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SEBASTIÃO PERES
Coronéis & Colonos:
das crises internas do poder coronelístico à emergência dos
colonos como sujeitos autônomos
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da
Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, sob
orientação do Prof. Dr. René E.
Gertz.
NOVEMBRO DE 1994
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AGRADECIMENTOS
O trajeto desde os primeiros rascunhos do projeto até a versão final
deste trabalho foi longo, passando mesmo, em alguns momentos, por zonas
de relativa turbulência. Foi possível completá-lo, porém, graças ao apoio
recebido de diversas pessoas e instituições. Como sou, no entanto, o único
responsável pelo resultado final deste trabalho, continuarei a dever-lhes,
além de gratidão, um trabalho mais à altura das expectativas que todos,
seguramente, em mim depositaram.
Minha gratidão e profunda admiração a João (in memorian) e Suely
Robles Reis de Queiroz, pela acolhida em momento difícil da vida que eu e
Eliane recém iniciavamos juntos; a Prof. Suely, além disso, esforçou-se por
fazer-me superar minha infância de pesquisador.
Admiro e sou imensamente grato a René E. Gertz, por ter sido, mais
do que o orientador dessa dissertação, um amigo sempre paciente e disposto
a tranformar-me em um pesquisador adulto; não é dele a responsabilidade
pelos limites que ainda persistem na minha formação e que se refletem
nesse trabalho.
José Fernando Kieling foi o amigo que acompanhou todos os passos
deste trabalho e, mais do que isto, tem participado ativamente do processo
de minha formação intelectual, pelo que lhe sou muito grato.
Agradeço a Olmiro Callai e Pedro Marques dos Santos pelos
depoimentos prestados, e a Raul Vinhas, além do depoimento, pelos
documentos que me permitiu examinar.
Sou grato, ainda, ao Instituto Histórico e Geográfico, ao Arquivo
Público, ao Arquivo Histórico, ao Museu da Brigada Militar, ao Centro de
Documentação em Política Contemporânea - todos do Rio Grande do Sul -,
e ao Museu Municipal de Santo Ângelo por terem permitido meu acesso a
seus acervos documentais.
À Universidade Federal de Pelotas, especialmente ao seu
Departamento de História e Antropologia, e ao PICD da CAPES agradeço
por haverem viabilizado meu curso de mestrado.
E, finalmente, meu carinho e minha gratidão à Eliane, que foi, além
da companheira e incentivadora, a melhor auxiliar de pesquisa que eu
poderia ter tido; a ela e ao Leonardo agradeço pelas horas cedidas de um
tempo que deveria ter sido seu.
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO................................................................................... 7
INTRODUÇÃO....................................................................................... 9
1. A ORDEM DOS BENEDITINOS VERDES: O ANTI-HERMISMO
NO PRR ..................................................................................................23
2. CORONEL BRÁULIO E GENERAL FIRMINO: LEALDADE E
DISSENSÃO...........................................................................................37
3. O CORONEL E O PRESIDENTE: O MUNICÍPIO E O ESTADO.......49
4. O CORONEL, O CAPITÃO E O INTERVENTOR: ALIANÇAS E
CONFLITOS...........................................................................................71
5. ÁLVARO SILVEIRA: DE INTERVENTOR A INTENDENTE...........87
6. MAJOR QUINZOTE E CAPITÃO DAMAS: A DISSIDÊNCIA
NO PODER...........................................................................................101
7. BANDEIRAS VERMELHAS: DISSIDÊNCIA OU
RESISTÊNCIA?...................................................................................123
8. NA GUERRA COMO NA GUERRA: DOMINAÇÃO E
RESISTÊNCIA.....................................................................................145
9. PEDRO ARÃO: OS ASSASSINATOS PROJETADOS......................157
CONCLUSÃO ......................................................................................167
FONTES:
A – Entrevistas......................................................................................... 171
B – Arquivos............................................................................................ 171
C – Manifestos ......................................................................................... 171
D – Jornais ............................................................................................... 172
E – Relatórios........................................................................................... 172
F – Processos............................................................................................ 174
6
G – Anais ................................................................................................. 174
H - Livro de Alterações............................................................................ 174
I - Bibliografia........................................................................................ 175
ÍNDICE DAS FOTOGRAFIAS............................................................181
ANEXOS:
Anexo 1: Manifesto de Bráulio Oliveira.................................................. 183
Anexo 2: Manifesto da Liga Pró-Damaso ............................................... 185
APRESENTAÇÃO
Santo Ângelo - um dos maiores municípios do Rio Grande do Sul no
início do século XX - esteve por mais de 30 anos sob o domínio coronelista
de Bráulio Oliveira, fiel aliado do general Firmino de Paula e identificado
com o grupo mais tradicional do PRR, grupo este que conflitava com a
orientação que Borges de Medeiros impunha ao partido. O acirramento
desse conflito após a candidatura de Hermes da Fonseca ao senado, em
1915, levou Borges de Medeiros a utilizar-se de uma política de fomento às
dissidências republicanas nos municípios, com o objetivo de neutralizar
chefes políticos locais que divergissem da sua orientação.
Em Santo Ângelo, o coronel Bráulio enfrentou a oposição de um
grupo dissidente articulado em torno de líderes como Álvaro Silveira -
interventor nomeado para o município -, o capitão Damaso Gomes de
Castro e o major Joaquim Rolim de Moura. Bráulio Oliveira perdeu,
temporariamente, a condição de intendente e chefe unipessoal do PRR local,
mas não foi suplantado como líder por nenhum dos seus oponentes. Durante
os conflitos entre o coronel Bráulio e os dissidentes, que se estenderam por
quase dez anos, começou a emergir um grupo de novos agentes no processo
político-social daquela região: os colonos. Estes, aliados aos comerciantes
que começavam a acumular riqueza graças ao desenvolvimento das
colônias, começaram a mobilizar-se para romper o sistema de dominação
coronelística que lhes era imposto.
Este trabalho é resultado de uma tentativa de compreensão destes
fatos e das relações de poder que os produziram. Foi apresentado, como
dissertação de mestrado, ao Programa de Pós-Graduação em História da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em novembro de
1994, com o título Coronéis & Colonos: das crises internas do poder
coronelístico à emergência dos colonos como sujeitos autônomos.
Elaborado sob orientação do Prof. Dr. René E. Gertz, foi avaliado por banca
integrada, além do orientador, pela Profª. Drª. Loiva Otero Félix e Prof. Dr.
Dorivaldo W. Poletto. O fato de o terem aprovado não significa que
8
concordem integralmente com os conceitos, análises e conclusões nele
contidos, nem os torna responsáveis pelos seus limites.
INTRODUÇÃO
A organização do Rio Grande do Sul republicano foi presidida,
institucionalmente, pela Constituição Política do Estado do Rio Grande do
Sul, promulgada em 14 de julho de 1891. De autoria exclusiva de Júlio de
Castilhos
1
, o projeto de Constituição foi aprovado integralmente pela
Assembléia Constituinte e ao longo dos quase 40 anos de sua vigência
sofreu duas reformas parciais, mantendo, no entanto, a sua essência
doutrinária. As críticas e os epítetos dirigidos à Constituição Castilhista são
por demais conhecidos. nos primeiros momentos da discussão que
antecedeu a transformação do projeto de Júlio de Castilhos em Constituição,
na sessão de 6 de julho de 1891 da Assembléia, eram percebidas as
implicações futuras da proposta de organização do Estado ali contida:
Rompe o debate sobre o projeto o sr. Marçal Escobar, que o
increpa de deturpar o sistema representativo e contra ele articula,
pela primeira vez, a acusação, mil vezes repetida depois, de
positivista e de sectário: - 'Filiando-se (o autor do projeto) ao
sistema filosófico chamado comtista, e por conseguinte
convencido da geral anarquia que nos vitima, quis nos dotar com
o governo ditatorial, se bem que um tanto alterado pela
influência popular em alguns casos, mas de modo ineficaz e
prejudicial (não apoiados e apoiados). O projeto, inspirado
nessa doutrina que considera a sociedade em desordem pelo
predomínio da burguesia letrada com assento no parlamento -
arma o presidente do Estado de todo poder legislativo; porém,
parece que receoso da própria concepção, procura a
cooperação na confecção da lei num voto popular aparente e a
derrogação dela nos Conselhos Municipais (apartes). De sorte,
1
A comissão nomeada para elaborar o projeto de Constituição era composta por Júlio de Castilhos, Ramiro
Barcellos e Assis Brasil. Ramiro Barcellos, então senador, estava no Rio de Janeiro, e Assis Brasil
recusou-se a assinar o projeto redigido por Castilhos por discordar da sua "doutrina". Veja-se, a esse
respeito: BRASIL, J. F. de Assis. Dictadura, Parlamentarismo, Democracia. Porto Alegre: Globo, 1908.
10
srs., que o projeto, procurando conciliar a ditadura e a
democracia pura, entre si tão antagônicas, só pode gerar a
anarquia ou o despotismo: e assim ficará alterada a verdade de
toda a doutrina... (cruzam-se muitos apartes)'; e alude ainda à
tentativa de ' por um sistema filosófico de aceitação restrita,
pretender modelar uma sociedade'.
2
Ressalta da análise feita pelo constituinte a percepção das pretensões
do autor do projeto com relação à Constituição Estadual em elaboração:
constituir-se no instrumento fundamental necessário para - nas palavras do
próprio constituinte - modelar uma sociedade.
E, a partir da ascensão de Júlio de Castilhos à presidência do estado,
todos os recursos derivados desse instrumento fundamental foram efetiva e
intensamente utilizados com o objetivo de manter a hegemonia do Partido
Republicano Rio-Grandense, condição para efetivar o projeto republicano
castilhista.
É evidente que todo político, ao administrar ou legislar, antevê os
efeitos e os resultados da sua ação administrativa ou legislativa. E, nesse
sentido, orienta a sua ação conforme um projeto político. No caso
castilhista, esse projeto transcendeu à personalidade do seu idealizador, e foi
assumido como o projeto de um partido, o PRR, sobrevivendo, desse modo,
ao próprio Júlio de Castilhos. O chefe político que o sucedeu, Borges de
Medeiros, foi visto, mais do que como o continuador da obra e o intérprete
fiel do pensamento do Patriarca, como o co-autor dessa obra e desse
pensamento - idéia, aliás, plantada pelo próprio Castilhos no célebre
Manifesto de 1902
3
. Dessa forma, já não era mais, simplesmente, um
projeto castilhista, mas um projeto castilhista-borgista. Um projeto com o
qual todo republicano gaúcho deveria estar intimamente comprometido. E
esse comprometimento profundo fazia do republicano, mais do que um
prosélito, um visionário, que, ao imaginar nos menores detalhes os
resultados futuros da ação administrativa do seu partido, ultrapassava os
limites da mera antevisão do político, chegando às raias da utopia. Exemplo
dessa utopia castilhista-borgista pode ser encontrado em relatórios, como
um de 1919 onde se tratava do programa de proteção fraterna aos
indígenas, desenvolvido pelo governo no norte do estado:
De acordo com este programa, a situação que, com o tempo, se
2
ROSA, Othelo. Júlio de Castilhos: escritos políticos. Porto Alegre: Globo, 1928, p. 226.
3
Trata-se do Manifesto sobre a reeleição de Borges de Medeiros para um segundo mandato como Presidente
do Estado, publicado em 20 de outubro de 1902, e que pode ser encontrado em: ROSA, Othelo, op. cit., p.
501-511.
11
criará para os índios, neste Estado, será a seguinte: ao lado e
dentro por vezes das regiões coloniais de vida intensa,
aparelhadas gradualmente de todos os elementos e manifestações
da existência industrial contemporânea, ter-se-ão, em simpático
contraste, os pequenos aldeamentos - os toldos - dos restos dos
antigos silvícolas que dominaram outrora como senhores
exclusivos as terras que hoje ocupamos, porém respeitando nas
suas ingênuas e poéticas crenças fetíchicas [sic], assistidos pelo
Governo Republicano, sobretudo para a efetividade desse
respeito, no preparo das suas toscas habitações, das suas
pequenas lavouras, etc. E tal situação se prolongará naturalmente
até que a marcha incessante da evolução social, e o
estabelecimento de uma melhor situação sobre a Terra, a venha
modificar gradual e humanamente, sem dores como sem repulsas
por parte dos nossos infelizes irmãos fetichistas, de cujo longo
martírio passado, tão simpaticamente cantado pela lira de
Gonçalves Dias, iremos assim apagando a memória dolorosa
4
.
Muitos outros poderiam ser os exemplos das visões futurísticas que
dão idéia da força com que a utopia castilhista-borgista se fazia presente no
pensamento daqueles que, em alguma medida, compartilhavam da
responsabilidade de efetivar o projeto do Patriarca. Nessa utopia não cabia
outro governo que não o republicano, isto é, do PRR. Com uma
preocupação quase obsessiva com o futuro - onde, afinal, realizar-se-ia a
utopia - os republicanos tinham necessidade vital de garantir a continuidade
da hegemonia republicana. A conquista do poder estadual por qualquer das
forças de oposição ao PRR representaria a imediata e profunda reforma da
Constituição de 14 de Julho, retirando-lhe tudo aquilo que fazia dela,
justamente, o instrumento fundamental do poder dos republicanos.
Perceber a existência de um projeto social, político e econômico em
relação ao estado do Rio Grande do Sul, de parte do PRR, é fundamental
para compreender o processo político rio-grandense durante a República
Velha. Porém, mais do que os aspectos utópicos desse projeto - que apenas
interessam aqui para dar uma idéia do porquê do apego fanático ao poder
pelos republicanos -, interessam-nos os aspectos doutrinários que o
orientavam e, principalmente, a atuação bastante pragmática daqueles
elementos que, no interior do estado, garantiam o continuismo, necessário à
concretização do projeto.
Para compreender as relações de mandonismo, em qualquer
4
Relatório apresentado ao Dr. A. A. Borges de Medeiros - Presidente do Estado do Rio Grande do Sul - pelo
Dr. Ildefonso Soares Pinto - Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas. P. Alegre, 27 de
Agosto de 1919, p. 435.
12
contexto, é fundamental entender que entre o político e o econômico dá-se
uma interação, e não uma simples subordinação do político ao econômico.
É Engels quem questiona e afirma: "[...] por que lutaríamos nós pela
ditadura política do proletariado se o poder político é economicamente
impotente? O poder (ou seja, o poder do Estado) também é uma potência
econômica!"
5
E isso não passava despercebido aos dirigentes da política no
Rio Grande do Sul da Primeira República - ainda que seu referencial teórico
fosse outro. Daí a necessidade de, em nome de um projeto que não era
apenas político, garantir o controle absoluto e permanente do aparelho do
Estado. E, em função disso, organizou-se no Rio Grande do Sul uma
estrutura de dominação política que tinha no mando local um elemento
fundamental.
Desde Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro e Maria Isaura Pereira
de Queiroz
6
- para ficarmos restritos a autores que trataram especificamente
o tema -, muito tem sido escrito sobre o mandonismo local ou patronato
político, e a sua influência decisiva no processo político ao longo das
primeiras décadas da República brasileira. A prática política do exercício do
poder - por quaisquer meios - sobre parcelas do eleitorado, com o objetivo
de controlar votos e determinar resultados eleitorais, foi consagrada pela
historiografia e pela literatura como coronelismo. Tem suas raízes nas
frágeis estruturas políticas internas de que se foi dotando o Brasil ainda no
período colonial, e vai crescendo em força e significado à medida que, ao
longo da história política do país, o direito de voto foi sendo estendido a
setores mais amplos da população. Da necessidade de manter grande parte
da sociedade sob domínio político, como condição para a manutenção do
aparelho do Estado em mãos de determinadas frações da oligarquia,
decorreu uma intensificação da atividade coronelística. Assim, o
coronelismo teve seu apogeu durante a Primeira República brasileira, a
chamada República Velha ou República Oligárquica. Mesmo o esforço pela
modernizacão do país, a partir da Revolução de 1930, não logrou eliminar
totalmente da vida política nacional a figura do coronel. Este teve seu papel,
sem dúvida, reduzido, sua importância atenuada. O incremento da
população urbana, em detrimento da população rural, alterou as feições do
5
ENGELS, Friedrich. "Carta a C. Schimidt - 27.10.1890". In: FERNANDES, Florestan (org.). Marx/Engels
- História. 2ed. São Paulo, Ática, 1984, p. 463.
6
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. 2ed.
São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. 2 volumes. 4ed.
Porto Alegre: Globo, 1977. A primeira edição desta obra, em apenas um volume, é de 1958.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Mandonismo Local na Vida Política Brasileira. São Paulo:
IEB/USP, 1969. Este trabalho fora publicado, parceladamente, pela Revista Anhembi, de São Paulo, entre
outubro de 1956 e março de 1957 - números 71 a 76.
13
eleitorado. Ao lado disso, a modernização das estruturas econômicas,
sociais e políticas do país, e a adoção de procedimentos eleitorais menos
suscetíveis de manipulação - o voto secreto e a implantação da Justiça
Eleitoral são exemplos -, criaram dificuldades à ação do coronel, mas não o
extinguiram. Ainda hoje sua presença pode ser percebida e, muitas vezes,
com surpreendentes demonstrações de força. Notadamente em regiões mais
isoladas e mais pobres do país, o coronelismo ainda é uma realidade.
Sobre a historiografia republicana rio-grandense - entendida aqui
como a produção historiográfica sobre o Rio Grande do Sul do período a
partir de 1889 - cabem algumas considerações.Uma preocupação que pode
ser imediatamente percebida em vários autores é a de propor, para o Rio
Grande do Sul, uma divisão do espaço interno do estado em diversas
regiões. Joseph Love, por exemplo, propõe três regiões: Litoral, Campanha
e Cima da Serra, subdividindo a última em Zona Colonial, Planalto Central
e Distrito das Missões
7
. Outro autor amplia para cinco as regiões:
Campanha, Litoral, Depressão Central, Serra (Zona Colonial) e Planalto
8
Os
critérios para estas e outras divisões - muitas vezes subentendidas - nem
sempre são claramente definidos.
É importante notar, também, que a historiografia republicana rio-
grandense desenvolve-se em torno de dois eixos básicos, determinados por
duas regiões geo-econômicas distintas: a Campanha, pecuarista e
latifundiária, e a Serra (Zona Colonial), onde a agricultura é desenvolvida
em pequenas e médias propriedades. Ocupam-se os pesquisadores,
geralmente, com aspectos políticos e econômicos da República Velha no
Rio Grande do Sul, como se eles se desenvolvessem apenas na região da
pecuária - de onde vem a dominação econômica, política e cultural. Na
região da Serra, a preocupação está voltada para aspectos econômicos e
sociais ligados à imigração. Disso resulta uma quase ausência de conexão
entre a história da Campanha e a história da Serra, como se fossem dois
estados distintos, dois processos históricos distintos e paralelos, sujeitos,
cada um, a determinantes próprios, que nunca ou raramente se relacionam.
É necessário reconhecer, no entanto, que ultimamente alguns autores m
tentado entender e explicar a história do Rio Grande do Sul como processo
único, rompendo, em certa medida, com padrões da historiografia
tradicional.
A mesma historiografia tradicional, ainda, praticamente ignora o
7
LOVE, Joseph L. O Regionalismo Gaúcho e as Origens da Revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva,
1975, p. 5-7.
8
VIZENTINI, Paulo Gilberto Fagundes.O Rio Grande do Sul e a Política Nacional: as oposições civis na
crise dos anos 20 e na Revolução de 30. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985, p. 27.
14
processo de implantação das novas colônias, nas áreas de matas do norte do
Rio Grande do Sul, de onde os homens ditos civilizados mantiveram-se
afastados até o final do século XIX. Região imprópria para a pecuária,
coberta de matas e habitada por uns poucos indígenas ainda relutantes em
aceitar o convívio com os civilizados, os Sertões do Alto Uruguai foram a
última área do estado a ser ocupada pelos descendentes dos europeus, o que
aconteceu, efetivamente, apenas no início do século XX.
Os primeiros colonos a tentarem estabelecer-se na porção noroeste
daquela região, de forma espontânea, a partir de 1902, não lograram êxito.
Abandonaram as terras e emigraram para a Argentina. A área foi
efetivamente ocupada depois que o governo do estado passou a investir
diretamente na organização de colônias, ao mesmo tempo em que autorizou
a instalação de empresas colonizadoras.
Tradicionalmente, o êxito ou fracasso de projetos de colonização tem
sido atribuído ao meio geográfico em que estes foram implantados ou a
características próprias dos grupos étnicos envolvidos. Conforme uma das
raras obras sobre a região,
o infortúnio dos eslavos, nesta nova zona de colonização pode
ser entendido e relaciona-se, fundamentalmente, com as
circunstâncias ambientais. [...] A referência à tradição e
religiosidade do povo faz sentido, neste contexto, uma vez que
se constituíram fatores determinantes na organização e
desenvolvimento da referida região
9
.
Esse determinismo ambiental e étnico é, na historiografia tradicional,
mais freqüente do que seria aceitável. Assim, numa tal historiografia, é
natural que o fenômeno do coronelismo passasse praticamente
despercebido, a não ser por poucas e superficiais referências em alguns
trabalhos. Quem recolocou essa temática para a historiografia gaúcha, em
uma obra que aborda com seriedade e profundidade a questão do
mandonismo político no Rio Grande do Sul, foi Loiva Otero Félix
10
, que a
partir de sua tese de doutorado provocou o aparecimento de vários outros
trabalhos de menor envergadura - artigos, principalmente - sobre o tema.
A preocupação com os grandes personagens da política rio-
grandense da Primeira República levou a uma espécie de idealismo vulgar,
onde as grandes questões políticas do estado existiam unicamente no plano
9
HARTMANN, Hélio R. & SCHALLENBERGER, Erneldo. Nova Terra, Novos Rumos: a experiência de
colonização e povamento na Grande Santa Rosa. Santa Rosa: Barcelos, 1981, p. 83-84.
10
FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, Borgismo e Cooptação Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.
15
das idéias e eram elaboradas por homens como Júlio de Castilhos, Borges
de Medeiros, Pinheiro Machado, Assis Brasil, Ramiro Barcellos e outros.
As sangrentas lutas que ocorreram com freqüência naquele período surgem,
dessa forma, como enfrentamentos viris entre homens livres e autônomos,
dispostos a matar e morrer por uma causa - que muitas vezes não sabiam
bem qual era. Para facilitar o entendimento pelo homem simples, mais
afeito a lidar com a terra ou o gado que com idéias complicadas dos
caudilhos, reduziam-se estas idéias a uma cor, e sobravam homens
dispostos a matar e morrer por um lenço branco ou colorado. Colocando as
coisas desse modo, a historiografia conformava-se a um dos mais caros
mitos do regionalismo rio-grandense: o mito do gaúcho altivo, livre,
soberano. A onipresença e onisciência dos grandes líderes estaduais, através
das suas idéias, bem servem para mascarar e ocultar a presença, em cada
lugar, do chefe político local, submisso - até certo ponto - ao chefe maior,
ao líder, mas senhor de centenas de outros homens. Desses, o chefe local
dispunha não apenas dos votos, mas das próprias vidas.
Detentor do poder de mando no nível local, o chefe político pode não
ser, necessariamente, um coronel. Se no resto do país os galões de coronel
da Guarda Nacional eram concedidos por mera conveniência política, no
Rio Grande do Sul as patentes militares estavam, geralmente, associadas à
participação do seu portador em alguma ação bélica. O posto representava,
assim, a posição real que o indivíduo ocupava na estrutura hierárquica da
Brigada Militar, do Regimento Provisório, do Corpo Auxiliar ou das
Colunas e Piquetes das forças oposicionistas.
E se os grandes proprietários ou comerciantes eram sempre oficiais,
não significa que todos os oficiais fossem economicamente bem situados.
Carlos Reverbel cita o caso de Adão Latorre, negro e pobre, mas que
ocupou, nas forças oposicionistas, o posto de tenente-coronel em 1893 e
coronel em 1923, salientando que tais graduações eram atribuídas a
"homens dotados de atributos como bravura, tino guerreiro, voz de
comando"
11
. Ou seja, dotados da capacidade de defender eficazmente os
interesses em jogo - mesmo sem compreender que interesses eram estes.
Posto de outra forma, se o oficialato nem sempre significava poder político,
o poder político sempre significava o oficialato. Assim, o chefe político
local poderia ser um general, coronel, tenente-coronel, major, capitão, etc.
Vale lembrar que, pelas características e finalidades da estrutura militar que
acabou como que incorporada pelos partidos políticos gaúchos da Primeira
República, a cadeia hierárquica era bastante completa e rigorosamente
11
REVERBEL, Carlos. Maragatos e Pica-Paus: Guerra Civil e Degola no Rio Grande. P. Alegre: L&PM,
1985, p. 56.
16
respeitada.
Dentro dessas características, o mandonismo político manifestou-se
de forma intensa na região das novas colônias. O general Firmino de Paula,
por exemplo, foi chefe político da região de Cruz Alta, Santo Ângelo,
Palmeira, Ijuí e Júlio de Castilhos. O próprio general Firmino afirmava:
"Nenhum interesse tive em dirigir os destinos políticos e administrativos
desta terra, e se a isso acedí, foi por instâncias reiteradas de meus amigos
drs. Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros"
12
.Fiéis ao princípio
positivista-castilhista da centralização política, os chefes locais não
ousavam candidatar-se ou indicar candidatos a qualquer cargo sem antes
ouvir o exmo. Presidente do Estado
13
. Chefe político da região, Firmino de
Paula tinha imediatamente abaixo de si, na cadeia hierárquica, chefes
municipais como o coronel Bráulio Oliveira, em Santo Ângelo, o coronel
Antônio de Barros (coronel Dico), em Ijuí, e dezenas de outros coronéis,
majores, capitães e tenentes, de menor ou nenhuma expressão política.
Destacavam-se, ainda, vários chefes políticos civis, geralmente profissionais
liberais ou funcionários públicos que, com o socorro dos chefes políticos
militares, exerciam também um forte poder de mando no nível local, como
Frederico Westphalen ou João Dahne.
Os recursos de que esses chefes políticos lançavam mão para garantir
seu domínio dentro do espaço que lhes competia eram os mais variados.
Assis Brasil, o grande líder oposicionista, denunciava o sistema eleitoral
vigente na época - lista incompleta - como capaz de "privar inteiramente de
representação a minoria" e acusava o processo de qualificação de oferecer
"todas as garantias ao oficialismo, inclusive a faculdade de eliminar em
massa dos livros de registro eleitoral, a bico de pena, discricionariamente,
qualquer incômoda parcela das forças de oposição"
14
. Nesse sentido, é
bastante significativa a seguinte nota, publicada em jornal de Santo Ângelo,
sob o título Reunião Política:
Dizem-nos que no domingo último se realizou na Colônia
Burity, a convite dos srs. cap. Virgílio Manoel Pinto e Frode
Johansen, uma reunião dos moradores dessa colônia e da
municipal para o fim de tratar da qualificação eleitoral, tanto
12
PAULA, Firmino de. "Carta Aberta ao Exmo. Dr. Borges de Medeiros e ao Rio Grande do Sul - Palavras
Históricas (I)". In: A Semana, Santo Ângelo, 21 de agosto de 1919.
13
Ilustrativo do respeito que se dava a esse princípio é o manifesto mandado publicar na imprensa de Cruz
Alta por um candidato a intendente, onde o mesmo afirmava:"Ouça-se previamente a opinião abalisada
do exmo. sr. dr. Borges de Medeiros, e se ele entender, ou estiver de acordo que seja sufragado meu nome
- serei candidato" (O Venâncio Ayres, Cruz Alta, 20 de agosto de 1904).
14
BRASIL, J. F. de Assis, op. cit., p. 117.
17
estadual como federal, que é a base segura da verdadeira
organização republicana.
Nessa reunião, a que assistiram cerca de 150 colonos, quase
todos ainda por qualificar, ficou resolvido que aqueles dois
cavalheiros se encarregariam de dar as instruções necessárias
para a qualificação dos colonos, encaminhando os seus
documentos até a extração do respectivo título
15
.
Mas um dos recursos preferidos pelos chefes locais era, sem dúvida,
a violência contra os que o se submetessem à sua autoridade. Além de
permitir a obtenção dos resultados cobrados pelos chefes estaduais - a
eleição dos candidatos do partido -, o emprego da violência possibilitava
ajustes de contas no nível pessoal. Entre os meses de fevereiro e abril de
1927, noticiou-se no centro do país a morte de nove expoentes da oposição
estadual, sendo pelo menos três das vítimas coronéis, e num único dia de
junho noticiou-se uma chacina no município de Palmeira das Missões com
nada menos de 13 mortes
16
. Todos estes crimes foram praticados, segundo o
noticiário, diretamente por chefes políticos situacionistas ou por integrantes
de Corpos Auxiliares - provisórios - sob as ordens diretas daqueles chefes.
Desnecessário é citar os inúmeros atos de violência dos quais não
resultaram vítimas fatais, noticiados no mesmo período. Inclusive a
proibição, por parte de chefes de polícia - via de regra chefes políticos
locais -, de reuniões de oposicionistas, em plena campanha eleitoral.
Tais violências raramente eram punidas. Não apenas as autoridades
policiais pertenciam aos quadros do situacionismo, como na maioria das
vezes elas próprias provocavam a violência. Além disso, a justiça era
sempre manipulada. Diretamente, mediante pressões sobre promotores e
juízes, ou indiretamente, mediante pressões sobre testemunhas.
O mandonismo é típico de regiões de latifúndio, onde a dificuldade
de acesso à terra deixa a grande massa de trabalhadores à mercê dos grandes
proprietários. No entanto, a prática coronelística, no Rio Grande do Sul,
manifestou-se com intensidade numa região em que o padrão era a pequena
propriedade. Mesmo a propriedade da terra, que deveria garantir a
autonomia dos camponeses da região, foi insuficiente para livrá-los da
dominação política dos chefes locais do Partido Republicano Rio-
Grandense.
O espaço neo-colonial do noroeste gaúcho foi organizado segundo
necessidades econômicas. Sua ocupação não foi espontânea, mas motivada
15
A Semana, Santo Ângelo, 10 de junho de 1920.
16
O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 e 21 de fevereiro, 5 de março, 3 e 13 de abril, 10 de junho de 1927.
18
por interesses econômicos inerentes ao capitalismo, que orientaram a
política de colonização do governo do estado. Assim, a feição que foi
tomando essa nova área inserida no contexto político e econômico rio-
grandense a partir do início do século XX, antes de ser resultante de
características particulares aos grupos sociais que a ocuparam, foi resultado
de uma reorganização do espaço interno do Rio Grande do Sul, com uma
nova divisão intra-regional do trabalho, adequando a economia gaúcha ao
estágio de desenvolvimento que experimentava a economia nacional e
internacional nas primeiras décadas do século.
Havia, também, a necessidade de atender o interesse político da
fração oligárquica hegemônica no estado, aglutinada no interior do PRR.
Assim, deveria constituir-se naquela área um eleitorado republicano capaz
de garantir a supremacia do partido no Distrito Eleitoral. Não apenas ali,
mas em todo o estado, o controle político das colônias era de fundamental
importância, pois caracterizando-se como áreas de pequenas e médias
propriedades, eram também áreas de relativa concentração populacional e,
portanto, um significativo colégio eleitoral
17
. Desse modo, o mandonismo
político que ali se manifestou não foi uma anomalia, uma deformação do
sistema positivista-castilhista, que se pretendia perfeito, mas um elemento
vital para o funcionamento do sistema.
Enfim, a organização da região das colônias novas sob o controle
coronelístico garantia, ali, a reprodução das relações sócio-econômicas de
dominação inerentes ao sistema vigente no Rio Grande do Sul. Desse modo
pretendia modernizar a economia gaúcha sem afetar, nem a estrutura
fundiária, nem as relações de trabalho tradicionais da zona pecuária.
Santo Ângelo, um dos maiores municípios do Rio Grande do Sul no
início do século XX, situado no noroeste do estado e estendendo-se até as
margens do rio Uruguai, tinha grande parte do seu território coberto por
matas. Foi, portanto, um dos municípios mais atingidos pela política de
colonização do governo de Borges de Medeiros que levou à implantação
das colônias novas. Politicamente, Santo Ângelo esteve, durante quase todo
o período da Primeira República, sob o domínio do coronel Bráulio
Oliveira, poderoso chefe local do PRR e intendente municipal. Bráulio
Oliveira foi um entusiasta da colonização, tendo mesmo tomado a iniciativa
de instalar uma colônia municipal. Os motivos que o levaram a este
empreendimento ele mesmo os declarou:
17
Em 1922, a população colonial representava 41,6% da população total do estado. Nas primeiras décadas
desse culo, enquanto a densidade populacional no estado não chegou a atingir 10 hab/km
2
, na zona
colonial esteve sempre acima dos 20 hab/km
2
.
19
Tendo em vista aliviar da pressão que se fazia sentir nos
moradores da vila pelos exagerados preços dos gêneros
coloniais, sobrecarregados ainda de desproporcionados fretes,
devido à distância dos centros produtores, que então eram
Guarany e Ijuí, intentei a formação de um núcleo produtor que
nos emancipasse dessa dependência, criando a Colônia
Municipal, em terrenos do Estado, distante três léguas apenas da
vila
18
.
O longo período da dominação coronelista de Bráulio Oliveira em
Santo Ângelo não foi, no entanto, pacífico e isento de conflitos. Ao
contrário, boa parte desse período foi marcada por conflitos com grupos
dissidentes locais e mesmo entre o coronel e Borges de Medeiros. Bráulio
Oliveira alinhava-se entre aqueles que constituíam o que se poderia chamar
de grupo tradicional - republicanos históricos, da propaganda - do PRR, ao
lado de líderes como Ramiro Barcellos, João Francisco, Firmino de Paula,
Isidoro Neves da Fontoura, Pedro Osório, os irmãos Barbosa Gonçalves e
outros. Esse grupo, praticamente desde a morte de Júlio de Castilhos,
divergia de Borges de Medeiros quanto à forma de controle do Partido
Republicano no estado. Enquanto Borges impunha a centralização política,
reduzindo os chefes locais a meros executores das suas determinações, esses
republicanos históricos exigiam autonomia nas questões políticas e
administrativas de nível local, entendendo que o chefe supremo deveria
ater-se às questões de caráter estadual. Causa de inúmeros conflitos intra-
republicanos em todo o estado, essa divergência também provocou
turbulências em Santo Ângelo, contrapondo Bráulio Oliveira a Borges de
Medeiros e a dissidentes locais fiéis ao chefe estadual.
Neste trabalho, pretende-se compreender a dinâmica da política
coronelista que se desenvolvia no Rio Grande do Sul, a partir do estudo
específico do caso de Santo Ângelo e do coronel Bráulio Oliveira. Foi um
caso típico de dominação coronelista, mas ao mesmo tempo apresentando
peculiaridades próprias, na medida em que se desenvolveu numa região que
foi, em prazo relativamente curto, ocupada por grande número de pequenos
proprietários de terra. Optamos por reconstituir historicamente a trajetória
desse chefe local do PRR, dando ênfase ao período em que o mesmo
enfrentou o assédio mais acirrado dos seus adversários políticos que,
estimulados por Borges de Medeiros, empenharam-se em destituí-lo dos
seus cargos e da sua liderança. Esta opção foi feita não apenas porque nestes
momentos de crise são mais perceptíveis as divergências e as relações de
18
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 18
de julho de 1916, p. 9.
20
poder, mas também porque a documentação disponível restringia-se
principalmente a este período.
Obviamente, não nos interessa a reconstituição histórica em si, mas
sim a possibilidade de, a partir dela, examinar e discutir as relações de
poder que se estabeleciam entre o chefe local - no caso, Bráulio Oliveira - e
o chefe estadual do PRR - Borges de Medeiros -; entre o chefe local e outras
lideranças municipais do partido; entre o chefe local e a população.
Pretendemos examinar, também, os mecanismos empregados pelos chefes
locais com o objetivo de exercer uma eficiente dominação sobre aqueles
que, periodicamente, desempenhavam o papel de eleitores, de modo a levá-
los a eleger estes chefes ou aqueles a quem eles indicassem.
Não poderíamos, também, deixar de observar que o processo de
colonização, tão entusiasticamente apoiado pelo coronel Bráulio, inseriu no
município de Santo Ângelo um elemento novo, que não tardou a exigir o
seu espaço próprio de manifestação política: os colonos. A emergência
desses novos agentes no processo político local terminou por minar as bases
do poder coronelístico de Bráulio Oliveira com maior eficiência do que a
dissidência manobrada por Borges de Medeiros. Por isso, apesar das
dificuldades determinadas pela escassez de fontes documentais acessíveis
sobre o assunto, procuramos compreender, também, as estratégias
empregadas por esses novos sujeitos para enfrentar e resistir à dominação
política que sobre eles se abatia. Particularmente sobre este aspecto - a
atitude das populações coloniais frente à dominação política dos chefes
locais do PRR -, acreditamos que bons estudos ainda poderão ser
desenvolvidos, pois continuam praticamente indevassadas fontes
importantíssimas, como o jornal Die Serra Post
19
de Ijuí, que por ser
editado em língua alemã tornou-se inacessível para essa pesquisa.
Finalmente, é importante salientar que exploramos mais
intensamente três tipos de fontes: correspondências, jornais e relatórios
administrativos. As informações ali obtidas foram complementadas por
outras fontes, como depoimentos, processos judiciais e obras publicadas.
Tudo isso nos forneceu elementos tanto para aquela reconstituição referida
quanto, principalmente, para a análise que nos permitiu explicitar e
compreender toda a ordem de relações que formava aquele sistema de
dominação política coronelista que constitui o objeto principal deste estudo.
Também nessas fontes encontramos os elementos que permitem perceber a
emergência dos colonos como sujeitos ativos do processo político-social na
região das colônias novas. Estes elementos - dados, informações - estão por
19
Este jornal integra o riquíssimo acervo documental do Museu Antropológico "Diretor Pestana", da
Universidade de Ijuí.
21
vezes explícitos, outras vezes subjacentes nas fontes, que, principalmente
quando se trata de correspondências, adquirem uma tal densidade que torna
difícil, muitas vezes, referir-se a elas sem citá-las quase que por inteiro.
Deixar de citá-las, referindo-se a elas apenas indiretamente, ou citá-las de
forma muito reduzida levaria, certamente, à perda de elementos que
empobreceriam, ainda mais, este trabalho. Decidimos citar as fontes, então,
sempre que julgamos importante, da forma mais completa que fosse
necessária à percepção e compreensão do seu conteúdo. Isso determinou a
ocorrência, ao longo deste trabalho, de citações um tanto longas, mas que,
acreditamos, não chegam a acrescentar-lhe maior enfado. Esperamos, ao
contrário, que este expediente permita, a quem ousar ler este texto,
estabelecer um diálogo com as fontes ainda mais profícuo do que aquele
que pretendemos ter realizado.
1. A ORDEM DOS BENEDITINOS VERDES:
O ANTI-HERMISMO NO PRR
Fanfa Ribas, o célebre federalista fundador e diretor, por anos, do
não menos célebre jornal Correio do Sul, órgão federalista que se publicou
diariamente em Bagé, a partir de 1914, referia-se, ironicamente, ao PRR,
como a Ordem dos Beneditinos Verdes. Escarnecia, dessa forma, do
apregoado caráter idealista, disciplinado, voltado apenas para os interesses
maiores do Rio Grande do Sul e do Partido Republicano, sem nunca esperar
- nem receber - qualquer vantagem pessoal do exercício de cargos públicos,
caráter que, de acordo com o discurso oficial do PRR, identificava todos os
republicanos. Não existiam, no PRR, políticos profissionais, de ofício,
apregoava nos seus editoriais A Federação; eram todos uns monges,
monges verdes, o PRR era a Ordem dos Beneditinos Verdes, dirigida pelo
Papa Verde ou Cardeal Verde - Borges de Medeiros -, atacava Fanfa Ribas,
mordaz, pelas páginas do Correio do Sul.
Afinal, quem eram os republicanos - ou ao menos os chefes
republicanos nos municípios? Virtuosos servidores - monges verdes-
dedicados ao bem, à ordem e ao progresso, ou "autoridades boçais e sem
capacidade de espécie nenhuma [com] instintos canibalescos e ferozes"
20
?
Provavelmente, nem uma nem outra coisa, mas, em parte, uma e outra
coisa, concomitantemente. Para percebê-lo, o melhor seria, possivelmente,
observá-los, através das evidências possíveis, numa situação limite, num
momento em que, pressionados pelas circunstâncias, esses homens -
detentores de alguma liderança no plano local - tivessem de expôr-se numa
medida em que não o fariam normalmente. Observá-los num momento em
que, para defender-se e/ou para atacar, esses chefes locais tivessem de
explicitar seu pensamento, suas intenções, seus métodos de ação, a
compreensão que tinham dos seus deveres, dos seus direitos, dos seus
méritos; explicitar sua visão do Partido, do Chefe Supremo, do Estado, da
20
CASSAL, Barros. Assassinatos Projetados. In: O Libertador, Pelotas, 19 de agosto de 1926.
24
coisa pública; sua visão dos correligionários, dos adversários, e dos outros
homens - numa tal situação limite, expostos, desnudados - por si e pelos
outros -, torna-se bem mais fácil conhecê-los, inclusive porque a produção
de documentos e informações é bem mais intensa que o normal
21
.
Uma destas situações desenvolveu-se no Rio Grande do Sul a partir
do final do período presidencial de Hermes da Fonseca (15/11/1910 -
15/11/1914), com desdobramentos, no plano estadual e localmente, em
vários municípios, que se estenderam por anos - em alguns casos,
projetando-se para além da chamada República Velha. O fato
desencadeador dessa crise foi a indicação do ex-Presidente, feita por Borges
de Medeiros e Pinheiro Machado, para ocupar uma cadeira no Senado,
representando o Rio Grande do Sul, em vaga aberta pela renúncia do
senador Joaquim Assumpção. Na verdade, mais do que contra o nome de
Hermes da Fonseca, reagiram vários dos pró-homens republicanos gaúchos
contra a postura imperial, autoritária, de Borges de Medeiros e Pinheiro
Machado, que simplesmente os alijavam do processo de decisão no Partido.
Procuraremos reconstituir resumidamente esse episódio
22
, de modo a
informar o ambiente político no Estado que ensejou, em diversos
municípios - e em especial no município de Santo Ângelo, objeto de nosso
interesse mais específico -, o surgimento ou aprofundamento de cisões no
seio do Partido Republicano.
A rejeição a Hermes da Fonseca era profunda. Manifestara-se, já,
indiretamente, mas de forma clara e contundente, por ocasião da eleição de
Deputados Federais, ocorrida no início de 1915, ainda antes da indicação do
ex-Presidente da República como candidato a senador. Naquela eleição,
Fonseca Hermes, irmão do Marechal e líder do governo na mara Federal
durante seu mandato, fora indicado para reeleição na nominata oficial de
candidatos a Deputado Federal do PRR pelo Distrito Eleitoral Federal do
Rio Grande do Sul.
O 2º Distrito (ou 2º Círculo Eleitoral) correspondia à 2ª Região
Policial do Estado, que tinha como Sub-Chefe de Polícia ninguém menos do
que o General Firmino de Paula, o temido e todo-poderoso chefe político da
região de Cruz Alta. Entre os 21 municípios que compunham o Distrito
estavam, além de Cruz Alta, outros de expressão, como Santa Maria,
Uruguaiana, Passo Fundo, Palmeira, São Borja - onde o PRR era controlado
21
Quase a totalidade dos documentos procedentes de Santo Ângelo e conservados no Arquivo Borges de
Medeiros referem-se a uma situação dessa natureza e seus desdobramentos.
22
A reconstituição desses fatos será feita com base em amplo noticiário publicado, naquele período, nos
jornais Correio do Sul, de Bagé, e Opinião Pública, Diário Popular, e O Libertador, todos de Pelotas, e
ainda com o concurso de: CARONE, Edgard. A República Velha (II): Evolução Política (1889-1930).
ed. São Paulo: DIFEL, 1983. Especialmente Segunda e Terceira Partes.
25
pelos Vargas -, Santo Ângelo - sob a direção política do Cel. Bráulio
Oliveira, fidelíssimo aliado de Firmino de Paula -, e Cachoeira - sob a
direção de Isidoro Neves da Fontoura, então com o concurso de seu filho
João Neves da Fontoura, jovem advogado. Cachoeira era, também, a terra
de Ramiro Barcelos, republicano histórico, ex-senador da República, ex-
constituinte federal, um dos três integrantes - com Castilhos e Assis Brasil -
da comissão encarregada de elaborar o projeto de Constituição estadual do
Rio Grande do Sul. Era sob a orientação de líderes desse porte que o
eleitorado republicano do 2º Distrito iria eleger seus Deputados.
A oposição, valendo-se do direito legal de representação da minoria,
que garantia a eleição, pela minoria, de pelo menos um deputado,
apresentou como candidato no 2º Distrito o pelotense Francisco Antunes
Maciel Jr. Como era praxe nestas circunstâncias, o situacionismo lançou um
candidato carancho
23
, pretendendo privar a oposição de representação sem
ferir a lei. Apresentou-se, então, como candidato avulso, Ildefonso Soares
Pinto. O plano era simples: elegia-se a lista - incompleta - apresentada pelo
PRR, enquanto maioria, e, na vaga reservada para a minoria, elegia-se
Ildefonso Soares Pinto, descartando-se, assim, Francisco Antunes Maciel
Jr., que, sendo 5 as vagas do Distrito, ficaria em e inútil lugar. Isso,
pelo menos, pretendia a suprema chefia do Partido. E poderia ser garantido
que assim fosse, muito mais do que pela efetiva mobilização do eleitorado,
por eficiente trabalho da junta apuradora do Distrito, ao manusear as atas e
demais documentos relativos à eleição. Deu-se, no entanto, o inusitado. O
resultado apurado e encaminhado para reconhecimento dos eleitos pela
Câmara dos Deputados
24
foi o seguinte:
CANDIDATOS VOTOS
Francisco Antunes Maciel Jr 18.466
Augusto Pestana 15.090
Ildefonso Soares Pinto 14.800
José Thomaz Nabuco de Gouvêa 14.436
Marçal Pereira de Escobar 14.384
João Severiano da Fonseca Hermes 14.353
23
A oposição chamava de carancho ao candidato avulso, oficialmente sem partido mas via de regra ligado
ao PRR, que se apresentava nas eleições proporcionais em todos os níveis, com a finalidade de privar essa
oposição de representação - a lei eleitoral garantia a representação da minoria, fosse ela oposicionista ou
não.
24
Cf. Anais da Câmara dos Deputados - 1915 - Vol. II. 11ª Sessão Preparatória, 13 de abril de 1915 (p. 49-
50), e 12ª Sessão Preparatória, 14 de abril de 1915 (p. 61-62).
26
Contra este resultado não foi apresentada qualquer contestação, o
que permitiu que a Câmara de Deputados reconhecesse a eleição dos 5
primeiros da lista, sem discussões, em 14 de abril de 1915. Negara o
Distrito mandato parlamentar a Fonseca Hermes, o Jangote. Os rumores de
depuração de algum dos candidatos oficiais ou de renúncia de Ildefonso
Soares Pinto - estratégias que estariam sendo montadas por Pinheiro
Machado -, como forma de garantir vaga para Fonseca Hermes, não se
confirmaram. Os próceres republicanos do Distrito, Firmino de Paula à
frente, deram seu recado à chefia suprema do PRR - ou seja, a Borges de
Medeiros e Pinheiro Machado. É evidente que aquele resultado eleitoral não
se produzira sem o conhecimento e anuência daqueles próceres. E embora a
falta de contestação ao resultado perante a comissão de reconhecimento da
Câmara Federal indicasse aceitação tácita daquele resultado pela chefia do
Partido, aparentemente o recado não foi bem compreendido. Tivesse sido,
provavelmente a indicação para senador teria recaído sobre Ramiro
Barcelos.
Entretanto, a eleição de Hermes da Fonseca para o Senado Federal
como representante do Rio Grande do Sul, era compromisso antigo e
inarredável de Pinheiro Machado para com aquele ex-Presidente. Fazia
parte dos arranjos elaborados por Pinheiro Machado com o intuito de
manter sua ascendência sobre o Senado, já ameaçada a partir da eleição de
Wenceslau Brás para suceder ao Marechal. Segundo Ramiro Barcelos
25
a
cadeira de senador que vagara com a morte do General Diogo Fortuna fora
prometida por Pinheiro para Hermes. A legislação da época, no entanto,
impedia que um ex-Presidente disputasse eleição para qualquer cargo até 6
meses após o término do seu mandato. Procurou-se, então, alguém que
aceitasse ocupar a senatoria até o término do período de inelegibilidade de
Hermes - 15/05/1915 -, renunciando naquele prazo. Convidado, o chefe
político de Pelotas, Cel. Pedro Osório, recusou a oferta, que foi aceita pelo
seu conterrâneo Dr. Joaquim Assumpção. Cumprido o período acertado,
Joaquim Assumpção, alegando razões de saúde, renunciou ao Senado
26
.
Mesmo que, num primeiro momento e em função dos
desdobramentos previsíveis, Borges de Medeiros tenha cogitado a indicação
de Ramiro Barcelos para substituir Joaquim Assumpção, acabou cedendo às
ponderações de Pinheiro Machado. O pleno exercício do poder por Borges
de Medeiros, enquanto Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, da
forma imaginada por ele e por Júlio de Castilhos, respaldando-se na
Constituição castilhista e garantindo a hegemonia total do PRR - e dentro do
25
Cf. Correio do Sul, Bagé, 15 de Junho de 1915.
26
Joaquim Assumpção faleceu poucos meses após a renúncia.
27
PRR, o poder absoluto dele, Borges de Medeiros -, demandava a
neutralidade do Governo Federal nas questões internas do Estado gaúcho.
Essa neutralidade era assegurada pela ação política de Pinheiro Machado a
partir do Senado Federal. Políticamente, o Rio Grande do Sul estava
virtualmente isolado do resto do país, constituindo-se no palco ideal para o
exercício sem peias do autoritarismo borgista. Logo, Borges de Medeiros
dependia do perfeito entendimento com Pinheiro Machado para governar
sem ser perturbado pelo Governo Federal. o iria arriscar-se a prejuízo
certo e de grande monta numa desavença com Pinheiro.
Primeiro chefe político do interior a ser consultado por Borges de
Medeiros quanto à indicação do Marechal como candidato ao Senado,
Firmino de Paula rejeitou-o com veemência. Imediatamente, manifestaram-
se da mesma forma outros pró-homens do PRR: Ramiro Barcelos, João
Francisco, Pedro Osório, Isidoro Neves da Fontoura, os irmãos José e
Carlos Barbosa Gonçalves, além de diversos chefes locais mais ou menos
expressivos, como foi o caso do Cel. Bráulio Oliveira.
João Neves da Fontoura sintetizou as razões dessa aversão e as
conseqüências da indicação:
5. O fim violento de Pinheiro foi preparado pela campanha
contrária à escolha do Mal. Hermes para a senatoria, vaga na
bancada do nosso Estado. Pinheiro entendeu que o dever do Rio
Grande era eleger o ex-Presidente. Mas a indicação de Hermes
reavivou as lutas que tanto perturbaram a paz nacional, durante o
quadriênio deste. Não há como contestar ao ilustre soldado todos
os títulos pessoais ao mandato. O que desencadeou a luta, no Rio
Grande, foi o fato de que ele não era um membro do Partido,
jamais pertencera às suas fileiras. Por outro lado, achando-se
então o Sr. Borges de Medeiros gravemente enfermo e mesmo
licenciado da presidência do Estado, a indicação (dias depois
expressamente ratificada por S. Exa.) parecia exorbitante dos
preceitos e costumes partidários. Fui um dos que se insurgiram
contra ela e a combati mesmo em praça pública.
Aqui [no Rio de Janeiro], a questão Hermes assumia outro
aspecto. Era uma forma de dar combate a Pinheiro, de liquidá-lo
como líder nacional. O epílogo foi o crime, perpetrado no
vestíbulo do antigo Hotel dos Estrangeiros. Dando prova de sua
alta linha moral, Hermes renunciou à cadeira, sem nela tomar
assento, apesar de eleito e reconhecido
27
.
Ainda Costa Porto indica razões da repulsa a Hermes, que, por
27
FONTOURA, João Neves da, op. cit., p. 202-203.
28
extensão, no plano nacional, recaía também sobre Pinheiro Machado:
A administração Hermes, impiedosamente combatida pelo
civilismo, se encerra em meio à mais sistemática repulsa e raras
vezes se terá visto maior onda de odiosidade do que aquela que
acompanhou o período do Marechal. Mas este ódio não visava
diretamente ao primeiro magistrado: de ricochete apanhava
Pinheiro, tido como o cérebro que ditava os atos do 'governo
nefando'. A paixão partidária chegava aos paroxismos, não
poupando o situacionismo, em cujo passivo arrolava a série de
investidas contra a autonomia dos estados, os desrespeitos ao
Judiciário, a exacerbação dos atentados às urnas através das
degolas, os crimes contra as garantias individuais, a podridão dos
costumes, os bombardeios de cidades abertas, a proteção às
batotas administrativas, o caos enfim, e tudo se levava a débito
do gaúcho, a quem se imputava a responsabilidade pela
degradação ambiente
28
.
A Hermes da Fonseca tudo de ruim era atribuído. Fazia-se chacota
do seu famoso pé-frio, chamava-se-lhe de Dudu da Urucubaca
29
. Negava-
se-lhe qualquer mérito em relação ao Rio Grande do Sul. Durante todo seu
mandato não teria propiciado qualquer melhoramento ao estado. Sua atitude
em relação ao Rio Grande havia sido, apenas, de conivência com o jogo
político de Pinheiro Machado. Era acusado de haver promovido
empreguismo e nepotismo
30
. Era responsabilizado pelas intervenções nos
estados, por haver lançado o país num caos financeiro e por haver
promovido verdadeira orgia tributária.
Esclareça-se que nessas críticas não se fazia a mínima concessão a
Hermes da Fonseca, abstraindo-se, convenientemente, toda a situação
internacional. A violenta crise mundial que culminou, ainda nos últimos
dias do governo Hermes, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, não
era em momento algum referida, como se a ela fosse o Brasil imune.
Enfim, segundo seus críticos, faltavam a Hermes da Fonseca méritos
e atributos morais que o fizessem digno da investidura como senador pelo
Rio Grande, pois, como se não bastasse todo o resto,
28
PORTO, Costa. Pinheiro Machado e Seu Tempo. 2ed. Porto Alegre: L&PM, 1985. p. 184.
29
Fazia sucesso nessa época a marchinha 'Filomena': Filomena/ Se eu fosse como tu / Tirava a urucubaca /
Da careca do Dudu.
30
Sobre o nepotismo ver: SOUZA, Maria do Carmo Campello e. O Processo Político-Partidário na Primeira
República. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em Perspectiva.12ed. São Paulo/Rio de Janeiro:
DIFEL, 1981, p. 203. E ainda: CARONE, Edgard, op. cit., p. 270.
29
Deixou como da sua passagem pela Presidência da República um
montão de desordens, roubalheiras, fazendo até cantar nas
recepções oficiais o Corta Jaca com acompanhamento de
violão
31
.
Mas o grande argumento brandido contra a candidatura senatorial de
Hermes da Fonseca foi o de que não houve consulta ao PRR, tendo sido
decidida exclusivamente por Pinheiro Machado e imposta a Borges de
Medeiros. Aliás, o Marechal nem ao menos era membro do PRR - forte
agravante. Valia-se Pinheiro Machado de um momento de extrema
fragilidade de Borges de Medeiros, acometido de grave enfermidade, para
impor uma candidatura espúria, indesejada, exorbitando da confiança do
Partido e, principalmente, do chefe supremo. Rejeitavam, pois, os chefes
regionais e locais do PRR, não apenas a candidatura Hermes, mas também,
e por extensão, a atitude autocrática de Pinheiro Machado. Como, face à
doença de Borges de Medeiros, estivesse governando o estado o vice-
presidente Salvador Pinheiro Machado, também o seu governo era rejeitado,
pois entendia-se que Salvador estava mancomunado com o irmão com o
intuito de alijarem aqueles próceres republicanos das decisões partidárias e
governamentais. A proclamação oficial da candidatura senatorial de Hermes
da Fonseca justamente a 29 de Junho, data sagrada em que os republicanos
gaúchos festejavam as memórias de Júlio de Castilhos e Floriano Peixoto,
aumentou a irritação daqueles chefes republicanos.
Carlos Barbosa Gonçalves entendia que a enfermidade de Borges de
Medeiros isentava-o de responsabilidades nessa trama, e sugeria a
substituição da chefia do PRR, "a fim de que ela exprima a suprema e livre
vontade do Partido"
32
. Firmino Paim, oficial de gabinete de Borges de
Medeiros, no entanto, em carta enviada ao jornal A Federação em 2 de
julho, sustentava que a escolha de Hermes da Fonseca era de
responsabilidade do Presidente do Estado e Chefe do Partido, reproduzindo,
inclusive, telegrama de Borges a Pinheiro Machado:
Forçado absoluto repouso, em conseqüência moléstia que ainda
me retém ao leito, não expedi, por isso, decreto marcando dia da
eleição senatorial, nem pela mesma razão vos comuniquei logo a
propaganda improvisada por alguns discolos e pretenciosos,
tendo à frente Ramiro Barcellos, sempre insaciável e
31
Correio Mercantil, Pelotas, 01 de Julho de 1915. O comentário refere-se ao recital organizado por D. Nair
de Teffé, esposa de Hermes da Fonseca, para o lançamento do Corta Jaca, maxixe composto e
interpretado ao violão por Chiquinha Gonzaga. A alta sociedade de então renegava o maxixe, ritmo cuja
origem era associada aos cantos e danças, consideradas lascivas, dos negros.
32
Correio Mercantil, Pelotas, 01 de Julho de 1915.
30
incorrigível.
Confiante na exemplaríssima inteireza moral e cívica do nosso
Partido, não receio defecções nem tibiezas na sustentação da
candidatura Hermes. Entretanto, é de bom alvitre apressar a
eleição e lançar desde já, oficialmente, a referida candidatura
33
.
Prosseguia o telegrama com instruções para Pinheiro de como este
deveria proceder para comunicar ao próprio Borges e ao Partido a indicação
de Hermes da Fonseca. Seguindo estas instruções, e conforme é referido por
Firmino Paim na mesma carta, Pinheiro enviou a Borges um eloqüente
telegrama, lançando o Marechal como candidato ao Senado. Borges deu,
então, ordens para que o telegrama fosse publicado n'A Federação do dia 29
de junho, e que naquele dia fossem expedidos telegramas consultando os
chefes locais do Partido sobre a candidatura lançada. Essa determinação de
Borges de Medeiros demonstra a sua insegurança quanto à reação desses
chefes locais e regionais do Partido à indicação feita, insegurança essa já
manifestada no telegrama citado. Era necessário colher de surpresa aqueles
chefes, colocá-los diante do fato consumado, sem dar-lhes oportunidade de
manifestação prévia. A anormalidade dessa atitude de Borges de Medeiros
fica clara se for considerado que, por ocasião da indicação - meses mais
tarde - dos candidatos ao Senado que deveriam substituir o falecido senador
Pinheiro Machado e o renunciante Hermes da Fonseca, assim manifestou-se
A Federação, em editorial transcrito por outros jornais republicanos do
Estado:
De posse da resposta favorável de todos os chefes locais
consultados a respeito, segundo as praxes do Partido
Republicano Riograndense, esta disciplinada agremiação política
proclama, hoje, seus candidatos às duas vagas existentes, por
este Estado, no Senado Federal
34
.
Ramiro Barcelos verberava Pinheiro Machado, acusando-o de
"sibaritismo político", cuja grande contribuição à política nacional era a
implantação do " escrutínio sistematizado", o que estava levando o
sistema republicano à "bancarrota"
35
. Até mesmo o lendário - e temido -
coronel João Francisco Pereira de Souza manifestou-se, através de carta
aberta divulgada em Santana do Livramento, em Julho de 1915. Nessa carta
aberta, glorificava os grandes heróis da República, Júlio de Castilhos e
33
Diário Popular, Pelotas, 08 de Julho de 1915.
34
Diário Popular, Pelotas, 20 de novembro de 1915.Grifo nosso.
35
Cf. Correio Mercantil, Pelotas, 05 de Julho de 1915.
31
Floriano Peixoto, e atribuía à fraqueza e incompetência de Borges de
Medeiros a crise por que passava o PRR e o estado, conclamando os
republicanos legítimos - como ele, Firmino de Paula, Fernando Abbott,
Pedro Osório, Isidoro Neves da Fontoura, Carlos Barbosa, Ramiro Barcelos
- a se unirem para regenerarem o estado. As bases dessa regeneração
deveriam ser o "castilhismo" e a Constituição de 14 de Julho, "instrumento
perfeito", "democrático". Paradoxalmente, para quem considerava a
Constituição Castilhista um instrumento democrático, João Francisco -
talvez mais próximo do revolucionário de 1924 do que do governista de
1893 - afirmava que
o povo, que aderiu à República em 15 de Novembro, até hoje
ainda não exerceu o seu inalienável direito de voto, escolhendo
livremente os seus representantes.
[...]
As minorias governam as maiorias reais...
[...]
Justiça e Liberdade...
36
.
O repúdio ao nome de Hermes da Fonseca era imenso, não
dúvida. Era, no entanto, de ordem tal que explicasse - como aparentemente
faz - toda a celeuma, todo o debate e mesmo o enfrentamento político que
se deu nesse momento entre grandes lideranças do PRR? Afinal, desse
episódio resultaram seqüelas irremediáveis, cujo maior símbolo talvez seja
o Antônio Chimango, de Ramiro Barcelos. Seria uma desavença em torno
da indicação de um candidato a senador - ainda que o candidato fosse
Hermes - suficiente para explicar um confronto em que periclitou a unidade
do PRR e a sua própria hegemonia na política rio-grandense? É provável
que não. Ao que tudo indica, o fator complicador no caso, mais do que a
rejeição a Hermes, mais do que a contestação a Pinheiro, foi a enfermidade
de Borges de Medeiros.
Combinaram-se, naquele momento, fatores que permitiram aos
chefes regionais do PRR vislumbrar a possibilidade de aumentar seu poder
real dentro do Partido e junto ao governo do estado. As duas grandes
lideranças estaduais do PRR estavam fragilizadas. Borges de Medeiros por
razões de saúde; quanto a Pinheiro Machado, os sinais do declínio do seu
poder, no plano nacional, eram visíveis. A eleição de Wenceslau Brás para a
Presidência da República e a forte campanha contra o senador gaúcho nas
casas do Congresso Nacional e pela imprensa do centro do país, mostravam-
no em debilitação. A profunda identificação de Pinheiro Machado com o
36
Correio Mercantil, Pelotas, 04 de Agosto de 1915.
32
governo de Hermes da Fonseca - tido por todos como desastroso - tornava-o
alvo da mesma antipatia que se devotava ao ex-Presidente. Ao decidir
bancar a candidatura de Hermes ao senado, Pinheiro deflagrou, então, muito
mais do que um debate em torno da sua posição dentro do Partido:
deflagrou um debate em torno do futuro do PRR e da sucessão de Borges de
Medeiros na chefia do Partido - e, por extensão, na Presidência do Estado.
Enquanto Pinheiro, pelo que foi exposto, não era visto como alguém
incontestável no seio do Partido, Borges de Medeiros era tido, por
muitos, como carta fora do baralho. Sua doença agravava-se, não havendo
qualquer sinal de recuperação. Indicativo da gravidade da doença era o fato
de Borges delegar poderes, o que contrastava com sua personalidade:
licenciara-se da Presidência, chamando seu substituto legal, o general
Salvador Pinheiro Machado; incumbira Protásio Alves das articulações
políticas quotidianas que o controle do estado demandava. Para muitos, isso
significava apenas uma coisa: Borges de Medeiros estava à morte.
Especulações quanto a seu verdadeiro estado de saúde pipocavam pelos
jornais; uma certeza se consolidava: Borges estava moribundo. Teria sido
esse o argumento utilizado por Ramiro Barcelos junto aos republicanos
serranos para atacar a candidatura Hermes:
Combativo, Ramiro vem à serra e convence diversos chefes
regionais, inclusive Firmino de Paula, de que o sr. Borges de
Medeiros estava às portas da morte e que a política situacionista
estava sendo conduzida por elementos palacianos, sem
credenciais que os recomendassem para funções de tão alta
responsabilidade
37
.
Era em respeito à memória do ilustre republicano que se extinguia,
fazendo-se tão venerável quanto Júlio de Castilhos, Floriano Peixoto e o
próprio Augusto Comte, que se o poupava das críticas e eximia de
responsabilidades - a exceção nessa postura era João Francisco.
Isso não significa, no entanto, que não houvesse descontentamento
também com relação à atuação do Chefe supremo do Partido. A política de
fomentar as dissidências locais não era entendida pelos coronéis
republicanos, gerando profunda insatisfação em relação a Borges de
Medeiros. Este, considerando que aqueles não tinham capacidade para
entender todos os meandros das articulações políticas, levava rigorosamente
a sério sua filosofia de que 'vocês pensam que pensam, mas quem pensa sou
eu' e não se preocupava em explicar-lhes - em alguns aspectos nem poderia
37
MACHADO, José Olavo. História de Santo Ângelo: das Missões aos nossos dias. Santo Ângelo: Ed. do
Autor, 1981, p. 31.
33
- que era preferível uma boa dissidência local alinhada à sua orientação do
que uma oposição efetiva, ainda que pouco organizada. As dissidências
permitiam cumprir a lei eleitoral de representação da minoria sem abrir
espaço para a representação da oposição; dois chefes locais disputando o
poder e querendo agradar ao Chefe do Partido, aumentavam a eficiência da
máquina do PRR no município; e a consciência de que poderiam ser
substituídos a qualquer momento tornava os chefes locais mais submissos.
O mal estar provocado por essa política de Borges de Medeiros era
percebido pela oposição, que via aí um sinal de fraqueza do PRR. Ainda em
abril de 1915, Paulo Labarthe, articulista do Correio do Sul, publicou
matéria em que analisava esta política, enumerando vários líderes
republicanos, desde Aparício Mariense e Fernando Abbott até Firmino de
Paula, alijados do poder, ou em vias de o serem, por Borges de Medeiros
38
.
Aquele era o momento de definir e ocupar posições, estabelecer
alianças com vistas à sucessão de Borges de Medeiros. Qualquer demora
nesse sentido poderia significar o domínio total do clã Pinheiro Machado
sobre o PRR e o governo do estado. Tratava-se, pois, de um enfrentamento
entre um grupo das mais significativas e tradicionais lideranças do PRR no
interior do estado - a rigor republicanos da propaganda - articulados em
torno de Ramiro Barcelos, de um lado, e outras lideranças articuladas em
torno do senador Pinheiro Machado. Borges de Medeiros, aparentemente,
estava neutralizado.
No entanto, desde seu leito, não descuidava o Papa Verde dos seus
monges. Protásio Alves fazia, com competência e fidelidade, a ligação entre
o enfermo e o universo da política rio-grandense. Como a dissidência
cogitasse a indicação de um dos irmãos Barbosa Gonçalves para disputar a
senatoria com Hermes da Fonseca, Borges de Medeiros fez chamá-los a
Porto Alegre, ainda antes de os mesmos se reunirem com Ramiro Barcelos
para acertar a candidatura, e ofereceu uma Secretaria a José Barbosa
Gonçalves. Com o irmão integrando o governo, Carlos Barbosa Gonçalves
reviu sua posição, buscando uma aparente neutralidade e distanciamento, no
que foi secundado por Pedro Osório
39
.
Mas o movimento de resistência à candidatura Hermes da Fonseca
não estava restrito às lideranças do PRR. A questão não era entendida como
interna ao PRR, mas como uma questão que dizia respeito ao conjunto da
sociedade gaúcha e mesmo brasileira. A imprensa do centro do país apelava
38
LABARTHE, Paulo. Partido em Ruínas. In: Correio do Sul, Bagé, 24 de Abril de 1915.
39
Pela proximidade e posição geográfica, Pelotas e Jaguarão constituíam uma mesma área de influência,
onde sobressaía a liderança dos jaguarenses Barbosa Gonçalves, mesmo frente à expressão do pelotense
Osório.
34
aos gaúchos para que não dessem assento no Senado ao ex-Presidente da
República. Acadêmicos gaúchos formaram um bloco anti-Hermes, em cuja
liderança destacaram-se, entre outros, os jovens Osvaldo Aranha e Raul
Pilla. O auge das manifestações contra Hermes da Fonseca aconteceu em 14
de Julho de 1915 - data festiva para os republicanos rio-grandenses -,
quando foi realizado um comício no centro de Porto Alegre, à feição dos
comícios que vinham ocorrendo na Capital Federal com o mesmo propósito.
Após o comício, um cortejo de manifestantes seguia pela Rua dos Andradas
quando foi atacado por um piquete da Brigada Militar - mais exatamente, da
Guarda Presidencial. Resultaram do confronto sete mortos e 28 feridos,
tendo a capital gaúcha vivido uma noite de grande tensão. O tumulto só teve
fim com a intervenção do General Ildefonso Pires de Moraes Castro,
comandante da 10ª Brigada de Infantaria, do exército federal, que declarou
publicamente seu apoio aos manifestantes.
Apesar das manifestações de repúdio, apesar do lançamento da
candidatura de Ramiro Barcelos pelos dissidentes, e apesar da atitude dos
chefes republicanos descontentes, que organizaram a eleição nos seus
aspectos formais, mas não votaram nem convidaram o seu eleitorado a
votar, deixando-o livre, o Marechal foi eleito. E, para espanto e indignação
dos que contestaram sua candidatura, obteve maior número de votos que
Pinheiro Machado em sua última reeleição.
A rejeição a Hermes da Fonseca aumentou após o assassinato de
Pinheiro Machado, jogando-se sobre o ex-Presidente da República a
responsabilidade pelo acirramento dos ódios que levaram ao crime. Os
jornais anti-Hermistas recusavam-se, a partir da eleição e por meses, a citar
o nome do Marechal
40
. Era tal a animosidade contra ele, que Hermes da
Fonseca terminou por renunciar à senatoria, sem nunca chegar a tomar
posse, mesmo tendo sido reconhecido. Convocado pela Secretaria do
Senado, em 14 de setembro, para tomar posse de sua cadeira de Senador, o
ex-Presidente da República comunicou ao secretário, em 28 de setembro,
que renunciava à investidura. Justificou sua atitude, ainda em 15 de
setembro, em carta enviada a Borges de Medeiros:
Profunda é a dor que me punge n'alma desde o infame e bárbaro
assassinato do meu leal e muito querido amigo general Pinheiro
40
O Correio Mercantil, de Pelotas, por exemplo, publicou matérias e notícias suas ou transcritas de outros
jornais em que, no lugar do seu nome, Hermes da Fonseca era referido como: o senador votado na eleição
de 2 de agosto, o senador recentemente reconhecido, o marido de D. Nair de Teffé, o "aquele", o senador
e ex-presidente, o senador 'manqué', o senador que sucedeu ao Dr. Joaquim Assumpção, o senador
militar, o genro do Barão de Teffé, o desprezado senador rio-grandense, o senador casado com a filha do
Barão de Teffé. Alertavam, os jornais, que dava azar pronunciar seu nome.
35
Machado.
Com ele, acabou também a minha carreira política, da qual me
retiro definitivamente, cônscio de haver honrado o elevado cargo
que somente por instâncias suas exerci até 15 de novembro do
ano passado.
Com ele e o nosso Partido governei durante todo o quadriênio,
sempre solidários com todos os atos do meu governo
41
.
A recuperação de Borges de Medeiros e o trauma provocado pelo
assassinato de Pinheiro Machado fizeram arrefecer o ímpeto da dissidência.
A morte de Pinheiro Machado abriu espaço para que voltasse a agitar-se, no
Congresso, a bandeira da reforma da Constituição Federal. Caso essa
reforma se efetivasse, a sua primeira vítima seria, sem dúvida, a
Constituição Estadual do Rio Grande do Sul, um dos principais alvos na
mira dos reformistas. Para enfrentar esse perigo, agora que faltava a ação
sempre tão eficiente de Pinheiro Machado, era necessário congregar forças.
Borges de Medeiros começou, então, a chamar diversos dos chefes locais e
regionais do PRR que se achavam afastados, como Carlos Barbosa e o
próprio Firmino de Paula
42
. Persistiu, no entanto, na sua política de
fomentar as dissidências locais.
41
Diário Popular, Pelotas, 04 de outubro de 1915.
42
Cf. Correio do Sul, Bagé, 19 de Janeiro de 1916.
2. CORONEL BRÁULIO E GENERAL FIRMINO:
LEALDADE E DISSENSÃO.
Em Santo Ângelo, a dissensão estabeleceu-se a partir da candidatura
Hermes à senatoria, mas desenvolveu-se e aprofundou-se com a disputa
decorrente da eleição intendencial que se deveria proceder em julho de
1916. Convenientemente administrada por Borges de Medeiros, essa
dissensão marcou a política daquele município pelo resto da Primeira
República, embora sem lograr a neutralização completa do poderoso chefe
local do PRR, o coronel Bráulio Oliveira.
Na tentativa de neutralizá-lo, mobilizou-se um interventor nomeado
por Borges de Medeiros, o sr. Álvaro Silveira; atuou intensamente aquele
que tornou-se o arqui-rival do coronel na política municipal, o capitão
Damaso Gomes de Castro, o Capitão Damas; e agiu, ardilosamente,
apostando no desgaste do coronel e de seus oponentes para surgir perante
Borges de Medeiros como tertius, o major Joaquim Rolim de Moura.
Nenhum deles, porém, conseguiu suplantar Bráulio Oliveira e assumir a
direção da política municipal.
Borges de Medeiros agiu sempre dubiamente no trato das questões
relativas à política de Santo Ângelo durante a crise, que teve sua maior
intensidade naquele município no período de 1915 a 1920, encorajando os
adversários do coronel, mas nunca o atacando ou desautorizando-o
explicitamente. Mais contribuíram para fragilizar Bráulio Oliveira perante
Borges de Medeiros certas atitudes de dependentes políticos seus do que as
ações de seus adversários.
Sobre os adversários republicanos do coronel Bráulio praticamente
inexistem informações. O interventor Álvaro Silveira, depois de
praticamente hostilizar Bráulio Oliveira e aproximar-se de Damaso Gomes
de Castro - aparentemente seguindo instruções de Borges de Medeiros -,
inverte sua posição, aliando-se ao coronel, para desespero do capitão.
Elegeu-se intendente, com apoio das duas facções do PRR - braulistas e
38
damistas -, tornou-se um braulista e renunciou à intendência poucos meses
após tomar posse, sumindo do cenário político santo-angelense. Sobre sua
renúncia ou seu destino depois dela nada foi possível apurar.
Em seu lugar assumiu o vice-intendente eleito, o major Joaquim
Rolim de Moura. o obtendo sucesso em sua tentativa de ser reconhecido
por Borges de Medeiros como diretor da política local, procurou manter-se
eqüidistante do braulismo e do damismo. Cumpriu o mandato até o final,
em 1920, quando transmitiu o governo municipal a Bráulio Oliveira,
novamente eleito com o beneplácito de Borges de Medeiros. O coronel, ao
reassumir a intendência, fez fortes críticas à administração do major. Este
ainda atuou militarmente nos movimentos ocorridos no estado nos anos 20 e
em 1930, sempre ao lado do governo e subordinado ao coronel Bráulio.
Quanto ao capitão Damaso Gomes de Castro, apesar do apoio -
nunca absoluto - de Borges de Medeiros, não conseguiu assumir o controle
político de Santo Ângelo, tendo apenas conseguido, durante a administração
Álvaro Silveira-Joaquim Rolim de Moura, a nomeação como Delegado de
Polícia. Exerceu o cargo com inigualável rigor, o que lhe rendeu inúmeras
denúncias de abuso do poder, feitas por braulistas e oposicionistas, e um
lugar certo na memória dos habitantes do município missioneiro. Vendo
frustrada sua esperança de eleger-se intendente de Santo Ângelo em 1920, e
não conseguindo nem ao menos influenciar na escolha do candidato -
Borges de Medeiros aceitou a indicação de Bráulio Oliveira -, Damaso
Gomes de Castro afastou-se do PRR, desgostoso com o chefe supremo do
Partido. Em 1922, o capitão Damas telegrafou a Assis Brasil, manifestando
sua solidariedade à candidatura deste à Presidência do Estado, pela Aliança
Libertadora. Afirmava Damaso, no telegrama, que a candidatura de Assis
Brasil representava um protesto contra o governo Borges de Medeiros, que
era uma verdadeira aberração dos princípios republicanos
43
. Em 1929,
Damaso Gomes de Castro foi ativo propagandista da candidatura de Júlio
Prestes à Presidência da República
44
.
Bráulio Oliveira
45
era natural de Santo Ângelo, onde nasceu no
Distrito - Santa Cruz - a 10 de outubro de 1862. Seu pai, Joaquim Tiburcio
de Oliveira, ao final da Guerra do Paraguai - na qual tomara parte com o
posto de tenente - decidiu estabelecer-se em Posadas, na Argentina, para ali
trazendo a esposa, Emília Taborda de Oliveira, e os filhos.
43
Cf. Telegrama de Damaso Gomes de Castro a Assis Brasil. Santo Ângelo, 18 de outubro de 1922.
AAB/CDPC/UFRGS.
44
Cf. CALLAI, Olmiro. Entrevista. Giruá, 12 de janeiro de 1993.
45
Todos os dados biográficos de Bráulio Oliveira foram fornecidos por Raul Vinhas, neto do mesmo, em
entrevista concedida em 12 e 13 de Janeiro de 1993, em Santo Ângelo.
39
Em Posadas, Bráulio Oliveira iniciou estudos elementares, em 1874.
Na mesma cidade ocupou seu primeiro emprego, no escritório de
importante casa comercial, a partir de 1878. Em 1881, já como gerente
associado e agente de vapores da filial da mesma casa comercial, transferiu-
se para Ituzaingó. Foi só em dezembro de 1885, acometido por enfermidade
decorrente de trabalho excessivo, que, seguindo orientação médica, retornou
a Santo Ângelo. Apenas em 1887 recuperou-se de seus problemas de saúde,
tratando então de dedicar-se, novamente, ao comércio, tendo para tanto
estabelecido sociedade com um seu parente. Por pouco tempo manteve a
sociedade, desfazendo-a já em 1888.
Ainda nesse mesmo ano, a 26 de maio, contraiu núpcias com
Belmira Moraes, filha do capitão José Pedroso de Moraes Neto, fazendeiro,
e de D. Maria Castilhos de Moraes. Provavelmente, foi esse casamento o
fator determinante do rumo que haveria de tomar a vida de Bráulio Oliveira,
levando-o a tornar-se o poderoso diretor da política republicana santo-
angelense durante as três primeiras décadas do século XX. Mais do que uma
possível herança fundiária, trazia-lhe a esposa laços de parentesco que, se
naquele momento - nos últimos anos do Império - aparentemente pouco
representavam, muito significativos iriam tornar-se com o advento do
regime republicano.
Coronel Bráulio Oliveira
D. Belmira Moraes ligava-se, através de sua mãe, à família
Castilhos, o que a fazia parente próxima de Júlio de Castilhos e da esposa
de Firmino de Paula, então fazendeiro em Santo Ângelo. O parentesco de
40
Júlio de Castilhos com as esposas de Firmino de Paula e Bráulio Oliveira
foi, provavelmente, a base da profunda amizade e irrestrita lealdade que se
estabeleceu entre estes três políticos republicanos. Lealdade que, após a
morte de Castilhos, Bráulio Oliveira dedicou de tal forma a Firmino de
Paula que não titubeou a, quando da dissensão entre Firmino e Borges de
Medeiros, colocar-se incondicionalmente ao lado do general. Considerando
que as informações acerca do envolvimento de Bráulio Oliveira com a
propaganda republicana são posteriores à notícia do seu casamento, é de
supor-se que ele tenha sido atraído às lides políticas pelos seus neoparentes.
Uma vez envolvido com os propagandistas da república e vinculado
ao Clube Republicano - fundado em Santo Ângelo por Venâncio Ayres,
com o auxílio de Firmino de Paula, entre outros -, Bráulio Oliveira
desenvolveu intensa atividade de propaganda.
A ascendência que sobre ele tinha, já então, Firmino de Paula, bem
como a concepção que tinham do caráter da organização partidária -
obviamente inspirada pelo positivismo ortodoxo de Júlio de Castilhos -,
transparecem na correspondência mantida entre os dois, de que é exemplo a
seguinte carta de Firmino a Bráulio:
Hoje saiu daqui o meu sobrinho Francisco Anes, que veio com a
família visitar-nos, e combinamos fazer uma reunião republicana
no dia 14 de julho. Por esse motivo faço esta muito às pressas,
prevenindo-lhe que no dia 13 esteja sem falta em Santo Ângelo,
para esse fim, e que convoque a todos os nossos correligionários
para se acharem presentes nesse dia. Será de muita conveniência
que convide para essa reunião mesmo aqueles que não sendo
eleitores presentemente, sejam maiores de 21 anos e reúnam as
condições de serem eleitores com o alargamento do voto, etc.,
etc. Convém muito darmos ao nosso partido uma organização
mais enérgica. Portanto, envide os esforços para comparecerem
todos os nossos companheiros
46
.
Na reunião convocada por Firmino de Paula através desta carta, e
efetivamente realizada no dia 14 de Julho de 1889, foi Bráulio eleito
secretário do Clube Republicano Venâncio Ayres, indício seguro de sua
dedicação e fidelidade à causa republicana.
Esclarecedora da posição que ocupava Bráulio Oliveira entre os
republicanos da propaganda, e das relações que se estabeleciam e
consolidavam nos primeiros dias do regime instalado a partir de 15 de
novembro de 1889, é outra carta de Firmino:
46
Carta de Firmino de Paula a Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 18 de junho de 1889. ABO/Raul Vinhas.
41
Amanhã sigo para Porto Alegre e salvo força maior, devo estar
no dia 5 nessa vila. Peço-vos que convoque todos os nossos
companheiros para uma reunião no dia 5 à noite e providencie
tudo a fim de efetuar-se dita reunião, mesmo caso eu chegue
tarde. Vou tratar de fazer com que sejam nomeadas as
autoridades policiais desse município. Por isso é de grande
necessidade. Não adiantem, porém, nada nesse sentido. O amigo
Frederico melhor vos explicará as coisas. Tudo vai em completa
paz e o governo está mais que firme, é fato consumado. Viva a
República
47
.
Dias depois, Bráulio Oliveira foi nomeado pelo Visconde de Pelotas
- chefe do governo provisório do estado - como Delegado de Polícia de
Santo Ângelo - primeiro cargo público exercido por ele. No ano seguinte,
assumiu a função de escriturário da Colônia Guarani, cargo do qual afastou-
se em 1893, com a deflagração da Revolução Federalista.
A Revolução Federalista propiciou a Bráulio Oliveira a oportunidade
de ascender na hierarquia do Partido, além de ter consolidado ainda mais os
laços de amizade e fidelidade entre ele e Firmino de Paula. Seu prestígio
político e sua autoridade no seio do PRR, nos veis municipal e estadual,
nos anos seguintes, derivaram, em larga medida, do apoio que recebia de
Firmino de Paula, cujo prestígio ampliou-se e consolidou-se durante a
Revolução. Mas, por sua própria atuação naquela guerra civil, logrou
Bráulio Oliveira, por outra parte, reunir méritos, perante o Partido, que o
ajudaram a alcançar prestígio e autoridade.
Como não poderia deixar de ser, tão logo o governo estadual
começou a organizar as forças que iriam enfrentar os Federalistas rebelados,
Bráulio Oliveira incorporou-se à Brigada que seria comandada por Firmino
de Paula, que recebera a patente de coronel. A Bráulio outorgou-se a patente
de major, ocupando ele a função de major-assistente, integrando o estado-
maior da Brigada, comandada pelo coronel Firmino, e que integrava a
Divisão do Norte, organizada por Pinheiro Machado.
Em 1894, tendo perecido em combate no Campo Novo o
comandante do Corpo da Brigada, tenente-coronel Ernesto Kruel, foi
Bráulio designado para comandar aquele Corpo. Neste comando
permaneceu até o encerramento da luta, em 1895
48
.
47
Carta de Firmino de Paula a Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 22 de novembro de 1889. ABO/Raul Vinhas.
Grifo nosso.
48
É de notar-se que, apesar de haver ocupado posições hierárquicas e funcionais, durante a guerra civil, que o
situavam muito próximo de Firmino de Paula, ao qual estava ainda estreitamente vinculado por laços de
amizade e parentesco, não se sabe de qualquer acusação ou insinuação, contra Bráulio Oliveira, de co-
42
Reassumindo sua função de escriturário na Colônia Guarani, Bráulio
nela permaneceu apenas até a realização de eleições municipais, em 20 de
setembro de 1896, quando foi eleito membro do Conselho Municipal.
Iniciava, então, nova etapa em sua vida política, passando do exercício de
funções subalternas, de nomeação, para funções superiores, eletivas.
Funções estas mais compatíveis com a posição de quem iniciara sua
participação na guerra civil como major e dela saíra no destacado posto de
coronel. Ocupou, durante o exercício deste primeiro mandato, os cargos de
Vice-Presidente e, durante o último ano do período, Presidente do
Conselho.
No dia 3 de julho de 1900, Bráulio Oliveira foi eleito, pela primeira
vez, intendente do município de Santo Ângelo. A investidura de Bráulio nos
postos mais elevados da política municipal coincidiu com a transferência e
promoção política de Firmino de Paula, que foi deslocado por Júlio de
Castilhos para Cruz Alta, onde iria substituir na chefia política o coronel
José Gabriel, e de onde passou a dirigir a política de toda a região serrana.
Para substituí-lo e representá-lo no plano municipal, em Santo Ângelo, o
general Firmino indicou, justamente, o coronel Bráulio.
Assim, Bráulio Oliveira ascendeu, a um tempo, à condição de
chefe do Poder Executivo municipal e de diretor da política republicana no
município, como chefe local do PRR. É com esse duplo credenciamento que
irá ocupar diretamente a administração do município, em função de
sucessivas reeleições, durante 20 anos: 1900-1904, 1904-1908, 1908-19l2,
1912-1916 e 1920-1924. Sua influência, no entanto, foi marcante mesmo
nos períodos em que não ocupou o cargo de intendente.
Ainda em 1904, mereceu de Firmino de Paula outra manifestação do
apreço que este lhe dedicava. Foi indicado pelo general para ocupar uma
vaga na Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, conforme
telegrama deste a Borges de Medeiros:
Em virtude gentileza me dispensaste, autorizando-me a escolher
meu substituto Assembléia Representantes, indico patriota e
digno republicano Coronel Bráulio Oliveira, cujos reais
merecimentos parece-me escusado apreciar
49
.
Aceita a indicação, foi o coronel eleito para a 5ª Legislatura (1905-
1908). Ao que parece, porém, sua passagem pela Assembléia foi rápida e
responsabilidade ou participação em fatos ominosos, como o massacre do Boi Preto ou a violação da
sepultura e cadáver de Gumercindo Saraiva, que deram triste notoriedade a Firmino.
49
Telegrama de Firmino de Paula a Borges de Medeiros. Minuta. Cruz Alta, s/d [1904]. ABO/Raul Vinhas.
43
inexpressiva, em que pese haver integrado a Comissão de Orçamento -
significativa numa Assembléia cuja função precípua era discutir e votar o
orçamento estadual
50
. Sua vocação, aparentemente, era a política municipal.
O apreço do general Firmino de Paula era plenamente retribuído. E
foi essa retribuição, manifestada em radical lealdade, que determinou um
interregno de um quatriênio na ocupação do cargo de intendente e de chefe
municipal do PRR por Bráulio Oliveira, entre 1916 e 1920.
Obviamente, este afastamento do coronel das funções executivas
mais importantes do município deveu-se à posição por ele adotada no
episódio da candidatura e eleição de Hermes da Fonseca ao Senado Federal,
em 1915. Face à atitude do general Firmino com relação à candidatura,
Bráulio também recusou-se a aceitá-la, ficando em situação muito difícil
frente a Borges de Medeiros. Tendo inicialmente aceitado a candidatura,
antes de conhecer a posição de Firmino de Paula, assim justificou a Borges
de Medeiros sua atitude de solidariedade ao general:
A lealdade manda declarar a V.Exa. que eu sentir-me-ia
diminuído e desleal se votasse ou convidasse um só eleitor,
quebrando assim a solidariedade que venho mantendo com o
General Firmino, desde os saudosos tempos da propaganda
republicana e amargos dias de sacrifício na defesa das nossas
instituições
51
.
Justificando-se ainda, pelo mesmo fato, perante o general Salvador
Pinheiro Machado, Vice-Presidente do estado no exercício da Presidência, e
por existir entre os dois antiga amizade, Bráulio foi mais expansivo,
deixando claras as razões de sua lealdade:
Agora quanto à minha atitude. Como também és sabedor, fui
companheiro do Gal. Firmino nos tempos ditosos da propaganda,
sempre estive ao seu lado nos amargos dias de sacrifícios em que
nossas vidas perigavam pela Pátria; depois, nas amenas épocas
da paz fui e tenho sido seu servidor dedicado; ele sempre
honrou-me e distinguiu-me com a sua confiança ilimitada, nos
seus exemplos de civismo eu me eduquei e aos seus gestos e
ação me identifiquei.
50
O exame dos anais da Assembléia relativos à 5ª Legislatura permitiu constatar a presença assídua do
coronel unicamente nas sessões do período legislativo de 1905, não havendo registro de qualquer
intervenção sua nos debates.
51
Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 23 de agosto de 1915. ABM/IHGRS.
44
Como, pois, proceder de outra maneira em face ao seu modo de
pensar e agir relativo à candidatura do Marechal?
Seria um desleal, ingrato e traidor, não acompanhando a quem
tão somente devo as posições que tenho ocupado e de quem sou
amigo deveras.
Coloque-se o meu caro amigo em ambas as posições e diga-me
na qualidade de chefe como julgaria o soldado e como soldado o
que lhe ditaria o dever de lealdade
52
.
Em telegrama a Augusto Pestana, o coronel foi mais sucinto, mas
não menos incisivo e claro:
Quanto minha atitude pessoal, desnecessário é repetir que
companheiro abnegado General desde tempos propaganda e
amargos dias sacrifícios, dele sou, sempre serei sincero amigo,
solidário qualquer terreno
53
.
A preocupação do coronel em justificar-se perante a chefia e alguns
dos principais quadros do Partido demonstra sua percepção da fragilidade
em que o deixava a posição que adotara. Não podia, de forma alguma,
afastar-se do general Firmino de Paula. Por outro lado, não queria passar
uma imagem de indisciplinado, insubordinado, em relação à chefia do
Partido. Isso equivaleria a afastar-se do PRR, o que representaria sua morte
política. Procurava, então, demonstrar que sua atitude era ditada por razões
de ordem moral e pessoal, e não por razões políticas. o discutia as razões
da insatisfação de Firmino com a indicação da candidatura Hermes: isso
significaria posicionar-se politicamente em relação à chefia do PRR -
Borges de Medeiros e Pinheiro Machado. Deixava claro que estava ao lado
de Firmino de Paula nesta questão como estaria em qualquer outra,
independente de sua natureza. Ao mesmo tempo, não estava contra Borges
ou Pinheiro, ou contra uma indicação do Partido. Não estava contra nada
nem ninguém, estava apenas ao lado do general Firmino.
Além disso, ainda que não houvesse razões de outra ordem, o
alinhamento com Firmino de Paula era imperativo para a sobrevivência
política de Bráulio Oliveira, naquele momento. Tinha consciência de que
o respaldo que lhe dava Firmino era responsável pela posição que ocupava.
Era-lhe mais provável manter alguma influência política ao lado do general,
ainda que fora do PRR, do que permanecendo no PRR sem Firmino. Afinal,
52
Carta de Bráulio Oliveira a Salvador Pinheiro Machado. Minuta. Santo Ângelo, 15 de outubro de 1915.
ABO/Raul Vinhas.
53
Telegrama de Bráulio Oliveira a Augusto Pestana. Minuta. Santo Ângelo, 24 de julho de 1915. ABO/Raul
Vinhas.
45
o chefe do Partido na região serrana e, principalmente, em Santo Ângelo,
era, de fato, Firmino de Paula, como Bráulio reconhecia em outro trecho da
já citada carta a Salvador Pinheiro Machado:
Como sabes, o Gal. Firmino sempre foi o chefe político desta
terra, da qual não só é filho dileto, como também foi o seu
primeiro administrador e daqui tirou o maior contingente para a
Brigada que com denodo e bravura comandou na Revolução.
Assim é que por esses característicos tão acentuados, o
eleitorado republicano de Santo Ângelo sempre o teve à frente,
acostumando-se à sua voz de comando; daí, e por ser ele de fato
chefe, a praxe da circular-convite por ele assinada e dirigida
singularmente a cada eleitor dias antes de cada eleição.
Conhecedor, como és, do nosso povo, sabes da questão que faz o
eleitor em receber a circular do chefe, convidando-o para a
eleição. Ora, assim sendo, e em face à atitude do Gal. Firmino de
não votar e, portanto, não convidando, muito embora desse
liberdade de voto aos seus companheiros, o eleitorado em 2 de
agosto não o teve à frente, não ouvindo o seu toque de reunir e
por isso quedou-se em casa. Disse com seus botões: o chefe
não vai, não convida, nós também não vamos
54
.
General Firmino de Paula
Ao contrário do que manifestava em outros documentos - como mais
adiante se poderá perceber -, procurava o coronel fazer crer que uma atitude
sua perante o eleitorado, além de constituir-se numa traição ao seu amigo de
tantos anos, seria inócua, não produziria qualquer resultado, uma vez que o
54
Carta de Bráulio Oliveira a Salvador Pinheiro Machado. Minuta. Santo Ângelo, 15 de outubro de 1915.
ABO/Raul Vinhas.
46
general era o chefe, o líder, o arregimentador. Ele nada conseguiria frente à
inação de, pois era ao general a quem todos obedeciam. Qualquer
autoridade que ele, Bráulio, pudesse ter, era derivada de sua condição de
representante do general. Quando Protásio Alves, em nome de Borges de
Medeiros e Pinheiro Machado, dias antes da eleição de 2 de agosto, instara
Bráulio a que fizesse comparecer o eleitorado às urnas, recebera como
resposta o seguinte telegrama do coronel:
Respondendo vosso telegrama, cumpre-me cientificar-vos que
sendo de fato General Firmino chefe partido deste município e
não havendo ele convidado eleitorado, conforme é praxe,
abstenção eleição será grande
55
.
Apesar disso, e como para confirmar a ineficácia da sua ação perante
a imobilidade do general, Bráulio Oliveira informava a Borges de Medeiros
que providenciara a instalação das mesas eleitorais, comunicando aos
mesários individualmente, por ofício, os locais e horário em que deviam
atuar. Como ele mesmo fazia questão de lembrar ao chefe supremo do
Partido, esse procedimento o seguia a praxe, de acordo com a qual a
comunicação era feita apenas por editais públicos, afixados nos distritos
56
.
Tomara, então, o coronel, providências especiais para garantir a realização
da eleição com toda normalidade. Era o máximo que podia fazer sem
afrontar seu amigo e chefe Firmino de Paula, uma vez que o próprio general
tomara medidas semelhantes em Cruz Alta, com vistas a não prejudicar a
realização do pleito. Ir além, convidando o eleitorado, o coronel não faria.
Essa era a postura de Firmino de Paula, seguida por ele: garantir a
realização da eleição, mas não votar nem convidar o eleitorado.
A insignificante votação obtida no município pelo candidato a
senador foi proporcionada pela atuação da dissidência republicana, que
aproveitara aquele momento para buscar espaço. Segundo a dissidência, no
entanto, a ação do coronel Bráulio não se limitara a organizar a eleição e
não convidar o eleitorado. De acordo com um manifesto dos dissidentes,
no dia da eleição o sr. Bráulio, sentado no salão da Intendência
Municipal, atirava motejos a todo aquele que sinceramente ia
cumprir o seu dever cívico, fazendo ainda de tudo e de todos
grande galhofa
57
.
55
Apud Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 23 de agosto de 1915.
ABM/IHGRS.
56
Cf. Idem, ibidem.
57
Liga Pró-Damaso. Manifesto. Santo Ângelo, Janeiro de 1917. ABM/IHGRS.
47
Era um momento de confronto. As lideranças republicanas que se
opunham à eleição de Hermes da Fonseca tinham que demonstrar que não
estavam blefando. Contestavam uma decisão tomada no mais alto escalão
do Partido. Precisavam provar que tinham força suficiente para isso. E sua
força provinha do controle que tinham sobre o eleitorado. Organizar a
eleição mas não deixar que seus eleitores participassem era a forma de
mostrar aos seus oponentes que eram eles que garantiam os votos do
Partido. Era mostrar que, entre a cúpula do Partido e a sua base - o
eleitorado -, estavam eles. Que eram elos indispensáveis na cadeia de poder.
E que eram insubstituíveis, pois os dissidentes no plano municipal não
conseguiam substituí-los à frente do eleitorado. Demonstravam, assim, que
o eleitorado era seu, e não do Partido. Esse fato gerava uma curiosa
situação, em que os dissidentes no plano estadual permaneciam situação no
plano municipal, enquanto os situacionistas estaduais não conseguiam
deixar de ser mera dissidência municipal. Isso deve ter contribuído,
certamente, para que, apesar da insatisfação de Borges de Medeiros com seu
comportamento, Firmino de Paula e Bráulio Oliveira tenham permanecido
no Partido, e ocupando suas respectivas chefias. Aliás, em nenhum
momento Borges de Medeiros ameaçou-os com um possível desligamento
do PRR. Pelo contrário: eram eles que ameaçavam Borges com a
possibilidade de afastarem-se de suas chefias e da política. No caso de
Firmino de Paula, é significativo o telegrama que lhe foi enviado pelo
Presidente do Estado:
Informado estardes resolvido resignar chefia política região
serrana, invoco vosso passado memoráveis serviços e
indefectível solidariedade para dirigir-vos esta amistosa
exortação. Motivos particulares que vos induziram solicitar
exoneração cargo policial, não justificam renúncia função
política na qual sois insubstituível. Nada há que perturbe
relações recíproca confiança por largo tempo mantida. Em
comunhão vistas e sentimentos com ilustres chefes municipais aí
reunidos, apelo vosso acrisolado civismo e retidão acreditando
sejam atendidos nossos votos por não haver justa causa em
contrário
58
.
Apesar do apelo de Borges de Medeiros, mas movido também por
questões surgidas na política cruz-altense, o general Firmino consumou seu
afastamento da chefia política que exercia na região serrana. Essa atitude do
general, segundo Borges de Medeiros em carta ao mesmo, abria
58
Telegrama de Borges de Medeiros a Firmino de Paula. Cópia. Porto Alegre, agosto/1915. ABO/Raul
Vinhas.
48
sensível vácuo em nossas fileiras, onde ocupáveis lugar
eminente, tanto pelas vossas virtudes privadas e públicas como
também por memoráveis serviços em nossas lutas cívicas e
heróicas, durante a consolidação das instituições republicanas
59
.
Essa decisão de Firmino de Paula não significava, na verdade, seu
afastamento total e definitivo das lides políticas. Na correspondência
trocada entre Borges e Firmino em torno do fato, repetem-se manifestações
mútuas de confiança e apreço, colocando-se o general à disposição do
Presidente do Estado para receber "com prazer, ordens particulares"
60
.
Além disso, a direção política em Cruz Alta começava a ser assumida
pelo filho do general, o coronel Firmino de Paula Filho. Assim, não apenas
a função permanecia, oficialmente, nas mãos da pessoa que, na política
cruz-altense, estava mais próxima do antigo chefe, como é evidente que o
general continuaria sendo, na prática, o chefe político que sempre fora.
O afastamento do general Firmino de Paula da chefia política da
região serrana tornava, formalmente, menos confortável a posição de
Bráulio Oliveira, enquanto chefe político de Santo Ângelo, perante a
direção estadual do Partido. O coronel Bráulio teria que, a partir de agora,
assumir plenamente a responsabilidade pelas atitudes que os republicanos
santo-angelenses viessem a tomar. Não caberiam mais justificativas como
as apresentadas em relação ao caso da eleição senatorial de Hermes da
Fonseca. Se naquela ocasião o eleitorado fora influenciado pela atitude do
chefe de fato, o general Firmino de Paula, a partir de agora qualquer
influência sobre o eleitorado seria apenas da responsabilidade de Bráulio
Oliveira. Formalmente, o próprio general abdicara, livremente, da
capacidade de dirigir e influenciar o eleitorado. Seu apelo no sentido de que
os eleitores mantivessem a coesão republicana significava que todos
deveriam obedecer, doravante, aos chefes que permaneciam, ou seja, aos
chefes municipais que, antes, eram vistos como seus representantes nos
municípios. Sua liderança, o general não a levava para a vida privada, mas
legava-a aos seus antigos representantes. Com a liderança, a
responsabilidade.
59
Carta de Borges de Medeiros a Firmino de Paula. Porto Alegre, 5 de setembro de 1915.
60
Telegrama de Firmino de Paula a Borges de Medeiros. Cruz Alta, 3 de setembro de 1915.
3. O CORONEL E O PRESIDENTE:
O MUNICÍPIO E O ESTADO.
Como o próprio Bráulio Oliveira afirmara diversas vezes, devia as
posições que ocupava ao prestígio de Firmino de Paula. Agora não haveria
mais intermediário. Bráulio deveria entender-se diretamente com Borges de
Medeiros, sem o respaldo do general. Teria de provar a Borges de Medeiros
que, embora se colocasse em posição de mero representante de Firmino de
Paula em Santo Ângelo, também dispunha de prestígio pessoal perante os
republicanos do município. Este prestígio, em parte herdado do general,
mas em parte conquistado por sua atuação como republicano, desde a
propaganda, podia garantir-lhe a liderança do PRR naquele município,
então um dos maiores do estado. Deveria demonstrar a Borges de Medeiros
que mantinha sua liderança pessoal, mesmo na ausência formal de Firmino
de Paula. Afastado o general, o líder natural do PRR em Santo Ângelo era
ele. E Borges de Medeiros estava disposto a aferir a extensão dessa
liderança.
Em 3 de julho de 1916 deveria realizar-se a eleição intendencial no
município de Santo Ângelo. Um grupo de republicanos santo-angelenses,
percebendo as dificuldades que Bráulio Oliveira enfrentava naquele
momento, nas suas relações com o chefe estadual do PRR e Presidente do
Estado, decidiu contestar a liderança do coronel, abrindo uma dissidência.
Alegando terem recebido apoio do governo estadual, através de Protásio
Alves - naquele momento, com o afastamento de Borges de Medeiros por
doença, a articulação com os chefes republicanos no interior era feita por
Protásio -, lançaram a candidatura de Damaso Gomes de Castro.
Surpreendido por essa manobra, Bráulio imediatamente reagiu, cobrando de
Protásio Alves seu posicionamento:
Aceitando durante o período intendencial a chefia política local,
aqui chegando dessa capital, encontrei os adversários
representados por seus chefes Joaquim Luiz de Lima e Teophilo
50
Pereira dos Santos em franca propaganda da candidatura do
Capitão Damaso Gomes de Castro, propalando publicamente que
amparariam com seus capitais a vitória desse candidato. Não dei
importância a esse movimento, apesar de nele andar envolvido
vosso nome, fato este que não me era possível admitir depois de
nossa palestra aí, ultimamente.
Com ou sem fundamento, em fevereiro passado o Capitão
Damaso dirigiu-se a essa capital e de regresso os seus parceiros
compostos dos elementos acima e de alguns desafetos meus
tendo à frente o juiz distrital desta sede publicaram um manifesto
ao eleitorado em que o Capitão Damaso é apresentado como
candidato oficial. Esse boletim, aliás sem assinatura, [...] foi
espalhado por todo o município de envolta com o argumento de
que de forma alguma prestigiaríeis a minha candidatura ou a de
quem quer que fosse desde que de minha indicação partisse, em
vista da atitude por mim assumida na eleição do Marechal
Hermes. Devi [sic] curvar-me ante a duvidosa situação que se
antolhava. Conservei, contudo, a coesão periclitante do partido
com o argumento que me fornecia a atividade desusada do
adversário que começou a alistar eleitores.
É-me penoso dizê-lo, mas, esperançando vós o Capitão Damaso,
[...] o Partido Federalista, que nunca ousou levantar a cabeça
neste município, hoje surge a campo e com asas emprestadas por
quem tem por missão apará-las
61
.
Protásio Alves imediatamente respondeu ao coronel, negando
responsabilidade no fato:
Tenho presente a sua carta de 5 do corrente na qual diz-me que
um boletim anônimo procurou explorar em meu nome uma
candidatura à intendência de Santo Ângelo.
Tenho o hábito de nem mesmo ler o que me dirigem de modo
anônimo; entretanto como o amigo com a sua assinatura o
apresentou, tenho a dizer-lhe nenhum fundamento há.
Com o Cap. Damaso palestrei uma vez a pedido do General
Salvador que mo apresentou, recomendando-o. Simpatizei com
esse correligionário e falamos em assuntos de administração.
Não posso me lembrar dos termos precisos empregados a
propósito da sucessão intendencial; parece-me entretanto que
falou-se de candidatura, de prestígio eleitoral, etc., mas de modo
algum de lançamento de uma candidatura oficial ou extra; a qual
não poderia ser estabelecida assim em uma palestra de modo
61
Carta de Bráulio Oliveira a Protásio Alves. Santo Ângelo, 5 de maio de 1916. ABM/IHGRS.
51
inteiramente fora das normas adotadas
62
.
Se, por um lado, a resposta de Protásio Alves tranqüilizava o coronel
quanto ao eventual apoio da cúpula do PRR à candidatura do capitão
Damaso, por outro lado não lhe assegurava que sua própria candidatura
seria bem vista e aceita. Afinal, Protásio conversara com Damaso sobre
candidatura e prestígio eleitoral, mas não cogitara do lançamento de uma
candidatura oficial ou extra. Ou seja, não se considerava, nos altos escalões
do PRR e do governo do Estado, que a candidatura do então chefe
municipal, Bráulio Oliveira, era natural ou que a ele assistiria qualquer
primazia na indicação do candidato. Além do que, astuto e perspicaz que
era, Bráulio Oliveira deve ter percebido o perigo oculto por trás de uma
aparentemente singela observação de Protásio com relação ao Capitão
Damaso: "Simpatizei com esse correligionário e falamos em assuntos de
administração". Fazer esta observação ao coronel, depois que este, em sua
carta, dissera a Protásio que se "vos mantivestes em conferência por espaço
superior a duas horas, tivestes tempo de sobejo para aquilatardes da sua
capacidade intelectual e da sua índole"
63
significava dizer-lhe que não
concordava com a opinião do coronel a respeito do capitão, que este não era
mal visto pela chefia do partido e que era um interlocutor em questões
administrativas. Ou seja, que conforme os altos escalões do partido o
capitão reunia as condições necessárias para ocupar, eventualmente, um
cargo como o de intendente municipal.
Subjacente, pois, a uma aparentemente simples e amistosa carta de
esclarecimento, havia uma séria ameaça à liderança de Bráulio Oliveira. A
forma, porém, do documento, ao não explicitar essa ameaça, permitia que o
coronel a utilizasse, se fosse o caso, publicamente, como demonstração do
prestígio que ainda mantinha perante as autoridades estaduais, ao mesmo
tempo em que negava caráter oficial à candidatura de Damaso Gomes de
Castro. Porém, e é de supor-se que fosse esse o objetivo de Protásio Alves,
a carta estabelecia, por seu conteúdo, um equilíbrio entre os dois virtuais
candidatos - Bráulio e Damaso. Se negava oficialismo a uma eventual
candidatura de Damaso, não afirmava que Bráulio seria o candidato oficial.
Se reconhecia Bráulio como chefe municipal e interlocutor, deixava claro
que Damaso também reunia condições para isso. Se tratava Bráulio como
amigo, proclamava simpatia por Damaso. O que poderia ser uma mera troca
de correspondência entre um chefe político do interior e um alto funcionário
do governo estadual, revela-se, portanto, um jogo político dos mais
62
Carta de Protásio Alves a Bráulio Oliveira. Minuta. Porto Alegre, 10 de maio de 1916. ABM/IHGRS.
63
Carta de Bráulio Oliveira a Protásio Alves, já citada.
52
significativos. E a importância que se dava a ele fica evidenciada pelo fato
de que tudo era acompanhado, pessoalmente, por Borges de Medeiros,
enfermo e afastado oficialmente das suas atividades, recolhido que estava à
sua fazenda. É verdade que mesmo afastado Borges de Medeiros a tudo
acompanhava, conforme testemunha João Pio de
Almeida:
Afastado embora da direção dos negócios públicos e políticos
durante todo esse período de repouso e de cura, não se
descuidava da sorte do Estado. Acompanhava diariamente o
evoluir dos acontecimentos e, carteando-se com os amigos,
norteava-os no sentido do bem comum
64
.
Pode-se aferir a importância que dava à questão de Santo Ângelo o
fato de a carta de Bráulio Oliveira a Protásio Alves, com o rascunho da
resposta deste, encontrarem-se em seu arquivo pessoal. O que significa que
Protásio remeteu-lhe, de pronto, uma e outra.
Para Bráulio Oliveira o momento recomendava prudência, exigia
cautela. Assim, no final de maio, estando Borges de Medeiros novamente
em Porto Alegre, embora ainda afastado das suas funções, o coronel dirigia-
lhe correspondência em que buscava, comedidamente, colocá-lo a par da
atualidade política local:
Conforme comuniquei ao Dr. Protásio, em eleição prévia que
aqui procedemos fui distinguido pelo eleitorado republicano para
dirigir a administração municipal no futuro quatriênio. Agradeci
tão honrosa distinção e tão elevada quão significativa prova de
confiança, apresentando, porém, na qualidade de diretor político
local, o nome do Major Joaquim Antonio Rodrigues, nosso
distinto correligionário de reais serviços, quer na guerra, quer na
paz, como candidato à sucessão intendencial
65
.
Ao mesmo tempo em que reafirmava ao chefe estadual sua liderança
e autoridade, fundadas no prestígio que ainda mantinha e que o fazia ser
escolhido candidato, Bráulio Oliveira dava-lhe prova de magnanimidade,
recusando a indicação e designando, "na qualidade de diretor político
local", outro candidato.
A magnanimidade, traço de caráter tão valorizado no meio político
de então, distinguia os líderes de fato, aqueles que tinham diante de si o
64
ALMEIDA, João Pio de, op. cit., p. 110.
65
Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 31 de maio de 1916. ABM/IHGRS.
53
desejo de engrandecer o partido e o Estado. Por isso, era conveniente exibi-
la, notadamente em momento tão oportuno.
Bráulio procurava, com essa atitude, estabelecer uma clara diferença
entre a sua posição e a de Damaso Gomes de Castro no interior do PRR de
Santo Ângelo. Se a magnanimidade era meritória, a vaidade pessoal era
execrável. E ele, Bráulio, naquele momento, procurava demonstrar que sua
ação era motivada pelo desejo de fortalecimento do partido, de garantir a
Santo Ângelo o que lhe fosse melhor em termos de administração.
Damaso, e em vários momentos Bráulio Oliveira procurou fazer ver isso,
era movido tão somente por ambição e vaidade pessoal. Damaso era "o
candidato que por si próprio apresentou-se"
66
, e que reunia em torno de si
indivíduos "fascinados pela sede de mando"
67
. Ao marcar características tão
antagônicas às duas postulações à liderança local do partido, Bráulio
buscava fortalecer sua posição, fazendo-a parecer a única legítima e
defensável, de acordo com a ética republicana.
Desnecessário dizer que igual esforço se fazia do outro lado. Damaso
apresentava-se perante Borges de Medeiros aludindo ao "grande movimento
eleitoral a meu favor"
68
, e denunciando Bráulio Oliveira como movido
apenas "pela sua ambição anti-republicana, pela sua vaidade
indisciplinada"
69
.
Evidentemente que, para oposicionistas tão determinados, o gesto a
que o coronel Bráulio Oliveira procurava dar sentido de magnanimidade
aparecia como apenas mais uma manobra do antigo chefe com o intuito de
preservar sua posição de chefia. Os dissidentes, mesmo reconhecendo o
major Joaquim Antonio Rodrigues, indicado por Bráulio, como candidato
da maioria, mantiveram sua posição e a candidatura do capitão Damaso. A
essa dissidência, por sua vez, Bráulio Oliveira não reconhecia
representatividade, atributo que via apenas na candidatura por ele indicada:
Essa candidatura mereceu desde logo franca adesão dos nossos
correligionários, que com entusiasmo concorrerão às urnas,
deixando de aceitá-la a insignificante dissidência chefiada pelo
candidato que por si próprio apresentou-se, Capitão Damaso
Gomes de Castro, o qual se apoiou em elementos heterogêneos,
66
Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 31 de maio de 1916. ABM/IHGRS.
67
Manifesto de Bráulio Oliveira ao Partido Republicano de Santo Ângelo. Santo Ângelo, 15 de dezembro de
1916. ABM/IHGRS.
68
Carta de Damaso Gomes de Castro a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 11 de agosto de 1916.
ABM/IHGRS.
69
Liga Pró-Damaso. Manifesto. Santo Ângelo, janeiro de 1917. ABM/IHGRS.
54
sem o menor prestígio eleitoral, e tem andado pelo município a
pedir assinaturas a trouxe-mouxe [sic], na maioria a indivíduos
que nem sequer representam o voto por não serem eleitor, e a
outros que, iludidos por um boletim, de que também dei ciência
ao Dr. Protásio, o supunham candidato oficial
70
.
Ao mesmo tempo em que os chefes das facções republicanas santo-
angelenses procuravam afirmar-se perante Borges de Medeiros, as notícias
da luta pelo poder naquele município ultrapassavam suas fronteiras, dando
conta da existência, ali, de um clima de intranqüilidade e violência. Tais
notícias, cuidava Bráulio de desmenti-las ao chefe estadual do PRR, em
trecho da mesma carta recém-citada em que, além de negar os fatos
referidos, indicava a condição de um dos seus mais ferrenhos opositores
republicanos:
O juiz distrital dessa sede, Doutor Clínio Mayrinck Monteiro de
Andrade, correspondente do Diário dessa capital e d'A Verdade
de São Luís, e que se acha filiado à dissidência por ser meu
desafeiçoado gratuito, tem telegrafado àqueles jornais
transmitindo notícias de arbitrariedades, perseguições, grupos
armados e ameaças de dinamite na Intendência, etc. Tais
notícias, porém, carecem de absoluto fundamento, sendo o
produto de um cérebro doentio, como o é o do juiz distrital,
moço demasiado leviano e inconveniente
71
.
Sobre os juízes distritais, informa-nos José Olavo Machado:
Proclamada a República, em 1889, os Estados ficaram com a
competência de legislar sobre o direito adjetivo, ou seja, sobre o
direito processual.
E o Rio Grande, dispondo sobre a matéria, reservou as funções
judicantes aos juízes togados, chamados juízes de comarca.
Todavia, os atos de preparo dos processos no cível ou de
formação de culpa nos processos criminais eram da atribuição
dos chamados juízes distritais, nomeados, independentemente de
concurso, pelo Presidente do Estado
72
.
Em um contexto político como o do Rio Grande do Sul da República
Velha, pode-se avaliar a importância do papel do juiz distrital na estrutura
70
Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 31 de maio de 1916. ABM/IHGRS.
71
Idem, ibidem.
72
MACHADO, José Olavo, op. cit., p. 56.
55
de dominação e controle do PRR. Não por outra razão estes juízes eram
nomeados, arbitrariamente, pelo Presidente do Estado. Deviam,
necessariamente, ser homens da mais irrestrita confiança do governante.
E seguramente era esta a condição do juiz Clínio Mayrinck Monteiro
de Andrade, inclusive porque, apesar de ser acusado pelo coronel Bráulio de
ser um cérebro doentio, moço demasiado leviano e inconveniente,
continuou no cargo até o ano seguinte, 1917. Se um funcionário da mais
estrita confiança do Presidente do Estado mantinha um tal nível de
enfrentamento com o chefe local do partido governista e não desmerecia da
confiança daquele governante, significa que sua atitude é, ao menos
tacitamente, corroborada por ele.
Em um tal ambiente de hostilidade por parte da direção estadual do
PRR, mas fiando-se na sua ascendência sobre o eleitorado local do partido,
Bráulio Oliveira dispunha-se a enfrentar a eleição vindoura, e afirmava a
Borges de Medeiros:
Posso assegurar-vos reinar perfeita calma no município e plena
garantia de voto.
O Partido aqui se acha forte e coeso, disso dando uma
demonstração no próximo pleito de 3 de julho
73
.
O confronto decisivo, porém, não chegou a ocorrer. A eleição foi
suspensa, por decreto de Borges de Medeiros, sob a alegação de não haver
sido publicado, pela intendência de Santo Ângelo - isto é, por Bráulio
Oliveira -, no prazo devido, o projeto de reforma da lei eleitoral do
município, segundo a qual iria transcorrer a eleição de 3 de julho de 1916.
Ocorre que, simultaneamente à eleição do novo intendente, deveria ocorrer
a eleição dos novos membros do Conselho Municipal. Como a lei eleitoral
municipal em vigor não contemplava a representação da minoria, fazia-se
necessário reformá-la, para que tal representação fosse garantida no plano
municipal, como já o era nos planos estadual e federal. Não tendo sido
publicada uma nova lei eleitoral, Borges de Medeiros determinou que a
eleição fosse suspensa, até que fossem realizadas as mudanças necessárias.
A medida tomada por Borges de Medeiros evitou que se desse o
confronto eleitoral entre Bráulio Oliveira e a dissidência local do PRR. O
ato reveste-se de um caráter de formalidade legal, aparentemente despido de
qualquer outra motivação que não o rigoroso cumprimento da lei.
Evidentemente que esta motivação era bastante. Pode-se, no entanto,
indagar do porquê não ter sido publicada a tempo a reforma eleitoral. Teria
73
Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 31 de maio de 1916. ABM/IHGRS.
56
sido estratégia de Bráulio Oliveira para forçar a intervenção estadual no
município, evitando assim um confronto com força política cujo valor ele,
talvez, não estivesse conseguindo avaliar satisfatoriamente? Se por um lado
isso pode parecer um contra-senso, na medida em que representaria mais
um funcionário da confiança de Borges de Medeiros - e ocupando
justamente a Intendência - a cercar o coronel, por outro lado ele talvez
estivesse confiando na sua capacidade de persuasão para envolver e
conquistar, para sua seara, este funcionário - o que acabou, efetivamente,
acontecendo.
A intervenção, no entanto, poderia não ser desejada pelo coronel
Bráulio. E Borges de Medeiros teria se valido de um problema contornável,
possivelmente, por outros meios, para decretar a intervenção e evitar, dessa
forma, uma provável vitória arrasadora de Bráulio Oliveira sobre a
dissidência. Uma tal vitória - produzida que fosse por coerção ou fraude -
implicaria no fortalecimento da autoridade e liderança do coronel,
colocando-o em condições de enfrentar, no plano municipal, a autoridade e
a liderança de Borges de Medeiros. Significaria que o coronel, por sua força
política derivada do controle eleitoral do município, poderia contestar o
chefe estadual incontestável. Afinal, não fora outra a atitude do coronel no
episódio da candidatura Hermes, e a vitória eleitoral do coronel naquele
momento demonstraria que ele saíra daquele episódio incólume.
Revestindo-se de um caráter meramente jurídico-formal, velando aos olhos
do eleitorado o enfrentamento político que efetivamente acontecia, a
intervenção era, pois, a forma mais confortável para Borges de Medeiros
impor-se perante o coronel. E, ao decretá-la, Borges interrompia um período
de 16 anos contínuos em que Bráulio Oliveira governara, pessoalmente,
Santo Ângelo.
No relatório anual apresentado ao Conselho Municipal de Santo
Ângelo em 18 de julho de 1916, Bráulio Oliveira anunciava aos
conselheiros que "pela 16ª e última vez venho apresentar-vos sucinta
exposição dos negócios do Município, confiados à minha direção"
74
.
Depois de explicar aos conselheiros as razões de terem sido suspensas as
eleições de 3 de julho, o coronel informava que sua decisão de afastar-se da
administração do município havia sido tomada há mais tempo, mas que dela
fora demovido pela insistência dos seus amigos e correligionários em
indicá-lo para concorrer, ainda uma vez mais, à reeleição:
Aceitei essa imposição que se me fazia como meio único de
74
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 18
de julho de 1916, p. 3.
57
evitar toda e qualquer cisão no seio do Partido, apesar de haver
dito pessoalmente aos srs. Dr. Protásio Alves e General Salvador
Pinheiro que, terminado o meu quatriênio, recolher-me-ia ao
descanso. Fatigado como me acho com 16 anos de contínua
atividade na administração desse município, que encontrei no
mais completo abandono, conforme podereis verificar se vos
derdes ao trabalho de reler o meu primeiro relatório, somente o
dever, a lealdade e os compromissos que me prendem ao
glorioso Partido Republicano, me poderiam impor esse novo
sacrifício
75
.
E, mais adiante, invocava o testemunho dos conselheiros:
Vós, meus companheiros sempre leais, sabeis que jamais
emprestei meu nome, que zelei sempre honrado, para acobertar
desmandos de quem quer que fosse; fui tolerante forçado pelas
circunstâncias, mas nunca desci a baixezas
76
.
Procurava, com esse discurso, fixar uma imagem de altruísta,
abnegado, magnânimo. A imagem do verdadeiro líder, que nada quer para
si; tudo deseja para os seus. Antevendo, talvez, os futuros embates em
defesa de sua posição de chefe local - ainda que não exercendo diretamente
o governo municipal -, reforçava as bases do mito que fazia do líder alguém
superior, melhor que qualquer um dos liderados, dotado de qualidades que
faltam aos homens comuns, e imune às fraquezas que minam o caráter
daqueles que contra ele se levantam. uma grande fraqueza de caráter
poderia tornar um indivíduo refratário às influências de um líder dotado de
tais qualidades. Com isso, o coronel transportava a querela do plano político
para o plano moral. Não se tratava, para os republicanos santo-angelenses,
de definir-se entre duas posições políticas distintas, ainda que no interior do
próprio PRR. Tratava-se de escolher entre um chefe dotado de todas as
qualidades e um chefe fraco, incapaz de impor-se; republicano, mas isso
não era suficiente: ser chefe era saber conduzir, e não ser conduzido.
Além disso, o coronel tratava de estabelecer a responsabilidade
quanto à divisão do PRR de Santo Ângelo. Sendo tão qualificado, não era,
evidentemente, por incompetência sua que o partido se dividira. Também
não se poderia atribuir a divisão do partido à sua intransigência em rejeitar
uma partilha de poder com o capitão Damaso, embora mais tarde afirmasse
em carta a Borges de Medeiros que a ninguém cederia seu direito quanto à
75
Relatório citado, p. 4.
76
Relatório citado, p. 10.
58
coordenação política do município. Sua intransigência era apresentada
como propósito firme de manter a coesão do partido, pois para que este
permanecesse forte era necessário evitar a cisão a todo custo. Porém,
Não evitei a cisão; desliguei-me do compromisso, hipotecando,
porém, a meus amigos o prestígio a que me dão direito 30 anos
de contínuos serviços à causa Republicana. Lamento sincera e
profundamente que essa cisão não se pudesse evitar e que um
republicano convicto e de bons serviços ao Partido, como o
capitão Damaso Gomes de Castro, se deixasse levar pela
exploração de adversários, de adventícios aventureiros sem o
menor título que os recomende sequer à consideração dos seus
co-munícipes, e de alguns companheiros transviados e
emprestasse o seu nome para divergências no seio do nosso
Partido
77
.
Nesse momento, ao par de procurar transmitir uma imagem que o
tornasse bem recomendável perante Borges de Medeiros, Bráulio Oliveira
procurava manter a maior cordialidade possível para com o chefe estadual.
Assim, manifestava seu agradecimento à colaboração que recebera do
Presidente do Estado:
Não posso furtar-me ao dever de deixar aqui consignada toda a
minha gratidão ao Governo do Estado, que aliando o seu
exuberantemente comprovado critério administrativo, nas
intransponíveis divisas do justo e necessário às aspirações
municipais, jamais deixou de atender ao apelo que lhe dirigi em
nome dos meus jurisdicionados
78
.
A sua relação com Borges de Medeiros, no entanto, fora mediada,
durante largo tempo, por Firmino de Paula. Ao reafirmar essa circunstância
perante o Conselho - e, por extensão, perante o partido -, Bráulio Oliveira
tentava demonstrar que sua posição não era devida ao chefe estadual. Havia
sido o general Firmino o seu patrono, e sua relação com Borges de
Medeiros fora estabelecida por circunstância das funções que ambos
exerciam. E embora republicano da propaganda, declarava que não fora o
partido a respaldá-lo e sustentá-lo, mas o inverso: toda sua ação pessoal fora
no sentido de engrandecer e fortalecer o partido, mesmo que em
determinados momentos o partido fosse um entrave. Entendia que seu bom
77
Relatório citado, p. 4-5.
78
Relatório citado, p. 6.
59
trabalho fora desenvolvido não por causa do partido, mas apesar do
partido:
A minha ação, sendo a um tempo político-administrativa, pelos
laços que me uniam ao caro amigo General Firmino de Paula e
que posteriormente me prenderam mais diretamente ao Excelso
Chefe Dr. Borges de Medeiros, me impunham a cooperar no
Governo Municipal com elementos militantes no seio do Partido.
Com esses elementos governei 16 anos, por vezes curtindo
profundos desgostos, mas alentado sempre pela divisa do
inolvidável Mestre que mandava: Conservar melhorando
79
.
Ao construir o seu discurso, é evidente que o objetivo do coronel
Bráulio era manter-se como chefe do PRR local, diretor da política
municipal, com exclusividade. Para isso, delineava duas linhas básicas - que
em determinados momentos chegavam a confundir-se - em torno das quais
procurava elaborar sua própria imagem. Seguindo uma delas, estabeleceu
uma imagem de homem superior, caráter privilegiado, em oposição aos seus
adversários - notadamente em oposição ao capitão Damaso. Pela outra,
distinguiu-se do partido a que pertencia, apresentando-se como chefe e
administrador competente, em torno do qual agregava-se o partido -
estrutura que era, em si, frágil e precária, retirando sua força do caráter do
chefe. Sendo o chefe forte de caráter, forte seria o partido; desaparecendo o
caráter forte do chefe, desmoronar-se-ia o partido. Em síntese, sua
mensagem era essa: a sobrevivência e grandeza do PRR em Santo Ângelo
dependiam de sua permanência na chefia, com plenos poderes.
Cuidava o coronel, no entanto, de lembrar aos conselheiros que,
mesmo enquanto detentor de plenos e pessoais poderes, não exorbitara
deles:
Sabeis perfeitamente que todos meus atos administrativos foram
sempre pautados pela concordância absoluta com o legislativo,
de que sois dignos representantes
80
.
Não que preocupasse ao coronel, ou a quem quer que fosse, o caráter
democrático do seu governo - conceito, de resto, negado pelo positivismo
castilhista-borgista e aparentemente desconhecido naquele meio e
conjuntura, pois nem ao menos uma vez foi referido. Mas a convivência
harmoniosa entre os Poderes - executivo e legislativo, no caso -, era da
79
Relatório citado, p. 10.
80
Relatório citado, p. 10.
60
própria natureza do regime republicano. E se a independência entre os
Poderes, inerente à forma republicana, pode implicar, em determinadas
circunstâncias, numa limitação da ação do executivo e, conseqüentemente,
forçar à harmonia entre este e o legislativo, esse não era o caso naquele
momento. No Rio Grande do Sul, a independência dos Poderes fora
compensada pela restrição radical das atribuições do legislativo. Logo,
apregoar a concordância entre legislativo e executivo não era afirmar uma
obviedade da vida política republicana. Era, isso sim - e mais uma vez -,
reafirmar a forma elevada como o coronel conduzia a política municipal. E
conduzir dessa forma a política era dado a indivíduos dotados de caráter
íntegro e bem preparados para o exercício do poder.
Finalmente, ao prestar o indispensável preito de gratidão ao seu tutor
político de anos, o coronel Bráulio dava os últimos retoques na sua auto-
imagem tão cuidadosamente construída:
A consciência me impõe, Srs. Conselheiros, consignar neste meu
último trabalho um voto de imperecível gratidão ao concurso do
nobre General Firmino de Paula, nosso guia durante tantos anos
e que tanto contribuiu para a ordem e engrandecimento de nossa
terra, que é também seu berço.
Não podíamos melhor traduzir nossa gratidão senão
hipotecando, como de fato lhe hipotecamos, em dias bem
difíceis, sem medir sacrifícios, com o máximo desinteresse, a
nossa lealdade em toda sua pureza, e isto, estou certo, o deve ter
compensado de não poucos desgostos
81
.
Num sistema coronelístico de poder, baseado na submissão e
reciprocidade, como era o caso, lealdade e gratidão eram virtudes básicas e
indispensáveis. E Bráulio Oliveira procurava mostrar-se como portador
extremado de tais virtudes. Além disso, tratava de reforçar,
subliminarmente, em seus dependentes, a idéia de que também eles, mesmo
em momentos difíceis como os que se avizinhavam, deviam guardar em
relação ao seu chefe e líder - ele, Bráulio -, os mesmos sentimentos de
gratidão e lealdade.
Mesmo sabendo da iminente designação de um intendente
provisório, que o haveria de substituir após o fim do mandato, Bráulio
Oliveira atribuía ao Conselho a responsabilidade pela condução
administrativa de Santo Ângelo, e apelava aos conselheiros para que não se
afastassem das linhas político-administrativas por ele estabelecidas:
81
Relatório citado, p. 11.
61
Em vossas mãos, creio, mesmo após a minha retirada,
permanecerá o Governo do Município até nova eleição. Cerrai
fileiras em torno ao ideal que foi o Norte comum a nossos atos
governamentais e que se resume no engrandecimento moral e
material deste Município, tão cheio de tradições gloriosas.
Terminado o meu quatriênio, em outubro próximo, pelo acatado
Governo do Estado será designado um intendente provisório, que
nesse caráter deverá presidir a eleição para intendente e
conselheiros
82
.
O coronel não reconhecia ao interventor a ser nomeado outra
atribuição que não fosse presidir o processo eleitoral vindouro, negando-lhe
a priori competência para a direção administrativa - que seria exercida pelo
Conselho -, e para a direção política do município - que o coronel
empenhava-se em manter para si. Porém, outro seria o ânimo e, ao que tudo
indica, a missão do interventor nomeado por Borges de Medeiros.
Concluído em 3 de outubro de 1916 o mandato de Bráulio Oliveira,
assumiu a intendência o subintendente do Distrito, major Frederico Beck.
Em 22 de novembro, porém, Borges de Medeiros nomeou Álvaro Silveira
intendente provisório de Santo Ângelo, cargo em que o mesmo foi
empossado a 4 de dezembro.
De parte da dissidência, a intervenção não era vista com maus olhos.
Identificando os cargos que Bráulio Oliveira ocupava como a fonte do seu
poder, entendiam os dissidentes que, privado deles, o coronel perderia toda
capacidade de controlar o eleitorado. Assim, se tinham como certa a vitória
em 3 de julho, mais certa ainda a consideravam se viesse a realizar-se com o
coronel destituído e a intendência ocupada por alguém hostil a ele. Essa
possibilidade levava Damaso Gomes de Castro a prever uma grande vitória
da dissidência, antecipando para Borges de Medeiros meros que
considerava incontestáveis:
Com bons fundamentos, posso afirmar a V.Exa. que, caso a
eleição se tivesse efetuado naquele dia, em vista do número de
eleitores que compareceram em todas as sessões do município, o
resultado seria de 1.200 votos, no mínimo, para o meu nome,
contra 700, mais ou menos, para o major Joaquim Antônio
Rodrigues, candidato da maioria.
Afirmo, ainda, a V. Exa. que no cálculo acima não receio
contestação séria, e esse cálculo foi publicado pelos jornais A
Verdade, órgão do Partido Republicano de São Luís edição de 16
82
Relatório citado, p. 11.
62
do mês passado, e O Diário, daí.
O grande movimento eleitoral em meu favor, na véspera e dia
em que deveria ter se realizado a eleição, foi em parte
presenciado pelo ilustre Dr. Eurico Lustosa, digno deputado
estadual.
Agora, com tempo suficiente para trabalhar, os meus amigos e
autores da minha candidatura prometem apresentar às urnas para
sufragar o meu nome, nas futuras eleições, mero muitíssimo
maior do que o acima escrito, promessa essa que tem grande
fundamento em face das inúmeras adesões que tenho recebido,
sendo que muitos partidários do Coronel Bráulio estão se
declarando meus adeptos. Todos estão confiantes no vosso
comprovado espírito de justiça, certos de que a vossa retilínea
conduta dará a César o que é de César
83
.
As razões da certeza do capitão Damaso com relação aos números
indicados, ele não as aponta. Antes, ele indica o fato de terem sido estas
estimativas publicadas pelos jornais A Verdade e O Diário como
comprovação da sua veracidade. Ora, o correspondente dos ditos jornais em
Santo Ângelo sendo o referido juiz Clínio Mayrinck, um dos líderes da
dissidência e inimigo acérrimo do coronel Bráulio, tem-se uma situação em
que indivíduos criam a notícia, fazem-na publicar nos jornais e depois
acreditam nelas por terem sido publicadas. O que resulta, no entanto, mais
significativo na correspondência citada, é a certeza dos dissidentes de que, o
tempo maior para preparar a eleição e o afastamento do coronel do cargo de
intendente, aumentavam muito as suas chances de ganhar a eleição. A
indicação da confiança que todos depositavam no comprovado espírito de
justiça de Borges de Medeiros sugere ao chefe estadual a condição
necessária ainda a Damaso Gomes de Castro para promover a derrocada
definitiva de Bráulio Oliveira: o reconhecimento do capitão como líder da
maioria, com a conseqüente faculdade de indicar nomes para os vários
cargos de nomeação existentes no município. A faculdade de dar acesso aos
seus seguidores a cargos públicos era condição indispensável para quem
pretendesse exercer efetivo controle sobre o eleitorado, inclusive porque
esse controle dependia da atuação dos ocupantes desses cargos. A
possibilidade de vir a ser Damaso Gomes de Castro o nomeador, aquele que
nomearia funcionários, contribuía para que muitos republicanos, aspirantes
a determinados cargos, procurassem aproximar-se dele, fazendo-o crer que,
afinal, o poder migrava das mãos de Bráulio Oliveira para as suas. E ele
esperava que isso fosse reconhecido e confirmado por Borges de Medeiros,
83
Carta de Damaso Gomes de Castro a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 11 de agosto de 1916.
ABM/IHGRS.
63
ungindo-o com o poder de nomear, ou seja, dando a César o que é de
César.
O caráter dúbio da política de Borges de Medeiros em relação às
situações e dissidências municipais, porém, não parecia ser claramente
percebido e, menos ainda, entendido pelas lideranças municipais do PRR,
como foi referido em outra parte deste trabalho. E essa dubiedade
manifestou-se também nessa ocasião. Numa interpretação extremada da lei
que garantia direito de representação à minoria e compatível com sua visão
patrimonialista do Estado, Borges de Medeiros entendia que também os
cargos públicos deveriam ser preenchidos, proporcionalmente, por
indicações da maioria e minoria. Assim, continuou reconhecendo Bráulio
Oliveira como líder da maioria, mas concedeu a Damaso Gomes de Castro o
poder de nomear funcionários para alguns cargos. Para quem não tinha
nenhum poder dessa natureza, como era o caso do capitão Damaso, isso
representava uma vitória. Para quem, como o coronel, via seu poder assim
diminuído, isso era inaceitável. E Bráulio Oliveira dirigiu-se a Borges de
Medeiros, agradecendo o reconhecimento como líder, mas protestando
duramente contra o poder dado a Damaso:
Apresento-vos sinceros, e, como sempre, leais agradecimentos
pela honrosa deferência com que me brindou ainda uma vez,
vossa confiança determinando ao distinto correligionário Álvaro
Silveira, reconhecesse em minha pessoa o representante da
maioria do pensar republicano subordinado à vossa alta direção,
me levou [sic] à vossa presença, autorizando-me usar da
franqueza a que me dão direito a honrosa investidura e dedicação
desinteressada e sempre leal que vos venho consagrando de
longos anos.
[...]
Exmo. Dr. Borges, a ninguém cedo meu direito quanto à
coordenação da força eleitoral do município, que vossa honrosa
confiança me designou.
Hoje, com tristeza, vejo um homem que levantei do nada feito
instrumento da mais vil das explorações de meia dúzia de
desafetos meus pessoais ligados aos adversários do Partido
Republicano, amparado em suas pretensões por V. Exa. e
antevejo a derrocada de tanto esforço na flagrante injustiça que
se me faz. Que não me movem interesses que não sejam os
interesses supremos do Partido, vo-lo disse e repito: nada
ambiciono para mim, mas em vista da solução que destes,
distinguindo-me com o reconhecimento de chefe da maioria
republicana, sou levado a discordar com a solução que destes
64
para o caso das vagas a preencher-se pela indicação do Cap.
Damaso; isto chama-se simplesmente lançar lenha à fogueira
84
.
Recorrendo ao argumento do reconhecimento, por Borges de
Medeiros, da sua condição de líder da maioria, Bráulio Oliveira dá a
impressão de sentir-se fortalecido suficientemente para enfrentar
diretamente o próprio chefe estadual do PRR. Aparentemente, a
manutenção do ex-intendente na chefia política da maioria decorreria da
impossibilidade de Borges de Medeiros afastá-lo totalmente do poder. Se
isso em parte é verdade, provavelmente o que motivou a reação enérgica do
coronel foi muito mais uma espécie de instinto de sobrevivência do que um
falso sentimento de força e superioridade. É importante lembrar que, no
início da crise, quando da querela em torno da indicação de Hermes da
Fonseca, Bráulio evitou sempre entrar em confronto aberto com a chefia
estadual do partido, atribuindo, sempre, sua posição à fidelidade irrestrita
que devia a Firmino de Paula. Tal argumentação, contudo, não o poupava
da retaliação daquela chefia estadual.
Mesmo afirmando constantemente sua fidelidade ao partido e sua
submissão a Borges de Medeiros - enquanto isso não lhe exigisse o que
considerava traição a Firmino de Paula -, Bráulio percebia-se, naquele
momento, praticamente encurralado. E entendia que o chefe estadual agia
cuidadosamente no sentido de promover o seu desprestigiamento frente ao
eleitorado, o que só poderia ser obtido paulatinamente, minando-lhe pouco a
pouco as bases. Uma atitude brusca, um ato único que destituísse, num
instante, Bráulio Oliveira de todo seu poder, poderia ter efeito inverso ao
desejado. Bráulio Oliveira transformado, de um momento para outro, em
vítima da intransigência de Borges de Medeiros, poderia galvanizar ao seu
redor o eleitorado republicano no município, e o mito do espírito de justiça
do chefe estadual sofreria sério dano. um coronel paulatinamente
enfraquecido, cada vez menos influente junto ao governo do Estado, iria
pouco a pouco sendo abandonado por seus seguidores, e terminaria isolado.
Bráulio Oliveira percebeu o que estava acontecendo:
Vossa conduta ultimamente com relação à política do município
emprestou-me asas que eu bem soube aproveitar para levar o
desfalecimento no arraial adverso; no entanto, vosso alvitre de
serem as vagas preenchidas por indicação do capitão Damaso,
vem dar confirmação às afirmativas de seus asseclas espalhadas
em boletins e sob mil formas ao eleitorado de que é vossa
intenção afastar-me e a meus amigos da direção política, dando-
84
Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 6 de dezembro de 1916. ABM/IHGRS.
65
me por substituto a esse Capitão Damaso, cujo prestígio único
consiste no valor que lhe derdes, pois o acompanha a antipatia
muito natural de que trabalha em causa própria.
Inutiliza V. Exa. com um simples traço de pena, os esforços
acumulados por meus amigos durante seis longos meses, sem a
menor violência, para desmanchar a mazorca de esses
aventureiros, e demais se, como penso, o sr. Álvaro Silveira
deverá permanecer no cargo por muito tempo, qual vosso
interesse em alimentar as pretensões do Capitão Damaso,
instrumento inconsciente de nossos adversários?
85
.
A resposta à pergunta o coronel a conhecia. Por isso enfrentou
Borges de Medeiros naquele momento, enquanto ainda tinha prestígio junto
aos seus amigos. Assim, poderia salvar ao menos parte desse prestígio. Suas
chances de sobrevivência política dependiam de agir enquanto ainda lhe
assistia alguma força. Protelar o enfrentamento seria permitir o
fortalecimento de Damaso Gomes de Castro, e Bráulio percebia que,
naquele momento, Damaso não era considerado por Borges como substituto
ideal para o coronel. Se fosse, por que não contemplá-lo, já, com outros
sinais externos de prestígio? Borges, na interpretação do coronel, utilizava-
se de Damaso para fustigá-lo e enfraquecê-lo, mas não pretendia, de fato
torná-lo chefe político local. E Bráulio informou Borges de Medeiros dessa
sua interpretação:
Não é meu desejo absolutamente causar embaraços a vossas
resoluções, muito pelo contrário, desejaria aplainar-vos o
caminho, mas tenho bem fundado receio de que a solução por V.
Exa. alvitrada não conduz a bom ponto. V. Exa. prestigiará a
minha ação ou dará forças ao Capitão Damaso, mas não se
lembre V. Exa. de atirar-nos a uma luta inglória em que
naufragará fatalmente a boa administração na mais franca
anarquia política
86
.
Se ao demonstrar a Borges de Medeiros que havia percebido qual o
objetivo das atitudes dele em relação à política de Santo Ângelo, e
colocando-o diante do dilema do 'eu ou ele', o coronel pretendia conseguir
um recuo do chefe estadual, não foi bem sucedido. Mesmo diante da
ameaça implícita de Bráulio de que a opção pelo capitão implicaria no
enfraquecimento do partido no município e de que ele, Bráulio, nesse caso,
não iria interferir para evitar o caos, a interpretação final que Borges de
85
Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 6 de dezembro de 1916. ABM/IHGRS.
86
Idem, ibidem.
66
Medeiros fez do conteúdo da carta do coronel foi registrada pelo chefe
supremo do PRR no próprio envelope que continha a missiva: renúncia da
chefia da maioria republicana. Esclareça-se que em nenhum trecho da dita
carta Bráulio Oliveira faz menção a uma possível renúncia, declarando-se,
ao contrário, honrado com o reconhecimento da sua condição de líder da
maioria.
Embora o afastamento de Bráulio Oliveira decorresse da condição
imposta por ele a Borges de Medeiros, uma vez que tal condição era
inaceitável para o chefe estadual, os procedimentos formais desse ato
ocorreram poucos dias depois, e de forma a preservar a coesão do partido
no município. Se concretamente era Borges de Medeiros a determinar o
afastamento do coronel, ao considerar a carta em que este impunha
condições para permanecer na liderança do partido como um pedido de
renúncia, formalmente era o coronel que declinava do cargo, em mais um
gesto de magnanimidade em prol do bem comum:
De acordo amigos obedientes minha direção política, a fim
harmonizar interesse Partido este Município, resolvi declinar
honrosa investidura chefe maioria pessoa vosso delegado Álvaro
Silveira que assim agirá plena liberdade.
Espero minha desprendida resolução mereça vosso
acolhimento
87
.
A resposta de Borges de Medeiros sintetizava magnificamente toda a
questão:
Reorganizando direção política de acordo situação, não me era
lícito fazê-lo sem estrita observância representação proporcional,
conforme novo regime eleitoral dominante todo Estado. Nessa
conformidade vos competia representar maioria republicana,
ficando minoria representada Damaso Castro, que apenas terá
direito indicar poucos candidatos para vagas se abrirem.
Atendendo, porém, ao que expusestes em carta e telegrama,
aceito alvitre ficar intendente Álvaro Silveira investido direção
maioria, visto declinardes desse cargo. Renovo segurança apreço
pessoal, reconhecimento cívico, longos serviços haveis prestado
Município, partido
88
.
87
Telegrama de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 10 de dezembro de 1916. In:
Manifesto de Bráulio Oliveira ao Partido Republicano de Santo Ângelo. Santo Ângelo, 15 de dezembro de
1916. ABM/IHGRS.
88
Telegrama de Borges de Medeiros a Bráulio Oliveira. Porto Alegre, 14 de dezembro de 1916. In: Ibidem.
67
Nas poucas linhas deste telegrama estavam contidas todas as razões,
definidas as posições e esboçados os possíveis desdobramentos futuros da
estratégia borgista. Logo de início Borges de Medeiros reafirmava a Bráulio
Oliveira sua condição de Chefe Supremo do PRR, cuja dimensão de poder e
autoridade haviam, aparentemente, escapado à compreensão do coronel.
Não era apenas o plano estadual o subordinado à ação direta do
poder de Borges de Medeiros, mas também o plano local, municipal. E isso
ele lembrava ao coronel Bráulio quando chamava a si a tarefa de
reorganizar a direção política no município de Santo Ângelo. Ostentava o
coronel o título de chefe, mas isso não lhe dava autonomia, pois era mera
delegação. Antes, fora o coronel, assumidamente, delegado de Firmino de
Paula, não percebendo que este, por sua vez, era delegado, primeiro, de
Júlio de Castilhos, e depois, do mesmo Borges de Medeiros. Entendendo o
poder de Firmino de Paula como autônomo em relação ao chefe estadual,
Bráulio, considerando-se sucessor político - no nível de Santo Ângelo - do
general, entendia o seu próprio poder como autônomo.
Na concepção do coronel, Estado e município constituíam esferas
distintas de poder, afeta, cada uma, a um nível distinto de chefia. Embora
admitisse uma hierarquização entre estes veis de chefia e reconhecesse a
subordinação do município ao Estado, entendia o exercício do poder como
restrito à esfera institucional a que se achasse vinculada a chefia. Assim, o
Presidente do Estado e chefe estadual exercia seu poder, com exclusividade,
em relação a tudo quanto dissesse respeito à esfera do Estado, enquanto o
Intendente e chefe municipal exercia seu poder, também com exclusividade,
em relação a tudo que respeitasse à esfera municipal. Ou seja, o coronel
entendia que o mesmo grau de autonomia que o Estado experimentava em
relação à Federação, o município experimentava em relação ao Estado.
Não era este o entendimento de Borges de Medeiros, para quem
havia uma única esfera de poder, o Estado, sendo o município mera
subdivisão deste e, portanto, o poder municipal mera derivação do poder
estadual, constituindo-se o exercício do poder pelo chefe municipal mera
delegação do chefe estadual. Instalava-se a crise justamente porque esse
chefe municipal, como criatura rebelando-se contra o criador, buscava
exercer o seu poder derivado como poder jenuíno, autônomo; assumia como
poder pessoal um poder delegado. Tornava-se necessário, então, recolocar
as coisas nos seus devidos lugares, chamando à razão o chefe transviado ou
mesmo destituindo-o e instaurando nova liderança, consciente do caráter do
seu poder e incondicionalmente subordinada à chefia estadual. Esse conflito
de interpretações, como poderá ser visto mais adiante, explicitou-se
claramente em alguns momentos, estando na raiz do confronto entre Bráulio
Oliveira e Borges de Medeiros.
68
Definidas, então, as posições de cada um logo no início do seu
telegrama, onde deixava claro que ele era o verdadeiro chefe municipal e
reorganizava o partido local, Borges de Medeiros colocava-se num plano
moral mais elevado do que o coronel. Enquanto Bráulio Oliveira recusava
submeter-se a uma nova realidade política por razões de ordem pessoal, ele,
Borges, não agia movido por impulsos pessoais, mas unicamente para
cumprir a lei. A questão, na forma como era posta por ele, não era aumentar
ou diminuir o poder de alguém, mas tão somente de adequar a chefia local
do partido à legislação vigente. Nesse sentido, cabia ao coronel conformar-
se à condição de representante da maioria, atribuição que lhe era dada, e
não direito ou privilégio natural seu. Ao atribuir ao coronel a condição de
representante, e não chefe da maioria - o coronel, em seu telegrama citara-
se como chefe -, Borges de Medeiros estava considerando, seguramente, os
significados e conteúdos diversos dos dois termos. Aí, mais uma vez,
explicitava-se aquele conflito de interpretações que foi referido, sendo de
salientar-se que o chefe estadual não considerava essa questão aberta a
debate. Ele tinha o poder, ele era o chefe - os demais eram meros
representantes -, logo, a sua interpretação era a correta e, por correta,
inquestionável.
O terceiro personagem da crise, o capitão Damaso Gomes de Castro,
não foi esquecido por Borges de Medeiros. Também ele era referido como
representante da minoria, e Borges tratava de estabelecer os limites do
poder que lhe atribuía, ao definir que ele apenas iria indicar poucos
candidatos a vagas que viessem a surgir. Dessa forma, o chefe estadual, ao
mesmo tempo em que dava a entender que não estava, com seu ato,
desautorizando ou, menos ainda, destituindo o coronel, também não estava
tornando Damaso Gomes de Castro um novo coronel - no sentido político
do termo. Ou seja, o que Borges de Medeiros queria era reafirmar o seu
próprio poder na política municipal, e não transferir um poder pessoal, que
ele não reconhecia e não aceitava, do coronel para o capitão. Isso
significaria apenas uma mudança de protagonista, permanecendo a situação
que ele pretendia evitar. Por isso, ele aceitava a indicação de Bráulio
Oliveira para fazer de Álvaro Silveira o diretor da maioria local. Com isso,
e face à condição explícita e reconhecida por todos de ser Álvaro Silveira
interventor nomeado por Borges de Medeiros, a autoridade que antes
estivera depositada em Bráulio Oliveira retornava à sua origem, o chefe
estadual.
Era essa recorrente afirmação de seu próprio poder, sem dúvida, que
levava Borges de Medeiros a referir-se à carta do coronel, e não apenas ao
seu telegrama, que era, afinal, o instrumento pelo qual o coronel
formalizava sua renúncia. Ao indicar que estava atendendo ao que o coronel
69
expusera em carta e telegrama, Borges sugeria que Bráulio Oliveira estava
saindo da chefia municipal o apenas porque queria sair, mas porque ele,
Borges, queria que o coronel saísse. Não era a vontade do coronel,
simplesmente, que determinava o ato de renúncia, mas a autoridade do
chefe estadual, ao não aceitar as exigências do seu subordinado, que levava
a tal desfecho.
Finalmente, se, para consumo público, o elogio final era apenas uma
praxe que visava demonstrar o elevado espírito de justiça do Presidente do
Estado, uma observação mais atenta permite perceber outras motivações
para ele. Borges de Medeiros, apesar do entendimento que demonstrava ter
acerca da questão, e o próprio Bráulio Oliveira, sabiam que o poder do
coronel não derivava exclusivamente da autoridade de que ele estava
formalmente investido. A questão era saber quanto desse poder era pessoal
e quanto era derivado. Mas essa aferição deveria ser cautelosa, sob pena de
significar, para o coronel, a desmoralização política plena e definitiva, se
seu poder pessoal se revelasse inexpressivo; e, para Borges de Medeiros, a
exposição pública dos limites de sua própria autoridade e poder, e, talvez,
até a perda do controle sobre o eleitorado de um dos maiores municípios do
Estado e aquele com maiores perspectivas de desenvolvimento populacional
e econômico.
A forma como fora conduzido esse lance dramático no processo de
enfrentamento entre Bráulio Oliveira e Borges de Medeiros demonstra com
clareza a consciência que ambos tinham de que qualquer precipitação
descuidada de uma das partes seria o fator de vitória da outra.
Evidentemente, o plano em que se dava esse enfrentamento era o municipal,
e Bráulio Oliveira, aparentemente, não representava maior risco para
Borges de Medeiros no plano estadual. Mas uma derrota de Borges perante
um coronel do interior, seu subordinado, seria fatalmente capitalizada pela
oposição estadual.
Além disso, é importante relembrar que, por ocasião da questão
hermista, houvera uma tentativa, por parte de alguns dos mais tradicionais
coronéis do PRR, de assumirem o controle do partido. O manifesto de João
Francisco, já referido, foi bastante explícito nesse sentido, inclusive
atribuindo à tibieza de Borges de Medeiros os problemas do PRR e do
Estado. Caso Bráulio Oliveira fosse bem sucedido num enfrentamento com
Borges, aqueles coronéis poderiam sentir-se tentados a também enfrentá-lo,
em busca de um espaço de poder mais amplo do que aquele de que
desfrutavam.
4. O CORONEL, O CAPITÃO E O INTERVENTOR:
ALIANÇAS E CONFLITOS.
O papel desempenhado por Álvaro Silveira nesse contexto foi
evidenciado pelo próprio intendente provisório em sua primeira
correspondência ao Presidente do Estado e chefe estadual do PRR, quatro
dias após ter tomado posse e às vésperas do afastamento de Bráulio Oliveira
da chefia política municipal. Sucinto relatório sobre seus primeiros
movimentos em meio às forças em conflito, a carta indica claramente os
principais objetivos da ação de Álvaro Silveira: isolar Bráulio Oliveira e
reforçar a posição de Damaso Gomes de Castro. Conforme o intendente
provisório, aliás, o isolamento do coronel Bráulio já se manifestara por
ocasião do ato de posse:
Publicou o Correio do Povo um telegrama em que se diz ter sido
o Cel. muito cumprimentado após o ato da posse. Não é verdade,
assim como também não houve vivas e aclamações
89
.
Bráulio Oliveira já se movimentara, no entanto, com o intuito de
envolver o intendente nomeado, atraindo-o para seu lado. Mas Álvaro
Silveira comunicava a Borges de Medeiros, na mesma carta, como frustrara
essa primeira tentativa do coronel:
Convidado pelo Ten. Dr. Raul Mello para um pic-nic na ponta
dos trilhos, e, prevendo que o fim fosse político, excusei-me,
vindo a saber que o Cel. Bráulio, tendo convidado grande
número de amigos em Ijuí e Cruz Alta, pretendia aclamar-me
chefe local!
Nesse sentido telegrafou a V. Excia., segundo ele próprio
informou.
89
Carta de Álvaro Silveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 08 de dezembro de 1916. ABM/IHGRS.
72
Não produziu o efeito que o Cel. desejava. Seus amigos não
podem esconder o descontentamento que produziu a minha
recusa
90
.
Por outro lado, Álvaro Silveira aproveitava a oportunidade para
transmitir a Borges de Medeiros a primeira indicação feita pelo líder da
minoria, Damaso Gomes de Castro, para um cargo público de nomeação
pelo Presidente do Estado:
Estando vago o cargo de subdelegado do Distrito deste
município, o capitão Damaso indica o cidadão Carlos Evaristo
Hermel, para preenchimento dessa vaga. É pessoa idônea,
satisfaz todos os requisitos, segundo informações que me foram
ministradas
91
.
No entanto, o que parecia ser o início de um pacífico convívio entre
o interventor e a minoria, revelou-se logo uma situação ainda mais
conflituosa que aquela que seria vivida entre o mesmo interventor e o
coronel Bráulio.
Das estratégias elaboradas pelos chefes da maioria e da minoria para
o relacionamento com o intendente-interventor, a de Bráulio Oliveira
revelou-se a mais adequada, porque mais prudente e cautelosa.
Provavelmente por considerar a intervenção uma vitória sua, Damaso
Gomes de Castro adotou uma postura mais agressiva e auto-suficiente, o
que lhe foi fatal. As estratégias dos dois grupos em relação a Álvaro Silveira
ficaram claras no início da intervenção, manifestadas que foram através
de manifestos divulgados em dezembro de 1916, por Bráulio Oliveira, e em
janeiro de 1917 pela Liga Pró-Damaso (Anexos 1 e 2).
O manifesto de Bráulio Oliveira tinha por finalidade comunicar o seu
afastamento da chefia do PRR local e esclarecer as circunstâncias em que
isto acontecia. Aproveitava para atribuir à dissidência a responsabilidade
pela crise política no município:
Indivíduos alheios ao nosso convívio, que nunca tiveram noção
do que fosse despreendimento, encontrando fraqueza de minha
parte onde poderiam ter divisado patriotismo, arremeteram,
fascinados pela sede de mando, contra o Baluarte Republicano
da Região Serrana; por inesperado, o golpe aturdiu meia dúzia de
companheiros menos disciplinados, abrindo uma insignificante
90
Idem, ibidem.
91
Idem, ibidem.
73
dissidência; a ela se aliaram adversários pouco escrupulosos e a
agitação foi tomando vulto, alimentada principalmente por
minha tolerância que lhes nutria as absurdas pretensões
92
.
Conforme o coronel, os fomentadores da dissidência, pérfidos e
inescrupulosos, valeram-se da sua magnanimidade para semear a cizânia
dentro do partido, explorando a vaidade, a indisciplina e a simploriedade de
alguns republicanos. Ele, Bráulio, teria agido de maneira distinta dos seus
adversários, opondo à perfídia e à falta de escrúpulos a nobreza e o
desprendimento:
Me impulsionasse petulância ou vaidade e a agitação teria sido
abafada no nascedouro. Convicto porém da nobreza de meu
procedimento, não sopesei a maldade do despeito de nossos
desleais adversários, que encontrou na simplicidade e boa dos
nossos bons comunícipes campo vasto para infiltração do veneno
sutil da hipocrisia mais refinada
93
.
Seu afastamento da chefia do PRR era apresentado como gesto de
grandeza de alguém que, ao contrário dos seus adversários, colocava o
interesse público e os ideais republicanos acima de qualquer interesse
pessoal. Portanto, longe de demonstrar fraqueza, sua atitude devia ser vista
como um exemplo de dedicação a ser seguido. Procurava transformar,
assim, um momento de derrota em uma vitória, na medida em que a
intervenção, que viria recolocar em ordem a política municipal -
desordenada pela ação inescrupulosa de uns poucos -, era possibilitada pelo
seu gesto de desprendimento e magnanimidade. Antes de fazer-se rude e
violento, preferia ceder o lugar a um emissário de Borges de Medeiros:
Meus Amigos, pela terceira vez o bem estar, a paz, a
prosperidade do nosso Município me batem às portas, apelando
para meu desprendimento; não serei, como nunca fui, surdo aos
apelos do ideal sagrado de uma República grande até na
abnegação de seus filhos. Meu exemplo vos sirva de norte;
minha retirada da Chefia política é reclamada por circunstâncias
criadas pelo desvio de alguns companheiros de jornada, e, apesar
do pomposo e tão cobiçado título de Chefe, a vaidade, meus
92
Manifesto de Bráulio Oliveira ao Partido Republicano de Santo Ângelo. Santo Ângelo, 15 de dezembro de
1916. ABM/IHGRS.
93
Idem, ibidem.
74
Amigos, nunca abafará em mim os impulsos de um coração
afeito a sentimentos delicados
94
.
Não eram as absurdas pretensões dos adversários, mas o bem estar,
a paz, a prosperidade do município que o levavam a abdicar do poder em
nome de Álvaro Silveira. E reconhecer o interventor nomeado por Borges
de Medeiros como agente capaz de garantir o progresso desejado para Santo
Ângelo era, justamente, o ponto central da estratégia de Bráulio Oliveira.
Não é por outra razão que ele iniciava seu manifesto afirmando que
A aurora de um novo dia se desenha no horizonte político do
nosso caro Santo Ângelo, atirando de vez as agitações
anarquizadoras de uma política sem ideal, para ceder a uma paz
fecunda de prosperidades que nos encaminhe ao progresso a que
tem direito uma população progressista, laboriosa e pacífica por
índole, como a nossa
95
.
Mais adiante referia-se ao intendente provisório como "distinto
cidadão Álvaro Silveira, espírito esclarecido e reto a quem o egrégio Chefe
do Partido confiou provisoriamente a direção administrativa e policial do
nosso município"
96
.
Ao lado do elogio, não descuidou o coronel de fazer referência,
polidamente, ao caráter transitório da presença de Álvaro Silveira à frente
da administração municipal. E encerrava seu manifesto conclamando:
Cerrai fileiras, distintos correligionários, em torno do nome do
Sr. Álvaro Silveira, delegado pelo caro Chefe Dr. Borges de
Medeiros para trazer a paz na família republicana de Santo
Ângelo, e tereis contribuído cada um com sua quota para a
felicidade de um dos mais belos torrões do nosso amado Rio
Grande
97
.
O coronel procurava evitar, claramente, entrar em confronto com o
intendente provisório. Este chegava investido de autoridade administrativa e
policial. Bráulio percebia que estar investido formalmente de chefia
política, mas estar desprovido de poder administrativo e policial pouco
significava no sistema político vigente. Em tais circunstâncias, a chefia nada
94
Idem, ibidem.
95
Idem, ibidem.
96
Idem, ibidem.
97
Idem, ibidem.
75
mais era do que pomposo título, sem uma maior utilidade prática. O poder
de fato estava com Álvaro Silveira. Era interessante, então, abrir mão do
pomposo título em troca de uma aproximação que lhe desse, ainda que
indiretamente, algum acesso a esse poder.
A postura de Bráulio Oliveira parece indicar que ele, ainda que
intuitivamente, compreendia a inexistência de um poder absoluto,
exclusivo. Talvez percebesse que o Poder resulta de uma tessitura de
poderes, onde mesmo os aparentemente excluídos têm sua parcela de poder.
E que o importante, então, é ter hegemonia. Hegemonia não implica em
exclusividade, mas em imposição de um poder sobre os outros poderes.
Intuitivamente, Bráulio compreendia que o poder coronelístico não é um
poder exclusivo, mas é um poder hegemônico.
Ainda que não pudesse aferir a verdadeira dimensão de seu poder
pessoal, Bráulio sabia-o parte de uma rede de poderes sobre a qual se
sustentaria Álvaro Silveira. Romper esta rede poderia significar a perda
definitiva da hegemonia por parte do coronel, caso Álvaro conseguisse
sustentar-se sem seu apoio. Por outro lado, permitir que Álvaro Silveira
exercesse hegemonicamente o poder com o seu concurso, poderia permitir-
lhe recuperar a hegemonia com maior facilidade.
a Liga Pró-Damaso produziu um manifesto bastante contundente,
atacando duramente Bráulio Oliveira. A Liga considerava o afastamento do
coronel como uma vitória sua, e tratava de apresentá-lo como alguém
derrotado, desmoralizado e isolado, abandonado pelos antigos
companheiros. O manifesto da Liga era dirigido ao Verdadeiro Partido
Republicano de Santo Ângelo, e apresentava-se como uma resposta ao
boletim-manifesto do Coronel Bráulio Oliveira, o qual, conforme os
dissidentes,
está decididamente fora do prumo mental, está sofrendo de
terrível obnubilação intelectual denunciando-se por ofuscamento
da consciência e perturbações de orientação, isso talvez
motivado pela piramidal repulsa que o povo lhe fez ver,
pegando-o pela gorja e atirando-o, de cabeça para baixo, do alto
da direção política e administrativa deste esgotado município,
recentemente terreno explorado pela sua ambição anti-
republicana, pela sua vaidade indisciplinada e pelo desleixo a
que deixou entregues os mais vitais interesses da população
98
.
Se para Bráulio a crise devia ser atribuída à ação insidiosa da
98
Liga Pró-Damaso. Manifesto. Santo Ângelo, Janeiro de 1917. ABM/IHGRS.
76
dissidência, os dissidentes atribuíam-na à ambição, vaidade e desleixo do
coronel. Procuravam apresentar seu afastamento como resultado de uma
mobilização popular, o que efetivamente não acontecera. No entanto, essa
idéia de repulsa do povo prestava-se a oferecer uma imagem de isolamento
e abandono a que estaria submetido o coronel. Por outro lado, o líder da
dissidência, Damaso Gomes de Castro, aparecia como elemento de
unificação do Partido, sob cuja chefia reunia-se a maioria dos verdadeiros
republicanos do município. O povo abandonava o anti-republicano coronel
para colocar-se sob a chefia do honrado republicano capitão Damaso:
Só, tristemente só, com os olhos cheios de lágrimas e com
saudades profundas do seu poder despótico, olhando o horizonte
do seu nenhum valor como a penitenciar-se dos seus desmandos,
das suas inúmeras culpas, o coronel vê-se atualmente
abandonado e expulso pelo grosso do Partido Republicano sob a
chefia do capitão DAMASO GOMES DE CASTRO, um nome
íntegro, justiceiro, um político disciplinado e obediente
incondicional à direção suprema do impoluto cidadão senhor Dr.
Borges de Medeiros
99
.
Procuravam os dissidentes estabelecer uma nítida distinção entre a
postura política de Damaso, disciplinado e obediente incondicional a Borges
de Medeiros, e a do coronel:
O sr. Bráulio tempos indisciplinou-se, não deixando votar no
dr. Carlos Maximiliano e, agora, revoltando-se contra a
candidatura do marechal - por conseguinte contra o senador
Pinheiro Machado e o Chefe Supremo, sr. Dr. Borges de
Medeiros -, indisciplinadamente anarquizou o Partido
Republicano deste município
100
.
Era, pois, conforme a Liga, à indisciplina de Bráulio que se devia a
crise política no município. E essa indisciplina havia significado a morte
política do coronel:
Descansa em paz, oh! Bráulio, oh! inefável Bráulio!...
POVO! Não vos iludais com as fitas do coronel, pois ele está
liquidado e não tem mais nenhum poder
101
.
99
Idem, ibidem.
100
Idem, ibidem.
101
Idem, ibidem. Sublinhado no Manifesto.
77
Embora o objetivo primordial do manifesto fosse atacar Bráulio
Oliveira e enaltecer o nome de Damaso Gomes de Castro, ao perceber e
denunciar a tentativa de envolvimento de Álvaro Silveira pelo coronel, o
manifesto expressava a compreensão que tinham os dissidentes acerca do
papel a ser desempenhado na política municipal pelo interventor. Enquanto
Bráulio apenas de passagem referira-se à condição de transitoriedade do
intendente nomeado, a Liga foi além, explicitando as condições e os limites
da sua ação:
Agora [Bráulio] vem explorar o nome do Intendente Provisório,
senhor Álvaro Silveira, esquecendo-se de que este digno cidadão
está aqui para cumprir uma missão neutra, imparcial, sem
pretensões, para garantir a ordem
102
.
Com isso, ficava claro qual seria a estratégia de relacionamento da
dissidência para com o interventor: a dissidência considerava-se vitoriosa
em relação ao coronel, portanto forte e respaldada por Borges de Medeiros,
e a ela competia assumir o controle político e administrativo do município;
o intendente nomeado estava ali na mera condição de funcionário de
confiança de Borges de Medeiros, e deveria cumprir sua missão o mais
discretamente possível, sem posicionar-se e sem interferir nas questões
internas do PRR santo-angelense. Álvaro Silveira, no entendimento da Liga
Pró-Damaso, deveria ater-se a preparar a transição do poder de Bráulio para
Damaso, sem pretensões. Enfim, deveria deixar-se tutelar por Damaso,
evitando envolver-se com Bráulio.
Esta estratégia pressupunha, evidentemente, a existência de um
poder único, absoluto, exclusivo. Este poder não estava mais com Bráulio
Oliveira, pois ele havia sido afastado da intendência e da chefia do Partido;
no entanto, o poder não estava ainda com Damaso Gomes de Castro, porque
ele não fora formalmente investido na chefia do Partido nem na intendência
do município. O poder estava depositado em mãos de um representante de
Borges de Medeiros, que devia utilizá-lo parcimoniosamente, sob a
orientação de Damaso que era, na concepção da Liga, a quem o poder,
afinal, se destinava.
Pode-se afirmar, então, que Bráulio Oliveira tinha consciência de ter
poder, mas não conseguia avaliar com segurança a extensão desse poder; já
Damaso Gomes de Castro, com sua concepção unívoca de poder, não tinha
consciência do poder que possuía. Assim, enquanto Bráulio optou por
barganhar com Álvaro Silveira - e, por extensão, com Borges de Medeiros -,
102
Idem, ibidem.
78
utilizando-se da parcela de poder que efetivamente possuía, Damaso insistiu
em reivindicar para si um poder que, na forma por ele concebida, não
existia, deixando de valer-se de uma parcela de poder que já possuía e a
partir da qual poderia agir no sentido de obter hegemonia política no
município. Para utilizar um lugar comum, poder-se-ia dizer que Bráulio
deixou irem-se os anéis para que ficassem os dedos, enquanto Damaso, por
tudo querer, expunha-se a tudo perder.
Com relação, ainda, à guerra dos manifestos, dois aspectos podem
ser destacados: o caráter individual de um e coletivo do outro, e a
recorrência à disciplina, presente nos dois manifestos.
Bráulio Oliveira assinou individualmente seu manifesto. Foi uma
atitude coerente com a postura de quem se sentia, na posição que ocupava,
como um patriarca, chefe e líder pessoal e individual de um partido e de
um município. Além disso, não porque duvidar tenha sido ele próprio o
autor e redator do manifesto. Considerando-se outros documentos
elaborados pelo coronel, e levando-se em conta as ocupações que teve desde
a juventude até tornar-se o chefe político de Santo Ângelo, pode-se supor
que Bráulio não tivesse grandes dificuldades no trato da língua escrita.
Além disso, um dos seus principais e mais próximos auxiliares era seu
genro Ulisses Rodrigues, cuja formação jurídica levou-o, mais tarde, à
condição de Desembargador no Judiciário Gaúcho. Seguramente, pois, os
conceitos e opiniões expressos no manifesto como em outros documentos
assinados por ele, eram próprios do coronel.
o manifesto da dissidência era um manifesto coletivo, assinado
pela Liga Pró-Damaso. Guardava, no entanto, alguma coerência com outros
documentos assinados individualmente pelo capitão Damaso, especialmente
cartas enviadas a Borges de Medeiros. esta coerência não se faz notar,
por exemplo, num documento de autoria inquestionável de Damaso, qual
seja a carta manuscrita enviada por ele a Francisco Rolim de Moura, em 22
de março de 1917. É evidente, pois, que, por trás dele movia-se um grupo
de pessoas que evitava colocar-se diretamente em confronto com Bráulio
Oliveira, utilizando-se, para esse enfrentamento do capitão Damaso. Não
que fosse o capitão um inocente útil nas mãos de pessoas inescrupulosas.
Havia, na verdade, uma combinação de interesses, em que a aspiração
natural do capitão a uma posição de maior destaque na política municipal e,
talvez, estadual, encontrava sustentação em um grupo capaz de suprir-lhe
algumas deficiências, fossem financeiras ou intelectuais. Como foi
referido em outra parte deste trabalho, um dos principais inimigos de
Bráulio era o Juiz Distrital, Clínio Mayrinck Monteiro de Andrade. O
coronel, no seu manifesto, atingira fortemente o juiz:
79
Diminutos no mero e na força, lhes restava o recurso de
expedientes menos honestos e a eles se aferraram, porque
qualquer galho serve a quem a torrente arrasta. A agitação
penetrou os umbrais sagrados da justiça e passamos pelo
dissabor de ver nossos fiéis companheiros de administração
vilmente perseguidos e processados, repercutindo tão
lamentáveis desvios no ânimo do nosso povo e quase levando o
desânimo no seio do Partido. As mentiras mais crassas foram
impressas em boletins subversivos da ordem, inculcando a
dúvida no eleitorado, jogando sem o menor escrúpulo com o
nome honrado do Exmo. Sr. Dr. Borges de Medeiros
103
.
A réplica, através do manifesto da Liga, não foi menos contundente:
Acostumado a esconder os crimes dos seus adeptos e a não
deixar que eles fossem entregues à justiça, e agora vendo o seu
despotismo por terra e os crimes sendo punidos, o sr. Bráulio
Oliveira faz no aludido boletim insinuações caluniosas aos juízes
desta terra, se esquecendo de que suas insinuações nada valem
porque o seu nome é muito bem conhecido
104
.
Parece-nos, pois, evidente que um dos principais mentores
intelectuais da Liga e do próprio capitão Damaso era justamente Clínio
Mayrinck Monteiro de Andrade, o juiz distrital, sendo dele, seguramente,
muitos dos conceitos e opiniões assumidos pelo chefe da dissidência.
Bráulio Oliveira tinha contra si, então, não um chefe menor do PRR local,
mas um grupo relativamente articulado que aproveitava-se da política de
fomento de dissidências de Borges de Medeiros.
Quanto à recorrência à disciplina, em ambos os manifestos - como
também em boa parte dos documentos analisados -, ressalta, imediatamente,
que este era um dos atributos fundamentais dos verdadeiros republicanos,
uma vez que implicava na submissão plena ao partido e, principalmente, ao
chefe do partido. Dessa disciplina dependia a eficiência do PRR; portanto, a
indisciplina era falta gravíssima, na medida em que colocava em risco o
projeto coletivo consubstanciado no castilhismo-borgismo.
Ocorre que num sistema de sucessivas submissões, como era o caso
do PRR, o conceito de disciplina era, necessariamente relativo. Era
necessário ter em conta em relação a que ou a quem o indivíduo deveria
mostrar-se disciplinado. A fidelidade, a submissão e, portanto, a disciplina,
103
Manifesto de Bráulio Oliveira ao Partido Republicano de Santo Ângelo. Santo Ângelo, 15 de dezembro de
1916. ABM/IHGRS.
104
Liga Pró-Damaso. Manifesto. Santo Ângelo, Janeiro de 1917. ABM/IHGRS.
80
eram sempre devidas ao chefe imediato, que personificava o partido. Numa
situação em que o chefe local do partido estava em desacordo com o chefe
estadual, quem fosse disciplinado com um deles, estaria sendo, fatalmente,
indisciplinado para com o outro. Daí sucederem-se as mútuas acusações de
indisciplina e insubordinação.
No caso específico de Bráulio Oliveira e Borges de Medeiros, a
concepção de disciplina derivava da concepção de esferas de poder -
municipal e estadual -, que, para Bráulio, eram autônomas, enquanto para
Borges a municipal subordinava-se à estadual. Essa divergência de
interpretações, como se verá, foi um dos principais pontos de atrito entre o
interventor e o coronel.
Entre o interventor e o capitão não havia uma divergência dessa
natureza. A divergência, nesse caso, dava-se em relação às atribuições de
Álvaro Silveira, como foi referido. É evidente que o interventor pretendia
desempenhar um papel mais ativo na política santo-angelense do que aquele
que a dissidência pretendia para ele. Imaginar que Álvaro Silveira
comportar-se-ia como alguém sem pretensões era esperar demais. Nesse
sentido, a estratégia da dissidência, ao exigir do intendente provisório que
se ativesse a determinados limites, fazendo de sua gestão mera preparação
para um domínio posterior de Damaso - que já passava a comportar-se
como chefe político municipal -, levaria rapidamente, como levou, a uma
situação de confronto com o líder da dissidência.
em de março de 1917, Damaso Gomes de Castro encaminhava
a Borges de Medeiros extensa carta, com o propósito de:
respeitosamente fazer a V. Excia. algumas ponderações sobre a
política local e principalmente sobre a conduta do sr. Álvaro
Silveira, Intendente Provisório
105
.
Nessa carta, o capitão Damaso informava Borges de Medeiros sobre
a postura que o interventor vinha assumindo em relação aos dois grupos de
republicanos santo-angelenses, referindo situações em que essa postura
havia se manifestado. Contava Damaso ao chefe estadual que, ao chegar a
Santo Ângelo, Álvaro Silveira "procurou-me e solicitou o meu auxílio no
sentido de bem administrar o município"
106
. Obviamente, ele acedera, e
passara a colaborar com o intendente provisório, por exemplo, nas
investigações em torno da evasão de um amigo do coronel Bráulio - coronel
105
Carta de Damaso Gomes de Castro a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, de março de 1917.
ABM/IHGRS.
106
Idem, ibidem.
81
Clarimundo de Almeida Santos - que se achava preso na cadeia municipal.
Segundo Damaso, Álvaro desinteressou-se das investigações, embora todos
na cidade comentassem abertamente sobre os que ajudaram o coronel
Clarimundo a fugir, inclusive porque esses mesmos elementos nunca
fizeram segredo disso. Isso permitiu a Damaso uma constatação:
Em breve, notei que o Intendente propositalmente se afastava de
mim e ligava-se mais e mais ao grupo do coronel Bráulio,
rompendo destarte, a linha de imparcialidade que era obrigado a
manter
107
.
Noutra situação referida a Borges de Medeiros, quando alguém, na
ausência do intendente provisório, recorrera a Damaso para dar solução a
um problema de ordem administrativa - típica situação de manifestação de
poder coronelístico -, o capitão enviou uma carta a um subintendente de
distrito com algumas indicações sobre o Código de Posturas. Dizia ele que:
Foi o quanto bastou. O Sr. Intendente, ao regressar, julgando-se
desautorado com essa minha carta que limitava-se a transcrever
disposições do Código citado e ligeiras explicações, enviou-me
um ofício em linguagem áspera e pouco delicada, dizendo que
não admitia que eu interviesse em assunto administrativo e
frisando bem a sua consideração pessoal por mim e dando a
entender que desprezava a minha chefia política da minoria
108
.
Continuava o capitão Damaso a enunciar, para Borges de Medeiros,
diversas situações em que o interventor agira no sentido de prejudicá-lo
politicamente, favorecendo Bráulio Oliveira. Álvaro Silveira, segundo ele,
estaria apresentando-se perante o eleitorado como diretor político local,
como se fosse o único chefe, ignorando a dissidência e a chefia da minoria.
Chegara mesmo a informar erradamente a Damaso a localização de uma
mesa eleitoral, por ocasião de uma eleição legislativa ocorrida em fevereiro
daquele ano. Para Damaso, "o Sr. Intendente agiu assim deliberadamente e
com o propósito firme de amesquinhar e humilhar a minha facção
política"
109
.
Para demonstrar o grau de envolvimento de Álvaro Silveira com
Bráulio, relatou Damaso que, durante o carnaval, familiares e partidários do
coronel atentaram contra o decoro público e a honra do juiz Clínio
107
Idem, ibidem.
108
Idem, ibidem. Grifado no documento.
109
Idem, ibidem.
82
Mayrinck em um desfile pelas principais ruas da cidade. Acompanhava-os
"o jovem Bello Zózimo Silveira (irmão do Intendente Provisório, filho do
General Zózimo Silveira, o que me constrange a fazer essa denúncia, mas
sou coagido a fazê-la por força das circunstâncias)[sic]"
110
.
E o mais grave, segundo Damaso, era que:
Tudo isso foi presenciado pelo Intendente Provisório que, no
momento, se achava em companhia do sr. Bráulio Oliveira e que
pareciam aplaudir esse espetáculo!
111
Como se tudo isso fosse ainda insuficiente para testemunhar do
alinhamento de Álvaro Silveira entre os braulistas, Damaso passava a
contar das perseguições e artimanhas engendradas com o fim de dificultar a
atuação política dos damistas, notadamente por ocasião da eleição de 26 de
fevereiro. Somando-se a estas perseguições e artimanhas a fatalidade de ter
o capitão estado adoentado e "impossibilitado de montar a cavalo" durante
os trabalhos de preparação da referida eleição, o resultado, segundo ele, fora
um "desfalque de mil e oitocentos eleitores, aproximadamente, que não
votaram"
112
- todos damistas, evidentemente.
Ocorria que Álvaro Silveira decidira - à última hora, segundo
Damaso - transformar a eleição para a Assembléia Estadual, em 26 de
fevereiro, em:
uma espécie de eleição prévia, fazendo votar os eleitores dos
grupos chefiados por ele, Provisório, e por mim,
respectivamente, em chapas diferentes e, ao depois, fez extrair
certidões para provar o número de eleitores de cada grupo
113
.
Essa era a causa da insatisfação de Damaso Gomes de Castro para
com Álvaro Silveira. A prévia idealizada pelo intendente provisório
representara um rude golpe nas pretensões do capitão de assumir a direção
política do município, pois demonstrava sua incapacidade de mobilizar uma
fração significativa do eleitorado. Ainda que essa incapacidade decorresse
da escassez de tempo e da impossibilidade dele, capitão, de montar a
cavalo, como fizera questão de frisar a Borges de Medeiros, nada disso era
justificativa para um legítimo chefe político, que precisava estar sempre
110
Idem, ibidem.
111
Idem, ibidem.
112
Idem, ibidem.
113
Idem, ibidem.
83
atento e prevenido para enfrentar satisfatoriamente qualquer situação
inesperada. Daí o empenho de Damaso para desqualificar, perante Borges
de Medeiros, aquela prévia inesperadamente realizada:
Demais, não tive aviso e ordem de V. Exa. para fazer eleição
prévia, razão porque não me conformo com o resultado de votos
que o Intendente vai atribuir ao meu grupo e que não significa
absolutamente o eleitorado de que disponho
114
.
Aliás, sobre o eleitorado de que dispunha, o capitão Damaso era bem
mais explícito em carta enviada ainda naquele mês de março de 1917 para o
sr. Francisco Rolim de Moura Sobrinho, no interior do município de Santo
Ângelo:
Comunico-vos que em regozijo de eu estar de acordo com os
Federalistas, como dizem alguns amigos, o Dr. Borges de
Medeiros, depois da eleição do dia 26 do passado, nomeou todos
os subdelegados que eu havia indicado antes da eleição
115
.
A referência às nomeações era uma forma de demonstrar ao
destinatário da missiva o poder de que estava investido o capitão e a
influência que tinha junto ao Presidente do Estado. Damaso deixava claro,
com isso, que agora era ele o nomeador em Santo Ângelo. E esse era um
dos maiores sinais de prestígio junto à cúpula estadual do PRR que qualquer
chefe republicano podia exibir. Também nessa correspondência Damaso
lamentava o prejuízo sofrido nas eleições de fevereiro por causa de
dificuldades imprevistas:
Assim é que diante dessa e outras circunstâncias, eu ante via
[sic] que deixaria de concorrer às urnas, de 800 a 1000
Federalistas que estavam de acordo com o meu nome.
Infelizmente, verifiquei que deixaram de ir às urnas não 1000,
porém acima de 1900, fora uns cento e cinqüenta a 200 que em 3
secções votaram sem estarem presentes; bem como conto
também nos 1000 e coisa [sic], uns 150 mais ou menos meus
que votaram em cédulas brancas; o que desafio contestação
séria, o que verificaremos, quando verificar-mos [sic] com quem
114
Idem, ibidem.
115
Carta de Damaso Gomes de Castro a Francisco Rolim de Moura Sobrinho. Santo Ângelo, 22 de março de
1917. ABM/IHGRS.
84
está a maioria dos 1900 que deixaram de ir às urnas
116
.
Contraditoriamente para quem, apesar de ser oficialmente líder da
minoria, esforçava-se para demonstrar a Borges de Medeiros que chefiava a
maioria do eleitorado, Damaso acrescentou à carta interessante Nota Bene:
N.B.: Cuidado com os meus eleitores, oé [sic] que nestes dias
está sendo processado mais um subdelegado, meus eleitores são
poucos preciso cuidar [sic]
117
.
Esta carta é, sem dúvida alguma, de autoria exclusiva de Damaso - o
que não se pode afirmar com segurança em relação a outras. Não pelos
erros crassos de linguagem, mas principalmente pelos erros políticos, os
quais não seriam cometidos, seguramente, por alguém como o juiz distrital.
A carta é típica de alguém não muito atento às nuances do jogo político e,
principalmente, incapaz de perceber as idiossincrasias próprias dos
republicanos intransigentes - como era o caso, por exemplo, de Borges de
Medeiros. E o erro maior do capitão não estava em admitir que seu
eleitorado era pouco numeroso. O erro grave era demonstrar que o seu
eleitorado - se existia mesmo - era basicamente composto por Federalistas.
Damaso Gomes de Castro não havia entendido o significado e o
sentido da política borgista de fomento às dissidências, que era cumprir a
legislação que mandava garantir representação à minoria sem permitir que a
oposição estadual - ou seja, os federalistas - obtivesse representação. Ia,
pois, o capitão Damaso ao encontro justamente daqueles a quem a estratégia
borgista procurava excluir. Isso fazia dele alguém pouco confiável tanto a
Borges de Medeiros quanto aos seus próprios companheiros da Liga Pró-
Damaso, que estavam dispostos a enfrentar Bráulio Oliveira, mas sem cair
em desgraça junto ao Chefe Supremo. Com esta carta, Damaso vinha
confirmar o que havia sido afirmado sobre ele por Bráulio Oliveira em
carta, já referida, a Protásio Alves:
É-me penoso dizê-lo, mas, esperançando vós o Capitão Damaso,
[...] o Partido Federalista, que nunca ousou levantar a cabeça
neste município, hoje surge a campo e com asas emprestadas por
quem tem por missão apará-las
118
.
116
Idem, ibidem. Os sublinhados estão no documento, mas foram feitos posteriormente, com lápis de cor
vermelha.
117
Idem, ibidem.
118
Carta de Bráulio Oliveira a Protásio Alves. Santo Ângelo, 5 de maio de 1916. ABM/IHGRS.
85
Se Bráulio Oliveira apostara num inevitável confronto entre Álvaro
Silveira e o capitão Damaso, em função das suas ambições políticas, é
difícil dizer. Mas embora esta seja uma hipótese com boas chances de
provar-se verdadeira, provavelmente nem Bráulio Oliveira esperava que o
conflito adquirisse as proporções que adquiriu em tão curto espaço de
tempo.
E o fato de a carta de Damaso a Francisco Rolim ter chegado às
mãos do intendente provisório demonstra o quanto o capitão estava
enganado em relação a quem supunha apoiá-lo e o respaldo que Álvaro
Silveira encontrava entre os republicanos santo-angelenses. E é digno de
nota que os membros da família Rolim de Moura - como era o caso de
Francisco - sempre ocuparam cargos mais ou menos importantes na
administração municipal.
As reclamações e denúncias de Damaso Gomes de Castro, antes
referidas, encontraram alguma acolhida junto a Borges de Medeiros, que
deve ter solicitado a Álvaro Silveira alguns esclarecimentos. Foi justamente
ao encaminhar a Borges de Medeiros explicações com relação a algumas
das reclamações de Damaso - uma mesa eleitoral no 4º Distrito "não se
organizou devido à imposição do chefe da minoria ao juiz distrital com o
fim de aumentar o número de seus eleitores no 3º Distrito"
119
- que o
interventor encaminhou em anexo a dita carta do capitão a Francisco Rolim.
À sua própria carta, Álvaro apenas acrescentou um Post Scriptum:
P.S.: Remeto junta uma carta autêntica do chefe da minoria,
cujos conceitos são bem expressivos e dispensam qualquer
comentário
120
.
Embora a dissidência entendesse que Álvaro Silveira deveria
desempenhar suas funções sem pretensões, o interventor mostrava-se
claramente interessado em passar da condição de intendente provisório à de
intendente efetivo. Nesse sentido, agia de forma a viabilizar a sua própria
candidatura ao cargo. O principal obstáculo a essa pretensão, uma vez que
Bráulio Oliveira já lhe abrira espaço ao abandonar a chefia da maioria, era a
candidatura pública e ostensiva de Damaso Gomes de Castro, o chefe da
minoria. Daí o conflito entre o provisório e o capitão. E daí, também, o
interesse de Álvaro Silveira em desprestigiar, junto a Borges de Medeiros, a
imagem de Damaso.
A documentação e informações disponíveis não permitem
119
Carta de Álvaro Silveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 24 de maio de 1917. ABM/IHGRS.
120
Idem, ibidem.
86
reconstituir as articulações que levaram à indicação dos candidatos à eleição
para intendente de Santo Ângelo, que finalmente veio a acontecer em 24 de
setembro de 1917. O cargo de intendente foi disputado, nesta eleição, por
Álvaro Silveira e Joaquim Antônio Rodrigues
121
. O capitão Damaso não
conseguiu obter de Borges de Medeiros a indicação como candidato, sendo,
ao contrário, instado a apoiar Álvaro Silveira. Aliás, um dos principais
mentores da Liga Pró-Damaso, o juiz Clínio Mayrink, havia sido removido
por Borges de Medeiros, pouco, para o vizinho município de São Luís
Gonzaga
122
.
Álvaro Silveira foi eleito intendente, tendo recebido 872 votos,
contra 522 votos recebidos por Joaquim Antônio Rodrigues
123
.
121
Joaquim Antônio Rodrigues era um respeitado republicano, tendo integrado o Conselho Municipal entre
1894 e 1896. Mais tarde foi eleito Vice-Intendente para o período de 1928 a 1932, juntamente com o
Intendente Dr. Ulisses Rodrigues.
122
Em 1919, por ocasião de um levante armado promovido pela dissidência municipal - organizada no Clube
Republicano Borges de Medeiros - contra o intendente Frutuoso Pinheiro Machado - apoiado pelo Clube
Republicano Venâncio Ayres -, Clínio Mayrinck formava entre os integrantes da situação municipal.
Deposto o intendente pelos dissidentes, Borges de Medeiros nomeou um interventor para o município,
não reintegrando Frutuoso.
123
A Federação, Porto Alegre, 28 de setembro de 1917.
5. ÁLVARO SILVEIRA:
DE INTERVENTOR A INTENDENTE.
Embora tenha sido apoiada por Damaso Gomes de Castro, a
candidatura de Álvaro Silveira aparentemente revestiu-se de um caráter de
oficialidade, sendo respaldada por um significativo grupo que, mesmo não
ligado à dissidência, era integrado por republicanos com suficiente
identidade pessoal para não estarem sujeitos à autoridade de Bráulio
Oliveira. Sobressaíam, nesse grupo, republicanos como João Dahne e
Joaquim Rolim de Moura, tendo sido o último, inclusive, nomeado vice-
intendente por Álvaro Silveira.
a candidatura de Joaquim Antônio Rodrigues era representativa, a
considerar-se o seu passado político, do setor mais tradicional do PRR
santo-angelense, com o qual perfilar-se-ia, provavelmente, o coronel
Bráulio. Não há, entretanto, evidência alguma que indique que o coronel
tenha assumido pública ou reservadamente, nessa campanha, qualquer
postura favorável a este ou aquele candidato.
O certo é que, a julgar-se pelas notícias publicadas por A Federação,
alusivas à posse e à comemoração do aniversário de Álvaro Silveira (22 de
outubro), ocorridas quase simultaneamente, o agora intendente eleito - não
mais provisório - era efusivamente festejado pela alta sociedade de Santo
Ângelo. No relatório anual, apresentado ao Conselho Municipal em
dezembro do mesmo ano, Álvaro Silveira era explícito quanto a quem
atribuir a responsabilidade por estar ocupando o cargo de intendente:
Sinceramente deploro o supor alguém que eu tenha em vista
fazer profissão burocrática. Não é tal.
Jamais cogitei e muito menos me inculquei candidato ao elevado
cargo em que me encontrais. Outro intuito não me anima além
do desejo de corresponder à confiança que em mim depositou o
egrégio chefe exmo. sr. dr. Antonio Augusto Borges de
Medeiros e dela me tornar digno.
88
[...] Houve por bem, ainda, s. excia., de acordo com o partido
republicano local, indicar o meu humilde nome para o elevado
cargo de intendente deste próspero município, na eleição
realizada a 24 de setembro findo.
Proclamado eleito pela respectiva junta apuradora em sessão de
15 de outubro, perante vós prestei o compromisso solene exigido
pela lei. Agradeço a s. excia. mais essa prova de confiança e
felicito-me por a ter merecido. É o em que deve consistir a
aspiração dos bons e verdadeiros republicanos, assim o
entendo
124
.
Álvaro, no seu próprio entender, devia a indicação ao cargo e a
eleição unicamente a Borges de Medeiros. Não tinha, portanto,
compromisso algum com o PRR de Santo Ângelo, com os chefes
republicanos locais ou com a população do município: seu único intuito era
corresponder à confiança de Borges de Medeiros, o único a merecer sua
gratidão.
Embora proclamasse sua recusa em fazer profissão burocrática,
Álvaro Silveira poderia estar, ao eleger-se intendente, dando um segundo e
fundamental passo no sentido de consolidar-se como chefe burocrático e
preparar a sua passagem para a condição de coronel político, propriamente
dito. O primeiro passo fora sua nomeação por Borges de Medeiros, que lhe
permitiu - notadamente após o afastamento de Bráulio Oliveira da chefia
política - exercer um poder pessoal que derivava, evidentemente, da função
burocrática de que estava investido. Era, certamente, muito mais exercício
de autoridade do que de poder, mas era, também, exercício de poder, na
medida em que sua atuação não estava restrita à esfera administrativa,
compreendendo também articulações com vistas à reorganização política
que se pretendia para o PRR local. Com a investidura como intendente
eleito, Álvaro Silveira poderia solidificar sua posição de chefe político e
começar a consolidar um poder que se sustentasse mais no seu prestígio
pessoal do que na autoridade da função que exercia.
O ex-interventor, respaldado por uma eleição da qual resultou
vitorioso, assumiu, de forma mais evidente do que antes, uma postura
superior em relação à política municipal, desdenhando aqueles que
aspiravam ao poder, e alçando-se ao patamar ético-moral dos luminares do
castilhismo-borgismo:
124
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Álvaro Silveira. Santo Ângelo, 28 de
dezembro de 1917, p. 3.
89
Como o laureado Júlio de Castilhos repito: Não cortejo a
popularidade, não dou abrigo aos artifícios usuais dos que
iludem ou desvirtuam o público sob as aparências de um
devotamento falacioso: não sou aspirante a qualquer função que
possa estimular a cobiça dos ambiciosos e atrair a disputa
efervescente
125
.
Sobre o seu adversário no pleito, emitiu um comentário - extensivo,
certamente, a tantos quantos simpatizaram com a candidatura de Joaquim
Antônio Rodrigues - que, pelos seus termos, parece ter sido dirigido
principalmente a Bráulio Oliveira:
Conquistar o poder, apossar-se dele, perdê-lo e retomá-lo - eis no
que consiste o áureo e eterno sonho de muitos. O seu ideal é a
ambição desmedida e cega. Para alcançá-lo tudo fazem. E aqui -
ó vergonha! - até à feitiçaria recorreu um dos candidatos
126
.
A base do discurso coronelista republicano gaúcho está presente
nestas manifestações de Álvaro Silveira. O poder não o atraía; chegava-lhe
como um fardo, uma missão que ele, humildemente, denodadamente, sem
ambições, aceitava. E chegava-lhe porque era ele o mais habilitado, o mais
preparado para exercê-lo com competência. Não era ele que precisava do
poder, mas era o poder que necessitava dele para realizar-se. Esse, em
resumo, o discurso de Álvaro Silveira em relação à sua condição política;
esse, em resumo, o discurso dos coronéis republicanos.
No caso de Álvaro Silveira, esse discurso - denotativo de uma
autocompreensão como alguém plenamente investido de poder - decorria de
uma concepção unívoca de poder, da mesma natureza daquela concepção
manifestada por Damaso Gomes de Castro e anteriormente referida. Ainda
quando interventor, Silveira dera claras indicações dessa concepção, ao
dirigir-se inúmeras vezes a Borges de Medeiros reconhecendo-o como fonte
do poder. Assim, estando investido de poder por Borges de Medeiros - esse
era o sentido que via na sua nomeação como interventor -, era ele o único
em Santo Ângelo a poder exercê-lo. Daí a reprimenda feita a Damaso
quando o capitão indicou a um subintendente artigos do Código de Posturas
que se referiam a um problema surgido num distrito. Ou ainda o fato de
haver Álvaro Silveira dirigido circular ao eleitorado apresentando-se como
diretor político local. Quanto ao reconhecimento de Borges de Medeiros
como fonte única do poder, está suficientemente explicitado em trechos do
125
Idem, ibidem, p. 4.
126
Idem, ibidem, p. 4.
90
Relatório de 28 de dezembro de 1917 citados anteriormente.
A convicção de Álvaro Silveira quanto à univocidade do poder
levou-o a cometer um erro político que lhe foi mais nocivo que o erro em
que incorria Damaso Gomes de Castro quando, levado pela mesma
convicção, subestimava o poder que já possuía. Ocorria que Silveira não
tinha, efetivamente, nenhum poder além daquele que lhe fosse delegado por
Borges de Medeiros. Ao julgar que esse poder era suficiente, e considerar a
eleição que havia vencido - aparentemente, para ele, um fato mais
burocrático que político - como mero referendo à delegação que recebera do
Presidente do Estado, Álvaro Silveira acirrou ainda mais o conflito com as
duas tendências - braulismo e damismo - em que estava dividido o PRR de
Santo Ângelo. Sem nenhum respaldo entre os políticos locais - dos quais,
aliás, desdenhava -, pretendeu enfrentar, ao mesmo tempo, os dois maiores
líderes republicanos santo-angelenses, Bráulio Oliveira e Damaso Gomes
de Castro. Esse erro lhe foi, politicamente, fatal. Da situação que, então, se
criou nos meios republicanos do município pode-se ter uma idéia através do
relato que Damaso fez a Borges de Medeiros, por carta, no início de
1918, cerca de quatro meses após a eleição intendencial. Após referir-se,
longamente, às dificuldades burocráticas que vinha enfrentando para
qualificar eleitores, o capitão Damaso informava que:
o sr. Álvaro Silveira, por uma série de atos e fatos de seu
governo, criou fundos desgostos no seio do Partido, ao ponto de
afastar o eleitorado. Buscando suavizar esse mal, eu que tenho o
dever de prestigiá-lo já que trabalhei e o elegi como V. Exa. bem
o conhece, tão e exclusivamente para atender os vossos
desejos e interesses do Partido local, vejo-me em sérias
dificuldades para amenizar o espírito animado em que se
encontra o povo. Segue-se pois que lavra intenso desgosto no
município, arrefecendo-se o ardor dos nossos correligionários.
Embora sem valimento, freqüentemente cercado pelos melhores
elementos do Partido, creia V. Exa., não são pequenos os óbices
que busco vencer para lograr harmonizar os nossos homens com
o governo local - mas creia, para isso não me sinto de todo hábil,
porque os desgostos são de natureza que dificilmente se poderão
extinguir
127
.
Se em outras oportunidades o capitão fora mais claro ao denunciar
ao Presidente do Estado a ambição política de Álvaro Silveira, nesta
correspondência atribuiu os problemas criados pelo intendente,
127
Carta de Damaso Gomes de Castro a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 19 de Janeiro de 1918.
ABM/IHGRS.
91
simplesmente, à incompetência administrativa do mesmo:
Sem ambições, sem outro desejo que não seja ver Santo Ângelo
progressando [sic], lamento que prossiguemos em regresso [sic],
dada a falta provada do sr. Álvaro para provimento das
necessidades públicas. Como eu, todos vêem que S.S. não tem a
cultura de dados para se desenvolver na missão. [...] Confiai
entanto [sic] que sopitando as iras do povo e buscando amparar
o sr. Álvaro Silveira, não permitirei atos que possam
envergonhar-nos a face do Rio Grande
128
.
Acusações de incompetência, aparentemente, já vinham de mais
tempo, pois Álvaro Silveira, no relatório já citado, ataca com virulência os
críticos da sua atuação como intendente:
É deveras cômico o ver-se indivíduos quase analfabetos, que
desconhecem o papel que ocupam na sociedade, se julgarem
aptos para apreciarem questões que escapam à sua curta
inteligência e medíocre preparo, e, revestidos de grotesca e
enfática pose, exclamarem nos lugares onde se exibem: a
administração do município vai retrogradando. Deixemo-los
entregues aos labores da indigesta crítica...
Estão desculpados. Esse defeito é antes lamentável do que
censurável. Aliás, corre por conta da ignorância dos que
desprezando o principal fixam-se no acessório, com ausência
completa do espírito crítico, baseado no todo comparativo e
na observação fria e imparcial de que jamais tiveram a
intuição
129
.
Se, como vimos, o relacionamento do intendente com Damaso e os
damistas era dos piores, o relatório a que vimos nos referindo equivaleu a
uma declaração de guerra contra Bráulio Oliveira e, obviamente, os
braulistas. No afã de mostrar-se competente e operoso, Álvaro Silveira
arrasou com as administrações anteriores - ou seja, com as administrações
do coronel Bráulio. Fez, por exemplo, uma sucinta comparação entre os
totais de Receita e Despesa nos meses imediatamente anteriores à sua posse
como interventor e nos meses imediatamente posteriores, procurando
demonstrar que fora no período de sua administração que se estabelecera o
equilíbrio nas finanças do município, inclusive com a ocorrência de
128
Idem, ibidem.
129
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Álvaro Silveira. Santo Ângelo, 28 de
dezembro de 1917, p. 11-12. Grifado no Relatório.
92
superávit. Desconsiderou, evidentemente, o fato de que num município de
economia fundamentalmente agropecuária, embora as despesas sejam
constantes, o ingresso principal de receitas é sazonal, conforme as safras.
Sua análise, seguramente realizada com espírito crítico, baseado no método
comparativo, permitiu-lhe, no entanto, concluir:
Em que consistia o estado lisonjeiro das finanças do município a
que se referia o meu antecessor às fls. 21 do seu relatório?
Nunca esteve tão distanciada a rmula prever a fim de poder
prover como na época atual, nunca o a priori foi mais perigoso...
por isso deixemos as deduções com que poderíamos estabelecer
algumas premissas
130
.
No entendimento de Álvaro Silveira, não só financeiramente seu
antecessor havia desorganizado o município, mas até mesmo serviços
burocráticos elementares tiveram de ser criados ou reorganizados. E a tudo
isso ele atendera, apesar do pouco tempo há que havia assumido:
Se se pode estudar múltiplas questões, deliberar e executar no
lapso de um ano incompleto de luta e responsabilidades, que o
diga quem administrou durante decênios de inalterável paz
131
.
Mas Álvaro Silveira não se limitava a tentar demonstrar a
incompetência administrativa dos seus antecessores. Ao referir-se aos
trabalhos de colonização desenvolvidos pelo município, insinua a
ocorrência de irregularidades mais sérias:
O município quando adquire por compra fica sujeito às regras do
direito comum. No caso, vai adquirir por título oneroso bens do
domínio privado do Estado. Não pertencem ao município essas
terras e, menos, aos pobres colonos, que fizeram entradas de
várias quantias em dinheiro ao ex-intendente mediante recibos
provisórios. A escrituração a respeito consiste em lançamentos
em livro particular (conta-corrente) com ausência dos requisitos
essenciais - termos de abertura e encerramento, número e rubrica
das folhas. O ex-intendente nenhuma informação prestou sobre o
destino que deu às importâncias recebidas antecipadamente dos
colonos, cuja situação é, quiçá, desfavorável diante da incerteza
de reaverem o dinheiro empregado ou as terras.
130
Idem, ibidem, p. 5.
131
Idem, ibidem, p. 11.
93
É certo que de 1914 em diante, parte da renda das terras foi
lançada em livros da tesouraria, mas outra parte, não
132
.
O tom professoral que por vezes assume o relatório de Álvaro
Silveira demonstra o quanto ele considerava os Conselheiros Municipais
limitados intelectualmente e incapazes administrativamente. Embora
aparentando apenas comentar a desordem reinante na escrituração contábil
da intendência, e evitando uma acusação mais direta, o intendente
apresentava a questão das terras vendidas de forma a lançar sérias dúvidas
quanto à atitude do ex-intendente em relação aos valores recebidos. Não foi
a intendência a receber dinheiro, mas o ex-intendente; os colonos pagaram
por terras que não lhes poderiam ter sido vendidas; o dinheiro desaparecera
e as terras continuavam do Estado - ou seja, os colonos haviam sido
ludibriados; o ex-intendente agira conscientemente, pois fazia registro legal
de uma parte das rendas obtidas, sonegando outra: estas, provavelmente, as
conclusões que Silveira esperava tirassem os Conselheiros - e,
principalmente, Borges de Medeiros, a quem cópia do relatório foi enviada -
da sua exposição. E não só em relação ao dinheiro apontava irregularidades:
examinando o último relatório de Bráulio Oliveira, constatara o
desaparecimento de 5,25 lotes de 25 hectares cada um, na colônia
133
. No
mínimo - era o que certamente Álvaro Silveira tentava demonstrar - houvera
grande incompetência administrativa por parte do coronel; possivelmente,
houvera até desonestidade.
Tão graves insinuações - em nenhum documento conhecido Silveira
transforma-as em acusações diretas - dão uma idéia do grau de confronto
que se havia estabelecido entre o intendente e o seu antecessor. Infrutíferas
haviam se revelado as tentativas de cooptação desenvolvidas por Bráulio
Oliveira. O bom relacionamento, diversas vezes denunciado por Damaso
Gomes de Castro a Borges de Medeiros, entre o coronel e o então
intendente provisório, transformara-se em verdadeira luta política de
destruição. Empenhado em desmoralizar Bráulio Oliveira - condição
necessária para poder consolidar-se como chefe político de fato e de direito
-, Álvaro Silveira procurava demonstrar seus conhecimentos científicos
sobre administração, e, através de didáticas teorizações sobre o assunto,
expunha, nem tão sutilmente, o juízo que fazia do seu antecessor:
Modernamente encarada a administração pública deve ter
caracteres próprios de analogia, atividade, unidade,
132
Idem, ibidem, p. 6.
133
Cf. Idem, ibidem, p. 5.
94
independência e responsabilidade. O primeiro - a atividade - é
qualidade fundamental que abrange quatro outras: a generalidade
ou administração pública vigiando todos os interesses sociais; a
perpetuidade ou continuidade sem que passe de uma atividade
exagerada a um repouso estéril; a prontidão, para que tenha o
mérito da previdência e o da oportunidade; a energia, uma
administração 'desprovida de força moral não poderá, quando se
quiser fazer obedecer, empregar a linguagem da persuasão, e
terá de recorrer aos meios coercivos'. Deve ser justa, mas forte,
evitando assim os dois extremos: ou fraqueza degradante ou
violenta tirania. Salutar teoria cujos princípios devem ser
objetivados!
134
Estes princípios enunciados por Álvaro Silveira bem podem ser
entendidos como princípios gerais aplicáveis a qualquer administração
identificada com o castilhismo-borgismo. Prestavam-se, além disso, a
estabelecer o contraste entre o que havia sido o período braulista e o que
deveria vir a ser o período alvarista. Era o moderno operoso, vigilante,
previdente, enérgico, justo e forte, impondo-se ao antigo relapso, indolente,
estéril, imprevidente, moralmente degradado e violentamente tirânico.
Álvaro Silveira e Bráulio Oliveira representavam, então, forças
antagônicas, incompatíveis, inconciliáveis e auto-excludentes. Impossível
subsistirem uma em presença da outra. Eram, no entanto, forças
politicamente desiguais, e o respaldo oferecido por Borges de Medeiros ao
seu funcionário de confiança - e superestimado por este - não seria
suficiente para sustentar Silveira num embate ao qual o aspirante a coronel
lançara-se tão afoitamente. Descontentando, assim, a uns e outros, o
intendente não apenas indispôs-se com os dois principais coronéis políticos,
como conseguiu levá-los a aliar-se contra ele, apesar das diferenças quase
insuperáveis que separavam o coronel Bráulio do capitão Damaso. É o
próprio Álvaro Silveira a informar Borges de Medeiros que:
O Bráulio tem tido repetidas conferências com João Francisco,
Arlindo Leal, e General Firmino. Ontem seguiu ele a
conferenciar em Santa Maria com João Francisco. Diz que V.
Excia. cederá às solicitações do Dr. Pestana e ele triunfará; que
conta com o juiz de comarca intimamente ligado ao Promotor
e demais funcionários seus parentes e afins, com o Damaso a
quem pretende se aproximar
135
.
134
Idem, ibidem, p. 10-11. Grifado no relatório.
135
Carta de Álvaro Silveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 25 de dezembro de 1917. ABM/IHGRS.
95
Mais significativa do que a referência a uma possível aproximação
entre Bráulio e Damaso, porém, é a indicação das articulações a que Bráulio
se dedicava no plano estadual. Evidentemente, Álvaro Silveira não soube
avaliar o significado dessa atividade do coronel. Como decorrência da sua
concepção de poder, Silveira via o coronel como um inimigo político
isolado - naquele momento, inclusive, destituído de poder -, cuja ação era
restrita aos limites do município de Santo Ângelo. Não compreendia que
Bráulio Oliveira era, na verdade, integrante de um grupo maior de
republicanos, inserido num sistema de relações políticas que o ligavam a
alguns dos mais importantes chefes políticos do estado. O enfrentamento
com Bráulio, Álvaro Silveira o entendia como uma medição de forças entre
dois chefes locais, em caráter praticamente pessoal, e sentia-se, então, em
condição privilegiada, pois tinha o apoio do Presidente do Estado e Chefe
Supremo do PRR, Borges de Medeiros.
No entanto, o que ocorria em Santo Ângelo - como certamente em
outros municípios - era o confronto entre dois sistemas de alianças,
confronto esse que tivera seu auge na crise gerada pela indicação e eleição
senatorial de Hermes da Fonseca. A adoção, por Borges de Medeiros, da
política de fomento de dissidências, como estratégia para burlar a legislação
que garantia o direito de representação da minoria e que permitia, também,
que o chefe estadual do PRR jogasse para segundo plano, sempre que
possível, antigos e incômodos chefes políticos do interior - como era,
justamente, o caso de Bráulio Oliveira -, desencadeou um período de grande
turbulência interna nas hostes sempre ditas coesas e harmoniosas do PRR.
De um lado, um grupo de tradicionais republicanos, como Firmino
de Paula e João Francisco, que cultuavam fielmente a memória de Júlio de
Castilhos, reconhecendo-o como o instaurador da República no Rio Grande
do Sul e considerando-o tão elevado moral e intelectualmente quanto
Augusto Comte; Borges de Medeiros, para esse grupo, era um sucessor que
ficava muito aquém do Patriarca. Desse modo, admitiam o castilhismo, mas
não reconheciam Borges de Medeiros como co-elaborador do que
consideravam a doutrina do PRR. Para eles, o único mérito de Borges era o
de ter sido escolhido por Castilhos para sucedê-lo. Reconheciam Borges de
Medeiros como Chefe Supremo do partido. Entendiam, no entanto, que, a
partir da morte de Júlio de Castilhos, o exercício do poder no estado deveria
obedecer a uma espécie de pacto oligárquico, estabelecido entre iguais. Não
elevavam Borges a um patamar de merecimento acima daquele em que eles
próprios se colocavam - Castilhos sim, mesmo quando vivo, era tido como
alguém superior. O grande referencial de mérito, para estes republicanos
tradicionais, era, além da fidelidade incondicional a Castilhos, com o qual
haviam convivido intensamente, a participação e o desempenho de cada um
96
na Revolução de 93. Ter atuado na propaganda republicana e lutado na
Revolução, sempre sob a liderança de Júlio de Castilhos, eis a origem do
prestígio desses chefes republicanos. E nisso consideravam-se iguais a
Borges de Medeiros - ou até mais merecedores que ele. Por isso entendiam
que Borges deveria encarregar-se das questões gerais do estado e do partido,
agindo sempre naqueles casos de caráter estadual. As questões locais
deveriam ficar sob inteira e exclusiva responsabilidade dos chefes locais.
Isso implicava em considerar, como já foi referido, o município como
parcela autônoma do estado, como o estado era parcela autônoma da União.
O outro grupo, nesse confronto, reunia os fiéis aliados de Borges de
Medeiros, obviamente sob a sua liderança. Para esses a obra de construção
do Rio Grande do Sul republicano havia sido dirigida tanto por Castilhos
quanto por Borges, igualando-se os dois e elevando-os a um mesmo
patamar de merecimento, bem acima de qualquer outro republicano gaúcho.
A eles igualava-se apenas o senador Pinheiro Machado; este, por ter agido
principalmente no plano nacional, não participou diretamente da elaboração
da doutrina do PRR, desenvolvendo atividades entendidas como de outra
natureza. Esse grupo borgista via o Presidente do Estado e Chefe Supremo
do partido como um líder iluminado, incontestável e incontrastável, fonte de
todo o poder e senhor absoluto do estado e do PRR. Para eles, a vontade de
Borges de Medeiros era uma ordem, e obedecê-lo e agradá-lo era supremo
dever de todo legítimo republicano. Como Borges, não admitiam qualquer
grau de autonomia para os municípios e, muito menos, para os chefes
locais. Estes deveriam ser meros executores da política pensada pelo chefe
estadual. Não existia, para Borges e seus seguidores, nada parecido com um
pacto oligárquico com vistas ao exercício do poder. O único poder legítimo
era aquele exercido por ele, que tinha um caráter positivo, científico. O
poder dos chefes locais tinha sentido e legitimidade se derivasse desse
poder central, exercido pela única pessoa que reunia todas as qualidades
necessárias para tanto. Logo, Borges de Medeiros tinha o legítimo direito de
interferir em quaisquer questões surgidas em qualquer município, fossem de
caráter partidário ou administrativo.
Essa querela autonomia/dependência, como foi observado, estava
presente no enfrentamento entre Álvaro Silveira e Bráulio Oliveira, no qual
o primeiro aparecia, na verdade, como preposto de Borges de Medeiros. Por
isso consideramos que o confronto, na verdade, transcendia os limites de
simples questão local, para constituir-se em momento privilegiado de um
conflito que era, na verdade, entre duas grandes tendências que mediam
suas forças dentro do PRR. Que parte importante da missão que Álvaro
Silveira recebera de Borges de Medeiros ao ser nomeado intendente-
interventor de Santo Ângelo era, justamente, fazer prevalecer a idéia da
97
dependência frente à concepção autonomista de Bráulio Oliveira, evidencia-
o, por exemplo, uma correspondência encaminhada pelo provisório ao
Presidente do Estado já nos primeiros dias da intervenção:
Comparando-se a despesa fixada pelo Conselho Municipal para
o vigente exercício com a do exercício findo, vê-se que houve
diferença de 7.359.486 a maior, devido à subdivisão dos distritos
e aumento de 5 praças na guarda.
Perguntei ao Cel. Bráulio se V. Exa. tivera conhecimento de tudo
isso e aquiescera.
- Não é necessário, é da competência do Conselho e do
Intendente - respondeu.
Contrariou-me tal resposta [...]
136
.
Seguramente, esta postura autonomista de Bráulio Oliveira era o
principal fator a determinar o desagrado de Borges de Medeiros em relação
ao coronel. E, mais do que ao coronel, era necessário neutralizar essa
tendência que, ao que tudo indica, grassava no seio do PRR santo-
angelense. a submissão total ao Presidente do Estado era manifestada por
Álvaro Silveira em todas as correspondências que enviava a Borges. No
citado Relatório de 28 de dezembro de 1917, Silveira expôs com clareza a
tese da dependência municipal, dela declarando-se adepto:
Regional ou municipal a administração do município faz parte
do conjunto do sistema administrativo brasileiro. Ainda que a
missão das unidades administrativas seja a satisfação dos
numerosos interesses coletivos da sociedade são autônomas entre
si em se tratando das relações entre a União e o Estado, e isso se
de um modo completo, absoluto. tão somente uma
coordenação resultante das únicas relações legais possíveis, que
são apenas de ordem política; já as relações entre a unidade
administrativa do Estado membro e a do município não são
exclusivamente políticas. Liga-as um laço que coloca o
município, mesmo sob o ponto de vista administrativo, debaixo
da inspeção do Estado, de modo que aquele tem a sua atividade
sempre na iminência de uma intervenção deste.
Consoante a teoria exposta linhas atrás, da qual sou decidido
sectário, cumpro o honroso dever de recomendar à vossa
especial consideração o relevante assunto de que trata a circular
n. 183 da Secretaria da Fazenda e que interessa de perto à nossa
expansão econômica, máxime tendo em vista a recomendação do
exmo. sr. Presidente do Estado da conveniência de uniformizar-
136
Carta de Álvaro Silveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 8 de dezembro de 1916. ABM/IHGRS.
98
se a taxação de expediente e estatística de acordo com a
percentagem referida nessa circular
137
.
Frustrados foram o esforço explicativo e a ameaça intervencionista
do intendente. Em carta da mesma época do Relatório, e referindo-se ao
mesmo assunto, Álvaro Silveira informava a Borges de Medeiros que:
O Conselho, constituído em sua maioria de ex-damistas e
braulistas deliberou modificar o orçamento na parte referente a
impostos aumentando-os. Ficou assim em desacordo com a
tabela enviada pela Secretaria da Fazenda de taxas municipais de
expediente ou estatística sobre a exportação ou reexportação.
Baldados esforços empreguei no sentido esclarecê-los sobre a
conveniência de manter a harmonia entre o município e o
Estado, fazendo ver que aquele não está na mesma relação de
independência com que o Estado está para a com a União. O
município está sempre na iminência da intervenção do Estado.
Mostrei-lhes o parecer da Secretaria da Fazenda sobre o projeto
do orçamento que V. Excia. aprovou me sendo respondido que
V. Excia. não conhece as necessidades do município. É que o
costume de um povo não é coisa fácil de modificar. Tarde ou
cedo manifestam-se sintomas de insubordinação e altaneria
pachorrentamente pregados pelo ex-intendente
138
.
Perceba-se que a atitude do intendente em relação ao Conselho
Municipal era coerente com suas concepções políticas. Para ele, Borges de
Medeiros era a única fonte legítima de poder, e o seu próprio poder derivava
do respaldo que lhe dava o Presidente do Estado. Assim, fazia exigências e
solicitações ao Conselho ameaçando-o sempre com a possibilidade de
intervenção no município. Álvaro Silveira, a julgar pelo que ele próprio
afirmava, não negociava politicamente com os conselheiros, mas os
ameaçava. Era Borges de Medeiros que queria que as coisas fossem desse
ou daquele modo, e se o Conselho não acatasse, seria Borges a agir contra o
município.
Álvaro Silveira, embora eleito com votos do PRR de Santo Ângelo,
continuava a agir como interventor, como mero representante de Borges de
Medeiros. Ao insistir nessa postura, em lugar de buscar respaldo junto às
lideranças locais do partido, agudizava ainda mais uma crise que imaginara
137
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Álvaro Silveira. Santo Ângelo, 28 de
dezembro de 1917, p. 8.
138
Carta de Álvaro Silveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 25 de dezembro de 1917. ABM/IHGRS.
Observe-se uma incoerência entre as datas do Relatório e desta carta: pelo conteúdo - citado acima - dos
dois documentos, a carta é posterior ao Relatório, mas sua data é anterior.
99
poder sufocar apenas com a autoridade que lhe havia sido dada por Borges.
O intendente tentava intimidar com ameaças um Conselho que não hesitava
em afrontar diretamente o próprio Presidente do Estado, ao mudar um
projeto que havia sido aprovado por esse Presidente e ao negar a Borges de
Medeiros autoridade para manifestar-se sobre a administração local, por
desconhecer a realidade do município.
Justamente aquele a quem Álvaro Silveira considerava como um
homem superior e fonte do seu poder, Borges de Medeiros, era
acintosamente desrespeitado pela maioria dos republicanos santo-
angelenses, que não admitiam qualquer tipo de superioridade do Chefe
Supremo do PRR em relação a eles. O próprio Álvaro Silveira contava a
Borges de Medeiros, ao defender a permanência de um funcionário no cargo
que exercia, em Santo Ângelo, que este funcionário estava sendo perseguido
pelos chefes locais por não haver "tomado parte na propaganda que o
coronel fazia contra V. Excia.", e que:
dos funcionários da Coletoria, o único que não riscou a palavra -
imaculado - no cabeço de uma consulta feita com o fim de passar
uma revista ao eleitorado e que era assim concebida 'Como
recebeu a apresentação do imaculado nome do Exmo. Sr. Dr. A.
A. Borges de Medeiros para Presidente do Estado?' foi Lucídio
Rodrigues
139
.
Alguém teria, inclusive, riscado a palavra imaculado e anotado que
"imaculada nem a virgem é".
Além de ilustrar com perfeição o controle que era exercido sobre o
eleitorado e, em especial, os funcionários públicos, essa passagem
demonstra claramente o ânimo de boa parte do PRR do município para com
Borges de Medeiros. Dá, ainda, boa noção da ascendência que tinha o
coronel Bráulio Oliveira sobre o partido local, e o isolamento em que se
encontrava Álvaro Silveira. Ao patrocinar uma tal pesquisa junto ao
eleitorado, e pelos resultados que ela apresentou, o intendente apenas
conseguiu mostrar que lhe faltava completamente a autoridade no trato com
as questões políticas e administrativas municipais. Se ao próprio Borges se
afrontava, imagine-se ao seu preposto.
A inabilidade de Silveira, sua incapacidade de articular-se com a
oposição republicana local a Bráulio Oliveira, e, conseqüentemente, o seu
fracasso em neutralizar esse que, por várias razões, já referidas, constituía-
se em um problema para o Chefe Estadual do partido, tornavam inútil sua
139
Idem, ibidem.
100
permanência no cargo. A ameaçada intervenção estadual no município, para
reformar o orçamento, não se concretizou
140
. No dia 16 de março de 1918,
cerca de cinco meses após ser empossado como intendente eleito de Santo
Ângelo, Álvaro Silveira licenciou-se do cargo por tempo indeterminado,
desaparecendo completa e definitivamente do cenário político.
140
Uma bem completa listagem das intervenções de Borges de Medeiros em municípios gaúchos, a1923,
pode ser encontrada em: PEREIRA, Baptista. Pela Redenção do Rio Grande. São Paulo: Saraiva, 1923.
(Apenso nº 1).
6. MAJOR QUINZOTE E CAPITÃO DAMAS:
A DISSIDÊNCIA NO PODER.
Assumiu o cargo de intendente, então, o major Joaquim Rolim de
Moura, o major Quinzote, que havia sido nomeado vice-intendente pelo
próprio Silveira, ainda em novembro de 1917. Joaquim Rolim de Moura era
um discreto e respeitado membro da dissidência republicana de Santo
Ângelo, e sua ascensão ao cargo máximo da administração municipal
representou, igualmente, o fortalecimento da posição de Damaso Gomes de
Castro, o mais destacado líder dessa dissidência.
É importante lembrar que Bráulio Oliveira declinara da sua condição
de chefe da maioria em favor do então intendente-interventor Álvaro
Silveira, que passou a constituir, juntamente com o capitão Damaso - chefe
da minoria -, a direção do PRR de Santo Ângelo. Embora membro da
dissidência, ao substituir Silveira na intendência, Joaquim Rolim de Moura
passou a substituí-lo, também, na direção do partido. Dessa forma, Joaquim
e Damaso transformaram-se nos diretores da política municipal,
constituindo a Executiva do PRR local. Também administrativamente
ocupavam as duas principais posições no município, pois Damaso havia
sido nomeado Delegado de Polícia
141
.
Acidentalmente, o representante da dissidência no governo
municipal - outra não era a razão da indicação de Joaquim Rolim de Moura
para vice-intendente - assumiu o cargo de intendente. No entanto, e apesar
do relativo fortalecimento de Damaso Gomes de Castro, referido, a
atuação do major Quinzote à frente da administração municipal não
implicou num fortalecimento da dissidência que pudesse significar a sua
passagem à condição de grupo oficial do PRR santo-angelense, com o
conseqüente desmantelamento do chamado grupo braulista. Isso porque,
141
Não foi possível apurar o momento dessa nomeação. No entanto, as referências a Damaso como Delegado
de Polícia foram encontradas em fontes datadas de 1918 a 1920. É certo que, antes disso, exercera o cargo
de subdelegado do 4º Distrito - considerado, justamente, o seu reduto eleitoral.
102
uma vez empossado, o major assumiu uma postura de alguém acima das
divergências internas do partido, procurando, segundo ele próprio, conciliar
os divergentes e reunificar o republicanismo santo-angelense.
Joaquim Rolim de Moura, o major Quinzote
Sobre o inesperado de sua ascensão ao cargo de intendente
municipal, o próprio Joaquim Rolim de Moura manifestou-se através do
primeiro relatório que encaminhou ao Conselho Municipal, no final do ano:
Obedecendo ao dispositivo da Lei Orgânica do Município e
guiando-me pelas normas do Partido Republicano, venho vos
expor os negócios atinentes à administração, de cujo encargo,
inesperadamente, fiquei investido, contra a minha vontade, é
certo.
Quando o Intendente Municipal, sr. Álvaro Silveira, houve por
bem lembrar-se de meu obscuro nome para seu substituto legal,
aceitei, com desvanecimento, essa nomeação, como quem aceita
um cargo honorífico, nunca supondo que, algum dia, viesse
recair sobre mim, o peso da responsabilidade do governo
municipal
142
.
Afirmava ainda o major Joaquim que hesitou em assumir o governo,
mas aceitou-o
animado pela boa vontade dos senhores Conselheiros e dos
demais co-munícipes em coadjuvar-me, e, até esta data, o digo
142
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Vice-Intendente Joaquim Rolim de Moura. Santo
Ângelo, 1 de novembro de 1918, p. 3.
103
com inexprimível satisfação, tenho sido auxiliado por meus
amigos.
Enquanto estiver no governo, não cessarei de auscultar, como
tenho feito até hoje, os desejos e opiniões de meus
correligionários, de cuja agremiação repercute, como um eco, a
vontade popular.
É da organização da República o seguinte dístico: O povo é
soberano, e os verdadeiros republicanos não devem afastar-se
nunca dos ditames dessa sublime forma de governo
143
.
Democracia era um conceito estranho aos republicanos (membros
do PRR). Seguramente, não era um conceito desconhecido, mas, pelas
características do castilhismo-borgismo, era um conceito negado. Em
nenhum dos documentos - cartas ou relatórios - examinados aparece essa
palavra. Joaquim Rolim de Moura, do qual não se tem qualquer referência
que indique uma atividade intelectual acima da média dos seus
correligionários, conseguiu, no entanto, sintetizar com clareza e
simplicidade o conceito republicano de soberania popular: o povo era
soberano, mas seu canal legítimo de manifestação era o PRR, dirigido por
um chefe - local ou estadual, conforme o caso - que, em última instância,
verbalizava a vontade popular. O verdadeiro chefe, portanto, era aquele que
ouvia seus correligionários; e o verdadeiro republicano era aquele que
acatava as palavras do chefe, porque representavam a vontade popular. Esse
conceito de soberania popular era, pois, uma contrapartida republicana ao
conceito de democracia.
Expondo o seu conceito de governo republicano, e associando-o às
condições em que se dera sua ascensão ao cargo de intendente, o major
Joaquim Rolim de Moura procurava deixar claro o caráter supra-
faccionário que pretendia para sua administração. Essa postura, porém, não
decorria do desprendimento de alguém sem ambições políticas, cujo único
desejo fosse ver reinando, novamente, a harmonia entre as hostes
republicanas. Pelo contrário, tudo indica que o projeto de Joaquim Rolim de
Moura era o mesmo de Álvaro Silveira: suplantar Bráulio Oliveira e
Damaso Gomes de Castro, estabelecendo-se como o novo chefe político
republicano - de fato e de direito - do município de Santo Ângelo.
Se o objetivo do major Quinzote era o mesmo de Álvaro Silveira,
sua estratégia, no entanto, era exatamente a oposta. Em lugar do conflito e
enfrentamento tentado por Silveira, Rolim de Moura buscou a conciliação e
a boa-vizinhança. Concebendo o poder, no entanto, da mesma forma que
Silveira e Damaso - a fonte do poder era Borges de Medeiros -, permitia
143
Idem, ibidem, p. 3.
104
que Damaso e Bráulio agissem livremente, mantendo com eles um bom
relacionamento público; reservadamente, porém, procurava mostrar ao
Presidente do Estado o papel nocivo que o capitão e o coronel
desempenhavam na política local. Tendo feito um afago ao coronel Bráulio,
indicando-o para uma importante comissão, justificou-se dessa forma
perante Borges de Medeiros:
Recebi do sr. Cel. Marcos Alencastro de Andrade, autorização
de indicar dois oficiais superiores para a comissão incumbida de
auxiliar a reorganização da Guarda Nacional. Indiquei o nome
do Cel. Bráulio Oliveira, somente por ser o único oficial de mais
alta patente nesta sede, apesar de temer que essa nomeação
poderia prejudicar a política local, fi-lo tão somente, obedecendo
às instruções do sr. Cel. Marcos
144
.
O relacionamento entre Bráulio Oliveira e Damaso Gomes de Castro,
apesar da política de boa-vizinhança desenvolvida por Joaquim Rolim de
Moura - política esta facilitada por uma espécie de pacto tácito que havia
permitido a substituição de Álvaro Silveira por Joaquim -, continuava muito
difícil. Desse modo, Damaso não aceitou a indicação de Bráulio, o que
possibilitou ao major expor a Borges de Medeiros o conceito que tinha do
capitão:
Por intermédio do sr. Cap. Damaso Gomes de Castro, que
ultimamente esteve nessa capital, recebi outra carta do Cel.
Marcos, dizendo que seria conveniente fazer as indicações de
acordo com o Cap. Damaso. Vejo-me na contingência de
declarar a V. Exa. que o Cap. Damaso, longe de procurar fazer
uma política conciliadora, procura tão somente fazer política
para si próprio
145
.
Em carta a Borges de Medeiros, ao término do seu mandato,
Joaquim Rolim de Moura ainda atribuía a Bráulio e Damaso a
responsabilidade por todos os problemas que havia enfrentado à frente do
governo municipal e pela crise, ainda não superada, do PRR de Santo
Ângelo:
Apesar do critério que adotei, não tive auxílio algum, nem do
Coronel Bráulio e nem do Capitão Damaso e, naturalmente,
144
Carta de Joaquim Rolim de Moura a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 9 de setembro de 1918.
ABM/IHGRS.
145
Idem, ibidem.
105
devido à ambição pessoal que os mesmos nutriam pelo cargo de
Intendente, toda vez que lhes era possível me moviam oposição,
a qual foi sempre disfarçada e desleal
146
.
Ao mesmo tempo em que procurava criar uma imagem anti-
republicana dos dois outros líderes do partido local, Joaquim tratava de
estabelecer de si próprio uma imagem oposta àquela:
Apesar de iniciar a minha administração num período de fortes
discórdias locais em conseqüência da agitação política
alimentada pelo Coronel Bráulio e pelo Capitão Damaso, não
desanimei e, dentro do possível, tudo envidei para consolidar o
nosso Partido aqui; pus termo a grande número de desavenças, e
enfraqueci, com o meu modo de agir, quase a totalidade das
demais
147
.
Completava sua auto-imagem demonstrando seu desprendimento e
sua liderança política:
Sem ambição política, além da que tenho de procurar cumprir o
meu dever de soldado do nosso partido, arregimentei o mesmo e
consegui preparar o ânimo do eleitorado para sufragar o nome do
candidato que V. Exa. apresentasse.
Isso eu disse pessoalmente a V. Exa. e a votação dada ao
Coronel Bráulio foi uma confirmação plena, pois que ele não
está no coração do povo e, no entanto, em conseqüência do meu
esforço, conseguiu boa votação
148
.
Joaquim Rolim de Moura esforçava-se por convencer a Borges de
Medeiros de que ele era a pessoa indicada para exercer a chefia política de
Santo Ângelo. Por outras referências feitas na mesma carta citada, procura
demonstrar que todos os méritos em relação à política e à administração
municipal são unicamente seus, mas foram aproveitados pelos seus desleais
correligionários, Bráulio e Damaso. Embora se apresente como responsável
pela eleição de Bráulio Oliveira em 1920, Joaquim Rolim de Moura
aceitou-o como candidato muito a contragosto, pois era outro o candidato
pretendido por ele e Damaso, como adiante se verá.
Sobre o curto período em que Joaquim Rolim de Moura esteve à
146
Carta de Joaquim Rolim de Moura a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 3 de outubro de 1920.
ABM/IHGRS.
147
Idem, ibidem.
148
Idem, ibidem.
106
frente do governo municipal, é interessante observar que ele tinha,
aparentemente, um projeto de longo prazo, no qual estava presente uma
preocupação com a formação de cidadãos moldados de acordo com os
interesses e as necessidades - tais como ele as entendia - do PRR. No seu
primeiro relatório, as únicas manifestações subjetivas do intendente em
exercício foram aquelas sobre a natureza do governo republicano,
referidas, e outras especificamente sobre a Instrução Pública:
No ano de 1919, pretendo ainda elevar o número de escolas,
escolhendo, para provê-las, professores relativamente
competentes e dedicados, que façam de sua profissão espinhosa,
porém nobre, um sacerdócio; procurarei nomear professores que
se apoiem na convicção de que ensinar crianças é cuidar do
futuro da pátria.
Tu serás soldado, deve ser o lema dos bons professores, eles
devem dizer e repetir essa frase histórica e significativa aos
pequenos patriotas, todas as manhãs, antes de começarem as
dissertações sobre os rudimentos da língua vernácula, geografia,
lições de coisas, etc., até que o aluno responda instintivamente:
professor, eu já sou soldado
149
.
Claramente, o major percebia o potencial da educação como
instrumento de formação de um tipo de cidadão conformado ao perfil que se
exigia dos legítimos republicanos: disciplinado, pronto a obedecer sem
refletir, instintivamente; como bom soldado, sempre submisso aos seus
superiores.
E, realmente, Joaquim Rolim de Moura deu, ao administrar, muita
atenção à instrução pública: embora tenha gastado apenas 10:513$596 dos
15:400$000 disponíveis para essa finalidade
150
, dos seus primeiros 25 Atos
Oficiais, nada menos do que 13 tratavam de exonerações e nomeações de
professores municipais. Por um desses atos, inclusive, e demonstrando a
preocupação do intendente com aquele perfil de professor manifestado no
relatório, foi nomeado "o cidadão Luiz Rolim de Moura para o cargo de
professor da aula municipal sita no lugar denominado Inhacorá,
distrito" (Ato nº 11, de 1 de junho).
O Ato seguinte - Ato 12, de 1 de junho -, não tratava de nomeação
de professor: era nomeado "o cidadão João Rolim de Moura para o cargo
149
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Vice-Intendente Joaquim Rolim de Moura. Santo
Ângelo, 1 de novembro de 1918, p. 7-8. Grifado no Relatório.
150
4:000$000 de verbas municipais e 11:400$000 de verbas estaduais. O saldo financeiro do município, no
exercício de 1918, foi de 4:445$720.
107
de subintendente dodistrito". Decididamente, o major Joaquim apreciava
a colaboração que lhe prestavam os familiares no árduo trabalho de bem
administrar um município enorme e cheio de problemas, como era o caso de
Santo Ângelo. No seu relatório referente ao ano de 1919, informou haver
pago ao sr. João Rolim de Moura a importância de 1:055$500 referente a
"composturas das estradas de Passo Fundo e Buricá"
151
. Esse valor
representava mais de 40% do total gasto no ano com composturas de
estradas - 2:632$900. A um outro parente seu, o sr. Sibindo Rolim de
Moura, foram pagos apenas 200$000, também referentes à "compostura de
estradas no distrito", o que elevava a participação da família Rolim de
Moura nos serviços de composturas de estradas no município para mais de
47% do total. O restante - 53% - estava distribuído entre cinco outros
prestadores de serviços.
O nepotismo e o favorecimento de parentes e amigos nos negócios
com o município são, obviamente, características inerentes a um sistema de
dominação política de caráter coronelístico e oligárquico. Não era diferente
em Santo Ângelo, nem era exclusividade de Joaquim Rolim de Moura
empregar parentes. Durante as gestões de Bráulio Oliveira - e mesmo
quando ele não era intendente - diversos parentes seus - além de parentes
dos parentes - ocuparam importantes cargos públicos de nomeação, tanto da
esfera municipal quanto estadual.
Não temos aqui a pretensão de precisar o conceito de oligarquia,
muito menos de determinar a ocorrência de uma oligarquia santo-
angelense. Porém, um exame não muito aprofundado da relação dos
ocupantes apenas dos cargos de intendente, vice-intendente e conselheiros
de Santo Ângelo, entre 1874 e 1932
152
, e utilizando como critérios apenas a
coincidência de sobrenomes e notórios laços estabelecidos por matrimônio -
precários critérios, sem dúvida, pois de apenas uns poucos se conhece o
nome ou a família das esposas - permite constatar que, nestes 58 anos, um
grupo de menos de 20 famílias dominou a política municipal e contribuiu
com um sem mero de funcionários públicos e oficiais dos Corpos
Auxiliares. E embora poucos sejam os dados disponíveis a respeito,
percebe-se que desse mesmo grupo saíram os principais prestadores de
serviços e fornecedores do município.
Como um resultado da sua política conciliadora, Joaquim Rolim de
Moura era publicamente elogiado pelos braulistas, principalmente através
151
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Vice-Intendente Joaquim Rolim de Moura. Santo
Ângelo, 31 de outubro de 1919, p. 4.
152
Cf. FERREIRA, S. Dias. Estudos de Estatística - Relatório apresentado ao sr. Dr. Ulysses Rodrigues,
Intendente. Santo Ângelo, 2 de janeiro de 1930, p. 25-29.
108
do jornal A Semana, dirigido por Seraphim Dias Ferreira, fiel seguidor de
Bráulio Oliveira. Comentavam-se positivamente as medidas propostas e
executadas pelo intendente, "que tem dado exuberantes provas do seu amor
e devotamento ao progresso da nossa terra"
153
. A atenção das autoridades
estaduais para com o município era saudada como "altamente significativa
do valor e prestígio dos dirigentes da política local"
154
. O saldo positivo de
18:060$375 no exercício financeiro de 1919 era apontado como
demonstrativo do "tino econômico e financeiro do dirigente dos nossos
negócios administrativos"
155
.
O próprio Bráulio Oliveira colaborava com Joaquim Rolim de
Moura, a julgar-se pelo que se noticiava nos últimos meses de mandato do
major, quando se faziam as articulações com vistas à indicação do seu
sucessor - cargo, evidentemente pretendido pelo coronel. Na época, Santo
Ângelo carecia de um sistema de abastecimento de energia elétrica, sendo
esta uma das principais reivindicações dos seus moradores. Ainda em
março, A Semana noticiava:
Sabemos que o sr. Coronel Bráulio Oliveira apresentará hoje ao
sr. Intendente proposta para a instalação da luz elétrica nesta
vila, tanto para uso público como particular
156
.
Às vésperas da chegada a Santo Ângelo do emissário de Borges de
Medeiros para tratar da sucessão intendencial, dava-se como resolvido o
problema da energia elétrica:
Poucos dias nos restam para vermos passar para o domínio das
coisas reais a instalação da luz elétrica nesta vila.
[...]
Razão temos, pois, para nos sentirmos rejubilados ante a
louvável iniciativa do sr. major Intendente, que ao seu decidido
esforço viu aliar-se, num gesto de verdadeira dedicação, o ato
desinteressado do sr. cel. Bráulio Oliveira, cedendo
gratuitamente a força hidráulica da sua cascata para fazer acionar
o dínamo gerador
157
.
Este bom convívio entre o major e o coronel era coerente com a
153
A Semana, Santo Ângelo, 23 de outubro de 1919.
154
A Semana, Santo Ângelo, 26 de fevereiro de 1920.
155
A Semana, Santo Ângelo, 18 de março de 1920.
156
A Semana, Santo Ângelo, 25 de março de 1920.
157
A Semana, Santo Ângelo, 01 de julho de 1920.
109
estratégia de cada um com vistas à obtenção da hegemonia sobre o PRR
local. Procurava o major beneficiar-se do bom relacionamento com o
coronel e o capitão para confirmar uma imagem de conciliador e
pacificador, ao mesmo tempo em que isto lhe garantia a boa vontade do
Conselho Municipal, integrado por braulistas e damistas, e lhe permitia
apresentar-se como bom administrador, uma vez que era alvo dos elogios
públicos de uns e outros, não sendo questionado ou contestado como
administrador. Seguramente, também, o major apostava que o confronto
persistente entre o coronel Bráulio e o capitão Damaso seria suficiente para
desgastá-los, mais ainda, junto à chefia estadual do partido, sem que
houvesse necessidade de ele próprio expor-se nesse conflito; sua ação, nesse
caso, limitava-se a, reservadamente, informar Borges sobre as atitudes e
dificuldades criadas pelos dois contendores, como já foi demonstrado.
De parte de Bráulio Oliveira, não havia preocupação em manter
polêmica publicamente com o intendente. Pelo contrário, a forma como
Joaquim Rolim de Moura se portava, política e administrativamente, era-lhe
favorável, porque o major não estava, aparentemente, interessado em
descartá-lo totalmente da política municipal como pretendera Álvaro
Silveira e como pretendiam, ainda, Borges de Medeiros e Damaso Gomes
de Castro.
Quanto a Borges de Medeiros, a ão de Bráulio Oliveira passava
pelo sistema de alianças e articulações políticas em que ele estava inserido,
e que o ligava a influentes republicanos, como Firmino de Paula, João
Francisco, Augusto Pestana, Salvador Pinheiro Machado, entre outros. Aí,
tratava-se de demonstrar a Borges de Medeiros que o coronel, reinvestido
plenamente de suas funções político-administrativas, era muito mais útil ao
sistema de dominação mantido pelo PRR no estado do que qualquer outro
dos aspirantes a ocupar a posição de Bráulio Oliveira. O prestígio do
coronel e sua eficiência como chefe político compensariam a tolerância -
contrafeita - de Borges de Medeiros para com um chefe que não aceitava
submeter-se incondicionalmente à sua chefia suprema. Para convencer
Borges de Medeiros disso, agiam republicanos mais influentes que o
próprio coronel.
com relação a Damaso Gomes de Castro, este era identificado
como o verdadeiro adversário político de Bráulio, pois o contestava e
atacava-o publicamente. Além disso, por causa de sua função de delegado,
Damaso podia criar muitas dificuldades, não diretamente para Bráulio, mas
para os seus dependentes políticos. E realmente o capitão estava, ao que
tudo indica, empenhado em assim proceder. Por isso, era necessário
combatê-lo. Mas esse combate não era conduzido diretamente por Bráulio,
uma vez que esse tipo de atitude poderia ser interpretado como desinteresse
110
do coronel pela unidade e harmonia interna do partido. Bráulio poderia ser
apontado como desagregador e indisciplinado, pois estaria contestando
publicamente uma autoridade constituída - o delegado de polícia, nomeado
pelo Presidente do Estado. Mais uma vez entrava em ação o jornal de
Seraphim Dias Ferreira, em cujas ginas sucediam-se notícias dando conta
da truculência do delegado. O próprio Seraphim, aliás, foi alvo privilegiado
da ira do capitão Damaso, conforme denunciou em editorial no seu jornal,
sob a manchete Violência de uma autoridade:
O delegado de polícia, Damaso Gomes de Castro, prende
arbitrariamente o diretor desta folha.
O delegado de polícia, Damaso Gomes de Castro, fazendo-me
deter sob prisão, incomunicável e com sentinela à vista, na
tesouraria da Intendência Municipal, às 10 horas do dia 29 de
outubro último, cometeu uma injustificável violência, porque o
seu ato foi arbitrário e ilegal, com manifesto abuso da autoridade
de que se acha investido
158
.
As razões da sua prisão e da perseguição que lhe era movida por
Damaso e que passou a denunciar, Seraphim as indicava no mesmo
editorial:
A resposta é fácil de adivinhar e foi dada por todos aqueles
que em 1916 assistiram à campanha eleitoral neste município,
quando o delegado Damaso de Castro teve a idéia de se
apresentar candidato às urnas. Sabendo-se que fui um dos que
com mais vigor se lançaram à luta contra a sua candidatura
intendencial, descoberta está a causa da violência contra mim
exercida
159
.
A prisão parece ter-se prolongado por bom tempo, pois quatro meses
mais tarde A Semana comentava o caso de um jornalista pelotense que
continuava preso ilegalmente, mesmo tendo sido absolvido no processo que
respondera. Entendia, A Semana, que aquele jornalista estava, portanto,
sendo "vítima de uma inqualificável perseguição por questões políticas", e
fazia um paralelo com a situação do seu próprio diretor:
Não nos admira o fato em si, porquanto as violências exercidas
contra o diretor desta folha, que em igualdade de circunstâncias
158
A Semana, Santo Ângelo, 6 de novembro de 1919.
159
Idem, ibidem.
111
se acha encerrado num xadrez infecto, provam à evidência de
quanto são capazes os chefetes da política, quando o jornalista
defende com desassombro os interesses do povo contra os
manejos da sua ambição desenfreada, ou quando não se presta a
engrossamentos, turibulando a sua personalidade envaidecida.
[...]
Não nos admira, pois, o fato em si, tanto mais que nós mesmos,
em igualdade de circunstâncias, lhe estamos sofrendo as duras
conseqüências; apenas estranhamos que nas cidades cultas, onde
a lei e a justiça devem sobrepujar a mesquinhez das almas
pequeninas, a perseguição seja a arma dos covardes contra os
seus desafetos.
Isso julgávamos ser privativo dos pequenos centros, onde a lei é
esfarrapada entre as mãos dos que se amparam ao bastão do
poder
160
.
A utilização da autoridade policial para realizar prisões ilegais como
forma de constranger os adversários políticos, principalmente, foi prática
largamente utilizada em todo o estado. Em Santo Ângelo, ao que parece, foi
prodigamente empregada essa forma de intimidação, que era denunciada
por A Semana como forma de fustigar, sempre que possível, o delegado
Damaso. Para não ficarmos só com o caso de Seraphim Dias Ferreira,
vejamos, por exemplo, uma pequena notícia, publicada sob o título de
Hábeas Corpus:
Os advogados Dr. Francisco Antunes e Tarquínio Oliveira
impetraram ao Superior Tribunal do Estado uma ordem de
Hábeas Corpus a favor de João Alfredo Duarte, que se acha
preso na cadeia civil desta vila, mais de 40 dias, sem nota de
culpa e sem processo instaurado
161
.
Interessante observar, nesse caso, que um dos advogados referidos
na notícia é o mesmo Tarquínio Oliveira que fora apontado por Damaso
Gomes de Castro a Borges de Medeiros, algum tempo, como "irmão do
Coronel Bráulio Oliveira e afamado turbulento"
162
. O que demonstra que o
enfrentamento entre Bráulio Oliveira e Damaso Gomes de Castro dava-se
em todos os níveis possíveis, mas sem que o coronel tivesse de expor-se
publicamente, o que era impossível ao capitão Damaso, uma vez que eram
160
A Semana, Santo Ângelo, 4 de março de 1920.
161
A Semana, Santo Ângelo, 01 de abril de 1920.
162
Carta de Damaso Gomes de Castro a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 01 de março de 1917.
ABM/IHGRS.
112
as suas atitudes como delegado que estavam sendo questionadas e
denunciadas.
Houve um episódio que, a ser plenamente verdadeiro como foi
publicado, dá uma mostra dos métodos empregados por Damaso Gomes de
Castro no exercício de sua função policial. Num editorial intitulado Á
Chacina!, em A Semana, fazia-se referência a um boato que correra em
Santo Ângelo, em determinado dia da semana, dando conta que um grupo
de mascarados preparava-se para atacar a vila. Imediatamente, o delegado
convocou pessoal armado, colocado em alerta nas imediações da
Intendência e da cadeia. Conforme o editorialista:
Seriam 9 horas quando, ao passar pela frente de um dos xadrezes
da cadeia o delegado de polícia Damaso Gomes de Castro,
dirigindo-se a um dos seus capangas, disse textualmente: 'a
primeira descarga será contra os presos'.
Os próprios reclusos e os soldados da guarda ouviram
distintamente a ordem de chacina. Os grupos de capangas que,
sob suas ordens estacionavam na frente e nos fundos da
Intendência, seriam, por certo, os executores da ordem que não
podemos classificar devidamente
163
.
O próprio delegado teria assumido plenamente a responsabilidade,
admitindo ter dado essa ordem:
Levado o fato ao conhecimento do sr. major Joaquim Rolim de
Moura, como superintendente geral da cadeia, este interpelou
imediatamente o delegado de polícia sobre a sua estranha e
inqualificável ordem, o que ele negou a princípio, dizendo
depois que de fato proferiu tais palavras 'mas de brincadeira',
terminando por confessar e afirmar repetidas vezes que, 'sendo
real, era isso mesmo e que assumia a responsabilidade'.
[...]
Não nos surpreenderemos, tanto mais que entre os reclusos se
encontra o mais odiado inimigo do delegado Damaso de Castro,
sobre o qual fez desencadear toda fúria da sua amofinada
perseguição
164
.
Mas não apenas de uma forma tão violenta procurava o delegado
atingir os seus inimigos políticos. A manipulação de processos também era
uma prática utilizada, que, por mais sutil, prestava-se a ser empregada
163
A Semana, Santo Ângelo, 18 de março de 1920.
164
Idem, ibidem.
113
mesmo quando o capitão tentava passar uma imagem menos truculenta:
Todos os dias nos chegam informações de que o sr. delegado de
polícia, Damaso Gomes de Castro, anda seriamente empenhado
em afastar de si a acusação tremenda que a opinião pública lhe
atirou aos ombros, taxando-o de feroz perseguidor dos seus
desafetos.
[...]
E para que os leitores, a quem não chegou ainda o conhecimento
da verdade, possam ajuizar do que aqui dizemos, basta referir,
como amostra, que o sr. delegado de polícia, no célebre processo
que nos foi instaurado por manejos bem conhecidos, datou o seu
relatório de 4 de novembro, narrando nele fatos ocorridos em 7 e
13 de dezembro - DO MESMO ANO!
165
A tomada da justiça nas próprias mãos, assumindo funções próprias
de autoridades judiciárias, era característica de um sistema de dominação
coronelística. O chefe político interferia diretamente na administração da
justiça, arbitrando litígios, prendendo sem considerar os procedimentos
legais, mantendo presos à revelia de decisões judiciais, e estabelecendo
penas e castigos, que iam desde a execração pública até a execução sumária,
ignorando a lei e o direito. Prendiam, processavam, julgavam, condenavam
e executavam as sentenças, tão mais rigorosas e criminosas quanto mais
indefeso se encontrasse a vítima dessa justiça extralegal. Considerando-se a
organização do judiciário, e a forma como eram preenchidos os cargos de
juízes e promotores, torna-se evidente a complacência e, mesmo, a
conivência dessas autoridades com as ações perpetradas pelos chefes
políticos nos municípios. Assim, ocasiões havia em que, como tentativa de
preservação de uma imagem de justiça que o castilhismo-borgismo
pretendia para os governos do PRR, era preciso dar foros de legalidade a
ações manifestamente ilegais, fosse para incriminar adversários ou livrar de
culpa correligionários. Aí, proliferavam os autos processuais truncados, as
testemunhas que deixavam de ser citadas por não terem sido localizadas, os
processos que dormitavam anos e anos nas gavetas de delegacias e
cartórios, dados, finalmente por inconclusos e arquivados
166
.
Característico desse período é um processo contra membros de um
Corpo Auxiliar, por tentativa de homicídio, que tendo sido iniciado em
1927, foi concluído, com sentença absolutória, em março de 1936. Na
165
A Semana, Santo Ângelo, 15 de abril de 1920.
166
A quantidade de processos inconclusos, muitos envolvendo expressivos republicanos, pode ser aferida
através de rápido e superficial exame dos processos existentes no Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul.
114
sua sentença, o próprio Juiz de Direito apontava falhas do processo - as
quais impediam que fosse exarada uma sentença condenatória - que bem
demonstram a que ponto ia o poder e a influência dos coronéis:
A preocupação única do subdelegado que fez o pseudo-inquérito
foi de acumular acusações contra a vítima, deixando de parte o
fato criminoso de que é objeto o presente processo. No relatório
não uma palavra sobre o crime narrado na denúncia nem
sobre os indiciados! [...] Não foi possível trazer a juízo uma
das dez testemunhas arroladas pela promotoria pública. Desde o
início da formação de culpa surgiram sérias dificuldades na
citação de tais testemunhas, tendo este fato motivado uma
informação do escrivão de que os oficiais de justiça não queriam
efetuar as diligências do presente processo, recusando-se a
proceder as citações dos réus e testemunhas. [...] Somente a
defesa produziu provas durante a dilação, ouvindo seis
testemunhas, três delas oficiais do Corpo Provisório de que
faziam parte os acusados, e as demais, adversários políticos da
vítima, em uma época em que ardiam os ódios partidários,
ensangüentando o solo gaúcho em lutas fratricidas
167
.
Em outro processo, tendo havido apelação ao Superior Tribunal do
Estado, os próprios desembargadores repreendiam o juiz e o escrivão por
irregularidades constatadas:
Chamam a atenção do juiz da comarca para o dispositivo, não
observado, do artigo 66 § do Código citado, na aplicação da
pena.
E observam ao escrivão do júri pela colocação truncada das
peças dos autos
168
.
A impunidade dos que agiam à sombra do governo era notória.
Mesmo quando havia a instauração de algum processo, isso era feito muito
mais com o intuito de revestir de legalidade uma situação ilegal do que
punir alguém.
A organização da justiça no Rio Grande do Sul castilhista-borgista
favorecia a manipulação e a burla da lei. Havia dois tipos de juízes: os
juízes de comarca, togados e que desempenhavam funções judicantes; e os
167
Processo Crime contra Virgílio Manoel Pinto, Santos Oliveira, Pedro Albino da Rosa, Sérgio Pinto e
Carlos Espíndola. Cartório do Cível e Crime, Santo Ângelo, 1927, volume 2, p. 176v-177. APERGS.
168
Decisões do Superior Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Crime nº 3.201 - Santo Ângelo.
Ano de 1923, p. 518-520.
115
juízes distritais, que eram nomeados, sem concurso, pelo Presidente do
Estado.
Aos juízes distritais competia o preparo dos processos, no cível, e a
formação de culpa nos processos criminais, contando, para cumprir essas
atribuições, com o auxílio da polícia judiciária, cujos delegados e
subdelegados também eram nomeados dentre os mais fiéis membros do
PRR, onde eram recrutados também os escrivães.
A faculdade de investigar, produzir provas, inquirir testemunhas,
organizar processos e prender administrativamente, atribuída a pessoas de
confiança do partido situacionista, constituía-se num poderoso instrumento,
tanto para garantir a impunidade de uns, quanto para forjar a culpa de
outros. Esses outros tanto podiam ser oposicionistas quanto membros de
facções rivais do próprio partido do governo. Além disso, prestava-se
perfeitamente para, sob um manto de aparente legalidade, permitir ajustes
de contas pessoais, como no caso de Seraphim Dias Ferreira.
Num tal sistema de dominação, era natural que personagens como
Damaso Gomes de Castro utilizassem a autoridade que a investidura em
determinadas funções lhes garantia como forma de afirmação de seu poder
pessoal. E o período em que, ao lado de Joaquim Rolim de Moura, integrou
a Executiva do PRR local, desempenhando, paralelamente, a função de
delegado de polícia, representou o apogeu do poder de Damaso Gomes de
Castro, o capitão Damas, em Santo Ângelo. Porém, quando, mesmo
aliados, Damaso e Rolim de Moura tentaram indicar o sucessor do major na
intendência do município, todo seu poder esbarrou na força política daquele
a quem o capitão tanto se empenhara em derrotar - e que chegara a
considerar, em certo momento, politicamente morto -, o coronel Bráulio
Oliveira.
Em princípios de junho de 1920, A Semana noticiava que:
A fim de conferenciar com o dr. Presidente do Estado sobre a
futura sucessão intendencial, seguiu na semana finda para a
capital o sr. major Joaquim Rolim de Moura, vice-intendente em
exercício.
Nada transpirou quanto à precipitada viagem do sr. major Rolim,
nem mesmo quanto aos seus propósitos a respeito da questão que
o levou a acercar-se do palácio do Governo.
Tecem-se comentários e boatos, os mais extravagantes, quanto à
sua atitude perante o Governo; nós, porém, que conhecemos e
apreciamos as qualidades, assás demonstradas, do impoluto
caráter do sr. Rolim, aguardaremos silenciosos os
116
acontecimentos, confiados em que estes se ordenem para o bem
estar coletivo e de acordo com os interesses do povo
169
.
Observe-se que Rolim de Moura é tratado, na notícia, como vice-
intendente em exercício, quando a regra era tratá-lo apenas como
intendente. Evidentemente, o que se pretendia com essa forma de
tratamento era dimensionar o poder e a autoridade do major, que, como
vice-intendente em exercício não deveria pretender agir como se intendente
fosse, no que diz respeito ao tratamento de questões maiores da política
municipal, como era o caso da indicação de um candidato a intendente.
Como porta-voz do braulismo, nada mais natural que A Semana se referisse
à viagem como precipitada, e considerasse extravagantes os comentários e
boatos acerca da atitude do major perante o Governo. A referência ao
caráter de Joaquim Rolim de Moura, bem como a manifestação da atitude
dos responsáveis pelo jornal - mais do que apenas deles, dos braulistas em
geral - em relação ao comportamento do major continham a clara
advertência de que não se admitiria dele qualquer acerto individual com
Borges de Medeiros. Em outras palavras, nenhuma indicação que fosse feita
à revelia de Bráulio Oliveira seria aceita.
Evidentemente, o Presidente do Estado percebia o risco de ruptura
violenta que poderia advir de uma indicação que não levasse em conta os
interesses do setor majoritário do PRR santo-angelense. Para articular uma
indicação que, ao mesmo tempo, evitasse esse risco, mas, também,
impedisse o retorno de Bráulio Oliveira ao cargo de intendente, Borges de
Medeiros enviou a Santo Ângelo
o sr. dr. Eurybíades Dutra Villa, subchefe de polícia da
Região, que, como emissário especial do exmo. sr. dr. Borges de
Medeiros, egrégio chefe do Partido Republicano, vem
conferenciar com os dirigentes da política local sobre a escolha
do candidato à sucessão intendencial
170
.
As circunstâncias em que se deu a discussão em torno do nome a ser
indicado mostram as diferenças entre a forma de fazer política do coronel e
dos seus adversários. Enquanto o capitão Damaso e o major Joaquim Rolim
de Moura aguardavam em Santo Ângelo o emissário de Borges de
Medeiros, Bráulio Oliveira estava em Porto Alegre, segundo o próprio
169
A Semana, Santo Ângelo, 10 de junho de 1920.
170
A Semana, Santo Ângelo, 10 de julho de 1920.
117
coronel, a chamado dos seus "deveres e o afeto paternal"
171
. Ainda que por
deveres e afeto paternal, a estada de Bráulio Oliveira na capital lhe
propiciava tratar diretamente com Borges de Medeiros sobre a sucessão
intendencial. Por pior que fosse o relacionamento entre o coronel e o
Presidente do Estado, o prestígio de Bráulio e o respaldo que lhe era dado,
no plano estadual, por destacados chefes republicanos, permitiam-lhe tratar
assunto de tal envergadura diretamente com Borges, sem intermediários.
Em Santo Ângelo, os interesses políticos do coronel estavam
representados pelo seu genro, Ulysses Rodrigues, em nome dos braulistas.
Um atraso no trem que conduzia Eurybíades Dutra Villa a Santo Ângelo, fê-
lo desencontrar-se de Ulysses, e permitiu que, ainda na noite da chegada, o
emissário de Borges de Medeiros acertasse com Damaso e Rolim de Moura
a indicação do candidato destes ao cargo de intendente, o engenheiro
Alexandre Martins da Rosa, cuja proclamação deveria dar-se no dia
seguinte, em reunião do Partido.
Antes da reunião, Ulysses Rodrigues e outros braulistas, sabedores
da indicação que seria feita, exigiram de Eurybíades a apresentação de
documento que comprovasse estar ele representando o Presidente do
Estado. O emissário apresentou-lhes um telegrama em que Borges
determinava-lhe que a indicação fosse feita depois de ouvidos Bráulio, "os
dirigentes da política local e mais republicanos graduados". Os braulistas,
capitaneados por Ulysses Rodrigues, recusaram-se, então, a aceitar uma
indicação feita apenas pelos dois membros da Executiva, e exigiram que
todos os republicanos graduados e o próprio Bráulio fossem ouvidos. Não
restou a Eurybíades Dutra Villa outra alternativa senão adiar a reunião até
que fossem ouvidos os demais membros do partido.
Retomada a reunião, o mesmo Ulysses Rodrigues comunicou que,
tendo sido ouvidos a maioria dos republicanos da vila e dos distritos, todos
indicavam o nome do coronel Bráulio Oliveira. Consultado por via
telegráfica, Bráulio declinou da indicação, sugerindo os nomes de Eurico
Moraes para intendente e Alexandre Rosa - o candidato de Damaso e Rolim
- para vice-intendente. Os braulistas, no entanto exigiram do seu líder que
aceitasse a indicação. Por sua vez, os dissidentes recusavam-se a aceitar
Bráulio e insistiam no nome de Alexandre Rosa. Buscou-se, então, através
de Eurybíades, o arbitramento de Borges de Medeiros, que, por telegrama,
determinou que Bráulio Oliveira fosse proclamado candidato, para desgosto
do capitão Damaso e do major Joaquim Rolim de Moura.
Sobre o resultado final dessa disputa, da qual saíra vitorioso, assim
171
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 3
de novembro de 1920, p. 3.
118
manifestou-se o coronel Bráulio:
Voltaram os meus amigos com o seu apelo que não me era lícito
de maneira nenhuma recusar. E de tudo tendo ciência o Preclaro
Chefe Dr. Borges de Medeiros, autorizou a proclamação do meu
nome, cuja comunicação daqui recebi com surpresa, pois que
não havia ainda respondido o telegrama em que o novo apelo se
me fazia.
Assim exigiram os meus amigos e ante a vontade do nosso
Eminente Chefe o meu dever era obedecer
172
.
Cumprira-se o ritual, segundo o qual uma candidatura nunca era
resultado de um pleito pessoal. O candidato sempre era solicitado a ceder
seu nome, que uma vez aprovado por Borges de Medeiros poderia ser então
proclamado. A candidatura sempre era definida pelo indicado como uma
missão que lhe era confiada, mais um serviço que se lhe exigia prestasse ao
partido e à comunidade. Aceitar esta missão era receber um fardo, era
dispor-se a um sacrifício pessoal, em prol do partido e do município ou
estado. Manifestar surpresa ante a indicação também era parte do ritual,
pois significava que o cargo não era ambicionado. Sugerir outro nome,
geralmente de alguém sem qualquer chance de ser indicado, ao mesmo
tempo em que se declarasse ter dúvida sobre ser ele próprio o melhor
candidato - tudo isso sem muita veemência, para evitar riscos
desnecessários - era uma forma de mostrar desapego ao poder, ao mesmo
tempo em que era uma senha para que todos os seus partidários se
esmerassem em elogiar e proclamar o acerto da indicação feita.
Por tudo isso, o envolvimento direto do pretendente no pleito à
indicação era sempre objeto de uma ocultação, na qual se empenhavam
todos os envolvidos no processo, mesmo os derrotados. Desejar o poder era
desmerecedor para um legítimo chefe político, principalmente republicano;
daí serem comuns as denúncias de que tal ou qual atitude de um chefe
político era motivada por sua ambição ao poder, como forma de demonstrar
que esse chefe, então, não merecia chegar ao poder. Ao declarar-se surpreso
com sua indicação, Bráulio Oliveira estava cumprindo seu papel com vistas
a essa ocultação, dando a entender que não pleiteara a candidatura e nada
fizera com o intuito de obtê-la. O modo como a questão se definira em favor
de Bráulio, no entanto, fica claro na carta através da qual Joaquim Rolim de
Moura comunica a Borges de Medeiros a passagem do cargo de intendente
ao seu sucessor, agradecendo o apoio recebido de Borges enquanto esteve
no cargo, mas manifestando, também, sua insatisfação com a indicação do
172
Idem, ibidem, p. 4.
119
coronel:
Os eleitores qualificados depois que assumi o cargo de
Intendente, e que são em número de 574, foram incluídos por
mim, sem o auxílio de quem quer que seja.
O Coronel Bráulio se baseou na qualificação que foi feita com o
auxílio do Capitão Damaso, eu e outros subintendentes, ao
tempo em que ele era Intendente, para fazer valer os seus direitos
ao cargo de Intendente aqui.
Agiu sem lealdade e a razão de ser do diminuto número de
incluídos ultimamente, se justifica com as dificuldades que me
foram oferecidas
173
.
Efetivamente, então, Bráulio Oliveira pleiteara o cargo de
intendente. E utilizara como argumento o mero de qualificações eleitorais
- ou seja, de eleitores inscritos pelo PRR de Santo Ângelo - realizada
durante o tempo em que fora intendente, comparado com o número de
qualificações realizadas por Joaquim Rolim de Moura. Demonstrando,
dessa forma, haver qualificado mais eleitores, Bráulio justificara sua
condição de chefe da maioria e reivindicara o direito de indicar-se
candidato. Percebe-se, nesse fato, a importância que era dada ao trabalho de
qualificação eleitoral - base necessária a partir da qual seria possível
produzir os resultados eleitorais que se desejasse.
Retomava, dessa forma, o coronel Bráulio, a plenitude da sua
autoridade como chefe político de Santo Ângelo, pelo que era efusivamente
saudado, pela imprensa republicana e por outros chefes. Numa dessas
saudações transparece, mais uma vez, a indicação de Bráulio como
resultado de um pleito seu junto ao Presidente do Estado:
Ei-lo agora, ao que nos consta, investido, pelo egrégio Chefe do
Partido Republicano Rio-grandense, Dr. Borges de Medeiros, à
frente da política de Santo Ângelo, pois foi isso o que a nossa
reportagem conseguiu averiguar ter ficado assente em uma das
últimas conferências do Cel. Bráulio Oliveira com S. Ex. o Dr.
Borges de Medeiros, no Palácio da rua da Igreja
174
.
As reservas de Borges de Medeiros em relação ao coronel Bráulio
persistiam, uma vez que nada ocorrera de significativo que pudesse
173
Carta de Joaquim Rolim de Moura a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 3 de outubro de 1920.
ABM/IHGRS.
174
A Rua, Porto Alegre, 24 de julho de 1920.
120
justificar uma mudança de opinião do chefe estadual em relação ao chefe
santo-angelense. O número de qualificações, ainda que consistisse em um
critério importante para definir o prestígio eleitoral do coronel, dificilmente
teria força suficiente para demover Borges de sustentar a indicação proposta
pela dissidência de Santo Ângelo. A indicação do nome de Bráulio Oliveira
deu-se, seguramente, a partir de uma avaliação ampla, que considerou o
efeito que teria a indicação ou não do coronel sobre o processo de
articulação da própria candidatura de Borges de Medeiros a mais uma
reeleição. Embora seu mandato ainda estivesse ao meio, Borges
provavelmente antevia as dificuldades que teria naquela que terminou por
revelar-se a sua mais complicada reeleição. A oposição estadual não estava
disposta a permitir a sua recondução ao cargo, e sua política de fomento das
dissidências municipais criara situações de iminente rompimento e defecção
de importantes chefes do PRR no interior do estado. Naquele momento, o
tratamento que dispensasse a Bráulio Oliveira seria o referencial que guiaria
as ações de uma parcela considerável do partido. As articulações de Bráulio
com outros integrantes da ala tradicional do PRR no estado fariam com que
a não concordância de Borges com a sua candidatura repercutisse no plano
estadual; já a insatisfação dos dissidentes ficaria restrita ao plano municipal.
Logo. Borges teria muito mais a perder do que a ganhar, caso insistisse em
tentar destruir o prestígio político do coronel.
A atenção que os republicanos tradicionais, castilhistas, davam ao
desenrolar dos fatos em Santo Ângelo pode ser percebida por uma das
manifestações de apoio recebidas por Bráulio após sua indicação:
E é com grande prazer que envio tais congratulações, porque o
distinto amigo é do número dos velhos e devotados servidores do
nosso glorioso Partido, que lutaram, na paz e na guerra, com
denodo e entusiasmo, pela estabilidade da República e vitória da
obra de Júlio de Castilhos
175
.
Percebe-se, nessa carta, a recorrência destes integrantes da velha
guarda do PRR à guerra (de 1893) e à figura de Júlio de Castilhos como o
instaurador da República no Rio Grande do Sul. Como foi referido, essa
geração de republicanos via no seu convívio com Júlio de Castilhos, no
tempo da propaganda e nos primeiros anos da República, e na sua atuação
ativa na guerra civil de 1893 - também sob a liderança de Castilhos -, um
traço de distinção entre eles e os demais republicanos, principalmente os
mais jovens. Esses jovens republicanos poderiam dizer-se republicanos
175
Carta de J. Fredolino Prunes a Bráulio Oliveira. Alegrete, 28 de agosto de 1920. ABO/Raul Vinhas.
121
provados na paz como na guerra após as escaramuças de 1923. Até ali, a
condição de veterano de 1893 determinava, para grande número de velhos
republicanos, um grau de merecimento que os fazia sentir-se acima dos
demais, e equiparados ao próprio Borges de Medeiros. A desconsideração
de Borges para com um destes velhos republicanos poderia ser entendida
como um agravo para toda esta geração de políticos.
7. BANDEIRAS VERMELHAS:
DISSIDÊNCIA OU RESISTÊNCIA?
Ao ser empossado, mais uma vez, como intendente de Santo Ângelo,
Bráulio Oliveira foi reinvestido, também, na chefia unipessoal do PRR no
município. Isso significava, também, que acabara - em relação ao município
- a política de apoio à dissidência por parte de Borges de Medeiros. Aos
dissidentes restariam apenas duas alternativas: acatar a chefia de Bráulio de
Oliveira, anulando-se como oposição interna; ou levar a dissidência à última
conseqüência, rompendo com o PRR e alinhando-se à oposição estadual.
Bráulio Oliveira dispensou ao seu antecessor um tratamento cortês,
poupando-o de críticas públicas. Pelo contrário, faz mesmo um elogio a
Joaquim Rolim de Moura na conclusão do Relatório que encaminhou ao
Conselho Municipal logo após a posse:
É-me grato consignar, neste encerramento, o zelo e dedicação
com que sempre procurou servir o município, o meu antecessor
sr. Joaquim Rolim de Moura, no curto lapso de 2 anos e meses
em que esteve à testa da administração, na qualidade de Vice-
Intendente.
Deixou S.S. os cofres com o saldo de 29:046$660 rs. e fez os
melhoramentos que de maior relevância julgou necessários.
Administrador honesto que foi o sr. Joaquim Rolim de Moura,
não se lhe poderão atribuir fatos verificados de funcionários
infiéis que abusaram de sua boa de homem simples e bem
intencionado
176
.
Mesmo no seu elogio, Bráulio Oliveira sutilmente expunha os limites
do major como administrador, referindo-se a possíveis irregularidades
cometidas por exploradores da "sua boa de homem simples e bem
176
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 3
de novembro de 1920, p. 16-17.
124
intencionado". Em outras palavras, o major era um ingênuo. A própria
referência ao saldo vultoso, relacionado aos "melhoramentos que de maior
relevância julgou necessários", contribuíam para delinear uma imagem do
major como pouco operoso, atendendo apenas aos problemas mais
evidentes, temeroso de utilizar o dinheiro público em obras e
melhoramentos, preferindo acumulá-lo. No próprio Relatório, o coronel
enuncia, com minudência, todos os reparos necessários em todo o município
para recuperar estradas, pontes, pontilhões, bueiros, etc., que demonstravam
sinais de abandono e falta de conservação.
reservadamente, Bráulio Oliveira não poupava críticas aos seus
antecessores - Álvaro Silveira e Rolim de Moura. Encaminhou a Borges de
Medeiros um relatório em que procurava demonstrar a passagem dos
mesmos pela Intendência como um verdadeiro desastre, tendo deixado o
município praticamente em ruínas e o Partido destroçado
177
. Anos mais
tarde, ao ser novamente destituído da chefia unipessoal do PRR santo-
angelense, o coronel, que não aceitava dividir a chefia com mais dois
correligionários, dirigiu a Borges de Medeiros, através de carta, veemente
protesto, no qual fez referência à situação que encontrou em 1920:
De efeito, Exmo. Sr., ao receber das os de V. Exa. a
reinvestidura da direção política deste município, em 1920,
recebia eu o Partido que deixara forte e coeso em 1916,
abandonado a ponto de comparecerem às urnas cento e
poucos eleitores, sendo que apenas quarenta na Vila, como
ocularmente testemunhou o Dr. E. Dutra Villa, e V. Exa. sabe
178
.
Este último período de Bráulio Oliveira como intendente de Santo
Ângelo ficou marcado, principalmente, por dois acontecimentos: um levante
de colonos, em 1921, e a chamada Revolução de 1923. Nestes dois
episódios, o coronel Bráulio enfrentou ex-republicanos dissidentes que, não
aceitando a sua chefia, optaram pelo rompimento com o republicanismo
borgista.
Em 1921, Bráulio Oliveira tentou implementar no município de
Santo Ângelo a cobrança de um imposto de Policiamento e Estradas. As
justificativas do coronel para a necessidade deste imposto eram duas: por
sua extensão, em boa parte coberto por matas, o município demandava um
grande número de homens para seu policiamento; e o elevado custo deste
177
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. A. A. Borges de Medeiros pelo Coronel Bráulio Oliveira. Santo
Ângelo, 9 de dezembro de 1920.
178
Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 26 de novembro de 1927. ABM/IHGRS.
125
aparato policial. Conforme Bráulio,
O município dispende anualmente, como podeis verificar,
metade das suas rendas com o serviço policial e conservação de
estradas e pontes.
Como poderá, pois, prescindir daquele imposto se as despesas
são certas e cada vez mais avultadas?
179
No mesmo Relatório, o coronel informava que, tendo sido
arrecadado no último exercício (novembro de 1921 a outubro de 1922) a
importância de 13:980$000 proveniente desse imposto, apenas as despesas
com o corpo de polícia haviam atingido a cifra de 60:135$314. Logo, a
implementação plena do imposto fazia-se necessária para evitar o
"considerável desequilíbrio no orçamento que urge remediar de qualquer
forma"
180
. Essa elevada despesa com policiamento
181
era conseqüência da
realização do projeto do coronel em relação à Guarda Municipal, anunciado
no seu Relatório de 1920 - o primeiro após seu retorno ao cargo de
intendente:
Contava o insuficiente número de 10 praças a guarda municipal.
Elevei o número a 22, pretendendo elevá-la a 30 que é omero
que julgo indispensável para um policiamento em todo o
Município. Fiz encomenda à Casa de Correção da capital, do
fardamento necessário, providenciei na aquisição de animais
cavalares para montaria de uma polícia volante que percorrerá
todos os distritos, operando de combinação com os respectivos
subintendentes
182
.
A preocupação de Bráulio Oliveira com a guarda municipal pode ser
entendida se considerarmos o papel que as forças policiais desempenhavam,
naquele momento, como instrumentos privilegiados de poder dos chefes
políticos - os coronéis - republicanos.
As relações entre o poder municipal e o poder estadual fluíam de
duas formas: pelo contato direto entre os chefes locais e o chefe estadual, ou
179
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 15
de novembro de 1922, p. 24.
180
Idem, ibidem, p. 25.
181
Compare-se a despesa policial desse exercício (1921/1922) - 60:135$314 - com a despesa policial
realizada por outros intendentes: Joaquim Rolim de Moura, no exercício de 1919 (1º de janeiro a 31 de
outubro), dispendeu 9:688$176; Carlos Kruel, no exercício de 1925, dispendeu 18:153$844.
182
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 3
de novembro de 1920, p. 13.
126
indiretamente, através do subchefe de polícia da região. O segundo caso se
dava quando a gravidade dos assuntos a serem tratados demandava a
presença de uma autoridade maior no próprio município, como, por
exemplo, uma disputa interna no partido ou a indicação de candidatos que
exigissem alguma negociação mais complicada - veja-se o caso da
indicação de Bráulio Oliveira, em 1920. Borges de Medeiros, o Presidente
do Estado que ocupou o cargo durante a maior parte da República Velha,
nunca se afastou de Porto Alegre durante seus mandatos. Era representado
no interior pelos subchefes de polícia.
Essa associação entre função policial e função política tornava a
organização policial um dos instrumentos fundamentais ao exercício do
poder no estado. A esse instrumento, controlado do alto pelo governo
estadual, tinham acesso os chefes locais. Funcionavam no estado dois tipos
de polícia: a Polícia Judiciária, subordinada ao governo estadual através da
Secretaria do Interior, e a Polícia Administrativa, mantida pelos governos
municipais.
No nível estadual, a Polícia Judiciária era dirigida pelo Chefe de
Polícia, auxiliado pelos subchefes, responsáveis pelas Regiões Policiais em
que se dividia o estado. Nos municípios, havia um delegado e vários
subdelegados distritais, subordinados ao subchefe de polícia da Região. As
atribuições da Polícia Judiciária eram o policiamento repressivo e auxílio às
autoridades judiciárias. Para cumprir suas atribuições, os subdelegados e
delegados requisitavam o auxílio dos policiais municipais, da Brigada
Militar - através do Chefe de Polícia - ou mesmo de quaisquer pessoas de
sua confiança.
A Polícia Administrativa obedecia diretamente ao intendente
municipal, e tinha como atribuições o policiamento preventivo e a
manutenção da ordem. O intendente destacava seus policiais nos distritos,
sob as ordens dos subintendentes, que, via de regra, eram também os
subdelegados. Como na prática quem realizava o policiamento era o
subintendente/subdelegado, resultava que a autoridade policial deste tinha
um duplo respaldo, municipal e estadual, ampliando ao máximo as suas
possibilidades de intervenção legal na vida das comunidades, e tornando
mais eficiente o controle que realizava.
Ao encaminhar, em 1917, a reorganização da polícia administrativa
de Santo Ângelo, o intendente/interventor Álvaro Silveira explicitou com
clareza a finalidade do aparato policial do município:
Considerando que o município impõe limitações à liberdade
individual por meio de medidas policiais, coercivas, tendentes a
127
manter a tranqüilidade e segurança pública; [...]
183
.
Além dos contingentes das polícias municipais, havia o concurso,
para o policiamento das vilas e municípios, de tropas da Brigada Militar do
Estado e seus Corpos Auxiliares, e mesmo, em certas épocas, de soldados
do Exército. Com isso, muitos municípios, como foi o caso de Santo
Ângelo, em alguns momentos, ficavam bastante policiados. Em fevereiro de
1927, o intendente de Santo Ângelo - então, Carlos Kruel - não obteve de
Borges de Medeiros a assinatura de um convênio para o policiamento do
município pela Brigada Militar, sob alegação de "que não há necessidade
do convênio policial, visto estar o município bem guarnecido"
184
. Na época,
a Vila de Santo Ângelo era policiada por tropas do Exército.
O convívio das forças regulares do Exército com as polícias
municipais, e mesmo estaduais, era difícil. A arrogância e prepotência dos
policiais municipais, sem nenhuma preparação para a função e cuja
disciplina se resumia à obediência cega a seus chefes políticos, levava-os a
desrespeitar e mesmo afrontar os soldados e até oficiais do Exército,
gerando situações conflituosas. Essas forças policiais semi-regulares não
eram vistas com bons olhos pelos militares. Isso transparece de um ofício
enviado pelo comandante da Brigada de Cavalaria do Exército ao
intendente de Santo Ângelo, exigindo providências acerca de um incidente
entre um oficial do Exército e um policial municipal. Após afirmar a sua
preocupação em manter um relacionamento harmônico com o governo
municipal, o militar deixava perceber, de forma pouco sutil, a imagem que
tinha da polícia municipal:
A minha delicadeza e boa vontade no sentido de conservar essa
harmonia foi até o ponto de jamais vos ter interpelado, mesmo
em palestras amistosas, sobre os fins e intuitos desse contingente
que é pela municipalidade mantido armado
185
.
Os fins legais desses contingentes eram aqueles referidos. Mas sua
ação extralegal era ainda mais útil ao domínio coronelístico. Aliás, dado à
vinculação do controle policial e do político, que se consubstanciavam no
subintendente/subdelegado, ficava muito difícil distinguir o limite entre a
183
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Álvaro Silveira. Santo Ângelo, 28 de
Dezembro de 1917, p. 10.
184
Ofício da Secretaria dos Negócios do Interior e Exterior ao Intendente de Santo Ângelo. Porto Alegre, 23
de fevereiro de 1927.AHSA.
185
Ofício do Comandante da Brigada de Cavalaria do Exército ao Intendente de Santo Ângelo. Santo
Ângelo, 10 de fevereiro de 1927. AHSA.
128
legalidade e a extralegalidade. Somando-se a isso aquela identificação do
Partido com o Estado, própria do castilhismo-borgismo, tinha-se grupos
fortemente armados, sem um limite legal preciso para sua ação, e a serviço
de interesses políticos e pessoais os mais diversos. O resultado final era,
naturalmente, a implantação de um estado de permanente medo na
sociedade, face aos crimes legais cometidos por essas forças, sob as ordens
ou, no mínimo, com a conivência do chefe político, o coronel - e, por
extensão, do chefe estadual.
Entretanto, a violência das autoridades policiais era, por vezes, de tal
gravidade que o próprio governo estadual tinha de intervir para refrear o seu
ímpeto. Se pessoas social e politicamente bem situadas sofriam a ação
dessas autoridades, como foi o caso de Seraphim Dias Ferreira, imagine-se
então simples colonos. Quando Álvaro Silveira assumiu a administração
municipal de Santo Ângelo, ainda na condição de interventor, procurou, em
sintonia com Borges de Medeiros, amenizar a repressão exercida sobre a
população por parte dos subdelegados. Uma carta sua ao Presidente do
Estado informa sobre os métodos empregados por alguns destes no interior
do município:
Tenho a honra de acusar o recebimento da carta de V. Exa. de 30
de Abril findo, na qual me ordena V. Exa. que informe sobre o
fato de ter sido atado e conduzido preso a esta Vila, por ordem
do subdelegado de polícia do Distrito, Leopoldo Gomes de
Toledo, o indivíduo Faustino Moysés.
Que esse fato mereceu a minha reprovação prova-o o telegrama
que in continenti [sic] dirigi ao Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia e
as providências que tomei no sentido de apurar a
responsabilidade do autor desse fato, tendo sido oferecida já pela
Promotoria Pública denúncia contra aquele subdelegado.
Fato idêntico acaba de ocorrer com Carlos Giellengier que aqui
chegou em deplorável estado, devido aos maus tratos que lhe
foram infligidos pelo subdelegado de polícia do 8º Distrito,
Procópio Fernandes de Moraes, e alguns particulares, acrescendo
ainda a circunstância de ter sido conduzido a pé num percurso de
dez léguas, acompanhado de sua mulher e um filho de tenra
idade, e os condutores a cavalo.
Igualmente reprovável, senão revoltante, foi o procedimento
deste subdelegado, contra o qual foram tomadas providências.
assim é de esperar que se modifique o processo que vinha
sendo empregado para a condução de presos
186
.
186
Carta de Álvaro Silveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 08 de maio de 1917. ABM/IHGRS.
129
Borges de Medeiros anotou na própria carta que "urge exonerar tal
subdelegado", no que foi imediatamente obedecido. Pode parecer paradoxal
que Borges de Medeiros se preocupasse em livrar a população rural da
opressão policial, da qual, em última instância, se beneficiava. Acontece
que até para a repressão é preciso estabelecer limites, sob o risco de levar o
reprimido à reação. Além disso, diminuir o poder de coerção dos
subdelegados no interior de Santo Ângelo implicaria em diminuir a
influência dos chefes locais - Bráulio Oliveira e Damaso Gomes de Castro -
sobre aquela população. Uma medida dessas poderia, ainda, reverter em
simpatia a Álvaro Silveira. Não se deve imaginar, porém, que Borges
pretendia impedir totalmente a ação extralegal das forças policiais.
Essa função obscura da instituição policial era percebida,
evidentemente, pelas suas vítimas potenciais, ou seja, os insubmissos
políticos - face ao que já foi exposto, infere-se que não havia diferença, para
a polícia, entre insubmissão política e insubmissão legal. Por isso, os
dissidentes republicanos, em Santo Ângelo, adotaram uma estratégia com
vistas à inviabilização do programa de ampliação e fortalecimento da
guarda municipal proposto por Bráulio Oliveira.
Em 1919, no município de São Luís Gonzaga, vizinho a Santo
Ângelo, um grupo de republicanos dissidentes depusera, através de um
movimento armado, o intendente municipal, Frutuoso Pinheiro Machado.
Como Borges de Medeiros, mesmo intervindo no município, nada fez para
reconduzi-lo ao poder, preferindo reconhecer a hegemonia do grupo que o
havia derrubado, Frutuoso e diversos aliados seus, sentindo-se ameaçados
pelo novo situacionismo republicano de São Luís, migraram para o
município de Santo Ângelo, onde adquiriram propriedades e estabeleceram
laços de camaradagem com os dissidentes locais. Além de Frutuoso, outro
integrante do clã Pinheiro Machado a migrar para Santo Ângelo foi
Tranquilino Ribas Pinheiro. Os Pinheiros envolveram-se profundamente
com a política municipal de Santo Ângelo, passando a integrar a dissidência
local.
Antes da sua deposição, Frutuoso Pinheiro Machado havia sofrido
um boicote fiscal, que fora organizado contra ele pelos seus opositores, com
o apoio da maioria dos comerciantes são-luisenses. Esse boicote
inviabilizara financeiramente sua administração, privando quase totalmente
de recursos a intendência de São Luís, que ficara impossibilitada, inclusive,
de pagar o salário de seus funcionários
187
. Essa experiência, transmitida aos
dissidentes republicanos de Santo Ângelo, motivou-os a empregar igual
187
Cf. SANTOS, Pedro Marques dos. São Luiz: Sua história e sua gente - 1687/1987 (Série Missões - vol.
V). São Luís Gonzaga: Ed. do Autor, 1987, p. 500.
130
estratégia contra Bráulio Oliveira, no que se referia ao citado imposto
Policial e de Estradas.
Ainda que a dissidência santo-angelense não fosse tão forte quanto a
que depusera Frutuoso, o sentimento adverso com relação à polícia
municipal parecia bastante disseminado na população, pois, como já foi
referido, apenas 13:980$000 foram arrecadados, contra uma despesa de
60:135$314. Bráulio Oliveira informou, inclusive, ao Conselho Municipal,
que:
A execução da cobrança do imposto - Policial e Estradas - ainda
este ano foi burlada, devido terem alguns membros da
dissidência local, num gesto de impatriotismo, aconselhado o
povo a não pagar aquele imposto, esquecendo-se de que assim
procedendo causam enormes prejuízos aos contribuintes que
serão compelidos a pagar o referido imposto judicialmente
188
.
Porém, embora não haja no relatório anual do coronel qualquer
referência a respeito, a ação da dissidência não se restringiu ao mero
aconselhamento de que não fosse recolhido o imposto. Argumentando que
esse imposto deveria ser eliminado, e que isso seria conseguido caso a
população do interior se dirigisse para Santo Ângelo, a dissidência
conseguiu reunir na sede do município um grande número de pessoas, que
após desfilarem pela cidade liderados "por um prócer são-luisense" que
gritava "Abaixo os impostos!" e "Abaixo a Ditadura!", dirigiram-se para a
periferia da vila, onde acamparam, "ostentando bandeiras vermelhas"
189
.
Esse acontecimento repercutiu em todo o estado, através da imprensa. As
primeiras notícias sobre o fato não eram muito claras:
Santo Ângelo, 27 - Devido às questões políticas, a Vila se acha
em situação anormal, estando a população cada vez mais
alarmada.
Grupos armados percorrem as ruas.
O Delegado de Polícia oficiou aos chefes da dissidência, pedindo
o seu comparecimento à delegacia, mas os mesmos não foram
encontrados.
O edifício da Intendência Municipal está guardado por cerca de
150 homens armados
190
.
188
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 15
de novembro de 1922, p. 24.
189
Cf. VINHAS, Raul. Entrevista. Santo Ângelo, 12-13 de janeiro de 1993.
190
Echo do Sul, Rio Grande, 28 de novembro de 1921.
131
Sobre a chefia da dissidência, outro telegrama publicado no mesmo
dia informava:
Ijuí, 27 - Procedentes de Santo Ângelo têm chegado diversas
famílias em conseqüência dos fatos ali ocorridos, os quais, no
entanto, parece não terem tanta gravidade.
Acha-se aqui Quinzote Rolim, chefe da dissidência política
naquele município, o qual, segundo parece, não tomou parte no
movimento
191
.
A pouca gravidade dos fatos parece negada pela notícia anterior, que
dava conta de nada menos de 150 homens armados protegendo a
Intendência. Quanto à atitude de Joaquim Rolim de Moura, o Quinzote
Rolim, não tomando parte do movimento, parece indicar que o chefe da
dissidência buscava manter um certo distanciamento em relação aos demais
dissidentes. por ocasião do episódio da indicação de Bráulio Oliveira
como candidato, em 1920, Rolim de Moura desentendera-se com o outro
chefe da dissidência, o capitão Damaso Gomes de Castro. O
comportamento dos dois chefes dissidentes invertera-se desde aquela
ocasião, quando Damaso aceitara, contrafeito, a indicação, e Rolim de
Moura rejeitara-a radicalmente, divergindo em público com o companheiro
de dissidência. Nos acontecimentos posteriores, Damaso assumiu posição
mais radicalmente oposicionista, enquanto Rolim de Moura acomodou-se
numa posição de aparente neutralidade, sem romper com o castilhismo-
borgismo, como foi o caso dos demais expoentes da dissidência.
Com relação, ainda, aos acontecimentos de novembro de 1921,
publicou-se, também, um telegrama emitido a partir de Porto Alegre:
Telegrafam de Santo Ângelo que há dias circularam ali boatos de
que a Intendência Municipal seria atacada por elementos da
dissidência política do município, os quais, segundo consta,
estão reunidos nas proximidades da Vila.
A maior parte da população está alarmada, tendo mesmo
algumas famílias abandonado a Vila.
O Intendente e o Delegado de Polícia fizeram declarar que a
situação não é tão grave como parece, avisando também estarem
as autoridades locais prevenidas para repelir qualquer agressão
que venha a se verificar
192
.
191
Idem, ibidem.
192
Idem, ibidem.
132
Como se pode perceber, as notícias iniciais sobre o episódio eram
bastante vagas, tratando a questão como boataria, ameaças de ataque,
promessas de resistência. Tudo dava a entender que se tratava de simples
agitação promovida pelos dissidentes locais, motivada apenas pelas
divergências políticas, e sem outras conseqüências que o apavoramento da
população da Vila, provocando a migração para os municípios vizinhos das
famílias mais assustadas. Uma dimensão dos fatos mais aproximada da
realidade, no entanto, começou a surgir nos dias subseqüentes. O Correio
do Povo, por exemplo, reproduziu uma notícia um pouco mais
esclarecedora, copiada de outro jornal:
A propósito da situação em Santo Ângelo, encontramos no
Diário do Interior, de Santa Maria, o seguinte telegrama:
"São Borja, 2(?) - Consta aqui, com algum fundamento, haver
parte da população de Santo Ângelo se revoltado contra o
intendente daquele município, devido ao exagero de cobrança de
impostos.
Informações vindas de São Luís dizem estarem cortadas as
linhas de comunicação com Cruz Alta.
Acrescentam essas informações terem havido duas mortes e que
os revoltados exigem a deposição do intendente"
193
.
Aí, não era apenas a dissidência a estar rebelada, mas "parte da
população de Santo Ângelo", e aparecia uma razão mais objetiva para o
movimento, o "exagero de cobrança de impostos". Também não se tratava
mais de mera agitação, mas de um enfrentamento mais sério, do qual
resultavam duas mortes.
A gravidade dos acontecimentos determinou até mesmo a
intervenção do exército federal, através da Unidade instalada em Santo
Ângelo:
Santo Ângelo, 29 - O capitão do Exército Raul Mello,
comandante do Batalhão Ferroviário aqui aquartelado, recebeu
instruções superiores, a fim de intervir para solução do caso que
agita todo este município.
A Vila está guardada por forças do Exército, tendo o intendente
coronel Bráulio Oliveira dispensado os paisanos que estavam
reunidos sob a sua direção.
193
Correio do Povo, Porto Alegre, 29 de novembro de 1921. A data do telegrama de São Borja não é
totalmente legível.
133
Consta que os dissidentes mobilizaram vários grupos e estão
acampados em pontos diversos do município, isso em
conseqüência de haverem sido feridos dois dos seus chefes, o
capitão Pedro Arão e Apolinário Espíndola.
Foi ferido Lúcio Aristimunho num tiroteio havido entre praças
da Brigada Militar e um pequeno grupo de dissidentes, na
ocasião de ser efetuada uma prisão.
Tem sido dirigidos vários telegramas ao presidente do Estado e a
outras autoridades pedindo providências, a fim de ser
solucionada a discórdia aqui existente.
O Capitão Raul Mello convidou os chefes da dissidência para
uma conferência, tendo já havido entendimento entre eles.
A população da vila já está calma.
Depois da intervenção da força federal e em conseqüência do
entendimento, ficou resolvido que, sob a fiscalização do capitão
Raul Mello, sejam desmobilizadas as forças dissidentes dentro
de um prazo limitado.
Os chefes dissidentes dispersaram um grande acampamento,
devido à intervenção da força federal
194
.
Apesar da dispersão do acampamento pelos chefes dissidentes, ainda
por alguns dias publicaram-se notícias sobre os fatos, o que demonstra a
repercussão dos mesmos. O Correio do Povo, por exemplo, publicou o teor
do boletim distribuído por Bráulio Oliveira e João Delfino Maycá, ainda no
início do movimento:
Há dias nossos telegramas se referiram aos sucessos que acabam
de ocorrer em Santo Ângelo.
Pelos Srs. Bráulio Oliveira e João Delfino Maycá,
respectivamente intendente e delegado de polícia de Santo
Ângelo, foi distribuído naquele município o seguinte boletim:
"Ao Povo - A atual situação que se atravessa, criada
exclusivamente por aqueles que se colocaram fora da lei,
obrigou-nos a tomar certas medidas de precaução que visam tão
somente garantir a ordem, seriamente ameaçada e evitar as
surpresas de um assalto com as suas funestas conseqüências.
A autoridade não é um elemento dissolvente dos sagrados
direitos da família e da propriedade: pelo contrário, ela fará
respeitar esses direitos pelos meios que o dever, o critério e a
prudência aconselham.
Tenha o povo inteira confiança na ação da autoridade.
194
Echo do Sul, Rio Grande, 30 de Novembro de 1921.
134
Os boatos tendenciosos que se espalham, sem dúvida para levar
o pânico e o terror ao coração da família santo-angelense, não
têm fundamento algum sério e devem ser desprezados.
A autoridade, entretanto, está prevenida para qualquer
eventualidade e tem tomado todas as providências no sentido de
impedir os atos de banditismo e selvageria.
Povo! Não é tão grave, como se desenha a teus olhos, a situação
que neste momento atravessa!
A tua família, a tua propriedade, o teu lar e os teus direitos serão
plenamente respeitados!
Tende confiança na ação da autoridade que é da ordem, do
direito e da justiça!"
195
Observe-se que o boletim, notadamente na sua primeira metade,
denotava uma postura eminentemente defensiva. Na verdade, Bráulio e
Maycá estavam, aí, procurando tranqüilizar a população, não em relação aos
dissidentes, mas em relação às suas próprias atitudes; perceptivelmente,
estavam procurando negar as acusações que, naquele momento, eram
lançadas contra eles. Afirmações tais como as de que "a autoridade não é
um elemento dissolvente", ou que suas medidas "visam tão somente garantir
a ordem"; a referência aos "boatos tendenciosos"; a promessa de respeito às
propriedades, às famílias, aos lares e aos direitos; o apelo à "confiança na
ação da autoridade que é da ordem": tudo isso permite concluir que a causa
maior do medo da população eram as atitudes das autoridades, antes que
dos revoltosos.
Outra notícia, publicada pelo Diário Popular, de Pelotas, reproduzia
matéria do Diário do Interior, de Santa Maria, sob a epígrafe "Fato Grave",
em que se apresentava uma versão para o fato que representou o momento
de maior gravidade em toda aquela crise, ou seja, o enfrentamento armado
entre um grupo de dissidentes e uma patrulha policial, do qual resultaram
dois mortos e pelo menos três feridos:
Do Diário do Interior de Santa Maria:
"Com este tulo publicamos ontem um telegrama de São Borja,
dizendo que constava se ter dado uma revolta, por questões de
pagamento de impostos, em Santo Ângelo.
Na nossa colega A Semana que se publica naquela vila,
encontramos pormenorizada notícia a respeito dos
acontecimentos, os quais não passaram de uma arruaça,
promovida por um grupo de indivíduos armados, que tentaram
195
Correio do Povo, Porto Alegre, 02 de Dezembro de 1921.
135
assaltar a casa de um comerciante do Passo da Pedra, daquele
município.
Um pequeno contingente da Brigada Militar ao se aproximar do
acampamento, onde se achava o referido grupo, foi recebido a
tiros.
Reagindo, a força travou forte tiroteio, conseguindo dispersar os
componentes do grupo.
Ficou gravemente ferido Lúcio Aristimunho, que morreu em
conseqüência do ferimento recebido.
João Roque, que foi preso, disse às autoridades que o grupo era
composto de 20 homens, dos quais conheceu os nomes de Pedro
Arão, Reynaldo Rodrigues, Rosalino de Tal, Lúcio Aristimunho,
Ceciliano Machado, e um filho de Lúcio Juvenal.
No acampamento foram apreendidos uma arma Winchester, uma
arma alemã calibre 12, um revólver, 5 pistolas, uma espada, um
facão, uma tesoura de cortar arame, vários pares de arreios,
ponchos, capas e três cavalos.
O comerciante ameaçado e que solicitou providências das
autoridades chama-se Hortêncio Rodrigues da Silva.
O assalto não foi executado por ter o grupo sabido que uma força
policial fora mandada para aquele local.
O delegado de polícia, tenente João Delfino Maycá, teve
denúncia de que faziam parte do grupo os criminosos
pronunciados Ceciliano Machado, Inácio Medeiros de Quadros,
Reynaldo Rodrigues e Zeferino de tal, estes dois últimos
evadidos da cadeia de Santiago do Boqueirão, há meses"
196
.
Evidentemente, a versão reproduzida nessa notícia era a oficial, pois
foi originalmente elaborada pelos redatores de A Semana, que, como foi
referido, era o jornal republicano de Santo Ângelo, e, mais do que isto, era o
porta-voz do braulismo. Se nesse caso tratava-se de criar uma versão que
explicasse os acontecimentos, justificando a ação violenta da polícia, ao
mesmo tempo em que desqualificava o movimento, fazendo-o parecer mera
arruaça provocada por um bando de criminosos, salteadores, que reagiram
à aproximação da patrulha, em outros casos eram publicadas versões cuja
distorção era provocada pelo exagero, mas que também contribuíam
significativamente para reforçar aquela versão oficial antes referida. É o
caso, por exemplo, da seguinte matéria, publicada no Correio do Povo, sob
o título "Os sucessos de Santo Ângelo":
Uma firma desta praça recebeu uma carta de um seu viajante, a
propósito dos fatos ali ocorridos e da qual destacamos as
196
Diário Popular, Pelotas, 1 de Dezembro de 1921.
136
seguintes linhas:
"Segundo meu telegrama de anteontem, efetivamente recolhi-me
a Santo Ângelo, por falta de garantias, visto as autoridades de
todos os distritos terem sido mandadas recolher para a vila, em
virtude de um movimento revolucionário levado a efeito por
elementos da oposição política municipal.
A zona que tenho que percorrer ficou sem autoridades, e já
haviam se formado diversos bandos de salteadores, tendo sido
registrados diversos assaltos e roubos a mão armada, assim achei
melhor recolher e esperar que isso acalme para depois continuar
a viagem.
Parece que agora já está mais sossegado, em vista da intervenção
do Exército aqui aquartelado, sem o que teria havido grande
mortandade.
Os revolucionários chegaram a ter mais de 1.500 homens
armados acampados a 5 léguas da vila e o assalto estava
iminente"
197
.
A publicação dessa carta suscitou uma resposta imediata do
deputado Eurico Lustoza, que fazia, em Porto Alegre, as vezes de porta-voz
da dissidência santo-angelense:
A propósito da notícia que ontem publicamos sobre os sucessos
de Santo Ângelo e cujas informações constavam de uma carta
recebida por uma firma desta praça, de um seu caixeiro viajante,
o dr. Eurico Lustosa enviou-nos a seguinte carta, cuja publicação
nos é solicitada:
"Ilustre sr. redator do Correio do Povo:
Saudações Cordiais.
A notícia por vós hoje publicada, sobre os sucessos de Santo
Ângelo, carece de algumas linhas de esclarecimento e
retificação.
Refiro-me ao trecho da carta do viajante comercial que alude a
'bandos de salteadores, tendo sido registrados diversos assaltos
e roubos a mão armada'. Não impugno esta afirmativa porque
nada sei de positivo a respeito.
Afirmo, porém, solenemente, que se tais fatos ocorreram, não
partiram da dissidência ou oposição política ao intendente
municipal e sim de indivíduos quaisquer, desclassificados e
estranhos à política oposicionista, porquanto, como disse em
entrevista que concedi ao popular vespertino Última Hora, não é
crível que homens de responsabilidade e posição social definida,
197
Correio do Povo, Porto Alegre, 8 de Dezembro de 1921.
137
quais são os meus amigos chefes desse movimento -
negociantes, fazendeiros, capitalistas, membros das classes
conservadoras em geral -, desçam à prática de crimes ou sequer
os autorizem.
É o que vos garanto, sob a minha palavra e repto, quem quer que
seja, vir a público fazer a prova do contrário.
Como se não bastassem os telegramas tendenciosos e as meias
verdades que diariamente nos mandam os correspondentes
parciais, ainda atiram sobre a cabeça da brava dissidência a
pecha de salteadores e ladrões!
É de mais. E por o ser, é que solicito da vossa benevolência, caro
senhor redator, a gentileza da publicação dessa carta: será uma
homenagem à verdade e aos sentimentos de altivez e galhardia
de um punhado de patrícios honestos que, nesta hora no alto da
coxilha, empunham as armas e somente para reclamar justiça
e liberdade..."
198
.
Também na Assembléia Estadual repercutiu este episódio, e Gaspar
Saldanha, deputado oposicionista, ao comentar a inaptidão da Brigada
Militar para o policiamento preventivo, fez referência aos acontecimentos
de Santo Ângelo:
...onde um sargento da Brigada, que lá foi a pretexto de manter a
ordem, fez efusão de sangue; tornando-se precisa a intervenção
da força federal para restabelecer a serenidade dos ânimos
exaltados por motivo de um aumento de impostos
199
.
Para que se possa estabelecer um confronto entre as versões do
braulismo e da dissidência, é oportuno conhecer a versão que foi, afinal,
reconhecida pela Justiça, e que aparece no Acórdão do Superior Tribunal do
Estado sobre a apelação de que foi objeto a sentença exarada no processo
originado por aqueles fatos:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação crime,
vindos de Santo Ângelo, entre partes, apelantes Fidêncio
Machado Sobrinho, João Manoel ou Aparício Silva, vulgo
Caturra, e o promotor público e apelados Pedro Alberto de
Melo, vulgo Pedro Arão, Apolinário Espíndola, Juvenal
Rodrigues Ferreira, Ceciliano Machado Vieira, Ignácio Medeiros
de Quadros, Reynaldo Vieira e a justiça pública.
198
Correio do Povo, Porto Alegre, 9 de Dezembro de 1921.
199
Anais da Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, 49ª Sessão, 30 de novembro de
1921, p. 216.
138
Quanto aos apelantes Fidêncio Machado Sobrinho, praça da
Brigada Militar, e João Manoel ou Aparício Silva, vulgo
Caturra, guarda municipal:
Dos autos está demonstrado que esses réus em companhia de
outros, a pretexto de capturarem criminosos, foram à fazenda de
Tranqüilino Ribas Pinheiro, no 6º distrito daquele município, e lá
chegando, fizeram uso de suas armas, ferindo um indivíduo que
saía em disparada, a cavalo, e em seguida, entraram em luta com
outros indivíduos que se achavam à sombra de uns matos
próximos, sem que tivessem sido provocados ou agredidos por
qualquer deles, resultando desse conflito a morte de Lúcio
Aristimunho e Rosalino Carvalho e ferimentos em Pedro Arão,
Aparício [sic] Espíndola e Caturra, sendo este último
pertencente à escolta em operação.
Além de não estar a escolta aludida, da qual faziam parte os réus
apelantes, premunida de ordem legal, certeza não havia da
existência de criminosos naquela fazenda.
Da prova testemunhal vê-se que outro fora o fito da diligência:
desbaratar o grupo chefiado por Pedro Arão que se dizia sem
garantias, perseguidos pelos próceres da situação política local.
E os réus apelantes, assim procedendo, cometeram violência no
exercício de suas funções, sem que para isso tivesse havido
motivo legítimo que a determinasse.
Quanto aos réus apelados Pedro Arão e outros:
Demonstrado se acha terem esses acusados, resistindo à escolta e
ferindo Caturra, agido em legítima defesa.
Alvejados a tiros, sem que tivesse havido de sua parte
provocação sequer, legal fora a reação oposta pelos apelados
200
.
Sobre os dissidentes envolvidos nestes acontecimentos, as
informações publicadas seguiam a mesma linha daquelas versões
engajadas, nas quais os heróis de um lado eram, fatalmente, os bandidos do
outro. Eurico Lustoza referia-se aos líderes do movimento como sendo
"negociantes, fazendeiros, capitalistas, membros das classes conservadoras
em geral"; para A Semana, os envolvidos no tiroteio com policiais eram
assaltantes, sendo alguns deles "criminosos pronunciados".
Nos relatórios anuais dos intendentes de Santo Ângelo aparecem
eventuais referências a alguns desses dissidentes, que podem dar uma idéia
do lugar que ocupavam na sociedade santo-angelense e no PRR local. Lúcio
Ramos Aristimunho, por exemplo, que foi uma das timas fatais do
enfrentamento armado, havia sido nomeado, através do Ato Oficial 11,
200
Decisões do Superior Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Crime nº 3.201 - Santo Ângelo.
Ano de 1923, p. 518-520.
139
de 14 de fevereiro de 1919, emitido pelo então intendente Joaquim Rolim
de Moura, para a função de inspetor da 3ª seção do 6º distrito; Pedro
Alberto de Mello, o Pedro Arão, fora nomeado pelo próprio Bráulio
Oliveira, em 7 de janeiro de 1916, como primeiro suplente do subintendente
do 5º distrito. Sobre Ceciliano Machado Vieira, a quem o delegado de
polícia João Maycá se referira como criminoso pronunciado, Joaquim
Rolim de Moura, no seu Relatório de 1919, informava que, quando o
município fora atingido pela epidemia de Influenza Espanhola,
Em Rio Branco e São Miguel os médicos Ceciliano Machado
Vieira e Constantino Perska prodigalizaram esforços com o fim
de atenderem os doentes dessas localidades
201
.
Pelo mesmo Joaquim Rolim de Moura, Ceciliano Machado Vieira
foi nomeado, através do Ato Oficial nº 4, de 15 de janeiro de 1919,
subintendente do distrito. Para que se tenha idéia da importância desse
cargo, é bom referir que o subintendente do distrito era, legalmente, o
substituto eventual do vice-intendente; numa situação em que o cargo de
intendente era exercido pelo vice-intendente, como era o caso, esse
subintendente tinha a prerrogativa de substituir, eventualmente, o próprio
chefe do executivo municipal. Outra indicação da importância desse cargo
era o fato de o mesmo vir sendo ocupado, em sucessivos períodos
intendenciais, por Frederico Beck, antigo e influente político municipal, que
havia integrado uma das juntas governativas municipais designadas logo
após a Proclamação da República, integrara o primeiro Conselho Municipal,
eleito em novembro de 1891, e exercera provisoriamente o cargo de
intendente - justamente por sua condição de subintendente do distrito -,
no período entre o final do mandato de Bráulio Oliveira, em outubro de
1916, e a nomeação, por Borges de Medeiros, do interventor Álvaro
Silveira, em dezembro do mesmo ano.
É evidente que, principalmente no caso de Ceciliano Machado
Vieira, a imagem que se tentou atribuir-lhe, de criminoso pronunciado, não
é coerente com o perfil que as informações sobre ele permitem definir.
Apresentar os adversários políticos e desafetos pessoais como criminosos,
no entanto, era uma maneira de justificar toda a violência que contra eles
fosse praticada, mantendo sempre a imagem dos chefes políticos como
homens justos, mas severos. Empregar o aparato policial público como
instrumento particular de retaliação contra seus oponentes, poderia ser
201
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Joaquim Rolim de Moura. Santo Ângelo, 31
de outubro de 1919, p. 6.
140
entendido como uma auferição de benefícios pessoais por parte do coronel.
E um verdadeiro chefe político tinha em vista apenas o bem público,
rejeitando qualquer tipo de benefício pessoal que pudesse advir do exercício
do seu cargo, assumido sempre como um sacrifício ao qual se submetia pelo
bem do município e do partido. O discurso através do qual o coronel
procurava reforçar esta imagem, era constantemente repetido, por ele e por
aqueles que o rodeavam. Daí a necessidade de transformar todo aquele que
fosse alvo de ação policial em criminoso, como todo fato que desse origem
a essa ação era explicado como fato criminoso. Mesmo que, mais tarde, o
Poder Judiciário - apesar de suas vinculações com o governo estadual -
reconhecesse como criminosa a ação da polícia.
Quanto ao levante, parece ter obtido sucesso quanto à suspensão da
cobrança do imposto policial, pois os relatórios posteriores não trazem
indicação desta fonte de receita. No seu derradeiro relatório como
intendente municipal, Bráulio Oliveira atribuiu àquele movimento as
dificuldades que teve para administrar Santo Ângelo durante seu último
mandato:
[...] tive a minha ação administrativa entravada desde o seu
início, com os movimentos subversivos locais que rebentaram
em Junho e Novembro de 1921, isto é, 8 meses depois de haver
assumido o cargo de intendente, movimentos esses que vieram
causar desequilíbrio das nossas finanças, pois, como sabeis, não
intensa era a campanha que se fazia contra o pagamento de
impostos, como também fui obrigado a despesas extraordinárias
com a manutenção da ordem pública.
Assim é que, de um lado, a falta de rendas que não entravam
para os cofres e de outro as despesas forçadas para manter a
ordem [sic].
Nesta situação difícil para mim e para o nosso Município, não
me era lícito executar o plano administrativo que traçara e que
com a melhor vontade pretendia levar a efeito
202
.
Referindo-se a uma estrada que deixava inconclusa, Bráulio Oliveira
informava que:
O movimento sedicioso que em fins de 1921 irrompeu no
Município, chefiado pela dissidência republicana aliada aos
202
Relatório apresentado pelo Coronel Bráulio Oliveira aos Srs. Intendente e Conselheiros Municipais.
Santo Ângelo, 3 de outubro de 1924, p. 5.
Sobre os fatos de junho de 1921, nenhuma informação foi encontrada. Que eram conexos aos fatos de
novembro, depreende-se do texto citado.
141
federalistas, cujos efeitos vieram influir para a paralisação dos
melhoramentos que a administração estava empenhada, atingiu
também esta grande iniciativa que visava encaminhar para esta
vila a produção do núcleo colonial do Pontão e o comércio do
distrito
203
.
Note-se que, durante este último quatriênio em que o coronel Bráulio
ocupara o cargo de intendente, Santo Ângelo fora atingido também pela
chamada Revolução de 1923. Mas foi ao movimento de 1921 que ele
atribuiu as dificuldades que teve até o final do mandato. naquele ano
Bráulio Oliveira dava conta dos efeitos daquele movimento sobre o
orçamento:
Antes de entrar na explanação dos negócios administrativos, em
seus diversos aspectos, seja-me permitido fazer algumas
considerações sobre os tristes acontecimentos desenrolados neste
município em junho e novembro do corrente ano, os quais, como
é do vosso conhecimento, concorreram diretamente para o
desequilíbrio orçamentário que se verifica do balancete de
receita e despesa, hoje submetido ao vosso exame e apreciação,
pela intensa campanha que se fez contra o pagamento dos
impostos municipais, o que perfeitamente de impatriótica e até
certo ponto criminosa semelhante atitude dos promotores de tais
acontecimentos [sic], aos quais se pretendeu dar uma disfarçada
aparência de protesto popular contra a minha chefia política e
direção administrativa
204
.
De fato, enquanto a previsão de Receita para o exercício de 1921 era
de 263:836$564, o total efetivamente arrecadado foi de 201:037$314, o que
representou uma arrecadação a menor de 62:799$250. Foi a maior quebra
percentual da arrecadação municipal durante as três primeiras décadas deste
século: 23,8 %. Embora o balanço final do ano registrasse saldo positivo de
3:566$326, foi o menor saldo relativo obtido até então, cerca de 1,77 %. E
foi obtido por força do corte de 66:365$576 (25,15 %) nas despesas
205
.
Caracterizar o movimento contra Bráulio Oliveira como efetivamente
popular, considerando-se apenas os fatos ocorridos em novembro de 1921,
demandaria o aporte de um volume maior de dados e informações que não
203
Idem, ibidem, p. 11.
204
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 14
de dezembro de 1921, p. 3.
205
Cf. FERREIRA, S. Dias. Estudos de Estatística - Relatório apresentado ao sr. Dr. Ulysses Rodrigues,
Intendente. Santo Ângelo, 2 de janeiro de 1930, p. 32-33.
142
aparecem nas fontes disponíveis. De certa forma, ao referir-se à "disfarçada
aparência de protesto popular", o próprio coronel permite que o movimento
possa ser assim caracterizado. Não se pode esperar que ele admitisse ter
sido alvo de manifestações populares; assim, ele admitiu um disfarçado e
aparente caráter popular às manifestações. Se teve aparência de protesto
popular, bem pode ter sido, mesmo, um protesto popular. O coronel, no
entanto, estaria desqualificando-o como tal, para apresentá-lo apenas como
uma agitação "cujas causas procedem da duvidosa orientação política
seguida por alguns elementos transviados das boas normas
republicanas"
206
.
Um dado que poderia indicar a adesão popular ao movimento seria o
número de envolvidos naqueles episódios. Quanto a isso, as referências vão
desde cerca de 20 até mais de 1500 pessoas
207
. Conforme a memória
familiar dos descendentes do coronel, teriam sido "umas 300 pessoas, em
sua maioria colonos"
208
. Ainda que considerando apenas as informações
obtidas junto ao grupo familiar de Bráulio Oliveira, o caráter popular do
movimento parece estar indicado tanto pelo número - 300 pessoas
209
-,
quanto pela condição dos participantes - colonos. Aliás, um dos líderes do
movimento, Pedro Alberto de Mello - o Pedro Arão -, embora não pudesse
ser caracterizado como colono, era um agricultor.
No entanto, os fatos de novembro de 1921 não podem ser tomados
de forma isolada. Foram, seguramente, os momentos culminantes de um
movimento bastante amplo e prolongado, que se desenrolou ao longo de
todo o ano e, provavelmente, projetou-se ao longo de todo o último mandato
de Bráulio Oliveira. Não foram as manifestações públicas de 1921 o dado
mais significativo desse processo de resistência, mas a recusa em recolher
aos cofres públicos os impostos cobrados. Os dados anteriormente referidos
dão conta, portanto, da amplitude do movimento e dos efeitos que foi capaz
de produzir. Acrescente-se, ainda, que o orçamento para 1922 reduziu a
expectativa de arrecadação em 14,5 % em relação a 1921, e mesmo assim a
meta não foi atingida. O orçamento de 1923 previa uma arrecadação 5,65 %
menor que o orçamento de 1921, e também arrecadou-se menos que o
previsto. Para o ano de 1924, em cujo mês de outubro Bráulio Oliveira
206
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 14
de dezembro de 1921, p. 3.
207
Cf. Diário Popular, Pelotas, 1 de Dezembro de 1921, e Correio do Povo, Porto Alegre, 8 de Dezembro de
1921.
208
Cf. VINHAS, Raul. Entrevista. Santo Ângelo, 12-13 de janeiro de 1993.
209
Conforme o Censo de 1920, a população do município era de 42.142 pessoas. Considerando os dados dos
Censos de 1890, 1900 e 1927, a população masculina correspondia a cerca de 50 % do total. Ao que tudo
indica, apenas homens tomaram parte nas manifestações.
143
entregaria o cargo de Intendente ao seu sucessor, a expectativa de
arrecadação foi aumentada, em relação a 1921, em modestos 2,45 %. Essa
expectativa, no entanto, foi superada em nada menos do que 31,20 %. Ou
seja, ao longo de três anos, e apesar da redução do orçamento, deixaram de
ser recolhidos 70:003$377; no último ano, recolheu-se 84:354$587 a mais
do que o previsto. Infelizmente, os dados não permitem verificar se essa
recuperação da receita municipal ocorreu ao longo do ano ou se foi
concentrada no último trimestre, quando o coronel não era mais
Intendente. Observe-se ainda que, apesar de o orçamento para 1925 - na
gestão de Carlos Kruel - prever uma arrecadação 58,49 % maior do que o
previsto para 1924, essa expectativa foi superada em mais de 4,75 %. Isso
significa que, entre 1923 e 1925, a arrecadação do município de Santo
Ângelo cresceu mais de 83,56 %. No período entre 1921 e 1923, o
crescimento foi de 21,60 %.
Não se trata de que Bráulio Oliveira se tenha revelado, nesse seu
último mandato, um administrador incompetente e relapso, que não soube
garantir o aporte aos cofres municipais dos valores referentes a impostos
devidos e não pagos. Estes dados, na verdade, explicitam claramente uma
das mais eficientes formas de resistência à dominação coronelística de que
foi capaz uma população. Nesse sentido, é inegável o caráter popular da
resistência oposta a Bráulio Oliveira. É indiferente que essa resistência
tenha sido deflagrada sob a liderança de dissidentes republicanos ou
federalistas, movidos por interesses pessoais. A idéia de não pagar impostos
como forma de resistir ao poder coronelístico de Bráulio Oliveira foi
assumida por uma parcela considerável da população do município, cuja
maioria absoluta - mais de 85 % - era residente na zona rural. A eficiência
dessa forma de resistência chegou ao ponto de inviabilizar, conforme o
próprio Bráulio Oliveira, a realização dos projetos que ele teria em relação
ao município.
A amplitude do movimento dificultava ações intimidatórias. Era
possível punir, extra-legalmente, eventuais insubmissões individuais. Punir
uma insubmissão sistemática e amplamente coletiva, utilizando-se de
recursos extralegais, levaria necessariamente a um estado generalizado de
violência que obrigaria a uma intervenção estadual. Além disso, o aparato
coercitivo não dispunha, desde que se abrira a dissidência municipal, da
mesma potência de outras épocas. E a população, que crescera durante a
última década do século passado à razão de 554 habitantes por ano, vinha
crescendo, em 1921, à razão de 2.867 habitantes por ano. Tal velocidade no
incremento populacional resultava, evidentemente, do processo de
colonização das zonas de mata do município, desencadeado principalmente
a partir de 1915 e que tinha no Coronel Bráulio, justamente, um entusiasta.
144
Talvez apenas tardiamente tenha Bráulio Oliveira percebido que, ao aderir à
política de colonização do governo borgista, abrira espaço para que lhe
solapassem o poder coronelístico. A resistência dos colonos, tão
eficientemente exercitada, estabelecera um limite a esse tipo de poder. Mas
não era esta a única forma de resistência ao mandonismo político.
8. NA GUERRA COMO NA GUERRA:
DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA.
depois da Revolução de 1930, um jornal de Cruz Alta publicava o
desabafo de alguém que, sob o pseudônimo de Soldado Velho, manifestava
sua inconformidade com os últimos sucessos da política. Não aceitava o
fato de que seus antigos chefes políticos tivessem, de repente, se aliado aos
inimigos de antes para fazer a Revolução. Terminava o seu desabafo
ironicamente:
Se amanhã, Getúlio Vargas andar de braço com Washington
Luís, não será milagre: - é uma alternativa política.
Ambos são políticos.
E você, povo, porque é besta, se escangalha a dentadas enquanto
os chefes políticos tomam champanhe
210
.
Era a revolta de quem, de repente, se dava conta de ter sido usado na
defesa de interesses que não eram seus. A ilusão de que os interesses em
jogo eram seus, também levou muitos colonos a buscar uma conveniente
aproximação com o poder, ou a aderir convictamente à oposição. A maioria,
porém, viu maior conveniência numa atitude de resignada submissão. Não
dispunham, individualmente, de força suficiente para opor resistência ao
poder despótico dos coronéis e seus dependentes. Respeitavam as
autoridades, acatando suas determinações. Submetiam-se ao arbitramento
nas pendências entre vizinhos. E, sobretudo, deixavam-se qualificar.
Bráulio Oliveira afirmava, com satisfação, em um relatório, que de
outubro de 1920 a abril de 1924 elevara o número de eleitores federais
qualificados pelo PRR no município, de 571 para 4.100
211
. Um aumento
210
O Filhote, Cruz Alta, 28 de novembro de 1931.
211
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 3
de outubro de 1924, p. 8.
146
considerável, se considerarmos que nesse intervalo aconteceu a Revolução
de 1923. Mas ao mesmo tempo informava que, na eleição de 3 de maio de
1924, compareceram às urnas 2.351 eleitores, número que, de qualquer
forma, representava "o primeiro lugar no Estado, em relação ao número de
republicanos e adversários que votaram"
212
. Demonstração da eficiência do
aparato político-policial montado no município. Mas demonstração,
também, de que a dominação não era tão completa quanto queria ser. O
próprio fato de que havia um eleitorado oposicionista - mesmo que reduzido
- na região, mostrava isso. Mas havia, ainda, outras atitudes que também
podem ser percebidas como de resistência.
A fuga do estado foi um meio constantemente utilizado pelos
colonos. A emigração para outros estados, como Santa Catarina, Paraná, e
Mato Grosso, ou mesmo outros países, como Argentina e Paraguai, se
intensificava nos momentos de maior conturbação. Essa evasão de
trabalhadores agrícolas preocupava o governo do estado, mas era sempre
relativizada e atribuída a fatores externos, embora indiretamente
terminassem admitindo que os problemas do estado também eram
determinantes:
Mas estas mesmas reflexões servem para deixar prever que, mais
ou menos cedo, à semelhança de outros países, o Rio Grande se
terá transformado em viveiro de colonos, não para os estados
de Santa Catarina e Paraná, como ainda para Mato Grosso, a
República do Paraguai, etc.
Entretanto, ainda aqui cumpre recordar que, além da influência
do melhoramento incessante dos serviços de colonização para
reduzir as retiradas do estado, outro regulador espontâneo existe,
que é o apego das melhores naturezas, portanto dos melhores
colonos, ao solo onde se acham radicados. E, em qualquer caso,
especialmente num estado com as condições naturais de
progresso do Rio Grande, seria vão o receio da retirada de alguns
agricultores do seu território
213
.
Não deixa de ser significativo que os colonos retirantes sejam
considerados como piores naturezas, num contexto em que ter boa natureza
era ser, entre outras coisas, submisso, cordato.
Outros colonos desenvolviam o que se poderia considerar como uma
resistência passiva. Isolavam-se, formando os tão temidos - pelo governo -
quistos étnicos. Evitavam utilizar a língua portuguesa, embora muitas vezes
212
Idem, ibidem, p. 8.
213
Relatório do Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, 1917-1918, p. 278.
147
a conhecessem suficientemente bem, e não abriam mão do uso da língua de
origem, muitas vezes já transformada em dialeto distante daquela. Era uma
forma de manter distantes quaisquer pessoas que não fossem aceitas pelo
grupo, inclusive - e talvez principalmente -, os dependentes dos coronéis.
A isso, que acrescentar-se as várias formas de organização
coletiva, nas diversas comunidades. As sociedades recreativas, as
comunidades religiosas, as escolas comunitárias, organizadas
espontaneamente e, muitas vezes, sem qualquer apoio oficial, constituíam
tentativas de suprir, por conta própria, necessidades que o Estado não se
interessava em atender.
Mas uma das formas mais significativas de resistência adotadas
pelos colonos foi a formação das chamadas Ligas de Defesa Colonial.
Durante a Revolução de 1923, a atuação dessas Ligas foi importantíssima
para a preservação da segurança física e patrimonial de muitas áreas
coloniais. O caráter autônomo e apartidário dessas Ligas pode ser medido
pela circunstância de que não faziam distinção entre forças governistas ou
oposicionistas. Apesar de formarem contingentes armados, as Ligas não
objetivavam combater, mas apenas policiar suas áreas de atuação para
impedir saques e combates no interior das colônias. combateriam em
legítima defesa. Isso chegou a ocorrer em alguns lugares, mas de modo
geral as Ligas se impuseram ante as forças em luta - republicanos e
libertadores -, fazendo-se respeitar. Um comentário na imprensa
cruzaltense, em 1923, nos dá uma idéia sobre o que eram essas Ligas:
Nos últimos tempos, as forças revolucionárias fizeram
requisições em várias casas de Cadeado, município de Ijuí, tendo
também levado regular número de cavalos dos colonos
residentes naquelas redondezas.
Os colonos, a fim de se preservarem de tais prejuízos, seja de
parte dos revolucionários, seja da parte das tropas do governo,
ou ainda de bandidos, que se aproveitam da atual situação,
resolveram criar um corpo armado para proteção própria, que
obedece mais ou menos, ao seguinte programa:
O corpo de proteção individual não se dedica, absolutamente, à
política, tendo em vista, unicamente, precaver-se contra
requisições, tentadas por qualquer dos partidos, e ainda contra
assaltos de maus elementos.
Todos os colonos se obrigam a fazer parte da instituição,
seguindo à risca as prescrições da diretoria eleita.
Em todas as entradas da colônia são postados fortes piquetes de
vigilância, que comunicarão, imediatamente, a aproximação de
qualquer grupo suspeito à diretoria.
148
Sendo ferido ou morto um dos membros da instituição, os
demais são obrigados a prestar-lhe todos os socorros, inclusive o
de sustentar a família, na última das hipóteses.
Pretendendo uma das forças beligerantes atravessar as terras do
referido distrito, tem de comunicar esta resolução com algumas
horas de antecedência. A travessia pode ser feita de dia, não
podendo durar mais que 12 horas
214
.
Em 1924, com a eclosão do movimento revolucionário liderado por
Prestes, em Santo Ângelo, as Ligas de Defesa Colonial de Ijuí, a partir da
experiência da Liga de Defesa Colonial de Neu-Würtemberg durante a
Revolucão de 1923, procuraram unificar-se no nível municipal. Formou-se
um Diretório que coordenaria a formação de Ligas de Defesa em cada uma
das colônias do município. Todas se vinculariam a esse Diretório, formando
a Liga de Defesa do Município de Ijuí.
Os colonos não se submetiam com tanta facilidade à dominação
política dos grupos tradicionais. Como não aceitavam os espaços de
participação que os grupos tradicionais lhe ofereciam, e não se deixavam
cooptar, as comunidades coloniais tratavam de criar os seus próprios
espaços.
Não se pode ignorar, também, outra forma de resistência bastante
comum naquele tempo, mas no plano individual: o crime. Frente à
prepotência e impunidade dos chefes políticos e seus protegidos, não raras
vezes os que se sentiam ofendidos, percebendo a inutilidade de recorrer às
vias legais, deixavam-se levar por uma lógica que o Gen. Firmino de Paula
manifestou com precisão: "na guerra como na guerra..."
215
; partiam então
para o emprego, como vingança, dos mesmos métodos criminosos de que
eram vítimas.
Típico exemplo desse caso foi Artur Arão, filho de Pedro Arão.
Companheiro do pai, Artur seguiu-o nos movimentos de 1923 e 1924.
Alguns dias antes do assassinato de Pedro Arão, Artur, então incorporado
ao Exército, foi detido por membros de um Corpo Provisório de Santo
Ângelo, e logo depois fuzilado, tendo sobrevivido . Esse crime, ao que tudo
214
O Commércio, Cruz Alta, 4 de setembro de 1923.
215
"...na guerra como na guerra; quem morreu, morreu, e quem não morreu ficou prisioneiro." - PAULA,
Firmino de, op. cit.. In: A Semana, Santo Ângelo, 21 de agosto de 1919.
Foi a contestação do general à acusação de ter promovido o massacre do Boi Preto, durante a Revolução
de 1893, onde teriam sido degolados mais de 300 revolucionários. Com essa expressão, o general talvez
procurasse, com sutil ironia, remeter a um artigo de Júlio de Castilhos, publicado n'A Federação em 20 de
novembro de 1889, em que este justificava a ilegalidade da Revolução de 15 de novembro como
necessária à desarticulação da ordem monárquica e ao estabelecimento da nova ordem republicana,
ameaçando duramente os adversários da República com "a cólera irreprimível com que castigaremos os
criminosos". O título do artigo era, justamente, "Na guerra como na guerra".
149
indica, era uma preparação para a eliminação de Pedro Arão. Ao voltar para
casa, restabelecido dos ferimentos e ainda sem saber da morte do pai, foi
recebido pela mãe com uma determinação: "- Meu filho, eu te esperava,
destinei a ti para vingar teu pai"
216
.
Informado do que ocorrera, fez sua profissão de :
É até bom que os graúdos se escapem das malhas da justiça,
assim poderei matá-los de uma vez. Quanto aos miúdos, se
forem presos, e à medida que forem deixando a prisão, ainda que
seja daqui a um, cinco, dez ou vinte anos, eu os irei eliminando
um a um
217
.
A opção pelo crime como forma de resistência a uma estrutura
repressiva e violenta, ao contrário de combatê-la, reforçava-a, uma vez que
justificava a repressão e intensificava a violência. Impedia a superação
dessa estrutura, na medida em que a reproduzia.
É importante destacar: o domínio coronelístico na região colonial do
estado sofreu resistências. E, à medida que emergiam, na sociedade
colonial, interesses conflitantes com o interesse coronelístico, e interesses
que, com o desenvolvimento econômico dessa região, se fortaleciam, as
formas de resistência foram evoluindo num sentido que tendia a neutralizar
o mandonismo político dos velhos chefes.
Entretanto, é necessário ressaltar que, para tentar vencer essa
resistência que se lhes antepunha, esses velhos chefes dispunham também
de variados instrumentos de poder. Por exemplo, a formação dos Corpos
Provisórios - que em si já eram instrumento formidável de poder - constituía
momento privilegiado de exercício do coronelismo, pelas incorporações
forçadas. Carone já se referiu à utilização desse método por João Francisco,
na Campanha
218
. Mas não apenas lá, e também não apenas por
determinação superior, formavam-se contingentes armados. A decisão,
muitas vezes era pessoal:
Dr. Borges de Medeiros, Porto Alegre.
Tendo Corpo v. exa. me autorizou organizar seguido Santo
Ângelo ordem superior tomei deliberação constituir contingente
216
MENEGHELLO, Ludovico. Eu sou Artur Arão. Porto Alegre: Garatuja, 1976, p. 179.
217
Idem, ibidem, p. 181.
218
Cf. CARONE, Edgar, op. cit., p. 267.
150
de amigos tomando hoje rumo Passo Quaresma abaixo Serro
Azul [sic] donde pretendo atingir e ocupar São Luís
219
.
Nas colônias a incorporação também acontecia. O telegrama acima
se relaciona ao combate aos remanescentes, na região, do movimento
deflagrado por Prestes em outubro de 1924 que deu origem à famosa
Coluna. Ainda em novembro de 1924, o jornal dos revolucionários, editado
em São Luís Gonzaga, para onde Prestes se dirigiu ao deixar Santo Ângelo,
noticiava:
Bráulio Oliveira, velho régulo de Santo Ângelo, reuniu 80 e
poucos colonos em Santa Rosa, com o fim de tomar Santo
Ângelo.
A vanguarda de Pedro Arão, de acordo com as instruções do
Estado Maior, atacou o grupinho do chefete, travando ligeiro
tiroteio. Bráulio, na iminência de ser destroçado completamente
retirou-se em desordem, deixando alguns prisioneiros.
Estes, interrogados, contaram que foram incorporados à força.
No momento do combate o grupinho governista estava reduzido
a 40 e poucos homens, pois a maioria havia desertado.
E é assim que os governistas conseguem batalhões patrióticos
220
.
Para não ficarmos apenas com a versão dos adversários do governo,
busquemos no Livro de Alterações de um esquadrão de Corpo Provisório,
organizado em janeiro de 1923, com vistas ao combate aos revolucionários
que se levantaram, naquele ano, contra a reeleição de Borges de Medeiros.
Ao final do ano, cessado o movimento, as anotações no dito livro indicavam
que, de 42 sargentos, cabos e soldados que integravam o esquadrão, apenas
7 haviam entrado em combate, sendo que 2 morreram. Nada menos de 23
constavam como desertores, tendo sido os demais transferidos ou excluídos.
Considerando que, de acordo com o mesmo livro, todos haviam sido
incorporados como voluntários, o índice de deserção foi bastante elevado.
Provavelmente, porque os desertores haviam sido voluntários contra a
vontade
221
.
Uma variável desse sistema de incorporações forçadas era a inclusão
dos filhos dos colonos no alistamento militar para o Exército. Embora o
sorteio dos incorporados fosse feito pelo próprio Exército, o que
impossibilitava a intervenção direta dos chefes políticos locais, o sistema de
219
Telegrama de Virgilino Coimbra para Borges de Medeiros, em 2 de janeiro de 1925. AHRGS.
220
O Libertador, São Luís Gonzaga, 9 de novembro de 1924.
221
Cf. Livro de Alterações do Esquadrão do Corpo Auxiliar. Santo Ângelo, 17 de dezembro de 1923.
AHSA.
151
alistamento se prestava a ser usado como instrumento de coação.
O ponto de partida era a formação das listas dos jovens em idade de
prestar o serviço militar. Para isso, eram "distribuídas listas aos sub-
intendentes rurais para a inclusão de nossos jovens patrícios de fora nos
alistamentos militares"
222
. Embora o alistamento fosse obrigatório e
determinado por lei federal, quem comparecia perante o colono,
ameaçando-o com a inclusão do nome do seu filho numa lista que poderia
significar o afastamento desse que representava um braço necessário para o
trabalho na lavoura, era o temível sub-intendente. O que assustava o colono,
a rigor, não era a lista em si, mas o significado que o sub-intendente podia
dar a ela. Logo, embora aparentemente neutra, a lista se travestia num
instrumento que permitia aos chefes locais submeterem simplórios
agricultores.
Por outro lado, as boas graças dos chefes políticos podiam
representar a exclusão da lista dos sorteados. Isso era possível através da
concessão de cadernetas de excusa:
Junto à presente, duas excusas e uma certidão de casamento do
ex-cabo Francisco Rodrigues Marafiga, que também está
chamado para o Exército. Estes papéis o Dr. Dahne pediu-me
para remeter-lhe. O cabo Marafiga não prestou exame, por ter
sido excluído quando veio a comissão, mas tem muito serviço
prestado pois serviu toda a Revolução de 23 no Corpo e na
última no 27º. Eu acredito que com as excusas seja possível
livrá-lo do Exército.
Cadernetas de excusa eu não tenho nenhuma comigo; creio que o
Ten. Coronel Virgílio Pinto terá alguma ainda em branco. Se o
senhor achar que é necessário eu poderei mandar procurar uma
para o cabo Marafiga
223
.
Mas outras possibilidades existiam para que os chefes políticos
locais exercitassem seu poder. Era comum, por exemplo, que o intendente
atuasse como árbitro para a solução de conflitos entre vizinhos
224
. E embora
as sentenças do intendente não tivessem valor legal, era pouco comum que
fossem desrespeitadas ou que aquele que se considerasse prejudicado
recorresse à Justiça.
O clientelismo que se estabelecia a partir da distribuição de cargos
222
O Commércio, Cruz Alta, 20 de julho de 1920.
223
Carta de A. Gomes para Carlos Kruel. Santa Rosa, 17 de maio de 1927. AHSA.
224
Veja-se, por exemplo: Carta de Ozorio Ribeiro Nardes ao dr. Carlos Kruel. Rio Branco, 6 de junho de
1927. AHSA.
152
públicos era outro fator que reforçava o poder coronelístico. A nomeação,
para cargos da alçada estadual, de pessoas indicadas pelo coronel não era
demonstração de prestígio. Permitia-lhe reforçar os laços clientelísticos de
submissão e fidelidade, e colocava sob seu controle direto os órgãos que
representavam o poder público estadual no município. O mesmo sentido
presidia a nomeação, pelo coronel, para cargos municipais, de indicados por
dependentes seus.
Da parte do governo do estado, era vista como atribuição dos chefes
locais a indicação de funcionários, e o ritual de indicação/nomeação era
desencadeado pelo governo estadual, que solicitava, oficialmente, as
indicações. Em 1903, Bráulio Oliveira oficiava ao Secretário do Interior e
Exterior, do governo estadual:
Em cumprimento à circular 2345 de 12 de dezembro pp.
do
,
tenho a honra de indicar para os lugares de suplentes do
Substituto do Juíz Seccional, aos senhores Antonio Gabriel
Edeler, Júlio Custódio Fernandez e Arsênio Licht, para ajudante
do procurador da República, ao sr. Otacílio Edeler, e para
Solicitador ao sr. Eurico de Moraes
225
.
A condição de nomeador, inerente aos chefes políticos locais, era
absolutamente respeitada pelo governo do estado, que prontamente atendia
às indicações feitas, sem questioná-las. A presteza com que eram feitas as
nomeações indicadas pode ser avaliada, por exemplo, pelo fato de haver
Bráulio Oliveira recebido, em 13 de julho de 1913, solicitação de Borges de
Medeiros para indicação de nomes para vários cargos. No dia 25 de julho
oficiava ao presidente do estado com as indicações. E em 1º de agosto
Borges ordenava que fossem expedidas as nomeações por telegrama, o que
foi feito no mesmo dia
226
.
Ao tratar dessa maneira procedimentos que, em última instância,
derivavam de relações de clientelismo, procurava-se mascarar os aspectos
de submissão e fidelidade pessoal que estavam subjacentes a eles. Com isso,
buscava-se reforçar outra ordem de submissão e fidelidade: a submissão e
fidelidade ao Partido, únicas que, formalmente, eram aceitáveis do ponto de
vista moral.
Mas embora procurassem sempre indicar para os diversos cargos os
mais fiéis e dedicados correligionários, os chefes políticos mantinham
sobre eles um contínuo controle e buscavam aferir, eventualmente, o grau
225
Ofício de Bráulio Oliveira a João Abot. Santo Ângelo, 24 de janeiro de 1903. AHRS.
226
Carta de Bráulio Oliveira para Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 25 de julho de 1913. ABM/IHGRS.
153
de fidelidade desses seus subordinados, através de revistas ao eleitorado,
como aquela realizada por Álvaro Silveira entre os funcionários, já referida.
Os bons empregos podiam, também, ser ocupados pelos próprios
coronéis. Em 1929, Getúlio Vargas, então Presidente do Estado, solicitava,
por carta enviada aos dirigentes do PRR em Santo Ângelo, a indicação de
um nome para a função de delegado seccional do censo, que seria realizado
em todo o país, em 1930. Salientava que o vencimento mensal seria de
cerca de 500$000 (quinhentos mil réis). Ao pé da carta uma anotação
informa: "Indicado Cel. Bráulio Oliveira em carta de 3 de dezembro de
29"
227
.
Quanto ao tradicional expediente coronelista e castilhista-borgista da
fraude eleitoral, não há, a rigor, nada de original a registrar. Os Anais da
Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul registraram, na sessão
de 23 de janeiro de 1923, a contestação ao parecer da Comissão de
Verificação de Poderes que declarava reeleito Borges de Medeiros.
Apresentada pela oposição, essa contestação se constituía num arrazoado de
cerca de 15 páginas contra o resultado apurado. Destas, pelo menos 6
páginas expunham, com minudência, sob o título A Fraude Proteiforme, os
mais diversos tipos de fraudes - constatáveis - cometidas naquela eleição,
nos diversos municípios do estado. Ironicamente, esta parte da contestação
se iniciava citando o próprio parecer contestado:
Adotando os dizeres textuais do parecer mortalha, transcrevemos
aqui, com a maior satisfação, estes trechos sugestivos do mesmo:
a fraude proteiforme alastrava-se, retraía-se, serpeava,
precisando apanhá-la na variedade de suas manifestações a fim
de expungir o pleito desses germens de corrupção, para que
surgisse a verdade, na plenitude de sua luz meridiana ... havia
títulos falsos, títulos nulos, títulos verdadeiros apresentados por
falsos eleitores e eleitores verdadeiros que votaram em
duplicatas, na mesma ou em diversas mesas e até em municípios
diferentes
228
.
Entre tantas irregularidades, a contestação indica um recorde
atingido no município de Pelotas, onde o tempo médio que cada eleitor
dispendeu para votar foi de apenas 9 segundos. Às fraudes, não há que
explicá-las, somente constatá-las. E nesse sentido, a reprodução integral
227
Carta de Getúlio Vargas para Ulysses Rodrigues, Carlos Kruel e João Dahne. Porto Alegre, 22 de
novembro de 1929. AHSA.
228
Anais da Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, 33ª Sessão, 23 de janeiro de
1923, p. 365.
154
da contestação poderia dar conta da fertilidade da imaginação e do
desplante dos fraudadores.
Para viabilizar a fraude e, ao mesmo tempo inibir os eleitores
oposicionistas, uma providência era fundamental: a nomeação dos
componentes das mesas de votação. Em 1920, editais de convocação de
mesários publicados em Santo Ângelo
229
demonstravam que as mesas eram
constituídas, integralmente, por membros destacados do PRR, havendo até
quem ocupasse cargo eletivo atuando como mesário.
No entanto, não era a eleição, mas a qualificação o momento chave
da atuação coronelista. O documento básico, na burocracia eleitoral anterior
à ata de votação, era a autêntica. Expedida pelo Cartório Eleitoral, a
autêntica continha os nomes e meros dos títulos de todos os eleitores
inscritos - ou qualificados -, em cada mesa eleitoral. Um grupo de mesários
de confiança e as autênticas eram os quesitos básicos. A partir daí, poderia
produzir-se qualquer resultado eleitoral, sem a necessidade de eleitores.
Mesas que não eram instaladas, e onde, naturalmente, não havia votação,
encaminhavam atas de eleição como se tudo tivesse acontecido
normalmente. Se os nomes dos eleitores citados na Ata constassem da
autêntica, não havia problema. Eleitores eram dispensáveis, as autênticas
não. O resultado da eleição se produzia muito mais no momento da
qualificação do que da votação. A fraude era a forma de legitimar aquele
resultado. A qualificação - o serviço limpo - era feita pelo coronel; a fraude
- o serviço sujo - pelos seus dependentes. O coronel não fraudava:
qualificava.
E o coronel Bráulio Oliveira era ativo qualificador eleitoral, a julgar
pelo seu último relatório como Intendente. Mas não era apenas o elevado
número de 4.100 eleitores qualificados que ele tinha a exibir ao encerrar seu
derradeiro mandato. Entre outros melhoramentos indicados no seu relatório
de 3 de outubro de 1924, o coronel Bráulio expunha detalhadamente o
contrato que garantia, desde o mês anterior, o abastecimento de energia
elétrica para a vila de Santo Ângelo, tanto para o uso residencial, como para
iluminação pública e ainda para os estabelecimentos comerciais e
industriais. Também apresentava minucioso projeto e respectivo contrato
para edificação do novo Edifício da Intendência Municipal. Este projeto
fora avaliado e aprovado por uma comissão de 5 engenheiros, entre os quais
encontrava-se o oficial comandante do Batalhão Ferroviário, capitão Luís
Carlos Prestes, que ainda naquele outubro de 1924 sublevaria o Ferrinho,
229
A Semana, Santo Ângelo, 15 de abril e 10 de julho de 1920.
155
entrando definitivamente para a História, mas caindo em desgraça perante o
coronel.
9. PEDRO ARÃO:
OS ASSASSINATOS PROJETADOS.
O coronel, por sua vez, cairia novamente em desgraça perante
Borges de Medeiros alguns anos mais tarde, em 1927. De certa forma,
pode-se considerar que nesse ano deu-se o desenlace de uma situação
conflituosa que se desenrolava desde as já conhecidas manifestações anti-
braulistas de novembro de 1921. Um dos líderes daquelas manifestações
havia sido Pedro Alberto de Mello, o Pedro Arão, citado em outras partes
desse trabalho. Em 1927, Pedro Arão foi assassinado. Bráulio Oliveira,
embora não ocupasse mais cargo eletivo, continuava sendo o chefe político
republicano de Santo Ângelo, e, como tal, recaíram sobre ele as suspeitas de
ser o mandante do crime, o que lhe custou, mais uma vez, a chefia
unipessoal do PRR santo-angelense.
Mas a morte de Pedro Arão não foi um fato isolado naquele
conturbado ano. Jornais gaúchos e do centro do país noticiaram
intensamente uma onda de violência oficial que varreu o Rio Grande do Sul
durante os anos de 1926 e 1927. Essa violência oficial, que foi uma
constante no Rio Grande da República Velha
230
, atingiu níveis acima do
comum nesse período.
As vítimas preferenciais foram os quadros intermediários da
oposição, representados por coronéis
231
e outros oficiais das hostes
oposicionistas. Não é exagero imaginar que se tratou de uma preparação de
terreno para o pleito de 1927, quando seria eleito o sucessor de Borges de
Medeiros. Nos jornais, afirmava-se que:
Esse regime de terror é imposto pelas autoridades civis e
230
Veja-se, por exemplo, o livro-denúncia de ROMERO, Sylvio. O Castilhismo no Rio Grande do Sul. Porto:
Commercio do Porto, 1912.
231
Evidentemente, haviam coronéis oposicionistas, que nunca chegaram ao poder do Estado. Não são eles
objeto de estudo nesse trabalho, embora ainda não tenham sido devidamente estudados.
158
militares servindo-se sempre para a sua consecução dos
famigerados provisórios ou dos seus remanescentes com o título
de convênio militar com os municípios
232
.
Ainda no início de 1926, o jornal oposicionista O Libertador,
publicado em Pelotas, apresentava extensa matéria, sob o título "Como a
ditadura garante a vida dos ex-revolucionários"
233
, na qual registrava uma
lista nominal identificando 38 ex-revolucionários trucidados por provisórios
em São Nicolau, distrito de São Luís Gonzaga. Destes, 19 haviam sido
degolados e vários esquartejados. Assegurava, também, que a lista era
parcial, apenas com os identificados, pois as mortes haviam ocorrido "às
centenas". Explicava, o jornal, que José Antonio Flores da Cunha e o
coronel - da Brigada Militar - Claudino Nunes Pereira, por ordem de Borges
de Medeiros, ofereceram garantias aos revolucionários que haviam
emigrado para a Argentina, conseguindo fazê-los voltar, em grande número,
para o Brasil. Porém, aqui chegando, os ex-revolucionários começaram a
ser presos ou assassinados pelos provisórios, principalmente em municípios
como Santana do Livramento, Rosário, São Borja, Santiago e São Luís
Gonzaga. Ao perceber o que estava ocorrendo, Flores da Cunha e Claudino
Pereira tentaram remeter de volta ao estrangeiro o maior número possível de
ex-revolucionários. Apesar disso, a matança continuou.
Em agosto de 1926, Barros Cassal verberava nas páginas d'O
Libertador, denunciando os "Assassinatos Projetados". O mesmo jornal
denunciava, um ano mais tarde, o acobertamento de crimes por Vazulmiro
Dutra e Frederico Westphalen, em Palmeira das Missões, citando 12 crimes
cometidos entre 1926 e 1927 que teriam sido acobertados por Westphalen,
então Delegado de Polícia e Chefe da Comissão de Terras
234
.
Até mesmo os meios diplomáticos foram acionados pelos colonos,
que apelavam aos embaixadores dos seus países de origem, denunciando os
ataques e saques promovidos "por elementos pertencentes às forças
policiais e 'provisórios' organizados para combater os revolucionários"
235
.
A própria diplomacia brasileira nos países vizinhos ao Rio Grande do Sul
foi acionada pelo governo federal com o intuito de aferir essa intensificação
da criminalidade. O cônsul brasileiro na cidade de Posadas, província de
Misiones, na República Argentina - província que se separava do município
brasileiro de Santo Ângelo apenas pelo rio Uruguai - oficiou ao Intendente
232
O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 de junho de 1927.
233
O Libertador, Pelotas, 12 de fevereiro de 1926.
234
O Libertador, Pelotas, 2 de agosto de 1927.
235
O Estado de São Paulo. São Paulo, 11 de janeiro de 1927.
159
de Santo Ângelo pedindo informações sobre a criminalidade:
Necessitando, para a confecção de um trabalho de interesse para
o nosso país, alguns dados sobre a criminalidade na fronteira
durante os dois últimos anos, tomo a liberdade de pedir a Vossa
Senhoria mande colher esses dados, não no cartório do civil e
crime, como também na Delegacia e nas Sub-Delegacias de
Polícia e nas Sub-Intendências dos distritos do Município
236
.
Mas o crime que alcançou, provavelmente, maior repercussão
durante essa onda de violência, foi o assassinato de Pedro Arão. Esse crime
se destacou não apenas pela selvageria, mas por demonstrar o alcance da
ação extralegal de chefes políticos, que em função dos seus interesses
ignoravam até mesmo as fronteiras do país.
Pedro Alberto de Mello, o Pedro Arão
Pedro Arão era um ex-capitão da Brigada Militar, cujas fileiras
integrara durante a Revolução de 1893. Foi membro ativo do PRR em São
Luiz Gonzaga, onde morara até 1919. Naquele ano, em decorrência da
236
Ofício de Protasio Baptista Gonçalves ao Intendente Municipal de Santo Ângelo. Posadas, 6 de abril de
1927. AHSA.
160
grave crise política naquele município, referida, vários dissidentes
migraram para Santo Ângelo. Entre eles estava Pedro Arão, que foi
estabelecer-se como agricultor no Passo da Pedra.
A postura dissidente e oposicionista de Pedro Arão radicalizou-se
rapidamente. Em 1921, foi um dos lideres do movimento contra o
pagamento de impostos. Em 1923, por ocasião do movimento
revolucionário no estado, destacou-se como comandante de tropas
Libertadoras. Em 1924, apoiou o movimento liderado por Prestes, a partir
de Santo Ângelo. Integrou, com todos os seus dependentes, a Coluna
Prestes até a passagem para Santa Catarina. Entendia que sua luta era contra
Bráulio Oliveira, em Santo Ângelo, e Borges de Medeiros, no estado; não
estava interessado nas questões nacionais.
Sua influência política atingia os municípios de Santo Ângelo -
inclusive a região colonial de Santa Rosa, vizinha ao Passo da Pedra -, e São
Luís Gonzaga. Calculava-se que tinha controle sobre cerca de 800 votos
nessa região. Embora tenha deposto as armas, após abandonar a Coluna
Prestes, perante as forças federais que guarneciam Santo Ângelo, e
assumido, voluntária e solenemente o compromisso de jamais levantar-se
em armas novamente, continuou sofrendo intensa perseguição política,
movida pelos republicanos. Buscou, então, refúgio na Argentina, como
tantos outros oposicionistas. Em 12 de fevereiro de 1927, foi seqüestrado
em San Javier, na Argentina, com a ajuda de policiais argentinos, e
transportado para a margem brasileira do rio Uruguai, em Porto Xavier. Ali,
depois de torturado, foi trucidado e seu corpo, mutilado, foi jogado ao rio,
mas descoberto em seguida.
Pelo crime, foram acusados o capitão Numas Pompílio Vinhas,
genro do coronel Bráulio Oliveira, os sargentos Pedro Albino da Rosa e
Menivaldo Bittencourt, e o cabo Joaquim Costa ou Joaquim Oliveira Lança,
integrantes do 27º Corpo Auxiliar, sediado em Santa Rosa.
Os policiais argentinos envolvidos no crime foram imediatamente
presos, em seu país, julgados e condenados a severas penas. Segundo
consta, haviam sido subornados pela importância de 5 mil pesos.
Os acusados brasileiros também foram presos, e por ter sido o crime
caracterizado como de fronteira, foram processados pela Justiça Federal. Às
vésperas do julgamento, o dissidente e inimigo de Bráulio Oliveira, capitão
Damaso Gomes de Castro apresentou indícios que, segundo ele, mostravam
haver Bráulio Oliveira prometido pagar 5 mil pesos aos argentinos.
Em 1929, em Porto Alegre, foram a julgamento o capitão Numas
Vinhas e os dois sargentos acusados. Um dos advogados de defesa foi
Flores da Cunha. O julgamento foi longo e tenso, tendo sido montado um
161
forte esquema de segurança, pois temia-se que companheiros dos acusados
atacassem o forum para libertá-los. Foram os três absolvidos das acusações,
pelo júri popular, numa votação de 7 a 5. Bráulio Oliveira não foi
considerado envolvido no crime, não tendo sido processado
237
.
A versão dos familiares do coronel para esse episódio é de que Pedro
Arão morreu em conseqüência de maus tratos sofridos após ter sido preso
pelos gendarmes argentinos, sob a acusação de estar envolvido com
contrabando de armas para o Brasil - armas que seriam utilizadas em futuros
levantes revolucionários. Arão teria sido preso e, durante o interrogatório,
discutido com um gendarme, que o agrediu na cabeça com um pedaço de
madeira, resultando daí a sua morte. Os mesmos gendarmes teriam
decepado as mãos do morto, para retirar as algemas, e jogado o cadáver no
rio Uruguai - daí ter sido o corpo localizado no lado argentino da
fronteira
238
.
É irrelevante, aqui, que os acusados fossem ou não culpados.
Quaisquer que tenham sido seus autores, não vida de que se tratou de
um crime político, que se inseria no quadro de emprego da violência como
principal recurso extralegal para a consecução do objetivo de controle
coronelístico. No caso, foi a eliminação de um indivíduo que detinha
influência bastante para, num contexto de normalidade, ameaçar a
hegemonia republicana numa região que chegava até a zona colonial.
Tendo tido ou não alguma responsabilidade na morte de Pedro Arão,
Bráulio Oliveira já sofrera um julgamento político, por parte de Borges de
Medeiros. Ainda no calor dos acontecimentos, em 1927, o Chefe da
Comissão de Terras de Santa Rosa, João Dahne, procurou colocar o
Presidente do Estado ao par dos fatos, enviando-lhe extensa carta:
Como republicano ardoroso, fiel aos elevados ensinamentos do
preclaro chefe do meu partido, resolvi dirigir-me reservadamente
237
Cf.: O Estado de São Paulo, São Paulo, 21 e 22 de fevereiro de 1927; 4, 5 e 21 de março de 1927; 13 de
abril de 1927; 2 e 5 de maio de 1927.
O Commércio, Cruz Alta, 28 de junho e 2 de julho de 1929.
Ofício do Comandante da Brigada de Cavalaria do Exército ao Intendente de Santo Ângelo. Santo
Ângelo, 23 de fevereiro de 1927. AHSA.
Idem, 26 de fevereiro de 1927. AHSA.
Idem, 01 de março de 1927. AHSA.
Ofício do comando do 27º Corpo Auxiliar da Brigada Militar ao Intendente de Santo Ângelo. Quatorze de
Julho, 24 de fevereiro de 1927. AHSA.
Mandado de Prisão expedido pelo Gen. Bgda. Eduardo Monteiro de Barros. Cruz Alta, 23 de fevereiro de
1927. AHSA.
238
Cf. VINHAS, Raul. Entrevista. Santo Ângelo, 12-13 de janeiro de 1993.
162
a V. Exa. para narrar um fato reprovável, que tem causado o
maior descontentamento no seio do Partido, neste município e
principalmente nessa região colonial.
Em dias desta semana o capitão ajudante do 27º Corpo Auxiliar
aqui aquartelado, Numas Vinhas, foi, acompanhado de algumas
praças dessa unidade, ao povoado argentino, fronteiro, de São
Xavier, e, por meio de suborno, conseguiu que o inspetor policial
dalí, prendesse e lhe entregasse o ex-chefe revolucionário deste
município Pedro Arão, o qual foi algemado e embarcado numa
canoa, sendo barbaramente assassinado no Rio Uruguai.
A referida escolta, ao voltar à costa brasileira, embriagou-se,
fazendo então manifestações de regozijo pelo assassinato de
Pedro Arão.
O chefe de polícia de Possadas acha-se atualmente em São
Xavier, acompanhado de uma força armada e abrindo inquérito
sobre o fato, tendo sido preso o inspetor subornado.
Pedro Arão, que acompanhou o capitão Prestes na revolta de
1924, apresentou-se nesse mesmo ano às autoridades,
comprometendo-se a não mais tomar parte na revolução. Mais
tarde, por ver-se perseguido, emigrou para Argentina, onde
trabalhava honestamente, conforme pode informar a V. Exa. o
Coronel Claudino Pereira.
Em dias do mês passado, foi preso neste Município, também por
uma escolta do 2C.A., um filho de Pedro Arão, soldado do
Regimento de Artilharia de Santo Ângelo, sendo abandonado na
estrada como morto, com dois ferimentos de bala. Transportado
para Santo Ângelo, acha-se em tratamento na enfermaria militar,
estando o coronel comandante da guarnição de Santo Ângelo
abrindo inquérito sobre o ocorrido.
Devo ainda informar a V. Exa. que o comandante do 2C. A.
não é estranho a esses fatos, assim como também o chefe
político deste município de quem é genro o Capitão Numas
Vinhas.
Esses fatos e outros que deixo de mencionar, tem trazido esta
população colonial em sobressalto, tendo mesmo vários colonos
se retirado do município.
Seria de alta conveniência para o Partido, a dissolução do 27º
C.A. e a vinda para esta colônia de um destacamento da Brigada
Militar ou de outra unidade auxiliar.
Lembro também a V. Exa. como solução ao caso, ficar o 27º
C.A. reduzido apenas a um esquadrão, sob o comando do major
fiscal do mesmo Corpo Arthur da Silveira Gomes, republicano
ardoroso e estimado por toda a população da colônia pela sua
maneira sempre correta de proceder.
O deputado Batista Luzardo pretende percorrer este Município,
na próxima semana, em propaganda de sua candidatura, e,
163
forçosamente terá conhecimento desses fatos lamentáveis. Essa é
a razão por que dirijo-me a V. Exa. por carta, em caráter
reservado, deixando de fazê-lo pessoalmente como era meu
desejo
239
.
Observe-se na carta a preocupação demonstrada com o estado de
espírito da população colonial, o que parece indicar que havia, ao menos em
alguns setores do PRR, a compreensão de que os métodos tradicionais de
controle já não eram eficientes numa região cada vez mais densamente
povoada por pequenos proprietários. Preocupava Dahne, também, que um
deputado oposicionista prestigiado, como Luzardo, estabelecesse vínculos
com aquela população colonial. Era o grande risco político para o PRR que
animava o chefe da colônia a sugerir drásticas medidas ao Presidente do
Estado. O controle político de uma extensa área colonial podia estar a ponto
de ser perdido pelo republicanismo. Borges de Medeiros precisava agir. E
agiu: o 27º C.A. foi dissolvido a 28 de fevereiro, quando os acusados já se
encontravam presos. Um pouco mais demorou para que a conta política
fosse apresentada a Bráulio Oliveira. Mas em outubro o coronel foi
surpreendido por Borges de Medeiros, a quem protestou por carta:
Quando em outubro último estive nessa capital, recebi a carta de
V. Excia. datada de 3 do mesmo mês, em que V. Excia.
manifestava o desejo de que autorizasse eu, na qualidade de
membro da executiva de Santo Ângelo, o dr. Nicolau de Araújo
Vergueiro a representar-me na Assembléia Partidária que devia
homologar e proclamar os nossos candidatos aos cargos de
presidente e vice-presidente do Estado.
Se bem que muito estranhasse fazer-me representar quando me
achava aí, presente, não quiz, entretanto, cogitar das razões que
levaram V.Exa. a assim determinar e nem tampouco quiz dizer
da grande surpresa que me causara a notícia que V. Exa. me
dava da existência de uma comissão executiva em Santo Ângelo,
da qual eu fazia parte.
Intempestivo julguei que seria em momento tão delicado
manifestar a V.Exa. a minha estranheza, espanto e desgosto
mesmo, e, por isso, deixei para só fazê-lo depois de realizadas as
eleições.
Venho, pois, agora, dizer a V. Exa. que me não acusa a minha
conduta na direção local do nosso Partido, de fatos que me
fizessem decair do conceito público, da confiança dos nossos
correligionários e, portanto, da Chefia Suprema. E a certeza
disso tive ao comunicar aos nossos amigos a minha destituição
239
Carta de João Dahne a Borges de Medeiros. Santa Rosa, 16 de Fevereiro de 1927. ABM/IHGRS.
164
de diretor unipessoal, pela reafirmação da solidariedade de
todos, aliás antes manifestada em telegrama pelo Conselho
Municipal, quando ainda me encontrava nessa capital
240
.
A nova Comissão Executiva ficou constituída pelo próprio Bráulio,
pelo Intendente Municipal, Carlos Kruel, e pelo Chefe da Comissão de
Terras de Santa Rosa, João Abreu Dahne. As condições, no entanto, em que
Borges de Medeiros destituiu o coronel da chefia unipessoal, foram
humilhantes. Impediu o acesso do coronel à Assembléia do PRR, quando
se encontrava alí, forçando-o a admitir como seu representante um político
de Passo Fundo, município distante de Santo Ângelo. E embora o coronel
alegasse não entender as razões de Borges de Medeiros para assim proceder,
é evidente que os fatos envolvendo Pedro Arão, que tanta repercussão
tiveram, eram a causa principal. As condições que se colocavam para a
eleição de Getúlio Vargas estavam baseadas na conciliação entre as forças
até então inimigas no estado. pouco, Assis Brasil, o acatado chefe dos
Libertadores gaúchos, e respeitado chefe civil da Revolução Brasileira,
proferira veemente discurso pregando a conciliação:
O momento, senhores, é de Sursum Corda.
[...] Se no Brasil houve revoltas e guerras, com a minha
aquiescência, foi como meio de obter a paz. A paz não existe
sem os seus elementos condicionais. É por eles que nos devemos
esforçar todos os que a desejamos. Entre eles, o primeiro é agora
o esquecimento do passado.
[...] Nem se pode dizer que o ambiente não esteja preparado para
a conciliação. Tudo muda
241
.
Evidentemente, o coronel Bráulio não era o único, mas de todos os
possíveis presentes à Assembléia do PRR seria ele a representar mais
fortemente aquele passado que se tentava esquecer. A morte de Pedro Arão
ainda despertava revolta, e, tendo ou não responsabilidade direta, havia sido
na área de influência do coronel que o crime ocorrera. Logo, a atitude de
Borges de Medeiros deve ser entendida como um gesto de demonstração
aos antigos adversários do empenho do PRR em esquecer o passado.
Quanto ao coronel, o ostracismo político a que voluntariamente
relegou-se, não aceitando dividir a chefia política do PRR de Santo Ângelo,
nunca foi completo. Quando da Revolução de 1930, destacou-se, ao lado de
João Dahne, como competente chefe revolucionário. Sua atuação neste
240
Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros. Santo Ângelo, 26 de novembro de 1927. ABM/IHGRS.
241
O Libertador, Pelotas, 1º de julho de 1927.
165
movimento levou a que, em 1934, Flores da Cunha, então Interventor
Federal no Rio Grande do Sul, o nomeasse Sub-Chefe da Região Policial,
com sede em Santo Ângelo, cargo em que foi aposentado, em 1936.
Dedicou-se, então, à fundação da Vila Cruzeiro, em Santa Rosa – município
já então emancipado de Santo Ângelo -, em terras de sua propriedade.
Faleceu, aos 81 anos de idade, em 7 de março de 1945.
CONCLUSÃO
A ascensão do Partido Republicano Rio-Grandense ao poder, após a
Proclamação da República, não foi conseqüência direta da sua ação política
de combate à monarquia. Deu-se a oportunidade e ela foi aproveitada.
Porém, não foi a ascensão de um grupo de aventureiros. Os líderes
republicanos gaúchos tinham uma ampla visão do que acontecia no mundo
naquele momento, e aquilo que viam era pensado por eles à luz de um
referencial teórico bem definido: o positivismo de Augusto Comte. Por isso,
o partido chegou ao poder com um projeto definido em relação ao Estado, e
um projeto, não de curto, mas de muito longo prazo.
Esse projeto tinha suas bases teóricas numa interpretação particular
do positivismo comtiano, mas assentava-se concretamente na realidade
gaúcha. Ao erigir Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros como os
intérpretes incontestes do pensamento de Comte e da realidade, o PRR lhe
deu um caráter de projeto castilhista-borgista. Este, percebia a ineficiência
da economia gaúcha em acompanhar o ritmo de desenvolvimento da
economia mundial. Percebia o crescente isolamento e afastamento que o
espaço riograndense experimentava em relação ao processo econômico
capitalista. Avançava, então, no sentido de recuperar esse espaço para o
capital. E essa recuperação teria de ser feita a partir da modernização e
atualização da economia do estado. Em suma, era um projeto, do ponto de
vista econômico, de feição burguesa, mas que deveria avançar sem o
concurso de uma burguesia local que o sustentasse.
Colocava-se, então, o problema da conciliação de um projeto
econômico de características burguesas em um espaço organizado e
controlado oligarquicamente pelo setor menos dinâmico de uma economia
tão pouco dinâmica. A intervenção do Estado neste espaço teria de ser
profunda, no sentido de realizar as transformações sociais e econômicas
necessárias à dinamização da economia.
Politicamente, o projeto assumiu, então, um caráter autoritário,
168
rejeitando os aspectos liberais do pensamento político e econômico burguês.
A ausência de uma base social suficientemente ampla para dar-lhe
sustentação foi compensada com o aproveitamento das estruturas
tradicionais do poder oligárquico, baseadas no poder dos chefes políticos
locais. A absorção dessas estruturas pelo castilhismo-borgismo foi sendo
feita aos poucos, pela substituição dos elementos vinculados às oligarquias
tradicionais que as controlavam por outros, vinculados ao PRR e
comprometidos com o projeto castilhista-borgista. Substituiu-se o
coronelismo do Império pelo coronelismo republicano.
O castilhismo-borgismo, carente de uma maior base social de apoio,
partiu para a cooptação daqueles segmentos tradicionais na sociedade
gaúcha, como os fazendeiros e grandes comerciantes. Ao mesmo tempo,
com o desenvolvimento do seu projeto, buscava criar condições para a
ampliação e o fortalecimento daquela classe que deveria constituir-se na
base natural de sustentação do processo econômico capitalista no estado.
Para isso, tratou da incorporação dos espaços sub-aproveitados do
norte do estado à sua economia. Mas essa incorporação deu-se sob o seu
rígido controle, o que lhe permitiu determinar, em todos os aspectos, a
organização desse novo espaço. Esse controle foi possível pelo recurso
constante ao poder coronelístico. O mandonismo local garantiu ao
castilhismo-borgismo a continuidade administrativa de que ele dependia,
uma vez que o seu projeto de longo prazo não podia sofrer interrupções, sob
pena de solução de continuidade. Permitiu-lhe, também, controlar a
expansão da base produtiva agrícola, diversificada e minifundiária, sobre as
áreas disponíveis no norte, sem deixar que esse processo de expansão
ameaçasse a base produtiva pecuarista e latifundiária do sul do estado.
A consolidação da base produtiva característica das áreas coloniais,
garantida pelo severo controle coronelístico, permitiu uma rápida
acumulação capitalista em mãos dos comerciantes, em detrimento dos
colonos, que a muito custo e muito lentamente conseguiam acumular.
Todo esse processo foi acompanhado por significativo movimento de
urbanização na região das colônias novas, de tal forma que o processo de
municipalização também foi intenso. Ao iniciar-se a década de 30, quando o
processo de municipalização começou a intensificar-se, o número de
municípios na região havia quase triplicado, em relação ao início do período
republicano. Mais tarde, a Colônia de Santa Rosa daria origem a onze
municípios.
Sem dúvida, o castilhismo-borgismo logrou aprofundar as bases do
desenvolvimento capitalista do Rio Grande do Sul. Mas ao negar-se a
questionar a forma de inserção do espaço riograndense no contexto da
169
economia nacional e mundial, reproduziu um modelo de desenvolvimento
subordinado e dependente, atendendo, assim, muito mais às necessidades do
sistema econômico internacional, do que às necessidades do estado.
Mas ao promover, mesmo que dentro de limites bem determinados, o
desencadeamento de um processo de desenvolvimento econômico moderno
- em relação à realidade anterior -, o castilhismo-borgismo exacerbou
aquela que foi, do ponto de vista que pretendemos imprimir a este trabalho,
a sua contradição fundamental: desenvolver um projeto econômico burguês
amparado num modelo político oligárquico. Com isso, o castilhismo-
borgismo transportou para um contexto que demandava estabilidade, qual
seja um contexto de desenvolvimento capitalista, toda a instabilidade
decorrente dos conflitos intra-oligárquicos próprios do modelo político de
que se apropriara. Essa instabilidade levava a um paulatino enfraquecimento
do poder local dos chefes, e perturbava o desempenho da economia.
Ao assentar-se sobre esse modelo político de estrutura oligárquica, o
castilhismo-borgismo tornou-se dependente dele, precisando reproduzí-lo
continuamente. Isso demandava a manutenção do poder local nas mãos dos
setores políticos tradicionais, em grande parte vinculados ao latifúndio,
vetando as aspirações de participação política efetiva dos novos grupos que
emergiam nessa nova sociedade que tomava forma.
A esses grupos - comerciantes e pequenos e médios proprietários em
processo de enriquecimento - não interessavam os aspectos conservadores e
autoritários do projeto castilhista-borgista. Atraía-os mais aquilo que esse
projeto rejeitava: o liberalismo burguês. O castilhismo-borgismo via
aproximar-se a sua hora fatídica: os grupos sociais que criara e fortalecera
para darem sustentação ao seu projeto, poderiam continuar crescendo e
se fortalecendo se derrogassem esse projeto. A Revolução de 1930
antecipou-se àqueles grupos.
O castilhismo-borgismo não percebera que o seu projeto não era
autônomo, como pretendia, mas determinado e subordinado pelo sistema
econômico em que se inseria.
A utopia castilhista-borgista não foi alcançada. E nem poderia ser.
Ao eleger os fatores políticos como os determinantes fundamentais da
História, subordinando a eles, de modo absoluto, os fatores econômicos,
Castilhos e Borges de Medeiros imaginaram ser possível manipular a lógica
capitalista à sua vontade. Não perceberam que o capital tem sua própria
vontade. E não existia coronel capaz de controlá-lo
.
FONTES
A - ENTREVISTAS:
1. CALLAI, Olmiro. Entrevista. Giruá, 12 de janeiro 1993.
2. SANTOS, Pedro Marques dos. Entrevista. São Luís Gonzaga, 26 de
julho de 1988.
3. VINHAS, Raul. Entrevista. Santo Ângelo, 12-13 de janeiro de 1993.
B - ARQUIVOS:
1. Arquivo Assis Brasil - Centro de Documentação em Política
Contemporânea /UFRGS (AAB/CDPC/UFRGS).
2. Arquivo Borges de Medeiros - Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Sul (ABM/IHGRS).
3. Arquivo Bráulio Oliveira - Raul Vinhas (ABO/Raul Vinhas).
4. Arquivo da Brigada Militar do Rio Grande do Sul (ABMRS).
5. Arquivo Histórico de Santo Ângelo (AHSA).
6. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS).
7. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERGS).
C - MANIFESTOS:
1. Liga Pró-Damaso. Manifesto. Santo Ângelo, Janeiro de 1917.
2. Manifesto de Bráulio Oliveira ao Partido Republicano de Santo Ângelo.
Santo Ângelo, 15 de dezembro de 1916.
172
D - JORNAIS:
1. A Federação, Porto Alegre-RS.
2. A Rua, Porto Alegre-RS (24 de julho de 1920).
3. A Semana, Santo Ângelo-RS (1919-1920).
4. Correio do Povo, Porto Alegre-RS (1921).
5. Correio do Sul, Bagé-RS (1915-1917).
6. Correio Mercantil, Pelotas-RS (1915).
7. Diário Popular, Pelotas-RS (1915-1916, 1921).
8. Echo do Sul, Rio Grande-RS (1921).
9. O Commércio, Cruz Alta-RS (1924-1929).
10.O Estado de São Paulo, São Paulo-SP (1926-1928).
11.O Filhote, Cruz Alta-RS (28 de novembro de 1931).
12.O Libertador, Pelotas-RS (1926-1927).
13.O Libertador, São Luís Gonzaga-RS (1924 - 2 exemplares).
14.O Venâncio Ayres, Cruz Alta-RS (20 de agosto de 1904).
15.Opinião Pública, Pelotas-RS (1915-1916).
E - RELATÓRIOS:
1. Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel
Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 30 de junho de 1905.
2. Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel
Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 30 de junho de 1906.
3. Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel
Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 15 de junho de 1907.
4. Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel
Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 19 de julho de 1913.
5. Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel
Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 17 de julho de 1915.
173
6. Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel
Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 18 de julho de 1916.
7. Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Álvaro
Silveira. Santo Ângelo, 28 de Dezembro de 1917.
8. Relatório do Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas.
Porto Alegre, 1918.
9. Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Vice-Intendente
Joaquim Rolim de Moura. Santo Ângelo, 1 de novembro de 1918.
10.Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Vice-Intendente
Joaquim Rolim de Moura. Santo Ângelo, 31 de outubro de 1919.
11.Relatório apresentado ao Dr. A. A. Borges de Medeiros - Presidente do
Estado do Rio Grande do Sul - pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto -
Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas. Porto Alegre, 27
de Agosto de 1919.
12.Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel
Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 3 de novembro de 1920.
13.Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. A. A. Borges de Medeiros pelo
Coronel Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 9 de dezembro de 1920.
14.Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel
Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 14 de dezembro de 1921.
15.Relatório apresentado ao Dr. A. A. Borges de Medeiros - Presidente do
Estado do Rio Grande do Sul - pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto -
Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas. Porto Alegre, 16
de agosto de 1921.
16.Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Coronel
Bráulio Oliveira. Santo Ângelo, 15 de novembro de 1922.
17.Relatório apresentado pelo Coronel Bráulio Oliveira aos Srs. Intendente
e Conselheiros Municipais. Santo Ângelo, 3 de outubro de 1924.
18.Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Dr. Carlos
Kruel. Santo Ângelo, 3 de novembro de 1925.
19.Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente Dr.
Ulysses Rodrigues. Santo Ângelo, 3 de novembro de 1929.
174
20.Relatório apresentado ao Gen. Flores da Cunha, Interventor do Estado,
pelo Prefeito Dr. Ulysses Rodrigues. Santo Ângelo, 31 de dezembro de
1930.
21.FERREIRA, S. Dias. Estudos de Estatística - Relatório apresentado ao
sr. Dr. Ulysses Rodrigues, Intendente. Santo Ângelo, 2 de janeiro de
1930.
F - PROCESSOS:
1. Autos do Processo Crime entre partes como autora a Justiça Pública e
réus Jo Joaquim de Moura, Matheus Ribeiro de Quadros e outros.
Cartório do Cível e Crime, Palmeira das Missões, 14 de junho de 1927.
2. Decisões do Superior Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul.
Apelação Crime nº 3.201 - Santo Ângelo. Ano de 1923.
3. Instrumento de Agravo passado a favor de José Gabriel da Silva Lima,
extraído dos autos de execução de sentença em que é autor o exmo.
General Firmino de Paula e réu o Coronel JoGabriel da Silva Lima.
Cruz Alta, 2 de abril de 1906.
4. Processo Crime contra Virgílio Manoel Pinto, Santos Oliveira, Pedro
Albino da Rosa, Sérgio Pinto e Carlos Espíndola. Cartório do Cível e
Crime, Santo Ângelo, 1927, volume 2, p. 176v-177.
G - ANAIS:
1. Anais da Câmara dos Deputados: 1915.
2. Anais da Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do
Sul: 1905-1908, 1919-1928.
H - LIVRO DE ALTERAÇÕES:
1. Livro de Alterações do Esquadrão do Corpo Auxiliar. Santo
Ângelo, 17 de dezembro de 1923.
175
I - BIBLIOGRAFIA:
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1934.
Álbum dos Bandoleiros. Porto Alegre: Revista Kodak, 1923.
O Rio Grande do Sul em Revista. Porto Alegre: Globo, 1928.
ANTONACCI, Maria Antonieta. RS: As Oposições & A Revolução de
1923. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981.
ARRAES, R. de Monte. O Rio Grande do Sul e as suas Instituições
Governamentais. Brasília: UnB, 1981.
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Democracia. Porto Alegre: Globo, 1908.
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Imigração. Canoas: Regional, 1958.
BERNARDES, Nilo. A Colonização no Município de Santa Rosa, Estado
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BLONDEL, Jean. As Condições da Vida Política no Estado da Paraíba.
Rio de Janeiro: FGV, 1957.
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Revista de Administração de Empresas. 11(3):85-92. Rio de Janeiro:
FGV, julho/setembro de 1971.
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 A República Velha (II): Evolução Política (1889-1930). ed.
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CASSAL, Barros. Assassinatos Projetados. In: O Libertador, Pelotas, 19 de
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 RS: Economia & Política. Porto Alegre: Mercado Aberto,
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ÍNDICE DAS FOTOGRAFIAS
General Firmino de Paula ...........................................................................39
Coronel Bráulio Oliveira ............................................................................45
Major Joaquim Rolim de Moura (Major Quinzote)..................................102
Coronel Pedro Alberto de Mello (Pedro Arão).........................................159
ANEXO 1
AO PARTIDO REPUBLICANO DE SANTO ÂNGELO
AOS MEUS AMIGOS
A aurora de um novo dia se desenha no horizonte político do nosso
caro Santo Ângelo, atirando de vez as agitações anarquizadoras de uma
política sem ideal, para ceder a uma paz fecunda de prosperidades que nos
encaminhe ao progresso a que tem direito uma população progressista,
laboriosa e pacífica por índole, como a nossa.
Indivíduos alheios ao nosso convívio, que nunca tiveram noção do
que fosse despreendimento, encontrando fraqueza de minha parte onde
poderiam ter didvisado patriotismo, arremeteram, fascinados pela sede de
mando, contra o Baluarte Republicano da Região Serrana; por inesperado, o
golpe aturdiu meia dúzia de companheiros menos disciplinados, abrindo
uma insignificante dissidência; a ela se aliaram adversários pouco
escrupulosos e a agitação foi tomando vulto, alimentada principalmente por
minha tolerância que lhes nutria as absurdas pretensões.
Diminutos no número e na força lhes restava o recurso de
expedientes menos honestos e a eles se aferraram, porque qualquer galho
serve a quem a torrente arrasta. A agitação penetrou os umbrais sagrados da
justiça e passamos pelo dissabor de ver nossos fiéis compenheiros de
administração vilmente perseguidos e processados, repercutindo tão
lamentáveis desvios no ânimo do nosso povo e quase levando o desânimo
no seio do Partido. As mentiras mais crassas foram impressas em boletins
subversivos da ordem, inculcando a dúvida no eleitorado, jogando sem o
menor escrúpulo com o nome honrado do Exmo. Dr. Borges de Medeiros.
Me impulsionasse petulância ou vaidade e a agitação teria sido
abafada no nascedouro. Convicto porém da nobreza de meu procedimento,
não sopesei a maldade do despeito de nossos desleais adversários que
encontrou na simplicidade e boa dos nossos bons comunícipes campo
vasto para infiltração do veneno sutil da hipocrisia mais refinada.
Meus Amigos, pela terceira vez o bem estar, a paz, a prosperidade do
nosso Município me batem às portas apelando para meu desprendimento;
184
não serei, como nunca fui, surdo aos apelos do ideal sagrado de uma
República grande até na abnegação de seus filhos. Meu exemplo vos sirva
de norte; minha retirada da Chefia política é reclamada por circunstâncias
criadas pelo desvio de alguns companheiros de jornada, e, apesar do
pomposo e o cobiçado título de Chefe, a vaidade meus Amigos nunca
abafará em mim os impulsos de um coração afeito a sentimentos delicados.
Foram estas considerações, tendentes a apertar cada vez mais e mais
os laços do nosso glorioso Partido que me levaram à resolução, de acordo
com meus caros Correligionários e Amigos, de propor ao nosso acatado
Chefe Dr. Borges de Medeiros que a direção política do Município ficasse
afeta ao distinto cidadão Álvaro Silveira, espírito esclarecido e reto a quem
o egrégio Chefe do Partido confiou provisóriamente a direção
administrativa e policial do nosso município.
Partido disciplinado, o de Santo Ângelo, parte integrante de um
Município progressista e ordeiro não desmentirá jamais a honrosa tradição
que o cognominou em dias bem difíceis para o nosso Estado, de Baluarte do
Partido Republicano na Região Serrana.
Cerrai fileiras, distintos correligionários em torno ao nome do Sr.
Álvaro Silveira, delegado pelo caro Chefe Dr. Borges de Medeiros para
trazer a paz na família republicana de Santo Ângelo e tereis contribuído
cada um com sua quota para a felicidade de um dos mais belos torrões do
nosso amado Rio Grande.
Santo Ângelo, 15 de Dezembro de 1916.
Vosso Correligionário e Amigo
Bráulio Oliveira.
ANEXO 2
Ao Verdadeiro Partido Republicano
de
Santo Ângelo.
Em resposta ao boletim-manifesto do Coronel Bráulio Oliveira.
O Coronel Bráulio Oliveira está decididamente fora do prumo
mental, está sofrendo de terrível obnubilação intelectual denunciando-se por
ofuscamento da consciência e perturbações de orientação, isso talvez
motivado pela piramidal repulsa que o povo lhe fez ver, pegando-o pela
gorja e atirando-o, de cabeça para baixo, do alto da direção política e
administrativa deste esgotado município, recentemente terreno explorado
pela sua ambição ante-republicana [sic] , pela sua vaidade indisciplinada e
pelo desleixo a que deixou entregues os mais vitais interesses da população.
Esse seu desequilíbrio mais uma vez fica atestado com o boletim-manifesto
que assinou e fez distribuir, procurando explicar a sua humílima retirada da
chefia política, chefia essa a que se arrogou, embora dela jamais tivesse sido
oficialmente investido!
No aludido boletim confessa a sua fraqueza e deixa claramente
demonstrado que o abandono a que lhe entregaram os seus companheiros,
passando-se para o lado do honrado republicano Capitão DAMASO
GOMES DE CASTRO, foi a causa imediata da sua retirada, pois, como diz
a sentença popular, uma só andorinha não pode fazer verão...
Só, tristemente só, com os olhos cheios de lágrimas e com saudades
profundas do seu poder despótico, olhando o horizonte do seu nenhum valor
como a penitenciar-se dos seus desmandos, das suas inúmeras culpas, o
coronel vê-se atualmente abandonado e expulso pelo grosso do Partido
Republicano sob a chefia do capitão DAMASO GOMES DE CASTRO, um
nome íntegro, justiceiro, um político disciplinado e obediente incondicional
à direção suprema do impoluto cidadão senhor Dr. Borges de Medeiros, este
mesmo a quem o coronel Bráulio disse não conhecer
como Chefe, quando
foi da eleição do marechal Hermes da Fonseca, nome indicado pelo glorioso
herói extinto, o invicto e saudoso republicano senador Pinheiro Machado. O
sr. Bráulio tempos indisciplinou-se, não deixando votar no dr. Carlos
186
Maximiliano e, agora, revoltando-se contra a candidatura do marechal - por
conseguinte contra o senador Pinheiro Machado e o Chefe Supremo, sr. Dr.
Borges de Medeiros -, indisciplinadamente anarquizou o Partido
Republicano deste município, fazendo com que o candidato do Partido
Republicano Riograndense não tivesse votação! E no dia da eleição o sr.
Bráulio, sentado no salão da Intendência Municipal, atirava motejos a todo
aquele que sinceramente ia cumprir o seu dever cívico, fazendo ainda de
tudo e de todos grande galhofa...
Agora vem explorar o nome do Intendente Provisório, senhor Álvaro
Silveira, esquecendo-se de que este digno cidadão está aqui para cumprir
uma missão neutra, imparcial, sem pretensões, para garantir a ordem, ordem
essa que foi mil vezes ameaçada de ser perturbada pelo sr. coronel Bráulio e
seus apaniguados, os quais, "diminutos no número e na força", fizeram com
que desistisse da sua estulta pretensão de continuar mandando neste
município, cujo Partido foi, por várias vezes, atirado contra o pensamento e
a Chefia Suprema do Dr. Borges de Medeiros, segundo fez na eleição
referida !
Acostumado a esconder os crimes dos seus adeptos e a não deixar
que eles fossem entregues à justiça, e agora vendo o seu despotismo por
terra e os crimes sendo punidos, o sr. Bráulio faz no aludido boletim
insinuações caluniosas aos juízes desta terra, homens íntegros a toda prova,
chamando-os também de perseguidores, se esquecendo de que suas
insinuações nada valem porque o seu nome é muito bem conhecido...
Fique sabendo que as suas explorações não nos assustam e nem
produzem efeito e que o candidato republicano, senhor capitão DAMASO
GOMES DE CASTRO, será vitorioso nas urnas, porque o povo quer e as
leis da república o garantem, contra a prepotência, contra a fraude, contra os
exploradores do ideal de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, esses
mesmos exploradores que torpemente injuriam a memória do denodado
combatente Pinheiro Machado!
O seu boletim, num português sujo e de taberna, é uma inversão
torpíssima da verdade dos fatos por todos conhecidos.
Descansa em paz, oh! Bráulio, oh! inefável Bráulio !...
POVO ! Não vos iludais com as fitas do coronel, pois ele está
liquidado e não tem mais nenhum poder.
POVO ! Para a felicidade deste município votai, quando a ocasião
chegar, para Intendente, no nome do nosso chefe político republicano:
capitão DAMASO GOMES DE CASTRO.
POVO ! A vossa coragem é grande e no dia em que tivermos de
187
depositar nas urnas o nome desse nosso honrado chefe, marchai convictos
que a vitória é certa, porque sois soberano e vossa vontade cívica é
respeitada.
Santo Ângelo, Janeiro de 1917.
Liga Pró-Damaso.
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