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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO EM HISTÓRIA
A infância esquecida
Salvador 1900 - 1940
ANDRÉA DA ROCHA RODRIGUES
SALVADOR , Ba., 1998
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO EM HISTÓRIA
A infância esquecida
Salvador 1900 -1940
ANDRÉA DA ROCHA RODRIGUES
ORIENTADORA: PROF.ª LÍGIA BELLINI
Dissertação apresentada ao Mestrado em História da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBa,
como requisito para obtenção do grau de mestre.
SALVADOR
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1998
Sumário
Dedicatória I
Lista de siglas II
Lista de tabelas III
Lista de gráficos IV
Lista de figuras V
Agradecimentos VI
Introdução 01
Capítulo I. Salvador, pobreza urbana e infância 07
Capítulo II. Socialização da criança pobre 38
Lugar de criança 38
Espaços de lazer no mundo hostil dos adultos 55
Capítulo III. Órfãos, expostos, abandonados 59
Capítulo IV. Longe do meu lado: os expostos do Asilo de Nossa Senhora de
Misericórdia 76
A Roda dos Expostos: três séculos de existência 80
Razões do abandono 101
Saída dos expostos 122
Filiação das crianças expostas 126
Cor dos expostos 131
Doença e morte da criança: entre discursos e práticas 137
Capítulo V. Assistência à segunda infância: história das histórias dos órfãos de
São Joaquim 147
Considerações Finais 211
Anexos : 216
Sexo dos expostos 217
Causas da morte dos expostos 217
Atestados de vacinação dos órfãos de São Joaquim 218
Fontes 221
Referência bibliográfica 226
Para a Dra. Maria de Lourdes Barreto, por
seu carinho e dedicação às crianças pobres
da cidade.
Lista de siglas
ACPOSJ- Arquivo da Casa Pia e Orfanato do São Joaquim
APEBA- Arquivo Público do Estado da Bahia
AMMS- Arquivo do Memorial de Medicina
ASCMB- Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Lista de tabelas
Tabela 1 Idade de entrada ( expostos ) p. 103
Tabela 2 Razões do abandono p. 107
Tabela 3 Saída dos expostos (requerente) p. 122
Tabela 4 Idade de saída p. 124
Tabela 5 Legitimidade dos expostos p. 126
Tabela 6 Cor dos expostos p. 131
Tabela 7 Causas da morte p. 137
Tabela 8 Idade de entrada dos órfãos p. 160
Tabela 9 Requerente do internamento p. 173
Tabela 10 Legitimidade dos órfãos p. 176
Tabela 11 Causas da morte ( mãe ) p. 182
Tabela 12 Causas da morte ( pai ) p. 187
Tabela 13 Ocupação profissional ( mãe ) p. 190
Tabela 14 Ocupação profissional ( pai ) p. 194
Tabela 15 Cor dos órfãos p. 204
Tabela 16 Cor da mãe p. 207
Tabela 17 Cor do pai p. 207
Lista de gráficos
Gráfico 1 Idade de entrada ( expostos ) p. 104
Gráfico 2 Razões do abandono p. 107
Gráfico 3 Saída dos expostos (requerente) p. 122
Gráfico 4 Idade de saída p. 125
Gráfico 5 Legitimidade dos expostos p. 126
Gráfico 6 Cor dos expostos p. 132
Gráfico 7 Causas da morte dos expostos p. 138
Gráfico 8 Idade de entrada dos órfãos p. 160
Gráfico 9 Requerente de entrada p. 174
Gráfico 10 Legitimidade dos órfãos p. 176
Gráfico 11 Causas da morte ( mãe ) p. 182
Gráfico 12 Causas da morte ( pai ) p. 187
Gráfico 13 Ocupação profissional ( mãe ) p. 191
Gráfico 14 Ocupação profissional ( pai ) p. 195
Gráfico 15 Cor dos órfãos p. 204
Gráfico 16 Cor da mãe p. 207
Gráfico 17 Cor do pai p. 207
Lista de figuras
Figura 01 Vista do Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia da Bahia,
1913.
p.77
Figura 02 Estábulo Novo, construído em 1916-1918. p. 93
Figura 03 Enfermaria dos expostos, 1915. p.94
Figura 04 Enfermaria dos expostos, 1915. p.94
Figura 05 Creche dos expostos antes da reforma de 1925. p.96
AGRADECIMENTOS
A concretização deste trabalho só foi possível devido ao apoio e estímulo de amigos e
familiares. Agradeço, especificamente, à minha filha Carolina e a Acácio José Silva Araújo pelos
momentos de alegria que me proporcionaram, garantindo, assim, a tranqüilidade necessária à difícil
arte de aprendiz de feiticeiro. Igualmente importante foi a contribuição de Adriana da Rocha
Rodrigues que, lendo várias partes deste trabalho e fazendo comentários interessantes, foi um
incentivo sempre presente.
Agradeço à professora Lígia Bellini pela orientação e preocupação constante, além de
um acurado senso crítico. Sou grata, igualmente, à professora e amiga Meire Lúcia Alves Reis que
depositou confiança neste trabalho, incentivando-me, colaborando com a pesquisa, lendo e
comentando os capítulos. Da mesma forma, agradeço a amizade e o encorajamento sempre
transmitidos pela professora Jaqueline Andrade Pereira. Às pesquisadoras Teresa Cristina Pimentel
e Rute Silva Cruz pela colaboração na coleta de dados.
Ao professor Antônio Cândido agradeço a paciente leitura de partes deste trabalho e as
excelentes observações feitas sobre o mesmo. Da mesma maneira, sou grata ao professor Alberto
Heráclito Ferreira Filho pela crença que depositou no projeto inicial, confiando-me, inclusive, parte
de sua bibliografia.
A Neuza Esteves, diretora do Arquivo da Santa Casa da Misericórdia, agradeço
imensamente não só pelo auxílio prestado no que diz respeito à documentação do Asilo dos
Expostos, como também, e principalmente, pelas palavras de carinho e amizade que sempre me
dispensou. Aos funcionários dessa instituição, Jorge Martins Conceição, Andreia Ávila e Marinalva
que, sempre prestativos, facilitaram imensamente à pesquisa.
À direção da Casa Pia e Orfanato de São Joaquim, agradeço por ter aberto os arquivos
dessa instituição, facilitando a coleta de dados.
À bibliotecária Marina da Silva agradeço a solicitude e dedicação no empréstimo de
livros.
A Kércia Lima sou grata pela segurança que ajudou-me a encontrar.
À Dra. Maria de Lourdes Barreto agradeço pela transmissão de informações acerca do
Asilo dos Expostos e, principalmente, por sua dedicação à criança pobre. Acima de tudo, devido a
seu exemplo de vida, sou-lhe grata pela inspiração do tema desse trabalho.
Por último, sou grata a CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior, cujo apoio financeiro possibilitou a elaboração deste trabalho.
1
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo central analisar concepções e práticas em relação
à infância pobre em Salvador, entre os anos 1900 e 1940. Desde o final do século XIX, médicos
e a imprensa, de forma geral, divulgaram novos conceitos sobre a criança, em particular a criança
pobre e, paralelamente, propuseram formas de intervenção social e controle desse segmento.
Suas idéias adquiriram maior vigor e popularidade nas primeiras décadas republicanas.
A infância não pode ser separada das demais fases da vida humana, tomando-se como
referência apenas a idade e o desenvolvimento biológico, sem levar em consideração as
especificidades históricas de uma determinada sociedade. Isto porque os modos como um
determinado grupo social é concebido, construído, são historicamente determinados. Sendo
assim, um dos propósitos deste trabalho foi o de investigar a existência de um sentimento
moderno de infância na cidade de Salvador, e as proporções e formas assumidas por esse
sentimento.
O desenrolar deste estudo nos levou a concordar com Mary Del Priore, em sua
afirmação de que “ a história da criança fez-se à sombra daquela dos adultos”.
1
Apesar disso,
procuramos focalizar, sempre que possível, as experiências particulares e os caminhos
percorridos por esse grupo específico. Na maioria das vezes, o que conseguimos apreender foi a
1
DEL PRIORE (org.). História da criança no Brasil, 1995, p.7.
2
presença de um olhar adulto e privilegiado sobre um grupo excluído da sociedade, tanto pela
faixa etária como por sua origem social.
Uma literatura extensa sobre a família e a mulher e, em menor número, sobre a criança,
vem sendo produzida há alguns anos no Brasil, especificamente nas duas últimas décadas.
Segundo Maria Luíza Marcílio,
[...] a historiografia brasileira, até fins da década de 1980, pouco se ocupou
da criança e mesmo da família. Foi o recurso da Demografia Histórica, no
Brasil, e da chamada História Nova, ambas valorizando as pesquisas sobre
os excluídos sociais, que possibilitou a descoberta de realidades novas,
inusitadas, na nossa paisagem social histórica.
2
No entanto, estudos específicos a respeito da infância pobre em Salvador no início do
século são, praticamente, inexistentes. Desta forma, com este trabalho, acreditamos estar
contribuindo para uma melhor compreensão da infância e da pobreza, assim como dos
mecanismos adotados pela sociedade para lidar com tais questões.
Não poderíamos, aqui, deixar de mencionar a importância que a obra de Philippe Ariés
teve, como inspiração para a escolha do tema deste trabalho.
3
Ariés aborda o surgimento de um
sentimento moderno de infância, na Europa dos fins do século XVII, que tornou-se hegemônico
no século XIX. De acordo com este autor, a criança, enquanto ser distinto do adulto, foi uma
concepção formulada em decorrência de uma nova posição ocupada pela própria criança e pela
família nas sociedades industriais. A partir do século XV, presenciamos, na Europa, o
desenvolvimento da família nuclear em oposição aos sistemas de linhagem. Para Ariés, o
sentimento de infância não pode ser dissociado do sentimento de família, uma vez que, ao
afastar-se da linhagem e ao aproximar-se do estreitamento das relações entre pais e filhos, a
2
MARCÍLIO, 1998, p.12.
3
família modificava-se e concentrava-se em torno da criança. Apesar de não termos feito, no
presente trabalho, uma investigação das transformações ocorridas na sociabilidade familiar em
Salvador, a obra de Ariés foi fundamental, como pano de fundo, para a discussão de muitas das
questões aqui apresentadas. Outras obras, também importantes, serão posteriormente citadas.
A escolha do período justifica-se pela grande veiculação de idéias relativas à infância
pobre, como as do médico Joaquim Augusto Tanajura que, no ano de 1900, defendeu a criação
de órgãos de assistência à criança pobre, tais como o Instituto de Proteção e Assistência à
Infância.
4
Projetos, cujo pressuposto básico era o reconhecimento da particularidade do
segmento infantil, foram sendo progressivamente postos em prática, através de criação de novas
instituições assistenciais ou de reforma das antigas. A entrada em vigor do Código Penal de 1940
representa, de certa forma, a institucionalização de novos conceitos sobre a infância, que
observamos emergir, paulatinamente, nas primeiras décadas da República. O código de 1890
responsabilizava criminalmente crianças maiores de 9 e menores de 14, que houvessem infringido
com discernimento a lei. Tal código de leis demonstra o quanto a sociedade, nos primeiros anos
republicanos, concebia esta fase da vida humana a infância - de forma extremamente limitada.
O novo Código ilustra a consolidação, entre membros das elites letradas do país, de novas
percepções sobre a infância, estendendo, por exemplo, a proteção jurídica aos jovens menores
de 18 anos. Segundo esse Código, os menores de 18 anos eram irresponsáveis do ponto de
vista penal, ficando sujeitos às formas estabelecidas na legislação especial.
5
Da mesma forma, a
partir de 1940, outras fontes indicam a consolidação do novo direcionamento na prática
assistencial voltada para a infância, as quais serão observadas no respectivo período aqui
3
ARIÉS, 1981.
4
AMMS. TANAJURA., 1900, p.118.
5
PIERANGELLI, 1980, p.452.
4
estudado. O caráter filantrópico da assistência, associado a uma atuação mais direta do Estado,
passou a ser dominante nos projetos voltadas para o segmento infantil.
A propósito das fontes, há que se ressaltar a profusão e diversidade da documentação
disponível. Trabalhando com a imprensa, mais precisamente com os jornais Diario da Bahia e
Diario de Notícias, ou com teses da Faculdade de Medicina da Bahia, pudemos constatar tanto
a idéia da existência de uma particularidade infantil como a presença de concepções específicas
sobre a infância pobre, a partir das quais propunham desde medidas de controle e disciplina
através do trabalho até a repressão mediante a força. Alguns processos-crime que envolveram
estupro de crianças foram pesquisados, com o intuito de compreender as concepções dos
juristas com relação à infância e, ao mesmo tempo, demonstrar o cotidiano de violência, fosse no
espaço da casa ou no da rua, vivenciado pelo segmento infantil pobre. As fontes seriais do Asilo
Nossa Senhora da Misericórdia e da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim,
associadas aos bilhetes ou observações sobre a vida das crianças, que constam dos seus
registros, nos propiciaram a tentativa de fazer uma história social das crianças ingressas nas duas
instituições. Regulamentos, atas e outros tipos de documentação administrativa possibilitaram o
estudo de práticas assistenciais adotadas pela sociedade, no intuito de solucionar os problemas
gerados pelo abandono e pela orfandade do segmento infanto-juvenil, ou pelo estado de carência
material em que muitos se encontravam. Procuramos, neste estudo, observar as mudanças
operadas nas duas instituições citadas, por conta dos novos conceitos difundidos na sociedade
acerca da infância. Seguindo as concepções sugeridas pela documentação, incluímos na
caracterização de primeira infância todas as crianças que encontravam-se na faixa etária de 0 a 7
anos - os pequenos do Asilo dos Expostos - , e na de segunda infância, todos que estavam na
faixa de 7 a 14 anos, os meninos do Colégio dos Órfãos do São Joaquim.
5
O presente trabalho está dividido em cinco capítulos e uma breve conclusão. O capítulo I
trata da política urbanística empreendida em Salvador entre 1912 e 1930, cujo propósito era a
modernização da cidade e mudança dos hábitos da população, sobretudo da população pobre,
através de um processo de disciplinarização e de moralização dos costumes. Nossa intenção é
analisar o espaço destinado à infância pobre dentro desse almejado centro de civilização, e o
fortalecimento de um sentimento de infância entre as elites.
O capítulo II aborda os mecanismos de socialização da criança pobre. Enfocamos três
espaços a escola, o trabalho e a família considerados, pelas elites baianas, locais
privilegiados na concretização do projeto de socialização da infância. Contrapomos situações de
violência ao ideal de harmonia preconizado. Ainda neste capítulo, discutimos a construção, por
parte do segmento infantil, de espaços de resistência e liberdade em relação à racionalidade
imposta com base na lógica do trabalho.
O capítulo III discute o que significava ser órfão em Salvador, nas primeiras décadas
republicanas, e as possíveis distinções entre orfandade e abandono. Da mesma forma,
abordamos as medidas adotadas pelo Estado, pelo setor médico e pela sociedade em geral no
controle do segmento infantil pobre, que, progressivamente, é encarado por esses setores como
um problema social.
O capítulo IV é dedicado à investigação do papel do Asilo de Nossa Senhora da
Misericórdia na assistência à criança de o a 7 anos, faixa etária em que, em geral, se situam os
expostos. Procuramos formar um quadro da trajetória percorrida por este Asilo, que tem
modificado o seu caráter assistencial de caridade cristã à filantropia social. Da mesma forma,
buscamos vislumbrar o percurso percorrido por algumas crianças expostas, enfocando seu
passado familiar e as possíveis motivações para a exposição.
6
O capítulo V focaliza a atuação da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim,
instituição que prestava assistência a crianças do sexo masculino na segunda infância de 7 a 9
anos após o estabelecimento da República, indicando rupturas e permanências em sua prática
assistencial. Procuramos aqui, como no capítulo anterior, explorar, na medida do possível, um
pouco da vida dos órfãos e de seus familiares, e das circunstâncias do internamento.
Diante da realidade atual de nossa sociedade, caracterizada pela existência de uma legião
de crianças pobres e marginalizadas socialmente e, ao mesmo tempo, por uma total ausência de
medidas que venham a solucionar ou atenuar os problemas oriundos desse processo de exclusão,
este trabalho não tem qualquer pretensão de sugerir soluções, nem de esgotar as reflexões sobre
o tema. No entanto, esperamos estar contribuindo para uma melhor compreensão das
permanências e transformações nas práticas assistenciais destinadas à infância pobre, assim como
para a construção de uma história social da família e da infância brasileira.
7
Capítulo I
Salvador, pobreza urbana e infância
Salvador, nas três primeiras décadas da República, era um centro urbano que
apresentava sérios problemas infra-estruturais, tais como, baixo número de casas, superlotação
em cada unidade residencial, concentração da propriedade, e, conseqüentemente, péssimas
condições de moradia para a maior parte da população. Observa Mário Augusto da Silva Santos
que, já desde a última década do século XIX, a cidade havia ingressado em um processo de
modernização urbanística que fatalmente provocaria a destruição, sem reposição, de muitas
unidades habitacionais.
1
Esta realidade, segundo o autor, demonstra que a idéia de paraíso dos
inquilinos, divulgada por alguns cronistas dos costumes, como Hildegardes Vianna, é apenas um
mito. Vianna afirma que “antigamente as mudanças eram mais raras. As famílias permaneciam
por várias gerações em uma casa, fosse própria ou de aluguel. As que tinham vontade de se
mudar pesavam tanto os prós e os contras que acabavam não se mudando”.
2
A idéia de estabilidade residencial para a população de baixa renda só pode ser vista
como uma aspiração, sendo uma realidade concreta apenas para os proprietários. Os estudos de
Silva Santos acerca da permanência dos inquilinos nos locais de moradia, relativos ao período
1893-1940, assinalam dois anos como o tempo médio de residência num mesmo local. Assim
1
SILVA SANTOS, 1990.
8
sendo, as questões de habitação e das relações proprietários/inquilinos em Salvador, mais do que
harmoniosas e reguladas por relações pessoais, foram ditadas pela concentração da propriedade
e por um processo de urbanização que buscou apenas eliminar as habitações não adequadas aos
novos padrões de higiene, sem contudo se preocupar com a instalação de novas unidades
habitacionais. Concordando com Silva Santos, Heloísa Oliveira de Araújo afirma que Salvador,
entre 1912 e 1930, passou por uma política urbana cujo propósito era demolir várias edificações
“expulsando seus moradores para áreas distantes ou intensificando o uso, pelo encortiçamento, a
concentração de terras nas mãos de poucos”.
3
Uma política que, ao intervir assistematicamente
na estrutura urbana, provocou a desorganização de áreas já estabelecidas. O objetivo de tais
reformas era interferir nos hábitos da população pobre.
A cidade de Salvador estava entre as principais capitais brasileiras que, com a mudança
de regime político (Monarquia para República), voltou sua atenção para o segmento pobre e
trabalhador que nela residia, estabelecendo um processo de disciplina dos costumes e hábitos
sociais desse segmento. Assim observa Nancy Rita Sento Sé de Assis:
Sobretudo com o intuito de conformar os hábitos, as condutas e as formas
de apropriação dos espaços públicos e privados, herdados da Colônia e do
Império, a um conjunto de valores vigentes na Europa Civilizada, são
impostas medidas, prescrições e leis como condições precípuas para
alcançar a modernidade e civilização.
4
Dentro dessa lógica, Octavio Torres da Silva, em 1908, descreve aspectos físicos da cidade que
visivelmente considerava inadequados:
2
VIANNA, 1994, p.108.
3
ARAÚJO, 1992, p.257.
4
ASSIS, 1996, p.8.
9
[...]algumas dessas ruas, parece-nos, e faz-nos lembrar as estradas do
interior do Estado, principalmente no tempo do inverno, onde o viandante
tropeça a cada passo em buracos, lamaçais, etc. O calçamento feito em
tais ruas, não passa de um amontoado de pedras, mal dispostas. No centro
da cidade, em lugares concorridos, existem ruas e praças, onde se podiam
criar caranguejos, patos e outros animais, que dos pântanos vão tirar a sua
alimentação, seja dos vermes nelles contidos , seja das matérias orgânicas,
que se encontram ali em estado de decomposição, e outras, onde o ar
atmosférico, raras vezes pode substituir o ar contaminado e empestado,
devido a largura, as irregularidades das habitações, a falta de alinhamento
nas construções, etc., causas necessárias para o embelezamento, estética e
pela Higiene.
5
Semelhantemente aos médicos do século XIX, que apontavam os malefícios dos miasmas,
esse autor descreve e condena o aspecto sujo das ruas e habitações da cidade. Da cidade alta à
cidade baixa há sempre comentários sobre a aparência imunda de Salvador, causada pelo “estado
atrasadíssimo de nossa população inferior, que não trepida em fazer suas necessidades corporais
em plena rua, e fazer (sic) ao progresso científico da higiene pública, tão preconizado e respeitado
entre outros povos”.
6
De acordo com esta afirmação, a falta de condições higiênicas da cidade
era uma conseqüência direta da suposta inferioridade da população baiana. Colocam-se os
supostos maus hábitos educacionais e culturais da população de descendência africana e de baixa
renda como fomentadores das condições precárias de higiene de Salvador. O autor, apesar de
não discutir abertamente a questão da raça como elemento fundamental para o desenvolvimento
do povo, em inúmeros trechos da tese demonstra essa concepção. Por exemplo, “as tradições
africanas com seus nojentos quibandos e abarracamentos, vendendo comidas”.
7
Descrevendo um
jardim existente no Terreiro de Jesus, afirma: “o seu gozo é simplesmente a noite e por 4 ou 5
5
AMMS. SILVA, 1908, p. 1.
6
Ibid., p. 4.
7
Ibid., p.1.
10
horas, porque a índole do povo baixo, que não tem instrução e educação cívica, não permite
estar aberto”.
8
Não obstante não considerarmos correto atribuir os problemas de Salvador aos
hábitos cotidianos do segmento pobre, é certo que o estado da Bahia e a cidade de Salvador
realmente se encontravam, até a década de 30, em péssimas condições sanitárias. Consuelo
Sampaio nos diz, a respeito das “condições sanitárias e de saúde, que o quadro do estado da
Bahia era dos mais constrangedores. A quase totalidade dos municípios (139) não possuíam
esgotos sanitários”.
9
Para a cidade de Salvador, Sampaio afirma que: “O distrito de Brotas e
parte dos de Santo Antonio e Vitória, por exemplo, compreendiam aprazíveis chácaras e grande
quantidade de sítios, que se ligavam ao núcleo urbano por estradas, praticamente intransitáveis
nas estações chuvosas”.
10
Por conta disso, segundo a autora, as condições de saúde eram
péssimas, e, em 1935, o crescimento populacional chegou a ser negativo. Na tese de Octávio
Torres da Silva, há relatos sobre partes da cidade que fornecem uma idéia sobre o aspecto físico
e sanitário de Salvador na primeira década republicana:
Vejamos os districtos da Sé, Pilar, Conceição da Praia, etc, pontos
comerciais de maior importancia, onde, o acumulo desses pobres de espírito
e da sorte é contrário à higiene, e a nossa vista turba-se ante tanta miséria;
cora-nos o pudor, mas a verdade acima de tudo pesa-nos ser baianos, ante
tanta degradação. Habitam nessas catacumbas 20 e mais pessoas, ( dando
esse acumulo a lembrança de um chiqueiro) numa promiscuidade
atentatoria a higiene e a moral...A rua Dr. Seabra, antiga Valla, da
Barroquinha a Baixa dos Sapateiros, quando chove é um verdadeiro charco,
porque a insuficência dos esgotos até é manifesta; e essas aguas que para
ela se dirigem, permanecem por muitos dias estagnada, exalando cheiro
nauseabundo das materias que estão misturadas.
11
8
Ibid., p. 9.
9
SAMPAIO, 1992, p. 32.
10
Ibid., p. 32.
11
AMMS. SILVA, 1908, p.6-26
11
Todavia, há que se ressaltar que, embora o estado sanitário de Salvador fosse realmente
precário, o que justificou a existência de discursos e uma certa atuação de uma elite influenciada
por idéias higienistas e eugênicas,
12
o argumento de que Salvador era uma cidade com
crescimento populacional negativo deve ser visto com cautela. Sampaio, através das informações
obtidas da Sinopse Estatística do Estado da Bahia, apresentou um crescimento populacional
negativo para o ano de 1935, não tendo, entretanto, o registro para os anos anteriores. Os dados
estatísticos referentes à população da Bahia nas primeiras décadas republicanas são bastante
imprecisos, a ponto do médico Waldemar Lages, após desenvolver um estudo acerca da
mortalidade infantil na Bahia, entre os anos de 1929 e 1938, reconhecer as deficiências destes
dados, sobretudo porque o número de registro civil de nascimento era inferior ao apresentado
pelos registros de batismo católico.
13
Mas é verdade que o médico também afirma ter
encontrado um excesso de morte sobre o de nascimentos. Ao percorrer os dados dos censos de
1920 e 1940, que oferecem informações sobre a população de Salvador, nos anos de 1900,
1920 e 1940,
14
encontramos, respectivamente, 205.813, 283.422 e 290.443 habitantes. Mas
estes dados não podem nos dar uma idéia sobre o crescimento populacional, já que não temos o
número de nascimentos e número de óbitos. Ainda assim, autores como Assis afirmam que
“tanto os movimentos de migração quanto o aumento da população local contribuíram para o
crescimento populacional lento e pequeno, porém, regular”.
15
Da mesma forma, Paulo César
Garcez Marins, analisando as metrópoles brasileiras no início do século, apontou Salvador
12
De acordo com Schwarcz: “[...]o termo ‘eugenia’- eu: boa; genus: geração - foi criado em 1883 pelo cientista
britânico Francis Galton[...]Galton buscava provar, a partir de um método estatístico e genealógico, que a
capacidade humana era em função da hereditariedade e não da educação”. (SCHWARCZ, 1993, p.60).
13
LAGES, 1940, p.15.
14
IBGE., v. 4, t. 1, 1940.
15
ASSIS, 1996, p.36.
12
como a terceira cidade mais populosa do país, contribuindo para esta realidade “...as pressões
demográficas ocasionadas pelas migrações do Agreste e do Sertão, assolados pelas secas.”
16
Onde vivia, nesse almejado centro de urbanização e civilização, o segmento pobre?
Segundo Donald Pierson:
[...]os vales, em contraste, oferecem lugares de residência menos
confortáveis, menos saudáveis e menos convenientes, por conseqüência
mais baratos. Ali (sic) geral, as ruas propriamente ditas e o calçamento
desaparecem. Os habitantes utilizam-se de trilhos, onde, após um temporal,
a argila vermelha torna-se escorregadia e perigosa, nas subidas mais fortes.
Ali vivem as classes mais baixas. As habitações, na maior parte, são
simples casebres constituídos por uma armação de madeira coberta de
barro.
17
Já para Mário Augusto Silva Santos, a população de baixa renda, principalmente
feminina (provavelmente mães das crianças que ocupavam as ruas e/ou asilos destinados à
infância desvalida), morava, na sua maior parte, no distrito da Sé, área caracterizada por
sublocações e subdivisões dos prédios, com grande concentração populacional e péssimas
condições de moradia. Essa situação despertou interesse do governo municipal que, mediante o
Ato n.º 45 de 09/07/1928, deliberou sobre a “constituição de vilas operárias em terrenos do
município”.
18
Através do ato 99 de 19/11/1932, estabeleceram-se “12 tipos de projetos de
casas econômicas considerando o mau aspecto que apresentavam certos aspectos da cidade e a
falta de segurança de pequenas construções que infringem e contrariam todos as normas de
moderna edificação”.
19
Discorrendo sobre o limitado alcance das reformas urbanísticas para
o segmento popular, Assis afirma que a população pobre concentrou sua moradia e pontos
16
MARINS, 1998, p.165.
17
PIERSON, 1945, p.67.
18
ARAÚJO, 1993, p.258.
19
Ibid. 258-259.
13
comerciais em “bairros periféricos”, “subúrbios e na parte decadente do velho centro, onde as
muitas demolições nas zonas remodeladas, diminuíram a oferta de imóveis destinados à moradia
dos homens e das famílias pobres”.
20
Esta mesma autora nos informa que a população vivia em
residências “plurifamiliares”, na sua maior parte sem banheiros ou com banheiro de uso comum,
com uma “vivência da sexualidade pouco secreta devido a proximidade dos cômodos e a
ineficiência das divisória entre eles”.
21
As condições reais de residência desse segmento
causaram verdadeiros impasses ao projeto normatizador de médicos higienistas, que viam na
moralização dos costumes das famílias e crianças de baixa renda a única forma de obter
cidadãos úteis a uma pátria civilizada.
As concepções de civilização e progresso fizeram parte dos projetos de intelectuais
brasileiros e baianos desde o final do século XIX. Tais projetos concebiam esses ideais como
modelos universais que deveriam ser aplicados à realidade local. Segundo eles, era necessário
organizar racionalmente o “espaço físico e social, porvir fulgurante vitória da ordem e do
progresso sobre as forças caóticas”.
22
Ao planejar uma cidade modelo almejavam-se ruas limpas
de toda sujeira física e humana, nada de miséria exposta nem de crianças famintas a pedir
esmolas. Nesse novo centro urbano não havia lugar para crianças e mulheres que, empurradas
pela miséria e fome, faziam do espaço da rua um local de sobrevivência e lazer. O menino
Paulino Flaviano dos Santos, 10 anos de idade, encontrado a mendigar na rua do Taboão, foi
uma dessas crianças que, expondo suas “chagas” e sua condição de indigência, usou a rua como
estratégia de sobrevivência. O Diario da Bahia, em 1903, noticiava que Paulino morava na
ladeira do Taboão, “num quarto sem luz e sem conforto”. Dizia ser esta “creança soffredora
que anda exposta ao sol, a provocar em plena rua commiseração de uns e repugnancia de
20
ASSIS, 1996, p. 40.
21
Ibid., p. 59.
14
outros, sempre de mão estirada a supplicar o alivio de uma esmola”.
23
A mendicância foi a
alternativa encontrada por esta criança para assegurar sua sobrevivência e de sua família. Da
mesma forma que Paulino estava sujeito às dificuldades e vicissitudes da vida na rua, o menino
Geraldo, 13 anos, muito embora assumisse uma atividade produtiva (empregado de uma
taberna), o que era visto com bons olhos pela sociedade, não estava livre de passar por
situações de humilhação e violência. De acordo com o Diario de Noticias, em 1911, o espanhol
José Rodeiro Fernandes teria espancado “o seu empregado Geraldo Gavião Isuela, menor de 13
annos, fazendo-lhe escoriações pelo corpo e no rosto”.
24
Apesar da violência, o espanhol não foi
punido pelo seu ato, e sim por manter um menor de 13 anos que não estava devidamente
alfabetizado em seu estabelecimento.
São esses os aspectos gerais de uma cidade que buscava pelo menos em idéias
modernizar-se, tendo como parâmetro nacional as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,
tomando também como modelo Paris e Estados Unidos. Mas podemos verificar que, apesar da
efervescência de idéias urbanísticas, reformistas e disciplinadoras, a criança pobre esteve
submetida a uma dura realidade; não tendo sido alvo de medidas que viessem efetivamente
melhorar suas condições de existência. Sendo assim, nos perguntamos se um sentimento de
infância existiu na sociedade baiana, quais as formas adquiridas e os limites deste sentimento.
Pensar em sentimento de infância em Salvador nas primeiras décadas republicanas
parece a princípio um paradoxo ou no mínimo um discurso vazio. Todavia, se não associarmos
esse sentimento à afeição direta pelas crianças e sim ao surgimento de uma idéia da
particularidade infantil que distingue essencialmente a criança do adulto, constatamos facilmente a
presença desse sentimento nos discursos jornalístico e médico. A existência de uma literatura
22
MONARCHA, 1997, p.107.
23
Diario da Bahia, Bahia, p.3, 18 mar.1903.
15
médica, voltada desde o século XIX para as crianças de elite, com o passar do tempo fez surgir,
no século XX , um interesse pela criança pobre e desamparada. Nota-se que as teses elaboradas
pelos doutorandos baianos eram fundamentadas, basicamente, na leitura de escritos europeus, na
maioria franceses. Contudo, a falta de originalidade não excluiu a preocupação real desses
médicos com o
problema da infância desamparada no Brasil. Acreditamos que esta preocupação fez parte não
só de um movimento de modernização dos valores familiares segundo os moldes europeus, mas
foi fruto de uma campanha de saúde pública que, segundo Guaraci Adeodato de Souza, já se
esboçava na Bahia desde a Abolição e Proclamação da República, ganhando, a partir de 1920,
maior intensidade.
25
Com o desenvolvimento dos centros urbanos, a liberação da mão-de-obra e
o estabelecimento de um novo sistema político, acentuaram-se a questão social e,
conseqüentemente, a preocupação política-sanitária. Dessa forma, o deslocamento das atenções
para a população pobre e o sentimento moderno de infância baiano não foram mera repetição de
um ideal europeu. Heloísa Oliveira de Araújo afirma que, objetivando atuar não apenas sobre as
doenças pestilenciais existentes desde o século XIX, mas também exercer controle sobre as
doenças de massa, ou seja, aquelas ligadas às condições de vida e de trabalho da população
pobre, o Governo intensificou sua atenção quanto a questões de saúde pública.
26
Criou-se,
assim, em 1920, “o Departamento Nacional de Saúde Pública, ampliando as atribuições estatais
sobre os problemas sanitários”.
27
Paralelamente à preocupação com áreas verdes, espaços
abertos e condições salubres para a cidade, desenvolveu-se uma meta de proteção e de saúde
da infância. A saúde pública e a criança pobre/delinqüente tornaram-se questões sociais
24
Diario da Noticia, Bahia, p.2, 28 nov. 1911.
25
SOUZA, p.57-79, 1992.
26
ARAÚJO, 1993, p.202.
27
Ibid., p. 202.
16
passíveis de intervenção. Daí encontrarmos na tese do então doutorando Joaquim Augusto
Tanajura, defendida no ano de 1900, a preocupação com a vida da criança e, ao mesmo tempo,
a consciência de que esta é biológica e psicologicamente distinta do adulto:
A morte, lei fatal que antepõe à sua obediência os mais intransigentes do
rebanho humano, cega e implacavel, ameaçadora sempre, vae desgastando
os campos populosos, attingindo especialmente os pequeninos seres que no
desabrochar da vida não sentem o contacto do rocio, que anima e revigora,
para supportarem o calor do sol que escaldante cresta as pequeninas
plantas.
28
Embutida nos cuidados com a infância estava a necessidade de buscar soluções para a
questão nacional. Desejava-se transformar o país e, em particular, a cidade de Salvador de
acordo com os padrões de civilidade européia. Questões como pobreza, atraso educacional e
tecnológico, miscigenação e elevada mortalidade infantil vão ser vistas, pelo segmento médico,
como fatores responsáveis pelo pouco desenvolvimento do país. O atraso do país não estava
ligado somente à questão racial, mas igualmente aos aspectos culturais e sobretudo higiênicos que
norteavam os hábitos da população pobre. Preocupar-se com a saúde da criança significava, de
fato garantir a obtenção de futuros cidadãos produtivos, úteis a si e à sociedade. Tanajura
afirmava:
Todas as estatisticas são accordes em demonstrar a enorme taxa mortuaria
de crianças; os prejuizos causados pela perda de tantas victimas no inicio
de seu desenvolvimento repercutem sobre o progresso de uma nação, que
não poderá marchar desafogadamente e se inscrever na lista daquellas que
occupam as primeiras linhas.
29
28
AMMS. TANAJURA, 1900, p. 9.
29
Ibid., p.10.
17
Tanajura não só compara a mortalidade infantil nacional com a estrangeira, como também
analisa as diferenças existentes entre as cidades brasileiras, indicando como causas para a
elevada mortalidade infantil em todo país, a “tuberculose, a nutrição deficiente, o alcoolismo, a
falta de cuidados de hygiene na prenhez e principalmente a syphilis”
30
, que, segundo ele, são as
que mais contribuíam para o acréscimo desse fator demográfico.
Em 1907, o doutorando Hildebrando de Freitas Jatobá, na sua tese sobre mortalidade
infantil na Bahia, deixa evidente sua noção de especificidade da infância e a preocupação com a
construção de uma nacionalidade brasileira. Para ele, “a creança é o homem do futuro. Velar
pela sua vida e pela sua educação, é pois, o mais sagrado dever de todo governo patriota.
Jamais poderemos attingir o gráo de progresso a que a natureza nos fadou”.
31
O autor apresenta
um estudo sobre a taxa de natalidade, nupcialidade e mortalidade na Bahia, do ano de 1897 a
1906, mediante dados fornecidos pelas estatísticas demográficas. Especificamente a respeito da
mortalidade infantil, Jatobá apresenta uma mortalidade de 13.487 entre crianças de 0 a 5 anos
em um universo de 47.064 pessoas falecidas durante os 10 anos estudados, o que corresponde a
28,76 % da mortalidade geral. Jatobá considera a causa principal para esta mortalidade as
deficiências nutricionais, como o uso de mingaus “e outras pastas alimentares” para crianças de
poucas semanas de vida, ao invés do aleitamento natural.
32
Percebe-se, no período, a intenção,
por parte dos médicos, de regular a vida da criança desde a sua alimentação até o seu sono,
prescrevendo, por exemplo, de 7 a 8 mamadas por dia, espaçadas “de 2 em 2 ½ horas, nos 5
primeiros meses e somente 6 a 5 nos últimos meses, com intervalos de 3 e 4 horas”. Como o
controle da alimentação implica também em um domínio sobre os horários de descanso da mãe e
da criança, Jatobá propõe que “no interesse , tanto da creança como da sua nutriz, a tendência
30
Ibid., p. 31.
31
AMMS . JATOBÁ, 1907, p.1.
18
hodierna dos pediatras é proscreverem aquella, toda alimentação a noite”.
33
Uma vez que “de
espirito maleavel, a creança, facilmente se habitua a este regimen e bastam em geral poucos dias
de energia para acostumal-a a alimentar-se e a dormir a horas certas”.
34
O estudo de Jatobá é
um exemplo de como os médicos buscavam construir técnicas de normatização da infância.
Também o doutorando Antônio de Azevedo Borba, no ano de 1913, iniciou sua tese
deixando claro que “velar, de modo especial pela infância , é um dos mais sagrados deveres da
sociedade e dos imperiosos para o médico o de combater condenando os processos prejudiciais
e defeituosos pelos quais grande numero de mães criam seus filhos”.
35
O seu trabalho, como os demais já citados, procura prescrever regras de alimentação e
de higiene para o recém-nascido, normas que, mesmo as mães pertencentes às classes abastadas
teriam dificuldade de seguir, e que mostravam-se impraticáveis para as mães de grupos de baixa
renda. Ao prescrever cuidados na escolha de uma ama, caso a mãe não conseguisse amamentar,
Borba reconhece que: “tudo isso é minucioso é verdade, mas a saúde da criança e a
prosperidade da família assim o exigem”.
36
A despeito do empenho dos médicos em
regulamentar os cuidados com a infância, concordamos com Ângela Lúcia Ganz quando esta
afirma que o conhecimento médico, buscando obter cientificidade e legitimidade, “ocupou cada
vez mais espaços, entretanto não conseguiu deslegitimar o conhecimento das mães. As fronteiras
entre o conhecimento médico e o materno eram muito tênues, pois um interagia no outro, apesar
dos esforços médicos em delimitar e sistematizar os seus princípios, separando-os dos
princípios das mães”.
37
As teses citadas, defendidas no início da República, evidenciam a existência de um
32
Ibid., p. 26.
33
Ibid., p. 31
34
Ibid., p. 32.
35
AMMS. BORBA, 1913, p. 1.
19
sentimento moderno de infância entre os médicos baianos, associado a um tímido projeto
assistencialista que se destinava, basicamente, à infância pobre. Segundo Jatobá:
[...] não existe nesta capital, uma instituição de caracter official, que se
destine a soccorrer a infancia desvalida. Tudo quanto neste sentido
possuimos acha-se comprehendido neste circulo estreitissimo: a Santa
Casa da Misericordia, com sua clinica infantil e o Asylo dos Expostos,
algumas sociedades beneficentes de acção muito restricta e finalmente o
Instituto de Proteção e Assistencia á Infancia, com o seu Dispensario
Infantil, instalado em 13 de maio de 1904 e que se acha sob a competente
direcção do Dr. Alfredo Magalhães professor Pediatrico na Faculdade de
Medicina.
38
O desenvolvimento, em Salvador, de um sentimento moderno de infância, associado à
prática assistencial, pode ser constatado também através das notícias de alguns jornais da época.
Encontramos, no jornal Diario da Bahia de 3 de abril de 1903, um artigo que busca estimular,
nas mulheres da alta sociedade baiana, o ideal de caridade e, ao mesmo tempo, conseguir
dinheiro para a criação do “Instituto de Proteção e Assistencia à Infancia”. Intitulado “Pelas
creanças”, o artigo afirma:
Notem vossas exceellencias a legião de desgraçadinhos que anda por ahi
de olhos pisados, sem um trapo de linho, quando o frio lhes alfineta e lhes
arroxeia as carnes tenras e magras, sem uma codea de trigo, quando a
fome os tortura. D’ahi ( examinem-na vossas excellencias ), essa infinita
cifra de obitos de creanças na Bahia.
39
Dentro desse espírito, podemos encontrar a campanha realizada pelo mesmo jornal
a partir de 1904, com o objetivo de construir a Maternidade Climério de Oliveira, destinada a
receber mulheres de baixa renda. A preocupação com o destino da mulher pobre grávida não
pode, evidentemente, ser dissociada do interesse pela vida de seus filhos. A campanha, realizada
36
Ibid., p. 21.
37
GANZ, 1997, p.93.
38
AMMS. JATOBÁ., 1907, p. 18.
39
Diario da Bahia, Bahia, p. 1, 03 abr.1903.
20
durante o ano todo demonstra a participação da iniciativa privada, representada pelas famílias da
alta sociedade baiana que vão associar o ato de filantropia ao processo de aquisição e
manutenção de status. Verificamos a publicação sucessiva dos nomes das pessoas envolvidas
em doações, além da predominância de discursos com um tom paternalista. Uma das notícias
declarava:
Hoje se impõem aos nossos applausos os nomes das distintissimas senhoras
da comissão executiva do comité, cujos retratos e nomes devem ficar
registrados no salão de honra do edifício que se está construindo, para que,
de futuro, diante delles, se curvem as pobres mães amparadas, recordando-
se de suas benfeitoras e abençoando-as.
40
A inauguração do Instituto de Proteção e Assistência à Infancia foi largamente divulgada
pelo mesmo jornal que preocupou-se em anunciar a participação dos seus ilustres convidados,
destacando a presença do governador do Estado, Severino Vieira, e do Arcebispo da Bahia,
A.H. Silvestre de Faria , fato que indica o envolvimento do poder público, Igreja e iniciativa
privada na assistência às crianças pobres.
41
Em 11 de agosto de 1919, o Governo do Estado
autorizou a concessão “de 24 contos para pagamento ao Instituto de Proteção e Assistência à
Infancia, das subvenções que lhe são devidas por ter como fim de auxiliar a fundação do hospital
para creanças”.
42
Um mês antes o governo já havia liberado dois contos de réis para auxiliar
o Instituto de Proteção e Assistência à
Infancia.
43
Estes fatos só reforçam a idéia de que o sentimento de infância, nas primeiras
décadas do século XX, esteve diretamente ligado a atividade assistencial.
44
40
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 12 fev.1904.
41
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 15 jul. 1904.Tudo indica que o jornal equivocou-se, apontando Silvestre de
Faria como arcebispo pois, no ano de 1904, encontrava-se exercendo esta função o religioso Jerônimo Tomé
da Silva.
42
Diario de Noticias, Bahia, p.3, 11 ago.1919.
43
Diario de Noticias, Bahia, p.1, 16 jul. 1919.
21
Todavia, a existência de uma noção de especificidade da criança pode ser encontrada,
igualmente, em notícias que divulgavam serviços médicos, livros e divertimentos para as próprias
crianças, ou através de recomendações de puericultura para o recém-nascido. Em 1916,
encontramos o Dr. Martagão Gesteira, que posteriormente fundou a Liga Contra a Mortalidade
Infantil,
45
anunciando a existência de um consultório em sua residência (Largo do São Pedro),
destinado a moléstias específicas de crianças.
46
Uma reportagem do Diario da Bahia intitulada “Livro pra creanças” divulga 27 livros
específicos para os infantes, entre eles o de “Poesias Infantis” de Olavo Bilac, “Várias Histórias”
de Machado de Assis e “João Felpudo, histórias alegres para creanças com ricas gravuras”.
47
A
notícia “Diversões Infantis” assim informava: “No sabbado, 12 e na quinta-feira, 15 haverá das 4
as 6 horas da tarde, diversões infantis, inclusive cinema, especialmente para creanças. Estas, até
a edade de 8 annos, terão entrada gratuita”.
48
A idade de 8 anos, aparentemente, marcava o fim
da primeira infância e o início da chamada idade escolar.
Observamos, acima, que a preocupação com o lazer, saúde e educação de meninos e
meninas esteve voltada, a princípio, para crianças dos segmentos médios e altos da
sociedade e que, no início século XX, o reconhecimento dessa fase da vida propagou-se
também para as camadas populares, só que através de um projeto de reforma dos costumes, de
um treinamento para a docilidade no trabalho e de busca de estabilidade habitacional e familiar.
44
Souza denomina de “[...] economia de caridade ao conjunto de idéias e práticas assistenciais privadas e
públicas que atuaram entre o último quartel do século XIX e o primeiro deste século, possuindo como objetivo
comum, resolver o problema social e operário. A principal característica da economia de caridade é uma
associação informal entre Estado e as instituições privadas de cunho assistencial, onde as instituições
públicas e privadas se aproximam e participam de um esforço comum para tentarem resolver os problemas
originados da questão social e operária”. (SOUZA, 1996, p. 103-129).
45
A própria existência de uma liga, criada em 17 jun.1923 e voltada, especificamente, para evitar as doenças e
mortes das crianças, já demonstra a consciência da particularidade infantil entre um setor da sociedade - os
médicos.
46
Diario da Bahia., Bahia, p.2, 04 jun. 1916.
47
Ibid., p.1, 17 abr. 1904.
48
Ibid., p.2, 12 set. 1919.
22
A escola pública e algumas escolas particulares de caráter assistencial tiveram papel fundamental
no processo de disciplinarização do trabalho, por serem instituições modernas voltadas para a
educação da infância e da juventude e que buscavam a socialização da criança mediante um
processo pedagógico analítico e disciplinar. De acordo com esta pedagogia, a criança, por ser
um ser distinto do adulto, deveria desenvolver separadamente deste último um aprendizado e
assim capacitar-se para a vida. Este tipo de proposta educacional contesta a existência do
aprendiz, menino de aproximadamente 7 a 16 anos de idade, que separava-se muito cedo de sua
família para viver e aprender um ofício com um mestre, uma prática característica das sociedades
tradicionais.
Em Salvador, escolas públicas que funcionavam precariamente e escolas fundadas por
instituições, tais como o Abrigo dos Filhos do Povo, procuravam fornecer instrução elementar
para as crianças pobres e visavam, sem contudo concretizar seus objetivos, profissionalizá-las em
ofícios mecânicos. Por conta disto, constavam no regulamento desta última instituição, fundada
em 28 de junho de 1918, as seguintes regras:
ART. 1º (A) - Fundar escolas para crianças dos sexos masculino e
feminino, só admitindo a frequência em suas aulas as creanças
desamparadas, fillhas de paes indigentes e as que estiverem sob o domínio
dos paes, parentes, ou tutores que as perveriam (sic) ou as habilitem ao
exercicio de industrias criminosas.
(K) - O Abrigo, logo que esteja apparelhado e possua area sufficiente,
anexará a educação artistica para as creanças e habilital-as-ha ao
entendimento e cuidado das cousas da lavoura.
49
Em 1926, com a morte do fundador do Abrigo, Raymundo Frexeiras, o governador
Goes Calmon garantiu total apoio à instituição. Em telegrama reproduzido pelo Diario da Bahia,
Calmon declarava:
23
Dolorosamente surprehendido com a noticia do fallecimento do amigo
Raymundo Freixeiras, cujo devotamento à causa da instrução só encontrava
simile entre os seus maiores apostolos, venho assegurar à instituição que
fundou, que é dever da União do Estado patrocinarem efficazmente, como
a melhor homenagem à sua memória.
50
O reconhecimento da especificidade da infância para as crianças de baixa renda e a
busca de profissionalização das mesmas se intensificaram no governo do presidente Getúlio
Vargas, muito embora, desde o século XIX, com a criação de instituições como a do Orfanato
de São Joaquim, este projeto já se esboçasse. Desta forma, a disciplinarização do trabalho da
criança, a partir dos anos 30, fez parte de um projeto concebido pelo Estado
para assegurar “o seu programa social de política do trabalho”, o que implicava criar, desde a
tenra idade, um “trabalhador despolitizado, disciplinado e produtivo”.
51
A política corporativista
introduzida com o governo Vargas, a partir de 1930, e intensificada no Estado Novo apostava na
substituição dos conflitos de classe pela idéia da colaboração entre classes. Utilizando-se de
mecanismos como as leis trabalhistas, meios de comunicação e práticas assistenciais para o
trabalhador e sua família, buscou-se inculcar, nestes últimos, o ideal de trabalhador ordeiro e
produtivo.
O ideal de disciplinarização através do trabalho convivia com ações de retirada violenta
das crianças pobres das ruas. Em 1901, por exemplo, foi editada no Diario da Bahia uma
notícia sobre crianças pobres, relatando que “O Dr. chefe de polícia recommendou por officio
ao Dr. commissario que, tomando conhecimento de uma noticia
inserta na Bahia no dia 4 do corrente, acerca de menores vadios, proceda a inquerito,
scientificando o resultado das providências”.
52
Nesse mesmo ano, relata o jornal:
49
Diario da Bahia, Bahia, p.3, 17 mar. 1918.
50
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 25 ago. 1926.
51
LENHARO, 1986, p.14-15.
52
Diario da Bahia, Bahia, p.6, 8 jan. 1901.
24
O Sr. Dr. Cassiano Lopes, a bem da tranquilidade publica, já deu
providências afim de fazer cessar os abusos de um grupo de menores
vadios que se reunem no largo do Tororó e constantemente vivem na
prática do jogo do busio, insultando os transeuntes e perturbando o silencio
publico.
53
A solução dada para o problema foi a retirada desses menores da rua e o seu envio à
Escola de Aprendizes de Marinheiros. O aparato policial era usado até mesmo para capturar
menores que abandonavam a família.
54
Um outro destino dado às crianças infratoras ou
simplesmente meninos de rua era enviá-las à Casa de Correção, instituição carcerária destinada a
adultos.
55
Foi o caso do menor João dos Santos, processado por crime de furto no ano de
1903.
56
O caráter violento e repressivo do aparato policial fica patente quando verificamos o
espancamento de João dentro Casa de Correção.
57
Este fato comprova quanto a prática nem
sempre esteve de acordo com o discurso disciplinador e reformista das elites. A polícia, com o
consentimento da sociedade, não hesitava em utilizar-se do seu aparelho repressor para controlar
a infância marginal-marginalizada e assim manter a ordem. É o que podemos perceber com a
reportagem “Menores que prometem”:
[...]o Sr. Subcommissario do districto do Pilar conseguiu prender uma
quadrilha de menores que por aquelle districto entregavam-se a practica da
gatunagem, visitando os quintaes alheios, de onde furtavam galinhas,
roupas, etc.
58
53
Ibid., p.1, 19 mar. 1901.
54
Diario de Noticias, Bahia, p.2, 5 jun.1903.
55
De acordo com Assis, o presídio era destinado apenas aos homens, ficando as mulheres confinadas na
Casa de Correção. ( ASSIS, 1996, p.69).
56
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 18 jan. 1903.
57
Ibid., p.2, 28 jan. 1903.
58
Diario de Noticias. Bahia, p.3, 19/05/1904.
25
Adultos e infanto-juvenis eram presos e encarcerados conjuntamente, sendo estes últimos
acusados, normalmente, da prática da vadiagem . Um menor de dezesseis anos de idade que,
segundo o Diario da Bahia de 1930, possuía problemas mentais, foi preso e barbaramente
espancado pela polícia. Este menino, residindo em Salvador desde os quatorzes anos, havia
fugido de Itabuna, onde residia com sua família . A prisão do menor foi efetuada porque este
havia se atracado com outro menino, no Mercado Modelo. Relatando os atos de violência da
polícia, o jornal informava:
[...]o guarda noturno 43, prendeu-o e o levou para o xadrez da delegacia da
2 º circumscripção. Alli, naquelle antro infecto, onde germinam os mais
tenembrosos pensamentos de vingança, ..., elle ficou até as 18 horas da
segunda-feira.
Na segunda-feira, antes de ser solto, o sargento Chrispim, habilissimo em
taes assumptos, applicou-lhe uma serie disciplinar de vergastadas, com um
cipó caboclo e depois para que não ficassem as marcas das cipoadas em seu
repertorio de medicamentos caseiros e perversos, elle despejou nos logares
onde o cipó tinha cantado, creosoto.
O enfermeiro foi muito farto, na appplicação dos medicamentos, [... ],
despejou dentro do conducto auditivo esquerdo, a ponto do menor não estar
ouvindo direito.
59
Apesar de denunciar a violência policial, o jornal fez questão de enfatizar que não queria
[...]absolutamente, culpar a policia pela sua acção em afastar do seio de
nossa sociedade elementos indesejáveis [...] Se o menor soffre de
alienação mental, que o ponham no asylo, pois ainda pode ser um elemento
que sirva com seu concurso para algum trabalho util ao estabelecimento.
60
A prisão de menores foi tão comum em nossa sociedade que, ainda em 1931,
houve a necessidade do Sr. José Maria de Lima encaminhar ao juiz de menores uma ordem de
Habeas Corpus em “favor de menores que se acham ilegalmente presos e constrangidos na
59
Diario da Bahia, Bahia, p.5, 23 maio1930.
26
Casa de Correção”.
61
Condenava-se todo indivíduo, fosse ele criança ou adulto, que tivesse a
intenção de gerir, independentemente, o tempo destinado ao trabalho e ao lazer e que, portanto,
rejeitasse as regras de um trabalho assalariado. Para tanto, a polícia deveria funcionar como
mantenedora da ordem e protetora da propriedade privada. Foram presos, por exemplo, “no
Districto de Sant’Anna, Sebastião Francisco de Oliveira e os menores Laudelino Sérgio Pinheiro
e Honorio João Martins, o primeiro por estar promovendo desordens, e os últimos por serem
encontrados na prática de vadiagem”.
62
Analisando a situação da criança e do adolescente, entre
1920 e 1950, Ailton José Morelli constata para a cidade de São Paulo uma prática de repressão
policial semelhante, embora mais intensa, que a encontrada para Salvador em nossos estudos.
Para ele, o aparato policial “foi chamado a ação nos períodos mais conturbados e nos períodos
de endurecimento governamental”.
63
Dentro dessa perspectiva de repressão à vadiagem infantil
encontramos o caso do menino Bonifácio, aprendiz de serralheiro que, ao tentar gerir sua própria
vida e, talvez, escapar de uma provável exploração e violência cotidiana, fugiu da oficina de
José Cyriaco Barbosa, sendo encontrado a vagar pelas ruas da Conceição da Praia; foi preso e,
posteriormente, entregue ao seu mestre.
64
Esta evidência constitui exemplo típico da persistência
de práticas pré-capitalistas na utilização do trabalho infantil. A caça a Bonifácio e a entrega deste
ao seu mestre nos remetem, também, à prática escravista de anunciar nos jornais fugas de
moleques escravos com o intuito de devolvê-los aos seus respectivos proprietários. Não existiu,
no Brasil, uma legislação especifica para o menor até 1927, quando foi criado o Código de
60
Ibid.
61
Diario da Bahia, Bahia, p.2, 01 out. 1931.
62
Ibid., p.2, 03 abr.1904.
63
MORELLI, 1997, p.156.
64
Diario da Bahia. Bahia, p.1, 08 mar. 1903.
27
Menores.
65
A ocorrência, nos periódicos baianos, de notícias como: “O secretario de policia e
Segurança Publica pretende mandar construir na Casa de detenção mais dois pavimentos. Estes
serão destinados, um para menores (grifo nosso) , e outro para as mulheres. As despesas
serão custeadas com o auxilio do Estado”,
66
indica que, apesar de o sentimento de infância ter se
instalado, paulatinamente, com a República, em Salvador, a idéia de repressão policial às
crianças não foi descartada. As elites letradas de Salvador, mesmo tendo a percepção da
necessidade de separar os pequenos infratores dos adultos, o que expressava um
reconhecimento da particularidade da infância, nem por isso deixaram de vê-los como um caso
de polícia.
Infância delinqüente, menores delinqüentes, crianças vadias foram algumas das
expressões encontradas nos periódicos citados para designar a criança infratora e/ou
abandonada. Fernando Torres Londono
67
defende a hipótese de que, na passagem do século, a
palavra “menor” deixou de expressar uma faixa de idade para representar a idéia de criança
pobre ou infratora. Entretanto, para o período que nos propomos estudar, Salvador,
aparentemente, não adotou tal critério classificatório. Nas notícias anunciando prisão de crianças
encontram-se sempre adjetivos cujo propósito é enfatizar que, além de menores de idade, estes
eram também vadios, gatunos e desordeiros. O que nos leva a concluir que a palavra “menor”,
encontrada nas reportagens, foi sempre utilizada para definir a responsabilidade ou a
irresponsabilidade de uma pessoa perante a lei. O Diario de Notícias, de 1911, noticia a
presença de “garotos desordeiros” que trocavam entre si pedradas na Rua Sete de Setembro.
65
O Código de Menores foi criado pelo decreto nº 17.943-A- de 12 de outubro de 1927. De acordo com o Art.
1º do capítulo I, deveria ser dada assistência e proteção ao menor de 18 anos, considerado abandonado ou
delinqüente. Sobre o menor delinqüente, o Art. 68 afirmava que a criança com menos de 14 anos não poderia
ser submetida a processo penal de espécie alguma, devendo a autoridade competente promover a sua
colocação em asilo ou casa de educação, caso fosse abandonada. Para o indivíduo entre 14 e 18 anos, previa-
se um processo especial que incluía seu recolhimento em uma escola de reforma por um prazo de cinco anos.
66
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 12 fev. 1926.
28
Inicia dizendo: “Os menores Armando da Silva e Diogenes Luiz, este de 9 e aquelle de 12 annos
de edade”.
68
Logo depois refere-se a estas crianças como meninos perigosos. Também usando o
termo “menor”, acompanhado da palavra “gatuno”, o mesmo jornal noticia a existência de “uma
quadrilha de menores gatunos que ultimamente tem comettido toda a sorte de furtos no bairro
comercial”.
69
Casos de agressão física, estupro e desaparecimento de crianças são descritos
com o recurso à palavra “menor”. Um exemplo é a notícia do desaparecimento do “menor
Thimistocles Ambrosio dos Santos, por alcunha Nosinho, de cerca de oito anos, côr parda,
vestido de calça escura rota no joelho, descalço e sem chapéu”.
70
A própria forma utilizada por
Jorge Amado,
71
“Capitães de Areia”, para designar as crianças pobres e órfãs da cidade,
demonstra a pouca intimidade do escritor, e provavelmente do conjunto da própria sociedade,
com o termo “menor” representando delinqüência, criminalidade e desamparo da criança.
Da mesma forma que Londono, Morelli, nos seus estudos acerca do atendimento à
criança e ao adolescente, tendo como ponto de partida o Código de Menores de 1927,
afirma ter este código contribuído para construir a diferença entre criança e menor. Para este
autor, o código possibilitou que o Estado trouxesse “para si o direito de punir, talvez a última
parcela da sociedade brasileira, as crianças”.
72
O saber jurídico atribuía como causa das
infrações infantis o mau exemplo familiar e, por isso, defendia ser fundamental, para a educação
das crianças, a transferência do pátrio poder da família para o Estado. A atuação judiciária e as
ações do Estado nesse campo, segundo Morelli, contribuíram para construir, entre a população,
67
LONDONO, 1995.
68
Diario de Noticias, Bahia, p. 2, 13 set. 1911.
69
Ibid., p.1, 22 nov. 1910.
70
Ibid., p.7, 7 out.1910. É interessante ressaltar que a menção à inexistência de um chapéu terminou por nos
revelar, também, aspectos dos costumes e vestimentas de um menino de oito anos. Além disso, a calça rota e
a falta de sapatos denotam a baixa condição social da criança.
71
AMADO, 1996.
72
MORELLI, 1997, p.148-149.
29
a idéia de que a criança infratora não só possuía inimputabilidade como impunidade, uma vez
que a conduta adotada pelo Estado, no caso de infração de menor, era enviá-lo a institutos
disciplinares e/ou liberdade assistida, o que impedia que a criança fosse, teoricamente,
encarcerada. Teria, da mesma forma, introduzido, na mentalidade da população, a idéia de um
juizado capaz de resolver todos os problemas das famílias pobres, contribuindo para o aumento
de pedidos de internação de crianças pelos próprios pais. Contudo, “o atendimento às crianças e
aos adolescentes que foi formado sob a idéia de amparo social, apesar da inimputabilidade, ficou
caracterizado pelo cunho punitivo e às vezes muito violento”.
73
Consideramos correto a interpretação de Morelli sobre o Código, não obstante
acreditarmos que a atuação deste, juntamente com o poder judiciário, quando se tratava da
criança pobre e/ou infratora de Salvador, deva ser relativizada. Como postulamos anteriormente,
não encontramos evidências de uma introjeção, por parte das elites letradas da cidade, do
conceito de menor enquanto sinônimo de delinqüência, nem uma atuação tão intensa do
judiciário. Em Salvador, principalmente, ao contrário de São Paulo, não existiu nada no plano
jurídico ou institucional que indicasse uma atuação consistente do judiciário em relação ao menor
delinqüente, apesar das elites baianas estarem totalmente informadas sobre as discussões acerca
da necessidade de implantação de uma legislação específica na contenção da criminalidade
infantil. Enquanto em São Paulo foi instituída a lei número 844 de 10 de outubro de 1902, com o
objetivo de atuar sobre a vadiagem e criminalidade infantil e, em decorrência dessa lei, tenham
sido fundados, neste mesmo ano, o Instituto Disciplinar para crianças de 9 a 14 anos, e a Colônia
Correcional para jovens de 14 a 21 anos, na Bahia não existia nada similar.
74
Entretanto, esta
73
Ibid., p.163.
74
Somente no governo Goes Calmon, segundo o Diario da Bahia, p.1, de 19 mai.1928, foi criada uma vara de
menores que ficou a cargo do juiz de órfãos. Porém, segundo esse mesmo jornal, a vara não tinha
30
realidade não impossibilitou que membros das elites se preocupassem com estas questões. Uma
reportagem encontrada no Diário da Bahia, em 1905, denominada de “A Infancia criminosa”,
discutia as vantagens e desvantagens da criação de um tribunal especial para menores, segundo o
modelo inglês.
75
A proposta de contenção da criminalidade infantil com práticas disciplinares,
regeneradoras e de aspecto militar não surgiu com o Instituto Disciplinar. A Escola Aprendizes
de Marinheiros,
76
fundada no século XIX (1840), era um exemplo típico dessa proposta
educacional. Contudo, a existência da instituição não foi suficiente para conter, reprimir e vigiar a
vadiagem infanto-juvenil. De acordo com Walter Fraga Filho, a Escola de Aprendizes de
Marinheiros foi fundada com a intenção de “retirar a juventude das ruas, circunscrevê-la no
âmbito da oficina, da escola, do orfanato e do serviço militar”.
77
Assim, a presença desta Escola
foi importante para controlar a infância infratora e ou abandonada, uma vez que atuava
praticamente sozinha, muito embora tenhamos achado referências sobre a existência de uma
colônia agrícola educacional no ano de 1904, mas que não deve ter tido grande operacionalidade
e mesmo continuidade. Dizia a notícia: excluiu-se da Colônia Agrícola Educadora o menor
Pedro Alexandrino do Nascimento sendo entregue a seu tio João Vieira Barbosa ”.
78
A hipótese
da ausência de continuidade desta escola prende-se ao fato de não termos encontrado, nos anos
posteriores, em jornais ou em documentações específicas sobre segurança pública, quaisquer
informações acerca da mesma. Em 1918, entretanto, preocupando-se com a chamada infância
operacionalidade, uma vez que não houve o cuidado do Estado “em estabelecer escolas profissionais para
abrigar estes infelizes ao léo da sorte”.
75
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 31 jan. 1905.
76
Foram encontradas várias notícias sobre esta escola; algumas enfatizando fuga e captura de alunos como a
apresentada pelo Diario de Noticias de 24 jul. 1919, p.7, outras para notificar a importância desta instituição
no atendimento á criança pobre (Diario da Bahia, Bahia, p.2, 28 jul. 1907), ou para anunciar a admissão ou
recusa de um menor na escola. (Diario de Noticias, p.1, 19 abr. 1910).
77
FRAGA FILHO, 1996, p.119.
31
criminosa, várias matérias sobre a necessidade de uma Escola Correcional foram editadas. Uma
delas, com o título “Cuidemos da infancia”, afirmava:
Na Bahia , cruel destino, não existe cousa alguma que evidencie ter sido
tratado com importância devida tão portentoso assumpto. Tentativas temos
varias; projetos pullulam no Congresso, mas (....) somos uma terra de
projectos; tomol-os innumeros e importantes; falta-nos penas quem os
punha em execução. Mas é mister que salientemos o nome do Dr.
Asclepiades Jambeiro que instituiu a colonia correcional cujos os serviços à
regeneração da juventude foram relevantes e incontestes.
79
Com base no argumento de que constatava-se, na Bahia, uma total ausência de atenção à
criança pobre, a Assistência Judiciária Acadêmica, organização fundada pelos estudantes de
Direito, propôs, em 1918, a instalação de uma Escola Correcional. Em junho deste mesmo ano o
projeto, aparentemente, se concretizou, com a nomeação de um padre para a direção da escola.
De S. Paulo veio um padre para assumir a direção da Escola dos Menores Abandonados. A
princípio, o chefe de polícia desejou entregar a direção da escola a um oficial da Brigada Policial.
A Assistência Judiciária Acadêmica protestou veementemente, por ser a medida contrária aos
princípios de Direito Penal.
80
A fundação dessa escola foi acompanhada de inúmeras críticas,
desde a localização (Quinta dos Lázaros), que consideravam muito distante do centro da cidade,
até o tamanho do prédio capaz apenas de comportar oitenta asilados. Criticavam, igualmente, o
fato de a escola não “preencher os requisitos indispensaveis dos principios mais comesinhos de
criminologia, nada tendo que se pareça com as exigencias actuaes dos systemas correcionaes,
maximé em se tratando de menores que, por isso mesmo, que o são, estão a exigir maior somma
de cuidado e attenção”.
81
78
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 27 ago. 1904.
79
Diario da Bahia. Bahia, p.2, 22 fev.1918.
80
Ibid., p.1, 19 jun.1918.
81
Diario de Noticias. Bahia, p.1, 19 jun.1919.
32
A atuação da Assistência Judiciária Acadêmica na questão da infância abandonada e/ou
infratora demonstra a emergência de um saber jurídico sobre a criança, em paralelo ao
desenvolvimento do saber médico. As fronteiras entre esses dois saberes eram muito tênues,
como comprova a tese do doutorando em medicina, Antônio Ribeiro Gonçalves, intitulada
“Menores Delinquentes”, cujo objetivo era discutir a criminalidade infantil, suas causas
hereditárias e educacionais.
82
Um assunto, que aparentemente deveria ser discutido à luz do saber
jurídico, é desenvolvido por este estudante de medicina dentro de uma perspectiva lombrosiana,
ou seja, analisa-se o crime a partir do tipo físico e da raça a que pertence o indivíduo; desvia-se
do crime para concentrar-se na figura do criminoso, mais precisamente na criança que cometia o
delito. Afirma o autor que “o menino, pois, é cruel e a crueldade se pronuncia com a fraqueza
natural, como o demonstraram o autor da Donna Delinquente (Lombroso),
83
relativamente ao
menino, que é menos sensível, mais cínico e mais feroz. A infância não tem piedade”.
84
Entretanto, argumenta Ribeiro Gonçalves que, apesar do papel preponderante do fator
hereditário na criminalidade, “a educação exerce elevado papel de uma verdadeira seleção
social”
85
, deslocando assim a discussão sobre a delinqüência infantil de uma abordagem
puramente biológica para uma higiênica e sócio-darwinista.
Sobre os limites dos poderes médico e jurídico na sociedade e especificamente acerca
da capacidade que o saber médico tinha para decidir o diagnóstico, tratamento e castigo dos
infratores da lei, Iraneidson Costa argumenta: “Em que pese as infindáveis brigas quanto à
decisão de insanidade e responsabilidade, haveriam de surgir, entretanto, nítidas áreas de
82
AMMS. GONÇALVES, 1902.
83
De acordo com Iraneidson Santos Costa, O homem delinqüente foi a obra clássica de Lombroso, publicada
pela primeira vez no ano de 1876 e que alcançou várias reedições, a última em 1896. (COSTA, 1997, 58). “A
Donna Delinquente” significa mulher delinqüente, havendo uma certa confusão por parte de Gonçalves com a
língua italiana.
84
AMMS. GONÇALVES, 1902, p 20.
85
Ibid., p.21.
33
consenso entre juristas e médicos, o que lhes facultava um espaço de convivência e uma certa
identidade”.
86
Esse espaço de convivência entre saberes que, em muitos sentidos, eram
potencialmente opostos, só foi possível porque ambos não insistiram na busca da determinação
da responsabilidade do réu e sim em analisar a sua periculosidade social.
A preocupação com os cuidados higiênicos e com as questões sociais se intensificou no
decorrer das primeiras décadas republicanas, sendo encontrados, naquele período, projetos e
algumas instituições que se dedicaram à educação da criança pertencente aos segmentos
populares. Este foi o caso da Escola Profissional para Menores, criada por decreto de 27 de
Dezembro de 1932, sob o nº 8225, na interventoria do Capitão Juracy Montenegro Magalhães,
87
ficando subordinada à Secretaria de Segurança Pública, que estabeleceu normas para seu
funcionamento. A Escola de Menores teve sua inauguração e instalação no bairro de Brotas
(zona das Pitangueiras) apenas em 4 de fevereiro de 1933. Seus objetivos não se resumiam à
educação, preocupando-se também com a saúde das crianças, daí encontrarmos no histórico
desta instituição a descrição de que as instalações se efetuaram na região “mais salubre da
capital”.
88
A escola possuía:
[...]sala de ensino técnico, logo depois uma secção de lavatórios e hygiene
Dentaria, installações sanitárias, tendo duas amplas varandas que se
destinam a aula ao ar livre, quatro dormitórios, sendo dois de cada lado do
edificio central, com as respectivas instalações sanitarias e
sufficientemente ventilados, dão accomodações para 360 educandos, dado
o systema de macas que ultimamente está sendo adoptado.
89
86
COSTA, 1997, p. 176.
87
Juracy Magalhães foi um dos interventores que exerceu o Governo da Bahia após a Revolução de 1930 e
que procurou, através desta escola, pôr em prática uma política de valorização do trabalho e do trabalhador .
88
APEBA, SSP. cx 54. PC. 02. Histórico da escola desde sua fundação.
89
Ibid.
34
A preocupação em instalar um espaço aberto para o desenvolvimento de exercícios
físicos talvez indique a presença de uma concepção de que a educação física era um meio de
obter a perfeição da raça. A criação da Escola de Menores provavelmente foi conseqüência de
um ideal de Estado que acreditava ser “um centro integrador de realidades raciais” e que
buscava a disciplinarização do trabalhador desde tenra idade.
90
Acreditamos que a busca de um
Estado centralizado e, portanto, da subordinação do poder local ao nacional que culminou no
Estado Novo, materializou-se em políticas sociais de caráter assistencial, tal como a Escola de
Menores, e na difusão de uma ideologia que assinalava o sistema de educação pelo trabalho
como veículo capaz de promover o desenvolvimento de um país e de seu povo. Construída de
acordo com este objetivo básico, a Escola de Menores adotou uma prática pedagógica
disciplinar característica de organizações militares, onde a imposição de regras, visando a
obtenção de indivíduos úteis e dóceis, se fazia até mesmo pela organização espacial do lugar e
pelo uso de macas nos dormitórios. A rotina imposta às crianças assemelhava-se a de uma
caserna: às 5 horas ocorria o toque de alvorada para que todos levantassem; às 5:30 procedia-se
a arrumação dos leitos, asseio do corpo e revista; entre 5:30 e 6:00 ocorria o café da manhã; às
6 horas da tarde todos deviam estar presentes ao hasteamento da bandeira; de 6 às 7 horas
praticava-se ginástica; e de 7 às 10 assistiam-se aulas nas oficinas. Se isso não bastasse para
indicar o caráter militar da instituição, a própria identificação dos alunos por números e pelo
sistema hierárquico de
patentes seria suficiente. Um dos mecanismos disciplinares adotados pela escola foi o sistema
promocional de patentes. As crianças eram promovidas de simples educandos a cabos e de
cabos a sargentos, podendo também alcançar a função de censor. O uso de
alunos como censor cumpre o objetivo de confirmar a legitimidade do agente de controle
90
SCHWARCZ, 1993, p. 170.
35
e ao mesmo tempo de partilha de poder, ou seja, “o direito de reprimir é repartido entre os que,
habitualmente, só dispõem do dever de suportar a repressão”.
91
A manutenção do poder através
de sua partilha fica bem evidente em uma correspondência enviada ao diretor da escola em 17 de
agosto de 1934:
É meu dever levar ao conhecimento de V.Sº que os educandos seguintes 8-
23-77-59-22-182-208-10-101- pela manhã se encontraram jogando pedra no
sapotizeiro, então o 3º sargento de nº 208-E que tem toda culpa porque
comandava os depredadores. Então eu na minha atribuição recolhi todos a
V. ordem. Cabo 22-10 e 3º sargento 208- peço que esta parte seja punida.
Cabo da Guarda disciplinar. José Antonio Barbosa
.
92
Como resposta, determina o diretor: “ao censor: Sant’Anna, que faça o devido
rebaixamento da guarda disciplinar do educando 208 em substituição eleve em mais um posto o
cabo 12. Quanto aos demais severas repreensões e attendendo por diante em completa exclusão
da Guarda”.
93
Constata-se, desta forma, que a disciplina estava associada a um sistema
hierárquico que podia promover ou punir, rebaixando e degradando.
94
Segundo Foucault, as
disciplinas determinam uma “infra-penalidade”, classificando e reprimindo os comportamentos
que escapam ao sistema tradicional de justiça. Essa “micropenalidade”, presente em oficinas,
escolas e exército, consiste em um tipo de punição cujo objetivo básico é reduzir os desvios.
Para tanto, a punição disciplinar centrada no sistema gratificação-castigo opera com os valores
do bem e do mal e “todo o comportamento cai no campo das boas e más notas, dos bons e dos
maus pontos”.
95
91
COSTA, 1989, p.201.
92
APEBA, SSP. Cx 54, maço 02. Regulamento da escola. Relação numeral de educandos promovidos.
93
APEBA SSP. Cx 54, maço 02. Boletim: Serviço de Vigilância Diurna e Noturna.
94
FOUCAULT, 1987. p.162.
95
Ibid., p. 161.
36
Podemos dizer que a Escola Profissional para Menores estruturou-se, segundo seu
diretor em 1935, de forma a propiciar educação pelo trabalho e para o trabalho, pois:
[...]é graças a elle que o homem se torna disciplinado e organisado. Educa-
lhe o sentimento e o enobrece (...) O homem precisa, pois, trabalhar. Não
pode consumir a vida na doce farniente, não pode ser indolente, porque não
se comprehende a vida sem o trabalho, que dignifica e enobrece.
96
O discurso do diretor estava em consonância com a prática da escola, haja visto que
esta tinha por finalidade fornecer gratuitamente o ensino primário e profissional (técnico-industrial
e agrícola elementar), encaminhando os alunos “na escolha de um oficio, mais conveniente as
suas aptidões naturaes, formando portanto, operarios aptos as diversas profissões”.
97
O projeto
esboçado para a Escola de Menores era de transformar, através do trabalho, as “creanças
desvalidas e viciadas de hoje, em cidadãos de amanhã, para um Brasil melhor”.
98
A realidade social e cultural dessas crianças, entretanto, não se harmonizava com o
projeto dos fundadores e administradores da escola. Não foi tão fácil assim impor-lhes um
projeto normatizador que os transformasse em indivíduos dóceis e subservientes. O dia-a-dia era
recheado de casos de indisciplina, depredações do estabelecimento e fugas de alunos.
Encontramos a seguinte ocorrência : “um aluno quebrou um pedaço de uma das sentinas feito isto
trancou a porta por dentro e pasou para outro corredor afim de encobrir o mal causado “.
99
Neste mesmo boletim, o censor Vicente Grassi de Queiroz comunica ao diretor que, no dia 3 de
dezembro de 1933, mandou recolher:
96
APEBA. SSP. Cx. 54. Relatório apresentado ao exmo. Sr. Capitão João Facó (Secretário de Segurança
Pública) pelo diretor da Escola Profissional para Menores. 1935.
97
APEBA, SSP. Cx 54, maço 02. Histórico da Escola desde sua criação.
98
APEBA, SSP. Cx 54. Relatório apresentado ao Exm. Sr. Cap. João Facó ( Secretário de Segurança Pública)
pelo diretor da Escola Profissional de Menores. 1935.
37
[...]no isolamento desta escola , os seguintes educandos nº 186 e 66, por
que ambos brincando em frente a porta da casinha, resultou quebrarem a
vidraça da referida porta, acrescentando ainda, que o educando nº 66,
armado com este pedaço de arame que remetto-vos anexo, procurava
offender seu colega, que atirando-o o referido pedaço de arame alcançou a
vidraça partindo-a.
100
Como no sistema carcerário, punia-se com o mecanismo de prisão solitária, com
exclusão do convívio social e do direito de formar possíveis alianças e relações de solidariedade.
Mesmo existindo práticas disciplinares e repressivas aplicadas quotidianamente às crianças, elas
resistiam como podiam. Um exemplo de resistência foi uma tentativa de resgate, por parte da
criança, de suas relações familiares. O menor Nelson Antônio de Oliveira fugiu na hora do
“rancho” para visitar a mãe que estava doente e hospitalizada.
101
Esta realidade nos faz pensar na inviabilidade de projetos normatizadores para a infância
pobre e abandonada, dos quais a Escola de Menores fez parte, sempre fundamentados em
propostas dissociadas da situação econômica, social e mesmo cultural do País e dos Estados, as
propostas assistenciais, tais como a Escola de Menores, previam em seu programa metas
totalmente descabidas. O programa dessa escola, por exemplo, previa um ensino agrícola,
necessário para se obter “o respeito à integridade territorial e industrial, aonde quer que eles
estejam, em harmonia com as leis e bons costumes”
102
. Ora, pouca ou nenhuma utilidade teria
um ensino agrícola ministrado em uma escola urbana para
99
APEBA, SSP. Cx 54, maço 02. Boletim de Serviço de Vigilância Diurna e Noturna. 14 jun. 1934.
100
APEBA, SSP. Cx 54, maço 02. Boletim de serviço de vigilância Diurna e Noturna.. 3 de Dezembro de 1933
101
APEBA, SSP, Cx. 54, maço 02. Relatório apresentado pela 2º Circunscrição Policial ao diretor da Escola
Profissional de Menores.
102
APEBA, SSP. Cx 54, maço 02. Histórico da Escola desde sua criação.
38
uma população infantil que fatalmente, ao sair do estabelecimento, permaneceria no centro
urbano. Sem contar a baixa oferta de trabalho no setor secundário (industrial), fruto de um baixo
nível de industrialização do Estado da Bahia. Projetos de caráter paliativo, disciplinar e
autoritário pouco ou nada podiam fazer sem que fosse resolvida a causa da criminalidade infantil,
qual seja, o quadro de desigualdade sócio-econômica da sociedade.
38
Capítulo II
Socialização da criança pobre
Lugar de criança
Qual seria o melhor lugar para se promover a socialização da criança ? A família, a
escola ou o trabalho?
1
Inúmeras soluções vão ser propostas, mas, no âmbito destas, uma idéia
central permaneceu: a aparente ausência de conflitos nesses três espaços. O lar é idealizado
como espaço privilegiado de harmonia; a escola, por sua vez, permitiria transformar a criança no
futuro cidadão servidor da pátria; e o trabalho dignificaria e transformaria o espírito infantil,
preparando-o para desenvolver atividades produtivas e, assim, garantir o seu futuro e o da
nação. Isto porque cada indivíduo é concebido, idealmente, como fazendo parte de um todo, a
sociedade como grande organismo que precisa da solidariedade de todos os seus membros,
independentemente da classe social: o indivíduo só existiria no interior do todo. De acordo com
esta perspectiva, o relacionamento entre pais e filhos, professores e alunos não se manifestaria
como envolvendo, predominantemente, a submissão de um pelo outro. “As relações, do lar à
escola e, deles para o genérico da pátria, diluem-se gradativamente, sustentadas apenas pelo
1
Compreendemos, como socialização da criança, o processo de sua criação e educação, ao menos em tese,
através de formas capazes de garantir o seu bem estar físico e emocional.
39
crivo da moralidade”.
2
São estas idéias, são estas imagens que encontramos nos textos, de
caráter literário ou não, que visavam sensibilizar adultos e crianças para uma nova proposta
educacional, especialmente para uma nova conduta de vida.
No Diario de Notícias, por exemplo, encontramos uma coluna literária voltada
diretamente para crianças, cujo objetivo básico era a moralização dos seus costumes e de suas
famílias. Pequenas histórias que finalizam sempre com lições de moral. Uma delas, intitulada “Os
meninos vadios”, argumenta:
Tres meninos dirigiam-se para a escola. No meio do caminho começaram a
refletir e a conversar.
- Vamos a matta, disse um delles, ali acharemos toda a sorte de lindos
animaesinhos, que nada têm que fazer e brincarão comnosco.
Foram. passaram pela diligente formiga e pela abelha trabalhadora, sem
parar.
Dirigiram-se, porem, ao pintassilgo:
- Brincar ? pois vocês pensam nisso ? Tenho muito o que fazer, eu estou
reunindo raminhos seccos e paina para fazer o ninho.
- Eu, disse o ratinho, estou colhendo provisões, para quando chegar o inverno
- Eu, falou a pombinha branca, tenho muitas coisas para levar aos meus filhos
que me esperam.
- Eu, respondeu-lhes a lebre, teria muito prazer em correr pelos campos com
vocês, mas não fiz a toilette, ainda não arrumei minha casinha.
- E tu gentil regato ? exclamaram os pequenos fujões, não queres brincar
comnosco?
3
E assim segue toda a narrativa com animais e seres da floresta rejeitando as crianças,
pois todos possuem ocupação e não devem se dar o direito ao lazer. Desta forma, “os meninos
aprenderam a lição, reconheceram que o prazer é bom, mas que elle é a recompensa do
trabalho”.
4
É um tipo de discurso que pretende formar a criança dentro dos novos ritmos
impostos à sociedade pela técnica e pela máquina. A criança devia voltar suas energias para
2
LENHARO, 1986, p. 49.
3
Diario de Noticias, Bahia, p.1, 27 mar. 1903.
4
Ibid.
40
o trabalho de forma rápida, precisa e racional, ou seja, com o total controle sobre suas paixões e
desejos.
Para a criança baiana, entretanto, na maioria das vezes, trabalhar significava sujeitar-se a
privações, violência física ou, no mínimo, amadurecer precocemente. O menino Manuel Maria da
Conceição, de 9 anos de idade, vendedor de bilhete de loteria, é um caso típico de criança que,
tendo a rua como local de trabalho, ficava sujeito à violência do mundo adulto. Esse garoto foi
chicoteado por motivos ignorados em plena Ladeira da Montanha.
5
A forma encontrada pelo
suspeito do delito, Arnaldo Baleeiro, para punir o garoto, ou seja, o chicote, é um tipo de
violência característico do mundo escravista. Por outro lado, atividades informais, como
vendedor de balas e doces ou “moleque do tempero”, possibilitavam que a criança fugisse do
controle direto de seus patrões e abriam brechas para que a mesma se permitisse ter momentos
de lazer. Além do que, em algumas circunstâncias, os limites entre o “trabalho honesto” e prática
de pequenos delitos ficavam bastante tênues. “Theodoro do Nascimento é o nome de um menor
vendedor de queimados e que, hontem, arribou com a bandeja de uma patrôa, na rua do
Coração de Jesus, alem de ter se apoderado do dinheiro também”.
6
Innocencio dos Santos,
empregado do Hotel das Nações de Cachoeira, entrou em uma loja do bairro comercial de
Salvador para comprar um chapéu, sendo encontrado em seu poder uma grande quantidade de
dinheiro e trinta e oito charutos, o que levou a sua prisão por suspeita de furto.
7
Crianças que trabalhavam exercendo pequenas atividades domésticas com famílias se
tornavam, geralmente, alvo da violência diária de seus patrões. O caso do pequeno Quintinino é
bastante demonstrativo e ao mesmo tempo instigante porque, apesar dos maus tratados
impingidos pelo patrão (puxão de orelha), o jornal noticia a violência que este menor teria
5
Diario de noticias, Bahia, p.1, Diario de Noticias, 21 jul. 1904.
6
Ibid., p.1, 09 jun. 1910.
41
praticado contra um cavalo de propriedade do referido patrão, e não o inverso. O argumento do
articulista, neste caso, saiu em defesa da propriedade e não da infância. O próprio título da
notícia “Pequeno perverso” já denota a prévia condenação da criança que se atreveu a destruir
uma propriedade de grande valor, tanto no aspecto monetário quanto pelo fato do cavalo ser o
instrumento que garantia o sustento do patrão Salustiano e de sua família. Em nenhum momento
se cogitou que a criança pudesse ter reagido violentamente contra o cavalo por não mais suportar
os maus tratos e por não poder eliminar diretamente o seu algoz.
8
Se o mundo do trabalho era hostil, a família também nem sempre foi o tão falado e
almejado espaço de harmonia, solidariedade e proteção para as crianças. Tanto que
encontramos, no ano de 1903, a seguinte reportagem: “Raphael Archanjo Fernandes da Silva,
viuvo residente na Baixa do Barbalho, espanca barbaramente, todos os dias, seus filhos menores,
Felix Archanjo e Joanna”.
9
Condenando, igualmente, o espancamento de crianças por familiares,
o Diario de Noticias notifica, sob o título “Perversidade de Mãe”, o fato de Maria José Borges,
moradora às portas do Carmo, com o pretexto de punir a traquinagem de um filho seu, de idade
de 4 anos, ter “introduzido uma braza na bocca do menor, o qual foi levado à assisttencia por seu
pae o arabe Jorge Culy, para ser medicado. Não satisfeita com o proceder deste, atracou-se-
lhe, ferindo-o com uma lata”.
10
Da mesma forma, mas buscando estigmatizar a figura da
prostituta, condena-se uma mãe “decahida que reside no predio nº 39, à ladeira da Praça, a qual
espanca, do amanhecer à noite, uma pobre creança, como se fora esta um bicho e não um
adorno da infancia desprotegida”.
11
Esta reportagem deixa entrever, também, a concepção que o
autor tinha da criança enquanto ser frágil e merecedora de atenção especial. Além da
7
Diario de Noticias, Bahia, p.1, 24 dez.1904.
8
Diario de Noticias, Bahia, p. 7, 22 jul.1919.
9
Diario da Bahia. Bahia, p. 1, 09 abr.1903, p. 1.
10
Diario de Noticias, Bahia, p. 2, 02 jan. 1919.
42
constatação de um sentimento de infância nesta narrativa, bem como a preocupação em
demonstrar de fato a
incompatibilidade da maternidade com a prostituição, é provável que esta notícia seja evidência
de que a criança, realmente, sofria agressões físicas. A situação de violência em que se
encontrava o menino Victorio, com 8 anos de idade e morador do distrito de Brotas, era ainda
mais grave. Essa criança foi agredida por seu pai “que lhe arremessara o machado”.
12
Se os inúmeros casos de violência contra crianças por membros da família não fossem
suficientes para demonstrar que esta, nem sempre, era o almejado espaço de harmonia e
solidariedade, o simples fato de encontrarmos reportagens que narram fuga de crianças é
bastante revelador. O menor Antônio Augusto Peixoto, fugindo da casa dos seus pais em Aratu,
Sergipe, foi capturado pelo chefe de polícia em Salvador.
13
Não podemos ter certeza quanto ao
que levou esta criança a percorrer sozinha a distância que separa o Estado de Sergipe do Estado
da Bahia. Mas, podemos imaginar que, provavelmente, não estava nada satisfeito com sua vida
em família. Já o menor Manoel Fellipe da Silva ficou três dias foragido de casa, situação que
pode indicar, igualmente, a sua insatisfação com a família.
14
O descontentamento com a família,
gerado muitas vezes pelos maus tratos, provoca, até os dias de hoje, muitas fugas. Entretanto, em
relação a fugas de menores de suas casas, não podemos deixar de levantar uma outra hipótese,
como a necessidade de aventura, muito comum entre crianças, embora acreditemos que o gosto
pela aventura por si só não explica a fuga. Houve casos de fugas disfarçadas. Maria Martinha
dos Santos, moradora da Baixa de Quintas, recorreu ao Diario de Noticias para
procurar seu filho Manoel Bispo dos Santos que, dezenove dias antes, mandou que ele fosse
11
Ibid., p.2, 16 set.1916.
12
Diario de Noticias, Bahia, p.2, 16 maio.1903.
13
Ibid., p.5, 06 abr. 1910.
14
Diario da Bahia, Bahia, p.2, 14 jan.1905.
43
“a uma venda proxima, de onde nunca mais regressou ao lar, ignorando a aflita mãi o destino que
o menino tomou”.
15
O castigo físico que, em alguns casos, constituía o catalisador da fuga, não foi o único
ato de violência familiar sobre a criança. Exemplos de incestos e estupros também compõem a
lista de arbitrariedades impostas pelo universo adulto à infância. Ao contrário do que pensa o
senso comum, o abuso sexual praticado, às vezes, pela própria família da criança, não é algo
exclusivo das sociedades ocidentais contemporâneas. O que, aparentemente, representa o novo
é a reação de revolta e de não aceitação, que muitas vezes ocorre atualmente. Mas encontramos
mesmo esse sentimento entre as elites letradas de Salvador, desde os primeiros anos
republicanos. Em 1926, por exemplo, o jornal Diario da Bahia relata um incesto praticado por
José Augusto do Sacramento à suas duas filhas, condenando-o veementemente. Desde o título
“pae monstro! Quer à viva força, maltratar as filhas”, percebemos a indignação do redator por tal
prática
16
. Acreditamos, assim, que a descontinuidade pode não estar somente na indignação, mas
também na punição desses atos e em uma maior disposição das famílias e das comunidades em
tornar público o que antes era considerado de caráter estritamente privado. Segundo Da Matta,
a casa, metáfora para família, é concebida como espaço de harmonia,
[...]uma área especial: onde não existem indivíduos e todos são pessoas, isto é,
todos que habitam uma casa brasileira se relacionam entre si por meios de laços
de sangue, idade, sexo e vínculos de hospitalidade e simpatia que permitem fazer
da casa em uma metáfora da sociedade brasileira.
17
Assim, oposição, a rua simboliza o perigo. Deste modo, não é difícil entender as
dificuldades que as famílias baianas tinham em revelar seus segredos.
15
Diario de Noticias, Bahia, p.2, 19 abr. 1904.
16
Diario da Bahia. Bahia, p.3, 10 ago.1926.
44
Vejamos alguns casos de incesto e a reação da imprensa: “Pae desalmado e
Monstruoso. Um arabe que deshonra a propria filha - a victima, pagando uma promessa ao
senhor do Bonfim, sobe a ladeira que vae ao templo - de joelhos ficando estes dilacerados”.
18
Com este título, o jornal noticia, exaustivamente, a vida de infortúnio que a menina Maria do
Carmo foi obrigada a levar, devido às inúmeras investidas sexuais do pai. Esta criança era filha de
uma união consensual que não havia dado certo, entre um comerciante árabe e uma empregada
doméstica baiana. A mãe de Maria, desejando que essa tivesse uma vida melhor, entrega-a com
10 anos de idade ao pai.. Como este já havia constituído nova família e se mudado de Salvador
para Rio do Baço, Ilhéus, para lá se dirigiu também a menina. Foi nessa localidade que se
desenrolou todo o drama. Aproveitando-se da ausência da madrasta e “na propria sala, saciou
finalmente os seus desejos horripilantes. Depois de practicado o acto infamissimo Jorge Felippe
obrigou sob promessas de assasinio, a sua filha a nada dizer a madrasta”.
19
Mas não parou por
aí e a menina continuou por um logo período sendo violentada, mesmo depois do abuso ter sido
descoberto pela madrasta. Aliás, o procedimento desta última quando tomou conhecimento da
situação de sua enteada, o silêncio e a falta de credibilidade na palavra da menina, demonstram o
embaraço de estar envolvida em situação que colocava em cheque a sua própria vida afetiva e
familiar. Este caso é bastante demonstrativo, pois deixa transparecer as possibilidades de
violência sexual que uma criança do sexo feminino podia e pode sofrer dentro da própria família.
Além de indicar o uso do poder paterno para oprimir e garantir o silêncio da criança diante da
continuidade dos abusos sexuais. O pai de Maria não se restringiu apenas a ameaças físicas para
conseguir o silêncio e a conivência da menina. Procurou convencê-la que seus atos eram normais
e resultado do afeto que todo pai sente pela filha, ou seja, tentou justificar suas atitudes
17
MATTA,1997, p.53.
18
Diario da Bahia. Bahia, p.8, 07 fev. 1933.
45
universalizando-as. “Todos os paes que teem amizade aos filhos, assim é que fazem e já está
moça e eu não lhe vou por no collo...O agrado que lhe posso fazer é este”.
20
Há mais dois pontos que devemos ressaltar sobre este caso. O primeiro diz respeito à
reação de repúdio da imprensa, que chega a descrevê-lo em detalhes e sempre com expressões
de indignação. O segundo nos remete à importância dada às crenças populares e aos poderes
sobrenaturais para solucionar problemas cotidianos, em detrimento da justiça dos homens. A
menina, desejando livrar-se do seu pai não recorre à justiça, mas pede através de carta à sua
mãe, que esta procurasse um:
[...]nagô e dê fim a elle. Vai essa medida é o tamanho delle mamãe, garante
pagar o trabalho mas só pode ser depois de pronto porque ella (a madrasta)
não pega em dinheiro...Mamãe se vmcê fizer um trabalho terminado ainda
podemos ser feliz; mais pelo contrario só verá infelicidade.
21
Assim, Mariazinha, como era chamada pelo jornal, buscou sua libertação através de
um feitiço e ao que tudo indica seria feito por um negro de descendência nagô ou que se dizia
nagô, cujo propósito era levar o pai à morte. Sua mãe, todavia, recorreu à justiça, tornando o
seu caso público.
As dificuldades encontradas por Mariazinha em tornar público seu sofrimento podem,
igualmente, ser explicadas pela relação de submissão à autoridade do adulto. Ensinamos as
crianças a serem obedientes e meigas com todos os adultos que cuidam e são responsáveis
por elas. A figura paterna é inquestionável, pois, a priori, simboliza
19
Ibid.
20
Diario da Bahia, Bahia, p.8, 7 fev. 1933. Segundo Leví-Strauss o tabu do incesto faz parte da regra de
reciprocidade necessária para manter uma comunidade coesa. As relações matrimoniais exogâmicas
representam a ampliação social desse tabu. Sobre a universalidade desta prática e a repugnância que a mesma
gera, o autor afirma “que a psicanálise descobriu que o universal não é a repugnância diante das relações.
incestuosas, mas sim a sua busca”. (LÉVI-STRAUSS, In: CANIVACCI (Org.), 1981).
21
Ibid., p.8.
46
segurança e estabilidade para a família. O pai dessa menina foi intimado a comparecer à justiça
de Ilhéus e, posteriormente, a de Salvador, se esquivando entretanto das acusações e, até o
momento da reportagem, não havia sido preso. Mas Mariazinha voltou para Salvador,
libertando-se, ao que parece, do pai. Por essa conquista não esqueceu o seu lado religioso,
agradecendo ao Senhor do Bonfim, a quem fez promessa. Observa-se também, neste caso, a
convivência entre universos religiosos distintos, o candomblé e o catolicismo.
O incesto não foi a única forma de violência sexual que crianças e adolescentes do
sexo feminino enfrentavam. Estas estavam sujeitas a estupros praticados por primos, colegas
de brincadeira, amigos da família, vizinhos ou desconhecidos. Acredito mesmo que este tipo de
violência atravessava as classes sociais, acontecendo inclusive nas “melhores famílias”.
Contudo, a divulgação de tais casos limitava-se, na maioria das vezes, a crianças pertencentes
aos segmentos populares.
A tendência da imprensa era a de expressar indignação diante de tais ações,
denunciando-as e exigindo punição. Com o título “Estupro e inquerito”, o Diario de Noticia
informou sobre um caso encaminhado pelo subdelegado do distrito de Santo Antonio, que
envolvia uma criança de 10 anos e um homem chamado Serapião Francisco da Silva, morador
de lugar denominado Campo Seco. “Serapião, o protagonista de tal perversidade, foi preso
em flagrante, achando-se recolhido à Casa de Correção”.
22
Pode-se constatar a indignação do
jornal e o estado de pobreza da família da criança quando o redator afirma que “O crime é
inaffiançavel, aguardando aquela autoridade documentos comprobatorios de pobreza, afim de
remeter o processo ao Sr. Juiz preparador da 2º circumscripção criminal”.
23
22
Diario de Noticias, Bahia, p.5, 19 ago.1910.
23
Ibid.
47
Menores adolescentes podiam buscar em uma criança a oportunidade de iniciação
sexual. “O menor Valeriano José Paulo 16 annos de edade, em sua residencia, à rua do Jacaré,
violentou, ante hontem, uma menina de 7 annos de edade, filha da sra, Belmira de Tal”.
24
Um
indicativo de que a criança pertencia a uma família pobre está na pouca preocupação do
redator em informar o sobrenome da mãe. O estupro dessa criança também foi visto como
algo revoltante, ao ponto do réu, também um menor, ter sido punido com a prisão.
Houve casos em que o abuso sexual veio precedido do abandono da criança. Maria de
Jesus, de idade aproximada entre 6 a 7 anos, por exemplo, teve sua vida desde cedo marcada
por sofrimento, desprezo e exclusão. Fugindo da seca com sua mãe, foi entregue por esta aos
cuidados de um policial destacado na cidade de Vitória da Conquista. A partir daí, sua vida de
infortúnios intensificou-se, chegando ao limite com o estupro praticado por seu suposto
protetor. O caso de Maria foi à justiça e, no auto de perguntas dirigido à menor, esta declarou
ser constantemente maltratada pelo soldado José Pereira Pinto e sua mulher. Este, informa,
“Frequentemente lhe batiam chegando muitas vezes o tal soldado a lhe queimar as mãos,
aquecendo a frigideira e collocando n’ella suas mãos”
.
25
Seus problemas continuaram quando
foi obrigada a acompanhar o casal na sua transferência para a capital. Estabelecidos em
Salvador, não pararam com os maus tratos e exploração do trabalho da pequena Maria, mas
os intensificaram. A criança realizava para ambos pequenos serviços domésticos em troca de
casa e comida. Era mais uma “catarina” sujeita às arbitrariedades dos patrões. De acordo com
o depoimento da própria Maria, a violência ocorrera quando fora requisitada pelo dito soldado
para acompanhá-lo durante à noite, em mais uma de suas idas a uma casa que costumava
fornecer-lhes alimentos, localizada no Politeama. Segundo Maria:
24
Diario de Noticias, Bahia, p.3, 25 jan. 1913.
25
APEBA. SSP, Seção judiciária, est. 63, cx.8, doc.2, 1900.
48
[...]ao chegar a um becco escuro e deserto, agarrou-a, atirou-a sobre uma
moita e tapando-lhe a boca, fêz-lhe digo, deitou-se por cima d’ella, fez-sse as
offensas que apresenta, movendo-lhe a cara toda, que depois levantou e
prometeu matar-lhe com uma faca, se disesse a alguem o que se passou, que
chegados em casa, referio ella respondente à mulher delle, o que havia
passado, que pela manhã ao acordar, vio que se tinham retirado elle e a
mulher.
26
Mais uma vez o agressor utiliza-se da força física para conseguir saciar seus desejos
sexuais, recorrendo a ameaças de maus tratos e até mesmo de morte para garantir o silêncio da
criança. Não conseguindo seu intento, não só porque a menina contou o sucedido a Felicissima
Rosa dos Santos, mulher de José Pereira, mas também por causa do estado de saúde
extremamente debilitado da criança após a agressão, fugiu juntamente com sua companheira.
Tudo leva a crer que o caso ficou impune. Que fim levou esta criança os autos do inquérito não
informam. Apenas uma certeza fica registrada: Maria, órfã de pai e abandonada pela mãe,
devido às suas condições de miserabilidade, só conheceu privações, violência e descaso em
sua vida, até onde lemos registros sobre ela.
Casos de estupro de meninos eram mais raros. Uma criança de 7 anos, do sexo
masculino, foi estuprada por Ariston Carvalho dos Santos, morador da Ladeira da
Montanha.
27
Vivendo o mesmo tipo de situação, João Gualberto Bastos, de 11 anos de idade,
foi estuprado por Victoriano de Souza Ramos.
28
O menor João, em seu depoimento à justiça,
declarou :
Estava dormindo em companhia de Victoriano, empregado de seu cunhado e
ao despertar, encontrou Victoriano por cima delle e o segurando, o forçou
introduzindo o membro no seu anus, sentindo fortes dores gritou e forrou da
26
APEBA SSP. Seção judiciária, auto de perguntas, est.63, cx.8, doc.2, 1900.
27
Diario de Noticias, Bahia, p.5, 16 ago. 1915.
28
APEBA, SSP. Seção judiciária, est.63, cx.8, doc.2, 1900.
49
esteira onde estava deitado e notou que estava sujo de sangue o seu anus, que
então elle limpou-se num pano.
29
João foi vítima ao mesmo tempo de práticas de pedofilia e homossexualismo.
Victoriano, o réu, foi condenado por seu delito a dois anos e 6 meses de prisão. Estes foram
os únicos exemplos encontrados de violência sexual praticada contra crianças do sexo
masculino.
De acordo com o Código Penal de 1890,
30
havia distinções entre “atentado ao pudor”,
estupro e defloramento. Era considerado atentado contra o pudor de uma pessoa quando, por
meio de ameaças ou violência, alguém almejasse “saciar paixões lascivas” ou realizasse atos de
“depravação moral.”. A legislação punia quem atentasse contra o pudor de qualquer
pessoa, independente do sexo ou idade. “Na mesma pena incorrerá aquelle que corromper
pessoa de menor de idade, praticando com ella ou contra ella actos de libidinagem”.
31
Assim, a
classificação de atentado ao pudor não exigia que tivesse ocorrido a penetração do membro
viril masculino. A punição, até o ano de 1915, variava de um a seis anos de prisão. Com a lei
nº 2.992, decretada no mesmo ano, houve redução de pena. Se a vítima não fosse menor a
sentença era de um a três anos de prisão. Sendo a vítima um menor, o delito, assim como sua
punição, se subdividia em dois: “Excitar, favorecer ou facilitar a corrupção de pessôa de um
outro sexo, menor de 21 annos, induzindo-a à practica de actos desonestos, viciando sua
innocencia ou pervertendo-lhe, de qualquer modo, o seu senso moral”
32
, prisão por seis meses
a dois anos. “Corromper pêssoa menor de 21 annos, de um o outro sexo, practicando com
ella actos de libidinadem”
33
, prisão por dois a quatro anos. Enquadrava-se nesta última
29
APEBA, SSP. Seção judiciária, est. 63, cx.8. doc. 2, 1923.
30
GAMA, 1929.
31
Ibid., p.292.
32
Ibid., p.292-293
33
Ibid., p.293.
50
classificação de delito o crime praticado conjuntamente por Patrocínio José Barbosa e João
Felippe Gomes. Ambos foram presos por atentarem contra o pudor de uma menor
de idade entre 11 e 12 anos.
34
Um outro exemplo foi noticiado pelo jornal A Tarde de 1915,
com reportagem intitulada “Um monstro condemnado”:
Entrou em julgamento o réo Donato José de Sant’Anna, processado por haver
tentado contra o pudor de uma menor de cinco annos.
Defendido pelo Major Cosme de Farias, a convite do juiz, por não ter o réo
advogado, foi o criminoso condemnado à 7 annos e 6 mezes de prisão
celluar.
35
A indignação do jornal e a pena imputada ao réu (acima da exigida pela lei neste tipo
de crime) nos leva a suspeitar que a criança foi violentada, ou seja, vítima de estupro. Se assim
o foi, a imprensa pouca clareza tinha quanto aos termos jurídicos.
Estupro e defloramento exigiam, para serem classificados como tal, a penetração, na
mulher, do membro viril masculino. Para denominar um abuso sexual de defloramento era
fundamental que a vítima fosse menor, virgem e que tivesse sido seduzida ou enganada pelo
parceiro. O estupro, por sua vez, caracterizava-se pelo uso da violência, ou seja, sempre que
se realizava sem o consentimento da vítima. Não importando, para caracterizar este tipo de
delito, que a vítima fosse virgem. Não obstante, todo caso de defloramento ocorrido em menor
de 16 anos era, automaticamente, classificado de estupro. A punição para defloramento era de
um a quatro anos de prisão. O estupro exigia uma pena mais alta, um a seis anos. É importante
ressaltar que ambos os delitos foram classificados e penalizados tendo em vista a “honra” e a
sexualidade da mulher. A lei não concebia como estupro
36
casos de abuso sexual em crianças
34
Diario de Noticias, Bahia, p.1, 01 jan.1916.
35
A Tarde, Bahia, p.5, .22 jul.1915.
36
O artigo 269 do Código Penal de 1890 classificava como estupro: “o acto pelo qual o homem abusa com
violência de uma mulher, seja virgem ou não”. (GAMA, 1929, p.296.)
51
ou adolescentes do sexo masculino. Em um estupro, o réu, sempre um homem, deveria ter
“copulado” com uma mulher sem o seu consentimento.
Todavia, vimos acima que a lei puniu Victoriano por ter estuprado o menino João
Gualberto. O que nos leva a concluir que as leis criadas para normatizar a sociedade se
adaptam a esta última, suas nuanças históricas e culturais. A condenação, na época, do
estupro de crianças por um código popular, poderia influenciar a decisão de jurados e juizes.
Um caso curioso foi o “atentado ao pudor” de um criança de 5 anos por uma criança
de 9. Ficamos sem saber se o que o redator classificou de “atentado ao pudor” poderia ser
denominado como tal ou como simples jogos sexuais, muito comum entre crianças que
despertam para a sexualidade. Não há dúvida, no entanto, que a criança de 9 anos respondeu
a inquérito. Só não sabemos se foi requerida sua prisão. De acordo com a lei, nada impedia
que fosse, uma vez que o código penal de 1890 baixou a responsabilidade jurídica de 14 para
9 anos, aumentado o limite etário apenas posteriormente, em 1927, com a decretação do
Código de Menores.
Além do trabalho e da família, a escola foi um local idealizado pelas elites e governo
como uma instituição eficaz para a socialização e transformação das crianças em cidadãos úteis e
dóceis. Neste sentido, as autoridades governamentais, pelo menos no que diz respeito a leis e
regulamentos, procuraram intervir na escolarização de menores. Um dos atos do poder
Executivo foi a regulamentação da parte administrativa do ensino público, através do decreto de
nº 281 de 5 de dezembro de 1904. Este determinava, como uma das funções do inspetor geral
do ensino, “procurar impedir, valendo-se do Conselho e das solicitações oficiaes às autoridades
do Estado, que mendiguem abandonadas as ruas da capital creanças em idade escolar”.
37
Segundo este mesmo decreto, cabia aos delegados escolares “a pratica de obrigatoriedade da
52
instrução elementar, às multas por esta razão impostas e a cobrança d’ellas”.
38
Esse decreto nos
lembra uma campanha atual largamente difundida pelo Governo Federal, cuja diretriz básica é
“toda criança na escola”. A continuidade da necessidade de legislar e realizar campanhas sobre
esse assunto é um indício bastante forte de que o decreto baiano do início do século não saiu do
papel. Também a letra “d “do artigo 21 do citado decreto, referente à fiscalização de escolas
particulares, merece uma análise. As escolas particulares deveriam exercer um ensino que,
“igualmente ao público, não poderá ser adverso à integridade da pátria e aos fins superiores da
educação nacional”. Não podendo, da mesma forma, aplicar castigos físicos às crianças.
39
Educar para prevenir, corrigir e moldar e não mais para punir. Nesse contexto, inculcar nas
mentes infantis um ideal cívico era o mesmo que convencer estas crianças de que a nação era um
“objeto religioso, a quem se venera a quem são dirigidas as preces cotidianas, como um preceito
religioso”.
40
Sobre o aspecto pedagógico e a ação disciplinar propriamente ditos, o Art. 76
prescreve:
[...]a disciplina da escola deve-se basear-se na afeicção recíproca entre as
creanças e o mestre, a quem cumpre ser ao mesmo tempo bondoso e firme,
evitando os arrebatamentos, as palavras asperas e sobretudo qualquer injustiça e
esforçando-se delicada e dignamente para adquirir a amizade e confiança dos
allunos cujo preparo para a vida lhes é confiado ao poder público.
41
O professor não assumia uma posição hierárquica e devia, de acordo com esta postura,
usar como instrumentos no processo pedagógico: “ a) Elogio ao alluno, b) Logares distintos, c)
37
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 7 dez.1904.
38
Ibid.
39
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 7 fev. 1904.
40
LENHARO, 1986, p.191.
41
Diario da Bahia. Bahia, p. 1,.7 dez. 1904.
53
bons pontos, d) Quadros de distincção”.
42
O saber e o controle da criança seriam garantidos por
um mecanismo de promoções hierárquicas. Por fim, este decreto nos permite evidenciar a
preocupação do Governo em assumir uma função antes destinada apenas aos pais, ou seja, a
educação e a formação das crianças.
Contudo, não era isto que se observava no cotidiano do ensino público baiano, tanto
pelo fato de que “os paes de família que (sic) nunca deixam os filhos terminar o curso”,
43
como
pela permanência, na relação professor - aluno, de ações punitivas e violentas. A criança
continuava a ser castigada e punida e não apenas adaptada e corrigida. O que é comprovado por
um periódico, que chocado com a violência imposta por um professor a um discípulo, noticia:
Hoje, porem, tivemos o infortunio de ver recolhido no Hospital Santa Izabel,
em Nazareth, o menor Eustachio de Souza Andrade, e, tratamento de um
braço ainda tenro e já seriamente doente aos barbaros effeitos da
perversidade e máos figados de um mestre feroz da cadeira estadual d’aquella
cidade, digna de melhor sorte, e que se chama Crescenciano Barbosa de
Castro.
44
A ocorrência não se dá na cidade de Salvador e sim na de Canavieiras, mas o que
importa, neste caso, é a sinalização, por parte da imprensa, da permanência de práticas violentas
na escola. “Ahi fica a nota triste e revoltante a apreciação e julgamento de quem de direito,
embora não nos admire ficar, mais uma vez, por isso mesmo, como quejandas, em que a
imprensa tem clamado no deserto”.
45
Atitudes como a do professor de Canavieiras realmente deviam ser corriqueiras na vida
escolar de muitas crianças. Nessas condições é que um pai, o “ Sr. Henrique Lopes, morador
à Baixa do Bomfim, deu queixa ao dr. Secretario de Segurança publica do Estado, contra o
42
Ibid.
43
Diario da Bahia, Bahia, p. 1, 29 fev. 1903
44
Ibid., p. 1, 03 jan. 1917.
54
professor Angelo Paulo de Souza, da Penha, allegando ter este dado 24 bolos, hontem no seu
filho Eurico Lopes, de 9 annos de edade”.
46
O que teria mudado então ? Talvez a indignação e
revolta do pai e de alguns segmentos da imprensa. Isto pode indicar uma introjeção, nas famílias
baianas, de um reconhecimento da particularidade infantil e da necessidade de protegê-la dos
excessos dos adultos. No entanto, não podemos ter certeza até quanto esse sentimento atingiu as
famílias dos segmentos populares. Nem mesmo podemos afirmar a que setor social pertencia o
menino Eurico Lopes.
Mas o ensino público não era apenas deficiente nas questões pedagógicas e na relação
entre aluno e professor, o descaso com a educação da criança pode ser encontrado nas
péssimas condições físicas da escola. Criticando o ensino primário da capital Salvador o
jornal A Tarde, no ano de 1915, denunciava que em uma de suas visitas as escolas municipais
encontrou “o professor e homens de letras Sr. Roberto Correia exercendo seu sarcedocio
leccionando a cerca de cem alumnos, sentados em caixas de Kerozene, num pleno desconforto.
Nem ar, nem luz, nem mobiliário”.
47
Maria Conceição Barbosa da Costa Silva, analisando o
ensino primário na Bahia entre 1889 e 1930, informa que, embora o Estado tenha determinado
que toda escola pública e particular “[...]deveria se instalar em prédio próprio, destinados a
finalidades pedagógicas”, a realidade sempre foi de total carência de prédios e mobílias
escolares. A solução encontrada pelo Estado foi recorrer ao aluguel de casas. “Em Salvador
críticas foram levantadas por Dr. Amaral Muniz, diretor da higiene municipal. Uns ‘verdadeiros
sepulcros’, declarou ele sobre as escolas municipais, em entrevista a A Tarde”
48
.
45
Ibid.
46
Diario de Noticias, Bahia, p. 2, 26 out. 1916.
47
A Tarde, Bahia, p.1, 16 jul. 1915.
48
SILVIA, 1997, p. 60-70.
55
É diante dos exemplos acima que questionamos qual teria sido o local mais eficiente na
socialização da criança baiana, durante as quatro primeiras décadas republicanas. Uma resposta
difícil de ser dada, tendo em vista que o que se configurou, enquanto cotidiano de criança
pobre, foi uma vivência difícil, marcada pela exclusão e pela violência. Todavia, não podemos
deixar de registrar, mediante notícias que condenavam o lazer destas crianças, que as mesmas
construíram, no mundo hostil dos adultos, espaços de resistência e liberdade.
Espaços de lazer no mundo hostil dos adultos
Em setembro de 1904, os garotos José Antônio Moinho e Alfredo Silvino da Rocha
foram detidos algumas horas pela polícia, por terem caído na água ao brincar de correr no cais
das Amarras. A detenção é justificada como sendo “uma correção à perigosa traquinagem”.
49
Correr de forma livre e sem controle é uma forma de brincadeira que persiste até hoje entre as
crianças, pois permite que as mesmas sintam-se livres e dêem asas à imaginação. Mas tratava-se
de crianças pobres que brincavam em lugar de trabalharem. Além disso, causavam conturbação
num local típico de trabalho, o cais. Soltar bombas de
festim era um outro procedimento que proporcionava muito prazer aos garotos, ao ponto de
se reunirem todas as noites na Rua da Independência, antigo distrito de Sant’Anna, para realizar
49
Diario de Noticias, Bahia, p.3, 17 set.1904.
56
uma rifa de fogos.
50
Prática condenada pelas famílias que lá residiam e não podiam chegar às
janelas sob o risco de serem atingidas pelas bombas e fogos. O reclamante, um morador, fez sua
queixa utilizando a instituição familiar, símbolo de ordem e respeitabilidade, em oposição à
desordem e ao caos que o lazer destas crianças representavam. Os meninos eram considerados
desocupados dentro de uma ótica de ausência de ocupação produtiva e, por este motivo,
deveriam ser contidos pela polícia.
51
Usando mais uma vez o argumento da necessidade de se proteger as famílias, a
reportagem intitulada “Menores Vadios” solicitou a presença permanente de polícia no largo do
Carmo, lugar utilizado pelos garotos para “se entregarem a toda sorte de desatinos, de jogos e
de actos obcenos, sem nenhum respeito ao publico e, em particular, às famílias que ficam até
privadas de chegar às janellas de suas casas, nas horas de lazer e de recreio, ou mesmo nos
casos de necessidade”.
52
Neste caso, tanto o reclamante como as próprias atividades infantis são
descritas de forma muito vaga. Apenas um indício através da frase “ fizemos um apello ” nos
levou a suspeitar serem os reclamantes moradores do distrito do Paço, onde ficava o largo do
Carmo. Quanto às atividades, sabemos unicamente que os garotos praticavam jogos, mas não
sabemos quais. O certo é que o jogo se opunha ao trabalho ordeiro e produtivo. Segundo Assis,
com a implantação do novo regime, o jogo passou a ser considerado crime, já que era associado
a vadiagem. Entretanto, com a ausência de empregos muitos trabalhadores o viam como uma
alternativa de sobrevivência.
53
Não sabemos se, para a população infanto-juvenil pobre, o jogo
consistiu em uma fonte de renda, mas era sem dúvida uma forma de divertimento. Duas outras
50
Ibid., p.2, 28 abr.1904.
51
Martins analisando a coluna Queixas e Reclamações do jornal O Estado de São Paulo, observou que “As
cartas encaminhadas à polícia e ao juizado de menores registram os descontentamentos dos reclamantes
diante da conduta dos pobres, que expressavam um viver considerado abusivo e licencioso”. ( MARTINS,
1996, p. 196).
52
Diario de Noticia, Bahia, p.2, 17 maio. 1904
53
Assis. 1996,. p. 26.
57
atividades sistematicamente condenadas através do jornal foram empinar arraia” e “jogar
batedora”.
54
A primeira porque o cordão do brinquedo voador muitas vezes se enroscava em
postes de iluminação e o segundo por sempre acabar em palavrões. Sobre estas brincadeiras,
Hildergades Vianna nos informa que muito garoto vendedor de doces e queimados, o baleiro, já
“foi roubado por largar a cesta para brincar de batedeira ou tomar parte numa pegada de
arraia”.
55
Além do jogo da batedeira, encontramos referências ao jogo do búzio.
56
Registramos ainda uma outra reclamação que reforça ter sido a brincadeira de gude
muito popular entre as crianças. O reclamante solicita a ação do comandante da guarda civil para
reprimir garotos que, ao brincar de bolinhas de gude na Rua do Saldanha, remexiam nas bocas -
de - lobo, em busca das bolas que ali caíam. Exalando “não raro, fedentina insupportavel”.
57
Percebemos que diversas brincadeiras que há muito faziam parte do universo infantil
passaram a ser alvo de críticas. Acreditamos que tais brincadeiras passaram a ser consideradas
símbolos de anti-modernidade e anti-civilização. Acrescente-se a isto o fato de serem atividades
não controladas e, por isso, igualadas ao ócio e à vadiagem. Provocariam, portanto, desordens
físicas e morais no perímetro urbano. Da mesma forma o futebol, o jogo de três marias, o jogo
de malha e o baralho eram condenados.
58
Não só por serem jogos, mas também por serem
praticados na rua e impedirem a livre circulação das pessoas ocupadas com o trabalho.
Por fim, o hábito de pongar, antigamente, em bondes, hoje praticado pelas crianças
pobres em ônibus e trens, era criticado e qualificado como brincadeira de desocupados.
59
Não
54
Diario de Noticia. Bahia, p.3, 11 jul. 1911. Depoimentos de algumas pessoas da década de 60 e, portanto,
o servem como exemplos do período escolhido para estudo, afirmam ser a batedeira uma brincadeira que
consiste em empilhar um certo número de cartas com o intuito de bater sobre as mesmas ,virando-as. Ganha
quem conseguir virar um maior número
55
VIANNA, p.181, 1994.
56
Diario de Noticias, Bahia, p. 3, 16 jul. 1910.
57
Diario da Bahia, p.2,.20 out. 1926.
58
Diario da Bahia, Bahia, p. 8, 20 maio.1930.
59
Diario de Noticias, Bahia, p.1, 12 jul.1910.
58
obstante as condenações, essas crianças realmente arriscavam, como até hoje arriscam, suas
vidas. Não podemos afirmar quais as motivações que levavam esses garotos a correrem
tamanhos riscos, contudo podemos fazer suposições tais como a necessidade de percorrer
longas distâncias e a falta de dinheiro para pagar a passagem do bonde, ou simplesmente o puro
prazer de sentir que estavam desafiando limites. Um desafio de vida e morte.
59
Capítulo III
Órfãos, expostos, abandonados
O que significava ser órfão em Salvador nas primeiras décadas republicanas? Quais os
limites entre orfandade e abandono? Vejamos o que diz o poema publicado no Jornal Diario de
Noticias, em 1904:
Não ter mai, não ter amada
Ai, que tristeza tamanha,
Que dura sorte funesta!
Nem a urge da montanha,
E é coisa bem desgraçada,
Teve sorte egual a esta
Vir ao mundo e não ter mãi,
Pecorrer o mundo inteiro,
Sem um labio maternal,
Que nos diga: Filho, vem!...
Teu filho, o proprio Jesus,
Emblema do sofrimento,
Que morreu pregado a cruz
Sem um único lamento,
Sem um grito, sem um ai,
Teve mãi e teve pai
Ser orphão! Não ter na vida
Aquilo que todos tem!...
1
1
Diario de Noticias, Bahia, p.2, 13 abr.1904.
60
O poema sugere que órfão é qualquer criança que, por motivos vários, tenha perdido o
pai ou a mãe ou ambos. Mais ainda, o poema transmite a impressão de que o órfão é, fatalmente,
uma pessoa infeliz, haja vista ter perdido uma figura central e essencial para seu crescimento, a
mãe. A figura da mãe é enaltecida e idealizada, assim como a importância da família nuclear, pai
e mãe, na criação da criança. Já criança abandonada seria aquela desprezada, descuidada, ou
seja, que ninguém deseja. Na prática, como veremos adiante, as fronteiras entre a orfandade e o
abandono foram bastantes tênues. Em Salvador, desde a criação da Roda dos Expostos,
2
única
instituição voltada à criança abandonada na primeira infância, os pequenos eram designados
como expostos ou enjeitados. Segundo Renato Pinto Venâncio, a expressão enjeitado era muito
utilizada na literatura do século XVII, tanto que o jesuíta Alexandre de Gusmão a utilizou no
manual “Arte de Criar Bem os Filhos na Idade da Puericia”, para indicar abandono de crianças.
3
O Código de Menores posto em vigor no ano de 1927 considerava como expostos “os infantis
até sete anos de idade encontrados em estado de abandono, onde quer que seja”.
4
Todavia, o
próprio código, nos seus objetivos gerais, não faz distinção entre abandonado ou delinqüente,
nivelando-os. Consta no Art.1: “o menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqüente, que
tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente às medidas de
assistência e proteção contidas neste código”.
5
Assim, abandonado era toda criança sem
habitação certa, com pais falecidos ou desconhecidos. Da mesma forma, aquelas que se
encontravam em “estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem”.
6
Para o código,
havia somente diferenças etárias entre exposto e abandonado. O exposto tinha limites fixos de
2
O Asilo dos expostos, conhecido também por Asilo de N.S. da Misericórdia, foi criado no ano de 1726 pela
Santa Casa da Misericórdia.
3
VENÂNCIO, 1993, p.23. Ver também VENÂNCIO, 1991, p. 26 34.
4
CHAVES, MORAES, 1974, p. 29.
5
Ibid., p.16.
6
CHAVES, MORAES, 1974, p. 36. Grifo nosso. A intenção é demonstrar que o próprio Código de Menores
concebia o órfão como um menor abandonado.
61
idade, 0 a 7 anos, enquanto o abandonado era todo menor de 18 anos, fosse este infrator ou
não, que não contasse com a proteção familiar.
O segundo e terceiro séculos da colonização brasileira foram marcados por “uma
modalidade selvagem de abandono”. Segundo Venâncio, “meninas e meninos com dias ou meses
de vida não encontravam abrigo; eram deixados em calçadas, praias e terrenos baldios,
conhecendo por berço os monturos, as lixeiras, e tendo por companhia cães, porcos e ratos que
perambulavam as ruas”.
7
Um padrão de abandono que persistiu mesmo após a criação da Roda
dos Expostos, sendo reproduzido por mulheres e famílias baianas na Salvador republicana. Os
jornais deste período noticiam com freqüência casos de abandono nas ruas de Salvador. Um
exemplo é o ocorrido na Rua de S. Raimundo, envolvendo uma “criança do sexo feminino, de
cor preta, contando pouco mais de 2 anos de idade”.
8
O que teria levado a mãe, após dois anos
de convivência com a filha, a abandoná-la, não podemos precisar. Entretanto, com base em
outros casos sobre os quais se encontram registros no Asilo dos Expostos, podemos especular
sobre os motivos, muito provavelmente doença seguida de morte da mãe ou, simplesmente,
extrema pobreza. Uma criança nessa idade teria uma certa dificuldade em passar pela roda do
Asilo dos Expostos, muito embora, na prática, crianças mais velhas fossem acolhidas. Todavia, é
possível que a mãe desta criança desconhecesse a possibilidade de burlar as regras da instituição
e, por isso, a tenha deixado à própria sorte. Ou talvez almejasse deixá-la perto da casa de algum
conhecido, acreditando ser este capaz de criar a referida criança. Hipóteses à parte, outras
crianças tiveram o mesmo destino. Com a matéria intitulada “ Engeitada ”, o jornal Diario
da Bahia notificava o abandono de uma criança de aproximadamente um mês de vida,
do sexo
7
VENÂNCIO, 1997, p.190. Ver também VENÂNCIO, 1995, p.153-171.
8
Diario da Bahia. Bahia, 17 fev. 1903, p. 1.
62
feminino, de cor preta, no quintal da casa de Honória Maria dos Santos. Esta residia na Rua S.
José de Cima, no distrito de Santo Antonio.
9
Nesse caso, não só a pobreza pode ter levado ao
abandono, como a doença da criança, já que a mesma se encontrava com “o corpo lavrado de
feridas”.
10
Mas, se este foi o motivo, por que então a criança não foi colocada no Hospital da
Santa Casa da Misericórdia ou no Asilo dos Expostos, também mantido por esta instituição?
Seria o abandono uma espécie de infanticídio?
Venâncio, analisando a prática do infanticídio e do aborto no Brasil colônia, chega à
conclusão de que “é pouco provável que tais comportamentos conhecessem uma significativa
difusão no conjunto da população colonial”.
11
Isso porque eram considerados, pelo segmento
cristão, práticas criminosas, heréticas e demoníacas. Havia, igualmente, o risco da mulher ser
presa ou processada pela Inquisição. Em se tratando, entretanto, da história do recém-nascido
deixado no distrito de S. Antonio, no ano de 1915, antes portanto da regulamentação do Código
do Menores, nos questionamos até que ponto o medo da condenação penal impediria tal prática
ou pelo menos levaria as mulheres a adotarem o abandono como um instrumento do infanticídio.
Quando partimos para a análise do Código, chegamos à conclusão de que a pena para o ato de
“expor” crianças não era muito elevada. De acordo com o artigo 292, punia-se com prisão
celular por seis meses a um ano toda pessoa que desejasse “expor, ou abandonar, infante menor
de sete anos, nas ruas e praças, jardins públicos e ou particulares, enfim, em qualquer lugar onde,
por falta de auxílios e cuidados, de que necessite a vítima, corra perigo sua vida ou tenha lugar a
morte”.
12
Enquanto a pena para quem matasse um “recém-nascido, isto é, infante, nos sete
primeiros dias do seu nascimento, quer empregando meios diretos e ativos, quer recusando a
9
Diario de Noticias, Bahia, p. 3, 30 jul.1915.
10
Idem.
11
VENÂNCIO, 1997, p. 205.
12
CHAVES, MORAES, 1974, p.20.
63
vítima os cuidados necessários à manutenção da vida e a impedir sua morte”,
13
era de prisão
celular por 6 a 24 anos. Assim, se levarmos em conta a responsabilidade penal, não há dúvida de
que era menos arriscado para as mulheres recorrerem ao abandono.
Quanto ao fato da população feminina de baixa renda ter assimilado uma ideologia cristã
que condenava e associava tais atitudes femininas a ações demoníacas, nada podemos afirmar.
Não obstante, levantamos a hipótese de que Salvador foi profundamente marcada pela ideologia
cristã de valorização e idealização do papel da mãe na estruturação da família, fosse esta legítima
ou consensual. Hipótese que será melhor discutida no próximo capítulo, quando trataremos
sobre o asilo de Nossa Senhora da Misericórdia.
No entanto, não podemos deixar de registrar que, independente de limitações ideológicas
ou jurídicas, exemplos típicos de infanticídio ou de abandono que sugerem uma tentativa de
infanticídio foram encontrados em uma proporção razoável nos jornais por nós pesquisados.
14
No ano de 1926, o Diario da Bahia noticiou a ocorrência de um infanticídio no Dique do
Tororó. Uma criança foi encontrada morta dentro de um caixão de velas.
15
Anteriormente, em
1918, o jornal Diario de Noticias registrou, através da reportagem “Um crime revoltante em
Agua de Meninos”, a existência de um infanticídio. Foi encontrado “na parte interna do caes de
10 metros das Obras do Porto, fronteira a Agua de Meninos, [...] enrolado em pannos, ainda
com vestigios de parto recente, amarrada a uma corda ligada a uma pedra, o cadaver de uma
creança, do sexo feminino, branca”.
16
13
Ibid., p.22.
14
Encontramos registrados, conjuntamente, pelos jornais Diario da Bahia e Diario de Noticias, no período
de 1900 a 1940, doze casos de infanticídio. Além desses casos noticiados pelos jornais, encontramos registros
de crianças enviadas ao Asilo dos expostos, após terem sido deixadas na rua da cidade em total estado de
abandono, quase mortas. O que indica serem tentativas de infanticídio.
15
Diario da Bahia, Bahia, p. 2, 30 dez.1926, p. 2.
16
Diario de Noticias, Bahia, p.2, 14 ago. 1918.
64
Não se pode negar que, com a República, intensificou-se a condenação moral do
infanticídio, daí a presença de inúmeras reportagens condenando a prática, apesar de
poucos processos judiciais. Encontramos, apenas, três processos de infanticídio entre 1900 e
1940, todos eles envolvendo empregadas domésticas, ou seja, mulheres pobres. Em estudo
anteriormente realizado, sugerimos que o pequeno número de processos foi conseqüência das
dificuldades da justiça em encontrar o responsável pelo delito, uma vez que tratava-se de um ato
clandestino e muitas vezes acobertado por familiares, ou o fato de que esses processos teriam
sido elaborados menos com uma intenção punitiva do que com um objetivo pedagógico.
17
Por
trás da baixa criminalização podia estar implícito a intenção de educar moralmente as mulheres,
deixando claro que o ato do infanticídio era monstruoso e não natural. Praticado somente por
“mães desnaturadas”, ou seja, por mulheres anormais ou sem moral. A divulgação, por via oral,
de tais processos, assim como o repasse dos casos noticiados nos jornais, almejavam inculcar
nas mulheres que recorriam a tais práticas um sentimento de culpa e de rejeição. Mas, não há
dúvidas de que, a discrepância entre a pena para quem cometia infanticídio e a pena para quem
abandonasse uma criança, podia desestimular o primeiro.
O abandono não atingiu somente crianças na primeira infância. Algumas, já na segunda
infância ( 7 a 14 anos ), abandonavam propositadamente o lar, tentando gerir suas próprias
vidas. Em estudo sobre mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX, afirma Walter
Fraga Filho que “a presença de crianças vivendo nas ruas não se explica apenas pela orfandade
ou abandono por adultos pressionados pela pobreza. Como hoje, os próprios menores tomavam
a decisão de abandonar o ambiente familiar”.
18
Crianças renegadas pela família, ou que, por
conta própria, abandonavam a própria casa podiam encontrar a morte como destino. A menina
17
RODRIGUES, 1997.
18
FRAGA FILHO, 1996, p.121.
65
Maria Leonor de Figueredo, de 10 anos de idade, é um exemplo. O jornal que noticia sua morte
parece menos preocupado com a vida de privações e abandono que a mesma podia estar
levando do que com a inexistência de um enterro cristão. Daí a notícia que o seu cadáver foi
encontrado em abandono, no distrito dos Mares “e não achou alma caridosa que lhe fizesse o
enterro”.
19
Não sabemos, ao menos, se os pais estavam vivos na ocasião de sua morte, apesar
de o jornal informar, detalhadamente, onde residia. Todavia, parece certo que a menina, ao
morrer longe dos seus familiares e como indigente, não teve uma boa morte.
20
A preocupação cristã com a morte fez parte da realidade da cidade. Um bom exemplo
disso estava na atitude de, ao recolher uma criança recém-nascida, batizá-la. O major e político
Cosme de Farias, homem de conhecida atuação assistencial entre os pobres e desvalidos da
cidade, ao aceitar em sua família a criança exposta no distrito de Santo Antonio, procurou,
imediatamente, dar-lhe um batismo cristão. Esta, então, recebeu o nome cristão de Marieta.
21
Providência acertada, pois no mesmo mês do seu batismo faleceu “a innocente Marietta [...]
O enterro da pobresita, que estava aos cuidados do major Cosme de Farias, foi realizado hoje
no cemitério da quinta dos Lazaros, ficando o feretro coberta de mimosas flores naturaes”.
22
As
flores simbolizavam a inocência da criança.
Abandonadas pela família foram também as meninas Maria Benícia, de 11 anos, e Maria
Evangelista Simões, de 9 anos, órfãs de mãe e esquecidas pelo pai Clemente Simões
23
. Este,
exercendo a função de policial do 3º Corpo do Regimento da Polícia, quando destacado para a
19
Diario de Noticias, Bahia, p.2, 19 out. 1918.
20
Segundo Reis, prevalece, em muitas sociedades, a concepção de que rituais funerários adequados é
essencial para segurança de mortos e vivos. E, na Bahia do Século XIX, uma boa morte “não podia ser vivida
na solidão”. ( REIS, 1991, p.100).
21
Diario de Noticias. Bahia, p.1, 03 jul.1915.
22
Ibid., p.5, 16 jul.1915.
23
Esse caso reafirma o nosso argumento de que as fronteiras entre abandono e orfandade não eram muito
definidas.
66
cidade de Vitória da Conquista, havia dois anos, rompeu contato com as filhas, deixando-as em
companhia de uma mulher de parentesco desconhecido:
Vivem as crianças a fugir, roubando a comida dos visinhos, tornando-se assim
impossivel tel-as em sua sua companhia, principalmente pela falta de recursos
para sustental-as e educal-as, motivo porque, mesmo a conselho tomar a
resolução de leval-as à presença da referida autoridade superior.
24
A perda da mãe, a pobreza, a mobilidade do pai por conta de sua atividade profissional
provocaram o abandono das crianças. O fato de o pai ter confiado as filhas a uma mulher com
quem, aparentemente, não tinha qualquer grau de parentesco, nos fez refletir sobre a prática de
socialização das crianças. Era comum, entre os segmentos populares no período colonial, dar a
pessoas estranhas ao ambiente familiar a tarefa de tomar conta de crianças.
25
Tal atitude pode ter
persistido na República e feito com que pais, como o das meninas Maria Benícia e Maria
Evangelista, se sentissem à vontade para confiar seus filhos a pessoas fora do círculo familiar.
Percebe-se isto na justificativa dada por Maria José Euzébia Clara, responsável pelas crianças,
de não ter uma boa situação econômica e, por isso, precisar entregá-las ao chefe de polícia. A
condição de não ser a representante legal das meninas não pesou em nada na sua decisão.
Na maioria das vezes, os jornais noticiavam casos de abandono com títulos que
expressavam uma condenação à atitude da mãe. O Diario da Bahia, no ano de 1928, editou
uma notícia intitulada “mãe desnaturada”, na qual declarava ter sido encontrada, por um guarda
civil, uma criança na Rua Ramos de Queiroz:
24
Diario de Noticias, Bahia, p. 3, 06 dez.1910.
25
VENÂNCIO nos informa que: “Estratégia comum às mães pobres consistia em socializar os filhos de uma
extensa rede de vizinhança e parentela. Meninos e meninas circulavam de lar em lar, de casebre em casebre, de
senzala em senzala, estabelecendo relações de parentesco espiritual, via compadrio, ou informais, como no
caso dos filhos de criação”. ( 1997, p.202).
67
[ ...]uma “linda creacinha de olhos vivos, cor morena, apparentando ter 7 a 8
meses de idade[...] Ao anoitecer de hontem, disse o guarda, passando pela
Baía da Soledade com destino à minha residencia fui avisado por uma senhora
de nome Julia de que uma creancinha estava abandonada na ladeira do Ramos
de Queiroz parecendo que havia sido posta ali por alguma mãe
desnaturada”.
26
(Grifo nosso)
Vimos, no primeiro capítulo deste estudo que, quando se tratava da criança pobre, órfã
e /ou abandonada, as elites letradas nem sempre chegavam a um consenso sobre quem
recairia a responsabilidade pela mesma. Esta era ora atribuída ao Estado, ora às entidades
filantrópicas cristãs leigas ou, ás vezes, aos cidadãos de uma forma geral. A tendência
predominante era defender a participação conjunta dos três setores mas, principalmente na
década de 20, propostas que acentuavam a importância e mesmo o monopólio do Estado no
setor de assistência à infância se tornaram comuns. Reportagem tendo por título “Os Estados
perante a orphandade” ilustra este fato:
O Estado, como instituição administrativa, creada para tratar dos interesses
publicos, não podia fugir a suprema missão de protector da orphandade... A
república foi ao encontro de uma necessidade que o Imperio deixara aos
cuidados da caridade particular, na fundação de asylos, que em todos os
tempos sempre tiveram o falho e incompleto auxilio governamental, embora
fundados e sustentados pelo espirito de piedade do povo brazileiro.
27
Defendia-se a participação do Estado na criação e manutenção de patronatos agrícolas,
escolas correcionais, ou a concessão de verbas para promover melhoramentos nos asilos já
existentes. Apesar disso, o Estado atuava muito pouco na assistência à criança pobre, fosse
esta órfã ou não. Especificamente para o órfão e para as crianças cujos pais tivessem perdido o
pátrio poder, o Estado, através do código civil de 1916, atribuía-se o direito de colocá-los sob
26
Diario da Bahia, Bahia, p.3, 14 set.1928.
27
Diario de Noticias. Bahia, p.2, 20 jul.1919.
68
a tutela de parentes consangüíneos. Quando estes não existiam, cabia ao juiz nomear um tutor ou
recolhê-las “a estabelecimentos públicos para este fim destinado”.
28
Alguns membros das elites letradas de Salvador buscaram discutir e até mesmo agir em
favor do sistema de tutela dos órfãos. O jornal Diario de Noticia alardeava as vantagens desse
sistema, ampliando a tutela a pessoas de fora do círculo familiar das crianças. No ano de 1919,
quatro anos depois da promulgação do Código Civil, declarava o jornal que a obra de custódia
tutelar constituía “uma nova obra que se vai juntar às outras em função no Instituto”.
29
Segundo a
notícia, o Instituto teria assumido esta atividade devido às necessidades da população. Uma mãe
pobre e doente, sabendo do seu fim próximo, procurou o Instituto “trazendo pela mão uma
criancinha de dois annos,...com o fim de obter amparo para seu filhinho”.
30
A solução dada ao
problema foi a adoção da criança, após a morte da mãe. O mesmo jornal informou a existência
de cinco irmãos órfãos e a atitude do Instituto de indicá-los para custódia tutelar:
E.L.A, actualmente com 19 annos, sob os cuidados de uma instituição de
religiosas (Ursulinas da Soledade).
A . J. S, com 11 annos, sob a guarda de Julio Matheus dos Santos, que é
também seu guia no trabalho em sua casa do comércio. A sua esposa o faz
frequentar a escola.
L.S.S com 6 annos , sob a guarda de Julio Matheus dos Santos e sua exma.
Senhora , que a estão educando em um estabelecimento de religiosas de S.
Vicente de Paula.
H. S. S., com 4 annos, sob o tecto e protecção do Sr. Mario Mena Barreto da
Fontoura e sua exma. Senhora.
B. J.S. com 3 annos aos cuidados do Sr. Augusto Cardoso da Cunha e sua
exma. Senhora.
31
28
CHAVES; MORAES, 1974, p. 52.
29
Diario de Noticias Bahia, p.2, 24 set.1919. O Instituto, a quem a notícia faz referência, era o “Instituto de
Proteção e Assistencia à Infancia”, fundado por médicos higienistas, no ano de 1903 e tendo como diretor o
Dr. Alfredo Magalhães.
30
Ibid., p.2.
31
Diario de Noticias, Bahia, p.2, 25 set.1919.
69
A decisão de encaminhar os cinco órfãos à custódia tutelar não foi do Estado, e sim do
segmento médico que dirigia o Instituto. Este, por sua vez, nem sequer cogitou que a atitude de
indicar um tutor para cada criança poderia provocar a separação definitiva dos irmãos. Da
mesma maneira, a indicação do menor de 11 anos para trabalhar com o tutor no comércio
pareceu à imprensa algo perfeitamente normal e, na verdade, esperado. Afinal, para as elites, o
trabalho era o mecanismo mais eficiente de disciplinarização das crianças pobres, fossem elas
órfãs ou não. Acrescenta-se a isto o fato de a prática tutelar, quando exercida por membros da
sociedade, efetivar-se sempre dentro de uma perspectiva paternalista, o que implicava atitudes
de reciprocidade entre protetor e protegido.
Na prática, o destino dos órfãos nem sempre correspondia ao almejado: fazer parte de
lares estáveis, capazes de possibilitar o desenvolvimento físico e emocional da criança.
Descrevendo os castigos “bárbaros” que uma menor de 15 anos, órfã, recebeu de sua madrinha,
o jornal Diario de Noticias terminou não só por deixar em evidência relações informais de
custódia tutelar, como revelou a presença de atitudes violentas, típicas de relações de
dominação. A órfã trabalhava como empregada doméstica na casa de uma família que
supostamente deveria ser sua família adotiva, reproduzindo relações de opressão e repressão,
características da escravidão. Informa o periódico:
Há mais de um anno, que a menor orphã, de 15 annos de idade, Maria da
Conceição, foi entregue por sua madrinha aos cuidados de D. Herminia
Santos, residente ao corredor da Lapinha, n. 70.
Em remuneração aos seus serviços domésticos que a mesma fazia recebia
surras de cinturão e de corda, applicadas violentamente ora por D. Herminia,
ora por seu marido, João de Oliveira Santos, comissario do vapor
Commandatuba.
32
32
Diario de Noticias, Bahia, p.5, 20 set.1919.
70
Na mesma situação, a menor e órfã Donata, de 7 anos de idade, fugiu da casa dos
seus supostos protetores, por causa dos castigos físicos que vinha recebendo. “Levada a
presença do sr. Capitão Cyrillo dos Santos, subdelegado do districto da Sé, a infeliz menor
declarou que havia fugido, em virtude de constantes offensas physicas recebidas como se
deprehende dos vestigios encontrados no seu corpo”.
33
O trabalho das órfãs era muito
apreciado pelas famílias de classe média baixa que, normalmente, não tinham dinheiro para
pagar o salário de uma empregada.
34
A exploração do trabalho das órfãs provavelmente serviu
de estímulo para muitas famílias pleitearem a custódia tutelar destas. De fato, a importância
dessa mão-de-obra chegou a provocar algumas brigas e disputas. No ano de 1915, o Diario
de Noticias, com a reportagem “Creança raptada”, informava:
Queixou-se-nos hoje a Sra. Porcina Maria da Conceição de que Celestina de
Andrade raptou de sua casa, à rua da Matança, a menor de 7 annos, Izabel,
orfan de pae e mãe e que se acha sob os seus cuidados, sem que lhe seja dado
saber o paradeiro da mesma.
Aconselhamol-a que fosse à polícia para providenciar como ocaso requer.
35
A custódia tutelar, através da atuação de instituições como a do “Instituto de Proteção
e Assistencia à Infancia”, foi muito defendida por médicos higienistas. O Dr. Álvaro Bahia, em
artigo intitulado “Colocação familiar”, afirmava:
A colocação familiar tem por fim amparar crianças vítimas de
desajustamentos sociais, quer dependentes da família, tais como miséria,
orfandade, ilegitimidade, abandono, afastamento ou doenças, quer em virtude
de anormalidade (pequenos anormais escolares ou mentais) ou doenças das
33
Ibid., p.2, 11 mar.1913.
34
“Catarina” foi a denominação dada por Hildegardes Vianna a toda criança pobre, do sexo feminino, utilizada
em funções variadas nas casas de classe média baixa. (VIANNA, 1994, p.169).
35
Diario de Noticias, Bahia, p.5.16 ago.1915.
71
próprias crianças. A principal indicação, porém, é a da criança normal , que
não tem, precisa ou deve ser afastada do lar.
36
Desta forma, de acordo com Bahia, todas as crianças pobres, mesmo aquelas que
possuíam família, deveriam ser objeto de intervenção. Para ele, o procedimento correto era
retirar as crianças dos seus lares de origem e encaminhá-las a lares teoricamente mais sadios.
Segundo esta concepção, o controle do pátrio poder sobre as crianças por famílias pobres,
ficava condicionado à capacidade das mesmas de se adaptar ao modelo de família nuclear e
higienizada. O médico relata as tentativas de introduzir na Bahia o sistema de colocação
familiar: “Aqui na Bahia, há tempos, o Instituto de Proteção e Assistencia à Infância colocou,
‘sob custódia’, segundo informação colhida do seu próprio diretor, Alfredo Magalhães, duas
ou três crianças abandonadas ou orfãs”. Um sistema organizado só foi formado pelo Estado
em fins de 1939 quando, “a título de experiência, colocaram-se as primeiras crianças,
correndo as despêsas por conta do Conselho de Assistência Social”.
37
É curioso que o autor.
não tivesse conhecimento de que o sistema de colocação familiar foi, até os fins do século XIX,
um método largamente utilizado pelo Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia.
Não obstante a ausência de originalidade do setor médico no tocante à assistência à
criança pobre e /ou órfã, este propôs medidas para o bom êxito do projeto de custódia,
relacionadas com “a seleção do colocando, a seleção da família e a vigilância do colocado”.
Era necessário proceder todo um inquérito social sobre a história da criança assistida, sua
idade, sexo, origem familiar e comportamento. Isto tudo somado a um rigoroso exame físico e
psíquico, para assim evitar o “risco de colocar-se uma criança doente num ambiente são”.
Seguia-se, posteriormente, a seleção da família, mediante os seguintes parâmetros: família
36
BAHIA, 1942, p.6-7.
37
Ibid.
72
legítima ou que, pelo menos, vivesse maritalmente e em harmonia, lar próprio e nunca cortiço
ou casa de cômodos; boas condições sanitárias, educacionais e relativa estabilidade financeira
dos seus membros. A exigência de boas condições financeiras estava ligada à pensão dada
pelo Estado às famílias adotivas. A pensão não deveria constituir o motivo principal da
adoção: “Um Serviço de Colocação não é uma agência de empregos ou de amparo a família
por sua própria condição econômica desajustada. A colocação não pode ser um meio de vida.
O provento pecuniário obtido, é simples auxilio”.
38
É provável que a tutela sobre crianças órfãs tenha sido um mecanismo bastante utilizado,
mesmo que não percorresse sempre os trâmites legais, já que a sociedade contava com poucas
instituições assistenciais. Criticando, por exemplo, o fato de meninas órfãs esmolarem para
sobreviver, o periódico Diario de Noticias nos informa sobre a existência de um orfanato
denominado Pia União, situado no distrito da Penha. Por não contar com nenhum tipo de ajuda
governamental, o Pia União enfrentava inúmeras dificuldades para manter-se funcionando.
Segundo o redator, o orfanato deveria ser fechado e as órfãs “recolhidas a casas pias de
responsabilidade, mais aptas a guardar e conservar puras essas creanças, que nós vemos todos
os dias com tristeza, no bairro commercial, a implorar a caridade pública”.
39
A mendicância não
era vista como uma atividade dos verdadeiros pobres e necessitados, já que era associada à
vivência dos vadios e delinqüentes. Um orfanato respeitado e digno de receber ajuda financeira
não podia admitir a prática da mendicância. O Pia União de Maria e José foi fundado no ano de
1884 por D. Maria Espirito Santo, ou seja, por iniciativa privada cristã. Este mesmo orfanato, no
ano de 1916, já vinha sendo criticado e processado. Pregava-se a necessidade de punir a
instituição através da lei. Os atos delituosos que teriam ocorrido dentro do orfanato estavam,
38
Ibid. p. 9-11.
39
Diario de Noticias. Bahia, p.1, 20 maio.1919.
73
segundo o jornal, sujeitos a punição prevista no art. 278 do Código Penal, modificado pela lei de
25 de setembro de 1915. Não encontramos no Código Penal de 1890 qualquer referência ao
artigo 278, mas os artigos de 270 a 276 estão incluídos no capítulo que aborda o rapto,
defloramento e estupro, o que nos fez cogitar tratar-se de algum crime ligado a honra e a
sexualidade da mulher.
Já o Sagrada Família, orfanato feminino de caráter cristão, contava para a sua
sobrevivência praticamente com a ajuda ou “caridade” das tradicionais famílias baianas. Esta
instituição informava, através do Diario de Noticias, ter recebido uma quantia de
5$000, “obolo de um protestante”, e de que estavam “convictos que os bahianos e todos que
aqui residem não deixarão ao desamparo uma instituição de tal ordem”. Com esta quantia,
garantia-se, para todo o ano de 1900, a compra dos seguintes produtos básicos: pão, farinha,
feijão, carne verde, charque, bacalhau, açúcar, sal e ainda sobravam 117 contos de réis.
40
Continuando a apelar para o sentimento de caridade cristã existente entre as mulheres e homens
da cidade , questionava:
Haverá uma senhora mãe que negue auxilio a estas creanças, um pae, que
não reveja nos seus filhos a tristeza desses desvalidos, um irmão que se
escuse de proteger estes infelizes, um homem ou mulher que não se amercêe
de tal contigencia ?
41
O apelo às famílias baianas através dos jornais era algo comum. Os jornais, inclusive,
faziam propaganda de bazares organizados com fins filantrópicos. Em benefício de um outro
orfanato feminino, o orfanato do Desterro, organizou-se, no ano de 1926, um festival de
40
SILVA SANTOS, 1982, p.323-A.
41
Diario de Noticia, Bahia, p.5, 07 abr.1910.
74
caridade no Politeama . De acordo com o periódico, o evento tinha o merecimento da sociedade
e se esperava da mesma:
...todo o apoio da sociedade baiana . Bastam os intuitos com que é promovida
amparar as orphãsinhas recolhidas ao convento do desterro, cujos recursos já
não comportam as necessidades daquella casa pia para justificar uma grande
concorrencia ao Polytheama Bahiano.
42
No que concerne aos meninos órfãos, não podemos deixar de ressaltar a importância do Liceu
Salesiano de Salvador, que era:
[...]um collegio, sem luxo e magnifencia, porém, centro de perfeita educação
moral e civica, destinado às creanças pobres e desamparadas, collegios que
São verdadeiras tendas de trabalho, garantia e arrima futuro dos pobres e dos
infelizes orpham assim é que perto de oitenta orphams recebem no lyceu de
Salvador perfeita educação [...]
43
O Liceu era, de fato, um colégio voltado para crianças pobres, independente da
condição de orfandade, muito embora, na época da notícia, contasse com um número
considerável de órfãos.
Além de Salvador contar com um número pequeno de orfanatos, os que atuavam não
garantiam uma vida melhor à criança assistida. “Em S. Caetano, 2º Districto de Pirajá,
appareceu uma menor que se diz chamar Sydronia Maria da Silva, fugida do Orphanato S.
José, devido aos maltratos que recebia da professora, segundo allega”.
44
Esta menor tinha
15 anos e era órfã de pai e mãe. A fuga proveniente dos maus tratos infligidos pela professora,
muito provavelmente justificava-se, uma vez que, como demonstramos anteriormente, as
42
Diario da Bahia, Bahia, p.1, 1 jul.1926.
43
Diario de Noticia, Bahia, p.3, .31 mar.1903.
44
Ibid., p.1, 27 dez. 1911.
75
relações entre professor e aluno sempre foram marcadas por atitudes autoritárias do primeiro
em relação ao segundo e, algumas vezes, seguidas até mesmo de atos violentos.
Muitas crianças órfãs não tinham mesmo para onde ir, sendo deslocadas de um local
para outro. “Foi devolvido ao Hospital Santa Isabel, o menor Thiago Alves, por ser orphão e
não ter a policia competencia para dar-lhe destino”.
45
Havia, no entanto, uma opção final para
meninos de 7 a 14 anos, a Escola de Aprendizes de Marinheiro. As
reportagens sobre esta escola conduzem o leitor a pensar que o encaminhamento para esse
estabelecimento era uma decisão da criança. O Diario da Bahia afirmava: “O Dr. chefe de
segurança mandou apresentar ao Dr. juiz de orphãos desta capital o menor Domingos
Gervasio, orphão de pae e mãe, que deseja matricular-se na Escola de Apprendizes
Marinheiros deste Estado”.
46
Ao nosso ver, uma criança que buscava essa escola estava
recorrendo a sua última opção, face ao padrão militar e disciplinar da mesma. A disciplina
desta escola era tão rígida que, o periódico Diario de Noticias, no ano de 1910, noticiava que
a escola continuava “a infligir castigos de há muito abolidos nas classes armadas”.
47
Aplicando
“400 bolos num menor, porque estava deitado no capim. Outro menor tomou 60 chibatadas e
assim por diante”.
48
Assim, o mais comum era a imposição pelas autoridades (juízes ou
delegados) desta pretensa “opção”. Essa foi, por exemplo, a solução dada para o órfão de pai
e mãe, João Maurício do Carmo. O menino, com então 14 anos de idade, foi encaminhado a
esta instituição pelo juiz de direito da vara dos órfãos.
49
Alguns órfãos foram também encaminhados para a Casa Pia e para o Orfanato de S.
Joaquim e o Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia, instituições cujo funcionamento e a
45
Ibid., p. 3, 01 set.1903.
46
Diario da Bahia. Bahia, p.1,. 21 mar.1903.
47
Diario de Noticias. Bahia, p.1, 26 set.1910.
48
Ibid.
76
medida em que contribuíram para absorver as crianças órfãs serão discutidos nos capítulos
seguintes.
49
Ibid., p. 3, 19 mar.1903.
76
Capítulo IV
Longe do meu lado: os expostos do Asilo de Nossa Senhora da
Misericórdia.
Quem passasse ante- hontem, às 17 horas pela rua Marechal Floriano Peixoto,
no trecho do Campo da Polvora, a porta do Asylo dos Expostos, teria o ensejo
de ver a multidão de curiosos rodeando uma mulher de pelle rosada, bonita,
aparentando uns 30 anos de idade, tendo em derredor quatro creanças e no
braço duas outras menores.
Eram flagelados...
A mulher Maria Eulalia do Bomfim, natural de Sergipe, angustiada nem só por
ter seu esposo lhe abandonado, aqui, na capital, e viajado para Ilheos mas
também pela miseria em que vivia, fôra colocar na roda, alli existente os filhos
que poderiam ser acceitos.
1
O Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia, mais conhecido como Asilo dos Expostos,
foi uma peça fundamental na assistência à criança pobre e abandonada da Bahia. A notícia acima
ilustra o que representava o Asilo como alternativa em situações de pobreza e abandono de
crianças, e a sua importância no imaginário das elites. A Bahia e estados adjacentes enfrentaram
inúmeras vezes o fenômeno da seca e, em todos esses períodos de estiagem, predominou a
fome e a migração de famílias inteiras do interior para a capital. Este fato é atestado por uma
série de registros de entrada de expostos no Asilo da Misericórdia analisados neste capítulo,
muito embora Silva Santos afirme não ter tido conhecimento de movimentos populacionais de
77
peso para Salvador e, por este motivo, apontar o crescimento vegetativo como o único fator
responsável pelo movimento demográfico da cidade.
2
FIGURA - 1. Vista do Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia da Bahia, 1913 ( Foto integrante do Relatório
do Provedor Theodoro Teixeira Gomes )
É bem provável que a cidade não tenha sido alvo de grandes migrações controladas.
Salvador não oferecia um mercado de trabalho capaz de assimilar uma população excedente,
pelo contrário, os habitantes naturais da cidade enfrentavam a rigidez do mercado. Segundo
Silva Santos, a falta de dinamismo do mercado de trabalho era resultado da predominância de
uma economia agro-mercantil e sem perspectivas viáveis de industrialização. Situação
econômica que, de fato, não favorecia migrações.
1
Diario da Bahia, Bahia, p.8, 3 fev.1933.
2
SILVA SANTOS, 1982, p.28.
78
Mas nem por isso a população do interior baiano e do Nordeste, em geral, deixou de fazer de
Salvador um entreposto. Acreditamos que a capital, em épocas de seca, serviu como ponte para
os grandes centros urbanos. E, em resposta ao êxodo, crianças e mulheres eram deixadas nas
ruas da capital.
Sabemos por Lenharo que São Paulo recebeu, entre 1936 e 1940 “mais de 295 mil
imigrantes de outros estados, principalmente nordestinos”.
3
É razoável supor que os retirantes
nordestinos, antes de estabelecerem-se, definitivamente, em São Paulo, passassem por
Salvador. Nessa aventura por melhores condições de vida deixavam para trás mulheres e filhos.
Na notícia já citada, Maria Eulália e filhos são abandonados pelo marido que, em busca de
trabalho, dirigiu-se à cidade de Ilhéus, terra do cacau. A capital foi, portanto, uma alternativa
adotada por esta família sertaneja e por outras quando, por circunstâncias de fome e
miserabilidade, viam-se obrigadas a abandonar seus filhos.
Nesse contexto, a Roda representou para as crianças menores a última chance de
sobrevivência. Encontramos alguns casos de expostos da Misericórdia que exemplificam
bem essa situação. Uma criança exposta, em 19 de junho de 1916, veio acompanhada de uma
declaração do capitão Cosme de Farias, que justificou o abandono da criança alegando o
estado de pobreza da mãe sertaneja:
Exmº D. Amelia Rodrigues.
Saudações afectuosas. Rogovos a fineza de recolher, ao Asilo esta pequenita,
cuja Mãe está às esmolas, vinda dos sertões, batida por mil revezes.
Beijo muito agradecido as benemeritas mãos de V.Ex. Do servo e admirador
Cosme de Farias.
4
3
LENHARO, 1996, p.26.
79
A criança e sua mãe encontravam-se em total situação de miséria e fome, fato
constatado pelo estado de raquitismo avançado do bebê, que deu entrada no Asilo com
deformações nos braços e pernas. Do mesmo modo, foi deixado na Roda, em 25 de julho de
1918, o garoto Alfredo. Sua mãe, uma sertaneja, encontrava-se enferma e hospitalizada no
hospital Santa Isabel.
5
O menino não resistiu, morrendo um mês depois de gastroenterite. O
mesmo aconteceu com a menina Maria José Pereira Ribeiro, quatro meses de idade, exposta em
31 de março de 1936.
6
A tia depositou-a na Roda porque a mãe da menina estava doente e o
pai tinha ido embora para São Paulo.
No presente capítulo, procuramos traçar um quadro da história do Asilo de Nossa
Senhora da Misericórdia e investigar, ainda que de forma parcial, a trajetória de vida das
crianças que foram deixadas na Roda entre 1900 e 1940. Para tanto, analisamos alguns
aspectos tais como a família da criança asilada, suas doenças e possíveis causas da morte, cor,
idade, razões do abandono e, por fim, o destino final dado pela instituição às que sobreviviam.
4
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 15, 19 jun.1916.
5
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 16, 25 jul.1918.
80
A Roda dos Expostos: três séculos de existência.
De acordo com Russell-Wood, a Roda dos Expostos de Salvador foi fundada pela
Irmandade da Misericórdia no ano de 1726, em resposta às solicitações do arcebispo e do vice-
rei. Almejava-se solucionar o problema do “abandono selvagem” e assim evitar “manchas na
reputação da colonização portuguesa”,
7
além de aliviar a situação financeira da Câmara
Municipal que, até então, era a única responsável pela assistência aos expostos.
Segundo Maria Luíza Marcílio, “assistir às crianças abandonadas sempre fora um serviço aceito
com relutância pelas câmaras. Conseguiram estas fazer passar a lei de 1828, chamada Lei dos
Municípios, por onde se abria a brecha para eximir algumas câmaras dessa sua pesada e
incômoda obrigação”. Após esta lei, todas as cidades que possuíssem uma Misericórdia
deveriam responsabilizar a instituição pela assistência aos expostos. A partir de então, a
Irmandade não contou mais com o apoio financeiro da câmara, passando a receber ajuda da
Assembléia Legislativa Provincial. Por conta disso, segundo Marcílio, “...estava-se oficializando
a roda de expostos nas Misericórdias e colocando esta a serviço do Estado. Perdia-se, assim, o
caráter caritativo da assistência, para inaugurar-se sua fase filantrópica, associando-se o público
e o particular”.
8
Todavia, acreditamos que a substituição de uma esfera governamental por outra,
no auxílio à criança exposta, não torna esta assistência filantrópica. A Casa da Roda manteve-se
6
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 21, 31 mar.1936.
7
RUSSEL-WOOD, 1981, p.238.
8
MARCÍLIO, 1997, p.60.
81
durante muito tempo fundamentada nos ideais de caridade cristã, que via na assistência ao pobre
uma obra de piedade cristã e nunca algo decorrente de uma política social racional.
9
O sistema de entrada e assistência às crianças mantido pela Roda de Salvador era
semelhante ao existente em Roma, desde 1198, e em Portugal a partir de 1543. A entrada das
crianças era garantida mediante “uma caixa cilíndrica de madeira, colocada dentro de um prédio.
Girava num pino colocado sob seu eixo vertical, e era repartida ao meio”;
10
a criança era
deixada na caixa e o seu peso fazia tocar uma sineta do lado interno do prédio avisando a
chegada do exposto. Garantia-se, dessa forma, a clandestinidade da mãe que recorria à
instituição. As crianças admitidas pelo Asilo eram enviadas a famílias adotivas que cuidavam da
sua criação até a idade de três anos, mediante um pequeno pecúlio pago pela Misericórdia. Era
a prática do sistema de colocação familiar, já explicado no capítulo anterior.
Em 1857, entraram na administração, tanto da Casa da Roda como na de um
recolhimento mantido pela Irmandade, as irmãs de caridade de São Vicente de Paula.
11
Posteriormente, em onze de fevereiro de 1862, efetuou-se a compra do prédio do Campo da
Pólvora pela referida congregação, e “foi a Mesa administrativa autorisada a fazer a passagem
dos Expostos e das recolhidas de menos de 16 annos à medida que se ião adquirindo móveis e
roupas, instalando por fim o Asylo no dia 29 de junho do mesmo anno de 1862”. As irmãs
trataram logo de impor ordem ao estabelecimento, pondo em prática: “os acctos religiosos, o
ensino, o trabalho, a ordem interior e a pari passu procuravam extirpar os abusos que mais
9
A concepção cristã de caridade pretendia amenizar e corrigir as desigualdades sociais, mas nunca suprimi-
las. A caridade envolvia a salvação dos ricos e a santificação dos pobres. Já a filantropia pregava uma
assistência cientifica e pedagógica, capaz de manter o controle e a ordem social.
10
RUSSEL-WOOD, 1981, p.233.
11
O Asilo funcionou conjuntamente ao recolhimento para moças pobres até 1858, ano em que ocorreu uma
revolta neste último estabelecimento. Esta revolta fez com que a Irmandade optasse pela sua extinção. O
recolhimento foi fundado em 1716, mediante o apoio financeiro do capitão João de Mattos Aguiar.
82
envergonhavam, como fossem a freqüência das Janellas, etc”.
12
A congregação de S. Vicente
de Paula foi chamada para estabelecer, entre os expostos e as antigas recolhidas, uma
educação rígida e disciplinar, através do ensino
religioso e do trabalho. Em 1883, com o auxílio financeiro do Comendador Pereira Marinho,
construiu-se, no fundo do Asilo, um prédio para a criação dos expostos ali abrigados.
Desde 1863, o Asilo dos Expostos contava com um regulamento que vigorou até o ano
de 1914, quando foi substituído. A maioria das determinações presentes no primeiro
regulamento manteve-se no segundo. De acordo com esses regulamentos, a direção do Asilo
competia ao Mordomo, enquanto a fiscalização e manutenção da ordem e da disciplina
cabiam à Superiora. O cargo de Superiora, até 1914, foi sempre ocupado por uma irmã da
Caridade. A partir daquele ano, denotando mudanças substanciais no caráter assistencial da
instituição, a função passou a ser ocupada por educadores.
No que concerne à admissão da criança, o regulamento de 1914 manteve-a
condicionada à Roda, permanecendo, também, a obrigatoriedade do batismo do exposto logo
após sua admissão. Acerca dessa cerimônia religiosa, o Art. 6º do regulamento de 1863
informava:
O exposto que não trouxer nome receberá o do Santo do dia de sua exposição;
e se por qualquer circumstancia não for possivel, o que o Mordomo lhe der: e
terá o cognome do padrinho, se elle nisso convier, e sempre o de - Mattos -
em prova de reconhecimento ao primeiro Bemfeitor da Santa Casa.
13
Muitas crianças expostas no período republicano receberam nomes de santos e
sobrenome Mattos, apesar de não haver, no regulamento de 1914, qualquer determinação
12
ASCMB. Relatório apresentado à Junta da Santa Casa da Misericórdia da Capital do Estado da Bahia pelo
seu provedor, Comendador Theodoro Teixeira Gomes, 1911, p.187-188.
83
quanto a este assunto. As preocupações eram outras. Este último regulamento exigia, além do
batismo, o registro civil da criança: “A creança exposta terá um nome dado pela
Superiora do Asylo e por ordem desta será registrada no registro civil”.
14
O cuidado
com o registro civil demonstra que a Misericórdia buscou obedecer as leis republicanas,
transferindo para o Estado uma responsabilidade que anteriormente era da Igreja. A
regulamentação do ciclo de vida e morte da população, até então concentrada nas mãos da
Igreja, deslocou-se para o Estado, com a obrigatoriedade do registro civil de nascimento e de
óbito.
Diferenças entre os dois regulamentos podem também ser encontradas nas
observações sobre a utilização dos serviços da ama-de-leite na alimentação da criança
exposta. No primeiro regulamento, há uma preocupação em normatizar as atividades de amas
internas e externas, enquanto no segundo recomenda-se procurar amas somente em
circunstâncias emergenciais. Era, segundo o regulamento de 1914, “ necessário, confiar o
aleitamento das creanças fracas a amas de leite que apresentem todas as condições desejaveis
de saúde, moralidade e bons costumes e tenham residencia, dentro ou fora da cidade, em logar
salubre”.
15
O uso da ama somente em circunstância de emergência é uma evidência de que, no
período republicano, a instituição utilizava-se do aleitamento artificial. O aleitamento natural-
mercenário foi, da mesma forma que para os médicos da época, condenado pelos
administradores da instituição. Na verdade, segundo Maria Luíza Marcílio, “em Salvador, a
abolição do sistema de amas-de-leite externas, as criadeiras dos expostos, data de 1882”.
16
13
ASCMB. Regulamento do Asilo dos expostos da Santa Casa da Misericórdia. 21 mar.1863.
14
ASCMB. Regulamento do Asilo dos expostos da Santa Casa da Misericórdia 25 mar.1914, p. 4.
15
Ibid., p.5.
16
MARCÍLIO, 1998, p.162.
84
A partir de 1914, o Asilo, já adaptado ao aspecto filantrópico da assistência à criança
pobre, mantinha em sua administração os seguintes funcionários: mordomo, superiora,
escrituraria, porteira, serventes, professoras, médicos e enfermeiras, além da função de rodeira,
extinta no ano de 1934.
No ano de 1925, a Liga Contra a Mortalidade Infantil começou a agir dentro do Asilo,
impondo ao mesmo não apenas reformas físicas como também uma participação mais efetiva
dos profissionais da saúde na vida cotidiana dos asilados. Porém, uma mudança substancial na
política social de assistência só efetuou-se após 1934, quando, finalmente, a roda tornou-se
inoperante.
Como modificações profundas não foram efetivamente realizadas, o regulamento de
1914, na maioria das vezes desobedecido pela instituição e por mães e parentes das crianças,
embora inovador nas idéias, foi posto em prática apenas parcialmente. Por este motivo,
acreditamos ter sido precipitada a afirmação de Ferreira Filho no que diz respeito à
modernização do Asilo. Segundo este autor:
[...]em 1914 foram efetuadas severas mudanças na organização do asilo, em
consonância com as prescrições médicas e com as lições de pedagogia e
psicologia infantil mais avançadas. Foram criadas creches, jardins de infância,
ensino primário e profissional, contemplando os currículos com aulas de
ginástica, instrução moral, religiosa, cívica e dos cantos patrióticos.
17
De acordo com os depoimentos de provedores e mordomos, estas reformas não se
efetivaram por completo. A escola primária, tanto para os expostos como para crianças pobres,
de fato existiu, embora de forma precária. O provedor da Santa Casa Manoel de Souza
Campos registrou a existência de uma escola elementar mantida pela Misericórdia. A “21 de
17
FERREIRA FILHO, 1994, p.169.
85
fevereiro de 1901, inaugurou-se esta escola no pavimento terreo da Repartição Central[...] Para
logar da professora foi nomeada alumna mestra D. Maria de Assumpção Lessa”.
18
A escola,
localizada na Rua da Misericórdia, foi criada para atender os filhos dos
irmãos da Santa Casa e as crianças pobres da redondeza . O ensino organizava-se da seguinte
forma:
Lingua vernacula, calculo, desenho, geographia, historia, sciencias naturaes,
moral e educação cívica, civilidade, religião, escripta, leitura corrente,
lexicologia, as 4 operações de inteiros e decimais, cathecismo, trabalhos
praticos, trabalhos de phantasia, corte de costura, leitura expressiva, escripta
ditada, syntaxe, geometria, trabalhos de prendas domesticas.
19
A imposição de uma educação religiosa estava de acordo com a formação católica da
instituição. A educação moral e cívica, por sua vez, enquadrava-se no objetivo republicano de
fomentar nas crianças um amor à pátria e uma noção de cidadania “universalista”, ou seja, um
ideal de cidadania construído a partir do liberalismo.
20
A criança era levada a acreditar que
todos os membros de uma mesma sociedade eram regidos pelas mesmas leis e possuíam os
mesmos direitos devendo, portanto, trabalhar em prol do país. O restante do programa de
ensino, noções da língua portuguesa e as quatro operações da matemática, chamado de
“educação elementar”, estava previsto no projeto governamental para uma educação primária.
Por sua vez, o ensino de prendas domésticas e costuras capacitava as meninas para os afazeres
de uma casa, não importando se como mãe ou como empregada, comprometendo-se, apenas,
em mantê-las na esfera do lar e da vida privada.
18
ASCMB. Relatório apresentado à Mesa e à Junta da Santa Casa da Misericórdia do Estado da Bahia pelo
Provedor comendador Manoel de Souza Campos (1901-1902).
19
ASCMB. Relatório apresentado à Junta da Santa Casa da Misericórdia do Estado da Bahia pelo provedor
Theodoro Teixeira Gomes, 1911.
86
O mordomo do Asilo Joaquim da Silva Fortuna tinha consciência da necessidade de
também propiciar às crianças expostas uma instrução educacional elementar. A ausência de um
ensino mais sistemático e de oficinas especializadas para o preparo profissional do menor
provocou, sempre, um certo desconforto entre os administradores. Este
desconforto, às vezes, os levava a tomar medidas práticas. Com a intenção de garantir a
profissionalização dos expostos, o mordomo Joaquim Fortuna enviou alguns deles para o Liceu
Salesiano de Salvador: “Em virtude da autorização da Mesa, deram entrada em Março de
1901 doze expostos, de 9 a 12 annos, cujos nomes vem indicados no relatorio do Irmão
mordomo; contribuindo a Santa Casa com a quota de 3:600$, paga a semestre adiantados”.
21
Estes meninos entraram no colégio Salesiano ainda em uma faixa etária considerada, na época,
adequada para o início da formação escolar.
22
A preocupação com a educação da criança, presente na instituição desde os primeiros
anos republicanos, indica que os membros da Irmandade, da mesma forma que os médicos,
reconheciam a particularidade da infância, ao menos no que diz respeito ao sexo masculino. Sem
dúvida, adotou-se, no Asilo, uma prática de socialização oposta à utilizada em sociedades
tradicionais. Como já foi dito, nessas sociedades a criança e o adolescente aprendiz educavam-
se através do contato direto com um adulto. A preocupação apresentada pelo mordomo
Joaquim com a formação escolar do menino exposto deixa claro que o Asilo estava em
consonância com as concepções modernas de infância e de pedagogia.
Apesar disso, a instituição não conseguiu acompanhar os requisitos básicos destas novas
concepções. Um dos pré-requisitos não alcançados foi o aparelhamento físico necessário à
20
MATTA, 1997, p.86.
21
ASCMB. Relatório apresentado à Mesa e à Junta da Santa Casa da Misericórdia do Estado da Bahia pelo
Provedor comendador Manoel de Souza Campos (1901-1902).
87
profissionalização dos menores em ofícios artesanais tais como sapateiro, carpinteiro,
marceneiro, pintor, pedreiro, tanoeiro, etc. Salvador, cidade portuária e comercial, necessitava
de trabalhadores especializados na construção e manutenção de
embarcações e na elaboração de móveis, objetos e roupas, o que fazia o aprendizado dessas
profissões essencial à sobrevivência das crianças pobres. Mas não somente as instalações físicas
do Asilo eram inadequadas, como também este falhava, igualmente, em seu aspecto pedagógico.
O Asilo dos Expostos não estava estruturado para administrar a convivência entre crianças de
sexos diferentes, principalmente quando atingiam a puberdade, daí enviá-las, prematuramente,
ao trabalho.
Por tudo isso, acreditamos que o ensino primário ministrado à criança pobre e/ou
exposta era o oposto àquele voltado às crianças abastadas, ou seja, era um ensino
eminentemente prático e inferior. Mas, ainda assim, devemos reconhecer que educá-las para o
trabalho aumentava, de fato, suas chances de sobrevivência.
Evidentemente que os meninos expostos, assim como as meninas, podiam ser
utilizados no serviço doméstico, mas esse tipo de atividade, por conta da herança escravista, era
considerado predominantemente feminino. Entretanto, isto não impediu
que alguns garotos expostos fossem aproveitados em ofícios de jardineiro e/ou chofer por
famílias baianas abastadas. As expostas, por sua vez, recebiam um aprendizado igualmente
prático, voltado para o serviço doméstico e/ou casamento, exercendo, precocemente, funções
destinadas às mulheres adultas. De acordo com o mordomo:
As expostas maiores de 12 annos são empregadas de modo seguinte:
Na officina de sapataria - 5
22
De acordo com o regulamento a que se refere o decreto 281 de 5 de dezembro de 1904, a escola elementar era
dividida “em três cursos denominados elementar, medio , superior pelos quaes se classificarão os alunnos de
seis a trese annos sob criterios rigorosos de aptidão”. cf. Diario da Bahia, Bahia, p.2,.7 dez.1904.
88
Na lavagem de roupa - 10
Na sala de engommar - 5
Na cosinha - 2
Na enfermaria - 4
No asseio da casa - 12
Nos dormitórios - 8
Na capella - 10
No refeitorio - 11
Adjunctas de Mestras - 9
23
A idade de 12 anos correspondia, para essas meninas, o fim da infância e o momento em
que estas deviam assumir responsabilidades da vida adulta.
Esta situação acentuou-se quando, em 1913, a idade mínima para exercer trabalhos
dentro do Asilo caiu de 12 para 10 anos, e a faixa etária permitida para freqüentar a escola, 7 a
18, foi reduzida para 7 a 16. Fato que reforça o nosso argumento de que a percepção e a
compreensão da infância só pode ser feita se levarmos em consideração o espaço social e a
conjuntura histórica em que este segmento está inserido, haja vista que a infância não é uma
categoria definida unicamente pelo biológico e separada das demais fases só pela idade. Na
verdade, a definição e redefinição da idade indicadora desta fase demonstram o quanto este
grupo se constrói e é construído em função de conceitos e imagens que uma sociedade tem do
mesmo. Para as meninas internas no Asilo, por exemplo, pensar e agir de forma diferente das
mulheres adultas era algo impensável.
Recorrer ao Salesiano, no caso dos meninos, e aplicar um ensino prático voltado para
atividades domésticas às meninas não representou, necessariamente, uma falta total de instrução
primária. Ao que parece, fundou-se uma escola exclusiva para os expostos em 14 de dezembro
de 1898. Todavia, este estabelecimento manteve, durante todo o período em que funcionou, um
ensino irregular, não sistemático e com vida condicionada às diretrizes das Superioras. O
provedor Theodoro Teixeira Gomes declarou em seu relatório que
89
[...]a junta em sessão creou uma escola para os engeitados, regida por uma
professora diplomada, no Asylo dos Expostos, e querendo o Commendador
Manoel de Souza Campos, Provedor da Santa Casa naquella epoca, nomeou uma
professora, de accordo com a resolução da junta, (sic) encontrou opposição da
Irmã Superiora.
24
Teixeira Gomes queixou-se também que tentou, no ano de 1910, implantar oficinas
para os meninos, não podendo realizar seu intento por resistência da irmã superiora. Neste caso,
a resistência foi apresentada pela irmã Lecomte, substituta da irmã Lasnier, falecida em 1905. A
irmã Lasnier havia ocupado o cargo de superiora por quarenta anos, até sua morte.
Embora este provedor tenha criticado a administração da irmã Lecomte, o seu colega
Manoel de Souza Campos informou que, em 1902, as expostas de 7 a 18 anos
[...]frequentavam as aulas 3 horas por dia. Nos domingos as mais appplicadas
aprendem desenho e pintura. Aprendem a tocar piano e harmonim-2[...] os
expostos frequentam a aula 5 horas por dia; os demais tempo é empregado no
trabalho de jardim e em diversos trabalhos domésticos.
25
A educação formal pode ter sido insuficiente, ineficiente e dependente do grau de
harmonia e colaboração existente entre provedor, superiora e mordomo, mas não há dúvidas de
que se constituiu numa meta da instituição. É verdade que uma meta baseada na desigualdade,
na medida em que, até mesmo pela duração das aulas, fazia-se distinção entre o ensino voltado
para meninas e o ensino voltado para meninos.
23
ASCMB. Mapa do movimento do Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia. In: Relatório apresentado à Mesa
e à Junta da Santa Casa da Misericórdia da Capital do Estado da Bahia pelo provedor Manoel de Souza
Campos (1901-1902).
24
ASCMB. Relatório apresentado a Junta da Santa Casa da Misericórdia da Bahia pelo seu provedor Theodoro
Teixeira Gomes, jan.1913, p 31.
25
ASCMB. Mapa do movimento do Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia. In Relatório apresentado a Mesa
e a Junta da Santa Casa da Misericórdia da Capital do Estado da Bahia pelo provedor Manoel de Souza
Campos (1901-1902).
90
Uma outra solução em relação à criança exposta, quando esta atingia a segunda infância,
era devolvê-la à rua. Contudo, para alguns componentes da Irmandade, esta medida era uma
solução contraproducente. Estes acreditavam que enviar crianças às ruas sem nenhum tipo de
instrução era o mesmo que contribuir para a gestação de menores “vadios”, potencialmente
delinqüentes e incapazes de garantir o progresso e a civilização do país. Em 1921, sobre a falta
de educação adequada a este segmento, declarava o provedor Isaias de Carvalho Santos:
A do sexo masculino, à falta de adaptações, vae tendo sahida à proporção que
se aproxima dos 14 a 15 annos, idade em que a maior parte não logrou siquer
resultados na escola primaria. De mim e para mim considero falta gravissima
não restituir a Santa Casa à sociedade o exposto apparelhado para os embates
da vida [...] questão portanto, para ser resolvida essa da adaptação do Asylo
dos expostos à permanencia e aperfeiçoamento dos menores do sexo
masculino, alem da idade de 15 annos. Será uma obra benemerita essa de
apparelhar os asylados para serem futuros obreiros do progresso, uteis a si
proprios e à sociedade.
26
Era mais um esclarecido com ideais iluministas de civilização e progresso, sustentando a
hipótese de que, para obter cidadãos úteis a uma pátria civilizada, fazia-se essencial a
manutenção de um ensino prático e disciplinar à criança pobre.
Outra informação extraída dos relatórios de provedores e mordomos diz respeito à
forma adotada pela instituição para cuidar de crianças com idades diferentes. O Asilo agrupava
as crianças por idade, colocando-as em três espaços devidamente separados: a “casa de
amamentação”, onde ficavam meninos e meninas de 0 a 3 anos de idade; o “asilo inferior”, onde
alojavam-se as crianças de 3 a 7 anos; e finalmente o “asilo superior”, destinado às meninas que
encontravam-se entre 8 e 21 anos de idade. Nenhum menino acima de 14 anos ficava na
instituição. Em 1914, a superiora do Asilo, professora Amélia Rodrigues, informou, em seu
relatório para o provedor, que havia ainda uma seção de “meninos crescidos”. Nesta, ficavam
91
“25 expostos, de 6 a 14 annos, dos quaes alguns anormais e incapazes de qualquer proveito
intellectual. Nella funciona a Sapataria mal situada e não apropriada convenientemente. Nessa
officina aprendem somente 4 meninos, dois dos quaes têm aproveitado bastante”.
27
Amélia Rodrigues substituiu na direção do Asilo, a irmã Lecomte que, juntamente com as
irmãs de São Vicente de Paula, retiraram-se da instituição no ano de 1913. Como já foi visto
anteriormente, o conflito entre irmãs e provedores em torno de questões administrativas e
pedagógicas teve início quando a irmã Lecomte assumiu a direção. Assim, após cinqüenta e seis
anos de administração, as imãs e sua concepção cristã de assistência foram substituídas pela
professora Amélia Rodrigues. Entre religiosas e uma pedagoga na administração, escolheu-se
esta última, aparentemente porque se acreditava que estava mais apta à reorganização da
educação e formação das crianças dentro dos parâmetros da modernidade. No entanto, as
mudanças administrativas não afetaram, substancialmente, a educação dos expostos, haja vista
que Amélia Rodrigues possuía uma formação igualmente cristã. De acordo com a nova
superiora, as escolas interna (dos expostos) e a externa continuaram funcionando. Na escola dos
expostos as aulas eram separadas, “pela manhã aos meninos e à tarde às meninas”.
Havia ainda a Sala S. Joaquim, um jardim-de-infância que pode ser comparado ao que
hoje conhecemos por pré-escola. Nele aplicava-se o seguinte programa: “exercícios de
linguagem, cantos, recitação de pequenas poesias, explicação de quadros de gravuras de
animaes, modelagem, traços de desenhos a jiz em ardozia”. O jardim-de-infância foi projetado
para educar crianças entre 4 a 7 anos, apoiando-se no pensamento de Friedrich Wilhem August
Froebel. Segundo esse pedagogo, as crianças deveriam ser educadas através de jogos, danças,
26
ASCMB. Relatório da Santa Casa apresentado pelo provedor Isaias de Carvalho Santos, 01 jan.1921.
27
ASCMB. Relatório apresentado pela superiora do Asilo, Amélia Rodrigues, ao provedor da Santa Casa, no
ano de 1914. In: Relatório dos principais acontecimentos da Santa Casa da Misericórdia da Capital do Estado
da Bahia, 1914.
92
cantos e pintura, para assim desenvolverem os sentidos. A existência da Sala S. Joaquim serve
de sustentação à nossa hipótese de que, gradativamente, propagou-se entre os membros da
Irmandade e, consequentemente, entre
os responsáveis pela administração do Asilo, a idéia de que a criança não só era um ser distinto
do adulto, como também possuía várias fases no processo de seu crescimento. O jardim, sem
dúvida, representou um aprimoramento na educação dos expostos, que, infelizmente, não
repercutiu nos demais estágios da vida escolar.
A proposta de profissionalização dos menores não saiu do regulamento de 1914. Amélia
Rodrigues confirmou a ausência de um ensino prático, apontando, como fator desta lacuna , a
má situação econômica da Irmandade:
[...]sobretudo tendo soccorido a circustancia da economia, em virtude da qual
não se poderam ainda fazer certas reformas e accrescentar
melhoramentos materiaes imprescindiveis aos ensinos praticos que tanto
importa introduzir aqui.
28
Da mesma forma, o provedor Isaias de Carvalho, no ano de 1923, confirmou que
permaneceram no papel as medidas referentes ao ensino, decretadas pelo regulamento de
1914. Argumenta Isaias de Carvalho:
Não julgueis, porém, que não tenha ella inscrito em seu programa o proposito
de solução do problema da preparação daquelles a quem recolhe e a quem
deve restituir à sociedade habilitados para a grande lucta da vida.
Compulsando o recente Regulamento deste asylo, de 25 de março de 1914,
-se que largo é esse programma. Do Jardim de infancia ao ensino primario
e deste ao ensino profissional, eis os diferentes estagios de preparação dos
asylados. Até hoje, porém, mais de sette annos decorridos, ainda não foi
cumprido nossa parte, e a razão para logo descobre-se: a impossibilidade
28
Ibid.
93
invencivel de adquirir material e apparelhar as officinas necessarias ao ensino
profissional.
29
Portanto, como podemos perceber através dos administradores do Asilo, a
instituição continuou, mesmo depois de 1914, organizada inadequadamente para cumprir o
objetivo de educar os expostos.
No que diz respeito às condições higiênicas do Asilo, todos os provedores e mordomos,
como é natural, declaravam que o estabelecimento encontrava-se sempre em perfeito estado,
atribuindo o elevado quadro de mortalidade das crianças a fatores externos à instituição.
Todavia, entre uma fala e outra verificamos que as condições físicas do Asilo eram precárias.
Afirmava Teixeira Gomes:
Nas visitas que lhe faço, tudo tenho encontrado em ordem e condições de
asseio, apezar de existir um estabulo, para a amamentação das crianças
muito proximo da cosinha do estabelecimento, o que é contra os
preceitos da hygiene.
30
( Grifo nosso ).
O estábulo, onde criavam-se vacas que garantiam o leite dos bebês, existiu próximo à
cozinha até 1916, quando, então, foram aprovadas, conjuntamente, reformas nesse recinto e na
enfermaria de isolamento das crianças doentes. Segundo o provedor Isaias de Carvalho, o
estábulo foi construído “ao fundo do terreno, em local apropriado ao escoamento das aguas e
dejetos”.
31
29
ASCMB. Relatório apresentado à Junta da Santa Casa da Misericórdia da Bahia pelo provedor Dr. Isaias de
Carvalho Santos. 01 jan.1923.
30
ASCMB. Relatório da Santa Casa da Misericórdia apresentado pelo provedor Theodoro Teixeira Gomes,
1911.
31
ASCMB. Relatório apresentado à Junta da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, pelo provedor Isaias de
Carvalho Santos, 1914 a 1918.
94
FIGURA 2 . Estábulo novo, construído em 1916-1918 ( Fotografia integrante do Relatório
do Provedor Isaias de Carvalho Santos )
FIGURA 3. Enfermaria dos expostos, 1915 ( Fotografia integrante do Relatório do Provedor
Isaias de Carvalho Santos )
95
FIGURA 4. Enfermaria dos expostos Vista de outra extremidade, 1915 ( Fotografia integrante
do relatório do Provedor Isaias de Carvalho Santos )
Da mesma forma, Isaias de Carvalho Santos, em 1921, desejoso de assegurar um
excelente estado de salubridade no Asilo, descreveu as inúmeras reformas feitas no
estabelecimento. Entre essas reformas estava o serviço de distribuição de água, que “foi todo
reformado sob a fiscalização do irmão consultor,[...]corrigindo-se, assim, graves defeitos e
supprindo-se a creche, onde as faltas eram constantes”.
32
A necessidade de reformas é uma
evidência de que o abastecimento de água para o Asilo, da mesma forma que para a cidade
como um todo, fora insuficiente e irregular.
Além desse problema, outras questões infra-estruturais foram apontadas. Em 1924, o
Dr. Joaquim Martagão Gesteira, diretor da “Inspectoria de Hygyenne Infantil”, solicitou uma
inspeção no Asilo e encontrou inúmeras irregularidades, entre elas o sistema antiquado de
esterilização do leite, a distribuição de “rações alimentares” fora do padrão científico desejável,
96
o uso do aleitamento artificial em detrimento do natural e a falta de telas nas janelas e portas da
enfermaria. Em lugar das telas, “o que se verificou foi a existencia de uns apparelhos originiaes
especie de cestas de arame, analogas aos comuns tapa comidas, os quaes eram emborcados
sobre o berço da criancinha, enquanto em torno fervilhavam as moscas em cardumes deveras
assombrosas”.
33
Este médico também criticou a enfermaria de isolamento que, para ele, por ser uma
sala fora do estabelecimento e totalmente desaparelhada, não poderia ser classificada como tal.
Da mesma maneira, questionou os motivos que levavam a Misericórdia a não instalar uma
creche no Asilo, um serviço indispensável à toda mãe pobre que desejasse trabalhar fora. O
acolhimento de crianças durante o dia e a entrega dessas durante à noite possibilitaria que as
mães trabalhassem e evitaria o abandono. De acordo com Gesteira, o
que o Asilo chamava de creche não podia assim ser definido, uma vez que as crianças eram
depositadas através da clandestinidade e as mães não poderiam mais manter contato com elas.
Por fim, solicitou a extinção definitiva do sistema da Roda, segundo ele o único meio de diminuir
o abandono de crianças.
Atendendo ao anseio dos médicos por reformas, o provedor Newton de Lemos, em
1925, informava:
...fez-se a reforma completa do commodo destinado às crenças de primeira
edade. Duas salas novas foram feitas para refeitorio, com mezas apropriadas,
em cimento armado e revestidas de cimento branco, tendo estas salas o piso
ladrilhado e as paredes escarioladas. Instalaram-se pequenos banheiros de
ferro esmaltado, com serviço de agua quente e fria, sendo aquella fornecida
32
ASCMB. Relatório apresentado à Junta da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, pelo provedor Isaias de
Carvalho Santos na sessão de posse da Junta . 01 jan.1923.
33
ASCMB. Relatório apresentado à Junta da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, pelo provedor Isaias de
Carvalho Santos na sessão de posse da Junta. 01 jan.1925.
97
por meio de serpentina, no fogão proprio do preparo de leite para os lactentes,
em um novo commodo.
34
FIGURA 5. Creche dos expostos antes da reforma de 1925 ( Fotografia integrante do Relatório do
Provedor Isaias de Carvalho Santos )
A inauguração da creche infantil, em 31 de março de 1925, foi de todas as reformas
efetuadas no Asilo antes de 1936, a que mais o favoreceu. Conforme o próprio provedor, as
reformas executadas no Asilo dos Expostos, e principalmente na creche, foram “resultante
directa e immediacta da acção da Inspectoria de Hygiene Infantil”. O que significa o
reconhecimento da atuação conjunta entre Governo Federal - que controlava a Inspetoria - e o
segmento médico, na assistência à criança pobre. Deste ano em diante, a presença da Liga
Contra a Mortalidade Infantil, fundada pelo Dr. Martagão Gesteira, e dos Governos Estadual e
Federal fez parte da vida cotidiana do Asilo. Entretanto, a atuação conjunta entre Governo e
médicos não foi suficiente para alterar o elevado quadro da mortalidade infantil.
34
ASCMB. Relatório apresentado à junta da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, pelo provedor Arthur
98
Na visão de Martagão Gesteira, compartilhada por seus colegas de profissão, tal
situação só se reverteria com a extinção da Roda. Tanto insistiram nesta questão que, em ata
de 25 de julho de 1934, a Santa Casa da Misericórdia aprovou a instalação do “escritório
aberto” ou “escritório de admissão” e, em seguida, o seu regulamento. De acordo com o
regulamento estabelecido, o escritório deveria funcionar em conjunto com a Roda. Declarava o
provedor: “Em cumprimento deliberado pela Junta da Santa Casa da Misericórdia, será
instalado no asylo dos Expostos, a título de Experiência, conjuntamente com a Roda, o
Escritório de Admissão”.
35
Com a instalação do “escritório aberto” mudanças radicais ocorreram no sistema de
admissão dos infantes. Estes, que antes entravam mediante o expediente da clandestinidade,
passaram a ter o seu acolhimento condicionado à disposição que seus familiares e/ou
acompanhantes tinham em informar sobre as causas do abandono, bem como o nome e
registro de nascimento da criança. Tal peculiaridade, por si só, tornava a
Roda inoperante. O artigo 7 do regulamento dava aos responsáveis pela criança o direito
de manterem-se em silêncio. Entretanto, acreditamos que, uma vez em embate direto com os
administradores, tornava-se muito difícil para essas pessoas sonegar informações.
A extinção da Roda sempre causou, entre os membros da Irmandade, o receio de que
toda a população pobre encaminhasse suas crianças para o Asilo, sobrecarregando a instituição.
Este temor levou à criação do artigo 9, que buscava regulamentar a idade permitida para o
acesso da criança:
Newton de Lemos. 01 jan.1929, p.35.
35
ASCMB. Ata de sessão da Mesa. 25 jul.1934.
99
[...]será admittido a criança que tiver menos de seis mezes e, portanto, em
condições de passar pela roda.
36
Não sendo suficiente esta limitação, promulgaram o artigo 10, cujo objetivo era
especificar as medidas de peso e altura permitidas:
Para que se torne realmente effetiva a parte final do art. anterior seja qual for
a idade declarada, a encarregada só aceitará a criança se pela verificação
biológica, tiver ella: Peso maximo- 7,100 grs. Tamanho maximo- 60 cm.
37
Em paralelo a isso, a aceitação das crianças estava condicionada à situação
econômica do Asilo e à capacidade de lotação do mesmo. Assim, se com o funcionamento
exclusivo da Roda algumas crianças penetravam no asilo mesmo tendo mais de 7 anos, idade
limite usada para definir um exposto, com o novo sistema isto tornou-se impraticável. A
modernização do Asilo, efetuada através de modificações no sistema de admissão, possibilitou o
oferecimento de uma assistência mais eficiente, porém, paralelamente, restringiu o alcance social.
A filantropia e não a caridade guiava os passos dos administradores da instituição. A partir desta
data, a assistência filantrópica da Misericórdia procurou selecionar os seus assistidos.
A Roda tornou-se inoperante a partir de 1934 e, em 1938, nenhuma criança era mais
admitida por esse sistema.
38
Por conta disto, acreditamos ser equivocada a afirmação de Maria
Luíza Marcílio, de que a Roda de Salvador, juntamente com a de São Paulo, sobreviveu até a
década de 1950, “sendo as últimas do gênero existentes na época em todo o mundo
ocidental”.
39
A ata de 1934, expedida pela Mesa, o regulamento do escritório aberto, os livros
de registro de entrada das crianças e as informações contidas nas gazetas médicas confirmam o
36
Ibid.
37
Ibid.
38
Depoimento da Dra. Maria de Lourdes Barreto, pediatra, que trabalhou como estagiária no Asilo no ano de
1938, em entrevista que nos foi concedida pela mesma.
100
ano de 1934 como a data de implantação do sistema de “escritório aberto” e da inoperância da
Roda.
O Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia intensificou seu processo de modernização,
após a extinção da Roda. Em 15 de abril de 1934, foram inaugurados o pavilhão Martagão
Gesteira e o lactário Júlia de Carvalho. O pavilhão era composto de duas enfermarias, cada qual
com quinze leitos, e um abrigo maternal. A função deste último era abrigar “as mulheres sadias,
egressas da Maternidade Climério de Oliveira, com grande capacidade de lactação, fornecendo
leite aos filhos, aos internados e ainda às crianças de fora, necessitadas do leite humano”.
40
Era
um retorno ao aleitamento natural, só que desta vez sob os auspícios e controle dos médicos. As
amas não necessitavam mais despojarem-se dos seus filhos, alimentando-os juntamente com as
crianças do Asilo, uma idéia que, de fato, beneficiava crianças e mães. Seguia-se o preceito de
que “toda mãe deve ser a ama do seu próprio filho”. O uso do serviço da ama beneficiava a
mãe e a criança
apenas quando a primeira encontrava-se em condição de amamentar. Se adoecesse ou
terminasse o período de amamentação, diante novamente das dificuldades financeiras, não tinha
outra alternativa a não ser entregar o filho ao Asilo. Como exemplo, temos o testemunho de
Esther Barreto, mãe de Almiro Barreto, com quatro meses de idade, doente e sem recursos, que
“implorou para que o filho fosse internado, por não poder continuar como ama de leite.”
41
39
MARCÍLIO, 1997, p.66.
40
Ibid.
41
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 29, 14 mar.1937.
101
O lactário, por sua vez, era destinado a preparação “de alimentos exigidos pela dietética
moderna, não só para as crianças internadas no Asilo como para as que freqüentavam os postos
do Departamento da Criança”.
42
Dando continuidade às transformações, inaugurou-se, em 1936, o pavilhão da Pupileira,
destinado às crianças de dois a cinco anos. Após esta idade, as crianças dirigiam-se para o
antigo Asilo e lá permaneciam até a maioridade, ou até quando fossem requisitadas por suas
famílias, já que, com o regime de “escritório aberto”, não rompia-se mais o contato com as
mesmas.
É importante, aqui, apontar a distância existente entre as novas regras de
internamento e asilo das crianças, e a prática. Segundo ata de 16 de abril de 1936, nenhum
asilado podia ser retirado por terceiros para prestação de serviços, sem que tivesse a idade
mínima de 15 anos. Sendo menino, essa idade caia para 12.
43
No entanto, encontramos em
1937 o registro de saída da menor Dulcelina Rocha Pita, aos 10 anos de idade, para exercer
atividade doméstica em casa de Ricardo Jurandir Filho.
44
Da mesma maneira saíram Isabel
Moreira de Mattos, 8 anos, Eulina Isabel de Mattos, 9 anos, e Constança de Mattos, 7 anos.
45
Portanto, a tentativa de impedir a exploração do trabalho do exposto ficou limitada a decretos.
O costume da instituição era enviar as crianças sobreviventes o mais rápido possível à casa
de particulares para exercer inúmeras atividades. As reformas físicas e pedagógicas operadas
no Asilo em nada serviram para impedir esta realidade.
Um outro aspecto que devemos destacar, quanto às reformas, é a parceria entre o
Estado, que possibilitou a obtenção de verbas para a realização dos projetos, o segmento
42
AUDÍFACE., 1965, p.39.
43
ASCMB. Ata de sessão da Mesa de 16 de abril de 1936.
44
ASCMB. Ata de sessão da Mesa de 30 de maio de 1937.
45
ASCMB. Ata de sessão da Mesa de 21 de agosto de 1937.
102
médico - Liga contra a Mortalidade Infantil - e os administradores da Irmandade. Estes últimos,
não sem conflitos, estiveram abertos às idéias médicas no que concerne à assistência à criança
pobre.
46
Esta foi, em linhas gerais, a história de uma instituição secular na assistência à criança
pobre. Mas, sobre a criança asilada, as razões de seu abandono e o destino das sobreviventes,
há muito ainda a se contar.
Razões do abandono
“Qual seria a condição moral ou os sentimentos humanos dessas numerosas pessoas
que, deliberadamente, contribuem para expor a vida das crianças ?” Com esta pergunta, os
viajantes estrangeiros Kidder & Fletcher, no século XIX, exprimiram seu repúdio ao abandono
de crianças recém-nascidas em terras brasileiras.
47
Uma pergunta retórica, que traz inserida nela
própria uma resposta. Defeito moral e falta de sentimentos eram, para estes homens, as causas
principais do abandono.
Se fizéssemos o questionamento dos viajantes em relação a Roda dos Expostos de
Salvador, nas quatro primeiras décadas republicanas, que resposta teríamos? Para alguns
provedores, a falta de sentimentos, o estado de pobreza dos envolvidos e a prática de
infanticídio foram fatores que motivaram, profundamente, o abandono de crianças recém-
46
Em ata de 17 de janeiro de 1936, o mordomo do Asilo protestou contra a Liga Contra Mortalidade Infantil por
-lo convidado, enquanto responsável pela administração do mesmo, a comparecer a inauguração da
Pupileira. Para ele, a Irmandade não necessitava de convite, uma vez que a Pupileira foi construída em suas
instalações.
103
nascidas na Roda. O provedor Theodoro Teixeira Gomes, por exemplo, acreditava ser sua
missão “receber os infelizes desherdados da sorte, que a impiedade de uns, a miseria de outros,
e quantas vezes o crime de alguns alli vae, tarde da noite, levar, sem o necessario conchego, e
quando ainda são precisos aos innocentes os primeiros cuidados maternos”.
48
Mas é preciso
ultrapassar o estágio da mera suposição, do qual faziam parte as declarações dos provedores.
Para tanto, selecionamos os motivos apresentados com mais freqüência pelas mães e/ou
responsáveis pelas crianças, no momento do abandono. Tais informações foram encontradas em
bilhetes, cartas e declarações verbais que acompanharam as crianças no momento da exposição,
entre 1900 e 1940. Com a ressalva que, como dissemos, a partir de 1934, com a instalação do
“escritório de admissão”, todas as crianças foram, obrigatoriamente, identificadas.
O costume de deixar cartas e bilhetes com as crianças expostas, possibilitando assim o
mínimo de conhecimento sobre as mesmas, aliado ao hábito da instituição de registrar
fidedignamente tais dados, permaneceu até 29 de setembro de 1940, quando o Asilo adotou
para todas as crianças um modelo único de registro de dados. Um exemplo deste último é o
registro de entrada da menina Valdete de Almeida:
Nome da creança : Valdete de Almeida
Local de Nascimento - Matta de São João
Data de Nascimento - 17 de julho de 1932
Baptisou-se na Matta de S. João em 1º de Novembro de 1902 - Sendo
seus padrinhos José Alexandre e Maria Alexandre sua esposa.
Nome dos paes - João Baptista de Almeida (fal) e Ermita de Almeida
Categori - Lavadeira
Residente - Avenida Formosa nº 5
Idade - 27 annos.
49
47
LEITE, 1997, p.34.
48
Relatório apresentado à Junta da Santa Casa da Misericórdia da capital do Estado da Bahia pelo seu
provedor comendador Theodoro Teixeira Gomes, 1911, p.185.
49
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 30, 1940.
104
Sobre o caso de Valdete, cabe salientar que esta só conseguiu ser assistida pela instituição
devido a “ser sua mãe empregada da casa há muito tempo e de muito bom procedimento”, haja
vista que estava com idade superior à admitida (aceitava-se, segundo o regulamento do
escritório, crianças até seis meses de vida). Vê-se aqui a instituição burlando o seu regulamento.
Rompendo, igualmente, suas próprias regras, o Asilo aceitou uma menina de 8 anos, Raymunda
Rosa da Cruz, egressa do Hospital Santa Isabel, porque encontrava-se desamparada.
50
Dulcinéia e Dulcelina também entraram no Asilo após a idade permitida, ambas com 9
anos e 6 meses. Para cumprir uma regra, a permanência dos asilados somente até a maioridade,
a instituição realizou uma permuta com o Asilo de Mendicidade, enviando para lá oito
pessoas cuja idade não permitia permanecer no Asilo, recebendo em troca estas duas meninas.
51
Boa parte das crianças acima da idade permitida para ingresso que conseguiram entrar
antes da extinção da Roda (1934), ou vieram direto do Hospital Santa Isabel ou eram filhos de
empregadas do Asilo. As empregadas do Asilo, da mesma forma que suas colegas que
trabalhavam em casas de particulares, cedo percebiam que sua atividade profissional era
incompatível com a maternidade mas, ao contrário das outras, estas podiam valer-se das
relações paternalistas existentes entre patrão e empregado para conseguir auxílio da Irmandade.
Favorecer uma criança, rompendo inclusive as próprias normas, parece ter sido uma
conduta muito comum da instituição. Casos como o do menino Almir Santos exemplificam bem
esta realidade. Este, supostamente com 2 meses, mas na verdade com 10, teve sua idade
reduzida pelo próprio provedor para poder ser aceito. Informou o funcionário do Asilo que “a
50
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 19, 24 abr.1925.
51
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 29, 26 jan.1937.
105
criança foi registrada com o nascimento errado para diminuir a idade e assim ser admitida no
Asilo. Sua data de nascimento 6/5/37. Veio com memorando do provedor”.
52
Na tabela e gráfico abaixo podemos verificar que 79,8% das crianças expostas tinham
entre 0 a 1 ano de idade quando admitidas, sendo que, destas, 29,0% tinham menos de um mês
de vida. De fato, 99% das crianças entraram quando ainda estavam na primeira infância, ou
seja, entre 0 a 7 anos. A maior parte era separada das mães numa idade tão terna que não tinha
condições de guardar qualquer tipo de lembrança. Isto, no entanto, não impedia que as mães se
sentissem-no direito de resgatá-las.
Tabela 1- Idade de entrada (expostos)
52
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 29, 28 mar. 1938.
Idade de entrada %
0 a 12 meses 3009 79,8
13 a 24 meses 368 9,8
25 a 36 meses 137 3,6
37 a 48 meses 70 1,9
49 a 60 meses 56 1,5
61 a 72 meses 63 1,7
73 a 84 meses 29 0,8
85 a 96 meses 29 0,8
97 a 108 meses 6 0,2
109 a 125 meses 6 0,2
Total 3773 100
FONTE:
Livro de registro de entrada de expostos do asilo de Nossa Senhora da
Misericórdia, 1900 à 1940
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
%
0 a 12 meses
13 a 24 meses
25 a 36 meses
37 a 48 meses
49 a 60 meses
61 a 72 meses
73 a 84 meses
85 a 96 meses
97 a 108 meses
Gráfico 1 - Idade de entrada (expostos)
106
O reencontro entre mães e filhos foi facilitado depois que o Asilo impôs, para aceitação
da criança, a passagem desta pelo “escritório de admissão”. O estabelecimento de um padrão
único de registro de dados possibilitou um mínimo de informações sobre as crianças admitidas.
Mas, se a uniformização do registro serviu para facilitar o contato entre crianças e parentes, para
o historiador ficou mais difícil resgatar a trajetória de vida dessas crianças. Os dados
supostamente objetivos suprimiram fala dos envolvidos, uma via importante para se tentar
compreender os sentimentos, as crenças e as idéias destas pessoas. Por este motivo, resolvemos
considerar Valdete de Almeida, cujo registro foi reproduzido acima, a primeira criança a ser
identificada de forma não espontânea e, com ela, interrompemos o período de estudo do Asilo
da Misericórdia.
Entre 1900 a 1940, entraram no Asilo 3773 crianças. Destas, 3269 foram identificadas
por cartas e bilhetes, o que eqüivale a 86,64 % do total de crianças expostas.
53
Todavia,
somente 725 crianças tiveram seus abandonos justificados, ou seja, 19,21% dos expostos. O
silêncio das mães e/ou familiares teve, por certo, motivações que desconhecemos. Inúmeras
crianças abandonadas na Roda carregaram consigo um passado enigmático, jamais sabendo
algo de concreto sobre seus familiares.
53
O censo de 1940 informa o número de pessoas por idade existente no Estado da Bahia nos anos de 1900,
1920 e 1940. Existiam, nos respectivos anos, os seguintes números de crianças entre 0 a 9 anos: 624.220,
983.803, 1.158.611. A média de crianças para este período é de 922.211,33. Comparando este dado com o
número de crianças assistidas pelo Asilo, constatamos que a instituição foi responsável por 0,4% do total de
crianças do Estado que estavam entre 0 a 9 anos. Infelizmente, o censo não nos dá dados sobre a população
infantil de Salvador, no período. Se o percentual de crianças de Salvador acompanhasse o percentual de
107
Para Ferreira Filho, que analisou a exposição de crianças no período de 1900 a 1926, o
grande número de informações encontradas em cartas e bilhetes acerca da criança era um sinal
de que as mães desejavam “burlar as proibições regulamentares da instituição, no tocante ao
contato entre exposto e os parentes”.
54
Ora, como já observamos anteriormente, não existia
nada no regulamento republicano que proibisse o resgate das crianças recolhidas, e o
regulamento anterior até previa visitas quando devidamente autorizadas pelo provedor. Desta
maneira, concordamos com Venâncio quando este, estudando a Roda, afirma que “no dia-a-dia,
administradores e vereadores tinham atitudes flexíveis em relação à questão: quem
quisesse recuperar o filho, sendo pobre, ficaria isento de pagamento”.
55
Identificar a criança mediante cartas e bilhetes não foi um meio adotado pelas mães para
romper com as regras, e sim uma forma de garantir o reconhecimento futuro de seus rebentos.
Conhecedoras das regras, estas mulheres sabiam que podiam registrar, por escrito, elementos
que facilitariam a identificação dos filhos no futuro. A mãe do menino Armando, um mês de vida,
deixou bem claro que conhecia as normas[...]quando asseverou: “[...]eu fui ahi e contei o meu
estado de pobreza a irman superiora então ella me disse q mandasse o menino...quando chegar
tempo eu então retiro porque sei q não pode ficar ahi”.
56
Um outro indício de que os familiares conheciam bem o funcionamento da instituição
encontra-se no uso do termo Pinheiro, para designar o Asilo. Durante muitos anos o Asilo dos
Expostos manteve, nas funções de rodeira e feitor, o casal Pinheiro, e isto fez com que a
população denominasse a instituição com o nome das pessoas responsáveis pelo recebimento
crianças do Estado da Bahia como um todo (29,52%), a instituição seria responsável por 4,92% das crianças
de 0 a 9 anos de Salvador.
54
FERREIRA FILHO, 1994, p.168.
55
VENÂNCIO, 1997, p.217.
56
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 15, 2 jul.1911.
108
das crianças.
57
Foi o que aconteceu com a menina Aracy, dois meses, deixada na Roda com o
seguinte bilhete: “o abaixo assignado declaro que vai ser depositado hoje na Casa de Caridade
do Pinheiro a menina Aracy”.
58
Da mesma maneira, uma menina de seis meses de idade, exposta
em 09 de maio de 1910, veio acompanhada da informação de que não era batizada e de que
estava “indo para o Pinheiro no dia 9 de maio de 1910”.
59
Se a existência de informações básicas sobre as crianças pode ser explicada pelo desejo
de reconhecê-las e resgatá-las no futuro, a ausência de justificativas para a exposição não pode
ser compreendida através de uma explicação única e objetiva. Podemos, no entanto, levantar
algumas hipóteses. É possível que as mães, conscientes de que estavam fazendo algo
condenável para si mesmas e para a sociedade, não procurassem justificar seus atos,
preocupando-se, apenas, em deixar sinais através dos quais pudessem identificar os filhos. Em
alguns casos fica evidente que a mãe, ou a pessoa responsável pela exposição da criança, não
desejava justificar-se nem muito menos saber sobre o destino do bebê, indicando, talvez, serem
essas exposições tentativas de infanticídio. Estão incluídas neste grupo todas as crianças sem
identificação que foram encontradas fora do Asilo e enviadas para a instituição por pessoas
estranhas ao universo familiar.
Para aqueles que preocuparam-se em justificar, as razões mais apontadas foram:
pobreza da mãe, doença da mãe, morte da mãe, morte do pai, morte de ambos, razões
morais, padrinhos ausentes, o trabalho da mãe, separação dos pais, cujas freqüências estão
indicadas na tabela e gráfico que seguem:
57
ASCMB. Relatório dos principais acontecimentos da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1914 a 1918, p.33.
58
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 15, 09 nov.1911.
59
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 14, 09 maio.1910.
109
Tabela 2 - Razões do abandono
Gráfico 2
A grande maioria, 3037 (80,7%), foi abandonada sem nenhum tipo de justificativa. Sem
explicação para o abandono estavam as crianças que foram deixadas na Roda praticamente sem
nenhum tipo de informação, e também aquelas encontradas nas ruas da cidade, no abrigo
maternal do Asilo e em casas de particulares. Pedro Chaves Mattos, oito dias de nascido, por
exemplo, “foi abandonado na sala de espera da Liga, nos braços de uma nutriz, a quem pediram
para carregal-o”.
60
Igualmente, uma menina de aproximadamente um dia de nascida, “ foi
enviada pelo Inrº Dr. Delegado de policia, por ter sido encontrada molhada de chuva na ladeira
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
%
Razões do abandono
Ignorada
Pobreza da mãe
Doença da mãe
Morte da mãe
Morte do pai
Morte de aMbos
Razões Morais
Padrinhos ausentes
Mãe trabalha fora
Separação dos pais
Razões do abandono %
Ignorada 3043 80,7
Pobreza da mãe 273 7,2
Doença da mãe 113 3,0
Morte da mãe 129 3,4
Morte do pai 120 3,2
Morte de aMbos 53 1,4
Razões Morais 8 0,2
Padrinhos ausentes 1 0,0
Mãe trabalha fora 24 0,6
Separação dos pais 9 0,2
TOTAL 3773 100
FONTE:
Livro de registro de entrada de expostos do asilo de Nossa Senhora da
Misericórdia, 1900 A 1940
110
de S. Francisco, chamada do monturo”.
61
Uma outra, também recém-nascida, foi “encontrada
pelo Dr. Vieira Lima, médico da Assistencia, às 8 e 5 minutos, por chamada de um guarda civil,
na volta do Campo Grande, ao entrar no Corredor da Victoria, em baixo de uma palmeira”.
62
Excluindo-se estas, o estado de pobreza da mãe foi a explicação mais utilizada (207
crianças, 7,2%), o que fortalece a nossa hipótese de que o Asilo, na República, tornou-se uma
instituição importante no atendimento a uma parcela da população infantil e pobre da cidade.
Por pobreza entendemos um estado decorrente das relações sócio-econômicas de uma
sociedade, manifestando-se em situações de intensa privação material para uma determinada
parcela da população.
63
Em Salvador, inúmeras famílias, sustentadas, na maioria das vezes, pelo
trabalho informal de mulheres, viviam no limite da pobreza.
64
Uma criança a mais ou uma única
não esperada podia significar um abalo substancial na economia doméstica. Todavia, como não
fizemos um estudo dos preços dos alimentos, não podemos afirmar que, em época de elevação
dos preços dos gêneros de subsistência, aumentasse, igualmente, a incidência do abandono.
Não apenas dados quantitativos podem nos fornecer informações sobre o estado de
pobreza das mães. Indicações sobre o local da moradia são também muito úteis neste caso.
Quando a criança era natural de Salvador, normalmente seus familiares residiam em distritos
destinados à população de baixa renda; tais como Brotas semi-rural e ocupada por pequenos
60
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 29, 18 set.1936.
61
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, nº15, 27 maio.1916.
62
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n 15, 30 nov.1917.
63
Uma discussão mais detalhada sobre os diversos conceitos de pobreza pode ser encontrada em
Marins,1998.
64
De acordo com Ferreira Filho (1994, p.43): “Além do comércio de rua, muitas mulheres locatárias de boxes
nos mercados e feiras, armavam barracas nas festas de largo ou abriam pequenos estabelecimentos n a própria
residência”.
111
proprietários , ou distritos onde havia grande concentração populacional, como Santana,
Santo Antonio, Penha, Nazaré e São Pedro.
65
A criança Aracy, posta na Roda em 9 de fevereiro de 1911, veio acompanhada de um
bilhete que declarava ter esta menina “residência em Brotas nesta cidade”.
66
Da mesma forma, o
garoto Christovão do Rosário, um ano e dois meses de idade, nasceu
[...]na Freguesia N.S. de Brotas no dia 25 de julho de 1904, segunda-feira.
Baptisado na mesma Freguesia de Brotas, no dia 15 de novembro de 1904. A mãe
é muito pobre, por isto faz aentrega a N. Senhora das Victorias e as boas filhas de
S. Vicente de Paulo. Vive empregada, e confessou-se pela Santa Missão de
Brotas.
67
O estado de pobreza da mãe de Miguel pode ser também comprovado pela ocupação
que esta desenvolvia, serviço doméstico, profissão parcamente remunerada e muitas vezes nem
remunerada. Esta mãe não deixou dúvidas de que a pobreza foi o que a motivou abandonar o
garoto. A entrega do filho era feita às forças sobrenaturais e humanas, numa total comunhão
entre os dois universos simbólicos. Entregava-o à Santa de sua devoção e, paralelamente, às
irmãs responsáveis pelo Asilo.
Muitas mães recorreram a uma linguagem religiosa para pedir proteção aos filhos,
indicando, com isso, uma influência considerável dos valores e das crenças católicas entre as
mulheres pobres da cidade. Por este motivo, sustentamos a hipótese de que o sentimento de
culpa, ao abandonar o filho, encontrado em bilhetes e cartas, era fruto de um processo de
incorporação e reinterpretação da ideologia dominante de valorização da posição materna na
65
David discorrendo sobre as paróquias menos atingidas pela epidemia do cólera em 1855, afirma que “Brotas
era majoritariamente habitada por pessoas pobres e de cor” (DAVID, 1996, p.133.).
66
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 15, 09 nov.1911.
67
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 13, 1905.
112
criação dos filhos. Uma ideologia cristã e não higienista, em que pese esta última ter reforçado a
valorização do papel da mãe.
Josepha, uma mãe pobre mas alfabetizada, justificou o abandono alegando pobreza e,
para isso, recorreu a um discurso que transmitia uma idéia de dor e pesar:
Exmº Inrº ou Snrº
Peço pelo amor de Deus tenha pena deste innocente que eu como mãe deito
na roda porque não tenho meios para crial-o, tive elle no dia 4 deste na
Maternidade às 9 horas do dia não está baptisado. A mãe delle é Josepha dos
Santos, eu mesmo escrevi com o coração esperançoso que em breve verei
meu filho criado bom e forte.
68
Infelizmente as expectativas de Josepha não foram correspondidas, morrendo o menino
de causa ignorada.
Um outro exemplo de abandono gerado pela pobreza foi o do menino Rubens Pereira,
com apenas 17 dias de nascido. Sua mãe fundamentou o abandono da seguinte forma:
Eu Maria da Luz Pereira sendo uma mulher do povo e tendo este filho sem
casa nem alimento para sustentar, recorro a Santa Casa da Misericordia para
que crie e eduque até o tempo determinado. Elle chama-se Rubens Pereira
ainda não está baptisado, rogo a caridade de fazel-o christão. Nascido à 29 de
julho de 1927 na Maternidade Climerio de Oliveira. Bahia 15/08/27. A
indigente Maria Luz Pereira.
69
A própria Maria se via como indigente, ou seja, no estado de extrema pobreza e sem os
elementos mínimos, casa e comida, necessários à sobrevivência. Curiosamente, Maria, embora
pobre, assim como Josepha, sabia escrever. E mais, através de seu bilhete podemos perceber
que a mesma utilizou-se de uma linguagem comum às elites, “mulher do povo”, para caracterizar
68
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 24, 13 ago.1930.
69
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 22, 15 ago.1927.
113
a própria pobreza. Além disso, estas mulheres, embora destituídas de uma situação econômica
estável, possuíam um mínimo de educação formal.
Algumas mães escreveram do próprio punho as declarações sobre os filhos, é certo que
nem sempre de forma tão clara como fizeram Maria e Josepha. Mas as cartas e bilhetes indicam
a existência, entre as mulheres pobres, de uma formação educacional mínima.
70
De quem
receberam e como, isto infelizmente não podemos responder. Podem ter feito parte dos
segmentos médios e, devido a circunstâncias fortuitas, empobrecido. Ou, talvez estas mulheres,
mediante um intenso processo de interação social e cultural com as elites, tenham absorvido e
reelaborado o discurso dominante. Ambas são hipóteses plausíveis, mas, de objetivo, somente a
constatação de que mulheres como Maria, Josepha e outras realmente encontravam-se em um
estado de extrema pobreza quando resolveram abandonar seus filhos.
A idéia de uma interação entre cultura popular e cultura de elite implica em postular a
existência de valores aparentemente opostos, mas que, no fundo, são elaborados dentro de um
código comum. Um código reinterpretado pelos diversos segmentos da sociedade, tendo em
vista não uma relação mecânica que impõe valores de cima para baixo, mas uma relação
dialética. Diante desse pressuposto não podemos estranhar a poesia de Coelho Neto, “Ser
Mãe”, onde a valorização da maternidade e a idealização da mulher-mãe são visíveis. Estrofes
até hoje conhecidas pela população pobre, sem que este segmento saiba, entretanto, sua autoria:
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
O coração! Ser mãe, é ter no alheio
labio que suga, o pedestal do seio,
onde a vida, onde o amor cantando vibra.
Ser mãe é ser um anjo que se libra,
70
Devemos ressaltar que muitos bilhetes, apesar de transcritos pelos administradores do Asilo, foram
originariamente escritos pelas mães. Os funcionários do Asilo tentavam reproduzir a assinatura destas e as
mulheres que não redigiam os bilhetes esclareciam sobre a autoria dos mesmos.
114
Sobre um berço dormindo! É ser anseio,
é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!
Todo bem que não gosa é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada
luz que lhe põe nos olhos novo brilho
Ser Mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso !
71
Algumas mães pobres, como foi o caso de Maria Emilia Portella, mesmo enfrentando
inúmeras dificuldades, ficavam com os filhos até uma certa idade. Maria Emília não tinha
condições de garantir uma formação escolar e profissional ao filho e temia a sua marginalização.
Por conta disso, colocou-o no Asilo. Para ela, o Asilo de N. S. da Misericórdia encontrava-se
em condições de encaminhar as crianças pobres à uma vida honesta. Maria declara:
Meu filho Wandenkok da Silva, nasceu no ano de 1920 a 4 de fevereiro na
Freguesia de Santo Antonio, baptisou-se na Freguesia de Sant’Anna,
sendo padrinhos Cecilia do Amparo Figueredo e Athanazio Bispo, filho natural
deste Estado, sua mãe Maria Emilia Portella. Os expectadores talvez me
julguem uma mãe cação como dizem, criei até a idade de 5 annos com o suor
do meu rosto, me vejo sem recursos agora procurei a caridade para que não
seja meu filho amanhã um batedor de carteiras, os mesmos que falam agora
mais tarde não soube educar. Em todo caso me consolo com a vontade de
Deus. Maria Emilia.
E ainda. Vae meu filho seja humilde para todos para amanhã eu ter um filho, e
se eu não morrer tu ser bem creado para quem te acabar de educar.
72
Temendo, portanto, um futuro de ilegalidade para o filho, Maria Emília depositou-o na
Roda e retirou-o três anos depois, ou seja, quando este tinha 8 anos de idade. Preocupando-se
71
Diario da Bahia. Bahia, p.1, 07 fev.1901. Henrique Maximiniano Coelho Neto chegou a estudar na
Faculdade de Direito, mas dedicou-se mesmo ao jornalismo e à política. Desempenhou cargos públicos, foi
Deputado Federal, ocupou a presidência da Academia Brasileira de Letras em 1926 e foi eleito o “Príncipe dos
prosadores brasileiros em 1928. Situado na mesma corrente naturalista de Euclides da Cunha e José de
Alencar, entre outros. Unindo romance, conto e teatro numa mesma visão do homem e de suas realidades, a
obra de Coelho Neto se apresenta como um retrato da nossa vida nacional no difícil período que vai do fim do
115
da mesma forma com a educação de seu afilhado, a madrinha do menino Waldemar, 4 anos de
idade, justificou:
Recorro a Santa Casa de Caridade para depositar o meu afilhado para que
elle receba a educação necessaria, que assim que deus ajudar e me dar um
descanço eu irei requerel-o.
73
Algumas vezes a pobreza associava-se à marginalidade dos pais, provocando o
abandono da criança. Foi o que ocorreu com a menina Maria, colocada no Asilo em 28 de
junho de 1934. Esta veio acompanhada por um bilhete que informava ser seu pai o bandido Luiz
Pedro e sua mãe uma nordestina desconhecida.
74
Da mesma forma, a marginalidade do pai foi a
razão do abandono de uma outra criança que tinha apenas 16 dias de nascida. Informava o
bilhete:
Creança filha de Ymidio Ribeiro da Silva e Veronica Maria de Jesus, nascida
em 4 de abril de 1934, em Caldeiras Grande. O referido pai pertence ao
grupo do bandido Arvorêdo. A referida menina foi deixada na estação de
Jurema, entregue ao comandante do destacamento daquela localidade.
75
Afora a pobreza, a doença e morte da mãe foram motivos bastante alegados. As
crianças abandonadas, por terem se tornado órfãs de mãe (3,4%), podem ser agrupadas com
aquelas cujo abandono foi explicado pela morte do pai (3,2%) e pela morte de ambos (1,4%).
Perdendo a mãe, o pai ou ambos, a criança via-se desprotegida e só lhe sobrava como destino o
Asilo dos Expostos. Este, portanto, apesar de não ter sido criado
século passado ao início do atual ”. In: AFRÂNIO COUTINHO. A literatura no Brasil. 3 ed.,Rio de Janeiro:
José Olympio, 1986, p.231.
72
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 20, 12 jun.1925.
73
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 22, 08 jul.1935.
74
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 28, 28 maio. 1934.
75
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 27, 20 abr.1934.
116
para funcionar como orfanato, assumiu esta função para a população. Somando as três causas
citadas acima constatamos que 8% da população dos expostos eram órfãos, proporção
ligeiramente superior à apresentada pelas crianças expostas por causa da pobreza. As péssimas
condições sanitárias da cidade de Salvador favoreciam a propagação de doenças epidêmicas.
Além do mais, a pobreza e, conseqüentemente, a fome, pairavam sob a maior parte da
população, ceifando a vida de homens e mulheres. Havia também a sífilis, doença sexualmente
transmissível que acometia parte da população masculina e feminina da cidade e que causava
não só a morte da população adulta como também infantil.
76
Essa doença foi largamente
combatida pelos higienistas. A tuberculose, por sua vez, alastrou-se em grande proporção entre
a população pobre, fazendo inúmeras vítimas.
77
A doença da mãe como causa do abandono correspondeu a 3,0% das crianças
expostas e, se levarmos em conta o fato de que muitas dessas mulheres não sobreviviam,
teremos uma proporção ainda maior de órfãos. O menino Djalma Santos teve, por exemplo, seu
abandono assim justificado:
Djalma Santos, filho natural de Margarida dos Santos e Pedro Alexandrino de
Anunciação. Nasceu na Maternidade em 2 ou 3 de abril de
1940. O pae reside fora da Bahia, não se sabe aonde e está muito doente. A
mãe, com quem mora o pequeno, está tuberculosa, com embolia, desenganada
pelos médicos. A avó que já esteve louca toma conta da doente e da creança
e de outro neto de 8 annos filho tambem de Margarida.
78
Era mesmo muita infelicidade e sofrimento para uma família só. Felizmente a criança
sobreviveu e foi retirada por sua tia Candida Pereira, em 1953, aos 13 anos de idade .
76
Sobre a sífilis e suas conseqüências sobre a população pobre de Salvador, ver Santana, 1996.
77
SILVA SANTOS, 1990, p.145.
78
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 30, 04 set.1940.
117
Ao que parece, a loucura, doença muito apontada como causa do abandono, pairava
sobre o universo feminino. O estado de loucura temporário ou permanente das mulheres pode
ter várias explicações, sendo uma delas o que atualmente chamamos de depressão pós-parto e
que, na época, podia ser facilmente confundida com a perda da sanidade mental. Uma outra
explicação encontra-se na possibilidade da loucura ser conseqüência do estágio avançado da
sífilis. A fome e a falta de perspectivas para uma vida futura podem ter igualmente levado muitas
mulheres ao desequilíbrio mental.
Leandra foi uma dessas mães que, acometidas pelo estado de loucura, separou-se
definitivamente de sua filha Teresinha. Esta, com apenas 2 meses, foi entregue ao escritório de
admissão do Asilo, enquanto sua mãe era internada no Hospício S. João de Deus.
79
A pequena
não teve um destino melhor, morrendo de pneumonia 7 meses depois de ter dado entrada na
instituição. Assim, também, foi o caso da menina Maria da Conceição, com 6 meses de idade.
De acordo com a declaração que a acompanhava, “o motivo de deitar a creança na roda, foi a
mãe ter enlouquecido na noite de 10 de agosto de 1932, na residencia do Snr. Octacilio Ramos,
onde se achava empregada como cozinheira”.
80
A alegação da perda da mãe por doença ou morte como motivo da entrega da criança
aos cuidados do Asilo demonstra o papel fundamental da figura materna na criação e formação
das crianças. Esta constatação não invalida, entretanto, a importância atribuída à família nuclear
pelos segmentos populares. As mulheres que recorriam ao Asilo, enfatizavam a figura paterna ou
a falta que esta figura fazia. Olga de Souza, um bebê de três meses, foi deixada na roda por sua
mãe Áurea Vitalina. Esta explicava: “ Deito porque não posso ter em meu poder, já tenho 4
79
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 29, 15 jan.1937.
80
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 28, 11 ago.1932.
118
filhos sem pae, já é morto, o pae me deixou com elles ”.
81
Está claro que, neste caso, como em
outros que encontramos, a morte do pai provocou um desequilíbrio no orçamento já
tradicionalmente reduzido. O sumiço temporário ou definitivo do pai induzia ao abandono das
crianças menores que, por serem muito pequenas, não podiam desenvolver atividades produtivas
nem, muito menos, acompanhar suas mães na luta cotidiana pela sobrevivência.
Acreditamos que mesmo as mulheres que sustentavam-se praticamente sozinhas deviam
manter relações consensuais e instáveis com parceiros que, de uma forma ou de outra,
contribuíam com o orçamento doméstico. Não é de se estranhar, portanto, que a menina Luíza,
um ano e meio de idade, órfã de pai e mãe, tenha sido depositada na Roda pelo único parente
vivo que poderia criá-la, o tio.
82
Nem que uma mãe chorosa e desesperada, ao colocar o filho
na Roda, deixe claro o quanto podia fazer falta o apoio paterno na criação dos filhos. Foi o que
ocorreu com Anna Maria da Conceição, quando colocou na Roda seu filho Armando, com um
mês de vida. Anna confessa:
[...]se achando sem recursos para criar cheguei a elle fiz toda combinação
para ver se cedia elle de forma nenhuma elle cedeu eu vendo a creança
chorando com sêde eu sem leite para dar e sem ter recurso para comprar eu
fui ahi e contei meu estado de pobreza a irmam superiora então ella me disse q
mandasse o menino.
83
Anna Maria não conseguiu sozinha garantir a sobrevivência da criança, recorrendo por esse
motivo ao pai que, por sua vez, rejeitou a idéia de assumir qualquer tipo de responsabilidade. A
atitude de desprezo do pai foi fatal para o abandono de Armando e para sua subsequente morte.
Mesmo quando o pai não rejeitava a criança, as dificuldades econômicas em que este
normalmente encontrava-se podiam provocar o abandono. O menino Aberlado, órfão de mãe,
81
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 22, 24 maio1928.
119
foi deixado pelo seu pai na Roda com a seguinte alegação: “eu por motivo de força maior não
podendo tratar da creança porque sou solteiro e vivo atrazado em meus vencimentos eis os
motivos que cedo desta forma” .
84
Outras razões para o abandono foram encontradas, mas em proporção mínima. O
trabalho feminino fora do espaço da casa foi uma dessas razões. Devemos salientar que, se
assim agiam, é porque eram, obviamente, pobres e não por causa de idéias feministas de
liberação da mulher de atividades exclusivamente domésticas. Segundo Marina Maluf e Maria
Lúcia Mott, boa parte das mulheres brasileiras viviam consensualmente com companheiros
que não tinham um trabalho regular. “Juntamente com os serviços domésticos realizados da
maneira mais dura e tradicional, cuidavam dos filhos e exerciam várias atividades ao mesmo
tempo, para prover a própria subsistência e da família”.
85
Fazer de sua casa local de trabalho foi
a forma encontrada por algumas mulheres pobres para evitar o abandono das crianças. Mas,
para aquelas que se viram impelidas a trabalhar fora do lar, só restou uma alternativa: depositar a
criança ainda bebê na Roda. José Apollonio, 5 meses, foi exposto por sua mãe que necessitou
trabalhar na rua. Maria da Conceição, a mãe, em 26 de julho de 1906, assim justificou o
abandono: “deito-o no Asylo dos Expostos porque preciso alugar-me para cria de leite, e
ordenado que recebo não chega para o criar”.
86
Este caso evidencia a permanência, entre
famílias abastadas, do hábito escravista, de alugar os serviços de uma ama de leite, gerando o
abandono ou a morte do filho da ama.
A moral duvidosa da mãe podia fazer com que um pai abandonasse o filho no Asilo.
Ironicamente, o pai que tomava essa decisão acreditava estar zelando pelo bem-estar da
82
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 14, 20 fev.1910.
83
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 15, 02 jul.1911.
84
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 15, 16 jul.1914.
85
MALUF; MOTT, 1998, p.400.
120
criança. Por exemplo, Paulo Zerbini, um italiano que teve uma filha ilegítima com uma baiana de
Santo Amaro, assevera:
Paulo Zerbini, residente na Itália vem apellar para os sentimentos caridosos e
instintos desta Pia Instituição para o fim de receber e abrigar entre os demais
asilados a menor Justina das Virgens Zerbini de quatro anos de idade, mestiça
natural da freguesia de Rio Fundo em Santo Amaro e filha de Maria de S.
Pedro que pelas suas exigues condições materiaes e moraes não lhe proveu a
subsistência e educação.
87
Zerbini explicou o abandono da criança que levava seu nome mediante a condenação da
vida da mãe. Ela, e não a figura paterna, foi considerada incapaz moral e financeiramente de criar
Justina. Apesar da situação de abandono, Justina conseguiu sobreviver e, ao casar-se aos 18
anos de idade com Felippe Santiago da Silva, levou uma caderneta de poupança doada por
Paulo Zerbini no valor de cem contos de réis.
O mesmo ocorreu com a menina Helenita de apenas 26 dias de nascido. O seu bilhete
informava : “a creança só deve ser entregue ao Pae della daqui a um ou dois anos..., nem a
própria mãe poderá retiral-a por falta de meios e pela vida duvidosa que leva”.
88
É provável que a criança fosse filha de uma prostituta. Mas o importante é que, para
Helenita, o que lhe restou foi a morte. Morreu de sífilis dois meses após ter dado entrada no
Asilo e, por este motivo, nem a mãe “de moral duvidosa” nem o pai puderam recuperá-la.
A separação dos pais e a ausência temporária ou definitiva dos padrinhos, como se pode
ver na tabela anteriormente apresentada (tabela 2), não foram justificativas muito usadas para o
abandono. Ao que tudo indica, a separação de casais só se tornava um problema quando vinha
acompanhada do desinteresse paterno pelos filhos. Por outro lado, o número pequeno de
86
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 13, 26 jul. 1906.
87
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 15, 1912.
88
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 22, 19 jul.1928.
121
padrinhos preocupados em prestar contas acerca do abandono fortalece a nossa idéia de que as
relações de compadrio nem sempre correspondiam ao esperado, ou seja, um compromisso
social entre padrinhos e afilhados. Mas não há duvidas de que essas relações tinham uma forte
conotação simbólica dentro do universo religioso e cristão da população pobre da cidade.
Às vezes era difícil recorrer a parentes ou compadres para auxiliar na criação das
crianças. As relações de compadrio foram apontadas por Ferreira Filho como um meio
encontrado pela população pobre e cristã para ampliar as relações familiares e intensificar as
redes de solidariedade social. De acordo com este autor, a escolha dos padrinhos era feita com
nítido sentido de proteção. Para Ferreira Filho, “a importância do compadrio com pessoas de
situação social mais elevada era tão sentida pelos populares, que, muitas vezes, o batismo era
feito sem a presença do distinto e rico padrinho, através do recurso da procuração”.
89
Não
encontramos, entretanto, mais do que quatro casos onde se percebe serem os padrinhos de
condição social mais alta do que a dos pais. Foi o que ocorreu com a menina Júlia da
Conceição, um 1 e 4 meses, órfã de pai e mãe e batizada na cidade de Muritiba, tendo “como
padrinhos de baptismo Inrº Antonio Nunes e D. Nininha.”
90
É possível, devido à forma
respeitosa de tratamento dado ao padrinho, que este pertencesse a uma classe social mais
elevada. Padrinho de prestígio mesmo foi o do garoto de 2 anos de idade, exposto pela mãe
Leopoldina de Macedo, em 07 de setembro de 1918.
91
O menino era afilhado do Dr. Aristides
Maltez, clínico de renome na cidade. O padrinho, muito provavelmente, facilitou para que a mãe
da criança fosse contratada como empregada da creche, não rompendo, desta forma, os
vínculos entre mãe e filho.
89
FERREIRA FILHO, 1994, p.174.
90
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 19, 02 mar.1925. O termo Inrº significava ilustríssimo,
pronome de tratamento utilizado no trato cortês e cerimonioso.
122
Padrinhos ricos e influentes podiam tornar a vida de um exposto bem mais suave, mas
isso não quer dizer que as madrinhas pobres não tentassem recuperar seus afilhados. Foi o que
aconteceu com um menino exposto em 11 de setembro de 1924 e retirado por sua madrinha em
18 de novembro do mesmo ano.
92
Infelizmente, neste caso, a madrinha Francisca Maria da
Conceição, provavelmente por falta de condições econômicas,
depositou-o novamente na Roda. O garoto, que recebeu o nome cristão de Tercilio de Mattos,
entrou com 6 anos de idade e foi retirado, definitivamente, em 1930, aos 12 anos, pelo Sr.
Antônio Mauricio de Freitas. Resgatado pelo padrinho, talvez, mas não há nenhum dado que
confirme tal suposição.
A cerimonia do batismo tinha, de fato, uma grande importância religiosa para os
familiares da criança exposta. Quase todos preocupavam-se em informar se a criança era
batizada e quem eram os padrinhos. O pai da menina Angelina Vianna, exposta em 7 de junho
de 1908, noticiou, detalhadamente, que a menina foi “baptisada no dia 5 de junho, primeira
sexta-feira do mez, pelo religioso Francisco Valeriano, com autorização do Refº Mons. Novaes
M.D. Vigário desta freguesia”.
93
Mas o batismo não foi suficiente para proteger a menina, o
que fez com que seu pai solicitasse a sua consagração ao Divino Sagrado Coração de Jesus.
Compartilhando com as mesmas preocupações espirituais do pai de Angelina, a mãe do garoto
Rubem Pereira, exposto em 28 de fevereiro de 1925, comunicou que seu filho não era batizado
por “falta de caridade dos padrinhos”. Por isto pedia: “a caridade de dar agua do baptismo ao
meu innocente e que peça ao Peº para ser padrinho delle
94
. Eleger um padre como padrinho
91
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 16, 07 set.1918.
92
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 18, 11 set.1924.
93
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 14, 7 jun.1908.
94
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 19, 28 fev.1925.
123
significava proteger duplamente a criança. Acreditava-se que o sacerdote, por estar mais
próximo de Deus, estava em melhores condições de interceder em favor da mesma.
Informes sobre o batismo dos expostos evitavam que novos assentamentos fossem
feitos, caso o exposto já fosse batizado, e garantia a cerimônia para a criança pagã,
preparando-a, no caso de sua morte, para a vida eterna. Não negamos que o ritual de batismo
reforçava os laços de solidariedade econômica entre a população pobre, mas este,
paralelamente, proporcionava um momento de resgate da alma da criança, um renascimento
espiritual. Assim, as relações de compadrio eram ao mesmo tempo formuladas e pensadas
dentro de duas concepções, a mística e a social. Mas será que na prática os padrinhos tinham
uma importância social para a criança exposta na mesma medida que tinham espiritualmente?
Saída dos Expostos
Uma observação mais detalhada das pessoas que retiraram os expostos entre 1900 e
1940, através dos dados contidos na tabela e gráfico 3, é suficiente para percebermos que a
participação dos padrinhos foi pequena, representando apenas 1,6% do total das crianças que
saíram. Quase a metade das crianças (47%) foi resgatada por suas mães, o que confirma o
papel de destaque destas no processo de criação e socialização das crianças. A participação
dos pais no resgate dos filhos foi também considerável, contribuindo com um índice de 6,3%,
124
abaixo apenas do índice de crianças retiradas para serviço doméstico (13,2%) e para outros fins
(21,2%).
Tabela 3- Saída dos expostos (requerente)
Gráfico 3
O item “Outros” da tabela e gráfico 3 inclui todos os casos de crianças enviadas a
internatos tais como a Escola de Menores Abandonados, o Liceu Salesiano de Salvador, o Asilo
de Mendicidade e a Escola Agrícola de Santo Amaro.
95
Também, neste grupo, estavam aquelas
que eram adotadas quando ainda pequenas ou que saiam por conta própria, ao atingir a idade
adulta. A menina Gilda, por exemplo, saiu por conta própria para ser religiosa no Instituto das
95
O Asilo, ao referir-se à Escola de Menores Abandonados, tanto podia estar pensando na Escola
Profissional Para Menores existente em Salvador, como na Escola Profissional de Menores Pobres de
Requerente %
Ignorado 76 8,0
Pai 60 6,3
Mãe 448 47,0
Avós 12 1,3
Tios 15 1,6
Padrinhos 15 1,6
Serviços Domésticos 126 13,2
Outros 202 21,2
TOTAL 954 100,0
FONTE:
Livro de registro de entrada de expostos do asilo de Nossa Senhora da
Misericórdia, 1900 A 1940
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
%
Saída dos expostos (requerente)
Ignorado
Pai
Mãe
Avós
Tios
Padrinhos
Serviços Domésticos
Outros
125
Missionárias de Jesus Sacrificado, em 5 de janeiro de 1942, aos 24 anos de idade.
96
Já o
menino Mário de Oliveira, exposto em 13 de abril de 1933, saiu para a Escola de Menores
Abandonados, aos 13 anos de idade.
97
Igualmente, Miguel Antônio dos Santos, exposto com 5
anos de idade em 9 de fevereiro de 1925, saiu para a Escola de Menores Abandonados com 13
anos de idade.
98
Dois garotos, expostos no mesmo ano de 1930, foram enviados para a Escola
Agrícola de Santo Amaro, em 26 de janeiro de 1940.
99
O menino Benedicto teve mais sorte,
tendo sido adotado ainda recém-nascido
100
. Na verdade, ao possibilitar a adoção de Benedicto
no mesmo mês em que deu entrada, o Asilo inviabilizou que sua mãe o reencontrasse três anos
depois, como era seu desejo.
Às vezes, a adoção era feita pelo próprio pai, que finalmente resolvia reconhecer o filho.
Luiz Carlos, órfão de mãe e deixado na Roda com vinte e três dias de nascido, em 21 de
outubro de 1934, “foi retirado pelo Inrº Antonio Vieira que manifestou depois ser o próprio
pae”.
101
Essa sorte não teve o menino Raymundo, retirado pelo juiz de menores aos 12 anos de
idade, não se sabe para onde.
102
Para não falar de Pedro, exposto em 18 de setembro de 1936
com 1 ano e 8 dias de nascido. Este garoto foi transferido para o Juliano Moreira, onde ficavam
os supostos loucos, aos 14 anos de idade.
103
A faixa etária de saída das crianças era bastante variada. Todavia percebe-se, pela
tabela e gráfico 4, que mais da metade das crianças (52,2 %) saía antes do término da primeira
infância, ou seja, entre 0 a 7 anos.
Muritiba. É possível que a expressão Escola de Menores Abandonados fosse a forma adotada pela
população para nominar estas instituições.
96
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 19, 10 dez.1924.
97
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 14, 13 abr.1933.
98
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 19, 09 fev.1925.
99
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 24, 05 ago.1930 e 13 ago.1930.
100
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 17, 20 jul.1921.
101
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 28, 21 out.1934.
102
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 28, 28 ago. 1935.
126
A preocupação em retirar a criança ainda pequena pode ter sido motivada pelo
arrependimento da família ou por temor de que a criança não resistisse à exposição. Por
semelhante situação passou um garoto de 4 meses, exposto por sua mãe Etelvina Cascianna dos
Santos, em oito de junho de 1918. Um mês depois, 7 de agosto do mesmo ano, Etelvina
retratou-se, retirando-o.
104
Situação incomum e deveras surpreendente foi vivenciada por uma
criança de 4 anos, aleijada e muda, exposta em 15 de junho de 1940. A mãe, apesar da
deficiência física da criança, retirou-a oito anos depois, ou seja, quando já tinha 12 anos de
idade.
Um longo tempo no Asilo podia gerar a morte ou o envio das crianças para um local
desconhecido. A saída de crianças na segunda infância, entre oito e quatorze anos, perfaz 34,7
% do total. Retiradas normalmente pela instituição e raramente pela família, saiam para trabalhos
domésticos em casas de particulares ou para outros internatos. Algumas mães, entretanto,
resgatavam seus filhos quando estes já estavam com quatorze anos e até mesmo após essa
idade. Por exemplo, uma menina exposta quando tinha dois anos de idade foi recuperada por
sua mãe, Aurélia Dantas, quatorze anos após o abandono, ou seja, quanto já tinha 16 anos de
idade.
105
Poucos expostos saíram com a maioridade (2%), o que significa que a maioria saiu
quando ainda estavam em fase escolar ou quando ainda constituía mão-de-obra barata para o
mercado. Os expostos que se retiraram do Asilo após terem completado 21 anos o fizeram por
conta própria.
Tabela 4- Idade de saída
103
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 29, 18 set.1936.
104
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 16, 08 jun1918.
105
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 15, 01 fev.1912.
127
Gráfico 4
Destinos incertos, internamento em outros institutos disciplinares, trabalho forçado em
casa de particulares, estes foram os destinos das crianças que não conseguiram reaver sua
família ou encontrar uma nova. Diante deste quadro, uma constatação se faz : a família e o
equilíbrio econômico desta, fosse composta só pela mãe ou por mãe e pai, era crucial na hora
de decidir o abandono e/ou resgate de uma criança. Sendo assim, é importante que analisemos a
estrutura familiar das crianças expostas, tendo como parâmetros o estado de legitimidade das
mesmas.
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
0 a 7
anos
8 a 14
anos
15 a 21
anos
22 a 28
anos
29 a 35
anos
Idade de saída
%
Idade de saída %
0 a 7 anos 461 52,4
8 a 14 anos 305 34,7
15 a 21 anos 96 10,9
22 a 28 anos 11 1,3
29 a 35 anos 6 0,7
total 879 100,0
Fonte : Livro de registro de entrada de expostos de 1900 à 1940
128
Filiação das crianças expostas
Com podemos constatar pela tabela e gráfico 5, o número de crianças sobre as quais
não se pode afirmar se eram filhos legítimos ou ilegítimos alcançou 76,9% da população asilada.
Tabela 5- Legitimidade dos expostos
Estas crianças vinham acompanhadas somente de informações sobre a mãe, sobre o
batismo e sinais físicos de identificação - desde roupas e objetos até descrições étnicas.
Apenas 23,1% das crianças vieram acompanhadas de dados sobre a situação familiar,
13,6% do total de crianças expostas eram filhos ilegítimos e 9,5% legítimos. Acreditamos que as
crianças de filiação ignorada eram, em sua maioria, ilegítimas, e que as mães não mencionavam
este dado por não darem tanta importância a ele.
Legitimidade %
Ignorada 2902 76,9
Legítimo 357 9,5
Ilegítimo 514 13,6
TOTAL 3773 100,0
FONTE:
Livro de registro de entrada de expostos do asilo de Nossa Senhora da
Misericórdia, 1900 A 1940
0,0
20,0
40,0
60,0
80,0
%
Ignorada Legítimo Ilegítimo
Gráfico 5 Legitimidade dos expostos
129
Devemos lembrar que, para as pessoas crescidas dentro do universo católico, o que de
fato importava era o casamento religioso. O casamento civil instituído com a República era, para
muitos, algo desconhecido ou, no mínimo, secundário. Situações como a dos pais da exposta
Angelina são exemplos do predomínio do casamento religioso sobre o casamento civil.
Francisco Viana, casado no religioso com Joana Maria de Jesus, só abandonou sua filha por
causa do estado de pobreza em que se encontrava.
106
Para Francisco, Joana era sua esposa
legítima, muito embora não fossem casados civilmente. Da mesma forma, os pais da menina
Diva, exposta em 24 de junho de 1924, eram casados somente no religioso.
107
Deviam existir,
em Salvador, muitos outros casais pobres nesta situação.
108
Não obstante, não podemos deixar de perceber que, de fato, o estado de ilegitimidade
das uniões favorecia o abandono das crianças. As mulheres geralmente usavam a denominação
“natural” quando queriam informar sobre a ilegitimidade de seus filhos. A exposta Jeronyma “era
filha natural de Maria da Conceição”.
109
Devemos salientar que o Código Civil de 1916, ao
contrário do que fazia a população, desdobra o conceito de filiação ilegítima. Os ilegítimos
podiam ser naturais ou espúrios. Espúrios eram aqueles nascidos fora do casamento e
provenientes de uniões inadequadas por conta do grau de parentesco existente entre o casal.
Natural era toda criança nascida de uniões consensuais. Em algumas situações, o estado de
ilegitimidade da criança exposta só pôde ser percebido pelas entrelinhas. Foi o caso de Olga dos
Santos, exposta em 26 de outubro de 1927. O seu bilhete assegurava: “Olga é mais uma filhinha
106
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 14, 07 jun.1908.
107
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 18, 24 jun.1924.
108
Só ocorreram dois censos durante o período escolhido para estudo, um em 1920 e outro em 1940. Apenas o
último censo fornece dados sobre o estado conjugal dos baianos. De acordo com o censo de 1940, em uma
população de 1.379.616 habitantes havia: 972.431 solteiros, 338. 845 casados, 68.000 viúvos e 0 ignorados. Os
solteiros correspondiam a 70,5 % da população em oposição aos 24,5 % dos casados.
109
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 14, 1907.
130
do Dez. Lemos”.
110
Filha ilegítima, já que não possuía o sobrenome do pai e sim o de sua mãe.
Até 1916 era muito comum encontrar casais legítimos com sobrenomes diferentes, situação que
foi revertida com a criação do código civil. De acordo com o artigo 240 deste código: “a mulher
assume com o casamento, os apelidos do marido e a condição de sua companheira, consorte,
colaboradora dos encargos da família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral
desta”.
111
Outro caso de ilegitimidade não declarada, mas subentendida, foi o do garoto exposto
em 10 de julho de 1933. O bilhete enunciava: “A minha mãe é natural de Portugal; residente
actual na Bahia, chama-se Maria Helena Rodrigues, o meu pae não posso dizer”.
112
Se em uniões ilegítimas as possibilidades de abandonar um filho eram maiores, os filhos
legítimos não estavam totalmente protegidos do abandono. Este fato é claramente percebido pelo
número de crianças legítimas deixadas no Asilo (9,5%). É verdade que uma maior estabilidade
econômica, presente normalmente em famílias unidas pelo matrimônio, se não impediam pelo
menos dificultavam a separação entre pais e filhos. Essas famílias, no entanto, quando sacudidas
por algum drama interno como o da separação dos cônjuges, afastavam-se, igualmente, de suas
crianças. Waldemar Menezes, de 2 anos e 3 meses, foi colocado na Roda por seus pais Manuel
Menezes e Leolinda Menezes, porque estes haviam se separado.
113
Waldemar foi retirado pelos
pais, cinco meses depois, provavelmente por terem se reconciliado.
Da mesma forma, o falecimento do pai era, para as famílias legítimas, mais um
elemento que estimulava o abandono dos filhos. O menino Manoel Borges, filho de Olava Queiróz
110
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 22, 26 out.1927.
111
Código Civil de 1916. In: Código Civil Brasileiro. 6º ed, São Paulo: Atlas, 1983.
112
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 27, 10 jul.1933.
113
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 15, 1914.
131
Borges e Luiz Pires Borges (falecido), foi abandonado em 1924 e nunca mais retirado pela
família, saindo do Asilo diretamente para Escola de Menores Abandonados, em 1933.
114
Houve casos em que a mágoa do pai e sua insatisfação com término do casamento foram
cruciais para o abandono. Maria das Mercês Senna, filha de Isabel Santos Senna e Manoel da
Paixão Senna, foi exposta por seu pai em 17 de julho de 1926, com um ano de idade, com o
seguinte argumento:
[...]segue para a casa de caridade por não ter mãe. Eis o motivo que chego ao
ponto de aborrecer as irmãs de caridade, pois é o único recurço e abrigo que
tenho, que achando-se deprezada pelo amor de mãe, meu pae não me achando
quem me crie procurou a casa das Irmãn de Caridade para me criar; sendo
que minha mãe convivesse com meu pae nada disto acontecia.
115
O pai de Maria arrependeu-se ou talvez reconciliou-se com a esposa e, por isso, recuperou Maria
um mês depois.
O estudo da estrutura familiar é importante, se quisermos conhecer os elementos
responsáveis pela separação brusca entre pais e filhos. Mas com isso não estamos de forma
alguma reafirmando a tese muito em voga entre as elites da época, de que a desestruturação
familiar era a causa do estado de abandono das crianças pobres e, consequentemente, da
criminalidade infantil. Pelo contrário, acreditamos que este pressuposto fez parte de uma
construção ideológica que pretendia impor à população pobre um modelo de família nuclear,
modelo este que era visto pelo ideal cristão e burguês como a forma legítima de socialização da
criança.
Porém, todas as crianças deixadas na Roda entre 1900 e 1940, nascidas ou não em lares
legalmente constituídos e contando ou não com o desejo dos pais em criá-las, tinham em comum
114
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 19, 12 dez.1924.
132
o fato de pertencerem a uma sociedade extremamente desigual e excludente, onde a pobreza era
a tônica para a maior parte da população.
Da mesma forma, é importante que ressaltemos a inexistência entre os pais de atitudes
preferenciais de um filho a favor do outro em função do sexo. Das crianças admitidas no Asilo
entre 1900 e 1940, 52,3% eram meninas e 47,7% meninos, portanto, variações não
significativas
116
.
A origem social das crianças expostas pode ser encontrada também através de uma
análise das designações éticas das crianças, feitas pela instituição e, algumas vezes, pela própria
família.
Cor dos expostos
Mesmo após a abolição do trabalho escravo e a proclamação da República, o Asilo dos
Expostos manteve a cor como critério de identificação das crianças. Assim, para as pessoas que
recorreram a esta instituição e para os próprios irmãos da Santa Casa, este tipo de identificação
foi utilizado para construir e manter relações de identidade. Salvador, ao que tudo indica, agiu
diferentemente do Rio de Janeiro que, segundo Sueann Caulfield, silenciou sobre as questões
115
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 26, 16 jul.1926.
116
ASCMB. Livros de registro de entrada dos expostos, 1900 a 1940.
133
raciais pelo menos até a década de 30, quando “a polícia introduziu o registro racial numa
tentativa de melhor identificar as pessoas suspeitas...”
117
A identificação das crianças expostas mediante a cor não pode ser feita sem algumas
ressalvas, haja vista não serem muito precisas essas classificações. Afinal, a cor não se fixa antes
dos seis meses de idade segundo Donald Pierson
118
e, como a faixa etária de entrada
predominante no Asilo foi de 0 a 1 ano, com o tempo, essas crianças poderiam ter sido incluídas
em outros grupos raciais.
A instituição identificava os expostos mediante as três categorias oficialmente reconhecidas
- branco, preto e pardo -, desdobrando a classificação oficial em pardo claro, pardo escuro,
crioulo e o cabra. Estas últimas foram designações características do período pré-republicano.
Sobre a identificação das pessoas através da cor, Antônio Sérgio Alfredo
Guimarães argumenta que “alguém só pode ter cor e ser classificado num grupo de cor, se existe
uma ideologia na qual a cor das pessoas ter algum significado. Isto é, as pessoas têm cor apenas
no interior das ideologias raciais, strito sensu”.
119
Predominou em Salvador, nas primeiras
décadas republicanas, e especificamente no Asilo do Expostos, uma ideologia racial que tinha
como pressuposto básico as características fenotípicas das pessoas. Como podemos ver pela
tabela e gráfico 6, mais da metade (68,6%) das crianças era parda. Se somarmos com as pardas
claras e pardas escuras essa porcentagem sobe para 70,7%.
Tabela 6- Cor dos expostos
117
CAULFIELD, 1996, p.13.
118
PIERSON, 1945, p.201.
119
GUIMARÃES, 1995, p.34.
Cor %
Ignorada 32 0,8
Branco 448 11,9
Preto 579 15,3
Pardo 2583 68,5
Pard. claro 29 0,8
Pard.Esc 48 1,3
Crioulo
53
1,4
Cabra 1 0,0
TOTAL 3773 100
FONTE:
Livro de registro de entrada de expostos do asilo de Nossa Senhora da
134
Nem sempre a forma como os familiares rotulavam as crianças coincidia com a
identificação utilizada pelo Asilo. Isto confirma o quanto a cor é um dado carregado de signos
culturais. Com efeito, a pigmentação da pele e os traços físicos de uma pessoa não são dados
empíricos, objetivos, naturais, sendo percebidos distintamente a depender da classe social,
ambiente cultural e conjuntura histórica. O bebê Waldemiro, de treze dias de nascido, por
exemplo, foi identificado pela instituição como uma criança parda. Seu bilhete entretanto,
informava que era de “côr clara cabello lizo...”
120
O oposto ocorreu com o exposto Adhemar
Ribeiro, identificado pela instituição como um menino de “côr escura”, pelos padrinhos.
121
familiares do menino Antônio e administradores do Asilo, concordaram ao definir o garoto como
uma criança parda. Com ele foi deixado um escrito afirmando: “pardinho, cabelos finos pretos,
olhos castanhos”.
122
O mesmo aconteceu com os expostos Antônio Gonzaga
123
, Helenita
124
e
Maria José
125
, todos classificados como pardos.
120
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 24, 24 jan.1930.
121
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n 20, 01 fev.1926.
122
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 17, 20 jul.1921.
123
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 28, 17 fev.1935.
124
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 22, 19 jul.1928.
125
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 29, 31 mar.1936.
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
%
Ignorada
Branco
Preto
Pardo
Pard. claro
Pard.Esc
Crioulo
Cabra
Gráfico 6 Cor dos expostos
135
Às vezes as mães não sabiam precisar a cor do seu filho. No caso dos gêmeos Júlio e
Julieta, a mãe declarou serem “de cor não posso dizer como ficam, um tem cabello bom e o outro
tem ruim”.
126
Ela, ao menos, tinha a noção de que a aparência física do seus filhos podia mudar
com a idade. A preocupação com o cabelo, de acordo com Pierson, era algo muito comum em
Salvador, cidade em que “a contextura do cabelo é mais importante que a côr da pele, na
classificação do indivíduo”.
127
Esta idéia é reafirmada por Hildegardes Vianna, segundo a qual “o
feio da raça negra ou mestiça era o cabelo e não a cor”.
128
Guimarães, por sua vez, observa que:
[...] a afirmativa original de Pierson foi, mais tarde, comprovada pelas
observações sistemáticas de Harris e Kontak (1963), que conseguiram
mensurar a importância das características físicas na definição da cor do
indivíduo. São elas, por ordem de importância: a cor da pele, o tipo de cabelo, o
formato do nariz e o formato dos lábios.
129
Retornando à análise dos dados da tabela, percebemos que o índice de crianças
caracterizadas como pretas foi o segundo maior (15,4%), embora não tenha chegado nem a 20%
da população de expostos. A proporção de crianças de cor preta é pequena quando comparada
às mestiças ( pardas ), mesmo se somarmos com o índice apresentado pelas
crianças crioulas (1,4%), o que elevaria o índice de crianças negras para 16, 8%.
A classificação “crioulo” foi muito comum no período escravista, para designar os
escravos nascidos no Brasil, mas esse tipo de classificação não tinha mais sentido no período
republicano. Apesar disso, encontramos 53 crianças identificadas como crioulas. Da mesma
forma, algumas mães assim se identificaram. A mãe de Helena, uma menina de 8 meses, declarou
no bilhete:
126
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 16, 05 ago.1919.
127
PIERSON, 1945, p.201.
128
VIANNA,, 1973, p.142.
129
GUIMARÃES, 1955, p.4. (mimeo).
136
A helena é mistiça, filha da creoula Maria da Conceição nascida a 22 de
outubro de 1918 foi baptisada, e com a mãe acha-se no leito, e sem recursos,
ampara-a na Santa Casa da Misericordia até que deus ajude para retiral-a
deste santo abrigo
130
É possível que Maria tenha sido identificada como crioula porque desenvolvia
atividades como vendedora de quitutes e/ou comidas de tradição africana, cujas origens
estavam associadas à escravidão. Maria pode ter sido também uma descendente de escravos.
Outros exemplos arrolados reforçam relações com o passado escravista. Francisco Pires, por
exemplo, foi definido pelo asilo como um garoto preto, mas o seu bilhete dizia que era de “côr
preto fulo”.
131
O índice de crianças brancas (11,9%) deve ser igualmente levado em consideração. O
que fazia uma criança ser rotulada de branca e não de parda? Diferentes aspectos do fenótipo
da criança serviram para realizar tal distinção. Heitor, um bebê exposto com vinte e três dias
de nascido, foi identificado pelo Asilo como pardo, mas sua mãe o via como “clarinho, cabelo
bom”.
132
Já o garoto Aristides, filho do espanhol Emilio Villas-Claras Birou, exposto com 2
anos de idade e órfão de pai, foi classificado como branco porque o seu fenótipo não deixava
margens para dúvidas.
133
O contrário aconteceu com a menina Júlia da Conceição, exposta
com 1 ano e 4 meses, em 2 de março de 1925. O escrito encontrado com a menina descrevi-a
como de “côr clara, cabelos russos”.
134
É possível que seu cabelo não fosse liso, daí a
instituição optar por classificá-la como parda.
Normalmente as crianças definidas como brancas eram filhos de estrangeiros. Assim foi
com um exposto de quatorze dias de nascido. Sua mãe, Maria Helena Rodrigues, era natural
130
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 16, 26 jun.1919.
131
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 19, 17 jan.1925.
132
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 18, 01 jan.1924.
133
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 16, 07 set.1918.
137
de Portugal.
135
Mas, afora os estrangeiros, filhos de pais brasileiros e baianos também foram
enquadrados como brancos. Miguel Antônio dos Santos, exposto por sua mãe por motivos
ignorados aos 5 anos de idade, foi definido pelo Asilo como uma criança branca. Miguel nunca
mais reviu seus pais, Guilhermina Joanna dos Santos e Antônio João dos Santos, sendo
enviado para a Escola de Menores Abandonados aos 13 anos de idade.
136
Herval Martins
Ramos, filho legítimo de Emília de Assis Ramos (falecida) e Oscar Martins Ramos,
igualmente identificado como branco, teve mais sorte que o garoto Miguel, pois foi recuperado
por sua avó um mês após à exposição.
137
Sendo da mesma forma filha de pais legítimos, Maria
José Pereira Ribeiro, branca, foi exposta porque sua mãe estava doente e tinha sido
abandonada pelo marido.
138
O único caso de criança identificada como cabra, ou seja, pessoa com “pigmentação
ligeiramente mais clara do que o do preto e o cabelo um pouco menos encarapinhado”,
139
reforça nossa hipótese de que a identificação dos indivíduos pela cor obedece a critérios
culturais, históricos e sociais.
134
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 19, 02 mar.1925.
135
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n. º 27, 10 jul.1933.
136
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 19, 09 fev.1925.
137
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 23, 30 dez.1928.
138
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 29, 31 mar.1936.
138
Doença e morte da criança: entre discursos e práticas
Muitas dessas crianças identificadas e registradas pelo Asilo morriam tão logo davam
entrada. De acordo com os médicos da época, as crianças pobres e/ou abandonadas morriam,
em sua maioria, de doenças do aparelho digestivo, infecto-respiratórias, doenças sexualmente
transmissíveis e males da dentição. Sem chegar a um consenso, uns acreditavam que a
formação da primeira dentição podia causar a morte da criança, outros postulavam ser esse
tipo de afirmação bárbara e sem nenhuma base científica. O doutorando Joaquim Gentil
Ferreira da Rocha, por exemplo, afiançava:
A dentição é a mais séria crise da primeira infância e muitas crianças não
resistem aos seus embates. Quando aparecem dentes sobrevem acidentes
locais inflamatórios e fenomenos gerais gastricos, cultaneos, pulmonares,
nervosos, mais ou menos graves.
140
Já o cauteloso Dr. Martagão Gesteira não negava que a erupção dentária poderia
provocar leves e passageiros incômodos ao bebê, tais como irritabilidade, insônia, salivação
excessiva, diarréia e baixa tolerância alimentar. “Mas, disturbio serio de saude, não acredito”.
141
Para ele, essa crença popular era referendada por alguns médicos que a consideravam uma
solução conveniente, “um optimo recurso salutar para as aperturas diagnosticas”.
142
De acordo
com os dados do Asilo, a dentição foi responsável por apenas 2,7% dos óbitos das crianças.
143
Essa cifra pequena nos conduz à conclusão de que os médicos que clinicavam no Asilo não
139
PIERSON, 1945, p.196.
140
AMMS. ROCHA, 1907, nº 107-A, p.29.
141
GESTEIRA, 1940, p.179.
142
Ibid.
139
associavam, com freqüência, as doenças dos bebês aos males da dentição. Por outro lado, a
presença de diagnósticos como esses, mesmo em pequena proporção, significa que a categoria
médica não havia totalmente desacreditado na crença popular.
Entre discursos e práticas, o que se observa é a existência de uma medicina imprecisa e
imatura no que tange ao diagnóstico e cura das doenças infantis. Ao que parece, na Salvador
dos primeiros anos deste século, permaneceu a mesma realidade observada por Venâncio para
os séculos anteriores, qual seja, “a etiologia de tais doenças era a mais vaga possível”.
144
Esta situação fica visível quando observamos os dados encontrados na tabela 7.
Afirmar que a criança morreu de febre (0,6%), ou de convulsão (1,4%), ou até mesmo de
dentição, não constitui explicação precisa sobre a causa da morte da criança, mas indica
desconhecimento das razões reais do falecimento.
143
Além desses dados, elaborados com o objetivo de apresentar as doenças que mais acometeram as crianças
do Asilo, há, em anexo, tabela e gráfico onde as doenças foram agrupadas de maneira mais geral.
Tabela 7- Causas da morte
Causas da morte %
Ignorada 589 21,2
Raquitismo 467 16,8
Dentição 76 2,7
Tetáno umbilical 62 2,2
bronquite capilar 219 7,9
Febre 16 0,6
Sífilis 320 11,5
Influenza 28 1,0
Sarna 3 0,1
Ictericia 11 0,4
Escrófulas 8 0,3
Tuberculose 67 2,4
Gastroenterite 578 20,8
Meningite 9 0,3
Paralisia 2 0,1
Cong. cerebral 1 0,0
Esquimencia 1 0,0
Febre palustre 8 0,3
Hidrofisia 2 0,1
Cong. hepática 2 0,1
Convulsão 40 1,4
Pneumonia 220 7,9
Infl.fígado 6 0,2
Sarampo 46 1,7
Total 2781 100
FONTE:
Livro de registro de entrada de expostos do asilo de Nossa Senhora da
Misericórdia, 1900 A 1940
140
Se levamos em consideração as causas-mortis reconhecidamente ignoradas (21,2%),
o quadro de imprecisão e desconhecimento só se reforça. Não devemos, no entanto, ser muito
rigorosos com os médicos da época. Afinal, se até hoje somos acometidos de viroses
desconhecidas, para cujo tratamento os médicos recomendam repouso, antitérmico e
paciência, como podemos ser mais exigentes em relação a uma medicina que, até a segunda
metade do século passado, desconhecia a existência dos micróbios ?
Nossos dados demonstram que as doenças que mais matavam eram a gastroenterite
(20,8%), doença infecciosa que atinge estômago e intestino, e o raquitismo (16,8%), este
último conseqüência da subnutrição da criança ou de causas congênitas. A gastroenterite era
provocada por alimentação não adequada ao frágil estômago dos bebês, ou por falta de
higiene no preparo dos alimentos. Não foi sem razão que o Dr. Martagão Gesteira, ao fazer
144
VENÂNCIO, 1997, p.215.
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
%
Ignorada
Raquitismo
Dentição
Tetáno umbilical
bronquite capilar
Febre
Sífilis
Influenza
Sarna
Ictericia
Escrófulas
Tuberculose
Gastroenterite
Meningite
Paralisia
Cong. cerebral
Esquimencia
Febre palustre
Hidrofisia
Cong. hepática
Convulsão
Pneumonia
Infl.fígado
Sarampo
Gráfico 7 Causas da morte dos expostos
141
uma inspeção sanitária no Asilo a pedido da Inspetoria de Higiene Infantil, no ano de 1924,
condenou a ausência de um sistema de esterilização do leite e o não rigor na dosagem dos
ingredientes usados na preparação dos alimentos das crianças maiores.
145
Devemos considerar também que muitas crianças, antes de entrarem no Asilo,
conviveram com suas mães um tempo mínimo, às vezes apenas um mês, mas o suficiente para
serem alimentadas de forma inadequada. Recebendo desde recém-nascidos alimentos como
papas de farinha, carne seca, leite de vaca não esterilizado, leite condensado ou até mesmo
nenhum alimento, essas crianças não podiam deixar de ter distúrbios digestivos. José, dois
meses de idade, foi uma desses casos. Sua mãe informa que estava “tomando leite condensado
mas não tem se dado bem”.
146
Da mesma forma, a mãe do exposto Claudino Pinto
comunicava: “Soffre dos intestinos. Amamentação leite condensado. Estava mamando leite de
vacca, porem não se deu. Já come uma papinha”.
147
Mães que alimentavam os filhos com o seu próprio leite, quando este secava por
motivos vários, frente à falta de recursos para alugar o serviço de uma ama ou até mesmo para
adquirir farinhas usadas na elaboração de mingaus, os abandonavam na Roda. A mãe do
exposto Armando, Anna Maria da Conceição, ao relatar em bilhete as razões da exposição,
indicou os seguintes motivos: pobreza, falta de colaboração do pai e, principalmente, falta de
alimento: “Por ver a creança chorando com sêde eu sem leite para dar e sem ter recurso para
comprar quando chegar tempo eu então retiro porque sei que não posso ficar ahi”.
148
145
Relatório apresentado pela Junta da Santa Casa de Misericórdia da Bahia pelo provedor Dr. Isaias de
Carvalho Santos, na sessão de posse da Junta. 01 jan.1925.
146
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 15, 21 jun.1912.
147
ASCMB. Livro de registro de entrada dos expostos, n.º 18, 11 jun.1924.
148
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 15, 02 jul.1911.
142
Da mesma maneira, a mãe de Hamilton Martins Pinto, exposto em 12 de janeiro de
1924, após ter declarado que o garoto estava fraco e doente, explicava o abandono pelo seu
estado de pobreza. De acordo com Maria José, mãe do menino:
[...] Peço pela sagrada Paixão e morte de Jesus Christo que se compadeçam
do meu filho e tractar delle direitinho, pois está doente de sarnas e fraqueza,
se boto é porque não tenho recursos, nem pão delle cousa
nenhuma.
149
(grifo nosso).
A sífilis foi também uma doença que levou os expostos à morte em proporções nada
desprezíveis (11,5%). Essa doença possui três fases: proto-sinfilona, secundarismo sifilítico e
fase crônica. A contaminação ocorre somente nas duas últimas fases. Se a criança for gerada
na primeira fase, ela pode nascer livre da doença e só ser contaminada se sua mãe, durante o
parto, estiver na segunda e terceira fases. A amamentação é contra indicada apenas nessas
últimas fases, mas uma mãe que amamenta nessas condições com certeza gerou o filho nas
mesmas condições e, nesse caso, a criança já nasceu sifilítica. É o que parece ter acontecido
com os 11,5% das crianças do Asilo.
Os doutorandos em medicina defendiam o aleitamento natural e condenavam tanto o
artificial como o “mercenário”. Para condenar este último, usavam o argumento de que as
amas, mulheres do povo, possuíam costumes e hábitos incivilizados e transmitiam pelo leite a
sífilis. A doença, entretanto, não acometia apenas mulheres dos segmentos populares, e sim a
população feminina de forma geral. As mulheres baianas do início do século viviam em uma
sociedade em que a infidelidade masculina não só era admitida como estimulada, o que as
tornava alvo fácil de contaminação. Todavia, devemos reconhecer que as mulheres pobres
foram as maiores vítimas. Segundo Hildegardes Vianna:
143
[...]mulheres do povo, vítimas da crença corrente, entre homens de certa
classe, de que a melhor maneira de limpar o corpo era ter uma amante sadia,
de preferência negra. Os homens se sentiam curados, ou aliviados, passando
a doença, pouco importando com que resultasse dessa limpeza. Se elas
concebiam, o rebento nascia enfermiço e nem sempre vingava. O pior é que
aleitando uma criança normal, transmitiam o mal.
150
Com base nos mesmos pressupostos que Vianna, o Dr. Martagão Gesteira condenava
o aleitamento mercenário, recomendando-o apenas “em circunstâncias muito espiciaes e
quando se tenha bem certeza de que não foi a sífilis a causa da morte do menino, deve-se
rejeitar toda a ama que perdeu o filho”.
151
Mas, contraditoriamente, argumentava que não havia
o menor perigo de uma mãe sifilítica amamentar o filho. De qualquer forma, uma coisa é certa:
a sífilis conduziu mulheres e crianças à morte.
Os expostos também morriam de doenças infecto-respiratórias, tais como bronquite
(7,9%), pneumonia (7,9%), tuberculose (2,4%) e influenza (1,0%).
152
No total, 19,2 % das
crianças do Asilo morreram de doenças infecto-respiratórias, superando a sífilis e até mesmo o
raquitismo. Acreditamos que essas doenças eram resultado das péssimas condições de
moradia de suas famílias que, vivendo em espaços pequenos, pouco ventilados e superlotados,
tornavam-se mais susceptíveis a este tipo de enfermidade. O Dr. Waldemar Lages, que
estudou a mortalidade infantil na Bahia ente 1928 a 1940, não conseguiu apurar um coeficiente
de mortalidade por tuberculose entre crianças de 0 a 1 ano. Mas mesmo assim, para o Dr.
Lages:
[...] dada a profilaxia reduzida de nosso adulto tuberculoso, e em virtude não
só da baixa imunidade das crianças no 1º ano de vida como também pelo
fato de ser a tuberculose uma doença essencialmente contagiosa é de
149
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 18, 12 jan.1924.
150
VIANNA, 1994, p.171.
151
GESTEIRA, 1940, p.89.
152
A influenza eqüivale a gripe dos nossos tempos.
144
prever-se que o número de crianças acometidas e mortas por tuberculose
seja elevado, mesmo porque o 1º ano de vida é talvez a idade mais propicia a
invasão do bacilo responsável.
153
As crianças podiam ser contaminadas pela tuberculose dentro do próprio Asilo, que foi
constantemente criticado pelos médicos a partir da década de 20, por também não fornecer um
espaço adequado para o asilamento das crianças doentes.
O tétano umbilical ou mal de sete dias (2,2%), assim como o sarampo (1,7%), foram
encontrados em pequena proporção. Sobre o tétano a explicação dada por Venâncio para os
séculos anteriores é bastante satisfatória. Segundo este autor, o fato da maioria dos bebês
enjeitados escaparem ao tétano pós-parto é sintoma de que as mães que abandonavam os
filhos a faziam motivadas pela pobreza e não por razões morais. “Quem enjeitava o filho por
miséria podia protelar o gesto por alguns dias; o mesmo não ocorria em relação às mães
impedidas de assumir o fruto de um amor proibido; nesses casos, tão logo a criança nascia era
escondida da sociedade”.
154
Um outro indicativo do estado de pobreza dos familiares dos expostos, segundo este
autor, pode ser observado através do número de óbitos em conseqüência da sarna. De acordo
com Venâncio, “não é exagero afirmar que os abandonados eram os mais pobres entre os
pobres. Eles ocupavam o último nível da hierarquia social e a forma como
faleciam expressa cabalmente essa realidade. Nas residências brasileiras de outrora, animais
domésticos e crianças abandonadas costumavam ser vítimas dos acarus scabici, popularmente
conhecido pelo nome de sarna”.
155
Infelizmente, em nosso estudo, não podemos usar o
número de óbitos por sarna como elemento que referende o estado de pobreza dos assistidos
pelo Asilo, uma vez que só 0,1% das crianças morreram por causa dessa doença. Mesmo se
153
LAGES, 1940, p.35.
154
VENÂNCIO, 1997, p.216.
155
Ibid.
145
levarmos em conta uma outra enfermidade epidérmica, a escrófulas, o índice ainda é ínfimo.
Apenas 0,3% das crianças estudadas faleceram de escrófulas.
A mortalidade das crianças do Asilo foi, durante as primeiras décadas republicanas,
extremamente alta. 73,7% dos expostos morreram. Mas sobre a relação entre o índice de
mortalidade dos expostos e a mortalidade infantil da cidade em geral nada se pode dizer, uma
vez que os censos não fornecem dados sobre a população infantil e sua mortalidade.
O grande número de crianças expostas e mortas na primeira infância, encaixa-se
perfeitamente no cotidiano de uma sociedade que, durante muito tempo, habituou-se a
preocupar-se com os indivíduos somente quando estes atingiam a idade produtiva. Reconhecer
a infância como uma fase da vida humana específica e merecedora de atenção especial era,
para os baianos do início do século, algo muito novo, mas sem dúvida inevitável. Inseridas
nessa nova concepção de infância estavam, por exemplo, as preocupações de uma mãe que,
em 1918, viu-se obrigada a expor o filho. Preocupada com a saúde da criança, esta informava
e, ao mesmo tempo, solicitava:
[...]Maria das Dores filha de Emilia Souza Freire nascida a 15 de setembro
duas horas da manhã a mãe desta creança pede pelo amor de Deus que a
noite embrulhe ella em um panno de lã pois esta pobresinha sente muito frio,
esta creança fica aqui por 3 annos.
156
A mãe do exposto João Cardozo, Amélia Freire de Carvalho, também revelou
preocupação com a vida de seu filho quando pediu “a caridade de vêr se o medico indireita os
pés que não são perfeitos.”.
157
Outra menina, chamada Dulce, veio com escrito que pedia
claramente cuidado com a criança, pois “soffre das pernas”.
158
Para proteger os filhos algumas
156
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 23, 06 nov.1929.
157
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 21, 17 set. 1926.
158
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 16, 26 jul.1918.
146
mulheres recorreram a Nossa Senhora da Conceição, pois esta “presidia simbolicamente o
nascimento e a morte das crianças. A santa freqüentemente servia e ainda serve de
madrinha”.
159
Olga, um bebê de 7 meses, exposto em 18 de maio de 1919, foi batizada na
igreja de São Pedro e tocou a coroa de Nossa Senhora.
160
Outros exemplos confirmam a
importância da crença: a garotinha Maria de Lourdes, de 4 anos de idade, entrou no Asilo
acompanhada de uma declaração que informava ter recebido em casa, por motivo de doença,
o sacramento do batismo, tendo como madrinha Nossa Senhora.
161
Também o garoto Manoel,
nascido em 24 de maio de 1918, foi batizado “no dia 8 de julho do mesmo anno na Freguesia
de Nazareth sendo padrinhos N.S. da Conceição e Manoel Nosquez”.
162
Novas atitudes diante da vida e velhas atitudes diante da morte. O desejo de uma
morte cristã para a criança, e o medo de que esta morresse pagã foram sentimentos
perceptíveis em grande parte das declarações e bilhetes. Em algumas, essa realidade foi mais
evidente. A mãe do exposto Iran Ferreira Souza, Eulina Ferreira de Souza, retirou-o mesmo
depois de morto. Segundo a instituição, Iran “saiu depois de morto retirado por sua mãe que
pedio para o corpo sahir de sua casa. Com o consentimento dos medicos e da direção”.
163
Eulina desejava velar o corpo do filho e garantir para ele um enterro cristão. Despedindo-se da
criança, fazia com que o “anjinho”, que não pôde morrer junto a seus familiares, fosse ao
menos enterrado por estes. Preocupada da mesma forma com um enterro cristão para seu
bebê, Isabel Maria da Conceição explicava: “Boto meu filho na roda porque elle está prestes a
159
REIS, 1991, p.121.
160
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 16, 18 maio 1919.
161
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 16, 20 jan.1919.
162
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 16, 08 maio1918.
163
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 28, 23 ago.1935.
147
morrer e não tenho com que enterrar, pois há dois que durmo na rua”.
164
Realmente,
Ambrósio, nome dado por sua mãe, morreu de raquitismo, um dia após a sua entrada no Asilo.
Vidas curtas, vidas duras, os expostos e suas pequenas vidas podem ser melhor
compreendidos quando parafraseamos o poema “Os Chamados”, de Carlos Drumond de
Andrade:
Maria de Albergaria vive 4 meses.
Sua biografia está registrada em poucas linhas no Asilo dos Expostos
e já surge Esmeralda da Conceição
Chamada a viver 21 dias
Melchiades resiste
1 ano e 4 meses.
João dos Reis: 2 anos
Vem Valdemar: 1 mês e 10 dias
e Vem Elestheria: 1 ano e 7 meses
Celina Maria vive uma eternidade: 2 anos e 3 meses
José não vai além de 65 dias.
É tempo de parar
e chorar.
164
ASCMB. Livro de registro de entrada de expostos, n.º 15, 09 fev.1916.
147
Capítulo V
Assistência à segunda infância: história das histórias dos órfãos
de São Joaquim
A Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim foi fundada em Salvador, no ano
de 1799, pelo Irmão Joaquim Francisco do Livramento, com o objetivo de possibilitar a
educação “de meninos órfãos desamparados, e na falta dêstes, a de menores filhos de pais
miseráveis, ou mesmo de filiação desconhecida, quando abandonados e falhos de qualquer
auxílio e proteção”.
1
Esta passagem do estatuto aprovado em 1910 indica que a instituição,
mantendo suas diretrizes básicas definidas no regulamento de 1828, estava voltada para a
assistência a menores órfãos de pai e, excepcionalmente, a crianças pobres e abandonadas.
Durante todo o período republicano, a admissão dos órfãos continuou sendo feita
mediante um intenso processo burocrático que envolvia um pedido por escrito ao
provedor, acompanhado de documentos que comprovassem o estado de pobreza e de
vacinação do menor, o comprovante de que a idade deste situava-se na faixa dos 7 a 9
anos, e o certificado de óbito do pai. Com efeito, a instituição manteve-se mais ou menos
rígida nos aspectos regulamentares, atendendo prioritariamente meninos com idade entre
9 e 12 anos e, portanto, em idade escolar. Com base nesta e noutras características do
funcionamento da instituição, Rodrigues Matta mostra que a Casa Pia, desde suas origens,
1
ACPOSJ. Art. 1º do Estatuto da Casa Pia e Orfanato de São Joaquim, aprovado pelo decreto n.º 810 de 18
de agosto de 1910.
148
pretendeu ser mais do que um Asilo para órfãos, mantendo como preocupação básica a
educação dos menores.
2
Mas que tipo de educação seria ministrada a esses órfãos? Para
Matta, o projeto educacional foi formulado por uma “burguesia mercantil”, com o intuito
de transformar os órfãos em trabalhadores disciplinados.
3
É preciso, no entanto, refletir sobre estas conclusões, uma vez que a intenção
original de um projeto assistencial pode modificar-se com o tempo. Acreditamos que a
Casa Pia foi criada de acordo com uma concepção liberal de educação, que defendia um
ensino disciplinar capaz de tornar a criança útil a si e à sociedade. Mas havia, também,
nesse projeto, o ideal de substituir a figura do pai, para aqueles que, prematuramente, o
haviam perdido. O São Joaquim, instituição de caráter religioso, acreditava, assim como a
Igreja Católica desde o Concílio de Trento, no papel central da família nuclear na
socialização das crianças. Nesse modelo familiar, o pai assumia, estrategicamente, a
função de provedor material e espiritual de sua prole e de sua esposa e estes, em troca,
deviam-lhe cega obediência. Na falta do pai, supostamente indispensável à manutenção da
família, cabia à Igreja assumir, em relação a esses “deserdados da sorte”, uma atitude de
caridade cristã. Já na introdução do primeiro estatuto encontramos:
Se a educação da mocidade em geral tem parecido sempre um objeto
importante e digno da atenção de todos os suberanos, muito mais importante
se deve julgar a educação daquela parte da mocidade, que, privada de
seus progenitores, corre iminente risco de perecer, ou definhar-se à
míngua, assim como de contrair hábitos viciosos por falta de conselho e
assistência paterna nos primeiros passos da carreira da vida, tornando-se
muitas vêzes inútil à si, ou perigosa à sociedade.
4
(Grifo nosso).
2
MATTA, 1996.
3
Ibid., p.204.
4
ACPOSJ. Primitivos Estatutos da Casa Pia e Colégio dos Meninos Órfãos de S. Joaquim da cidade da
Bahia, aprovados por decreto imperial em 30 de abril de 1828.
149
Mas é certo que almejava-se também uma educação que permitisse empregar os
órfãos e formá-los dentro da ótica do trabalho:
[...]segundo o que fica dito no plano geral da educação, parecia racionável, e
conforme a uma bem entendida economia, fazer-se um muito pequeno
estabelecimento literário, limitado unicamente ao ensino das doutrinas, e
conhecimentos necessários às sobreditas ocupações, e principal destino dos
órfãos; mas porque além de ser conveniente, que os órfãos se não proponham
só a seguir segamente as praticas rotineiras das profissões e artes, que ainda
se acham em grande atrazamento, e antes se habilitem com conhecimentos
próprios para poderem em tempo oportuno aperfeiçoar os seus processos e
métodos[...]
5
A meta de profissionalização do menor, inicialmente secundária, foi adquirindo maior
importância, devido a determinações e necessidades da cidade de Salvador, tornando-se,
com o tempo, a diretriz principal da instituição.
A origem social dos assistidos é um outro aspecto que deve ser analisado mais
detalhadamente. Segundo Rodrigues Matta, em geral, os órfãos do São Joaquim eram
oriundos da mendicância. De acordo com este autor, “foi entre os mendigos, os vadios e os
mais pobres, desocupados, aqueles marginalizados pelo trabalho escravo, já que não
conseguiam ocupação na sociedade escravista, que foram recrutados os trabalhadores
urbanos e assalariados de Salvador”. Afirma ainda que “entre os mendigos que deram
entrada na Santa Casa, os brancos eram 14,8%, os pardos 20,2%, os cabras 4,8%,
0,1% de caboclos, 21,3% eram crioulos e 37,8 % eram negros ”,
6
ou seja, a maioria
dos mendigos era constituída de pessoas de cor. No entanto, ainda segundo Matta, “a
Casa Pia tinha a política de permitir, preferencialmente, o ingresso de menores brancos em
detrimento de pardos e outras etnias”.
7
Ora, como poderiam os órfãos assistidos pela Casa
Pia serem egressos da mendicância, se os seus próprios dados indicam o contrário ? É
5
Ibid., p.42.
6
MATTA, 1996, p. 111 e 106
7
Ibid., p.106. A Santa Casa da Misericórdia mantinha um asilo para mendigos, o Asilo de Mendicidade, onde
recolhia-se e abrigava-se os mendigos da cidade, daí as informações sobre essa categoria serem fornecidas
por essa instituição.
150
mais provável que esses menores fossem oriundos dos segmentos pobres, mas nunca
miseráveis e mendigos.
Afora esta questão, é importante analisarmos as modificações que o advento da
República trouxe para a Casa Pia. Um exame dos aspectos pedagógicos e administrativos
da Casa, bem como um exame das características étnico-sociais das crianças são
imprescindíveis para que possamos compreender o alcance social da instituição e os
caminhos e descaminhos percorridos com a instituição do novo regime político.
A primeira coisa que deve destacar é a permanência da função de reitor na direção
do Asilo, a despeito de não termos encontrado, nos estatutos de 1910, nenhuma referência
a esta função. Segundo o Art.34. desse estatuto, o provedor, o escrivão, o síndico e o
procurador eram os únicos responsáveis pela Casa Pia, não havendo menção à função de
reitor.
8
Não obstante, a Casa estabelece, no ano de 1937, as atribuições deste cargo:
Realizar os officios da religião católica, consoante as praxes e leis da mesma
religião.
Ensinar e instruir os orphãos dentro de são principios da Religião Católica.
Velar pela bôa disciplina e sã moral dos orphãos.
Fiscalizar as aulas dos cursos lectivos.
Informar à provedoria sobre o comportamento e applicação dos orphãos, quando
à mesma for requerida a concessão de ferias ou sahidas.
9
Esta passagem indica que o aspecto religioso da instituição permaneceu. Todavia, a
necessidade de elaborar, por escrito, as atribuições religiosas do reitor sugere que estas
talvez não estivessem sendo obedecidas e precisassem ser lembradas.
É provável que conflitos entre reitor e professor, o primeiro estreitamente
associado aos aspectos religiosos da educação e o segundo enfatizando elementos
pedagógicos mais distantes da fé e mais próximos da razão, tenham sido bastante comuns
8
Estatutos da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim, aprovados por decreto nº 810 de 18 de agosto
de 1910, p. 22.
9
ACPOSJ. Estante 18, pasta pessoal, letra C.
151
na República. Há registros de um conflito desse tipo, em.1900. O Reitor pediu a
exoneração do professor Spiridião Barbosa de Meneses, por acreditar que este estava
empenhado “em uma tarefa ingloria e altamente perniciosa aos alunos, de sanar da
inteligência deles toda e qualquer idéia cristã e princípios de fé, que receberãm de seus
progenitores”.
10
Respondendo às criticas, Meneses declarava:
No ensino de Instrução moral e cívica tenho dito por vezes aos meus discípulos
que o homem tem o direito de pensar e de escrever a sua atividade sem prejuízo
dos outros homens e que não devem desprezar a outro por princípios de idéias,
desde que todos podem ser úteis à sociedade, e outros pontos que se prendem a
este ensino.
11
Pretendia o professor um ensino mais liberal onde vigorasse liberdade de expressão
e, conseqüentemente, liberdade religiosa, o que possivelmente criou uma situação deveras
conflituosa para a instituição que, desde suas origens, objetivava promover a
disciplinarização social dos órfãos mediante ensinamentos cristãos. Para alcançar esta
meta, como postulava o reitor Manoel Raymundo de Mello, o ensino deveria estimular o
temor a Deus:
O santo temor de Deus incutido as crianças, as preserva de inumeros males
futuros, que lhes podem sobrevir, e assim as encaminhar pela senda do dever,
a de serem mais tarde honrosos e respeitadores cidadãos, verdadeiros amigos
do bem... Ainda mesmo na hipótese de que lhe promete a v. Excia plena
submissão ao meu programa de direção e ensino, não ficarão sanadas as
dificuldades, já porque o ensino Primário, acha-se intimamente ao religioso
de modo, a não poder ensinar uma matéria sem fazer referências
incontestáveis a outra.
12
O professor, por sua vez, criticava o ensino transmitido aos alunos, afirmando:
10
ACPOSJ. Estante 19, pasta de pessoal, letra M.
11
Ibid.
12
Ibid.
152
[...]que huma orientação havia em semelhante maneira de educar. Nas classes em
que o ensino de certas disciplinas deve ser ministrado mais praticamente, e de
acordo com os alunos que o freqüentam, não havia o menor vestígio de que tal se
fizesse, e naquelas que reclamam maior soma de trabalho, e maior dedicação do
professor, notei o máximo de pobreza de conhecimentos que o pouco conhecem
não tem ordem.
13
Reinava,assim, para o professor Spiridião Meneses, uma desorganização no ensino prático
e teórico mantido pela Casa Pia.
O orientação pedagógica da Casa pode ser também conhecida através da leitura das
atas e dos relatórios de seus administradores. De acordo com as atas, a Casa Pia
promoveu, durante a República, o treinamento físico dos órfãos. Utilizando-se de
exercícios militares, o orfanato promovia a disciplinarização de corpos e mentes. Um ex-
aluno servia de instrutor militar. Sábia decisão, uma vez que ninguém seria mais eficiente
no controle dos menores do que uma pessoa que vivenciou este processo e que, por isso,
introjetou a fundo o sentido da disciplinarização. Além do mais, produzia no escolhido
uma lealdade e, ao mesmo tempo, alimentava entre os outros menores uma esperança de
alcançar destino semelhante, facilitando a disciplina. A ata expedida em 1909 pelo
provedor, indica que ex-alunos podiam trabalhar durante certo tempo sem receber
remuneração e que esta era uma forma de ingressar nos quadros remunerados da Casa:
O Sr. Provedor expos que o ex-orfão Aristeu Costa está sendo, a mezes, o
instrutor dos orfãos nos exercícios militares, do que se tem desempenhado a
contentos, e sem remuneração alguma até hoje.
Propõe, porém, uma gratificação de trinta mil réis mensais. Foi aprovado a
proposta.
14
Outros detalhes sobre a organização do ensino foram divulgados pelo provedor
Joaquim dos Reis Magalhães, em relatório apresentado para o período de 1912 a 1915:
13
Ibid.
14
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1923). 26 de set. 1909.
153
[...] funcionaram regularmente as aulas infantis e complementar, assim como
de desenho e música[...]continuou a funcionar as oficinas de alfaiate,
marceneiro e sapateiro, que não só preparavam os meninos para o trabalho
como garantia o uso e consumo dos alunos.
15
Assim ficamos sabendo que, na primeira década deste século, vigorou,
conjuntamente com o ensino primário, um ensino complementar. Acreditamos que a série
complementar aprofundava os conteúdos das séries anteriores e preparava o aluno para
enfrentar os exames do curso ginasial, se assim desejasse. Comentários de provedores e
professores nos conduz a esta hipótese. Além disso, a lei de 1913 sobre a reforma do
ensino público, ao descrever a natureza do ensino primário afirma ser este composto de
escolas infantil, elementar e complementar.
16
Existiam ainda as oficinas, criadas na década
de 70 do século passado, para aperfeiçoar o menor em artes de ofícios. Os ofícios de
sapateiro e de alfaiate, segundo Rodrigues Matta, eram ofícios populares e pouco
especializados e, por isso, a maior parte dos órfãos não foram destinados a estas
atividades. No início da República, entretanto, estas seriam as profissões viáveis para os
órfãos, uma vez que só essas oficinas, além da marcenaria, estavam funcionando. Somente
em 1915 passou a funcionar uma oficina de tipografia, atividade profissionalizante que,
durante todo o período estudado, desenvolveu-se de forma irregular.
17
O esforço da instituição muitas vezes não foi suficiente para possibilitar que ex-
alunos conseguissem uma rápida inserção no mercado de trabalho da cidade. O provedor
Joaquim dos Reis, em relatório referente ao triênio 1918-1921, comentou que aulas de
música e desenho eram dadas aos alunos dos cursos elementar e complementar com um
15
ACPOSJ. Relatório do triênio de 1912 a 1915, apresentado pelo professor Dr. Joaquim dos Reis
Magalhães, p.16.
16
Anais das Câmaras dos Deputados. Sessões Ordinárias em 1913, vol. 4, Bahia, Oficinas da Gazeta do
Povo, 1914.
17
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1923). 5/12/1915
154
bom aproveitamento, mas que “infelizmente, em geral não é aproveitada, depois que elles
se retiram do Collegio; o mesmo se observando de referencia às officinas”.
18
O São Joaquim tentou acompanhar as mudanças e as exigências da Salvador
republicana, uma cidade que, na década de 30, possuía uma economia predominantemente
mercantil, porém mais dinâmica e mais complexa do que no passado imperial. Buscando
alcançar novos rumos, a Casa Pia, no triênio 1924-1927, retirou a aula complementar de
português. Alegava o orfanato que a disciplina tinha condições de ser oferecida
unicamente no curso elementar ou primário. O estudo da língua portuguesa no curso
complementar foi substituído pela disciplina Escrituração mercantil, datilografia e
elementos de agronomia.
19
Posteriormente, em 1930, extingui-se a aula de desenho.
O esforço no sentido de atender às exigências da economia republicana esbarrava
na precariedade de recursos. Nas décadas de 1920 e 1930, o colégio, ressentindo-se da
falta de apoio governamental, reduziu o se projeto educacional e terminou por atuar
centralmente como asilo. O relatório apresentado pelo provedor Dr. Augusto Marques
Valente, para o triênio 1936-1939, informava:
Apesar da bôa vontade dos professores que o tem ministrado regularmente, o
ensino de primeiras letras está a carecer de pronta reforma, porquanto não tem
produzido o rendimento que era de esperar.
20
De acordo com este provedor, as causas para o estado de desleixo educacional do
orfanato eram: o reduzido número de professores, ausência das aulas de desenho industrial
e falta de orientação pedagógica dos mestres que, durante todo o triênio, não receberam
uma só visita dos inspetores de ensino. Por causa dessa deficiência na educação dos
18
ACPOSJ. Relatório do triênio de 1918 a 1921, apresentado pelo professor Dr. Joaquim dos Reis
Magalhães, p.09.
19
ACPOSJ. Relatório do triênio de 1924 a 1927, apresentado pelo professor Dr. Joaquim dos Reis
Magalhães, p.07.
20
ACPOSJ. Relatório do triênio de 1936 a 1939, apresentado pelo Dr. Augusto Marques Valente, p.10.
155
órfãos, a Casa Pia não conseguia mais colocá-los na Escola de Aprendizes de Marinheiros,
devido à reprovação nos exames de admissão. O resultado de tudo isso era a permanência
dos órfãos na Casa Pia, “ao passo que a vaga imediata teria feito ingressar novos órfãos”.
21
Entre 1939 e 1942, um surto revitalizador da Casa pôde ser sentido com o aumento
no número de órfãos de 100 para 120, e o restabelecimento das aulas de desenho e
catecismo.
22
Mas não nos iludamos, se uma instituição que tinha em suas bases
pedagógicas o ensino da religião católica suspendeu esse ensino e só o retornou na década
de 40, podemos fazer uma idéia de como se encontravam outros aspectos da educação. É
bem possível que a ampliação da capacidade de atendimento de 100 para 120 fosse
resultado de auxílio governamental.
As querelas entre Governo Republicano e Casa Pia, e os avanços e recuos do
auxílio dado pelo primeiro para a instituição de amparo aos órfãos foram comentados por
Rodrigues Matta. Segundo este autor, em 1892:
[...] o estado liberou recurso para auxiliar a Casa Pia como fazia anualmente:
no entanto, a liberação estava condicionada ao conhecimento prévio da vida e
nomes dos menores no Colégio por parte da Assembléia. A mesa reconhecia
que a iniciativa do projeto tinha por objetivo ajudar a Casa, mas, pela primeira
vez em toda a sua história, alegaria diante do governo que a instituição era de
‘iniciativa particular e que não caberia que assuntos da administração interna
do orfanato tivessem controle do Estado.
23
O atrito teve continuidade, tanto que, no ano de 1912, o provedor Joaquim dos Reis
Magalhães expressou sua insatisfação com a falta de um apoio governamental para a
instituição:
21
Idem, p.11.
22
ACPOSJ. Relatório do triênio de 1939 a 1942, apresentado pelo Dr. Manoel Pinto Roiz da Costa, p.1.
23
MATTA, 1995, p.55.
156
[...] a parca subvenção que, por alguns annos, recebia do Estado foi-lhe
retirado em 1906, e a agora mesmo novo golpe vai ferir as suas limitadas
rendas com a decretação pelo Município, em 1911, do imposto de décimas
sob os prédios que formam o seu patrimônio, sempre isemptos desse onus; o
que vem, diminuindo-lhe os rendimentos, obrigal-a, talvez, a estreitar o
campo de sua acção benefica, reduzindo o numero de crianças pobres que sob
este tecto abrigam e se educam.
24
Diante das dificuldades, na sua maioria advindas da falta de apoio governamental,
a reação mais imediata dos administradores era reduzir ou ameaçar reduzir o número de
crianças assistidas pela Casa. Atitudes que visavam pressionar um Governo que, ao que
parece, era negligente, mas não totalmente omisso. Em 12 de janeiro de 1911, a Casa
recebeu um telegrama “do Deputado Dr. Pedro Lago comunicando haver sido aprovada a
emenda que apresentara na Câmara dos Srs. Deputados Federais, consignando o auxílio de
dez contos de réis em favor do colégio dos órfãos do S. Joaquim”,
25
o que demonstra que
o apoio governamental, estadual ou federal pôde até não ter sido contínuo, mas não foi
totalmente extinto com a mudança de regime. Mais adiante, a Mesa admite que “o auxílio
obtido pelo Deputado Dr. Pedro Lago, não foi somente dez contos no orçamento, porém,
de mais 15:000$000 no contrato de loterias federais, pelo que importa em 25 contos o
auxílio obtido em favor desta Casa Pia”.
26
Esse subsídio foi mantido durante o ano de
1913.
Antes da República, a Casa Pia, para manter seus privilégios, só precisava estar em
consonância com o Governo Imperial. Com o advento do regime republicano, necessitava
manter-se em harmonia com as três esferas municipal, estadual e federal.
Foi por ter conhecimento da necessidade de manter boas relações entre a Casa Pia
e o Estado da Bahia que o provedor, no ano de 1913, tomou a decisão de procurar o
24
ACPOSJ. Relatório do triênio de 1909 a 1912, apresentado pelo provedor Dr. Joaquim Dos Reis
Magalhães a mesa administrativa, p.6-7.
25
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1912). 12 jan.1911.
26
Idem.
157
governador para protestar e, ao mesmo tempo, solicitar auxílio. Foi feliz em suas
negociações, tendo recebido uma resposta positiva:
O Dr. Governador mostrou-se desejoso de auxiliar a Casa Pia e que não
fossemos obrigados a medidas extremas; prometendo intervir junto a
intendência afim de ser facilitado ao colégio, possuir um prédio à rua Chile,
em substituição ao que ia ser desapropriado e demolido, e quanto a casa à rua
de S. Pedro o governo dava quatorze vezes o valor locativo, como tinha feito
com os prédios da Misericórdia.
27
Apesar de o governo estadual ter respondido favoravelmente, prometendo auxílio
através de lei especial, somente dois anos depois se efetivou a ajuda. No ano de 1915, o
secretário do Eestado, Arlindo Fragoso, visitou o colégio e conseguiu para o mesmo uma
quantia de dez contos de réis.
28
Procurando sempre manter um bom convívio com o
Governo Estadual e, dessa forma, cair nas graças da esfera governamental, o São Joaquim
enviou a banda de música dos órfãos para exibir-se ao governador e a seu secretário. No
ano seguinte o Estado novamente contribuiu com uma quantia de quarenta e cinco contos
de réis e doou os materiais necessários às reformas do estabelecimento.
29
Informações sobre os aspectos higiênicos, quer dizer, sobre as condições físicas da
Casa Pia, preocupação básica dos administradores desde a sua fundação, confirmam a
existência de períodos em que o Estado assistiu à instituição de forma condizente com
suas necessidades. Em 1911, a Mesa informava:
[...] o Sr. Provedor informou estar concluindo o forramento dos corredores do
pavimento superior do edifício do colégio, sendo que os corredores que
enfrentam os dormitórios e as aulas primária e de música, foram forrados com
serretas intervaladas, afim de dar maior arejamento a esses comodos e o que
enfrenta as tribunas da Igreja com taboas unidas...Informou mais estar
concluída as obras de novos banheiros, em número de 34, todos azulejados,
27
Idem (1909 a 1923). 06 abr.1913.
28
Idem (1909 a 1923). 7 nov.1915.
29
Idem (1909 a 1923). 2 abr.1916.
158
em substituição dos doze antigos, insuficiente para o serviço de higiene dos
alunos e que se achavam precisando de grande obra.
30
O desejo de manter as instalações em boas condições estava associado a
preocupações de ordem sanitária:
[...] não ser ele presentemente tão satisfatório como até pouco tempo, visto ter
aparecido neste últimos dias frequentes casos de febre; o que só podia atribuir
a constituição médica geral da cidade tendo todavia, feito melhorar o serviço
de esgoto, mandando reformar as latrinas, colocando-as fora do edifício em
cômodos feitos de cimento armado e azulejados, estando já três
completamente reformados e em trabalhos e os outros em reforma.
31
Realmente, o provedor podia atribuir as doenças dos órfãos ao estado insalubre da
cidade, pois no ano anterior havia promovido reformas tendo em vista melhorar as
condições higiênicas da Casa, continuando-as, como podemos perceber pela declaração
acima, no ano seguinte. Ainda no ano de 1912, atendendo ao ideal de reformas e
modernização do orfanato, foi instalada a luz elétrica. Apesar de todos os esforços a Casa,
no ano de 1914, foi vítima da epidemia de sarampão, felizmente sem nenhum caso fatal.
32
Aparentemente, durante as quatro primeiras décadas republicanas, o estado de saúde dos
órfãos foi sempre acima do satisfatório.
Entre 1900 a 1940, ingressaram no São Joaquim 643 meninos, um número pequeno
se comparado às 3733 crianças do Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia. Porém a Casa
Pia, nessas quatro décadas republicanas, só registrou uma morte, a do menor Hermes de
Oliveira, que faleceu de causa ignorada em 8 de abril de 1910, “fazendo a Casa o enterro
com a decência do costume”.
33
Portanto, se o caráter seletivo da instituição, característica
predominante em ações assistenciais ligadas mais à filantropia e menos à caridade, terminou
30
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1923). 19 nov.1911.
31
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1923). 24 mar.1912.
32
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1923). 9 ago.1914.
33
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa administrativa (1909 a 1923). 01 de maio de 1910.
159
por reduzir o seu campo de ação social, também implicou que os selecionados ou, melhor
dizendo, os eleitos tivessem maiores chances de sobrevivência.
A tentativa de se fazer uma análise do alcance social do orfanato, levando em conta
a população infantil da cidade entre 1900 a 1940, esbarra em inúmeras dificuldades. Apenas
no censo de 1940 encontramos informações parciais sobre o segmento infantil do Estado da
Bahia. Este censo fornece dados sobre o número de crianças na faixa de 0 a 14 anos,
existentes nos anos de 1900, 1920 e 1940, sem contudo dar nenhuma idéia do índice de
mortalidade infantil da cidade e do Estado. Segundo o censo, a população infantil do Estado
nesses anos foi, respectivamente, de 882.165, 1.422.355, 1.728.368, o que dá uma média de
1.344.296 crianças. Caso consideremos que o percentual de crianças de 0 a 14 anos, em
Salvador acompanhou o do Estado da Bahia, ou seja, 43,04%, teremos 0.57% de crianças de
Salvador, que entraram na instituição. O que aparentemente comprova o limitado alcance do
orfanato.
34
Não obstante, devemos reconhecer que, para aqueles que conseguiram a
proteção da Casa, esta significou, no mínimo, a sobrevivência imediata, e também maiores
possibilidades de uma ascensão social futura.
Mas de onde vinham, aonde iam e o que faziam esses órfãos? Como vimos acima,
ingressaram na Casa 643 crianças, todas elas na segunda infância, ou seja, em idade escolar.
Para sermos mais precisos, 621 crianças tiveram suas idades registradas ao entrar, ficando
21 sem registro. Como podemos perceber pela tabela e gráfico 8, a faixa de idade variou de
4 a 14 anos. Abaixo de 7 anos houve apenas 12 casos, o que corresponde a 1,9% do total de
órfãos. Estas crianças constituíram exceções, já que a idade permitida pelo regulamento era
de 7 a 9 anos. Elas também são uma prova de que os regulamentos, embora rígidos, foram
desobedecidos em determinadas circunstâncias.
34
IBGE. Censo Demográfico do Estado da Bahia: 1940. v. 4, t.1.
160
Constituíram também exceções as crianças de idade entre 10 a 14 anos no momento
do ingresso. As crianças de 10 anos, 9,8% dos órfãos, não podem ser classificadas como
exceções. De fato, somente os jovens de 11 a 14 anos (1,9%) podem ser considerados
minoria. Todavia, se somarmos estes com os que entraram antes de 7 e com as crianças de
10 anos, teremos um total de 13,6% de crianças cujo ingresso não estava de acordo com as
rígidas regras de entrada. O percentual de crianças que ingressaram dentro da idade
permitida, 7 a 9 anos, é de 86,2%, o que nos autoriza a afirmar que a grande maioria
entrava, de fato, na faixa de idade considerada adequada à iniciação da formação escolar.
A idade, assim como o atestado de pobreza da criança e o atestado de óbito do pai
foram elementos utilizados pela instituição para realizar o inquérito social e, desta forma,
avaliar quem eram os verdadeiros necessitados. Deveriam os assistidos fazer parte dos
“verdadeiros pobres”, ou seja, o grupo de indivíduos que constrangiam-se em expor as suas
mazelas e que objetivavam escapar dessa condição. A ajuda estava condicionada a uma
investigação rigorosa da família do candidato.
35
Tabela 8- Idade de entrada dos órfãos
35
DONZELOT, 1986, p.67.
Idade de entrada %
4 anos 2 0,3
5 anos 1 0,2
6 anos 9 1,4
7 anos 71 11,4
8 anos 240 38,6
9 anos 225 36,2
10 anos 61 9,8
11 anos 7 1,1
12 anos 2 0,3
13 anos 2 0,3
14 anos 1 0,2
Total 621 100
Fonte: Livro de registro de entrada de crianças da Casa Pia e
Orfanato de S. Joaquim. 1900 a 1940.
161
Um exemplo de inquérito aplicado pela instituição na admissão de seus internos
pode ser observado no registro do menor Júlio, órfão de pai e vítima de inundações que
ocorreram no interior do Estado da Bahia em janeiro de 1914. De acordo com a Mesa da
Casa Pia:
O Dr. Carlos Vianna deu conta incumbência que a si e ao Sr. Eloy Guimarães
submeteu a Mesa na sessão passada sobre a viúva Anelina de Almeida, cujo o
marido foi vítima das inundações de janeiro deste ano no interior do Estado.
Disse que a viúva é extremamente pobre e tem nove filhos em miséria, e que
o orfão Júlio, seu filho, que está no caso de entrar no colégio, demonstra ter 8
para 9 anos, constituição robusta, pelo que opina pela sua admissão. O único
documento que pode obter foi um atestado do vigário de S. Félix, declarando
haver o marido de Anelina falecido em Bandeira de Mello.
O Sr. Eloy Guimarães com a palavra, não concorda com a entrada do orfão,
porque faltam os papéis, que julga indispensáveis.
36
Contudo, o provedor encontrou uma forma de driblar as regras, convencendo a Mesa
a aceitar o órfão. Argumentou este que, como constava nos livros desde 1837, a Mesa por
várias vezes havia, em casos especiais, feito concessões. A criança foi assim admitida.
Apesar disso, pouco sabemos sobre o seu destino dentro e fora do Asilo. Júlio era um
36
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1923). 9 ago.1914.
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
%
4
anos
5
anos
6
anos
7
anos
8
anos
9
anos
10
anos
11
anos
12
anos
13
anos
14
anos
Gráfico 8 Idade de entrada dos órfãos
162
menino branco, órfão de pai, com aproximadamente 10 anos de idade. Entrou na casa em 19
de agosto de 1914 e saiu retirado por sua mãe, em 9 de marco de 1921, aos 17 anos de
idade.
O método de investigação para a admissão dos órfãos, mencionado no regulamento
de 1828, foi mantido na República. Por exemplo, no processo de admissão do menino José
do Espírito Santo, os administradores da Casa observaram:
[...] Em face dos documentos juntos, pode ser admitido no número dos
órfãos deste colégio convindo acrescentar que procuramos verificar as
suas condições (grifo nosso) e são elas realmente de ordem a inspirar
verdadeira compaixão lutando a peticionaria com as maiores dificuldades
para mantê-los e aos seus 5 filhos.
37
José entrou no Asilo em 20 de janeiro de 1925, com 8 anos de idade, e saiu a pedido
de sua mãe para aperfeiçoar-se na arte de sapateiro, em 10 de fevereiro de 1931, aos 14 anos
de idade.
Às vezes, a investigação empreendida pela Casa era minuciosa ao ponto de nos
permitir saber um pouco sobre a vida e as dificuldades por que passavam o menor e sua
família, inclusive informações sobre sua moradia. O menor Lourival de Souza, branco, 9
anos de idade, órfão de pai e filho legítimo de Áurea Vitalina de Souza e Abegelicio de
Souza, vivia com sua família em grande estado de pobreza. Segundo os administradores,
sua mãe tinha
[...] quatro filhos todos pequenos, sendo o mais velho o orfão Lourival que
vai fazer nove anos em janeiro próximo. Mora numa pequena casa de palha
no lugar chamado Ulbiranas logo a seguir à Amaralina que lhe foi cedida
por um caritativo, até que consiga casa na cidade[...]
38
37
ACPOSJ. Livro de registro de entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1585.
38
ACPOSJ. Livro de registro de entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1659.
163
Através deste registro, ficamos sabendo que o menor e sua família residiam em
bairro afastado do centro da cidade, Amaralina, local característico de residência de
pescadores e pequenos lavradores. Sua mãe, para sobreviver, vivia “quase de esmolas e de
ter de trabalhar em casas de família de sua vizinhança”.
39
Lourival foi aceito em 1929, mas
sobre sua vida na Casa Pia e sua saída não temos nenhuma informação.
Vida de verdadeiro infortúnio parece ter sido a do órfão Manoel da Paixão Dias. Seu
pai, Antônio Veríssimo Dias, vendedor ambulante, suicidou-se em plena praça do Campo
Grande, porque “o mesmo havia enviuvado e não tendo com quem deixar as crianças
resolvera se matar e envenenar os filhos”.
40
Gabriel Goderich, um jornalista e funcionário
público, cuja relação com a família é desconhecida, responsabilizou-se pelo menor e por sua
irmã, Maria dos Anjos, solicitando, em 5 de março de 1934, a entrada de Manuel na Casa
Pia. A partir daí, não temos mais nenhuma informação sobre a vida desta criança, nem ao
menos sabemos quem o retirou da instituição.
Houve menores que nem chegaram a sair do São Joaquim, aí exercendo serviços,
após ter expirado o tempo regulamentar de permanência. Foi o caso do menor Emanoel de
Oliveira, ingresso aos 9 anos de idade, filho ilegítimo de Maria Josephina de Oliveira e
órfão de mãe. Sua entrada foi requerida pela avó em 9 de maio de 1925. Os registros do
garoto informam que tornou-se alcoólatra, morrendo em 6 de dezembro de 1991, aos 75
anos de idade, e que, a partir de 1949, passou a exercer para o colégio a função de polidor,
residindo na instituição.
41
Um destino em desacordo com os objetivos de uma instituição
que visava acima de tudo amparar os órfãos, incutindo-lhes valores morais de obediência e
servilismo, buscando para isso reprimir costumes e vícios, entre eles, a bebida.
Também o garoto Noel Manoel de Senna, pardo, filho legítimo de Melania dos
Santos Senna e Antonio Manoel Senna, foi mais tarde aproveitado na função de oficial de
39
Ibid.
40
ACPOSJ. Livro de registro de entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1738.
41
ACPOS. Livro de registro de entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1588.
164
marceneiro.
42
Agindo dessa maneira, a Casa mantinha sem muitos gastos o aprendizado
prático da marcenaria. Foi igualmente aproveitado nas oficinas Mário da Conceição
Fernandes, de cor preta, filho da “indigente” Cecilia da Conceição.
43
Este menor, que entrou
no ano de 1931 e supostamente saiu com seu padrinho em 1940, na verdade foi aproveitado
pela oficina de sapataria. Da mesma forma, em 1940, o órfão Elias dos Prazeres assumiu a
função de oficial de alfaiataria.
44
Adotando uma prática de controle que consistia fundamentalmente em repartir o
poder entre aqueles que até então só haviam conhecido a dominação, a instituição usou ex-
alunos como censores ou como ajudantes de censor. A Mesa aprovou que “o órfão
Manoel Severino dos Santos, tendo atingido a idade de sair, passasse a servir como ajudante
de censor, com a gratificação de trinta mil réis”.
45
Fernando Ribeiro foi outro garoto
aproveitado como ajudante de censor.
46
O menino entrou em 1931 com 9 anos, saiu
teoricamente em 1939, ou seja, com 17 anos. A realidade é que, com esta idade, passou a
exercer a função de ajudante de censor, assumindo a responsabilidade de controlar e
disciplinar seus colegas. Situação de maior prestígio foi a do menino Joaquim Pedro de
Oliveira, que foi aproveitado como censor sem passar por estágios preliminares.
47
Não
temos como saber com precisão as funções desempenhadas por um censor, mas a Mesa da
Casa Pia, em ata expedida no ano de 1910, deixa entrever a importância dessa atividade ao
relatar o pedido de demissão do censor Antônio Salvador de Miranda, que havia exercido
durante 14 anos essa atividade, “tendo algumas vezes servido como Reitor”. Com a
demissão do referido censor, nomeou-se Francisco G. Ramos para substitui-lo e julgou-se
necessário “a nomeação de um 2º censor, para mais segura fiscalização e disciplina do
42
ACPOSJ. Livro de registro de entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1664.
43
ACPOSJ. Livro de registro de entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1685.
44
ACPOSJ. Livro de registro de entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1705.
45
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1923). 19 out.1913.
46
ACPOSJ. Livro de registro de entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1691.
47
.ACPOSJ. Livro de registro de entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1697.
165
colégio, visto ser presentemente de cem o número de órfãos”.
48
O aproveitamento de ex-
alunos como funcionários partia da premissa de que todo aluno disciplinado era,
potencialmente, um trabalhador disciplinado.
A preocupação com a disciplina pode ser um sinal de que, com os novos rumos
republicanos, tivesse ficado mais difícil manter o controle sobre os garotos. Na República, a
expectativa dos órfãos de conseguirem uma boa colocação profissional reduziu-se em
muito, provavelmente implicando que os menores deixassem de acreditar na utilidade de
regras comportamentais tão rígidas.
Apesar das dificuldades da Casa Pia em encontrar trabalho para seus assistidos, esta
não deixou de adotar medidas de estímulo ao aprendizado profissional. Em sessão de 5 de
dezembro de 1915, os mesários registraram a sugestão de melhorar o aprendizado nas
oficinas feita pelo professor Manoel Martins dos Santos. Para este professor, deveria ser
“distribuído com os meninos, nas oficinas, pequenas gratificações pelos trabalhos ou
prêmios para despertar amor ao trabalho”, idéia que, segundo o provedor, já vinha sendo
aplicada há um bom tempo nas aulas de música. Somente os alunos que se decidiam pelo
aprendizado da música recebiam cadernetas de poupança. A extensão de tal medida para as
demais oficinas foi considerada, pelo provedor, como algo insensato e inviável. Por isso,
“ficou resolvido que fossem criados três prêmios nas oficinas e que na tipografia, porém,
fosse desde já deduzida uma pequena quota do produto dos trabalhos remunerados,
creditado aos orfãos que nela trabalhassem”.
49
As medidas disciplinares e de estímulo ao trabalho foram insuficientes para impedir
atitudes de indisciplina e até mesmo de rejeição ao processo de educação disciplinar. Em
algumas situações, a indisciplina estendeu-se aos mestres das oficinas, teoricamente
responsáveis pela manutenção da ordem. Situação compreensível, haja vista que alguns ex-
48
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1923). 01 maio. 1910.
49
ACPOSJ. Livro de atas da Mesa Administrativa (1909 a 1923).
166
alunos assumiam esses ofícios. Assim, encontramos, por exemplo, casos como o do mestre
da oficina de marcenaria, Jacinto Gomes, que, em 19 de abril de 1911, foi suspenso e
demitido por causa do “seu procedimento irregular para com os orfãos e desrespeito ao Sr.
Reitor”.
50
Infelizmente, a documentação não nos permite saber que atitudes esse professor
adotou que foram consideradas tão graves a ponto de causar sua demissão.
Não apenas os professores tinham comportamento irregular. O órfão Mário Baldas
Passos, por exemplo, teve sua expulsão requerida pelo provedor. Este chegou a enviar ao
Secretário de Segurança Pública a seguinte carta:
[...] Existe neste colégio um aluno que, pela má índole e manifesta inclinação
para a perturbação da ordem da Casa, não pode continuar no meio de cento e
tantos condiscípulos induzido-os ao desrespeito a disciplina.
Não há castigos no colégio; e por isso são inúteis todas admoestações.
Rogo, então, a V. Excia, que o mesmo seja internado na Escola de Menores
deste Estado, onde poderá ele, por certo corrigir-se e tornar-se um elemento
bom para o futuro.
51
Para o provedor, as atitudes não adequadas do menor faziam parte de sua natureza e
eram conseqüência de sua má personalidade mas, apesar disso, caso fosse internado em uma
instituição disciplinar mais rígida, a Escola de Menores, poderia ainda ser corrigido. Mário
havia ingressado na Casa Pia em 1933 e, no ano da denúncia, 1939, tinha quatorze anos de
idade. Estava sendo acusado de praticar “atos de perversão sexual, violando a moral e
disciplina colegial” e, por isso, reclamava-se “seu internamento que o preserve de maior
corrupção própria e dos seus companheiros, ao mesmo tempo que se processará a reforma
das suas qualidades morais”.
52
Ficamos sabendo, assim, a forma como alguns garotos
davam vazão às suas necessidades sexuais durante a puberdade e, ao mesmo tempo, as
atitudes de repressão adotadas pela Casa.
50
Ibid.
51
ACPOSJ. Livro de Registro de Entrada de órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, nº 1734.
52
Ibid.
167
Podemos imaginar as censuras e humilhações que este rapaz deve ter sido alvo.
Salvador, até a década de 70 do século XX, era uma sociedade extremamente tradicional e
fortemente apegada aos valores cristãos, o que fazia com que atitudes homossexuais
declaradas fossem energicamente condenadas. Principalmente se essas atitudes partissem de
garotos internos em instituição cristã que visava, acima de tudo, a moralização dos costumes
e a transformação dos órfãos em indivíduos cumpridores dos deveres de cidadão. Para o São
Joaquim, seria impossível que garotos que praticassem esse tipo de “transgressão sexual”
cumprissem os seus papéis de chefes de família e trabalhadores ordeiros. Eles, portanto,
precisavam ser punidos com a exclusão.
Não apenas esse jovem, mas também outros foram castigados no ano de 1939, por
comportamentos considerados irregulares. A carta enviada pelo reitor Custódio Rodrigues
Bandeira ao provedor afirma:
Tenho a honra de informar a V. Ex. que o menor Isaias Pereira da Silva,
apesar das reiteradas admoestações, nenhum proveito tem demonstrado até
hoje das aulas, e da oficina em que trabalha, revelando-se em tudo um
insubordinado e escandalisador da comunidade pelo seu péssimo
procedimento.
53
(Grifo nosso).
O garoto Isaias foi expulso em 1939 e, assim como o seu colega Mário,
escandalizava a comunidade. Da mesma forma, o garoto Walter Lopes Bittencourt, em
1939, foi entregue a sua família “por não poder o mesmo continuar mais neste colégio em
virtude do seu procedimento irregular”.
54
Outras motivações levaram à expulsão de internos. O garoto José Expedicto de
Argolo, 14 anos, foi expulso em 1939 por ter agredido fisicamente o mestre de oficina de
marcenaria, “com o agravante dessa indisciplina ter sido levada a efeito em presença de
órfãos, seus companheiros, isto, após ter proferido palavras obscenas em franco desrespeito
53
ACPOS. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1702.
54
ACPOS. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1722.
168
à comunidade”. O controle disciplinar foi prontamente acionado através da “imediata
intervenção do censor Almir Rodolpho de Almeida que, tomou as devidas providências,
trazendo, em seguida, ao meu conhecimento”.
55
Fosse por atitudes de violência física ou por outras práticas consideradas anormais, a
Casa Pia expulsava os garotos alegando não dispor dos métodos necessários para corrigi-
los. Todavia, no ano de 1903, o reitor Demétrio Ricardo Pereira enviou ao provedor uma
reclamação de um menor que, depois de infringir as regras disciplinares havia ousado fugir
do castigo e procurado proteção fora da Casa. De acordo com o reitor:
O menor Francisco de Assis Dórea, tem procedimento irregular e de incapaz
aproveitamento nas materiais aqui professadas, entendendo-lhe não dever
frequentar a oficina de marcenaria, onde não tem aproveitamento e obstinado-
se neste propósito, apesar de meus conselhos, revoltou-se contra minha
pressão [...] e, querendo eu castiga-lo pela sua ousadia e arrogância, ele
grosseiramente se opôs a minha autoridade pretendendo desacata-la, mas não
tendo conseguido o seu intento evadiu-se para a roça do Estabelecimento
onde se conservou até que foi pego. O menor evadiu-se em 28 do mês
passado, da prisão onde fora colocado em presença do reitor, encontrando-
se ele em Roma, em casa de Júlio Bahia
56
(Grifo nosso).
Supomos que, para a época e para o padrão disciplinar dessa instituição, um aluno
recusar-se a aprender o ofício que lhe havia sido designado, isso constituísse, nas palavras
do reitor, “ousadia” e “arrogância”. O fato é que havia punição de caráter corretivo e, pelo
menos em 1904, a Casa Pia recorreu à prisão ou a algum tipo de dispositivo disciplinar que
visava corrigir a falta do aluno, segregando-o do convívio com os seus.
Além dos pré-requisitos já citados, pobreza e atestado de orfandade, para a aceitação
do interno era imprescindível que o garoto fosse vacinado. Segundo o regulamento de 1828,
“por via de regra os colegiais devem ser vacinados antes de entrarem no Colégio, e disso
55
Ibid., n. º 1716.
56
ACPOS. Pasta de pessoal, Estante 18.
169
apresentarão certidão para o recebimento”.
57
A obrigatoriedade do certificado de vacina
permaneceu na República, tanto que o regulamento de 1910, ao referir-se aos dispositivos
necessários à admissão do menor, assim discorria:
A admissão dos órfãos na Casa Pia se fará mediante pedido escrito, dirigido
ao Provedor, acompanhado de documentos do Vigário e autoridades civis do
lugar de residência do peticionário, que provém pobreza extrema do menor,
idade de 7 a 9 anos, óbito do pai, vacina e ausência de sofrimento físico ou
moléstia contagiosa
58
(Grifo nosso).
A primeira pergunta que nos fizemos foi a qual vacina estaria se referindo a
instituição. Depois, os motivos que levaram a Casa Pia a impor essa norma de saúde aos
seus assistidos. A vacina exigida era contra a varíola, doença conhecida popularmente como
bexiga. Sidney Chalhoub, em Cidade Febril, nos informações sobre esta doença e seu
combate no Brasil.
De acordo com este autor, existia uma distinção entre variolização e vacinação, nem
sempre percebida pela população. A primeira consistia na inoculação do pus variólico em
pessoas sãs. Este método exigia a retirada do pus de uma pessoa que contraiu a doença e
posteriormente, utilizando-se “de uma agulha previamente molhada no pus”, fazer pequenas
perfurações no indivíduo sadio, prática muito presente na medicina popular de várias
sociedades, desde a mais remota antigüidade. Já a vacinação, continua Chalhoub, teria sido
um método descoberto pelo médico Edward Jenner no final do século XVIII. Observando
que os camponeses ingleses que trabalhavam com o gado normalmente não contraiam a
varíola, Jenner resolveu pesquisar os motivos, descobrindo que isto acontecia porque os
indivíduos adquiriam a vacina, “doença que ocorre ocasionalmente nas vacas, consistindo
em ulcerações, altamente contagiosas, que se formam nos úlberes desses animais”.
57
ACPOSJ. Primitivos estatutos da Casa Pia e Colégio dos Meninos Órfãos de S. Joaquim da cidade da
Bahia, p.42.
58
ACPOSJ. Estatutos da Casa Pia e Colégio dos órfãos de S. Joaquim, aprovados e votados pela Junta em 14
de Junho de 1910, p.20.
170
Assim, passou-se a retirar o cowpox (matéria extraída dos úberes das vacas) para
inocular nas pessoas. Devido às inúmeras dificuldades apresentadas, tanto na retirada do
cowpox como na aceitação do método pela população, adotou-se a “vacinação braço a
braço, os vacinados seguintes receberiam o fluído vacínico diretamente extraído dos braços
dos que haviam sofrido a operação oito ou nove dias antes”.
59
Percebe-se, desta forma, que
pelo fato da variolização e da vacinação exigirem a propagação braço a braço, era muito
difícil distinguir um processo do outro.
Esta explicação é fundamental para que possamos compreender como a Casa Pia
conseguiu selecionar uma população economicamente necessitada que cumprisse a
exigência, o que implicava encontrar famílias pobres que estivessem em sintonia com os
preceitos da medicina higienista. Afinal, todas as crianças que deram entrada apresentaram
o comprovante de vacinação. Vacinação ou variolização? Os comprovantes, tinham às
vezes, forma imprecisa. Apesar de serem assinados por médicos, esses documentos não
faziam, em geral, menção ao Instituto Vacinogênico da Bahia ou à Inspetoria de Higiene,
órgãos legalmente responsáveis pela vacinação contra a varíola. A carta de vacinação do
garoto Raquel de Castro Alves ilustra bem essa característica:
Atesto que o menor Raquel de Castro Alves, com sete anos de idade, filho de
Emydio Alves das Neves, foi vacinado com satisfactório resultado; e bem
assim não sofre de molestia contagiosa.
Bahia, 15 de março de 1897.
Dr. Arthur de Figueredo Rebouça.
60
Não sabemos quem era este médico, se ele pertencia ao Instituto Vacínogênico, nem
que critério adotou para afirmar que o garoto fora vacinado. Estas questões também não
ficam esclarecidas no certificado de vacinação do menino Oseas Gomes, emitido pelo Dr.
Antônio Moraes:
59
CHALHOUB., 1996, p.103-107.
60
ACPOSJ. Pasta do aluno, n.º 1226, 16 mar. 1900.
171
Examinei o menor Oseas Gomes Rodrigues e encontrei-o vaccinado com
proveito e não sofrendo de moléstia alguma contagiosa pelo qual pode ter
entrada no Collegio dos Orphãos de São Joaquim.
61
Em que esses médicos se apoiavam para afirmar que os menores haviam sido
vacinados? As mães dos garotos não apresentaram documentação da Inspetoria de Higiene
ou do Instituto Vacinogênico. Os médicos, desta forma, contaram, para certificarem-se da
vacinação, unicamente com sua investigação clínica. Outro médico, o Dr. Velloso, fez a
mesma afirmação, inclusive utilizando-se da ideologia patriótica para dar maior veracidade
ao seu veredicto. Depois de atestar a vacinação de Oseas, o Dr. Velloso argumentou: “o que
afirmo pelo meu país”.
62
Também recorrendo a ideais patrióticos, um médico cujo nome
desconhecemos atestou: “atesto sob juramento de meo país que o menor Caetano Alberto
Bispo foi vaccinado com proveito”.
63
Procurando legitimar um pouco mais o seu testemunho, o médico Tiburcio Suzano
de Araújo, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, fez a seguinte afirmação: “Atesto
que o menor Antonio, filho[...] foi vaccinado com proveito, como provão as cicatrizes”.
64
O
registro do médico permitiu-nos tomar conhecimento de uma das formas encontradas pelos
profissionais de saúde para certificarem-se de que uma criança foi vacinada: a observação
das cicatrizes existentes nos braços dos pacientes. Com efeito, era extremamente difícil
para os fiscais, leigos no assunto, fazerem distinção entre “marcas de inoculações de pus
variólico ou vacínico nos braços das pessoas”
65
. Ousamos ir mais longe e questionamos se a
maioria dos médicos baianos do início do século sabiam fazer esta diferenciação.
Acreditamos que alguns podiam realmente se enganar e, se assim o foi, fica explicado o
61
Ibid., nº 1223, 18 abr. 1901.
62
Ibid.
63
ACPOSJ. Pasta do aluno, nº 1237, 11 fev. 1904.
64
ACPOSJ. Pasta do aluno, nº 1250, 3 jun. 1904.
65
CHALHOUb, 1996, p.155.
172
porque de tantas famílias pobres compartilharem com os médicos as preocupações
profiláticas, da qual a vacinação da varíola fez parte. Muitas dessas famílias, em verdade,
teriam somente sido submetidas à variolização. Hipótese muito provável, haja vista que,
em 1862, o diretor do Instituto Vacínico da Bahia atribuía como uma das causas para a
pouca propagação da vacina, “a falta de uma estatística exata dos vacinados por vacinações
particulares sem as formalidades legais, sem a certidão ou atestado da Repartição da vacina,
provocando o descrédito do Instituto Vacínico pela continuação da varíola em indivíduos
vacinados”.
66
De acordo com Chalhoub, o processo de variolização foi introduzido no
Brasil já tardiamente, em 1790, “já tão às vésperas da descoberta e propagação do método
jeneriano”, sendo muito comum a inoculação do pus variólico feita por “curiosos” na Corte
e no interior do país durante todo o século XIX.
67
Testemunhos como o do médico Virginio Cesar Martins Reys, formado pela
Faculdade de Medicina da Bahia, contribuíram para reforçar esta hipótese. Nele encontram-
se não apenas uma confusão entre a vacina e variolização, como também a aceitação da
crença popular de que o indivíduo que contraiu doenças, como varíola e sarampo está
definitivamente protegido das mesmas. Afirma Dr. Reys :
Attesto que o menor de nove annos, presumiveis, Octavio, filho de Josepha
Maria da conceição, allem de ter sido vaccinado foi atacado de varíola, o
que parece tel-o tornado isento de soffrer novo ataque da peste.
Outrossim o menor não soffre de molestia alguma contagiosa
68
(Grifo nosso).
O único caso de criança vacinada pelo Instituto Vacinogênico da Bahia, tendo assim,
no aparato médico legal o responsável por sua vacinação, foi o do garoto Amancio Dias
Lima, ingresso na Casa Pia aos 7 anos de idade. Seu certificado foi passado pelo médico da
66
APEBA. Instituto Vacínico (1852-1870). Maço n.º 5319
67
CHALHOUB, 1996, p.105-128.
68
ACPOSJ. Pasta do aluno, n.º 1252, 9 maio. 1904.
173
repartição do Instituto Vacinogênico, o Dr. José Mippibyte da Luz Lima, em 5 de outubro
de 1905.
69
Somente quando olhamos os dados acima em conjunto é que podemos entender
como o São Joaquim conseguiu arregimentar, entre a população pobre, tantas famílias
conhecedoras das regras de assepsia e profilaxia. De fato, algumas crianças devem ter sido
realmente vacinadas, pois seus familiares, conhecendo a exigência da Casa Pia, procuravam
médicos para imunizá-las. Provavelmente, estavam neste grupo os garotos que entraram no
orfanato após 1910, ou seja, alguns anos depois da Revolta da Vacina no Rio de Janeiro.
Antes desse período, o que os médicos viram nos braços das crianças como marcas de
vacinação, em verdade, podem ter sido, marcos do método popular de imunização, a
variolização.
Preenchidos todos os requisitos a criança entrava no orfanato, deixando para trás
uma infância vivida com a família. Com quem vivia a criança antes de entrar na Casa Pia,
quem era o seu responsável legal, como organizava-se a família, que atividades seus pais
desenvolviam, qual a identificação étnica e social dos garotos e, por fim, quais as razões do
internamento foram algumas perguntas formuladas e que, na medida do possível,
procuramos responder.
Através dos dados sobre o requerente, podemos verificar quem era o responsável
legal da criança. Os dados da tabela 9 atestam a importância da mãe na criação dos filhos,
tanto em relação aos órfãos de S. Joaquim, quanto para as crianças da primeira infância
assistidas pela Santa Casa.
Tabela 9- Requerente do internamento
69
ACPOSJ. Pasta do aluno, n.º 1271, 5 out. 1905.
Requerente %
Ignorado 92 14,3
Pai 3 0,5
Mãe 352 54,7
Avós 29 4,5
Tios 24 3,7
Padrinhos 14 2,2
Outros 129 20,1
TOTAL
643
100,0
Fonte: Livro de registro de entrada de crianças da Casa Pia e
Orfanato de S. Joaquim. 1900 a 1940.
174
Pouco mais da metade (54,7%) deu entrada por requisição da mãe e apenas 0,5% pelo pai. É
compreensível o número inexpressivo de pais, uma vez que a Casa Pia foi estruturada para
funcionar enquanto orfanato. Órfãos eram, para a instituição, aqueles que haviam perdido o
pai, teoricamente o responsável pela manutenção física e moral da criança. Portanto, apelos
de viúvos foram raros.
Os registros de um número considerável de crianças (14,3%) não apresentam
informações sobre quem teria requerido a entrada. Não sabemos se foram exceções
acobertadas pelos administradores ou simplesmente desleixo e esquecimento dos
funcionários. Em proporção maior do que a das crianças com requerentes de internação
ignorado, estavam aquelas cujos responsáveis legais eram pessoas que não faziam,
propriamente, parte do universo familiar da criança. Nesta situação, encontravam-se 20,1%
dos menores. Os responsáveis legais por estes garotos, geralmente órfãos de pai e mãe, eram
membros dos segmentos médio e alto da sociedade, que assumiam a função de protetores de
crianças desamparadas. O menino Francisco Pereira dos Santos, por exemplo, teve seu
internamento feito em 16 de maio de 1937 a pedido de Abel de Souza Guimarães, que
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
%
Ignorado
Pai
Mãe
Avós
Tios
Padrinhos
Outros
Gráfico 9 - Requerente de entrada
175
nenhuma relação parental tinha com o menor.
70
O requerente não somente solicitou o
internamento de Francisco como pediu, em 1940, a sua saída.
Por trás de sua atitude de aparente proteção, podemos supor que talvez houvesse o
interesse de explorar o trabalho do garoto, mas é também possível que esse homem apenas
estivesse seguindo seus sentimentos de piedade cristã. Interesse ou não em explorar o
trabalho do menor, homens e mulheres com atitudes similares a de Abel Guimarães
recorreram ao São Joaquim, com o intuito de viabilizar o futuro profissional a seus
protegidos. Horácio Urpia Junior, protetor do garoto Aprigio Barbosa, internado em 24 de
julho de 1900, deixou registrada esta intenção: “Desejando concorrer para que o mesmo
orphão venha ter uma educação artistica de acordo com as instituições desse colégio de
educação”.
71
Horácio Urpia chegou a oferecer “a jóia de quinhentos mil réis para os cofres
do mesmo Estabelecimento, como auxílio para educação do referido Aprigio”
72
. Seu
interesse é deveras intrigante já que a mãe de Aprigio ainda estava viva, tendo sido esta que
o retirou oito anos depois da instituição.
O restante das crianças foi internado por solicitação de seus parentes, sendo 4,5% a
pedido dos avós e 3,7% dos tios. No total, 8,2% das crianças tiveram como protetores seus
parentes mais próximos. Só 2,2% da crianças encontravam-se, antes do internamento, sob a
guarda de seus padrinhos. Ao que parece, as relações de compadrio, da mesma forma que
para as crianças do Asilo dos expostos, não garantiram aos órfãos do São Joaquim proteção
e solidariedade. Houve, é claro, situações como a do menino Osvaldo Franco Passos que,
tendo sua mãe saído da Bahia e o abandonado, recebeu da madrinha Maria Adelaide
Gesteira Radel, apoio e assistência. Maria solicitou o internamento do menor em novembro
de 1900 e requereu sua saída em 1910, para que este pudesse ir “para São Paulo em
companhia de sua irmã Constança Cajado (sic) é quem o cria e acha-se em condições de
70
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1793.
71
Ibid., n.º 1208
72
Ibid.
176
dar-lhe educação”.
73
Provavelmente a madrinha, após ter ajudado na criação de Constança,
irmã mais velha de Osvaldo, buscou transferir para esta a responsabilidade da educação do
garoto.
A atuação quase inexpressiva dos padrinhos na formação educacional da criança, em
contraste com a importância da mãe e dos parentes, demonstra ter sido a família (nuclear ou
não) fundamental na hora de decidir o destino de uma criança pobre. Assim sendo, é
imprescindível uma análise acerca da família do órfão do São Joaquim. Até porque o
conhecimento da organização familiar dos assistidos permite uma compreensão, ainda que
parcial, dos segmentos sociais em que estavam inseridos, juntamente com as razões do
internamento. As informações sobre a origem familiar das crianças assistidas pela Casa Pia,
da mesma forma que para as crianças do Asilo dos Expostos, são importantes na medida em
que ajudam a compreender como algumas famílias pobres enfrentavam o problema da
criação e educação de crianças e jovens. Situação esta que piorava quando falecia um dos
cônjuges ou ambos, ou quando a condição financeira da família agravava-se. Vejamos os
dados da tabela e do gráfico 10:
Tabela 10 - Legitimidade dos órfãos
73
Ibid., n.º 1342.
Legitimidade %
Ignorada 208 32,3
Legítimo 340 52,9
Ilegítimo 95 14,8
TOTAL 643 100,0
Fonte: Livro de registro de entrada de crianças da Casa Pia e
Orfanato de S. Joaquim. 1900 a 1940.
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
%
Ignorada
Legítimo
Ilegítimo
Gráfico 10 Legitimidade dos órfãos
177
Mais da metade das crianças do S. Joaquim (52,9%) era de crianças provenientes de
uniões legítimas. Comparando este dado com os encontrados para a Santa Casa, percebemos
uma situação inversa. Tudo indica que uniões ilegítimas favoreciam o abandono de crianças
na primeira infância, o que não ocorria com uniões legítimas. Mas a morte do pai, muitas
vezes em conseqüência das péssimas condições de vida e de trabalho do segmento pobre da
cidade, obrigava as famílias a se separarem de suas crianças antes da idade adulta. O mais
lógico para essas famílias era então confiá-las a uma instituição que lhes desse abrigo e, ao
mesmo tempo, possibilitasse o preparo do menor para o trabalho.
O número considerável de crianças sem qualquer tipo de identificação familiar
(32,3%) merece um esforço de interpretação. Crianças aceitas na Casa, mesmo sendo
impreciso o estado conjugal dos pais, indicam a transgressão das normas da instituição
pelos próprios administradores. Com a República, a Casa Pia tornou-se menos seletiva,
aceitando, de fato, menores pertencentes aos segmentos mais pobres, e que nem sempre
possuíam registros de casamento dos pais ou dos seus nascimentos. Mesmo, atualmente,
entre o segmento pobre da cidade, encontramos conflitos entre a obrigatoriedade do registro
civil e o costume do registro religioso. Nesta situação estavam os pais do menino Augusto
Rodrigues Vital da Graça, internado em 14 de junho de 1904. Na sua certidão de
nascimento constava:
[...] as duas e meia da tarde em sua residencia no Mont serat nasceu uma
criança do sexo masculino de nome Augusto Rodrigues Vittal da Graça filho
legítimo do declarante, caixeiro e Dona Emília Rosa Vital da Graça com
178
que casado neste districto antes da lei. Ela natural deste Estado, ele natural
de Portugal e residente neste districto
74
(Grifo nosso).
A tradição falava mais alto que as leis republicanas pois, se de acordo com estas, a
criança era ilegítima, para a família e para o escrivão esta era, sem dúvida, legítima.
Realmente, se seus pais haviam casado no religioso antes da lei civil eram, perante a
autoridade da época, a Igreja, legalmente casados. O mesmo aconteceu com Francisco de
Alexandre Pontes. Seus pais eram casados unicamente no religioso. O pai de Alexandre
morreu no Estado do Mato Grosso onde foi procurar emprego. Era um órfão, mas não de
acordo com as regras da instituição. Apesar disso, o parecer dos administradores foi
positivo e o garoto foi internado em 8 de abril de 1937.
75
Nessa situação de indefinição do estado conjugal dos pais encontravam-se outras
crianças admitidas, em geral órfãs de pai e mãe e protegidas por pessoas que, de uma forma
ou de outra, estiveram em contato com os pais antes dos seus falecimentos. Na cidade de
Cachoeira, por exemplo, o juiz de Direito da Comarca de Belmont recebeu o menor José
Cândido de Souza. Segundo o Juiz:
[...] o referido órphão viera para sua companhia por terem falecido seus paes,
quando, accossados pela seca, procuravam trabalho no districto já alludido,
que o mesmo orphão quando veio para sua companhia em 1890. Tinha 1 anno
de idade e atualmente tem 6 annos.
76
Como o juiz recebeu a criança já com um ano de idade e de forma inesperada,
dificilmente teria algum documento que comprovasse a filiação da mesma. Vítima da seca,
José Cândido separou-se definitivamente dos pais que, acossados pela sede e fome,
deixaram para trás um passado. Um passado talvez nunca registrado em documentos. A
morte dos pais de José selou a sua vida e o seu destino, ligando-o ao da Casa Pia.
74
ACPOSJ. Pasta do aluno n.º 1219-1254, 14 jun. 1904.
75
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1815.
76
ACPOSJ. Pasta do aluno n.º 1219-1254, 12 abr. 1904.
179
Um número de internos advindos de famílias legítimas, 3,6 vezes superior ao de
ilegítimos não significa, necessariamente, que a instituição, na República, recorresse a um
implacável expediente de seleção, como acontecia no Império. Tudo indica que casos como
o do menor Arthur Morreira de Barros, cujo internamento foi solicitado após a morte da
mãe, não foram tão incomuns. Este menor estava sob custódia de sua irmã Rachel Lopes,
pois ambos haviam perdido a mãe após esta ter sido internada no Hospício S. João de Deus.
Segundo o registro de óbito deste Sanatório:
[...] no dia seis de Março de mil novecentos e um entrou no Hospício de S.
João de Deus Martinha sincoenta e seis annos, solteira, preta, sofrendo de
mania aguda, como pensionista do Estado e falleceu em vinte e seis de junho
de mil novecentos e um sendo sepultada no mesmo dia no Cemitério Quintas
dos Lázaros.
77
(Grifo nosso).
O garoto, filho ilegítimo, foi aceito pela Casa mesmo não sendo órfão segundo o
regulamento, já que, como filho natural, não tinha como comprovar a morte do pai. O
estado de pobreza e abandono em que se encontrava foi suficiente para que fosse admitido
na Casa Pia. Embora a mãe da Arthur tenha morrido somente em 1901, devido à
doença mental, o garoto já não contava com a proteção materna antes dessa data.
Novamente buscamos comparar os dados da Casa com os encontrados no censo. O
único censo que contém informações sobre o estado conjugal da população é o de 1940 e,
mesmo assim, sobre o Estado da Bahia e não a capital.
78
Dos 3.918.112 habitantes do
Estado, 2.776.348 eram solteiros, 983.315 casados, 3.207 separados, 152.604 viúvos e
2.638 de estado conjugal não declarado, o que perfaz os percentuais de 70,5% de solteiros,
25% de casados, 0,08 % de separados, 3,9% de viúvos e 0,07% de estado conjugal não
declarado. É provável que esse grande número de solteiros incluísse muitas pessoas que
tinham uniões consensuais. Nos anos de 1900 e 1920, segundo o censo de 1940, a
77
Ibid., n.º 1219-1254, 7 fev.1902.
78
IBGE. Censo Demográfico do Estado da Bahia: 1940. v. 4, t. 1.
180
proporção de solteiros era, respectivamente, de 71,75% e 76, 01%, apresentando, assim,
pequenas variações em todo o período. A maior parte da população baiana vivia e formava
famílias fora do estatuto legal. Este padrão, provavelmente, influenciou no acréscimo de
crianças ilegítimas ou de filiação ignorada, deixadas na Casa Pia até a década de 40 deste
século. Mas o fato de que 52,9% dos internos no São Joaquim eram provenientes de uniões
legítimas, no Estado em que somente 25% da população eram legalmente casados, também
indica uma preferência, pela instituição, de manter seus critérios tradicionais de admissão,
mesmo que o processo seletivo tenha se tornado menos rígido do que o período Imperial.
Filhos legítimos ou não, várias justificativas foram apresentadas para o internamento
da criança, todas elas associadas a dificuldades financeiras alegadas pela mãe ou pelo
responsável legal da criança, e ao interesse em habilitá-la em uma profissão para que, ao
sair da Casa Pia, fosse capaz de sustentar a si e, quem sabe, a própria família. O garoto
Eduardo, internado em 6 de abril de 1936, era filho legítimo de Aurelina Leite Figueiredo e
José Alexandre Figueiredo. Este último assim está registrado:
[...]era médico pobre, e apesar do seu esforço ingente para obter o grau de Dr. pela
Faculdade de Medicina de nossa terra, jamais pode obter uma colocação, com o qual
pudesse deixar amparado sua mulher e filhos, não obstante ter sido na terra, um
clínico, que muito se sacrificou pela classe humilde e desamparada, da qual, hoje,
faz parte a suplicante.
79
A morte do marido e a pobreza da família levaram a mãe do garoto a recorrer à
Casa Pia. A profissão de médico, que na época dava status social ao indivíduo, nem sempre
vinha acompanhada de sucesso financeiro. Foi o que parece ter acontecido com o pai de
Eduardo. O garoto foi retirado do orfanato, em 1943, por sua mãe e, a partir desta data, o
seu destino é uma incógnita.
79
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1777.
181
Já Oscar Lopes era filho de um sapateiro que morreu de tuberculose pulmonar em
1936, dois anos antes do garoto ser internado. Oscar foi colocado na Casa Pia por ter
perdido o pai e por sua mãe encontrar-se doente. Segundo esta escreveu:
[...] me vendo gravemente doente e desenganada pelos médicos venho por
meio desta pedir aos Srs. Pelos vossos bondosos corações que tenham pena do
meu filho porque já é orfão de pae e será também de mãe, peço que tenham
pena dele pois não tem ninguém por si e sim a caridade deste colégio que o
acolheu, peço que sempre aconselhe ele, que quando ficar homem e sair
pronto deste colégio, tome conta e vele pelas quatro irmãzinhas que são orfãs
e que só terá por elas ele.
80
O desejo de que o menor fosse, no futuro, o “arrimo” da família é algo bem
evidente na narrativa da mãe. Não temos, no entanto, condições de saber se este desejo foi
atendido, já que não há informações sobre a saída do garoto nos livros de registro da Casa.
A morte do pai de Oscar, provocada pela tuberculose, e a doença de sua mãe constituem
evidência da baixa expectativa de vida da população adulta e pobre da cidade e,
paralelamente, do estado de desamparo da população infantil.
Procuramos construir um quadro das doenças que mais causaram a morte dos pais
dos internos, na Casa Pia, nas tabelas e gráficos 11
Tabela 11 - Causas da morte ( mãe )
80
Ibid., n.º 1806.
Causas da morte ( mãe )
%
Ignorada
66
56,4
Tuberculose pulmonar
17
14,5
Infec.intestinal
1
0,9
Febre.perniciosa
2
1,7
Molestia interna
1
0,9
Lesão cardiaca
2
1,7
182
Como podemos verificar, afora as mortes causadas por doenças ignoradas (56,4%), a
tuberculose foi a doença que mais provocou óbito entre as mães, atingindo 14,5% destas.
Este dado sugere terem essas mulheres pertencido ao segmento pobre da população, uma
Gráfico 11 Causas da morte ( mãe )
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
%
Ignorada
Tuberculose pulmonar
Infec.intestinal
Febre.perniciosa
Molestia interna
Lesão cardiaca
Febre palustre
Arterioesclerose
Hemorragia cerebral
Enterite crônica
Síncope cardiaca
Nefrite
Peste
Pneumonia
Febre tifóide
Moléstia do coração
Tétano
Outros
183
vez que a tuberculose era muito comum neste grupo.
81
As habitações apertadas e
“insalubres”, e uma situação econômica incapaz de garantir, satisfatoriamente, a
subsistência da família propiciavam uma maior susceptibilidade a esta enfermidade.
Somando com o número de mortes por tuberculose com as mortes por pneumonia temos
15,4% de mulheres falecidas por doenças infecto-respiratórias.
Discorrendo sobre a letalidade da tuberculose na cidade do Rio de Janeiro, Chalhoub
afirma que esta doença “matava, implacavelmente, todos os anos e o ano todo, e desconfio
que nas últimas décadas do século fazia mais vítimas fatais do que todas as doenças
epidêmicas de maior visibilidade somadas”.
82
Acreditamos que esta realidade não foi
diferente para a cidade de Salvador. A tuberculose e a varíola, por serem doenças associadas
à pobreza e aos mestiços, foram, durante muito tempo, negligenciadas pelas políticas de
saúde pública. Apesar disso, nenhum óbito por varíola foi apresentado. É curioso que a
varíola tenha sido a causa da morte de apenas um entre os pais dos órfãos do São Joaquim,
visto que, até 1912, a presença da moléstia na cidade foi constante, escasseando de 1913 a
1918, e adquirindo ares de epidemia em 1919. Somente em 1928, depois de uma campanha
de vacinação, conseguiu-se erradicar a doença da cidade.
83
As doenças cardíacas, classificadas nos atestados de óbito das mães como síncope
cardíaca, moléstia do coração e lesão cardíaca, foram responsáveis apenas por 4,3% das
mortes.
Doenças como a peste e o tifo não foram significativas como causa da morte das
mães dos internos. O que os baianos denominavam de peste era a peste bubônica, muito
comum em locais com deficiência de saneamento básico (água encanada e esgoto) e onde
proliferavam ratos. Salvador não conheceu a peste bubônica até 1904, ano em que ela se
81
SILVA SANTOS, 1982, p.144.
82
CHALHOUB, 1996, p.94.
83
SILVA SANTOS, 1982, p.143.
184
tornou constante, só desaparecendo em 1929.
84
Já o tifo é uma doença contagiosa
transmitida pela bactéria salmonella, presente em alimentos deteriorados. Pode ser
transmitida pela água, fezes ou contágio direto com o doente. Portanto, falta de saneamento
básico também estimula a propagação desta doença. O tifo matou 1,7% das mães, um pouco
mais do que a peste bubônica, que representou 0,6% das enfermidades causadoras da morte
das mães.
Também o paludismo, popularmente conhecido como malária, registrado nos
atestados de óbitos como difteria palustre e febre palustre, não tem um percentual
expressivo (1,7%). Dentro desse universo das febres, observamos a presença da febre
perniciosa ou anemia perniciosa que, contraditoriamente ao esperado, só atingiu 1,7% das
mães. Esta doença é provocada por deficiência de vitamina B12 e ácido fólico na
alimentação, ou seja, pelo estado subnutricional da mulher.
Na designação “outros” agrupamos as mais variadas doenças ou causas da morte,
tais como tumor, lepra, parto, etc. De lepra morreu a indigente Fausta Rosa, trinta e cinco
anos de idade, mãe do asilado Rubem Lima.
85
Doença cutânea transmissível pelo simples
contato físico ou pela relação sexual atinge, com uma certa facilidade, pessoas totalmente
destituídas do mínimo necessário à sobrevivência e que, por isso, são obrigadas a viver em
total ausência de assepsia corpórea. Em “outros” incluímos, igualmente, a causa da morte de
Martinha Lopes da Silva, mãe do menor Arthur Moreira de Barros, colocado no São
Joaquim em 1902. Martinha, foi internada no hospício S. João de Deus por sofrer “de mania
aguda, morrendo no hospital desta doença”.
86
Poucos garotos perderam a mãe por causa de
parto. Como os meninos só entravam na Casa Pia após os 7 anos, normalmente conseguiam
conviver com suas genitoras até esta idade. Assim, as poucas crianças órfãs de mãe
84
Ibid, p.144.
85
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1690.
86
Ibid., n.º 1227.
185
admitidas pela Casa Pia eram, na maiores das vezes, também órfãs de pai. Na falta do pai ou
da mãe a entrada era requerida por parentes ou tutores.
A febre amarela, que tanto dizimou a população brasileira na segunda década do
século XIX, nem foi citada nos registros de óbitos dos pais.
87
Tentando explicar o
desinteresse do governo no combate a esta doença até pelos menos a década de 1870,
Chalhoub argumenta que “os médicos brasileiros constataram de imediato que a moléstia
atacava de forma benigna os africanos e a população negra da Corte em geral”,
88
não
atingindo assim a propriedade escrava. No período estudado no presente trabalho não havia
mais escravidão e, desde a década de 70 do século passado, o médico Oswaldo Cruz
combatia a febre amarela. A eficiência da campanha empreendida pelo médico certamente
contribuiu para que não encontrássemos nenhum caso de febre amarela, tanto entre os pais
como entre as crianças, muito embora a doença tenha dominado a cidade até o ano de 1929.
Em 1919, o Diario de Noticias registrou as dificuldades encontradas pelo serviço de
profilaxia no combate à doença. Com o título “O lado comico do serviço de profilaxia”, o
redator comentava a devastação da população pela febre amarela, e os serviços prestados à
comunidade pelo setor de profilaxia, apesar da resistência apresentada pela população. Este
setor tinha as seguintes funções: “...fazer a visita diaria em certo número de habitações de
determinado districto. Irem de porta em porta muito gentilmente indagar: Há alguma
novidade? As creanças estão boas? Como vão os meninos?”
89
.
Em resposta, segundo este mesmo redator, a população respondia de forma
grosseira, inviabilizando as investigações médicas. Dizia a população: “Não é de sua conta.
Que tem o Sr. tem com minha vida?. quem foi que lhe disse que tenho meninos em
casa! E ouve-se o ruido de uma porta que fecha na cara do pobre auxilia”.
87
Segundo David, “a Bahia enfrentou de 1849-1850 uma epidemia de febre amarela que se tornou endêmica,
“...verificando-se anualmente algumas centenas de casos”. (DAVID, 1996, p.34).
88
CHALHOUB, 1986, p. 71.
89
Diario de Noticias, Bahia, p.1., 01 ago.1919.
186
Não temos a mínima idéia dos motivos que fizeram a população negra ser poupada
do flagelo, mas com certeza sabemos, através da medicina atual, que o mosquito da febre
amarela atinge, indiscriminadamente, crianças e adultos, negros, mestiços e brancos, pobres
e ricos. A população pobre, por conta do estado de carência nutricional em que vive e da
localização imprópria de suas habitações (próxima a lugares alagadiços e/ou pântanos), é
em geral mais susceptível à moléstia.
Somente 100 crianças, das 643 ingressas no São Joaquim, nas quatro primeiras
décadas desse século, haviam perdido a mãe, ou seja, apenas 1,5% dos garotos eram órfãos
de mãe. A esmagadora maioria (98,5%) estava dentro dos padrões assistenciais da Casa Pia,
sendo órfãos de pai.
Adotamos, no estudo da causa-mortis do pai, o mesmo critério de análise utilizado
para as mães, ou seja, descrevemos na tabela e gráfico 12 as doenças responsáveis pela
morte deste. Encontramos resultados semelhantes aos apresentados pelas mães, embora em
proporções maiores.
Tabela 12 - Causas da morte (pai )
187
Causas da morte ( pai ) %
Ignorada 164 49,1
Tuberculose pulmonar 36 10,8
Infec.intestinal 7 2,1
Varíola 1 0,3
Febre.perniciosa 2 0,6
Aneurisma.aorta.abdominal 5 1,5
Molestia interna 2 0,6
Lesão cardiaca 6 1,8
Febre palustre 11 3,3
Arterioesclerose 6 1,8
Hemorragia cerebral 5 1,5
Câncer no esôfago 1 0,3
Congestão 6 1,8
Congestão pulmonar 1 0,3
Síncope cardiaca 7 2,1
Nefrite 2 0,6
Peste 3 0,9
Pneumonia 6 1,8
Febre tifóide 1 0,3
Gastroenterite 1 0,3
Moléstia do coração 12 3,6
Alcoolismo 1 0,3
Febre renitente 1 0,3
Assassinato 3 0,9
Tétano 1 0,3
Outras 43 12,9
TOTAL 334 100,0
Fonte: Livro de registro de entrada de crianças da Casa Pia e
Orfanato de S. Joaquim. 1900 a 1940.
Gráfico 12 - Causas da morte (pai)
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
40,0
45,0
50,0
%
Ignorada
Tuberculose pulmonar
Infec.intestinal
Varíola
Febre.perniciosa
Aneurisma.aorta.abdominal
Molestia interna
Lesão cardiaca
Febre palustre
Arterioesclerose
Hemorragia cerebral
Câncer no esôfago
Congestão
Congestão pulmonar
Síncope cardiaca
Nefrite
Peste
Pneumonia
Febre tifóide
Gastroenterite
Moléstia do coração
Alcoolismo
Febre renitente
Assassinato
Tétano
Outras
188
O número de pais que não tiveram a causa-mortis identificada foi menor do que o
número de mães, fato, sem dúvida, decorrente dos requisitos para ingresso na Casa Pia.
Exigia-se a comprovação da orfandade paterna do menor e, com isso, os familiares eram
obrigados a apresentar atestado de óbito do pai.
Somando tuberculose (10,8%) com pneumonia (1,8%) temos 12,6% dos pais mortos
por doenças infecto-respiratórias. Teve este destino José Ignácio Gomes Ferreira, pai do
garoto João Gomes Ferreira, recolhido pela Casa Pia em 1910: “O Sr. José Ignácio era
professor, morreu vítima de tuberculose mesenterica aos 44 anos. Era residente em
Santarem onde exercia sua profissão de magistério público. Mas morreu aqui em Salvador
na Rua do Paço”.
90
-se que, neste caso, tratava-se de uma família pobre, porém com
certo grau de instrução.
Ao que tudo indica, o ensino público, desde os primeiros anos republicanos,
enfrentou dificuldades e descaso dos governantes. Estes, além de pagarem aos mestres
salários reduzidos atrasavam os vencimentos. Mas não só professores morriam de doenças
infecto-respiratórias. Morreu de edema agudo de pulmão Thomaz Pereira da Silva, 44 anos,
carregador e pai de Gerson Pereira da Silva.
91
O único caso de morte por varíola foi o de Modesto Manoel de Oliveira, 47 anos,
marítimo e pai do menor Lino Manoel de Oliveira. O garoto era órfão de pai e mãe, tendo
esta morrido de malária aos 22 anos.
92
Também apenas um único caso de tifo foi
encontrado. Arthur Américo Freitas, pai do garoto Waldemar Américo Freitas, admitido
pela Casa Pia em 12 de junho de 1923, morreu de febre tifóide aos 39 de idade.
93
As
doenças cardíacas foram responsáveis por 7,3% dos óbitos, bem acima do percentual
apresentado pelas mães.
90
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1347.
91
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1835.
92
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1230.
93
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1567.
189
A figura paterna parece ter sido vítima de um número maior de doenças, mesmo que
algumas em pequena proporção, morrendo, por exemplo, de febre renitente, alcoolismo,
“assassinato” ou gastroenterite, causas não identificadas para as mães. A gastroenterite,
doença que, como pudemos constatar no capítulo anterior, foi responsável pela morte de
muitas crianças, não provocou grandes danos entre a população adulta. Isto só confirma que
a pobreza, associada ao costume, fazia com que mães pobres alimentassem seus filhos de
forma inadequada, gerando distúrbios gastrointestinais e, posteriormente, a morte dos
pequenos. Já os adultos, adaptados a uma alimentação forte e parca resistiam mais
facilmente a este tipo de problema. Só 2,4% dos pais morreram devido a distúrbios
gastrointestinais.
Os pais foram atingidos também, em maior proporção, pela malária, apresentando
um índice de 3,3 % dos óbitos contra 1,7 % das mães. A malária ou paludismo, de acordo
com as estatísticas oficiais, era uma enfermidade que, freqüentemente, causava a morte na
cidade, só perdendo para a tuberculose.
Na classificação “outros” foram incluídos casos como o de Domingos Francisco da
Silva Amado, pai de Arnaldo da Silva Amado, que morreu aos 48 anos de hidropsia.
94
Esta
moléstia se apresenta com a presença de líquido na cavidade abdominal, atualmente
denominada de ascite, podendo ter como causas a insuficiência cardíaca, insuficiência renal
crônica e esquistossomose. A existência de água canalizada e de esgotos poderia evitar a
esquistossomose e, em parte, a hidropsia. Já Antônio Veríssimo Dias, pai do garoto
Euclides Veríssimo Dias, admitido na Casa Pia em 1936, suicidou-se no meio da Avenida
Dois de Julho.
95
Também por suicídio com arma de fogo morreu Joaquim Machado, 36
anos, pai de Arnaldo Machado
96
. Não sabemos o que levou esses homens a decidirem pôr
um fim em suas vidas. Talvez a pobreza, associada ao sentimento de incapacidade para
94
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1232.
95
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1772.
96
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1577.
190
cumprir com o papel de pai idealizado pelas elites, ou seja, o de indivíduo capaz de garantir
a manutenção e a subsistência da família, podem ter estimulado atitudes como estas.
Morria-se, também, de compressão das vias respiratórias, esclerose cárdio-renal, difteria
hemorrágica, ou simplesmente, como aconteceu com Patrício de Souza, que morreu aos 34
anos, por mordida de cobra.
97
De uma maneira geral, o que podemos extrair deste quadro amplo de doenças
responsáveis pelas mortes de pais e mães dos órfãos da Casa Pia foi a baixa expectativa de
vida dessas pessoas, que faleciam ainda muito jovens e por doenças hoje facilmente
curáveis. Um outro dado que devemos ressaltar diz respeito ao número de pais mortos (334)
em relação ao número de garotos assistidos (643). Teoricamente todos os garotos, para
conseguirem assistência da Casa deviam ser órfãos de pai mas, como podemos verificar,
somente 51.9% dos meninos tiveram sua orfandade comprovada. Muitas vezes, critérios
como o estado de pobreza da mãe foram suficientes para permitir que esses garotos fossem
aceitos pela Casa Pia.
Uma análise da situação ocupacional dos pais também nos permite formar um
quadro da origem social dos assistidos. Agrupamos nas tabelas 13 e 14 as profissões
mencionadas com mais freqüência.
Tabela 13 - Ocupação profissional ( mãe )
97
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1642.
Ocupação profissional ( mãe ) %
Ignorada 565 87,9
Doméstica 34 5,3
Serv. doméstico 16 2,5
Professora 4 0,6
Ganhadeira 1 0,2
Outras 23 3,6
TOTAL 643 100,0
Fonte: Livro de registro de entrada de crianças da Casa Pia e
Orfanato de S. Joaquim. 1900 a 1940.
191
Como podemos constatar pela tabela acima, a maioria das mães (87,9%) não
registrou informações sobre a atividade que desenvolvia. Entre as 12,2% que registraram,
5,3% diziam-se domésticas, classificação que, na época, era extremamente abrangente.
Doméstica, tanto podia ser a tradicional “dona de casa”, como uma empregada do serviço
doméstico. Claramente registradas como empregadas do serviço doméstico encontramos
somente 2,5% das mães. Tudo indica que a maioria das mães não desenvolvia atividades
assalariadas, o que não as impedia de executar tarefas rentáveis paralelamente aos seus
afazeres domésticos O serviço doméstico foi e ainda é desenvolvido por mulheres dos
estratos sociais mais baixos, cuja
[...]necessidade de suplementar, ou até mesmo assegurar os precários níveis de
renda familiar (nos casos em que ela é chefe da família) se choca com suas
responsabilidades domésticas. A execução dos serviços domésticos, para os quais
as mulheres são tradicionalmente socializadas, e que muitas vezes ocupam uma
parte do seu tempo disponível ou podem ser realizados na própria casa, constitui
uma conciliação entre as exigências acima mencionadas.
98
98
SOUZA; CARVALHO, 1980, p.87-88.
0,0
20,0
40,0
60,0
80,0
100,0
Ignorada
Doméstica
Serv.
doméstico
Professora
Ganhadeira
Outras
Gráfico 13 - Ocupação profissional ( mãe )
192
Por exemplo, os registros do órfão de pai e mãe Armando Cruz dos Santos,
informam que sua mãe foi engomadeira, uma atividade específica das lavadeiras.
99
Nympha
Alves Ferreira, mãe do menino Newton Alves Ferreira, foi também lavadeira e morreu de
doença muito comum entre as mulheres que desenvolviam esse tipo de atividade, a
tuberculose.
100
Já a mãe de Andrelino José dos Santos, Maria Francisca, era cozinheira.
101
Apenas uma mãe vivia como ganhadeira. Maria Romana dos Santos, mãe do garoto
Marcelino dos Santos, internado na Casa Pia em 21 de fevereiro de 1922, era viuva do
lavrador João Francisco dos Santos e morava com sete filhos “n’uma pobre casa na baixa de
Brotas, lugar chamado Beiju”
102
e ocupava-se em vender frutas. O ganho era uma atividade
muito comum entre as mulheres pobres e negras no período escravista, que vendiam
comidas africanas, doces e mingaus. É possível que, entre as mães de profissão ignorada,
estivesse muitas ganhadeiras.
De acordo com Ferreira Filho, a atividade do “ganho” nas primeiras décadas
republicanas foi uma ocupação controlada pelas mulheres que ofereciam seus quitutes por
toda a cidade.
103
Igualmente, Silva Santos enfoca a importância dessa atividade na
economia da cidade, argumentando que “os saltos numéricos observados de 1900 a 1905 e,
principalmente, de 1909 a 1915, indicam ter a atividade ganho uma importância
crescente”.
104
Em “outros” agrupamos profissões, como a de Celecina Fonseca Lima, mãe do órfão
Vital Fonseca Lima. Celecina era operária e residia na Vila Operária, nº 90, distrito da
Penha.
105
O processo de industrialização de Salvador, iniciado na segunda metade do século
XIX, fôra sempre incipiente e dependente da economia agro-exportadora. Vilma E. Farias,
99
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n. º 1834.
100
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n. º 1833.
101
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n. º 1820.
102
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1518.
103
FERREIRA FILHO, 1994, p.44.
104
SILVA SANTOS, 1990, p.75.
105
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1534.
193
citando Dias Tavares, informa que até 1920 houve uma relativa expansão fabril na cidade,
mas que entrou em declínio a partir deste ano.
106
As fábricas implantadas antes de 1920 e
que conseguiram manter-se mesmo após o período denominado de “involução industrial”
ampliaram as opções de emprego para as mulheres. Tudo leva a crer que, por assumir uma
profissão assalariada e que exigia um certo grau de especialização, a mãe operária desejasse
para seu filho o mesmo destino, daí interná-lo em uma instituição capaz de promover a
profissionalização do menor.
Outras mães labutaram pela sobrevivência da família exercendo atividades não
diretamente associadas ao processo de produção industrial. Joanna Esteves de Jesus, mãe de
Edgar Esteves de Jesus, internado em 1.º de junho de 1915, era costureira e morreu aos 22
anos de idade. O internamento do garoto foi solicitado por Hygina Jardelina de Abreu,
protetora do menor, já que este era órfão de pai e mãe.
107
Árduo deveria ser o trabalho de
costureira, trabalhando dia e noite e sempre na dependência da demanda de pedidos. Os
baixos rendimentos auferidos pela costureira Alipia da Rocha Figueiredo, mãe do órfão
Waldemar Escolástico Figueiredo., evidenciam as dificuldades da profissão. Segundo o
parecer da Mesa:
A peticionaria [...] mora em uma casa de adobe pequenina, situada a baixa do
jacaré, a margem da estrada de Quintas, pela qual paga o aluguel de 10.000
mensais. Para se alimentar e vestir, com as duas crianças, só tendo o producto
do seu trabalho de costuras grossas chamadas de carregação que todos as bem
não chegar para sustentar três pessoas.
108
O magistério, por sua vez, tornou-se uma profissão predominantemente feminina. As
mulheres, “em 1895 eram quatro vezes superior aos homens; em 1915 constituíam 6,6 vezes
no corpo docente municipal. Em 1920 as mulheres perfaziam 81,73% do quadro geral do
106
FARIA, 1980, p.33.
107
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1431.
108
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1513.
194
magistério”. Os homens, insatisfeitos com os vencimentos de professor, tendiam a buscar
profissões mais lucrativas. “A remuneração do professor foi sempre uma questão penosa por
duas razões: vencimentos insuficientes e a não regularidade do pagamento”.
109
Idalinna
Augusta da Silva, viúva, professora e mãe de Rui Mário Medeiros Silva, internado na Casa
Pia em 26 de fevereiro de 1914, aos oito anos de idade, sustentou, até a data de seu
falecimento, Rui e seus cinco irmãos. A entrada do garoto foi requerida por seu tutor, o tio
Ismael Augusto da Silva.
110
As profissões dos pais dos órfãos encontram-se listadas na tabela e gráfico 14:
Tabela 14 - Ocupação profissional ( pai )
109
SILVA, 1997, p. 87-99.
110
ACPOSJ. Livro de Registro de Entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º
1400.
Ocupação profissional ( pai ) %
Ignorada 519 80,7
Comerciante 17 2,6
Farmacêutico 3 0,5
Militar 5 0,8
Armador 2 0,3
Açogueiro 3 0,5
Artista 28 4,4
Func.Público 8 1,2
Outras 58 9,0
TOTAL 643 100,0
Fonte: Livro de registro de entrada de crianças da Casa Pia e
Orfanato de S. Joaquim. 1900 a 1940.
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
%
Ignorada
Comerciante
Farmacêutico
Militar
Armador
Açogueiro
Artista
Func. público
Outras
Gráfico 14 - Ocupação profissional ( pai )
195
Não conseguimos, da mesma maneira que para as mães, identificar as profissões da
maior parte dos pais (80,7%). Como era pré-requisito para entrar na instituição ser órfão de
pai, o atestado de óbito deste tornou-se o único meio de conhecermos um pouco mais sobre
a figura paterna. Provavelmente, os pais sem identificação profissional não possuíam, de
fato, ocupação regular no momento da admissão do menor, trabalhando com biscates que
contribuíam no orçamento doméstico. Também não podemos esquecer que 19,8% das
crianças da Casa Pia eram de filhação ilegítima, e que algumas destas, ou talvez muitas,
nada soubessem sobre os seus genitores.
Dos 19,3% de pais com profissão declarada, 4,4% foram classificados como artistas,
termo utilizado para designar os artesãos. O relativo número de pais que exerciam tal
atividade é demonstrativo da presença e da importância da mão-de-obra masculina no setor
secundário de produção. Apesar deste setor não ser, como já afirmamos anteriormente,
durante todo o período, um setor dinâmico capaz de gerar empregos e absorver a mão-de-
obra excedente, existia na cidade uma produção artesanal que garantia o emprego dessas
pessoas. Trabalhando com atividades tradicionalmente classificadas na rubrica artes e
ofícios, tais como sapateiro, caixeiro, charuteiro, marceneiro, ferreiro, alfaiate, mecânico,
carpinteiro, padeiro, tipógrafo, etc., estes pais buscaram, enquanto vivos, garantir o sustento
de sua família. Oscar Lopes, pai do interno Oscar Lopes Filho, exerceu até os 37 anos
(idade do seu falecimento) a profissão de sapateiro.
111
Morrendo, igualmente, cedo, aos 36
anos, Afonso Ramos, padeiro, deixou em estado de orfandade o garoto Geraldo Conceição
Ramos. Este, devido a doença e hospitalização de sua mãe no Hospital Santa Isabel, foi
enviado à Casa Pia em 1935.
112
111
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1806.
112
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1756.
196
Não fazendo clara distinção entre um operário (trabalhador ligado diretamente à
atividade fabril) e um artista, um membro da Mesa registrou os dados familiares do órfão
Aurelino Alves Guimarães da seguinte forma:
A mãe requere a entrada do menor justificando extrema pobreza e o fato de
ter treze filhos, sendo que nove eram menores. Além disso afirma não ter
mais forças para trabalhar em oficinas ou trabalhos domésticos. O pai era
operário da Vila Luís Tarquinio (artista).
113
Através da justificativa usada pela mãe deste órfão, podemos perceber que a fábrica
mantida pelo empresário Luís Tarquínio, foi uma opção viável de trabalho para os estratos
mais baixos da população. Luís Tarquinio foi o primeiro a fundar, em Salvador, um centro
industrial, a Empório Industrial do Norte, com capital exclusivamente industrial. A família
de Aurelino morava em uma Vila Operária, o que significava ter que dispor de uma parte do
salário no aluguel. Às vezes, este desconto salarial representava um grande percentual sobre
os ganhos do operário. Na sua solicitação, a mãe de Aurelino praticamente afirma que só
restava para ela, uma mulher pobre, duas opções de emprego: ofícios mecânicos e trabalhos
domésticos. Segundo Silva Santos, houve durante a Primeira República, “a predominância
esmagadora das atividades artesanais no conjunto das indústrias de Salvador”.
114
Diante da
dificuldade que pessoas da época tinham em distinguir o serviço do artista do serviço do
operário, incluímos esta última atividade na classificação “outros”, embora ambas fizessem
parte do setor secundário da economia.
Em “outros”, classificamos todas as profissões que não se enquadravam em
atividades artesanais , fossem elas típicas dos estratos mais baixos ou dos estratos médios da
população. Não incluímos nesta rubrica os proprietários de estabelecimentos comerciais,
tratados adiante. Foram inventariados as seguintes ocupações: hortaleiro, lavrador,
113
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1399.
114
SILVA SANTOS, 1990, p.42.
197
pescador, professor, engenheiro, médico, administrador, chofer, carregador, dentista,
advogado, porteiro das obras do porto, marítimo, pianista, vendedor ambulante, maquinista,
operário e condutor de bondes da linha circular. Ocupavam, portanto, as mais variadas
posições, da mais humilde àquela que permitia ao indivíduo ter algum status social.
Podemos citar alguns exemplos. José Antônio Amorim, pai do interno José de Freitas
Amorim, foi um advogado baiano que exerceu a profissão no Estado do Espírito Santo,
vindo a falecer neste local. Lassale Penna foi internado no Orfanato de São Joaquim em 02
de novembro de 1900, depois do falecimento do seu pai, Manuel Pinto da Silva, que era
engenheiro.
115
Apesar do status destas profissões estes meninos não conseguiram escapar do
internamento.
116
Médico, advogado, engenheiro, farmacêutico, dentista e professor particular eram
profissionais liberais cujo status decrescia mais ou menos nessa ordem. A profissão mais
desprestigiada era o magistério, normalmente ocupada por membros dos segmentos médios
empobrecidos ou por mulheres. O próprio São Joaquim pagava a um professor admitido
no estabelecimento, nos anos de 1900 e 1925, respectivamente, 150.000 (cento e cinqüenta
mil réis) e 180.000 (cento e oitenta mil réis), menos que os salários pagos pelo município
para a mesma função, ou seja, 200.000 (duzentos mil réis) e 337.000 (trezentos e trinta e
sete mil réis), respectivamente. É muito difícil avaliar o poder aquisitivo desses salários
frente às despesas de uma família no período. Recorrendo, mais uma vez, a Santos Silva,
sabemos que, em 1900, o índice de preços alcançou 95, enquanto o salário do professor
apresentou um índice levemente superior (100), e que em 1925 o índice de preços registrou
316 e o de vencimento do professor apenas 120.
117
Assim, certamente em 1925, os
vencimentos de um professor não eram suficientes para garantir a sobrevivência da família.
115
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1216.
116
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1474.
117
SILVA SANTOS, 1990, p. 133-332. Este autor, através de médias aritméticas e de preços mínimos dos
alimentos, estabeleceu para Salvador, no período de 1890 e 1930, índices gerais de preços.
198
Como argumenta Maria Conceição da Costa e Silva, “a ausência de uma política de
abastecimento, fazia a população de Salvador viver atormentada pelo preço dos gêneros
alimentícios, cujo custo era uma projeção da insuficiente produção interna”.
118
Talvez, por
isso, o garoto Edson Martins Carvalho, filho de um casal de professores, tenha sido
internado na Casa Pia em 01 de agosto de 1940. A mãe solicitou o internamento após o
falecimento do marido.
119
A maior parte dos pais de internos no São Joaquim exerceu profissões de baixo
índice de remuneração e de pouco prestígio na sociedade. Foi o caso de Lupercio Rodrigues
da Silva, pai do garoto Benício Rodrigues da Silva, internado na Casa Pia em 28 de
setembro de 1934. No seu atestado de óbito consta que este foi um lavrador.
120
Erasmo
Napoleone, pai do interno Luiz Napoleone, que ingressou na Casa Pia em 1932, era
hortaleiro e morreu aos 48 anos por causa de problemas cardíacos, deixando mulher e três
filhos.
121
Silva Santos afirma que, “embora a Salvador republicana possuísse foros de
centro urbano, abrigava algumas ocupações primárias, exercidas por um pequeno contigente
de sua população”. Este setor “oferecia ocupações regulares para: pescadores, pequenos
agricultores, horteleiros, roceiros e criadores”.
122
Não obstante as profissões de comerciante, militar, farmacêutico, açougueiro,
funcionário público e armador terem sido declaradas em menor número, não deixaram de
ter certa importância no sustento das famílias dos órfãos. O funcionalismo público
respondeu pela sobrevivência de 1,2% das famílias. A relativa importância do
funcionalismo público pode ser explicada pelo fato de que este setor conheceu, na Primeira
República, uma certa tendência para a expansão, principalmente no governo de J.J. Seabra
(1912-1916) e no de Goes Calmon (1924-1928) “ por força da reorganização e ampliação
118
SILVA,1997, p.98.
119
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1846.
120
Ibid., n.º 1755.
121
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1707.
122
SILVA SANTOS, 1990, p.37-40.
199
dos serviços”.
123
Foi trabalhando nesta função que Benedicto Fitel Bertora, pai do interno
José Costa Bertora, colocado no orfanato em 4 de abril de 1934, manteve sua família.
124
Na
realidade, Benedicto era engenheiro e trabalhava para o Estado realizando obras públicas. Já
o atestado de óbito de Alberto Nogueira da Silva Senna, pai de Valdir Gomes Senna,
informa somente que Alberto era funcionário público, não especificando sua ocupação.
125
O
capitão João Marcionilo de Oliveira, pai do interno Eduardo de Almeida Oliveira, era
escrivão de paz da cidade de Cruz das Almas (Bahia).
126
Abaixo dos funcionários públicos, a profissão mais declarada foi a de militar, cinco
casos, o que eqüivale a 0,8% dos pais. Waldemar do Rego Leitão era órfão de pai, tinha 7
anos, três irmãos e foi internado no São Joaquim em 18 de setembro de 1910. Moravam
todos, antes da morte do pai, José Severiano Leitão, na “rua do moringa, Cidade Nova,
Antiga da Palha”. José foi sargento do terceiro corpo de regimento, fazendo parte, portanto,
do baixo escalão militar.
127
Flávio Lopes Villas Boas, pai de Domar Villas Boas, foi oficial
da marinha mercante. O filho parece ter seguido suas pegadas. Tendo entrado na Casa Pia
em 1934, aos 10 anos de idade, sua tia Alice Cristina Villas Boas solicitou sua saída em
1941, quando estava com 17 anos de idade. Alice alegou que o menor já havia atingido a
idade regulamentar e que desejava colocá-lo na Escola de Aprendizes de Marinheiro.
128
Eram proprietários de estabelecimento comercial 2,6% dos pais, provavelmente
pequenos proprietários de botequins e armazéns. Quanto a isto não podemos ter certeza,
haja vista que, em geral, os registros não permitem um conhecimento acerca do tipo de
estabelecimento. Por exemplo, a certidão de óbito de Antônio Correia Lima, branco, pai de
123
Ibid., p.88.
124
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1739.
125
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1671.
126
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1507.
127
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1350.
128
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1742.
200
Dionísio Correia Coutinho, declarava que este era comerciante, mas não dizia o que
Antônio comerciava.
129
Uma exceção é o caso do pai do menino Augusto Rodrigues da
Graça, José Rodrigues da Graça, casado, comerciante, que havia morrido aos 41 anos de
paludismo. A certidão de nascimento do garoto nos permite saber a exata profissão de José,
que era caixeiro e morador da freguesia da Penha, bairro tradicionalmente conhecido como
comercial.
130
Da mesma forma, Manoel Dias Maia, pai do órfão Álvaro Macieira Maia,
internado na Casa Pia no ano de 1904, trabalhou como caixeiro no comércio de Salvador,
falecendo muito cedo, aos 34 anos de idade.
131
Manoel era natural de Portugal e,
provavelmente, estabeleceu-se na cidade com o intuito de trabalhar em um estabelecimento
comercial de algum conterrâneo. Estes registros foram essenciais para percebemos que
alguns chefes de família que declaravam ser comerciantes eram, de fato, empregados do
comércio. É muito provável que estes homens, assim como os demais empregados do
comércio, fossem explorados no trabalho, labutando de pé, de 11 a 15 horas por dia, de
segunda a sábado.
132
A amplitude do termo comerciante permitia que um vendedor ambulante fosse
confundido com um proprietário pelos registros oficiais. Américo Estevam de Moraes foi
internado na Casa Pia em 05 de abril de 1915, após a morte por “apoplexia pulmonar” do
seu pai, Renato José Carneiro de Moraes. Este, até então, sustentou sua família exercendo a
atividade de comerciante ambulante.
133
Devido à imprecisão das informações, uma outra forma que encontramos para
distinguir o proprietário (comerciante) de seu empregado foi a nacionalidade. O comércio,
principalmente os pequenos estabelecimentos, permaneceu, nas primeiras décadas deste
século, controlado por portugueses. Assim, João Bittencourt, pai de um garoto com o
129
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1245.
130
Ibid., n.º 1247.
131
Ibid., n.º 1241.
132
SILVA SANTOS, 1990.
133
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1413.
201
mesmo nome, tinha em seu atestado de óbito as seguintes informações: morreu de anemia
aguda, era comerciante e de nacionalidade portuguesa.
134
Em menor número foram achados pais farmacêuticos (0,5%), açougueiros (0,5%) e
armadores (0,3%). Não sabemos se esta última profissão estava ligada à construção de
embarcações ou se era, como no século XIX, uma atividade ligada ao comércio funerário.
Segundo João José Reis, “armar casas, vender e alugar caixões, levantar essas nas igrejas.
Estas as funções dos armadores. Pelo menos duas dezenas de armadores operavam em
Salvador entre o início dos anos 20 e 1836.”
135
Com esta profissão manteve-se pai de
Gilberto de Carvalho, um garoto de 8 anos internado em 19 de janeiro de 1933. A morte do
pai, por insuficiência cardíaca, obrigou a mãe do garoto a solicitar ajuda da instituição. Esta
criança saiu do orfanato em 1938, aos 13 anos, por solicitação da mãe que desejava
matriculá-lo na Escola de Aprendizes de Marinheiro.
136
.
O farmacêutico, em geral, era um profissional que atuava no campo da iniciativa
privada, o que não impedia de alguns exercerem esta atividade como empregado do
governo. Nesta situação encontrava-se Pedro Francisco da Silva, pai do garoto Edonal da
Silva. Pedro, falecido aos 45 anos, tinha no seu atestado que, além de farmacêutico, foi
funcionário público.
137
Embora seu atestado de óbito informasse que exercia estas duas
profissões, não podemos ter certeza se, no momento de sua morte, estava atuando em
ambas. Ligado à iniciativa privada estava Arthur Pires Caldas, pai de Augusto Pires Caldas.
Arthur trabalhava em uma farmácia no Bairro de São Pedro, deixando, ao morrer, esposa e
filho em “condições de vida precárias”.
138
134
Ibid., nº 1465.
135
REIS, 1991, p.238.
136
ACPOSJ. Livro de Registro de Entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, nº 1736.
137
Ibid., n.º 1514.
138
Ibid., n.º 1572.
202
A profissão de açougueiro, quando este não era proprietário do estabelecimento,
implicava desenvolver tarefas árduas, desde carregar peças inteiras de um boi até o seu
posterior retalhamento, não recebendo, no entanto, rendimentos condizentes com a dureza
da atividade. Não obstante o reduzido salário auferido da atividade de açougueiro, a mãe e o
pai do garoto Alfredo Gonçalves da Silva conseguiram garantir a sua sobrevivência durante
seus 9 primeiros anos de vida. Somente quando o pai, José Gonçalves da Silva, morreu, é
que a mãe viu-se obrigada a internar o garoto na instituição.
139
Analisando em conjunto as ocupações, podemos tirar algumas conclusões. Uma
delas é que os pais e as mães de órfãos do São Joaquim eram pessoas oriundas, na sua maior
parte, dos estratos baixos da população, sendo que algumas, em menor número, pertenciam
aos estratos médios empobrecidos. Aqueles que fizeram parte dos segmentos médios
haviam empobrecido devido à perda de um dos cônjuges, normalmente o marido. O
inesperado empobrecimento causava, na família, a necessidade de entregar os filhos a
instituições capazes de garantir a sobrevivência da criança e sua formação profissional. Daí
termos encontrado filhos de médicos, advogados e engenheiros admitidos na Casa Pia. A
maior parte dos garotos vinha de famílias cujo nível de renda era muito baixo. A família de
Antônio Maria de Jesus Santos é um bom exemplo dessa situação. Sua mãe era costureira e
seu pai, antes de falecer, atuava como marceneiro.
140
A figura paterna desempenhava desde
funções do setor primário tais como lavrador, pescador, horteleiro, até atividades do setor
secundário (artesãos e operários) e terciário (empregados do comércio e vendedores
ambulantes). Todas elas, em geral, tinham em comum o fato de serem atividades com
jornadas de trabalho extenuantes e de parcos rendimentos. As ocupações das mães também
confirmam esta tendência. Ocupando-se em várias funções do serviço doméstico, como
lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras, entre outras, em atividades também tipicamente
139
Ibid., n.º 1446.
140
Ibid., nº 1836.
203
femininas (costureira e professora), ou em atividade menos tradicional (operária), estas
mulheres procuravam garantir a sobrevivência da família.
Uma outra maneira de alcançarmos o perfil social dos assistidos consiste em analisar
a feição étnica daqueles que solicitaram a ajuda do São Joaquim. Agrupamos, na. tabela e
gráfico 15, as características étnicas das crianças do São Joaquim com o intuito de observar
se, nas quatro primeiras décadas deste século, a instituição manteve a tendência existente no
século anterior, qual seja, a de “permitir, preferencialmente o ingresso de menores brancos
em detrimento de pardos e outras etnias”.
141
Tabela 15 - Cor dos órfãos
141
MATTA, 1997, p.106.
Cor (órfãos) %
Ignorada 43 6,7
Branco a 273 42,5
Preto b 51 7,9
Pardo 102 15,9
Mestiço 153 23,8
Mulato 2 0,3
Outras 19 3,0
Total 643 100,0
a - Foram também incluídos na cor branca todos os meninos
classificados como leucoderma
b - Foram também incluídos na cor preta todos os meninos
classificados como melanoderma
Fonte: Livro de registro de entrada de crianças da Casa Pia e
Orfanato de S. Joaquim. 1900 a 1940.
204
À primeira vista o fato de 42,5% das crianças que ingressaram terem sido registradas
como brancas, parece confirmar a tendência do período imperial. Entretanto, analisando o
conjunto verificamos que a proporção de crianças de cor é maior (50,9%). A categoria
mestiços, que encontramos na proporção de 23,8 %, pode englobar uma ampla variação de
mestiçagem, envolvendo uniões entre negro, branco e índio. Não sabemos que razões
motivaram os membros da instituição a fazer distinção entre pardos (15,9%), mestiços
(23,8%) e mulatos (0,3%). Pardo era a caracterização geralmente dada às pessoas que
distinguiam-se do fenótipo do branco europeu, e também do fenótipo do negro. Mas isso
também vale para os mestiços. A falta de clareza na distinção entre pardo e mestiço pode ser
constatada em casos como o de Durval Alves de Jesus, que foi rotulado no livro de saída
como pardo e no de entrada como mestiço.
142
O mesmo ocorreu com os garotos Juvenal de
Almeida, ingresso na Casa Pia em 23 de março de 1914, e João Gervásio da Conceição,
ingresso em 30 de março de 1914.
143
Seguindo este mesmo padrão, o menor Florisvaldo
142
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1404.
143
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1395
e 1398.
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
40,0
45,0
%
Ignorada
Branco
Preto
Pardo
Mestiço
Mulato
Outras
Gráfico 15 - Cor dos órfãos
205
Rodemberg de Santana foi identificado como de cor mestiça no certificado de vacina e de
cor parda, na certidão de nascimento.
144
As crianças identificadas como mulatas possivelmente eram mestiças de fenótipo
muito próximo ao negro. O baixo número de mulatos só pode ser explicado se
considerarmos que boa parte destes foi classificada como mestiça. José da Paciência, que
entrou na Casa Pia em 1912, é designado como mestiço no registro de entrada, mas o de
saída o define como mulato.
145
Na categoria “outros” incluímos as crianças identificadas como moreno e faioderma.
Esta última designação, juntamente com a de leucoderma e melanoderma, encontra-se nas
fichas odontológicas, fazendo parte, portanto, do jargão médico. Leucoderma é sinônimo de
branco, faioderma de pardo e melanoderma de preto.
146
É interessante observar que nem
sempre as denominações médicas coincidiam com as dos administradores. O garoto Gerson
Pereira da Silva, por exemplo, foi designado como preto pela instituição e como faioderma
nos registros médicos.
147
O uso de classificações distintas na identificação de crianças mestiças deve ser
entendido em relação à ideologia racial vigente. A proporção de crianças classificadas numa
categoria intermediária entre negro e branco foi da ordem de 43,0%, enquanto somente
7,9% das crianças foram consideradas pretas, o que significa que estes meninos deviam ter
suas características físicas indiscutivelmente associadas ao negro. Isto não invalida a
possibilidade da existência de algumas incorreções nesta identificação, o que se comprova
nos registros de Rubem Meirelles dos Santos que, pelo seu certificado de vacina era de cor
preta, e de acordo com sua certidão de nascimento era de cor parda.
148
Ressalta-se que estas
crianças foram identificadas como pretas e não como negras, uma vez que “ a expressão
144
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1756.
145
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1367.
146
POLISUK ; GOLGFELD, 1980, p.213-226.
147
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1835 .
148
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1721.
206
negro é considerada indelicada e por vezes ofensiva, desde os tempos coloniais”. Segundo
Thales de Azevedo, a tendência na Bahia era classificar as pessoas como de cor preta,
escura ou enquadrá-las no grupo dos mestiços, afastando-as de suas origens africanas.
149
O
fato de que a proporção de crianças de cor ser 1.2% superior a de crianças ditas brancas
indica que a instituição, na República, havia se tornado mais flexível em relação aos
critérios raciais de seleção de seus assistidos.
Não foi possível fazer uma identificação étnico-racial precisa dos pais, na maioria
dos casos, principalmente no que diz respeito às mães. Agrupamos os dados existentes nas
tabelas e gráficos 16 e 17:
Tabela 16 - Cor da mãe
149
AZEVEDO, 1996, p.36.
Cor ( mãe )
%
Ignorada 612 95,2
Branca 13 2,0
Preta 1 0,2
Parda 5 0,8
Mestiça 11 1,7
Mulata 1 0,2
TOTAL 643 100,0
Fonte: Livro de registro de entrada de crianças da Casa Pia e
Orfanato de S. Joaquim. 1900 a 1940.
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
%
Ignorada Branca Preta Parda Mestiça Mulata
Gráfico 16 - Cor da mãe
207
Tabela 17- Cor do pai
A maior parte das mães (95,2%) não teve sua cor identificada. O registro de
casamento civil, documento comprobatório do estado de legitimidade da criança, nem
sempre informava a cor dos cônjuges. Apesar da conduta da instituição, desde sua fundação
até o final do século XIX, ter sido a de selecionar os órfãos mediante critérios racistas, não
havia, por parte dos administradores, a preocupação em esmiuçar a origem étnica dos pais.
Durante a República, tornou-se mais importante para a Casa Pia garantir a entrada de
crianças comprovadamente órfãs e pobres. É claro que a ênfase na pobreza e no estado de
orfandade não constituiu garantia de ausência de atitudes preconceituosas em relação as
crianças de cor.
No que diz respeito às mães, cuja cor é mencionada, observa-se uma equivalência
entre brancas e mestiças. Enquanto as brancas constituíram 2,0%, as mestiças, pardas e
Cor ( pai )
%
Ignorada 562 87,4
Branco 36 5,6
Preto 4 0,6
Pardo 14 2,2
Mestiço 27 4,2
TOTAL 643 100
Fonte: Livro de registro de entrada de crianças da Casa Pia e
Orfanato de S. Joaquim. 1900 a 1940.
0,0
20,0
40,0
60,0
80,0
100,0
%
Ignorada Branco Preto Pardo Mestiço
Gráfico 17 - Cor do pai
208
mulatas juntas atingiram o índice de 2,7%. Este número sobe para a insignificante cifra de
2,9%, quando acrescentamos as mulheres identificadas como de cor preta.
Encontramos um único caso de mãe identificada como mulata, a mãe do jovem
Adailton Pereira de Souza, internado no orfanato de São Joaquim no ano de 1928. Esta
indicação se encontra em seu atestado de óbito, tendo esta falecido aos 29 anos de idade.
150
A incoerência presente em certas identificações pode ser ilustrada pelos registros dessa
família. O atestado de vacina do garoto afirmava que o menor era de cor branca, mas os
atestados de óbito do pai e da mãe declaravam que estes eram, respectivamente, pardo e
mulata, o que leva a crer que a criança era, no mínimo, um mestiço de pele clara.
Quer fossem percebidas e definidas como mulheres de cor branca, mestiça ou preta,
as mães tinham, em comum, o estado de pobreza e as inúmeras dificuldades que
enfrentavam para criar os filhos. Um exemplo disso é Maria do Carmo Souza, mãe de José
Cardial de Miranda que, ao morrer, deixou de herança para José e seus sete irmãos
unicamente uma casa de taipa localizada na vila São Sebastião.
151
Obtivemos maiores informações sobre o suposto padrão étnico dos pais do que das
mães, embora, também neste caso seja alto o percentual dos registros que não apresentam
dados desta natureza (87,4%). Isto se explica, mais uma vez, pela exigência do atestado de
óbito do genitor feita pela Casa Pia. A incidência de pais mestiços ou negros, é da ordem de
7,0%, ou seja, 1,4% a mais que os brancos, o que vem reforçar a hipótese de uma
flexibilização da Casa Pia, durante o período republicano, no que diz respeito aos critérios
raciais de seleção.
Fossem os menores brancos, pretos ou pardos, podemos afirmar, com certa
segurança, que estes fizeram parte de uma minoria sob certos aspectos privilegiada e sob
outros não. Alguns dos “eleitos”, praticamente, viveram toda sua vida em estado de
150
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1642.
151
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1774.
209
isolamento, saindo do São Joaquim para internarem-se na escola de Aprendizes de
Marinheiros. O isolamento dessas crianças só era rompido em duas circunstâncias: uma
delas era o dia da visita, uma vez ao mês, ou seja, o primeiro domingo de cada mês; a outra
era a saída dos alunos que compunham a banda de música para tocar em festividades da
cidade. Um dispositivo disciplinar, estabelecido nos estatutos de 1828 e mantido nos
estatutos de 1910, declarava serem os órfãos proibidos de saírem “ do colégio, se não em
companhia do Reitor, ou Vice-reitor”.
152
Por conta disto, levantamos um questionamento: que vida e que futuro teriam tido
os garotos Arivaldo Dias da Silva, Domar Vieira Villas Boas, Waldomiro Gonçalves da
Silva, Osvaldo Xavier Carvalhal, Glicério Manoel e Alvaro Carlos Leal, entre outros, todos
eles órfãos do São Joaquim que, após atingirem a idade regulamentar, foram,
sistematicamente, integrados à Escola de Aprendizes de Marinheiro ?
153
Sem vozes, os meninos de São Joaquim deixaram vestígios de seus passados apenas
através de terceiros. Relatos oficiais que registram a morte do pai ou da mãe, mas nunca o
sentimento da criança diante dessa fatalidade. Documentos que indicam, igualmente, o
destino dado aos garotos quando saíam da Casa Pia, sem contudo deixar o menor indício de
terem sido decisões consentidas pelos mesmos. Esses documentos são, principalmente,
incapazes de revelar os conflitos que afligiam meninos de 7 a 9 anos que, subitamente,
viam-se obrigados a se separarem de seus familiares durante mais sete ou nove anos de sua
vida, ou talvez, durante toda ela.
Assim, finalizamos este capítulo com o único documento encontrado capaz de
fornecer uma vaga idéia sobre os sentimentos dessas crianças. O testemunho de um ex-
aluno, através de carta endereçada ao São Joaquim, nos dá indicação da saudade que este
152
ACPOSJ. Primitivos estatutos da Casa Pia e Colégio dos Meninos Órfãos de S. Joaquim da cidade da
Bahia, aprovados por decreto imperial em 30 de abril de 1828, p.31.
153
ACPOSJ. Livro de registro de entrada dos órfãos da Casa Pia Colégio de Órfãos de S. Joaquim, n.º 1753,
1742, 1726,1720, 1709, 1703.
210
ex-interno sentia de sua família. Cícero Martins Pessoa da Silva, internado na Casa Pia no
ano de 1900, escreveu, em 1979, ao provedor José Gonçalves Tourinho, com o intuito de
agradecer e elogiar os serviços prestados pela instituição e, em determinado momento,
relembrou:
Eu tocava na banda de Música, na orquestra, nas Missas, Pistón, lembro,
medico Dr. Adriano Gordilho, enfermeira Maria Cristina, dentista Eloy
Guimarães. Neste tempo, internados 100 órfãos. Todos 1º domingo tinha
visitas. Quando minha mãe chegava eu chorava de alegria de vê-la. Lendo
a Tarde data 01-09-79, faço um retropestico (sic) da minha vida no Colégio
São Joaquim aonde colhi bons ensinamentos e frutos de educação para o
futuro encaminhamento da sociedade e profissão que exercer
154
(Grifo
nosso).
154
ACPOSJ. Pasta do aluno, n.º 1228, 1900.
211
Considerações Finais
A criança pobre de Salvador, do início do século até a década de 40, fez, de fato, parte
de uma infância esquecida. Esquecidos foram os inúmeros órfãos que vagavam pelas ruas e
becos da cidade, alguns dos quais, temporariamente, receberam o auxílio de instituições como o
Asilo dos Expostos e a Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim. Esquecidas foram,
igualmente, aquelas crianças pertencentes aos estratos baixos da população que, mesmo não
rompendo os laços com a família, viram-se obrigadas a se sujeitar à violência no trabalho, no lar,
ou em ambos.
Apesar disso, pudemos observar a elaboração, entre as elites letradas da cidade de
Salvador (principalmente médicos e bacharéis em Direito), de um sentimento moderno de
infância, isto é, a criança foi vista como um ser distinto do adulto e, por isso, merecedora de uma
atenção especial. O reconhecimento desta fase da vida humana, para os segmentos populares,
veio acompanhado de um projeto de reformas nos costumes da família e da criança, de
iniciativas no sentido da profissionalização desta, e de atividades assistenciais voltadas para a
infância. A educação profissional para crianças e jovens visava promover a formação de
trabalhadores despolitizados, dóceis e completamente inseridos na lógica do trabalho assalariado
e produtivo. A prática assistencial, por sua vez, deixou de ser uma atividade controlada e
mantida unicamente por associações leigas e cristãs, para congregar os esforços de três esferas:
instituições de caráter cristão, Estado e a sociedade de forma geral. Portanto, a assistência à
212
criança pobre forjava-se não mais dentro da ótica de piedade cristã, e sim dentro da perspectiva
de filantropia social.
Após a abolição, a liberação da mão-de-obra antes escrava e a instituição de novo
regime político, a infância pobre passou a ser objeto de intervenção não apenas devido à
importação de novas concepções européias acerca da família mas, acima de tudo, por terem se
acentuado os problemas sociais no país. Esta intervenção, não se limitou a práticas disciplinares
e assistenciais, que coexistiram com atitudes de repressão e violência. O aparato policial foi,
muitas vezes, requisitado para coibir crianças e jovens que tentaram administrar suas próprias
vidas e procuraram imprimir a elas um ritmo de ocupação e lazer que divergia do estabelecido
pelas normas do trabalho produtivo. Era necessário reprimir a “vadiagem infantil”. Não obstante,
várias foram as idéias de controle, correção e vigilância do segmento infantil de baixa renda,
divulgadas, maciçamente, a partir de 1900. Estas foram mantidas, principalmente, por médicos e
bacharéis, que recorriam à imprensa para divulgá-las e a instituições assistenciais para pô-las em
prática.
O Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia, vulgarmente chamado de Asilo dos
Expostos, foi uma das instituições que sofreu intensa influência da categoria médica. Esta
instituição, fundada no século XVIII dentro dos padrões de caridade cristã, e que teve como
objetivo assistir crianças entre 0 a 7 anos deixadas, clandestinamente, na Roda, passou por
mudanças substanciais em sua estruturação física e assistencial.
A presença da Liga Contra a Mortalidade Infantil, a partir de 1925, associada à falência
da Roda, mecanismo medieval de admissão das crianças, e a criação do sistema de escritório
aberto só foram possíveis devido a um esforço conjunto de médicos, governos e
administradores da instituição. As modificações, no entanto, não foram suficientes para, no
213
período estudado, reverter o quadro de elevada mortalidade infantil do Asilo ou impedir a
exploração do trabalho dos expostos, e, muito menos, para garantir um futuro mais promissor
para as crianças que conseguiam sobreviver à exposição. Além do mais, a modernização da
instituição, embora tenha possibilitado uma assistência mais eficiente, restringiu o seu alcance
social, impossibilitando que crianças maiores fossem admitidas. Porém, é indubitável que o Asilo
dos Expostos, na República, tornou-se uma instituição de grande importância para uma parcela
da população infantil e pobre da cidade.
Os registros das crianças deixadas no Asilo da Misericórdia indicam que a pobreza, a
doença e a morte da mãe foram os motivos mais freqüentes da exposição, ratificando, assim, a
importância da mãe na criação e educação das crianças. Isto sugere que as mulheres dos
estratos mais baixos compartilhavam a ideologia das elites de valorização da posição materna na
formação dos filhos, uma ideologia cristã que foi reforçada pelo higienismo. Acima de tudo, a
família, nuclear ou não, foi vital para decidir tanto sobre o abandono da criança como sobre o
seu possível resgate. O estado conjugal ilegítimo dos pais não está entre os fatores mais
determinantes. Contudo, com certeza, favoreceu o abandono de crianças na primeira infância. A
estabilidade econômica, em geral presente em uniões legítimas, desestimulava, mas não impedia
o abandono.
Quanto à origem étnica das crianças, foi possível determiná-la em virtude do Asilo ter
preservado, na República, a cor como critério de identificação. As crianças foram classificadas
como pretas, pardas, brancas (denominações oficiais) e pardas claras, pardas escuras, crioulas e
cabras, sendo as duas últimas características do período pré-republicano. Mais da metade dos
assistidos foi registrada pelo Asilo como parda. Nem sempre a forma como os familiares
rotulavam as crianças coincidia com a denominação dada pela instituição. Isto ocorre porque a
214
cor é um dado cultural, ou seja, as denominações cromáticas e as características fenotípicas são
definidas diferentemente, a depender da classe social, ambiente cultural e conjuntura histórica
dos envolvidos.
A Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim foi outra instituição cristã que,
estabelecida no século XVIII, sobreviveu no novo regime. Sendo uma instituição, em sua
origem, voltada especificamente para órfãos de pai (filhos de uniões legítimas) e,
comprovadamente, pobres, atendeu, sobremaneira, as necessidades não apenas dos estratos
mais baixos, como também dos segmentos médios empobrecidos. As crianças assistidas, na
faixa de 7 a 9 anos, recebiam uma formação que as preparava para exercer, de forma ordeira,
atividades artesanais.
Com a República, a instituição enfrentou dificuldades financeiras que reduziram o seu
papel educativo e ampliaram sua função de orfanato. Apesar de manter, em seu estatuto, regras
rígidas de seleção, na prática, a Casa Pia passou a não respeitar suas próprias normas,
aceitando um número maior de crianças ilegítimas ou de filiação não comprovada. Instituição, na
sua origem, de padrão eminentemente racista, tornou-se, nas primeiras décadas republicanas,
menos preconceituosa, recebendo, com um certo equilíbrio numérico, crianças ditas brancas e
crianças mestiças. Não obstante, a ajuda oferecida ao reduzido número de 643 órfãos
permaneceu condicionada a uma investigação minuciosa da família do candidato. O rigoroso
processo de investigação social da família, tendo como parâmetros a comprovação da
orfandade e da pobreza do menor, permitiu-nos tomar conhecimento do passado familiar deste.
Uma análise dessas informações levou-nos à conclusão de que os pais dos órfãos de São
Joaquim eram pessoas pertencentes aos segmentos baixos e médios da população. Os que
pertenciam aos estratos médios recorriam ao orfanato em virtude do empobrecimento
215
inesperado da família, provocado, por sua vez, pela perda de um dos cônjuges, em geral o pai.
Ao internar uma criança, entre 7 a 9 anos de idade, objetivava-se garantir tanto asilo como
formação profissional para o menor. Entretanto, a Casa Pia, entre 1900 e 1940, perdeu,
parcialmente, sua capacidade de promover a profissionalização e a inserção dos menores no
mercado de trabalho, fato que refletiu diretamente na disciplina da instituição.
O orfanato enfrentou, por parte dos menores, resistência ao rígido processo disciplinar.
Para solucionar o problema, deu continuidade à política de usar ex-alunos como censores e
ajudantes de censores, garantindo o controle através do expediente de repartir o poder entre
aqueles que, até então, só haviam conhecido a dominação. A instituição utilizou-se, igualmente,
de ex-alunos e da lealdade destes para baratear a mão-de-obra e evitar a extinção total do
ensino profissional, fazendo com que assumissem a instrução dos diversos ofícios existentes nas
oficinas do orfanato. Os órfãos de São Joaquim aproveitados pela instituição em diversos
misteres, embora seu trabalho fosse remunerado abaixo do valor de mercado, ainda assim
tiveram melhor sorte que seus colegas enviados para Escola de Aprendizes de Marinheiro. Estes
últimos viveram quase toda sua vida em reclusão, saindo de um internato para outro.
Infância pobre, órfãos desvalidos, menores vadios, menores delinqüentes, crianças
expostas, crianças abandonadas, estas foram algumas designações utilizadas, em Salvador, para
definir o estrato social e etário mais baixo da população, os “excluídos dos excluídos”. Viu-se
que o sentimento moderno de infância, que emergiu nas primeiras décadas republicanas, não
coexistiu com medidas que viessem a beneficiar amplamente este segmento. Até hoje, a infância
esquecida continua esperando ser devidamente assistida.
216
ANEXOS
217
Tabela e gráfico Sexo dos expostos
Tabela e gráfico Causas da morte dos expostos
Legitimidade %
Ignorada 2902 76,9
Legítimo 357 9,5
Ilegítimo 514 13,6
TOTAL 3773 100,0
FONTE:
Livro de registro de entrada de expostos do asilo de Nossa Senhora da
Misericórdia, 1900 A 1940
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
%
Ignorado Feminino Masculino
Causas da morte %
Doenças respiratórias 534 19,2
Doenças infecciosas 475 17,1
Desnutrição 1045 37,6
Outras 137 4,9
Ignorada 590 21,2
Total 2781 100,0
FONTE:
Livro de registro de entrada de expostos do asilo de Nossa Senhora da
Misericórdia, 1900 A 1940
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
%
Doenças respiratórias
Doenças infecciosas
Desnutrição
Outras
Ignorada
218
Atestado de vacinação dos órfãos de São Joaquim
219
Atestado de vacinação dos órfãos de São Joaquim
220
Atestado de vacinação dos órfãos de São Joaquim
221
Fontes
1- Arquivo da Casa Pia de Órfãos de São Joaquim (ACPOSJ)
Livros de registro
Livro de registro de entrada de órfãos, 1900-1940.
Livro de registro de saída de órfãos, 1900-1940.
Livros de atas da Mesa Administrativa. 1900-1940.
Relatório dos Provedores
Provedor Dr. Joaquim dos Reis Magalhães nos triênios:
1901-1912
1912-1915
1918-1921
1924-1927
Provedor Dr. Augusto Marques Valente:
1936-1939
Provedor Dr. Mendes Pinto Roiz da Costa.
1939-1942.
Pastas
Pasta pessoal, estantes 18 e 19.
Pastas dos alunos, nº:1219-1254-1271.
222
Estatutos:
Estatutos da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim, aprovado pelo decreto nº 810 de
18/08/1910. Tipografia do Colégio de São Joaquim, 1966.
Primitivos Estatutos da Casa Pia e Colégio dos Meninos Órfãos de S. Joaquim da cidade da
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1966.
2 -IBGE:
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Diretoria Geral de Estatística, v. 4, t. 1.
3 - Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Salvador (ASCMB)
Livros:
Livro de atas da Mesa Administrativa, nº 26, 1922-1938.
Livro de entrada de expostos (1900-1940). Nº: 12 a 30
Regulamentos:
Regulamento do Asilo dos expostos de 21/03/1863. Bahia: Tipografia do Diário, 1874.
Regulamento do Asilo dos expostos de 25/03/1914. Bahia: Tipografia Bahiana, 1914.
Relatórios:
Relatório da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, apresentado pelo provedor Manoel de Souza
Campos (1901-1910).
223
Relatório da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, apresentado pelo provedor Manoel de Souza
Campos, para o biênio de 1905 a 1906.
Relatório da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, apresentado pelo provedor Theodoro
Teixeira Gomes, referente ao ano de 1912.
Relatório dos principais acontecimentos da Santa Casa da Misericórdia da Bahia referente ao
ano de 1914.
Relatório dos principias acontecimentos da Santa Casa da Misericórdia da Bahia de 1914 a
1918.
Relatório da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, apresentado pelo provedor Isaias de
Carvalho Santos na sessão de posse da Junta de 1921.
Relatório da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, apresentado pelo provedor Isaias de
Carvalho Santos na sessão de posse da Junta de 1923.
Relatório dos principias acontecimentos da Santa Casa da Misericórdia da Bahia de 1925 a
1928.
Relatório da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, apresentado pelo provedor Pedro Velosso
Gordilho, referente ao ano de 1940.
4 - Arquivo Público do Estado da Bahia (APEBA)
Secretaria de Segurança Pública:
Escola de Menores Abandonados. Cx. 54. Pacote 02.
Casos de estupro. Seção Judiciária. Estante 63. Cx.1 e 8. Documento 02.
Jornais (seção republicana)
Diario da Bahia. 1900 a 1940.
224
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BORBA, Antônio de Azevedo. O aleitamento materno sob o ponto de vista médico social.
Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 1913. Nº 133-B.
BRANDÃO, Octávio de Souza. Do casamento e sua regulamentação. Tese de doutoramento
apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 1905. Nº 105-A
COUTO, Antônio Ribeiro do. Infanticídio. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de
Medicina da Bahia em 1900. Nº 100 -A
CUNHA, Francisco Clementino Carneiro da. Do Abortamento. Tese de doutoramento
apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 1905. Nº 105-A
FERREIRA, João Batista Marques. Hygiene Escolar. Tese de doutoramento apresentada à
Faculdade de Medicina da Bahia em 1905. Nº 105-A
GOMES, Maria Barbosa. Contribuição ao estudo jurídico e médico-legal do crime do
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Nº 1384.
225
GONÇALVES, Antonio Ribeiro. Menores Delinqüentes. Tese de doutoramento apresentada à
Faculdade de Medicina da Bahia em 1902. Nº 102-O
HORA, Lauro Dantas. Mortalidade infantil na Bahia (capital): 1904-1918. . Tese de
doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 1922. Nº 1129.
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Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 1907. Nº 590.
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MEDEIROS, Alfredo Cordeiro Fonseca de. Do Infanticídio. Tese de doutoramento
apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 1903. Nº 103-L.
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apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 1908. N.º 108-7
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apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 1900. Nº 238.
TOURINHO, Manuel Celso. Abortamento Criminoso. Tese de doutoramento apresentada à
Faculdade de Medicina da Bahia em 1907. Nº 107-A
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apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 1902. Nº 102-A
226
226
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