúdo o fato de nós
não nos podermos representar nada que não participasse a sua
essência espiritual pela expressão; o maior ou menor grau de
consciência com que aparentemente tal participação está
relacionada, nada pode mudar o fato de que nada nos podemos
representar na ausência da linguagem.(GS II-1, 141).
Não pode haver existência alguma à parte da relação com o todo, pois mesmo isso
que se exprime enquanto existência dá-se no suposto do mesmo todo em participação, ou
linguagem. Caso se quisesse falar de Deus, não se poderia nomeá-lo por ser infinita
suposição. Mas nem Deus, então, pode comungar da idéia de algo sem participação, ou
seja, precisamente linguagem, pois Deus é participação de modo especial. Deus se diz
participando.
“Uma existência que fosse sem qualquer relação com a linguagem é uma idéia, mas
essa idéia não permite frutificar nem no círculo de idéias, cuja circunscrição aponta aquelas
que são de Deus”. (GS II-1, 141). A linguagem é expressão participativa e é existência,
participação de conteúdos, ou seja, não de tudo e nem de tudo numa vez só: é continuidade
177
e permanência. A linguagem permanece, porque os conteúdos de que é formada lhe
impingem o ritmo do tempo concretizando-se nas expressões que são ao infinito e em todo
o lugar.
Certo está apenas esse tanto, que nessa terminologia cada expressão deve ser
contada à linguagem na medida em que ela for participação de conteúdos espirituais”. (GS
II-1, 141). A expressão é possível apenas como linguagem, sob o risco de nada podermos
entender e ser. Mas havendo linguagem, deve-se retroceder, voltar, retornar para saber do
que se trata, de que essência espiritual a expressão provem. Sae-se do meio da linguagem
neste procedimento? Certamente não é possível, pois como se poderia deixar de participar?
Mas internamente à linguagem existem as forças coercitivas da compreensão que apenas
na atividade de elucidação hermenêutica tem solução provisória.
E, antes de tudo, de acordo com a sua total e mais interna
essência, a expressão deve ser compreendida apenas como
linguagem; por outro lado, a fim de compreender uma essência
lingüística, é necessário sempre perguntar a que essência
espiritual a imediata expressão então corresponde (GS II-2,141).
A língua não é instrumento pelo qual se pudesse carregar algo outro para despejá-lo
em algum lugar: não é uma essência que é carregada de um lado ao outro por um veículo
chamado linguagem, pois ela é expressão imediata da essência. Num exemplo que se
pode dar, a língua alemã não é um veículo à parte para a transmissão da cultura, do sentido
ou do sentimento germânico, mas é a expressão disso na imediação da sua elocução.
Pode haver tradução para outras línguas daquilo que na língua alemã foi elaborado, mas
essa tradução será, então, conforme a tarefa da tradução, uma nova criação, uma trans-
criação constante, um novo envolvimento do tradutor a quem não é permitida a condição
de mero intermediário de conteúdos, mas de quem se exige a assunção da sua expressão
realizada na leitura e na nova codificação que elabora.
Além disso, aponta-se aqui para o fato de ser simplesmente impossível um
desligamento, ou uma separação de falante e linguagem enquanto objeto de análise como
se fosse separado, ao modo de se querer dizer algo a respeito do dito analisado sem ao
mesmo tempo dizer, isto é, sem fazer uso de palavras para dizer o dito. Como na questão
do método, conta-se com um irremediável comprometimento na análise de tudo ao modo
do dizer, e, aliás, também quando se afirma que não envolvimento participativo na
análise de qualquer coisa dita, pois, por óbvio, dizer que não há, necessita ser dito. Quem
178
fala desta ou daquela maneira, nesta ou naquela intenção está dialogando conforme o que
foi dito no texto de Metafísica da juventude. A única forma analítica mais distante do
dizer é a escuta silenciosa, atenta e participativa. Mesmo assim, quem escuta também está
participando inevitavelmente, pois precisamente a direção do sentido a partir da sua
compreensão elaborada pelos procedimentos da linguagem.
Isto significa: a língua alemã, por exemplo, não é expressão para
tudo que por intermédio dela supostamente podemos
expressar, mas ela é a expressão imediata daquilo que nela se
participa [comunica]. Esse se é uma essência espiritual.(GS II-
2,141)
A essência espiritual é o que se diferencia na atividade da linguagem enquanto
participação. A diferenciação para a qual se chama à atenção não é uma diferença que
pudesse chegar à imagem de separação. Pois a linguagem como participação expressiva de
algo não pode ser a totalidade do que expressa, caso contrário haveria de imediato um
esgotamento semântico e a falta de movimentação participativa da própria linguagem,
que tudo estaria definido à primeira palavra. Mas o fato de haver a linguagem enquanto
relação sempre inovada, deslocamento de sentido e multiplicidade de sentido nas
descrições das coisas, apresentação e contraposição de discursos, aponta para a
inesgotabilidade da expressão de algo que Benjamin aqui chama de essência espiritual.
“Desse modo antes de tudo é evidente que a essência espiritual, a qual se comunica
na linguagem, não é a linguagem mesma, mas algo que dela deve ser diferenciado”. (GS II-
1, 141). A hipótese de esgotar com a palavra a coisa dita, essência espiritual, a partir de
critérios absolutos esquecidos significaria esquecer que a linguagem é em participação
própria na própria confecção de tal opinião. A objetivação geralmente leva ao mal do
esquecimento de que se está a contar com critérios inatacáveis no dizer em ação dividindo
tudo em sim e não. Enquanto isso, o estado de coisas é muito mais rico em detalhes a
serem lembrados: tanto não se esgota o sentido da coisa com um dizer só, como também o
próprio dizer é eivado de pressupostos em sua ocorrência de dizer. Esses pressupostos
também levam consigo a condição de possibilidade do seu dizer, que também nunca haverá
de esgotar, pois qualquer afirmação de esgotamento desenharia a afirmação pretensiosa
de falar de fora da linguagem participativa num local para análise que nunca poderá existir,
que é participação. A linguagem humana enquanto participação, portanto, não pode
querer identificar-se e determinar de maneira absoluta os elementos da participação, ou as
179
coisas, querendo, quem sabe, até substituí-las. Benjamin está a indicar que a participação
em forma de linguagem é uma parte da essência espiritual, ou seja, a expressão dela,
enquanto que sempre ainda um infinito da mesma essência a ser expresso. Esta
condição geral da linguagem geralmente é esquecida, na imaginação de que com uma
palavra se esteja definindo e dominando, de uma vez por todas, as próprias coisas em toda
a sua extensão e em toda a sua participação ainda possível. A colocação dessa hipótese na
filosofia leva a um precipício que é a queda no esquecimento excluindo-se da participação
na tentativa de permanecer do lado de fora de uma totalidade que se pretende descrever
unilateralmente, subjetivamente e à distância. A queda em tal precipício é, então, o erro de
se imaginar sem participação na totalidade que se está exatamente a descrever e nela assim
precisamente participar e, além disso, colocar a hipótese de si mesmo enquanto descrição
no início de um processo no qual, porém, já está infinitamente no meio.
A opinião de que a essência espiritual de uma coisa consista em
sua linguagem esta opinião entendida como hipótese é o grande
abismo que toda a teoria da linguagem ameaça cair, e
permanecer flutuando sobre, exatamente sobre esse abismo é a
sua tarefa. [Numa nota relativa a essa frase consta: Ou é, ao
contrário, a tentação de colocar a hipótese no início que faz o
precipício de todo o filosofar?] (GS II-1, 141).
Para não cair no precipício de uma objetivação absoluta, mas ingênua em sua
concepção também participativa, que fazer uma diferença entre a essência da
linguagem, que é a participação, e a essência espiritual de todo o modo inesgotável. Tal
diferença é mais original e por meio dela se entende melhor o que se está a fazer de modo
participativo numa teorização da linguagem. É impossível alguém dizer que irá analisar a
linguagem com outra linguagem sem ao mesmo tempo assumir que esteja expressando-se
em participação na totalidade da linguagem que é precisamente participação de novo.
Sempre permanecerá no âmbito da mesma linguagem para elaborar algo que supõe melhor,
mais lógico ou mais coerente, mas nunca poderá esgotar definitivamente o sentido de
qualquer coisa, que aqui se chama essência espiritual daquilo que se expressa no dizer
enquanto intenção de objetividade e suposição geral do mesmo dizer esquecido enquanto
condição de possibilidade que o acompanha. Para repetir, a suposição da essência
espiritual inesgotável transluz do próprio exercício da linguagem enquanto atividade
também inesgotável pela fonte de que bebe sem nunca poder deixar de beber enquanto
deslocamento semântico para circunscrever melhor a expressão ocorrente. A coisa
180
intentada é inesgotável semanticamente como também o dizer em todas as suposições, pré-
conceitos, pré-condições que o acompanham para que possa exatamente estar em exercício
de dizer. A suposição de início explicativo geral por meio do lo/goj da filosofia pré-
socrática sempre trouxe consigo o mesmo problema em forma de paradoxo: como se
pode propor o lógoj como princípio geral da totalidade suposta, se ele mesmo é o exercício
na linguagem ocorrente que quer fundar, portanto, a si mesmo como absoluto, apesar da
própria compreensão da sua ocorrência? Benjamin evidentemente não elimina a
contradição, mas quer tê-la presente exatamente para tematização central. Ele sabe, que por
mais sofisticadas que as elaborações no campo da filosofia da linguagem possam ser, elas
geralmente incorrem no esquecimento desta contradição, ou seja, esquecem que estão
participando como expressão precisamente deste modo numa totalidade, a qual sempre
inevitavelmente são obrigadas a supor no mesmo instante em que elas estão em pleno
desenvolvimento do seu discurso. Uma negatividade fundamental é inerente a todo o dizer
ocorrente, pois toda a participação expressando conteúdos por definição sempre será
parcial em seu processo de mapeamento dos mesmos, sendo esta parcialidade precisamente
a forma de participar.
A diferenciação entre a essência espiritual e a essência da
linguagem, à medida que participa, é a mais original numa
investigação teórico-lingüística, e essa diferença parece ser tão
indubitável que a identidade muitas vezes afirmada entre a
essência espiritual e a essência lingüística forma um profundo e
incompreensível paradoxo, cuja expressão encontrou-se no duplo
sentido da palavra L=o(goj. (GS II-2,141).
Benjamin reporta-se, portanto, à palavra grega goj, que desde os pré-socráticos
nos acompanha como um enigma na tentativa de explicação da totalidade que
inevitavelmente se supõe ao dizer e participar por um lado, e, por outro, a compreensão de
que o próprio dizer é participativo no todo que supõe. A definição da identidade que se
quer dizer quebra-se para diferenciar-se da sua suposição, pois tudo se como
compreensão de que o dizer e o dito só podem ser quando fazem parte de algo que até
nesse momento não foi dito definitivamente. Benjamin fala do paradoxo, da contradição da
identidade do lógoj que se quebra em dois no mesmo instante da sua elocução.
Compreender a compreensão só é possível na continuidade da compreensão instaurando o
tempo sucessivo e contínuo como pecado original, que sempre precisa imaginar um
181
ponto de referência fora da linguagem para dizer algo objetivo enquanto identidade em
termos de algo enquanto algo.
O suposto da diferenciação entre as essências (sentido intencional da linguagem e
sentido expressivo) é o que deve prevalecer em toda a investigação sobre linguagem,
apesar de ter o curioso efeito de se dever ter consciência da proibição de esquecer a própria
renovada participação do investigador. Parece ser já o prenúncio da própria proibição antes
do pecado original no Jardim do Éden de não comer da árvore do conhecimento do bem e
do mal, e da vida. O pecado original parece ser, nesta perspectiva, a própria invenção de
um suposto absoluto, separado fora do âmbito da linguagem, a fim de pôr em dúvida o
dizer que esse mesmo suposto possibilita, permanecendo numa dialética paradoxal que se
convencionou denominar como expulsão do paraíso. Os pré-socráticos continuamente
estabeleciam hipóteses teóricas da relação entre o todo e as suas partes e a crítica que
apresentavam uns aos outros tratava, entre outros aspectos menores, invariavelmente dos
defeitos do esquecimento da auto-inclusão do proponente na sua própria elaboração de
sistema filosófico. Benjamin certamente teve presentes as semelhanças entre os antigos
paradoxos gregos, bem como as interpretações possíveis da narrativa do Éden para
tematizar a contradição da linguagem. O artigo Sobre a linguagem em geral e a linguagem
humana faz jus aos esforços de Origines na elaboração de uma síntese entre a filosofia
grega e a incipiente teologia cristã.
De qualquer maneira o paradoxo é insolúvel, mas é salutar enquanto alerta frente a
ingenuidades positivistas. Todo o cabedal filosófico sistemático arrumado tem os seus
pés de barro na falta de recordação do aviso que a própria linguagem na sua imediata
ocorrência de participação no apontamento de algo que nunca poderá dizer
definitivamente. A teoria da linguagem que não contar com ele, erra desde o seu ponto de
partida e exatamente é ele que é o ponto de partida de acordo com todo a angústia
multimilenar do pensamento humano sedimentado na linguagem e por ela alimentado.
Outro recado de Benjamin é o de que a contradição permanece como impasse ou
solução da sua compreensão no centro da teoria da linguagem, ou seja, numa condição de
depois da atividade do dizer já dito, o local em que estamos, pois nos encontramos
dependentes do dito de inúmeros modos para então verificar a contradição contínua
havida e, inclusive, a ocorrer inevitavelmente no nosso dizer atual. Por outro lado,
qualquer falante jamais poderá promover algum princípio enquanto resolução para a
182
construção de um discurso sem a presença do paradoxo, ou da contradição da linguagem:
sempre será insolúvel pelo fato de que a sua solução seria precisamente o esgotamento da
participação. Como visto, quem quiser resolvê-lo como se estivesse no início de tudo e
fora da linguagem para solucionar a questão que é o centro da linguagem, novamente faria
o papel da cobra do Éden a propor o passado separado enquanto início de uma questão
fictícia e inexistente: “Teria, por acaso Deus dito?” (Gênesis, 3,1). O esquecimento
constitutivo na atividade da linguagem de propor sempre um início inexistente é a questão
da cobra que se instaura enquanto tempo na própria compreensão possível na articulação
da linguagem. Quem sabe que está no meio da linguagem, na participação, sabe
simultaneamente que todo o começo é uma hipótese de instauração de começo que
possibilita a sua fundamentação e aplicabilidade a partir do esquecimento de que está no
meio, im Zentrum, na participação, ou na comunicação não no sentido instrumental, mas
profundamente vivencial. Por outro lado, quem explica a totalidade do universo a partir de
uma hipótese tornada absoluta, simplesmente permanece no esquecimento de que também
isto é a sua participação em ocorrência, e pode incorrer em qualquer tipo de retórica
deslumbrada com a realização do movimento de apenas persistente rotação sobre si.
“Mesmo assim, enquanto solução esse paradoxo tem o seu lugar no centro da teoria da
linguagem, mas permanece paradoxo e insolúvel onde ele se encontra no começo”.(GS
II-1, 141).
A linguagem comunica, isto é, torna comum, visível e compreensível a sua essência
espiritual própria. Ela tem a sua correspondente essência que é participação no sentido
ativo como se fosse a dinâmica que possibilita a tudo fazer parte. É possível entender, pelo
modo com que Benjamin diz, que a linguagem participa fazendo parte da essência
espiritual com a capacidade, então, de expressá-la e, ao mesmo tempo, precisamente desse
modo participa possibilitando a notícia do que é, mas simultaneamente também participa
do todo de que faz parte e que inevitavelmente necessita supor em seu próprio
acontecimento.
“O que a linguagem participa? Ela participa a sua correspondente essência
espiritual” (GS II-1, 142). Esquecer-se de que se participa na linguagem é a queda, é o cair
no esquecimento de que se está objetivando como se tudo fosse instaurado a partir do nada
e desde o início. Todos os inícios propostos na ciência e na filosofia são ingenuidades
esquecidas de que são ingenuidades. Elas fazem de conta que há um ponto além do mundo,
183
da história, da sociedade, do universo, da linguagem, e que permite a descrição desde
algum início fora do tempo para que o tempo se inicie seja como for entendido. Qualquer
proposta de tempo, de espaço, de mundo e de linguagem, sempre faz parte do que
propõe instaurando uma hipótese, da qual Benjamin diz que sobre tal precipício que
flutuar (schweben). A linguagem não é um instrumento que se possa dominar
definitivamente por que dela se faz parte, podendo até se dizer que somos linguagem.
“É fundamental saber que essa essência espiritual torna-se participante na
linguagem e não pela linguagem”. (GS II-1,142). O falante de uma língua não se comunica
através da mesma como se pudesse ser algo outro completamente separado da língua que
fala com todas a sua riqueza de sentido. De algum modo o falante sempre é, ele mesmo,
a própria expressão do que está a dizer. Por mais que tente objetivação separada de si como
se houvesse algo fora de si que se pudesse descrever sem a participação efetiva dele
mesmo na própria descrição, não o conseguirá. O falante está inevitavelmente
comprometido com a sua fala seja qual for a especulação ocorrente, que não a
possibilidade da fala humana de não dizer. A intenção de explicitação em termos apenas
objetivos da sua subjetividade mais íntima e distante por compreensão sofisticada, ou
embaralhada em circunvoluções semânticas, é uma flor que se abre em participação difusa
em meio a um mormaço de verão: não está à parte do seu dizer. A parte da essência
espiritual em participação tem na essência lingüística a sua condição de compartilhamento
do todo, de modo que nada do que há pode separar-se da sua expressão nesse mesmo todo.
“Não há, portanto, nenhum falante da linguagem quando com isso se quer apontar
aquele que se comunica por meio dessas línguas”.(GS II-1, 142). Igual à essência da
linguagem a essência espiritual não é de fora, ou seja, a essência espiritual está junto à
participação da linguagem. A linguagem é parte da essência espiritual e nessa parte se
identificam. Não se pode, portanto pensar que a linguagem veiculasse uma essência que é
de fora para dentro de si e para então participar. O fora da linguagem desse modo não há,
pelo fato de ela ser parte efetiva da essência espiritual.
“A essência espiritual participa [faz-se parte] em uma linguagem e não através de
uma linguagem isto quer dizer: não é de fora igual à essência da linguagem”. (GS II-
1,142). Tem-se, então, a tradução de uma essência na outra evoluindo para um só encontro
dinâmico. Como, porém foi lembrado, a essência espiritual não se esgota na essência
lingüística que dela participa, pois a essência espiritual é muito mais vasta do que a
184
discursividade participante da linguagem humana. Há que lembrar de novo: por mais que a
linguagem se dê enquanto objetivação, sempre fará parte, isto é, participará de um todo que
no seu discurso objetivante no ritmo do tempo jamais poderá dizer definitivamente. A
linguagem participa por estar no meio e nunca no início de nada ao modo objetivo, por
mais que se esqueça das hipóteses de um abismo, sobre o qual precisa flutuar como que
sabendo que terá de gaguejar soluções continuamente, afundando, porém, num sem fundo
quando esquece querendo estaquear fundamentos sobre um sem fundo.
“A essência espiritual é idêntica à essência lingüística apenas à medida que é
participante”. (GS II-1, 142). As palavras que se usam na linguagem humana, portanto,
perfazem o encontro com a essência espiritual a ponto de se identificarem. A compreensão
das palavras faz parte de um âmbito caracterizado como espiritual e lingüístico que
sempre é parte de um todo maior do que pode dizer em sua participação discursiva e
falante. Mas é importante que se acentue a afirmação: todas as palavras são parte pela
sua expressão comunicativa a ponto de que em cada palavra a espiritualidade
participante, mesmo que seja numa totalidade que jamais pode alcançar com a sua
participação por meio de definições continuadas.
“O que é comunicável [participante] numa essência espiritual isto é a sua essência
lingüística”.(GS II-1,142). As coisas têm ou perfazem uma essência espiritual da qual a
linguagem faz parte. Mas a linguagem participa de parte dessa essência, mas não diz a
totalidade possível e definitiva. As coisas na linguagem são apenas parte delas, isto é, na
linguagem alcança-se participação apenas numa parte das coisas. Na linguagem, parte das
coisas está definida, mas nem de longe tal definição chega a ser a totalidade do possível
das coisas. As coisas, por sua vez, portanto, m parte na linguagem por sua essência
espiritual.
A linguagem, portanto, participa a essência correspondente das
coisas, mas a parte espiritual destas apenas na medida em que
estiver resolvida na essência lingüística, na medida em que é
participante.(GS II-1, 142).
A linguagem não é algo que instrumentalmente se pudesse utilizar para somente
descrever e definir as coisas como se fosse separada tanto do falante e quanto das coisas,
fora das coisas. Ao contrário, ela mesma, a linguagem, também se identifica como a
própria participação das coisas nela mesma. A parte espiritual da essência identificada à
185
linguagem identifica-se de novo com as coisas que nela são participantes enquanto ditas. A
participação enquanto linguagem também participa do todo que mesmo supõe e essa é a
dificuldade da contradição.
A linguagem participa a essência lingüística das coisas”. (GS II-1, 142). A linguagem é
uma coisa que aparece na participação e a participação é o aparecer. Como se poderia
duvidar de que o fato da linguagem, mesmo que objetivada como coisa e que fosse à
parte de algum falante? O cético que dissesse que não há linguagem estaria a se contradizer
de forma completamente estulta, pois estaria a participar do que nega que existe. Quanto
mais negar, mais irá provar exatamente o contrário.
“A aparência mais evidente disso, porém, é a linguagem mesma”. (GS II-1, 142). A
linguagem é participação, tem o sentido da participação e pode ser enquanto
participação. Portanto, ela não tem algo externo a si para trazer daqui para lá, um o que,
um objeto a mais do que ela mesma seja, mas participa, ela mesma enquanto essência
espiritual das coisas, identificada com a sua própria essência. O que da linguagem é o seu
próprio fato.
“A resposta à pergunta: o que a linguagem participa? diz, portanto: cada linguagem
participa a si mesma”. (GS II-2,142). Benjamin ocupa-se com um exemplo curioso para
alcançar clareza neste estado de coisas: é o exemplo da lâmpada como coisa que tem a sua
linguagem, de acordo com o combinado desde o início de que a linguagem é geral, pois o
que está faz parte do compartilhamento do todo que se supõe. Há, portanto, a lâmpada
mesma e o acontecer participativo da lâmpada que é a sua essência espiritual enquanto
linguagem. Nada se saberia da lâmpada se não fosse a sua expressão na linguagem. Mas
algo pode ser sem se expressar? Parece que não, pois o ser de alguma coisa está
diretamente ligado à sua expressão. A lâmpada mesma, além do que dela percebemos em
sua expressão não seria uma ficção objetivada e separada de novo? Sabe-se que não, pois o
esgotamento cabal do sentido mesmo sendo da lâmpada nunca será realizado.
A linguagem desta lâmpada, por exemplo, não participa a
lâmpada [toda] (pois a essência espiritual da lâmpada, na medida
em que é participante, de modo algum é a lâmpada mesma), mas a
lâmpada-linguagem, a lâmpada na participação, a lâmpada na
expressão.(GS II-1,142).
186
A linguagem das coisas é a sua essência lingüística. Isto quer dizer que o fato de
se falar coisas fazendo-as participar na linguagem e isso é a sua essência, e essência
percebida como participação.
“Pois na linguagem a questão se assim: A essência lingüística das coisas é a sua
linguagem”.(GS II-1,142). Não seria tautologia uma tal afirmação? Não seria o mesmo do
mesmo se dizer que a essência lingüística das coisas é a sua linguagem? Mas a participação
é a continuidade da linguagem enquanto participação num todo que sempre prima pela
impossibilidade de ser dito definitivamente. A tautologia não se põe na frase por essa
razão, pois a linguagem sempre ficará aquém da identificação absoluta, que nunca será
alcançada pela diferença que se institui precisamente como participação, ou seja, como
linguagem. A identidade, ou o mesmo nunca poderão ser ditos pelo simples fato de que
dizer é participação contínua. A tautologia aqui se refere à totalidade sempre suposta na
ocorrência do dizer. A indicação do é como imediação tem o sentido de acentuar a
impossibilidade de se dizer algo como algo independente do dizer. Diz-se algo como algo
dizendo, mas jamais não dizendo; mas precisamente ao dizer algo como algo, na intenção
da identidade, tal dizer já está comprometido com a participação. O é trata da ocorrência da
imediata participação que não pode ser esquecida na pretensão de se dizer algo como algo.
Caso houver tal esquecimento, novamente se está nas garras da ingenuidade metafísico-
positivista que precisa cair no esquecimento para objetivar um critério absoluto do seu
dizer que é sempre exatamente ocorrente e instaurador de hipóteses esquecidas. Assim, o
acontecer da comunicação é a linguagem em acontecimento de participação sempre
referida ao dizer em dinâmica.
A compreensão da teoria da linguagem depende de aclarar essa
frase, que também liquida completamente qualquer aparência de
uma tautologia. Essa frase é completamente sem tautologia, pois
ela significa: isso que numa essência espiritual é participante, é
sua linguagem. Neste “é” (igual a “é imediato”) baseia-se tudo. –
(GS II-1, 142)
Instituir a lâmpada como entidade separada da linguagem e aí começar a calcular as
relações de aproximação com aquilo que primeiramente se separou absolutamente, é
começar de um início fictício. A lâmpada na linguagem já sempre foi lâmpada-linguagem e
a lâmpada mesma ainda está em elaboração infinita de sentido participativo. Mesmo como
invenção de lâmpada em si ela permanece referida a um dos aspectos da compreensão em
plena essência da linguagem em percurso participante.
187
O que numa essência espiritual é participante, não aparece de
forma mais nítida em sua linguagem como ainda pouco se
disse na passagem, esse caráter de ser participante é a linguagem
mesma. Ou; a linguagem de uma essência espiritual é
imediatamente aquilo que nele é participante.(GS II-1, 142).
O todo suposto pode ser todo apenas também pela suposição necessária da
participação efetiva e compartilhada de todas as suas partes, participação que se denomina
linguagem. Por isso, a linguagem é o meio no sentido também de ubiqüidade participante
da essência espiritual e imediação para que o todo possa ser. O medium da linguagem, o
medial, é o seu caráter de imediação e ubiqüidade participante na essência espiritual, de
inevitabilidade de participação imediatamente expressiva apontando diferenças e
identidades em seu percurso e tendo a grande identidade como pano de fundo sempre
suposto, mas a qual nesse percurso nunca poderá definir cabalmente, pois mesmo qualquer
definição dela senova participação efetivamente posta no permanentemente suposto. A
magia positiva da linguagem é primeiramente a sua efetividade imediata do dizer, que é
uma força prática incontrolável pelo dizer, pois qualquer dizer é efetivo, mágico,
interferente na instituição de diferenças constantes que propõe no ritmo do tempo.
como que uma instauração involuntária enquanto verdade a acontecer, que não se pretende,
a partir de uma objetivação, a qual constantemente se pretende como verdade. É como a
situação do paraíso: o homem ouve a voz da proibição da objetivação no esquecimento de
que seu falar é efetivo, participante, criador-instaurador numa totalidade incomensurável.
Mas a voz da proibição da Grande Lei sempre vem atrasada porque proíbe algo que já
desde sempre aconteceu como participação efetiva na objetivação da linguagem mesmo
esquecida. A tentação, ou o esquecimento da construção separada sem a assunção da magia
da participação constante continua até nova recordação envergonhada em que de novo o
homem ouve a voz que lhe pergunta sobre o lugar em que está: Adão, onde estás? E a voz
quase sempre acontece no fim de uma construção esquecida quando a recordação
melancólica sofre um processo de identificação com a ruptura do castelo de cartas: era-se
precisamente isso, sem o saber até então, pelo fato de esquecer da magia comprometedora
da linguagem.
Por isso, o medial é o problema fundamental da teoria da linguagem que como
teoria geralmente esquece da sua auto-inclusão no sistema compreensivo proposto como se
fosse objetivamente separado e fundamentado por critérios incontestáveis. O medial
188
significa, como já dito, que não há a possibilidade do início absoluto, mas que já sempre se
está no meio da participação.
O que em uma essência espiritual é participante, nisso ela
participa mesma; isso significa; toda a linguagem participa a si
mesma. Ou mais precisamente: toda a linguagem participa a si
mesma, ela é o “Médium” da participação no sentido mais puro.
O medial, isto é a faculdade de imediação de toda a participação
espiritual, é o problema fundamental da teoria da linguagem, e
caso se quiser denominar de mágica a essa faculdade de
imediação, então o problema original da linguagem é a sua
magia. (GS II-1, 143).
A magia da linguagem aponta para o infinito, ou seja, para a impossibilidade de em
seu discurso dar conta do próprio infinito, ou início absoluto, ou fundamento absoluto que
propõe. A magia é o sentido da participação da parte que em sua dinâmica reverbera no
todo que constantemente pressupõe. Pode até propor um todo suposto, mas esse mesmo
gesto de suposição e colocação de fundamento navegará sempre em algo infinito
pressuposto que mesmo sinaliza em sua participação. Isto, por outro lado, significa que a
pressuposição está a indicar a si mesma no discurso itinerante e participativo, que a
participação não poderá nunca nessa compreensão propor infinito separado.
“Ao mesmo tempo a palavra sobre a magia da linguagem aponta para algo outro:
para sua infinitude...” (GS II-1,143). Tudo está na linguagem e ela não é o instrumento que
traz algo de fora para dentro. Como a conhecida mônada de Leibniz que não tem janelas e,
portanto, a idéia de algo que não tem fora nem dentro, assim também é a linguagem
para a qual não se pode trazer conteúdos de fora para dentro, mas o que se chama conteúdo
faz parte do espírito da linguagem e deve ser articulado de outro modo. Conteúdos
dentro da linguagem como se fossem carregados por ela estariam a indicar a sua
instrumentação e separação definitiva dos elementos para a possibilidade da objetivação. A
sua instrumentação significaria a sua redução pela possibilidade de manipulação por algo
de fora dela. Mas a incomensurável infinitude da linguagem não pode ter um âmbito de
fora, pois toda a tentativa de manipulação verbal de conteúdos ainda se no âmago da
linguagem. É daí que decorre o seu aspecto gico, pois a mesma tentativa de
manipulação exterior da linguagem desde sempre está fadada ao fracasso, que é
instauração no interior da linguagem em uso, e tal instauração nada mais é do que a
efetivação da participação.
189
Ela é condicionada pela sua imediação. Pois, precisamente pelo
fato de pela linguagem nada se compartilhar, aquilo que na
linguagem se compartilha não pode ser limitado ou medido de
fora, e, por isso, é imanente a cada língua uma infinitude
incomensurável toda especial. É a sua essência lingüística que
indica o seu limite e não os seus conteúdos verbais.(GS II-1,143).
Do mesmo modo como todas as coisas partilham a sua essência espiritual na
participação pela suposição de um todo, também o homem que propõe esta condição total
deve também se auto-incluir. Sua essência espiritual expressa-se, então, em sua linguagem
específica feita de palavras, pela qual participa nesse todo.
A essência lingüística das coisas é a sua linguagem; essa frase
aplicada aos homens exprime: a essência lingüística do homem é
a sua linguagem. Isso significa: o homem compartilha a sua
própria essência espiritual na sua linguagem. A linguagem do
homem, porém, fala em palavras.(GS II-1, 143).
O homem compartilha a sua essência à medida que é compartilhável, pois não é
toda ela que na sua essência lingüística está presente, como também não estava na
linguagem em geral. Caso o homem identificasse a totalidade da sua essência espiritual na
linguagem de uma vez por todas, então estaria completamente definido e não
necessitaria mais da continuidade da linguagem em participação, aliás, não mais estaria
participando e também não mais faria parte do todo que pressupõe.
A característica da participação que é a expressão ininterrupta do homem é a de que
ele nomeia todas as coisas. Não conhecemos outra linguagem nomeadora além daquela que
é a do homem, mas apenas outras que não são nomeadoras. A especificidade da linguagem
do homem é a nomeação de todas as outras coisas.
O homem, portanto, compartilha a sua própria essência (à medida
que é compartilhável) na medida em que nomeia todas as outras
coisas. Mas, conhecemos ainda outras línguas que nomeiam as
coisas? Não se faça reparos no sentido de que não conhecemos
linguagem alguma fora a do homem, pois isso não é verdadeiro.
Apenas uma linguagem nomeadora não conhecemos além daquela
do homem; por meio de uma identificação de linguagem
nomeadora e linguagem em geral a teoria da linguagem despoja-
se da compreensão mais profunda. A essência lingüística do
homem é, portanto, que ele nomeia as coisas. (GS II-1, 143).
É possível perguntar pela razão de tal nomeação, mas a resposta está dada pela
própria característica da participação. O homem participa lingüisticamente nomeando, pois
190
é a sua maneira de participar. Por isso, a pergunta pela razão da nomeação equivale à
pergunta sobre com quem o homem compartilha e de que modo. Pois a sua parte é ao
modo da nomeação de todas as outras criaturas. a participação de todos, desde lâmpada
até raposa, e tal participação de todos possibilita a parte do homem que é nomear tudo.
Para que nomeia? Com quem o homem compartilha? Mas esta
questão no homem é outra em relação a outros
compartilhamentos (linguagem)? Com quem a lâmpada se
comunica? A montanha? A raposa? – Aqui, porém, a resposta diz:
ao homem. Isso o é nenhum antropomorfismo. A verdade dessa
resposta prova-se no conhecimento e talvez também na arte. Além
disso: se lâmpada e montanha e raposa não se comunicassem,
como ele então poderia nomeá-los? Mas ele as nomeia; ele se
compartilha à medida que ele a elas nomeia. (GS II-1, 143).
A expressão indagadora alemã wie teilt der Mensch sich mit? poderia ser traduzida
simplesmente por como o homem se comunica? E, então, desta forma perder-se-ia a
riqueza sugestiva com a qual Benjamin elabora toda a questão. Por isso, essa mesma
indagação deve ser acatada na sua sugestão que traz do seu imaginário original que é:
como o homem faz de si parte? Ou: Como o homem expressa a si como parte? Ou: Como o
homem expressa a sua participação? Pois é conforme a sua maneira de participação que o
homem compartilha. Por isso, compartilhar a sua essência espiritual em nomeação das
coisas, é ele mesmo em acontecimento de participação. Isso resulta em que os nomes que
perfazem a sua forma de participação que, por sua vez, é a sua essência lingüística, a
qual, por sua vez, é expressão da sua essência espiritual, do seu acontecer no todo que
sempre supõe na sua linguagem em compreensão itinerante.
Antes de se responder a essa questão, vale examinar mais uma
vez; como o homem expressa a sua participação? que se fazer
uma grande diferença, colocar uma alternativa, diante da qual a
essencial opinião incorreta sobre a linguagem com certeza se trai.
O homem compartilha a sua essência espiritual pelos nomes que
ele às coisas? Ou nelas? No paradoxo dessa questão está a
resposta. (GS II-1, 143).
Os nomes já são imediatamente a expressão da linguagem humana e não um
instrumento pelo qual o homem apresentaria a sua essência. Os nomes já são a essência
partilhada e denotam o mais íntimo compartilhamento com tudo aquilo que é nomeado.
Não é possível aceitar que é pelos nomes, por meio deles, no uso deles como se fosse um
terceiro elemento que a participação acontece, mas já imediatamente neles o homem
191
expressa a sua essência espiritual. Os nomes das coisas fazem parte do ser do homem que é
constante expressão nomeadora, de modo que nunca poderá dizer que está num outro local
separado da sua própria expressão participativa que assim o caracteriza. A totalidade do
que o homem nomeia é o seu mundo que ao mesmo tempo ele mesmo é.
Quem acredita que compartilhe a sua essência espiritual pelos
nomes, por outro lado não poderá aceitar que partilhe a sua
essência espiritual, - pois isso não acontece pelo nome de coisas,
portanto de palavras, pelas quais ele designa uma coisa.(GS II-1,
144).
Quem acredita na possibilidade de instrumentar os nomes estaria a negar a sua
essência participante e comprometida no contexto do todo em que exatamente assim
participa. Benjamin denomina esta elaboração ficcional a concepção burguesa da
linguagem, pois divide o indivisível, ou seja, a palavra como instrumento de comunicação,
a questão de conteúdo veiculada pela palavra e o destinatário receptor. Tal concepção está
então a esquecer a drástica objetivação que comete, pois imagina que a sua teorização seja
objetiva além e independentemente da linguagem a expressar exatamente esta opinião com
estes elementos em princípio absolutamente separados.
E ele, por outro lado, pode aceitar que esteja comunicando
uma questão a outros homens, pois isso acontece por meio da
palavra. Essa concepção é a concepção burguesa da linguagem,
cuja insustentabilidade e vazio deve decorrer com crescente
nitidez no que segue. Ela diz: o meio da comunicação é a palavra,
o seu objeto a questão [a coisa], o seu endereço o homem. (GS II-
1, 144).
A concepção contrária à concepção burguesa é aquela que Benjamin desenvolve
enfrentando a contradição inerente à linguagem e que se nega em dividir a linguagem em
elementos pretensamente objetivos por meio de uma teoria objetiva também esquecida da
sua imediação como participação, como linguagem. De uma forma abrupta identifica a
contradição da linguagem, que é a própria impossibilidade de uma definição separada sem
participação e que se expressa na constante nomeação participante enquanto essência
espiritual do homem, com o compartilhamento com Deus. O nome que é a essência
espiritual do homem compartilha com aquele que na tradição é indefinível e que neste
contexto até agora foi elaborado como o todo sempre necessariamente pressuposto mesmo
nas várias tentativas de colocação de princípios determinados enquanto suposição
definitiva. Tem-se a afirmação da contradição que é um paradoxo em si, pois Deus é
192
compreendido como suposto que constantemente se anula como circunscrição objetiva
distanciando-se cada vez mais na atividade de dizer.
“A outra, pelo contrário, não conhece nenhum meio, nenhum objeto e nenhum
endereço da participação. Ela diz: no nome a essência espiritual do homem compartilha
com Deus”. (GS II-1,144). A essência espiritual do homem expressa-se no nome, é a sua
linguagem. Sempre o homem será caracterizado pelo comprometimento absoluto do que
diz enquanto nome seja o que for que estiver nomeando. Sob este ponto de vista é
interessante observar o milenar desejo desesperado de lavar as mãos para preservar a
ficção da pura objetividade, como o expressa Pilatos no fim do seu famoso diálogo com o
acusado frente à multidão e se fazendo de desentendido quanto ao dito no início da
conversa frente à multidão: à pergunta és tu o rei? recebe a resposta tu o dizes! Por
parte do acusado trata-se da eliminação de qualquer critério ou fundamento fora da
linguagem que pudesse oportunizar o grau zero de participação responsável no veredicto
final. O acusado indica o gesto de auto-absolvição Pilatos como participação ativa no
processo de julgamento. “Deus espera na contradição da linguagem” é uma afirmação já de
Metafísica a juventude (GS II-1, 93).
O nome tem no âmbito da linguagem unicamente este sentido e
esta incomparável grande significação: que ele é a mais interna
essência da própria linguagem. O nome é aquilo pelo que nada
mais e em que a linguagem a si mesma de modo absoluto se
comunica.(GS II-1, 145).
O nome é a característica da linguagem do homem: é a sua essência espiritual e o
seu jeito de participação, portanto pode ser destacada como a linguagem, hierarquicamente
superior às outras linguagens existentes. Benjamin não se cansa de destacar a importância
do nome, porque a compreensão da inevitabilidade da participação do homem depende
desse conceito: o homem não conseguirá desviar-se da nomeação, aliás, bem entendido, o
homem é a própria nomeação como participação no todo. Caso se quisesse dizer o que a
linguagem é definitivamente, poder-se-ia inventar de tudo, mesmo assim toda a invenção
permaneceria na característica de nomear e esse nomear seria simplesmente a continuidade
da participação. A perspectiva de uma instauração em continuidade significativa como
participação faz-se presente, pois mesmo a colocação da linguagem participativa enquanto
nomeação é também percurso participativo, de modo que é exato e sempre circular quando
193
Benjamin expressa a dinâmica entre essência, compartilhamento e nome, sempre a volta ao
nome num retorno persistente: qualquer dizer é nome.
No nome a essência espiritual, que se compartilha, é a linguagem.
Onde a essência espiritual em seu compartilhamento é a própria
linguagem em sua absoluta totalidade, unicamente ali o nome,
e ali há o nome unicamente. GS II-1, 145).
Há que lembrar que a própria contradição da linguagem é elaborada enquanto
linguagem em participação, não sendo possível, como foi indicado quanto ao aspecto
cético, que se elimine o fato de participar dizendo algo, porque dizer algo sempre é o
fato de participar. A contradição não pode ser eliminada nem numa objetivação de
princípio fundante, nem na compreensão dela em percurso: toda a objetivação de algum
princípio fundante torna-se percurso e todo o percurso supõe um todo em que participa sem
poder dizê-lo como princípio definitivamente, pois a linguagem é limitada à participação,
mesmo em vista da sua hierarquia superior no fato de ser nomeadora. A participação seja
qual for está no meio e é simplesmente linguagem. É este o aspecto intensivo da totalidade,
pois o extensivo enquanto infinito desapareceu, não havendo nem fora, nem dentro. A
totalidade intensiva pode ser assim, que a preocupação extensiva esvaiu-se. A
totalidade imparcial não pode ter nem extensão, nem tempo. O tempo e a extensão
instauram-se no percurso do discurso ao modo da participação.
Isto também significa que a centralidade da linguagem humana é fundamental, pois
todo o significado articulado historicamente depende da linguagem, bem com o próprio
ordenamento em forma de tempo. Na linguagem em exercício participativo ocorre a
instauração continuada ou não do sentido exposto como essência do homem. Na
continuidade da participação lingüística do homem dando nomes a sua presença
participativa continua, pois é exatamente a sua continuidade que configura a expressão da
sua essência. Assim, passado, presente e futuro também estão no acontecimento
participativo da linguagem no todo. No seu dizer, este sendo participativo em
simplesmente linguagem, o homem desloca, mexe e configura sentidos milenares numa
concepção de tempo que recebeu. A continuidade do discurso do homem sobre tudo é
simultaneamente a continuidade da manifestação da linguagem das coisas num encontro
que jamais poderá ser objetivado, pois a própria elocução de tal objetivação seria a
continuidade do encontro. Mas o discurso do homem sobre as coisas é o encontro e é
este aspecto que indica a diferença entre a linguagem do homem e das coisas. A partilha
194
dos nomes já perfaz o encontro. Por isso, a realização desse encontro jamais poderá
desfazer-se pelo erro de querer instaurar uma diferença em que um conteúdo diverso de
algum instrumento linguagem em comunicação esteja exposto em algum lugar como
objeto absolutamente separado. A participação enquanto expressão espiritual na nomeação
a idéia de uma totalidade intensiva sempre em exercício: dizendo o mundo, o mundo é
nomeado, a essência espiritual do homem se expressa e o encontro simultaneamente se dá.
Expressando-se deste modo na nomeação do encontro, o homem vive desse encontro após
a nomeação, ou seja, está no nome que significa o encontro, ou no encontro que significa o
nome.
O nome como parte de herança da linguagem humana, portanto,
garante, que simplesmente a linguagem seja a essência espiritual
do homem; e apenas por isso é que unicamente a essência
espiritual do homem é, sem resto, partilhável entre todos todas as
essências espirituais. Isso fundamenta a diferença entre a
linguagem humana e a linguagem das coisas. Pelo fato, porém, de
a essência do homem ser a própria linguagem, por isso ela não
pode comunicar-se por meio dela, mas somente nela. A síntese
dessa totalidade intensiva da linguagem enquanto essência
espiritual do homem é o nome. (GS II-1, 145).
A natureza está na linguagem do homem e a nomeação feita e em ato nesse
encontro é a expressão do homem. A fala da natureza, naquilo que ela expressa enquanto
sua essência está no dizer do homem que assim nomeia esse encontro que ele mesmo é, ou
seja, a sua expressão espiritual como parte proponente de participação num todo que
precisamente nesta forma de participar ele é obrigado a reconhecer como condição de
possibilidade do seu exercício. Chegar a esta compreensão é chegar à linguagem pura que
é capaz de em seu exercício não se esquecer da contradição da linguagem sempre à
espreita para a instituição do esquecimento na objetivação, a qual é esquecimento do
acontecer em que o homem está imerso sendo enquanto participante em linguagem
nomeadora.
Sendo o homem aquele que nomeia, depreendemos disso que a
partir dele a linguagem pura fala. Toda a natureza, à medida que
se comunica, participa na linguagem, portanto, no homem por fim
das contas. (GS II-1, 145).
O homem é senhor da natureza na expressão que é em participação no todo ao
modo de fomentar o encontro participativo daquilo que nomeia. A essência lingüística das
195
coisas que nomeia é a possibilidade da sua expressão. O homem é o formador de mundo à
medida que nomeando fomenta a participação no encontro como natureza. O homem está
no nome como expressão instantânea de si mesmo, e estar no nome é estar no mundo que
se está a dizer.
“Por isso ele é o senhor da natureza e pode nomear as coisas. Apenas a partir da
essência lingüística das coisas ele chega por si mesmo ao conhecimento delas no nome”.
(GS II-1, 145). Dizer o mundo nomeando as coisas de acordo com a sua essência espiritual
e na continuidade do encontro dá-se a continuidade da criação. O todo, que no exercício da
participação caracterizada sempre é suposto e inesgotável neste mesmo exercício, na
linguagem da nomeação é pressuposto e, precisamente como pressuposição está presente
nessa forma de expressão que na linguagem é apreensível como a sua contradição, ou
seja, a objetivação da linguagem enquanto participação ao modo da nomeação. A
contradição é a própria criação que continua na nomeação pelo simples fato de que, para
ser, a linguagem precisa da suposição do direito de participação em dar nomes ao que se
apresenta e encontra, o próprio direito de ser, e, simultaneamente necessita da suposição da
inesgotabilidade do seu exercício participativo como encontro nomeante. A criação de
Deus, deste modo, nunca é completa enquanto houver nomeação na lembrança da
participação ocorrente em infinitas proposições de objetivação na compreensão da sua
condição e do seu caráter provisórios. O homem continua a nomear a si mesmo em tudo o
que continua a nomear em múltiplas perspectivas. A nomeação expressa-se, então como a
linguagem das linguagens, porque abarca todas as outras.
A criação de Deus consuma-se à medida que as coisas recebem o
seu nome do homem, a partir do qual unicamente a linguagem
fala no nome. Pode-se denominar o nome como a linguagem da
linguagem (caso o genitivo não denote a relação do instrumento,
mas do meio) e nesse sentido, sem dúvida, pelo fato de falar no
nome, o homem é o falante da linguagem. Pela designação do
homem como o falante (isto, porém, por exemplo, é conforme a
bíblia certamente o doador de nomes: “como o homem
denominaria todos os seres viventes, assim eles deveriam chamar-
se”) muitas línguas incluem esse conhecimento metafísico. (GS II-
1, 145).
Benjamin procura especificar melhor o que entende por linguagem dos nomes
indicando que ela é exclamação do sentido de expressão constante daquele que assim
participa por um lado, e, por outro, é invocação de si mesma, é instauração do que se
196
expressa. A linguagem não pode ter para si uma explicação da sua origem, pois toda a
explicação se daria novamente no âmbito dela mesma com todos os seus recursos. O
princípio da sua origem encontra-se nela mesma como já participação desde sempre, já que
até o tempo inicia a se desenrolar a partir da contradição que lhe é inerente e que também
depende da sua expressão em seu percurso. E como vimos, o seu percurso supõe a
contradição entre objetivação e expressão a instaurar o tempo. Ausruf (exclamação,
expressão) e Anruf (evocação, instauração) na linguagem do nome é o homem que se
expressa como exclamação de si mesmo e simultaneamente é instauração do mundo
nomeado ao qual pertence. O homem pronuncia a si mesmo como exclamação de si na
simultaneidade da nomeação ao modo de instauração do mundo, agora como encontro
participativo de si com o nomeado.
Mas o nome não é unicamente a última exclamação, mas é
também a própria invocação da linguagem. Com isso no nome
aparece a lei essencial da linguagem, pela qual pronunciar-se a si
mesmo e pronunciar todo o resto é o mesmo. (GS II-1, 145).
a linguagem do homem é pura na nomeação universal, a qual também é a sua
essência espiritual e que se compreende enquanto compreensão na participação do todo.
No nome, a totalidade intensiva agora se refere à perspectiva da expressão da linguagem
do homem que é a possibilidade de abarcar a essência espiritual de todas as coisas, e a
totalidade extensiva refere-se à instauração, ao mesmo tempo, do mundo das coisas em
continuidade para que o encontro aconteça. De um lado a essência em sua faculdade de
nomeação para participação e, de outro, a essência participante em objetivação na
culminação do paradoxo aludido. De um lado o dizer em ocorrência e, de outro, o dito
pensado enquanto objetivação em validade universal. A culminância dos dois aspectos
seria a linguagem pura. A objetivação para a validação universal extensiva, em termos de
essência participante, num todo posto, é incompleta, melhor, sempre será incompleta
enquanto não for de novo capaz de escapar da objetivação e se tornar lingüística, isto é,
capaz de participação. Por isso, como visto, o todo dito nunca será o todo definitivo,
porque também ele continua a fazer parte na participação do homem em linguagem. A
culminância da linguagem do homem na totalidade intensiva e extensiva é a sua verdadeira
expressão, a pura linguagem a flutuar sobre o precipício e não incorrendo no erro da teoria
da linguagem burguesa em sua procura por solidificações abstrusas.
197
A linguagem e nela uma essência espiritual apenas se
pronuncia puramente ali, onde ela fala no nome, isto significa: na
nomeação universal. Assim, no nome culminam a totalidade
intensiva da linguagem enquanto a essência espiritual
absolutamente capaz de participação e a totalidade extensiva da
linguagem como a essência universal participante (nomeadora).
De acordo com a sua essência participante [mitteilenden], ou
seja, a sua universalidade, a linguagem é incompleta onde a
essência espiritual, que a partir dela fala, em toda a sua estrutura
não é lingüística, isto é capaz de participação [mitteilbar].
Somente o homem tem a linguagem completa de acordo com a
universalidade e intensidade. (GS II-1, 145)
A essência espiritual das coisas, na medida da sua expressão, é lingüística como a
linguagem do homem? Se a essência das coisas realmente for lingüística então se tem o
âmbito do encontro entre linguagem nomeante e a essência espiritual das coisas que é
também linguagem. Em outros termos, o que se tem é a linguagem lá e cá. Um conteúdo da
linguagem não há, por que em todo o lugar a essência espiritual é participação
simplesmente, isto é linguagem em geral de novo. O que se poderia chamar conteúdo
novamente já é participação.
Frente a esse conhecimento, uma pergunta é possível sem o perigo
de confusão, a qual, sem dúvida é de máxima importância
metafísica, mas que neste lugar pode primeiramente ser
apresentada em toda a clareza como uma questão terminológica.
A saber, se a essência espiritual não dos homens (pois isso é
necessário) mas também das coisas e com isso a essência
espiritual em geral, deve ser denominada lingüística na
perspectiva da teoria da linguagem. Se a essência espiritual é
idêntica com a essência lingüística, então a coisa, de acordo com
a sua essência espiritual, é mediação da participação, e o que
nela se participa de acordo com a relação medial é
precisamente este próprio Medium (a linguagem). A linguagem é
então a essência espiritual das coisas. A essência espiritual desde
o princípio é posta como capaz de participação, ou antes,
precisamente é posta no âmbito da faculdade de participação, e a
tese: a essência das coisas é idêntica com a essência espiritual à
medida que a última é capaz de participação, torna-se uma
tautologia com a sua expressão ‘à medida que’. Um conteúdo da
linguagem não há; enquanto participação a linguagem compartilha
uma essência espiritual, isto é, a faculdade da participação
simplesmente. (Idem, 146). (GS II-1, 145).
Se não conteúdo então tudo se em termos de participação que se faz nos
meios de densidade diferenciada: o nomeante em sua expressão lingüística participativa e o
198
nome do participante em sua linguagem, ambos em si separados, mas unidos no âmbito do
processo de participação daquela linguagem que é nomeante. Na linguagem dos nomes
correspondência entre as duas esferas perfazendo o encontro.
As diferenças das línguas são aquelas dos meios que se
diferenciam, por assim dizer, por sua densidade, portanto, de
forma gradual; e isso na dupla perspectiva conforme a densidade
do participante (nomeante) e do comunicável na comunicação
(nome). Essas duas esferas, as quais puramente separadas, mas,
mesmo assim, unificadas apenas na linguagem humana dos
nomes, correspondem-se naturalmente. (GS II-1, 146).
Nesta questão dos graus é necessário recordar insistentemente que Benjamin está a
bater-se com a questão da objetivação. Chegar-se a um resultado que minimamente
insinuasse conteúdos separados da linguagem seria o mesmo que ter perdido a batalha. Os
conteúdos, portanto, devem ser compreendidos como participação expressiva de quem os
propõe. As coisas são conteúdo? Benjamin resolve que não são, porque, com parte da sua
essência espiritual, estão a se expressar lingüisticamente num encontro com a nomeação da
linguagem nomeante do homem. Os antigos conteúdos que daí resultariam seriam no
nome, então, vistos como diferença entre graus em que um pode ser traduzido no outro
superior até a linguagem dos nomes como se fossem graus de ser em analogia com os
graus espirituais da Escolástica. Exatamente este estado de coisas permite que se fale de
metafísica da linguagem. Esse termo quer expressar a necessidade de se pensar para além
da objetivação, simplesmente de acordo com a etimologia grega que desde sempre sugeriu,
primeiramente, um âmbito da fu^sij como resultado de todo o conjunto de explicações
estabelecidas objetivamente e em que todos se compreendem pelas explicitações e
aplicações mais variadas do dia a dia e, depois, a possibilidade de um Metà, um além do
que foi posto, perguntando pelas justificativas da fundamentação de toda a compreensão
ocorrente. O novo que daí pode surgir é sempre revolucionário, percepção de destruição da
estrutura compreensiva de uma época, encarada por alguns como caos e por outros como
revelação de novos tempos.
Neste contexto, a revelação se dá como resultado da percepção da contradição da
linguagem, quando a objetivação do todo suposto é percebida como tendo entrado,
enquanto conteúdo separado, pela porta dos fundos em forma de totalidade extremamente
reduzida pelo esquecimento da nomeação participante e impedida de definir por completo
qualquer todo em seu percurso de participação atenta ao seu caminho necessitado de
199
intermitentes recomeços e desvios. A revelação simplesmente se daria no se dar conta de
que todos os fantasmas criados são formas de participação, resultando daí a necessidade de
uma análise atenta e minuciosa dos mesmos fantasmas objetivados, que em seu sentido
de desaparição são eles os indicadores do novo rumo da participação. Para forçar o
entendimento da passagem da fu=sij para a metafísica, Benjamin repete a afirmação da
identidade de essência espiritual com a essência lingüística: a esclerose instalada como
uma totalidade reduzida é apenas um recado para a sua necessária quebra e destruição a
fim de que o novo possa instaurar-se. A linguagem dos nomes tem o estatuto de revelação
contínua: os nomes são a expressão da abertura constante, da criação contínua, da
Offenbarung que significa processo de abertura além da mera repetição nas pistas de
corrida da objetivação. A revelação dá-se na quebra da objetivação pela linguagem
recolocando a mesma objetivação no seio da mesma linguagem simplesmente para novo
procedimento de graduação do ser. Volta-se ao local em que se esteve com todos os navios
queimados no porto.
Para a metafísica da linguagem decorre da identificação da
essência espiritual e lingüística, que conhece apenas diferenças
graduais, uma gradação de todo o ser em camadas graduadas.
Essa gradação, que acontece no interior da própria essência
espiritual, não se deixa mais incluir sob nenhuma categoria
superior, e por isso ela leva à gradação de toda a essência
espiritual e lingüística conforme graus de existência ou graus de
ser, como a escolástica estava acostumada em relação às
espirituais. A identificação da essência espiritual com a essência
lingüística é, porém, de tanta abrangência metafísica na
perspectiva da teoria da linguagem, porque ela conduz para
aquele conceito que sempre de novo se ergueu como que por si no
centro da filosofia da linguagem e que constituiu a mais profunda
ligação com a filosofia da religião. Trata-se do conceito da
revelação.– (GS II-1, 146).
Nas questões da linguagem tem-se a retidão do dito que se repete em seu sentido e
sua aplicação enquanto dizer resultando numa compreensão companheira sem maiores
sobressaltos. Pode ser de difícil decifração, mas a obstinação na fidelidade aos mesmos
critérios de compreensão representa a garantia do entendimento final. O resultado deste
movimento compreensivo é invariavelmente a objetivação mais acentuada. Apenas a
revelação do impronunciável, a partir do ainda impronunciado no velho esquema
sistêmico-compreensivo, é que pode trazer a linguagem novamente à sua pureza na
compreensão da contradição da linguagem. O conflito acerba-se a ponto de insolubilidade
200
quando se imagina poder programar o dizer do ainda não dito. Como seria possível se a
própria compreensão aferrada em toda a sua extensão à linguagem ficaria enredada ainda
até nas questões de sua auto-programação?
“Em meio a toda a formação lingüística vige o conflito do pronunciado [dito] e do
pronunciável [dizível] com o impronunciável [indizível] e o impronunciado [não-
dito]”.(GS II-1, 146). O termo impronunciável denota simplesmente a possibilidade além
da compreensão em objetivação ocorrente. Esta palavra indica o sentido de uma última, ou
mais alta, ou mais profunda, ou mais abrangente essência espiritual em termos de
derradeira totalidade intensiva em participação total.
“Na consideração desse conflito vê-se, pela perspectiva do impronunciável, ao
mesmo tempo a última essência espiritual”. (GS II-1, 146). Quando se pensa no sentido
inverso, isto é, que a mais alta essência como possibilidade de participação na linguagem
sempre tenha sido dita, tem-se a seguinte tese: o dito, tudo o que foi pronunciado,
mesmo que compreendido objetivamente, já é expressão em que está depositado tudo o que
se quer saber e todas as possibilidades de percepção da participação. O mais pronunciado,
o mais próximo da compreensão costumeira com a colaboração de todas as áreas do saber
e dos textos ditos sagrados, é exatamente o local da profundidade do abismo de onde brota
o sentido da revelação. O cotidiano é revelação pura sem que se saiba. É próximo e
distante como a aura na volta à distância extremamente próxima da linguagem em uso
tornando simplesmente clara a relação entre espírito e linguagem.
Claro, porém, é que na identificação da essência espiritual com a
essência lingüística essa relação da proporção inversa entre
ambos é contestada. Pois diz a tese: quanto mais profundo, isto
é, quanto mais existente e efetivo o espírito, tanto mais
pronunciável e pronunciado, como, pois, por certo se no
sentido dessa identificação, ou seja, tornar simplesmente clara a
relação entre espírito e linguagem, de modo que o
lingüisticamente mais existente, isto é a expressão fixada, o
lingüisticamente mais pregnante e inalterável, em uma palavra: o
mais pronunciado seja ao mesmo tempo o espiritual puro. (GS II-
1, 146).
A revelação deste modo estaria simplesmente na escuta da inviolabilidade da
palavra, na volta à linguagem enquanto participação e compreensão de que até o antigo
conteúdo, mesmo objetivado, é expressão participante. Por este viés trata-se de ler o
mundo objetivado como expressão característica da divindade da essência espiritual. Na
201
suspensão da objetivação na compreensão da participação o mundo torna a ser nomeado. O
mundo pronunciado por objetivação e assim recorrentemente compreendido a ponto de
perfazer a forma de ser do que assim se apresenta é precisamente o livro aberto do qual é
possível haurir o sentido em sua ocorrência.
Exatamente isso é o que o conceito da revelação diz, quando ela
toma a intocabilidade da palavra como a única e suficiente
condição e característica da divindade da essência espiritual que
nela se pronuncia.(GS II-1, 147).
Para a religião, portanto, não o impronunciável, nem o impronunciado. Tudo
foi dito e pronunciado, mas ele é solicitado no nome. A religião para Benjamin indica o
retorno para a compreensão da participação efetiva em todo o dizer. Pelo fato de lhe ser
inerente o reconhecimento da participação na linguagem e toda a palavra ser inviolável
para usos objetais, a religião não conhece o impronunciável, que de qualquer modo seria
objetivação de algum além, mas aposta no dizer a respeito do sempre dito. está
delineado o aspecto da revelação. A religião está baseada, portanto, na aposta da
linguagem nomeante enquanto tradução de tudo o que foi pronunciado e esquecido na
esclerose do esquecimento objetivado. Assim ela acontece enquanto revelação continuada
num processo de Offenbarung: abertura constantemente nomeante frente aos portões da
objetivação. Benjamin cita Hamann, o qual sempre se preocupou com os exageros da
racionalidade triunfante da sua época e que defende que antes da razão sempre já se está na
linguagem para edificar em participação a edificação objetivada da autonomia da razão.
O mais alto âmbito espiritual da religião é (no conceito da
revelação) ao mesmo tempo o único que não conhece o
impronunciável. Pois ele é solicitado no nome e se pronuncia na
revelação. Aqui, porém, se anuncia que unicamente a suprema
essência espiritual como aparece na religião, baseia-se no homem
e na linguagem nele, enquanto toda a arte, sem exceção da poesia,
mesmo que em sua completa beleza, baseia-se não na suprema
essência do espírito lingüístico, mas num espírito da linguagem
objetal. “Linguagem, a mãe da razão e da revelação, seu A eW”,
diz Hamann. (GS II-1, 147).
O homem na linguagem do nome pronuncia as coisas, mas tem na linguagem delas
o seu ponto de encontro para a nomeação. A linguagem do homem é sonora e completa por
ser linguagem participante em dar nomes a todas as coisas. Já a linguagem das coisas é
muda e gica em sua comunhão em que participam materialmente. O homem articula
202
sons que são os símbolos materiais da sua participação em significação espiritual. A
instauração expressiva do homem enquanto formador do mundo é a magia da sua
linguagem. O som é dito e o seu dizer é participação, a magia instaurativa enquanto
participação da ordem que a nomeação apresenta é dita e a própria compreensão que isso
tudo significa é dita na continuidade do dizer, que também é dito.
Entre as palavras, discursos e narrativas pronunciadas para verificação da
possibilidade de expressar melhor a essência da linguagem, Benjamin recorre a uma
tradição específica, fazendo uma interpretação dos primeiros capítulos de Gênesis. Ele a
escolhe, porque trata da linguagem, é linguagem e a sua tradição deu-se como conservação
de um dito importante para a acentuação da centralidade do dizer humano como nomeação.
E Benjamin introduz a narrativa chamando antes à atenção para a questão fundamental:
Deus, ou, como até a pouco, o todo, soprou o hálito no homem, sendo isso
simultaneamente vida, espírito e linguagem. O simbolismo logo indica que o homem é
participação no todo como linguagem que remete à vida e ao espírito.
Mesmo nas próprias coisas a linguagem não é completamente
pronunciada. Essa frase tem um duplo sentido conforme o sentido
figurado e o sentido direto: As linguagens das coisas são
incompletas, e elas são mudas. Às coisas é negado o puro
princípio formal lingüístico o som. Elas podem apenas
comunicar-se mutuamente numa comunidade mais ou menos
material. Essa comunidade é imediata e infinita como a
comunidade de cada participação lingüística; ela é mágica (pois
há também uma magia da matéria). O fator incomparável da
linguagem humana é que sua comunidade mágica com as coisas é
imaterial e puramente espiritual, e para tanto o som é o símbolo.
Esse fato simbólico a Bíblia expressa quando diz que Deus soprou
o hálito no homem; isso é simultaneamente vida e espírito e
linguagem. – (GS II-1, 147)
É imprescindível acentuar a liberdade que Benjamin se na escolha de textos de
apoio para elaborar a questão da contradição da linguagem: o texto de Gênesis é visto
como importante no conjunto dos textos da tradição, sem que haja imediato
comprometimento com alguma ingênua compreensão historicista. Trata-se de uso dos
aspectos descritivos de material milenar, que apresenta uma versão teatralizada da situação
humana e a importância capital da linguagem. A Bíblia é linguagem pronunciada com
amplo aspecto de participação e ao mesmo tempo aborda especificamente a linguagem
como realidade fundamental logo no seu início. Ela se considera revelação e como tal
procura apresentar uma narrativa que indica as questões fundamentais da linguagem.
203
Quando, no que segue, a essência da linguagem é considerada na
base dos primeiros capítulos de Gênesis, então, com isto, não se
trata nem de perseguir uma interpretação bíblica como meta, nem
mesmo agora de pôr ao pensamento reflexivo a bíblia enquanto
verdade revelada objetivamente como fundamento, mas se deve
encontrar aquilo que resulta do texto bíblico quanto à natureza da
própria linguagem; e a Bíblia é antes de tudo por isso
insubstituível, porque essas elaborações no principal a
acompanham no sentido de que nelas a linguagem é pressuposta
como uma realidade final, apenas a ser considerada em seu
desenvolvimento, inexplicável e mística.À medida que a Bíblia a si
mesma se considera revelação, precisa necessariamente
desenvolver os fatos fundamentais. – (GS II-1, 147).
Benjamin inicia com o aproveitamento da segunda narrativa de Gênesis, que em
seu imaginário é muito mais antiga do que a primeira com que a Bíblia começa, porque
põe a divindade como se fosse oleiro confeccionando um bonequinho de barro no qual
inspira o seu hálito sagrado que Benjamin interpreta como vida, espírito e linguagem para
elevá-lo sobre o resto da natureza. Nessa segunda versão a criação do homem não é pela
palavra da divindade, mas a palavra lhe é transmitida após a feitura barrenta: Deus não fala
e transmite ao homem a capacidade da palavra junto com seu hálito significando a sua
própria essência em termos de vida, espírito e linguagem, enquanto que o resto da natureza
permanece muda.
A vontade de Deus enquanto absoluta possibilidade deve ser pensada como
imediatamente criativa em que a própria ocorrência do pensar, nomear e compreender
passo a passo sugere ler e seguir todos os seus rastros.
A segunda versão da história da criação, que narra sobre o
soprar o hálito, ao mesmo tempo informa que o homem foi feito de
terra. Esse é o único lugar em toda a história da criação, na qual
se fala sobre um material do criador, no qual ele expressa a sua
vontade que geralmente por certo é pensada como imediatamente
criativa. Nessa segunda história da criação a feitura do homem
não aconteceu pela palavra: Deus disse e aconteceu -, mas a
esse homem não criado pela palavra é repassada a dádiva da
palavra, e ele é elevado sobre a natureza. (GS II-1, 147).
Na primeira versão da criação que parece mais elaborada e, portanto,
historicamente posterior, a palavra é incorporada ao homem à medida que é nomeado na
rítmica conhecida: faça-se ele criou ele chamou. A palavra é imediatamente criativa
e nomeante: ela instaura de imediato aquilo que nomeia e, por isso, a linguagem é palavra e
nome.
204
Essa peculiar revolução do ato da criação quando se dirige ao
homem, porém, não é menos claramente marcada na primeira
narrativa da criação, e num contexto completamente diferente ele
garante com igual determinação a relação entre homem e
linguagem a partir do ato da criação. A multiforme rítmica do ato
da criação do primeiro capítulo de certo permite uma espécie de
forma fundamental, do qual unicamente o ato da criação do
homem diverge. É certo que em nenhum lugar se trata, nem no
homem e nem na natureza, de uma expressa relação ao material,
do que eles foram criados. E se a cada vez nas palavras “ele fez”
é pensado um criar a partir da matéria, deve aqui ser deixado em
suspenso. Mas a rítmica pela qual se realiza a criação da
natureza (conforme Gênesis I) é: faça-se – ele criou – ele chamou.
– Em atos de criação individuais (I,3;I,14) aparece apenas o
“faça-se”. Nesse faça-se” e no “ele chamou” no início e no fim
dos atos aparece cada vez a profundamente nítida relação do ato
da criação com a linguagem. Com a criativa onipotência da
linguagem ele inicia, e no fim a linguagem, por assim dizer,
incorpora o que foi criado, ela o nomeia. Ela é, portanto, a parte
criativa, e o consumado, ela é palavra e nome. (GS II-1, 148).
Interessa a Benjamin a identificação de Deus com a palavra criativa e nomeadora
enquanto âmbito total e absoluto do conhecimento. Nome e conhecimento estão
relacionados de modo absoluto em participação total e enquanto Medium total. Neste meio
de totalidade de participação o homem participa nomeando as coisas, mas como parte
fazendo-o conforme o conhecimento.
Em Deus o nome é criativo, porque é palavra, e a palavra de Deus
é conhecedora, pois ela é nome. “E ele viu que era bom”, isto é:
ele o tinha conhecido pelo nome. A relação absoluta do nome com
o conhecimento consiste unicamente em Deus, apenas es o
nome, porque ele é profundamente idêntico com a palavra
criativa, o Medium puro do conhecimento. Isto significa: Deus fez
as coisas reconhecíveis no nome delas. O homem, porém, nomeia-
as conforme o conhecimento. (GS II-1, 148).
A especificidade do homem é que ele não foi nomeado como aconteceu com as
outras criaturas na criação, portanto, não está subjugado à palavra, mas a palavra lhe foi
confiada com toda a sua carga criativa e instauradora. Como palavra, Deus é criador em
instauração absoluta. O homem como palavra é conhecedor apenas em parte, e isto
significa que as suas palavras são reflexo da essência criativa da palavra de Deus no nome
enquanto participação. O nome participativo, como a expressão diz, ativa-se na
participação analítica numa circunscrição que, se comparada, é ilimitadamente criativa
força da palavra de Deus. A palavra participativa em exercício analítico e hermenêutico
205
jamais poderá prescindir em sua atividade de participação da palavra absoluta enquanto
suposto sintético. Sempre haverá uma a necessidade da suposição dessa diferença
fundamental.
Na criação do homem a tríplice rítmica da criação da natureza
cedeu a uma ordem completamente diferente. Nela, portanto, a
linguagem tem um outro sentido; a trindade do ato é também aqui
preservada, mas precisamente no paralelismo manifesta-se o
distanciamento com tanto maior vigor: no tríplice “ele criou” do
versículo I, 27. Deus não criou o homem a partir da palavra, e ele
não o nomeou. Ele o queria subjugá-lo à palavra, mas no
homem Deus livremente abandonou a palavra que lhe tinha
servido como dium da criação. Deus descansou quando no
homem deixou a sua criatividade entregue a si própria. Essa
criatividade, dispensada da sua atualidade divina, tornou-se
conhecimento. O homem é o conhecedor da mesma linguagem em
que Deus é criador. Deus o fez à sua imagem, ele criou o
conhecedor à imagem do criador. Daí é que necessita de
explicação a frase: A essência espiritual do homem é a linguagem.
A sua essência espiritual é a linguagem na qual houve criação. Na
palavra foi criado, e a essência lingüí stica de Deus é a palavra.
Toda a linguagem humana é apenas reflexo da palavra no nome.
O nome alcança tão pouco a palavra como o conhecimento a
criação. A infinitude de toda a palavra humana sempre permanece
como essência limitada e analítica em comparação com a
infinitude da palavra de Deus absolutamente ilimitada e criativa.
(GS II-1, 149).
O nome próprio que o homem recebe reveste-se de enorme importância nesse
contexto. O homem não é nomeado por Deus como as outras criaturas, mas é o único de
todos os seres que recebe o nome próprio como que para se nomear a si mesmo na
continuidade da criatividade na nomeação de todas as coisas. O homem assim é criativo
pelo nome, que pela nomeação ele é formador do seu mundo. No modo dessa mesma
participação em linguagem o nome do homem é seu próprio destino, pois faz o seu nome.
Com o seu destino no nome próprio em sua participação nomeante de todas as coisas
expressa a sua comunhão com Deus, o qual, por sua vez, permanece com a sua palavra
criativa no homem assim caracterizado.
Percebe-se que Benjamin na análise do texto bíblico tem a oportunidade de
corroborar e até enriquecer com mais detalhes a sua concepção de linguagem.
A imagem mais profunda dessa palavra divina e o ponto em que a
linguagem humana alcança a participação mais íntima na
infinitude divina da simples palavra, o ponto em que ela não se
pode tornar palavra e conhecimento finitos: isso é o nome
206
humano. A teoria do nome próprio é a teoria sobre o limite da
linguagem da linguagem finita e infinita. De todas as criaturas o
homem é o único que nomeia o seu igual, como então também é o
único que Deus não nomeou. Talvez seja intrépido, mas custa a
ser impossível nomear nesse contexto o versículo 2, 20 em sua
segunda parte: que o homem deu nome a todas as criaturas, “mas
para o homem não se havia encontrado uma ajudante que
estivesse ao seu lado”. Como, então também, Adão nomeou a sua
mulher logo que a recebeu. (Varoa no segundo capítulo, Eva no
terceiro). Com a doação do nome os pais consagram os seus filhos
a Deus; Ao nome, que eles dão não corresponde entendido
metafisicamente e não etimologicamente nenhum conhecimento,
conforme o modo de eles também denominarem as crianças de
recém nascidas. De acordo com a severidade do espírito, também
nenhum homem deveria corresponder ao nome (conforme o seu
sentido etimológico), pois o nome próprio é a palavra de Deus em
sons humanos. Com ele a criação de Deus é garantida a cada
homem, e neste sentido ele mesmo é criativo, como a sabedoria
mitológica o expressa na intuição (que certamente não raro se
encontra), que o nome do homem é o seu destino. O nome próprio
é a comunhão do homem com a palavra criativa de Deus. (Esta
não é a única, e o homem conhece ainda uma outra comunhão
lingüística com a palavra de Deus). (GS II-1, 149-150).
Os aspectos enumerados das sugestões da narrativa bíblica cooperam para negar
a concepção burguesa da linguagem, pois, pelo visto, a palavra nunca é apenas sinal de
outra coisa, mas já à simples menção é constitutivamente participante no mundo do
homem, em sua forma de participação. O nome das coisas é dar-lhes a conhecer o seu
nome pela participação nomeante do homem. Novamente aqui deve ser ressaltado o
aspecto do encontro pela participação mútua que lingüisticamente se constitui.
Se a concepção burguesa pelo seu viés objetivante representa o esquecimento da
riqueza da dádiva da palavra, a concepção mística também incorre em erro quando toma a
palavra como a própria essência da questão. A coisa em si mesma não tem palavra humana
para se nomear, ela foi feita e nomeada, mas é muda em sua mágica participativa para
chegar a conhecer o seu nome pela palavra participativa nomeante do homem.
Descartada a concepção burguesa, bem como a mística, que se alertar para o
engano de entender a nomeação do homem como criação espontânea. A palavra do homem
não cria as coisas espontaneamente como Deus, pois está no meio da participação em
que nomeia o que foi criado fomentando o encontro na formação do seu mundo e do seu
destino à medida que as coisas se lhe comunicam. Tal encontro participativo mútuo
continua enquanto permanecer a silenciosa e muda magia de Deus na natureza para a
207
continuidade da possibilidade da participação do homem que a nomeia de acordo com a
sua tarefa.
Pela palavra o homem está ligado à linguagem das coisas. A
palavra do homem é a linguagem das coisas. Por isso não mais
pode surgir a representação que corresponde à visão burguesa da
linguagem, que a palavra se relacione arbitrariamente com a
questão, que ela por meio de alguma convenção seja o sinal
convencionado [posto] das coisas (ou do seu conhecimento). A
palavra nunca simples sinais. Equivoca, porém, também é a
recusa da teoria da linguagem burguesa em troca de uma mística.
Pois, conforme ela, a palavra é simplesmente a essência da
questão [coisa]. Isso é incorreto, porque a coisa em si não tem
palavra: ela é criada a partir da palavra de Deus e conhecida em
seu nome conforme a palavra humana. Esse conhecimento da
coisa, porém, não é criação espontânea; ele não acontece a partir
da linguagem de modo absolutamente ilimitado e infinito como
ela; mas o nome que o homem à coisa consiste na maneira
como ela se lhe comunica. No nome a palavra de Deus o
permaneceu criativa: ela em parte tornou-se receptora, mesmo
que receptora de linguagens. Essa recepção está voltada para a
linguagem das coisas mesmas, das quais novamente a silenciosa e
muda magia da natureza de Deus resplandece. (GS II-1, 150).
O encontro da essência lingüística do homem e da essência lingüística das coisas na
palavra humana é por Benjamin indicado como recepção e espontaneidade, lembrando com
esses termos a filosofia kantiana da Crítica da razão pura. O âmbito da recepção e da
espontaneidade parece perfazer a circunscrição em que se o encontro da participação do
homem e das coisas participantes com sua essência lingüística que não é sonora e
espiritual, mas muda e material como que remetendo também às questões da sensibilidade
discutidas nesse contexto kantiano. Assim, o que é mudo e sem nome, que é o mundo das
coisas, vem a receber o seu nome sonoro na palavra humana para a formação de mundo.
Essa formação de mundo assim entendida é o processo de tradução de uma linguagem na
outra. As coisas dão o seu recado numa linguagem muda recepcionada pelo homem e este
as traduz em suas palavras participando precisamente desse modo no todo que sempre é
obrigado a supor. A linguagem das coisas traduzidas na linguagem humana é o mesmo
processo de nomeação pelo qual o homem se define no todo que pressupõe.
Para recepção e espontaneidade simultaneamente, como se
encontra nessa exclusividade da ligação apenas no âmbito
lingüístico, a linguagem tem a sua palavra própria, e essa palavra
também vale para a recepção do sem nome no nome. Trata-se da
tradução da linguagem das coisas para a linguagem do homem.
(GS II-1, 150).
208
A tradução é de algum modo a própria linguagem, pois o vir a ser do homem
nomeante em participação se como nomeação de si pela nomeação das coisas ao
modo da tradução. Se não houvesse a circunscrição onde a tradução acontece, também não
haveria a tradução. Assim, a linguagem superior do homem traz consigo a tradução de
parte da linguagem muda das coisas e essa é a sua participação ao modo de ser parte no
todo. Toda a linguagem superior é tradução de todas as outras. As línguas humanas
envolvidas nessa tradução primeira entrelaçam-se formando um contínuo de
transformações de uma a outra nas traduções promovidas. Essas transformações, em
termos dos explicados graus de ser, não repassam conteúdos simplesmente como se fossem
à parte de uma e outra língua, mas a língua tradutora investe numa torção de si a exemplo
da nomeação das coisas em que se forma um campo comum de participação mútua
altamente criativa por ser precisamente nomeante.
É necessário fundamentar o conceito de tradução na mais
profunda camada da teoria da linguagem, pois ele é por demais
abrangente e potente para poder ser tratado posteriormente numa
perspectiva qualquer, como às vezes se opina. O seu completo
significado ele recebe na compreensão de que toda a linguagem
superior (com exceção da palavra de Deus) pode ser comparada
como tradução de todas as outras. Com a mencionada relação
das línguas como relação de Mediums de variada densidade, a
tradutibilidade das línguas é concedida de modo entrelaçado. A
tradução é a condução de uma língua na outra por meio de um
contínuo de transformações. A tradução percorre continuidades
de transformação e não âmbitos de igualdade e semelhança. (GS
II-1,151).
A possibilidade da tradução das coisas se deu na criação quando o homem ficou
responsável pela nomeação participativa em tornar sonoro o que não tem nome na
linguagem das coisas. Benjamin expressa-se a respeito da nomeação divina de tudo como
identidade. E a garantia da palavra criativa e do nome para a tarefa de tradução posterior é
a identidade sempre dada, enquanto que o homem é linguagem em participação
subsistente na diferença da contínua tradução. A tradução em constante transformação
perde o seu caráter aleatório quando é pensada no suposto da identidade, que aqui
Benjamin explicita como parentesco de toda a tradução em Deus.
A tradução da linguagem das coisas na linguagem dos homens
não é apenas tradução do mudo para o sonoro: ela é a tradução
do sem-nome no nome. Isso, portanto, é a tradução de uma
linguagem imperfeita numa perfeita; ela não pode fazer nada mais
209
do que algo em favor, isto é, o conhecimento. A objetividade dessa
tradução, porém, tem a garantia em Deus. Pois Deus criou as
coisas, a palavra criativa nelas é o gérmen do nome conhecedor,
conforme Deus também nomeou cada coisa no fim, depois de ter
sido criada. Mas evidentemente essa nomeação é apenas a
expressão da identidade da palavra criativa e do nome
conhecedor em Deus, não a solução pré-concebida daquela tarefa
que Deus atribui expressamente ao homem: a saber, nomear as
coisas. À medida que recebe a muda linguagem sem nome das
coisas e a traduz para o nome em sons, o homem soluciona essa
tarefa. Ela seria insolúvel, se a linguagem dos nomes do homem e
a linguagem sem nome das coisas não ficassem aparentadas em
Deus, dispensadas a partir da mesma palavra criativa, que, nas
coisas, teria sido a participação da matéria em comunhão mágica,
no homem, a linguagem do conhecimento e do nome em espírito
bem-aventurado.(GS II-1, 151).
A fim de dar suporte á sua interpretação do texto bíblico como documento
fundamental para exemplificar a importância da linguagem e as questões que na elaboração
surgem, Benjamin traz o testemunho de Hamann novamente e o pintor Mueller. Hamann
acentua a simplicidade da linguagem quando compreendida na sua tarefa participativa de
nomeação enquanto palavra viva em transformação de si para a formação de mundo e
destino, e nisto a palavra viva era Deus. O pintor Mueller colabora com a idéia do
aperfeiçoamento do homem pela palavra numa ligação entre intuição e nomeação
participativa na formação do mundo. Na pintura de Mueller, os animais recebem um sinal
de Deus para reconhecimento, o que significaria a maravilhosa comunhão de tudo com
Deus na linguagem. Essa concepção pretende ser uma explicação na evolução do
conhecimento e na compreensão geral do homem na linguagem. Tudo o que o homem
produz em ternos de conhecimento é ao mesmo tempo nomeação tradutora em série no
todo de que faz parte na forma do grande paradoxo, ou da contradição da linguagem: tudo
o que o homem disser será participação no todo e não o todo desde o início ordenando
sempre a partir de nova criação.
Haman diz: “Tudo o que o homem ouviu no início, com os olhos
viu...e suas mãos tatearam,...era palavra viva; pois Deus era a
palavra. Com essa palavra na boca e no coração a origem da
linguagem foi tão natural, tão próxima e fácil como um brinquedo
de criança...” O pintor Mueller, em sua poesia “ O primeiro
despertar e primeira noites bem-aventuradas de Adão”, [152] põe
Deus a chamar o homem para a doação dos nomes com estas
palavras: “Homem da terra, aproxima-te, torna-te mais perfeito
no intuir, torna-se mais perfeito pela palavra!” Nessa ligação de
intuição e nomeação é pensada intimamente a participante mudez
das coisas (dos animais) em direção à linguagem de palavras do
210
homem. No mesmo capítulo da poesia do poeta expressa-se o
conhecimento de que apenas a palavra, da qual as coisas foram
criadas, permite ao homem a nomeação delas à medida que essa
palavra, nas múltiplas línguas dos animais, mesmo que mudas,
comunica a si mesma de acordo com o quadro: Deus dá aos
animais, em série, um sinal, a partir do qual eles comparecem
diante do homem para a nomeação. De uma forma quase que
sublime a comunhão da linguagem com Deus é assim doada à
criação muda no quadro do sinal.(GS II-1, 151-152).
Apesar de toda a identidade no grande todo, ou em Deus, a palavra das coisas é
infinitamente distante da palavra humana, como esta também em sua participação
ocorrente enquanto contínua nomeação tradutora está infinitamente distante do absoluto.
Como vimos, o nome das coisas se ao modo da tradução numa dinâmica criativa na
linguagem humana. As línguas existentes são todas elas traduções da linguagem das coisas,
mas são imperfeitas, pois a tradução nomeante perfeita foi a linguagem paradisíaca, ela
foi perfeitamente conhecedora. Posteriormente iniciou-se a multiplicidade das linguagens
num estágio agora de quantas traduções da linguagem das coisas, tantas novas línguas.
À medida que a palavra muda na existência das coisas permanece
tão infinitamente distante atrás em relação à palavra nomeante no
conhecimento do homem, como esta, por outro lado, certamente
permanece em relação à palavra criadora de Deus, está dado o
fundamento para a multiplicidade das línguas humanas. A
linguagem das coisas pode ingressar na linguagem do
conhecimento e do nome na tradução quantas traduções, tantas
línguas, a saber, uma vez logo que o homem caiu da condição
paradisíaca, que apenas conhecia uma língua. (Conforme a
bíblia, essa conseqüência da expulsão do paraíso acontece, sem
dúvida, mais tarde). A linguagem paradisíaca do homem deve ter
sido a perfeitamente conhecedora; ao passo que, posteriormente
mais uma vez todo o conhecimento na multiplicidade da
linguagem diferencia-se infinitamente, de qualquer modo tinha
que se diferenciar num nível inferior enquanto criação no
nome.(GS II-1, 152).
A linguagem nomeante era perfeita e, deste modo, a participação do homem na
criação era também conhecedora dos sinais dados por Deus às coisas. Benjamin argüi que
conhecimento no paraíso havia, pois Deus desde o início sabia e a participação do
homem já era a de formação de conhecimento a ponto de que tudo estava muito bem.
Portanto, a árvore do conhecimento deve significar outra coisa do que a proibição do
conhecimento, que isso seria perfeitamente absurdo. Na verdade, trata-se da retirada do
nome do conhecimento, de um conhecimento sem nome, da invenção de uma entidade
211
divina fora da participação nomeante com estatuto de absoluto separado para, por outro
lado, fazer o papel de fundamento para a possibilidade do julgamento. Deus é posto para
fora da própria participação nomeante e não mais é entendido como identidade na qual e
pela qual a ocorrência da participação é possibilitada, mas sem nunca a poder definir.
Agora Deus definido e de fora da participação é fundamento para a separação e
afastamento de tudo. É o esquecimento da contradição da linguagem pendendo para apenas
o lado da objetivação. O flutuar sobre o abismo cessou e o homem então inicia a queda no
mesmo abismo sempre à procura de novos fundamentos. Trata-se aqui do górdio da
compreensão da objetivação que deve ser cortado para a possibilidade da volta. O corte
seria as amarras da objetivação para a compreensão da contradição da linguagem com sua
ambivalência de participação em diferença tradutora no suposto da identidade sempre
subjacente. Com a objetivação a palavra perde a sua magia tornando-se instrumento de
objetos separados uns dos outros.
Portanto, que a linguagem do paraíso tivesse sido perfeitamente
nomeante, isso também a existência da árvore do conhecimento
não pode encobrir. Suas maçãs deveriam proporcionar
conhecimento sobre o que é bem e mal. Deus, porém, havia
conhecido no sétimo dia com palavras da criação. E, veja, era
muito bom. O conhecimento para o qual a cobra seduz, o saber
sobre bem e mal, é sem nome. Em sentido mais profundo ele é
nulo [sem efeito], e esse saber é precisamente o único mal que a
condição paradisíaca conhece. O saber sobre bem e mal
abandona o nome, ele é um conhecimento de fora, a imitação sem
criatividade da palavra criadora.(GS II-1, 153).
O pecado da queda, por incrível que pareça é a invenção de Deus como fundamento
de tudo por separação pela qual é colocado como garantia do julgamento sobre o bem e o
mal. É a invenção da origem absoluta para possibilitar o entendimento do tempo em linha e
instituir o passado absolutamente positivado de modo objetivo. Inventa-se Deus em forma
de ídolo para poder condenar e esquecer que a condenação é também participação no todo
que sempre se supõe. A natureza perde o parentesco com o homem e torna-se um absoluto
outro no esquecimento de que também isso é participação. Inventam-se miríades de
justificativas para milhares de construções teóricas por meio da linguagem para tanto
instrumentada esquecendo-se que também tudo isso é participação do sentido de cada vez
mais afastamento de uma com compreensão da contradição da linguagem em que Deus
espera.
212
O contínuo esquecimento na objetivação na decadência da linguagem cumpre o
veredicto da cobra de ser como Deus em imagem, pois a imagem formada da divindade
separada é a projeção participativa do homem que no esquecimento dessa dobra nela se
fixou para o julgamento.
O nome sai por si mesmo desse conhecimento: o pecado da queda
é a hora do nascimento da palavra humana, na qual o nome não
mais vivia ileso, a qual saiu da linguagem do nome, da
conhecedora, para se tornar, por assim dizer, expressamente
mágica a partir de fora. A palavra deve comunicar algo (fora de si
mesma). Este é, de fato, o pecado da queda do espírito da
linguagem. A palavra como externamente comunicante, por assim
dizer, uma paródia da palavra expressamente em participação na
relação com a expressamente imediata, a palavra criadora de
Deus, e a decadência do espírito da linguagem bem-aventurada,
da linguagem adamítica, a qual está entre as duas [anteriores].
Portanto, no fundo de fato existe identidade entre a palavra que
conhece bem e mal de acordo com a promessa da cobra e a
palavra externamente comunicante. (GS II-1, 153).
O conhecimento sobre o bem e o mal sem a participação no nome resulta no
entendimento de Kierkegaard que o denominou tagarelice. O homem da queda é
essencialmente tagarela na segurança de si e esquecido da questão central. E, conforme
também Kierkegaard, a única solução é o julgamento de si mesmo em que pecado e castigo
identificam-se, pois caso se quisesse achar um juiz para o julgamento para tal queda na
objetivação, então se estaria reiterando ad infinitum o mesmo gesto. O processo da culpa e
do castigo leva à morte do pecador com a sua volta à linguagem nomeante e participativa.
“A palavra julgadora castiga o despertar de si mesma como a única e profunda culpa a
espera”. (GS II-1,153). A lembrança acompanhada da compreensão da volta, do retorno à
participação, é de difícil execução própria, uma vez iniciado o movimento de queda na
objetividade. A lei, a Grande Lei é o castigo da espera diante da porta da lei pedindo e
apresentando argumentos variados para entrar definitivamente com um fundamento
absolutamente convincente, que simplesmente não existe, e por isso, morre de velho e à
míngua, ou, num processo do qual o homem nem sequer se reconhece culpado, como nos
escritos de Kafka. A espera é a continuidade da queda e do castigo, a insistente atualização
da magia da objetivação numa constante procura por novos fundamentos, pois todos eles se
esvaem um após o outro. A espera é a sentença continuada.
O conhecimento das coisas consiste no nome, porém, o
conhecimento sobre o bem e o mal é tagarelice no sentido
213
profundo como Kierkegaard concebe essa palavra, e conhece
apenas uma depuração e elevação sob o que também o homem
tagarela, o pecador, foi subordinado: o juízo [julgamento]. Sem
dúvida, o conhecimento sobre bem e mal é imediato à palavra
julgadora. A sua magia é outra daquela do nome, mas magia do
mesmo jeito. Essa palavra julgadora expulsa os primeiros seres
humanos do paraíso; eles mesmos a exerceram seguindo uma lei
eterna de acordo com a qual essa palavra julgadora castiga o
despertar de si mesma como a única e profunda culpa e espera.
que a eterna pureza do nome foi maculada, elevou-se no
pecado da queda a mais severa pureza da palavra julgadora, da
sentença. (GS II-1,153).
Tem-se agora dois tipos de magia: a do nome enquanto participação e a do
julgamento que se na quebra da compreensão da imediação participante da linguagem.
Os dois tipos de magia mencionados equivalem à compreensão que recorda o
esquecimento na objetivação e a incompreensão do esquecimento da objetivação. A magia
da linguagem enquanto participação nomeante instaurador e a magia da instauração da
espera na culpa e sentença da queda em objetivação com fundamento posto e esquecido.
Benjamin arrisca uma terceira conseqüência desse estado de coisas que é a tentativa
de entendimento da abstração da própria linguagem como queda. Abstrair da linguagem
tentando fazer dela um objeto de análise separado da linguagem em execução é talvez
querer cumprir a tarefa mais de objetivação. Pois, no fim das contas, a colocação de
bem e mal significou o abandono da linguagem participativa, mas tal abandono é seu
próprio julgamento a respeito do que não existe juiz para julgar sobre bem e mal, a não ser
a eterna recorrência: a linguagem é seu próprio chão.
A eterna recorrência do igual é queda em cascata no precipício sem fundo à procura
por fundamento fazendo abstração de si enquanto linguagem nesse processo. Não se
consegue mais pairar acima desse buraco sem fundo.
Para o contexto essencial da linguagem a queda do pecado tem
um tríplice sentido (sem aqui mencionar ainda outros). À medida
que o homem abandona a pura linguagem do nome ele faz da
linguagem um instrumento (ou seja, um conhecimento adequado a
ele), e, com isto de qualquer modo, também numa parte em
simples sinal; e isso tem por conseqüência a multiplicidade das
línguas. O segundo sentido é que agora se eleva da queda do
pecado uma nova magia, que não mais descansa bem-aventurada
em si mesma, a magia do julgamento enquanto restituição da
lesada imediação do nome.O terceiro sentido, cuja suposição
talvez se possa arriscar, seria que se deva procurar no pecado da
queda a origem da abstração enquanto capacidade do espírito da
214
linguagem. Pois bem e mal enquanto inomináveis, enquanto sem
nome, permanecem exteriores à linguagem do nome, que o homem
precisamente abandonou no abismo da colocação dessa questão.
(GS II-1, 153-154).
Tudo isto significa que todos os fundamentos postos são substituições do nome
verdadeiro que exigiria a compreensão contínua da participação ocorrente, uma
manutenção inabalável da compreensão da contradição da linguagem. Significa o desabafo
de Kant quando conclui que as fontes secretas do entendimento não são acessíveis ao
próprio entendimento. Kant, além disso, coloca as idéias como ficções que devem ser
descobertas continuamente no processo empírico, idéias que não mais se pode provar, mas
sob as quais fundamos o nosso julgamento Isso também força o aspecto dedutivo
esquecido da análise da colocação do fundamento em que a dedução se dá. Lembra
igualmente Platão quando fala de stéresij e métexij como dois direcionamentos contrários
em meio aos quais numa situação medial o pensamento se supondo uma totalidade
inapreensível e apenas suposta como sumo bem..
Porém, na perspectiva da linguagem existente, o nome
oferece agora o fundamento em que seus elementos
concretos enraízam. Os elementos abstratos, porém, - assim
talvez se possa supor enraízam-se na palavra julgadora,
na sentença. A imediação (isto, porém, é a raiz lingüística)
da participação da abstração está dada na sentença. Esta
imediação na participação da abstração instituiu-se
julgadora quando no pecado da queda o homem
abandonou a imediação na participação do concreto e
decaiu no abismo da mediação da mediação, da palavra
como instrumento, da palavra vã, no abismo da tagarelice.
Pois mais uma vez isso deve ser dito tagarelice foi a
questão sobre o bem e o mal no mundo após a criação. A
árvore do conhecimento não estava por causa dos
esclarecimentos sobre bem e mal que ele poderia dar no
jardim de Deus, mas como um emblema do processo ao
perguntador. Essa colossal ironia é a marca da origem
mística do direito. (GS II-1, 154).
A queda na objetivação tem como gesto simultâneo, como visto, a formação da
imagem do fundamento separada a oportunizar deduções. Portanto, quanto mais imagens e
fundamentos separados em construção qual Torre de Babel, tanto mais línguas. Pela
intuição das coisas o homem a linguagem ainda se dissolvia no homem, mas no
afastamento dessa intuição e pela formação de imagem separada o homem foi roubado de
um fundamento que o acompanhava como condição de possibilidade sempre suposto, mas
215
em sua ocorrência nunca alcançável e sem intenções de alcançar, pois a verdade era a
participação e não a adequação entre linguagem e coisa separada.
Após a queda do pecado, que pela feitura da instrumentação da
linguagem havia posto o fundamento para a sua multiplicidade, só
podia ser mais um passo para a confusão das línguas. Já que os
homens tinham maculado a pureza do nome, precisava
realizar-se apenas ainda o afastamento daquela intuição das
coisas, pela qual a sua linguagem dissolve-se no homem, a fim de
roubar o homem do fundamento comum do já abalado espírito da
linguagem. (GS II-1,154).
A concepção da linguagem a base de sinais arbitrários resultou na sua servidão,
pois desse modo ela foi rebaixada a instrumento. Como instrumento sem compromisso ela
favorece o seu dispêndio descuidado na tagarelice, a qual, por sua vez favorece a tolice da
grande construção objetiva da Torre de Babel. A torre faz com que as próprias coisas
também acabam na tolice como conseqüência da tagarelice.
Sinais devem confundir-se onde as coisas se enredam. É acrescida
à servidão da linguagem na tagarelice a servidão das coisas na
tolice como a sua conseqüência quase inevitável. No abandono
das coisas, que perfazia a servidão, surgiu o plano da construção
da torre e com ele a confusão das línguas. GS II-1,154).
A natureza que era muda em sua linguagem e se fazia sonora na linguagem
humana, agora, com a maldição do campo da objetividade, a maldição de Deus, a natureza
entre em luto, pois o tem mais tradutor para a língua sonora e espiritual do homem.
Antes, de acordo com a pintura de Mueller, as criaturas saltavam de alegria pelo encontro
acontecido, no qual haviam recebido o seu nome pela participação no mundo dos homens.
Agora, porém, foi decretada a sua separação, a interdição do encontro que a deixa em
profunda tristeza, em luto pela morte da nomeação participativa.
A vida do homem no espírito da linguagem pura era bem-
aventurada. A natureza, porém, é muda. Por certo é possível
perceber nitidamente no segundo capítulo de Gênesis, como essa
mudez nomeada pelo homem tornou-se mesmo bem-aventurança
apenas de nível inferior. O pintor Mueller faz Adão dizer a
respeito dos animais que o abandonam após ele os ter nomeado:
“e observou a nobreza com que saltavam afastando-se pelo fato
de o homem lhes ter dado um nome”. Porém, após a queda do
pecado muda profundamente o aspecto da natureza com a palavra
de Deus que amaldiçoa o campo. Agora inicia a sua outra mudez
que indicamos como a profunda tristeza da natureza. (GS II-
1,154-155).
216
A natureza lamenta pela morte da linguagem, pois ela mesma se torna mais muda
do que já era antes da objetivação. A natureza iniciaria um lamento se lhe fosse emprestada
a linguagem. Mas sem linguagem, nem isso pode fazer, já que não conta com mais nada
para participar quando não nomeada na linguagem humana. Por isso Benjamin diz que
resta apenas o som de um lamento junto com o farfalhar das folhas das plantas. É um
lamento mudo e sensível sem tradução.
É uma verdade metafísica que toda a natureza iniciaria a se
lamentar se lhe fosse emprestada a linguagem. (Pelo que
“emprestar linguagem” antes de tudo é mais do que “fazer com
que fale”). Essa frase tem um sentido duplo. Ela significa
primeiro: a natureza iria lamentar sobre a linguagem mesma.
Mudez: este é o grande luto da natureza (e em favor da sua
libertação está na natureza a vida e a linguagem do homem, e não
apenas do poeta, como se presume). Em segundo lugar essa frase
diz: a natureza iria lamentar-se. O lamento, porém, é a expressão
mais indiferenciada e impotente da linguagem, ela contém quase
apenas o hálito sensível; e, mesmo onde rumorejam plantas, junto
soa sempre também um lamento. Mas a inversão dessa frase
introduz ainda mais fundo na essência da natureza: a tristeza
[luto] da natureza torna-a muda.(GS II-1, 155).
No luto há perda de algo essencial: o término da possibilidade da participação que é
a elaboração de si na suposição do todo. Enquanto há elaboração participativa o todo não é
alcançado pela pressuposição que representa. Mas quando não nem mais esta
participação a tristeza sente-se como que nomeada apenas pelo inominável, sem nomeação
humana, mas somente idêntica ao fundo sem fundo da identidade absoluta, abismo
intuído pela negatividade da suposição. Já ser nomeado pela voz do som humano e não
poder nomear-se a si traz rastros de luto: quanto mais agora em época de multiplicidade
confusa objetivada na dispersão das mais diversas línguas. Também a centralidade
participativa da natureza no encontro com a linguagem do homem deslocou-se,
espalhando-se na dispersão das línguas. A sobre-denominação como quebra da linguagem
participativa é a fragmentação da linguagem do nome em todas as línguas existentes e
dentro delas as inúmeras teorizações à base de critérios objetivados. A sobre-nomeação,
por sua vez, conjuga-se com a sobre-determinação que é o resultado das fundamentações
postas como absolutas e as suas aplicações sucessivas combatendo-se caótica e
tragicamente na catástrofe em andamento, sem tradução que satisfaça.
217
Em todo o luto a mais profunda tendência para a mudez, e isto
é infinitamente muito mais do que a incapacidade ou aversão à
participação. A tristeza do luto assim se sente conhecida fora a
fora pelo inominável. Ser nomeado mesmo que o nomeante seja
um semelhante aos deuses ou um bem-aventurado talvez sempre
permaneça um pressentimento do luto. Porém, quanto mais ser
nomeado não a partir da bem-aventurada, única linguagem
paradisíaca dos nomes, mas a partir das centenas de línguas
humanas, nas quais o nome já murchou, mas que mesmo assim
conhecem as coisas de acordo com o veredicto de Deus. As coisas
não têm nome próprio a não ser em Deus. Pois, na palavra
criativa Deus as chamou pelo seu nome próprio. Na linguagem
dos homens, porém, elas são sobre-denominadas. Na relação da
linguagem dos homens com a das coisas algo que se pode
aproximadamente denominar como “sobre-denominação”: sobre-
denominação como profunda razão lingüística de toda a tristeza
(visto a partir da coisa) e toda a mudez. A sobre-denominação
como essência lingüística da tristeza aponta para uma outra
relação peculiar da linguagem, ou seja, para a sobre-
determinação que domina na relação trágica entre as nguas dos
homens falantes. (GS II-1, 155-156).
Além da sobre-determinação pelas línguas existentes separadas e comprometidas
com a objetivação como que cada uma construindo a sua própria Torre de Babel, existem
ainda outras espécies de linguagem como a da plástica e da pintura, ambas sem som, talvez
mais próximas à linguagem muda das coisas e tradutora dela numa linguagem
infinitamente superior, por meio do que talvez se possa entender a linguagem material
muda entre as coisas. Já a poesia está ligada à linguagem dos nomes
Há uma linguagem da plástica, da pintura, da poesia. Assim como
a linguagem da poesia está fundada, se não unicamente, então
junto em todo o caso na linguagem dos nomes do homem, assim é
bem possível pensar que a linguagem da plástica ou da pintura
talvez seja fundada em algumas espécies de linguagem de coisa,
que nelas se exponha uma tradução da linguagem das coisas
numa linguagem infinitamente superior, mas ainda mesmo talvez
da mesma esfera. Trata-se aqui de línguas sem nome, não
acústica, de linguagem a partir do material; por este viés que
se pensar na comunhão material das coisas em seu
compartilhamento. (GS II-1,156).
Na objetivação geral continua, mesmo assim, a idéia de um todo inseparável e em
solidariedade a formar um mundo, porém, é a idéia de um todo de coisas separado de quem
o diz. Novamente encontramos em Benjamin a sua ligação com a filosofia pré-socrática e
até de forma mais nítida. A relação do todo e da parte constantemente insinuada, agora está
dita diretamente e se esclarece em sua temática fundamental. As diversas versões do todo
218
nos pré-socráticos em parte padeciam da angústia de nomear o todo, esquecendo-se da sua
própria participação nomeante nesse todo, angústia que continuamente moveu com as suas
águas os moinhos da filosofia. Como anteriormente dito, um todo separado, todo não é
e, por isso, é inseparável. Mas a linguagem, o lógoj que o diz objetivando faz parte do todo
ou não? A solução de nele incluir o lógoj ou o nou=j anaxagórico é nova objetivação como
cobra que morde o próprio rabo. “Aliás, o compartilhamento das coisas é certamente de
uma tal espécie de solidariedade que trata o mundo em geral como um todo inseparável”.
(GS II-1, 156).
A teoria ou concepção dos sinais de acordo com a pintura de Mueller em que se
vêem as criaturas recebendo individualmente marcas de Deus para depois saltar de alegria
pelo fato de ter uma identidade diante do todo, mas ainda não na linguagem do homem,
deveria ser conservada para o entendimento da linguagem da arte que exatamente procura
traduzir a linguagem da natureza. A arte de algum modo reconstitui o processo
identificatório original procurando retroceder ao âmbito ainda não comprometido com a
linguagem totalmente objetivada. A arte assim seria reconhecedora de sinais que a
linguagem objetivada na realidade esqueceu ou apagou na sobre-denominação. A arte
talvez ainda fosse o resquício de linguagem que resta para ouvir o lamento da natureza e de
todas as coisas. Ouvir o apelo é escutar que se está sendo visto e conclamado. Como é que
a natureza nos vê? Não queremos nem saber enquanto não formos prejudicamos pela sua
própria tristeza e morte.
Para o conhecimento das formas de arte vale a tentativa de
concebê-las todas como línguas e procurar a sua relação com as
línguas da natureza. Um exemplo, que é natural por ser da esfera
acústica, é o parentesco do canto com a língua dos pássaros. Por
outro lado é certo que a linguagem da arte faz-se compreender
apenas numa relação profunda com a doutrina dos sinais. Sem
esta toda a filosofia da linguagem permanece em geral
completamente fragmentária, porque a relação entre linguagem e
sinal é original e fundamental (para o que a relação entre
linguagem humana e escrita apresenta apenas um exemplo bem
particular). (GS II-1, 156)
A leitura pela tradução dos sinais das coisas na arte para que as coisas e criaturas
tenham uma linguagem infinitamente superior e possam superar seu luto de certo também
está em contraposição com a linguagem objetivada, fadada a ser instrumento após a queda.
É evidente que as duas não coincidem.
219
Em todo o caso existe a possibilidade de uma linguagem enquanto
compartilhamento em co-participação que na contradição da linguagem leva em conta o
suposto de uma identidade total inapreensível, sob pena de se anular precisamente como
participação se quisesse fundamentar a sua própria eliminação; como também existe a
linguagem humana após a queda no erro da fundamentação que a elimina como
participação. Esta última e atual, por outro lado, em seu processo de espera é um símbolo
da não participação, do juízo e da sentença em andamento. A linguagem humana tem,
portanto, mesmo assim, um lado simbólico como que apontando para a não participação
que lhe faz falta e para o nome sempre presente como possibilidade de compreensão de
participação. Encarar a linguagem humana após a queda enquanto mbolo é
compreender de algum modo a sua contradição sempre presente.
Isto oportuniza indicar uma outra contraposição que perpassa a
totalidade do campo da linguagem e tem importantes relações com
o mencionado sobre linguagem em sentido estrito e linguagem
como sinal, contraposição que de modo algum coincide sem mais
com esta. Há, pois, linguagem em todo o caso não unicamente
enquanto compartilhamento da co-participação, mas
simultaneamente símbolo da não co-participação. Esse lado
simbólico da linguagem está conectado à sua relação com o sinal,
mas se alastra, por exemplo, de certo modo também sobre nome e
juízo. Estes não têm unicamente uma função participativa, mas,
intimamente ligada a ela, muito provavelmente também uma função
simbólica, para a qual aqui não foi chamado à atenção pelo menos
expressamente.(GS II-1, 156).
Deus é a unidade da movimentação da linguagem (GS II-1, 157), eis a última frase
do texto que resume toda a contradição. Se Deus for compreendido como entidade
separada para esteios e muletas precárias na formação do mundo separado de quem o diz
com tudo o que significa, então tal compreensão promove a queda na objetivação, no
esquecimento dela e na catástrofe trágica em andamento ao modo como o anjo da IX tese
de Sobre o conceito de história a com olhos arregalados. Se Deus como todo for
impossível de ser dito no exercício participante de nomeação das coisas, a compreensão na
linguagem aceita a sua limitação e se propõe a prestar atenção à Offenbarung, ao que se
revela em cada gesto sedimentado pelos milênios a fora e a cada suspiro do cotidiano.
Após estas considerações permanece desse modo um conceito
purificado de linguagem, mesmo que também este possa ser
imperfeito. A linguagem de uma criatura é o Medium no qual a sua
essência se comunica. A corrente ininterrupta dessa participação
[comunicação] flui por toda a natureza, do existente mais inferior
até o homem e do homem para Deus. O homem comunica-se com
Deus pelo nome que ele dá à natureza e a seu semelhante (no nome
próprio), e à natureza ele o nome conforme a comunicação que
ele dela recebe, pois também a natureza inteira é perpassada por
uma linguagem muda sem nome, do resíduo da palavra criativa de
220
Deus, que no homem conservou-se como nome conhecedor e sobre
o homem conservou-se pairando como juízo julgador. A linguagem
da natureza é comparável a uma senha secreta, que cada sentinela
passa adiante em sua própria linguagem, mas o conteúdo da senha
é a linguagem da sentinela mesma. Toda linguagem superior é
tradução da inferior até que se desenvolva em última clareza a
palavra de Deus, que é a unidade da movimentação da linguagem.
(GS II-1, 157).
Na contradição da linguagem é possível dizê-la sem contradição? Parece que o que
não para dizer é a própria contradição, pois é impronunciável já que se diz que em toda
a pronúncia ela é pronunciada. É o mesmo caso da totalidade suposta que, quando
pronunciada faz parte de uma suposição ainda não pronunciada. Rebente-se o
caleidoscópio que sempre traz novas imagens de ordem objetiva e, nesse gesto, rebente-se
a parte objetiva, precisamente o esquecimento na contradição, e aí surge a revelação. Com
esta chave no bolso é possível ouvir com atenção redobrada os grandes discursos que
emergem na superfície do mundo e tentar traduzi-los de volta para a linguagem do nome. É
uma chave ambivalente e contraditória, pois o seu usuário sabe que está diretamente
implicado no que diz sobre o dito, pois o que diz pode edificar-se por um lado em estatuto
do processo, do juízo, da sentença, da queda, da tagarelice e, por outro, em indicação de
retorno ou até volta à participação nomeante. O dito pode ser vário: Kant, Fichte, Hegel,
Romantismo, Goethe, Hölderlin, Proust, Baudelaire, Kafka, Marx, Kraus, Brecht e muitos
outros.
No universo, a importância de uma folha que cai está em se saber até que ponto é o
seu destino ou a sua liberdade: ela empurra ou está sendo empurrada?
221
4. POSICIONAMENTO FILOSÓFICO: SOBRE O PROGRAMA DA FILOSOFIA
VINDOURA.
O texto de Benjamin sobre o que deva ser a filosofia por vir inicia com a lembrança
ou até afirmação de uma tarefa peculiar da filosofia: supõe que ela toma, capta, ou haure
(schöpft) profundas premunições “tiradas da época e de um sentimento de antecipação de
um grande futuro” (GS, II, 157). A partir das fontes da época e do sentimento
antecipatório, a sua tarefa de captação continua com o trabalho de relacionar as
premunições com o sistema kantiano para que essas mesmas premunições possam tornar-
se conhecimento. Em outros termos, a filosofia constata as premunições da época que
poderão tornar-se conhecimento quando organizadas pelo seu encontro com o sistema
kantiano. Vai-se direto ao ponto, ou seja, sentimentos e pressentimentos gerais enquanto
fenômenos que surgem de maneira inesperada e dispersa no tempo adquirem relevo na
paisagem da história quando captados pela atenção filosófica para serem elaborados no
âmbito de um sistema, e, nele, então, desfrutarem do estatuto de conhecimento.
A questão abordada é milenar. Desde o seu surgimento na Grécia antiga ela se
repete: a filosofia tem algum compromisso com alguma tarefa específica? É mera atividade
de análise sem a suposição de um conjunto de conceitos sistematicamente organizados que
a possibilitasse e sem, ainda além, o abrigo de uma totalidade sintética anterior? A filosofia
é mera formação de sistema? É mera retórica sem o compromisso nem de consciência
construtiva numa totalidade dada e nem de processo avaliativo analítico? Qual é o
significado da atividade filosófica?
É indicado logo no início do texto que a filosofia deve prestar atenção aos
pressentimentos existentes na época e ao mesmo tempo os filtre, analise, relacione com o
sistema kantiano. Pressentimentos à solta sem uma teoria sistêmica em que fossem
incorporados, ou com que fossem medidos e ordenados em favor de pelo menos uma parca
222
compreensibilidade, poderiam talvez levar ao obscurantismo irracional, ao pavor, ou ao
entusiasmo a comungar com a simples falta de pretensão de rumo.
O que são tais pressentimentos? Facilmente se depreende que são os fenômenos
culturais nas mais diversas áreas. Por que Benjamin os chama de pressentimentos? Porque
todas as afirmações culturais aparecem em forma de explicações, descobertas que trazem
algo do passado à luz. Basta ver o termo utilizado para pressentimentos, que é Ahnungen,
com o sentido primeiro de ancestralidades que do passado se efetivam como candidatas à
instauração de futuro. Tais pressentimentos, por sua vez, merecem a atenção da atividade
filosófica que exatamente nisso tem o seu sentido, ou seja, a tematização do que se
apresenta como fenômeno dessa natureza, fenômeno rico de sentido e não apenas
fenômeno, mas já experiência tornada histórica.
Não se consegue deixar de ligar imediatamente a afirmação sobre tal tarefa da
filosofia com um dos veredictos de Kant, que resume parte da sua posição filosófica, isto é,
da afirmação de que os fenômenos dados na sensibilidade em geral permaneceriam cegos
caso não houvesse um sistema conceitual organizador, o qual, por sua vez, seria vazio se
nada lhe fosse fornecido como atividade de sistematização.
Como já foi dito, de acordo com essa tarefa, a filosofia deveria observar os fenômenos sui
generis que em cada época surgem, coletá-los e elaborá-los como fenômenos de acordo
com o modelo do sistema kantiano. A relação com o sistema kantiano proporcionaria a
continuidade histórica, isto é, não aconteceria a falta de entendimento dos fenômenos
enquanto fatos dispersos e, quem sabe desconexos na história, pois ele seria o único capaz
de decisivo alcance sistemático (Band II-1, 157). Alcance sistemático significa a
inevitabilidade de suposição de alguma configuração sistemática geral para a própria
compreensão seja possibilitada. Para Benjamin, algum vislumbre de sistema é possível e
até algum sistema provisório descoberto e capaz de explicar a intenção de sedimentação de
determinada realidade. O que não se recomenda é a entronização definitiva e defesa
intransigente de algum sistema absolutizante e plenamente objetivo, sob pena de recaída no
essencialismo. Benjamin fala sobre o modelo kantiano e não de uma imitação pura e
simples. Como se configura a relação do modelo com o que o autor tem em mente? É a
perspectiva da transcendentalidade, da suposição sempre inevitável e incontornável de um
critério a ser tematizado para toda a objetivação que se dá comumente na linguagem e, ao
223
mesmo tempo, a suposição fundamental de que qualquer absoluto assim o é apenas pela
sua expressão em dizibilidade, o que sempre configura a contradição da linguagem.
Esse alcance se deveria ao fato de que o sistema kantiano não privilegia
imediatamente a extensão e a profundidade do conhecimento por si mesmos, mas de que
estas se expressam enquanto justificação. É a questão da justificação necessária e ao
mesmo tempo inútil enquanto absoluto. Aliás, Platão e Kant teriam a exclusividade na
acentuação da “justificação”do conhecimento como sendo “extensão e profundidade” isto
é, identificaram-nas sem bani-las da filosofia.
Os dois conceitos, “extensão e profundidade", são o que se pode querer e ter após a
ingenuidade da vontade por fundamentação última e após a descoberta da contradição da
linguagem em termos de objetivação inevitável. Extensão e profundidade descrevem o
próprio abismo a que toda a fundamentação está sujeita.
Benjamin julga que Platão e Kant dimensionam o abismo com respectivamente o mundo
das idéias e o sistema transcendental e se dão provisoriamente por satisfeitos com as
metáforas finais.
É preciso acentuar que aquilo que em Kant eram os dados imediatos dos sentidos
apanhados pela capacidade receptiva do sistema categorial para que fossem transvertidos
em conhecimento justificado racionalmente, agora em Benjamin é ampliado em termos de
pressentimentos e premunições, que surgem como fenômenos no âmbito da história e
necessitados de elaboração por justificação, numa visão de conjunto denominada sistema
capaz de promover continuidade compreensiva. Não se tratam mais de meros dados
oferecidos à capacidade receptiva da sensibilidade de forma igual em todas as épocas, mas
já de vagos sentimentos elaborados a partir de vivências históricas concretas e mutantes de
época em época.
Os dados da sensibilidade mudam de configuração e acentuação de época em época
e assim não como falar deles como dados trans-históricos. A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica trata exatamente desses resultados do artigo sobre Kant para
mostrar como a sensibilidade muda ampliando-se pelos meios da técnica.
A alocação de tais fenômenos e o simples fato de estes surgirem no panorama da
história parece constituir, numa primeira visada, as próprias condições do que se denomina
história: de um lado, um fator sistêmico contínuo em condições de elaborar fenômenos que
224
surgem e, de outro, os fenômenos que na época pululam e que, quando merecedores de
análise sistemática, têm o devido direito de fazerem parte de um ordenamento em termos
de conhecimento.
Portanto, para haver conhecimento deverá haver justificação, argumentação,
esclarecimento sobre o que se quer dizer, por meio de descrição do acervo de fenômenos
que se dão em forma de pressentimentos de rumos possíveis, e não mera valorização dos
mesmos por crença não relacionada e, assim, injustificada por não ter merecido qualquer
sistematização. Conhecimento sem o processo exigente de justificação extenso e profundo
não seria resultado da luta pela objetivação da certeza inscrita na própria elocução do dizer,
mesmo como expressão, mas mero consentimento ao fortalecimento de ditames, quem
sabe, de dogmas e de crenças multiformes e em descontrole.
Entre os pressentimentos variados encontrar-se-ia também aquele que anuncia um
desenvolvimento ilimitado e ousado da filosofia e, por estar relacionado exatamente com
filosofia, requereria a contrapartida de uma luta tenaz por certeza a partir do processo de
justificação. A própria filosofia como procura por verdade e unidade por intermédio do
processo justificante apareceria no cenário da história também como pressentimento, mas
acompanhado sempre da exigência de assumir o seu viés de sistematização já ocorrente por
ocasião das suas argumentações. Haveria, portanto, o perigo de também a filosofia se
perder no ilimitado e na ousadia sem referência, sem relação e sem solução de
continuidade, possivelmente na barbárie. Contra isso seria necessário que se ative a luta
pela “certeza, cujo critério é a unidade sistemática ou a verdade”. (GS II-2, 158).
A verdade seria a unidade sistemática sempre vislumbrada e pela qual se luta por
certeza, isto é, a luta pela certeza do conhecimento teria por meta relacioná-lo com a
sistematicidade subjacente, o que equivaleria à verdade. A verdade, portanto, não é
considerada como uma posse que se pudesse apresentar, ou um estágio que se tivesse
alcançado. Ela é o pressuposto de um ideal sistemático a ser descoberto e que move toda a
luta pela certeza do conhecimento por meio da procura das condições de justificação ao
molde de Platão e Kant.
Como se vê, os conceitos de pressentimento, sistema, critério, justificação,
conhecimento, certeza e verdade aos poucos vão tomando importância na elaboração da
filosofia futura em termos de apresentação de rigor racional, como que configurando uma
prévia defesa contra qualquer ataque do que posteriormente se vá dizer de inovador e que
225
talvez pudesse ser interpretado como caminho livre para o relativismo inconseqüente e
para o caos teórico. A acentuação do valor filosófico da justificação, identificado em
Platão e Kant como representação de extensão e profundidade, parece indicar a
exigência de explicitação caracterizada por um processo de exibição continuada à procura
de máximo rigor conceitual na alocação dos fenômenos que surgem na história, os quais,
por sua vez, eles mesmos também a perfazem quando elaborados pela atividade filosófica.
Mas o autor constata que o sistema kantiano tem deficiências quanto à capacidade
de completa consecução da tarefa prefigurada. Há críticas a fazer. O impedimento de uma
aceitação cabal do sistema kantiano em si é definido como sua deficiência de uma
verdadeira consciência de “tempo e de eternidade”, ou seja, a realidade com a qual Kant
queria elaborar as condições de certeza do conhecimento é considerada como de grau
inferior, “talvez da classe mais inferior” (GS II-1, 158). Assim como toda a teoria do
conhecimento, também a de Kant teria dois lados, dos quais um apenas recebeu a devida
aclaração [explicação, Erklärung]. De um lado, estaria o movimento da pergunta pela
certeza do conhecimento que é permanente e, de outro, a pergunta pela “dignidade de uma
experiência que era passageira” (GS II-1, 158).
Se a experiência é a constante percepção de fenômenos que surgem
concomitantemente com a sua elaboração visando à formação de conhecimento pela tarefa
da procura por unificação, é possível que se possa ver a experiência e o conhecimento
como passageiros, pois elaboração sistemática de fenômenos é esforço sem conclusão
definitiva. Imaginar que se pudesse chegar a alguma elaboração definitiva por meio dos
fenômenos de apenas uma época talvez fosse o equívoco. Cada época teria, portanto, os
seus fenômenos a exigir elaboração continuada bem como, então, haveria experiência
continuada e não definitivamente fixada como conhecimento absoluto e final. Existiria,
portanto, a possibilidade de avaliação das experiências de outras épocas como a de Kant,
que teria sido reduzida e pobre para uma filosofia verdadeiramente consciente do tempo e
da eternidade.
A totalidade do tempo e o tempo passageiro indicam a suposição de totalidade em
cada evolução temporal de cada época, e a decretação de um tipo de experiência para o
todo elimina o todo suposto na experiência, o que talvez seja o erro cometido por Kant, ou
seja, o de não levar em conta, na experiência da sua época, a totalidade da experiência
226
possível decretando então apenas a experiência do Iluminismo como única possível
universalmente.
O entendimento de experiência parece apontar para a existência de sedimentação de
conhecimentos anteriormente já elaborados a desfrutar o status de senso comum que
acompanha a todos como pressuposto.
Fica em aberto, por enquanto, o que é que o autor entende por “verdadeira
consciência de tempo e de eternidade”. Talvez possamos arriscar a interpretação provisória
de que a eternidade represente o suposto móvel do fato descrito como a existência da
constante pergunta por certeza do conhecimento pelo critério da verdade e da unidade, e o
tempo, por sua vez, seja entendido como o local panorâmico de aparecimento caótico de
fenômenos ainda não configurados e pendentes de algum ordenamento sistemático. A
eternidade equivaleria ao absoluto suposto sistemático total, sempre presente em qualquer
atividade de sistematização discursiva em seqüência temporal e contingente.
O interesse assumidamente universal da filosofia sempre é pela validade intemporal
do conhecimento e, ao mesmo tempo, pela certeza de uma experiência temporal. Eis aí,
uma indicação fundamental para o entendimento da questão da tarefa: o interesse pela
certeza do que seja experiência e do que não possa ser. Quem constitui validamente o que
pode ser considerado como fenômeno a ser elaborado em termos de experiência? Quem
poderia possuir o monopólio de decisão quanto ao que possa fazer parte do acervo de
experiências de uma época? Não poderia a reunião de um determinado número de
experiências já acusar unilateralidade, ou pobreza, ou repressão, ou falta de atenção mais
acurada? Fenômenos epocais apanhados, descritos e justificados para fazerem parte da
experiência perfazem uma das próprias condições para que exista conhecimento
sistematizado. Mas a questão é: como se o encontro entre capacidade sistemática e o
que surge no seio da história? O sistema se sustenta por justificação, mas o que resta é a
pergunta a respeito do que não se consegue justificar para então não poder fazer parte do
que foi promovido como justificado. Portanto, o ponto crítico parece ser a experiência,
sobre a qual se pode perguntar: quem tem certeza dela? O que ela é? Como pode ser
descrita? Em todo o caso, a experiência de uma época é temporal e não pode ser
eternizada.
A inconsciência desse fato teria confundido Kant. Mesmo que nos Prolegomena
tenha tido a intenção de depreender os princípios da experiência a partir das ciências,
227
especialmente da física matemática, na realidade isso não teria acontecido, pois a
experiência da época não se assemelhava com tais ciências. Ainda permanecia vigente o
velho conceito de experiência, relacionado não com a consciência pura, mas, ao mesmo
tempo, com a consciência empírica que Kant dividia com seus contemporâneos, no âmbito
limitado à sua época, em forma da concepção de mundo do esclarecimento, não muito
diferente dos séculos anteriores da Modernidade.
De que constava a pobreza da experiência da época de Kant? A resposta direta de
Benjamin é a de que o esclarecimento não reconhecia autoridades” que pudessem
fornecer conteúdo superior à experiência. Certamente não autoridades às quais se devesse
submeter sem crítica. Em todo o caso, autoridades que poderiam ter fornecido à
experiência da época uma importância metafísica maior e cuja falta teria influenciado o
pensamento kantiano de modo a limitar o seu conceito de experiência tornando-o pobre.
Tratar-se-ia, em suma, da reconhecida marca do esclarecimento e da modernidade em geral
que é “a cegueira religiosa e histórica”.(GS II-1, 159).
De que cegueira se trata quando a religião e a história são nomeadas como se a
simples menção bastasse? Parece evidente que não se possa esperar que a resposta à
pergunta seja a indicação de alguma religião empiricamente constituída junto com alguns
dados esquecidos da história, pois a questão parece exigir uma explicitação bem mais
ampla e sistemática. Trata-se de que o esclarecimento e a modernidade são crentes e não
sabem disso: uma crença ingênua em uma razão super-histórica vista como fato
incontestável sem ulterior justificação. Caso a razão se exerça como justificação
continuada a construir o estatuto de si, de qualquer modo não poderia deixar de justificar as
condições de seu próprio exercício, que são as determinações dos aspectos religiosos
secularizados e historicamente assim transformados. As autoridades não reconhecidas pelo
esclarecimento, mas mesmo assim a influenciar de forma não transparente a própria
construção das condições de possibilidade da crença na razão como início e princípio
absoluto, transformaram a intenção de clarificação racional em cegueira quanto ao que lhe
antecede. Ao alcançar os seus resultados epocais, o próprio processo de justificação se
anularia em sua intenção de extensão e profundidade caso supusesse ter chegado à verdade
enquanto unidade sintética final. A razão justificada como derradeiro fundamento exibe o
esquecimento de que ela mesma ainda pode ser objeto de justificação a incluí-la numa
síntese mais ampla que deve pressupor. A análise constante que a razão promove deveria,
228
portanto, fazer pressupor a anterioridade de sínteses feitas que aparecem em forma de
fenômenos, bem como de sínteses supostas e não tematizadas que perfazem as próprias
condições, o próprio estatuto da razão em seu exercício de justificação discursiva
continuada. A crendice racional ingenuamente cega, porque crente apenas em si, é feita da
falta de reconhecimento da religião enquanto síntese de dados determinantes, mas
reprimidos, ou ainda não descobertos, e da história que narra a transformação semântica e
conceitual desses mesmos dados e, ao mesmo tempo, sempre inaugura certa interpretação
sobre si mesma.
A própria atividade de justificação ativada por determinado sistema deve pressupor
balizas que possibilitaram tal sistematização por um lado, e, por outro, deve supor que o
conjunto de fenômenos, arrolados sob essas condições para fazerem parte da experiência,
não pode ser considerado definitivo. A atividade justificante deveria permanecer entre duas
frentes, ou seja, uma vez, aquela que é feita da constante justificação das suas próprias
condições que consegue estabelecer pela percepção e nomeação de fenômenos para a
elaboração pelo sistema que de si vislumbra e, outra vez, o resto que não foi ainda
nomeado nem das condições de sistematização e nem do que ainda não faz parte do
sistematizado. O processo de justificação aparece, ele mesmo, como constante
possibilidade de descrição dos mais variados fenômenos, bem como das condições da
própria descrição sistematizada.
Benjamin julga de extrema importância a decisão sobre quais os elementos do
pensamento kantiano deveriam ser assumidos e promovidos, quais deveriam ser
“transformados e quais rejeitados”. (GS II-1, 159). Não quer simplesmente incentivar à
utilização aplicada do sistema kantiano em si, mas, pela preservação da sua típica, visa a
elaborar epistemologicamente a fundação de um “conceito superior de experiência”. (Idem,
160). Kant mesmo nunca teria negado a possibilidade da metafísica, mas apenas exigido a
apresentação dos critérios de uma tal possibilidade. A elaboração de uma metafísica futura
enquanto experiência superior, tendo por base a típica kantiana, seria a exigência e a tarefa
da filosofia.
Isso parece ser a própria marcha da metafísica, isto é, não negá-la, pois isso
implicaria em metafísica objetivada como nomeação doutrinária de uma divindade
erigida como critério para o que se diz, mas sim a constante Verwindung, em termos de
uma superação no acompanhamento do compreendido na procura do que supõe ao ser
229
assim. A metafísica é o bater constante às portas da linguagem, um observar as escadas
pelas quais se subiu e se jogou fora, uma construção de escadas ao revés para descer às
profundidades e extensões de onde se veio.
Os conceitos de experiência e metafísica convidariam a uma revisão de Kant em
favor da filosofia futura. Mas apenas isso não basta, pois o conceito de conhecimento de
Kant também apresentaria deficiências causadas pela mencionada vacuidade da
experiência da época. Seria, portanto, necessária a criação de um novo conceito de
conhecimento, bem como de uma nova representação do mundo. A teoria do conhecimento
de Kant não inclui a metafísica, pelo fato de que “ela mesma traz em si elementos
primitivos de uma metafísica infrutífera, que exclui qualquer outra” (GS II-1, 160).
É preciso indiciar que isso é repetição da acusação da pobreza epocal
anteriormente abordada, ou seja, metafísica idêntica em seu parentesco com a religião, em
suas relações com o tema da totalidade e da formação do mundo.
Aliás, para a teoria do conhecimento qualquer elemento metafísico é um gérmen
doentio que se expressa exatamente quando acontece o isolamento do conhecimento “da
experiência em sua total liberdade e profundidade” (GS II-1, 160). A filosofia se
desenvolve quando liquida tais elementos metafísicos da teoria do conhecimento e se
remete a uma experiência metafisicamente mais plenificada. Há, portanto, uma relação
direta entre a experiência epocal pobre demais para levar à verdade metafísica e uma teoria
do conhecimento ainda incapaz de indicar suficientemente “o local gico da pesquisa
metafísica”, (GS II-1, 161), se bem que a expressão kantiana metafísica da natureza tenha
o sentido da pesquisa da experiência à base de princípios garantidos pela teoria do
conhecimento.
Mas a insuficiência epistemológica em relação às questões da experiência e da
metafísica localiza-se, em primeiro lugar, na teoria do conhecimento como elementos de
metafísica especulativa em termos da concepção ainda não superada de sujeito e objeto em
geral. Em segundo lugar, na precária superação da relação do conhecimento e da
experiência com a consciência empírica. Mesmo que Kant e os neokantianos tenham
superado a natureza de objeto da coisa em si como causa das sensações, permanece ainda
“por eliminar a natureza de sujeito da consciência conhecedora” (GS II-1, 161), a qual
está como analogia da consciência empírica.
230
Na teoria do conhecimento tais elementos permanecem como rudimentos
metafísicos e pedaços de uma experiência rasa daquele século. Por detrás de tudo isso
uma mitologia que promove a representação de um eu corporal-espiritual que
individualmente recebe sensações para, por meio delas, formar as suas representações. Tal
mitologia é semelhante a qualquer outra como, por exemplo, do que se sabe de povos de
cultura primitiva que se identificam com plantas e animais, ou de dementes que em sua
percepção se identificam com objetos, ou de doentes que culpam outros seres por sua
doença, ou até de videntes que afirmam captar em si mesmos as percepções dos outros. A
experiência kantiana, no que se refere à representação de recepção de percepções,
assemelha-se a qualquer outra metafísica e mitologia, que moderna e infrutífera para a
religião.
Qual é a questão? A experiência, referida à consciência individual do homem
corporal e espiritual e não concebida como “especificação sistemática do conhecimento”
(GS II-1, 162) de qualquer modo sempre será mero objeto do verdadeiro conhecimento e,
ainda, apenas numa perspectiva psicológica, isto é, todas as consciências conhecedoras
empíricas são espécies de consciências dementes, entre as quais meramente diferenças
de grau de valor, cujo critério, porém, não pode ser a correção [a certeza] de
conhecimentos. Uma das tarefas principais da filosofia vindoura, por isso, será a
determinação do verdadeiro critério para a diferenciação de valor das formas de
consciência:, pois “aos modos de consciência empírica correspondem outras tantas
espécies de experiência”. (GS II-1, 162). Comparados ao que se refere à verdade, tratam-se
de fantasia e alucinações. “Pois, uma relação objetiva entre a consciência empírica e o
conceito objetivo de experiência é impossível”. (GS II-1, 162). A genuína experiência deve
consistir na consciência transcendental (teoria do conhecimento) sem ligação com qualquer
coisa relacionada ao que é subjetivo.
Benjamin está a indicar que o transcendental é também uma experiência, talvez por
elaboração da reflexão filosófica ao modo de Kant, portanto, não um dado absoluto como
conhecimento anterior a qualquer conhecimento empírico, mas a depuração das condições
pelas quais todas as experiências da época se dão. Consciência empírica e conceito de
consciência psicológica se identificam. O autor ainda menciona a Escolástica como tempo
a ser examinado para poder talvez elucidar a relação entre conhecimento puro e conceito
de consciência psicológica.
231
que se perguntar se ainda serviria o conceito de consciência. Pois a consciência
transcendental é de espécie diferente da empírica restando para a filosofia uma tarefa
problemática central, ou seja, o de verificar a relação da consciência empírica psicológica
com o âmbito do conhecimento puro. Nessa questão deparamo-nos com o ponto lógico
(GS II-2, 163) de muitos problemas abordados recentemente pela fenomenologia: “A
filosofia consiste em que na estrutura do conhecimento se encontra a da experiência e a
partir da qual deve desenvolver-se”.
Benjamin está a dizer que a própria filosofia se desenvolve como experiência
fazendo parte do conhecimento puro de que se necessita para a continuidade do próprio
exercício filosófico. Então, em outros termos, é compreensível que o exercício de análise
filosófica também depende de tudo o que se põe de lado como sendo errado e ainda como
sendo além do discursivo, pois sempre algo maior na própria compreensão finita e de
que o homem faz parte como consciência empírica. A experiência é uma totalidade de
determinações da tradição com cuja plenitude a consciência psicológica nunca atina.
A filosofia é o cavoucar experiencial à procura dessas determinações sedimentadas
historicamente e alocadas como se fossem teológicas, ou até o prestar atenção e
permanecer na escuta dessas notícias e sugestões provindas não do nada, mas do esquecido
e reprimido que aparece como que do nada. Trata-se da organização tradicional construtiva
e a ser aplicada, que se apresenta e aparece como instauração histórica. A consciência
empírica estaria como que mergulhada, ou a navegar numa experiência à distância
determinante maior, a qual por sua vez faz parte do conhecimento. A filosofia seria a tarefa
do desenvolvimento reflexivo, ciente da sua finitude. Ciente da finitude, porque a própria
programação é tentativa de conservação de racionalidade, visualização histórica e
percepção disso. Há ciência da participação numa totalidade que nunca se poderá definir
por mais ensaios de totalidade que se empreenda e se aplique na ação concreta a partir da
compreensão que se tem. O conhecimento é uma estrutura em que está também a
experiência. A filosofia desenvolve-se como experiência em conhecimento, ou até é o
próprio desenvolvimento possível como atividade de desconstrução da ingenuidade
objetiva e dos fantasmas que nos comandam nas produções de objetivação e exercício
compreensivo maquinal. Tal estado de coisas expressa a idéia de que sempre somos
compreensão inevitável em andamento comprometidos com bonecos que desconhecemos à
exemplo do mito da caverna.
232
Essa experiência circunscreve então também a religião, a saber,
enquanto a verdadeira religião pela qual nem Deus nem o homem
são sujeito ou objeto da experiência, mas assim que essa
experiência consiste no conhecimento puro que somente a filosofia
pode e deve pensar Deus enquanto sua essência. (GS II-1, 163).
Surge, então, a pergunta: por que somente a filosofia? Talvez porque apenas ela
enquanto atividade sui generis de escuta e atenção necessita do suposto da totalidade
enquanto tarefa sempre a definir; porque apenas ela como fenomenologia está preparada
para escutar e dispor-se à escuta do que está a vir a ser, entendendo-se ela mesma como vir
a ser. A própria idéia de divisão entre subjetividade e objetividade a fazer parte da auto-
compreensão é suspensa enquanto definitiva, permanecendo apenas como experiência
aplicada da modernidade.
A filosofia enquanto disposição à itinerância compreensiva e não fixada para
propósitos de mera aplicação debruça-se sobre as dificuldades de definição de si como
compreensão, como transzendentale Schein, como ponto lógico absoluto a ser
constantemente elucidado. Capta-se como compreensão de que é tarefa de compreender
por meio da linguagem, ou seja, como círculo a querer constantemente produzir o
transcendental de si como na idéia veiculada pelo mito do paraíso, como ponto cego
sempre anterior e condição de qualquer dizer, mesmo que seja o dizer do seu suposto,
como o nada de que tudo provém e que parece que a filosofia pode pensar como sendo
exatamente Deus, o inominável, indefinível, o proibitivo e a própria proibição. A religião
enquanto suposição de ligação e relação de todas as determinações anteriores sem
possibilidade de esgotamento semântico cumpre o papel de indicação da finitude humana.
A religião é a aposta de uma relação existente e a determinar, e faz parte da experiência
do homem, isto é, ela é indicadora da sua dívida, da sua finitude, incompletude, e o salva
das várias crendices do esquecimento mecanizado.
É necessário notar que, do mesmo modo que Deus, o homem também não pode ser
sujeito ou objeto da experiência. Qual seria o estatuto do homem, então? Visto pelo lado
negativo, o homem não pode ser suporte, ou fundamento pelo fato de que a experiência é
algo que lhe transcende, mas de que faz parte a questão do organismo em Kant e em
todos os românticos; a questão da Natur de Hoelderlin, como interpretação do parágrafo 45
da Crítica do Juízo de Kant e motivo de celeumas entre Fichte, Schelling e Hegel com
Hölderlin a respeito da possibilidade de um fundamento que geneticamente pudesse ser
233
responsabilizado pelo todo que há); e não pode ser objeto exatamente pelo fato de fazer
parte do processo de forma possivelmente ativa em participação. Visto pelo lado positivo
trata-se da perspectiva da instauração e do saber disso.
O autor fala da verdadeira religião, na qual nem Deus, nem o homem são sujeito, ou
objeto, portanto, não susceptíveis de definição cabal por proposições, mas apenas como
possibilidade inevitavelmente sempre suposta de totalidade e de si. Em outros termos,
Deus seria o conhecimento puro apenas pensado pela filosofia, já que Deus seria a essência
do conhecimento puro, mas sem possibilidade de objetivação como se fosse a expressão do
Sou-o-que-sou veto-testamentário, ou lo/goj enquanto atividade definidora sem definição.
A filosofia tem a tarefa de pensar Deus e o homem exatamente como possibilidade?
que atentar para o fato da junção entre homem e Deus como percurso e possibilidade de
percurso em junção com a categoria da relação. Dá-se a lembrança de que toda a sugestão
de totalidade concreta é encarada como ensaio de abertura para muito mais. Assim, a teoria
do conhecimento vindoura deverá deixar de lado as entidades metafísicas de sujeito e
objeto procurando investigar a genuína esfera do conhecimento (GS II-1, 163). -
Um novo conceito de conhecimento e de experiência seria constituído, mas sem
que ambos se referissem à consciência empírica. Por outro lado, exatamente por isso
deveria permanecer o fato pleno de sentido de que as condições de conhecimento fossem
as da experiência.
Tal novo conceito de experiência, fundado em novas condições de conhecimento,
constituiria propriamente o ponto ou lugar lógico, bem como a possibilidade lógica da
metafísica.
Tem-se a impressão de que o apelo à lógica tem a intenção da justificação possível
de acordo com a posição programática do autor. Em outros termos, seria a apresentação da
idéia de que pelo entendimento novo do que seja experiência inevitavelmente haveria novo
conceito de conhecimento, que ambos se relacionam intimamente. O conceito novo de
entendimento de experiência programado procura liquidar a idéia da existência de
sensações imediatas que pudessem existir sem a interferência havida dos ditames da
história e da cultura. Sentimentos e sensações já estariam nesse caso profundamente
comprometidos com o que se pensou e acumulou emocionalmente no seio da sociedade,
tanto que o imediatismo natural das sensações seria uma espécie de delírio e loucura como
foi anteriormente expresso. A possibilidade de determinar as sensações como
234
historicamente determinadas temos em Marx, e ela azo a muitas inferências quanto à
importância da estética. Pelo fato de haver determinação cultural naquilo que o homem
sente, todos fenômenos da cultura recebem daí a sua importância, pois parece insondável a
totalidade de possibilidade de rumo e novas emergências que socialmente podem acontecer
no coletivo civilizacional e cultural. Por isso, o corpo do homem não é apenas produto de
adaptação animal, mas também o próprio processo cultural em andamento. Toda a filosofia
empírica seria assim apenas uma expressão de uma época afeita a crendices tomadas por
absolutas. Mas o ponto zero histórica e culturalmente neutro das sensações nunca é
alcançado e experienciado, pois já sempre há corpo afetado pela cultura.
Kant sempre teve a metafísica como problema e a experiência como único
fundamento, porque o seu conceito de experiência, como já visto, excluía a possibilidade
da metafísica. Pela preocupação de Kant com a metafísica nos Prolegômena, poder-se-ia
inferir que o fator de distinção da metafísica não é a ilegitimidade dos seus conhecimentos,
mas o seu poderio universal ao relacionar imediatamente, por meio de idéias, a totalidade
da experiência com o conceito de Deus.
O raciocínio é de que se a ciência assim concebida é algo suspeito, ou até crendice
levando a humanidade ao desastre, então o conhecimento propalado pela modernidade
também não é tão seguro, cuja característica de certeza viria a ser a sua pior expressão. O
conceito de Deus tem o poder da abertura, é conhecimento legítimo a relacionar
imediatamente idéias e experiência. Idéias regulativas, quem sabe, a possibilitar o
ordenamento da própria experiência enquanto compreensão. Para Benjamin a
necessidade da liquidação do historicismo ingênuo, mas ao mesmo tempo também a
inevitabilidade da experiência organizada sistematicamente como condição de
possibilidade para dizer o que se diz.
O acerto das elaborações compreensivas até aqui parece confirmar-se quando
Benjamin afirma que com tudo isso não se possibilita Deus, mas a experiência dele e a sua
doutrina. Deus como limite, ou nada, ou impossibilidade de definição, ou espaço silencioso
em que a experiência se dá, ou condição absoluta que se como expressão da
dizibilidade: seria essa a experiência religiosa? Uma experiência que fala da totalidade das
determinações e que nunca consegue chegar a si como totalidade compreensiva ou mundo
como totalidade objetivada, mas em expressão constante. Inferimos que todo o artigo sobre
235
a filosofia vindoura tem subjacente a si a contradição da linguagem como critério de
relação e avaliação dos caminhos filosóficos possíveis.
Portanto, na elaboração da filosofia vindoura trata-se da tarefa da criação de um
conceito de conhecimento que relacione o conceito de experiência exclusivamente com a
consciência transcendental e com isso possibilite não apenas experiência mecânica, mas
também, de forma lógica, experiência religiosa.
Conforme Benjamin, sinais de evolução no próprio neo-kantismo. Um dos
problemas centrais do neo-kantismo, porém, foi o de liquidar a diferença entre a intuição e
o entendimento. Com essa mudança no conceito de conhecimento, logo se promove
também uma mudança no conceito de experiência. Por certo a redução de toda a
experiência à experiência científica não foi intentada tão exclusivamente por Kant como no
neo-kantismo. Certamente havia em Kant uma tendência contra a fragmentação e divisão
da experiência em setores científicos particulares e na metafísica “se deve encontrar a
possibilidade de formar um contínuo sistemático da experiência” (GS II-1, 164).
Infelizmente o neokantismo desenvolveu uma mudança do conceito de experiência
na perspectiva da formação extremamente mecânica do relativamente vazio conceito de
experiência iluminista em curiosa correlação com o conceito de liberdade, o qual, por isso,
também deverá ser alvo de reformulação.
Poder-se-ia até defender, conforme Benjamin, o ponto de vista de que com a
descoberta de um novo conceito de experiência, enquanto um possível ponto lógico da
metafísica, a diferença entre natureza e liberdade suspender-se-ia. Mas nesse conjunto de
reflexões apenas se trataria de um programa de pesquisa e não de provas a esse respeito.
Há, porém que se dizer que é inevitável a reformulação da transição entre doutrina da
experiência e doutrina da liberdade, mas isso não pode redundar em amálgama de
liberdade e de experiência. A tricotomia típica do sistema kantiano deve ser preservada,
mesmo que se tenham dúvidas, por exemplo, sobre se a ética deve relacionar-se ainda com
a segunda parte do sistema, ou sobre se a causalidade por liberdade deve ser entendida de
outro modo. Em geral, a tripartição de todo o âmbito da cultura pelo sistema kantiano é
algo que o distingue sobremaneira dos seus antecessores. Por outro lado, a dialética formal
após Kant não deixa abertura para uma não-síntese de dois conceitos predeterminados
como tese e antítese, o que do ponto de vista sistemático cada vez mais se exigirá, que
uma outra relação é possível entre as mencionadas tese e antítese.
236
Mesmo que a tricotomia kantiana deva ser preservada para a divisão da filosofia,
esquemas particulares do sistema merecem reparos, como por exemplo, da Escola de
Marburg que já iniciou com a eliminação da diferença entre lógica transcendental e estética
e o que se pode complementar com a revisão total da tábua das categorias. Exatamente
nisso se pode aspirar a uma transformação do conceito de conhecimento, angariando um
novo conceito de experiência, pois as categorias aristotélicas são arbitrárias e Kant as
direcionou unilateralmente para a experiência mecânica, além de apresentá-las
isoladamente e numa desconexão, que faz pensar na possibilidade de relacioná-las a uma
doutrina das ordens ou liga-las logicamente com conceitos originais anteriores. Uma
doutrina geral dos ordenamentos seria viável, a qual incluiria não a mecânica, mas, por
exemplo, também os conceitos fundamentais da geometria, ciência da linguagem,
psicologia, ciência natural descritiva. Além disso, seria preciso atentar para a necessidade
de tematizar as soluções do vir a ser do próprio conhecimento a fim de encarar o problema
sobre falso e sobre erro, a sua estrutura e o seu ordenamento lógicos, bem como do mesmo
modo sobre o verdadeiro. (GS II-1, 167). “O erro não deve mais ser explicado a partir do
errar, como a verdade também não mais a partir do correto entendimento”. (GS II-1, 167).
Na filosofia moderna em geral surge o reconhecimento de que o ordenamento categorial
possa ser por graduação multiforme e também não só por experiência mecânica, para que a
arte, o direito, a história e outros âmbitos ainda pudessem orientar-se pela doutrina das
categorias. Mas no âmbito da gica transcendental surge um dos maiores problemas, ou
seja, o das formas de experiências científicas (biologia) que Kant não tratou e a questão
é sobre por que não. Além disso, ainda restaria a pergunta pela relação da arte com a
terceira parte do sistema e da ética com a segunda.
O conceito da identidade, desconhecido por Kant e não mencionado na tábua das
categorias, talvez tenha papel importantíssimo como princípio supremo e como apto para
fundamentar, além da esfera do conhecimento, o uso da terminologia de sujeito e objeto.
“A dialética transcendental na versão kantiana já indica as idéias de que consiste a unidade
da experiência”. (GS II-1, 167). Como visto, para um conceito de experiência mais
profundo, continuidade e unidade são imprescindíveis, o que se consegue pelas idéias
numa perspectiva não vulgar e não meramente científica, mas metafísica. A convergência
das idéias com o conceito supremo do conhecimento deve ser demonstrada.
237
A doutrina kantiana com seus princípios relacionou-se com uma ciência, frente à
qual pode exercitar-se em suas definições. O mesmo acontecerá com a filosofia moderna,
sendo que a sua transformação e a sua correção de orientação por um conceito de
conhecimento unilateralmente matemático-mecânico dever-se-á promover como relação do
conhecimento com a linguagem, como já no tempo de Kant, Haman o fazia.
Para Kant, o fato de que todo o conhecimento tem a sua expressão na linguagem, e
não em fórmulas e números, ficou em segundo plano. Na reflexão sobre a essência
lingüística do conhecimento chegar-se-á à produção de um conceito de experiência capaz
de abranger sistematicamente setores que Kant não conseguiu incluir. O setor a ser
mencionado por primeiro é o da religião. Resumindo a exigência
...à base do sistema kantiano produzir um conceito de conhecimento
que corresponda a um conceito de experiência, da qual o
conhecimento é doutrina. Em sua parte geral uma tal filosofia
poderia ela mesma ser denominada teologia, ou seria anteposta a
esta, caso incluísse elementos histórico-filosóficos. (GS II-1 168).
Experiência é a variedade unitária e continuada do
conhecimento. (GS II-1, 168).
No pós-escrito ao mesmo artigo, Benjamin continua com a sua programação de
pesquisa, chegando aos seguintes resultados.
A relação entre filosofia e teologia deve ser clarificada melhor. Trata-se
primeiramente da relação entre os conceitos de teoria do conhecimento, metafísica e
religião. A filosofia tem um aspecto crítico e um aspecto dogmático, teoria do
conhecimento e metafísica. Essa divisão significa simplesmente que se pode construir uma
doutrina a partir do que primeiramente de forma teórico-crítica é instituído como conceito
de um conhecimento, sendo difícil mostrar o local em que termina a parte crítica e inicia a
parte dogmática, “pois o conceito de dogmático somente quer indicar a transição da crítica
para a doutrina, dos conceitos gerais fundamentais para os particulares”.(GS II-1, 169) O
total da filosofia é, portanto, teoria do conhecimento crítica e dogmática. A parte
dogmática da filosofia não se identifica com as ciências particulares, de modo que surge a
pergunta pelos limites entre filosofia e ciência particular. O termo “metafísico” quer dizer
que não esse limite e a cunhagem de “experiência” para “metafísica” significa que na
parte metafísica ou dogmática da filosofia a experiência está contida virtualmente. Qual é
então a relação entre filosofia e religião? Primeiramente se deve constatar que se trata da
238
relação entre filosofia e doutrina da religião, ou seja, da relação entre conhecimento em
geral e conhecimento da religião. Filosoficamente a questão da existência da religião, da
arte, etc., pode ter relevância em termos do conhecimento filosófico de tal existência.
“A filosofia pergunta absolutamente sempre pelo conhecimento em que o conhecimento da
sua existência é apenas uma modificação da pergunta pelo conhecimento em geral, se bem
que incomparavelmente distinta”. (GS II-1, 170) Em seus questionamentos, a filosofia em
geral nunca poderá vir a topar com a unidade do ser-aí [Dasein], mas apenas sempre com
novas unidades de legalidades [Gesetzlichkeiten], cujo integral é exatamente Dasein.
O conceito original, o conceito genético, na perspectiva da teoria do conhecimento
tem função dupla. Primeiro, ele se especifica desde a fundamentação do conhecimento em
geral até os conceitos de conhecimentos separados e modos de experiência. É este o seu
lado mais fraco em seu sentido metafísico: não chega a constituir uma totalidade concreta
de experiência e nem um conceito de existência. Mas por outro lado, uma unidade da
experiência, à qual o conceito de conhecimento se refere de modo imediato como doutrina
em seu desdobramento continuado. Esta totalidade concreta de experiência, o objeto e o
conteúdo desta doutrina, é a religião. Mas essa religião é dada à filosofia apenas como
doutrina. A fonte do Dasein encontra-se na totalidade da experiência e apenas na doutrina
(religião) a filosofia, como Dasein, topa com um absoluto e, com isso, com a continuidade
na essência da experiência. Talvez tenha sido essa a negligência do neokantismo.
Em perspectiva puramente metafísica o conceito original se expande de modo
imediato à totalidade da experiência, diferentemente do âmbito das suas especificações nas
ciências. “Que um conhecimento seja metafísico significa rigorosamente: por meio do
conceito genético do conhecimento ele se refere à totalidade concreta da experiência, isto
é, ao Dasein”. (GS II-1, 171). O conceito de existência filosófico deve legitimar-se frente
ao conceito de doutrina religioso, e este, por sua vez, frente ao conceito genético na
perspectiva da teoria do conhecimento. Devem cumprir-se as exigências de unidade virtual
de religião e filosofia, bem como a integração do conhecimento da religião na filosofia, e
por fim, a integridade da tripartição do sistema.
Não se pode deixar de conjeturar sobre o que isso possa significar. Um ponto lógico
enquanto experiência capaz de suspender a diferença entre natureza e liberdade não é nada
desprezível. Haveria mais indicações a esse respeito no texto, mesmo que o autor recue em
sua sugestão ao dizer que se trata apenas de um programa? Já anteriormente (GS II-1, 161
239
e163) havia mencionado o ponto lógico que ultimamente a fenomenologia haveria
abordado, e isso quanto à relação entre o conceito psicológico de consciência e o conceito
da esfera do puro conhecimento. Juntando as duas menções do ponto lógico metafísico
talvez se pudesse inferir que se trata de uma posição fenomenológica (Husserl) a fruir o
que surge de além da imediata crença no mundo assim posto para a compreensão
costumeira. Tratar-se-ia da pergunta pela metafísica e de tudo o que ela supõe quando
surge, isto é, a insatisfação quanto ao que foi explicado sobre a natureza e sobre o homem
que dela faz parte, admiração, interesse, percepção da mudança de si em relação aos
supostos descobertos sobre a própria compreensão nas explicações que são efetivadas para
o entendimento do mundo. A metafísica assemelha-se com a atividade filosófica de modo
muito próximo. A metafísica não pode mais ser entendida como o critério divinizado em
forma de metáfora na qual tudo se explica. Mas exatamente quase o contrário disso, ou
seja, o indiciamento do que se alocou como fundamento irrepreensível, como chão que
certeza para toda a corrida de elucubrações futuras e, assim, a entronização provisória até a
queda da coroa entronizada para profundezas maiores, ou deslocamentos de linguagem
quase ao modo de Wittgenstein em seus jogos de linguagem, mas sem a definição última de
jogos, pois também Wittgenstein não se dá conta da contradição da linguagem em que
sempre novo Deus espera como é dito em Metafísica da juventude (GS II-1, 92).
Metafísica, assim, é sempre sinal de impasse, de passagem, de ponte que liga algum lugar a
lugar nenhum por enquanto, à terra desconhecida, ao abismo mais profundo e extenso, ou a
permanência na oscilação entre busca de fundamento último e a sua destruição pela
descoberta de que se trata de constante expressão do inominável que são assim se
denomina.
240
5. A CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM NA TAREFA DO TRADUTOR: A
TAREFA DO TRADUTOR.
Benjamin detecta problemas filosóficos na atividade de tradução. Não se trata
primeiramente de questões de prática convencional de tradução, mas do sentido mais
profundo de qualquer tradução. Os problemas a que alude são diretamente relacionados
com os resultados de Sobre a linguagem em geral e a linguagem dos homens. Trata-se da
seguinte questão: como se pode traduzir a dimensão da linguagem, que, de acordo com a
contradição da mesma, não comunica, não repassa um conteúdo, não transmite algo além
de si mesma? A linguagem que participa imediatamente apenas a si mesma é passível de
tradução? Se a linguagem não deve ser vista como sistema de sinais de algo transmissível,
como é que se poderia traduzir a sua imediação, que impõe limites intransponíveis para
tanto? Como já visto em Sobre a linguagem em geral e a linguagem dos homens há a perda
da imediação da linguagem interpretada como queda vindo a ocorrer a multiplicidade das
linguagens comunicativas, todas elas na intenção desastrosa de sinalizar algo além de si
enquanto objeto separado. Em cada linguagem historicamente alocada ainda existem os
vestígios da linguagem em imediação expressiva, fragmentos de verdade de uma unidade
primeira. A questão é, portanto, a de como é possível traduzir esses resquícios de uma
linguagem para a outra, sem cair sempre de novo nas tentações da objetivação. A tradução
assim considerada desde o início é imbuída de uma tarefa que é exatamente a descrita, ou
seja, a recuperação do que foi perdido e está a se perder.
Sob esta ótica, Benjamin afirma que na elaboração de qualquer obra não se deve
levar em conta alguma consideração ou cuidado quanto ao leitor, pois o tem relevância
para a função e a tarefa da linguagem. A obra de arte não precisa minimamente levar em
241
conta o conhecimento de qualquer receptor pelo fato de que não pode haver estratégia de
conhecimento ou intenção competente na transmissão de algum conteúdo. A obra não deve
prestar-se à comunicação no sentido costumeiro e, por isso, não é necessário o
conhecimento, ou a captação do que comunica. Ela está excluída de qualquer relação
comunicativa e, assim também de qualquer relação de sujeito-objeto.
A questão então é sobre o que, então, numa construção lingüística pode ser
reconhecido além do seu caráter comunicativo. Além de todo o teor comunicativo quanto a
conteúdo concerne à linguagem o teor não predicativo que, então, se apresenta como a
tarefa precípua da tradução. Esta tarefa tem como alvo o âmbito da linguagem dos nomes,
o teor de verdade da própria obra, tudo isso bem além do que a intenção dos meros sinais.
O teor do conteúdo, isto é, o teor coisal [Sachgehalt] pertence totalmente às preocupações
de comunicação intersubjetiva com todas as suas variantes, e deve ser estritamente
diferenciado do teor de verdade [Wahrheitsgehalt], que supõe “a existência [Dasein] e a
essência do homem em geral” (GS IV, 9), o que, por sua vez, não pode ser objeto de
tematização cientificista. A tradução não deve, portanto, ter a intenção de repassar
conteúdos articulados por linguagem proposicional.
Pois, o que “diz” uma obra poética? O que ela comunica? Muito
pouco àquele que a compreende. O seu essencial não é
comunicação, não é proposição. Mesmo assim, aquela tradução
que quer comunicar não poderia transmitir nada além do que a
comunicação portanto, algo inessencial. Isto, portanto, então
também é um sinal de reconhecimento da má tradução. Mas o que
na obra poética permanece além da comunicação – e mesmo
também o mau tradutor concorda que se trata do essencial o
vale em geral como o inconcebível, misterioso, poético? Aquilo
que o tradutor somente pode restituir à medida que também
poetiza? Daí de fato provém um segundo indício da má tradução,
que então se pode definir como uma transmissão de um conteúdo
inessencial. (GS IV, 9).
A dimensão do inconcebível, misterioso e poético é a mesma daquela dos nomes.
Mesmo com essa identificação, resta a pergunta como é que então a parte essencial da
linguagem se parece para que se pudesse ter segurança numa eventual tradução, pois
ambas as dimensões estão presentes na linguagem, tanto a meramente informativa de
conteúdos, como a que é caracterizada como poética. Na obra original a ser traduzida as
duas dimensões não se distinguem à primeira vista e, por isso, os cuidados no trabalho de
tradução nesses termos são imprescindíveis. Em primeiro lugar deve-se depreender da
242
própria questão que uma tradução não interessada em conteúdos, mas em algo que
acompanha essa dimensão material trata na verdade de uma forma e que é identificada
como sendo a tradutizibilidade da obra. que acentuar que se trata, então, da obra e não
do tradutor: a obra de arte é traduzível ou não, algo que a própria constituição dela decide.
Tudo depende da possibilidade de se a verdade inscrita na obra é traduzível ou não, e isso
quem decide é a obra, pois é ela que por sua própria força aspira e leva à tradução. É certo
que a obra não se transforma em algum sujeito para si mesmo, mas que simplesmente a
obra, assim como é, exige a sua tradução de acordo com a sua essência (GS IV, 10). Em
sua constituição prática, a obra é uma construção finita como outra qualquer e, portanto, é
histórica. Desse modo a dimensão do incondicionado, do poético, do misterioso em seu
teor depende de uma língua finita e histórica, estando ela em constante perigo de
desaparecer. A tarefa, então, é impedir que esse desaparecimento aconteça, pois na
atividade da tradução o tradutor mesmo se envolve com a vida da obra como se fosse a sua
própria. A necessidade da tradução decorre do encontro acontecido entre tradutor e obra e
tal teor vital de verdade exige atualização e renovação, pois significa a forma de existência
mesma da obra. Mas que acentuar mais uma vez que não se trata de traduzir a obra
original assim como foi historicamente constituída, mas aquilo que constitui a sua verdade
em termos de um sentido que exige traduzibilidade sucessiva. E a verdade da qual aqui se
fala não depende do conhecedor que a pudesse manipular como se fosse objeto.
A verdade enquanto sentido da obra original de algum modo está presente no
tradutor, pois o conhecimento que o mesmo dela tem é questão da crítica que em relação a
ela promove. A conexão entre obra original e sua tradução é questão do seu significado e
da sua possível crítica.
A relação pode ser denominada como natural e, mais
precisamente, uma relação de vida. Assim como as expressões de
vida estão intimamente conectadas com o vivo sem que lhe
signifique algo, assim emerge a tradução do original. Sem dúvida,
não tanto da sua vida, mas mais da sua “sobrevivência”. Pois a
tradução é posterior ao original e designa, nas obras
significativas, o estágio da sua continuidade de vida, as quais
nunca encontram os seus tradutores escolhidos na época do seu
surgimento. (GS IV, 10).
O recado da citação é no sentido de que a necessidade da tradução decorre da
essência da obra que deste modo exige a continuidade da sua existência. A história, neste
caso, é vista por Benjamin como um processo que não pode ser comparado com a mera
243
permanência na dimensão temporal. Ela é considerada como um acontecer constante feito
de ações, mudanças e movimentos. Por isso, quando a vida é mencionada na citação, trata-
se do processo histórico em que as essências são afetadas e afetam. A vida das obras é
participação num processo que é comparável à vida humana, pois fazem parte do próprio
vir a ser desde que foram instauradas no acontecer da história, o que, por sua vez,
significa que jamais podem ter o caráter de puro objeto manipulável por alguém. As obras
têm, portanto, uma vida histórica que afeta a sua evolução, ou seja, à medida que o
processo de desdobramento do seu teor de verdade acontece pelas traduções feitas, esse
mesmo teor não pode ser objetivado de uma vez por todas. A idéia é a de que o saber
misteriosamente poético da obra não pode ser evidenciado por proposições interessadas em
objetivação e, deste modo, ele é inesgotável, podendo somente ser revivido por constantes
atualizações e novas apropriações. A obra não permanece a mesma, e a razão disso é a de
que, com a sua dimensão poética, ela não é recebida pelo tradutor como um objeto do qual
se pudesse distanciar, mas, pelo contrário, o saber que ela traz está profundamente
imbricado com aquele que sabe. Se em cada tempo atual a obra deve também ser
atualizada por sua própria exigência, então esse saber não pode ser isolado da situação
histórica concreta em que é traduzida e o significado desse teor em seu desenvolvimento
ativa-se de forma descontínua na história, a exemplo da vida do homem que se transforma
constantemente permanecendo, porém, na sua identidade.
Os tempos em que a obra continua a se desenvolver pela forma descrita são por
Benjamin denominados de tempos de fama. Os tempos de fama, porém, denotam algo
mais, isto é, que a tradução é apenas uma das expressões possíveis da obra. A tradução
como que segue a fama da obra constituída de muito mais do que a tarefa tradutora. (GS
IV, 11).
A realização do desenvolvimento da obra no que concerne à tarefa da tradução
tangencia questões tanto de linguagem como de história do uso da mesma, e as
preocupações de Benjamin, portanto, devem ser entendidas a partir da sua interpretação do
pecado original. Na exemplificação da história do paraíso o teor de verdade é relativo à
linguagem dos nomes numa presença constante. Mas a queda na comunicabilidade de
conteúdos objetivados levou ao esquecimento e ao seqüente desconhecimento atual de tudo
isso, de modo que agora a verdade das obras de arte necessita atualizar-se continuamente
como foi descrito. A presença pura e imediata da verdade original em unidade foi
244
substituída pela linguagem objetivadora numa função meramente semiótica que nesse viés
se fragmenta continuamente. A tarefa da tradução deve ser o movimento contrário que é o
da recuperação da unidade perdida quando na fragmentação alucinante ela ressalta a
dimensão do poético. A verdadeira tradução, portanto, é sempre um passo no sentido da
reconstituição do que as próprias línguas em fragmentação supõem, ou seja, uma
identidade expressiva original que representa a própria condição de possibilidade delas.
Deste modo a tradução faz acontecer algo extremamente importante, que é a suposição de
que todas as línguas têm um fundo de semelhança apesar da sua diferenciação em termos
semióticos. Além de tratar do desenvolvimento da obra original, a tradução, portanto,
indica uma mudança de relação entre as línguas, chamando à atenção para o que elas têm
de semelhante e impondo, assim, uma cesura ao movimento de fragmentação infinita. O
suposto de identidade aventado é o fato de que é possível a expressão em desenvolvimento
de um teor de verdade idêntico, apesar dos diferentes sistemas de designação pelas línguas
históricas. Pela tradução, as línguas finitas entram em relação com a linguagem dos nomes
que perfaz uma unidade virtual. As línguas finitas reúnem-se em torno dessa linguagem
como que em torno de um lugar vazio. É por este motivo que Benjamin deduz a
impossibilidade de uma tradução que fosse comum a todas as línguas, pois se trata de uma
tentativa intermitente, de um gérmen de apresentação de um significado, o qual permanece
oculto, mas ao mesmo tempo determina a relação entre as línguas na tradução. Trata-se de
uma
convergência peculiar. Ela consiste em que as línguas não são
estranhas entre si, mas, abstraindo todas as relações históricas,
são a priori aparentadas entre si naquilo que querem dizer, mas
nunca estão em condições de dizer. (GS IV, 12).
Quando a tradução costumeira intenta a reprodução de um determinado conteúdo e
uma língua para a outra, Benjamin dá a entender a sua impossibilidade. O conhecimento de
que fala não procura a objetividade, pois não se realiza com a reprodução de alguma
realidade à parte. A tradução, por isso, não pode pretender expressar o mesmo igual ao
original por meio de proposições. Em suma, é um saber não proposicional que aparece,
pois aquele que sabe não pode ser apartado do seu saber em situação. Esse saber em
situação enquanto modo de ser do teor de verdade e que perfaz a vida da obra, proíbe, por
isso, qualquer semelhança de conteúdo objetivado entre original e tradução.
245
O caráter dinâmico e histórico da linguagem, conforme Benjamin, deve ser
auscultado das palavras em si mesmas quando desenredadas de todas as suas relações. De
um lado rechaça a idéia de que a mudança da linguagem provenha do seu uso prático nas
necessidades sociais, como também a idéia de que o significado seja elaborado unicamente
pelo sujeito capaz de relativizar e ir além de qualquer sentido constituído como se este
fosse objeto. O sujeito falante sempre faz uso de palavras cujo sentido posteriormente
pode compreender de forma mais ampliada, reduzida, ou até diferente, e, no instante da
elocução, a consciência de qualquer modo está enredada nas aplicações das palavras em
termos de objetivação nas lides do cotidiano em geral. É possível se dizer que as palavras
têm um significado em si mesmas que aos poucos, além do uso imediato, pode ser
entrevisto por interpretações tradutoras sucessivas. É por isto que a vida das obras deve
formar uma elaboração contínua de descontinuidade entre original e tradução, o que
analogicamente também traduz as relações entre presente e passado, isto é, somente pela
tradução do presente o passado se atualiza para fazer parte do que atual. Sobre a tradução
se pode dizer:
Ela está tão distante de ser a igualdade muda de duas línguas
mortas que, como a questão mais própria de todas as formas,
precisamente lhe cabe prestar atenção àquele amadurecimento
tardio das palavras estranhas nas dores de parto das próprias.
(GS IV, 13).
O parentesco das línguas não é de ordem genética e nem a linguagem dos nomes
deve ser entendida como a linguagem original no sentido histórico.
Além do parentesco histórico, onde pode ser procurado o
parentesco de duas línguas? De qualquer modo, nem na
semelhança de obras poéticas, nem naquelas nas semelhanças das
suas palavras. Antes de tudo, todo o parentesco das línguas além
do histórico consiste no fato de que em cada uma delas enquanto
totalidade apenas algo é considerado de cada vez, a saber, o
mesmo, mas o que, mesmo assim, a nenhuma delas é dado
alcançar individualmente, a não ser pela totalidade das suas
intenções conjuntamente conjugadas: a linguagem pura. (GS IV,
13).
A linguagem pura que na citação é mencionada não é de cunho instrumental na
indicação de objetos, mas é a linguagem dos nomes ainda não conspurcada por proposições
que pretendem objetivação absoluta. O homem caído na compreensão meramente voltada à
comunicação de objetos perdeu inexoravelmente a linguagem pura, a qual, porém,
246
permanece como idéia regulativa enquanto ideal de toda a fala e de todo o conhecimento.
A linguagem proposicional procura constituir o mundo das coisas. As proposições que
objetivam o saber conceitual têm a pretensão de se relacionar entre si como a realidade que
supostamente captam como num mundo paralelo e como num total de estados de coisas.
Assim, neste aspecto todas elas diferem entre si tendendo a fragmentação cada vez maior.
Mas a unidade que as supõe, o mesmo teor de verdade, a mesma idéia forma um pano de
fundo que a totalidade do conhecimento proposicional com que se expressam nunca pode
ser realizado. São, portanto, diferenciadas quanto ao saber proposicional que decai na
objetivação, mas tem a sua unidade suposta pelo seu teor não proposicional. Benjamin
explica:
Enquanto todos os elementos individuais, as palavras, frases,
relações das diferentes línguas se excluem, essas línguas se
complementam em suas intenções mesmas. Captar mais
precisamente essa lei, fundamental para a filosofia da linguagem,
está na intenção de diferenciar o visado da forma de visar. Em
“Brot” e “pain” o visado certamente é o mesmo, ao passo que na
forma de visar não é. Na forma de visar está, pois, a razão de
porque ambas as palavras significam ao alemão e ao francês algo
diferente, de porque para ambos elas não são substituíveis, e até,
por fim, aspiram excluir-se mutuamente; de porque, porém, elas
quanto ao visado, tomado por absoluto, significam o mesmo e o
idêntico. (GS IV, 13).
Na forma de visar não trata da forma diferente quanto a um conteúdo, como se
esperaria na linguagem proposicional em que se utilizam diversos significantes para o
mesmo significado. A relação é outra e se resolve como expressão, da que cada linguagem
é capaz para visar um incondicionado que lhe é condição de possibilidade. A forma de
visar de cada língua é a forma imperfeita de uma referência finita a uma idéia. O conceito
de pão em alemão e em francês é substituível quando estes visam o mesmo objeto à frente,
mas não é substituível quando se leva em conta o caráter de experiência que nunca pode
referir-se a um objeto simplesmente. O teor de experiência expressa um significado que
nunca poderá ser captado definitivamente, pois subjaze a cada uma das experiências
particulares e sempre diferentes entre si. Não se poderá dizer de forma predicativa o que é
o pão em si mesmo, mas as formas de visar referem-se diferentemente a uma coisa só:
todas elas realizam a totalidade de uma perspectiva em que a coisa se dá, mas precisamente
em cada perspectiva de modo diverso.
247
Cada uma das perspectivas é uma versão da totalidade, mas não a totalidade
mesma. Na forma de visar o que aparece não é algo diferente, mas é o idêntico que aparece
diverso. As perspectivas não são meramente partes fragmentadas de um infinito, mas são
expressões diversificadas do mesmo. Com essa forma de pensar não mais se está na
linguagem de intenção proposicional que se refere a objetos. Por isso é que na forma
diversa de visar é possível vislumbrar a complementação que cada uma significa para a
outra em relação e a partir da suposição da linguagem pura. Nas linguagens individuais em
que não ocorre a complementação para a percepção mais imediata do visado, um longo
processo de mutação vocabular para emergir da linguagem objetal. O visado
constantemente suposto permanece velado nas línguas.
Quando, porém, estas crescem de tal modo até o fim messiânico
da sua história, é, então, a tradução, a qual se inflama na eterna
sobrevivência das obras e na infinita revivescência da linguagem,
que sempre de novo pode promover a prova sobre aquele sagrado
crescimento da linguagem, ou seja, quão longe o que nela está
oculto se encontra afastado da revelação, quão presente lhe
poderá se tornar o saber sobre essa distância. (GS IV, 14).
Em todas as línguas encontra-se a verdade, mas de forma velada. O sentido da
complementação por intermédio da tradução é a redução das línguas em direção ao visado,
à restituição da linguagem do paraíso.
um evidente entrecruzamento entre a concepção de linguagem e de história em
Benjamin. Os elementos do estágio final de uma revelação total estão profundamente
incrustados em cada atualidade (GS II, 75). Do mesmo modo os elementos da verdade sem
a intenção da objetivação estão encobertos pelos conteúdos elaborados pela subjetividade
da consciência que se quer exclusivamente autônoma. Fragmentos da linguagem dos
nomes estão inscritos na discursividade da linguagem proposicional.
De acordo com o dito, as traduções poderão existir onde acontecem as diversas
formas do visar e, neste sentido, toda a tradução é provisória. A linguagem pura é
expressão da experiência da qual, entre outros, decorrem também as convicções religiosas.
A doutrina religiosa, por sua vez, pode constituir uma experiência que promove a
germinação de uma linguagem superior. A tradução procura aproximar-se dela, ou até a ela
se aliar quando elimina o viés do ajuizar do conhecimento: o ajuizar intermitente a base de
critérios absolutizados é uma característica fundamental do conhecimento objetivador e
proposicional. É claro que com tudo isso a obra original a ser traduzida perde o seu caráter
248
de comunicação, mas, por outro lado, se eleva à altura superior da linguagem, sem, porém,
chegar à linguagem dos nomes da linguagem pura visada pelo tradutor. Acresce-se a isso
que tal esforço em alcançar o visado apresenta uma diferença entre a palavra poética do
original e a tradução. Ao visar exclusivamente o teor de verdade contido no original, o
tradutor elabora outra relação entre âmbito do saber e âmbito da linguagem, entre teor e
conteúdo. (GS IV, 14s). Quando a tradução tem como alvo pura e exclusivamente o
poético, abandona o âmbito discursivo em que o original se encontra.
Benjamin compara a unidade de proposição e formas de saber conjugadas no
original com a unidade de uma fruta e a sua casca, as quais, quando separadas como no
caso da tradução que privilegia uma das partes, são comparáveis a um manto real que
jogado ao longe não permite conclusão alguma sobre a figura que vestia. A tradução não é,
portanto, construção de identidade entre ela mesma e a obra original e, então, o seu estatuto
é o de significar “uma linguagem superior a ela e, com isso, permanece em relação ao seu
teor inadequada, violenta e estranha”. (GS IV, 15).
Para precisar melhor a diferença quanto à elaboração de linguagem entre o autor
original e o tradutor, Benjamin apresenta a imagem do primeiro na condição de estar em
meio à linguagem como numa floresta na montanha. A linguagem para o autor é algo que
surge como natureza agreste e o seu trabalho é o da orientação no sentido de encontrar a
sua própria linguagem. O autor tem ao seu dispor todo o matiz concreto de todo o material
da linguagem repassado pela tradição, de modo que a intenção dele em relação à
linguagem é intuitiva. (GS IV, 16). A tradução, porém está fora dessa floresta, pois ela se
encontra
frente a ela e, sem a adentrar, ela chama o original para dentro,
para dentro daquele único lugar, onde a cada vez o eco da
linguagem própria consegue promover a repercussão de uma obra
da linguagem estranha. (GS IV, 16).
O autor expressão às suas próprias experiências, enquanto que o tradutor
transforma a obra quando transverte o seu teor para uma linguagem estranha. A tradução,
portanto, é transformação, a qual não pode ser posta na conta do tradutor como sujeito que
sabe, mas da própria linguagem que produz os seus múltiplos ecos. Esta também é a razão
de não poder haver método de tradução enquanto um caminho predefinido.
249
Não há musa da filosofia, também não há musa da tradução.
Tacanhas, porém, como os artistas sentimentais a querem elas
não são. Pois há um gênio filosófico, cuja característica mais
própria é o desejo por aquela linguagem que se manifesta na
tradução.(GS IV, 16).
Pode uma tradução do teor de uma obra ser feita a contento sem a transmissão do
seu conteúdo? A obra em todo o caso apresenta uma linguagem, à qual correspondem
duas formas de saber. Não poderia acontecer que as condições de tradução são destruídas
quando se deixa de restituir o sentido a fim de traduzir apenas o que se refere à linguagem
pura? De que forma o saber não predicativo está oculto na predicação das linguagens
históricas? Como pode ser compreendida uma linguagem que com os seus meios
insuficientes procura antecipar a linguagem pura? A contradição da linguagem retorna e
retoma os seus direitos de modo avassalador. A tradução como a obra, portanto,
permanecem na contradição da linguagem entre objetivação e expressão. Pela tradução as
palavras não são simplesmente reduzidas à sua condição de lexia, mas são utilizadas em
novo contexto de tal forma que se torna, então, possível que a linguagem possa visar a
linguagem pura.
No reino intermediário entre linguagem histórica e linguagem pura está a tradução
com a sua tarefa, o que lhe possibilita levar as linguagens finitas pelo caminho da
complementação. Benjamin compara esse processo de complementação abordado como
a junção de cacos para a reconstrução de um recipiente quebrado, isto é, num trabalho
afanoso de recolha, as palavras merecem um ordenamento numa disposição especial para
visar o mesmo saber, o mais fundamental.
A concepção de tradução de Benjamin, portanto, parte da suposição geral de que,
além do sentido predicativo na denominação de objetos, bem perto dele e, mesmo
assim, infinitamente longe, sob ele oculto ou, mais detalhadamente, por ele refratado e
mais poderoso do que toda a comunicação, algo último, decisivo.
Além do comunicável, permanece em toda a língua e suas
formações algo não-comunicável, algo que, dependendo do
contexto em que é encontrado, é simbolizador ou simbolizado.
Simbolizador apenas nas formações finitas das línguas;
simbolizado, porém, no vir a ser das próprias línguas. E aquilo
que no vir a ser das línguas procura apresentar-se, elaborar-se
até, isto é aquele núcleo da própria linguagem pura. Mas se este
núcleo, seja oculto ou fragmentado, mesmo assim está presente na
250
vida enquanto o próprio simbolizado, ele simbolizado reside
nas formações. Se esta última essência, que é a própria linguagem
pura mesma, nas línguas se encontra presa apenas ao lingüístico
e suas mudanças, então ela está comprometida com o sentido
pesado e estranho. Livrá-la deste sentido, tornar o simbolizador
no próprio simbolizado, recuperar ao movimento da linguagem a
linguagem pura formulada, é esta a poderosa e única capacidade
da tradução. Nessa linguagem pura, que nada mais visa e nada
mais expressa, mas que enquanto palavra inexpressiva e criadora
é o visado por todas as línguas, toda a comunicação finalmente,
todo o sentido e toda a intenção encontram uma camada em que
estão destinadas à extinção. (GS IV, 19).
A tradução, portanto, movimenta a linguagem em direção contrária ao da
subjetividade que se quer autônoma na produção de proposições: a forma do saber que
amealhou está fadado à extinção. A tarefa da tradução é livrar o verdadeiro da sua
disformidade enquanto realidade em paralelo, livrar os seus elementos inscritos na
linguagem finita. O processo de tradução nesses moldes é caracterizado como processo de
restituição da unidade perdida, de retorno ao ser. Para promover o retorno da
multiplicidade das línguas à unidade suposta, a causa da dispersão e da fragmentação deve
ser conhecida e superada. Conhecida ela é pela contradição da linguagem e a tradução é o
movimento de superação.
Não é do sentido da comunicação que ela [a tradução] tem a sua
consistência, comunicação a respeito da qual a tarefa da
fidelidade é precisamente emancipar-se. Na linguagem própria,
contudo, se confirma liberdade por causa da linguagem pura.
Aquela linguagem pura que no estranho está exilada deve ser
salva na linguagem própria; libertar pela recomposição a
linguagem presa na obra é a tarefa do tradutor. (GS IV, 19).
A comunicabilidade deve ser superada na tradução: esta é a tarefa. Imbuída dessa
tarefa, por sua vez, há que transcender a linguagem discursiva.
Quanto menos valor e dignidade a sua linguagem tem, quanto mais
for comunicação, tanto menos o que ganhar com isso na
tradução, até que a completa preponderância daquele sentido, muito
longe de ser alavanca para uma tradução sem forma, a frustra.
Quanto maior a obra vem a ser, tanto mais ela mesma permanece
ainda intraduzível no contato maximamente fugidio do seu sentido.
(GS IV, 20).
Benjamin um exemplo da dificuldade na relação entre tradução e original. Ele
expressa que a dificuldade é como que uma tangente tocando um círculo apenas num
251
determinado ponto, e que a lei da sua continuidade ao infinito é ditado pelo contato. Do
mesmo modo a tradução toca fugidiamente o original num infinitamente pequeno ponto
para, então, seguir a lei da fidelidade da liberdade do movimento da linguagem num
percurso próprio. (GS IV, 20). Benjamin também considera as traduções tardias de
Hölderlin como modelo e arquétipo de transposições que não almejavam conteúdos
conceituais da linguagem. Mas reside o perigo do silêncio. As traduções de Sófocles por
parte de Hölderlin foram as suas últimas. “Nelas o sentido cai de abismo a abismo até
ameaçar perder-se nas profundezas sem fundo da linguagem”. (GS IV, 21). Fato é que,
depois destas traduções, Hölderlin emudeceu na loucura. Em todo o caso, parece haver o
perigo do emudecimento quando a linguagem perde completamente qualquer alvo de
comunicação. Mas, de acordo com Benjamin, um paradouro proporcionado pelo texto
sagrado “em que o sentido deixou de ser o divisor de águas para a linguagem caudalosa e a
revelação caudalosa”.(GS IV, 21). No texto sagrado as diversas formas de saber não estão
em conflito. E numa confiança mútua entre original e tradução aí se uniram a literalidade e
a liberdade na versão da tradução interlinear.
Pois em qualquer grau todas as grandes obras, mas maximamente
as sagradas, contêm entre as linhas a sua tradução virtual. A
versão interlinear do texto sagrado é o arquétipo e o ideal de toda
a tradução. (GS IV, 21).
Numa tradução interlinear as palavras e as frases do original tornam-se citações na
escrita de vida do próprio tradutor, pois do texto emerge a verdade que, por um lado, o
inclui na obra e, por outro, ao mesmo tempo, atualiza a mesma na concretude da vida.
252
6. A CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM NA ARTE E NA FILOSOFIA: ORIGEM
DO DRAMA BARROCO ALEMÃO.
Não é ocioso sempre relembrar que é preciso recomendar cuidado frente à
linguagem de Benjamin: não nenhuma palavra que não esteja cuidadosamente
escolhida, que o assunto é exatamente a apresentação do pensamento filosófico. No
texto Origem do drama barroco alemão encontra-se uma seqüência de frases lapidares,
cada uma como que resumindo um assunto amplamente discutido e à espera da
criatividade do leitor para inscrever-se num diálogo já iniciado.
De acordo com a tese de que a contradição da linguagem é o ponto focal a ser
compreendido para a compreensão da atividade filosófica de Benjamin, examinaremos os
elementos sob este prisma.
“É próprio da escrita filosófica deparar-se sempre de novo a cada expressão com a
pergunta sobre a apresentação”. (GS I-1, 207). A escrita filosófica sofre com a consecução
da sua apresentação a cada novo acontecer de si. A apresentação escrita vem a se constituir
numa questão talvez pelo fato de se conceber o pensamento e a fala como anteriores
acontecimentos mais imediatos. O pensamento necessita da escolha cuidadosa das formas
literárias em que possa ser mais bem apresentado, o que já supõe preocupação a respeito
dos efeitos e da forma do que se pensou. O pensamento, antes imediato, é agora
acompanhado dos cuidados estratégicos da apresentação exigindo uma relativa
sistematicidade pedagógica que antes não tinha. O pensamento aprisionado em
considerações valorativas quanto a sua melhor apresentação escrita certamente pode sofrer
interrupções e desvios em seu percurso. Quando primeiramente apenas parece acontecer
em cadeias de raciocínio sem intenção, agora na apresentação é pressionado à obediência
aos ditames de um dizer melhor: aspectos pedagógicos, teleológicos, sistemáticos, de
253
justificação, de crença de acerto e de cálculo quanto a efeitos lhe são impostos.Por isso, se
diz:
“Certamente em sua forma acabada será doutrina, mas ao mero pensamento não é
dado o poder de lhe conferir tal forma integral”. (GS I-1, 207). A doutrina é a forma
acabada da apresentação, pois é um artefato, cujo conjunto engloba em si os aspectos
antes mencionados, na suposição de poder responder a todas as possíveis objeções. A
doutrina apresentada, enquanto suposição de acerto didático completo, desenha a intenção
de uma determinada totalidade compreensiva, que acredita ser inatacável a partir da sua
exterioridade, que os seus limites externos são completamente invisíveis para ela. Tal
determinada totalidade compreensiva, didática e doutrinariamente estabelecida, recorre
necessariamente somente aos seus próprios esteios, considerados inabaláveis por ela, e à
sua repetida auto-alimentação pela sua movimentação em busca da preservação estratégica
de si. O pensamento realizado didaticamente na forma da doutrina tem a pretensão da
completude e lhe restam, então, apenas os modos de dizer o mesmo. “A doutrina filosófica
consiste em codificação histórica”. (GS I-1,207).
A codificação histórica da doutrina filosófica poderá ter dois aspectos. O primeiro é
o de que a doutrina enquanto tal representa os efeitos dela mesma no tempo: é narrada
repetidamente e interpretada de modo que o seu cerne não sofra solução de continuidade a
ponto de se converter em compreensão burocratizada insistentemente. Ela necessita de tal
codificação histórica, que pode sobreviver como comprometida acentuação do
conjunto de esteios supostos que procuram lhe garantir continuidade compreensiva: precisa
ser dita, apresentada continuamente e re-acentuada.
A doutrina filosófica remete ao conjunto de elaborações de pensamento, questões
fundamentais surgidas em termos de perguntas e ensaios de resposta desde o seu início na
filosofia grega até agora, e tentativas de sistematização experimentadas, a ponto de formar
um repertório de constante referência do próprio pensamento em curso, como também de
re-elaboração criativa e re-contextualização necessária. A doutrina filosófica entende-se,
portanto, referida à sedimentação do pensamento humano, ou codificado em textos, ou
elaborado e apanhado em compreensão no diálogo prático da vida. Tal doutrina
efetivamente colabora na pré-formação do pensamento atual e, por isso, em grande parte
nele se reconhece nas questões mais profundas que exigem maior atenção em sua
254
ocorrência subterrânea atual, maior dificuldade de articulação lingüística e, por isso
mesmo, maior dificuldade de apresentação.
Tais elementos e dificuldades de apresentação das questões da doutrina filosófica
indicam o envolvimento direto de quem com eles se relaciona de forma criativa, já que está
tratando de seu próprio pensamento, da sua própria linguagem, daquilo que mesmo é no
conjunto dos resultados de tal codificação histórica. O grau de dificuldade apresenta-se,
então, principalmente no impedimento da pretensão de construção objetiva, como se fosse
unicamente um conteúdo à parte da linguagem usada precisamente na sua apresentação.
Não é possível relacionar-se com o conjunto do repertório filosófico como se fosse para
selecionar, somar e dividir elementos para o uso instrumental em alguma empreitada já de
início construtiva e objetivamente pré-elaborada. Além disso, como indicado, o uso do
repertório filosófico é imediato no comprometimento do próprio pensamento e da
linguagem em atividade de análise. “Assim, ela também não pode ser conjurada more
geométrico”. (GS I-1, 207).
que assim é, a doutrina não pode ser invocada como um conhecimento
objetivado que ao longo do tempo tende a permanecer o mesmo, sem parecer necessitar de
interpretação e sempre renovada atualização. Apesar da codificação histórica a doutrina
necessita a cada vez da sua apresentação pela linguagem, perfazendo uma totalidade de
compreensão por parte de quem a expõe ao modo do comprometimento com ela. A
matemática e a geometria em sua forma de linguagem especializada pretendem ter chegado
a um grau de objetivação não mais sujeita às variações do pensamento em re-elaboração no
curso da história. O seu estatuto pretendido é o da objetivação absoluta para a produção de
certeza a respeito do próprio discurso. A sua verdade é a verdade da certeza evidenciada na
repetição igual dos seus processos de aplicação. O caminho enquanto método a ser seguido
é através do passo sistematizado por codificação sem permissão de desvios, sob pena de
ocorrência de erros em seu fluxo automatizado. Desse modo não pode haver problema de
apresentação descritiva reiterando os seus percursos necessariamente pré-determinados.
O conhecimento objetivado, portanto, não tem o problema da apresentação pelo
fato de já estar pronto e ao dispor da possível aplicação prática. Ele subsiste sob as
condições da combinada adequação às coisas e promove seguramente a certeza da
compreensão que se reitera recorrentemente à base de princípios aceitos e assim
estabelecidos. A abstração matemática aqui não é vista como linguagem ordenadora sujeita
255
a apresentações interpretativas, mas como mecanismo teórico fixo capaz de ser repetido
infinitamente nas aplicações adequadas às coisas. Não se trata, portanto, do que acontece
no âmbito da linguagem em geral, no qual, mesmo expressando doutrina historicamente
codificada, há espaço de manobra suficiente para apresentação diversificada de acordo com
nuances interpretativas.
O termo verdade, portanto, na circunscrição da linguagem não serve como
significado de certeza na adequação das palavras às coisas configurando conhecimento. A
verdade expressa na linguagem não é conhecimento produzido na intenção de adequação
do termo a algo exterior a si.
Quão nitidamente a matemática prova que a total eliminação do
problema da apresentação, conforme qualquer didática
severamente objetiva o reivindica, é o signum do genuíno
conhecimento, assim de modo decisivo igualmente se a sua
renúncia àquele âmbito da verdade, que as línguas visam. (GS I-
1, 207).
Portanto, o ordenamento didático da apresentação como é possível enquanto
pretensão nas ciências em geral e na matemática, nunca se capaz de incorporar a
totalidade do que acontece nas especulações filosóficas à base da doutrina elaborada por
séculos de história. O método na filosofia é diferente da apresentação didática. A
apresentação da filosofia como pensamento deve ter um caminho, ou seja, um método,
diferente da doutrina em repetição recitativa ou das convencionais certezas do
conhecimento exemplificado pela matemática. “Aquilo que nos projetos filosóficos é método
não é absorvido no seu ordenamento didático”. (GS-I, 207).
O pensamento filosófico enquanto propriedade projetiva segue por um caminho
impossível de ser apanhado por qualquer estrutura sistemática que se entenda como fixada
e capaz de recorrência contínua. O seu acontecer é esotérico a ponto de obrigar à reflexão
exatamente da sua apresentação diferenciada. O esoterismo é o seu caráter de
acontecimento inédito a exigir constante reflexão quanto à sua expressão escrita, pois não
pode ser concebido e não pode considerar-se pronto para alguma produção em série como
se fosse algo plena, absoluta e abstratamente codificado e, assim, sujeita a apresentações
more geometrico. O descarte da característica de imprevisível acontecimento enquanto
esoterismo em relação a algo capaz de recorrência não lhe é possível, sob pena de deixar
de ser exatamente o que é: diferença em relação a qualquer recorrência. A negação de que
256
seria esoterismo (metafísica) lhe é proibida pelo fato exatamente de ter consciência da
impossibilidade da sua repetição e da experiência da sua diferenciação frente ao
conhecimento posto e capaz de reiteração: é vítima de insuficiência estrutural. Por outro
lado, no caso de o pensamento filosófico querer enaltecer-se do seu esoterismo estaria
julgando a si mesmo e deixando novamente de ser o que deve ser, ou seja, acontecer
imprevisível e, por isso, esotérico, pois a vanglória traz consigo intenções de estratégia e
supõe produto teórico acabado à espera de aplicação. “E isso nada mais significa que um
esoterismo lhes é próprio, que não conseguem descartar, lhes é proibido de negar e o qual
os julgaria ao ser glorificado”. (GS I-1, 207).
Apesar dos seus aspectos de repetição, a doutrina não permite a intenção da
dicotomia explícita e definitiva entre sujeito e objeto, pois o sujeito inclui-se a si mesmo no
que propõe objetivamente como conjunto de pensamento apresentado didaticamente. A
doutrina apresentada procura ser o desenho daquele que a expõe, o qual, por outro lado, é
consciente disso. O apresentador expõe a doutrina como imediatamente ligada a si
enquanto expressão da sua própria posição. Desde o ensaio esotérico sem compromissos
com alguma estrutura didática, mas no imediato da expressão de pensamento, até a forma
acabada da doutrina como codificação das sucessivas recepções históricas, vigência da
coincidência entre a afirmação da consciência de ser e o conteúdo afirmado de forma
objetivada na linguagem. O apresentador apropria-se do conteúdo afirmado para que seja a
expressão de seu ser em compreensão do mesmo. O conteúdo afirmado revela-se como a
compreensão consciente e apropriada de quem o apresenta. O conteúdo apresentado
afirma-se como testemunho consciente da compreensão do apresentador.
O estado de coisas assim explicitado não ocorre com o conceito de sistema do
século XIX, pois procura ser uma espécie de rede a incluir todas as perspectivas, menos a
posição nele auto-incluída do apresentador. É curioso observar como a insistência da
objetivação sistemática é pertinaz na sua abordagem do dito em termos de conhecimentos
independentes da compreensão de quem os apresenta e absolutos quanto à certeza da sua
validade. O conjunto sistemático é considerado como um universo em que tudo se ajeita à
maneira da gica, mas no qual seu apresentador não se inclui enquanto compreensão ativa
como quem o promulgou para dele fazer parte exatamente enquanto arauto e expressão de
si. A possibilidade de que o sistema configurado possa ser doutrina vivenciada é o que o
século XIX ignora. O apresentador observador neste caso se compreende como segundo
257
elemento apartado do sistema que aponta em termos de solução para a integração de todos
os conhecimentos. “A alternativa da forma filosófica, estabelecida pelos conceitos da
doutrina e do ensaio esotérico é aquela que o conceito de sistema do século XIX ignora”.
(GS I-1, 207).
O sistema entendido como rede tecida com conceitos e entre conceitos para apanhar
a verdade como se fosse objeto separado é próprio da modernidade. Os conhecimentos,
nesse caso, ocupam a função de capturar e enredar uma verdade vista como mera
objetivação enquanto alvo a ser constantemente alcançado por conquista. O pretenso
resultado é a posse da verdade pelos conhecimentos como se ela fosse coisa e manipulável
a qualquer hora. Neste raciocínio, os conhecimentos cumprem a tarefa de serem
instrumentos e possuidores da verdade, completamente separados e independentes de quem
os propõe. Uma tal verdade é presa nesse caso pelos conhecimentos instrumentados para a
sua captura em favor das mais diversas aplicações, ou seja, a verdade como adequação. A
verdade, como foi dito, não é aquela entendida pela linguagem que é a participação
(Mitteilung) inevitável num todo que pressuposto.
Enquanto ele [conceito de sistema] determina a filosofia, esta
corre o risco de se acomodar num sincretismo que procura
capturar a verdade numa teia de aranha estendida entre
conhecimentos como se de fora ela voasse em sua direção. (GS I-
1, 207).
Com o tema da verdade Benjamin aborda a condição pré-reflexiva desse termo em
relação à arte. A verdade não pode ser capturada nem pelos encantos da consciência e nem
pelas capacidades autônomas da mesma, e a abordagem de um saber que não se pode
comunicar de modo meramente discursivo é precisamente a tarefa do filósofo. O filósofo,
além de ter a tarefa da tematização de um saber pré-reflexivo, também se torna crítico de
arte quando este saber aparece. Portanto, pelo fato de que “aquele âmbito que as línguas
visam” não permitir nenhuma abordagem no sentido da objetivação positiva por
intermédio de conceitos e proposições, é que a escrita filosófica tem de se “deparar a cada
expressão de novo com a pergunta sobre a apresentação”. Já que o caminho de uma
explicação por proposições diretas e objetivas está de antemão vedado para a abordagem
desse assunto, então, a forma da apresentação indireta é necessária para tanto. Benjamin
quer mostrar indiretamente o teor intrínseco de uma forma de arte que não pode ser objeto
de abordagem direta. A apresentação desse modo é uma tentativa de abordar um saber que
258
de outra maneira permaneceria sem possibilidade de tematização, e a forma de fazê-lo é
reunir e dar atenção aos elementos das obras em que uma determinada idéia subjaze, ou se
cunha, ou transparece. A dificuldade está em que se pode falar sobre uma idéia, sem,
porém, captá-la de todo à maneira da predicação direta, como more geométrico. A filosofia
neste caso se vê obrigada a superar o modo dominante dos axiomas científicos que
secularmente neste domínio foram consagrados. A racionalidade triunfante desde séculos
isola as condições de validade fazendo-as provir de princípios que se reputam inatacáveis
pelo fato de ter seus esteios garantidos por um fundamento último e inatacável. Princípios
e frases aí tentam formar-se num agrupamento em que um se refere ao outro como se fosse
uma conjuração formando uma rede para a captação da verdade para a produção de um
saber proposicional como construção livre de contradições. É essa concepção de verdade
enquanto certeza proposicional que agora é relativizada por Benjamin, à medida que toma
por impossível a separação absoluta do dizer em relação à alguma realidade objetal
desvinculada da linguagem. Nesse caso, a verdade não é resultado exposto e separado por
meio de uma mediação instrumental da linguagem, mas no âmbito da própria linguagem
imediatamente inteligível. Para a inteligibilidade da verdade no sentido de Benjamin
que perceber a possibilidade do uso de conceitos não no sentido de produção positiva de
objetos separados, mas o que neles se expressa pelos mesmos conceitos. Aquilo que não
pode ser objeto do entendimento objetivador deve poder ser acessível ao pensamento finito
enquanto percepção de dizibilidade, isto é, na situação e no procedimento dêiticos. A
atenção que a filosofia a essa situação faz com que pareça esotérica frente a toda a
atividade esquecida na produção de proposições na intenção de objetivação absoluta. A
questão da apresentação que Benjamin aborda decorre da interpretação da queda
paradisíaca, após a qual não é mais possível captar a verdade em si e diretamente, porque o
homem a partir daí inevitavelmente toma linguagem como mera comunicação para
denotação do que considera objetos então completamente separados de si mesmo. Por isso,
a filosofia, enquanto tarefa de mostrar a verdade nas coisas que são, entra em choque com
o conceito de ciência tradicional e com qualquer outra filosofia que se compreenda na
obrigação de produzir sistemas fechados, nos quais se regride à compreensão de verdade
enquanto decorrência gica entre frases até chegar àquela que a tudo fundamenta e que
não necessita de ulterior fundamentação. Tal compreensão leva à redução de tudo à
racionalidade dos procedimentos, processo comum em todas as ciências. Grande parte da
atividade filosófica segue nessa trilha na tentativa de encontrar o princípio máximo do
259
saber além de toda a ciência, na ilusão de que algum dia a filosofia possa fundamentar a si
mesma de modo absoluto. É exatamente esse afã que Benjamin rejeita. Mesmo que a
filosofia vise o incondicionado, o conhecimento de que aqui se trata é possível a partir
da experiência. A experiência possibilita um conhecimento que é acessível na sua
apresentação, a qual, por sua vez, não se reduz à mediação de prova racional, mas supõe
ser imediatamente inteligível e de algum modo participável pela linguagem. A edificação
doutrinal da filosofia foi trabalho de séculos, num movimento que não pode ser reduzido
ao more geométrico que a razão como num passo de mágica pudesse reconstruir de modo
recorrente. A doutrina da filosofia não está simplesmente ao dispor do pensamento como
se fosse um objeto à sua frente, pois ele exatamente dela depende enquanto codificação
histórica. A codificação histórica da doutrina filosófica reivindica uma constante
apresentação em que a verdade não está implicada como dedução ou ordenamento por
princípios, pois de antemão que se dar conta do fato de que a atualidade do pensamento
é profundamente afetada precisamente pelo corpo doutrinal do que foi estabelecido nos
caminhos de um sincretismo filosófico. Mas tal sincretismo doutrinal que afeta o
pensamento da atualidade também não pode ser tecido de modo atilado como uma rede
para apanhar uma verdade que vem de algum lugar de fora. Uma rede deste tipo suporia
novamente a construção conexa de um sistema feito das partes desconexas elaboradas
desde o passado distante a fim de apanhar toda a verdade possível e subsumir todo o
particular que pudesse aparecer. Tal procedimento configuraria um “universalismo
instruído” (GS I-1, 207) que, a partir do que sabe e resolveu quanto à aceitação de
critérios para a coesão do sistema, se exercita na prática de fazer a mediação para novos
conhecimentos. Uma filosofia expositiva em apresentação não pode entender-se como
possuidora de um sistema arrecadado passo a passo da história do pensamento para a
edificação intencional definitiva da verdade absoluta, mas deve precisamente romper com
tal intenção.
O sistema invariavelmente aparece como um mundo objetivamente elaborado pelo
pensamento de um sujeito. Ao invés disso, a filosofia que se expõe na apresentação ativa-
se na forma do tratado em que a verdade emerge de modo não intencional. Ela não procura
mais captar sistematicamente o múltiplo particular numa generalidade do princípio e do
conceito e renuncia ao mesmo tempo à elaboração do conhecimento de modo fixamente
argumentativo. Quer-se mostrar a verdade em seu ser, mas não como algo pensado e a ser
provado através de proposições. Tem-se, portanto, uma diferenciação em relação ao
260
conceito de verdade em que a posição de Benjamin é a negação de que a mesma possa ser
captada pelo pensamento e explicitada conceitualmente por proposições.
Esse exercício impôs-se em todas a épocas, as quais se deram
contas da essencialidade indescritível da verdade, numa
propedêutica que, por isso, se pode designar com o termo
escolástisco de tratado, porque ele contém, mesmo que de forma
latente, a indicação dos elementos da teologia, sem os quais a
verdade é impensável. (GS I-1, 208).
Os elementos da teologia que na citação são mencionados referem-se a um
incondicionado impensável como conteúdo e inacessível ao conceito, ou seja, são o que
Benjamin promulga como sendo as idéias. O saber relativo às idéias, além de diferenciar-
se do saber por proposições objetivas, também não permite sistematização, de modo que
sistema e tratado não se conjugam. O sistema exige conexão argumentativa em que a
verdade então aparece em forma de proposições, enquanto que a idéia procura expor as
coisas de tal modo que uma verdade indizível diretamente em termos objetivos mesmo
assim se torne inteligível. Tal verdade é exposta, portanto à maneira do desvio, à maneira
indireta, e isso como conseqüência da queda paradisíaca, que se movimenta em direção da
pretensão de fundamentação competente e da expulsão em direção ao próprio vício na
procura de fundo, o qual a cada vez se apresenta como falso. O tratado, por isso, procura
metodicamente o desvio, mas, mesmo assim, na condição de ter de utilizar conceitos para o
ordenamento do seu próprio percurso a fim de que um teor [Gehalt] intrinsecamente
imanente possa aparecer. Benjamin compara esse mesmo método com um mosaico, e com
essa imagem procura distancia-se da figura do sistema. O tratado em seus desvios nunca
poderá apresentar a verdade num fôlego só, mas, apenas após muitas tentativas, a soma dos
caminhos faz surgir a imagem requerida.
Renúncia à intenção em seu movimento contínuo é a sua primeira
característica. Incansável, o pensamento começa sempre de novo
e minuciosamente volta à própria coisa. Esse tomar fôlego sem
cessar é a forma mais própria da contemplação. Pois, ao
considerar um mesmo objeto nas várias camadas de sua
significação, ao mesmo tempo ela recebe ao mesmo tempo um
impulso para o seu sempre constante recomeço, bem como uma
justificação para o seu ritmo intermitente. Assim como o mosaico
não perde a sua majestade na fragmentação caprichosa de suas
partículas, assim também a contemplação filosófica não teme
perder o seu ímpeto. Ambos são formados de elementos isolados e
disparatados; nada poderia manifestar mais poderosamente o
ímpeto transcendente seja da imagem de santos, seja da verdade.
(GS I-1,208).
261
Benjamin assim deixa claro como pensa a diferença entre sistema e tratado. O
caminho à verdade é vedado justamente ao logos de intenção definidora e, para não se
perder nesse caminho largo de queda livre, a reflexão interrompe a continuidade de
conceito à conceito para voltar à própria coisa. O tratado, deste modo, se elabora de
pedaços de pensamentos em justaposição a fim de tornar inteligível aquilo que
discursivamente em ligações diretamente objetivas é inconcebível. A renúncia à
argumentação diretamente explicativa e em seu lugar um procedimento de imediação
expositiva tem por conseqüência o ímpeto da apresentação. O tomar fôlego da reflexão tem
precisamente o sentido de interromper o fluxo da intenção de instrumentação e
comunicação de algo fora, e de assim voltar ao encontro das coisas em que sujeito e objeto
estão intrínseca e diretamente conjugados. Pelo tomar fôlego da reflexão a separação é
superada num passo em direção à unidade paradisíaca perdida. Na contemplação, por sua
vez, o saber proposicional passa ao segundo plano e essa inversão tem conseqüências. Na
primeira versão da introdução ao texto sobre o drama barroco Benjamin diz:
Pois não passagens entre os estratos de sentido. O que os
separa é o crescente desaparecimento do teor coisificado
[Sachgehalt], na qual uma consideração interpretativa deve ver o
vaso do teor de verdade [Wahrheitsgehalt]. Quanto mais vítreas
as paredes desse vaso (para continuar na imagem) se mostrarem,
tanto mais visível será o teor de verdade nele contido. (GS I-3,
927).
O sentido é o de que as coisas articuladas pela consciência supostamente produtora
das coisas se tornam transparentes para o teor de verdade nelas mesmo contido enquanto
autêntico ser. Após a queda, a unidade infinita não pode mais ser reconhecida de modo
perfeito e, por isso, ela aparece em sempre diferentes camadas de sentido que, por sua vez,
não são referidas ao teor de objeto enquanto proposições sobre ele para a sua maior
fixação. As camadas de sentido se explicam pelo fato de que o infinito no finito pode
manifestar-se de modo finito e elas, então, correspondem aos pedaços de pensamentos que
compõe o mosaico da verdade, mas, sem dúvida, de modo fragmentado no decorrer dos
tempos. A verdade não pode apresenta-se como um conjunto de proposições em forma de
sistema. Mas qual é a essência e a identificação da verdade? Para tanto Benjamin apresenta
as idéias: “Caso a apresentação quiser afirmar-se como autêntico método do tratado
filosófico, então ela deve ser exposição de idéias”.(GS I-1, 208). A dificuldade da
262
objetivação da verdade é a de que as idéias não são objetiváveis, pois pertencem a um
âmbito inteligível além de toda a predicação possível e intenção de manipulação racional.
Benjamin recorre a Platão e a sua conhecida teoria das idéias, mas não deixa de modificá-
la a seu modo. A verdade que agora corresponde às idéias torna-se a elocução do nome de
Deus, do todo além de tudo, que garante a identidade entre mundo real e ideal a ponto de
promover a unidade entre espírito e matéria e a unidade do múltiplo. O tratado desse modo
lembra e reitera os resultados de “A linguagem em geral e a linguagem dos homens”, mas
também a filosofia dos pré-socráticos e seus princípios do ser que permanecem em seu
estatuto sem se tornarem conteúdos da consciência. O princípio, ou Deus não é mais
reduzido aos resultados da capacidade da razão, mas se manifesta em todos os processos da
natureza em geral. A natureza deixa de ser cartesianamente a res extensa, a substância
extensa, morta e manipulável pela res cogitans, a substância pensante enquanto
fundamento no indivíduo consciente, mas inclui tanto um quanto o outro. Desse modo
estamos diante da recusa e rejeição do conceito de natureza da modernidade. Assim, o
homem com todas as suas capacidades não escolocado na circunscrição da natureza
com todo o seu pensamento histórico e a pletora de sentido que elaborou, mas também
diante de uma evidência, isto é, a participação numa última verdade que no exercício do
seu ser deve supor inevitavelmente. Por este viés chega-se à concepção de experiência de
Benjamin, quando procura eliminar a dicotomia de racionalidade e sensibilidade e quando
em decorrência pensa o pensar como pensamento sempre fazendo parte da natureza. Tal
identidade na idéia, por sua vez, não pode ser pensada como um agrupamento sistemático
de conhecimentos à base de fundamento absolutamente seguro em alguma parte do
infinito, pois mesmo este gesto está incluído no que se deve supor. Por esta razão também
a verdade não pode ser um objeto do conhecimento, pois este sempre supõe a divisão entre
subjetivo e objetivo, em que algum subjetivo particular põe-se a si mesmo como substância
primeira capaz de tudo ordenar a seu gosto.
É necessário reconhecer, portanto, duas formas de saber, isto é, conhecimento e
verdade. Conhecimento dá-se por conceitos enquanto ações de pensar que pretendem
reconhecer algo como algo em forma de proposições sobre a natureza e supõe um sujeito
dela separado.
Conhecimento é um ter. O seu objeto mesmo se determina pelo
fato de ele dever estar contido na consciência mesma - mesmo que
seja transcendental. Cabe a ele o caráter de posse. Para essa
263
possessão a apresentação é secundária. Ela não existe
enquanto algo em exposição. (GS I-1, 209).
O conhecimento é, portanto, considerado como um produto separado de quem o
produz e, desse modo, lhe é vedada a possibilidade de exposição. Em vez da apresentação
ele é positivado como objeto. Nesses termos, a verdade deve ser compreendida numa
imediação que está além da atividade do sujeito da consciência que intenta produção do
conhecimento como se fosse a verdade derradeira.
Método, para o conhecimento um caminho de conquistar o objeto
e seja por produção na consciência para a verdade é
apresentação dela mesma e, por isso, lhe é concedida ao modo de
forma. Não é apropriada a esta forma uma correlação na
consciência, como o método do conhecimento o faz, mas um ser. O
princípio de que o objeto do conhecimento o se coaduna com a
verdade sempre de novo será comprovado como uma das mais
profundas intenções da filosofia em sua origem, a doutrina
platônica das idéias. (GS I-1, 209).
Com Platão, Benjamin defende o ponto de vista de que não há passagem do
conhecimento para a verdade, pois a idéia não acesso à linguagem predicativa. Trata-se
de ontologia, pois a idéia é o fundamento do próprio ser das coisas também nelas
imediatamente imanente, e não a razão para conhecimento delas como que separadas. “O
ser do objeto vive do ser da idéia. Essa determinação da idéia enquanto ser define ao
mesmo tempo a verdade enquanto ser”. (GS I-3, 928). Sendo, portanto, o conhecimento
caracterizado como ligação proposicional de sujeito e predicado com a possibilidade de
apenas captar estados de coisas, ele nunca poderá captar o absoluto pelo qual exatamente
se expressa.
A verdade não como resultado de proposição, mas como ser é a condição para que
se faça experiência, pois é desse modo que no finito o infinito se encontra. É o que
acontece de forma inconsciente na expressão da arte, enquanto que na filosofia o mesmo se
de modo reflexivo na apresentação. Na filosofia, portanto, a verdade não é elocução de
conhecimento, mas apresentação, exposição, mostra do seu ser. Não sendo um apanhado
de proposições, ela forma na sua exposição uma imagem do ser apresentando a imediata
unidade do que pode ser objetivado, mas de modo nenhum na intenção de reduzir a
multiplicidade a alguma generalidade. O tratado neste caso é o modelo para se conseguir
visualizar a relação entre unidade e multiplicidade de acordo com o exemplo do mosaico.
264
O mosaico não forma uma soma de uma multiplicidade geral para chegar a uma verdade
unitária, mas ele se apresenta de tal modo que cada fragmento representa a verdade a seu
modo de maneira diversa, ou seja, de uma maneira em que os fragmentos se completam
exatamente pela diferença para forma o quadro geral.
Os próprios fenômenos são a razão da unidade, mesmo que a partir da sua
conjunção a figura da verdade surja. O contrário se dá no âmbito do conhecimento, pois
decorrente da estrutura reflexiva das proposições é possível perguntar pela razão dos
conhecimentos, sem, porém, poder por em dúvida o fundamento no qual se esteiam. O
curioso é que o princípio possibilitador da unidade do conhecimento não pode ter intenções
proposicionais, sob pena de ter que levar adiante a sua procura por fundamento. O
fundamento é posto e sancionado por aplicações sucessivas, mas um fundamento último
não se encontrará por ser a própria contradição do próprio pensamento proposicional, ou
seja, o fundamento último não consegue fundamentar-se a si mesmo apesar de dever fazê-
lo. (GS I-1, 209 s). Benjamin estriba-se em Platão que considera um mestre para lhe
garantir as convicções a respeito da verdade, isto é, que nem o sujeito pode ser princípio do
saber, nem que a respeito desse princípio possa saber-se algo jamais, mas que a verdade é
um incondicionado. Em conseqüência disso, a verdade enquanto idéia deve ser considerada
antecedente a qualquer princípio, de modo que ela não é capturada por nenhum grupo de
conceitos, mas apenas dada à contemplação curiosamente não no conhecido céu platônico
e, sim, precisamente nos fenômenos, no encontro entre o homem e as coisas. A verdade é
inalcançável para o conhecimento e para tanto a figura de Sócrates é paradigmática nos
diálogos de Platão. Sócrates pergunta de tal modo os seus interlocutores que a falta de
fundamentação dos pretensos saberes vai ao fundo. Desta forma a ironia socrática expõe a
incompatibilidade do conhecimento humano em relação à verdade divina. Essa verdade o
homem não comanda, mas a sofre em sua própria pele. No Symposion esse
comprometimento passional chama-se Eros. Sócrates diz que apenas sabe as coisas sobre o
Eros (177 D) como que desistindo dos saberes da razão por serem sempre insuficientes.
Sócrates apenas sabe que não sabe como que indicando a impossibilidade do homem saber
a verdade divina, mas ao mesmo tempo sofre a ânsia erótica de juntar-se aos deuses. O
Eros assim é considerado uma força cósmica pelo fato de juntar novamente o que antes
estava unido. O Eros aspira à unidade superior que inclui em si até o que é finito. Nessa
exemplificação se percebe que a concepção sobre o princípio das oposições de Heráclito é
incorporada por Platão para explicar a junção do separado, bem como também a relação
265
entre verdade e beleza. A unidade dos contrários de Heráclito acrescida da concepção da
ordem harmônica de Pitágoras a Platão a solução de que a união dos contrários aparece
enquanto beleza. Beleza é então a aparência sensível da idéia, da verdade. Em
conseqüência surge no homem a ânsia de captar esta unidade do divino e do humano, o que
vem a ser a filosofia. A relação que Platão faz entre verdade e beleza é imprescindível para
toda a tentativa filosófica ligada à arte, mas é também “insubstituível para a determinação
do conceito de verdade” (GS I-1, 210). A verdade é denominada bela e se aproximar dela é
o intuito de Eros. Mas mesmo neste caso chega-se a um impasse pelo viés proposicional,
pois a beleza como aparência sensível da verdade, permanece um mistério indemonstrável
como a própria idéia também sempre é. O filósofo é precisamente surpreendido e
enternecido pelo Eros sem poder decidir por si mesmo se segue a beleza ou não: é sempre
seduzido . Desse modo a ocupação com a filosofia e a arte não pode ser objeto de
fundamentação e legitimação, sob pena de se auto-condenar. Mas a procura compromete
na imediação da sua força levando o filósofo a liquidar a separação de teoria e prática a
ponto de se tornar religião sem igreja. Nunca, porém o Eros consegue alcançar a beleza
para, então, possuí-la. O caminho do homem é o caminho do meio, da mediação entre
extremos, isto é, entre a ignorância sem perguntas, porque não consegue nem fazê-las e do
saber, que não mais conhece perguntas, porque tem todas as respostas. O movimento da
história é o caminho do meio e que tem a verdade como rumo, mas não como resposta.
Esta é também a razão de porque a apresentação expositiva no tratado não tem limites. A
beleza da idéia é inalcançável e, mesmo assim, merece a perseguição do entendimento.
Ela, porém, foge preservando a sua inocência no altar da verdade.
Eros a segue em sua fuga, não como perseguidor, mas como
amante; de tal modo que a beleza foge de ambos para manter a
sua fulguração: dos inteligentes por terror e dos amantes por
medo. E apenas este pode testemunhar que a verdade não é
desnudamento, que aniquila o segredo, mas revelação, que lhe faz
justiça. (GS I-1, 211).
A fulguração da beleza indica a sua determinação de não poder ser objetivada,
fixada conceitualmente. Por isso, quando a inteligência do entendimento a persegue para
defini-la, ela foge de terror, pois ela é a verdade em forma de sensibilidade que jamais
poderá ser objetivada. A fulguração, ou o aparecer [Schein] é o modo mais próprio da
verdade e ela o faz desocultando-se em forma de beleza. A beleza torna o inteligível visível
266
por vislumbre para aquele que respeita a intocabilidade da verdade sem querer reduzi-la às
questões do entendimento. Platão descreve a verdade como o teor [Gehalt] do belo.
Mas ele não se manifesta no desvelamento e sim num processo
que pode ser caracterizado como um incêndio do invólucro, que
penetra na esfera das idéias, como uma queima da obra, durante
a qual sua forma atinge o ponto mais alto da sua intensidade
luminosa. (GS I-1, 211).
O que queima no processo de chegar ao âmbito da verdade é o teor coisal
[Sachgehalt] da obra, as realidades como produto da comunicação instrumental, tudo o que
se refere ao viés proposicional. De acordo com a imagem da citação depreende-se que a
verdade não se esconde atrás das frases, mas se encontra imediatamente presente. A chama
do incêndio é símbolo da verdade, ou idéia que está ligada ao mundo real, sem poder
existir apartado dele. Este é o paradoxo da arte em que a verdade se conjuga com a
sensibilidade em objetos que podem ser resultado dos produtos do entendimento. A
estrutura ôntica do cosmos é entrevista e pressentida no paradoxo da arte. Também a
filosofia assim se parece.
Tudo o que os filósofos disseram no sentido da objetivação por proposições não
pode ser confundido com o teor de verdade que seus textos contêm. Em Hegel certamente
a idéia da dialética é intocável. Tanto as obras de arte, quanto os sistemas filosóficos
podem ser considerados como imagens da idéia, da verdade.
Se a tarefa do filósofo é exercitar-se no projeto descritivo do mundo
das idéias, de tal modo que o empírico por si mesmo nele penetra e
nele se dissolve, então ele assume a posição mediadora entre o
pesquisador e o artista.(GS I-1, 212).
A fulguração da beleza garante a presença da verdade, a qual por sua vez não é
acessível à linguagem proposicional objetivadora. A tarefa da filosofia, então, é
precisamente a de possibilitar a verdade por exposição. Mas a sua tarefa não é nem a do
artista puro e nem cientista declarado. Não se pode imaginar que no culto à beleza a idéia
irá aparecer por si mesma, nem pode querer usar a linguagem proposicional para algo que
lhe antecede. O filósofo desse modo está entre a intuição artística e o conceito na
intenção científica, de acordo, aliás, com as palavras de Goethe escolhidas como dístico no
início do texto “Origem do drama barroco”:
267
que nem no saber e nem na reflexão um todo pode ser
relacionado, porque àquele falta a dimensão interna e a este a
dimensão externa, temos que pensar a ciência necessariamente
como arte se dela esperamos alguma forma de totalidade. E não
temos de procurar esta forma no geral, no excessivo, mas, como a
arte sempre se apresenta em cada obra totalmente, assim também
a ciência deveria manifestar-se toda vez em cada objeto. (GS I-1,
217).
Platão resolveu a questão da tematização indireta para apanhar o lado expressivo da
linguagem, ou seja, da relação entre intuição e conceito, por meio do diálogo, enquanto
Benjamin se faz valer do tratado. No tratado, portanto, a idéia não aparece como na
imediação da verdade por meio da fulguração da beleza num misto de intuição e
sensibilidade, mas numa estrutura conceitual, permanecendo numa situação em relação a
arte que é de parcial semelhança e diferença. A forma do tratado é semelhante à arte,
porque como ela não pode enunciar a verdade ao modo de proposições, e é separada,
porque de qualquer modo necessita da utilização de conceitos para exposição da idéia. Por
um lado, a filosofia não pode ser reduzida a um apanhado de pensamentos, por outro,
apenas com os pensamentos chega a determinada unidade.
O pesquisador dispõe do mundo para a dispersão no âmbito da
idéia à medida que no conceito ele a divide por dentro. Ele se liga
ao filósofo pelo interesse na extinção da mera empiria, ao artista,
porém, liga-se pela tarefa da exposição. (GS I-1, 212).
A verdade na filosofia de qualquer modo dever ser estruturada conceitualmente,
mas de maneira que ela transcende a apresentação estruturada, pois o que é a idéia não
pode ser formulado positivamente. Mas, mesmo assim, a idéia é pela filosofia veiculada de
outro modo do que na arte, pois nela a compreensão se na atividade da consciência
como se pudesse penetrar a existência sensível da verdade, sem, porém, agora se confundir
colocando as suas determinações acima dela. Apenas desta maneira e numa determinada
disposição os conceitos podem constituir-se nas pedrinhas de mosaico para em conjunto
fazer aparecer a imagem da verdade. Tal unidade, porém, não pode configurar um sistema
ao modo de generalidade em que os conceitos entre si formam uma conexão dedutiva e,
por outro lado, não pode apresentar-se simplesmente como um apanhado descontínuo e
desconexo de conhecimentos particulares. “A coesão sistemática mais não tem em comum
com a verdade senão aquela outra exposição que procura certificar-se por conexões de
conhecimentos” (GS I-1, 213).
268
Os conceitos no tratado têm o caráter funcional da mediação para, no processo do
conhecimento, livrar os fenômenos e referi-los à verdade, sem, portanto enredar-se em
conexões dedutivas de intenções sistemáticas. O sistema como que enreda os fenômenos
numa conexão relacional em que todos os elementos necessitam determinar-se
mutuamente. O tratado, pelo contrário, na sua visada ao incondicionado, procura a
superação precisamente desse modo de relação que se em forma de conexão
argumentativa.
De que modo diferente do que uma conexão de se pensar a unidade da verdade?
A solução se quando se recorda da ligação existente entre o infinito, que é a idéia, e o
finito, que são os fenômenos. Por si mesmo uma unidade já é própria ao múltiplo não
apenas enquanto soma, de tal modo que precisamente na sua limitação deve transparecer a
mesma unidade que já está dada. Pois, o finito apenas se dá, ou é, porque nas suas
múltiplas aparições enquanto diversidade de entes aparece um ser que permanece
idêntico a si. Mas que se dizer imediatamente que tal ser idêntico a si seja inacessível à
compreensibilidade do entendimento, pois também ele é fenômeno que se inclui, de
modo que se trata de se compreender o mero aparecimento do ser que se vislumbra numa
imediação nunca totalmente definível.
O conceito tem ao mesmo tempo uma função analítica e uma função sintética, pois
ele tem a faculdade de dividir o que está unido e novamente unir o que está disperso a fim
de apresentar os elementos de qualquer obra. Na primeira versão da introdução ao texto
sobre o drama barroco Benjamin explica:
Essa autêntica unidade do verdadeiro não é mais dissolvível em
elementos, mas apenas desmontável em partes. Essas partes,
porém, as idéias, são daquela natureza peculiar que pode ser
indicada pelo exemplo de uma lenda. Ela trata das pedras que
cobrem o Sinai. Como Salomon Maimon relata, estas estariam
cunhadas com o desenho de uma folha (árvore), cuja estranha
natureza seria logo se constituírem em cada bloco de pedra que
por sua vez tivesse sido quebrado de um grande bloco e assim até
ao infinito. As idéias são tais partes da verdade, nas quais
unicamente a regra das mesmas está cunhada, intata, mesmo que
em tamanho minúsculo. Pensar a sua fusão não seria menos
absurdo do que a fusão final das pedras, que, aliás, antes de tudo
são notáveis pelo fato de que elas cobrem o Sinai ao modo de uma
única estrada. A divisão, porém, continua e é possível ao infinito.
Os conceitos, aquelas elementos intermediários, pelo lado das
idéias constituem as suas partes, pelo lado dos fenômenos os seus
elementos. Eles salvam os fenômenos justamente pelo fato de que
269
na divisão em elementos lhe concedem participação no ser das
idéias enquanto partes delas. (GS I-3, 934).
A exemplificação tem o intuito de fazer ver que o infinito cunhou no sensível as
suas impressões de modo a se tornar visível. Nesse movimento a cada conceito é atribuída
uma multiplicidade de fenômenos e a cada idéia uma multiplicidade de conceitos. Mas a
relação entre elementos e conceitos é diferente da relação entre conceitos e idéias, pois os
conceitos não entram em nenhuma relação na apresentação da verdade pelo fato de a sua
unidade ser diferente da unidade da idéia. A imagem das pedras no Sinai corrobora a
questão. Cada pedra quebrada traz em si a estrutura e a informação do bloco maior, mesmo
que apresente forma muito diferente. Assim também cada conceito contém em si a idéia e
cada idéia, por sua vez, a unidade original de que proveio, de modo que o uno se manifesta
no fenômeno menor e mais insignificante. Por meio desta concepção Benjamin exemplifica
o caráter epistemológico da exposição, ou apresentação. Quando diz que os fenômenos não
estão contidos nas idéias, está a indicar que enquanto objetos assim elaborados pela
consciência não podem estar, pois, de acordo com o pensamento tradicional os conceitos
recolhem as características do que é dado, as quais, reunidas, constituem objeto. Deste
modo, pelas indicações tradicionais, o conceito se correlaciona com o objeto ditando-lhe os
limites quanto a extensão e conteúdo. Benjamin propõe uma relação diferente: as idéias
não se referem às qualidades dos fenômenos e também não constituem as suas leis
abstratas. Nesta questão ele segue igualmente a compreensão do ser de Platão no sentido
de que a origem do ser não pode ser ela mesma um ente e que, por isso não pode mais ser
objeto de predicação. A presença do infinito no finito se num regime de representação
da idéia no fenômeno. Benjamin a compara com a relação que entre as constelações e
as estrelas. A configuração não é dada, mas surge pelo trabalho dos conceitos que ordenam
as coisas nesta forma de constelação, a qual, por sua vez, representa a forma inteligível de
ser dos fenômenos que a constituem, ou seja, é mostrada por uma imagem de forma não
discursiva. Na constelação as coisas não estão sujeitas ao poder dos conceitos, pois o seu
ser não é elaborado por um juízo de conhecimento, mas, com a ajuda dos mesmos
conceitos as coisas são libertadas para a apresentação de si como de fato são. Benjamin
fala de “interpretação objetiva” (GS I-1, 217) como sendo um procedimento em que as
coisas falam por si mesmas manifestando o seu teor ao modo de uma auto-exposição da
verdade. A concepção deve ser entendida no sentido de que a idéia se manifesta
imediatamente de forma fisionômica no mundo das coisas, em alguns dos elementos dos
270
objetos que mediante os conceitos são então coordenados. Mesmo assim, a reunião e o
ordenamento dos elementos dos objetos não obedece à costumeira forma abstrativa de
enfileirar o particular de acordo com características, ou notas comuns, mas de acordo com
uma conexão estrutural. Deste modo, o pertencimento mútuo não se dá de acordo com uma
regra geral, mas visa uma estrutura comum e fundamental. Como no exemplo citado, os
elementos mais diferenciados das coisas cumprem o seu papel na estrutura a ponto de que
nessa ordem de constelação o particular é conservado. Desse modo a unidade que a idéia
expressa pode ser realizada pelo que é único e até pelo que é oposto, diferentemente da
ordem estabelecida pelo conceito na ordem do entendimento, que sempre pauta pelo que é
comum para abarcá-lo sob seus cuidados.
O mundo é a elocução da palavra de Deus, a unidade além que até as idéias
expressam e, nele mesmo, o oposto, o singular e o reverso não existem, mas, de acordo
com a evidência da idéia, também comprovam a validade da interpretação filosófica em
sua efetividade. Tais elementos perfazem a figuração em seus extremos e são de especial
valor para a interpretação filosófica.
Como formação do conjunto, no qual o único e extremo se
encontra o seu igual a idéia está circunscrita. Por isso, es
errado compreender as indicações mais gerais da linguagem
como conceitos, em vez de entendê-las como idéias. O geral é a
idéia. Em vista disso, o empírico é tanto mais penetrado, quanto
mais precisamente pode ser compreendido como extremo. (GS I-1,
215).
Em tudo isso há uma inversão em que a verdade se torna real e efetiva, mas
também que a realidade objetivada não é imediatamente a verdade. Enquanto elocução da
palavra a idéia é empiria no momento da elocução e é idêntica ao mundo físico, sem antes
nunca ter sido, pois não o infinito enquanto infinito, mas somente no finito. Esse estado
de coisas, porém, ainda não quer e nem pode indicar o Uno, pois se assim fosse, teria
sido vítima do ordenamento conceitual proposicional ativado pela consciência, que
simplesmente o teria degradado a uma substância. As idéias são a origem do ente: num
contínuo mutante elas acontecem como estruturas. Pelo fato de não haver um mundo das
idéias separado, a própria idéia não tem oportunidade de se mostrar em algo outro que não
fosse o mundo dos fenômenos. Portanto, a idéia é origem de algo com o qual ela é idêntica,
mas ao mesmo tempo não é ela mesma. Elas se apresentam na configuração dos elementos.
271
As idéias não são dadas no mundo dos fenômenos. Surge,
portanto, a questão sobre o se tipo da natureza pouco
abordada, e se é imprescindível a entrega de toda a
responsabilidade sobre a estrutura do mundo das idéias à famosa
intuição intelectual. Se em qualquer parte se torna
angustiantemente nítida a fraqueza de que todo o esoterismo da
filosofia participa, então é na “visão”, prescrita aos adeptos de
todas as doutrinas do paganismo neoplatônico enquanto maneira
de conduta. O ser das idéias de modo algum pode ser pensado
como objeto de uma intuição. Pois mesmo a sua mais paradoxal
circunscrição como intellectus archetipus não consegue definir a
peculiar doação prévia [Gegebensein] da verdade que enquanto
tal não consente qualquer tipo de intenção, muito menos se ela
mesma aparecesse como intenção. (GS I-1, 215).
O ser das idéias, portanto, não pode ser objeto da consciência. E quando Kant e
Fichte concebem a intuição como produto da consciência, Benjamin percebe nisso a
intencionalidade subjacente da objetivação que ele mesmo se dispõe a criticar, pois
novamente a consciência seria posta como o fundamento último, sem se auto-incluir nas
mesmas afirmações e reduzindo tudo de novo a simples objeto depurado conceitualmente.
Por isso, ele acentua a verdade como doação prévia [Gegebensein] a tudo que se possa
dizer e definir. Mesmo com a denominação da intuição intelectual como intellectus
archetipus não se deixa enganar quanto às intenções de poder da consciência. A intuição
como forma de conhecimento intuitivo malogra quanto à imediação do dado, inclusive da
consciência, e, por conseqüência, quanto à imediação da verdade. A intuição em geral
enquanto ocasião dos fenômenos originais não é ainda o verdadeiro, mas é o local de onde
o nome emerge. Como da percepção intuitiva surge o nome, que abriga o teor de verdade
da imagem surgida, assim também acontece na elaboração do tratado em que a idéia se
torna compreensível no nome. Em sua imediação o nome é origem dos fenômenos
empíricos perfazendo o seu ser e, deste modo, o tratado em sua confecção tem o sentido de
ser a exposição do nome.
Como algo referido às idéias o ser da verdade é diferente do modo
de ser dos fenômenos. Portanto, a estrutura da verdade exige um
ser que em sua falta de intenção se iguala à simplicidade das
coisas, mas que em constância lhe seria superior. A verdade se
estabelece não como um opinar [meinen] que pela empiria
encontrasse a sua determinação, mas como a força que cunha a
essência dessa empiria. O ser afastado de toda a fenomenalidade,
de quem é própria essa força, é o [ser] do nome. (GS I-1, 216).
272
A dificuldade da questão se dá pelo fato de que não há como dizer novamente o que
significa o nome já que o nome é o que sempre significa. Caso se quisesse indicar o que
o nome significa, dever-se-ia apontar simplesmente para a exposição e permanecer calado,
pois é a apresentação expositiva que primeiramente acesso a um saber que não depende
da elaboração intencional nem do entendimento, nem da intuição. Precisamente esse modo
de ser sem intenção dos nomes é que carrega junto de si a possibilidade da doação prévia
das idéias.
Elas [idéias], porém, não são dadas numa linguagem original,
mas numa percepção original, na qual as palavras possuem a sua
nobreza nomeante sem perdê-la para a significação descobridora.
(GS I-1, 216).
Essa curiosa expressão demonstra a preocupação de Benjamin em justificar em sua
concepção de linguagem a inclusão das idéias platônicas enquanto sentido como que
nivelado à significação da própria linguagem. A significação descobridora, ou até
nomeante, são as palavras-idéias que por serem idéias não perdem o seu garbo e estatuto
de doação prévia. Desta forma as idéias são palavras e conceitos de palavras endeusados,
portanto palavras de Deus que em sua elocução tornam o mundo objetivo possível (GS I-1,
216). Esta justificativa deixa evidente que Benjamin concebe toda a questão dita
epistemológica da Origem do drama barroco alemão como a continuidade fiel ao que
elaborou no texto de A linguagem em geral e a linguagem dos homens, apesar da junção
das idéias platônicas interpretadas ao seu modo. A nobreza nomeante e a significação
descobridora, além disso, remetem para a recordação da interpretação do Gênesis feita
no texto sobre a linguagem, que acentua de modo inequívoco a dimensão anterior à
separação de sujeito e objeto, na qual o homem se encontra na natureza numa imediação
inacessível ao seu entendimento e na qual emerge a faculdade de nomear, então, com a
participação ativa das próprias coisas. Esta dimensão, por sua vez, é inacessível à
predicação à base do conhecimento das coisas, porque é suposto de qualquer predicação.
Todas as línguas históricas têm, portanto, como que duas dimensões: a dimensão
proposicional que se na intenção do conhecimento dos objetos pela atividade da
consciência, e a dimensão do nome agora indiretamente perceptível pela apresentação
expositiva no tratado quando liquida ritmicamente a intenção de separação de sujeito e
objeto. As línguas em suas palavras, então, são ao mesmo tempo logos enquanto
predicação ordenadora por parte da consciência e nome enquanto saber não predicativo
273
expressivo e, por assim dizer, teológico pelo fato de restar infinitamente um suposto que a
tudo possibilita. A contradição da linguagem desse modo possibilita o conhecimento das
coisas como se fossem absolutamente separadas de quem usa a linguagem de modo
instrumental e, ao mesmo tempo, a percepção do comprometimento absoluto do falante
com o que diz que lhe é impossível dizer-se, dizer as coisas e dizer a própria
consciência, sem a linguagem pela qual precisamente se identifica como ser humano. A
filosofia enquanto apresentação expositiva tem como tarefa tender para a elucidação do
nome nas coisas, apesar da contradição da linguagem. A tarefa da filosofia enquanto
exposição está, portanto, diretamente referida à recordação contemplativa do que foi
elaborado e do que aí fala. A capacidade do silêncio na recordação contemplativa é a tarefa
da filosofia na escuta do dito, no ouvir do nome.
“Porque a filosofia não se pode dar o direito de falar ao modo da revelação, isso
pode unicamente acontecer pelo recordar-se que remete antes de tudo a uma percepção
original”. (GS I-1,217). O saber original ao modo da linguagem dos nomes pré-reflexiva
não é acessível à filosofia e, por isso, ela se expressa através da apresentação expositiva no
tratado prestando atenção aos conceitos e às palavras em geral quanto ao que sugerem em
termos de recordação. O saber original se a perceber indiretamente por desvios quando
o homem compreende que não é a sua memória em atividade transitiva a responsável pela
recordação, mas o acalento dela, que as próprias palavras lhe proporcionam. A recordação
encontra-se velada nas próprias palavras à espera da verdade.
Para expressar esse estado de coisas Benjamin aventura-se na afirmação de que o
pai da filosofia não é Platão, mas sim Adão quando ainda não conhecia as limitações da
consciência. A razão disso é que se pode compreender que mesmo Platão sempre esteve
exposto à contradição da linguagem e que a figura de Adão é a indicação da figura humana
a respeito da qual se supõe que num primeiro momento tenha estado livre dela da fala
paradoxal. A recordação como sugestão que as palavras indicam trazem simultaneamente a
notícia da novidade além das repetições da linguagem proposicional e a restituição do que
foi perdido nas brumas do esquecimento de algo que está imediatamente presente.
Nesta renovação reconstitui-se novamente a percepção original
das palavras. E assim a filosofia no transcurso da sua história,
que tantas vezes foi objeto de deboche, é uma luta pela exposição
de algumas poucas e sempre as mesmas palavras – das idéias.[...]
Estas estão completamente isoladas para si, o que meras palavras
nunca conseguem. E assim as idéias reconhecem a lei que diz:
274
todas as essências existem em completa autonomia e intocáveis
não somente pelos fenômenos, uma vez que também o são entre si.
Como a harmonia das esferas nas revoluções dos astros que entre
si não se tocam, desse modo a existência do mundus intelligibilis
consiste na distância intransponível entre essências puras. Cada
idéia é um sol e se relaciona com seu igual como exatamente sóis
se relacionam entre si. A relação sonante de tais essências é a
verdade. (GS I-1, 217).
A imagem das esferas celestes que não se tocam entre si em suas revoluções tem o
sentido de apresentar as idéias enquanto responsáveis pela configuração do real que se
de acordo com uma ou com outra na sucessão da história. As essências enquanto idéias
estão isoladas umas das outras como períodos históricos estão, caracterizando-se de
determinado modo diferente um em relação ao outro e configurando em sua totalidade o
céu da história. A visibilidade de uma constelação se plenamente a partir de outra,
constituindo-se então em dificuldade maior a percepção precisamente daquela em que o
homem se encontra relacionado com as coisas que são. Migrar de uma constelação à outra
somente por simples vontade racional é impossível, pois a mesma é parte constituinte da
atual. Resta a relação sonante entre as essências que tem o significado da vibração da
linguagem formando em sua contradição como que a moldura de toda a imagem. Sobre a
verdade ser a relação sonante entre os sóis que compreender que somente pelo
afastamento recordativo das objetivações de realidade em esquecimento recorrente é
possível visualizar a imagem de si no local em que sempre se esteve. O som das palavras
noticia os ecos distantes da imediação em que tudo se configura. A proximidade aparece
como o mais distante e o distante como o mais próximo e, por isso, a verdade é inacessível
ao falante em sua imediação discursiva e em sua solidão numa estrela só: ele deixa de
ouvir a relação sonante entre todas as épocas, pois se trata de atentamente ouvir.
No sentido exposto o Trauerspiel, ou seja, o jogo ou a representação do luto,
enquanto tratado ou ensaio filosófico-artístico é uma idéia que vem à tona apenas na
escuta, na atenção recordativa aos diversos elementos e na sua exposição detalhada. Por
isso, Benjamin primeiramente apresenta opiniões sobre o Barroco que intentavam a
classificação dos materiais precisamente da forma que Benjamin acha impossível como,
por exemplo, a tematização de Burdach em termos de nominalismo, ou ao modo de
verismo, sincretismo e indução, ou à maneira de gêneros de arte em Croce. Contrapondo-se
evidentemente a esta forma de abordagem, Benjamin aventa a possibilidade de
275
circunscrever todo o material à disposição por meio da idéia em vez de insistir em
classificações por conceitos.
“O que, porém, tais nomes enquanto conceitos não conseguem, eles realizam
enquanto idéias, nas quais não é o homogêneo que chega à garantia, mas o extremo à
síntese”. (GS I-1,221). Benjamin pretende reformulação, ou até a substituição dos
conceitos históricos gerais por idéias. Onde os conceitos costumeiros apenas viam
multiplicidade sem nexo, a idéia supõe unidade das diferenças e até a necessidade dos
extremos, pois o primeiro critério não é a classificação por conceitos no sentido
proposicional.
É de outro modo que a idéia se relaciona com o âmbito das
classificações. Ela não determina nenhuma classe e não contém
em si aquela generalidade na qual consiste a respectiva classe
conceitual no sistema de classificações. (GS I-1,218).
A unidade do que a idéia possibilita é uma força inteligível que sustenta a variedade
do sensível para que ele possa ser e, por isso, ela inclui em si o singular e o estranho. A
diferença que se estabelece entre a classificação conceitual e a idéia em última análise se
refere a uma concepção diversa do ser, exatamente pelo fato de que a última acentua a
necessidade do extremo e do estranho que força a consciência a perceber a sua própria
inclusão quando no processo de classificação como que os põe de lado na tentativa de
inaugurar um âmbito do não-ser descartável. A idéia não se dá imediatamente no fenômeno
para que a consciência possa implementar o manuseio científico da classificação para
dividir e descartar uma matéria à disposição. A imediação distante da idéia que conjuga
toda a realidade não pode deixar de incluir a própria atividade redutora da classificação e,
por isso, a idéia mesma não pode simplesmente ser definida como forma que a matéria
mesma a si. Esta também é a razão de porque se pode dizer que a unidade das coisas é
metafísica, pois toda a realidade inclui o perceptor e já sempre é conjugada por uma idéia a
ser descoberta pelo processo possível da recordação.
O ser reduzido às determinações categoriais e aos sistemas de classes merece a
desconfiança e a discordância de Benjamin, e também por isso se expressa no sentido de
que as classificações histórico-literárias não conseguem se legitimar. Os conceitos de
gênero determinam as obras literárias conforme características exteriores, enquanto que, no
caso inverso, é o teor das mesmas é que se torna responsável pela idéia que as conjuga.
276
Como já visto, nem a idéia nem o teor de verdade podem ser objeto de proposições
articuladas pela consciência, o que leva exatamente à decisão de diferenciar Trauerspiel
[drama, representação de luto] e tragédia, que de acordo com o sistema de classificação
costumeiro podem ser considerados do mesmo gênero, mas não de acordo com o seu teor
[Gehalt]. Esse teor é capaz de reunir as obras num determinado gênero, porque ele se
expressa em seus elementos formais por meio dos conceitos. O que deste modo ele reúne
dando unidade às épocas e aos gêneros literários são as idéias que pela recordação da
experiência afloram, podendo neste movimento haver correspondência entre idéias
historiográficas e histórico-literárias. O método, portanto, não pode seguir a ingenuidade
do verismo. A metódica “pelo contrário, deve partir de intuições de ordem superior do que
aquela que o ponto de vista de um verismo científico apresenta”. Deve antes de tudo ser
decidido
se a idéia é uma abreviatura indesejada ou se, pelo contrário, em
sua expressão linguística funda o verdadeiro teor científico. Uma
ciência que apela para o protesto contra a linguagem das suas
investigações é um absurdo Ao lado dos sinais da matemática, as
palavras são o único meio de exposição da ciência, e elas mesmas
não são sinais. (GS I-1,222).
A concepção durante todo o tempo defendida por Benjamin é a de que antes dos
dados científicos ordenados via indução e dedução a idéia que tudo abarca e que não se
averiguou, permanecendo completamente deslocada a questão de “como na realidade foi
[?]” (GS I-1, 222). Essa pergunta conduz ao imponderável, dado à multiplicidade dos fatos
que não mais consente a formação de alguma unidade. Tal multiplicidade tenta-se, então,
arrebanhar numa visão sincretista pela qual paradoxalmente o que é definido aparece de
forma isolada. Tanto Croce como Burdach permanecem na concepção de ser de Aristóteles
quando determinam o universal e o particular como pertencentes a uma esfera por meio de
classificações por classes conceituais. Precisamente esta forma de classificação Benjamin
substitui pela idéia.
Crítica como também critérios de uma terminologia, a amostra da
doutrina das idéias filosóficas sobre a arte, não se forma sob o
critério externo da comparação, mas de modo imanente num
desenvolvimento da linguagem das formas da obra, que faz brotar
o seu teor às custas do seu efeito. (GS I-1,224).
277
A linguagem das formas é elaborada pelos elementos das obras pelos quais as
idéias se exprimem e que são possíveis de serem ordenadas conforme o exemplo do
mosaico. O gênero, então, se transforma em idéia, que não mais permite a sua articulação
proposicional positiva, do que decorre a inclusão e junção de elementos diferentes entre si,
formando a unidade como no mosaico. É possível afirmar-se que, diante da idéia, as
próprias obras se tornam secundárias, pois o teor que perfaz a idéia pode estar representado
nelas apenas de modo fragmentário e, mesmo assim, formar o mosaico. Caso, porém, uma
obra tiver um teor bem diferente de todas as outras, então ela pertence a outro gênero.
“Uma obra significativa – ou ela funda um gênero ou o suprassume e reúne ambos no mais
perfeito”. (GS I-1, 225). Uma obra, por si significativa e diferente de todas as outras,
estaria a expressar outra idéia.
De acordo com a sua concepção declarada, Benjamin inicia a sua investigação do
drama barroco determinando a História como o seu teor. Em decorrência disso, ordena os
elementos formais num mosaico que evidencia ou deixa transparecer a idéia da História.
Como se sabe, o teor é que é o fator de identidade e não as notas externas. Em geral se
supunha que o conceito devesse estar de acordo com as obras, ou ainda, que ele devesse
pautar-se por elas. Agora, porém, é o contrário, pois as obras seguem a idéia. O conceito
não consegue gerar as obras, no que precisamente difere da idéia, pois esta vem a ser a
origem da idéia. Como se dá isso?
A verdade é incondicionada e na obra se manifesta em imediação não apreensível
por proposições objetivantes, por isso a obra mesma tem o seu fundamento em si mesma, e
não apenas num sujeito que se julga meramente produtor. Surge aqui novamente a idéia de
participação, a qual permite pensar a idéia como ser que funda a coisa, assim que o ser do
objeto vive do ser da idéia, pois dela participa. A idéia enquanto razão de ser é
simultaneamente a origem das obras. O conceito de origem no texto do drama barroco
parece assemelhar-se ao que no texto de A linguagem em geral e a linguagem dos homens
foi compreendido como tradução, ou seja, que o conhecimento da verdade equivale à
tradução da palavra de Deus em processo de enunciação, ou idéia, para a palavra humana,
ou nome, que no barroco vem a ser o luto. Mas todo o texto sobre o barroco parte da
premissa de que o nome se dá pela experiência, a qual se encontra indiretamente nas obras
e, assim, tem acesso à linguagem de acordo com as próprias possibilidades da sua
contradição sempre ocorrentes. Portanto, o ser das coisas encontra-se na obra e, como
278
foi dito, é a tarefa da filosofia crítica proporcionar indiretamente na experiência a
recordação compreensível pela apresentação expositiva.
A filosofia em sua tarefa crítica, portanto, não pode esquecer o seu próprio
comprometimento na atividade de escuta e recordação, bem como não pode esquecer-se do
fato de que a obra também não é um produto que se pudesse desvincular da atividade da
sua realização. Isto significa que a origem que se manifesta na obra não é externa, pelo fato
de ser idéia que se manifesta. Desta maneira, o autor não pode ser considerado como
alguém que simplesmente está alienado enquanto externo e distante da sua obra, pois
também ele é manifestação da idéia a ponto de o seu trabalho de escrita das palavras
encontrar-se bem além da sua consciência: a atividade de escrita da obra é, em última
análise, a realização da idéia. A experiência histórica em que a idéia está inscrita prefigura
a obra, que no autor depois irá desenvolver-se. Mas a idéia presente na experiência
histórica ainda é imperfeita pelo fato de não se evidenciar ao ser humano. Tornar evidente
a idéia na recordação por meio da apresentação expositiva é a atividade filosófica.
Essa forma de vir a ser, deste modo sendo ser, não se possibilita pelo viés do
nexo causal que significaria a recaída na reduzida fundamentação de tudo pela consciência.
O nexo causal tem o seu valor na explicação de relações e efeitos múltiplos de objetos na
ciência, enquanto que o significado do conceito de origem indica o surgimento das obras
de modo não-causal.
Origem, apesar de ser certamente categoria histórica, mesmo
assim, não tem nada em comum com surgimento. Com origem não
se quer dizer nenhum devir do surgido, mas antes o que surge do
devir e passar.(GS I-1, 226).
Essa estranha expressão de Benjamin contém uma das questões centrais da sua
concepção de linguagem e história. É evidente que o homem conta com a origem como
categoria histórica para a narrativa de fatos e episódios, relacionando-os em termos de
causa e efeito. O mundo histórico da compreensibilidade normal não existiria sem esse
modo de pensar. A concatenação dos acontecimentos na história desenvolve-se pela
explicação em termos de causa e efeito. Mas estas categorias dão exatamente a dimensão
da queda no mundo objetivo e separado daquele que assim explica, comprometendo-se,
quanto à contradição da linguagem, exatamente com o esquecimento do próprio
envolvimento imediato com a explicação. Acontece simplesmente que a imediação distante
279
e, ao mesmo tempo, próxima demais dificulta a recordação do próprio comprometimento
da explicação na tentativa de evocar entidades além da linguagem para cumprirem com o
papel de fundamento. Por isso, o significado do termo origem indica que a consciência, no
uso aplicativo dessas categorias, desde muito está numa situação de dependência que
jamais conseguirá explicitar por proposições, pois a explicitação supõe algo que não pode
ser explicitado, apesar de toda a proximidade. Ursprung, origem, ou, salto original está
precisamente naquilo de que é origem, tanto que o surgido não é diferente da origem. Na
expressão em linguagem teológica, a origem é a elocução da palavra de Deus, ou,
diferentemente, a idéia é o mundo finito. Em sentido de autocriação o mundo finito tem a
sua origem na idéia e é por este motivo que a origem nada tem a ver com surgimento, pois
o que surgiu necessariamente está separado do que surgiu de acordo com as categorias de
causa e efeito. A origem é infinita e não pode ser a causa do devir e do passar, mas a
própria percepção do devir e do passar tem a origem como suposto em si mesmo. Qualquer
explicação pelas categorias de causa e efeito neste caso sempre se daria obedecendo ao
estatuto do a posteriori, que em sua ocorrência deve supor um a priori enquanto total
infinito que necessita supor de modo incontornável.
A origem se localiza no fluxo do devir como um redemoinho e
arrasta para o seu ritmo o material do surgimento. O original
nunca se dá a conhecer na condição manifesta e bruta do fático, e
o seu ritmo unicamente se evidencia a uma visão dupla. Ela quer
ser reconhecida como restauração, reconstituição por um lado e,
por outro, precisamente por isso, como incompleto e inacabado.
Em cada fenômeno de origem se determina a forma com a qual
sempre de novo uma idéia se confronta com o mundo histórico,
até que alcance a plenitude na totalidade da sua história. A
origem, portanto, não se destaca dos fatos, mas se refere à sua pré
e pós-história. As diretrizes da contemplação filosófica estão
esboçadas na dialética imanente à origem. Nela se comprova
como em todo o essencial o que é único e o recorrente se
condicionam mutuamente. (GS I-1, 226).
No exemplo, a idéia é simbolizada pelo fluxo que é infinito em relação ao finito que
em determinada época contém. O fático que surge na idéia, mostrando a sua configuração
na época e na obra, contesta o seu infinito, sem, porém, poder negar a sua atividade que
jamais se deixa limitar. O infinito e o finito em realização constitui o decorrer da história,
da qual não se pode prognosticar o seu fim, pois o infinito apresenta-se sem limitação.
Cada fenômeno é acompanhado pela presença de um infinito enquanto idéia e que é
atividade vislumbrada na recordação a partir da experiência. O redemoinho que acontece é
280
um trecho do próprio fluxo em que parte deste se acelera de forma circular provocando em
si a gênese do finito em si mesmo, na qual o infinito como que se movimenta de forma
diversa interrompendo a identidade do fluxo numa estrutura temporal. O movimento
circular do redemoinho é ao mesmo tempo o seu ritmo original que a forma ao que
surge e na qual o eterno fluxo enquanto idéia se torna visível em todos os diferentes
fenômenos físicos, mas idênticos entre si quanto ao seu teor. O redemoinho, portanto, em
sua aceleração forma a sua circunscrição temporalmente como se o infinito promovesse
limitação e determinação dentro de si em seu fluxo. O redemoinho não é uma formação
rigorosamente fechada em si mesma a ponto de a sua força e o seu movimento ser menor
em sua periferia, adequando-se à seqüência do fluxo geral e sofrendo a sua interferência.
Do mesmo modo são formadas as épocas históricas que no fluxo geral não tem limites
temporais rítmicos rigorosamente definidos, cabendo ao centro do redemoinho esboçar
mais nitidamente todo o movimento. Por isso é que, no exemplo, a pré e pós-história são
citadas como que a indicar que se trata daquilo que acontece na beira do redemoinho em
que ele tange ao seu próprio passado e futuro, pois os seus elementos são formados do
material em que está a acontecer de forma acelerada tornando-se mais visíveis. Assim,
elementos formais do drama barroco podem ser encontrados em todas as outras épocas,
mas não de forma tão explícita como na época determinada para tal. Pe pós-história que
pertencem à mesma origem já apontam, como que virtualmente, para a época de torvelinho
que se dará ou que foi num tempo acelerado. Estes mesmos fenômenos da pré e pós-
história de modo algum carecem de importância, pois dão muito maior visão ao que
acontece no centro do redemoinho. Por outro lado, o infinito incondicionado pode ser
apresentado na infinita significação da idéia enquanto atividade sem barreiras, que assim se
expõe em sua visibilidade de redemoinho, de modo que a quantidade de fenômenos
originais, com que no redemoinho a idéia se apresenta, é também necessariamente sempre
incompleta.
A história filosófica enquanto ciência da origem é a forma, que,
dos extremos distantes e dos aparentes excessos do
desenvolvimento, permite a emergência da configuração da idéia
enquanto totalidade determinada pela possibilidade da
coexistência significativa desses contrastes. A exposição de uma
idéia não pode de maneira alguma ser considerada bem sucedida
enquanto o ciclo dos seus possíveis extremos virtualmente não
tiver sido percorrido. Esse percurso permanece virtual. (GS I-1,
227).
281
A virtualidade desse percurso, que sempre deve permanecer, indica que o ciclo dos
fenômenos extremos é infinito. A idéia manifesta-se no fenômeno e mesmo que ele seja
extremo e estranho deverá de algum modo ser identificado como nela corretamente
alocado, a fim de complementar a sua fisionomia, o seu quadro, o mosaico geral. Isso faz
com que o fenômeno possa ser de caráter único, extremo e estranho, mas, ao mesmo
tempo, imprescindível por ser exatamente assim. A filosofia tem, portanto, por tarefa
também o indiciamento da totalidade no particular, sob pena de fracassar em sua razão de
ser. É quanto a este aspecto que Benjamin critica Hegel quando este, de acordo com a
lógica do seu sistema, descreve as relações essenciais do mesmo enquanto manifestação da
idéia na realidade, mas não consegue realizar a sua intenção no mundo dos fatos. Por isso,
autêntica de fato é a concepção quando consegue expor o conteúdo de todos os fenômenos
de forma imediata enquanto relacionados na idéia, sem, portanto, absolutizar o
procedimento de deduções lógicas, as quais necessariamente não alcançam a totalidade dos
fenômenos. Pelo exposto, depreende-se que as idéias enquanto origens não podem ser
qualificadas como causas que estivessem além do que surgiu, mesmo que estejam na base
do ente tendo-o como ocasião da sua manifestação. De acordo com o exemplo do
redemoinho, as idéias estão contidas naquilo de que são origem, numa contradição que se
assemelha à contradição da própria linguagem e ao mesmo tempo identificando a sua
tensão interna, ou, a sua expressão enquanto ritmo diferenciado. Elas, portanto, não
formam um mundus intelligibilis à parte, mas existem junto com os fenômenos fáticos.
Elas formam um número limitado, que consegue abarcar a multiplicidade das ocorrências
na história. Caso as idéias existissem em número ilimitado, não haveria mais a
possibilidade da atividade filosófica do reconhecimento enquanto recordação, pois numa
fragmentação infinita nada mais é possível reconhecer. Por outro lado, o aparecimento da
idéia enquanto origem de determinada totalidade se evidencia também como expressão no
fenômeno individual, mesmo que de modo fragmentado. As idéias são parte da verdade e
os fenômenos parte das idéias. Como no exemplo das pedras do Sinai ou na concepção das
mônadas de Leiniz, cada fenômeno tem a sua inscrição na totalidade do processo pelo fato
de serem unidades que em si carregam a estrutura do todo. Mesmo que em espaço e tempo
as coisas sejam percebidas como separadas umas das outras, isto apenas se constitui num
efeito de superfície, pois no todo o fragmentário forma uma unidade implícita e encoberta.
Essa forma de perceber a totalidade, por sua vez, de novo não é tributária da explicação por
causa e efeito, pois esta é referida à forma de saber proposicional típica do entendimento e
282
que, por isso, jamais alcança a idéia. Tal concepção leva Benjamin a negar que haja
história da arte elaborada pelo cálculo de efeitos e de causas. A obra de arte em si não teria
história e o nexo relacional entre as obras seria o da intensidade por meio precisamente da
interpretação para a configuração da idéia. Haveria uma relação entre as obras em termos
de história dos materiais e das formas, mas que não consegue referir-se ao essencial delas,
que é o seu teor. Aquilo que na obra se expressa está além dos fatos que se pudessem
condicionar mutuamente ao modo de causa e efeito. Existe a história referida às
explicações de causa e efeito, da qual a obra de arte faz parte, mas, como sempre, existe
também uma dimensão além dessa articulação proposicional que é incondicional e que
precisamente se faz presente nas obras enquanto o seu teor e, neste caso, quanto à sua
origem. A origem não tem história e essa origem identifica as obras, pois é nelas que a sua
expressão se dá, de modo que apenas interpretativamente o acesso a elas é liberado.
A idéia é mônada e isso significa em poucas palavras: cada
idéia contém a imagem do mundo. É atribuída à sua exposição
nada menos do que elaborar a imagem do mundo em sua forma
abreviada. (GS I-1, 228).
Benjamin compara esse estado de coisas com o cálculo infinitesimal de Leibniz
pelo qual a totalidade é calculada com o aporte de infinitas pequenas grandezas e, como se
sabe, supõe a inexistência de espaço vazio entre elas. Novamente o exemplo do mosaico
vem à tona, no qual também não se conta com o espaço vazio entre uma peça e outra para,
por fim, formar a imagem.
Tudo o que é limitado tem a sua origem no incondicionado e, deste modo, a própria
história elaborada e formalizada pela razão no uso de proposições com intenção de
objetivação absoluta deve poder ser ela mesma algo mais do que apenas uma concatenação
de objetos e acontecimentos finitos. A origem contém a própria história em sua
explicação costumeira por meio da pretensa autonomia da consciência em elaborar fatos
dela separados. A origem contém de antemão todo o devir, mas, por outro lado, o
individual contém em si a totalidade do devir ao modo da significação das mônadas de
Leibniz.
O percurso permanece virtual. Pois o que foi captado pela idéia
da origem tem a história somente ainda como um teor, e não mais
um acontecer que pudesse afetá-lo. Conhece história
primeiramente de forma interior, a saber, não mais no sentido
imponderável, mas no sentido que se refere ao ser essencial, o
283
qual permite caracterizá-la como a sua pré e pós-história.(GS I-
1,227).
Na concepção da idéia de origem, que traz consigo a compreensão do ser ativo e
em totalidade, a história caracterizada pelo viés de causa e efeito é uma imagem, um teor
um mosaico para a contemplação, e não mais diretamente o acontecer bruto que pudesse
afetá-la. Além da história articulada por proposições na intenção de objetivação, encontra-
se a idéia de origem que tem a história como que por dentro, pois engloba e assume o
comprometimento com toda a forma de explicação possível. Nessa condição o olhar do
pesquisador, ou filósofo, tem a possibilidade de se tornar muito mais abrangente,
visualizando pela compreensão a pré e pós-história da época em que está, pois, do
contrário, pelos lculos de causa e efeito a história resulta precisamente imponderável. A
idéia de origem é mais competente para a interpretação do devir do que a mera
classificação indutiva ou dedutiva por notas comuns. Por isso, também a narrativa histórica
em seqüência e em suposta correção lógica por proposições pode ser vista como uma
possibilidade, mas que nunca é capaz de sobrepujar a descoberta do aspecto fisionômico do
teor que se manifesta na imediação do fático, que, por sua vez, é apenas acessível pela
experiência na recordação. Nesta perspectiva torna-se evidente que a percepção da pré e
pós-história de uma época ou de uma obra não necessita obedecer ao sistema causal, mas à
origem, à qual está ligada do modo mais ou menos distante pelo viés da história de
explicação causal. Esta história, dependente da articulação da consciência numa explicação
causal, Benjamin considera como a história pura, enquanto que a história sob o ponto de
vista da idéia, que em seu teor se manifesta nos fenômenos originais, ele identifica como
história natural, a qual inclui a pré e pós-história. O conceito de história natural quer
expressar a dimensão tratada até aqui como a que está além da atividade da consciência, de
acordo com o fato de que o teor da obra sempre vai além daquilo que o próprio autor pode
e quer comunicar: a pretensa subjetividade autônoma do autor em sua obra o ultrapassa
tanto no momento da criação, como, também, posteriormente no aspecto da recepção. A
história pura, assim, identifica-se com a dimensão do conhecimento dependente das
concatenações causais, enquanto que a história natural refere-se à verdade, isto é, ao teor
que se manifesta nas produções do conhecimento. O teor de verdade é reunido no recinto
das idéias (GS I-1, 227) em que o objeto é preservado de seu passamento total.
Quando esse ser redimido é registrado na idéia, então a presença
da inautêntica, isto é, da pré e pós-história da história natural
284
permanece virtual. Ela não é mais pragmaticamente eficaz, mas,
precisa ser lida como história natural no consumado e sossegado
status da essência. Com isso, de um novo modo a tendência de
toda a formação dos conceitos filosóficos se redefine no antigo
sentido: constatar o devir dos fenômenos em seu ser. Pois o
conceito de ser da ciência filosófica não se satisfaz no fenômeno,
mas somente na absorção da sua história. (GS I-1, 227).
A filosofia não pode se dar por satisfeita em fundar o ser pela fundamentação de
que a consciência imagina ser capaz. Ela não pode querer organizar o ser a partir da sua
capacidade organizatória. A inovação que Benjamin aqui reputa antiga é a escuta dos
fenômenos, uma atividade em que até a suposta fundação na consciência está incluída. A
história dos fenômenos que a filosofia precisa absorver é inclusive a história de todas as
tentativas de fundamentação havidas na história pura em termos de causa e efeito. A
absorção é a contemplação e o exame reflexivo, sob o aspecto da contradição da
linguagem, de todas estas formas de expressão do ser nas peripécias da linguagem através
dos tempos. A história natural não é mais pragmaticamente eficaz, porque o seu
movimento é de retorno em direção da recordação para a formação da imagem, da idéia em
que, na passagem de uma a outra, a verdade se faz ouvir como relação sonante entre
constelações para aquele que é capaz de ouvir com atenção. Já no citado Fragmento
teológico-político a concepção era a de que uma tensão entre a força histórico política
enquanto ordem do profano à procura da construção para o seu declínio na felicidade, e o
movimento messiânico que na imediação deste mesmo profano representa uma força
contrária, força de recordação e que percebe o
o ritmo desse mundano em desvanecimento, desvanecendo-se em
sua totalidade, desvanecendo em sua totalidade espacial, mas
também temporal, o ritmo da natureza messiânica, é felicidade.
Pois messiânica é a natureza a partir da sua eterna e total
passagem.(GS II-1, 275).
A filosofia é a atividade que percebe as duas dimensões da história: a do fenômeno
articulado enquanto objeto pelos recursos da racionalidade da sua mítica autonomia, e a
como quase paisagem, como idéia, como recordação, como retorno ao local onde sempre
se esteve exatamente a fazer parte da idéia e da paisagem e onde os nomes se dão. A
continuidade do texto de Origem do drama barroco alemão é a execução da apresentação
expositiva dos elementos em forma de mosaico para que a idéia possa manifestar-se.
285
A percepção e a angústia da contradição da linguagem acompanha Benjamin em
toda a sua escrita, agora em forma de compreensão do comprometimento com o sistema de
explicação pela categoria da relação ao modo de causa e efeito, e a possibilidade do
tratado, que por interpretação de ensaio a ensaio, vai manifestando a idéia que perpassa
todo os elementos materiais, a obra pronta, o autor e o virtual leitor.
286
7. A CONTRADIÇÃO ENTRE A DILUIÇÃO TOTAL E A OBJETIVAÇÃO
DELIRANTE: AO SOL
No texto Sobre o programa da filosofia vindoura, Benjamin, nos rastros de Kant,
estipula que as condições do conhecimento são as mesmas que possibilitam a experiência.
Nesse texto apresenta também a exigência da inclusão das preocupações quanto à
experiência religiosa e quanto à linguagem. A ligação de linguagem e experiência parece
ter sido uma ocupação central em seus esforços filosóficos. A imagem de pensamento do
texto Ao sol, datada de 15 de junho de 1932, indica a possibilidade de se perceber a
mencionada preocupação de junção entre linguagem e experiência. O texto foi redigido
mais ou menos seis meses antes da Doutrina do semelhante, este uma tentativa de
reformulação e adaptação da sua filosofia da linguagem à perspectiva materialista. A
imagem de pensamento Ao sol apresenta sérias dificuldades de interpretação pelo fato de
que esta imagem procura evocar uma figura de pensamento filosófico-lingüística. Além
disso, apresenta um quadro teórico conceitual, mas que não tem a pretensão de se explicitar
claramente em termos proposicionais. A intenção fundamental do quadro é postular a
experiência enquanto impossível de ser captada por uma consciência que se quer por si
mesma autora de uma relação autônoma com o mundo e, ainda, tornar plausível a abstrata
concepção da tradução da linguagem das coisas na linguagem dos homens como uma
relação de conhecimento concreto.
Kant entende a experiência como resultado das elaborações da intuição sensível e
do entendimento, de modo que o mundo da experiência é o mundo sinteticamente
constituído por conceitos do entendimento e assim constituído apenas pela consciência. O
mundo é produzido pela consciência e para a consciência. Essa concepção de Eu e de
consciência Benjamin rotula como resquícios da mitologia. Não concorda com a
representação de que haja um “Eu que por meio dos sentidos recebe as sensações e sob
287
cujo fundamento forma as suas representações” (GS II-1, 161). Ele põe em questão o
dualismo kantiano, por um lado, de sensações recebidas, e, de outro, de capacidade
espontânea de articulação das mesmas pelas categorias do entendimento. Caso se trate de
mitologia, como é que deve ser, então, a relação com o mundo, na qual não são as
sensações que devem prestar-se à intuição e o entendimento, e nem o entendimento de
pensar? Surge o problema da percepção pelo fato de que se revoga a separação de intuição
e pensar. Benjamin indica de algum modo que deve tratar-se de uma percepção que supera
os limites do meramente sensível, mas na qual ao mesmo tempo possam ser recebidos
conteúdos espirituais, na qual a matéria não é simplesmente matéria e a qual é capaz de
trazer o espírito à participação enquanto palavra em elocução. O desafio está em formular
o conceito de uma intuição que seja mais do que mera percepção no sentido de uma junção
única de sensibilidade e mundo, fazendo surgir um sentido em que o inteligível se faz
perceptível diretamente e não mais pela intermediação imaginária de um pensamento
abstrato. O conceito de experiência de Benjamin, porém, indica a anulação da separação de
intuição e pensamento e a substituição deles pela percepção. Capta-se o mundo
imediatamente de acordo com uma concepção de identidade entre real e ideal. Assim a
linguagem pode tornar-se órgão da experiência, na qual ela pode expressar a percepção.
No Fragmento 17 lemos: Wahrnehmen ist lesen [Perceber é ler] (GS V-32]. A
percepção constitui-se, portanto, em leitura direta. No fragmento “Psychologie”
[Psicologia] de 1917/18 Benjamin formula primeiramente a pergunta fundamental da
psicologia: “como surgem no homem formas espirituais de comportamento?” (GS VI, 65).
Na pergunta se encontra a concepção de que o homem dever ser considerado como
essência espiritual à parte da sua corporeidade. É contra esta tese que Benjamin postula a
identidade de espírito e matéria, alma e corpo, pois desde sempre os comportamentos
psicológicos apenas são acessíveis como comportamentos corporais: “Vida espiritual
estranha....não é captada, mas vista na corporeidade que lhe pertence como vida
espiritual....A psicologia, por assim dizer, ....é uma ciência descritiva, e não explicativa”.
(GS VI, 65). A última ressalva aponta para uma diferenciação que Benjamin também mais
tarde fará entre conhecimento enquanto conexão expressiva e conexão causal:
Marx apresenta a conexão causal entre economia e cultura. Aqui
interessa a conexão da expressão. Não se trata de apresentar o
surgimento econômico da cultura, mas a expressão da economia
em sua cultura. Trata-se, em outras palavras, da tentativa da
captar um processo econômico como fenômeno compreensivo, do
288
qual surgem todas as forma de vida das passagens (e nesse
sentido do século 19). (GS V-1, 573)
Benjamin, portanto, desde cedo até às suas últimas produções não pretendeu
estabelecer a conexão expressiva como algo provindo do interior, como se acontecimentos
que se dessem na consciência pudessem revelar-se em paralelo externamente no corpo. A
pretensão de Benjamin é o contrário, ou seja, explicitar a compreensão de que se de
suspender o paralelismo que sempre significou a dicotomia de consciência e mundo, alma
e corpo. Neste modo de compreensão da psicologia, a linguagem torna-se ponto focal da
percepção. Na psicologia, então, a linguagem se torna como que órgão da percepção e ao
mesmo tempo objeto. A ponto de se poder dizer que no homem a linguagem olha para si
mesma, pois o homem é linguagem e ele consegue perceber-se nessa imediação. O que
aparece no corpo enquanto perceptível já se identifica com a capacidade que torna possível
percebê-lo. O nome é imediatamente percebido na imagem, ou na figura, pois nela não
algo sensível que fosse captado pelo pensamento para articulação posterior, isto é, ela
não é um conteúdo de pensamento, mas nome e percebido são idênticos. O nome é algo
sensivelmente evidenciado. No fim do fragmento Psicologia tal estado de coisas é assim
explicado:
Pelo fato de a linguagem ser o cânone da percepção e o homem
percebido ser o objeto da psicologia, a relação da figura humana
com a linguagem é o objeto da psicologia. Esta é oculta enquanto a
moralidade permanece problemática (Quando falo com uma pessoa
e surge em relação a ela uma dúvida em mim, então a sua imagem
[figura] se turva, eu ainda a vejo, mas não posso mais percebê-la).
(GS VI, 66).
É necessário lembrar que a palavra percepção não traduz a imagem da palavra
alemã wahrnehmen utilizada por Benjamin, pois esta remete etimologicamente ao processo
de tomar por verdade, como a significar que a verdade se na imediata ocorrência da
percepção, sem a idéia de separação de sensação e pensamento. A correta compreensão
desse teor facilita o entendimento dos conceitos de figura e imagem, que são centrais na
filosofia de Benjamin. O termo figura denota a unidade do inteligível e do empírico no
mundo da percepção. Uma figura não se constitui como se fosse algum objeto empírico
reconhecível, mas acontece como ato de percepção que não tem extensão temporal, pois
interrompe o fluxo do devir e então, na imagem, se forma enquanto figura. Desse modo a
figura não é nem conteúdo do pensamento, nem a conexão do pensamento com sensações,
289
mas como que uma unidade de significado intuída: não representa um sentido, mas o
expressa na imediação do seu acontecer. A imagem é a unidade original da percepção pela
interrupção do fluxo do devir estabelecido na mecanicidade do cotidiano. que, porém,
acentuar imediatamente o aspecto relacional deste estado de coisas, pois a compreensão de
algo substancial sempre está à espreita: “a existência individual do homem [é] a percepção
de uma relação em que se encontra, mas não uma percepção de um substrato, de uma
substância de si como o corpo sensivelmente apresenta uma igual”. (GS VI, 79).
O mundo objetivado das coisas corresponde ao mundo da consciência, ao passo que
figuras e imagens não se deixam fixar conceitualmente de modo definitivo. De acordo com
o paradigma da consciência existem coisas, porque o entendimento fixa em categorias e
proposições aquilo que é meramente intuído, mas, na acepção elaborada, a figura, ou a
imagem existe sempre além do controle da consciência, refutando constantemente ser por
ela apanhada e identificada na tentativa meramente proposicional. O teor ideal das coisas
pode ser percebido unicamente de forma imediata pela percepção. A figura e a imagem
constituem-se em compreensão como modos de aparecer, como fenômenos do real que
nesse processo exsudam de modo imediato algo inteligível. A figura é já linguagem
formada, intuição captada, processo de percepção lingüística como imediação de
experiência. O vir a ser é o alvo de interesse, vir a ser que se capta exatamente na sua
interrupção formadora de imagem. O que nesse processo é conhecido e captado depende ao
mesmo tempo do modo pelo qual aquele que capta e interrompe inclui a si mesmo e se
compromete. É possível dizer que desta maneira o conhecimento, ou a verdade é parte do
acontecer e não algo abstrato que estivesse além do tempo para uma contemplação
extasiada e para ser instaurada como fundamento e estatuto de justificação da normalização
dos juízos em geral.
Na imagem, portanto, o acontecer é sem mediação, e nessa imediação o homem se
encontra numa circunscrição que não se define nem pelo mundo objetivo e nem pela esfera
do pensamento da objetivação, nem na ntese de ambos, mas lhe é revelada a realidade
além da consciência e da mera percepção sensível. O estado, ou o acontecer da imediação
na percepção da imagem é como que anterior a tudo aquilo que pode ser dito depois de
modo reduzido em termos de coisas ou conceitos. E é exatamente por isso que o teor
[Gehalt] da imagem só pode ser captado de modo não-predicativo.
290
A imagem é o vir a ser interrompido em seu fluxo. O fluxo da história
costumeiramente é entendido como se acontecesse por conexões causais. Se a imagem é a
interrupção deste fluxo, além ou aquém das conexões causais da história, então o
surgimento da imagem não pode ser explicado causalmente, mas somente é possível
apontar um simples acontecer concreto e expressivo em si. O ser que se diz
conceitualmente, como visto, é dependente da atividade do entendimento que
sinteticamente propõe-se a elaborar dados dos sentidos. Ao contrário disso, a imagem não
se deixa ordenar por nenhum sujeito, pois ela surge quando a consciência de algum modo
se perdeu no devir, e é ela que, enquadrando o sujeito, se lhe faze perceptiva configurando
o homem em seu próprio acontecer. O surgimento da imagem como interrupção pode
mudar no tempo, mas não esta sujeita ao fluxo do tempo: ela se dá no agora da sua
reconhecibilidade de acordo com a quinta tese do texto Sobre o conceito de história (GS I-
2, 691). Neste sentido o modo de vir a ser de uma imagem é o da forma abreviada de todo
o transcurso da história que nela se torna sobremaneira intensivo como que na dinâmica de
uma mônada, que numa compreensão fulminante, desloca significados para novas
configurações. De acordo com a contradição da linguagem, sempre a ânsia da procura
por um ser duradouro que garanta a validade de uma verdade intemporal, mas, numa ironia
paradoxal, essa meta está sempre fadada ao fracasso pelo fato de ter de se ater às condições
das proposições dos nexos causais historicistas, confiantes na substancialidade da
consciência com a sua sugestão de ter estabelecido um tempo contínuo e sem os sustos dos
deslocamentos pelas imagens. Ainda em seu último texto, em Sobre o conceito de história,
Benjamin aborda esta questão do seguinte modo:
O historicismo contenta-se com estabelecer um nexo causal entre
diversos momentos da história. Mas nenhuma realidade de fato é,
a título de causa, um fato já histórico. Tornou-se tal, a título
póstumo, graças a acontecimentos que podem estar separados
dela por milênios. O historiador que parte daí cessa de desfiar a
sucessão dos acontecimentos como se fosse um rosário. Ele
aprende a constelação que sua época passou a integrar com uma
época anterior bem determinada. Funda assim um conceito de
presente como tempo agora no qual foram encravadas lascas do
tempo messiânico.(GS I-2, 704).
Sabemos que o conhecimento do mundo das coisas é repetível à exaustão, mas a
imagem de que aqui se trata aparece apenas num exato momento e ponto sem extensão
alguma. Ela é única precisamente enquanto não proposicional e pode ser relacionada com o
291
termo aura. Na percepção de uma paisagem rural não são percebidos apenas os animais, os
pássaros, as plantas, a variedade de cores, o aroma, o azul do céu, mas, ao mesmo tempo,
também o percurso de vida numa apreciação que jamais se repetirá de modo igual como
naquela hora e naquele local em que se conjugavam recordações de ontem com saudade de
futuro. A imagem aurática formada é única e fugidia e, precisamente por isso, diferencia-se
fundamentalmente da repetição e dos retornos programados de uma imagem a ser
idolatrada. O ídolo se torna coisa enquanto objeto reproduzível à exaustão e, por isso,
reproduzível é aquilo que é objetivável, que é aproximado e fixo para ser preso à
proximidade e disponível a qualquer hora. A proximidade requerida como condição
espacial exige coisificação de um mundo físico e manipulável pelos recursos da
consciência que se quer autônoma. No mundo moderno a percepção para construção da
objetivação por proximidade significa maior dificuldade de compreensão da experiência
em imediação perceptiva. A aura é escamoteada continuamente num mundo alucinado pela
intenção de repetição da reprodução em massa de todas as formas perceptivas.
Curiosamente Benjamin tematizou o termo aura pela primeira vez no texto de Pequena
história da fotografia (GS II-1, 368). Depois do seu desenvolvimento técnico, a fotografia
representa a realização do pensamento objetivador quando intenta dominar as coisas por
meio da reprodução colocando-as ao dispor daquele que percebe. A fotografia produz
proximidade trazendo as coisas para a circunscrição dominadora do sujeito, exatamente
para o espaço em que a consciência pode deitar a mão nelas. Conforme Benjamin, esta é a
mesma estrutura do jornalismo, pois também ele trata de um saber em que a experiência
desapareceu. A intenção da imprensa consiste
em isolar os acontecimentos do âmbito em que pudesse dizer
respeito à experiência do leitor. Os princípios da informação
jornalística (novidade, concisão, compreensibilidade e, antes de
tudo, falta de conexão das notícias individuais entre si) cooperam
para esse resultado como a paginação e a administração da
linguagem. Karl Kraus não se cansava de comprovar como o hábito
de linguagem dos jornais aleija a imaginação dos seus leitores (GS
I-2, ¨10).
Os resultados das estruturas do saber objetivador é que produzem a separação de
imagem e reprodução, distância e proximidade, linguagem comunicativa e linguagem
enquanto expressão participante, experiência de percepção imanente e mera vivência na
repetição do igual prévia e fixamente organizado. A reprodução e a informação jornalística
caracterizam-se pelo fato de que o seu conteúdo pode ser objetivado. Enquanto mero
292
sistema de sinais, também a linguagem pode ser utilizada para a apresentação de
proposições, como também ser reproduzida ao bel prazer. Mas como já visto, a experiência
na imagem se torna intuicionante e reconhecível no nome, na linguagem, sem se deixar
coisificar. A experiência é algo que se tem, mas do que não se pode dispor como se fosse
um objeto, pois o seu saber no âmbito da percepção está distante da situação de manipular
e combinar objetos em que o sujeito se encontra na imediação do seu esquecimento
cotidiano e atarefado.
Na relação feita entre experiência e aura, há que compreender que a aparição
aurática é entendida enquanto única e irrepetível e não emerge somente porque o homem
capta e interrompe o devir, mas porque na percepção da imagem aquele que percebe perde
a sua condição de observador neutro e distanciado: desaparece a diferenciação entre sujeito
e objeto. A imagem não denota uma reprodução fotográfica que fosse resultado do
perceptor, mas ela ocorre aparecendo quando este se torna uma unidade com o próprio
acontecer. Aquilo que está além ou aquém da separação de si mesmo e de mundo
supostamente completamente objetivado é a experiência.
No texto Ao sol somos inicialmente confrontados com um homem que numa
paisagem de uma ilha do Mediterrâneo fantasia sobre o desejo de conhecer mais
profundamente todos os objetos que encontra, pois não se mais por satisfeito com a
sua mera denominação por rotulação individual.
Dizem que há dezessete espécies de figos na ilha. Dever-se-ia
conhecer seus nomes diz para si mesmo o homem que se põe a
caminho ao sol. Sim, dever-se-ia ter visto não somente os capins e
os animais que dão rosto, som e cheiro à ilha, as formações da
montanha e os tipos de solo que vão do poeirento amarelo até o
marrom violeta, com as largas superfícies de estanho no meio
mas, antes de tudo, dever-se-ia saber os seus nomes. (GS IV, 417).
A descrição especificada dos objetos enumerados não satisfaz o homem. Há a
sensibilidade da visão de se ver um determinado conjunto como se fosse um rosto, e a
capacidade de diferenciação pela visão dos animais, plantas e montanha, pela captação do
odor, da cor e do som da paisagem. Há também conhecimento geológico sobre montanha,
solo e seus materiais específicos. A objetividade e os conhecimentos científicos estão a
postos: o que poderia estar fazendo falta? A resposta é que ele prescinde de algo anterior:
dever-se-ia saber os seus nomes. Os nomes, então, não são nem as designações utilizadas,
nem as representações e nem os conceitos, e eles devem expressar uma condição que está
293
além do que é captável sensivelmente e possível de ser sintetizado pelo pensamento. Do
texto “Sobre a linguagem em geral e a linguagem dos homens” é possível recordar que a
natureza pode e deve ser reconhecida como palavra expressa e, no fim da presente citação,
nota-se uma ruptura que aponta para essa direção, numa mudança de perspectiva:
Não constitui cada região a lei de um encontro sem repetição de
plantas e animais e, portanto, cada denominação de lugar um
código sob o qual flora e fauna se encontram pela primeira e
última vez? (GS IV, 417).
Na totalidade do devir os encontros nunca se repetem de modo igual, e esta é a lei
fundamental. Plantas, animais e terra estão num encontro bem determinado e irrepetível
exatamente agora, mas a lei que rege tais encontros é a anti-lei, que é a lei do irregular
até a impossibilidade da repetição da mesma configuração. A anti-lei trata de liquefazer
imediatamente as pretensões de ordenamento espacial e organização temporal dos
encontros em repetição, pois qualquer estruturação não comporta encontros de primeira e
última vez. A desistência de qualquer ponto de partida para a fixação de algum substrato
que pudesse justificar o conhecimento anteriormente ostentado apresenta-se na ironia de
que a denominação de lugar pudesse constituir um código, uma cifra, uma chave para a
elucidação objetiva de tal encontro. De acordo com essa anti-lei as coisas, plantas e
animais perdem a condição de objetos assim reconhecidos pela repetição de acordo com os
critérios de identidade e diferença. É total o desmanche da confiabilidade no processo de
ordenamento por estruturas administradas pelo pensamento: ao infinito tudo é sem
repetição, tudo é sem lei e tudo sempre é pela primeira e última vez. Quando visto bem de
perto, o conhecimento ordenado não é possível e a farsa da consciência unicamente
ordenadora perde todo o seu encanto e a sua magia. A ciência e a tecnologia em
objetivação e funcionamento são um milagre a ser ainda desvendado ou uma catástrofe
esquecida de si, porém, mesmo nelas nada se repete, pois a cada volta em torno de um
círculo a numeração, o tempo e o lugar são outros.
Mas o que é único, conjugado e sem repetição é aparição perceptível enquanto
imagem. Entre a organização de um espaço geográfico funcionalmente sinalizado pela
linguagem e a completa dissolução na indistinção absoluta, a possibilidade dos
encontros de primeira e última vez, a possibilidade do acontecimento da percepção
fundamental da imagem no sentido de que a própria percepção faz parte da paisagem que
percebe num agregado único. A imagem enquanto encontro irrepetível se relaciona com o
294
lugar em que se como na relação existente entre a designação e o nome. A designação
comprometida com as intenções de autonomia da consciência lugar ao nome que desde
sempre a possibilitou. O nome atrás do sinal não forma uma nova classe de palavras. Trata-
se sempre da mesma palavra: por um lado, a palavra na intenção de designar algo outro no
sentido de representar uma grandeza definível e objetivável, que é o lugar como espaço
físico a conter objetos determinados e identificáveis, e, por outro, o nome enquanto
expressão da reunião que nesse mesmo local acontece. Conceito, isto é, sinal, pertence a
uma ordem do saber enquanto o nome é de outra ordem e ambas tratam de realidades
diferentes. Apesar disso o mundo das coisas designadas e o mundo da imagem é o mesmo
mundo, como o sinal e o nome pertencem à mesma linguagem. O nome é perceptível numa
imediação que fica infinitamente além ou aquém da percepção apenas direcionada e
interessada na constituição de objetos fixos. Entre a fixidez designativa e a abertura ao
caos, emergem a imagem e o nome circunscrevendo uma reunião em que o eu da
consciência se dilui para fazer parte da ocorrência da experiência. Como se diz a
experiência que não se deixa designar supondo indefinidamente a condição anterior a
qualquer designação? Qual a alternativa entre a elaboração designativa e o silêncio diluído
num espaço indiferenciado e num tempo embotado na imobilidade absoluta?
O viajante em seu caminho chega a outra paisagem na ocorrência do seu
pensamento e formula a hipótese:
Mas o agricultor certamente tem a chave da escrita cifrada. Ele
sabe os nomes. Mesmo assim não lhe foi concedido expressar algo
sobre o seu lugar. Os nomes não o teriam tornado num homem
lacônico? Então a opulência da palavra cabe apenas àquele que
tem o saber sem os nomes, mas a plenitude do silenciar àquele
que nada mais tem do que os nomes? (GS IV, 417).
Por que o camponês haveria de ter a chave dos nomes, a chave da escrita cifrada? O
agricultor é aquele mesmo que mais adiante no texto aparece como alguém que desde
séculos anda pelos caminhos da ilha, plantando e colhendo nos seus campos. É uma
indicação de que em todos os seus gestos uma experiência que não pode ser reduzida
imediatamente a um conjunto de proposições para descrição objetiva. O viajante é
estrangeiro e se movimenta pela primeira vez naquele solo, mas o agricultor é da ilha, e
durante toda a sua vida fez parte daquela paisagem em que muito cunhou os seus
caminhos deixando rastros bem definidos, que testemunham a sua união com aquela
natureza. Convívio duradouro, então, perfaz uma relação de mundo qualitativamente
295
diferente que engloba o seu perceptor: é a experiência. O tempo de convivência faz surgir
um saber que é o do nome que a própria vida faz transparecer. Do chão da tradição nasce a
experiência que é a outra forma de saber, pois capta o mundo de uma forma que a sensação
historicamente alheia ao lugar não percebe e o entendimento não consegue elaborar. A
tradição possibilita uma interação com o mundo frente ao que a consciência é uma
atividade extremamente reduzida: ela não pode ser conduzida pela consciência. Aquilo que
é resultado do exercício no tempo secular não pode ser objetivado por um entendimento
com intenções de manipulação. Além da separação de sujeito e objeto estende-se uma
conexão de compreensão entre o eu e o mundo na imanente realização prática da vida em
geral, à qual não se pode referir como se fosse um objeto a sua frente. Assim, a experiência
é uma forma de saber não imediatamente proposicional. O camponês em sua situação é
parte integrante da totalidade de um mundo articulado como experiência e do qual não
mais pode tomar distância para uma verificação objetiva. Mas exatamente esta situação lhe
a chave da escrita cifrada sobre a paisagem de que faz parte. Com essa chave ele é
necessariamente lacônico a respeito de si mesmo enquanto paisagem, porque nesse
encontro da e na paisagem teria de usar o todo da linguagem para a tradução sonora e
objetiva do que está a acontecer a ele e ao seu entorno. A linguagem do nome que conhece
e em que se encontra faz com que tenha cuidados quanto à tagarelice, pois, sobre qualquer
coisa que disser, ele sabe que ressoará como eco em seu ouvido pelas conexões do seu
entorno em que está inapelavelmente enredado. Portanto, o camponês sabe que qualquer
elocução sua não é apenas a atividade de um entendimento constituído solitariamente para
a produção de objetividades especificamente direcionadas, mas que significa a
manifestação expressiva e total de tudo que o constitui enquanto cercania de que mesmo
faz parte na condição de falante. O camponês é lacônico pelo fato de se perceber
coadjuvante naquela sinfonia em execução em que percebe que a sua contribuição de vida
deve ser bem executada na interpretação da peça orquestral em pleno andamento: a
solidariedade imediatamente imanente não lhe pesa como uma contribuição forçada a ser
contabilizada em termos de acertos e erros por critérios explícitos de algum agente externo
com arrogante e fictícia autoridade para tanto. Esta experiência característica do camponês
falta ao estranho que se movimenta na circunscrição da linguagem proposicional esquecida
da sua condição expressiva. A opulência do seu discurso que parece a própria clareza que
tudo torna próximo constitui-o em estranho no meio em que se encontra, pois as suas
palavras soam completamente estranhas na intenção de uso enquanto instrumentos de
296
descrição positiva no processo de objetivação que promove. As suas palavras são
instrumentos ativados para a edificação do conhecimento de uma subjetividade que se
considera autônoma e infinitamente divorciada do que manipula. A opulência da sua fala
instrumental não tem o estatuto dos nomes e isso faz com que seja estranho a si mesmo e a
suas palavras.
Certamente, aquele que assim no caminho medita reflexivamente
não provém daqui, e quando em casa sob céu aberto lhe vieram os
pensamentos, já era noite. Apenas com estranheza traz à memória
que povos inteiros judeus, indianos, mouros edificaram o seu
sistema doutrinal sob apenas um sol que parece impedir-lhes o
pensar. (GS IV, 417).
A estranheza do viajante é o motivo de ele não conhecer os nomes. A meditação
reflexiva de um eu preocupado e abalado por essa sensação de estranheza que lhe acontece
parece ser um sinal indicando o isolamento dessa atividade e da solidão em que se
encontra. A meditação reflexiva como exercício de autonomia para auto-certificação de si
enquanto eu centrado e manipulador é atrapalhada sob o céu aberto da noite em que os
pensamentos lhe vêm. Quem parecia manejar pensamentos de repente se vê a ter de
reconhecer em sua noite que os pensamentos lhe vêm sem convite e impositivos,
arrebentando o casulo em que estava encapsulado e obrigando-o a se dar conta da
existência de um céu aberto muito mais além. A noite do eu faz-lhe surgir a estranheza do
sol sob o qual judeus, indianos e mouros construíram o seu edifício doutrinal, as suas ilhas
em que expressam o seu ser. Nesse gesto, a noite do ocidente do pensamento filosófico
reconhece a sua estranha diferença em relação ao sol do oriente. O sol assume o seu antigo
e natural paradigma de luz do conhecimento, que aos judeus, indianos e mouros ele
parece ter impedido o pensamento objetificador. Eles forjaram as suas doutrinas sob o
calor do sol assumindo-as como a luz da sua expressão imediata em seu ser assim, sem a
constituição ficcional da possibilidade de um centro de outorga de luminosidade e
validação absoluta. Na noite do eu ocidental o viajante dá-se conta da sua estranheza ao
perceber pensamentos lhe advirem sob céu aberto: trata-se de uma luz desconhecida que se
revela a alguém como que divorciado da natureza e prisioneiro da sua própria
subjetividade. Estranhas lhe parecem as edificações doutrinais que não foram produzidas
por uma racionalidade em busca da certeza dos seus próprios fundamentos. O sol queima
penetrando com a sua luz a escuridão do eu encapsulado e atrapalha pondo em dúvida as
produções do entendimento solitário.
297
Esse sol está lhe queimando as costas. Resina e tomilho
impregnam o ar, no qual ele, puxando fôlego, crê sufocar. Um
zangão bate em seu ouvido. Mal ele tinha percebido a sua
proximidade e o turbilhão do silêncio novamente o levou
embora. A mensagem de muitos verões a que renunciara
distraidamente – pela primeira vez presta atenção a ela e aí ela se
interrompe. (GS IV, 417).
Debaixo do sol os orientais forjaram as suas doutrinas de que são expressões, e esse
sol a queimar as costas do viajante lhe indica que toda a elaboração filosófica do ocidente
também o inscreve na expressão do que é, sem a possibilidade de realização da separação
absoluta de um centro articulador do conhecimento do ser. A ardência do sol como que
funde o eu na sua pretensão de isolamento complementando os odores da resina e do
tomilho que arrastam o seu corpo à imanência da terra obrigando-o a resfolegar e se
aperceber da proximidade do chão. Puxado para a quietitude da planura a fim de fazer
parte da paisagem, inicia a perceber a transformação que nele se opera, pois um zangão
depois de bater no seu ouvido vai-se embora lhe trazendo a enormidade do silêncio que
agora o cerca. Nisso uma mensagem que pela primeira vez escuta e tenta elaborá-la
descritivamente, mas oscila entre permanecer rente à terra e prestar atenção para uma
descrição positiva e competente. A oscilação se na escuta da mensagem do entorno,
entre a sua elaboração discursiva para a manutenção do eu e a escuta interruptora
simplesmente: a mensagem pode virar escuta numa relação de imediação tradutora.
“A vereda quase apagada torna-se mais larga; rastros conduzem a uma carvoaria.
Lá atrás no nevoeiro se esconde a montanha para a qual os olhares do escalador se
dirigiam”. (GS IV, 417). A vereda do conhecimento objetivo quase apagada torna-se
paradoxalmente mais larga. Apesar de os primeiros rastros indicarem a pretidão de uma
carvoaria, o olhar daquele que sobe a montanha ainda distante depois do cinza de um
nevoeiro. A proximidade da representação objetiva tornou-se rastro de carvão, o que
instiga naquele que sobe, isto é, no viajante, a visão e a sede da distância além do nevoeiro.
A aura do próximo e do distante acontece. A proximidade é a objetivação faceira que se
torna rastro do que sempre supôs e sempre terá de supor em seu exercício: o distante
essencial que não está ao dispor do saber proposicional. A aproximação de ambos num
amálgama faz desaparecer a distância entre o si mesmo e o mundo: a atenção e a percepção
consciente do mundo como externo empalidecem.
298
Algo frio se torna perceptível em sua face. Ele o toma por uma
mosca e bate. Mas é apenas a primeira gota de suor. Logo vem
a sede. Ela não vem do palato, mas da barriga. Daí ela se
espalha por toda a parte instruindo o corpo, grande quanto é,
para ser capaz de aspirar e beber por todos os poros o mais
miserável sopro.(GS IV, 417).
O corpo começa a reivindicar os seus direitos. Ainda algo externo parecendo uma
mosca parece arriscar-se a uma interferência indevida no curso dos pensamentos em fusão
com os arredores. Quando bate contra o rosto para se desfazer do que imagina estar
atrapalhando escandalosamente as suas últimas resistências ao desmonte do controle
externo, percebe que é seu próprio corpo a se integrar no mapa orgânico da natureza: é
uma gota de suor. Primeiramente completamente absorto em reflexões, logo começa a
sentir no corpo a necessidade profundamente exigente de maior integração.
Independentemente de qualquer resolução da vontade de teorizações para a construção
autônoma de si mesmo de modo separado, surge a sede que vem bem de dentro de si
expressando o seu comando a toda a extensão do corpo até aos limites dos poros da pele,
que, na verdade, limites não são, pois pela sucção de qualquer brisa indicam dependência,
integração e reunião anteriores a tudo. O eu não perde somente o controle sobre o que
arbitrariamente estipulou como exterior, mas também sobre a interioridade corporal, bem
como a resolução imperiosa do mando da dependência e da reunião sempre anterior a
quaisquer decisões. Os costumeiros caminhos do domínio das sensações pela consciência
estão interditados a ponto de não ser mais possível localizar ao certo a sede, pois o corpo
tomou por si mesmo as rédeas como centro de sensações. Um alheamento cada vez maior
cresce até a perda do controle sobre o que está a acontecer.
“Há muito, a camisa escorregou do seu ombro e, quando ele a puxa para si a fim
de se proteger da ardência do sol, é como se manejasse uma capa molhada”. (GS IV, 317).
A roupa tem a função de preservar a diferença entre mundo externo e corpo, mas nem
sentira a sua queda dos ombros e somente a sensação de ardência do sol tem a força de
ativá-lo para que instintivamente se proteja com algo que agora lhe parece uma capa
molhada do suor provindo do seu corpo e que nela depositou: recolhe ao corpo o que o
corpo exsudou numa nova forma de integração. Cada vez mais se forma uma
indiferenciação entre interno e externo. Tanto que a tematização das sensações oscila não
respeitando mais qualquer limite entre as sensações que supostamente avisam exterioridade
e as que notam interioridade. Corre solta a divagação entre tudo e todo, entre externo e
299
interno, sem mediação, porque a percepção da imersão numa totalidade suposta se
consumou. A camisa molhada repassa ao viajante a inutilidade da proteção que prometia
ser para a conservação de limites. Por isso tudo, o salto de um assunto ao outro
acompanhando percepções e pensamentos podem daí por diante suceder num fôlego só,
sem causar a impressão de serem desconexos e deixando de causar maior estranheza e
sobressalto.
Amendoeiras numa descida projetam a sua sombra aos pés do
tronco. Amêndoas são a riqueza da terra. Nenhuma fruta ao
agricultor mais remuneração. Nesta época é a única madura, e
andando é agradável alongar o braço até os ramos. (GS IV, 418).
No limiar, a percepção da projeção da sombra das amendoeiras mescla-se com a
notação racional econômica a respeito da vantagem da remuneração possível pelas
amêndoas e, então, volta para a sensação de agradabilidade em colhê-las na sua parcial
madureza alongando o braço ao que as árvores ao natural oferecem. O braço que se alonga,
a amendoeira com ramos e frutos, o aproveitamento econômico, o agricultor e a época de
amêndoas quase maduras formam um quadro só. O viajante deglute as frutas deslocando
consigo parte da árvore em forma de amêndoas e cascas na mão.
“Apenas com muito custo a mão se separa das cascas descaroçadas. Leva-as
durante algum tempo consigo, deixa que sejam levadas numa corrente que as arrasta para
diante”. (GS IV 418). As cascas não têm mais valor econômico e, mesmo assim,
permanecem na mão como se esta tivesse sentimento e impulso próprios, como se ela
estivesse desligando-se da centralidade da vontade orgânica que supõe comando
ferreamente insistente, ou até como se as próprias cascas na palma da mão pudessem
decidir os seus destinos externando o desejo de viagem mais longa na decisão de serem
atiradas na corrente de um córrego para levar muito mais adiante a notícia da árvore
generosa. A consciência deixou de guiar as ações, a mão deixou de reagir por suas
sensações solitárias e quem comanda o processo é o conjunto de casca, mão e
distanciamento possível pelas águas do córrego. Na desistência da pretensão absoluta da
centralidade da vontade há, assim, uma reunião do próximo e do distante que elimina a
pretensão do observador fazendo com que o viajante faça parte do acontecer geral da
árvore, da amêndoa com seu caroço e cascas, do burburinho das águas do córrego, da
proximidade e da distância que se resumem num átimo de tempo. Joga-se fora os limites
cascudos dos frutos que se formaram para proteger o que posteriormente é deglutido? Ou
300
as cascas quebradas enquanto limites desfeitos exigem maior expansão dos seus horizontes
na correnteza de um córrego? Dificilmente a consciência enquanto núcleo se desfaz dos
seus limites. Mas quando acontece o rompimento das suas barreiras, quais são as águas que
as levam e qual é o corpo que deglute o seu caroço avaliando a sua madureza e diluindo-o
em si mesmo? A quebra dos limites da consciência é o processo da sua destruição ou da
ampliação dos seus horizontes? Da árvore de que nasceu como caroço e casca, a
consciência sabe da ilha e da paisagem de que faz parte como expressão?
Os caroços estão maduros, mas não completamente; o suco neles
é mais fresco do que depois, quando a sua pele é marrom e não
mais se pode tirar. Agora eles têm a cor do marfim como queijo de
cabra e espartilho de mulher. O seu gosto é de marfim. Quem os
tem entre os dentes ouve, impassível, fontes rumorejarem na
folhagem das figueiras. Mas os figos estão cravados, verdes e
duros, mal visíveis nos eixos das folhas. (GS IV, 418).
Os objetos agora não são mais coisas simplesmente à frente para serem analisadas,
mas são imagens que se mesclam com as sensações e recordações do viajante a ponto de
este intuir a sua essência. Essa essência não é nem definível, nem exatamente descritível
por uma linguagem que primasse pela apresentação dos seus fundamentos conscientemente
postos para a produção de absoluta objetivação, mas apenas se deixa captar pela indicação
significativa dos nomes. Além das associações meramente subjetivas acontece a integração
perceptiva em que se revela a essência da coisa mesma ao modo de imagem intuitiva por
meio das sensações. O tornar-se uma unidade com as coisas conhecendo-lhes os nomes na
imediação intuitiva ocasiona um contínuo de quase alucinação no viajante: os caroços não
tão maduros, com o seu suco perceptível ao paladar, com a cor visível na sua pele, com o
seu som entre os dentes fazem ouvir fontes rumorejantes nas figueiras. No rumorejar das
figueiras diretamente ligado ao ruído da mastigação de caroços de amêndoas, o som da
origem se faz tempo agora para indicar a reunião da integração de tudo: a origem do fundo
dos tempos está presente na diversificação das sensações, pensamentos e palavras que
simultaneamente ocorrem fazendo parte do processo em andamento. As sensações, os
pensamentos e as palavras não são nem posteriores e nem anteriores ao que há, mas se
integram numa participação em que uma figueira dita é uma das perspectivas possíveis da
sua própria essência original enquanto tradução contínua da origem de tudo. A linguagem
do viajante nesse momento não é nem a validação e nem a verdade da figueira, mas a
própria continuidade de um dos seus aspectos enquanto percepção tradutora. Na origem, a
301
figueira participa irradiante de todas as sensações que possibilita para receber a marca da
linguagem humana que também passa a integrar. A percepção inicialmente fragmentária e
balbuciante do viajante ao sol faz adivinhar o que se quer dizer com a linguagem
paradisíaca em que o dom de falar era a doação dos nomes como participação da própria
essência do homem em meio à criação. A sensação, o pensamento e a palavra humana não
são mecanismos de triagem organizada entre si para a produção de verdades absolutas com
que se fez a noite do ocidente, mas o compartilhamento numa reunião em que
simplesmente o mérito das coisas se apresenta fazendo rumorejar a origem em nominação
expressiva. Assim acontece que a natureza recupera sua original vivacidade na capacidade
da participação da sua nomeação. Amêndoas quase maduras, mas figos ainda verdes e em
parte escondidos, isto é, para quem iniciou a viagem de volta na quebra da sua auto-
limitação, promessa de continuidade de muito mais caminho de se andar. O sentido
pode tornar-se doação mútua num sentimento de mútua dependência numa relação
original.
Chegou o momento em que parece que apenas as árvores vivem.
Nos pinheiros as cigarras tinem; o seu zumbido ressoa desde os
campos poeirentos. Eles agora se encontram após a colheita com
a expressão tosca daqueles que se desfizeram de tudo. A sombra,
o seu último bem, se encolhe reunida aos pés das altas medas.
Pois é a hora do recolhimento.(GS IV, 418).
A imagem significativa se fortalece cada vez mais e a distância entre o eu e o
mundo se desvanece fluidificando-se na vastidão da paisagem com a perda da sua fixidez.
O mundo das coisas mortas objetivadas lugar à imagem viva e perceptível provinda de
todas as direções. O pensamento objetivador costumeiramente articulado em proposições
positivas dá lugar a uma unidade também inteligível no nome que se sabe em vasta
dependência. Os campos após a colheita se assemelham precisamente ao viajante que
perdeu todos os bens que formavam a couraça limitada do seu eu, que agora se estende, se
expõe e se integra na vasta nudez do se espalhar no todo. A única coisa que resta aos
campos e ao viajante é a sombra do que foi aos pés dos montes de palha. Na hora da
reunião, o orgulho da consciência autônoma perdeu o seu aguilhão, as sensações estão sob
o feitiço da distância e as imagens se impõem ao viajante.
“Os próprios bosques dispõem-se em torno dos cimos como se o ancinho do verão
os tivesse recolhido”. (GS IV, 417). As imagens conseguem ludibriar o tempo, pois no
momento da sua emergência permanecem paralisadas impondo-se às sensações e ao
302
pensamento a ponto de fazerem parte do quadro. Por isso, não é possível identificar uma
percepção racional objetivadora com uma percepção de imagem. Ambas constituem
formas diferentes de saber, pois na imagem o observador nela se dilui na percepção de uma
dependência que o torna imanente ao quadro, enquanto que no processo racional acontece
o esquecimento fundamental dessa mesma dependência na procura e na afirmação de um
fundamento separado do todo que se expressa para a fixação de um mundo de objetos
como se pudesse estar em paralelo com o mundo da linguagem. Na imagem de pensamento
“A distância e a imagem” Benjamin compara a condição da primeira forma de saber com o
prazer do sonhador: “Acaso o prazer pelo mundo das imagens não se alimenta da sombria
teimosia contra o saber?...Assim, interromper a natureza na moldura de imagens
esmaecidas é o prazer do sonhador”. (GS IV, 427). Da aparência de sonho ao perceber
parece ser apenas um passo: a forma de saber que possibilita a percepção visual da imagem
é traduzida acusticamente no nome. A intencionalidade da capacidade do entendimento se
desvanece na abrangência total da realidade da imagem, os objetos do conhecimento não
mais existem e a natureza compartilha os seus segredos quando o homem se desfaz das
grades da sua egolatria em que está preso por um esquecimento que o alucina.
Apenas vimeiros encontram-se isoladamente nos restolhos e a sua
folhagem brilha em preto e branco como prata de tule. Nenhuma é
mais embandeirada e, mesmo assim, quebradiça, rica em acenos
quase não mais perceptíveis. Mesmo assim um deles acerta o
transeunte. (GS IV, 418).
Quem ingressa no mundo dos nomes recebe acenos. O viajante tem a vaga
impressão de que a folhagem das árvores lhe acena, tanto que a de uma delas até o acerta.
Ele está na situação de perceber que a natureza também o percebe e procura a partilha da
comunicação. Recorda-se do que realmente lhe aconteceu quando se tornou uma
unidade com uma árvore e ouviu a sua linguagem.
Vem-lhe à mente o dia em que sentiu junto com uma árvore.
Naquele tempo bastava apenas aquela a quem ele amava ela
estava na relva bem indiferente a ele, e a sua tristeza ou o seu
cansaço. ele escorou as costas num tronco e este o ensinou a
sentir. Quando o tronco iniciava a balouçar com ele aprendeu a
tomar fôlego e a expirar quando o tronco balouçava de volta.(GS
IV, 418).
A recordação do luto e da tristeza pela indiferença e perda da amada de outrora se
junta à sensação da experiência havida de sentir-se árvore a balouçar recebendo acenos em
303
diálogo com os arredores. Uma outra imagem de pensamento de Benjamin, “A árvore e a
linguagem”, evoca algo semelhante quando passa a entender e falar a linguagem da árvore
como se com ela estivesse unido por conúbio desde todos os tempos. (GS IV, 425). Sentir
junto com a árvore e entender a linguagem dela como se fosse um casamento parecem
lembrar a felicidade erótica paradisíaca em que o cumprimento da felicidade é imediato e
constante. Perder tudo, como um campo em época de colheita e como o viajante em
situação de diluição das costumeiras objetivações fixas em que estava enredado, leva ao
sentimento de perda e de renúncia que favorece o sentir-se unido à árvore. A aspiração ao
conhecimento dos nomes desse modo constitui-se de um desejo erótico de felicidade
imediata, isto é, sem a intermediação do pensamento racional voltado a fins que
insistentemente apenas se tem como instrumento e nunca como consumação. O
pensamento instrumentalizado somente para a felicidade futura torna-se vítima da
impotência de se isolar na ganância de tudo querer e de nada usufruir num esquecimento
embotado de que já está em plena situação de participação. A surdez ao recado original dos
arredores como que arremessa a consumação da felicidade à negatividade infinita. O saber
dos nomes enquanto tradução de uma relação completamente diferente de si mesmo e com
o entorno é um saber imediatamente prático que não se ativa na posse intentando a
dominação doentia da natureza para a consecução de fins julgados imprescindíveis. O
Eros, do qual se trata, certamente procura fazer a religação do eu com o mundo, mas
evidentemente num sentimento de unidade paradisíaca que não elimina qualquer um dos
pólos em questão: aspira uni-los sem os misturar. Na imagem, a sincronia dos movimentos
de árvore e homem lembra a execução de uma notação musical em que consonância
sem intenção, numa dependência de um em relação ao outro. Esta mesma sincronia dos
movimentos é uma convivência em que simultaneamente se processa a tradução em
aprendizado mútuo num diálogo de imagens. A movimentação da árvore é articulação
muda compreendida não como sinais, mas como a sua expressão imediata. Como no texto
de A linguagem em geral e a linguagem dos homens”, a essência da árvore participa a si
mesma ao seu modo para neste aspecto ser traduzida na expressão da linguagem do
homem, o que, por sua vez, é a expressão deste.
Sem dúvida, tratava-se apenas do tronco cultivado de uma árvore
ornamental e de modo inimaginável a vida daquele que poderia
aprender com esta árvore rachada, a qual, ainda mais fendida,
desenvolve-se triplamente a partir do chão e funda um mundo
inexplorado que se reparte na direção de três pontos cardeais.
Nenhuma vereda torna-o acessível. (GS IV, 418).
304
Daquela vez tratava-se de uma árvore ornamental, sendo que agora recebe o aceno
de uma árvore rachada que se desenvolve de três partes desde o chão. Que aceno estaria ela
a dar? De que mundo invisível as suas raízes de dentro do chão ela expressaria para que o
viajante de agora o percebesse enquanto imagem? Perceber-se no subsolo para sugar a
seiva da terra é possível aprender? Como se transforma o inorgânico em orgânico? Como
seria a completa desistência na diluição de si mesmo numa escuridão vital e original
propiciando, numa fermentação e germinação primeira, a continuidade da vida em todas as
direções sob a luz do sol? Que mundo abissal e inexplorado é esse que a partir de si funda
os outros? O que é que vem antes de tudo para que o que está sendo seja? O viajante
percebe que para não vereda, mas apenas a vereda da oscilação do ser.
Experimentar o ensinamento da imagem da árvore fendida em três direções já iniciaria por
se perceber sugando a seiva desconhecida da terra a partir de três direções. São pontos
cardeais, civilizações, povos? É a dúvida sobre a proveniência de toda a dívida que o
constitui enquanto emergência de sensação, pensamento e palavra na integração suposta? É
a impossível vereda a ser trilhada, pois leva ao abismar-se sem solução na proibição de
qualquer reconhecença. O fundamento da participação sempre de novo será participação, e
a insistente procura alucinada leva ao esquecimento de que qualquer construção é apenas a
continuidade de uma paisagem já sempre à vista. Onde o eu se perde: é no reconhecimento
da sua proveniência diluída e esparsa, ou é no esquecimento crente da atividade de uma
razão autônoma? Na indecisão oscilante, a solução é seguir caminho. Mas qual?
Mas enquanto indeciso ele segue outro caminho que a cada
momento ameaça traí-lo, ora fazendo menção de se perder
enquanto senda, ora de interromper-se diante de uma touceira de
espinhos, como homem tem a si novamente nas próprias mãos,
quando os blocos de pedra se escalonam em terraços e marcas de
veículos impressos indicam uma casa de campo na
proximidade. (GS IV, 419).
No mergulho místico de uma participação sem referências a perda de si é iminente
e as touceiras de espinhos são várias. Ter-se ainda na mão como homem é o reconhecer de
que o discurso sobre início absoluto é esquecimento de que o mundo já sempre foi e de que
sempre se está no meio. Ver blocos de pedra que escalonam terraços e marcas de veículos
é o sinal da civilização, a qual se pertence e de que se participa, mas, também, que a
própria civilização é um modo de ser com as suas raízes no fundo da terra e dos tempos. O
305
eu, que se perde na diluição total para além da linguagem dos nomes ou no esquecimento
de uma razão que se intenta absolutamente auto-centrada, por fim encontra a sua
identificação da oscilação entre a proximidade e a distância. Ter-se ainda na mão como
homem significa, para o viajante, o reconhecimento dos rastros da cultura que o afeta. A
casa de campo na proximidade é a realização do viajante a andar a procura do
conhecimento dos nomes.
Nenhum som acusa a vizinhança dessas povoações. Em sua
periferia o silêncio do meio-dia parece duplicado. Mas agora
rareiam os campos para desbloquear a região para um segundo, um
terceiro caminho, e, enquanto tempo os muros e as eiras
esconderam-se atrás de cumes da terra ou de folhagem, no
abandono dos campos abre-se a encruzilhada que funda o meio.(GS
IV, 419).
Na menção do meio-dia como um momento especial Benjamin parece referir-se a
Nietzsche como o faz na imagem de pensamento Sombras curtas, onde finaliza dizendo
que o meio-dia é “a hora de Zaratustra, do pensador no ‘meio-dia da vida’, no ‘jardim de
verão’”. “Pois o conhecimento contorna as coisas com máximo rigor como o sol a pino”.
(GS IV, 428). É a hora em que o tempo parece parar e em que o mundo parece ter
alcançado a perfeição pelo fato de não estar atrás de algum alvo. Os objetos são vistos sem
as suas sombras, perfeitamente delineados, mas também o conhecimento como
participação no meio do mundo é perfeitamente delineado para não deixar sombra de
dúvida. Então se faz silêncio dos discursos delirantes de sistemas que a tudo pretendem
englobar e a paz reina no deixar acontecer de uma calmaria geral no meio-dia da vida. Na
oscilação de para entre diluição total e objetivação delirante faz-se a experiência do
meio da vida em plena contradição da linguagem, que indica participação constante no
mesmo instante em que objetiva. O que, porém, possibilita esse meio é a experiência.
Não se apresentam como calçadas e estradas postais, mas também
não como picadas e sendas, entretanto, eso lugar em que os
caminhos se encontram em campo aberto, nos quais desde séculos
agricultores e suas mulheres, crianças e rebanhos vêm andando
de campo em campo, de casa em casa, de pastagem em pastagem
e muito raramente acontecia que no mesmo dia não voltassem
para dormir sob o seu teto novamente.(GS V, 419).
As veredas que se apresentam não são mais trilhas de caça de animais, simples picadas e
sendas, mas caminhos muito trilhados. Apesar de fazerem parte da paisagem não pertencem
mais à natureza original, pois contam parte da história secular da atividade de seres humanos. E
306
assim são os caminhos da experiência, a qual indica o meio entre a perda da identidade
característica humana, diluindo-se completamente como uma das suas vozes, e a assunção da
fala humana como expressão tradutora numa seqüência de milênios de história. A efetividade de
experiência já havida não permite que o homem se desligue da natureza e da história e nem que se
dilua por completo a ponto de desistir da própria capacidade da recordação. Os caminhos da
experiência conservam o meio como ambiente entre a linguagem e a natureza como se
precisamente eles fossem o fundamento em que pólos opostos se unem, mas sem perder as suas
características, ou seja, sem prescindir da afirmação das suas diferenças. Nos caminhos da
experiência não a perda na mitificação da razão autônoma e nem o feitiço de uma imersão total
na natureza. Corresponde à idéia de experiência uma determinada unidade no tempo, uma
totalidade histórica em que a compreensão e a linguagem se dão. Neste sentido é que os
agricultores a caminho sempre voltam à casa, pois fazem parte da paisagem e da história dos seus
próprios caminhos muito experimentados. E é este também o sentido do meio-dia como o meio
dos tempos. O meio-dia sob o sol a pino indica o meio do tempo da história e o meio entre natureza
e homem.
A situação do viajante é também a do meio a partir da sua experiência na ilha, pois
primeiramente, como homem de razão acostumado com a proximidade dos objetos, sem entender a
linguagem dos nomes e separado da natureza, então atravessa pela distante sensação de vertigem de
perder a sua identidade numa saudade de união erótica em que lhe acontece a experiência da
unidade, que tudo liga e relaciona. Percebe, porém, a tempo que a união não elimina as diferenças:
há unidade entre o si mesmo e o mundo, mas, ao mesmo tempo, preservação de cada um dos pólos.
O chão aqui soa oco, o som com o qual ele responde ao passo faz
bem àquele que está a caminho. Com este som terra coloca a
solidão a seus pés. Quando chega a locais que lhe são agradáveis,
ele sabe que foi ela que os indicou; ela lhe destinou esta pedra
para assento, esta depressão como ninho para os seus
membros.(GS IV, 419).
O viajante chega assim à compreensão de que chão não é apenas uma metáfora,
mas fundamento que o carrega na união geral até onde consegue perceber. Quando antes
imaginava que unicamente as decisões próprias no estrito sentido racional conduziam-no
pelo caminho da vida, agora percebe uma diferença fundamental. As suas decisões
fazem parte de todos os caminhos no chão que o carrega. A unidade da natureza há muito o
esperou, notou e contou com ele. Toda a sua situação de vida não foi e não é apenas um
fragmento de espaço e tempo completamente isolado da movimentação que percebeu e
percebe ao derredor, na proximidade e na distância. Tem a nítida sensação necessária de
307
que a totalidade do ser tem em si inserido o todo do seu próprio significado e que deste
modo a solidão, que o acometia enquanto um eu preocupado com a fixação separada de si
e de objetos de todos os conhecimentos, não tem mais razão de ser. Inapreensível é esse
estado de coisas à razão do viajante com as suas aspirações de autonomia e fundamento
articulador, e mesmo esta compreensão lhe é concedida na mesma medida em que ele
desiste das suas investidas meramente intencionais. O som da terra oca lhe revela a
existência do infinito de possibilidades de ser no regaço de uma união que desde sempre o
carregou. O som da terra lhe é um aceno indicando locais agradáveis em que o
compartilhamento em sua compreensão é mais propício. É a natureza que reivindica ser
compreendida. Na condição do meio-dia da vida, a reunião de si mesmo no abrigo do ser
leva-o à condição de êxtase que se extroverte como cansaço, mas agora sem a vertigem do
afundamento na totalidade como quando em contato com a amendoeira e a figueira. O
recado do cansaço é o de que agora consegue oscilar até a perda do controle consciente do
seu corpo e continuar mecanicamente trajetos do seu caminho liberando e deixando
alongar-se ao derredor distante a fantasia que dele como que se desprendeu.
Mas ele já está cansado demais para se deter, e, enquanto perde o
domínio sobre os seus pés que o levam ligeiro demais, ele se
conta de como a sua fantasia dele se desprendeu e, escorada
contra aquela larga encosta que ao longe acompanha o seu
caminho, ela inicia a dispor dele com vontade própria. Ela
desloca rochedo e cumes? Ou ela os toca apenas como se fosse
um bafejo? Ela não deixa pedra sobre pedra ou deixa tudo como
era? (GS IV, 419).
A fantasia encarna a encosta ao longe e a encosta dele dispõe para resolver questões
da paisagem geral. Sujeito e objeto uniram-se num saber que lembra um desmaio da
vontade do eu carregado de intenções, cuja proveniência desconhece, festejam a unidade
do mundo não como ele é, mas como seria na situação da perfeição. Tanto o mundo factual
e efetivo como também o verdadeiro por antecipação são revelados ao viajante, agora
capaz de uma atenção abrangendo espaço geográfico, tempo histórico e experiência de
percurso de vida navegado. A história da procura por fundamentação pela instituição de
instâncias primeiras, além do ser que imediatamente é em expressão total, e o seqüente
isolamento frente a objetos de si mesmo absolutamente separados leva o viajante à
compreensão do desvio fundamental, da queda primeira, ou da falta original cometida e
sentida a cada segundo na contradição da linguagem entre o conhecimento dos nomes e a
sinalização instrumental das coisas. A compreensão do acontecimento da aspiração à
certificação do fundamento racional para a explicação de tudo por meio de juízos leva o
308
viajante a entender o juízo sobre si mesmo. E esta compreensão é força messiânica em si
mesma pelo aceno da origem enquanto sentimento de unidade que reivindica também o
pensamento e a palavra. A própria história do homem traz consigo a imagem da
consumação possível pelo seu reverso: onde ela é vista apenas como a efetivação da
vontade construtora e formadora de mundos intencionalmente planificados para os fins de
felicidade também administrada, a sua queda no antigo abismo aparece com nitidez, como
também a possibilidade de romper com a repetição se apresenta enquanto compreensão do
sentido expressivo das fundamentações fictícias ocorridas. No “Fragmento teológico-
político” a questão é colocada em termos de político-profano e teológico:
A ordem do profano deve ser erigida com base na idéia da
felicidade. A relação dessa ordem com o messiânico é um dos
ensinamentos essenciais da filosofia da história. E, precisamente,
a partir dela se determina uma concepção mística da história,
cujo problema permite ser exposto numa figura. Quando uma seta
designa o alvo no qual a dinamis do profano age, uma outra
indica a direção da intensidade messiânica, sem dúvida assim a
procura por felicidade da humanidade livre aspira distanciar-se
daquela direção messiânica; mas, como uma força por sua
direção é capaz de promover uma outra direcionada em caminho
contraposto, assim também a ordem profana do profano em
relação à vinda do reino messiânico. O profano, portanto,
certamente não é uma categoria do reino, mas uma categoria da
sua silenciosa aproximação, e, sem dúvida, uma das mais exatas.
(GS-II, 203).
A fantasia não deixa pedra sobre pedra ou deixa tudo como era? A fantasia é de
cunho compreensivo quando, voltada ao passado numa dimensão prática, forma o reverso
da história autônoma da razão alocando-a na unidade da expressão do ser. Do mesmo
modo a fantasia é de cunho epistêmico quando descobre a possível unidade além da prisão
férrea configurada na realidade do presente enquanto algum absoluto posto. Por intermédio
dela a constelação formada pode se abrir a novas possibilidades na relativização dos seus
fundamentos separados e esquecidos como expressão a ser descoberta. A fantasia deslinda-
se da subjetividade fantasmagórica e doentia por auto-referência crônica e se torna capaz
de acontecer captando a disformidade congênita de um mundo visto como mera elaboração
por fundamentação racional. Na relação erótica de se misturar com o mundo, formar com a
natureza uma unidade e acompanhar a oscilação até o êxtase da quase auto-diluição, libera-
se a fantasia do exílio da subjetividade fixamente centrada. A fantasia se escora na encosta
ao longe adivinhando possibilidades por si mesma, o que libera a existência das suas
309
limitações para aspirar também à unidade além de toda a consciência possível, à unidade
da verdade em expressão sempre parcial, ou seja, o inalcançável objeto de desejo de Eros,
conforme Platão. Mas essa espécie de diluição não destrói desertificando tudo, não cria
um mundo completamente novo a partir do nada, mas tangencia o verdadeiro que aí
sempre já estava, mas encoberto. A fantasia liberta o verdadeiro das formulações de
fundamento fixos e disformes da realidade parcial em relação ao todo. Quando concepções
de mundo se alocam teórica e praticamente enquanto realidade, a fantasia pode recolocá-
las na direção da sua verdadeira dimensão, isto é, para além das possibilidades parciais que
se fixaram como únicas no esquecimento do que exatamente as possibilita.
Entre os chassidistas uma sentença sobre o mundo vindouro,
que diz: tudo estará preparado como entre nós. Como a nossa
sala agora é, assim ela também será no mundo que virá; onde a
nossa criança agora dorme, ela também dormirá no mundo
vindouro. O que neste mundo trazemos sobre o corpo, nós também
estaremos vestindo no mundo que virá. Tudo será como aqui
apenas um pouco diferente. Assim o sustenta a fantasia. É apenas
um véu que ela estende sobre a distância. Tudo poderá
permanecer como está, mas o véu flutua e imperceptivelmente
deslocamento embaixo dele. (GS-I, 419).
O mesmo mundo pode ser visto de duas maneiras bem diversas. Uma maneira é a
realidade nua e crua como construção maquinal de acordo com uma configuração de
critérios que administram a compreensão na aplicação, no ajuizamento, na organização
ordenada de todos os fenômenos em termos de serventia ou não, e de utilidade atual. A
outra maneira é a percepção da fantasia que, vendo à distância como que através de um véu
formado de realidade, relativiza a redução do absoluto fixado para se compreender
enquanto expressão do inominado que exatamente enquanto expressão se nomeia. É apenas
um véu que a fantasia estende sobre a distância. A pretensão de fundamento, sempre apto à
construção de certezas para todas as divisões entre bem e mal, a vista desse véu se
transverte em expressão flutuante sobre o abismo em que as hipóteses construtivas podem
recordar os caminhos que já foram e, por isso, já há muito são.
Uma nova percepção, portanto, toma conta do viajante quando o encontro na
união do si mesmo e da natureza, mas com a adução da percepção de que a fantasia se
separa da consciência e se escora na encosta ao longe, tornando-se como que independente.
Aí já ocorre o desaparecimento da imagem pelo fato de que ela aproximou-se por demais e
se perdeu em nova objetividade. Pela proximidade demasiada da fantasia, a imagem se
310
desvanece ocultando novamente a imagem. Vê-se a imagem à distância como que através
do véu da realidade próxima objetivada. Algumas obras de Salvador Dali produzem
exatamente esse efeito: olhados de perto apresentam muitas figuras da realidade próxima
por vezes completamente desconexas entre si, mas, quando vistas à distância com olhar
disperso, fazem aparecer uma imagem, isto é, o seu pano de fundo subjacente como se
fosse a idéia que a tudo conjuga, tudo une, tudo relaciona. Na obra “Espanha” do mestre há
na proximidade objetiva primeiramente um cenário geral cinza-escuro com pessoas
incluídas, o qual a impressão de distância, mas, quando olhado à distância aparece em
proximidade distante a figura de uma mulher escorada num móvel. O mesmo efeito
proporciona um quadro seu em que aparece a figura de Cristo distante-próximo a englobar,
resumir e reunir, como se fosse a idéia geral, uma série de pequenos cenários próximos,
salientes e completamente disparatados entre si. Na proximidade o véu torna-se
intransparente pela positivação de cada coisa detalhada, indicando que a verdade não se
deixa captar como objeto do conhecimento. Pode-se compreender que o véu é a própria
realidade próxima objetivada de tal modo que o pano de fundo que a possibilita é visto
como efeito de visão de conjunto à distância e num reconhecimento em que o próprio
sujeito, que se julgava à parte, tem a possibilidade de se entender como parte da
emergência da imagem. Na imagem de pensamento “Perto demais” Benjamin elabora a
descrição do efeito de se ter chegado perto demais da imagem.
Em sonho na margem esquerda do Sena diante de Notre Dame. Lá
estava eu, mas nada ali havia que se parecesse com Notre Dame.
Uma construção de tijolos erguia-se apenas com os últimos
degraus do seu maciço acima de um alto revestimento de madeira.
Mas eu lá estava, dominado, mas justamente diante de Notre
Dame. E o que me dominava era saudade. Saudade justamente da
Paris na qual eu aqui no sonho me encontrava. De onde, portanto,
essa saudade? E de onde este seu objeto totalmente desfigurado,
irreconhecível? Em suma: no sonho eu dele me havia
aproximado demais. A inaudita saudade que aqui me sobreveio no
coração do que era almejado não era aquela que da distância
impele à imagem. Era a saudade feliz que ultrapassou o limiar
da imagem e da posse apenas ainda sabe da força do nome, do
qual vive o que é amado, se transforma, envelhece, rejuvenesce e,
sem imagem, é o refúgio de todas as imagens. (GS IV, 370).
A saudade neste caso o se satisfez com a percepção desejosa do seu objeto enquanto
imagem, mas quis ainda possuí-la e, exatamente por isso, promoveu o seu desaparecimento em
troca dos objetos desfigurados agora à sua frente. O que à distância é visível enquanto quadro
imagético, no qual o observador mesmo está incluído, não mais é reconhecível na proximidade
311
objetal. Mas a saudade, que no sonho mesmo assim permanece, faz ver a incompletude de uma
construção de tijolos para preservar a indicação da distância. O Eros nunca poderá alcançar o que
almeja e, por isso, a saudade inaudita permanece intensa, mesmo na posse do objeto e sua fixação
logo em frente. Mas, apesar de tudo, toda a significação da imagem migra para o nome. O teor
inteiro da imagem se dilui e se concentra ao mesmo tempo no nome sonoro enquanto expressão de
todo o percurso ocorrido. Mesmo não sendo mais imagem, o nome zela pelo velamento do que é
amado e nessa condição se conserva. Uma mesma palavra, portanto, pode aparecer como conceito,
mas também se metamorfosear em nome na compreensão ocorrente como recordação de imagem
em que sujeito e objeto aparecem unidos. O conceito de Notre Dame trata, como de costume, de
um objeto à vista de todos, mas a experiência do acontecimento da imagem do sonhador é
semelhante ao que o viajante ao sol também captou. O viajante também oscila entre objeto,
imagem e transfiguração aos nomes que lhe conservam a revelação.
É uma mudança e uma permuta; nada permanece e nada
desaparece. Dessa tecedura, porém, desprendem-se os nomes de
uma só vez, sem palavras eles penetram o caminheiro, e, enquanto
os seus lábios os formam, ele os reconhece. Eles emergem, e de
que necessita mais essa paisagem? (GS IV, 420).
O aparecimento dos nomes lembra uma permuta, uma mudança, uma tecedura, um
reconhecimento, uma emergência, em suma, uma imediação que mais parece doação que
se por revelação e em que o receptor está evidentemente implicado. Benjamin, porém,
tem outros modos de tematizar o mesmo. Logo no início da imagem de pensamento “San
Giminiano” diz:
Achar palavras para o que se tem diante dos olhos quão difícil
isso pode ser! Quando, porém, elas vêm, batem como pequenos
martelos contra o real até que tenham extraído dele a imagem
como de uma chapa de cobre. (GS I, 364).
Daí se depreende mais seguramente que não a mínima possibilidade de perceber
a imagem no sentido de reprodução de uma realidade à parte. Achar palavras sobre alguma
coisa existente como algo separado é diferente de achar palavras para algo em que o
observador é parte integrante do processo que acontece. A imagem não é algo nem que
pudesse servir de vocábulo para o real, nem ocupa o seu lugar e nem se coloca no lugar
dele. Não é também apenas a realidade separada que aí é elaborada ao modo da linguagem,
mas uma realidade trabalhada com os olhos de quem vê. Não é uma realidade objetiva
que estivesse à frente, mas algo irredutivelmente novo e dinâmico que surge e que repassa
por tradução essa carga ao nome de forma sonora. Com o exemplo do martelo é claro que
312
Benjamin não quer dizer que se trata de um esforço de algum eu manipulando instrumentos
num trabalho intencional para a produção competente de nomes. Na imediação da
dinâmica em descrição surgem simplesmente novos modos de percepção do derredor que
desvelam no mundo costumeiro objetivado um momento de imagem certamente sempre
presente e realizado no cotidiano, mas a respeito do qual os atores ainda nada atinaram.
Esse enigma que acompanha a realidade positivada só se pode descobrir à medida que “nós
o reencontramos no cotidiano graças a uma ótica dialética que reconhece o cotidiano como
impenetrável e o impenetrável como cotidiano” (GS II, 307).
No começo do caminho do viajante ao sol havia o seu desejo de alcançar aquele
saber não proposicional de que o camponês da ilha dispunha. Mas a sua estrutura de
compreensão não permitia tal saber, pois para tanto haveria de ter primeiramente a
experiência da reconciliação entre o eu e a natureza, da não separação entre espírito e
natureza, da relativização do si mesmo que se e como fundamento de toda a objetivação
para um saber positivado. Um saber dessa ordem é avesso ao conhecimento do
entendimento solitário, propondo em seu lugar o mundo da unidade, da criação em seu
estado original. No caminho dessa experiência o mundo das coisas objetivadas pela
atividade do entendimento é deixado de lado e o viajante descobre o mundo das imagens.
À medida que vão desaparecendo os limites de si mesmo e mundo, a sua percepção vai
mudando. No fim desse processo até a imagem desaparece e acontece a sua tradução em
forma de nomes em que as coisas participam dinamicamente na linguagem do viajante: a
partir da sua mudez enquanto imagem, elas agora fazem parte da sua linguagem sonora de
forma dinâmica. O costumeiro objeto meramente separado a frente do sujeito para ser
simplesmente por este manipulado não mais existe e, em seu lugar, há o que sensivelmente
aparece enquanto algo puramente significativo que na tradição da literatura teológica é
compreendida como a elocução do nome de Deus. Desse modo não se trata da significação
de coisas independentes que se produzem a partir de um material como que previamente
sempre existente ao modo de natureza morta, mas de um acontecer que configura a
experiência de uma relação superior de vida. Para tanto, porém, é necessária também a
duração, o tempo paralisado, motivo pelo qual o viajante no conhecimento dos nomes
somente retrospectivamente se conta do ocorrido. Retrospectivamente o viajante se
apercebe de todo um conjunto de vida em que estava e está imerso, o qual não se deixa
captar na sinalização continuada de objetos simplesmente. A experiência do nome é,
portanto, sempre histórica de um modo especial: ela suspende o acontecimento costumeiro
313
em seu fluxo objetivado impondo uma cesura à continuidade da experiência assim como é
normalmente concebida. A experiência de que agora se trata não é carregada da intenção
de transmitir saberes ao modo de dominação de dados, fatos e relações de causa e efeito,
mas impõe a paralisação da forma de saber em termos de adequação de palavra e objeto
oferecendo outro modo de compreensão em que até o pensamento suspende a sua dinâmica
normalmente instituída:
Não é movimentar o pensamento que é próprio ao pensar, mas,
igualmente, imobiliza-lo. Ali onde o pensamento se imobiliza
repentinamente em uma constelação saturada de tensões, ele
comunica a essa um choque que faz com que ele próprio se
cristalize em mônada.(GS I-2, 691).
Na situação de recordação não se pode pensar na contraposição kantiana entre
receptividade e espontaneidade, pois essa diferença se considera eliminada pelo fato de
que os nomes emergem da unidade para serem traduzidos em forma de palavras sonoras
que conservam sua força de instauração primordial. O viajante agora não se ocupa com
o nome de figos e amêndoas que perfazem as relações de vida do agricultor, mas é
arrebatado ao enlevo de visualizar os nomes relacionados com as conexões da sua própria
vida.
Em cada imensa distância adiante eles passam sem deixar um
rastro sequer. Nomes das ilhas que ao primeiro olhar elevaram-se
do mar como grupos de mármore, das escarpas, que tornam o
horizonte amolgado, das estrelas que no barco o surpreendiam
quando na prematura escuridão se põe de guarda. (GS IV, 420).
O viajante se apercebe da sua própria experiência, que nele acorda o desejo e a
saudade sempre comandados por Eros a lhe imprimir uma força peculiar: a força
imediatamente prática dos nomes em forma de recordação, a qual leva à antecipação do
futuro, pois por esse tipo de experiência o futuro é inegavelmente pautado por tal
recordação. O desejo na paralisação de tudo e a saudade do universal tangenciam o
incondicionado e o infinito unicamente capazes de superar o atavismo da prisão de uma
razão que se quer especializada na consecução de metas em grande parte ainda veladas em
sua razão última e suspeitamente certificadas na glorificação da instrumentação de tudo.
Após a recordação dos nomes junto com o silêncio das cigarras, da sede que passou
e do dia dissipado, o viajante aos poucos sai do seu estado de êxtase recordativo num
mundo da fantasia. Os sons que surgem, porém, agora são sons como se fossem notícias do
314
todo provindas das profundezas e de todos os lados em forma de chamados distantes: o
viajante ainda está no limiar da grande experiência. Como que acordando de um sonho
para o sonho da consciência, precisa de tempo para se orientar acusticamente até que, com
os sons, o eu recobra o domínio do corpo e da mente. No final e apesar de tudo ainda
permanece a oscilação entre lírios objetivos que florescem no canto da sebe de cactos e o
desejo e a saudade representados nas mulheres imensas e flutuantes.
O canto das cigarras emudeceu, a sede passou, o dia se dissipou.
Das profundezas sobem ruídos. Latido de cães, a queda de uma
pedra, ou um chamado distante? Enquanto o ouvinte ainda
procura distingui-lo, em seu interior reúne-se tom por tom a
penca de campânulas. Agora ela amadurece e intumesce em seu
sangue. Lírios florescem no canto da sebe de cactos. Ao longe, nos
campos entre oliveiras e amendoeiras, passa um carro, mas
silenciosamente, e quando as rodas desaparecem atrás da
folhagem, então mulheres gigantescas parecem flutuar imóveis
sobre a terra imóvel com o rosto voltado para ele.(GS IV, 420).
315
8. COMPLEMENTAÇÃO À CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM: “DOUTRINA
DO SEMELHANTE”
O texto Doutrina do semelhante foi escrito em 1933 e se constitui no último
trabalho de Benjamin diretamente ligado à questão da linguagem e que mereceu uma re-
elaboração ainda no mesmo ano, a qual leva o título Sobre a faculdade mimética. (GS II-1,
211-213). O artigo conserva os resultados básicos de A linguagem em geral e a linguagem
dos homens, mas com a complementação de algumas questões, principalmente pelo
conceito de semelhança. Numa carta a Gershom Scholem datada de 28.2.1933 Benjamin
explica que as preocupações sobre a questão da semelhança e o texto surgiram para
constituir uma reflexão teórica para a primeira parte da Infância berlinense por volta de
1900 (GS VII-1, 385), intitulada Lójias e que aborda o tema da recordação
O título do artigo Doutrina do semelhante causa espanto por si mesmo. Para um
filósofo como Benjamin, desde sempre considerado antidogmático, o uso do termo
doutrina o que pensar. Não é possível imaginar que o título expresse um dever ser com
base em algum dogma conhecido e estabelecido para a implementação de um comando em
forma de princípio a ser defendido ao modo de ordenamento de semelhanças. É necessário,
portanto, que desde o início não se entenda o termo doutrina no sentido de dogma. Trata-
se, no título, antes de tudo da verificação e indicação de que o homem desde sempre faz
uso da semelhança em sua fala e em sua compreensão.
O raciocínio em geral por semelhança está presente na forma com que o homem
apresenta a si mesmo e ao mundo que expressa em sua linguagem. A verificação de que
efetivamente o homem usa a forma da semelhança para o ordenamento do seu mundo e da
sua compreensão leva à curiosidade sobre a origem e a condição de possibilidade desta
prática. A curiosidade que surge direciona-se a um âmbito ainda oculto de cujas raízes
cresce e frutifica a árvore dos frutos da semelhança e da diferença no uso da linguagem. A
doutrina do semelhante remete, portanto, a um suposto que inevitavelmente comanda o
acontecimento da compreensão e da fala humana.
316
Uma circunscrição comandando processos e, ao mesmo tempo, oculta para a
própria compreensão, dá notícias da sua existência pela sua aplicação prática o que, por sua
vez, apresenta a dificuldade da sua descoberta. A doutrina caracteriza-se por ser um
suposto conhecido pela sua aplicabilidade no decorrer de toda a compreensão, mas um
pressuposto desconhecido no que tange a sua origem e a sua justificação. A dificuldade
que se apresenta é a do argumento circular, pois como pode a compreensão visualizar os
seus suportes a não ser por si mesma como compreensão ocorrente? É por essa razão que
logo na primeira frase do artigo é mencionada a dificuldade da compreensão do saber
oculto.
A compreensão que se enquanto aplicação em percepção por semelhanças
deve procurar lançar o seu olhar não para semelhanças existentes, mas para o âmbito de
reprodução dos processos que as possibilitam e que de alguma forma está oculto. O olhar
pode dirigir-se em primeiro lugar para a natureza, na qual é possível perceber o
engendramento de semelhanças pelo mimetismo com que os organismos procuram
confundir-se com membros de outra espécie por motivos de adaptação e de sobrevivência.
É o homem, porém, “que tem a suprema capacidade de produzir semelhanças”. (GS II-1,
104). A produção de semelhanças pelo homem no sentido ontogenético pode ser
identificada nas brincadeiras com que as crianças imitam pessoas em suas profissões, bem
como “moinhos de vento e trem”. (Idem). Por que fazem isso? Alguns indícios
filogenéticos na história e no tempo presente podem dar uma idéia: antigamente o
raciocínio por semelhanças ocorria com muita freqüência como experiência de comparação
entre o macrocosmo e o microcosmo. Hoje, de forma inconsciente, os homens são
determinados de inúmeras maneiras pela compreensão por semelhança, mas se dão
contas de alguns casos, como, por exemplo, entre os rostos das pessoas.
Além da inconsciência de agora condicionada pela naturalização que o processo
filogenético impõe, que contar também com a possível transformação dessa capacidade
de produção compreensiva por mimetismo, e até com o deslocamento da mesma de uma
área para outra, constituindo-se este mesmo deslocamento numa evolução bem
determinada. A capacidade de perceber correspondências mágicas entre os fenômenos
possivelmente sofreu uma metamorfose que a astrologia pode mostrar quando tenta pôr em
relação as constelações e a totalidade espiritual de um ser humano aninhando-o numa
totalidade cósmica. Rápido como o raio e no momento específico do nascimento de
317
alguém, o astrólogo percebe semelhanças entre as constelações e conjunções dos astros,
ligando deste modo tal percepção a uma dimensão temporal e relacionando-a com a vida
futura do recém-nascido. Mas o que antes na história era uma percepção sensível pela
visão do olho primitivo, agora se deslocou para uma semelhança não sensível, ou extra-
sensível, no modo de prognosticar do astrólogo, pelo fato de ele não mais conseguir
perceber sensivelmente a semelhança entre uma constelação e um ser humano. O zodíaco
tornou-se um cânone de percepções não sensíveis à semelhança da linguagem. Benjamin
chama à atenção para o fato de que “apesar da precisão de todos os seus instrumentos de
observação, o astrônomo neste caso fracassa”. (GS II-1, 207).
O astrônomo está referido às ciências empírico-analíticas em geral e em sua
atividade não pode valorizar uma impressão não sensível, pois trata de ordenar os
fenômenos da natureza exatamente pelas notas sensíveis dos objetos e fenômenos em geral
para que possam ser percebidos adequadamente, calculados em sua trajetória pela
matemática e relacionados ordenadamente pelos conceitos de causa e efeitos. Todos os
seus objetos são por ele considerados em sua existência separada da consciência, que
utiliza instrumentalmente a linguagem e o cálculo para a construção de uma representação
das movimentações exteriores. É como se tudo estivesse dividido em dois em que,
conforme Descartes, uma res cogitans analisa, observa, calcula uma res extensa, a qual,
por sua vez, fica à mercê de quaisquer manipulações para um determinado fim.
o astrólogo não pode estar referido à estrita questão científico-empírica, pois
elabora as suas soluções pela interpretação à base de esquemas que lhe fora transmitidos
como significação secular e os quais não se dispõe a reduzir a objetos para análise mais
acurada. O seu saber é instantâneo enquanto elocução de sentido sob o pano de fundo de
sistemas de semelhanças sensivelmente percebidas em algum ponto da história, mas que
agora se deslocam para a significação não sensível das palavras de diagnóstico e
prognóstico de acordo com a época do nascimento. A característica da elaboração
astrológica é a suposição de que o ser humano na totalidade das suas manifestações está no
seio da natureza como sua igual recebendo as suas influências num grande encontro do
universo e, portanto, numa situação de dependência em tudo o que individualmente é e
fará. Reportando-se a essa doutrina de semelhanças que uma vez eram percebidas como
marca sensível entre astros e nascimento, o astrônomo produz semelhanças em seu
discurso interpretativo.
318
O conceito de semelhanças não sensíveis refere-se, portanto, ao que na nossa
percepção sensível não mais existe em referência à relação entre uma constelação e uma
vida humana, mas que permaneceu deslocando-se para a linguagem. Um modelo que
sempre estamos a utilizar é precisamente a linguagem, pois a parte sensível do som das
palavras veicula a significação de semelhanças, sem que, quem sabe, tenhamos ainda a
capacidade de nos aperceber desse fato. É certo que a linguagem, “como é evidente para os
mais perspicazes, não é um sistema de signos convencional” (GS II-1, 207) e, por isso, não
pode ser considerada como mero instrumento intermediário entre o homem e a natureza,
como foi sobejamente acentuado em A linguagem em geral e a linguagem dos homens.
Para acentuar esse encontro producente de semelhanças em que o homem se aloca no seio
da natureza percebendo-a como sua igual, Benjamin chama à atenção para as teorias
onomatopéicas, mas, conforme diz, “em sua forma mais crua e mais primitiva” (Idem). A
chave para a compreensão de que todas as palavras e todas as línguas são onomatopéicas
deve identificada no desaparecimento dessa percepção de modo cruamente sensível e na
simultânea conservação dessas semelhanças por deslocamento esquecido na memória dos
tempos. Descartando a idéia de que a linguagem seja um sistema arbitrário de signos,
podemos perceber a intenção subjacente de todas as línguas diferentes de tornarem as
palavras semelhantes a algum objeto à frente. Ordenando-as em torno de um significado,
podemos perceber a intenção de cada uma das línguas em se tornar semelhante a ele, mas
agora não mais de modo sensível e, sim, em sua significação não-sensível.
De acordo com Benjamin, esse movimento intencional ver-se-ia também na relação
entre a fala e a escrita. Esta semelhança não-sensível é a mais diáfana, mas, mesmo assim,
por mais difícil que seja, deve manter-se a suposição da sua existência, pois em parte é
corroborada pelos indícios que a grafologia descobre, ao desvendar imagens e quebra-
cabeças que o inconsciente do autor deixa naquilo que escreve. “Ao lado da linguagem, a
escrita tornou-se, assim, um arquivo de semelhanças não-sensíveis, de correspondências
não-sensíveis” (GS II-1, 213). Esta é precisamente a característica mágica da linguagem,
pois indica a ligação imediata e profunda entre ela e a natureza a partir do que nomeia. A
contradição da linguagem pode ter o seu início exatamente nesse esquecimento do que
de magicamente semelhante entre palavra e coisa reduzindo a linguagem constantemente a
instrumento de comunicação. Uma vez havendo a contradição da linguagem feita pela
imbricação dessas duas dimensões, é possível pensar que o lado semiótico esteja hoje
representando indiretamente à dimensão mágica que alerta para o encontro de natureza e
319
homem pelo tornar-se semelhante. É por esse fato que a dimensão semiótica pode ser
considerada como carregando imediatamente consigo a dimensão mágica da linguagem,
sendo isso, porém, amiúde esquecido nas próprias teorias da linguagem, as quais propõem
desde o princípio a separação por representação, a divisão entre natureza e linguagem. A
concepção de Benjamin vai no sentido de compreender o semiótico carregando
internamente em si mesmo o lado esquecido, o lado mágico da ligação por semelhança,
isto é, a dimensão semiótica alienada em si mesma seria expressão do esquecimento da
dimensão mágica que em si sustenta.
Esse lado mágico - se assim se quiser - tanto da linguagem como
da escrita não acompanha de modo desconexo a outra dimensão,
ou seja, a semiótica. Pelo contrário, tudo o que é mimético na
linguagem é uma intenção fundada, que em geral pode
aparecer em algo estranho, precisamente a dimensão semiótica,
comunicativa da linguagem enquanto a sua base. (GS II-1, 208).
O que se reputa como pura dimensão semiótica, na verdade seria o funcionamento
do código de semelhanças esquecido, que na velocidade do relâmpago faz a junção de som
de palavra e coisa. O deslocamento e a velocidade do processo impede de percebê-lo
sensivelmente a ponto de muito tempo estar automatizado levando aos enganos sobre a
significação da própria linguagem. “O aluno o abecedário e o astrólogo o futuro nas
estrelas”. (GS II-1, 209). No astrólogo vislumbram-se ainda as duas dimensões
separadamente, mas no aluno é como se houvesse apenas a sinalização da escrita. A leitura
a partir dos astros, vísceras e acasos pode ter sido a forma de leitura em tempos ancestrais
e, por algumas mediações, como é o caso das runas em sua escrita cheia de mistério, o
antigo talento até clarividente da mimese, deslocou as suas funções para a linguagem numa
vagarosa evolução milenar. A linguagem, então, seria o meio no qual estão conservadas
estas capacidades de modo não-sensível. “Em outras palavras: escrita e linguagem são o
elemento a favor de quem a clarividência delegou as suas antigas forças”. (GS II-1, 209).
Instantaneamente, como num raio, as semelhanças das coisas hoje relampejam
formando a semelhança entre coisa e palavra, tanto na leitura como na escrita. A leitura
somente semiótica, denominada profana por Benjamin agora, deve dar-se conta da
dimensão mágica que em si carrega.
O talento de ver semelhanças é decorrente da ancestral necessidade de tornar-se
semelhante e de se comportar assim. Essa capacidade era extremamente desenvolvida em
320
relação ao pouco que nos resta hoje em nosso mundo perceptível sensivelmente, isto é,
perdemos a grande capacidade sensível de perceber semelhanças e, por deslocamento,
substituímos a mesma pela fala e pela escrita numa forma automatizada da linguagem dita
apenas semiótica.
8.1. Sobre a faculdade mimética
Nesse texto, Benjamin repete muito das frases e dos pensamentos, mas promovendo
algumas acentuações a mais em relação à Doutrina do semelhante.
Primeiramente refere-se ao mimetismo existente na natureza para logo em seguida
ressalvar que a maior capacidade em produzir semelhanças é a do homem. Inferimos logo
de início, portanto, que o homem não só percebe sensivelmente de modo passivo as
semelhanças ocorrentes na natureza, mas que ativamente nela influi produzindo
semelhanças, ou seja, o ser humano está profundamente relacionado à natureza com todas
as suas faculdades de percepção atentas às semelhanças que ela lhe participa, como
também ele ativamente interfere em seu curso nomeando semelhanças.
Esta capacidade, conforme Benjamin, tem uma história filogenética e ontogenética.
Pelo viés ontogenético os brinquedos das crianças são elucidativos, pois demonstram
naturalmente a faculdade mimética em seus brinquedos em que imitam seres humanos e
também artefatos da civilização, como moinho de vento e trem.
Que proveito, porém, teria isso? A resposta está no aspecto filogenético da questão.
Em primeiro lugar, a lei da semelhança em tempos de antanho era muito mais abrangente
regendo microcosmo e macrocosmo e as correspondências naturais serviam
constantemente de estimulantes para a própria repetição no homem. Ao longo do tempo,
porém, a força mimética do homem como também os objetos se transformaram, conforme
se pode perceber na função mimética das danças que se metamorfosearam ao sabor dos
tempos, a ponto de também a capacidade de reconhecer semelhanças se modificou
enfraquecendo-se no seu sentido original. Pouco resta de semelhanças, correspondências e
analogias na cultura de hoje. Mas não significaria isso uma transformação por mero
deslocamento? Pela mediação da astrologia, das danças e dos ritos religiosos chegamos à
linguagem que é o local para onde tudo se deslocou e ainda com o acréscimo de produzir
321
semelhanças, com a diferença de que tais semelhanças se tornaram não-sensíveis. A
linguagem de algum modo sempre esteve ligada a essa questão sem muita consciência
disso, o que nos indica a formação das palavras por onomatopéia. Benjamin repete os
argumentos e exemplos do artigo da Doutrina do semelhante, que são os das palavras de
diversas línguas que tentam assemelhar-se ao objeto em torno do qual se encontram, e da
grafologia com a sua capacidade de descobrir imagens do inconsciente do escritor.
Também a relação entre a dimensão de semelhança não-sensível com a dimensão semiótica
da linguagem é abordada, mas por outro exemplo:
Pelo contrário, todos os elementos miméticos da linguagem
podem apenas aparecer semelhantemente a uma chama numa
espécie de portador. Esse portador é o semiótico. Assim, a
conexão de sentido das palavras ou frases é o portador em que,
como um raio, as semelhanças aparecem. (GS II01, 213).
Como a dimensão semiótica não pode ser apenas um sistema de signos, mas deve
incluir a semelhança percebida como recado da natureza e ao mesmo tempo a capacidade
da mesma linguagem em produzir semelhanças, mesmo que esse viés seja sensível e esteja
esquecido como semelhança não-sensível, pode-se imaginar uma imbricação, ou até
amálgama, em que o primeiro a aparecer é o portador semiótico para deixar que o segundo,
a chama apareça como recordação, ou como aura, apesar de Benjamin nesse texto não
fazer esta identificação. “‘Ler o que nunca foi escrito’. Essa leitura é a mais antiga”. (GS II
-1, 213). A linguagem como a mais alta expressão do comportamento mimético é o mais
perfeito arquivo de semelhanças não-sensíveis.
Desse modo a linguagem seria o mais alto grau de
comportamento mimético e o mais perfeito arquivo da semelhança
não-sensível: um meio para o qual sem resto as antigas forças da
produção e da percepção mimética transmigraram até
conseguirem liquidar a percepção da magia.(GS II-1, 213).
Na linguagem falada e escrita é possível ouvir e ver de forma não-sensível toda a
sensibilidade havida desde sempre. Além de todos os aspectos de produção de
objetivações, a linguagem é também o local e a ocasião da recordação. A contradição da
linguagem retoma constantemente os seus direitos no surgir do esquecimento das duas
dimensões da linguagem, mas se aquieta contemplativamente quando emerge a recordação.
A chama da magia da linguagem possibilita o vislumbre das imagens que se tornaram
sonoras. O nome continua sendo uma transposição tradutora da linguagem muda das coisas
322
para a linguagem humana com a complementação do envolvimento direto de um encontro
em que ambos se identificam, é o mesmo, isto é, formam uma idéia que o encontro
configura. O acontecimento do encontro, porém, é sempre imponderável no afã da vida,
mas pode ser preparado e esperado na escuta silenciosa e atenta do dito e do dizer, pois ele
se dá precisamente na compreensão do homem desse acontecer.
Como havia sido a opinião expressa na “Origem do drama barroco”, na
recordação se torna possível perceber o nome das coisas, uma participação imediata, mas
inacessível ao entendimento objetivador. A percepção da participação se aloca e se
deposita na memória como que entrando pela porta dos fundos da consciência para aflorar
em determinado momento enquanto recordação. A recordação neste processo recebe a vida
vivida em imagens, precisamente o teor do que já foi elaborado e que no momento presente
se reveste de um imenso significado.
Assim os cortes no fundo de um prato de estanho narram a
história de todas as refeições em que esteve presente, e do mesmo
modo a forma da cada região contém, a formação das dunas e
rochedos, com escrita natural a história da terra; cada seixo
arredondado que o oceano expele, ela iria narrar a uma alma,
que nele estaria tão acorrentada como a nossa no nosso cérebro.
Diz-se que consta em Lichtenberg, Escritos I p.223.
Certo é que a infância assim nos acorrenta às coisas. Sim, talvez
ela atravessa o mundo das coisas em estações de uma viajem, de
cujo tamanho não temos nem idéia. Não poderia ser que ela inicia
pelo mais distante? (GS VII, 792).
Alma e cérebro acorrentados dão a medida da compreensão de Benjamin, que ele
corrobora na sua citação, de que mundo e o eu, ou o si mesmo permanecem unidos. A
recordação da experiência da mais tenra infância põe diante dos olhos do homem a
percepção da sua mútua dependência. Essa compreensão é também a concepção
fundamental da experiência que traz à luz uma unidade relacional superior à mera
separação de sujeito e objeto, pois as coisas na recordação formam uma condição de teor
inteligível que não pode ser atribuído à atividade produtora do sujeito da consciência. A
infância é a vida que no presente se oculta de modo fragmentado deixando rastros na
memória. A citação de Lichtenberg tem o sentido de atribuir o teor da vida às imagens em
recordação, pois na sua imediação não se constituem como apenas metáforas, mas falam
por si mesmas na linguagem que as reconhece. A própria linguagem traz consigo as coisas
de forma transformada: precisamente em linguagem humana, que não é instrumento, mas
323
nova participação no todo que tudo supõe. Imagens de experiências de unidade
recordadas transformam-se, portanto, em linguagem sonora com um significado não
primeiramente comprometido com proposições de objetivação para separação de sujeito e
objeto. Trata-se da recordação de se estar acorrentado às coisas como a alma está
acorrentada ao cérebro: é a faculdade de se tornar semelhante. O saber oculto, que o
semelhante abriga, igualmente não e acessível ao simples entendimento intencionalmente
articulador, pois ele indica precisamente o saber oculto que se desoculta pelo clarão do
relâmpago da recordação ligando presente e passado distante, mas contido no atual. Por
isso é que Benjamin afirma que “trata-se, porém, de chegar a tal conhecimento menos pela
prova de semelhanças encontradas, mas mais pela reconstituição de processos, que
produzem tais semelhanças”. (II-1, 204). A semelhança é assim uma força objetiva que na
sensibilidade é percebida de modo imediato e que se transfere, preservando-se, como
visto, na linguagem de maneira não sensível. Sendo uma força objetiva que envolve o
sujeito e o objeto, também por isso o encontro na semelhança não pode ser atribuído a uma
consciência que a tivesse ao seu dispor na linguagem. A indicação da contradição da
linguagem novamente se faz ver sob este aspecto, ou seja, de que a linguagem em sua
magia mimética liga-se ao nome, e o seu lado semiótico à objetivação separada. Poder-se-
ia perguntar sobre como se a tradução do nome elaborado nas coisas para a linguagem
dos homens, isto é, sobre como se dá a percepção da linguagem das coisas. A resposta
seria exatamente a mesma de sempre, ou seja, de que nessa questão fundamental não se
trata de consciência que explicasse, mas precisamente de uma faculdade que, além de ser
fática, é a suposição da unidade primordial, que tanto se impõe pela impossibilidade de
fundamentação por causa e efeito, quanto pelo acontecer sempre emergente de uma
totalidade que assim se expressa e que se dá no vislumbre da recordação fazendo-se sonora
na linguagem.
Na semelhança é a totalidade da vida que de fato se mostra, a unidade do eu com o
mundo, a que a pretensão de objetivação está na contramão. A curiosa pretensão
costumeira de objetivar a semelhança forçada no rito das fotografias de documentação de
idade produz um sentimento de agonia, estranheza e mal-estar:
O talento que possuímos de enxergar semelhanças nada mais é do
que um rudimento fraco da antiga e poderosa coação de se tornar
semelhante e se comportar como tal. Ainda os nossos pais a
exerciam sobre nós. Nunca de forma tão penosa como junto ao
fotógrafo. (GS VII-2, 793).
324
Forçar a semelhança programaticamente produz precisamente a sensação contrária
da unidade com o derredor. Mesmo assim, porém, uma fotografia tirada a contragosto na
infância possibilita a recordação de deslocamento ou até desfiguração a que se estava
sendo empurrado em direção da vida adulta e do esquecimento. O teor da vida vivida
permanece de qualquer maneira na fotografia pela recordação de quem a vê, trazendo à
memória a unidade de vida que em grande parte se perdeu. A recordação não é, pois, um
ato intencional e voluntário, mas depende de novo das correspondências que se formaram
entre o presente e o passado, pois só agora no presente o adulto compreende todo o
significado que as coisas do passado lhe confiaram participando ativamente da sua vida.
Na recordação, porém, as coisas estão em forma de linguagem e não mais como eram em si
mesmas. Em Escavar e lembrar de Imagens de pensamento Benjamin uma idéia da
relação entre recordação e linguagem:
A linguagem inequivocamente estabeleceu que a memória não é
um instrumento para a averiguação do que passou, mas antes um
medium. Ela é o médium do vivido como a terra é o médium em
que as velhas cidades se encontram soterradas. Quem procura
aproximar-se do seu próprio passado soterrado, deve proceder
como um homem que cava. Antes de tudo não deve recear de
novamente sempre voltar para o mesmo estado das coisas
espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o
solo. Pois ‘estados de coisa’ nada mais são além de camadas que,
pela cuidadosa pesquisa, entregam [extraditam] aquilo que
recompensa a escavação. A saber, as imagens que desprendidas e
soltas de todas as conexões mais primitivas, encontram-se como
preciosidades nos recintos austeros da nossa compreensão
posterior como torsos na galeria do colecionador. E certamente
é útil proceder na escavação de acordo com planos. Mas mesmo
assim é imprescindível o corte da pá cuidadoso e tateante na terra
escura. E logra a si mesmo quanto ao melhor aquele que apenas
faz o inventário dos achados e não consegue indicar o local exato
no solo de hoje, no qual ele conserva o antigo. Assim verdadeiras
recordações devem proceder muito menos informativamente do
que indicar exatamente o lugar em que o pesquisador delas se
apoderou. No sentido rigorosamente épico e rapsódico, a
recordação deve dar ao mesmo tempo uma imagem daquele que
se recorda, como um bom relato arqueológico não só deve indicar
as camadas, das quais os seus objetos descobertos provêm, mas
antes de tudo aquelas que era necessário atravessar antes. (GS
IV-1, 400).
Na citação Benjamin novamente indica as duas dimensões da contradição da
linguagem. Estados de coisa, fatos em geral, são conteúdos de conhecimento objetiváveis
325
que aquele que se lembra ainda pode manter como objetos como se fossem externos num
sentido proposicional. Mas uma outra forma de saber ligada à linguagem que é
exatamente o tesouro da escavação e que não contém conhecimentos objetiváveis. Esse
saber não podendo ser transmitido pela linguagem de modo proposicional está, contudo,
nela oculto. Os objetos lembrados estão agora no meio da linguagem, mas não no estatuto
de objetos e, sim, no modo de construções significativas que são os nomes. O
comportamento mimético primeiramente se apresenta como fenômeno na criança, a qual
percebe a sua imediação na unidade de si mesma e todas as coisas. Posteriormente essa
experiência de semelhança é transformada para aflorar no médium da linguagem enquanto
saber não proposicional em forma de recordação. A experiência de semelhanças que se deu
e que permanece indelével, mas oculta sob as camadas de sentido já articulado ao modo de
proposição, só pode aparecer indiretamente à consciência e ao arrepio das suas intenções e,
como vimos, “A sua percepção em todo o caso está relacionada a uma relampejar. Ela
passa furtivamente, e talvez possa ser recuperada, mas não pode propriamente ser captada
como outras percepções”. (GS II-1, 206). Bem mais tarde, nos apontamentos para o seu
trabalho sobre as passagens da cidade de Paris Benjamin assim se expressa, demonstrando
que a contradição da linguagem aflora em cada uma das suas abordagens:
O que diferencia as imagens das ‘essências’ da fenomenologia é o
seu índice histórico. (Heidegger procura inutilmente salvar de
forma abstrata a história para a fenomenologia por meio da
‘historicidade’). Estas imagens devem ser absolutamente separadas
das categorias “científico-espirituais”, do assim chamado habitus,
do estilo, etc. É que o índice histórico das imagens não apenas diz
que elas pertencem a uma determinada época, mas antes de tudo ele
diz que elas apenas num determinado tempo chegam à legibilidade.
E, com efeito, esse chegar “à legibilidade” é um determinado ponto
crítico do movimento em seu interior. Todo o presente é
determinado por meio daquelas imagens que com ele são
sincrônicas: todo agora é o agora de uma determinada
reconhecibilidade. Nele a verdade está carregada de tempo a ponto
de ruptura. (Este rompimento, nada além, é a morte da intentio,
portanto, a morte que coincide com o nascimento do genuíno tempo
histórico, o tempo da verdade). Não é assim que o que passou lance
a sua luz sobre o atual, ou o atual lance a sua luz sobre o que
passou, mas imagem é aquilo em que o sido reúne-se qual
relâmpago com o agora numa constelação. Em outras palavras:
imagem é a dialética em repouso. Pois, enquanto a relação do
presente com o passado é puramente temporal, a relação do sido
com o agora é dialética: não de natureza temporal, mas imagética.
Apenas imagens dialéticas são genuinamente históricas, isto é, não
imagens arcaicas. A imagem lida, isto quer dizer: a imagem no
agora da reconhecibilidade traz no mais alto grau o carimbo do
326
momento crítico, perigoso, que está na base de todo o ler. (GS V-1,
577).
Não é assim que aquilo que passou jogue a sua luz sobre o presente
ou que o presente jogue a sua luz sobre o que passou, mas imagem é
aquilo em que o que passou se reúne com o agora, como um raio,
numa constelação. Em outras palavras: Imagem é a dialética no
repouso. Pois enquanto a relação do presente com o passado é
puramente temporal, continuado, a relação daquilo que foi com o
agora é dialética: não é percurso, mas imagem, de modo brusco.-
Apenas imagens dialéticas são autênticas (isto é, não arcaicas)
imagens, e o lugar em que são encontradas é a linguagem. (GS V-1,
576-577).
327
9. A CONTRADIÇÃO DA LINGUAGEM EM APLICAÇÃO: FRANZ KAFKA.
O presente estudo trata de Franz Kafka, artigo em que Walter Benjamin procura
identificar no texto do escritor o pano de fundo da contradição da linguagem. O artigo
sobre Franz Kafka foi escrito entre maio e junho de 1934 e encontra-se em GS, II-2, 409-
438.
Potemkin. O que poderia significar a narrativa de Benjamin sobre o primeiro
ministro da Rússia, Potemkin, que sofria de depressões tão graves a ponto de não
despachar por longos períodos para o desespero dos outros funcionários do governo?
Chuvalkin, um funcionário subalterno, consegue que Potemkin assine em gestos absortos e
maquinais a totalidade dos papéis, mas, para o desespero de todos, verificam depois todos
que Potemkin assinara trocando o seu nome pelo do subordinado Chuvalkin.
No início, à primeira leitura, a narrativa parece não render sentido algum. Mas
uma possibilidade quando se leva em conta o conjunto do texto. Potemkin é o protótipo do
anão teológico a sustentar uma imensa máquina administrativa, ele é todo poderoso
funcionário e guardião dos critérios dos deuses, é símbolo e fundamento da movimentação
das aplicações pela maquinaria que determina de modo basilar a compreensão existente e o
ordenamento da vida. Ele é a figura que, como parte do fundamento responsável pela
aplicação e justificação da ordem geral, por vezes entra em depressão e, então, como
resultado disso, deixa de despachar suspendendo a sua função de critério e justificativa
para toda a processualidade social repetitiva e rotineira. Na sua situação de depressão e
melancolia, em que se pergunta pelas condições, sentido e razão de ser da máquina,
Potemkin sabe perceber muito bem que a totalidade funciona com o apoio das suas partes,
estas representadas por todos os outros funcionários que entendem a crise do chefe no
comando e do todo com ele comprometido. Ele também sabe de Chuvalkin que este ainda
permanece na continuidade do costume e do uso do critério de sempre, exigindo que o
mesmo continue a funcionar normalmente. Chuvalkin é daqueles que não chega nem a
328
lembrar da possibilidade da pergunta por justificação e validade do existente, e não
consegue entender o acontecimento da dúvida sobre os critérios com que a máquina
administrativa, da qual é parte integrante, costumeiramente funciona. Para ele a máquina é
a mesma de todos, e quem assina os despachos que direcionam os processos práticos e
compreensivos deve fazê-lo necessariamente de acordo com o costume. Nem de longe
Chuvalkin vislumbra qualquer dúvida assim como Potemkin a sofre. Em sua ingenuidade
natural, ele exige que o critério da hierarquia seja preservado e cumprido sem qualquer
hesitação mesmo nas brumas de uma melancolia depressiva, a qual põe em dúvida o
sistema que assegura a cada um a sua função social.
Assinando o nome de Chuvalkin, Potemkin responsabiliza-o pela crença no
fundamento que ele mesmo representa. Potemkin uma lição a todos, mesmo aos outros
funcionários que em ansiedade aguardam e depois se desesperam com a troca de nomes. E
nisso Potemkin tem razão, pois os fundamentos de qualquer crença compreensiva em
funcionamento prático são postos pelos que por eles agem em aplicações funcionais
diversas. A objetivação original e doutrinária pela entronização da divindade justificadora
é requerida pela totalidade dos funcionários mesmo que entendendo a crise da sua
justificação e, muito mais por Shuvalkin, que continua na situação constrangedora de uma
positivação ingênua, sem sequer imaginar que possa haver dúvidas quanto à sua crença.
Potemkin, na narrativa, a sua lição a todos assinando os papéis com o nome de
Chuvalkin e, com isso, identificando-se com ele, pois no fundo ele sabe que ambos são o
mesmo na perspectiva do estado e na dimensão da dúvida e da reminiscência quanto à
precariedade da justificação da máquina em funcionamento, isto é, de tudo o que está a
acontecer, mas que apenas na efetividade objetivada da contradição da linguagem não
podem trocar de funções. A máquina em posição de exercício aplicativo, que todos são
enquanto compreensão concreta, não desiste da sua objetividade funcional. A precariedade
da justificação do sistema mostra-se quando as convicções são abaladas pela pergunta
sobre o sentido da sua legitimidade, validade e razão de ser.
Na narrativa, portanto, Potemkin como primeiro ministro encarna a imagem do
fundamento para a justificação de toda a compreensão administrativa do reino
compreensivo. Se aquele que representa o fundamento entra em depressão, toda a
maquinaria administradora da vida também pára. A crise do fundamento afeta a todos os
que de algum modo estão envolvidos como funcionários atentos à máquina que despende
329
vida organizada administrativamente, menos alguns incautos, estes por sua vez confiantes
na eternidade da eficiência da imagem decisiva subjacente.
Benjamin explica: “O zeloso Chuvalkin, para quem tudo parece tão fácil e que
acaba voltando de mãos vazias é K., de Kafka”. (GS II-2, 410). Em última análise entende
que Kafka pode ser identificado com Chuvalkin, porém, enquanto alguém que percebe ser
administrado e comandado por seres todo poderosos, instalados nos sótãos da
compreensão, juízes invisíveis de sistemas encastelados que por vezes parecem afundar
quando descobertos, mas que a toda hora podem ressurgir na plenitude do seu poder. A
vida, bem como todas as coisas na expressão de sua organização funcional noticiam a
ordem imposta desde a distância dos tempos de esquecimento. Tais seres parecem estar
constantemente cansados pelo trabalho de sustentação a que estão obrigados, isto é, a
sustentação do cotidiano em todas as suas circunvoluções de repetição possível. Eles estão
presentes nas palavras e nos gestos mais ordinários do dia a dia, os quais, por sua vez, tem-
nos por base incorporada ao seu movimento e geralmente invisível por falta de atenção. É
para a compreensão desses dados que Benjamin relata a opinião de Lukács, do qual afirma
que pensa em períodos históricos: “para construir hoje uma mesa decente é preciso dispor
de gênio arquitetônico de um Miguel Ângelo”. (GS II-2, 410). De acordo com a
sensibilidade de hoje, uma mesa exige a expressão da positivação estética dos gênios do
passado que assim nela estão presentes. Em vez de calcular apenas períodos históricos
como Lukács, Kafka contaria com a presença de períodos cósmicos: “Caiando um pedaço
de parede, o homem precisa pôr em movimento períodos cósmicos”. (GS II-2, 410). Isso
significa que em qualquer gesto, mesmo na inconsciência de um agora efetivo, há o
comprometimento com critérios, deuses, mitos e formas ancestrais que reivindicam a sua
sobrevida eternizando-se no mascaramento das repetições concretas do que vem a ser
considerada a realidade positiva.
Lukács pensa em apenas períodos históricos, porque está referido ao regime de
explicação pelas categorias de causa e efeito para a compreensão competente e normal de
uma história linear em processo, ou ainda, comprometido com justificações para o acerto
do dizer teórico por meio da produção de evidências de acordo com pressupostos
esquecidos, mas que, sem dúvida, são elementos de relação da totalidade que supõe,
totalidade objetivada por discurso proposicional. Kafka, por sua vez, pensa em períodos
cósmicos, porque torna presente, justapõe, contrapõe e põe em seqüência princípios
330
arcaicos embutidos na linguagem e nos gestos contemporâneos. Mas esses princípios não
estão embutidos como algo a mais, mas ele os como comandos em ação na
fragmentação multifacetada dos comportamentos atuais ativados em compreensão pela
linguagem que a tudo carrega. A racionalização apenas escamoteia arcaísmos, que no sabor
do envolvimento com a luta pela conservação de posições atuais, são esquecidos. A própria
luta é esquecida pelo fato de que é justificada pelo processo racionalizado em que o mero
aspecto teleológico à procura do sucesso na implementação prevalece, mesmo quando se
apresentam razões subjacentes e ordenadoras primordiais intentando a sua negação. As
razões teleológicas dirigidas a um futuro distante e apenas confessadas superficialmente,
por sua vez, escamoteiam seu comprometimento imediato com causas que as acompanham
como arcaísmos, ou são representações e disfarces dos mesmos.
Os pais são os representantes presentes mais imediatos das mencionadas forças
cósmicas e arcaicas em ação concreta, e precisamente essa proximidade dificulta a
identificação pela naturalidade com que as suas determinações se apresentam na rede
tecida da compreensão geral no uso rotineiro. São terrivelmente eficientes.
Benjamin chama à atenção para o relato de Kafka sobre o gesto do filho ao querer
cobrir o pai na cama com a coberta no intuito de o tranqüilizar. O pai, completamente
possesso, não aceita de modo algum esse gesto condenando o filho ao afogamento. O pai
repele com a coberta o fardo do mundo.
Como se “repele o fardo do mundo?” (GS II-2, 411). Repelindo o fardo das
cobertas com que o filho o quer proteger. Com a proteção, o pai entende que o recado do
filho é o de que todo o esquema, o sistema e tudo o que foi, é agora apenas parte do
passado irreversível, pertence à antiga geração do pai que é agora objetivado e identificado
exatamente como parte de toda a obra esquemática e sistematizada. O filho impinge
responsabilidade ao pai por tudo o que foi dito e feito como se ele, como filho, pudesse
livremente objetivar separando a sua própria pessoa da construção compreensiva que está a
elaborar. O pai percebe que deste modo o filho quer liquidá-lo como influência essencial e
continuada de si mesmo para todo o sempre numa objetivação historicista. O mundo é o
fardo da compreensão objetivada e tal fardo do mundo assim percebido, explicado e
repassado é a coberta, a cobertura velada que o pai não quer aceitar. O filho, ao cobrir o
pai, tenta na objetivação afastar e eliminar a influência do pai, o mundo do pai, a genética
cultural milenar. Mas não é possível cobrir, renegar, reprimir de todo o pai, pois ele sempre
331
é uma força na compreensão fora do alcance do seu poder de a eliminar. O filho nele deve
perceber-se afogado, como, aliás, na narrativa de Kafka o filho realmente corre em pânico
após a reprimenda e se afoga, curiosamente saltando da ponte, local sempre aludido como
oferta simbólica de ligação entre margens separadas e limites interpostos.
“O pai é a figura que pune”. (GS II-2, 412) e tal afirmação indica as diretrizes
implantadas na consciência do filho e que inevitavelmente o determinam. O pai é a
sinalização da totalidade da compreensão do filho. O filho, conforme diz o pai, é inocente,
mas a verdade mais profunda é que ele se constitui num ser diabólico que constantemente
procura instituir a alternativa de si pela objetivação do passado, seja de que modo for. O
pai pune pelo fato de praticar o mesmo que quer negar ao filho: a separação de vida e obra.
“A culpa os atrai” (GS II-2, 412), ou seja, os funcionários da justiça e os pais nunca
permitem a separação que os filhos procuram fazer quanto ao processo proposicional
intentando indicação fora da linguagem e do acontecer. As rotas já estão predeterminadas e
a navegação por desvios em caminhos de fuga é proibida. Não é possível a separação
unicamente objetiva de vida e obra, pois ambas estão vinculadas como expressão mútua
como no caso da linguagem: a objetivação não pode jamais chegar ao estatuto de
independência do seu próprio acontecer.
O pai produz a objetivação de si no filho procurando afogá-lo por identidade
absoluta, por extensão, por formação de cópia. No exemplo clássico da narrativa de
Gênesis também entre Abraão e Isaak períodos cósmicos entram em choque. O normal
seria a morte de Isaak em sacrifício ao deus da objetivação identificante, que a
construção objetiva de Abraão é seu filho Isaak que assim seria anulado em sua maldade
de edificar a alternativa objetiva de si. Abraão, em vez disso, anulou a sua imagem
objetivada como construção, ou seja, a compreensão da posse como possibilidade, ou
ainda, a separação do filho como simples obra objetivada e não acontecimento de si
mesmo.
A culpa os atrai, porque ninguém melhor do que eles conhece a culpa da
objetivação. Matar a imagem do carneiro em si mesmo num sacrifício em favor da vida do
filho que expressa o seu próprio acontecer é para muito poucos. O sistema vigente
patriarcal afoga, mata, e queima milhares de filhos culpados em todos os acontecimentos
tendentes a inovações sem a descoberta do pai: pai descoberto é, por sua vez, pai posto e
indiciado como a própria água em que o filho se percebe afogado. Pai em processo de
332
cobertura é sistema religioso em vigência de solidificação sem a abertura para o choque
inevitável e o pressentimento do sacrifício sempre iminente. O filho que consegue encobrir
o pai para acalmá-lo, sem que este se revolte, esa instituí-lo à socapa erigindo-o como
determinante em todos os seus gestos de vida. O filho que consegue cobrir o pai
objetivando-o não pode ouvir a revolta do mesmo descobrindo-se para a sua própria
descoberta de, exatamente, filho a se afogar no pântano da tradição.
Como Abrãao substitui a morte do que considera a sua construção objetivada, que é
seu filho, pelo carneiro, para que Isaak seja compreendido como expressão inevitável de si,
assim o pai de Kafka revolta-se com o gesto de objetivação encobridora do filho fazendo
com que entenda que com isso seria precisamente sacrificado na inconsciência do processo
de que é vítima.
O que resta? Resta o rito da liquidação da separação entre agente e objetivação. O
carneiro é a imagem do poder incondicional e inevitável que se estabelece na relação entre
pai e filho, entre homem e tradição. De qualquer modo “O pai sobrevive às custas do filho
como um parasita”. (GS II-2, 412). “Nunca os filhos viram o local da luta surda que os
filhos encetaram contra os pais”. (GS, II-1, 91). Não como desligar o acontecer da
reivindicação dos ancestrais nos filhos de agora, conforme Benjamin também explica na II
Tese de Sobre o conceito de história (GS I-2, 691):
“Um dos traços mais surpreendentes da alma humana, ao lado de
tanto egoísmo nos detalhes, é a inapetência de todo e qualquer
presente relativamente a seu futuro”. Essa reflexão de Lotze nos
leva a perceber isto: a imagem de felicidade que acalentamos é
inteiramente marcada pelo tempo ao qual nos remeteu
inapelavelmente o curso da nossa própria existência. A felicidade
que nos poderia apetecer existe apenas na atmosfera que
respiramos antes, junto a pessoas com quem poderíamos ter
falado, a mulheres que se poderiam ter doado a nós.Em outras
palavras, na imagem da felicidade vibras, inseparável dela, a
representação da libertação. Dá-se o mesmo com a concepção de
passado que a História constitui. O passado leva consigo um
indicador que o faz referir-se à libertação. Não somos nós
bafejados por um sopro do ar que envolvia os antigos? Não soa
nas vozes a que damos ouvidos o eco dos agora emudecidos?
Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que não chegaram a
conhecer? Se assim é, um compromisso tácito entre as
gerações passadas e a nossa geração. Então, fomos esperados na
Terra; então, foi-nos atribuída, como a cada uma das gerações
anteriores, uma débil força messiânica, força essa que o passado
reivindica. Não é fácil desembaraçar-se dessa reivindicação. O
materialista histórico sabe disso.
333
O passado acompanha-os passo a passo com todos os seus rastros que aqui e ali
reconhecem e então percebem que o são. um constante processo de pendência e queda
no que se denomina pecado original como positivação desmembrada da obra que o homem
é quando pendura partes dela em cabides fantasmáticos que lhe parecem sustentar a ilusão
de uma separação objetiva pela contradição da linguagem, além de espelharem o
esquecimento da ocorrência que está a ser. Pecado, culpa, castigo e acusação formam o
círculo de um processo sempre pendente no âmbito do esquecimento da contradição da
linguagem.
O mesmo raciocínio se desloca para a questão do pai como funcionário
representante de deuses e fundamentos desconhecidos. O pai é primeiramente semelhante a
Potemkin que é capaz de se ver representado na assinatura de Chuvalkin, e este, por sua
vez, é semelhante ao filho que permanece no sistema tentando encobertar a verdadeira
tarefa de Potemkin. De forma alguma Chuvalkin deixará de cumprir a sua função social
determinada muito tempo: exigirá que a máquina funcione conforme o desde sempre
combinado, para o que é necessário o encobrimento. Potemkin em sua depressão o
recado inverso, isto é, de que sempre Chuvalkin fará parte da máquina não se deixando
nunca cobrir de todo com o manto da objetivação: a máquina é enquanto atividade de
relação da totalidade dos que nela são, crêem e assim compreendem.
A administração e a família têm contatos múltiplos. Trata-se das decisões numa
administração nesses períodos cósmicos, nessas paragens que nunca desaparecem. As
decisões são tímidas, isto é, nunca são compreensões com movimentos bruscos capazes de
interferir no processo, talvez até interrompendo-o. As decisões são burocratizadas e
prestam-se a tudo como as moças devassas descritas em O castelo de Kafka. Figuram o
leque de possibilidades previstas na própria burocracia milenar, que inclui o envolvimento
sentimental e sexual, a sua construção e posterior funcionamento. As decisões cósmicas
envolvendo milênios são encontradas a todo o instante em seu caminho. Em vão tenta
salvar-se. No castelo as prostitutas não são belas, pois desde sempre elas fazem o jogo do
sistema adaptando-se a qualquer inovação programada em termos de objetivação: elas são
o cotidiano costumeiro articulado numa linguagem em uso. Ao contrário disso, belos são
sempre os acusados. Os acusados são sempre aqueles que querem desvendar e com isso
interromper o sistema em seu fluxo dando notícias de possibilidades além dele e, assim,
pondo em perigo os esteios da totalidade reduzida em que o próprio sistema se
334
fundamenta. “Só pode ser o processo movido contra eles, que de algum modo adere ao seu
corpo”. (GS, II-2, 413). Os acusados são sempre simultaneamente acusadores, pois não se
adaptam à redução de vida imposta e, assim, são também arautos da beleza que é
precisamente a sua verdade em ação e que advém dando notícias de mais além do que a
mera repetição que o cotidiano impõe. Acusados por suas ações, eles no fundo perguntam
por fundamentos distanciando-se do automatismo com que os mesmos funcionam
praticamente e se indignam, são outsider, diferentes de uma massa obedecendo a
comandos gerados por critérios que desconhece.
Quem alguma vez vislumbrou um mundo além da transparente administração geral
não mais consegue voltar impunemente ao imediato do exercício de aplicação das ações
burocratizadas, pois a mudança é fatal. A visão dos objetos relacionados desmantela-se
espalhando os mesmos pelo chão e a emergência da melancolia não permite qualquer
esperança em felicidade programada, mas apenas o sentimento de uma novidade de antigos
comandos presentes já há muito tempo, porém, raramente entrevistos, pois a imersão na
aplicabilidade dos mesmos já substituiu a vida e instaurou uma compreensão automatizada.
A esperança de absolvição não constitui esperança alguma, mas talvez maior tédio e
sentimento de impotência frente à Babel em construção. “Nenhuma esperança aos
acusados, mesmo quando subsiste a esperança de absolvição” (GS II-2, 413): isto quer
dizer que mesmo quando absolvidos, fatalmente continuarão culpados e acusados por se
situarem numa circunscrição a qual não mais podem voltar e a ela pertencer.
Benjamin menciona que Kafka disse a seu amigo Max Brod: “Somos pensamentos
suicidas que surgem na cabeça de Deus”. (GS II-2, 412). A pergunta por fundamentação
indica a crença de que fundamentação é possível e isso sempre é exercitado nas
proposições da linguagem. Mas sabe-se que ao mesmo tempo a fundamentação posta nem
de longe atende a todas as questões, perguntas e dúvidas, e que a investigação continuada
na busca de fundamento mais profundo deve acontecer simultaneamente, proibindo a
decisão definitiva em favor de qualquer um deles para justificar um determinado sistema.
Cavoucamos sem parar e sempre encontramos apenas a nós mesmos que nos expressamos
na procura por fundamentação: somos eternos retirantes do nosso chão. E nessa conclusão
qualquer divindade desaparece porque tem de desaparecer: o seu estatuto é o de procurada
por alguém que precisamente pela procura se define e nesse anunca poderá encontrá-la
objetivamente, que agora sabe que a queda é exatamente a objetivação do que jamais
335
poderá ser objetivado. Mas como poderá não se fazer parte do chão em que sempre de
algum modo se está a acontecer? “No Gênio Deus fala e escuta a contradição da
linguagem” (GS II-1, 9) enquanto somos pensamentos suicidas na sua cabeça fazendo
parte dele, mesmo numa compreensão itinerante. Por isso, “Há esperança infinita, mas não
para nós”. (GS, II-2, 412). A esperança é para aqueles que já sabem o que podem esperar e
crêem de acordo com um fundamento posto e que lhes parece inquestionável. Mas para
quem se tornou migrante contestando em seu afastamento compreensivo qualquer
circunscrição fixa, acusado de destruir todos os fundamentos e, além de tudo, ainda vive ao
sabor da burocracia instituída, não esperança alguma. Há tanto tipo de esperança quanto
o número de fundamentos postos e praticados, mas para quem chegou ao fundo do poço
da melancolia e todos os ordenamentos como apenas jogos acirrados com regras
impostas como vida, resta apenas a atitude da visão dos objetos dispersos do anjo
melancólico de Duerer. Max Brod na citação de Benjamin chega à idéia de que o mundo é
o pecado original de Deus, ou seja, se tudo é visto a partir do ponto de vista ingênuo de
uma criação objetivada dele separada, então, ele mesmo é a própria contradição. Mas Brod
não percebe que essa solução é precisamente a objetivação dele mesmo na contradição da
linguagem, um equívoco que Kafka não cometeria.
Pode talvez existir esperança para os seres fora de qualquer ambiente familiar e
Benjamin pinça-os da obra de Kafka mencionando-os: “o vigarista desmascarado, o
estudante, os loucos, criaturas inacabadas ainda em estado de névoa, os que ainda não
abandonaram de todo o seio da natureza, em suma, os inábeis e os inacabados”. (Idem,
414). Poder-se-ia dizer que eles ou ainda estão à procura, ou estão completamente
incapacitados por embotamento total. Quem poderá dizer? Porque ao dizer isto ou aquilo
os que são pensamentos suicidas na cabeça de Deus chegam ao mesmo patamar a que já
chegaram: não tem mais direito de instaurar a origem definitiva e o exército de explicações
necessário para a sua manutenção.
O mundo mítico...é mais jovem que o mundo de Kafka”. (GS II-2, 415) Para
Kafka o mito seria o parar da reflexão pelo estar imanente a ele aceitando o que explica
em processo de auto-compreensão. Mas o mundo para o qual regrediu, o qual descobriu e
elaborou em esforço compreensivo é bem mais antigo do que apenas o desvelamento da
organização mitológica. Os poderes míticos foram descobertos e inaugurados enquanto
materiais de justificação para fundamentação e agora, na atualidade, até se prestam para
336
fazer parte de um repertório, uma seleção que possibilita ir mais adiante, mais ao fundo do
passado na compreensão presente. Para os pensamentos suicidas na cabeça de Deus os
mitos são formas e teorias a serem empregadas com astúcia pela razão. Assim, além dos
judeus e dos chineses, também Ulisses é ancestral de Kafka: o grego vence os poderes
míticos reconhecendo-os pela razão e vencendo-os pela astúcia. Chegou a perceber que a
arma mais terrível das sereias não era o seu canto, mas o seu silêncio. Ulisses, conforme
Kafka e de acordo com a interpretação de Benjamin, sabia que os mitos comandam,
organizam e batalham no silêncio e que se trata de prestar atenção a esse silêncio, essa
invisibilidade, essa naturalidade com que os ordenamentos são aceitos como se fosse a
regra eterna da vida. Perceber o comando silencioso do canto ordenador mítico é ter
descoberto o seu poder de configuração da realidade.
Voltado para o indiciamento e a superação mítica e de modo algum agenciando o
sucesso dos desejos de felicidade, é assim que Kafka vê o passado presente. O seu
movimento principal é o de se voltar para retornar ao local de onde veio e que adivinha
estar numa presença tão avassaladora, transparente e envolvente a ponto de ser
extremamente difícil de se ver e dizer.
A razão e a astúcia são condições para Ulisses, Kafka e Benjamin considerarem os
mitos apenas como justificações de fundamentação possível e não mais a possibilidade da
última relação fundante. A razão e a astúcia consistem em saber que os mitos ordenam
silenciosamente a realidade e, portanto, em também se exercitar na navegação por entre o
burburinho e o tumulto concretos de um mundo em configuração mitológica. As
configurações mitológicas expressam-se como vida concreta em todos os lugares
exsudando o mito maior da objetividade. Mas a Odisséia é caminho de retorno e Ulisses
sabe que terá de vencer o mito em si mesmo, nos outros e ainda utilizá-lo como material de
navegação. Ulisses, como Kafka e Benjamin sabem que o mito objetivado como intenção
de verdade é antes de tudo expressão, um grito, uma voz no âmbito da linguagem total.
Eles sabem que o mito, também como outras formas de configuração e relação de
fenômenos, é apenas uma parte de uma totalidade da qual é notícia na compreensão dos
personagens que encontra. Pela razão e pela astúcia Ulisses, portanto, conta com o mito
e consegue em parte manipulá-lo a seu favor na sua viagem de retorno a tal ponto que,
como diz Kafka-Benjamin, “era tão astuto, uma raposa tão fina, que nem sequer a deusa do
destino conseguiu devassar o seu interior”. (Idem, 415). Descobrindo a intenção do mito, o
337
navegador sabe contar com ele e utilizá-lo para os seus fins de retorno, angariando
experiência cada vez maior para poder enganar o ordenamento de rota do próprio destino,
que sempre é viagem para frente sob o seu comando e nunca para trás assumindo as suas
rédeas. Assim, astúcia e razão na vida é o direcionamento das velas da nau da viagem
apontando para o retorno. Kafka é também navegador quando escreve contos sendo
exatamente o conto a própria forma de narração de uma tradição que testemunha a vitória
sobre os poderes do mito como, por exemplo, no caso de O silêncio das sereias. Aliás,
dizer que “Em Kafka as sereias silenciam” (GS II-2, 415) equivale a dizer que o segredo
do mito está descoberto como possível expressão compreensiva e resultante organização
sonora de fuga na atividade de retornar.
Portanto, em Kafka as sereias silenciam. Nisso se anuncia que mito é mito quando
não visto em seus ordenamentos nas inúmeras formas de compreensão e vida. Mas mito
deixa de ser comando imediato na compreensão da formação de mundo quando se o
descobre e se sabe que faz parte do compreender e que, por isso, num mundo intermediário
é até uma espécie de ajudante nas circunvoluções de todas as percepções ainda inacabadas,
ainda em viagem, ainda na saudade de não ter chegado. Ao perder a sua força imediata de
ordenamento, os mitos de ontem e hoje ajudam estrategicamente dando condições no
trabalho de tecer as redes da compreensão, de reavaliação e alocação de fenômenos, de
mistura de idéias, de seleção e coleção de artefatos míticos e idéias de fundamentações
possíveis. Quando as sereias silenciam com o seu chamado mítico e objetivamente
poderoso, então o seu canto se transverteu em expressão musical e não significa mais a
voz da morte provinda de entre os dentes de uma objetividade que se instalou como sentido
fixo e objetivo. Suspende-se a voz da objetividade e se permanece num “pequeno mundo
intermediário, ao mesmo tempo acabado e cotidiano, consolador e absurdo, no qual vivem
os ajudantes”. (GS, II-2, 416). Tal mundo parece que é inacabado, porque não tem resposta
definitiva mesmo após a descoberta dos mitos no silêncio do seu canto expressivo; é
cotidiano pelo fato de todo o dia haver deslocamento sonoro de um mito a outro; é
consolador, porque pela descoberta de que todos os mitos que o compõem são expressão;
por fim, é absurdo pela constante fatuidade das explicações intentadas pelos mesmos
mitos.
Na interpretação de Benjamin, “Kafka é como o menino que saiu de casa para
aprender a ter medo”. (GS II, 416). E para sair da casa familiar para terra estranha não é
338
necessário andar de uma paisagem a outra, pois basta a mesma paisagem apenas vista de
outro modo. Freud, em seu estudo sobre a estranheza, procura acompanhar a linguagem
indicando que heimlich tem o sentido de familiar, do país natal, caseiro, doméstico,
indígena, mas que pode vir a ter o sentido de escondido secreto, furtivo, escondido,
dissimulado, clandestino, reservado, íntimo, oculto (Freud, GS IV, 241). Assim heimlich [a
situação caseira e familiar] pode chegar ao oposto do seu sentido como unheimlich, ou
seja, estranho e até assustador. Como situações familiares podem adquirir conotações
extremamente estranhas embaralhando o sentimento de quem nelas se encontra, mas nunca
se encontrou de fato, assim, inversamente, situações estranhas podem parecer sumamente
familiares como se fossem esperadas muito tempo, ou até como sempre presentes de
certo modo e nas quais pode haver uma estranha sensação de encontro como se fosse muito
familiar. Freud no mesmo estudo cita Schelling: “As horas unheimlich e terríveis da noite.
... Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter permanecido...secreto e oculto [heimlich],
mas veio à luz”. (GS ii-2, 242). A ambivalência do termo unheimlich também pode ser
relacionada com a questão que Freud apresentada em seu pequeno estudo sobre (Freud,
GS, IV, 227): Über den Gegensinn der Urworte [Sobre o sentido oposto das palavras
primitivas]. ele lembra estudos sobre antigas palavras egípcias que significavam algo e,
ao mesmo tempo, podiam significar o contrário disso como se nos sonhos em que
muitas vezes o significado seria o contrário da trama sonhada. A mais extraordinária
excentricidade da antiga língua egípcia ainda seria outra, ou seja, a de que dois vocábulos
de sentido oposto podiam formar um vocábulo composto que teriam o sentido de
apenas um deles para lembrar a dependência do seu contrário em cada uso concreto. A
decisão entre um sentido e outro teria estado na dependência do gesto do falante.
Kafka tem especial interesse pelos gestos, pois, mesmo que em grande parte
incompreensíveis e deslocados na organização do sentido da vida administrada de hoje,
eles estão a dar agora notícia do que passou e ainda neles mesmos se movimenta.
Uma fotografia de criança. Retornar pelo caminho do familiar que se torna
estranho em direção do estranho que se torna familiar parece ser o gesto fundamental de
Kafka. Ele retrocedeu à visão da imensa maquinaria administrativa que se desmancha no
seu sem-sentido na melancolia do palácio de Potemkin, mas terminou por descobrir em seu
porão uma ratinha cantora, de cujas características Benjamin cita: “existe nela algo de uma
infância breve e pobre, mas também algo da vida ativa de hoje, com suas pequenas
339
alegrias, incompreensíveis, mas reais, e que ninguém pode extinguir”. (GS II-2, 416). É
significativo que com isso Kafka aluda a uma vida real que ninguém pode extinguir,
certamente porque depende de determinada configuração compreensiva em ação e plena
aplicação histórica e social objetivada. Eliminar a força dos mitos parecia prometer a
descoberta de um grande fundamento, mas no fim das contas encontra-se uma pequena
felicidade, mas tão real quanto o ordenamento de um pequeno mito pode ser.
Com essa apresentação da irrealidade em plena realidade ou a realidade em plena
irrealidade, como no caso da oposição dos vocábulos nos textos da antiga língua egípcia,
Benjamin no seu artigo sobre Kafka introduz a temática de Uma fotografia de criança de
olhos tristes em meio a uma paisagem que lhe foi predeterminada e a qual é perscrutada
atentamente por sua grande orelha a ouvir. É também uma descrição de Kafka quando
adulto, ou seja, o seu esforço de prestar atenção às paisagens que lhe foram
predeterminadas como caminho de compreensão e nunca se satisfazer em simplesmente
seguir caminho sendo somente azucrinado pelos estalidos do chicote do mito naquilo que
ele impõe pensar.
Benjamin tem sempre presente a contradição da linguagem e no artigo sobre Kafka
procura desenvolver de nova forma o mesmo impasse fundamental que é descrever a
própria expressão da descrição que percebe em Kafka. Descrever a expressão da descrição
requer que sempre se diga outra coisa para desenvolver o mesmo que se intenta. Benjamin
identifica esse viés em Kafka e procura acompanhá-lo, portanto, na consciência de que ele
mesmo é de um jeito e está em contínuo tornar-se pela descrição do que for. O sentido
pode ser o mais diverso possível a partir de qualquer descrição, desde que aponte para a
fatuidade da contradição da linguagem no próprio momento da descrição. Benjamin, por
isso, dá-se o direito de embaralhar notícias avulsas sobre Kafka, parte dos seus escritos de
várias épocas da sua vida, comentários de outras pessoas sobre ele, com aquilo que
depreende de uma fotografia da época da sua infância.
Benjamin percebe que na descrição objetivada de um retrato de Kafka está a
expressar a sua própria questão, as dificuldades da sua compreensão, o esforço de encetar o
caminho do retorno ao reencontro das determinações primeiras que o acossam de um modo
familiar demais a ponto de se tornarem sinistra transparência de tudo, a qual induz a
suspeita de um ofuscamento mortal. Portanto, a paisagem descrita em Uma fotografia de
criança é familiar perfazendo um conjunto muito estranho que deve ser perscrutado com
340
os ouvidos para a oitiva do cenário milênios montado com palavras e cuja
programação está nele mesmo esquecido e enterrado à espera de escavação atenta.
Na percepção de paisagem predeterminada surge o desejo de encarar a atividade da
decodificação de tudo à luz dos mitos e critérios subjacentes. A dificuldade é a de sempre,
isto é, saber-se extremamente próximo pelo fato de dela fazer parte pelo modo com que a
si mesmo expressa descrevendo e, ao mesmo tempo, muito distante perscrutando-a
tentando ouvir e descobrir as suas determinações, o seu canto de sereia. É essa a triste
esperteza na decodificação da multiformidade de paisagens que, vindo a ser,
insistentemente reivindicam o estatuto da objetividade de acordo com um critério absoluto
ainda não descoberto, indiciado e instaurado para a certificação do real. Mas a melancolia
expressa nos olhos tristes, desde sempre sabe da tarefa de se escutar as determinações da
perspectiva paisagística junto de si para só, na volta, usufruir as pequenas alegrias da
pequena realidade do encontro.
Por um lado, a tristeza provinda da predeterminação de toda a paisagem
compreensiva nos termos de objetivação pela linguagem pode aderir à sentença do escritor
do Eclesiastes quando diz que nada de novo debaixo do sol, pois tudo é vaidade
(Eclesiastes I, 2), pois tudo são velhas e novas quedas na objetividade num tempo para
tudo:
Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o
propósito debaixo do céu: há tempo de nascer, e tempo de morrer;
tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de
matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar;
tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tampo de
saltar de alegria; tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar
pedras; tempo da abraçar, e tempo de se afastar do abraço; tempo
de buscar e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar
fora; tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e
tempo de falar; tempo de amar, a tempo de aborrecer; tempo de
guerra e tempo de paz (Eclesiastes, 3, 1-8).
Por outro lado, como no caso da ratinha cantora, a tristeza pode ser contrabalançada
pela realização da compreensão no desejo de ser índio, de identificar-se no encontro com a
paisagem a ponto de desaparecer e ser ela mesma. Para explicar, Benjamin cita: “Como
seria bom ser um índio sempre pronto e sobre o cavalo a galope...sem rédeas e sem nada
....quase sem ver diante de si o prado de vegetação rala, já sem o pescoço do cavalo, já sem
a cabeça do cavalo”. (GS II-2, 416-41). Antes de América, Kafka se identifica em sua
341
obra pela inicial K., agora assume um renascimento compreensivo com a menção do nome
completo Karl, uma identificação direta com o personagem objetivado na obra. No desejo
de ser índio “a realização revela o seu segredo”. (GS II-2, 417). Após a tristeza da
paisagem desconexa e estranha cujas determinações míticas é necessário descobrir para lhe
entender as condições de uma objetivação que se esfacela na melancolia, agora, tornar-se
índio e se fazer terra e cenário significa a sede, a saudade do familiar que se tornara
estranho, realiza-se a compreensão de que a paisagem é o constante encontro do que
advém com o que se escuta a partir das próprias condições de recepção. Benjamin está
como que a desenhar a bipolaridade da contradição da linguagem acentuando de um lado a
objetividade sempre absolutizada que sempre poderá levar à crise com a relativização do
seu fundamento e, de outro, a descoberta de que o fundamento é uma posição possível
dando condições de uma perspectiva possível de compreensão ao liberar a mesma
compreensão para a descoberta da dimensão do acontecer no seio da própria linguagem.
No segundo caso o fundamento é percebido como fazendo parte efetiva da compreensão
que se dá num todo sempre ainda a ser compreendido. Assim Karl é a encarnação mais
feliz de Kafka, pois ele percebe a objetivação enquanto acontecimento de encontro com
o que advém como paisagem da qual ele mesmo faz parte. Trata-se de ser artista, embarcar
no papel que se está a desempenhar e ter futuro na trama que se concebe.
Trata-se de assumir que somos o teatro de Oklahoma, o teatro da natureza e da vida
que ao mesmo tempo é uma pista de corrida, organizada, quem sabe, de acordo com a lei
de Darwin e suas variantes. Benjamin chama de novo à atenção:
Essa pista de corrida é ao mesmo tempo um teatro, e isso constitui
um enigma. Porém, o lugar enigmático e a figura inteiramente
transparente e não enigmática de Karl Rossmann pertencem-se
mutuamente (GS II-2, 427).
Karl é a compreensão participante junto com aquilo que ele objetiva, tanto que o
contexto objetivado ele compreende como o seu acontecer. A vida encarada como pista de
corrida e teatro em que se cumpre um papel efetivo no jogo teórico, por exemplo, da lei de
Darwin e periferias, é a efetividade de uma compreensão que configura um enigma, pois se
posiciona em gesto de fuga da objetivação ao compreender o seu objetivar como acontecer,
mas ao mesmo tempo compreendendo que também precisamente isto é obrigada a afirmar
como nova objetivação. A compreensão ao ver-se embarcada na alternativa da vida como
pista de corrida percebe-se como Karl Rossmann simplesmente e, ao mesmo tempo, a vida
342
como teatro objetivo num pertencimento mútuo. Não a possibilidade de descolamento
de Kafka e da sua compreensão objetiva de que a objetividade seja um acontecer
expressivo. Assim, afirmar a ambivalência de uma condição simultânea é afirmar um
enigma que é a contradição da linguagem.
Essa ambivalência resulta numa curiosa concepção do sábio que, a exemplo de
Confúcio, apaga todas as particularidades no sentido de uma imersão inocente em qualquer
objetivação contingente a ponto de resultar na permanência da situação compreensiva de
falta de caráter. É o Durchschnittsmensch, ou seja, paradoxalmente o homem médio, o
homem da rua que é capaz de jogar qualquer papel no teatro da vida pelo fato de encarnar
o repertório resumido de todas as organizações compreensivas efetivas já havidas no
transcorrer dos milênios. Sem os comprometimentos de uma compreensão imediatamente
imbuída com a manutenção efetivamente funcional de qualquer sistema organizatório, o
homem chinês não se caracterizaria por seu caráter, mas por sua fundamental pureza de
sentimentos, uma pureza enquanto instrumento competente de avaliação do
comportamento gestual, pois este, nos seus movimentos encarna a memória dos milênios
muitas vezes sem a possibilidade do acompanhamento da sua tradução ou expressão
conceitual.
Com a tematização dos gestos em Kafka e a sua relação com o teatro gestual chinês
é como se Benjamin quisesse dizer que é necessário indiciar gestos e tentar decifrá-los para
que seja possível o voltar-se da compreensão em direção às suas determinações que a
escravizam num regime funcional milenar incompreendido. Nos gestos estão dissolvidos e
sempre lembrados, num viés mítico, tanto acontecimentos quanto imposições teóricas de
milênios, e que ainda no presente não perderam a sua intenção de mando. Neste sentido,
também Kafka em sua escrita estaria descrevendo gestos:
O teatro ao ar livre de Oklahoma remete ao teatro clássico chinês,
que é um teatro gestual.....toda a obra de Kafka representa um
código de gestos, cuja significação simbólica não é de modo
algum evidente para o autor desde o início, mas a mesma é
procurada sempre de novo em outras relações e outras tentativas
de ordenamento (GS II-2, 418).
Desse modo estamos sempre a encontrar personagens nas obras de Kafka que em
seu exagero enfaticamente acentuado remetem a mundos supostamente mais distantes,
estranhos e esquecidos, mas ao mesmo tempo assustadoramente próximos, presentes e
343
como que familiares. E Benjamin dois exemplos em que no primeiro Kafka traz uma
justificação para o procedimento gestual, dispensando-a, porém, no segundo:
Na Verwandlung (Metamorfose) lemos sobre a maneira estranha
que se tem de se sentar na escrivaninha e falar com o empregado
de cima para baixo, o qual, além disso, deve chegar bem perto
devido à surdez do chefe. Mas no Prozess (O processo) não
existem mais essas justificações. No penúltimo capítulo, K. parou
nos primeiros bancos, mas ao sacerdote a distância ainda parecia
excessiva; ele estendeu a mão e mostrou, com o dedo indicador
bem inclinado para baixo, um local bem próximo ao púlpito. K.
também nisso obedeceu precisando inclinar a cabeça fortemente
para trás a fim de ainda ver o sacerdote. (GS II-2, 418).
O gesto em Kafka dá notícia de um mundo ilimitado no qual cada um representa
todo um processo, ou cada um é um drama para si num palco que é o teatro do mundo
tendo o céu por pano de fundo. Mas cada gesto ocupa uma centralidade tal que o céu se
rasga para se tornar moldura de um desenho na parede como se cada um também
movimentasse períodos cósmicos distantes e próximos ao mesmo tempo. Nessa
perspectiva alguns gestos são extremamente enigmáticos e simples ao mesmo tempo como
se fossem animalescos, instintivos, automáticos: estão incorporados à compreensão
presente e à sua manifestação a tal ponto que os próprios atores no teatro da vida não os
entendem mais por estarem próximos demais e exatamente por isso distantes demais para
explicitações e reflexões interpretativas elaboradas.
Nos contos de Kafka o parentesco com os gestos animais vai tão longe que às vezes
custa a acreditar que esteja realmente falando numa situação de animais e não de humanos,
e noutra situação de humanos e não de animais. Benjamin quanto a isso se expressa
curiosamente: “Mas isso é sempre Kafka; ele tira os esteios tradicionais do gesto humano e
nele tem, então, um objeto para reflexões que não tem fim”. (GS II-2, 420).
Tirar os esteios do gesto é privá-lo da sua conotação de objetividade nas e em que
pretende ter um sentido evidente e fazê-lo expressão presente e próxima da distância
milenar durante a qual se manteve pela sua capacidade de adaptação no desdobramento de
cada mundo cósmico. Kafka em suas reflexões é aquele que procura voltar no sentido
inverso da dobra feita, ou seja, no verdadeiro sentido de desdobrar, o que, aliás, ele
implementa em suas parábolas: dobramento houve, seus resultados estão e agora se
trata de percorrer o caminho inverso. Por exemplo, a parábola Vor dem Gesetz (Diante da
lei) parece merecer o seu desdobramento na totalidade do romance Der Prozess (O
344
processo) na voz do sacerdote, mas num sentido pelo qual se entende a evolução já havida
como o desdobramento de um botão em uma flor e não no sentido de desdobrar tornando
liso um papel amarfanhado. Desdobrar um papel dobrado: “Mas isso é sempre Kafka”
(Idem, 420), o qual vai à procura de si numa criação literária na tentativa de comentar
milenares determinações culturais compreensivas presentes nas explicitações, tidas
geralmente como objetivas, e em gestos teóricos e corporais automatizados na trama do
contexto cultural de agora. Para exemplificar tem-se a relação entre a Halaca e Agadah. A
Halaca é uma tradição legalista do judaísmo, uma doutrina religiosa que intenta construção
positivamente objetiva confrontando-se, por isso, com aspectos teológicos, éticos e
folclóricos, e voltada para a edificação do futuro sem permitir a relativização dos seus
princípios dogmáticos. A Agadah, pelo contrário, é entendida como sempre voltada ao
passado que se torna presente enquanto relato da libertação de Israel do cativeiro egípcio
por Moisés e merecedora de comentários e interpretações contínuas tendo como resultado a
atualização do seu sentido nos acontecimentos do presente. Em Kafka desapareceu a
doutrina e a história objetivada em positividade dogmática, permanecendo apenas os gestos
rituais impositivos e expressivos de algo a ser descoberto, narrado, interpretado e, assim,
instaurado. Resíduos de doutrina podem ter sustentado a sua continuidade da narrativa ou,
inversamente, preparar uma doutrina adveniente. que se estar alerta quanto à própria
compreensão, pois de algum modo o destino da compreensão é a organização, algo
impenetrável quando se leva em conta o viés construtivo dela pelo lado da ingenuidade
puramente objetivista e, pelo outro, a ocorrência de um comando organizatório subjacente
nunca totalmente elucidado. Toda a carga de impenetrabilidade do destino da compreensão
enquanto organização pesa-se na afirmação de que fundamentalmente se trata da questão
da organização da vida e do trabalho na comunidade humana”. Pois, a “organização se
assemelha ao destino”. (GS II-2, 420). De um trecho de A muralha da China, Benjamin
cita.
A muralha deveria servir de proteção durante séculos; Por isso, o
máximo de cuidado na construção, a utilização dos conhecimentos
arquitetônicos de todos os tempos e de todos os povos e um
duradouro sentimento de responsabilidade por parte dos
construtores eram pressupostos indispensáveis para esse trabalho.
Para as obras acessórias podiam ser usados assalariados do
povo, homens, mulheres, crianças, enfim, todos os que se
empregavam para ganhar dinheiro; mas para dirigir quatro
desses assalariados um homem culto era necessário, especializado
em arquitetura...Nós – estou falando aqui em muitos nomes -
somente aprendemos a nos conhecer soletrando as instruções dos
345
nossos condutores superiores, descobrindo que sem a sua
liderança nosso saber acadêmico e nosso bom senso não teriam
sido suficientes para podermos executar a pequena função que
nos cabia no grande todo (GS II-2, 421).
Num grande todo em que as funções e as tarefas são infinitas o homem simples não
pode entender todo o enredo, captar todas as relações, os limites da compreensão tornam-
se evidentes e o grande enigma põe-se de novo. Há um grande todo, uma grande Muralha
da China em construção e em que o homem está incluído a participar cumprindo a sua
tarefa, pensando, compreendendo, expressando-se na linguagem, perdendo-se em algum
lugar entre a objetivação e a expressão. Objetivando o todo por meio de alguma
denominação, então o absolutiza reduzindo-o às dimensões da sua objetivação de acordo
com os seus critérios de descrição, como se pudesse dele se distanciar esquecendo-se que
precisamente a sua atividade de instauração de clarificação, mesmo por meio das mais
sofisticadas circunvoluções de análise da linguagem, deve fazer parte desse mesmo todo
suposto para poder de algum modo ser expressão no seu dizer. Qualquer definição
objetiva do todo que se queira dar deve, de acordo com a contradição da linguagem,
incluir simultaneamente a si mesma tornando, assim, relativa a própria pretensão da
objetividade da definição e tendo que assumi-la como acontecimento emergente no
mesmo todo que propõe. Na elaboração da sua proximidade com Kafka, Benjamin se
expressa:
Kafka dispunha de uma rara força para produzir parábolas para
si. Apesar disso, ele jamais se esgota no que é interpretável, pelo
contrário, tomou todas as precauções imagináveis contra a
interpretação dos seus textos (GS II, 422).
Qualquer tipo de interpretação clara e evidente apenas no sentido objetivo talvez
parecesse um convite para facilitar as coisas de modo a desviar-se do cerne da questão. No
todo da construção, porém, Kafka queria ser incluído entre os homens comuns, pois caso
quisesse parecer grande pretenderia saber de todos os planos de edificação da grande
muralha para então poder descrevê-la em seus contornos a partir de uma maquete prévia ou
de algum lugar extremamente afastado para visualizá-la totalmente. E ele levou tão a sério
a sua angústia de gênio que, como se sabe, deu instruções para que toda a sua obra fosse
destruída como que a fim de redimir-se de uma grande culpa de objetivação em detrimento
da compreensão da ocorrência fantástica, incompreensível, mas incrivelmente colossal de
346
tudo. Talvez tenha sido este o seu recado, o seu testamento definitivo para todos, inspirado
numa parábola sua sobre um homem que pede por passagem na porta da lei, frente à qual
está um guardião que o o deixa passar de modo algum, mas que deste mesmo guardião,
no fim de toda sua vida de espera, fica sabendo que ninguém mais poderia passar, pois a
entrada estava destinada para ele e que agora iria fechar. É que a lei não existe como
fundamento último, e não existe deste modo pelo fato de que qualquer fundamento
explicativo da totalidade fatalmente deve fazer parte da totalidade suposta e que está a
afirmar como sua expressão. O homem pede, espera e indaga e recebe sempre a mesma
resposta num eterno retorno indicando o mesmo local em que sempre esteve diante da
mesma entrada que é especificamente dele pelo repertório de questões, perguntas e
reclamações que apresenta, sem jamais ter a mínima chance de querer e poder desistir. Por
isso é que: “O mundo de Kafka é um teatro do mundo. Para ele, o homem está desde o
início no palco”. (GS II-2 422).
Estando desde o início no palco, o homem representa papéis impingidos? São
papéis falsamente assumidos? Nunca poderá chegar à autenticidade? O convite ao palco é
sempre para representar o papel da inautenticidade? A essência do ser humano parece ser a
sua grande capacidade de mutabilidade em representar papéis que não parecem ser ele
mesmo. Benjamin sentencia: “Que eles em último caso possam ser o que alegam está
excluído do leque de possibilidades”. (GS II-2, 422). Ou seja, novamente a objetivação
representativa traz problemas. Que os personagens devam representar a si mesmos, é isto
que deles se espera, mas não atinam que pudessem ser o que alegam em suas objetivações.
Melhor, o teatro do mundo justapõe o que são e o que alegam objetivando de mil maneiras.
Bem entendido: as pessoas são o que dizem, fazem, compreendem. “Mas o próprio crânio
bloqueia... o caminho”, (GS II-2, 422) assim cita Benjamin. Todos são personagens numa
máquina teatralizada, sem se dar conta que a perfazem, que são ela mesma. Eles são o
simulacro e não outra coisa que julgam ser à parte do objetivado. O personagem K. no fim
do Processo, ao ser levado à morte, parece ter compreendido a questão crucial que o
dominava quando pergunta aos seus dois algozes histriões sobre o teatro que estariam
representando. Ambos nem chegam a entender a pergunta, mas se assustam para valer
olhando um para o outro sem saber o que dizer a respeito disso. Pelo susto e com sua
objetividade funcional servindo de papel teatral “provavelmente permanecerão daí por
diante à procura de um abrigo como os seis personagens de Pirandelo” (GS II-2, 422)
estavam à procura de um autor extremamente próximo.
347
No teatro de Oklahoma inclusive a auto-imagem que os atores tentam produzir é
angelical e generosa consigo mesmos. Mesmo assim, não adentrarão a si mesmos na porta
da lei que, pelo modo com a compreendem, apenas existe como ficção enganosa para a
queda constante na mera objetivação e assim “está excluído do leque de possibilidades que
eles possam ser o que alegam”. Segundo Benjamin, Soma Morgenstern teria expressado:
“Em Kafka, como em todos os fundadores de religião, sopra um ar de aldeia”. (GS II-2,
423). Talvez isso provenha da incrível simplicidade dos fatos e dos dados fundamentais da
condição humana descritos por ele como se observasse a nudez do rei-homem que
insistentemente se desnuda na objetividade pensando com ela exatamente se vestir. Os
fundadores de religião dão as costas ao futuro e tecem considerações sobre o passado
presente, pelas quais as pessoas reconhecem a familiaridade do estranho esquecida
muito tempo. Muitas vezes, porém, a incrível simplicidade não é vista e se torna difícil de
compreender, pois quanto maior a total construção objetiva, menor a possibilidade de nela
se reconhecer. A simplicidade e a piedade transluzem na descrição de Das nächste Dorf (A
aldeia próxima) de Kafka inspirado na parábola de Lao Tse: Duas aldeias vizinhas podem
estar ao alcance da vista de modo que se assim, as pessoas deveriam morrer em idade bem
avançada, sem jamais viajarem de uma a outra.” (GS II-2, 424).
À primeira vista a parábola traz uma série de dificuldades, pois qual relação deveria
ter a concepção de piedade de Lao Tse com a parábola A aldeia próxima? Seriam os
habitantes da aldeia motivados a não se visitarem, porque se negam à mudança de si
mesmos, a qual resultaria da relação e, portanto, como fidelidade a si mesmos? Ou seriam
motivados pela análise infinita dos enigmas de cada aldeia, portanto, sem tempo para
visitar a outra? Talvez deva tratar-se da identificação dos aldeões consigo mesmo e suas
obras no teatro do mundo? Ou, simplesmente se trata de um exemplo da dificuldade das
metáforas exposta dessa forma pelo autor no intuito de suscitar a reflexão? Vendo a vida
da outra aldeia de longe, sem os envolvimentos passionais diretos e intensos na
organização das cidades assim mecanizadas, a observação e a descoberta do que move o
todo é mais favorável a cada habitante? A contemplação tranqüila à distância favorece a
visão da armação do palco e do teatro em andamento? De qualquer modo, a ilustração da
piedade pela concepção figural de duas aldeias em que as pessoas morrem de velhas, sem
viajarem de uma a outra, tem um enigma em si, pois se trata de uma indicação de direção.
Chama à atenção a expressão: ...os habitantes deveriam morrer em idade avançada, sem
jamais...A vida toda em um lugar favorece o exame do que se dá em volta. É a manutenção
348
de um ponto de vista, de uma questão central e única, de uma pergunta fundamental como
se diz que cada grande homem sempre tem um foco de conversação (GS I-1, 96). Neste
caso, trata-se de Kafka a propor parábolas como se fosse um instaurador de religião,
porém, sem o ser de fato, pois procura simplesmente expressar o cerne da condição
humana na contradição da linguagem, tentando insistentemente destroçar a objetividade
construída para poder permanecer na expressão dela. Assim, as suas parábolas são
construídas de tal forma que promovem o alargamento do sentido em que o próprio sentido
objetivado é a questão, e em que acontece a destruição das camadas de sentido objetivo
superficial costumeiro, pois exatamente este quer ser visto em sua profundidade em termos
de ocorrência. Kafka permanece sempre no mesmo lugar, no mesmo ponto de vista de um
aldeão embasbacado com os acontecimentos da sua aldeia, que o acossam como se eles
representassem a própria concentração de todas as forças cósmicas aí objetivadas em
ocorrência cotidiana.
Benjamin relaciona neste contexto também a aldeia que fica ao do castelo na
obra O castelo, na qual o personagem K. recebe a curiosa e inesperada incumbência de
agrimensor para medir o que nunca se permitirá que seja medido. O homem agrimensor
está na condição de querer medir e analisar produzindo objetividades tendo por base um
critério fundamental do qual alega ser independente por si como causa sui. Ele recebe a
incumbência, sente-se capaz e chamado para cumprir uma tarefa que ao mesmo tempo é
impossível de ser levada a contento. Ele pergunta pelo todo a ser medido de fora, mas
nunca poderá medir: permanece na aldeia como ponto de observação e lhe permitem que
faça incursões esporádicas para o conhecimento da sua burocracia.
Também para este contexto Benjamin evoca uma lenda talmúdica: A princesa alma
está exilada numa aldeia estranha que é o corpo, do qual ela não conhece a linguagem, mas
está a espera do noivo Messias. À notícia da vinda do Messias, a sua noiva alma prepara
um festim para o corpo aldeia, da qual não conhece a linguagem. E Benjamin interpreta:
“O homem de hoje desliza para fora do corpo e lhe é hostil”.(GS II-2, 424). Ou seja, há um
divórcio, uma cisão fundamental. O mundo como corpo e aldeia objetivado parece
completamente exterior ao acontecer simultâneo enquanto alma a ponto de não se lhe
conhecer a linguagem. A objetivação distancia inexoravelmente o corpo objetivado e a
alma ocorrência. Pode acontecer o processo de metamorfose em que o homem percebe o
distanciamento e, então, avança na seqüência de se tornar inseto em que, pela
349
compreensão, o corpo mundo dele aos poucos se apodera, ou ele o incorpora por assunção,
de tal modo que todos percebem a semelhança a chiqueiro, mau cheiro e ar pestilento.
A aldeia que não recebe a visita dos aldeões da outra seria o objeto de estudo das
almas que vivem? Duas aldeias, dois corpos sendo estudados pela piedade dos aldeões
atentos? Em apontamentos para a feitura do ensaio sobre Kafka, Benjamin escreveu:
Quem Kafka era, isso nem ele mesmo quereria dizer claramente –
poder-se-ia criar a lenda de que ele tenha sido um homem que
ininterruptamente estivesse ocupado com a sua pesquisa sobre si
mesmo, mas sem jamais ter olhado no espelho (GS II-3, 1196).
Assim, os aldeões estão ocupados consigo quando eles se debruçam sobre a sua
própria aldeia, cujas circunstâncias são a sua objetivação. Em vez de medirem a aldeia
distante, ou até mesmo o castelo todo, são agrimensores do seu próprio chão e do rastro
nele imprimido. A fotografia de Kafka quando menino de olhos tristes e a escutar
atentamente os recados de uma paisagem montada como se fosse um palco para a exibição
de papéis objetivos continua como emblema de toda uma vida e de toda uma obra
enquanto vida.
O homenzinho corcunda. Benjamin procura especificar a sua opinião sobre Kafka
relatando um outro exemplo de escritor quanto à relação entre vida e obra. Trata-se da
opinião de Knut Hamsun, veiculada como artigo em jornal, sobre uma mulher que matou o
seu filho e o castigo que ela mereceria por sua ação. Um episódio igual aparece
posteriormente em sua obra “Benção da terra”. O escritor Hamsun copia a si mesmo, ou
aborda um fato acontecido de maneira literária? Benjamin quer acentuar a identidade de
vida e obra. Em seu artigo de jornal Hamsun pretende um julgamento moral objetivo
ligado diretamente à vida em seu transcurso e talvez não concordasse com a insinuação de
que o julgamento é ele mesmo a acontecer, pois em sua argumentação pretende ter base
totalmente sólida, objetiva e dele independente para a sua fundamentação. Hamsun expõe a
sua compreensão em obras de acordo com a sua compreensão sobre a vida até em notícia
de jornal. A obra retrata constantemente a compreensão de vida objetiva e tal critério deve
ser observado na interpretação da obra de Kafka. Vida e obra identificam-se. A objetivação
produzida em opiniões e ações da vida no registro da sua compreensão é o que o escritor
imediatamente é, tanto que reitera a sua compreensão em obra artística. A contradição da
linguagem pode ser descrita no primeiro passo, quando o escritor dá a sua opinião com
350
intenção de objetividade absoluta à base de fundamento absoluto, sem perceber que a
ocorrência de tal julgamento é ele mesmo. Já no segundo passo, a obra artística está a
indicar que em sua circunscrição, desde a sua concepção, não se trata jamais de
objetividade à base de um fundamento inconteste sob pena de perder o seu caráter de
criação. Na obra artística, a mulher assassina é julgada do mesmo modo, mas como
narrativa em que o escritor a enquanto obra de assumida criação sua, como se
entendesse que no caso do juízo no artigo de jornal a mesma compreensão ocorrente fora
esquecida, resultando na queda da objetivação e na colocação de um fundamento absoluto.
O que aconteceu com Hamsun é o aparecimento inesperado e estranho do homenzinho
corcunda na lembrança da contradição da linguagem. O corcunda destrói e mostra o lado
fraco da organização compreensiva objetivada, a totalidade de horizontes reduzidos se
esboroa traindo-se, os supostos de fundamentação são postos à prova.
Assim, agora, o aparecimento do corcunda significa a indicação da volta, do
retorno à visão das raízes e tematizações sobre a justificação da própria colocação de
fundamentos últimos e esquecidos.
Forças arcaicas atravessam a obra de Kafka, as quais ainda são identificáveis nos
dias de hoje. Benjamin diz que essas forças reivindicam a obra de Kafka como se a obra
fosse o resultado delas e como se continuassem com a sua força difícil de reconhecer até na
atualidade. Kafka não as teria conhecido, mas tais forças do pré-mundo mostravam-lhe a
culpa como se fosse um espelho em que ele constantemente adivinhava o futuro em forma
de tribunal julgador.
“Ele apenas deixou que aparecesse o futuro em forma de julgamento no espelho que o pré-
mundo colocava à sua frente em forma de culpa” (GS II-2, 435). A culpa que Kafka
constantemente abordava eram para ele forças presentes que o acossavam na própria
compreensão produtora de objetivação por meio de julgamentos e simultânea inconsciência
pelo esquecimento delas. Uma compreensão comprometida com tais forças constantemente
solidifica-as em repetição. Trata-se de uma compreensão mecânica e inconscientemente
empurrada para a produção de julgamentos, tendo por base forças do pré-mundo até então
desconhecidas, ou por demais conhecidas e invisíveis pela sua proximidade e participação
efetiva na elaboração do pensamento. Tais forças do pré-mundo apresentam-se
metamorfoseadas, disfarçadas, camufladas em forma de argumentos e justificativas para a
continuidade da construção da objetivação e, a qualquer voz que recorde disso, promovem
351
a continuidade de si repassando a culpa por meio da acusação de qualquer outro. A culpa
que Kafka aborda é a sua própria compreensão comprometida com a objetivação, com a
ficção de um mundo separado de si que se pudesse descrever, julgar, nele interferir de
modo asséptico sem nele sujar as mãos. Na visão desse comprometimento no próprio cerne
da compreensão, Kafka via-se em espelho, e a própria manutenção de tal visão de si
transluz a culpa original e a tarefa iniciante do julgamento. Instaura-se o tribunal que
promove um curioso processo em que o juiz renitente e peremptoriamente exibe apenas as
credenciais de poder aplicar princípios fundamentais para a objetivação de juízos, e
exatamente por isso é acusado num lento e angustiante processo de condenação. Benjamin
nesse sentido pergunta e conclui: Como então se deve pensar isso não seria o juízo final? O
juiz não se converte em acusado? O castigo não está no próprio processo? - Kafka não deu resposta
a isso” - (GS II-2, 427).
O fato de Kafka não dar resposta a essas perguntas indica que ele quer adiar a
sentença de um processo instalado no âmago da compreensão. Decidir-se pela condenação
ainda em vida significa nova auto-condenação pela objetivação julgadora que tal sentença
implica; decidir-se pela não condenação em vida significa a continuidade da justificação da
objetivação; assim, a saída é ou a morte ou o adiamento da sentença na continuidade do
próprio processo em vida. O juízo final se adia por impossibilidade de solução humana
constituindo a perspectiva do tempo futuro. Cavoucar nas entranhas de um passado
presente é a oportunidade de instaurar criativamente o tempo futuro por adiamento
constante do juízo final.
Como nos contos de Cheerazade, que têm a característica épica de sempre adiar de
algum modo o que está prestes e fatalmente a vir, este é um dos gestos de Kafka em sua
obra. Trata-se do adiamento da sentença final quanto mais se puder como acontece no O
processo, onde a esperança do acusado é que o procedimento judicial não leve aos poucos
à sentença. Adiar a sentença é permanecer no constante procedimento judicial entre o
esquecimento na objetivação empurrada por forças do pré-mundo na continuidade de uma
compreensão funcionária e a percepção da própria ocorrência de si nos julgamentos que
promove. Mas também essa força de adiamento está presente nos dias de hoje como
tipificação em Abraão, considerado patriarca pelo mundo judaico-cristão.
Entre as forças do pré-mundo presentes na atualidade está, portanto, a
exemplificação da condição humana por parte de Abraão, o patriarca, como alguém que
352
precisamente promove o adiamento da sentença, o juízo final. Abraão põe-se como juiz e
culpado no episódio do sacrifício do filho Isaak, pois compreendeu como adiar num
processo de culpa e castigo. Matou a imagem de si mesmo, isto é, a objetivação esquecida
de si mesmo, mas, simultaneamente se reconheceu na objetivação. Como Kafka no fim da
sua vida pediu que toda a sua obra fosse queimada sem ser obedecido por seu amigo Max
Brod e por todos os que se preocupam e se reconhecem em sua obra, mesmo na
continuidade de uma objetivação considerada inevitável, Abraão compreendeu a
inexorabilidade da sua condição de ser juiz e de ser acusado por o ser.
É possível imaginar um outro Abraão, ou seja, alguém que sempre tem algo a mais
a fazer e não se dispõe à obediência do sacrifício, pois é meramente construtor de uma
imagem separada, falante o tempo todo, defensor de um discurso próprio capaz de fazer
adeptos fervorosos, moto perpétuo esquecido do seu impulso inicial, alguém com trejeitos
de garçom. Ser como garçom obsequioso seria o modo de obediência cega num esquema
pré-formado em forma de objetivação implantada por forças arcaicas e teatralizada como
cega e esquecida em sua pura aplicabilidade. Apesar de garçom, nunca faz de fato o
sacrifício da objetivação, porque nada compreendeu e a execução pura e simples de
mandados é contra-senso, já que é simplesmente a continuidade do igual, o eterno retorno
do igual. Conforme o relato bíblico, Abraão ainda arruma as suas coisas, mas vai para o
cumprimento do absurdo que resulta na compreensão da contradição da linguagem, da
morte do discurso objetivado, da morte de si em imagem configurada em rito de
rememoração no sacrifício do carneiro, e, ainda, do compreender a ingenuidade de que
poderia ser puro acontecer. Abraão é patriarca, porque se identifica com o julgamento que
promove: ele é o processo de julgamento em que se torna visível a condição humana e é
exatamente esta compreensão que ele transfere a Isaak que em fase infantil nada disso
compreende, mas adivinha que agora é visto como dádiva diária e não como posse de
uma vez por todas
É extremamente significativo que Kafka na hora da sua morte tenha ordenado o
sacrifício da sua obra e tenha transferido a decisão da execução efetiva e final a alguém
que permaneceria na condição em que ele mesmo sempre se encontrou, ou seja, no
processo de adiamento. Com a sua ordem simplesmente transferiu a permanente angústia
da decisão entre objetivação esquecida e assunção compreensiva. Até o fim Kafka vê-se
como fracassado em seu intuito de transformar a poesia, enquanto compreensão de vida e
353
obra, em doutrina objetivada, o que parece impossível, e o seu pedido final parece ter o
intuito de ser fiel até o fim ao que sempre procurou: a compreensão impossível da
objetivação da ocorrência em que estava imerso.
Fracassada foi a sua grandiosa tentativa de transformar a poesia
em doutrina, devolvendo-lhe, enquanto parábola, a consistência e
a modéstia que à luz da razão lhe pareceram ser as únicas
apropriadas. Nenhum poeta cumpriu tão corretamente o
mandado: “Tu não deves construir imagens” (GS II-2, 428).
Abraão pôs em ordem a sua casa, objetivou, mas sacrificou a imagem feita
permanecendo no adiamento enquanto processo de juiz objetivador em auto-condenação,
de culpa e castigo, de esquecimento e rememoração. É o gesto de Kafka. À semelhança de
Abraão, não quer construir imagens e, por isso, procura constantemente destruí-las pela
reescrita para, num gesto de volta, indiciar insistentemente as determinações arcaicas
fundamentais que não deixam de o seduzir. As construções de imagens objetivadas
elaboradas à base de fundamento separado e objetivo devem ser sacrificadas pela
recordação, pois é esta a proibição e é esta a queda, a culpa e o castigo. Mas era sempre
“como se a vergonha devesse lhe sobreviver”. Vergonha de si, da sua família, da sociedade
e do mundo todo na condição de funcionários do repasse geral das forças cósmicas que em
sua compreensão percebe acabrunhado, que também eles fazem parte do seu ser. Na sua
escrita instauradora de indiciamento de tais forças arcaicas na compreensão, ele movimenta
os períodos cósmicos no presente agora, que se transfiguram em culpa e castigo, juízo e
condenação, passado e futuro, objetivação e adiamento, sacrifício enquanto lembrança do
esquecer que se trata da morte da imagem enquanto insistente boneco fantasmático. Kafka
sabe que obedece aos ditames exigentes dessa família e desse mundo que o envergonham e
que lhe reivindicam a escrita. Mas no seu próprio indiciamento ele inaugura o
aparecimento objetivando e permanecendo inexoravelmente na contradição da linguagem.
O lado de baixo do rochedo de Sísifo se torna visível, o que primeiramente não é
agradável por significar que não mais fundamento absoluto, mas apesar disso, é
erguido como se fosse discurso objetivado e justificado definitivamente e, mesmo na
subida, já consciente que irá rolar ladeira abaixo. É uma vergonha o que é em mera
objetivação e em ocorrência: a vergonha sobrevive. Benjamin diz de “Kafka que os seus
romances se passam num lamaçal,...que o esquecimento o torna presente..., que
...esquecimento é enjôo em terra firme... e que é inesgotável na sua descrição da natureza
354
oscilante das experiências”. (GS II-2, 428). Tudo se passa como se houvesse fundamento,
mas ao mesmo tempo não, tanto que a condição de possibilidade e sua execução
permanecem simultâneas em sua ambivalência, e tanto que o esquecimento é a presença do
arcaico hetáirico e a recordação em seu indiciamento se torna nova inauguração. É como
que O enjôo em terra firme, expressão que é uma reflexão partindo do balanço das
experiências oscilantes, como no caso que Kafka conta sobre a irmã que bateu o portão,
mas que logo depois fica em dúvida se bateu ou não bateu. Se ela bateu ou não bateu,
não sabe mais, ou seja, não mais experiência absoluta objetivada, pois sempre haverá
apenas resto e rastro do que foi e que paulatinamente se ajunta enquanto cacos de novo
acontecer. Como pode ter certeza se é acontecer de si ou nova objetivação? Como pode
querer depurar o transcendental quando dele precisamente se fala em objetivação e quando
a própria depuração que se pretende pela linguagem é uma fraude da contradição pelo seu
viés de absoluto?
Há um pântano anterior em que todas as tentativas de tal fraude acontecem: um pré-
mundo que não é o mundo, mas que escondido no mundo interfere enviando o seu convite
no presente. Esse pântano, esse âmbito de experiências é que faz emergir os personagens
femininos de Kafka, que são, como diz, figuras do terreno pantanoso. O caos anterior a
qualquer ordem que as mulheres de Kafka lembram é o símbolo da voluptuosidade, do
gozo, de um passado sem compromissos de explicação construtiva em que a compreensão
à procura da luz da evidência e da transparência se apaga, mas que, por isso, ao mesmo
tempo parece ser o reino dadivoso de todas as perspectivas, já que o reino da luz produz o
ofuscamento de uma construção absoluta e acalenta o esquecimento de todas as outras
possibilidades. Esse pântano caótico cujo terreno não consente fundamentações duradouras
é também um símbolo do passado presente em que os esteios da compreensão estão
mergulhados e a oscilar no seu balanço próprio. Em O castelo a ambígua Frieda, já
engajada num programa administrativo e luzente, recorda-se com saudade da sua vida
passada plena de possibilidades e diz: “Belos tempos. Nunca me perguntaste sobre o meu
passado” (GS II-2, 429). Como no gozo da cópula as luzes da compreensão engajada se
apagam numa situação sem pretensões de argumentação explicativa, mas pleno de
promessa e possibilidade de vida, assim também a volta ao mergulho atencioso no passado
presente traz à luz da atualidade a novidade de se compreender a condição humana ativa e
circunscrita na contradição da linguagem.
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Benjamin chama à atenção de que a técnica narrativa de Kafka é fazer com que se
digam coisas completamente inesperadas, como no caso de Frieda sobre o passado, como
se fosse muito simples e normal, como se sempre se devesse saber sobre o passado
presente pantanoso, como se não fosse nada de novo e que está esquecido nos
circunlóquios inocentemente justificativos. Por isso, o grande herói é o esquecimento, o
atributo maior do ser humano que é “o esquecimento de si” (GS II-2, 429), ou seja, o
esquecer-se do esquecimento da objetivação.
O acusado é o que se esquece de que esquecimento: é a acusação que recebe e é
a sua culpa, pois esquece da ocorrência de que simplesmente é e vai à procura da solidez
das justificativas do que se coloca como meramente imposto na comunidade humana. Mas,
por outro lado, esse esquecimento não é apenas um caso individual, pois o indivíduo em
seu mundo está a esquecer todo o pré-mundo que com ele tem relação multiforme, que,
como visto, está presente como as profundezas do oceano acompanham a superfície
podendo aleatoriamente fazer parte dela a qualquer momento. Benjamin outra imagem:
“O esquecimento é o receptáculo do qual emerge ansioso o inesgotável mundo
intermediário nas narrativas de Kafka”. (GS II-2, 430).
Como nos cultos aos ancestrais na China, a aglomeração dos espíritos emerge
cada vez mais. Ou como no totemismo dos primitivos, os animais são receptáculos do que
foi esquecido. Também a exemplo do romântico Tiecks, Kafka é incansável em perscrutar
nos animais o que foi esquecido. Assim o cavoucar galerias subterrâneas da toupeira pode
ser o gesto da reflexão, o ziguezague da borboleta em desespero lembra alguém oscilante
que foge da consciência da sua culpa, e podemos aduzir o significado de que da mera
queda na objetivação para a compreensão do acontecer sem fundamento definitivo ou,
ainda, a visão do fundamento como acontecer é apenas o dar-se conta do esquecimento.
Como que reflexão animal, o mundo do pensamento em angústia é acontecer sem a
pretensão do domínio de si que, se assim não fosse, seria nova objetivação. É este um
movimento como no direito que inevitavelmente se corrompe no processo da edificação do
seu discurso comprometido com objetivações que jamais poderá provar e na corrupção
liquida a sua pretensão inicial. A angústia emerge deteriorando o fluxo do processo mental
ordinário e exatamente por isso é a indicação para a procura do rastro de si esquecido. O
próprio corpo objetivado de tantos modos, de toda a manada, é o animal mais próximo,
desconhecido e mais esquecido e é por isto que Kafka chamava de o animal à tosse que o
356
roia por dentro. A angústia existencial é no mínimo a suspensão das explicações pela
categoria de causa e efeito, central para qualquer intenção de construção significativamente
coerente. Nessa suspensão a possibilidade da recordação do esquecimento por uma
ruptura com os compromissos de argumentação meramente construtiva para uma
compreensão administrada. E o corpo que somos é animal simultaneamente próximo e
distante, é país estrangeiro e mudo, pois é aldeia cuja linguagem não conhecemos, a
exemplo da parábola anterior. Mesmo sendo mudo, manifesta-se no presente como pré-
mundo, por mais que se construam desvios científico-explicativos: é fome, sede, ardor
sexual e dor que o homem é, mas não sabe o que é, e, quando diz que sabe, promove a
elocução de construtos como discurso do corpo.
Na continuidade da tematização sobre o esquecimento encontra-se Odradek, uma
figura em forma de um pouco carretel, um pouco estrela com alguns fios enrolados e dois
palitos sobre os quais se equilibra e sabe correr sem nunca ser alcançado. Benjamin
interpreta-o como sendo um produto bastardo do pré-mundo com a culpa.
Pré-mundo é o conjunto das forças do passado presente que apenas é percebido
num gesto de volta atento, mas que se relaciona com a objetivação da compreensão
presente. A culpa é o esquecimento da efetividade da objetivação em processo atual, ou
ainda, é um misto de objetivação e percepção da objetivação, pois significa a necessidade
da permanência nela em meio a insistentes avisos acompanhados de angústia e
preocupação.
Odradek é o símbolo do esquecimento da objetivação, ou a forma das coisas no
estado de esquecimento. Ele é o reverso da realidade representacional, quando as coisas
são como artefato produzido numa objetivação separada e não vistas na perspectiva do
acontecer do pensamento sem representação por fundamento algum.
Odradek é feito de materiais caóticos do lixo pantanoso presente, do reverso da
compreensão oficiosamente elaborada, lixo que parece merecer que se jogue fora
continuamente num processo de persistente repressão, mas que se impõe à recordação na
imediação do pensamento enquanto ainda não depurado para o traquejo auto-constitutivo
da compreensão do indivíduo refém da sociabilidade imposta. Como mestiço, tem
elementos do pântano do pré-mundo caótico que se vão agarrando à culpa que é a
percepção da impossibilidade de não objetivar, pois é obrigado a objetivar até o pântano
instaurando-o como entidade significativa. A sua figura lembra a agonia da separação
357
infinita da compreensão em objetivação esquecida e a recordação do seu acontecer
resultando em culpa original e eterna enquanto condição humana. É a questão do
pensamento em duplicata, pois como será? Se o pensamento for a compreensão enquanto
imediação ocorrente, então não pode ser a representação da realidade elaborada na
linguagem, mas o mundo, as coisas, o pensamento e a linguagem são emergência constante
e participações numa totalidade relacionada. Mas, apesar disso, mesmo esta imediação
ocorrente permanece inevitavelmente objetivada no dizer efetivo, centrando-se na agonia
infinita da cisão entre a recordação compreensiva disso e a instauração objetivada do
próprio processo da recordação e do seu conteúdo. A instauração compreensiva da própria
compreensão é um juízo em fuga que a si mesmo se quer apanhar sentenciando a
contradição da linguagem à repetição infinita, pois a compreende e na imediação da mesma
compreensão sempre a repõe. Tal juízo em rápida fuga é a figura de Odradek, do qual
Benjamin diz que “Ele prefere os mesmos locais que são os do julgamento à procura de
culpa e é a forma que as coisas assumem no esquecimento”. (GS II-2, 431). A oscilação
ambivalente ou a rápida fuga de Odradek permitem dizer duas coisas ao mesmo tempo
como se fosse uma maldição: que Deus existe porque se diz que existe e não existe
exatamente por ter sido dito, que é parte da expressão do dizer. A razão sonha com a
liberdade absoluta na autonomia do seu dizer e a compreensão como alma sabe da sua
terrível escravidão no passo a passo de discursos eivados de esquecimento. Odradek é a
figura da preocupação e da angústia que acompanha qualquer compreensão
intencionalmente organizada e administrada para fins de apresentação expressiva e tem,
por isso, a marca do deslocamento possível enquanto percepção da precariedade de
qualquer fundamento.
A figura do homenzinho corcunda é o protótipo desse deslocamento. O gesto
corcunda em Kafka aparece no homem que inclina a cabeça sobre o seu peito denotando,
por exemplo, o cansaço dos membros do tribunal, o tédio desistente frente a quem em
plena demonstração de ainda insiste na pergunta e na procura de fundamento do
exercício em concreta aplicação de uma sentença já há muito tempo promulgada. De
alguma forma os membros do tribunal intuíram que milênios o culpados e que são
cumpridores de uma lei que na justificativa da sua aplicação se desmancha. Eles sabem
que julgam por supostos que não se sustentam e estão no estágio de julgar exatamente
aqueles que não entenderam a inevitabilidade dessa situação. Eles levam a carga de
milênios às costas e se impacientam com quem ainda não decifrou a inutilidade da revolta,
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nada sabe disso, está sendo acusado de culpado exatamente por isso e parece não querer
entender. Em Strafkolonie [Colônia penal] a culpa e a sentença, que o culpado desconhece,
são gravadas em suas costas por uma antiga máquina de tortura até que as próprias costas
tornem-se capazes de decifrar tudo: as costas tornam-se clarividentes, talvez pela situação
pedagógica da dor, da angústia, do acostumar-se com a preocupação e, quem sabe, do tédio
mortal. A antiga máquina de tortura é a nossa velha e conhecida objetivação geral com
todos os seus resultados e em pleno vigor da contradição da linguagem. O homem culpado
leva gravado e cravado nas costas todo o peso da objetivação feita qual camelo da cultura
por um deserto sem fim. Enquanto as costas não se tornarem clarividentes a situação
permanece capaz de ser descrita pela metáfora do sono feito entorpecimento compreensivo,
quase cegado pela luminosidade ofuscante da mesma realidade objetiva que agora lhe
aparece à frente. Entre o estar desperto, mesmo numa compreensão administrada para fins
construtivos sem revisão constante dos pressupostos, e o sono para o descanso das batalhas
que parecem úteis, semelhanças que uma compreensão não atenta desconhece. Entre
uma compreensão atenta ao seu próprio sono instituído e a capacidade de permanecer
insistentemente alerta e acordada, há deslocamentos que ela mesma não pode
compreender. E então é a vez do célebre homenzinho corcunda de Benjamin,
assemelhado com o Odradek de Kafka, que nada explicam quando aparecem, mas
lembram a dificuldade do deslocamento para a compreensão da precariedade de qualquer
fundamento como que zombando com um risinho debochado da inocência alheia.
Conforme um rabino, o Messias viria ao mundo apenas para retificá-lo um pouquinho por
deslocamento. Assim, o homenzinho corcunda desaparecerá. Benjamin faz questão de
lembrar de que tudo isso não trata de “pressentimento mítico” ou de “teologia existencial”,
mas de um tipo de oração cara tanto para Kafka e, certamente, para ele mesmo e que
Malebranche definia como “a atenção a prece natural da alma” (GS II-2, 432). A força
messiânica inicia com a atenção silenciosa para a percepção do pântano presente como
condição para iniciar a existência no compreender o processo de compreensão, mesmo que
seja pela agonia da angústia.
Sancho Pansa. Benjamin apresenta uma parábola que, em poucas palavras, trata de
algumas pessoas numa estalagem que entabulam proposições sobre o que desejariam se um
único desejo pudesse ser atendido de fato. Depois de todos falarem, notam um mendigo ao
canto e lhe perguntam o que faria. O mendigo conta uma fantasia sobre ser rei, ter tudo o
que quisesse, mas depois ter de fugir apressado apenas com uma camisa e sentar então no
359
mesmo banco em que agora está. Quando lhe perguntam o que teria ganhado com isso, ele
responde: - “Uma camisa”. (GS II-2, 443).
Com a parábola Benjamin quer introduzir a intuição do tempo além da forma tópica
de abordagem em termos de deslocamento, ou de oscilação da compreensão em si mesma.
O tempo como intuição também se apresenta deformado quando somente é objetivado
como suporte de equações matemáticas e imagens geométricas. Pelo contrário, o tempo
pode expandir-se ao infinito imemorial e, senão simultaneamente, então pelo menos,
imediatamente comprimir-se num ponto só. Assim todos os períodos cósmicos ou todos os
séculos de algum modo estão presentes na atualidade de cada gesto humano, bem como
cada gesto é ínfima ressonância do tempo total. A compreensão veicula o tempo para si
mesma, para a sua própria atividade reduzindo-se ao mais entranhado infinito microcosmo
até a radiação infinitamente expansiva do macrocosmo. Nesse contexto ressurge, na prosa
de Benjamin, a estória das duas aldeias próximas de Lao Tse, cujos habitantes nunca
deveriam visitar-se como exemplo de piedade. que Lao Tse agora aparece, num tempo
comprimindo séculos, como avô de Kafka, o qual, porém, faz o contrário, pois se queixa da
expansão infinita do tempo da sua memória explicando:
A vida é inacreditavelmente curta. Agora na recordação ela se
comprime de tal forma para mim que custo a compreender como
um jovem pode decidir-se a cavalgar até a próxima aldeia, sem
temer mesmo deixando de lado acidentes previsíveis que o
tempo de uma vida normal de bom êxito seja insuficiente para o
término de tal cavalgada (GS II, 433).
A queixa é de que a vida seja curta em relação ao tempo da possibilidade da
narrativa em recordação dos infinitos detalhes. Portanto, o tempo de vida é comprimido e,
simultaneamente é infinita em extensão quando a vida deve ser narrada para a
compreensão de cada segundo. Mas, também simultaneamente o antigo todo a ser narrado
está presente no imediato de si extremamente próximo. Aí o tempo comprime o presente, o
passado e o futuro em que a imensa massa dos fatos aparece na presença da compreensão.
Desse modo sempre se está no lugar e no tempo em que se deve estar com uma versão
narrativa mais rica de si mesmo. É isso que o mendigo do episódio anterior sabe: ele já está
onde devia estar e cumpre, com a sua narrativa, a instauração compreensiva da sua
presença. Benjamin diz que “ele renuncia a qualquer desejo e troca-o por sua realização”
(Idem, 434). O mendigo no fundo nada deseja, fala com relutância e, então, fantasia
sabendo da sua atual situação de realização compreensiva. O mendigo é o rei da
360
instauração na compreensão que tem da sua situação: ele está consciente da sua situação
concreta realizada em compreensão. “Não tem tempo para um desejo”. [Idem] O desejo
dos outros falantes na parábola aí parece a representação da construção de uma quimera no
esquecimento de que também isso é acontecer vital, enquanto o desejo do mendigo é a
narrativa de si como compreensão na sua situação de agora. A realização desta maneira é a
vida em instauração compreensiva que percebe o tempo enquanto implicado no acontecer:
o acontecer já é tempo vivo.
O acontecer do tempo vivo parece ser a excitação das criaturas de Kafka, de uma
tribo do sul muito consciente de que a vida é breve e assim não dorme e não se cansa,
porque todos são tolos, como os estudantes, as crianças, os seres ainda imperfeitos pelo
fato de talvez não serem ainda completamente definidos quanto a critérios e valores
capazes de objetivação coagulada em ordem repetitiva. Ficam sem dormir de tanta
excitação e temor difuso de perder o melhor da festa da vida ou esquecer algo que possa
ser importante. E Benjamin sentencia: “Mas o esquecimento sempre diz respeito ao
melhor, porque concerne à possibilidade da redenção”. (GS II-2, 435). E é literalmente
isso, pois, do esquecimento, do qual de fato se sabe, sempre advém a salvação,
precisamente o saber da ocorrência em objetivação. A objetivação é inevitável, mas,
simultânea a ela, o melhor de tudo pode ser a permanência persistente de se dar conta de
existir na excitação da novidade daquilo que a cada instante vem a ser. Conforme
Benjamin, em Kafka a indicação de uma ascese mesmo que subterrânea, escondida,
velada:
Nos estudos os estudantes estão alerta, e talvez a melhor virtude
dos estudos é mantê-los despertos. O artista da fome jejua, o
guardião da porta permanece em silêncio e os estudantes velam.
Assim ocultas operam em Kafka as grandes regras da ascese (GS
II-2, 434).
A possibilidade indicada de uma ascese é o exercício da atenção desperta na
admiração dos conteúdos de objetivação que aparecem para justificação (como oração da
alma), a disciplina corporal como o artista da fome em seu jejum e o silêncio do guardião
insistente e negador na escuta do que advém a fim de entrar na porta da lei para fazer parte
do repertório da construção objetivada por algum absoluto.
O ponto alto de tudo é o estudo em andamento, cujos conteúdos não tenham servido
para nada, para o nada. Nada, o conteúdo objetivado prático como nada, pois pode ser
361
qualquer coisa por determinação social, imposição secular da família e da cultura, gestos,
correria, ativismo inconseqüente e inconsciente de rumo. Mas tais estudos “estão bem
próximos àquele nada que primeiramente torna algo útil a saber, ao Tao”. (GS II-2, 435).
É como um martelar extremamente aplicado na consciência constante e terrível do infinito.
Que importância pode ter? Nenhuma, pois é nada entre passado e futuro e nada para ser
relevado pelo grau assustador de mínima importância de uma atividade banal diária, cuja
obrigação para fazê-lo pode resultar num tédio atroz. A objetivação prática de um trabalho
ínfimo e inútil em meio a um infinito todo suposto faz emergir a revolta, ou a tristeza, ou o
sentimento de falta de sentido de tudo. Mas como é que pode existir um martelar que se
exibe de tal modo como se o próprio infinito dele dependesse e, por isso, é pleno de
entusiasmo? Como pode haver um quase fanatismo no apressado estudar do estudo dos
estudantes como se os segredos do universo se revelassem? Como pode haver
importância na enorme atenção de um escrevente a copiar as palavras ditas por um
funcionário que insiste em murmurar quase incompreensivelmente palavras que para ele
mesmo desde muito perderam qualquer sentido: o escrevente, porém, esforça-se na
escuta como se as palavras fossem oriundas da boca da mais importante pitonisa? É que há
um segredo nisso tudo. No teatro da natureza, os atores nada podem deixar escapar, que
seria um mau ator aquele que esquecesse uma palavra ou um gesto. O ator executa a sua
função, sempre alerta e atento às nuances do seu desempenho e se vendo em processo
numa peça teatral pré-determinada. A cada instante pode chegar a descobrir e compreender
novidades completamente surpreendentes na sua fala surrada acompanhada de gestos
repetitivos. Do mesmo modo a teatralidade de um simples martelar esforçado e diligente,
além de, com sua modéstia, fazer parte constitutiva do infinito, pode revelar infinitos
aspectos na própria execução atentamente observada na interação de mão e martelo no
conjunto das circunstâncias em volta. É como se houvesse a compreensão de um infinito
obrigado a se deslocar por aquilo que é feito, observado e descoberto.
Na era da mais profunda alienação dos homens entre si, das
ilimitadas relações mediatizadas que se tornaram as únicas, o
filme e o gramofone forma inventados. No filme o homem não
reconhece o seu próprio andar e no gramofone não reconhece a
própria voz (GS II-2, 436).
Todas as palavras e todos os gestos que pareciam esgotados em seu significado
exaustivamente objetivado em discursos teóricos de inúmeros matizes tornaram-se objeto
362
de estudos dando notícia de um infinito logo ao lado ou junto a qualquer ação, mas um
infinito incomensuravelmente maior do que o suposto até então como resultado da
objetivação geral de acordo com a contradição da linguagem. O martelar com o seu som e
em seu conjunto de mão, martelo e demais circunstâncias, apesar da sua aparente pouca
importância no conjunto tedioso de uma maquinaria em repetição, também movimenta
períodos cósmicos ainda invisíveis e inaudíveis, mas passíveis de serem ainda descobertos
e ouvidos. “A situação de cobaia humana desses experimentos era a situação de Kafka”.
(GS II-2, 436).
Não se trata de defesa do progresso pelo conhecimento produzido, mas da
descoberta do que foi esquecido nos descaminhos internos e invisíveis da organização à
vista em sua compreensibilidade sedimentada. Palavra dita a ser pensada, gesto concluído a
ser decifrado: uma infinita tarefa do pensamento rememorativo a empreender. “Pois é
como que uma tempestade que sopra do âmbito do esquecimento. E o estudo é um galope
contra essa tempestade”.(GS II-2, 436). O passado presente em cada palavra e em cada
gesto é o esquecimento a ser recordado e desdobrado, e a recuperação a ser feita pelo
estudo tem a forma da tempestade que nos sopra no rosto reivindicando atenção para a sua
ocorrência. Toda a palavra e todo o gesto estão carregados com o fardo do passado
esquecido e se trata de cavalgar em direção a esse esquecimento. “Aí se realiza a fantasia
do cavaleiro bem-aventurado que arremete contra o passado numa viagem sem carga, feliz
e sem peso para a sua montaria”. (GS II-2, 436). Mas o contrário também vale: “Infeliz,
porém, o cavaleiro que está preso à sua égua, porque se fixou um objetivo no futuro
mesmo que seja o mais próximo: o depósito de carvão”. (GS II-2, 436). A vida enquanto
contínua descoberta do passado presente e simultânea instauração do seu significado é o
tempo expandindo-se ao infinito, de modo que o verdadeiro futuro está no passado. O
verdadeiro estudo é a Umkehr, o retorno, a volta. É exatamente esta volta que possibilita
compreender o avô, o antepassado Lao Tse que acha quase impossível empreender uma
cavalgada até a aldeia próxima frente às abruptas rupturas para parada recordativa.
Quem de fato sabe o caminho de volta é o cavalo de Alexandre, Bucéfalo, o novo
advogado o qual retornou sozinho, ao contrário do seu cavaleiro imbuído na conquista do
futuro. Bucéfalo é, assim, o novo tipo de advogado que, ao invés de construir seu edifício
retórico e eficaz sob fundamentos não tematizados e esquecidos em aplicações práticas
sucessivas, quer voltar à discussão dos próprios princípios permanecendo atento a cada
363
gesto ou palavra em execução. Por incrível que pareça, Bucéfalo sabe que a justiça é mítica
em seus fundamentos postos e em aplicação e, por isso, tal qual revolução no direito que se
quer em vigor para a edificação e manutenção bem administrada da ordem para todo o
futuro, recorre à discussão e relativização do mesmo. No fim das contas é também como o
astuto Ulisses na sua volta a Ítaca, tendo à sua frente sempre a ira das tempestades de
Netuno, que não quer que navegue, e as ilhas em que aporta como paragens para as
pequenas e às vezes perigosas tentativas de envolvimento com a objetivação local,
libertando-se sempre delas pela recordação do retorno, num esforço hermenêutico
decifrando a situação em que se encontra. Tal e qual guardião diante da porta da lei, ele
não quer deixar entrar ninguém do setor meramente argumentativo para objetivações
gerais: a grande lei é a tarefa da ascese na volta pelo caminho de se compreender que cada
palavra e cada gesto insignificante, maquinal e já sempre objetivado na maquinaria mítica
da objetivação costumeira, é expressão e sinal da palavra e do gesto infinitos ainda não
advindos, mas sempre em possível advento. Numa crítica ao mito do direito, o homem em
frente da porta da lei e à procura de entrada para solidificação de futuro previsível em suas
repetições, deve sempre permanecer em estudo de retorno intermitente a fim de não
poder transformar tudo em mito de acordo com a objetivação na contradição da linguagem.
Mas isso não significa que a justiça esteja deposta, mas é exatamente o contrário, pois é a
justiça que depõe o mito precisamente no caminho de volta. “O direito que não é mais
praticado, mas apenas estudado, é a porta da justiça... A porta da justiça é o estudo”. (GS
II-2, 327). Benjamin arrisca que Kafka tenha encontrado a lei da sua viagem bem-
aventurada pelo menos uma vez num texto seu que é uma interpretação de Don Quixote de
Cervantes:
Sancho Pansa, que, aliás, nunca se gabou disso, conseguiu no
decorrer dos anos desviar de si o seu demônio, que ele mais tarde
denominou Don Quixote, fornecendo-lhe inúmeros romances de
cavalaria e pirataria, de tal modo que este foi levado a praticar as
proezas mais delirantes que, porém, por falta de um objeto
determinado, que deveria precisamente ser sido Sancho Pansa,
não faziam mal a ninguém. Sancho Pansa, um homem livre, talvez
por um certo sentimento de responsabilidade, seguia Don Quixote
com paciência e disso tinha um grande e útil entretenimento até o
fim da vida (GS II-2, 438).
Sancho é um personagem em meio à trivialidade cotidiana geral, como, aliás, o
próprio Kafka, o qual desvia de si o demônio enquanto possibilidade do afundamento na
364
objetividade com seus programados desejos, dos quais sabe que existem administrando-o
no mundo objetivo pela corrupção quietista reduzindo-o a apenas objeto determinado e útil
da grande máquina organizada. Sancho, - ou Kafka -, deu-lhe todas as rédeas na
imaginação realista objetivada, resolveu que o cenário seria o tempo na composição da sua
própria vida e o seguiu com atenção pacienciosa, isto é, na observação de si em tudo o que
é cotidiano objetivado em palavras e gestos e, então, descobrindo e promovendo rupturas
compreensivas num acompanhamento de um caminho de retorno ao passado, que a Don
Quixote parecia futuro, divertiu-se a valer aplicando a ascese na compreensão da
contradição da linguagem como o que é a lei da ocorrência do existir. Sancho Pansa volta
ao passado acompanhando Dom Quixote para o futuro precisamente por ele sempre
inaugurado. Por trás disso, em identificação seqüente, está Cervantes, depois Kafka, depois
Benjamin.
“Enquanto tolo ponderado e ajudante atrapalhado, Sancho Pansa mandou o seu
cavaleiro na frente”, isto é, foi livrando-se da carga do esquecimento que pesa sobre as
palavras e os gestos como se estivessem nas suas costas. O cavalo de Alexandre, “Bucéfalo
sobreviveu à sua carga. Homem ou cavalo, pouco importa, desde que a carga seja tirada
das costas”. (GS II-2, 428).
365
10. ENTRE O DIZER E O DITO
No artigo Hoffnung im Vergangenen (Szondi, P., 242) Peter Szondi refere-se
inicialmente ao livro de lembranças Infância berlinense em 1900 de Walter Benjamin com
uma longa citação de Tiergarten, em que Benjamin louva as vantagens de saber perder-se
numa cidade como acontece na selva: “Não saber orientar-se direito numa cidade...etc.”
Szondi exlica que Infância Berlinense, uma das mais belas poesias em prosa, surgiu
em 1930, foi publicada em partes nos jornais até surgir como obra completa em 1950, dez
anos após a morte do autor. Tal qual Proust, de quem era tradutor, Benjamin estava à
procura do tempo perdido como indicam os títulos Coluna da vitória, Loggias,
Kaiserpanorama, Partida e regresso. Enquanto escrevia a obra, Benjamin confessa a
Adorno que nada mais quer ler de Proust, já que percebe nisso uma dependência que chega
às raias do vício (Idem, 242). Tal confissão leva a crer que Recherche du temps perdu
significava para ele não apenas uma simples influência casual, mas uma afinidade eletiva
que poderia explicar algo da característica da sua obra.
Rilke, Ernst Robert Curtius e Benjamin empenharam-se na tradução e divulgação
da obra de Proust. O período nazista pôs um fim nisso. Mas tanto Rilke quanto Benjamin
ficaram marcados pela obra de Proust, cada um a sua maneira. Além do mais, chegando ao
fim da sua narrativa, em que o narrador coincide com o início do romance quando chega à
decisão de narrar o narrado, Proust mesmo indica o que poderá acontecer aos seus
leitores:
Mais pour em revenir à moi-même, je pensais plus
modestement à mon livre, et ce serait même inexact que de dire em
pensant à ceux que le liraient, à mês lecteurs. Car ils ne seraient
pas, selon moi, mes lecteurs, mais les propes lecteurs d’eux-
mêmes, mon livre n’etant qu’une sorte de ces verres grossissants
comme seux que tendait à uma acheteur l’opticien de Combray;
mon livre, grâce auquel je leur fournirais le moyen de lire em eux-
mêmes.(Idem 243).
366
Mesmo levando-se em conta a grande diferença entre uma obra e outra quanto à
extensão e ao conteúdo, percebe-se a enorme fascinação de Benjamin quando diz: “Como
uma mãe que abriga o recém nascido em seu seio sem o acordar, assim a vida procede
muito tempo com a ainda suave recordação da infância” (Idem, 245). O sentido da frase
indica que quase tudo o que a infância foi permanece encoberto por anos e anos até que de
repente e casualmente reaparece como se fosse um presente.
Mas o tema de Proust é o mesmo que o de Benjamin? A procura do tempo perdido
obedece às mesmas intenções? Ou apenas a aparência da semelhança, podendo ser na
verdade um o contrário do outro? Talvez a fascinação beirando à dependência viciosa que
Benjamin confessa em relação a Proust queira indicar uma diferença fundamental que ele
queira indicar.
Pela comparação chega-se à conclusão de que diferenças fundamentais. O
sentido da procura de Proust pelo tempo perdido encontra-se expresso no fim do livro. O
herói do romance reconhece o sentido e tal fato vem a ser o ponto alto da obra, pois por
isto foi escrita e pelo percurso da mesma escrita se possibilitou. Duas são as fontes de que
provém tal conhecimento e que cedo na obra aparecem. A primeira é a fonte de sentimento
inexprimível de felicidade quando sua mãe lhe um biscoito Madeleine mergulhado no
chá e pelo gosto lhe vem à recordação de toda a sua infância, já que quando criança muitas
vezes havia recebido tal quitute desta forma. A segunda é fonte de desolação, de suspeita
dolorosa que lhe sobrevém quando o seu pai lhe diz que ele não está fora do tempo, mas
que está sujeito às leis do mesmo. Felicidade e susto, essas duas experiências são
percebidas em sua conexão: a razão do sentimento de felicidade da primeira experiência é
a libertação do susto da segunda. Proust vai à procura do passado como tempo perdido a
fim de encontrar esse mesmo tempo e escapar à sua esfera na coincidência de passado e
presente. A sua meta é a perda do próprio tempo na procura do passado como o tempo
perdido.
Em Benjamin é diferente: percebe em cada recordação o prognóstico de uma
experiência acontecida posteriormente. Em Tiergarten, quando lá se encontra perdido
diante do pedestal da rainha, escreve: “Pois é aqui ou por perto que Ariadne deve ter posto
o seu leito, em cuja proximidade compreendi pela primeira vez, e para nunca mais
esquecer, o que mais tarde me veio (me coube) como palavra: amor” (Idem, 246). Cenas
367
semelhantes são narradas em Dispensa, Duas capelas de latão, O acordar do sexo, A febre,
Caixa de leitura. Em cada uma dessas cenas Benjamin encontra indícios, presságios e
rastros da sua vida futura.
Recordações que lhe advêm são as de cunho social quando os seus pais “em
sociedade” davam recepções. Primeiramente do seu quarto o menino ainda ouvia os
convidados e a sua recepção. Depois a “sociedade” que mal se formara parecia esvanecer-
se para em quartos mais distantes dar notícia de si por passos e conversas. A burguesia
com seus costumes observados pelo menino seriam objeto e motivo de reflexão social e
histórica para o adulto posteriormente.
A diferença entre Proust e Benjamin torna-se evidente. Proust procura o passado
para escapar ao tempo: anseia pela coincidência de passado e presente por meio de
experiências que os juntem em experiências análogas. Em última análise procura safar-se
do futuro que significa a morte. Benjamin, por sua vez, procura o futuro exatamente no
passado em seus traços vindouros. Proust escuta o eco do passado e Benjamin nesse
mesmo tempo atenta aos sons de afinação da execução orquestral futura. Diferentemente
de Proust, Benjamin não quer safar-se à temporalidade almejando alguma essência trans-
histórica, mas anseia por experiência e conhecimento históricos. Com isso é reportado a
um passado que não está concluso, mas aberto o futuro. Trata-se do futuro do passado em
que paradoxalmente há futuro no passado.
Benjamin escreve adivinhando a diferença que o separa de Proust:
O déjà vu foi muitas vezes descrito. A designação é
propriamente feliz? Não se deveria falar de fatos que nos atingem
como um eco, cujo som que o gerou parece ter soado alguma vez
na escuridão da nossa vida passada?...Curioso que ainda não se
examinou o reverso desse encantamento o choque com que uma
palavra nos torna perplexos como um mofo esquecido no nosso
quarto. Como este nos faz inferir algo estranho que estava,
assim palavras ou pausas que nos fazem inferir aquela
estranheza invisível: o futuro que ela esqueceu conosco. (Idem,
247).
Definições duplas por metáforas são do estilo de Benjamin e o exemplo do déjà vu
pode servir tanto à sua própria intenção como também à procura mencionada de Proust.
Mas o trabalho de Benjamin é o da recordação como se expressa na frase: “Como raios
ultra-violeta a recordação mostra a cada um no livro da vida uma escrita, a qual glosava o
texto qual profecia”. (Idem, 250).
368
Proust precisa contar toda a sua infância para cumprir a sua tarefa, enquanto que
Benjamin pode evocar somente aqueles momentos da infância que abrigam o prenúncio do
futuro.
A relação entre Proust e Benjamin também possibilita perguntar pelo sentido da
procura deste pelo tempo perdido, já que pelo exposto é uma procura pelo futuro perdido.
Tal perspectiva está ligada ao restante da obra histórico-filosófica de Benjamin em que tal
motivo se torna premente.
Adorno a respeito disso diz: “O ar pelos cenários que se dispõem a acordar na
apresentação de Benjamin é mortal”. (Idem, 251)
O declínio que Benjamin conhece, o qual impede o olhar para o futuro e que lhe
permite ver o vindouro apenas onde passou não é somente experiência sua na sua época.
Por isso a Infância berlinense pertence à pré-história da modernidade, um tema em que
trabalhou nos últimos quinze anos da sua vida como temática geral sob o título de Paris, a
capital do século XIX.
Como Benjamin viu a época da técnica? O fim de Rua de mão única o mostra.
Benjamin critica não a técnica, mas a traição cometida em nome da realização da
técnica. A sua atenção volta-se não mais às possibilidades hodiernas da técnica, mas ao
tempo em que a técnica ainda representava a possibilidade de uma relação entre homem e
natureza no horizonte do futuro e não apenas dominação da natureza. Novamente aí se tem
o movimento de enxergar o futuro no passado, mesmo que o presente esteja negando tal
futuro. O caminho à origem é o caminho de volta, mas um caminho para algo vindouro
mesmo que por enquanto ultrapassado e até pervertido em sua idéia, mas não totalmente
desistente da promessa original. É o caminho paradoxal do historiador que, de acordo com
a definição de Schlegel, é um profeta voltado para trás. De modo parecido Adorno se
expressa em seu viés de análise da vida prejudicada em Mínima moralia:
Filosofia, como ainda somente se pode responsabilizar
frente ao desespero, seria a tentativa de considerar todas as
coisas como por si se representam sob o ponto de vista da
libertação. Conhecimento não tem outra luz do que aquela que a
partir da libertação se dirige ao mundo: todo o resto se esgota na
construção imitativa e permanece um pedaço da técnica.
Perspectivas devem ser produzidas, nas quais o mundo se desloca,
aliena, revela os seus rasgões e as suas fendas como um dia
estará desfigurado na luz messiânica. (Idem, 252).
369
que se comentar o fato curioso de que aqui a citação de Adorno acerta o centro
da filosofia de Benjamin no que concerne ao conhecimento. Pelo menos é o que parece na
frase sobre o conhecimento que é possível a partir da libertação. Falta dizer o que é,
para onde se está virado e o que se entende por luz messiânica.
O desejo curioso de se saber perder na cidade é compreensível a partir da
perspectiva aventada e, como diz Benjamin, treinamento é necessário para tanto e, ainda,
que ele mesmo aprendeu isso bem tarde. Na Rua de mão única lemos: “Quando uma
vez iniciamos a nos orientar no local, então aquela prístina imagem nunca mais pode se
reconstituir”. (Idem, 252). Por causa dessa imagem tão prístina é que existe o desejo da
capacidade de se perder, pois é essa imagem que guarda a possibilidade da recordação do
futuro.
É interessante observar que no texto de Heidegger O que significa pensar uma
referência a Nietzsche da época pouco anterior à sua loucura, um último bilhete que
escreveu a um amigo em que fala de sempre se saber perder e que agora o amigo o teria
achado e, portanto, estaria perdido de fato.
Este motivo da “Infância berlinense” é também reiterado nos escritos históricos,
políticos e filosóficos de Benjamin. É evidente que também a mesma relação possa existir
entre um livro autobiográfico e uma obra de cunho científico como a sobre Origem do
drama barroco alemão.
Na sua Estética o filósofo Hegel se expressa a respeito da cega erudição que passa
ao largo da profundeza sem a compreender, mesmo quando claramente expressa e
apresentada. Deve-se perguntar, porém, se não é inevitável errar tal profundeza toda a vez
em que se abstrai da experiência própria a favor de uma cientificidade mal compreendida,
pois a objetividade está relacionada à subjetividade. Objetividade desvinculada do sujeito é
ficção impossível. Assim, conforme relato de Adorno sobre Benjamin, a idéia central da
Origem do drama barroco alemão surgiu da visão de um rei num teatro de marionetes cuja
coroa se achava deslocada na sua cabeça.(Idem, 253). (
Nas Teses sobre o conceito de História lemos: “O passado leva consigo um índice
temporal pelo qual ele é referido à libertação”. (Idem, 252) Essa frase, por sua vez, pode
ser relacionada com a que menciona a recordação, a qual mostra a cada um uma escrita que
de modo invisível enquanto profecia glosava o texto.
370
O último esforço de Benjamin concentrou-se na fundação de um novo conceito de
história que pudesse quebrar a concepção de um tempo homogêneo e vazio, do progresso
como se fosse uma norma histórica. A sua concepção, ao contrário funda-se na dialética de
futuro e passado, no messianismo e na recordação. Numa das teses usou como dístico a
frase de Karl Kraus: “A origem é o alvo”. Entende-se, então, que Benjamin estivesse na
mesma época ocupado com a pré-história da modernidade e, também, que tivesse há mais
de vinte anos escrito A origem do drama barroco alemão. Suas premissas são
completamente diferentes das costumeiras. Os conceitos de gênero da poética estranhos à
história para ele se tornam problemáticos e assim chega a seguinte determinação:
Origem, apesar de inteiramente categoria histórica,
mesmo assim nada tem em comum com começo. Com origem não
se pensa em nenhum vir a ser do que surgiu, mas muito mais do
que surge em meio ao vir a ser e deperecer. A origem encontra-se
no rio do vir a ser como o redemoinho e puxa para dentro do seu
turbilhão rítmico todo o material que surge. No nu e evidente
estado do fático o original nunca se a conhecer, e apenas a
uma visão dupla o seu ritmo se capta. Ela quer ser reconhecida
como restauração, como reconstituição por um lado, e exatamente
nisso, como incompleto, inconcluso por outro. Em cada fenômeno
de origem se determina a figura pela qual uma idéia se arranja
com o mundo histórico até que se encontre consumada na
totalidade da sua história. Portanto, a origem não se põe em
evidência frente ao estado fatual, mas concerne à sua história
anterior e posterior.[...] O autêntico aquele selo de origem nos
fenômenos é objeto de uma descoberta, uma descoberta que se
liga de um modo único com o reconhecimento.(Idem, 254).
A categoria que se relaciona com a recordação é a experiência, cuja atrofia a seu
ver caracteriza a modernidade e da qual diz que Proust procurou reconstituí-la em meio às
condições da sociedade de hoje pelo modo sintético, ao passo que em “Baudelaire a
recordação recua em favor da memória. Chama à atenção que nele poucas recordações
de infância”.(Idem, 254). Mas qual seria a desvantagem disso? É o que outra frase lapidar
explica: Na memória se precipitou a crescente alienação do homem que inventaria o seu
passado como posses mortas. No século XIX a alegoria evacuou o mundo ao derredor para
se instalar no mundo interior (Idem, 254).
O inventário do passado, com o qual a alegoria do barroco é virada para o interior é
o correlato com a concepção histórica costumeira. As teses sobre a concepção da história
procuram destruí-la.
371
A compreensão disso talvez seja que perceber o passado como definitivamente
passado, sem ação correlacionada no presente com o sujeito que assim percebe, expressa o
sentimento de desvinculação orgânica do sujeito com o assim chamado externo das
circunstâncias para se ensimesmar numa barafunda puramente racional pretensamente
manipulativa: a razão autônoma e solitária explica e cria o assim chamado externo a partir
das suas categorias. A explicação solitária por alegoria é o substituto disso na procura do
sujeito por sentido do que está posto conforme a pretensão de uma objetividade
absolutamente desvinculada do mesmo sujeito.
Benjamin editou uma coleção de 25 cartas sob o pseudônimo de Detlef Holz, em
que aparecem os nomes de Lichtenberg, Voss, Hoelderlin, Goethe, os irmãos Grimm,
David Friedrich Strauss, Georg Buechner. O livro chama-se “Personalidades alemãs” e,
num exemplar, ele foi dedicado à sua irmã Dora para ser uma arca de acordo com o
exemplo judeu. Por que? “É dado o dom de acender a chama da esperança no passado
apenas àquele historiador que é perpassado pela convicção: até os mortos não estão
seguros diante do inimigo quando ganha”.(Idem, 254). Portanto, a arca significa a
promessa que existe no exemplo dos mortos, que é capaz de alcançar aqueles sobreviventes
que se deixaram enganar imaginando as circunstâncias da época como uma enchente
frutífera, mas que na verdade era o próprio dilúvio.
Por fim, pode-se afirmar que Szondi percebe claramente a postura de Benjamin que
é a de se voltar ao passado de si com as circunstâncias da época a fim de vasculhar o
significado lá inscrito como se fosse uma escrita presente e póstuma ao mesmo tempo, mas
ainda capaz de acordar no tempo presente o bom leitor. A pergunta que se faz ouvir é: o
que impede que na época exata se leia corretamente? O que impede que muitos não
acordem pela rememoração nem em tempos posteriores? um impedimento fatal, uma
dificuldade enorme por vencer a fim de que se chegue ao entendimento considerado
correto. Que impedimento é esse?
A tese é a de que se trata da contradição da linguagem quando esta se concentra
exclusivamente na objetivação.
372
CONCLUSÃO
Rastlos vorwärts musst du streben,
Nie ermüdet stille stehen,
Willst du die Vollendung sehen;
Musst ins Breite dich entfalten,
Soll sich dir die Welt gestalten;
In die Tiefe musst du steigen,
Soll sich dir das Wesen zeigen.
Nur Beharrung führt zum Ziel,
Nur die Fülle führt zur Klarheit,
Und im Abgrund wohnt die Wahrheit.
(Sempre à frente na aspiração,
Jamais cansado fica imóvel,
Se quiseres consumação;
Em amplidão te desenvolvas,
Que o mundo se molde a ti;
Às profundezas tens que ir,
Para mostrar-se a ti a essência.
Leva ao alvo só a persistência,
Só o pleno dá claridade,
E no abismo está a verdade.)
(Schiller, F. Sprüche des Confuzius,
Saemtliche Werke, Bnd 1, S. 227.)
Na aposta de que uma posição filosófica enquanto ponto focal declaradamente
determinante como também subjacente esteja a caracterizar todo o percurso teórico de
Walter Benjamin aparentemente disperso em seus interesses voltados às mais variadas
áreas do saber, a presente tese almejou indiciar, elucidar, apresentar e tematizar, num
percurso meditativo e crítico imanente aos textos, a sua concepção de filosofia relacionada
com a contradição da linguagem.
Pôde-se ao longo das tematizações dos textos, que para esta tese mais de perto
interessam, perceber que tal posição filosófica vai bem mais além do que mera assunção,
discussão e defesa de grupos de conceitos epistemológicos estruturados como sistema,
373
mas convidando a estes mesmos nesse mesmo caminho para a revisão das suas próprias
condições de argumentação para um diálogo que não esteja esquecido no desejo de
somente autoconstrução, competição e eliminação mútua.
A posição filosófica que se conta da contradição da linguagem ativa-se além da
já apequenada retórica de manutenção estratégica de pontos de vista filosóficos no ápice da
cultura, pois permanece na retaguarda e em meio ao exercício dinâmico da escuta, da
notícia mútua em admiração e da organização concreta de inter-relações. Além das
vantagens da sua aproximação com a arte, a teologia, a história, a política, a ciência e a
tecnologia, a posição filosófica de Benjamin é um determinado âmbito de abstração
reflexiva que se expressa numa postura de avaliação de auto-compreensão como jeito de
ser à medida que constantemente se conta e descobre a contradição da linguagem nas
objetivações que se sucedem.
Pelo exposto, também o método empregado no presente trabalho foi o constante
diálogo crítico com os textos em questão para poder elucidá-los em sua profundidade. Ele
pautou-se, por isso, numa interpretação interna e seqüente apresentação do sentido do
texto. Ao longo da apresentação e elucidação dos textos enfocou a tese de que o
pensamento filosófico de Walter Benjamin se elabora pela descoberta, apresentação e
aplicação da contradição da linguagem.
Mesmo que a filosofia de Benjamin à primeira vista se caracterize como amálgama
ou até proliferação de idéias em desesperado descentramento típico da Pós-modernidade,
ela na verdade é uma provocação para um exercício que em seu percurso apresenta
insistente e intermitentemente a possibilidade de relação com todas as áreas de saber. A
aposta e a descoberta fundamental é a de que, pela contradição da linguagem, uma
relação entre todas as áreas e modos de pensar e dizer que pode ser motivo de descoberta.
Todas as manifestações de construção de fundamentação para os fins da
objetivação na linguagem mostram-se precárias, parciais, e é apenas no esquecimento da
própria insuficiência que se constroem absolutos. Um fundo silencioso não identificável,
mas sempre suposto inevitavelmente na instauração do sentido na linguagem, é a própria
abertura que possibilita a saída para novos horizontes além dos reducionismos totalitários
dogmática e competentemente instalados. Qualquer todo fundamental que se apresente em
sua descoberta expõe-se manifestamente como parte, pois a sua circunscrição, definição e
nomeação constantes chamam à atenção para o fato de que sua exposição descritiva é
374
apenas atividade participativa nele, mas de evidente importância por agregar-se ao
universo do sentido presente historicamente.
Toda evolução operatória construtiva que se mostra na ocorrência do empírico
carrega consigo esse fundo ambivalente que o refere à contradição da linguagem. É ele
transcendental enquanto presença de toda a pletora do sentido sempre presente na
linguagem, elaborado por todos os séculos, na sua maior parte esquecido, mas atuante nas
aplicações compreensivas sonâmbulas da atualidade? São as figuras platônicas que no
Mito da caverna se interpõem entre o sol e o fundo da caverna para em sua parede
projetarem as sombras que enganam a quem está amarrado e preso no assento da
acomodação da irreflexão a apontar movimentos absolutamente objetivos e definitivos em
sua forma de explicação? Seja qual for a resposta à questão, sempre haverá nela a intenção
de aclarar objetivamente o estado de coisas a partir de um fundamento mais além,
inevitavelmente suposto, desconhecido e imediato acompanhante dos esforços na própria
elaboração de qualquer dizer. A intenção da objetivação inerente à linguagem em
ocorrência em qualquer discurso sempre afirma muito mais do que propriamente consegue
sustentar, pois aponta para um âmbito que considera estar separado dela na presunção de
argumentos seguros à base de fundamento confiável. Tanto o fundamento presumido,
porém, como também os objetos apontados não conseguem abandonar os limites da
linguagem, da qual, então, fazem parte relativizando-se como falsos absolutos para se
afirmarem como uma das suas expressões. Da sua contínua, impetuosa e inevitável
tentação de inaugurar reinos metafísicos além de si mesma, e no esquecimento de si em
auto-execução, a linguagem consegue buscar o retorno a si no desmonte do seu delírio
construtivo pela recordação destruidora e silenciosa do que presentemente prima pela sua
ausência. O dizer atual se expressa na presença de um dito silencioso que o carrega e no
qual participa dele emergindo sem cessar ao modo de noticiamento em que o mensageiro
continuadamente esquece a relação de si mesmo com a mensagem que certamente o define.
duas maneiras fundamentais nos quais a linguagem imprime a sua dinâmica. A
primeira delas é a direção de objetivação construtiva a partir de um fundamento suposto na
atividade do que é proposto como aplicação continuada pelo uso de estratégia política,
missões variadas, propaganda, retórica sofística, apologia, defesa e acusação jurídica.
Nesta direção o que interessa é a edificação de torres, que não pretendem jamais ser
derrubadas na confiança da excelência dos seus fundamentos, e a arregimentação de
375
exércitos, que defendem e atacam, confiantes no bom desempenho dos instrumentos e das
armas que utilizam mecanicamente e satisfeitos com as vozes de comando que parecem
traduzir princípios merecedores de cega obediência. A segunda delas é a volta e o retorno à
verificação e à tematização dos fundamentos, o que leva ao dar-se conta de que todos eles
são expressão de linguagem endurecida por determinadas e superpostas teceduras feitas de
conceituações carentes da recordação dos caminhos em que chegaram a vir a ser o que
agora são. A primeira delas é a concepção que caracteriza a linguagem como instrumento
de uso para a denotação, ou de sinalização objetiva e externa de algo que o falante aponta
como se fosse separado de si mesmo. Por essa perspectiva ele intenta reproduzir no
pensamento e pela linguagem algo que se lhe apresenta como objeto de realidade em si e
fora da circunscrição da linguagem como se limites houvesse, bem como também ao modo
de exterioridade daquele que fala para que o mesmo possa constituir-se sujeito articulador
do processo. O sujeito assim se supõe fundamento para conhecer e representar em si
figurativamente uma realidade objetiva externa a si pelo uso instrumental da linguagem.
Desse modo ele considera a linguagem como um mero instrumento de uso inventado
aleatoriamente para satisfazer os interesses da sua razão autônoma. Necessita, então,
exercer sem cessar o controle e a análise sobre a realidade e as suas modificações no
sentido externo, além de ainda sobre as suas próprias capacidades motivado pela
necessidade de vigilância para a eficiência da representação que faz em termos da verdade
como adequação. O sujeito julga-se suporte do seu discurso, pois considera que quanto
mais puder observar, calcular e analisar o que se lhe apresenta como externo e separado de
si e quanto mais puder estabelecer, também por análise, as próprias condições internas que
lhe possibilitam que explique a correspondência entre ambos os pólos, tanto mais firme
permanecerá em seu posto de autonomia racional. Num processo de recorrência continuada
necessita, pois, assegurar-se de que as condições da fundamentação em si mesmo e o uso
da linguagem instrumental estejam corretas para que a adequação à realidade seja realizada
por representação perfeita. Com tal processo de objetivação o sujeito procura instaurar um
fundamento sempre separado de si mesmo que precisamente o fundamente como sujeito, a
fim de que seja possível o julgamento sobre a correção do trabalho de análise e elaboração
do objeto separado e fixo em frente. Todas as fundamentações objetivadas resultam
precárias por pretenderem estabelecer a totalidade absoluta por um discurso dela separado
que nunca poderá sustentar-se. O resultado, como dito, é a impossibilidade de
376
fundamentação total e absoluta de qualquer discurso que suponha fundamentação possível
para a justificação de objetivação separada do seu dizer.
A segunda maneira com que a linguagem imprime a sua dinâmica de contradição
trata da compreensão da mesma enquanto intermitente expressão da própria totalidade que
necessária e inevitavelmente sempre supõe pelo fato de nela participar. Tal expressão
inclui todas as formas de explicação elaboradas na linguagem sobre fundamentação,
subjetividade e objetividade. Como visto na primeira secção deste trabalho de tese, sendo a
própria linguagem com todas as suas virtualidades imediatamente expressão da
totalidade que inevitavelmente supõe, então todas as tentativas de fundamentação fazem
parte do seu acervo expressivo, pois não como elaborar algo expressiva e
significativamente sem linguagem pela qual é inevitavelmente elaborado. Desse modo o
homem se define pela linguagem que mesmo é, pois sempre se relaciona com a linguagem
total das coisas que está precisamente a traduzir conforme visto na segunda secção.
Qualquer manifestação intencional de construir edifícios de fundamentação será
acompanhada pela linguagem que é, mas que está a esquecer na ilusão do absolutismo da
objetivação.
No texto da primeira secção que versava sobre a indicação e a descoberta da
contradição da linguagem chegamos à conclusão de que dizer que algo é, descrever que
algo é desse ou daquele modo, o que implica supor que mesmo se é no e como exercício de
descrição, explicação e interpretação; implica a veracidade do seu exercício e, mais ainda,
implica supor que aquele que diz, ele mesmo está sendo ao falar, o que poderá tentar
provar na atividade explicativa em objetivação e não o consegue, pois, para o conseguir,
terá de mencionar algo além de si, dentro de si ou ao lado de si, ou seja, para ser, precisa
dizer algo outro dizendo a si mesmo, isto é, está na condição de se afirmar a si mesmo no
exercício de afirmar algo outro. O outro em objetivação além de si como se fosse fora de
si, e que ele intenta expressar apontando-o, também não pode ser sem a afirmação
definidora daquele que se identifica pelo ser que se expressa ao dizer a si mesmo
justamente desta forma. Ainda no mesmo local acentuava-se que se afirmar a si no
exercício de afirmar é ser afirmando algo que se coaduna com o que é como
compreensão, um conteúdo sobre o qual se julga. Mas, exatamente o conteúdo julgado com
pretensão de objetividade comunicativa é a afirmação feita que descreve expressivamente
aquele que a faz. Não como dizer algo outro sem se descrever a si mesmo no que diz e
377
descreve, ou ainda, sem fazer expressivamente o desenho de si pelo próprio exercício do
dizer. Tudo o que se compreende ao dizer é inevitavelmente a própria compreensão que é
um acontecer constante sem possibilidade da garantia de objetivar algo enquanto
absolutamente outro como separado, à parte de si. A separação, a dicotomia entre o
conteúdo e o próprio exercício de falar, entre objetivação necessária e atividade pragmática
em ocorrência efetiva é uma intenção sem sucesso, inexistente, mas é como se fosse
possibilitada por um determinado esquecimento, de modo que acontece um constante
descrever-se a si mesmo, porém, na intenção de descrever o outro em termos de objeto. Por
este viés, qualquer julgamento feito é julgamento de si mesmo e a divisão tentada é divisão
de si mesmo. Definição explicativa apenas de outro seria hermenêutica parcial, separação e
estranhamento no reino da objetivação pura, caso houver esquecimento de que não há
meios de haver separação.
Esta segunda maneira de a linguagem imprimir a sua dinâmica de contradição
inerente a si não se pode simplesmente identificar com o pensamento substancialista que se
expressa como Teologia negativa, pois a nominação do todo e das suas qualidades pela
via da negação já aposta na possibilidade de definição. Trata-se antes do âmbito do silêncio
em que o infinito do dito com suas possibilidades jamais pensadas condições e obriga a
inaugurar o novo em constante descoberta pela recordação. É condição humana descrita
como o anjo apavorado da IX Tese de Sobre o conceito de história, que sempre faz parte
do que e desaprova a ponto de ser sem poder alçar o seu vôo para algum além onde se
pudessem apresentar as garantias da fundamentação absoluta ou grande novo início sem as
ingerências do que foi produzido em termos de sentido objetivado e instaurado
historicamente e de que faz parte. A libertação, ao contrário disso, inicia-se vendo e
indicando a catástrofe, isto é, a solução vem a ser o indiciamento constante e a sua
insistente aplicação a todos os materiais significativos emergentes ao modo da objetivação
na cultura humana, principalmente aos que veiculam o culto ao progresso pelo catastrófico
esquecimento da contradição da linguagem, o qual tantos e tantos escombros já produziu:
“Minhas asas estão prontas para o vôo,/ de bom
grado voltaria atrás,/ pois mesmo se eu permanecesse tempo
vivo/ minha felicidade seria menor.” (Gershom Scholem,
Saudação do Ângelus)
Há um quadro de Klee denominado Angelus Novus.
Representa ele um anjo que parece estar na iminência de
afastar-se de algo em que crava fixamente os olhos. Tem os
378
olhos esbugalhados, a boca aberta, as asas desdobradas. Tal
é o aspecto que deve ter o Anjo da História. Tem este o
semblante voltado para o passado. onde nós vemos uma
cadeia de acontecimentos, ele apenas uma única
catástrofe que não cessa de amontoar escombros sobre
escombros e de arremessar esses escombros a seus pés. Bem
gostaria ele de demorar-se, de ressuscitar os mortos e juntar
o destroçado. Mas, do Paraíso, sopra uma tempestade que se
prende a suas asas, tão fortemente, que o anjo não as pode
fechar. Essa tempestade o empurra incessantemente para o
futuro, a que ele as costas, enquanto diante dele o monte
de destroços se acumula até o céu. Essa tempestade vem a
ser precisamente o que se chama progresso.
A contradição da linguagem, pelo visto, recorda a possibilidade de inúmeras
interlocuções com teorias já inauguradas e instituídas como fator de compreensão em
aplicação naturalizada no cotidiano, de acordo com a frase surgiu a juventude das
conversas obscuras”. (GS II-2, 96). Conforme dito, trata-se dos limites entre o sonho e o
despertar e a pergunta sempre será sobre quando é sonho e quando é acordar. A
visibilidade máxima dá-se como intenção de estabelecer os limites precisos dos conceitos
em uso a fim de que possam ser considerados indiscutíveis: a clareza e a distinção que
intenta possibilitar a transparência de qualquer conversa procura-se atender pela exata
circunscrição dos conceitos utilizados. Mas também isso é construção que a edificação
da delimitação asséptica de determinado número de conceitos depende de mãos conceituais
e cabeças compreensivas mergulhadas no imenso mar de possibilidades da linguagem que
então assinala que os absolutos conceituais são apenas esquecidas possibilidades inscritas
em seu meio. À primeira vista o altar da visibilidade parece ser o símbolo da saúde da
linguagem e da vida pela segurança da terapêutica que supostamente oferece, mas logo se
manifesta como apenas deslocamento para o túmulo de uma compreensão compenetrada
na aplicação de objetividade à base de fundamentos que esqueceu de compreender como
possibilidades advindas no âmbito da linguagem. Por isso, o surgir das conversas obscuras
conjuga-se com a recordação de escutar as determinações da compreensão ocorrente de
agora, no volver-se em admiração ao que surge para ser inaugurado e constituir a verdade
da experiência. “A essência irradiou”. (GS II-1, 96). Na compreensão da contradição da
linguagem, o esforço de edificação por fundamento torna-se vão, pois a irradiação da
essência dá-se na movimentação de se voltar num retorno à procura pela descoberta dos
fundamentos que sempre estão infinitamente subjacentes. As fundamentações
379
descobertas e inauguradas irradiam a essência enquanto continuidade da linguagem criativa
e nomeadora. O esquecimento constitutivo também constitutivo da linguagem inaugura e
instaura uma discussão à base de um fundamento objetivado e dela separado e, por
intermédio desse fato, também o engano da possibilidade de uma construção de
significações que pudesse ser absoluta num percurso de um tempo homogêneo e vazio
alastrando-se num espaço infinito. Em tal construção absoluta o homem nunca está em
casa e continuamente se engana na perdição com tal familiaridade suspeita.
Institui-se constantemente e se é instituído. A tradição ativada pela tradução dos
seus materiais lingüísticos e compreensivos é o meio em que se está e que se é. Ela, porém,
é agora instituída como determinante, pois é construção feita do material constituidor do
que agora é. Nessas circunstâncias o passado é sempre resultado do que se diz agora e
muda ao sabor do constante dizer. O sentido da repetição, a fixação de sentidos e a
permanência sem tematização de conteúdos de compreensão podem dar-se na
inconsciência de suas operações a acontecerem simplesmente. A repetição como resultado
da obediência aos comandos de fundamentos esquecidos condições ao surgimento do
sentido do tempo a passar ou às regularidades dos dias de enfado nele atravessarem
incessantemente. O tempo sem o idêntico repetido de vez por vez entre diferentes
desaparece. Como, aliás, tudo desaparece permanecendo o que na compreensão chega e
some para dar lugar, qual sentido da frase de Anaximandro “Todas as coisas se dissipam
onde tiveram a sua gênese, conforme a necessidade do tempo; pois pagam umas às outras
castigo e expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo” (Bornheim, G., 25).
Quem garante o rastro de si que quer deixar e quem garante a sua interpretação já que o
rastro será, ou foi? Achegando-se mais à questão, quem garante a si mesmo a acontecer, a
não ser o paradoxo do acontecimento que é e não domina no espanto da ocorrência da
compreensão, seja do que for pela contradição da linguagem? Qual o sentido de
construções a partir de compreensões veiculadas por pressupostos que podem sempre ser
cassados e eliminados, se a ocorrência do acontecer da compreensão é insondável, seja ela
automatizada para repetições, seja descortinadora e desveladora de novas paragens? Por
que compreender e pensar? Como se compreenderá o ímpeto que há nas perguntas sobre
por que, como, e para que? A criação catastrófica de monstros teóricos em que nos
tornamos a compreender, quem é que avalia, liberta ou liquida? Como houve isso para
agora estar havendo? O ouvinte, que no silêncio direciona a compreensão e o sentido,
sendo também mero ocorrente, mera ocorrência compreensiva, sabe a direção? Resolve
380
para onde? Também ele é compreensão, seja do que for e a pretensão do domínio é vã.
Pois fixada a compreensão, o que é que haveria? Fixação esquecida que ao primeiro tédio
se esfuma para permanecer a mesma questão que é a questão. Pois como se daria a resposta
para a pergunta sobre o sentido da pergunta? Qualquer resposta seria traição-ilusão e
qualquer permanência na pergunta é a questão, o haver do ser em que está como
compreender, sem compreender a razão de tal ocorrência de compreender. A vaidade das
construções compreensivas é castigo em edificação, vaidade esquecida mesmo que à vista.
O reconhecimento da vaidade é o aspecto destrutivo ainda das construções que são,
enquanto que a pergunta a querer compreender as compreensões também ainda está
comprometida com projeto, pois o que surge é o rastro instituído, nova construção. Não e
nem perguntar, imergir no sonho da ocorrência da compreensão e admitir a representação
teatral a passar, pode haver isso? O silêncio da palavra, a escuta infinita, o desmonte da
pretensão é a música, o gozo e a morte? Entre a continuidade da pergunta, do ensaio de
resposta e da pretensão de compreensão conteudista e objetal, melhor é o silêncio, e
pronto? Que as bobagens, se é que são, a serem ouvidas tenham a mera compreensão de
participação no riso da vida. Não se sabe quem é e nem quem está de fato a rir, e nem o
que seja riso, ou a sua importância. o riso filosófico, mas também o riso da criada do
primeiro filósofo, Tales de Mileto, a tropeçar fixando estrelas no alto. Qual é mais
participante?
A contradição da linguagem faz lembrar, pela primeira das suas dimensões, o
deboche que se fazia a respeito da explicação da teoria da gravitação universal de Newton.
Um burguês rico e ignorante ouve com satisfação do seu professor pobre, um nobre
decadente da época, que a explicação da virtude que o ópio tem de fazer dormir é devido à
causa da chamada virtus dormitiva. Qualquer grande metáfora ativada como explicação
última funciona só enquanto desconhecida novidade instituída, numa crença de que seja
explicação segura, até novo reexame, nova pergunta, nova admiração descobridora e
filosófica, que a resposta é elemento participativo na linguagem. A rigor, nada teria
explicação absoluta, a não ser provisoriamente e, assim, toda a explicação, para poder
funcionar, já necessitaria do esquecimento da autoridade de princípio que a instaurou como
absoluto.
Na tematização das mais diversas áreas do saber Benjamin preocupa-se com a
postura e o papel da filosofia. A pergunta central que transparece é a de como se pode ou
deve entender a atividade filosófica em meio aos fenômenos mais diversos da pós-
381
modernidade em seus deslocamentos radicais em termos de teorização no âmbito das
ciências humanas, das ciências exatas, das artes e da teologia. Sem poder substituir a
vitalidade emergente da atividade nos campos mencionados ela acontece como procura de
relação pelo próprio processo de sua auto-limitação tendo a contradição da linguagem por
pano de fundo como que avaliador do que acontece na cena em frente.
A filosofia a partir da contradição da linguagem sempre relacionada com a história,
com a pesquisa e com o aspecto criativo da arte descobre deslocamentos, novas formações,
transformações a partir de elementos comuns e aponta a transfiguração dos mesmos em
novas constelações ativadas como travejamento para a compreensão normalizada de
épocas inteiras. A essa temática agregam-se os conceitos de tradição, origem, aura e tempo
para serem relacionados à compreensão do que seja a aventada normalidade da conexão
entre sujeito e objeto. Não se pode esquecer que história não pode prescindir da linguagem
e sua contradição, pois é narração objetivada como qualquer discurso armado com
conceitos para a sua auto-justificação. A linguagem assim é a expressão em locução
ocorrente da essência e nunca a própria essência em si nela somente objetivada. A idéia é a
de que a linguagem descreve o ser humano seja qual for o conteúdo a que se atém,
havendo, portanto, uma ambigüidade fundamental nela mesma quando sempre exerce a
capacidade de apresentação de si e dos conteúdos veiculados em seu querer dizer.
Repetimos a frase de Benjamin numa nota do texto “Sobre a linguagem em geral e a
linguagem dos homens” e na qual pergunta: “Ou não é antes a tentação de pôr a hipótese
no início que faz o abismo de todo o filosofar?” (GS II-141). A pergunta, como visto, é
pertinente e é a indicação de uma das questões filosóficas fundamentais de Benjamin, isto
é, a constante objetivação necessária para que a linguagem possa existir como atividade de
apontar para algo, mesmo que espiritual, em constante dependência das hipóteses que,
desconhecendo-as ou não, possibilitam o seu exercício atual.
Conforme já afirmado, a tese sobre Walter Benjamin se propõe acompanhar a
presença do que ele mesmo denomina de a contradição da linguagem e verificar a sua
importância como vetor de compreensão da sua obra em determinados escritos
fundamentais.
Foram dez os escritos que constituíram a motivação das dez secções da presente
tese em que a contradição da linguagem é descoberta, indiciada, apresentada, suposta e
aplicada como ponto focal ou fio condutor para a compreensão da obra de Walter
382
Benjamin. A continuidade da pesquisa pode guiar-se pela hipótese de que em cada um dos
textos a contradição da linguagem esteja representada nos termos indicados. Poder-se-á
certamente também aprofundar a verificação da sua relação mais direta com a teologia, a
história, a arte, a política, a ciência e a tecnologia favorecendo a interlocução que desde o
início constituiu-se em motivação fundamental para o presente trabalho. Além disso,
apresenta-se um leque de conceitos importantes, capaz de garantir a viabilidade e o
interesse de pesquisa futura, quais sejam: alegoria, aura, experiência, recordar, Eros, narrar,
idéia, crítica, obra de arte, mito, salvação, revolução colecionador, destino, citação,
passagens, e outros.
As dez manifestações literárias analisadas estão, portanto, sob a égide da
contradição da linguagem como, aliás, se depreende da organização dos tulos das dez
secções. A expressão em si mesma refere-se ao fato de que na linguagem e com a
linguagem se pressupõem duas aventadas dimensões fundamentais.
Por fim, reiteramos o núcleo da tese:
- A contradição da linguagem, com a qual Benjamin conta como fio condutor em
seu pensar sedimentado nos escritos analisados neste trabalho, dá-se pelo suposto da
objetivação inevitável em que a razão humana já há tempo se perde como, por exemplo, no
célebre Trilema de Muenchhausen por explicações que levam ao regressus ad infinitum, ao
argumento da circularidade e do início por evidência na suposição de uma metáfora
fundamental que pudesse justificar todas as questões.
- Pela objetivação sempre um suposto que, quando buscado, se elimina em favor
de um pressuposto mais abrangente, mais profundo, ou mais elevado, que também não
bastará na sustentação de si como fundamento primeiro, porque sempre é considerado fora
do âmbito da linguagem, percebido como separado da linguagem, à parte e independente
dela como se ela pudesse nominá-lo.
- Ninguém consegue escapar à contradição para falar de fora dela, porque a fala
necessariamente objetiva e pressupõe e, ao mesmo tempo propriamente se expressa
supondo um âmbito que nunca conseguirá nominar. Na objetivação ocorrente da fala a
inevitabilidade do fundamento assumido, mas na sua verificação sempre precário.
- A contradição da linguagem é a própria idéia da possibilidade da filosofia como
procura, relação, descoberta e avaliação dos fundamentos de algo já posto em atividade na
ocorrência da compreensão pelo exercício de aplicações rotineiras. É o movimento sempre
383
contrário ao contexto de justificação que prima pelo interesse da sedimentação continuada
de construtos de fundamentos.
- A contradição da linguagem é o que sempre se fala a partir da suposição de um
fundamento posto inevitavelmente e em exercício, que na filosofia cabe descobrir em
suas relações e dimensões.
- A contradição da linguagem inaugura objetivando, mesmo na descoberta do
fundamento em exercício aplicativo, e, ao mesmo tempo, pode recordar a participação da
linguagem no âmbito do silêncio inacessível a qualquer uma das suas definições sonoras.
- A contradição da linguagem permite escutar, observar e avaliar discursos
contraditórios esquecidos da sua verdadeira condição itinerante. Nos textos analisados,
Benjamin supõe em sua abordagem que quem entendeu a questão de forma acurada foram
Hoelderlin, conforme a segunda secção, e Kafka, conforme a nona secção.
- A forma de figurar Benjamin é tal que ocorre na compreensão do seu modo de uso
do esquadro da contradição da linguagem. Ela trata da condição humana.
384
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