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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A filosofia da linguagem em Platão
André Antônio Ribeiro
Orientador: Prof. Dr. Jayme Paviani
Porto Alegre, janeiro de 2006
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Resumo
Na filosofia da Platão, as Idéias são postuladas para serem a referência extralingüística
objetiva que garantiria a significabilidade da linguagem. O problema é que, tal como
apresentada nos diálogos República e Fédon, a Teoria das Idéias tem graves inconsistências,
sendo a não menos importante o fato de não explicar como as Idéias se relacionam com o
mundo sensível, o que é o mesmo que dizer que elas são incognoscíveis. Platão, através de
uma crítica à sua própria Teoria das Idéias e às concepções de linguagem defendidas pelos
sofistas, reformulará, em aspectos importantes, a sua Teoria. O que queremos enfatizar neste
trabalho é que, para essa reformulação, Platão utilizará a linguagem, tal como a usamos no
dia-a-dia, como paradigma para resolver os problemas da Teoria das Idéias, de modo que ela
possa, sem aporias, ajudar no entendimento das diferenças entre linguagem significativa e
não-significativa. Ou seja: tentaremos mostrar que, se a Teoria das Idéias foi postulada para
garantir a significação lingüística, a linguagem, por sua vez, servirá como modelo para ajudar
a mesma Teoria a superar seus problemas.
Abstract
In Plato’s philosophy, the Forms are postulated to be the objective extra-linguistical
reference that assure the linguistic meaning. But theory of Forms in Republic and Phaedo has
many inconsistencies. Plato, by a self-criticism of your theory of Forms, made changes in
important aspects of his theory. To do this, he uses ordinary speech, especially ours intuitions
about the relevant differences between meaningful and meaningfulness language, as
paradigm to solution of aporias in theory of Forms. We want to show that, if the Forms are
postulated to assure the significant speech, language is used by Plato as a model to modify
and avoid contradictions of his earlier theory.
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Agradecimentos
Ao CAPES, que financiou meus estudos.
Ao PPG em Filosofia da PUCRS, na pessoa de coordenador à época de meu ingresso, Prof.
Dr. Draiton Gonzaga de Souza, pela acolhida.
Ao Prof. Dr. Jayme Paviani, pela orientação nos três anos iniciais e pelo exemplo vivo de
filosofar.
Ao Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ulmann, exemplo de erudição e bom-humor, que, em meio
aos seus vários afazeres, ainda conseguiu gentilmente me orientar no último semestre.
Ao Prof. Dr. Eduardo Luft pelo apoio e incentivos constantes.
Aos amigos Prof. Sérgio Sardi, Nazareno de Almeida, Sandra Fasolo, Vânia Cossetin, Jason
Lima e Silva e Luciana Rodhen que ajudaram a manter viva a chama da filosofia quando ela
ameaçava apagar.
Agradecimento especial:
Este trabalho não teria sido possível sem a ajuda do Prof. Dr. Marcelo Pimenta Marques da
UFMG que, generosamente, me permitiu pesquisar em seu grande arquivo pessoal de artigos
e livros sobre o Sofista. A ele, meu muitíssimo obrigado!
3
Sumário
Introdução........................................................................................................... 5
Capítulo I
As concepções de linguagem pré-platônicas
1.1 Sofistas e retórica....................................................................................... 13
1.2 Górgias....................................................................................................... 15
1.3 Protágoras................................................................................................... 22
1.4 O poema de Parmênides............................................................................. 27
1.5 A teoria referencial da linguagem.............................................................. 33
Capítulo II
O Crátilo
Introdução......................................................................................................... 38
2.1 A tese convencionalista............................................................................. 40
2.2 As etimologias........................................................................................... 46
2.3 A tese naturalista....................................................................................... 57
Capítulo III
O Parmênides
Introdução........................................................................................................ 64
3.1 A Teoria das Idéias como resposta ao paradoxo de Zenão........................ 65
3.2 As aporias da teoria das Idéias.................................................................. 68
3.3 Interpretação do significado do exercício dialético................................... 73
3.4 As 8 hipóteses sobre o Uno....................................................................... 76
3.5 Conclusões particulares de cada Hipótese................................................. 89
4
3.6 Conclusão geral da segunda parte do Parmênides..................................... 91
Capítulo IV
O Sofista
Introdução......................................................................................................... 93
4.1 As definições de sofista.............................................................................. 97
4.2 O método de refutação (elenchus) socrático............................................ 101
4.3 O sofista como produtor de imagens faladas............................................ 104
4.4 Análise do Não-Ser .................................................................................. 106
4.5 Problema da falsidade............................................................................... 107
4.6 As doutrinas do Ser.................................................................................. 109
4.7 “Como pode algo ter vários nomes”: sumploke eidolon.......................... 113
4.8 Os “gêneros mais importantes” ............................................................... 116
4.9 O Não-Ser como Outro............................................................................. 119
4.10 A comunhão das Idéias e o discurso....................................................... 120
Considerações finais
O Timeu e a linguagem como analogia
Introdução............................................................................................................ 125
A analogia como princípio estrutural do mundo................................................. 126
A linguagem como analogia................................................................................ 129
Referências bibliográficas................................................................................... 137
5
Introdução
Em praticamente todos os seus diálogos, Platão apresenta Sócrates questionando as
pessoas que ele encontrava sobre o significado de certos conceitos, pedindo-lhes que digam,
definam, expliquem o que é a “justiça”, a “virtude”, o “conhecimento”, a “beleza”, etc.
No diálogo Fédon (74a), Platão pergunta qual é o significado da palavra “igual”.
Aparentemente, a forma mais óbvia de se responder a essa pergunta é indicar exemplos de
coisas que são iguais, mostrando, por exemplo, dois pedaços de pau de mesmo comprimento.
Mas Platão afirma que o problema com essa estratégia é que um pedaço de pau pode ser igual
a outro pedaço e, ao mesmo tempo, ser maior ou menor em relação a um terceiro. Nesse caso,
o mesmo bastão pode ser corretamente chamado de igual e não-igual, pois ele exemplifica
estes dois conceitos opostos simultaneamente. Com esta afirmação, Platão não quer
simplesmente nos lembrar de que as pessoas podem se enganar ou discordar entre si quanto as
suas percepções de dois bastões iguais. A sua tese é que podemos dizer corretamente que o
mesmo pedaço de pau é igual e desigual, grande e pequeno, etc. Considerações análogas
podem ser feitas em relação a objetos que exemplificam conceitos como “grande”,
6
“pequeno”, “leve”, “pesado”, etc. (República 479b). Se algo é considerado belo por ter a cor
dourada, esta mesma cor em outro objeto pode torná-lo feio; logo, o dourado é belo e não é
belo (Hípias Maior 290ab; República. 479a).
Nós temos a concepção da igualdade: sabemos usar corretamente essa palavra,
sabemos o que ela significa. Mas como obtemos esse saber? Nenhum objeto sensível
exemplifica corretamente, perfeitamente, a igualdade; logo, a nossa concepção de igualdade
não pode ter sido derivada da percepção de objetos sensíveis. Não existem exemplos perfeitos
e não-ambíguos de igualdade no mundo sensível. Por isso Platão postula a existência de
conceitos não-ambíguos, que exemplificariam perfeitamente determinado conceito, sem
exemplificar simultaneamente o seu oposto. Tais conceitos não são captados pelos sentidos,
mas pela mente sozinha: são as Idéias.
As Idéias, portanto, são postuladas para serem a referência objetiva às quais as
palavras se referem, garantindo assim que sejam significativas.
Talvez esta característica das Idéias fique mais clara se a compararmos com o seu
equivalente na metafísica contemporânea: as proposições. Vamos procurar entender o que
significa uma proposição através de um pequeno exemplo.
Quando entra em cena no segundo ato, Hamlet está lendo um livro (o que, aliás, causa
alarme nos presentes, já preocupados com a sua sanidade mental). Polônio, tentando ser
simpático, lhe pergunta o que está lendo e recebe, como resposta, um enigmático “palavras,
palavras, palavras...”. De fato, em um certo sentido, tudo o que lemos são “palavras, palavras,
palavras”, isto é, sinais gráficos distribuídos em uma folha de papel, e ler consiste em decifrar
estes sinais de acordo com regras que aprendemos laboriosamente nos bancos escolares de
nossa infância. Por outro lado, é óbvio que ninguém lê o Hamlet com um exercício de
decifração criptográfica! Nós não “lemos” as “palavras, palavras, palavras” do texto por elas
mesmas, pois estamos interessados em outras coisas, que estão além dos sinais gráficos.
7
Estas “outras coisas”, que estão além dos sinais que usamos para expressá-las, e que
denominamos proposição, não são entidades lingüísticas.
1
A proposição que a neve é branca
não deve ser confundida com a frase “a neve é branca”. A frase “a neve é branca” expressa a
proposição que a neve é branca. O termo “proposição” refere-se ao conteúdo que é expresso
em uma afirmação. Compreender uma frase é apreender a proposição que a frase expressa. É
importante enfatizar que uma proposição não é um objeto no mundo, como o exemplo “a neve
é branca”, que usamos, pode dar a entender. Conforme os defensores da teoria proposicional
da linguagem,
2
proposições seriam objetos abstratos que existem independentemente da
mente: mesmo no caso em que dizemos “mesa”, esta palavra não se refere ao objeto concreto
que vemos a nossa frente, mas ao conceito abstrato de mesa.
Supõe-se que uma proposição seja a mesma para qualquer indivíduo que a
compreenda. O meu conceito de mesa deve ser idêntico ao conceito de mesa de um inglês,
apesar de expressarmos essa mesma proposição com palavras diferentes. As frases “a neve é
branca”, para um brasileiro; “the snow is white”, para um falante de língua inglesa; “la neige
est blanc”, para um francês e “der Schnee ist weiss”, para um alemão, são frases que
expressam a proposição a neve é branca (existiria uma quantidade indeterminada de frases
que expressam o mesmo significado).
O paralelo entre as Idéias platônicas e o que os metafísicos contemporâneos
denominam proposição é tão significativo que Kirkham, em seu livro sobre as teorias
contemporâneas da verdade, quando tenta explicar o segundo, recorre ao primeiro:
Uma proposição é uma entidade abstrata. É o conteúdo informacional de uma
sentença completa no modo declarativo. (...) Leitores que têm familiaridade com a noção de
forma platônica ou universal podem achar útil a seguinte analogia: uma proposição está para
uma sentença declarativa assim como uma forma platônica está para um predicado. Falando
1
Para um tratamento completo do conceito de proposição, ver Loux, 1998, cap. IV p. 132-164 e Lycan, 2001,
p.80-7
2
Frege (O pensamento, 1919); Russel, (Problems of philosophy, 1919, cap. IX e X); Strawson (Individuals,
1959, cap. V e VI); Donagan (Universals and metaphysical realism, 1963); Armstrong, (Universals, 1989) para
citar os exemplos mais destacados, são defensores desse tipo de teoria (cf. Lycan,2001, p. 80).
8
mais ou menos metaforicamente, seja lá ‘do que for’ que sejam feitas as formas platônicas,
do mesmo são feitas as proposições. Proposições não são idênticas a tipos de sentenças, pois
um tipo de sentença não é nada mais do que a coleção dos seus membros, enquanto uma
proposição ainda existiria mesmo que nunca tivesse sido expressa em nenhuma ocorrência de
sentença” (2003, p. 89).
Para que sejam capazes de garantir a significação da linguagem, as Idéias são
apresentadas por Platão como tendo características opostas as características dos seres
sensíveis: na República, elas são qualificadas como unas, em si, perfeitas, imateriais, eternas,
imutáveis, imóveis, invisíveis aos sentidos e perceptíveis somente pela inteligência (525c-
533e). No Fédon as Idéias são apresentadas como sendo independentes dos entes sensíveis;
eternas, imutáveis, inteligíveis e simples (indivisíveis) (80e, 92d, 100c).
O problema é que, tal como apresentada nestes diálogos, a Teoria das Idéias tem
graves inconsistências, sendo a não menos importante o fato de não explicar como as Idéias se
relacionam com o mundo sensível, o que é o mesmo que dizer que elas são incognoscíveis.
Ora, se elas são incognoscíveis, ela também não explica como a linguagem tem significado. O
diálogo Parmênides, onde essa deficiência é constatada, põe Platão diante do seguinte dilema:
a Teoria das Idéias tem inconsistências internas graves, mas sem ela não é possível garantir o
significado da linguagem.
A autocrítica que Platão faz a sua própria teoria mostra que suas dificuldades vêm do
fato de as Idéias serem concebidas como unas, e elas são concebidas como unas por causa da
proibição de Parmênides de se unir Ser e Não-Ser, pois, segundo o pensador de Eléia, o Não-
Ser não pode ser dito ou pensado. Ora, sofistas e retóricos, como Protágoras e Górgias,
baseavam-se nessa mesma proibição para defender concepções de linguagem que afirmavam
que tudo o que dizemos é verdadeiro, não há falsidade, é impossível contradizer.
Platão, através de uma crítica à sua própria Teoria das Idéias e às concepções de
linguagem defendidas pelos sofistas, reformulará, em aspectos importantes, a sua Teoria. O
9
que queremos enfatizar neste trabalho é que, para essa reformulação, Platão utilizará a
linguagem, tal como a usamos no dia-a-dia, como paradigma para resolver os problemas da
Teoria das Idéias, de modo que ela possa, sem aporias, ajudar no entendimento das diferenças
entre linguagem significativa e não-significativa. Ou seja: tentaremos mostrar que, se a Teoria
das Idéias foi postulada para garantir a significação lingüística, a linguagem, por sua vez,
servirá como modelo para ajudar a mesma Teoria a superar seus problemas.
No capítulo 1 estudaremos as concepções de linguagem com as quais Platão se
defrontou em seu tempo. Abordaremos as teses dos retóricos sofistas, representados por
Górgias e Protágoras, e o poema de Parmênides. A partir das premissas plausíveis e da
dedução logicamente impecável de que o Ser é e o Não-Ser não é, feita por Parmênides, os
sofistas extraíam algumas conclusões paradoxais, tais como: é impossível falar falso; é
impossível contradizer; todas as frases negativas são falsas; apenas juízos de identidade são
possíveis; tudo o que falamos é verdadeiro. Tais conclusões tornam a linguagem, em última
instância, impossível.
No capítulo 2, mostraremos como Platão, no diálogo Crátilo, apresenta e discute, sob
o nome de convencionalismo (a tese segundo a qual o significado das palavras é estabelecido
por convenção ou acordo) e naturalismo (a tese de que existe naturalmente uma denominação
exata para cada um dos seres), duas teses sobre a linguagem que são, na verdade, as teses dos
sofistas e a de Parmênides, respectivamente. Platão mostra que, apesar de a posição
convencionalista ser diametralmente oposta à naturalista, ambas levam, porém, às mesmas
conclusões: (1) nenhum nome é mal-atribuído: todos os nomes são verdadeiros; (2) é
impossível falar falso. A conclusão do Crátilo será a de que “não é por meio de seus nomes
que devemos procurar conhecer ou estudar as coisas, mas, de preferência, por meio delas
próprias”. Qual o significado dessa conclusão? Como podemos conhecer algo diretamente,
sem palavras? E, mais importante, o que podemos conhecer sem palavras?
10
Essas respostas serão encontradas no diálogo Sofista, mas, antes, abordaremos o
diálogo Parmênides (capítulo 3). Platão descobriu, corretamente, que os problemas da sua
Teoria das Idéias e as conclusões paradoxais sobre a impossibilidade da linguagem dos
sofistas e megáricos tinham uma origem comum, isto é, a negação parmenídea da
possibilidade de se falar com significado sobre o Não-Ser. As aporias da Teoria das Idéias são
expostas no Parmênides e, através delas, podemos compreender por que essa Teoria não
explica a linguagem. Assim, o problema do significado da linguagem e problemas metafísicos
referentes aos conceitos de Ser e Não-Ser estão intimamente relacionados.
O Sofista, como veremos no capítulo 4, é justamente o diálogo em que Platão procura
determinar qual é o status ontológico da imagem (eídolon). Isto equivale a, de alguma forma,
“supor o Não-Ser como Ser”. A perplexidade sobre como relacionar Ser com o Não-Ser só se
desfaz quando Platão nota que nós fazemos tais relacionamentos ao usarmos a linguagem
cotidianamente. Na linguagem atribuímos a “homem”, por exemplo, diversas características e
qualidades (cor, forma, tamanho, vícios, virtudes), afirmando assim, não apenas que o homem
é, mas também que tais características são e, além disso, que a relação entre tais
características e o homem também é. Assim, a linguagem e sua estrutura serão usadas como
paradigma para o entendimento da correta inter-relação dos conceitos metafísicos.
Na linguagem algumas combinações de nomes são permitidas, enquanto outras não o
são. Mais especificamente, um discurso é formado por dois gêneros de sinais: os nomes e os
verbos. Um discurso formado unicamente por nomes ou um discurso formado unicamente por
verbos seria apenas uma seqüência de palavras, não um discurso. Apenas uma combinação de
nomes e verbos pode nos dizer que algo é, foi, ocorre e, por isso, apenas uma combinação
desse tipo pode ser considerada um discurso. Analogamente, ao se combinarem Idéias
diferentes existem três possibilidades: ou elas podem se associar entre si livremente; ou não
podem se associar de nenhuma maneira, ou algumas delas podem se associar com algumas,
11
mas com outras não (nem todas as combinações associativas são permitidas). Se, por
exemplo, o Movimento pudesse associar-se ao Repouso, o Repouso seria Movimento e o
Movimento seria (ou estaria em) Repouso; por outro lado, o Movimento e o Repouso podem
se associar com o Ser, caso contrário “ficariam excluídos da existência”. Resta o terceiro
caso: apenas algumas associações são permitidas. Esse seria um caso análogo ao da
combinação das letras na formação das palavras e das palavras na formação de frases:
algumas combinações são válidas, outras são inválidas.
Assim, graças ao fato de os gêneros se prestarem a algumas associações e a outras não,
é possível demonstrar também que “há um Ser do Não-Ser”, pois o Movimento, por exemplo,
é outro em relação ao Ser e o mesmo em relação a si próprio. Há, assim, dois novos gêneros:
o Mesmo e o Outro que participam, ambos do Ser, mas não se confundem com o Ser.
Platão estabelece uma concepção do Não-Ser, não como negação da existência, mas
como Outro (héteron) em relação a uma forma determinada. Desse modo, o Não-Ser pode ser
definido como sendo, não a negação do Ser (ausência de ser), mas como qualquer coisa que
seja outro (diferente) do Ser: “quando falamos no Não-Ser isso não significa (...) qualquer
coisa contrária ao Ser, mas apenas outra coisa qualquer que não o Ser. (...) Não podemos,
pois, admitir que a negação signifique contrariedade, mas apenas admitiremos nela alguma
coisa de diferente”. O não-belo, por exemplo, participa do gênero outro em relação ao belo:
como gênero outro participa do ser, o não-belo também participa do ser. Dessa maneira, a
forma do Não-Ser pode combinar-se com a forma do Ser, pois o Não-Ser é o Outro do Ser
(tudo o que não é igual ao Ser – a casa, o cavalo, o amarelo, etc.) e não a negação do Ser.
Com isso, garante-se existência das imagens e de graus intermediários entre verdade e
falsidade. A imagem, cópia do original, seria justamente algo intermediário entre o Ser e Não-
Ser, pois ela é (tem existência própria), mas, por outro lado, ela não é o original. Assim
também é possível falar em discursos falsos, pois esses não são discursos que falam sobre o
12
Não-Ser, isto é, não falam nada, mas são discursos que dizem alguma outra coisa em relação
ao que realmente deveriam falar.
Garantida a existência das imagens e das cópias, garante-se também a existência de
um lugar ontológico para a linguagem. No diálogo Timeu (capítulo 5), Platão aplicará esse
resultado do Sofista em um contexto mais amplo. A linguagem funciona como o intermediário
ontológico entre o reino das Idéias e o mundo sensível, sendo uma imagem do primeiro,
imagem entendida aqui como o termo que serve de medida comum entre dois extremos e
mantém, assim, corretamente a proporção entre ambos. É o papel analógico da linguagem,
portanto, que tentaremos esclarecer nesse capítulo.
13
Capítulo I
As concepções de linguagem pré-platônicas
1.1 Sofistas e Retórica
A retórica ou arte de persuadir consistia em técnicas de discurso que visavam
demonstrar a plausibilidade de uma tese dada. Nas palavras de Platão, a retórica de Tísias e
Córax
3
consistia na descoberta de que “a probabilidade [ei0ko/ta – provável, plausível,
aparência] deve ser tida em maior apreço do que a verdade [a0lete/wj]” (Fedro, 267a). Essa
afirmação torna-se significativa, se levarmos em consideração o fato de a retórica ter se
originado nos meios jurídicos
4
. No gênero jurídico, o réu ou o acusador
5
discursam para
defender ou acusar alguém diante de juízes e de um júri que deve escolher entre uma de duas
alternativas mutuamente excludentes: a culpa ou a inocência.
3
Tísias e Córax são considerados os inventores da retórica. Eles publicaram um tratado sobre a arte retórica
(techné rhetoriké), hoje perdido, e que provavelmente era uma espécie de coletânea de preceitos práticos
exemplificados com casos concretos, na qual sistematizaram e organizaram o que era até então uma prática
empírica ( Reboul, 1998, p. 2. Plebe, 1978. p. 1; Barilli, 1985 p. 13).
4
Conforme Aristóteles, a arte da retórica se originou na Magna Grécia (Sicília e Itália) por volta da primeira
metade do século V a.C. Em 467 a.C., a tirania de Trasíbolo de Siracusa (Sicília) foi derrubada e a democracia
restabelecida. Com isso, seguiram-se numerosos processos judiciais movidos por cidadãos que queriam reaver as
terras que lhes haviam sido confiscadas pela tirania. “Quando, diz Aristóteles, a tirania foi destruída na Sicília e
as questões entre particulares, após um longo intervalo, foram novamente submetidas aos tribunais, pela primeira
vez, nesse povo de espírito penetrante e naturalmente inclinado à discussão, viram-se os sicilianos Corax e Tísias
dar um método e regras. Antes ninguém seguia uma rota traçada, nem se submetia a uma teoria e, entretanto, a
maioria se exprimia com cuidado e ordem” (Cícero, Brutus, 12, 46 citado por Plebe, 1978, p. 2)
5
Na época de Córax e Tísias não existiam ainda advogados: os cidadãos que recorriam à justiça valiam-se de
pessoas que sabiam escrever, os logógrafos, que redigiam as queixas que eram então lidas diante do tribunal pelo
próprio réu ou acusado (Reboul, 1998, p. 2.).
14
Se o júri e os juízes compartilham a mesma opinião sobre a ocorrência ou não dos
fatos dos quais o réu é acusado, seja porque é possível demonstrá-los de forma indubitável,
seja porque esses fatos são de conhecimento de todos, então o réu ou o acusador praticamente
não terão trabalho a não ser o de dirigir a atenção dos seus ouvintes para tais fatos. Mas, caso
esse consenso prévio não exista, pois não é possível fornecer uma demonstração exata dos
fatos, ou no caso de jurados e juízes terem uma opinião prévia contrária à do réu, então é
nesses casos que a arte retórica tem uma função a cumprir: a de apelar para a verossimilhança
ou plausibilidade. Quer dizer: o argumento retórico, com seu apelo ao eikos, é usado quando
não há evidência disponível para comprovar se os fatos ocorreram de determinada forma ou
não (evidência que seria fornecida, por exemplo, por uma testemunha) (cf. Woodruff, 1999, p.
269; 298).
Ou seja, há casos em que não é possível saber, mediante uma verificação independente
do que foi dito pelo orador, se ele está dizendo a verdade ou não, isto é, se os fatos ocorreram
realmente tais como ele os descreve. Nos casos em que não é possível comprovar se o
conteúdo do discurso reflete com fidelidade o que ocorreu, os ouvintes só têm o que é
afirmado no discurso do réu ou acusador para julgar a tese apresentada.
Por exemplo, um acusado de assassinato poderia recorrer ao tipo de argumento (ou
figura retórica) conhecida como “córax”: se ele é uma pessoa forte, poderia argumentar que
não cometeu o assassinato por saber que as suspeitas recairiam imediatamente sobre si; se é
uma pessoa fraca, bastaria argumentar que não teria as condições necessárias para assassinar
alguém.
6
Ou, em outro exemplo, uma pessoa acusada de roubar um manto pode argumentar
que, tendo dinheiro e podendo comprá-lo, não teria que expor-se ao risco de ser preso para
obtê-lo (cf. Woodruff, 1999, p. 296).
6
Platão (Fedro 273b-c) atribui esse tipo de argumentação a Tísias; Aristóteles (Retórica 1402a) o atribui a
Córax.
15
O apelo ao eikos, à verossimilhança, é, portanto, um apelo às “expectativas razoáveis”
dos ouvintes. Mas o que seja uma expectativa razoável depende do contexto no qual os fatos
são apresentados. A alteração do contexto pode alterar significativamente o que pode ou não
pode ser considerado como razoável. No segundo exemplo citado acima, a informação de que
o acusado tem (ou não) dinheiro determina a plausibilidade ou a implausibilidade da acusação
de roubo, se é razoável acreditarmos que o acusado realmente cometeu o roubo ou não. Ora, o
contexto é fornecido pelo próprio orador, de modo que a habilidade em fornecer os contextos
adequados, que tornem o ponto de vista defendido mais plausível ou razoável, vem a ser
determinante na vitória de uma argumentação ou da argumentação contrária (cf. Woodruff,
1999, p. 296-7).
Na argumentação retórica, portanto, o fato, o que realmente ocorreu, torna-se
irrelevante e, em casos extremos, quando o que ocorreu é justamente o que se quer negar, nem
deve ser citado (“casos há em que não devem ser mencionados os próprios fatos quando têm
contra si as aparências” Fedro 272e), e as questões são julgadas apenas com base na
capacidade do advogado em persuadir a sua audiência.
E é sobre esse poder de persuadir os ouvintes, por meio do lo/goj, que o mais
destacado representante da retórica de seu tempo, Górgias, vai refletir.
1.2 Górgias
Górgias veio a Atenas em 427 como embaixador para pedir ajuda na guerra contra
Siracusa. A eloqüência do seu discurso na Assembléia causou um enorme impacto nos
atenienses “pela novidade de estilo”. Esse estilo novo consistia em uma espécie de “prosa
poética” (Reboul, 1998, p. 4): Górgias usava na prosa (normalmente usada como uma mera
transcrição da fala comum) elementos da poesia, tais como o ritmo, rimas internas (que
16
facilitariam a memorização do que foi dito), ornamentos, metáforas e antíteses (cf. Woodruff,
1999, p. 299).
Não haveria, portanto, para Górgias, separação entre prosa (retórica) e poesia, sendo
ambas consideradas como dois aspectos diversos do lo/goj ou discurso: a poesia seria um
“discurso com metro” (lógos échon métron) enquanto que a prosa seria um “discurso sem
metro” (lógos áneu métron). Mas se, na prática, retórica e poesia são inseparáveis, nem por
isso elas deixam de apresentar duas problemáticas distintas para o pensamento gorgiano: de
um lado, ele nos apresenta a poesia como uma produtora de ilusões ou enganos (apáte), de
outro, a retórica como persuasão (peithó).
A concepção de poesia de Górgias deriva da concepção pitagórica
7
da palavra como
algo que tem um poder mágico e fascinante de encantar os ouvintes. Mas enquanto que para
os pitagóricos a arte servia para curar as moléstias do corpo e da alma, para Górgias o
encantamento (epodé; goeteía) poético cria uma espécie de “agradável doença” (nósos
hedeía) na alma que é melhor do que a normalidade da vida cotidiana. A poesia nos faz crer
em coisas que não existem; ela é, portanto, uma espécie de engano que afeta ao indivíduo.
A retórica, por outro lado, tem uma função social que visa incitar os cidadãos à ação
política. Ela também tem o poder poético de criar ilusões, mas seu objetivo é fazer os ouvintes
7
Os pitagóricos não se interessaram tanto pela arte da retórica (entendida como a sistematização e organização
de um saber empírico) mas dirigiram suas reflexões sobre o poder do lo/goj em despertar certas reações
psicológicas (emocionais) nos ouvintes (Plebe, 1978, p. 4). Para eles, o lo/goj possui um poder de fascínio, de
encantamento, de atração, que era comparado ao poder de sedução ou à arte de encantamento da música, cuja
capacidade em anular ou modificar certos estados da alma eram conhecidos e muito valorizados pelos seus
efeitos mágico-medicinais: “os pitagóricos praticavam a catarse [kaqa/rsei – purificação] do corpo pela
medicina e a da alma pela música” (Kirk e Raven, 1990, p. 231). Essa aproximação da retórica com a medicina
nos leva a outra concepção importante da retórica pitagórica: a polutropía. Na concepção grega, o médico deve
aplicar um remédio que não só seja eficaz contra a doença mas que também seja adequado à constituição do
doente, constituição essa que varia de paciente para paciente. Analogamente, para os pitagóricos, os discursos
não podem ser proferidos indiscriminadamente, mas o orador deve levar em consideração que existe apenas um
tipo de discurso apropriado para cada diferente tipo de pessoa. Ou mais exatamente: para cada tipo de pessoa há
um único tipo de discurso que lhe é adequado: a isso os pitagóricos chamavam monotropía. Mas, como não
existe apenas um único tipo de pessoa, também não existe um único tipo de discurso que se aplique a todos: há
tantos tipos de discursos diferentes quantos diferentes tipos de pessoas: é a polutropía. Assim, há os discursos
paidikoí apropriados para os jovens, os gynaikeioi para as mulheres, os ephebikoi para os jovens, etc (Plebe,
1978, p. 3). Portanto, a polutropía é caracterizada como “a faculdade de encontrar o modo de expressão mais
conveniente aos ouvintes do momento” através da capacidade de escolher “palavras bem ajustadas” (lo/goj
a9rmodi/ouj) ao público.
17
crerem que as coisas são diferentes do que são, de acordo com as intenções do orador. Ambos
os conceitos (apáte poética e peithó retórica) estão claramente exemplificados na famosa
passagem do seu Elogio de Helena:
O Discurso [lógoj] é um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quase
imperceptível, leva a cabo ações divinas. Na verdade, ele tanto pode deter o medo como
afastar a dor, provocar a alegria e intensificar a compaixão. (...) Um temor reverencial, uma
comovida compaixão e uma saudade nostálgica insinuam-se nos que a ouvem. Por
intermédio das palavras, o espírito deixa-se afetar por um sentimento especial, relacionado
com sucessos e insucessos de pessoas e acontecimentos que lhe são alheios. (...) Na
verdade, discursos harmoniosos (...) provocam uma sensação de bem-estar, dissipando a
tristeza. A força da palavra mágica, convivendo com a opinião do espírito, fascina-o e
transforma-o por encantamento. (...) É que o discurso persuasivo da mente, persuade-a,
força-a tanto a acreditar no que foi dito quanto a consentir no que é feito. (...) Relação
idêntica possuem a força do discurso em ordem à disposição do espírito e a prescrição dos
medicamentos para a saúde do corpo. Na verdade, assim como certos medicamentos
expulsam do corpo certos humores, suprimindo uns a doença e outros a vida, do mesmo
modo, de entre os discursos, uns há que inquietam, outros que encantam, outros que
atemorizam, outros que incutem coragem no auditório, outros ainda que, mediante uma
funesta persuasão, envenenam e enfeitiçam o espírito ( 8-14, p. 44-5).
Assim, compreendemos por que, nas palavras de Barilli, “Górgias define a palavra
como um phármakon, uma droga” e Helena torna-se inocente, pois caiu sob a influência do
lógoj a cujo fascínio é impossível resistir (Barilli, 1985, p. 16).
Mas de onde vem esse poder de persuasão do lógoj? Para entender a teoria de
Górgias sobre a linguagem, temos que voltar um pouco atrás e explicar a concepção de lógoj
de Heráclito.
Para Heráclito, há duas fontes para o conhecimento: a percepção sensível e o lógoj.
Os conhecimentos adquiridos pela percepção sensível são duvidosos: “Más testemunhas para
os homens são os olhos e os ouvidos, se suas almas são bárbaras” (frag. 107). O lógoj, por
outro lado, é a verdadeira fonte (critério) de conhecimento. Mas com “lógoj” Heráclito não
se refere a algum tipo de razão individual de cada pessoa, mas sim a um lógoj universal, que
18
ele chama de “comum e divino”. Tudo o que existe “é dotado de lógoj e apto ao
pensamento” e, quando nós pensamos, literalmente aspiramos esse lógoj universal através
dos órgãos dos sentidos. Quando estamos dormindo, nossos órgãos dos sentidos se fecham e
só mantemos um contato mínimo com o lógoj, através da respiração. Mas quando estamos
acordados, ao contrário, o contato ocorre através das aberturas dos órgãos dos sentidos “como
por uma janela”. Desse modo, “tudo fazemos e pensamos graças à nossa participação do
lógoj divino” (Sexto Empírico, VII, 126ss).
Mas o que significa “lógoj” nos fragmentos de Heráclito? Kerferd (2003, p.143-144)
lembra que o termo “lógoj” tem uma ampla abrangência de significados:
No caso da palavra lógoj, há três áreas principais de aplicação ou
uso, todas relacionadas por uma unidade conceitual subjacente. São elas, em
primeiro lugar, a área da linguagem e da formulação lingüística, portanto
fala, discurso, descrição, declaração, afirmação, prova (quando expressa em
palavras) e assim por diante; em segundo lugar, a área do pensamento e dos
processos mentais, portanto reflexão, raciocínio, justificação, explicação
etc.; em terceiro lugar, a área do mundo, aquilo sobre o que somos capazes
de falar e pensar, portanto princípios estruturais, fórmulas, leis naturais e
assim por diante, desde que, em cada caso, sejam considerados realmente
presentes e exibidos no processo do mundo.
Embora, ao longo da história da filosofia grega, essas três áreas sejam paulatinamente
diferenciadas e, em certos contextos determinados, a palavra lógoj passe a ser usada com um
significado mais específico, referindo-se a apenas uma dessas áreas, mesmo nesses casos o
seu uso envolve, sempre, em algum grau, uma referência às duas outras áreas, não sendo
possível separar os três significados de maneira absoluta.
O que é válido para autores como Platão e Aristóteles, vale ainda mais para os pré-
socráticos, inclusive Heráclito. Portanto, lógoj, em Heráclito, significa tanto o que é dito, o
conteúdo de suas afirmações, quanto o princípio que estrutura e dá ordem e cognoscibilidade
ao real. O lógoj de Heráclito é, na feliz expressão de Parain (1942, p.19), tanto “a linguagem
19
do mundo que emana e se comunica a nós materialmente” quanto a linguagem humana. Esta é
o resultado do contato da nossa alma com o lógoj divino através da respiração, da mesma
forma que a visão da cor branca seria o resultado do choque de emanações dos objetos com os
nossos órgão dos sentidos.
Se a linguagem é o produto de uma emanação do lógoj do mundo, as palavras que
usamos exprimem as coisas mesmas: elas dizem como e o que elas são. Desse fato vai-se
concluir que as palavras não podem nos comunicar nada que não seja o que é, quer dizer,
quando usamos a linguagem sempre dizemos a verdade (cf. Parain, 1942, p.22).
Podemos concluir, portanto, que Górgias acreditava que o poder das palavras de afetar
e alterar o sentimento dos ouvintes vinha do fato de a linguagem ser uma emanação do mundo
e, portanto, expressá-lo como ele é em si? Não. Embora Górgias e os sofistas em geral
retenham algo da concepção pré-socrática da emanação no caso da percepção sensível dos
objetos exteriores
8
, eles criticavam a aplicação desta concepção como explicação da formação
do significado das palavras ou da origem da linguagem. Para eles, longe de expressar
diretamente a essência das coisas, a linguagem é um sistema de signos arbitrários e
convencional.
Em seu Tratado do Não-Ser ou Da Natureza, Górgias defende as famosas teses de que
nada há; se algo existisse, seria incompreensível ao homem; e mesmo que algo existisse e
fosse compreensível, não poderia ser comunicado aos outros. Dessas afirmações
examinaremos aqui apenas a terceira, pois essa é a que interessa diretamente ao nosso
trabalho.
A argumentação de Górgias, quanto à incomunicabilidade do conhecimento, é a
8
No Ménon (76a), Platão atribui a Górgias uma doutrina da emanação: “Ménon: Ó Sócrates, o que dizes sobre a
cor? Sócrates: Queres então que te responda segundo Górgias, para melhor poderes acompanhar? (...) Não
dizíeis vós [Ménon e Górgias], tal como Empédocles, que certas emanações se desprendem dos seres? E que
existem poros para onde e através dos quais as emanações são conduzidas? E que umas emanações se adaptam a
certos poros, enquanto outras são mais estreitas ou mais largas? (...) Assim sendo, (...) a coloração é uma
emanação de coisas proporcional e perceptível à vista. (...) a partir desta resposta, poderás explicar a voz, o odor,
e muitas outras coisas parecidas”.
20
seguinte:
(84) Não comunicamos o ser mas sim a palavra, que é diferente das coisas
visíveis. Tal como o que é visível não se pode tornar audível e vice-versa, também o
ser, porque subsiste exteriormente, nunca se pode transformar na nossa palavra. (85)
E, não sendo palavra, não se poderá comunicar a outrem. (86) (...) Na verdade, disse
ele, ainda que a palavra tenha existência própria, ela é, todavia, diferente dos demais
objetos com existência própria, e os corpos visíveis diferenciam-se
consideravelmente das palavras; na verdade, o objeto visível é apreendido por um
órgão, enquanto a palavra o é por outro. Logo, a palavra não indica a maioria dos
objeto reais, tal como nenhum deles revela a natureza dos outros
(Sexto Empírico,
Contra os Matemáticos VII 84-86. In: Barbosa e Castro, 1993 p.34-6).
As palavras nos são transmitidas pela visão, no caso dos sinais escritos, pela audição,
no caso da fala, ou são produzidas no momento em que a sensação de algo ocorre: por
exemplo, na sensação de um sabor, origina-se a palavra de acordo com essa sensação, ou a
partir da sensação da cor nasce a palavra conforme a essa cor.
Mas Górgias destaca que, em qualquer caso, as palavras não têm nenhuma
semelhança física com o objeto ao qual ela se refere. Mas se é assim, como uma palavra pode
nos fornecer qualquer tipo de informação sobre o objeto ao qual a aplicamos? Como sabemos
que a palavra “cavalo” se refere ao objeto cavalo, se ela não tem a mínima semelhança com
ele? Como uma palavra pode nos revelar, através dos sentidos, a essência de algo, o ser do
objeto, se essa essência ou esse ser não são perceptíveis por nenhum dos órgão dos sentidos?
A conclusão de Górgias é que a palavra, sendo perceptível, não pode comunicar o ser, que é
imperceptível, nem informar sobre os objetos perceptíveis, pois ela é diferente deles. Daí o
seu niilismo quanto à incomunicabilidade do conhecimento.
No entanto, Górgias era um orador e fazia discursos a outras pessoas. Mas, nesse
caso, será que ele acreditava não estar comunicando nada em seus discursos (cf. Woodruff,
1999, p.307-8)? Como conciliar a teoria (essencialmente negativa) da linguagem
desenvolvida no Tratado do Não-Ser e a teoria dos poderes persuasivos do Elogio de Helena
21
e com a prática retórica de Górgias? Embora Kerferd, Woodruff e Guthrie acreditem que
Górgias não teria respostas a essas questões e que, portanto, o seu pensamento seria
inconsistente neste aspecto, acreditamos que ele poderia responder que é justamente porque a
linguagem não comunica o ser como ele é em si mesmo que é possível usar as palavras para
persuadir e alterar as opiniões das pessoas no sentido que quisermos. Mostramos, acima,
que a origem da retórica se deu, nos meios jurídicos, nos casos em que não havia evidência
direta disponível sobre o que ocorreu. Górgias, a nosso ver, argumenta que, quando usamos a
linguagem, estamos em um caso análogo ao de um juiz que não tem acesso, de forma
imediata e indubitável, aos fatos ocorridos: dependemos sempre da mediação da linguagem,
mas essa não é um meio que transmita as informações sobre a realidade de maneira exata.
Portanto, se não temos acesso direto aos fatos ou à realidade, só nos restam as palavras e
estas têm, no entanto, o poder de alterar os sentimentos e as opiniões dos que as ouvem.
Como vimos, para Górgias o poder da retórica vem da força mágica da palavra que,
tal como um phármakon, uma droga, é capaz de afetar o espírito e persuadir a mente, fasciná-
la e transformar suas opiniões como que por encantamento, a tal ponto que o retórico pode
fazer os outros crerem em ilusões, coisas que não existem, ou convencê-los de que as coisas
são diferentes do que são de acordo com as convicções do orador.
9
Isto é possível, pois a
linguagem, na concepção de Górgias, não tem um referente na realidade exterior que
possamos identificar por sua semelhança com as palavras que utilizamos para nos referirmos
a ele. Palavras e coisas são diferentes e, portanto, não é possível estabelecer qualquer ligação
entre eles (ou, pelo menos, não qualquer ligação que não seja arbitrária).
Górgias acreditava que o poder persuasivo da retórica era tão amplo que sentia-se
seguro para falar perfeitamente sobre qualquer assunto (cf. Ménon 70ab, ver Górgias 447c;) e
convencer, não apenas pessoas comuns, mas inclusive os experts em sua própria área de
9
Ver Teeteto 166d-167d para posição similar de Protágoras.
22
conhecimento: segundo ele, com a retórica pode-se
persuadir pela palavra os juízes no Tribunal, os senadores no Conselho, o
povo na Assembléia, enfim, os participantes de qualquer espécie de reunião política.
Com esse poder fará teus escravos o médico, o professor de ginástica, e até o grande
financeiro chegará à conclusão de que arranjou o dinheiro não para ele, mas para ti,
que sabes falar e que persuades a multidão (Górgias, 452e).
Também é atribuída a Górgias a afirmação de que é possível defender e, a seguir,
atacar com sucesso a mesma posição: “Górgias fez isso mesmo ao escrever o elogio e a
condenação de cada assunto proposto, pois ele julgava ser da competência específica do
orador a capacidade de enaltecer uma causa, louvando-a e, seguidamente, de a destruir,
atribuindo-lhe defeitos” (Platão, Fedro 267a).
Porém, como o filósofo que fez da tese que para cada assunto é possível defender tanto
a sua afirmação quanto a sua negação o centro de sua doutrina foi Protágoras, passaremos a
examinar as teses deste filósofo.
1.3 Protágoras
A retórica siciliana foi trazida para Atenas por Protágoras, que morou na Sicília onde
deve ter tido contato com Córax, Tísias e os pitagóricos (cf. Plebe, 1978, p. 9). Protágoras,
assim como os sicilianos, se preocupava com a correção da linguagem tanto ao nível do
discurso (procura do lo/goj o0rqo/tatoj, o discurso mais correto) quanto ao nível da palavra
(orthoépeia: procura das palavras mais convenientes à expressão e à oportunidade (cf. Fedro
267e).
10
Protágoras teria escrito uma obra intitulada Antilogias, na qual ensinaria uma técnica
da contradição (téchne antilogiké) que se tornará o fundamento e um dos gêneros mais
10
Protágoras teria dividido o discurso em 4, 6 ou 7 partes e procurava modelar o tamanho deles, tornando-os
longos (prolixos) ou curtos (concisos) conforme a ocasião, além de ser o primeiro a classificar os substantivos
em três gêneros (masculino, feminino e neutro) e a distinguir os tempos verbais (Plebe, 1978, p. 9). “Ele
[Protágoras] ficou conhecido na Antigüidade como o pensador que elevou a gramática à categoria de ciência,
defendendo-a de quem a atacava como um conhecimento sem importância” (Gutierrez, p. 28).
23
importantes da retórica sofista. Essa obra, hoje perdida, mostraria como debater ambos os
lados de uma questão com igual sucesso (cf. Kerferd, 2003, p. 145), e a afirmação que tornou
Protágoras célebre foi a de que para qualquer assunto se poderiam defender dois discursos
opostos: “Diz Protágoras que sobre qualquer tema se podem manter com igual valor duas
teses contrárias” (Sêneca, Epistola 88, 43); “Em torno de cada questão existem dois discursos
opostos reciprocamente” (Diógenes Laércio, IX, 51).
Ou seja: qualquer afirmação de que X é
F pode ser contrabalançada pela afirmação oposta: X não é F.
Mas com essas afirmações Protágoras não quer simplesmente chamar a atenção para o
fato cotidiano de que, para cada argumento, sempre é possível encontrar um contra-
argumento, mas defender a tese mais forte segundo a qual, para qualquer assunto, tanto a
argumentação quanto a contra-argumentação são eqüipolentes, quer dizer, são ambas
igualmente válidas. Isto é, para Protágoras, tanto uma tese quanto a tese que a contradiz são,
ambas, verdadeiras.
Podemos encontrar o fundamento para essa afirmação em outro famoso dito de
Protágoras: segundo ele, “o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são
enquanto são, e das coisas que não são, enquanto não são” (Platão, Teeteto 152a, ver também
Crátilo 385e, passagem que será discutida no capítulo 2). Isto significa que as coisas são para
cada indivíduo tais como elas aparecem para ele: se o vento parece frio para X e quente para
Y, então o vento é frio para X e é quente para Y. Protágoras afirma que as percepções de cada
pessoa são, para essa pessoa, infalíveis. Cada percepção individual, em cada pessoa e em cada
ocasião particular, é incorrigível, isto é, não pode ser corrigida pela comparação com a
percepção de outra pessoa, e nem mesmo com uma comparação com outra percepção minha
feita poucos instantes atrás. Se algo me parece doce, então a minha percepção e a minha
afirmação que isto é doce não pode ser refutada por outra pessoa que perceba a mesma coisa
24
como amarga (Kerferd, 2003, p.151). Toda a percepção é verdadeira: não há percepções
falsas.
Há duas maneiras diferentes de fundamentar essa tese de Protágoras:
1) As qualidades que percebemos são apenas subjetivas e só existem quando
percebidas por alguém. A frieza só existe quando tenho a sensação de frio. O vento em si não
é nem frio nem quente.
No Teeteto (157a-b), Platão atribui a Protágoras a seguinte teoria sobre como a
percepção sensível ocorre: todos os objetos que existem estão continuamente produzindo
emanações em seu entorno. Algumas dessas emanações são passivas (têm apenas o poder –
dúnamis - de receber a ação), enquanto outras são ativas, elas causam uma ação. Os objetos
emitem emanações ativas, ao passo que os órgãos dos sentidos são passivos. A percepção
ocorreria da seguinte forma: nossos olhos, por exemplo, ao encontrar-se com a emanação
gerada por um objeto, sofre uma alteração, e é essa alteração que é a sensação da visão.
Portanto, a percepção é resultante da “relação mútua” do órgão sensível e do objeto
percebido; o órgão sensorial se torna sensível ao ser afetado pela emanação que o atinge
provinda de um objeto e, simultaneamente, o objeto se torna perceptível pela alteração que
causa no órgão sensorial. Platão destaca que, nessa teoria da percepção, todos os objetos
envolvidos, as coisas percebidas e os órgãos dos sentidos devem estar em um constante estado
de movimento,
11
pois apenas neste caso os órgãos sensoriais poderiam ser afetados pelas
emanações dos objetos e causar a sensação respectiva, e os objetos poderiam emitir as
emanações que serão percebidas. Por isso, na interpretação de Platão, a tese de Protágoras do
“homem-medida” estaria associada a uma teoria da emanação e à doutrina do fluxo perpétuo
de todas as coisas, ambas teses atribuídas a Heráclito.
11
“Movimento” significa tanto translação especial quanto alteração, seja quantitativa, seja qualitativa.
25
2) O vento é, ao mesmo tempo, frio e quente. Os opostos coexistem no mesmo objeto.
Uma pessoa o percebe frio, outra quente (cf. Kerferd 2003, p. 149). Nesse caso, o fundamento
metafísico da tese de Protágoras se encontraria na concepção ontológica dos pitagóricos,
segundo a qual tudo o que existe é formado por uma combinação de elementos opostos entre
si. Conforme Aristóteles,
os pitagóricos estabeleceram a existência de dez princípios que dispõem em
duas colunas de termos opostos – limite e ilimitado; impar e par; unidade e
pluralidade; direito e esquerdo; macho e fêmea; repouso e movimento; reto e curvo;
luz e escuridão; bom e mau; quadrado e oblongo – (...) Diz Alcmeon que a maioria
das coisas humanas andam aos pares, sem se referir, no entanto, a oposições definidas,
mas a quaisquer oposições que o acaso nos possa deparar, como preto e branco, doce e
amargo, bom e mau, grande e pequeno
(Metafísica A 5, 985 b).
É uma combinação de opostos que explica a diferença de constituição que existe entre
as pessoas e, conseqüentemente, o fato de algumas sentirem certas sensações, como a de frio,
e outras sentirem a sensação oposta, de calor. Se, em cada coisa, há algo de frio e quente, belo
e feio, e assim por diante, sendo que é apenas a proporção maior ou menor presente, seja no
objeto, seja em quem o percebe, o que determina se ele será percebido como belo ou feio, e
como nunca ocorre uma ausência completa do termo oposto, então é possível explicar por que
duas pessoas têm sensações diferentes em relação a um mesmo objeto.
Mas, em ambas as interpretações, chega-se ao mesmo resultado: a realidade é
composta por elementos opostos, porque ou se considera que esses elementos fazem parte da
sua própria constituição ontológica, ou porque a percebemos assim, pois esses elementos são
concebidos como estando em fluxo constante.
Como as afirmações de uma pessoa se baseiam nas suas sensações, essas afirmações
também são consideradas verdadeiras e, no caso em que uma pessoa afirma que o vento é frio,
enquanto que outra afirma que ele é quente, ambas as afirmações são consideradas
verdadeiras para Protágoras.
No diálogo Teeteto, Protágoras assim resume a sua posição:
26
Insisto em que a Verdade é tal como a escrevi, a saber: cada um de nós é a medida do
que é e do que não é, e que um dado indivíduo difere de outro ao infinito, precisamente
nisso de serem e aparecerem de certa forma as coisas para determinada pessoa, e de forma
diferente para outra. (...) Para o doente, o alimento é e parece amargoso, enquanto para o
indivíduo são parece ser e é precisamente o contrário disso. Não devemos (...) sustentar que
o doente é ignorante por pensar dessa maneira ou que é sábio o indivíduo com saúde por
ser de opinião contrária. (...) O que afirmo é que, se um indivíduo de má constituição de
alma tem opiniões de acordo com essa disposição, com a mudança apropriada passará a ter
opiniões diferentes, opiniões essas que os inexperientes denominam verdadeiras. (...) O
médico consegue essa modificação por meio de drogas, o sofista com discursos. (...) É
justamente como procedem os oradores sábios e prudentes, fazendo parecer justas às
cidades as coisas boas em substituição às más. De fato, tudo o que parece belo e justo para
cada cidade, continua sendo para ela isso mesmo enquanto assim pensar; porém o sábio
[nesse caso, o sofista] faz ser e parecer benéfico o que até então lhes era pernicioso
(Teeteto 166d-167d) .
Portanto, tanto Protágoras quanto Górgias parecem fundamentar as suas teorias sobre
o poder da palavra em uma tese baseada em algum tipo de doutrina da emanação, cujo
representante mais destacado é Heráclito. Porém, é interessante notar que ambos chegam às
mesmas conclusões, baseados no mesmo tipo de teoria, mas por caminhos diferentes. Górgias
conclui que, mesmo sendo o lógoj uma emanação da realidade, ele é diferente do (isto é, não
tem semelhança física com o) objeto a que se refere e, por isso, a linguagem não pode ser
usada para falar das coisas como elas são. Mas, justamente por esse fato, as palavras podem
ser usadas como meio para alterar as opiniões das pessoas: não é possível comparar o que é
dito com os fatos objetivos aos quais as palavras se refeririam, mas apenas usá-las para afetar
as emoções dos ouvintes. Protágoras, como mostra a citação do Teeteto acima, também
defende o poder da retórica em convencer as pessoas sobre qualquer assunto e alterar as
opiniões delas apenas usando o discurso. Isso porque as nossas opiniões são baseadas em
nossas percepções que, por sua vez, são os efeitos resultantes das emanações dos objetos
sobre nossos órgãos sensoriais; e, seja porque esses objetos têm propriedades opostas, seja
porque os percebemos assim, já que eles estão em constante alteração, o fato é que a qualquer
27
opinião é possível contrapor uma opinião oposta e todas as opiniões são verdadeiras, não
existem opiniões falsas. Portanto, se alguém acredita na tese A, é possível alterar a sua
opinião e fazer essa pessoa passar a acreditar em não-A.
Outros filósofos do movimento sofista também defendiam a tese de que não existem
opiniões falsas, mas partiam da tese de um filósofo que geralmente é considerado como
pertencente ao extremo oposto do espectro filosófico, e pelo qual Platão nutre o maior
respeito: Parmênides. Vejamos as teses desse filósofo e como os sofistas as usavam.
1.4 O poema de Parmênides
Em seu poema Parmênides afirmaexistirem dois caminhos possíveis (ou
concebíveis) de investigação. O primeiro, que o filósofo afirma ser a via da verdade, consiste
em afirmar que “é, e não é possível que não seja” (ὅπωςἔστιντεκαὶὡςοὐκἔστιμὴ
εἶναι fr. 2, 3); o segundo caminho afirma que “não é, e é necessário que não seja” (ὡςοὐκ
ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι fr. 2, 5). Esses dois caminhos são os únicos
possíveis mas também são mutuamente excludentes: logo, é preciso escolher um dos dois.
Parmênides diz que o segundo caminho deve ser evitado, pois é uma via
“imperscrutável” (fr. 2, 6) ou “totalmente impensável”.
12
A justificativa para a exclusão
desse caminho é que não se pode conhecer nem expressar em palavra aquilo que não é (fr. 2,
7-8). Essa idéia é reafirmada no fragmento 8, onde Parmênides afirma que o Não-Ser “não é
dizível nem pensável, visto que não é” (v. 7-8 ) e é “impensável e inexprimível” (v. 16).
Excluída a via do Não-Ser, resta-nos um único caminho: o do Ser. O fragmento 6
afirma que “é necessário dizer e pensar que só o ser é”, e no fragmento 8, 34 é dito que “o
mesmo é pensar e ser”. Ou seja, só o que é pode ser pensado, só há pensamento, se houver
algo para ser o conteúdo desse pensamento, e algo só pode ser conteúdo para o pensamento,
12
Tradução de Kirk e Raven (1990), p. 275.
28
se cumprir um requisito mínimo: existir. A via do Ser é simplesmente a via oposta à via do
Não-Ser; como essa última foi excluída por causa da sua incognoscibilidade, a via do Ser é
assumida como a única hipótese viável, por ser a via que restou. “A afirmação de que o
pensamento é sempre pensamento sobre o Ser não recebe nenhuma justificativa no poema”.
A via do Ser só se justifica pela exclusão da possibilidade de o Não-Ser ser objeto do discurso
ou do pensamento.
Segundo Owen, Parmênides, como Descartes, quer encontrar uma certeza que não
possa ser negada sem que se caia em contradição ou sem cuja admissão seria impossível
pensar, falar, conhecer, etc. Que “é e é impossível que não seja” seria tal verdade tautológica.
Além dessas duas possibilidades, Parmênides ainda menciona uma 3ª: ela consistiria
em misturar ou combinar Ser e Não-Ser ou dizer que ambos são idênticos:
Em seguida, afasta-te / da outra via: é nela que erram os mortais /
desprovidos de saber e com dupla cabeça; / Com efeito, em seu coração, a
hesitação pilota / um espírito oscilante; eles se deixam levar / surdos, cegos e
tolos, turba inepta, para quem / ser e Não-Ser são considerados ora o mesmo / e
ora o não-mesmo (fr. 6, v.8-9).
Se não é possível falar ou pensar o Não-Ser, pelo mesmo motivo não é possível
combinar Ser e Não-Ser, e essa possibilidade também é descartada.
Mas se as afirmações de Parmênides são claras e simples, o seu significado tem sido
motivo de acalorado debate desde os tempos antigos. Contemporaneamente, a tentativa de
entender o poema de Parmênides tem se concentrado no estudo do significado do verbo “ser”.
Isso porque o verbo “ser” tem, pelos menos, quatro usos
13
:
1. Uso predicativo: “A é B”. Neste uso “é” acrescenta algo (uma propriedade, uma
qualidade, um atributo, etc.) a um sujeito: a frase “Sócrates é sábio” significa “Sócrates tem a
propriedade de ser sábio”.
13
Cf. José Trindade Santos (2004, p. 39). Também Barnes (1992, p. 195-6); Marques (1990, p. 58); Denyer
(1991, p. 47).
29
2. Uso existencial: “A existe”, afirma a existência de algo. Esta afirmação pode ser
explícita, como em “Deus existe”, ou implícita: “Sócrates é sábio” significa o mesmo que
“existe alguém (Sócrates) que é sábio” (Tugendhat, 1997, p. 144)
3. Uso identitativo: “A é B”, ou seja, afirma que A é idêntico, igual a B, ou que A e B
são, na verdade, uma mesma entidade. Note-se que a forma gramatical desse caso é idêntica
ao caso do uso predicativo.
4. Uso veritativo: “A é verdade, verdadeiro”, “é o caso que A”.
Em termos sintáticos, o verbo “ser” pode apresentar-se sozinho em uma frase (o
chamado uso absoluto), e, nesse caso, ele tem uma função existencial, ou apresentar-se na
função de cópula (o uso predicativo). Como, no poema de Parmênides, o verbo “ser” aparece
sozinho, em uso absoluto, a interpretação mais corrente do poema de Parmênides é a
existencial (Denyer, 1991, p. 21; Guthrie, 1988, II, p. 58 ; Barnes, 1992, p. 196).
Kirk & Raven (1990, p. 276), porém, chamam a atenção para o fato de que
Parmênides teria confundido os sentidos existencial e predicativo de esti. Segundo eles,
Parmênides está a atacar aqueles que acreditam, como sempre tinham
acreditado todos, que é possível fazer uma asserção negativa com significado. Mas, se
lhe é permitido atacá-los, é devido apenas à sua própria confusão entre uma asserção
negativa e um juízo existencial negativo.
Charles Kahn, em um estudo clássico, defende que o uso mais fundamental de “ser”,
em grego, é o uso veritativo, do qual os usos existencial e predicativo seriam derivados (cf.
Kahn, 1997, p. 202). Usa-se “ser”. não apenas para falar algo, mas também para afirmá-lo,
isto é, para dizer que a situação predicada “é o caso”, “é realmente assim”, é verdade.
A distinção semântica entre o ‘é’ predicativo e o ‘é’ de existência não
corresponde exatamente à distinção sintática entre as construções predicativa e
absoluta de einai. O valor mais fundamental de einai usado sozinho (sem predicado),
não é ‘existe’, mas ‘é o caso’, ‘é verdade que” (Kahn, 1997, p. 48).
Portanto, o uso veritativo do verbo “ser”, em grego, significa que (a) alguma coisa
existe; (b) algo é predicado disso e (c) que (a) e (b) são, ambos, verdadeiros: “Sócrates é
30
sábio” pode ser lido como “existe alguém, Sócrates, que tem a propriedade de ser sábio” e “é
o caso que ‘Sócrates é sábio’” (Kahn, 1997, p. 202).
G. Vlastos observa que, em grego, “ser” (ón), “realidade” (ousía), “real” (óntos) são
termos derivados da mesma raiz etimológica: estí. Tanto no inglês quanto no português, os
conceito de “ser” e de “realidade” são palavras de raízes etimológicas diferentes, enquanto
que, no grego, ‘real’ e ‘realidade’ são simplesmente as formas adjetivas e nominais de ‘ser’ e
‘é’
(cf. Vlastos 1981, p. 59). Não havendo uma distinção clara entre “ser” e “real”, certas
expressões são naturalmente ambíguas e de difícil tradução para as línguas nas quais, como é
o caso do português, esses mesmos conceitos são expressos por dois termos distintos, não
havendo uma única palavra ou expressão que abranja a ambos. Por exemplo, a expressão
légein tà ónta”, pode ser traduzida tanto por “relatar os fatos” quanto por “dizer a verdade”
(Kahn 1997, p. 12).
14
Essas observações nos permitem compreender por que, na língua grega, a expressão
“dizer o que é” funciona como uma expressão idiomática usada para expressar a convicção de
que o relato feito diz realmente as coisas tais como são ou os fatos tais como ocorreram, ou
seja; “dizer que é” não é (apenas) dizer que algo existe, que há algo, mas significa falar a
verdade, dizer que algo é o caso, relatar o que é assim de fato.
15
Tanto é assim que, em Platão e Aristóteles essa expressão é explicitamente
apresentada como uma definição de verdade (aéetheia), e a expressão contrária (“dizer o que
não é”) como definição de falsidade.
Platão: “Quem diz o que é diz a verdade” (Eutidemo 382e); “A proposição que se
refere às coisas como elas são é verdadeira, vindo a ser falsa, quando indica o que elas não
são” (Crátilo 285b); Sofista 263b
14
Outros autores que também defendem a tese que é impossível separar os diversos usos de estio Mourelatos
e Furth.
15
Ver também a etimologia de aletheia (relatar os fatos tais como são) em Mourelatos, 1970, pp.64-7 e Combrie,
1988, II, p. 58-9.
31
Aristóteles: “Dizer que o que é não é ou que o que não é é, é falso; dizer, ao contrário,
que o que é é ou que o que não é não é, é verdadeiro” (Metafísica IV, 7, 1011b 26).
Conseqüentemente, a expressão “dizer o que não é” não significa, simplesmente, dizer
que algo não existe, mas também “é a expressão corrente para dizer algo sem sentido,
pronunciar o que não corresponde à realidade” (Guthrie 1988, II, p.20).
José Trindade Santos resume a discussão sobre o verbo “ser”, no poema de
Parmênides, lembrando que, diferentemente do que ocorre nas línguas atuais, inclusive no
português, o verbo grego “condensa” os quatro sentidos em uma única palavra, sem que se
possa separá-los claramente:
Parmênides usa ‘é’, ‘ser’ e ‘o ser’ (to einai, tò ón) com todos esses
sentidos, (...), expressando a unidade lógica, epistemológica e ontológica de
uma entidade englobante a que chama ‘Ser’. Nela se acha expressa uma única
realidade/verdade, correspondente ao único pensamento possível sobre a única
‘coisa’ pensável e dizível: o ser (Santos, 2004, p. 39).
Essa “fusão dos quatro sentidos e, especialmente, a impossibilidade de se separar o
uso existencial dos outros três, originou “os absurdos mais espetaculares” (Santos, 2004, p.
40): as confusões e falácias que os sofistas exploraram, como as afirmações de que é
impossível dizer algo falso, pois o erro não existe e, por isso, é impossível contradizer
alguém, vieram a ser as principais doutrinas do movimento sofista.
1) O problema da falsidade.
Como vimos, por definição, falar algo falso é dizer, sobre algo, o que não é. Mas,
usando o argumento de Parmênides sobre a impossibilidade de se falar ou pensar o que não é,
os sofistas concluíam que falar algo falso seria impossível já que dizer o que não é equivale a
falar sobre o Não-Ser; o Não-Ser é nada, e falar sobre nada seria nada dizer, ficar em silêncio.
Por outro lado, em todo ato de fala dizemos algo, algo que é; logo, nunca dizemos o
que não é, nunca falamos falso, sempre dizemos a verdade. Toda e qualquer proposição é
verdadeira. Quem fala, dizem os sofistas, diz a verdade ou não diz nada.
32
2) Não é possível contradizer.
Antístenes afirmava que uma correta definição de um termo deveria ser capaz de
expressar o que uma coisa é: “um lógos é aquilo que manifesta o que uma coisa era ou é” e,
portanto, conclui-se que “cada coisa só tem um lógos” (Diógenes Laércio, 1988, IV, § 6.3).
Para haver contradição, é necessário que duas pessoas digam coisas diferentes sobre um
mesmo objeto. Mas como, segundo Antístenes, cada objeto tem um único lógos, há duas
possibilidades:
a) Estas pessoas não estarão falando sobre o mesmo objeto, mas sobre objetos
diferentes, um para cada lógos, e nesse caso não há contradição.
b) Uma delas está aplicando um lógos ao que não é, por exemplo, dizendo que
Sócrates estáa em pé, quando Sócrates está sentado. Ao falar de Sócrates em pé, ela está se
referindo a um objeto diferente do da pessoa que fala sobre Sócrates sentado, mas também
está falando sobre algo que não é, pois Sócrates em pé não existe. Mas Parmênides mostrou
ser impossível falar sobre o que não é e, portanto, é impossível falar falsamente, como vimos
acima (Aristóteles, Metafísica, 1024b32-34).
A conclusão é que nunca há contradição pois, ou uma das pessoas fala sobre o que não
é, mas isso é impossível, ou elas dizem coisas diferentes, e, nesse caso, falam sobre objetos
diferentes.
3) A impossibilidade da predicação.
A esses raciocínios os megáricos acrescentavam a observação de que uma simples
afirmação como “Sócrates é filósofo” seria impossível, pois “Sócrates” é diferente de
“filósofo”, e, nesse caso, estaríamos identificando duas coisas diferentes, “Sócrates” e
“filósofo”, o que seria uma contradição. Os megáricos afirmavam que apenas juízos de
identidade (“Sócrates é Sócrates”, “homem é homem”, “bom é bom”, etc.), são permitidos.
33
Em resumo, Platão defronta-se com duas concepções de linguagem diametralmente
opostas:
- a palavra parmenídea: impotente, limitada a afirmar o Ser, incapaz de predicar ou
explicar a contradição e a falsidade. Não há diferença entre discurso e Ser; a palavra, ao
nomear algo, já está dizendo a coisa mesma: palavra e realidade são uma coisa só;
- sofistas e retóricos: onipotente, capaz de falar sobre tudo e persuadir a todos, sem
diferenciar entre verdade e falsidade; sem nenhuma conexão com o Ser. O interessante é que
sofistas e megáricos chegaram a essa concepção justamente a partir da verdade tautológica
que o Ser é e o Não-Ser não é e da dedução logicamente impecável feita por Parmênides que
não é possível falar ou pensar o Não-Ser. Desta tese, sofistas e megáricos concluíam que:
- É impossível falar falso.
- É impossível contradizer.
- Todas as frases negativas são falsas
- Apenas juízos de identidade são possíveis (impossibilidade da predicação).
- Tudo o que falamos é verdadeiro
1.5 A teoria referencial da linguagem (TRL)
A nosso ver, o que torna mais compreensível as afirmações do poema de Parmênides,
bem como os paradoxos que os sofistas derivaram dele (e que é um ponto pouco destacado na
multidão de comentários e interpretações sobre esse assunto), é o fato de que a proibição de se
falar sobre o Não-Ser ganha sentido dentro do marco de uma teoria referencial da significação
lingüística (TRL).
34
Na TRL a resposta à pergunta sobre qual é o significado de determinada palavra,
expressão ou sentença, é que esse significado é a coisa ou objeto ao qual a palavra se refere.
Toda e qualquer palavra ou expressão é significativa por se referir a algo.
Uma palavra tem significado porque é o nome de alguma coisa: a palavra lápis, por
exemplo, significa (é um sinal que está no lugar e aponta para, indica) o objeto lápis na minha
frente. Como diz Alston (1972, p.28-9), “é tentador supor que essa explicação funciona para
todas as expressões com significado da linguagem, não apenas para os nomes”. A TRL se
baseia no paradigma da nomeação: damos nomes às coisas e usamos esses mesmos nomes
para nos referirmos às coisas, da mesma maneira que damos nome a uma criança recém-
nascida. O nome dado identifica a criança e a diferencia das outras, e pode ser usado para nos
referirmos a ela, mesmo quando não está presente.
Na TRL, o significado de uma palavra, portanto, é dado pelo objeto ao qual ela se
refere. As palavras são como que etiquetas associadas, por convenção, aos objetos; são signos
que denotam, nomeiam, designam, representam, referem objetos no mundo.
Apreendemos o significado das palavras por ostenção: se alguém quer saber o que
significa a palavra "lápis", basta lhe mostrar o objeto correspondente e uma frase complexa
como "o gato sentado no mato" tem significado porque cada um de seus elementos aponta
para seus respectivos objetos ou estados de coisas no mundo. O significado de uma frase
complexa seria, portanto, dado pela soma dos significados de seus elementos (cf. Lycan,
2001, p. 4-5).
A TRL tem uma plausibilidade intuitiva muito forte, já que ela se refere a um dos usos
mais básicos e mais importantes da linguagem, o de falar sobre as coisas do mundo externo: a
linguagem fala de alguma coisa, e a nossa compreensão e habilidade lingüística é dada pela
nossa capacidade de relacionar as palavras que usamos com os objetos apropriados no mundo.
35
Apesar de sua simplicidade e de seu apelo a algumas intuições básicas sobre a
linguagem, a TRL apresenta alguns graves problemas. Aqui queremos destacar três aspectos,
implicados pela TRL, que são cruciais para a nossa discussão.
(1) Só sabemos o significado de uma palavra, se soubermos a que objeto essa palavra
se refere ou indica. Quando queremos explicar o significado de uma palavra, temos que
identificar a coisa ou objeto ao qual a palavra se refere ou se relaciona (cf. Alston, 1972, p.
42). Usar corretamente uma palavra é usá-la para se referir ao objeto que ela significa, e não a
nenhum outro. A TRL, portanto, implica uma teoria da verdade como correspondência.
(2) Um palavra ou expressão se refere a algo que é diferente dela própria (cf. Alston,
1972, p. 29). A TRL implica uma separação entre mundo e linguagem, pois nela as palavras
fazem as vezes dos objetos que nomeiam, mas elas não têm nenhuma semelhança, seja física,
seja de outro tipo, com os objetos a que se referem.
(3) Só podemos entender o significado de uma expressão, se houver (existir) algo a
que ela se refere.
Mas aqui surge o grande problema com a TRL: se o significado de uma palavra é dado
pelo objeto a que ela se refere, o que ocorre nos casos em que uma palavra não tem um
referente no mundo ou nos casos em que uma expressão nega a existência de algo?
O nome, para ser um nome, precisa ser o nome de alguma coisa. A
coisa que é nomeada é considerada o significado do nome em questão. Daí se
segue que um nome que não é um nome de alguma coisa não é um nome no
sentido real do termo, e não tem, necessariamente, nenhum sentido (Kerferd,
2003: p.123-4).
Juízos existenciais negativos e afirmações sobre entidades que não existem são um
problema em toda a história da filosofia, e mesmo autores contemporâneos como Frege,
Wittgenstein, Quine e, especialmente, Russell, debateram-se com ele.
Russell, em seu famoso artigo Sobre a denotação (1905), mostrou que a TRL falha
mesmo nos casos mais simples de predicação. O principal problema ocorre quando tratamos
36
de palavras ou expressões que se referem a objetos que não existem como, por exemplo, "o
atual rei da França" ou “Pégaso”. Qual o significado dessas sentenças? Conforme a TRL, deve
ser o objeto que a expressão designa. Mas sabemos que esses objetos não existem, pois a
França, atualmente, não tem rei, e cavalos com asas não existem. No entanto, apesar de os
objetos designados não existirem concretamente, as expressões têm significado, no sentido de
que podemos entender o que elas querem dizer e usá-las sem problema. “Como pode uma
sentença como ‘o atual rei da França é sábio’ ser significante mesmo quando não há nada que
corresponda à descrição que ela contém?” (Strawson, 1989, p. 152).
Esse problema fica mais explícito quando consideramos sentenças que negam a
existência dos objetos aos que elas pretensamente se referem, como a frase "Pégaso não
existe". Segundo a TRL, essa frase só terá significado se Pégaso existir. No entanto, a própria
frase nega essa possibilidade ao afirmar que Pégaso não existe! Um defensor da TRL deve
concluir que essas palavras e expressões não têm significado, são meros sons (ruídos) sem
sentido.
Mas esse não é o caso, pois a frase “Pégaso não existe” tem significado: sabemos, por
exemplo, que ela é verdadeira. Pela TRL, se uma frase tem significado, então o objeto ao qual
ela se refere deve existir. Mas, nesse caso, chega-se a duas conclusões absurdas: 1) como todo
objeto de uma frase significativa deve existir, o atual rei da França e Pégaso devem existir
realmente, apenas pelo fato de termos pronunciado uma sentença com significado. Mas se o
atual rei da França e Pégaso existem então 2) ambas as frases são falsas.
Ou seja: sabemos que a frase “Pégaso não existe” é (1) verdadeira e (2) é sobre
Pégaso. Mas, se aceitamos a TRL, então (1) e (2) não podem ser sustentados
simultaneamente, pois, se ela é verdadeira, então Pégaso não existe, mas, nesse caso a frase
não tem referente e, portanto, não teria significado; por outro lado, se a frase é sobre Pégaso,
37
então ele deve existir de alguma maneira (o que levanta o problema do modo dessa existência)
e a frase é falsa (cf. Hottois, 2004, p. 186).
Assim, esperamos ter mostrado que os paradoxos dos sofistas em relação a linguagem
surgiram, não apenas por causa da confusão entre os usos existencial, predicativo e
identitativo do verbo “ser”, em grego, mas também porque os filósofos estudados acima
tinham, tácita ou explicitamente, uma concepção de linguagem segundo a qual o significado
de uma palavra consiste naquilo a que ela se refere, isto é, o significado de um termo é
determinado pelo objeto exterior que o termo nomeia. Essa concepção impede que se fale de
forma significativa sobre o Não-Ser e considera sem sentido qualquer afirmação em que se
negue algo. Dizer algo falso é entendido como dizer algo sem significado.
Veremos que, em sua concepção de linguagem, Platão tentará manter um equilíbrio
entre duas teses opostas a fim de resolver os paradoxos de ambas: a tese segundo a qual
palavra e ser estão conectadas de tal modo que dizer algo é dizer o ser, e a tese de que palavra
e ser não tem nenhuma ligação, pois aquelas são apenas signos arbitrário que usamos para
rotular as coisas. A solução de Platão consiste em tentar separar o ser e linguagem sem, no
entanto, fazê-los perder contato.
No diálogo Crátilo Platão analisa e critica, como esperamos mostrar a seguir, sob a
rubrica de convencionalismo e naturalismo, as posições de Protágoras e de Górgias-Heráclito,
respectivamente.
38
Capítulo II
O Crátilo
Fowler, na introdução da sua tradução do Crátilo, afirma que “não se pode dizer que o
Crátilo seja de grande importância no desenvolvimento do sistema platônico, pois trata de um
assunto especializado [a origem das palavras] um tanto à parte da teoria geral da filosofia”
(apud Kerferd, 2003, p.130).
Outros autores também defendem que o Crátilo ocupa uma posição secundária no
corpus da obra platônica, pois acreditam que Platão não se interessa pelos problemas da
linguagem a não ser como pretexto para mostrar que ela não teria nenhuma importância para
uma teoria gnosiológica e ontológica tal como buscada por Platão (Méridier, 1950, p. 30-33).
A própria conclusão do Crátilo de que não é possível conhecer as coisas pelas palavras, mas
apenas pelas coisas mesmas, apenas reforçaria a opinião corrente de que, para Platão, a
linguagem ficaria reduzia a um mero instrumento para a expressão dos pensamentos, não
sendo “constitutiva da experiência humana do real” (Oliveira, 1996, p.22), como a
consideram os filósofos contemporâneos da tradição hermenêutica e fenomenológica, nem se
encontrariam nela as condições de possibilidade do conhecimento, como para a tradição
analítica.
39
Nós, no entanto, como explicamos na Introdução, defendemos que a Teoria das Idéias
de Platão surgiu justamente como tentativa de resolver os problemas lingüísticos: a
impossibilidade de dar significado aos nomes de objetos sensíveis, se esses estão em
constante alteração. Nesse sentido, o Crátilo é importante, pois nele encontramos uma análise
minuciosa de teorias da linguagem que são, na realidade, análogas às defendidas por
Protágoras e Górgias: o convencionalismo e o naturalismo. Para o convencionalismo, a
relação entre as palavras e o que elas nomeiam (o objeto) é um caso de convenção: se alguém
atribui um nome a alguma coisa, esse é considerado o seu nome correto: as palavras são como
que etiquetas verbais que aplicamos aos objetos. O convencionalismo, com sua indiferença à
ontologia, é análogo à posição de Protágoras, que estudamos no capítulo anterior,e se baseia
em na teoria do fluxo de todas as coisas de Heráclito, como veremos. Já para o naturalismo,
ao contrário, as palavras exprimem a essência dos objetos que nomeiam, ou seja: ao usarmos
as palavras para nos referirmos a algo, já estamos dizendo a própria coisa. Como veremos, o
naturalismo se baseia na doutrina da emanação de Heráclito e Górgias.
Duas observações importantes são necessárias, antes de começarmos a estudar o
Crátilo:
O Crátilo trata da “correção dos nomes” (
ÔnómatoV Ôrjðóthta), tema sobre o qual
vários sofistas, como Pródico, Hípias e Protágoras, escreveram tratados (ver Kerferd, 2003, p.
119), sendo, portanto, um tema de grande interesse na época. É importante destacar que
“correção dos nomes”, como ficará claro ao longo do texto, significa perguntar pelo
significado dos nomes, isto é, o Crátilo trata da questão da referência (cf. Spellmann, 1993,
197). Ele não procura responder questões sobre a origem da linguagem nem sobre o
significado de sentenças.
Geralmente nos referimos a “nome” como nome próprio, o nome de alguma pessoa.
Mas em grego o termo
Ónoma abrange, além dos nomes próprios, também nomes comuns
40
(substantivos), verbos e adjetivos, ou seja: qualquer coisa que seja uma palavra (Barney,
1997, p. 143 n. 1; Luce 1969, p. 222-3; Fine, 1977, p. 290-301; Robinson, 1955, p. 221).
Embora, na discussão contemporânea sobre filosofia da linguagem, alguns autores
defendam a tese de que os nomes próprios não têm significado (Russell, Alston), para os
gregos, os nomes, e especialmente os nomes próprios, têm um conteúdo descritivo, como
veremos mais adiante na análise da seção das etimologias (cf. Fine, 1997, p. 289-90). O ato de
nomear será o paradigma usado para explicar como as palavras recebem significado e os
nomes próprios serão tratados como descrições resumidas. Por exemplo, “Hermógenes” não é
apenas um conjunto de letras (ou sons) que Sócrates usa para designar esse indivíduo,
personagem do diálogo, mas ele o interpreta como significando “descendente do deus
Hermes”. Como Hermes é o deus da riqueza e da habilidade em falar, essas duas
características são atribuídas também ao seu portador, o personagem do diálogo.
Portanto, o Crátilo é uma investigação sobre a referência, limitada ao escopo da
nomeação.
2.1 A tese convencionalista
A tese convencionalista defendida por Hermógenes é a posição segundo a qual a
correção dos nomes (o)rqo/thj o)no/matoj), isto é, a relação entre as palavras e o objeto que
elas nomeiam, é estabelecida por uma convenção ou acordo (sunqh/kh kaiì o(mologi¿a,
384d1). “Nenhum nome é dado por natureza (fu/sei) a qualquer coisa, mas pela lei e pelo
costume (no/m% kaiì eÃqei) dos que se habituaram (e)qisa/ntwn) a chamá-la (kalou/ntwn) desta
maneira” (384d6-8).
Hermógenes atribui a origem do significado das palavras ao hábito: alguém,
provavelmente no passado remoto, nomeou um objeto com determinada palavra. Essa prática
41
foi, a seguir, imitada por outras pessoas e, com o passar do tempo, tornou-se um hábito, vindo
a fixar-se, por fim, em costume ou lei. Portanto, a conclusão é que usamos a linguagem que
usamos por mero seguimento da convenção e do costume social. Os nomes e as palavras
adquirem seus significados, através de um acordo social (tácito), o qual é o produto
unicamente do hábito, por parte dos usuários de linguagem, de se referir a determinadas
coisas com as mesmas palavras de forma constante.
Segundo Rachel Barney (1997, p.147-150), uma leitura cuidadosa do texto de 385d
nos permite observar que, na exposição da sua tese, Hermógenes diferencia dois tipos de ação,
uma das quais precede a outra. Primeiramente, há o ato de impor um nome a determinado
objeto e, após, segue-se a prática de chamar o objeto por esse nome.
16
Barney lembra que o verbo que Hermógenes usa para designar a imposição dos
nomes, tithénai, é também o verbo normalmente usado com referência ao ato de “assinalar,
conceder, dar a uma criança um nome à escolha” (LSJ), isto é, ao ato de batizar. No batismo,
os pais atribuem aos filhos um nome de sua escolha e, primeiramente, parentes e conhecidos
e, depois, o resto da sociedade, aceitam esse nome e o usam. No Crátilo, até 397d, os
exemplos de palavras estudadas são nomes próprios, nomes de deuses, heróis ou pessoas, e o
primeiro critério de atribuição de nomes examinado é o de nomear de acordo com a filiação.
Mas, mesmo quando Sócrates inclui em sua pesquisa outras classes de palavras, a nomeação é
sempre vista sob o paradigma do batismo, pois ela é considerada um produto, seja da
imposição originária dos nomes pelos deuses, seja do trabalho do nomotéta, seja do trabalho
dos antigos. O convencionalismo defendido por Hermógenes, portanto, seria uma
generalização da concepção de batismo (aplicável aos nomes próprios) para todas as outras
espécies de palavras.
Dessa forma, podemos distinguir dois aspectos no convencionalismo de Hermógenes:
16
Ackrill refere-se a esses dois momentos como a introdução de uma palavra na linguagem e o uso desta
palavra, respectivamente (1997, p. 36).
42
1) Convencionalismo no uso dos nomes: usamos certas palavras e certos nomes,
seguindo uma prática coletiva de designar certos objetos com tais nomes. O hábito originário
de uma ou de algumas pessoas de nomearem determinado objeto com determinada palavra é
seguido por outras pessoas e, com passar do tempo, fixa-se em um hábito constante. Os
nomes e as palavras adquirem significado através do acordo social; esse acordo, por sua vez,
nada mais é do que um hábito coletivo de usar determinadas palavras para se referir sempre a
determinadas coisas.
2) O segundo aspecto do convencionalismo de Hermógenes é o convencionalismo na
atribuição dos nomes: a prática coletiva de usar determinados nomes teria sua origem no ato
de um indivíduo que, em algum momento, atribuiu tal nome a tal coisa. Essa imposição de um
nome é considerada como o ato individual ou privado (cf. 435a) de alguém que atribui um
nome a um objeto. Esse ato individual, por um lado, inicia a convenção coletiva segundo a
qual tal nome é o nome de tal objeto e, por outro, estabelece uma norma que justifica o seu
uso subseqüente. Ou seja: um nome é usado corretamente apenas se for usado de acordo com
o que foi estipulado pela imposição inicial.
Dessa forma, fica claro que a tese principal do convencionalismo de Hermógenes é
que, se no uso das palavras há regras que são definidas pela convenção (social), no ato inicial,
originário, de nomear um objeto, não há regras a serem seguidas. Não existe nada que
vincule de forma necessária e não-ambígua um nome a determinado objeto e apenas a ele (ou
vice-versa). Toda denominação é arbitrária, não segue nenhuma regra ou critério, a não ser o
capricho de quem dá um nome a alguma coisa. Assim, para Hermógenes, a palavra é como
uma espécie de rótulo ou etiqueta (verbal ou escrita) que simplesmente “aplicamos” a
determinado objeto, sendo que qualquer outro rótulo seria igualmente adequado para se
indicar determinada coisa.
43
Para Hermógenes, poderíamos até mesmo substituir, a qualquer momento, os nomes
dos objetos por outros nomes: poderíamos, por exemplo, dar o nome de “cavalo” ao que
atualmente chamamos homem, e, caso sempre utilizarmos a palavra “cavalo” para nos
referirmos a homem, esse passará a ser o seu nome (385a7). Portanto, para Hermógenes, é
mero acidente que as palavras possuam o significado que têm no momento.
Podemos então desdobrar a tese convencionalista de Hermógenes da seguinte forma:
1) Os nomes são usados por convenção, pela lei, pelo hábito ou pelo costume.
2) Qualquer pessoa, a qualquer momento, pode dar o nome que quiser a qualquer
objeto.
3) Podemos trocar os nomes já existentes dos objetos, a qualquer momento.
4) Uma pessoa pode mudar o nome de uma coisa, e todas as outras pessoas podem
continuar usando o nome antigo (e vice-versa).
5) Um mesmo objeto pode ter vários (potencialmente infinitos) nomes: uma pessoa
pode dar um nome a uma coisa, uma segunda pessoa pode dar outro nome à essa mesma
coisa, uma terceira pessoa pode dar um terceiro nome a mesma coisa, e assim ad infinitum.
6) O nome dado a um objeto é o seu nome correto. O nome (qualquer que seja) pelo
qual chamamos uma coisa é o seu nome correto. “Seja qual for o nome que se dê a uma coisa,
esse é o seu nome correto” (384d3) .
7) Logo, não há nomes mal-aplicados: todo nome é verdadeiro.
8) Conseqüentemente, toda nomeação é verdadeira.
A crítica de Platão ao convencionalismo de Hermógenes será dirigida, não tanto ao
que o convencionalismo afirma, mas principalmente ao que ele implica. Como veremos
adiante, Platão, ao criticar o naturalismo de Crátilo, admitirá que a linguagem tem uma parte
de convenção. O que ele rejeitará é uma das conseqüências do convencionalismo: a de que
todo e qualquer nome é verdadeiro.
44
Sócrates imediatamente associa essa tese com a afirmação de Protágoras de que o
homem é a medida de todas as coisas. Como vimos, para Protágoras as coisas são para as
pessoas tais como elas as percebem: toda a sensação é verdadeira. Como as nossas opiniões se
baseiam nas sensações, única fonte de conhecimento, para Protágoras, também nossas
afirmações são verdadeiras, e é impossível falar falso e contradizer.
Mas Sócrates argumenta que, se todas as opiniões são verdadeiras, então todos os
homens seriam sábios, bons, teriam sucesso profissional e social, ou seja, seriam cidadãos
virtuosos, no sentido grego do termo. Mas, como sabemos, esse não é o caso, e tanto não é o
caso que o próprio Protágoras se apresenta como alguém que ensina as pessoas a adquirirem a
virtude! Se a tese de Protágoras é verdadeira, o seu ensino seria desnecessário, pois todos
teríamos acesso à verdade.
17
Portanto, o fato de que haja pessoas mais sábias ou razoáveis do que outras é usado
como refutação da tese do homem-medida de Protágoras, já que ele mostra que as coisas não
são tais como cada um as percebe particularmente. O fato de que uma opinião seja verdadeira
para alguém não significa que ela seja realmente verdadeira. Para Sócrates, “é evidente que as
coisas têm uma certa entidade estável, que não é relativamente a nós nem é por nós, que não é
arrastada para cima e para baixo por ação da nossa fantasia, mas tem uma entidade que é em
si mesma e relativamente a si mesma (Âllà kajð) /autà pròV t#n /autvn oüs™a), a qual é
por natureza” (386de).
Se as coisas nomeadas têm uma essência fixa, é possível dizer-se a verdade ou mentir,
isto é, existem discursos falsos e discursos verdadeiros: o discurso (lógos), que se refere às
coisas como elas são é verdadeiro, enquanto que o discurso que indica o que elas não são é
falso (!Ar) oÜn /o@toV äòV Àn tà Ónta lægÑ äwV Éstin, Âlhjð®V: äòV d) Àn äwV oük Éstin,
q»eud®V
) (385b).
17
Este mesmo argumento contra Protágoras é usado no Teeteto.
45
O discurso verdadeiro só o é, se for verdadeiro nas partes; a menor parte do discurso é
o nome e, como os nomes são partes do discurso, eles também podem ser verdadeiros ou
falsos (385bc).
Sócrates observa que nomear é um ato, e em todo ato realizamos algo. O que
realizamos com os nomes? Qual é a ação específica (dúnamis) das palavras?
Segundo Sócrates, a linguagem tem uma dupla função:
- Uma função de ensinar (
didaskalikón), isto é, comunicar algo sobre o mundo a
outras pessoas.
- Uma função diacrítica de distinguir os seres (
ka˜ diakritikòn t²V oüs™aV): assim
como, quando cortamos algo, separamo-lo em duas partes distintas, nomear é
distinguir, e assim como existem critérios objetivos para conseguirmos, com
sucesso, cortar, queimar, agir sobre algo, assim também deve haver critérios
objetivos para o uso dos nomes (388cd).
Portanto, a função da linguagem é comunicar a verdade (Ackrill, 1997, p.39-40). Os
nomes devem referir-se a coisas que realmente existem, e a características, nessas coisas, que
realmente sejam tais como descritas. Nomear não é atribuir uma palavra, concebida como
uma mera seqüência de sons, a um objeto, mas descrever (corretamente) a essência de uma
coisa.
Assim, o nome não é apenas um rótulo arbitrário aplicado a um objeto, mas tem a
função diacrítica de descrever corretamente a sua essência, distinguindo-o das outras coisas.
Conseqüentemente, o nome é o instrumento privilegiado para ensinar, isto é, comunicar o
conhecimento verdadeiro. A função do nome é expressar corretamente essa essência fixa que
identifica a coisa, e apenas a ela, sobre a qual estamos falando (caso em que temos um
discurso verdadeiro - “dizemos o que é” -, caso contrário, temos um discurso falso) (386ad).
46
O nomoteta (nomojðæthn), isto é, aquele que atribui os nomes às coisas deve olhar,
com a ajuda do dialético, para o que é o nome em si (Êkeîno äò Éstin Ónoma) e compor com
letras e sílabas o nome que naturalmente é apropriado para cada coisa. Sócrates destaca que
não importam quais letras/sílabas são usadas, desde que o nome reproduza a essência da coisa
em questão. Isso significa que a idéia do nome de uma coisa é diferente da sua materialização
em sons ou sinais escritos: a idéia-nome de “mesa” é diferente da palavra (seja escrita, seja
falada), “mesa” ou “table”(389d-390e). Ora, isso significa que, mesmo que possamos mudar o
rótulo que aplicamos a uma coisa, algo permanece o mesmo. Um cavalo não deixa de ser
cavalo só porque o denominamos “homem” ou “mesa”. Algo (o que nomeamos) permanece o
mesmo, independentemente da palavra ou combinação de letras que tenhamos escolhido para
indicá-lo.
Sendo assim, para que um ato de nomeação tenha sentido e seja correto, ele deve
respeitar a essência do objeto nomeado, o que equivale a dizer que deve ser aplicado,
seguindo certos critérios. Qual(is) o(s) critério(s) para o sucesso na nomeação/uso da
linguagem? Como saber se estamos usando um nome corretamente? Na terminologia de
Platão: o que é a correção dos nomes?
2.2 As etimologias
Para tentar responder a essas perguntas, Sócrates usa o método etimológico. A
etimologia grega procurava determinar o sentido verdadeiro de um vocábulo, isto é, seu
étimon. Supõe-se que a palavra que usamos atualmente sofreu, com o passar do tempo, várias
alterações que encobrem o seu verdadeiro sentido sob uma forma diferente. Explicar o
significado de uma palavra seria descobrir, revelar o sentido fundamental oculto sob sua
forma atual.
47
Os etimologistas gregos contemporâneos de Sócrates mostraram que, por meio de
operações de adição, supressão, deslocamento ou combinação de letras, pode-se alterar a
forma de qualquer palavra, com o objetivo de encontrar a forma (geralmente a mais antiga)
que expressaria o verdadeiro significado do que está sendo dito. Para saber o sentido
verdadeiro de um nome, é necessário remontar ao nome primitivo do qual ele é derivado,
pois, sem que se conheça o significado dos nomes primitivos, não se pode conhecer o sentido
dos nomes derivados. A etimologia, portanto, procura explicar o significado de uma palavra
por meio de outra(s) palavra(s) (Carrillo, 1959, p. 24-7).
(a) Análise de nomes próprios
Sócrates começa a sua pesquisa, a partir de um ponto que é problemático para o
naturalismo: o fenômeno da sinonímia, o fato de que duas palavras diferentes se refiram à
mesma coisa.
A sua investigação tem como ponto de partida Homero, para quem algumas coisas têm
dois nomes diferentes, um nome dado pelos homens e um nome dado pelos deuses.
18
Por
exemplo, determinado rio é chamado de “Xanto” pelos deuses e de “Escamandro” pelos
homens; certa espécie de pássaro, chamada pelos homens de “kuymindis”, recebe dos deuses o
nome de “khalkis”. Nesses casos, o nome a ser considerado correto seria, naturalmente, o
nome dado pelos deuses (391e-392b).
Mas também há casos em que os homens atribuem nomes diferentes às mesmas coisas.
Por exemplo, os gregos chamam o filho de Heitor de “Astíanax”, enquanto que os troianos o
chamavam de “Escamândrio”. Neste caso, Sócrates afirma que o nome a ser considerado
correto deve ser o que foi dado pelas pessoas que consideramos mais sábias e razoáveis
(fðronimwtærouV) – no caso, os gregos (392bd).
18
Não é possível saber, pelo contexto, se isso ocorre para todas as palavras ou unicamente nos casos específicos
exemplificados a seguir.
48
Dessa afirmação destaca-se um ponto importante: os nomes mais corretos seriam os
nomes dados segundo determinados critérios, critérios esses adotados por serem considerados
razoáveis. Sócrates passa a examinar, ainda usando Homero como guia, que critérios o poeta
teria usado, mesmo de forma implícita, para atribuir nomes a certas pessoas.
1. Os nomes seriam derivados a partir da filiação. Dá-se ao filho o nome do pai, quando
“a geração é conforme a natureza” (393c). Chamamos de “leão” ao filho de um leão, “cavalo”
ao filho de um cavalo, “rei” ao filho de um rei. Assim, Astíanax (
Astyánakti) recebeu esse
nome por ser filho do rei Heitor (
%Ektor). Ambas as palavras significam “rei”, pois Ánax
refere-se a “rei”, “senhor” e “éktwr” significa “aquele que detém (o poder)”. Algo análogo
ocorre com os nomes “Agis”, “Polemarco” e “Eupolemo”, que significam “general”, ou com
os nomes “Iatrócles” e “Acesímbroto”, que significammédico” (394bc).
Em grego, “Astíanax” (Astyánakti) e “Heitor” (%Ektor) têm apenas a letra t (tau) em
comum, enquanto que “Arqueópolis”, que também significa “rei”, no entanto, não possui
nenhuma letra em comum com os dois nomes anteriores. Portanto, segundo Sócrates, as
palavras podem diferir nas letras e sílabas e ainda assim ter o mesmo “poder” (dúnamis) de se
referir a determinadas coisas. A mesma coisa pode ser significada (ou um mesmo sentido
pode ser expresso) por diferentes combinações de sílabas (393de), desde que a essência da
coisa seja manifestada no nome (oüs™a toû prágmatoV dhloumænh Ên tÖ Ônómati - 393d).
Por exemplo, quando nos referimos às letras, que formam as palavras, pronunciamos ou
escrevemos os seus nomes e não as próprias letras. Chamamos o b de “beta”, acrescentando
ao elemento as letras “e”, “t” e “a”, mas esse acréscimo não altera o poder de b, isto é, o que
queremos expressar ou significar com o elemento b (393e).
Mas essa doutrina da nomeação pressupõe que a geração ocorre segundo a natureza.
Porém, esse nem sempre é o caso. Por exemplo, pode ocorrer que o filho de um homem bom
49
seja uma pessoa má, ou que um rei tenha um filho incapaz de se dedicar ao governo de uma
cidade, etc. Nestes, e em casos análogos, como deve ser então a nomeação?
2. Nomes derivados do gênero a que pertencem (394d).
Os nomes cuja geração não ocorreu conforme a natureza são designados não pelo
nome do pai, mas pelo do gênero ao qual pertencem. Se um boi nascesse de um cavalo, seria
chamado de bezerro e não potro.
O nome Orestes, que significa literalmente “homem da montanha”, revela, segundo
Sócrates, o caráter “bestial e selvagem” desse personagem; Agamémnon perseverou
longamente diante de Tróia, por isso seu nome significa apropriadamente “admirável por
permanecer”; Atreu, um assassino, tem seu nome derivado de “funesto” (ateros), “duro”
(ateires) e “intrépido” (atrestos); Pélps, por não ter sido capaz de prever o que aconteceria
com a sua descendência e só enxergar o imediato, “ao pé”, (pelas); Tântalo arruinou seu país
e foi condenado a ter uma pedra suspensa sobre a sua cabeça no Hades, por isso é apropriado
chamá-lo de o mais desafortunado dos homens (talantaton é superlativo de talas, ruína), etc.
O nome Zeus, diz Sócrates, “é simplesmente como uma frase”. Este termo é formado, na
verdade, pela contração de duas palavras distintas, pois as pessoas consideram esse deus a
causa da vida (zên) e é por ele (di’hos) que todos os seres vivos recebem vida (395a-396b).
Mas Sócrates afirma que o estudo de nomes próprios (de heróis ou de homens) pode
induzir ao engano, pois eles foram dados pelos antepassados, e nada garante que eles tenham
usado os critérios examinados até esse momento. Alguns nomes, inclusive, evidentemente
foram atribuídos com o objetivo de formular um bom desejo ao recém-nascido (por exemplo,
50
Eutíquedes, Sósias, Teófilo, que significam “amigo de Deus”) e não têm, portanto, relação
com a natureza dos seus atuais portadores (397a). Sócrates propõe, então, que se passe a
estudar os nomes de coisas que, por natureza, têm uma existência estável, pois a atribuição
dos nomes seria mais correta nesses casos (397b).
(b) As etimologias
Sócrates lança-se então, para o espanto e a admiração de Hermógenes, em uma longa
série de etimologias. Segundo Dominguez, a escolha dos nomes a serem analisados está longe
de ser arbitrária, seja porque a ordem de sua apresentação revela uma articulação interna, pois
as etimologias vão de termos concretos a conceitos mais abstratos e metafísicos, seja porque
esses termos formam como que uma “enciclopédia” ou “dicionário filosófico” do pensamento
grego (Dominguez, 2002, p.17). Seguindo o mesmo autor, podemos distinguir cinco grupos
de etimologias:
1) Nomes de coisas:
Deuses (397d); daímon (397d); herói (398c); homem (399a); alma e corpo (399d).
2) Nomes de deuses:
Hestia (401b); Reia e Crono (401e); Poseidon e Plutão (Hades) (402d); Demeter, Hera,
Apolo (404b); Atena, Hefesto, Ares (406d); Dionísio e Afrodite (406b); Musas, Leto, Ártemis
(406a); Hermes (407e).
3) Fenômenos naturais:
Sol (h9/lioj - 408e); Lua (selh/ne, selanai/a - 409 a); s (mei/j - 409c); astros
(
a)strath - 409c); fogo (pu~~r - 409d); água (u(/dwr); ar (a(h/r), éter (a)iqn/r), terra (gai~~a - 410
a); estações (w[rai); anualidade (e)niauto/j) e ano (e)/toj - 410c).
51
4) Nomes de virtudes:
Divide-se em cinco sub-grupos:
a) Virtudes intelectuais (411d-412c):
fro/nhsij (pensamento/reflexão, sensatez); no/hsij (pensamento); swfrosu/nh
(temperança); e)pisth/mh (ciência); su/nesij (entendimento/compreensão); sofi/a (sabedoria).
b) Virtudes morais (412c-416d):
a)gaqo/n (bom); dikaiosu/nh (justiça); di/kaion e a)dikia (justo e injusto); a)dre/ia
(coragem); a)/rrhn (viril); a)nh/r (homem); gunh/ (geração)); qh~lu e qa/llein (feminino e
germinar); te/xnh (arte); mhkanh (habilidade); kaki/a (vício); deili/a (covardia); a)pori/a
(dificuldade); a)reth/ (virtude); kako/n (belo); ai)sxro/n (feio); kalo/n (belo).
c) Conceitos Bom, Belo e seus opostos (416e-419b):
sumfe/ron (vantajoso); kerdale/ov e ke/rdoj (lucrativo); lusitelo~um (útil); w)felimo/n
(útil); blabero/n (prejudicial); zhmiw~dej (-); de/on (e h(me/ra) (-).
d) Nomes de afetos (419b-420e):
h(donh/ (prazer); lu/pe (dor); a(ni/a (tristeza); a)lghdw/n (dor); o)du/nh (sofrimento);
a)xqhdw/n (aflição); xara (alegria); te/ryij (deleite); terpno/j (agradável); eu)frosu/nh
(alegria); e)piqumi/a ( - ); qumo/j (paixão); i(/meroj (desejo); poqoj (saudade); e/rwj (amor);
do/ca (opinião); oi)/hsij (opinião); boulh/ (conselho); a)bouli/a (ausência de opinião); a)tuxi/a
(desastre); e(kou/sion (voluntário); a)nagxaion (necessário).
5) Termos metafísicos (421a-c):
o)/noma (nome); a)lh/qeia (verdade); o)/n (ser); ou)si/a (essência).
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A que conclusões Sócrates chega, após essas etimologias? Evidentemente, não vamos
analisar cada uma delas, mas alguns exemplos são interessantes para mostrar a estratégia de
Sócrates e como ele chega a determinadas conclusões.
O nome “deuses” (jðeo˜) proviria do verbo “correr” (jðeîn), pois os antigos associavam
os deuses aos planetas e estes, como se sabe, parecem correr rapidamente contra o fundo
estático da esfera celeste (397d).
“Herói” seria derivado de “Eros”, já que todos os heróis são semideuses nascidos do
amor de um deus por uma mortal ou de um mortal por uma deusa. Ou, acrescenta Sócrates,
talvez por que fossem “hábeis no falar” (eÍrein), habilidade que lhes permitiu conquistar seu
amor (398de).
“Homem” (ÁnjðrwpoV) proviria da contração da expressão “o que examina aquilo que
vê” (Ânajðrvn äà Ópwpe), indicando a capacidade que o homem tem de refletir ou pensar
sobre as coisas (399c).
As conclusões que Sócrates extrai da aplicação do método etimológico são as
seguintes:
As palavras podem ser formadas e alteradas mediante o acréscimo, eliminação,
transposição ou a substituição das letras que as constituem. Também o deslocamento de
acentos (como no caso de herói – éros) ou a contração de dois ou mais nomes são maneiras de
alterar as palavras (394b; 399a).
No entanto, esse método tem o grave problema de permitir que, ao se acrescentar ou
suprimir letras de forma arbitrária, se possa relacionar, de maneira igualmente arbitrária,
qualquer nome a qualquer coisa (399a b; 414e). Com esse método, é possível até mesmo,
fazendo alterações nas letras, fazer com que uma palavra venha a significar o contrário do
que ela afirmava anteriormente (cf. 418 a b). Além disso, na maioria das vezes, os nomes são
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alterados segundo critérios de beleza ou maior facilidade de pronúncia, e não se levando em
conta a sua adequação à natureza do objeto.
Portanto, a conclusão geral negativa a que se chega é que, ao nível das palavras, não é
possível detectar a natureza da coisa por causa da arbitrariedade de sua aplicação, o que
significa que ainda não encontramos os critérios adequados de uma nomeação correta.
E essa arbitrariedade tem uma explicação. Segundo Sócrates, os nomes foram
atribuídos às coisas na suposição de que a doutrina de Heráclito, que diz que “todas as coisas
se movem e nada permanece pois a sua causa é um impulso para frente” (401d), é verdadeira.
Não há nada estável e seguro na natureza das coisas, todas fluem constantemente, estão em
movimento e são “cheias de mobilidade e gerações” (411c).
Por isso em quase todas as etimologias, Sócrates deriva o sentido das palavras
analisadas de tal forma que elas são interpretadas como se referindo, originariamente, aos
termos que expressam movimento e termos correlatos. Inclusive as palavras que nomeiam
faculdades cognitivas são interpretadas assim:
A ‘razoabilidade’ (fðrónhsiV); efectivamente, trata-se do conhecimento
da mobilidade e do fluxo (çðoû nóhsiV). (...) Se quiseres outro nome, o
«pensamento» (nóhsiV) exprime de todas as maneiras a investigação e o exame
da geração (nõmhsin). E, se quiseres outro nome, a própria «intelecção» é o
desejo do novo (äésiV toû næou), e o fato de os entes serem novos significa que
estão constantemente a ser gerados; e é a isto que a alma aspira, como mostra
aquele que deu o nome neoesis (neóesin). (...) Por sua vez, o saber (Êpist®mh)
mostra que a alma, uma alma de certo valor, segue (äepo) as coisas no seu
movimento, sem ficar para trás nem correr à sua frente; razão pela qual é
necessário rejeitar o e, chamando-lhe ‘pistêmê’. Por sua vez, (...) ‘compreender’
(syniænai) significa que a alma avança em conjunto com as coisas. Por seu lado,
a ‘sabedoria’ (sofð™a) significa uma ligação à mobilidade. Trata-se de um nome
profundamente obscuro e estranho; mas convém atentar nos poetas e recordar que
eles dizem, muitas vezes, acerca daquelas coisas que começam a avançar
rapidamente, que ‘se precipitaram’ (Êsýjðh)” (411d-412a).
54
Mesmo o termo “essência” (oüs™a), que seria a “causa e o princípio de todas as
coisas”, é interpretado como se referindo a movimento, pois seria derivado de Øs™na que
significa “impulso para a frente” (401ce).
Como vimos na capítulo 1, a doutrina de Heráclito do fluxo universal era adotada
pelos sofistas (Protágoras e Górgias), para explicar a percepção, pois essa era entendida como
ocorrendo, graças ao contato dos nossos órgãos dos sentidos com as emanações dos objetos.
Por isso, tanto os objetos, para gerar as emanações, quanto os nossos órgãos sensíveis, para
serem afetados pelas emanações, devem ser móveis. Ora, também o significado das palavras
era explicada por uma teoria análoga, isto é, as emanações dos objetos causariam em nós o
surgimento das palavras respectivas, que, por isso, representam as coisas tal como elas são.
Mas, se tudo está em movimento, Sócrates argumenta que qualquer palavra poderia ser
atribuída a qualquer coisa, o que significa, na verdade, que os significados das palavras
podem ser alterados a qualquer instante. Mas, nesse caso, não teríamos nenhum critério,
nenhuma regra para a nomeação e não haveria qualquer correção dos nomes.
Outro problema muito grave desse método, segundo Sócrates, é que, de acordo com o
método etimológico, se não se conhece o sentido dos nomes primitivos, não se conhece o
sentido dos nomes derivados deles e, portanto, para se interpretar um nome, é necessário
remontar aos nomes primitivos de onde ele provém. O problema é que o processo de
derivação pode continuar ao infinito, pois sempre podemos perguntar pelo sentido de uma
palavra e, feita a derivação dessa em termos de um nome primitivo, perguntar, a seguir, pelo
significado deste nome primitivo. Como as palavras podem ser viradas “por todos os lados”
(421d), sempre é possível encontrar outro termo que explique a origem da palavra primitiva, e
assim sucessivamente. Esse processo só cessaria caso encontrássemos nomes que não podem
ser decompostos em outros nomes, nomes que seriam como que os elementos mínimos, não
mais divisíveis, dos nomes derivados, caso contrário a derivação não teria fim. Esses nomes
55
primitivos não seriam explicáveis por meio de outros nomes. Mas como, então, os nomes
primitivos indicariam a natureza das coisas? (421c-423e)
Ora, apesar dessas conclusão negativas, o estudo das etimologias também nos trouxe
um resultado positivo importante: o de indicar que as palavras são formadas pela combinação
de elementos básicos (stoikeía): as letras (grámmata). Não seria, então, ao nível destes
elementos, as letras e sua combinação em sílabas, que seria possível encontrar a expressão
verdadeira da natureza da coisa nomeada? É essa possibilidade que Sócrates passa a
investigar.
A hipótese que norteia a pesquisa de Sócrates é que a atribuição correta dos nomes
tende a mostrar a natureza da coisa e supõe-se que os nomes que usamos atualmente são
derivados a partir da modificação de nomes primitivos que seriam os nomes originários das
coisas. Agora será investigada a possibilidade de os nomes primitivos realizarem essa
atribuição, graças ao “poder” dos elementos dos quais eles são compostos: as letras e suas
combinações em sílabas.
Para se chegar aos elementos mínimos de qualquer coisa é necessário dividi-la.
Sócrates propõe então que se aplique o método da divisão (diaíresis) às palavras. Esse
método, aplicado ao problema em questão, consiste nos seguintes passos:
1) Decompor os nomes em sílabas e as sílabas em seus elementos constituintes: as
letras.
2) Distinguir as letras e classificá-las em vogais, consoantes e semivogais.
3) Realizar um processo análogo com os seres: decompô-los em seus elementos
constituintes, classificá-los em gêneros e espécies, agrupá-los e relacioná-los entre si, segundo
suas semelhanças.
56
4) Estabelecer relações apropriadas entre as letras e os objetos, ora uma letra para cada
objeto, muitas letras ao mesmo tempo, formando as sílabas que, reunidas, formam os nomes e
verbos que, reunidos por sua vez, formam o discurso.
Sócrates se declara incapaz de realizar a classificação dos seres, mas indica quais
seriam os elementos primitivos da linguagem: rô (r) exprime “movimento”, “mobilidade”,
“mudança”, “fluir”; fi (f), psi (y), sigma (s), zeta (z) e iota (i), “por serem letras aspiradas”,
exprimem “agitação”; delta (d) e tau (t) exprimem “compressão”, “suspensão” (pois a língua
é comprimida e pressionada para pronunciar essas letras); analogamente, como “a língua
deslisa” para pronunciar o lambda (l), esse exprime “liso”, “escorregadio”; g (g)
“viscosidade”; nu (n) “dentro”, “no interior”; alfa (a) “grande”; eta (h), “comprimento” (“pois
se tratam de letras grandes”); ômicron (o), “redondo”, por motivos óbvios. Ou seja, a presença
da letra rô (r), por exemplo, em palavras que contém alguma referência a movimento, como
çðeîn (fluir) çðo‰ (fluxo), trómœ (tremor); kroúein (bater); jðraúein (esmagar), Êre™kein
(partir); jðrýptei, (quebrar); kermat™zein (esmigalhar); çðymbeîn (girar), etc., não é
coincidência, pois é esse elemento que representa a mobilidade através da vibração da língua
necessária para pronunciá-lo. Portanto, esses seriam os blocos significativos mínimos da
linguagem, e é pela combinação apropriada desses elementos
19
que se gerariam as palavras
que expressam corretamente a natureza ou a essência das coisas (426c-427d).
Se nós não pudéssemos usar a fala, procuraríamos indicar as coisas às outras pessoas,
usando meios como gestos de cabeça ou com as mãos, e tentaríamos imitar o mais exatamente
possível a natureza da coisa que queriamos indicar para sermos compreendidos. Da mesma
forma, os elementos mínimos da linguagem “exibem”, “manifestam”, “indicam” (
dhlow) a
natureza das coisas pela imitação (
m™mhma) do ser, da essência delas. “Isto é a correção dos
nomes”, conclui Sócrates.
19
Note-se, entretanto, que Sócrates analisa apenas 14 letras de um total de 24 que o alfabeto grego possui
(Méridier, 1950, p. 26).
57
Tendo defendido o naturalismo, Sócrates pergunta a Crátilo se ele está satisfeito.
2.3 A tese naturalista
Crátilo, então, passa a defender a posição naturalista: para ele, existe naturalmente
uma denominação correta (o)no/matoj o)rqo/thta) e exata para cada um dos seres (383ab).
Para Crátilo, pronunciar um nome equivale a apresentar a própria coisa em suas
características essenciais. Um nome é uma representação, entendida mesmo como uma
exibição (d®lwma), da coisa nomeada (cf. 435a). Dizer o nome de uma pessoa seria então
como que apresentar à pessoa em questão o nome que é a imitação dessa pessoa. Como ficará
mais claro, durante a elucidação de tese de Crátilo que se segue, para esse os nomes
manifestam, representam as coisas, por meio da sua semelhança com elas, e não por uma
convenção casual, como acredita Hermógenes.
Crátilo concorda com Sócrates que a correção dos nomes consiste em mostrar a
natureza da coisa e que os nomes são feitos para instruir. Mas a discordância com Sócrates
ocorre porque, para Crátilo, não há nomes mal-aplicados, nem nomes melhores e nomes
piores do que outros: todos os nomes são corretos, bem-atribuídos, ou não são nomes (429d).
O nome “Hermógenes”, por exemplo, que significa descendente de Hermes, o deus da riqueza
e do discurso (cf. etimologia de Hermes em 408b), não pertence ao personagem citado, mas a
outra pessoa que tem as características descritas pelo nome, o que não é o caso de
Hermógenes. Não podemos nem dizer que o nome é mal-aplicado ou errado, pois é
impossível falar falso: Crátilo defende essa posição com um argumento que já é nosso
conhecido, pois o analisamos no capítulo 1: “De que modo, Sócrates, dizendo alguém o que
diz, como poderá dizer o que não é? Dizer algo falso não é isto mesmo, será dizer as coisas
que não são?” (lægwn gæ tiV toûto äò lægei, m# tò Òn lægoi? Ë oü toûtó Êstin tò q»eud²
58
lægein, tò m# tà Ónta lægein - 429de). Quem chamasse a Hermógenes de “Crátilo”, por
exemplo, faria algo inteiramente sem sentido, isto é, só produziria com a boca um “ruído
inarticulado”, uma mera agitação de ar (430a).
Portanto, apesar de a posição de Crátilo ser diametralmente aposta à de Hermógenes,
ela leva, porém, às mesmas conclusões do convencionalismo.
2.3.1. Nome como imitação
Para escapar dessas contradições, Sócrates claramente separa nome e objeto: uma
coisa é o nome, outra coisa é o objeto que é nomeado pelo nome (Állo mån Àn [...] Ónoma
eÏnai, Állo då Êkeîno /o@ tò Ónomá Êstin
- 430a). Mas se o nome e o objeto estão
separados, como o primeiro pode se referir ao segundo?
Sócrates compara o nome a uma pintura: assim como essa, o nome seria como que
uma imitação (mímesis) da coisa. Ora, pode-se atribuir o retrato de um homem a um homem
ou a uma mulher. No primeiro caso, faríamos uma atribuição correta, no segundo, essa
atribuição seria incorreta. Algo análogo ocorre com as palavras, pois podemos mostrar uma
palavra escrita em um pedaço de papel e perguntar a pessoa se esse é o seu nome. À
atribuição correta de um nome a uma coisa Sócrates chama de verdadeira, enquanto que à
atribuição incorreta de falsa. Mas como, exatamente, essa atribuição é feita?
Para se atribuir os nomes corretamente, é necessário distribuir os elementos da mesma
forma como os elementos correspondentes do objeto se organizam, isto é, não se deve deixar
nada faltar, nem acrescentar nada a mais do que o contido no objeto. Um nome é uma imagem
bem produzida. Mas um nome que deixe de fora aspectos relevantes do objeto, ou acrescente
coisas que não lhe pertencem, seria um nome mal-produzido e mal-atribuído, mas não
deixaria, por isso, de ser um nome, uma imagem, uma imitação, embora precária, do objeto.
Assim, é possível dizer a verdade ou não dizer a verdade, dizer o falso: nesse caso, o nome é
59
inexato. E, sendo possível a atribuição errada de nomes, também é a de verbos e a de frases,
pois uma frase é composta de nomes e verbos (431c).
Crátilo, porém, argumenta que os nomes só são iguais às coisas porque os elementos
de que são compostos são semelhantes aos elementos das coisas. Nesse caso, tirar ou
acrescentar algo a uma imagem, tirando ou acrescentando letras ao nome, equivaleria a formar
outra imagem-nome, diferente da primeira, imagem-nome essa que se referirá, portanto, a
alguma outra coisa (431e-432a).
Mas Sócrates objeta que, se a imagem reproduz completamente e exatamente o objeto
original em todas as suas partes e em todos os seus detalhes, essa imagem seria um segundo
objeto, idêntico ao primeiro. Ou seja, não teríamos um objeto e a sua imagem (seu nome),
mas dois objetos indistinguíveis.
O crucial é que o nome, para se referir a algo, não precisa ser uma duplicação exata
de um objeto: não é preciso representar todas as características do objeto, mas apenas as que
são essenciais para a sua identificação. O necessário para representar corretamente uma coisa.
por meio de uma palavra, pode, inclusive, ser apenas uma única letra. Se o nome contém
todos os elementos essenciais, é bem-aplicado, e é um nome verdadeiro; se não, sendo mal-
estabelecido, é um nome falso. Assim, uma imagem não deixa de ser imagem de determinado
objeto, se algo lhe é acrescentado ou subtraído (desde que não seja algo essencial à
representação do objeto); analogamente, um nome não deixa de ser nome de algo, se lhe
acrescentamos ou retiramos letras que o compõem (431c-433c).
Crátilo termina por admitir que um nome bem-atribuído contém as letras necessárias
para representar o objeto, letras estas que são, de alguma forma, imitações, isto é, são
semelhantes (ómoia), às coisas nomeadas (433bc). Um nome que não seja adequadamente
atribuído terá algumas letras que não representam a coisa, mas, mesmo nesse caso, ainda terá
as necessárias para representar a coisa, e será o nome dessa coisa.
60
Mas, se as palavras têm elementos (letras) incompatíveis com o significado que
representam, como então é possível identificar o que é representado? Por exemplo, as letras r
e s significam “asperidade”; por isso, a palavra que, em grego, significa “asperidade”, pode
ser grafada de dois modos: sklêrotês ou sklêrotêr pois r e s são equivalentes. Mas essa
palavra contém um l, letra que indica maciez que é o contrário da aspereza. Crátilo afirma
que o l não foi inserido com propriedade nessa palavra. Mas Sócrates observa que, apesar de
a palavra conter elementos que indicam o contrário do que ela como um todo exprime, Crátilo
pode entender a que Sócrates se referia. Ou seja, mesmo que o nome não se assemelhe à coisa
nomeada, ainda assim podemos entender seu significado (434bc).
A explicação desse fato, dada pelo próprio defensor da tese contrária, Crátilo, é que
entendemos o significado dessas palavras, graças à convenção. Se é possível entender algo,
por meio de um nome que não se assemelha completamente à coisa nomeada, é porque nos
exprimimos por convenção. Assim, os participantes do debate terminam por admitir que há
sempre uma parte de convenção na significação dos nomes. Diz Sócrates:
Agrada-me a tese segundo a qual os nomes são, na medida do
possível, semelhantes às coisas, mas receio que, na verdade, e como dizia
Hermógenes, essa tal semelhança seja uma coisa um tanto pegajosa, e que se
nos torne necessário recorrer a esse dispositivo grosseiro que é a convenção
para estabelecermos a correção dos nomes (435c
).
2.3.2 Crítica à equação nome – coisa.
Essa admissão leva, como conseqüência, à refutação de mais uma afirmação que
estaria implicada na tese de Crátilo de que os nomes revelariam a essência das coisas. Se esse
fosse o caso, poderíamos concluir que quem conhece o nome conhecerá também a coisa que é
nomeada (òV Àn tà Ônómata Êp™sthtai, Êp™stasjðai ka˜ tà prágmata.). Ou seja, para se
conhecer a realidade bastaria o estudo das palavras que usamos para nos referir a ela.
Sócrates mostra que, no entanto, não há nenhuma garantia de que o nomotéta tenha
61
atribuído os nomes corretamente. (438b). Como exemplo, realiza uma rápida análise
etimológica em alguns termos, mostrando que eles podem ser explicados como representando
imobilidade, fixidez, suspensão, etc.:
O ‘saber’ (Êpist®mhn) (...) parece significar (shma™nonti) que fixa
(ísthsin) a nossa alma nas coisas, em vez de significar que ela se move em
conjunto com elas. (...) Pensa depois em ‘firme’ (bæbaion), que é uma imitação
(m™mhma
) de uma certa base (báseõV), e do repouso (stásewV), mas não da
mobilidade. Em seguida, o ‘relato’ (äistor™a) que significa, de certa maneira, a
fixação do fluxo (äísthsi tòn çðoûn). E o ‘seguro’ (pistòn) significa, de todas as
maneiras, o fixar (äistàn). Depois, ‘memória’ (mn®mh) indica para qualquer pessoa
que há uma suspensão (mon®) na alma, e não mobilidade (437ab).
Isso quer dizer que o mero estudo das palavras não nos permite responder, por
exemplo, à questão se a realidade está em fluxo permanente, como propõe Heráclito, ou se, ao
contrário, ela é estática e inalterável, como defenderia Parmênides, pois, se podemos
encontrar na linguagem palavras que são interpretadas como expressando movimento, existe
também outro grupo de palavras que expressam imobilismo (437c).
Sócrates lembra que no caso de a tese de Heráclito ser correta, “nem seria mesmo
razoável afirmar a possibilidade do conhecimento, se todas as coisas se transformam e nada
permanece fixo” (440a).
Além disso, se apreendemos as coisas unicamente através dos nomes, como o
nomotéta poderia ter chegado a conhecer as coisas que devia nomear, conhecimento
necessário para lhes aplicar os nomes adequados, se, justamente, os nomes das coisas ainda
não existiam? (438ab)
A conclusão do Crátilo é que não é possível determinar-se o significado das palavras
por meio de outras palavras, pois, neste caso, qualquer palavra pode, mediante alterações
adequadas em suas letras componentes, significar qualquer coisa. Pelo mesmo motivo, não é
possível conhecer o significado de uma palavra através de sua aparência exterior, pois
palavras não são cópias fiéis que retratam as coisas.
62
Também não é possível explicar o sentido das palavras derivando-as de outras
palavras, pois, adicionando, suprimindo ou transpondo letras, pode-se transformar qualquer
palavra em qualquer outra e, desta forma, atribuí-la a qualquer coisa. Quer dizer, a linguagem
também não tem fixidez. Por fim, quando se tenta decompor a linguagem em certos
componentes significativos mínimos (sílabas ou letras) que não podem ser explicados, por
meio de outros nomes, e se procura relacionar, através da imitação, esses elementos com
elementos básicos da realidade, chega-se a conclusão de que o significado das palavras não é
dado pela própria linguagem, nem por sua relação com objetos sensíveis, mas fora dela.
Sócrates conclui que não é a partir dos nomes, mas a partir de si mesmas que as coisas
devem ser conhecidas (439b): “Teremos que procurar outras entidades, para além dos nomes,
que nos mostram, sem os nomes, qual dos dois grupos é o verdadeiro, exibindo a forma clara
a verdade dos seres” (438d).
O convencionalismo, para quem qualquer palavra pode ser o nome de qualquer coisa
de modo que todos os nomes estão bem-aplicados, e o naturalismo, que postula a identidade
entre o nome e a coisa nomeada, revelando a essência da coisa como ela realmente é, apesar
de parecerem ser teses diametralmente opostas, levam, no entanto, à mesma conclusão: todos
os nomes que usamos são verdadeiros e, portanto, não há falsidade, conclusão que é embasada
com um apelo ao relativismo protagórico, no caso do convencionalismo, ou à teoria do fluxo
perpétuo de todas as coisas, no caso do naturalismo.
20
O ponto de Platão contra as duas teorias é que elas não explicam o fato de que nós
podemos compreender o significado das palavras, independentemente da forma (presença ou
ausência de certas letras ou acentos) na qual elas são grafadas. O conteúdo cognitivo que elas
transmitem, isto é, seu significado, permanece constante, de certa forma, apesar de quaisquer
20
Vimos no capítulo 1 que as duas teses, o relativismo protagórico e o fluxo universal, estão intimamente
associadas.
63
alterações que os seus nomes sofram. O Crátilo resulta na afirmação de que as palavras não
são, em si, portadoras de significado, mas transmissoras dela.
De onde provém o significado das palavras? O Crátilo também rejeita a tese de esse
significado ser identificado com os objetos exteriores aos quais as palavras se referem, como
postularia uma teoria referencial da linguagem do tipo que estudamos no capítulo 1.
E, como vimos na Introdução, Platão defende uma teoria proposicional da linguagem,
na qual as Idéias fazem o papel do que metafísicos contemporâneos chamam de proposição.
Mas para que as Idéias realmente tenham essa função, Platão ainda terá que detectar e superar
alguns problemas dessa Teoria, tal como foi apresentada em diálogos como a República e o
Fédon. É para dar conta destas tarefas que Platão escreveu respectivamente os diálogos
Parmênides e Sofista, ao primeiro dos quais passamos agora.
64
Capítulo III
O Parmênides e a crise da Teoria das Idéias
Vinte e cinco séculos após ter sido escrito, o
Parmênides permanece um mistério para os seus leitores e,
para os especialistas cuja tarefa é entendê-lo, um
escândalo” (R. E. Allen).
Como se sabe, no diálogo Parmênides a teoria das Idéias é submetida a uma
impressionante série de críticas. Essas críticas parecem ser tão demolidoras para a sustentação
da teoria das Idéias que um dos poucos casos em que podemos encontrar um consenso entre
os comentaristas de Platão é na opinião de que, por causa destas críticas, Platão realizou, nos
diálogos escritos após o Parmênides, alterações na Teoria das Idéias. Infelizmente, esse
consenso cessa rapidamente quando se trata de mostrar com exatidão quais são essas
alterações ou qual a sua extensão: alguns autores acham que as alterações foram pequenas,
65
talvez apenas ao nível da linguagem que Platão usa para se referir às Idéias; outros defendem
que as alterações foram significativas e volumosas, enquanto alguns poucos acreditam
inclusive que Platão teria abandonado a Teoria das Idéias e se voltado para uma espécie de
(neo)pitagorismo no Timeu.
Acreditamos que as críticas implicam o aprofundamento da teoria, com a tentativa de
resolução de suas ambigüidades. Em nossa leitura, a secção crítica do Parmênides mostra
claramente que, tal como formulada nos diálogos Fédon e República, a teoria das Idéias não é
capaz de garantir a possibilidade de um discurso significativo sobre os objetos (130a-135b).
As Idéias serão introduzidas para explicar como um objeto sensível pode, sem contradição, ter
e não ter uma propriedade, mas Parmênides mostrará que, sem alguma reformulação
importante em sua concepção, elas impedem, ao nível da linguagem, a predicação de
propriedades (cf. Wilmet, 1990: p. 107).
Mas o Parmênides não se limita a essa primeira parte crítica: após Sócrates mostrar-se
incapaz de refutar as objeções de Parmênides e defender a teoria das Idéias, na segunda parte
do diálogo, Parmênides apresenta um exercício dialético no qual são examinadas as
conseqüências que decorrem tanto da afirmação quanto da negação da existência do Uno,
exame que se desdobra em 8 Hipóteses (ou deduções) (135b-166c), e o exercício é claramente
destinado a ajudar Sócrates a superar as aporias da teoria das Idéias.
Portanto, na análise que se segue, vamos dividir o Parmênides em três partes: a seção
em que Zenão apresenta o paradoxo da impossibilidade da existência da multiplicidade e a
resposta de Sócrates a esse paradoxo, com a postulação da teoria das Idéias; a seção em que
Parmênides mostra a série de aporias a que essa teoria leva; e o exercício dialético que
apresenta a solução dessas aporias.
3.1 A Teoria das Idéias como resposta ao paradoxo de Zenão
66
Usando a estratégia da redução ao absurdo, Zenão procura defender a afirmação de
Parmênides de que “tudo é um”, mostrando que, se admitimos a tese contrária, segundo a qual
o múltiplo existe, surgem paradoxos. Se as coisas são múltiplas, diz Zenão, elas são
semelhantes e dessemelhantes. Mas coisas semelhantes não podem ser dessemelhantes nem as
dessemelhantes semelhantes. Logo, as coisas não são múltiplas, pois essa seria uma “situação
impossível”, e a multiplicidade não existe (127e-128a).
O texto apresenta o argumento de Zenão nessa forma concisa, e não fica muito claro
como entendê-lo, mas acreditamos que ele pode ser explicitado assim: para haver uma
pluralidade, é necessário que haja muitas coisas, e que cada uma seja diferente das outras.
Logo, todas as coisas são diferentes entre si. Mas, se todas elas são diferentes, então todas têm
algo em comum, e ter algo em comum as faz semelhantes. Como o que as faz semelhantes é o
fato de serem dessemelhantes entre si, chega-se à conclusão paradoxal de que as coisas de
uma multiplicidade devem ser semelhantes e dessemelhantes, conclusão que é considerada
absurda. Logo, a hipótese de que há pluralidade deve ser descartada.
A existência de uma pluralidade implica que as mesmas coisas sejam e não sejam
semelhantes. Por exemplo: cada membro de uma pluralidade é semelhante aos outros, porque
todos “são” (existem). Mas, ao mesmo tempo, cada um deve ser diferente de todos os outros,
e para isso deve ter alguma característica própria, única, que nos permita identificá-lo como
único em relação aos demais. Mas se cada coisa é semelhante e dessemelhante, os opostos
semelhante e dessemelhante serão o mesmo. Como isso é impossível, não pode haver
pluralidade (Allen, 1997: p.90-1).
Para defender a existência da multiplicidade e refutar Zenão, Sócrates postula a
existência das Idéias, que existem em si e por si e são separadas das coisas sensíveis (que são
múltiplas). Existiria uma Idéia em si da Semelhança, e existiria a Idéia, contrária a essa, do
Dessemelhante. As coisas sensíveis participariam nas Idéias, sendo semelhantes, se
67
participam da Idéia da Semelhança, e dessemelhantes, se participam da Idéia da
Dessemelhança. Ora, nada impede que algo participe simultaneamente de ambas as Idéias e
seja afetada por ambas, de modo que, em si mesmo, ele seja semelhante e dessemelhante
(128d-129b).
Para Zenão, um dedo grande não poderia ser um dedo pequeno pois ele considerava o
dedo e a sua propriedade (grande) como uma coisa única, um “dedo-grande”. O paradoxo de
Zenão se baseia em uma concepção de significado que identifica o significado de uma palavra
com o objeto que ela nomeia (cf. Allen, 1997, p. 91). Portanto, Zenão se move no marco de
uma teoria referencial da linguagem (TRL) como a que estudamos no capítulo 1. Como
vimos, nessa teoria o significado de uma palavra é o objeto ao qual ela se refere. Ora, o
referente da expressão “dedo-grande” deve ser então um objeto tomado em sua unidade,
dedo-grande, o referente de “dedo-pequeno” será então outro objeto, diferente do primeiro,
um dedo-pequeno. Não há espaço, neste tipo de teoria, para a consideração de um objeto-dedo
com a propriedade de ser pequeno, e o (mesmo) dedo com a propriedade de ser grande. Na
TRL a predicação de propriedades a um objeto é problemática e leva aos paradoxos do tipo
apontado por Zenão, pois, “se não há distinção entre ser e ser A [isto é, ter a propriedade A],
então qualquer segunda coisa B ou é igual a A ou não é. Logo, não há pluralidade” (cf. Allen,
1997, p. 91).
Com a postulação da existência das Idéias, Sócrates realiza justamente essa separação
entre a coisa e a(s) propriedade(s) que a coisa possui, entre o que é predicado de uma coisa e a
coisa da qual se predica algo, necessária para evitar os paradoxos de Zenão.
Sócrates separa as Idéias Grande e Pequeno das coisas que têm a propriedade de serem
grandes e pequenas. O dedo pode ser grande ou pequeno, participando de ambas as Idéias (e
de tantas outras quantas forem suas propriedades) simultaneamente. Diz Sócrates:
Se alguém demonstrar que eu sou um e múltiplo, que há de espantoso
nisso? Quando quiser mostrar que sou múltiplas coisas, dirá que uma coisa é meu
68
lado direito, outra, o esquerdo, e que uma coisa é a frente, outra, a parte de trás, e
do mesmo modo com relação à parte inferior e superior, pois participo, creio, da
quantidade; e, por outro lado, quando <quiser mostrar> que sou um, dirá que, dos
sete que estão aqui, eu sou um homem, participante que sou também do um (129c).
As Idéias do Grande e do Pequeno, do Um e do Múltiplo em si, porém, não se
confundem. Demonstrar que algo é múltiplas coisas e um não é a mesma coisa que
demonstrar que o Um é Múltiplo ou que o Múltiplo é Um. É por isso que Sócrates repete por
três vezes que ficaria “cheio de espanto” (thaumastós – a mesma palavra para a origem da
filosofia), se alguém lhe demonstrasse que as Idéias, inicialmente separadas umas das outras,
em seguida pudessem ser misturadas ou entrelaçadas (plekoménen – 130a) entre si, pois isso
implicaria que o Um seja Múltiplo e o Múltiplo seja Um. Isso apenas transferiria a aporia de
Zenão do sensível para a teoria das Idéias.
Se alguém, em primeiro lugar, separasse umas das outras as Idéias mesmas
em si mesmas – por exemplo, a semelhança, a dessemelhança, a quantidade, o um,
o repouso, o movimento e todas as coisas deste tipo – e em seguida mostrasse que
estas, entre si, podem ser misturadas e separadas
(sugkera/nnusqai kaiì diakri¿nesqai))), eu pelo menos, ficaria encantado, cheio de
espanto (129de).
Em nossa leitura, esse é o ponto central do diálogo, pois é a esse desafio socrático que
Parmênides responderá, primeiro, com uma série de objeções à teoria das Idéias e, segundo,
com o exercício dialético da segunda parte. As objeções terão como foco mostrar que, se as
Idéias são consideradas como unas em si, desse fato decorre uma série de aporias e a Teoria
das Idéias perde completamente todo poder explicativo. O exercício dialético, por sua vez,
mostrará (para a provável admiração de Sócrates) que o Um e o Múltiplo de certa forma se
entrelaçam, pois, se há o Um, há o Múltiplo, e se há o Múltiplo, há o Um: embora distintos,
ambos os conceitos se co-implicam mutuamente e não podem ser pensados ou existir
isoladamente.
69
Vejamos quais são as críticas de Parmênides à Teoria das Idéias e qual o seu
significado para o nosso estudo.
3.2 As aporias da teoria das Idéias
3.2.1 De quais entidades existem Idéias? (130b)
Interrogado por Parmênides, Sócrates considera mais natural aceitar a existência de
Idéias para conceitos abstratos, tais como “justiça”, “igualdade”, “semelhança”, “belo” e
“bom” do que para palavras que têm um referente concreto, como “homem”, “fogo”, “água”,
e não aceita que haja Idéias de coisas como cabelo, sujeira ou lama. Mas, como vimos, a
Teoria das Idéias do período médio postula que cada termo da linguagem ganha seu
significado graças à existência de uma Idéia homônima (argumento um sobre muitos) e, se
não há Idéias, como explicar o significado destas palavras? Qual a sua referência? Porque
haveria algumas coisas cujo nomes provem das Idéias e outras não?
A série de aporias que seguem ataca diretamente o problema da unicidade das Idéias.
Afirmar que uma Idéia seja “Um” pode significar duas coisas: (1) que cada Idéia é una,
indivisível, sem partes ou (2) que só existe uma única Idéia de cada multiplicidade (só existe
uma única Idéia do Belo, por exemplo).
21
Parmênides vai mostrar, no entanto que, em ambos
os casos, ocorrem aporias.
3.2.2 Dilemas da participação
Parmênides afirma que só existem duas maneiras de concebermos a participação das
Idéias nas coisas: ou as Idéias estão inteiramente em cada coisa ou apenas em parte. Porém, se
a Idéia está toda nas coisas, estaria separada de si mesma e, portanto, não seria una (130e). Se
21
Para um estudo destas ambigüidades, no poema de Parmênides e nos diálogos do período médio de Platão, ver
Teloh, p. 125-9.
70
a Idéia está em parte nas coisas, no entanto, também surgem aporias, que Parmênides
exemplifica, através dos seguintes exemplos:
- se a Idéia do Grande é dividida em partes, o que participa do Grande será grande em
virtude de uma parte do Grande; como a parte é sempre menor do que o todo, conclui-se que
uma coisa seria grande por participar na Idéia do Menor;
- a Idéia do Pequeno é maior do que a parte dela que participa na coisa pequena; logo,
diríamos que o pequeno é pequeno em virtude do Maior;
- pelo mesmo motivo algo igual seria igual por causa da Idéia do Pequeno, e não por
causa da Idéia do Igual (131c).
A conclusão, portanto, é que uma Idéia, se for concebida como una, não pode ser
dividida, sem que surjam paradoxos.
3.2.3 Regresso infinito (Terceiro Homem) (132a)
Como vimos, uma das principais premissas da Teoria das Idéias é que deve existir
uma Idéia para cada multiplicidade que possui algo em comum. Se várias coisas A, B, C e D
são grandes, deve existir uma Idéia da Grandeza na qual elas participam e em virtude da qual
elas são grandes. Mas se é assim, Parmênides constata que agora teremos uma nova
multiplicidade, formada pelo conjunto das múltiplas coisas grandes G = {A, B, C, D} e a
Idéia de Grandeza (FG), pois G e FG têm uma propriedade em comum, a grandeza. Logo,
deve haver uma Idéia de Grandeza para essa multiplicidade, que chamaremos de FG
2
. Agora,
no entanto, temos, novamente, outra multiplicidade, formada por G, FG e FG
2
(as coisas
múltiplas, a Idéia de Grandeza das coisas múltiplas e a Idéia de Grandeza da Idéia de
Grandeza + as coisas múltiplas). Para abranger esse novo conjunto {G, FG, FG
2
}, devemos
postular uma nova Idéia de Grandeza (FG
3
), o que dá origem a uma nova multiplicidade {G,
71
FG, FG
2
, FG
3
} e assim ao infinito. A conclusão é que não existiria uma única Idéia de
Grandeza, mas infinitas.
Em resumo: as Idéias são concebidas como Unas, o que pode significar duas
possibilidades:
- cada Idéia é indivisível, sem partes. Mas as Aporias da Participação mostram as
contradições de se conceber as Idéias sendo indivisíveis;
- cada Idéia é única: só existiria uma Idéia de cada multiplicidade. O argumento do
Regresso Infinito mostra que teríamos, não uma única, mas infinitas Idéias para cada
multiplicidade.
A conclusão, portanto, até aqui, é que, em qualquer caso, seja se forem concebidas
como indivisíveis, seja se forem concebidas como únicas, as Idéias não podem, sem
contradição, participar nas coisas.
3.2.4 “A maior aporia”: as Idéias em si seriam incognoscíveis (133b)
O fracasso de Sócrates em mostrar como as Idéias se relacionariam com os objetos
leva à conclusão inevitável de que haveria um hiato insuperável entre os dois mundos (Gill,
1996 p.46), e as conseqüências dessa conclusão, que são consideradas a maior dificuldade das
Teoria das Idéias, são examinadas a seguir.
Se as Idéias são em si (unas, indivisíveis), a discussão anterior mostrou que elas
existiriam separadas de nós. As Idéias só se relacionariam entre si e não com as coisas
sensíveis. Os seres sensíveis também só se relacionariam entre si e não com as Idéias. Que as
Idéias existam “separadas” significa, portanto, que elas são ontologicamente independentes
das coisas sensíveis (Gill, 1996 p.46), não havendo nenhum nexo causal (ou qualquer outro
tipo de nexo) entre as Idéias e as coisas (134cd).
72
O conhecimento é concebido como sendo conhecimento de alguma coisa, portanto, o
conhecimento é sempre relativo a algo (Rickless, 1998, p. 535
22
). Mas como as objeções de
Parmênides e a incapacidade de Sócrates em respondê-las levaram à conclusão de que o
mundo das Idéias e o mundo sensível não se comunicam, então o conhecimento não pode ser
relativo às Idéias, ou seja, não há conhecimento de nenhuma Idéia (134a-c). Portanto, as
Idéias em si seriam incognoscíveis, não teríamos acesso intelectual a elas, com o que a Teoria
das Idéias perderia totalmente seu poder explicativo.
Porém, Parmênides enfatiza que, sem as Idéias, são impossíveis a linguagem, a
dialética e a filosofia:
Entretanto, (...) se alguém (...), ao atentar para todas [as aporias
mencionadas] há pouco e para outras deste tipo,
23
não admitir que haja Idéias dos
seres e não definir uma Idéia de cada coisa, nem sequer terá para onde voltar o
pensamento, uma vez que não admitirá haver uma Idéias sempre a mesma de cada
um dos seres, e assim arruinará absolutamente o poder de dialogar [e de filosofar]
(135b).
Como já procuramos explicar anteriormente, as Idéias foram postuladas como as
portadoras de significado para o discurso lingüístico. Ora, a argumentação de Parmênides não
tem por objetivo negar a existência das Idéias, mas, ao contrário, mostrar que, mesmo
pressupondo-as como existentes, o fato de elas serem concebidas como unas não permite e, na
verdade, inclusive impede, que elas cumpram esse papel.
Se há apenas uma Idéia de Justiça, então, palavra “justiça” tem um único significado,
isto é, ela se refere a uma única entidade, a Idéia de justiça. A conclusão óbvia deste
raciocínio é que não podemos aplicar a palavra “justiça” a nada mais: não podemos nomear
casos concretos ou certas pessoas à nossa volta de “justos” ou “justas”, muito menos aplicar
22
Agradeço ao colega Nazareno de Almeida por ter chamado a minha atenção para o excelente artigo de
Rickless.
23
Parmênides deixa claro que as aporias apresentadas são apenas umas poucas de um conjunto maior de
objeções que se poderiam fazer à Teoria das Idéias. Ver 134e.
73
essa palavra a vários casos de justiça diferentes. “Justo” só pode ser aplicado à Idéia de
justiça.
Não é possível negar a teoria das Idéias, sem cair em inconsistências. No entanto,
também não é possível aceitar essa teoria tal como foi apresentada por Sócrates, sem sofrer
outras inconsistências.
Como Parmênides enfrentará essas aporias? Parmênides não superará as aporias da
Teoria das Idéias, negando que elas sejam Unas, mas fazendo um exame detalhado dos
diferentes significados (aspectos) do conceito Um. Essa análise mostrará que o Um não pode
ser pensado isoladamente em si, mas apenas em sua relação com as outras Idéias (Múltiplo,
Semelhante, etc.), pois sempre que consideramos o Um em si, isoladamente, surgem os
paradoxos que dão a fama de aporético ao diálogo Parmênides. Platão não demonstrará que o
Um é Múltiplo ou que o Múltiplo é Um, mas, sim, que ambos os conceitos, apesar de
diferentes, estão inter-relacionados de maneira necessária.
O exercício dialético mostrará, para a provável admiração de Sócrates, que o Um e o
Múltiplo de certa Idéia se entrelaçam, pois, se há o Um, há o Múltiplo, e se há o Múltiplo, há
o Um: embora distintos, ambos os conceitos se co-implicam mutuamente e não podem ser
pensados nem existir isoladamente.
3.3 Interpretação do significado do exercício dialético
O exercício dialético da segunda parte do diálogo, no qual Parmênides examina as
conseqüências que decorrem, tanto da afirmação quanto da negação da existência do Uno,
exame esse que se desdobra em 8 Hipóteses (ou deduções), tem por objetivo ajudar Sócrates a
resolver as aporias da Teoria das Idéias (cf. 135c-e). Apesar disso, a maioria dos críticos
considera que esse exercício e, conseqüentemente, o Parmênides como um todo, é aporético:
74
ele seria apenas um exercício intelectual para treinar Sócrates na dialética, sem o
desenvolvimento de qualquer doutrina filosófica (cf. Ross 1989, p.121-3).
Consideramos que essa interpretação é falha, pois ela baseia-se unicamente nas
conclusões das 8 Hipóteses. Essas conclusões são as seguintes: de acordo com a 1ª Hipótese,
se o Um é, ele não tem nenhuma propriedade (semelhante e dessemelhante, igual e desigual,
limitado e ilimitado, grande e pequeno, etc.); mas, na 2ª Hipótese, conclui-se que o Um tem
propriedades opostas; na 3ª Hipótese os Outros participam no Um e têm propriedades opostas;
mas, na 4ª Hipótese, não participam no Um e não têm nenhuma propriedade; de acordo com a
5ª Hipótese, se o Um não é, ele participa do Ser, e, na Hipótese 6, não participa do Ser e não
tem nenhuma propriedade; pela Hipótese 7, os Outros parecem ter propriedades opostas e, na
Hipótese 8, parecem não ter nenhuma propriedade. Portanto, as conclusões das Hipóteses são
contraditórias entre si. Além disso, as Hipóteses 2, 3, 5 e 7, atribuem ao Um propriedades
contraditórias. Todas essas aporias ficariam bem caracterizadas na frase-resumo no final do
Parmênides: “Quer o um seja, quer não seja, tanto ele mesmo quanto as outras coisas, tanto
em relação a si mesmos quanto em relação uns aos outros, todos totalmente tanto são quanto
não são, e tanto parecem quanto não parecem ser” (166c).
Assim, Luft (1996, p. 473-4), por exemplo, comenta que, “por um lado [na 1ª
Hipótese], temos um Uno que é absoluto, por outro lado [na 2ª Hipótese], Um que é a
multiplicidade por excelência; de um lado, não dizemos nada, de outro, nos contradizemos”.
A 3ª Hipótese (se existe o múltiplo, esse é uno e múltiplo), seria a “própria contradição”, e a
4ª Hipótese mostraria que o múltiplo não existe, o que é evidentemente falso. A lição do
Parmênides seria que pensar o Uno e o Múltiplo levaria ou a contradições ou a considerá-los
como mutuamente excludentes, “o que faz com que eles não possam ser pensados”. O
Parmênides indicaria um “descaminho da razão”, uma via de investigação a ser evitada. Sir
David Ross (1989, p. 115), cuja opinião sobre o exercício dialético citamos acima, em seu
75
comentário limita-se a listar as conclusões das 8 Hipóteses; Guthrie (1992, vol. V) em 14
páginas (p. 48 a 63) examina as críticas de Parmênides à Teoria das Idéias, mas usa um único
parágrafo para comentar esquematicamente apenas as duas primeiras Hipóteses (p. 66), a
partir do que conclui que a segunda parte não oferece “nenhum resultado positivo” (p. 50) e
que as ambigüidades que causam as aporias do Parmênides só seriam esclarecidas no Sofista
(p. 70).
24
Acreditamos, e tentaremos demonstrá-lo a seguir, que a segunda parte do Parmênides
não é aporética mas, ao contrário, traz importantes resultados positivos que, inclusive, serão
pressupostos na solução do problema do Não-Ser no Sofista.
A aparência de aporia deve-se à estratégia argumentativa de Platão. Segundo
Cornford,
a tarefa de descobrir, por si mesmo, as ambigüidades das Hipóteses e
as falácias das deduções é do leitor. A conclusão que se deveria aceitar se
encontra oculta, para obrigar o leitor a descobri-la mediante um estudo
cuidadoso. Ela é indicada discretamente, antes do final, e na continuação se
expõe um argumento que parece colocá-la em dúvida, mas essa impressão
desaparece, se consideramos atentamente o que prova realmente o argumento
(Cornford, 1989: p. 340-1)
Miller (1986) chegou a conclusões análogas em seu comentário sobre o Parmênides.
Segundo ele, os diálogos apresentam quatro momentos-chave em sua argumentação:
(1) Há, inicialmente, uma elucidação prévia do tema da discussão, que é feita através
de uma série de perguntas que obrigam o interlocutor a expressar da forma mais clara possível
a posição que ele defende. (2) O filósofo então refuta o interlocutor colocando-o em aporia,
24
Outros autores tentam minimizar o impacto negativo das aporias da segunda parte afirmando que elas seriam
reduções ao absurdo feitas com o objetivo de ridicularizar a doutrina eleática e/ou megárica do Ser Uno,
reduzindo-a ao absurdo a partir de suas próprias premissas. Platão usaria as falácias e contradições tipicamente
eleáticas de forma consciente com o objetivo de denunciá-las, sem porém as resolver (analogamente ao que fez
no diálogo Eutidemo). Taylor as considerava uma polêmica humorística “sumamente divertida”, observação que
provocou a resposta de Cornford: neste caso, o Parmênides seria a “brincadeira mais tediosa de toda a história da
literatura” e seria necessário “um peculiar senso de humor” para se divertir com um texto que é “seco e prosaico
como um manual de álgebra”, bem como a reclamação de Ross: “eu não me diverti”! (citado por Cornford, 1989,
p. 20).
76
em um impasse. (3) Platão apresenta uma nova tese que permite superar a aporia. É a parte
mais profunda e original do diálogo (p. ex: introdução das noções de symplokê entre as Idéias
e de Outro como diferença no Sofista 251a ss, 257d ss). O diálogo, porém, não termina neste
ponto. (4) Há um retorno ao tema da discussão principal, onde, porém, surpreendentemente o
interlocutor cai de novo em seus erros iniciais ou nas dificuldades que levaram à primeira
refutação (p. 6-7).
Qual é a função desse momento de retorno? Conforme Miller, esse seria o momento
decisivo dos diálogos, pois é onde Platão testa o interlocutor, para ver se ele é capaz de
entender e aplicar a nova solução proposta. Mas por que esse teste sempre falha? Essa falha
teria o objetivo pedagógico de testar os leitores dos diálogos de Platão: o fracasso do
interlocutor (que é apenas um personagem no diálogo) em passar no teste é um desafio ao
leitor do diálogo.
Tendo colocado o interlocutor frente a si mesmo (elucidação),
exposto as suas limitações (refutação) e providenciado as bases para a
superação destas limitações (a reorientação do insight) e, agora, fazendo o
interlocutor fracassar no insight, Platão desafia o ouvinte a se recuperar por si
mesmo (p. 8).
A falha do interlocutor e a aporia final do diálogo fariam o leitor “distanciar-se
criticamente” das teses expostas e o colocariam na necessidade de tentar resolver por si
mesmo os problemas, usando os elementos apontados no diálogo (p. 8-9). A solução, para
Platão, não deve permanecer algo exterior, uma opinião recebida de outro, mas deve tornar-se
algo próprio do leitor do diálogo.
Se essa interpretação está correta, então podemos encontrar a solução para as aporias
no próprio diálogo, embora ela não esteja assinalada de forma explícita. A solução para as
aporias se encontra, em nossa opinião, no ponto de partida de cada uma das Hipóteses, isto é,
no significado da expressão “o Um é” em cada caso.
77
3.4 As 8 hipóteses sobre o Uno
Parmênides examina as conseqüências que decorrem, tanto da afirmação quanto da
negação da existência do Uno, exame que se desdobra em 8 Hipóteses (ou deduções), Em
ambos os casos, serão examinadas as conseqüências dessa dupla postulação tanto para o Um
em si, quanto para os Outros que não o Um, isto é, o Múltiplo, o que dá um total de oito
alternativas a serem investigadas:
considerado em sentido absoluto Hipótese I
conseqüências para o Um
considerado em relação ao Outro Hipótese II
É
considerado em relação ao Um Hipótese III
conseqüências para o Outro
considerado em sentido absoluto Hipótese IV
Se o Um
considerado relativamente ao Outro Hipótese V
conseqüências para o Um
considerado em sentido absoluto Hipótese VI
não é
considerado relativamente ao Outro Hipótese VII
conseqüências para o Outro
considerado em sentido absoluto Hipótese VIII
Elaboramos essa tabela conforme as indicações de 136ac, para mostrar que, em cada
Hipótese, o Um será investigado com significados diferentes e, além disso, conforme
diferentes pontos de vista em sua relação com as “outras coisas” (o múltiplo). Nas Hipóteses
de 1 a 4, a existência do Um é afirmada, enquanto nas Hipóteses de 5 a 8 sua existência é
negada. Além disso, nas Hipóteses 1, 4, 6 e 8, o Um (ou a sua negação) investigado é o Um
em si, absoluto, sem relação com as outras coisas, enquanto nas Hipóteses 2, 3, 5 e 7 o Um é
investigado em sua relação com as outras coisas. Ora, se as premissas que servem como
ponto de partida para cada Hipótese, ou seja, se os significados de Um (e de Múltiplo) são
78
diferentes em cada caso, então as conclusões que derivam destas premissas não podem ser
consideradas contraditórias entre si.
Este é um ponto que ficará mais claro se examinarmos, mesmo que de forma
esquemática, a argumentação de cada uma das Hipóteses.
25
1ª Hipótese: “Se é Um”.
(137c-142a)
A 1ª Hipótese tem como ponto de partida a afirmação “se é Um” (eÎ äén Êstin -137c4).
Esta afirmação, como o contexto da discussão deixa claro, deve ser entendida como
significando que “o Um é Um”. Se o Um é Um, deduz-se que ele não é múltiplo nem
composto de partes. Se o Um não tem partes, não pode ter início, fim ou meio, logo carece de
limites. Se não tem limites, então não tem extensão, isto é, não tem forma (figura). Não tendo
extensão, não pode ser localizado; se não pode ser localizado, não está em nenhuma parte,
nem em si nem em outro (isto é, não está no espaço). Pelo mesmo motivo, não podemos dizer
que esteja em movimento ou em repouso. Não é o mesmo, nem diferente de si mesmo nem de
outro. Não é semelhante a nem dessemelhante de si mesmo ou de outro. Não é igual a nem
desigual de si mesmo ou de outro. Não pode ser ou vir a ser mais velho ou mais jovem ou da
mesma idade que outro (não está no tempo nem em devir).
Logo, não podemos nem dizer que o “um é”, pois ele não tem existência, já que não
pode participar do Ser. O Um é nada, não podemos nomeá-lo nem atribuir-lhe qualquer
25
Na interpretação da segunda parte do Parmênides, utilizamos e seguimos os artigos de Chen, Rickless (1998),
e o comentário de Cornford (1989).
79
característica ou predicado; não podemos dizer algo sobre ele, nem ter conhecimento,
percepção, discurso ou imaginação referentes a ele (üd) Ára Ónoma Éstin aütÖ oüdå lógoV
oüdæ tiV Êpist®mh oüdå aÍsjðhsiV oüdå dóxa. Oüd) Ônomázetai Ára oüdå lægetai oüdå
doxázetai oüdå gignõsketai, oüdæ ti tvn Óntwn aütoû aÎsjðánetai -
142a3-6).
26
Conclusão: se o Um se define como Um absoluto, Um isolado em si, os opostos
todo/parte, movimento/repouso, identidade/diferença, igual/desigual etc., não podem
participar do Um. A separação dos opostos faz o Um vazio de qualquer característica, de
modo que não podemos nem mesmo pensar no Um isolado em si, absoluto, pois ele é um
vazio completo, um nada, não tem nenhum conteúdo para o pensamento.
Platão mostra que, ao contrário de apenas ser possível pensar que só o Um é, como
afirmou Parmênides, em seu poema, esse Um absoluto é que seria incognoscível.
2ª Hipótese: “o Um é”
(142b-155e)
A 2ª Hipótese divide-se em dois argumentos: o primeiro argumento mostra que, se há
o Um, então há (e é possível pensar em) uma multiplicidade infinitamente divisível; o
segundo mostra que, se há o Um, então há/é possível pensar em uma multiplicidade
(numérica) infinita em extensão.
1º argumento: há o múltiplo infinitamente divisível:
A premissa de toda a 2ª Hipótese é que afirmar que “Um é” significa dizer que o “Um
tem Ser” ((én eÎ Éstin - 142b3), o que significa, na linguagem platônica, afirmar que o Um
participa do Ser. Nesse caso, Ser e Um são diferentes, pois, se fossem idênticos: (1) Ser não
26
Como veremos, no Sofista Platão chegará a conclusões análogas, quando analisar o conceito de Ser em si
mesmo.
80
seria ser do Um, mas seria o próprio Um; (2) vice-versa, o Um não participaria do Ser, mas
seria o Ser ; (3) dizer “Um é” seria o mesmo que dizer que o Um é Um, mas as implicações
desta afirmação já foram examinadas na 1ª Hipótese.
Se Um e Ser são diferentes, a expressão “Um é” refere-se a uma pequena pluralidade
que tem Um e Ser como partes constitutivas. Portanto, a expressão “Um é” pode ser
entendida, seja como se referindo a uma Unidade (o todo “Um-Ser”), considerada como se
não tivesse subdivisões, seja como se referindo ao fato de esse todo poder ser desdobrado em
suas duas partes constituintes, Um e Ser. Ora, o mesmo raciocínio pode ser repetido para cada
parte (Um e Ser): cada uma será um “ser-uno” constituído por dois elementos: Um e Ser. Este
argumento pode ser repetido indefinidamente: cada parte de qualquer “ser uno” pode ser
analisada em seus dois constituintes, Ser e Um, cada um dos quais, por sua vez, além de
serem unos considerados em si, também podem ser novamente decompostos nas partes Ser e
Um.
“Um é” significa que a unidade participa do Um e do Ser; logo, é uma pluralidade.
Cada uma das partes desse Um plural (formado por Um e Ser) é una e participa do Ser; logo,
também são pluralidades. O raciocínio pode assim prosseguir indefinidamente,
27
pois
qualquer coisa que seja Um será formada pelas partes Um e Ser, cada uma das quais, por
participar da Unidade e da Existência, será formada por partes. Portanto, “Um é” é Um e é
Muitos, é um Todo e tem Partes (142cd).
Este argumento consiste em uma demonstração de que as duas propriedades (Ser e
Unidade) se co-implicam mutuamente: tudo o que existe é um e tudo o que é um é existente.
Uma coisa não pode ser, se não for una e não pode ser uma, se não tiver ser. Ser e um indicam
a mesma realidade, pois a afirmação do primeiro implica a do outro e vice-versa. Se algo tem
ser, pode ser captado pelo pensamento, graças à sua unidade (que garante o mínimo de
27
Enquanto que na primeira parte do diálogo Parmênides havia colocado Sócrates em aporia mostrando que a
existência de uma Idéia da grandeza levaria a um regresso infinito, aqui ele usa justamente um regresso infinito
para mostrar que, se o Um é, ele é infinitamente divisível em uma multiplicidade de unidades.
81
inteligibilidade); se algo é uno, é captável pelo pensamento, logo existe (pelo menos no
pensamento). “Nunca encontraremos algo que não seja um elemento” (Cornford). Pela
Hipótese de que o “Um é”, tudo o que existe tem unidade e tudo o que é uno tem ser; tudo o
que é, é um, e tudo o que é um, é. A unidade não existe separada do ser e o ser não existe
separado da unidade.
O primeiro argumento da 2ª Hipótese mostra, portanto, que ter Ser e Unidade é o
pressuposto mínimo que algo deve ter para ser objeto do pensamento ou para que um
pensamento seja pensamento de algo: tal objeto deve existir e ter uma unidade (conceitual)
para ser suscetível de ser captado pelo pensamento.
28
2º argumento: há multiplicidade numérica
Se, pela premissa inicial, o Um é diferente do Ser e Ser é diferente do Um, ambos
participam da Diferença. Nesse caso, temos três Idéias: Um, Ser e Diferença ((éteron).
Quaisquer duas delas constituem um conjunto de dois. Mas cada uma delas é um. Temos
exemplos de Um e Dois. Adicionando Um a qualquer par, temos Três. Temos Um, Dois, Três
e a Adição. Temos também o Par (Dois) e o Ímpar (Três). Se há o Dois, há o duas vezes, se há
3, há três vezes. Há Multiplicação.
Com a Multiplicação, o Par e o Ímpar, pode-se fazer: Par x Par (2 x 2 = 4); Ímpar x
Ímpar (3 x 3 = 9); Par x Ímpar (2 x 3 = 6) e Ímpar x Par (3 x 2 = 6). Temos o Quatro, o Seis e
o Nove. Platão afirma que com o Um, o Dois, o Três e a Multiplicação, pode-se demonstrar a
existência de qualquer número. Se o Um é, é necessário que haja número e, como o ser é
distribuído por todos os números (pois o número participa do Um e, conforme o 1º
argumento, esse co-implica o Ser), o Ser tem infinitas partes (144cd). Portanto, se há número,
há uma multiplicidade discreta de coisas, uma quantidade ilimitada de seres e o Ser-Um, que
28
Cf. Filebo: “Dizemos que o Mesmo, como uno e como múltiplo, é identificado pelo pensamento e que circula,
agora e sempre, por tudo o que falamos. Semelhante fato não é de hoje nem nunca deixará de existir; trata-se,
segundo creio, de uma propriedade inerente ao nosso pensamento, e que jamais envelhece.”
82
neste ponto Platão chama de essência (ousía), está distribuído, “fragmentado” por todos os
seres, do menor ao maior.
Sendo o Um um todo com partes, ele é limitado com respeito ao seu todo, logo, é parte
e todo, um e muitos, limitado e ilimitado (145a). Sendo assim, o Um pode ser dito Semelhante
e Dessemelhante e, a partir daí, Platão demonstra, contra Zenão, que outros pares de opostos
(movimento/repouso, identidade/diferença, igual/desigual, etc.), que não participavam do Um
Absoluto da 1ª Hipótese, participam do Um que existe. Daí decorre também que o Um
existente está sujeito às mudanças qualitativa, quantitativa (crescimento e decrescimento) e
espacial (locomoção) (156b) e também à geração e morte. Conseqüentemente, o Um está no
tempo.
29
Conclusão: se o Um É, o Número é, e a Multiplicidade é. A existência do Um implica
a existência da multiplicidade numérica, e essa a existência de uma multiplicidade de seres.
Notem-se, porém, os seguintes problemas: apesar de Platão afirmar ser possível gerar
todos os números, 5, 7 e 8 não são gerados no seu argumento. Além disso, para gerar todos os
números, não seria necessário um esquema tão complicado, envolvendo a multiplicação de
par x par, impar x par, etc., mas bastaria fazer adições sucessivas a partir do 1.
A explicação para o uso desse esquema é que os números usados por Platão (1, 2, 3, 4,
6 e 9) são exemplos de números que satisfazem os três principais tipos de proporções
matemáticas: 1, 2, 4 e 4, 6 , 9 estão em proporção geométrica (a/b = b/c); 2, 4, 6 estão em
proporção aritmética (a-b/b-c = a/a = b/b = c/c); 2, 3, 6 estão em proporção harmônica: (a-b/b-
c : a/c). A proporção (ou analogía em grego) é uma relação entre dois termos A e C tal que
eles são proporcionais entre si, se há um terceiro termo B, que pode ser colocado em relação
tanto com A quanto com C. B serve, portanto, de “intermediário” (metaxú) ou elo de ligação
29
Como Platão começa a argumentação que resumimos neste parágrafo com as palavras “pela terceira vez,
então, argumentemos”, alguns autores a consideram uma nova Hipótese, a terceira, e atribuem de forma global
ao Parmênides um total de 9 Hipóteses. Nós a consideramos um terceiro argumento (breve) dentro da segunda
Hipótese.
83
entre A e C, e dizemos que A está para B assim como B está para C (A:B::B:C). A analogia é
uma relação ordenada entre dois números diferentes. É, portanto, um tipo de unidade na
pluralidade, uma relação de igualdade entre diferentes termos, proporcionando uma mediação
(méson) entre a igualdade e a desigualdade. Essas proporções, cuja teoria foi desenvolvida por
Eudoxo, um matemático da Academia, contemporâneo de Platão, têm um papel central na
matemática (aritmética, geometria e harmonia musical) grega.
No Timeu, a analogia é o princípio estruturador do universo, que faz com que as suas
partes sejam proporcionais e simétricas (31a-69b). Platão usa uma combinação das três
proporções matemáticas, para estabelecer uma relação harmônica entre as quantidades dos
quatro elementos primários (água, fogo, terra e ar), dividir a Alma do Mundo de forma a
explicar a distância, a velocidade e os movimentos (ocultamentos, movimentos retrógrados,
etc.) dos planetas conhecidos na época e para representar as divisões da escala que formam a
base de toda a teoria musical. Trata-se, portanto, de uma bem-sucedida (para a época)
aplicação de princípios inteligíveis na explicação de grandes aspectos do mundo sensível, a tal
ponto que, nos diálogos tardios (Timeu, Filebo, Político) Platão, para explicar a relação entre
o mundo sensível e o mundo das Idéias, abandona a metáfora da participação (méthexis),
dominante nos diálogos do período médio (República e Fédon), e passa a considerar essa
relação como uma mistura proporcional (analogia) e harmônica de elementos diferentes.
Além disso, pode-se mostrar que, a partir do 1, usando-se a proporção geométrica, é
possível obter a seqüência de números inteiros acompanhada de seus respectivos quadrados e
cubos. Os números inteiros representavam linhas, os quadrados superfícies e os números
cúbicos volumes. Por isso é necessária a multiplicação: um número, representado por uma
linha, “tem por si e sem a ajuda de qualquer outro fator, o poder (dúnamis) de multiplicar a si
mesmo, gerando o seu próprio quadrado e expandindo-se na segunda dimensão”. O quadrado,
por sua vez, contém em si a dúnamis que pode “fazê-lo desenvolver-se na terceira dimensão”
84
(Cornford, 1997: pp. 48-9). Assim, o número 9, por exemplo, considerado como resultado da
adição de nove unidades, forma a linha de comprimento nove; por outro lado, o mesmo
número 9, considerado como resultado da multiplicação do 3 por ele mesmo, geraria a
superfície quadrada de lados 3.
30
Uma passagem do Filebo, que parece tomar como dado o resultado da 2ª Hipótese do
Parmênides e aplicá-lo à questão do prazer, também pode ajudar a esclarecer a importância
dos números para a dialética platônica:
Os antigos, que eram melhores do que nós e viviam mais perto dos
deuses, nos conservaram essa tradição: que tudo o que se diz existir provém do
uno e do múltiplo e traz consigo, por natureza, o finito e o infinito. Uma vez que
tudo está coordenado dessa maneira, precisamos procurar em todas coisas sua
idéia peculiar, pois, sem dúvida nenhuma, a encontraremos. Depois dessa
primeira idéia, teremos de procurar mais duas, se houver duas, ou mais três, ou
qualquer outro número, procedendo assim com todas, até chegarmos a saber,
não apenas que a unidade primitiva é una e múltipla e infinita, como também
quantas espécies ela contém. Não devemos aplicar a pluralidade à idéia do
infinito, sem primeiro precisar quantos números ela abrange, desde o infinito até
à unidade; só então soltaremos a unidade de cada coisa, para que se perca
livremente no infinito. Mas os sábios de nosso tempo assentam ao acaso o uno e
o múltiplo com mais pressa ou lentidão do que fora necessário, saltando
indevidamente da unidade para o infinito, com o que lhes escapam os números
intermediários. Esse, o caráter fundamental que permite distinguir se em nossas
discussões procedemos como verdadeiros dialéticos ou como simples
disputadores
(15e-17b).
Algo, para ser múltiplo, deve ter várias determinações, inclusive opostas. Mas dizer
apenas que algo tem várias determinações é vago: a fim de caracterizar corretamente o objeto
sobre o qual se fala, deve-se especificar quais e exatamente quantas são essas determinações.
30
Parece, portanto, que temos aqui, em esboço e não completamente desenvolvida, a famosa tese que é atribuída
às Doutrinas Não-Escritas (DNE) de Platão, segundo a qual o primeiro princípio de tudo é o Uno; do Uno
provém a Díade Indefinida; do Uno e da Díade provêm os números, e dos números os pontos, dos pontos as
linhas, das linhas as figuras planas e das figuras planas as figuras sólidas que formam os corpos sensíveis. Os
números têm como elementos constitutivos o Par (identificado com o Limite) e o Ímpar (identificado com o
Ilimitado).
85
A determinação exata de quais e quantas são essas propriedades, através da diaíresis, é a
tarefa específica do dialético. Portanto, não é possível, logicamente, algo ter duas ou três
propriedades, ou que atribuamos duas ou três propriedades a algo, sem que tenhamos
previamente garantido a existência
31
dos números Dois e Três.
Como vimos, na primeira parte do diálogo Parmênides colocou Sócrates em aporia ao
objetar que, se as Idéias são Unas, elas seriam ou indivisíveis (sem partes) ou únicas (haveria
uma Idéia para cada multiplicidade). Em ambos os casos, porém, as Idéias não poderiam
participar nas coisas pois isso geraria várias contradições. Ora, o primeiro argumento da 2ª
Hipótese mostra que o Uno é infinitamente divisível e formado por (infinitas) partes discretas,
ao passo que o segundo argumento afirma que o Uno é múltiplo. Além disso, existência da
multiplicidade se deduz da própria tese de Parmênides “tudo é um”. Portanto, assim como
Zenão tentou “pagar na mesma moeda” (128cd) aos críticos do monismo parmenídeo, Platão
emprega a mesma estratégia contra o próprio Zenão.
3ª Hipótese: Se o Um É - conseqüências para as outras coisas
Se o Um é, quais são as conseqüências para as outras coisas (
ÁlloiV)?
Por definição, as outras coisas são Outras que o Um, porque são diferentes do Um. A
diferença consiste no fato de elas terem partes (se não tivessem partes, elas seriam Um =
Unas). Partes são sempre ditas partes de um Todo. Um Todo é um conjunto formado por uma
multiplicidade de partes. Logo, a existência de partes implica a existência de um Todo.
Parmênides argumenta que, nessa 3ª Hipótese, as partes devem ser consideradas, não como
sendo partes de uma multiplicidade indeterminada de coisas (como na 2ª Hipótese), pois, se
elas fossem partes de uma multiplicidade, seriam partes de si mesmas (o que é contraditório)
31
O segundo argumento da 2ª Hipótese não mostra como gerar os números pois, sendo entidades ideais, eles são
eternos, não-criados, indestrutíveis e existem sempre em si mesmos, mas é um argumento para mostrar a
necessidade de sua existência.
86
ou partes de cada uma das outras coisas, o que equivaleria a não ser parte de nada e não ser
nada, mas como partes de um Todo (= todas as coisas tomadas em conjunto). Como o Todo é
Uno, a participação das partes no Todo implica que elas também participam do Um – cada
parte tem unidade. Assim, cada parte tem delimitação em relação às outras coisas, e é em si
mesma. Portanto, temos uma multiplicidade limitada “exteriormente” pelo todo e
“interiormente” umas em relação às outras – cada parte é determinada em si e diferente das
outras (sem deixar de ser parte).
Assim, as coisas participam do Um, seja tomadas como partes, seja em relação ao
Todo. Mas as coisas diferentes do Um são as coisas Múltiplas. Sendo múltiplas, são ilimitadas
em quantidade (segundo argumento da 2ª Hipótese). Mas, pela participação no Um, cada uma
delas tem limite em relação a cada uma das outras coisas e com relação ao Todo. Pela
participação no Um, o Outro é limitado, enquanto todo, com referência às partes e, enquanto
partes, limitado com referência a cada (Outra) parte e ao Todo. E, reciprocamente, para o
Todo com relação às Partes (158cd).
Enquanto ilimitadas, são todas Semelhantes. Mas, sendo, por um lado, ilimitadas
(numericamente) e, por outro, limitadas (em relação ao Todo), podem ser consideradas
dessemelhantes. Sendo semelhantes e dessemelhantes, podem ter todos os caracteres opostos
(cf. 2ª Hipótese).
A conclusão positiva da 3ª Hipótese é que o Um é, as Outras coisas (o Múltiplo)
participam do Um como partes, logo o múltiplo tem unidade (limite) e pode ser considerado
como um todo. Além disso, cada parte do múltiplo ganha unidade e determinação recíproca
em relação às outras partes e ao todo. Assim, o múltiplo não é mais um múltiplo
indeterminado da 2ª Hipótese, mas, sendo infinito, é determinado tanto em suas partes quanto
em relação ao Todo. O mesmo é válido em relação ao Todo-Um, que passa a ser considerado
não um todo indeterminado, sem nenhuma especificação positiva, mas um Todo determinado.
87
As noções de Ser e de Um, que a 2ª Hipótese mostrou estarem estreitamente
correlacionadas, não são, apesar disso, idênticas: nesta 3ª Hipótese, o Um é usado para indicar
“distinção” ou “separação” de uma coisa de outra, da multiplicidade e do Todo.
As Hipóteses restantes apenas confirmam, seja diretamente, seja por redução ao
absurdo, os resultados alcançados até aqui.
4ª Hipótese: se é Um - conseqüências para as outras coisas
(159b-160b)
O Um é, mas está separado (xorís) das outras coisas. Não existe uma terceira coisa em
que tanto o Um quanto as Outras coisas possa participar. Neste caso o Um não terá partes (cf.
2ª Hipótese). Se o um é separado e não tem partes, nem o Um como um todo nem suas partes
estarão nas outras coisas e, portanto, as Outras coisas não participarão dele e não serão unas
(cf. 3ª Hipótese). Não havendo participação (méthexis) do Outro no Um, não há participação
no Todo nem em Parte, as coisas não têm unidade. Logo, não haverá multiplicidade, pois para
isso seria necessário que fossem uma parte de um todo (cf. 2ª Hipótese).
Se as outras coisas não participam do Um, não são unas nem múltiplas, nem todo nem
partes. Se algo não participa do Um, não pode participar do Dois, logo não pode ter duas
propriedades diferentes. Logo, também não pode ser Semelhante nem Dessemelhante e, por
isso, não pode ter nenhuma das determinações opostas, de maneira que chegamos a uma
conclusão análoga à da 1ª Hipótese.
5ª Hipótese: Se o Um não é – conseqüências para as outras coisas.
(160b-163b)
88
Nesta Hipótese a expressão “o Um não é” refere-se a algo diferente das outras coisas,
isto é, ao Um determinado. A negação não é absoluta, mas relativa a um Outro ente como, por
exemplo, “a grandeza não é” (160c).
O que podemos afirmar de um ente determinado, mas que não é? Podemos falar de
quais são as suas determinações, porém com a exclusão, é claro, do seu ser. Por exemplo,
imaginemos que Sócrates não existe mais, mas conhecemos (nos lembramos) de todas as suas
determinações (filósofo, barbudo, feio, olhos saltados) que o fazem ser uno e diferente dos
outros entes do universo.
A 5ª Hipótese analisa a afirmação de que não existe “esse”, “aquele” Um: é um ente
determinado, portanto, esse ente que não existe é diferente dos outros. Logo, esse ente
participa da Dessemelhança (em relação aos outros) e da Semelhança (consigo mesmo). A
partir dessa participação no Semelhante e no Dessemelhante, é possível mostrar que esse ente
determinado também participa dos outros pares de opostos (como na 2a Hipótese), mesmo
que não participe do Ser.
6ª Hipótese: Se o Um não é
(163b-164b)
Nesta hipótese a afirmação “o Um não é” significa ausência de ser para o que
afirmamos. O Um não é, de forma alguma, de maneira nenhuma. O que não é não participa do
ser e, conseqüentemente, não terá nenhuma determinação, seja positiva, seja negativa.
Negar de forma absoluta o Ser ao Um, assim como tentar pensar o Um (e o Ser)
absolutos, leva à conclusão da sua absoluta incognoscibilidade, pois, em ambos os casos, nada
pode ser dito ou predicado e, portanto, conhecido dele.
O resultado é o mesmo da 1ª Hipótese e confirma, por redução ao absurdo, a 5ª.
89
7ª Hipótese: Se o Um não é – conseqüências para as outras coisas
(163b-164b)
O sujeito desta hipótese são os Outros. Eles são diferentes (pois, se fossem iguais,
seriam Um) entre si (e não com relação ao Um, pois esse não existe). Sem o Um como
princípio de determinação (cf. 3ª Hipótese) sempre haverá o Outro do Outro ad infinitum.
Nunca encontraremos um mínimo ou um máximo que limite a multidão de outros: abaixo do
mínimo sempre há outro menor, e acima do máximo sempre haverá outro maior. Por isso,
cada Outro apenas parecerá ter alguma determinação (impar, par, grande, pequeno), pois, a
seguir, vê-se que ele tem também as demais determinações opostas.
A 7ª Hipótese, portanto, confirma, por redução ao absurdo, a 3ª Hipótese.
8ª Hipótese: Se o Um não é
165e-166d
Se o Um não existe, mas as outras coisas existem, elas não serão unas, nem
Semelhantes nem Dessemelhantes nem terão qualquer determinação: logo, não serão
múltiplas (cf. 2ª Hipótese).
A conclusão é que, se o Um não é, os Outros (a multiplicidade) não existe.
A 8ª Hipótese confirma, por via negativa, a 2ª.
3.5 Conclusões particulares de cada Hipótese
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De forma resumida, estas são as conclusões de cada uma das 8 Hipóteses, levando em
conta o ponto de partida, isto é, o significado da expressão “o Um é” utilizado em cada uma
delas:
Hipótese Premissa Conclusão
1 Um [é] em si
Ele não pode ser pensado e o Múltiplo não
existe
2 O Um participa do Ser
O Um é infinitamente divisível e
infinitamente múltiplo
3 O Um participa do Ser Múltiplo ganha limites e determinação
4
O Um [é] em si (separado
dos Outros)
não há Múltiplo
5 Um (ente determinado) não é
Ele pode ter várias propriedades, menos a
existência
6 O Um não é Nada existe, o todo é incognoscível
7 O Um não participa do Outro
há Multiplicidade, mas sem qualquer tipo de
determinação
8 O Um não é Múltiplo não existe
A 1ª e a 6ª Hipóteses chegam ao mesmo resultado: conforme a 1ª Hipótese, tentar
pensar o Um em si, de forma absoluta, sem nenhuma relação com algo que não seja ele
próprio, leva à conclusão de que não podemos pensar nada dele e que ele não existe:
exatamente o mesmo resultado, como seria de se esperar, da 6ª Hipótese, onde a existência do
Um é negada de maneira absoluta.
As conclusões da 4ª e da 8ª Hipóteses se reforçam mutuamente: a 4ª Hipótese mostra
que se concebemos o Um em si, separado de qualquer outra determinação, a conseqüência
para as outras coisas é que elas não terão participação na existência, logo, não haverá
múltiplo; a 8ª Hipótese chega à mesma conclusão, a partir do ponto de vista dos Outros: se
não há o Um, o Múltiplo não existe. Por via negativa, a 4ª Hipótese também confirma a
conclusão da 1ª Hipótese, e a 8ª, a conclusão da 2ª .
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A 2ª Hipótese mostra que, se o Um é, o múltiplo existe, isto é, algo pode ter várias
determinações opostas; a 5ª afirma que, se algo múltiplo não é, podemos predicar todas as
suas determinações opostas, menos, é claro, a determinação da existência.
A 3ª Hipótese demonstra que, se o Um participa do ser, o Múltiplo terá limites e
determinação, enquanto que a 7ª Hipótese mostra justamente que, se o Um não participa do
Múltiplo (pois nessa Hipótese o Um não existe), o Múltiplo será ilimitado e indeterminado.
3.6 Conclusão geral da segunda parte do Parmênides.
O exame da argumentação das Hipóteses, levando em conta qual dos diferentes
significados de “Um” é usado em cada caso, mostra que elas não chegam a conclusões
mutuamente contraditórias mas se co-implicam e confiram umas as outras.
As Hipóteses 1, 4, 6, e 8 reforçam-se mutuamente, pois cada uma delas mostra que,
quando o Um é concebido em si, separado, de forma absoluta, ele não pode combinar-se com
outras Idéias para gerar o Múltiplo – o que é o mesmo resultado a que se chega ao em
negando a existência do Um (6 e 8). Isto não é surpreendente, porque o Um absoluto não pode
participar de nada, nem do Ser, logo ele não existe (1 e 4). Nessas quatro Hipóteses, o Um
absoluto não pode ser pensado ou conhecido, nada pode ser predicado dele.
As Hipóteses 2, 3, 5 e 7, por sua vez, também implicam uma conclusão comum:
atribuir existência ao Um é conceber o entrelaçamento de duas Idéias: Ser e Um. Esse
entrelaçamento inicial permite a Platão demonstrar a possibilidade de pensarmos a existência
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de uma multiplicidade infinitamente divisível e extensa, que pode ser concebida como um
todo determinado.
Portanto, a conclusão do Parmênides é que é possível pensar, sem contradição, a
participação das Idéias nas coisas e das Idéias entre si, desde que se façam as devidas
distinções nos significados de Um e em sua relação com o que não é Um.
Se “Um é” significa que o Um é Um, isto é, que ele é Um em si, Um absoluto, o Um
será incognoscível (pois não pode participar do ser, e o que não existe não pode ser pensado
nem conhecido) e o Múltiplo não existirá.
Se “Um é” significa dizer que o Um participa do Ser, é possível mostrar que, desse
mínimo entrelaçamento de Idéias, outros entrelaçamentos de Idéias opostas são possíveis, o
que é a condição de possibilidade para que a Teoria das Idéias dê alguma inteligibilidade ao
mundo sensível.
Embora certamente tenhamos aborrecido o leitor com esse resumo das deduções da
segunda parte do diálogo Parmênides, acreditamos que ele serviu para estabelecer alguns
pontos importantes, que passamos a destacar.
A primeira parte do Parmênides mostrou que, para evitar o paradoxo de Zenão quanto
à impossibilidade de se pensar a multiplicidade, era necessário postular a existência das
Idéias, que são concebidas com as mesmas características do Ser de Parmênides. Ora, entre
essas características, as de serem unas, isto é, únicas e indivisíveis, leva a Teoria das Idéias a
uma série de aporias, sendo a mais grave a da impossibilidade de se predicá-las de qualquer
coisa, a não ser de si mesmas, resultado esse que invalida uma das principais motivações para
o estabelecimento da teoria: o de explicar como a linguagem tem significado.
A segunda parte mostra, contra todas as expectativas, como é possível salvar a teoria
das Idéias. Sócrates havia desafiado os presentes a que lhe mostrassem que as Idéias podem se
combinar entre si e se misturar (129de). É justamente essa demonstração que Parmênides
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realiza, na segunda parte do diálogo. E como ela é feita? Simplesmente analisando o
significado da expressão o “Um é”. Essa análise mostrou que, quando afirmamos que o “Um
é”, mesmo no caso em que queremos afirmar com essa expressão que “só há o Um”, essa
afirmação já contém uma pluralidade de Idéias inter-relacionadas, e é a negação da
pluralidade que se torna problemática, pois ela pressupõe, para ser dita, o contrário do que
afirma.
Platão descobriu, se nossa análise está correta, que os problemas da sua Teoria das
Idéias e as conclusões paradoxais sobre a impossibilidade da linguagem dos sofistas e
megáricos tinham uma origem comum, isto é, a negação parmenídea da possibilidade de se
falar com significado sobre o Não-Ser.
Capítulo IV
O Sofista
As aporias propostas pelos sofistas resistem a serem
resolvidas, se impõem como uma obsessão e suscitam aquele
espanto (étonnement) sempre renovado que é, tanto para
Aristóteles quanto para Platão, o ponto de partida da ciência e da
filosofia (Pierre Aubenque).
Sabemos que, definitivamente, Platão não via os sofistas com bons olhos. A imagem
que fica após a leitura dos diálogos do filósofo ateniense é que os sofistas teriam sido um
bando de professores charlatães que prometiam ensinar aos jovens atenienses, mediante um
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pagamento generoso, algo que era, na melhor das hipóteses, uma pseudo-sabedoria oca e, na
pior, um “ensino profundamente imoral” (Kerferd, 2003 p. 17).
No diálogo Górgias, por exemplo, os sofistas são considerados os culpados pelo
declínio moral de Atenas. Pólo, um aluno do retórico Górgias, considera o homem mais feliz
do mundo Arquelau, filho de um rei com uma escrava que, por isso, não teria direito ao trono,
mas usurpou o poder embriagando e matando seu tio e um primo e, posteriormente,
assassinando o seu próprio irmão, o herdeiro legítimo (471ab). Pólo afirma que “os oradores,
tal como os tiranos, dão morte a quem querem, despojam dos bens e expulsam da cidade
quem lhes agrada” (466d) e são felizes, se levam “a vida toda à frente da cidade satisfazendo
as suas vontades” (473c).
Para Cálicles, outro defensor da retórica gorgiana, a lei institucionalizada pelas
cidades é apenas uma convenção (nómos) humana feita “pelos fracos e pela grande massa
para assustarem os mais fortes, aqueles que têm possibilidades de se superiorizarem e, para
não se deixarem ultrapassar por eles, dizem que é injusto e vergonhoso o desejo de ser
superior à maioria” (483ac). Ser justo significa, para Cálicles, seguir a lei natural (phúsis), e a
lei natural é a lei do mais forte: “Em muitos domínios, não só entre os animais como entre as
cidades e as raças dos homens, é evidente que, na ordem da justiça, o mais poderoso deve
dominar o mais fraco e gozar as vantagens da sua superioridade” (483d). Para Cálicles, as
únicas coisas vergonhosas (aischrón) ou injustas seriam ou não exercer o direito (natural) de
alcançar o poder, mediante o emprego de qualquer meio ao seu dispor, ou perder esse poder e
ser dominado e punido pela massa (Górgias 493ss).
Platão classifica a retórica como uma arte de adulação baseada na empiria, isto é, que
não segue nenhum princípio racional. A retórica dos sofistas estaria para a política como a
culinária está para a medicina e a maquiagem para a ginástica, ou seja, ela é classificada ao
lado de artes que visam apenas agradar através do prazer sensual ou estético superficial, e não
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tornar as pessoas melhores através do conhecimento do que seja o verdadeiro Bem em si (cf.
Górgias 462b-465e). Platão condenava fortemente a retórica de Górgias por usar a fascinação
das palavras apenas para adular os desejos dos ouvintes sem submetê-los a um exame crítico
(cf. Górgias 462b-465e).
Ainda segundo Platão, os sofistas retóricos prometiam aos seus alunos um virtuosismo
verbal que os tornaria capazes de, em pouco tempo, fazer triunfar qualquer tese. Para fazer
vencer uma tese é necessário refutar a tese oposta, e os sofistas treinavam e eram treinados
para, em competições públicas, defender simultaneamente o sim e o não de uma mesma tese:
“Górgias [escrevia] o elogio e a condenação de cada assunto proposto, pois ele julgava ser da
competência específica do orador a capacidade de enaltecer uma causa, louvando-a e,
seguidamente, de a destruir, atribuindo-lhe defeitos” (Fedro 267a, República 539bc).
Em resumo, na opinião de Platão, os sofistas “substituíram a realidade pelas
aparências e a verdade pela persuasão, usaram falácias para enganar deliberadamente uma
audiência atordoada, e afirmavam ter a habilidade de derrotar qualquer pessoa pelo poder da
retórica em assuntos nos quais eles eram completamente ignorantes” (Woodruff, 1999, p.
291).
Portanto, não parece que Platão teria qualquer dificuldade em responder o que é um
sofista: estas poucas passagens já são suficientes para mostrar que Platão definiria um sofista
como sendo alguém pertencente a um grupo de pensadores que (1) não eram sérios e (2) cujo
ensino era anti-ético.
Frente a essa visão altamente negativa, não deixa de causar espanto o fato de que
Platão tenha se dado ao trabalho de escrever um diálogo dedicado exclusivamente à
caracterização dos sofistas, ao invés de simplesmente desconsiderá-los, como ainda fazem
muitos historiadores da filosofia, e incluí-los no reino dos não-filósofos.
32
32
Naturalmente, essa visão negativa do movimento sofista, que predominou por vários séculos na história da
filosofia, graças à influência de Platão e Aristóteles, já não é mais aceita pelos estudiosos. Autores como Guthrie,
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A leitura do Sofista deixa claro, porém, que, para Platão, responder à pergunta “o que
é o sofista?” não é uma tarefa nada simples: é necessário, entre outras coisas, nada mais nada
menos do que um estudo dos grandes gêneros metafísicos Ser, Não-Ser, Repouso,
Movimento, Mesmo, Outro e de suas complexas inter-relações; identificar e resolver
diretamente os problemas relacionados ao Não-Ser; analisar criticamente todas as doutrinas
sobre o Ser, propostas por outros pensadores; dar um status ontológico para a imagem e para
a cópia; e resolver os problemas da predicação, da opinião falsa e da impossibilidade da
contradição. Nesse esforço, Platão chega a cometer, inclusive, o famoso parricídio filosófico
de seu mais importante mestre intelectual: Parmênides. Todo esse trabalho, em nossa opinião,
indica que Platão levou a sério os sofistas, no sentido de que, por mais errados que pudessem
estar, eles trouxeram à tona problemas reais à filosofia, problemas estes que só podem ser
esclarecidos e respondidos mediante um grande e sério esforço filosófico.
Mas Platão não se interessou pela procura de uma definição de sofista, apenas pelo seu
interesse intrínseco. O principal problema que o diálogo quer resolver, e em função do qual
toda a pesquisa dos temas mencionados no parágrafo anterior se desenvolve, é o da diferença
entre o sofista e o verdadeiro filósofo, representado por Sócrates.
Iniciando o Sofista, Sócrates observa que, para as pessoas comuns, o filósofo
apresenta-se com aparências diversas, sendo freqüentemente confundido ora com os sofistas,
ora com os políticos. Sócrates pergunta ao Estrangeiro de Eléia se estas três denominações,
“sofista”, “político” e “filósofo” designam uma mesma e única atividade ou se cada uma se
refere a atividades distintas (217a-b). O Estrangeiro não tem nenhuma dificuldade em
responder à pergunta de Sócrates: para ele, são três gêneros diferentes, ou seja: cada nome
(Ónoma) corresponde a um gênero (gænoV) distinto (217a).
Kerferd e Bárbara Cassin, entre outros, contribuíram para mostrar o interesse e a profundidade do pensamento
dos sofistas, colocando-os em seu merecido lugar na filosofia.
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Mas, para diferenciar, é necessário definir. O Estrangeiro afirma que não há grande
mérito em dizer que as três palavras designam três atividades distintas. A verdadeira
dificuldade em responder à pergunta de Sócrates reside no fato de que, para diferenciar
claramente cada um desses três gêneros dos outros, é necessário definir, de forma a mais
precisa possível, cada um deles (217b). Uma pesquisa não pode limitar-se a atingir uma
concordância quanto ao nome pelo qual se designa o objeto pesquisado, no caso o sofista,
concordância essa que, nesse caso, seria meramente subjetiva, mas deve buscar definir a
função que por esse nome se indica. Em qualquer análise é necessário estar de acordo sobre o
objeto, dando as razões que o definam, e não apenas sobre o seu nome, sem definição (218c).
4.1 As Definições de Sofista (218b-231b)
O Estrangeiro de Eléia passa, a seguir, e sem nenhuma justificativa prévia (Cornford,
1983, p. 160) a procurar a definição de sofista mediante do método da diaíresis. O emprego
desse método resulta em um total de seis definições diferentes: (1) “caçador assalariado de
jovens ricos”; (2) “comerciante de saberes relativos à virtude”; (3 e 4) “pequeno comerciante,
por varejo ou atacado, de primeira ou segunda mão, das ciências relativas à alma”; (5)
“discutidor, refutador, erístico”; (6) “purificador da alma das falsas opiniões que são um
obstáculo ao verdadeiro conhecimento” (222a-231e).
Conforme Cornford, cada uma dessas seis definições caracteriza, “superficialmente e
com consideráveis elementos de sátira” (1983, p. 162), um grupo específico de personagens
históricos: as primeiras quatro definições referem-se ao grupo dos sofistas retóricos,
especialmente a Protágoras e Górgias; a quinta definição caracteriza os erísticos, pessoas
como os irmãos Eutidemo e Dionisodoro, retratados por Platão no diálogo Eutidemo, mas
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também engloba as escolas megárica e eleática e, em certo aspecto, a própria dialética
platônica; a sexta definição, e aqui todos os comentadores concordam, caracteriza a prática de
Sócrates.
Ora, a presença de Sócrates em uma seção destinada a caracterizar o sofista deveria
causar espanto ao leitor, pois sabemos que Platão o considerava o verdadeiro filósofo a ponto
de, com poucas exceções, colocá-lo como o protagonista de seus diálogos e porta-voz de suas
idéias e retratá-lo como um arquiinimigo dos sofistas. Por que Platão inclui Sócrates nesta
seção? Acreditamos que uma análise cuidadosa das diaíreseis que leva às definições do
sofista, citadas acima, mostra que o grande problema que Platão quer enfrentar com o diálogo
Sofista é justamente diferenciar Sócrates (e a filosofia) da sofística. A questão é que, no
tempo de Platão, Sócrates foi “amplamente percebido” como um sofista (Rosen, 1986, p.
102). Ou seja, não apenas a sexta definição se refere a Sócrates, mas igualmente todas as
outras cinco, ao caracterizar os sofistas, retratam Sócrates e a sua atividade.
Nehamas (1999, p. 110) lembra que, no século IV a.C., termos como “filosofia”,
“dialética”, “erística” e “sofistica” ainda não tinham seus significados claramente definidos e
diferenciados uns dos outros, de forma que não havia um consenso universal sobre quais
pensadores pertenciam a qual denominação. Podemos ver a confusão que reinava em torno
desses termos nesta citação de Aristides:
Heródoto não chamou Sólon um ‘sofista’, e também Pitágoras? Androton
não chamou aos Sete (Sábios) ‘sofistas’, e também a Sócrates, o indivíduo famoso,
de ‘sofista’? Novamente, Isocrátes não denominou de ‘sofista’ aqueles envolvidos
em disputas e auto-denominados dialéticos, mas ‘filósofos’ a ele mesmo e os
oradores e aqueles envolvidos em atividades políticas? Alguns de seus pupilos usam
a mesma terminologia. Lísias não chamou Platão um ‘sofista’, e também Ésquino?
A modo de reprovação, no caso de Lísias, se poderia dizer. Mas o resto dos autores
não estão reprovando, de maneira alguma, aqueles outros famosos indivíduos; não
obstante, chamaram-nos por esse mesmo nome (apud Sprage, 2001, p. 1).
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Isócrates, por exemplo, hoje classificado como retórico, considerava a si próprio um
filósofo, e colocava Platão e Sócrates no grupo dos que “encontravam prazer em defender
teses implausíveis” (como a que as virtudes são uma) e eram hábeis nos argumentos erísticos
(Nehamas, p. 108-9). Aristófanes, na famosa passagem de As Nuvens, apresenta Sócrates
como um sofista engajado em pesquisas inúteis. Mas, além da imprecisão terminológica,
havia motivos mais concretos para a confusão.
Como vimos, Platão criticava fortemente a retórica de Górgias por usar a fascinação
das palavras para adular de forma não racional os desejos dos ouvintes. Mas Sócrates é
retratado, mesmo nos diálogos de Platão, como alguém que também tinha a capacidade de,
“como uma serpente, fascinar e paralisar outros” (República 358b), com a sua retórica. No
diálogo Banquete, Alcebíades compara Sócrates a um flautista que, com o poder da sua boca,
encanta, aturde, empolga ou leva os homens às lágrimas (215c ss). Também é interessante
reproduzir as famosas palavras de Ménon ao ser refutado por Sócrates (itálicos nossos):
Sócrates, antes mesmo de estabelecer relações contigo, já ouvia dizer
que nada fazes senão caíres tu mesmo em aporia, e levares também aos outros a
cair em aporia. E agora, está me parecendo, me enfeitiças e drogas, e me tens
simplesmente sob completo encanto, de tal modo que me encontro repleto de
aporia. E, se me é permitida uma pequena troça, tu me pareces, inteiramente, ser
semelhante à raia elétrica. Pois também ela entorpece quem dela se aproxima e
toca, quando tu pareces ter-me feito agora algo desse tipo. Pois verdadeiramente
eu, de minha parte, estou entorpecido, na alma e na boca, e não sei o que te
responder. E, no entanto, miríades de vezes pronunciei numerosos discursos
sobre a virtude para multidões. Mas agora, nem sequer o que ela é,
absolutamente, sei dizer (Ménon 80ab).
No diálogo Teeteto (162e), Protágoras acusa Sócrates de usar argumentos que são
apenas verossímeis ou prováveis (eikos), o mesmo termo que Sócrates usa no Fedro, para
criticar a retórica de Tísias e Córax, como vimos acima (Fedro, 267a). Um pouco mais
adiante, Protágoras volta a se queixar do procedimento socrático, dizendo que os argumentos
de Sócrates são erísticos, pois ele pretende refutar a tese protagórica, deduzindo uma série de
100
absurdos que decorrem unicamente por ele ter feito certos trocadilhos verbais, e afirma que
Sócrates deveria ater-se não às palavras mas ao sentido do que foi dito ao estudar o
pensamento de Protágoras (167e-168c). No diálogo Górgias, Cálicles reclama que Sócrates
limita-se a “andar à caça de palavras” (489b) e a falar “como um autêntico orador político”
(demagogo) (482c). Portanto, Sócrates poderia ser incluído nas quatro primeiras definições do
diálogo Sofista, que caracterizam o sofista como alguém que usa a persuasão de forma não
muito ética e pretende ensinar a virtude a seus alunos.
33
A quinta definição define o sofista pelo método de argumentação que ele utiliza: a
erística. Nesta quinta diaíresis, o Estrangeiro parte do gênero da arte aquisitiva que se dá pela
conquista: (5.1) a conquista pode ser por caça ou por luta; (5.2) a luta pode dividir-se em
rivalidade e combate; (5.3) o combate pode ser físico (luta corporal) ou de argumentos contra
argumentos – “controvérsia”; (5.4) a controvérsia pode ser pública, por longos discursos ou
privada, por perguntas e respostas – contradição (antilogikê); (5.5) a contradição pode ser
feita sem arte ou com arte - erística; (5.6) Com a erística pode-se “tagalerar” (cf. o
Parmênides) ou ganhar dinheiro (224e-226a).
Uma disputa erística ocorre quando duas pessoas aceitam travar um duelo verbal.
Uma delas faz perguntas, enquanto a outra só pode responder. Quem responde começa
apresentando uma tese a ser defendida – por exemplo, “a justiça é o interesse do mais forte”,
“conhecimento é sensação”. O interrogador solicita que o interrogado dê o seu assentimento
às perguntas que lhe são feitas. Essas perguntas são construídas de tal modo que só permitem
uma resposta “sim” ou “não”, obrigando a quem responde a escolher entre uma das
alternativas de uma disjunção. O interrogador, a cada passo, tira conclusões das premissas, e
uma refutação ocorre quando o interrogador consegue fazer o respondente aceitar uma
conclusão que é incompatível com a tese defendida inicialmente ou é uma tese absurda
33
A única diferença, nesse caso, entre Sócrates e os sofistas seria que o primeiro não cobra pelo seu “ensino”.
101
(implica uma auto-contradição, por exemplo) (Ryle, 1994, p. 104-105, Robinson, 1996, p. 8).
O duelo tem tempo determinado e geralmente era realizado na presença de uma audiência
que, às vezes, fazia o papel de juiz ( cf. Aristóteles, Tópicos).
Segundo Kerferd, o termo “erística” é derivado do substantivo eris que significa
“luta”, “disputa”, “controvérsia”. Platão usaria esse termo para indicar o tipo de debate ou
disputa verbal no qual o objetivo primordial dos participantes é obter a vitória na
argumentação e, para isso, utilizam-se de qualquer recurso, mesmo o uso de argumentos
falaciosos. Portanto, com esse termo, Platão quer indicar que a erística não é uma técnica,
mas um tipo de disputa na qual o objetivo, das pessoas que se envolvem nela, é apenas
vencer, independentemente dos métodos empregados para isso (cf. Kerferd, 2003, p. 109).
34
Já o termo “antilógica” nomearia uma técnica que, opondo “um lógos ao outro por
contrariedade ou contradição, chama a atenção para a presença de uma oposição em um
argumento ou coisa” (Kerferd, 2003, p.110). Ou seja, em Platão, o termo “antilógica” refere-
se à técnica que consiste em estabelecer, a partir da posição ou tese defendida pelo oponente,
a posição contrária, forçando-o a abandoná-la ou a aceitar ambas as teses.
4.2 O método de refutação (elenchus) socrático
O método que Sócrates utilizava para questionar seus interlocutores consistia em
examinar uma tese, fazendo à pessoa que a defende uma série de perguntas com o objetivo de
explicitar as premissas, inicialmente ocultas, que ou sustentam ou são implicadas pela tese.
Quando isso é realizado a contento, Sócrates passa a mostrar que uma, algumas ou até mesmo
todas estas premissas entram em contradição com a tese defendida inicialmente (cf. Robinson,
1996, p. 9).
34
Esse tipo de disputa seria retratado por Platão no diálogo Eutidemo.
102
O diálogo Teeteto nos fornece um bom exemplo do procedimento socrático. O
interlocutor de Sócrates chamado Teeteto define conhecimento como percepção. Platão
identifica essa teoria com a tese de Protágoras que “o homem é a medida de todas as coisas” e
mostra que ela, por sua vez, tem seu fundamento ontológico na doutrina, atribuída a Heráclito,
do fluxo perpétuo de todas as coisas. Esta doutrina, por sua vez, implica as seguintes
premissas: (a) nada passa de maior a menor, seja em número, seja em volume, enquanto
permanecer idêntico a si mesmo; (b) se não se retira ou se acrescenta algo a alguma coisa,
essa não crescerá nem diminuirá: será sempre igual a si mesma; (c) o que antes não era não
pode ter chegado a ser, se não passou a ser (155a-b).
Porém, tendo Teeteto aceito a teoria do fluxo, Sócrates lhe pede que considere o
seguinte exemplo: quando comparamos uma certa quantidade A com uma quantidade B
menor que ela e, a seguir, com uma quantidade C maior que A, a quantidade inicial A, maior
em relação a B, passou a ser menor (“decresceu”), quando comparada com a terceira
quantidade C. Por exemplo, Sócrates, que é baixo (comparado a Teeteto), “transforma-se” em
alto, ao ser comparado com Teodoro, que é mais baixo do que Sócrates, sem que, em si,
tenha-se alterado. Ou seja: Sócrates parece ter-se transformado sem movimento, mantendo-se
igual a si mesmo. Teeteto observa corretamente que esse exemplo entra em conflito com as
premissas da doutrina do fluxo universal: se nada existe por si, mas unicamente como
resultado do movimento, deve-se admitir que não existe outra forma de algo crescer ou
diminuir a não ser através do movimento. No entanto, o exemplo apresentado por Sócrates
mostra um caso em que algo sofreu uma alteração em um de seus aspectos, sem ter sofrido
qualquer tipo de movimento.
Com essa constatação, Teeteto fica, no sentido pleno da palavra, em aporia: ele sente-
se sem recursos para resolver o problema colocado por Sócrates e não vislumbra qualquer
saída para o conflito entre argumentos as teses da doutrina do fluxo e o exemplo de Sócrates
103
porquanto Sócrates, dentro da sua típica maneira de proceder, demonstrou a insuficiência das
hipóteses iniciais, sem as substituir por outras. Se Teeteto pudesse, nesse momento, decidir-
se, seja pela falsidade de uma das três premissas da doutrina do fluxo e pela veracidade das
outras, seja pela falsidade de todas, o diálogo poderia encerrar-se neste ponto. O problema é
que todas as premissas parecem plausíveis e, justamente por isso, Teeteto não consegue
decidir-se por uma ou nenhuma delas.
35
Portanto, a aporia de Teeteto é causada pelo estado no qual se encontra a discussão: de
um lado, temos uma série de teses plausíveis, capazes de explicar de forma conveniente certos
fatos; de outro, temos um fato que não só não é explicado por elas, mas inclusive as contradiz.
O elenchus socrático consiste justamente em colocar seu interlocutor em aporia,
mostrando, através de uma série de perguntas, que a tese P defendida por ele implica outras
teses q e r, mas P, q e r juntas são inconsistentes.
36
As premissas que inicialmente pareciam
aceitáveis levam, no entanto, a uma conclusão inaceitável, ou constata-se que duas teses que
são contraditórias são ambas plausíveis, sem que se possa rejeitar alguma das premissas ou
das teses. O resultado é que ficamos com argumentos que, conforme Platão afirma na
35
É nesse contexto que Sócrates faz a famosa observação sobre a admiração como sendo a origem da filosofia.
O que causa a admiração de Teeteto é justamente o estado de aporia a que chegou a discussão. A origem da
filosofia seria, portanto, o estado de perplexidade causado pela hesitação entre diferentes teses sobre
determinado assunto, teses que individualmente são plausíveis mas revelam-se inconsistentes quando colocadas
juntas.
36
Alguns comentaristas afirmam que Sócrates, pela figura lógica da redução ao absurdo, estaria justificado em
afirmar que P é falsa, rejeitá-la e aceitar não-P como verdadeira, de modo que o diálogo deveria terminar com a
conclusão positiva de que não-P é verdadeira (cf. Vlastos, 1996, p. 40; Kraut, 1992, p. 52). Em nosso exemplo,
deveríamos concluir que a tese do fluxo deve ser rejeitada. No entanto, essa não é uma conclusão positiva, pois
ainda ficamos sem saber em que consiste o conhecimento, por exemplo, que é o objetivo principal do Teeteto.
Outros comentaristas, ao contrário, afirmam que Sócrates não está justificado em deduzir não-P, pois ele apenas
mostrou que a conjunção de q, r e P leva a uma contradição, sem que se possa saber qual das premissas é a causa
da falsidade P (cf. Benson, 1996, p. 99). De fato, o que Sócrates faz é convencer seu interlocutor, não da
falsidade de P, mas que P é membro de um conjunto inconsistente de premissas: uma tese plausível, P, implica q
e r, teses igualmente plausíveis, mas P, q e r em conjunto geram uma contradição. Ou P ou q ou r são falsas.
Mas exatamente qual delas é a falsa? As teses examinadas geram uma contradição mas o problema central é que
todas são consideradas plausíveis, e por isso não podem ser simplesmente descartadas. Portanto, a conclusão a
que se pode chegar, no máximo, é que as teses são insuficientes para explicar o que queríamos explicar - o que
não é a mesma coisa que dizer que elas são falsas.
Vlastos chama o elenchus no qual Sócrates estaria justificado
em afirmar que p é falsa de “elenchus standard”, e o elenchus em que Sócrates apenas mostraria a existência de
uma inconsistência de p com as outras premissas de “elenchus indireto” (Vlastos, 1996,35).
104
República (532e), “parecem difíceis de aceitar [porque são contraditórios e não podem ser
aceitos como estão] mas também parecem difíceis de rejeitar”.
Em suma: a arte do elenchus consiste em encontrar a(s) premissa(s) que o respondente
aceita e implica(m) o contrário da sua tese (cf. Robinson, 1996, p. 16). Ora, como comenta
Kerferd (2003, p. 114), “isso é claramente uma aplicação da antilógica”.
Portanto, a confusão de Sócrates (e Platão) com os sofistas não é apenas um caso de
falta de precisão terminológica, mas é motivado também pelo fato de todos, sofistas, retóricos,
erísicos, Sócrates e Platão, usarem o mesmo método de argumentação: a antilógica. “A
antilógica não é um método de argumentação mais distinto da dialética do que a erística” (cf.
Nehamas, 1999, p. 114).
4.3 O sofista como produtor de imagens faladas
Munidos da técnica de contradição e da habilidade de persuasão, os sofistas
acreditavam serem capazes de falar sobre qualquer assunto e persuadir, não apenas pessoas
comuns, mas contradizer até mesmo os experts em seu próprio campo de conhecimento (vide
capítulo 1). Ora, para Platão, não é possível alguém contradizer um matemático, por exemplo,
sem que tenha conhecimento em matemática. Para se contradizer um político, seria necessário
conhecer teoria e história política; para se contradizer um criador de cavalos, seria necessário
conhecer hípica e assim por diante, para todos os saberes. Ou seja: um sofista deveria
conhecer, e conhecer ao nível dos profissionais de cada área, tudo sobre todos os assuntos.
Mas é impossível que uma pessoa saiba tudo. Nesse caso, qual é, então, o status desse
conhecimento, dessa sabedoria universal que o sofista promete ensinar aos seus alunos? O
105
Estrangeiro afirma que só pode ser uma aparência de conhecimento universal, mas não um
conhecimento verdadeiro (Doxastik#n Ára tinà per˜ pántwn Êpist®mhn äo sofðist#V
ähmîn Âll) oük Âl®jðeian Écðwn Ânapæfðantai -
233c).
Mas, como os sofistas conseguem fazer a sua pseudo-sabedoria passar por
conhecimento verdadeiro, a ponto de serem procurados pelos jovens em busca de sabedoria e
poderem cobrar caro pelo seu ensino? É que o sofista possui a técnica verbal pela qual produz
imagens faladas (
eÍdwla legómena), que dão aos seus ouvintes, especialmente se forem
jovens e inexperientes, a ilusão de serem verdadeiras (234c). O sofista fica assim
caracterizado como um produtor de imagens, um mimético.
O Estrangeiro de Eléia divide a arte mimética em dois tipos: a arte de copiar e a arte
do simulacro. A arte de copiar consiste em reproduzir o modelo, sem alterá-lo, mantendo as
suas proporções e as relações entre suas partes exatamente como são no original. A arte do
simulacro, ao contrário, é uma reprodução na qual as características do modelo são alteradas
ou distorcidas, com o objetivo de produzir uma ilusão (235b-236b).
Mas o Estrangeiro declara não saber em qual desses gêneros classificar o sofista, se ele
é um produtor de cópias ou de simulacros. Não se trata, porém, de uma dúvida sobre qual
desses dois gêneros é o mais apropriado, para caracterizar precisamente o sofista, mas de um
problema que tem raízes mais profundas na própria linguagem: o sofista pode argumentar que
não é nem mesmo possível falar em “cópias”, “simulacros”, ou qualquer coisa que seja
considerada uma falsa aparência ou uma opinião errada, sem que, no próprio ato de dizer “isto
ou aquilo é uma cópia” ou “isto é falso”, quem faz essas afirmações caia em contradição. O
próprio ato de proferir uma sentença que contenha algum desses termos, implica a afirmação
do que é negado. Mais precisamente, “cópia”, “simulacro” e “falsidade” são termos negativos,
pois eles negam que os objetos aos quais eles se aplicam sejam reais e verdadeiros. No
entanto, os sofistas defendiam, plausivelmente, que o que falamos só tem sentido, quando
106
falamos de ou sobre algo, algo que existe: não faz sentido falarmos sobre o que não é. Mas
desse fato extraíam uma conclusão no mínimo paradoxal: dizer que algo é falso ou que é uma
cópia equivaleria a afirmar que ele não é real, mas falar sobre algo que não é real seria falar
sobre o que não existe, isto é, equivaleria a falar sobre nada. Ora, falar sobre nada é não falar
e, assim, quem acusa o sofista de ser um produtor de imagens não diz nada (isto é, diz algo
sem significado). Com essa argumentação, que já estudamos no capítulo 1, o sofista encontra
um “refúgio seguro”, pois quem o acusa de fazer discursos falsos é quem se contradiz,
porquanto fala do que não pode ser dito: o Não-Ser (236de).
Falar de cópias, imagens ou simulacros é falar de coisas que são falsas, pois “parecem,
sem realmente ser”; mas, quando fazemos isso, fazemos também duas coisas: (1) falamos que
algo é e não é; (2) damos ser ao Não-Ser. Falar em falsidade, portanto, deixa o estrangeiro em
aporia (237a1), pois ele aprendeu, quando era jovem, com o “grande” (mægaV) Parmênides,
que “jamais será demonstrado que são as coisas que não são; mas afasta desta via de
investigação teu pensamento”
37
(237a).
Como vimos, Parmênides demonstrou ser impossível aceitar que as coisas que são,
não são, ou que o que não é possa ser. Essa premissa, que parece irrecusável, leva, no entanto,
às conclusões de que não é possível dizer que algo parece/aparece mas não é; não é possível
dizer algo e não dizer a verdade (dizer o que é); nem dizer (ou pensar) algo falso, sem que, no
próprio ato em que se fazem essas afirmações, se caia em contradições (236e-237a).
O problema que se coloca para o Estrangeiro, neste ponto do diálogo, é expresso por
ele de forma muito clara: “Que modo encontrar para dizer ou pensar que o falso é real, sem
que, já ao proferí-lo, nos encontremos enredados na contradição?” (236e).
38
37
Atualmente, esse é conhecido como o fragmento 7 de Parmênides.
38
“It is extremely hard to find correct terms in which one may say or think that falsehoods have a real existence,
without being caught in a contradiction by the mere utterance of such words” (Cornford 979); “It is extremely
hard to say what form of speech we should to use to say that there is such a thing as false saying or believing, and
moreover to utter this without being caught in verbal conflict”. (White 24)
107
4.4 Análise do Não-Ser
(238a-239a)
A procura de uma resposta a essa questão leva o Estrangeiro de Eléia a uma “pesquisa
extremamente difícil”. Se admitimos que, para mostrar ao sofista que há falsidade nas
opiniões e nos discursos, devemos, de alguma forma, conferir ser ao Não-Ser, então essa
admissão, por sua vez, nos obriga a um estudo profundo de cada um dos termos envolvidos
nela: “ ser” e “não-ser”.
O Estrangeiro começa a pesquisa pelo Não-Ser e pergunta: como responder a alguém
que não soubesse o significado da expressão “Não-Ser”? Que objeto apontaríamos para
indicá-lo? Em relação a que nós usamos a expressão “Não-Ser”? A que objeto podemos
aplicar o predicado (nome) “Não-Ser”? (237c).
O Estrangeiro explica a Teeteto que podemos unir um ser a outro ser, mas não
podemos unir um ser a um Não-Ser. Por exemplo, se Sócrates existe, podemos lhe atribuir
como propriedade outra coisa que existe, como uma barba, mas se Sócrates não existe, como
lhe atribuir um predicado, uma característica, uma propriedade, quaisquer que sejam elas?
Constata-se que o termo “Não-Ser” não pode ser aplicado a qualquer ser que possamos
considerar, seja em pensamento, seja no discurso (
eÎpeîn oÚte dianohjð²na, 238c).
E, além de o Não-Ser não poder ser atribuído como predicado a qualquer ser, também
chega-se à conclusão de que nada pode ser predicado do Não-Ser. Não é possível afirmar, por
exemplo, que o Não-Ser é uno, ou que é múltiplo. Não podemos nem mesmo fazer afirmações
do tipo “o Não-Ser não pode ser pensado em si mesmo”, ou dizer que ele é impensável
(
Âdianóhtón), indizível (Árrhton), impronunciável (Áfðjðe+kton), inexprimível (“incapaz de
ser expresso no discurso” - Álogon) etc, características que o próprio Estrangeiro ia, seguindo
Parmênides (cf. 238c), atribuindo ao Não-Ser. Não é possível fazer qualquer enunciado, falso
108
ou verdadeiro, sobre o Não-Ser. Ou seja, enquanto o filósofo Parmênides dizia, em seu
poema, que sobre o Não-Ser só podemos afirmar o que ele não é, aplicando-lhe alguns poucos
predicados negativos, como “impensável”, “indizível”, etc., Platão, no Sofista, conclui que, se
levarmos a posição de Parmênides até a sua conclusão lógica, absolutamente nada pode ser
afirmado do Não-Ser, nem mesmo que ele não é (238e-239b). Quem tenta falar sobre o Não-
Ser, portanto, não diz nada. Seria mais correto dizer, inclusive, que quem se esforça por
enunciar o Não-Ser nada diz (237e).
4.5 O Problema da falsidade
Além disso, o Estrangeiro afirmou também que, sendo a arte do sofista uma arte da
cópia, ela forma opiniões falsas na alma dos seus ouvintes. Ter uma opinião falsa é ter uma
opinião que é o contrário do que é. Ora, o contrário do que é é o Não-Ser, de modo que a
opinião falsa seria sobre o que não é.
Assim, graças à proibição de Parmênides, o sofista encontra um “refúgio
impenetrável” de onde não pode ser contradito nem refutado. Ao ser caracterizado como um
produtor de imagens e de falsidades, ele pode afirmar que admitir a existência de falsidades,
cópias ou imagens é admitir que Ser e Não-Ser podem se combinar, pois uma cópia não é o
objeto verdadeiro, logo é algo falso, um Não-Ser. Mas falar do Não-Ser e, portanto, de cópias
ou imagens, é impossível segundo a tese de Parmênides que foi discutida e aceita
anteriormente. Portanto, quem fala, como o fazem o Estrangeiro e Teeteto, de discursos
falsos, imagens, cópias, simulacros ou imitações e, ao mesmo tempo, aceita a tese de
Parmênides, cai em contradição.
A análise do conceito de Não-Ser feita pelo Estrangeiro de Eléia termina com a
conclusão paradoxal de que “Parmênides [tornou-se] um aliado dos sofistas” e as suas
afirmações acabam por servir “como fundamento para a concepção contrária” (Souza, 1998,
p.27 e 28, respectivamente)
109
No entanto, Teeteto nota o desconforto cognitivo que causam afirmações como “a
cópia não é o objeto verdadeiro”, “a cópia é algo falso”, “a cópia é um não-ser”, pois nelas
fazemos a atribuição de Ser ao Não-Ser que foi proibida por Parmênides. A linguagem que
usamos nos obrigaria, contra a vontade, a reconhecer que, de alguma forma, o Não-Ser é.
Somos como que forçados a conceber o Não-Ser como, de algum modo, sendo, e a admitir
que haveria um “enlace” de Ser e Não-Ser. Ou seja: a linguagem que usamos nos compromete
precisamente com o que estávamos tentando negar: que o Não-Ser tenha ser (Wilmet, 1990, p.
98).
4.6 As doutrinas do Ser
É necessário, portanto, examinar de forma crítica a tese de Parmênides. O Estrangeiro
quer saber, especificamente, o que exatamente significa a expressão “o que é”, “ser realmente
algo”. “O que entender por esse vocábulo ‘ser’ ”? (244a). Kraut explica que Platão considera
que o esclarecimento dos problemas com a noção de “Não-Ser” envolvem um entendimento
prévio da noção de “Ser” (1992, p. 339). Platão presume que só será possível entender o
significado de Não-Ser, e com isso dar uma solução às aporias dos sofistas, caso se obtenha
previamente um claro entendimento do que significa o conceito de “Ser”.
Para responder a essa questão, Platão passa em revista todas as opiniões e doutrinas
sobre o ser formuladas por outros filósofos. Estas doutrinas se dividem em quatro grupos: (a)
as que afirmam que o Ser é múltiplo, formado pela combinação, separação ou alternância
entre dois ou três princípios; (b) as que afirmam que o Ser é uno; (c) as doutrinas que afirmam
110
que o Ser é um princípio ou uma combinação de princípios materiais e (d) os denominados
“amigos das Idéias”.
(a) Doutrinas pluralistas do Ser
Alguns filósofos postulavam que tudo o que existe é formado pela combinação ou
separação de dois princípios, o úmido e o seco (ou quente e frio). Mas o que significa dizer
que o Todo “é” quente e frio? O que é esse “Ser”? Há duas possibilidades: ou esse “Ser” é
idêntico a um dos dois outros princípios, ou é um terceiro princípio, diferente de ambos. No
primeiro caso, se dizemos, por exemplo, que “o frio é”, então, logicamente, o quente não é e o
Todo (tudo o que existe) não seria formado pela ação de dois princípios diferentes, mas
apenas por um. No segundo caso, se ser é um terceiro princípio independente dos outros dois,
então o Todo é formado por três princípios, não dois. Esta argumentação pode ser aplicada a
qualquer teoria que postule que o Todo é formado por mais de um princípio pois, se dizemos
que o Ser é formado por N princípios, há duas possibilidades: ou ele, o Ser, é idêntico a um
dos princípios (e nesse caso teríamos, na verdade, N-1 princípios) ou é diferente deles, e
teríamos N+1 princípios.
Em ambas os casos temos, novamente, uma contradição entre o que a teoria postula
como característica do Ser e a própria forma de expressá-lo (cf. Wilmet, 1990, p. 98):
afirmação da multiplicidade do Ser implica a refutação da tese de que o Ser é múltiplo.
(b) doutrinas unitárias do Ser
Para os que afirmam que o Ser é um, que não há senão um único Ser, o Estrangeiro
perguntaria se essas duas palavras, “Ser” e “uno”, são usadas para designar o mesmo objeto.
Usar duas palavras para dizer que só há uma única coisa “parece ridículo”, pois é absurdo
admitir a existência de dois nomes, quando se afirma que só há uma coisa. Em uma doutrina
111
unitária, a existência de vários nomes, necessários para expressar a própria doutrina de que o
“Ser é um”, seria inexplicável e contraditória com os seus próprios postulados. Ou o nome é
distinto da coisa que nomeia ou é idêntico a ela. No primeiro caso, há duas coisas, o nome e a
coisa nomeada, e não apenas uma como postula a doutrina em pauta. No segundo caso, ou há
apenas coisas sem nomes, ou há apenas nomes sem coisas, mas nomes sem coisas que nomear
são nomes vazios (244b-244d). Ou seja: dizer que o Ser é uno implica supor uma pluralidade,
e novamente temos uma contradição entre o que a tese expressa e o próprio ato de expressá-la
(cf. Wilmet, 1990, p. 99).
Em resumo, as conclusões desta seção são as seguintes (cf. Souza 1998, p. 30-1):
Se afirmamos que o Ser é uno, essa afirmação já pressupõe dois seres, Ser e Uno, o
que contradiz a afirmação feita. O “ser-uno” não pode sequer ser nomeado, pois toda e
qualquer nomeação implica uma diferença entre o nome e a coisa nomeada: novamente, uma
multiplicidade é implicada na própria afirmação de que só existe o uno.
Afirmação da unidade do Ser exige que tal unidade seja entendida como a unidade de
um todo formado por partes, mas isso contraria a hipótese de que o ser-uno é indivisível. O
único meio de afirmar que o Ser é uno e ao mesmo tempo preservar a sua unidade seria
“transformá-lo em nome de si mesmo”. Mas, neste caso, não haveria conhecimento discursivo
do Ser. Ora, como vimos no capítulo 3, estas são exatamente algumas das aporias da Teoria
das Idéias apontadas por Parmênides no diálogo de mesmo nome.
(c) Materialistas
Os materialistas defendem que só existe ou só é real o que tem um corpo material,
algo que ofereça resistência, possa ser tocado ou percebido pelos sentidos (246a). O
Estrangeiro, inclusive, adota como definição de Ser o que por natureza tem em si um poder
(
dýnamiV) de agir ou de sofrer a ação de qualquer coisa (cf. 247de).
112
Os materialistas, no entanto, têm dificuldade em lidar com a existência de conceitos
abstratos, como “justiça” ou “alma”, coisas que eles admitem existirem mas, evidentemente,
não são visíveis. Além disso, em sua teoria tudo se encontra em constante fluxo e, nesse,
caso, há a dificuldade em explicar como poderíamos conhecer algo.
(d) Amigos das Idéias
Essas dificuldades se aprofundam no último grupo de pensadores que o Estrangeiro
investiga na busca de resposta quanto ao que é o ser: os Amigos das Idéias.
Os Amigos das Idéias, ao contrário dos materialistas, admitem a existência de seres
incorpóreos. Conforme o Estrangeiro, eles separam o devir (isto é, o múltiplo, o mundo
sensível) do Ser e os tratam como distintos. O Ser é imutável, sempre idêntico a si mesmo e
incorpóreo, e o devir varia a cada instante. Só podemos ter contato com o Ser através da alma,
enquanto estamos em relação com o devir através do corpo, da sensação (248a).
O problema com essa doutrina é que, se, pela definição usada pelo Estrangeiro, o Ser é
o que pode sofrer ou causar uma ação, e como conhecer é concebido como uma ação que age
ou sofre a ação do objeto conhecido, o Ser dos Amigos das Idéias, sendo imóvel, não pode
sofrer nem causar nenhuma ação e, portanto, não pode ser objeto do conhecimento: o ser seria
incognoscível (248c-249a).
Por outro lado, se tudo está em devir, isto é, em movimento de alteração, translação,
ou em ambos ao mesmo tempo, não haveria nenhuma estabilidade para o conhecimento
(249bc). Ou seja, em ambas as opções que nos oferecem os Amigos das Idéias, o Ser é imóvel
e o devir varia constantemente, o conhecimento é impossível.
O resultado final dessa pesquisa é que a noção de Ser revelou-se tão problemática
quanto a noção de Não-Ser, e o Estrangeiro e seus interlocutores agora encontram-se em
aporia em relação aos dois conceitos (Ísou tó te Òn ka˜ tò m# Òn ÂporíaV 250e).
113
Como sair dessa aporia?
Como tentamos mostrar, nos capítulos iniciais desta tese, as concepções de Ser dos
sofistas e do filósofo Parmênides, mesmo que opostas, levavam a conclusões (impossibilidade
de dizer o falso, impossibilidade de contradizer, impossibilidade da predicação) que tornavam
a linguagem impossível. Isso equivale a dizer que as concepções de Ser dos sofistas e
Parmênides não dão conta do fenômeno da linguagem significativa. O diagnóstico de Platão é
que isso ocorre justamente por causa da proibição de Ser e Não-Ser se combinarem pois,
quando consideramos cada um deles isoladamente, surgem paradoxos e contradições. Mas os
sofistas e Parmênides mostraram que combinar Ser e Não-Ser também leva a paradoxos.
Como resolver essa questão?
4.7 Como algo pode ter vários nomes: a sumplokê eidolon
Lembremos que a noção de Ser foi analisada em busca da possibilidade de combiná-la
com a de Não-Ser, o que permitiria ao Estrangeiro falar em imagens e cópias, sem ser acusado
pelos sofistas de estar se contradizendo, pois para isso seria necessário aceitar que Ser e Não-
Ser podem combinar-se. Embora tenhamos chegado à conclusão negativa de que o Ser seria
incognoscível, ao longo da pesquisa também ficou claro que a própria postulação das teses
sobre o Ser ou sobre o Não-Ser pressupõe como condição necessária que Ser e Não-Ser se
combinam. Isso é demonstrado pelo Estrangeiro por via negativa: as tentativas de afirmar o
Ser ou o Não-Ser de forma absoluta levam a quem faz a afirmação a se contradizer, pois o
conteúdo do que é afirmado é negado pelo próprio fato de ter sido possível dizê-lo: não
podemos dizer que o Ser é uno sem com isso estarmos afirmando uma pluralidade; não
podemos negar a existência do Não-Ser sem, de algum modo, supor que existe algo que não é.
114
Ou seja, repetindo a feliz expressão de Wilmet citada acima, a linguagem que usamos nos
compromete precisamente com o que estávamos tentando negar (1990, p. 98).
Para Platão, o problema está nas teorias, não na linguagem. Nós fazemos, na
linguagem, as combinações que as teorias estudadas declaram serem impossíveis. A
conclusão a que Platão chega é que, para sair dos impasses gerados pelas teorias examinadas,
entre as quais se inclui a sua própria Teoria das Idéias, é necessário usar a linguagem como
paradigma, para se entender como Ser, Não-Ser e os outros gêneros metafísicos se combinam
e se inter-relacionam.
Por isso, o Estrangeiro continua sua exposição tentando explicar como é possível
designar uma mesma coisa com vários nomes.
Ao falarmos do "homem" damos-lhe múltiplas denominações.
Atribuímos-lhe cores, formas, grandezas, vícios e virtudes; em todos esses
atributos, como em inúmeros outros, não afirmamos apenas a existência do
homem, mas ainda do bom, e outras qualificações em número ilimitado. O
mesmo se dá com todos os objetos: afirmamos, igualmente, que, cada um
deles é um, para logo a seguir considerá-lo múltiplo e designá-lo por uma
multiplicidade de nomes (251a-b).
Estando perplexo sobre o que se relaciona com o Não-Ser, Platão nota que, porém, nós
fazemos tais relacionamentos quando usamos a linguagem cotidianamente. Atribuímos a
“homem”, por exemplo, diversas características e qualidades (cor, forma, tamanho, vícios,
virtudes) afirmando assim não apenas que o homem é, mas também que tais características
são e, além disso, que a relação entre tais características e o homem também é. Na linguagem,
o uno é múltiplo e o múltiplo é uno.
Mas existem certas regras que usamos implicitamente quando falamos, e o Estrangeiro
as explicita e usa para explicar como as Idéias ou gêneros mais importantes podem se
combinar sem que surjam os paradoxos sofistas.
115
Existem três possibilidades: 1) as Idéias podem associar-se entre si livremente; 2) as
Idéias não podem associar-se de nenhuma maneira; 3) algumas Idéias podem associar-se com
algumas Idéias, mas não com outras (nem todas as combinações associativas são permitidas).
1) Nenhuma Idéia pode se combinar com qualquer outra;
Nesse caso, Movimento e Repouso não poderiam combinar-se entre si, mas também
não poderiam combinar-se com o Ser, de modo que ficariam “excluídos da existência” e essa
conclusão, que Movimento e Repouso não existiriam, é considerada absurda.
Além disso, caso nada possa associar-se com nada, todas as teorias sobre o Ser
examinadas anteriormente (pluralistas, materialistas, eleáticos, heraclitianos e os amigos das
Idéias), teorias que afirmam que o Ser é móvel, que o Ser é imóvel e imutável, ou é uno, ou é
múltiplo formado por infinitos ou finitos elementos, ou que o Ser é devir causado pela
coexistência ou alternância de opostos, em suma, qualquer teoria que diga que o Ser é algo,
“afirmam falso” (lægoien oüdæn), isto é, dizem algo sem sentido (252a-b).
A tese de que as Idéias não podem combinar-se entre si, como diz o Estrangeiro, não
precisa ser refutada por alguém de fora, mas “aloja em si seu inimigo”, isto é, ela se auto-
refuta, pois, no ato de formulá-la, já se estão combinando termos diferentes, de modo que os
que afirmam a impossibilidade da mistura na verdade pressupõem-na ela em sua própria
afirmação (252c).
2) Cada Idéia pode combinar-se com qualquer outra; não há qualquer restrição para a
combinação das Idéias entre si.
Teeteto rapidamente constata que, nessa hipótese, o Movimento poderia se associar ao
Repouso, de modo que o Movimento estaria em Repouso absoluto e o Repouso estaria em
Movimento absoluto, ou o Repouso seria Movimento e o Movimento seria Repouso, e essa
possibilidade deve ser descartada por afirmar “o mais alto grau de impossibilidade”, já que
Movimento e Repouso são contrários absolutos (252d).
116
3) Eliminadas as duas primeiras hipóteses, resta a terceira: certas Idéias se combinam
entre si, enquanto outras não se combinam. Este seria um caso análogo ao da combinação das
letras na formação das palavras e das palavras na formação de frases: algumas combinações
são válidas, outras são inválidas.
Para Platão, o fato de que uma frase em que se afirma que A é B seja uma contradição
(impossibilidade lógica) é a base para se concluir que a Idéia A não pode combinar-se com a
Idéia B. A proibição de que qualquer Idéia se combine com qualquer outra é fundamentada no
fato de que uma afirmação que usasse tal combinação expressaria uma contradição (cf.
Ackrill, 1997, p.74). A tese de que nenhuma Idéia se combina com nenhuma outra se auto-
refuta porque, para ter significado, ela pressupõe, no ato de proferi-la, que certas Idéias se
combinam.
Se a tese de que qualquer Idéia se combina com qualquer outra e a tese de que
nenhuma Idéia se combina com nenhuma outra são descartadas pelos motivos acima, conclui-
se que algumas Idéias podem combinar-se com outras, enquanto outras não podem. Ou seja,
há combinação de Idéias, mas não é qualquer combinação que é permitida. Mas, além de
chegar a essa conclusão por via negativa (eliminação das outras hipóteses), o Estrangeiro
também procura oferecer aspectos positivos para defendê-la. A conclusão de que certas Idéias
podem se combinar e outras não podem é tirada do fato cotidiano de que algumas frases tem
significado, enquanto outras não têm. Frases que afirmam uma contradição, ou frases, que ao
negar algo, pressupõe o que é negado, são consideradas pelo estrangeiro como frases sem
sentido, que não dizem nada. (cf. Ackrill, 1997, p.75). Ora, a linguagem apresenta uma
infinidade de afirmações que não caem em nenhum destes dois casos: são frases significativas
que dizem algo que é sobre o que é. Portanto, o fato de que certas expressões são
significativas é tomado como prova de que certas Idéias se combinam (cf. Ackrill, 1997,
p.75).
117
4.8 Os gêneros “mais importantes” (Mægista genvn)
O Estrangeiro deixa claro que o estudo que se segue sobre as relações combinatórias
entre os gêneros refere-se a um pequeno número deles que são, no entanto, os mais
importantes.
As primeiras constatações do Estrangeiro são que o Repouso (stásin) e o
Movimento (kínhsin) não podem se associar (meiktòn) pois são opostos absolutos. Já o Ser
(Òn) se associa ao Repouso e ao Movimento, pois tanto o Repouso quanto o Movimento
“são”, isto é, existem. Além disso, cada um, Movimento e Repouso, é Outro ((éteron) em
relação aos dois outros gêneros e é o Mesmo (taütòn) que si próprio (254d).
Mas qual é significado desses novos termos introduzidos, “Mesmo” e “Outro”? São
realmente dois gêneros distintos ou são apenas dois nomes (Ônómata) diferentes que usamos
para indicar algum dos gêneros anteriores, Ser, Movimento ou Repouso? (254e-255a).
Nem o Repouso nem o Movimento podem ser identificados, seja com o Mesmo, seja
com o Outro, pois, em qualquer caso, o Movimento ficaria em Repouso e o Repouso em
Movimento (kínhsíV te st®setai ka˜ stásiV aÜ kinhjð®setai). Dizer que o
Movimento é o seu outro equivaleria a dizer que ele é Repouso, o que é o mesmo que dizer
que Movimento é o mesmo que Repouso. A aplicação dos termos Outro (ou Mesmo) a
Movimento ou a Repouso alteraria a natureza (fðýsewV) dos gêneros em questão em seu
contrário (255a). Portanto, Mesmo e Outro são gêneros diferentes de Repouso e Movimento,
embora Repouso e Movimento participem (metæcðeton), ambos, do Mesmo e do Outro,
permanecendo associados necessariamente a eles (255b).
Ser e Mesmo são diferentes: Repouso e Movimento são, ambos, ser. Mas, quando
dizemos que ambos “são”, não queremos com isso afirmar que são idênticos, que Repouso é o
mesmo que Movimento ou que Movimento é o mesmo que Repouso. Usamos estes dois
118
termos, “é” e “mesmo”, para expressar idéias diferentes. Portanto, o Mesmo é uma quarta
Idéia (255bc).
Por fim, o Estrangeiro mostra que os gêneros Ser e Outro são diferentes. Alguns seres
se dizem por si (kajð) /autá), enquanto alguns seres se dizem em relação a outros (pròV
Álla). O Outro se diz em relação a outros e Ser se diz em si mesmo. Logo, Ser e Outro são
diferentes, e o Outro é a quinta Idéia (255cd).
O Outro se associa com todas as Idéias: cada uma das Idéias é outra em relação ao
resto, mas não em virtude de sua própria natureza, mas por participação na Idéia do Outro
(255e).
O Estrangeiro resume os resultados obtidos até aqui, da seguinte forma (cf. Trevaskis,
p. 101):
1) o Movimento é “absolutamente outro” que o Repouso (quer dizer: Movimento não
é Repouso) (255e14);
2) o Movimento é (= existe, por participar no Ser) (256a2);
3) o Movimento é outro que o Mesmo. Ele não é o Mesmo (256a5);
4) mas Movimento também é o Mesmo, pois tudo participa do Mesmo: Movimento é
o Mesmo (que si próprio) (256a7);
5) Movimento não é o Outro (256c8);
6) o Movimento é Outro (que outra coisa) (256c8);
7) o Movimento é Outro em certa relação, e não é Outro em outra relação.
Portanto, a conclusão a que se chega é que podemos dizer que o Movimento não é
(256d8) e também podemos afirmar que o Movimento é (256d9). Essas afirmações não são
contraditórias, porque, em cada caso, o Movimento é dito em diferentes relações. O
Movimento é o Mesmo que si próprio e não é o Mesmo que o Outro. Em si, o Movimento
participa do Mesmo e, em relação às outras coisas, que não são ele, o Movimento participa do
119
Outro. Como o Outro e o Mesmo são contrários, quando o Movimento participa de um deles,
fica separado do Outro: se participa do Mesmo, fica separado do Outro, e se participa do
Outro, então é separado do Mesmo. Quando o Movimento está separado do Mesmo e
participa do Outro, ele é um “não-o-Mesmo”. Por isso, podemos afirmar que Movimento é
um “não-o-Mesmo”, atribuindo-lhe umo-Ser, sem estarmos nos contradizendo ou
afirmando algo sem sentido, pois dizer que o Movimento é um “não-o-Mesmo” é dizer que
ele é Outro que o Mesmo (256ab).
Pelos mesmos motivos podemos afirmar, de forma análoga, que o Movimento é Outro
que o Ser; portanto, o Movimento é um Não-Ser. Assim, graças ao fato de os gêneros se
prestarem a algumas associações e a outras não, é possível demonstrar também que “há um
Ser do Não-Ser”: o Outro, como vimos, se associa com todas as Idéias, pois cada Idéia é outra
em relação às outras, faz cada uma delas um Não-Ser, pois todas são outras em relação ao Ser.
Assim, o Estrangeiro pode concluir que “estaremos certos, se dissermos que todas elas não-
são (...) e, por outro lado, também estaremos certos, se as chamarmos seres, pois todas
participam do Ser” (256e).
4.9 O Não-Ser como Outro
A solução do problema do Não-ser consiste, em linguagem contemporânea, em tratar a
negação, não como contraditória, mas como oposta ao Ser. Platão estabelece uma concepção
de Não-Ser como Outro em relação a uma forma determinada. O Não-Ser que, para
Parmênides e os sofistas, era entendido como a negação da existência de algo, privação de
Ser, afirmação da ausência de Ser etc., é concebido, nesta passagem do Sofista, como o
conceito que usamos para nos referirmos a qualquer coisa que seja Outro (diferente) do Ser:
“quando falamos no Não-Ser, não nos referimos a algo contrário ao ser, mas apenas a
qualquer outra coisa diferente do ser” (257b; 258b). O não-amarelo, por exemplo, não é a
120
negação absoluta da existência do amarelo e, portanto, refere-se a um não ser, mas indica que
tudo o que não é amarelo é diferente do amarelo, isto é, o azul, o cavalo, a terra, etc. Por isso,
o Estrangeiro diz que cada Idéia tem (participa de) “uma quantidade infinita de Não-Seres”
(256e).
Nesse esquema, o não-belo, por exemplo, participa do gênero Outro em relação ao
belo: como o gênero Outro participa do Ser, o não-belo também participa do Ser, portanto, o
não-belo “é”. Dessa maneira, inclusive a forma do Não-Ser pode se combinar com a forma do
Ser, pois o Não-Ser é o Outro do Ser (tudo o que não é idêntico ao Ser embora tenha ser e não
a negação do Ser.
Em resumo:
As Idéias se associam umas com as outras.
Ser e Outro penetram, impregnam, espalham-se através de tudo e se penetram um ao
outro.
O Outro participa do Ser e, por essa participação, é, mas, por outro lado, não é aquilo
do que participa (não é o Ser): o Outro é, necessariamente, diferente dele. Se o Outro é outro
que o Ser, ele é um Não-Ser.
Por outro lado, o Ser participa no Outro, pois é diferente de todas as outras Idéias, não
é nenhuma delas. Sendo Outro que não elas todas, o Ser também não é. De modo que o Ser
“milhares e milhares de vezes” não é.
Por fim, o que vale para o Ser e para o Outro vale também para todas as outras Idéias:
elas de muitas maneiras são e de muitas (outras) maneiras não são (259ab).
Garantindo-se que se possa pensar sem contradição o entrelaçamento de Ser e Não-ser
(concebido como Outro), garante-se também a existência das imagens, cópias, e simulacros.
A imagem, cópia do original, seria justamente algo intermediário entre o Ser e Não-Ser, pois
ela é (tem existência própria), mas, por outro lado, ela não é o original. Desta forma, a
121
sofística também pode ser caracterizada como a “arte da contradição fundada apenas na
opinião, produtora de simulacros e ilusões por meio do discurso” (268d).
4.10 A comunhão das Idéias e o discurso
Tendo estabelecido que o Não-Ser é uma Idéia determinada que existe, o Estrangeiro
passa a aplicar esse resultado ao problema que está investigando: a questão da falsidade e da
existência de imagens e cópias. Como vimos, os sofistas, baseados em Parmênides,
afirmavam que não é possível dizer algo falso, pois isso equivale a dizer o que não é e dizer o
que não é seria não dizer nada. Na tese de Parmênides, o Não-Ser não tem relação com o Ser
(cf. 260d), e, embora o Estrangeiro tenha mostrado que o Não-Ser participa do Ser, o sofista
ainda poderia argumentar que a opinião e o discurso (lo/goj), no entanto, não têm qualquer
participação no Não-Ser. Se esse for o caso, isto é, se o discurso lo/goj tem relação
unicamente com o Ser, então caímos na tese de que qualquer afirmação é verdadeira (260a).
O Estrangeiro tenta mostrar que o discurso (lo/goj) pode participar do Não-Ser com
as seguintes observações:
Assim como as letras, os nomes podem ser combinados, mas não de forma livre. O
critério, para saber se certos nomes podem ser combinados ou não, é o seguinte: se a
combinação diz algo com significado, então os nomes foram bem-combinados; se, ao
contrário, uma combinação de nomes não significa nada, então esses nomes não podem ser
colocados juntos (261d).
Para ser significativo, todo o discurso (lo/goj) deve ser formado, necessariamente, por
dois elementos: nomes e verbos. Os verbos expressam ações, enquanto os nomes se referem
aos sujeitos que realizam essas ações. Uma seqüência de palavras que fosse formada
unicamente por verbos ou apenas por nomes não formaria um discurso. Para o Estrangeiro, só
há discurso, quando há o entrelaçamento de nomes e verbos, isto é, quando uma frase indica
122
que uma ação está sendo realizada (ou não) por alguém, ou afirma a existência de algo que é
ou que não é. Um discurso não nomeia simplesmente algo, mas discorre, expressa, expõe,
relata, declara, afirma, etc., algo (262d).
Uma sentença corretamente formada (isto é, com significado) pode ter duas
qualidades: ser verdadeira se diz as coisas tais como elas são, ou falsa. A sentença falsa diz
aquilo que não é. Mas como o Estrangeiro mostrou anteriormente que “Não-Ser” não tem
apenas o significado de não-existente, mas também de algo outro ou diferente em relação ao
que é, o discurso falso é entendido agora, não como o discurso que nega a existência do Ser
sobre o qual fala, mas sim o que afirma outra coisa que não a que é o caso.
O resultado a que o Estrangeiro chega é que uma sentença, mesmo sendo falsa, nem
por isso deixa de ter significado. Os critérios para que um lo/goj tenha significado são
diferentes e independentes dos critérios pelos quais uma sentença é verdadeira ou falsa. Os
sofistas confundiam esses dois critérios, acreditando que, se uma afirmação é falsa, ela diz o
que não-é e, portanto, não tem sentido. Como vimos, essa confusão baseia-se em outra: a
identificação de ser com existência e a correspondente identificação de Não-Ser com não-
existência, que levou os sofistas a concluírem pela a falta de sentido em se falar de falsidades
pois falar e, ao mesmo tempo, não dizer nada é contraditório. O Estrangeiro, desfazendo essa
segunda confusão, ao mostrar que dizer o falso é dizer outra coisa do que é o fato, também
desfaz a primeira: mesmo que uma afirmação seja falsa, ainda assim ela pode ter significado,
pois nós podemos compreender o que é dito, mesmo quando o que é dito afirma que algo não
é o caso, desde que a sentença seja constituída por uma apropriada combinação ou
entrelaçamento de nomes e verbos.
Por exemplo, a afirmação “Teeteto está sentado” preenche com sucesso ambas as
condições: é significativa (é formada por nomes e verbos) e é verdadeira, pois diz o que é,
representando um determinado fato corretamente. Já a sentença “Teeteto voa” é, segundo os
123
mesmo critérios, significativa, porém falsa, pois diz o que não é, ou seja, diz outra coisa em
relação ao que realmente ocorre.
Nuchelmans (1973, p. 17) e McDowell (1973, p. 235) acreditam que a solução de
Platão consiste em mostrar que todo lo/goj é formado por partes (os nomes e verbos
combinados) e que, sendo assim, no caso de uma afirmação falsa, apenas uma parte do lo/goj
seria mal-aplicada. Por exemplo, na frase “Teeteto voa”, o nome “Teeteto” está bem-aplicado
ao personagem que designa e, embora o verbo “voa” seja mal-aplicado
39
, o lo/goj como um
todo tem significado porque parte dele se refere a algo. Assim, um lo/goj poderia ser falso
sem deixar de se referir ao o objeto em questão (em nosso exemplo, Teeteto).
Mas nós acreditamos que esse não é o caso. Um lo/goj pode ter ambas as partes mal-
aplicadas, sendo completamente falso, e ainda assim ser significativo, pois a falsidade ou
verdade de um lo/goj é um caso de correspondência de suas partes com os objetos que eles
designam, enquanto que a significabilidade de um lo/goj é um caso de sua correta formação.
Platão estabelece uma distinção entre dois níveis de linguagem: o nível do nomear e o
nível do lo/goj. No nível do nomear, usam-se verbos para indicar ações ou estados e nomes
para referir coisas ou sujeitos que realizam ou sofrem ações ou estão em determinado estado.
No nível do lo/goj, nomes e verbos são unidos e relacionados de modo a formarem uma
unidade. Nesse nível, afirma-se que algo é ou não é o caso, atribuindo propriedades, estados
ou ações a determinado objeto (caso o objeto em questão não tenha a propriedade, não esteja
no estado ou realizando a ação indicada, o lo/goj é falso) (Nuchelmans, 1973, p. 14).
Com a distinção entre nomear e afirmar um lo/goj, Platão separa também duas
questões diferentes: a questão sobre se os objetos referidos ao nível da nomeação existem ou
não e a questão se os fatos ou estados de coisas afirmados no nível do lo/goj correspondem
39
Retomando o exemplo do Crátilo, assim como aproximamos um retrato de alguém, aproximamos as palavras
das coisas – se o retrato não é da pessoa à qual o atribuímos houve um engano de atribuição; analogamente, se
aplicamos a palavra errada a um objeto, a palavra foi mal-aplicada.
124
ou não ao que é afirmado (cf. Nuchelmans, 1973, p.18). O crucial é que, se no nível dos
nomes os objetos referidos não existirem, mesmo assim o lo/goj, se bem-construído, terá
significado, pois esse significado é garantido pela correta combinação dos nomes e verbos.
Portanto, “o lo/goj é o significado de uma afirmação constituída pela combinação de
verbos e nomes e que pode ser verdadeira ou falsa” (Nuchelmans, 1973, p. 13). Isto nos leva a
uma última observação. Como vimos, Platão afirmou que uma sentença é corretamente
formada através da combinação de nomes e verbos mas, além de afirmar que, se essa
combinação é significativa, então é uma combinação apropriada, ele nada diz sobre quais
seriam as regras que regeriam essas combinações. Existiriam leis que mostrariam claramente
quais Idéias podem combinar-se e quais não? É natural pensar, em se tratando da significação
da linguagem, que tais regras seriam as prescritas pela gramática da língua grega. Mas vimos
que Platão chega aos seus resultados pelo estudo, não da gramática, mas do significado dos
grandes gêneros metafísicos, tais como Ser, Não-Ser, Movimento, Repouso, Outro e Mesmo.
É a rede de relações que esses gêneros formam que explicita as possibilidades do discurso
significativo. Ou seja, como diz Soulez (1991, p. 19), as regras de associação dos gêneros
supremos são como que
as leis lógicas (necessárias) que espelham (imitam) a estrutura do mundo e, portanto,
garantem, por meio do seu conhecimento, que o homem entenda o universo em que vive.
Se a nossa interpretação do Sofista e sua importância para a filosofia da linguagem de
Platão está correta, Platão aplica esses resultados no diálogo Timeu, a cujo estudo passamos
agora.
125
Considerações Finais
O Timeu e a linguagem como analogia
Com uma persistência que beira o absurdo, a forma
predominante de interpretação pela qual Platão tem sido
apresentado defende uma teoria dos dois mundos, isto é, a
separação completa do mundo paradigmático das Idéias do
fluxo e da constante mudança [que percebemos] na nossa
experiência do mundo sensível. Idéia e realidade seriam como
dois mundos separados por um hiato, e a relação entre ele
resultaria obscura (Gadamer, 1980, p. 156).
No Timeu Platão apresenta a sua cosmologia, isto é, uma Teoria da origem e da
organização do mundo sensível, justamente o aspecto do real sobre o qual ele havia afirmado,
em diálogos como A República e o Fédon, não ser possível termos conhecimento. Como isso
é possível? Como vimos, o próprio Platão submeteu da sua Teoria a uma dura autocrítica no
diálogo Parmênides, de modo que os diálogos posteriores ao Parmênides, como o Teeteto, o
126
Sofista, o Político e o Filebo, podem ser lidos como tentativas renovadas (e provavelmente
inconclusivas) de corrigir e superar essa e outras aporias da Teoria das Idéias
40
. Ou seja,
Platão alterou a sua concepção da Teoria da Idéias e da relação destas com o mundo sensível.
Estas alterações tornam-se mais evidentes quando consideramos o papel da linguagem no
Timeu. A linguagem funciona como o intermediário ontológico entre o reino das Idéias e o
mundo sensível, sendo uma imagem do primeiro, imagem entendida aqui como o termo que
serve de medida comum entre dois extremos e mantém, assim, corretamente a proporção entre
ambos.
A analogia como princípio estrutural do mundo
Platão inicia a seção cosmológica do Timeu (27d ss), fazendo uma distinção entre o
que sempre existiu, nunca teve um princípio e permanece sempre igual a si mesmo, e o que
devém e nunca é, a todo instante nasce e perece sem nunca ser verdadeiramente. O primeiro é
apreendido unicamente pela inteligência ajudada pela razão, enquanto o segundo é apreendido
pela opinião “carecente de razão” com a ajuda da sensação (27d-28a; também 52a).
Em qual dessas duas categorias se encontra o universo visível, objeto do estudo do
Timeu? Ele é visível e tangível e, portanto, pertence às coisas que devêm. Tudo o que devém
deve ter tido um início, deve ter nascido em determinado instante e, portanto, deve ter uma
causa (28a). A causa do universo é um Demiurgo (artesão) divino, benevolente e sem inveja,
que deseja que todas as coisas participem da sua perfeição (29e).
A função desse Demiurgo é organizar uma matéria préexistente, a chôra
(Receptáculo), uma substância que não tem nenhuma qualidade determinada, é invisível, está
em constante movimento e é concebida como sendo, ao mesmo tempo, o lugar onde as coisas
40
Uma das conclusões do diálogo Teeteto, por exemplo, seria que a separação entre mundo das Idéias e sensível
tornaria impossível a explicação do erro.
127
estão (espaço) e a origem de onde todas as coisas provêm e na qual se dissipam. O Demiurgo,
usando como paradigma a ser imitado a Idéia do “Animal Eterno” ou “Vivente em Si”, impõe
ordem a essa matéria sem forma colocando nela uma alma e dotando essa alma de
inteligência.
41
Esta Alma do Mundo é organizada pelo Demiurgo da seguinte maneira:
Da combinação de uma substância indivisível que é sempre a mesma
e a divisível que nasce nos corpos, [o Demiurgo] compôs uma terceira, uma
espécie de substância intermediária. Por outro lado, no que diz respeito à
natureza do Mesmo e do Outro, compôs também uma espécie intermediária
entre a substância indivisível e a substância divisível. A seguir, tomando os
três, reuniu-os numa Idéia única, forçando com isso a difícil natureza do
Outro a se misturar com o Mesmo
(Timeu, 35a).
A Alma do Mundo é formada por uma dupla mescla: primeiramente, Ser indivisível
mesclado com Ser divisível resulta no Ser Intermediário; Mesmo indivisível mesclado com
Mesmo divisível resulta no Mesmo Intermediário; Outro indivisível mesclado com Outro
divisível resulta no Outro Intermediário; por fim, o Demiurgo ainda mescla o resultado destas
misturas (Ser, Outro e Mesmo Intermediários), para obter a Alma do Mundo.
Essa passagem torna-se compreensível, se levarmos em consideração os resultados
alcançados por Platão no Sofista. Nesse diálogo, Platão procura demonstrar que os seres
devem ser considerados simultaneamente sob o duplo aspecto da sua unidade em relação a si
mesmos e em sua diferença relativa às outras coisas. A Idéia de Mesa, por exemplo, tem uma
unidade em si própria, na medida em que se diferencia das outras Idéias, mas também é
múltipla, pois pode se instanciar em diferentes mesas concretas, cada uma com suas
diferenças específicas. Uma mesa concreta, por outro lado, tem uma unidade em si por se
41
Para os gregos, a alma é princípio de movimento espontâneo característico dos seres vivos (cf. Fedro 245cd).
Todos os seres vivos têm como característica marcante a capacidade de se autolocomoverem, e um ser vivo,
quando morre, torna-se algo inerte. Portanto, foi natural, para os pensadores gregos, identificarem vida e
movimento, e eles chamaram o principio que caracteriza os seres vivos de alma. E como o universo (o céu, as
estrelas e os planetas) está em movimento, concluíram que ele deve ter uma alma. Assim, o movimento do
universo é autogerado, é uma propriedade intrínseca a ele,o foi imposto de fora pelo Demiurgo que apenas
organiza o movimento já existente na matéria.
128
diferenciar do resto dos objetos que não são mesas, mas também é semelhante a outras mesas
concretas.
Assim, na terminologia do Timeu, Ser, Mesmo e Outro indivisíveis seriam as Idéias e
os aspectos dos seres consideradas em sua unidade; Ser, Mesmo e Outro divisíveis seriam os
aspectos das Idéias e dos seres considerados em sua multiplicidade (Ser, Mesmo e Outro
podem se instanciar de diferentes maneiras), e a mescla intermediária expressaria a
combinação de uno e múltiplo da qual é formado o universo e que é necessária para a sua
inteligibilidade, como veremos a seguir.
Portanto, constatamos que, no Timeu, para explicar a relação entre Idéias e mundo
sensível, Platão abandona a metáfora da participação (methexis), dominante nos diálogos do
período médio (especialmente na República e no Fédon) e duramente criticada no Parmênides
(131a-e) e passa a considerar essa relação como formada por uma mistura proporcional e
harmônica de elementos diferentes.
Mas o que significa uma mistura ser proporcional? Na matemática, a proporção é uma
relação entre dois termos A e C tal que eles são proporcionais entre si se há um terceiro termo
B que pode ser colocado em relação tanto com A quanto com C. B serve, portanto, de
“intermediário” ou elo de ligação entre A e C, e dizemos que A está para B assim como B está
para C (A:B::B:C). Como Platão expressa no Timeu:
Mas não é possível que dois termos sozinhos se combinem belamente sem um
terceiro, pois se requer que no meio de ambos haja algum vínculo que os conecte. Bem,
o mais belo dos vínculos é aquele que faz de si mesmo e dos termos por ele vinculados
a maior unidade possível, e a proporção (analogia) é por natureza o que leva a cabo
isto de maneira perfeita. Sempre que de três números, sejam sólidos ou planos, o
primeiro está para o termo médio (meson) como o termo médio está para o último ou,
em sentido inverso, o último está para o termo médio como esse está para o primeiro,
de tal forma que o termo médio torna-se, alternadamente, primeiro ou último, e o
primeiro e o último, por sua vez, se tornam termos médios: donde segue-se,
129
necessariamente, que todos os termos cumprem a mesma função entre si e essa relação
de identidade recíproca faz a todos serem um
(Timeu 31c-32a).
Quer dizer, na proporção, as relações entre A e B, B e C e A e C são intercambiáveis
de tal modo que B, o termo médio, pode fazer o papel de A ou de C e estes, por sua vez,
podem funcionar alternadamente como termos médios: a relação A:B::B:C também pode ser
escrita B:A::C:B.
42
Portanto, a analogia permite fazer uma relação entre dois termos diferentes, graças à
existência de um termo intermediário que introduz uma medida comum (summetria) entre
eles. Essa mescla proporcional é chamada também de harmonia que, na definição de Rivaud,
“é o que aproxima e mantém unidos, em detrimento das suas oposições, os elementos
contrários dos quais as coisas são formadas”.
Queremos mostrar, a seguir, que a analogia tem também um importante papel na
concepção de linguagem no Timeu e no da relação entre o mundo sensível e o mundo das
Idéias.
A linguagem como analogia
No Timeu, Platão tem que lidar com um duplo problema: o estado atual do mundo,
sujeito à alteração e à mudança, e a inacessibilidade dos princípios que organizam esse
mundo.
Como já vimos, para Platão, o mundo sensível está em um constante processo de
alteração e mudança, é o domínio do real no qual “todas as coisas se transformam e nada
permanece fixo” (Crátilo, 440a), e, justamente por esse motivo, não é possível termos
conhecimento dele, já que, se as coisas fluem, nós não podemos nomear nada: quando
42
A teoria matemática das proporções foi desenvolvida pelo matemático Eudoxo, contemporâneo de Platão e
associado à Academia.
130
chamamos algo de branco, durante o intervalo de tempo que gastamos para pronunciar a
palavra “branco”, ele já terá fluído para uma cor diferente (cf. Teeteto, 182c-d).
Mas se a linguagem apresenta uma fixidez que não permite captar a mobilidade do
real, ela própria também está sujeita a alterações: as palavras, com o passar do tempo, são
alteradas pela adição, supressão, transposição ou substituição de letras (Crátilo, 394b). Platão
admite que existe uma grande dose de convencionalismo no nosso uso da linguagem, pois em
regra os nomes são atribuídos a certos objetos levando-se em consideração critérios de beleza
ou comodidade da pronúncia, e nada impede que possamos relacionar qualquer nome a
qualquer coisa. Quer dizer, a linguagem também não tem fixidez (Crátilo, 414e) e, sendo
assim, ela é um instrumento inadequado para captar o mundo das Idéias, que são eternas,
imutáveis, imóveis, etc.
Esta dupla fraqueza da linguagem torna o status epistemológico do Timeu bastante
interessante. Em nada menos do que em 17 passagens, somos avisados reiteradamente que a
descrição de mundo aí apresentada é um eikós lógos ou mesmo um eikós mythos,
43
um
discurso (ou mito) apenas verossímil ou provável, não conhecimento ou ciência (epistéme),
que, portanto, pode ser ou verdadeiro ou falso e está sujeito a correções.
Os comentaristas observam corretamente que o status provável do discurso de Timeu
deve-se ao assunto tratado, isto é, à descrição do mundo sensível, sempre em devir e
movimento, constantemente passando do ser ao não-ser e vice-versa, e do qual, por isso, não
podemos obter um conhecimento exato e infalível, mas apenas uma opinião provável. Mas o
que tem sido menos observado é que, na concepção de Platão, a linguagem também possui
43
Eikós lógos: 29c; 30b; 40e; 48d; 53d; 55d; 56a; 56b; 57d; 59d; 68b; 90e. Eikós mythos: 29d; 59c; 68d. Mito é
uma mensagem tradicional, um relato, uma reunião de fatos que ocorreram em uma origem fora do tempo e
cujos protagonistas são seres sobrenaturais (deuses, heróis) que realizam ações extraordinárias que produzem ou
organizam o mundo ou algum novo aspecto nele. É uma história considerada verdadeira, graças ao fato de ser
um relato muito antigo e ao prestígio de quem narra. No Timeu Platão não usa “mito” no sentido pejorativo
tradicional, já presente entre os gregos, de uma história inverossímil (como em Sofista 242c: “histórias para
crianças”). A diferença é que o relato de Timeu, apesar de se referir à origem do universo, baseia a sua correção,
não na autoridade de personagens ilustres do passado, que lhe teriam transmitido essa história, mas em seus
próprios estudos (27d).
131
uma limitação inerente em expressar os princípios que organizam e dão alguma
inteligibilidade ao mundo. Estes princípios são entidades abstratas fixas, eternas e imóveis e
inacessíveis aos sentidos, como Platão afirma no Político 285e-286a:
As maiores e mais preciosas realidades não possuem imagens criadas que dêem
aos homens uma intuição clara, imagens que apontaríamos quando quiséssemos
satisfazer a alma que nos interroga (...). Assim é necessário procurarmos saber dar
razão de cada coisa e compreendê-la, pois as realidades incorpóreas, que são as
maiores e as mais belas, revelam-se à razão e somente a ela.
Mas, nesse caso, o que garante que o discurso do Timeu não seja apenas uma
concatenação de palavras sem nenhuma ligação com o objeto descrito, seja o mundo sensível,
seja o mundo das Idéias?
Para responder a essa pergunta, vejamos de forma mais detalhada como Platão
concebia a ligação entre a linguagem e esses dois mundos.
No Crátilo, a linguagem nomeia objetos que estão no mundo, mas nome e objeto são
independentes (430a). Como é possível, nesse caso, estabelecer uma relação entre as palavras
e seus respectivos objetos no mundo? Para isso, deve-se, primeiro, decompor os nomes em
suas sílabas constituintes e essas sílabas em letras, até se chegar aos elementos constituintes
primitivos da linguagem; segundo, proceder a uma classificação dos objetos do mundo em
gêneros e espécies, agrupando-os segundo suas semelhanças; por fim, relacionar as letras aos
objetos e depois combiná-las formando sílabas que, reunidas, formam os nomes e verbos que
formam, por sua vez, o discurso (426c-427d).
Mas como se dá, efetivamente, a relação entre as letras e os objetos?
Essa relação seria uma relação de imitação (mímesis): as palavras teriam uma espécie
de semelhança com a coisa que nomeiam: no Crátilo elas são concebidas como algo que
imita, com maior ou menor grau de perfeição, a coisa nomeada. As palavras representariam os
objetos da mesma forma como uma pintura representa uma paisagem: imitando-a, isto é,
reproduzindo fielmente seus elementos (430b-34b). A verdade de uma afirmação seria julgada
132
de acordo com a sua maior ou menor exatidão em representar os objetos, assim como se julga
a exatidão de um quadro comparando a imagem aí reproduzida com a paisagem original.
Platão, porém, nota que semelhança não significa igualdade, entendida como
identidade. Não pode haver uma identidade completa entre palavra e objeto pois, se a palavra
fosse uma reprodução perfeita do objeto, ela apenas o duplicaria e eles seriam indistinguíveis:
não poderíamos diferenciar o que é o nome e o que é a coisa nomeada (432d).
Portanto, a correspondência entre a linguagem e o mundo é uma imitação (mímesis),
não uma imitação entendida como uma tentativa de reproduzir o real fazendo um retrato exato
de cada característica dos elementos constitutivos do mundo, mas usando as palavras como
meio, resultando em uma espécie de “pintura com palavras” (cf. República 601a).
Na República, o conceito de mímesis é inicialmente usado como uma classificação
estilística para diferenciar as obras descritivas em oposição às obras dramáticas. Em 395c,
mímesis é aplicado à discussão sobre de quem os guardiões devem imitar o comportamento:
refere-se, portanto, ao treinamento de um aprendiz que deve repetir o que o mestre lhe ensina.
Em 605d, mímesis se refere ao aspecto psicológico dos espectadores de uma tragédia que se
identificam passivamente com o que está sendo representado (cf. Havelock, 1996, p.37-39).
Porém, se na República o sentido dominante de mímesis é o de imitação passiva, onde
o imitador se limita a reproduzir algo já existente, no Sofista ela faz parte da arte da criação
(poíesis). Em 265b a poíesis, a arte produtiva que faz as coisas passarem do não ser ao ser, é
dividida em demiourgia (arte divina) e arte humana. Ambas podem produzir coisas reais ou
imagens (eídolon). As imagens, no caso de serem produções humanas, podem ser ou cópias
que mantêm as proporções reais do objeto (eikôn - ícones), ou simulacros (phantásmata) cujas
proporções são falsas (são falseadas pelos sofistas para enganar e/ou agradar a seu público -
cf. 235d-236b). Portanto, Platão entende a mímesis também como a arte de criar algo
133
ativamente.
44
Esta produção criativa certamente deve basear-se em algum modelo, mas não se
trata de copiá-lo de maneira estrita, ponto por ponto, mas sim de representar as suas
proporções corretamente. Portanto, o nome não é uma duplicação exata de um objeto; ele não
representa todas as características deste objeto: a sua função seria indicar apenas as essenciais
– a essência do objeto.
E o Sofista é justamente o diálogo em que Platão procura determinar o status
ontológico da imagem (entendida como cópia da realidade verdadeira) e garantir alguma
forma de existência ao Não-Ser. Nele fica estabelecida a concepção do Não-Ser, não como
negação da existência, mas como Outro em relação a uma Idéia determinada, e com isso
garante-se também a existência das imagens e de graus intermediários entre verdade e
falsidade. Portanto, tem razão Havelock, quando afirma que, no Sofista, “mímesis é usada
para descrever um tipo de produção ou de discurso no qual a verdade é expressa de maneira
apenas relativa ou condicional enquanto oposta às certezas absolutas da episeéme derivadas
do mundo das Idéias” (1996, p. 51), uma observação que se aplica ao Timeu.
Vejamos como:
A respeito da imagem
(eÎkónoV) e seu modelo (paradeígmatoV),
temos que estabelecer as seguintes distinções, de modo que os discursos sejam
naturalmente afins(sy+geneîV)àquilo de que são intérpretes. Por um lado, os
discursos acerca do que é permanente e estável e manifesto ao intelecto devem
ser permanentes e inalteráveis. Por outro lado, os discursos que se referem ao
que é copiado do modelo, enquanto falam de algo que é uma imagem, terão
de
ser verossímeis proporcionalmente aos primeiros (ÓntoV då eÎkónoV eÎkótaV
Ânà lógon te Êkeínwn ÓntaV
) (29ac)
44
Conforme Chantraine, para os gregos, eikôn era o termo usado para se referir a qualquer obra produzida por
pintores ou escultores. O aspecto ativo da criação de imagens também é destacado por Brisson que chama a
atenção para o fato de que no Timeu Platão usa, tanto para se referir à ação do demiurgo produzindo o cosmos
quanto para fazer referência à ação do poeta “fabricando” um mito, três verbos: plátto “fabricar, modelar, dar
uma Idéia determinada a materiais maleáveis”, suntíthemi “construir algo com materiais que se apresentam como
pedaços para serem unidos” e poiéo “um fazer que implica um esforço para um acabamento”, “uma produção de
uma ordem artificial agindo conforme uma especificação” ou técnica (Brisson, 2003, p. 259-261).
134
A linguagem teria o mesmo status ontológico dos objetos aos quais se refere: se ela se
refere ao modelo eterno, será estável e inalterável, caso se refira à imagem (no caso, ao
mundo, que é uma cópia do modelo), será apenas verossímil e deverá estar em analogia com
o modelo eterno.
Teríamos, aparentemente, a seguinte hierarquia ontológica: 1) o modelo eterno ou
mundo das Idéias, 2) o mundo criado, cópia do primeiro, e 3) a linguagem que usamos para
nos referirmos ao mundo. Nesse caso, a linguagem seria a cópia de uma cópia ou a imagem de
uma imagem.
Mas a afirmação de que a linguagem pode referir-se diretamente ao modelo eterno,
abre a possibilidade de uma segunda interpretação: que a linguagem não seja a cópia de uma
cópia (imagem do mundo sensível), mas uma imagem do modelo eterno. Nesse caso, a
linguagem poderia se referir, dentro das suas limitações, tanto ao mundo da Idéias quanto ao
mundo sensível, funcionando como um intermediário ontológico entre ambos (cf. Parain, p.
165).
A linguagem seria uma cópia do mundo das Idéias, porém não uma cópia feita por
elementos idênticos aos daquele mundo, mas por elementos que mantêm entre si as mesmas
relações que mantêm os termos que representam. Ela seria um eikôn, uma cópia não-idêntica,
mas que preserva as relações ao manter corretamente as proporções entre os termos. A
linguagem teria assim uma função analógica, fornecendo uma medida comum entre o mundo
das Idéias e o mundo sensível. Nesse caso, essa analogia não seria, evidentemente, uma
analogia estritamente matemática, isto é, suscetível de ser expressa numericamente, mas
simbólica, quer dizer, tratar-se-ia de proporção onde os termos não são números, mas as
palavras, as Idéias, e o mundo sensível.
45
45
A interpretação da linguagem como um intermediário ontológico recupera o sentido original do termo lógos.
Conforme Chantraine, lógos provém de légo, reunir, juntar, escolher isto é, reunir com critério, daí medida,
135
Se a nossa interpretação da linguagem como um “ícone analógico” está correta,
compreende-se por que, para Platão, a linguagem não é completamente convencional, mas
também é capaz de expressar corretamente a essência de uma coisa (Crátilo). Como eikôn
colocado entre o ser e ,a cópia, a linguagem pode representar ambos, sem, no entanto,
confundir-se com ele. Ela “participa” do que representa de Idéia analógica e, assim, preserva
tanto a sua semelhança quanto a sua diferença em relação ao “original”. Dessa Idéia, ela
cumpre a sua função de distinguir e manifestar a natureza das coisas (cf. Crátilo 386e ss).
A linguagem apresenta assim uma função ontológica ordenadora do real, introduzindo
proporção e simetria (medida comum) às coisas, de tal modo que, onde não há linguagem, não
há proporção (ordem) e vice-versa.
Tudo estava em desordem quando a divindade introduziu proporção nas coisas,
tanto nelas quanto em suas relações recíprocas, na medida e na maneira em que elas
admitiam proporções e simetria (Ânáloga ka˜ sýmmetra). Pois no começo
nenhuma coisa participava (meteîcðen) de proporção, a não ser por acaso, não havendo
nenhuma que merecesse ser designada pelos nomes que hoje lhes aplicamos: fogo,
água e o restante
(69b).
Algo desordenado (sem medida) é algo sem nome (álogon). A introdução dos nomes
introduz também a ordem entre os seres. Dessa Idéia, a linguagem é “naturalmente afim” ao
real (Timeu 29b) ou, mais literalmente, é congênita (sy+geneîV), “nascida junto” com ele.
Em resumo: a linguagem é mimesis, imitação ou criação ativa de uma cópia (imagem)
de acordo com um modelo. Uma imagem reproduz um modelo, mas não é um retrato ou um
espelho deste: ela não replica cada aspecto do original, e sim procura simbolizar a sua
estrutura, isto é, mostrar as relações entre seus elementos (Crátilo). Se ela reproduz
corretamente essas relações, ela manterá as proporções do original, e teremos um ícone
(eíkos), caso contrário teremos um simulacro (Sofista). Mantendo as proporções corretas da
proporção (analogia), isto é: reunir, relacionar duas grandezas ou duas coisas aparentemente distintas. Por isso
lógos pode significar tanto “palavra” quanto “relação matemática”. Em ambos os casos gos é entendido com a
operação de reunir elementos díspares mediante algum critério.
136
estrutura do original, a linguagem será um análogo a esse, e poderá funcionar como um
intermediário ontológico entre o mundo das Idéias e o mundo sensível, relacionando-os
através de uma medida comum: a sua própria estrutura (Timeu).
A linguagem é o intermediário ontológico entre o mundo das Idéias e o mundo
sensível funcionando como termo médio ou medida comum entre os dois extremos, isto é,
como uma imagem que reproduz corretamente as proporções do original, ou seja, mantém
uma analogia com aquele. Assim o entrelaçamento de palavras (verbos e nomes) na
linguagem corresponderia à comunhão das Idéias (Ser e Não-Ser, Limite e Ilimitado, Mesmo
e Outro) no plano inteligível (cf. Sofista 240b). Mas isso não significa que qualquer frase que
pronunciemos seja verdadeira, pois a linguagem não é igual às Idéias, mas sua imagem.
Dada essa limitação da linguagem, parece que é nesse nível epistêmico que o ser
humano, inclusive o filósofo, deve trabalhar: seres limitados vivendo em um mundo em
constante mudança, nossa tarefa é dar-lhe algum sentido tentando construir “discursos
prováveis”, conscientes de que a verdade assim alcançada será sempre limitada e sujeita a
correções.
Por esse motivo, Sócrates, se, sob vários aspectos, acerca de muitas questões –
os deuses e a gênese do mundo – não nos for possível formular uma explicação exata
em todas as minúcias e coerente consigo mesma (omologoumænouV lógouV), sem
a mínima discrepância, não tens o que admirar-te. Dar-nos-emos por satisfeitos se a
nossa não for menos plausível (eÎkótaV) do que as demais sem nos esquecermos
que tanto eu, o expositor, como vós outros, meus juízes, participamos da razão
humana, razão de sobra para aceitarmos, em semelhante assunto, o mito mais
verossímil (eÎkóta mÿjðon)
, sem pretendermos ultrapassar os seus limites (29cd).
Assim, o relato de Timeu apresenta uma semelhança que se sabe apenas parcial com a
realidade; ele cria uma imagem do mundo, mas não como mímesis (imitação-retrato), e sim
um eikôn (ícone) que reproduz em palavras a semelhança deste mundo com a estrutura das
Idéias – 29b, 29d, 92c (cf. Osborne, 1996, p.186-88): trata-se de um “modelo explicativo do
Universo” (cf. Brisson, e Meyerstein, 1995, p. 45).
137
Nesse sentido, Platão nos oferece no Timeu um esforço deliberado de criar (poiesis),
através do discurso e da imaginação (cf. Hadot, 1983, p. 122) uma imagem do mundo que
exemplifica (cf. Osborne, 1996, p. 188) a estrutura e os princípios pelos quais o cosmos é
organizado. Trata-se, portanto, de uma invenção (não-arbitrária, porém) da imaginação, que
tem por objetivo sugerir ou evocar a combinação harmoniosa de unidade e multiplicidade
feita artisticamente pelo demiurgo e construir um poema cósmico (cf. Hadot, 1983, p. 113).
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