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EDSON TEIXEIRA DA SILVA JÚNIOR
CARLOS:
A FACE OCULTA DE MARIGHELLA
Dissertação de mestrado apresentada ao curso de Mestrado em História Social
do Trabalho da Universidade Severino Sombra.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof.º Dr. Lincoln de Abreu Penna
Orientador
Universidade Severino Sombra
________________________________________
Profª. Dr.ª Maria Philomena da Cunha Gebran
Universidade Severino Sombra
_________________________________________
Profª. Dr.ª Cecília Maria B. Coimbra
Universidade Federal Fluminense
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Aos meus pais, Doroty e Edson
Silva; a companheira Isabel, Diego
e Camila pela compreensão,
carinho e significado que deram à
minha vida.
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Agradecimentos
Ao Dr. Lincoln de Abreu Penna, pela orientação precisa e eficaz que
imprimiu a esta dissertação, como também pela solidariedade e apoio
constantemente manifestados.
Aos professores José Augusto dos Santos, Maria Yeda Linhares, Maria
Philomena da Cunha Gebran, Manuel Luiz Salgado Lima Guimarães, sempre
solícitos em fornecer sugestões e críticas que jamais poderiam ser
desprezadas.
Ao amigo Hélio de Lena Júnior, companheiro da árdua e gratificante
tarefa que é o curso de mestrado.
À professora Marília pela paciente e eficaz revisão gramatical deste
trabalho.
À Vladimir Sachetta, pelo acesso a seu arquivo iconográfico.
À Emiliano José, pela cessão de seu arquivo pessoal e primordial apoio
na realização dessa pesquisa.
Aos entrevistados, Clara Charf, Tereza Marighella, Carlos Augusto
Marighella, Ana Montenegro, Marcos Arruda Câmara Paraguassú, João
Falcão, Jacob Gorender, Salomão Malina, Geraldo Rodrigues dos Santos,
Carlos Fayal de Lira, Manuel Cyrillo de Oliveira Neto e Roberto de Barros
Pereira, pela generosidade e paciência com que concederam seus
depoimentos.
A meus irmãos Maria Aparecida, Jefferson e Cristiano pela força
compartilhada. E também aos amigos Jader, Artur e Ronald, que de forma
direta ou indireta tiveram participação nesta dissertação.
Finalmente, agradeço a todos os amigos, colegas e familiares que
torceram por mim.
Resumo
A presente dissertação tem por propósito construir uma biografia
política de Carlos Marighella, militante do Partido Comunista desde a
década de 30 até 1967, quando rompe com o partido e passa a atuar na
luta armada, na Ação Libertadora Nacional.
Há uma face oculta sob a trajetória do líder comunista e
guerrilheiro, e portanto, para melhor dimensioná-la se faz necessário
um estudo do cotidiano do personagem. A ênfase analítica centraliza-se
em uma questão: o homem comum Carlos Marighella.
A cronologia desta dissertação não é linear, mas sim priorizada
em cortes temporais definidos a partir da construção do objeto da
pesquisa.
ÍNDICE
Introdução...............................................................................................1
Apresentação ........................................................................................11
Capítulo 01 Carlos em Família..........................................................15
1.1 Po-li-te-a-ma.........................................................15
1.2 Com Clara Charf e Carlos Augusto......................40
Capítulo 02 Sem Perder a Ternura.....................................................65
Capítulo 03 Sem Tempo de Ter Medo............................................120
Conclusão...........................................................................................174
Referências Documentais....................................................................182
Referências Bibliográficas .................................................................184
Anexos...............................................................................................192
“A Prática é o critério da verdade”
Carlos Marighella
1
INTRODUÇÃO
Esta dissertação de mestrado está vinculada ao Programa de Pós-
Graduação da Universidade Severino Sombra, cujo linha de pesquisa “Biografias
Políticas” é orientada pelo professor Lincoln de Abreu Penna.
O personagem biografado é Carlos Marighella, militante do Partido
Comunista desde a década de 30 até agosto de 1967, quando rompe com o
partido e passa a atuar na luta armada, como principal liderança da Ação
Libertadora Nacional (ALN).
Este estudo biográfico tem como prioridade um objeto centrado na
trajetória do homem comum, Carlos Marighella, procurando revelar facetas
diferenciadas do personagem, sem contudo isolar o contexto com que
desenvolve sua trajetória dentro do Partido Comunista e a fase da luta armada.
Ao priorizar o lado humano do personagem reunimos dois objetivos:
Recuperar a imagem do cidadão Carlos Marighella em seu cotidiano.
Relacionar a atuação política de Carlos Marighella com atitudes
presentes em sua trajetória de vida.
O primeiro objetivo se contrapõe a uma tendência padronizante sobre a
imagem pública do militante comunista e revolucionário, desqualificada pelos
vários momentos de repressão política porque passou ao longo do século XX.
Fato consumado com a denominação de inimigo público número um da ditadura
2
militar, a ele atribuído. No segundo objetivo procuramos reter das atitudes da
trajetória de vida um elemento que se coadune com as opções políticas. Com
isso não se quer opor o pessoal ao contextual, o individual ao contextual, mas
sim revelar a tensão existente entre ambos, o que é a característica central das
biografias.
As hipóteses propostas se dividem em duas:
A análise do cotidiano do cidadão comum Carlos amplia a
compreensão de sua trajetória política.
A impetuosidade é um elemento imprescindível na atuação política de
Marighella.
Segundo Heller, “a vida cotidiana é a vida do homem inteiro”
1
. Ou seja, ao
atuar na vida cotidiana o homem expõe toda a sua individualidade, sua
personalidade. Age colocando em funcionamento “todos os seus sentidos, todas
as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus
sentimentos, paixões, idéias e ideologias”
2
. Justamente por agir explorando
suas capacidades, o homem não as realiza com toda intensidade. Os grupos
sociais - como exemplo, a família e a escola - tem função inicial de transmitir ao
indivíduo as normas da cotidianidade. À medida que “o indivíduo é capaz de
orientar-se em
3
situações que já não possuem a dimensão do grupo humano comunitário, de
mover-se na sociedade em geral e, além disso, de mover por sua vez esse mesmo
ambiente”
3
, ele já reúne condições para ingressar, por inteiro, na cotidianidade. A
vida cotidiana de Carlos, e não só a vida pública de Marighella, pode fornecer
elementos importantes que situem melhor o personagem. Não obstante, para este
estudo biográfico, a impetuosidade é uma capacidade presente no cotidiano de
Carlos Marighella e relacionada a sua trajetória política. Não se quer com isso
retirar o contexto das opções políticas do personagem, nem resumi-las ao
ímpeto, mas reforçar a sua presença na trajetória do personagem.
Estruturalmente, o trabalho dividi-se em uma apresentação, seguida de três
capítulos. A “Apresentação” tem a função informativa sucinta, onde é abordada
a trajetória pública do personagem, destacando-se os principais momentos da
intervenção política de Marighella.
O primeiro capítulo, “Carlos em família”, é dividido em duas partes. A
primeira parte, “Po-li-te-a-ma” focaliza a infância e adolescência em Salvador,
cidade onde nasceu Carlos Marighella. Procura-se revelar aspectos ocultos da
trajetória do líder comunista, antes de ingressar na militância política. São
enumeradas certas posições tomadas pelo menino Carlos junto à família; pelo
1
HELLER, Agnes. O Quotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.
2
Idem. Op. cit., p. 17.
3
Idem. Op. cit., p. 19.
4
irreverente estudante de engenharia da Escola Politécnica da Bahia, como as
provas em versos; oferecendo também um panorama sobre a família Marighella,
em Salvador. A segunda parte reúne a convivência com Clara Charf e Carlos
Augusto. O romance com Clara Charf dentro dos limites da vida clandestina e do
próprio envolvimento de ambos com a militância, não amordaçou o cotidiano do
casal. Carlos Marighella poderá ser analisado em seus hábitos mais comuns,
como o interesse pelos exercícios físicos, a leitura, a divisão de tarefas, entre
outros. Antes do casamento com Clara Charf, Marighella teve um relacionamento
com Elza Sento Sé, operária da Light. Nasceu daí seu filho Carlos Augusto, que
compartilhou um bom período de convivência junto ao pai e Clara Charf. Dessa
relação podemos ampliar ainda mais a face oculta do personagem, mostrando a
relação entre pai e filho.
“Sem Perder a Ternura” compõe o segundo capítulo. A intenção é
conciliar os momentos de militância no Partido Comunista com as relações
humanas com os demais militantes, em que Marighella impinge um estilo diferente
das demais lideranças. Destaca-se nesse capítulo a resistência organizada pelos
presos comunistas no presídio da Ilha Grande, entre 1939 e 1945, através do
Coletivo. As prisões e torturas porque passou o personagem merecem destaque,
são elementos relevantes para caracterizar a repressão política brasileira. Outro
ponto analisado são alguns discursos no Congresso Nacional, quando Marighella
5
era deputado Constituinte, entre 1947 e 1948. A reação do personagem ao XX
Congresso do Partido Comunista não poderia ser suprimida, haja vista que esse
episódio é um marco na trajetória do movimento comunista de todo o mundo.
O terceiro capítulo, “Sem Tempo de Ter de Medo” situa o personagem
no seu rompimento com o Partido Comunista e procura enfocar a sua atuação
dentro da Ação Libertadora Nacional. Ressalva-se que em nenhum instante o
objetivo é oferecer um retrato completo do que veio a se constituir a ALN, haja
vista que essa organização tem particularidades que aqui fogem aos pressupostos
desta dissertação. Como exemplo, pode-se apontar a forma como surge a ALN,
em São Paulo, a partir do Agrupamento Comunista, fato ainda pouco explorado.
A opção pela luta armada foi uma decisão difícil para Marighella. Alguns
militantes do Partido Comunista contribuem para registrar esse momento.
A morte de Marighella não constitui objeto deste trabalho por não a
considerarmos um fato isolado das sucessivas quedas que se deram sobre a
ALN e a luta armada, de um modo geral, no ano de 1969. A morte de Marighella
merece um enfoque mais amplo sobre a própria ALN e a repressão política
desencadeada pela ditadura militar.
Resta agora uma análise sobre a biografia. O caminho percorrido pela
biografia no final deste século deve ser interposto com o desenrolar da história
política. O desenvolvimento desta, suas retrações e avanços, ampliam as
6
condições básicas para se entender a inserção da biografia como possibilidade
de pesquisa.
O conceito de política está associado ao poder, ou melhor, à prática de
poder. Logo, traz implicitamente uma disputa pela conquista do poder. Não
qualquer poder. René Rémond explica que “só é política a relação com o poder
na sociedade global, aquela que constitui a totalidade dos indivíduos que habitam
um espaço delimitado por fronteiras que chamamos precisamente de políticas”
4
.
A história política não pretende criar um determinismo, um ‘tudo é política’. Mas
é sua tarefa realçar o político como “o ponto onde conflui a maioria das
atividades e que recapitula os outros componentes do conjunto social”
5
. Mesmo
na aparente forma apolítica pode-se vislumbrar uma recusa dos indivíduos à
macro-política, ou até a preferência das disputas políticas no interior das
relações desses indivíduos.
A história política ficou consagrada, no Antigo Regime, como um método
de investigação que visava dar legitimidade às atividades políticas da época. Uma
história fundamentada na glória do soberano e a exaltação da monarquia. A crise
do Antigo Regime redireciona o objeto inerente à história política, priorizando o
Estado e a nação.
4
RÉMOND, René (Org.). Por Uma História Política. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
5
RÉMOND, René (Org.). Op. cit., p. 444.
7
A biografia entra nesse cenário ao passo em que carrega uma tradição de
centrar-se no indivíduo procurando revelar seus feitos anedóticos, sua vida
privada desprovida de interação com o contexto de sua época.
A relação história e biografia é uma herança grega que situava a história ao
lado dos acontecimentos coletivos e colocava a biografia como uma análise de
fatos e gestos de um indivíduo, cujo sentido poderia ser sugerido pelo autor.
Levillain amplia a tradição da biografia ao apresentar o método biográfico
de Suetônio, no império romano: “Suetônio afirmava claramente que escrevia
biografias e não história”
6
. O que por outro lado significa dizer que seu interesse
era escrever a história de um rei e não de seu reinado.
Peter Burke caracteriza as biografias do renascimento italiano como
“textos repletos de anedotas sobre uma pessoa já contadas por outras pessoas,
freqüentemente ignoram a cronologia e, em geral, introduzem materiais
irrelevantes, dando uma impressão de ausências de forma”
7
.
No século XIX, com o método positivista, ganha rigor a correlação dos
fatos com a fonte documental. Com isso o indivíduo se afasta da circunstância
em que o fato se concretiza.
6
LEVILLAIN, Philippe. Op. cit. p. 146
7
BURKE, Peter. A Invenção da Biografia e o Individualismo Renascentista. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
CPDOC/FGV., v.10, nº 19, p.83-97, 1997.
8
A biografia, nas últimas décadas tem sido objeto de discussões e debates
que não se encontram isolados das questões que assolam a historiografia. Duby
aponta para uma característica que a historiografia recebe desde o início dos
anos 30, “onde os historiadores haviam voltado sua atenção para os fenômenos
econômicos
8
. A biografia estaria condenada à prateleira.
Mas, a história não é imune ao tempo em que é escrita. Logo a
historiografia passaria por um redirecionamento das linhas de pesquisa, além
da análise das estruturas, das fontes seriais, os processos de longa duração: “a
virada dos anos 70 para os anos 80 trouxe transformações expressivas nos
diferentes campos de pesquisa histórica. Argumentou-se em defesa da
abordagem biográfica, que o relato pessoal pode assegurar a transmissão de uma
experiência coletiva e constituir-se numa representação que espelha uma visão de
mundo”
9
.
Na proposta de construir uma biografia sobre Carlos Marighella procuro
estabelecer uma relação do indivíduo com as normas de seu tempo, ou melhor, o
sistema de normas a que esteve inserido e que conseguiu burlar, a sua relativa
autonomia. O indivíduo deve ser compreendido “no papel que desempenha no
seu ou nos seus grupos, o valor que lhe é reconhecido, a margem de manobra de
8
DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ, 1993.
9
AMADO, Janaína, FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.).Usos e abusos em história oral. Rio de Janeiro: FGV,
1996.
9
que dispõe, a sua relativa autonomia face ao enquadramento institucional em que
vive”
10
. E a esse indivíduo corresponde a biografia à medida em que ela se
centra sobre a vida de uma personagem singular.
A essa altura duas observações devem ser enumeradas. A primeira a
respeito de explicar que ao priorizar essa face oculta, não relego a um
segundo plano a trajetória política do personagem, mesmo porque boa parte de
seus escritos, discursos, posições, enfim, de suas idéias políticas, trazem sua
visão de mundo, e da época que em viveu. Por outro lado, a biografia política _
ressalto que toda biografia contém um componente político à medida em que
reflete uma cultura, uma época _ tem como característica a articulação entre o
micro e o macro histórico, ela não se basta apenas com os dados referentes ao
biografado, é indispensável a inclusão do lugar social.
A segunda observação é sobre a relação existente entre biografia e
história de vida. Esta enquadra o personagem do nascimento em diante, ou seja,
inclui todo o registro possível de uma trajetória. As biografias políticas são mais
seletivas, o que não implica excluir dados relevantes da personalidade do
biografado. A história de vida pode estar presente nas biografias que se propõem
a verificar, até então, facetas diferenciadas de um personagem, procurando
fornecer dados novos, para ampliar a inserção do biografado no mundo político.
10
VERNANT, Jean-Pierre. O indivíduo na cidade. In Veyne, Paul [et.al]. Indivíduo e Poder. Lisboa: Edições 70,
10
Posto isso, essa dissertação segue o caminho da biografia, que hoje
traz novas abordagens, apesar de ser um gênero antigo, para se adequar com
uma contribuição ao saber histórico.
APRESENTAÇÃO
Carlos Marighella nasceu no dia 5 de novembro de 1911, em Salvador,
Bahia. Filho de Augusto Marighella e Maria Rita do Nascimento Marighella, era o
primogênito de uma família numerosa: Anita, Humberto, Julieta, Tereza, Edwirges
e Caetano.
Passou a infância junto com a família, na rua Barão do Desterro nº 9, na
Baixa dos Sapateiros, em Salvador. Demonstrava uma aptidão para os estudos,
deixando para os irmãos, em especial Humberto, os passos do bom mecânico
Augusto Marighella.
Tanto em sua passagem pelo Ginásio da Bahia, como pela Escola
Politécnica, onde ingressou com 18 anos no curso de Engenharia, ele se destaca
pelo hábito de responder as questões das provas em verso.
O ano de 1932 foi atribulado: escreve um poema criticando o interventor
Juracy Magalhães, conhece sua primeira prisão, aos 21 anos de idade; em
1988.
11
seguida ingressa no Partido Comunista. Já em 1934, interrompe o curso de
Engenharia, no terceiro ano. Daí em diante, o jovem que antes de ingressar no
Partido Comunista já apresentava inquietude com as injustiças sociais, terá toda
sua vida dedicada aos trabalhadores, ao socialismo e o combate ao imperialismo
.
Marighella sai da Bahia e transfere-se para o Rio de Janeiro, sendo
novamente preso em 1º de maio de 1936. Será barbaramente torturado, mas
resiste a seus carrascos: “nada a declarar”. Em agosto de 1937 é anistiado pela
“macedada” - como ficou conhecida a anistia do Ministro da Justiça, Macedo
Soares. Voltaria ao cárcere em 1939, já na ditadura do Estado Novo. Desta vez
ficaria detido no Presídio Especial de São Paulo, daí para a Ilha de Fernando de
Noronha. Mais tarde, com a cessão dessa ilha como base naval americana, no
início da Segunda Guerra Mundial, será transferido para a Ilha Grande.
Com a anistia de 1945, logo após a deposição de Vargas, Marighella é
libertado. O Partido Comunista estava na legalidade, uma nova Assembléia
Nacional Constituinte seria convocada e Marighella é eleito deputado pela Bahia.
Como Parlamentar se caracteriza por intensa participação nas sessões da
Câmara. Proferiu 195 discursos em dois anos de mandato. Discursos que eram,
basicamente, contra a intervenção imperialista no Brasil, e ao mesmo tempo um
12
aliado inseparável dos trabalhadores, denunciando as dificuldades por que
passavam.
Na esteira da Guerra Fria, o governo Dutra cassa o registro do Partido
Comunista e, logo em seguida, em 7 de janeiro de 1948, o mandato de seus
deputados. Por isso Marighella é obrigado a voltar para a clandestinidade. Na
década de 50, passa a atuar em São Paulo, sobretudo na área sindical, tendo
participação na greve dos 300 mil. Nesse mesmo período faz uma viagem à
China e à União Soviética, onde tem contato direto com o Socialismo.
Em 1956, realiza-se o XX Congresso do Partido Comunista da União
Soviética. Kruschev, primeiro secretário do PCUS, denuncia os crimes de Stálin.
As revelações do XX Congresso provocaram um abalo nos partidos comunistas
de todo o mundo. No Brasil não será diferente, muitos optam por abandonar o
Partido Comunista. Marighella continua na luta.
Em 9 de maio de 1964, já na ditadura militar, Marighella é baleado dentro
de um cinema carioca - o Cine Esky Tijuca. Resiste à prisão, resiste à tentativa de
assassinato e denuncia a ditadura e a brutalidade do regime recém instalado. Fica
preso por oitenta dias. É libertado por um Habeas Corpus impetrado pelo
advogado Sobral Pinto.
Diante do imobilismo do Partido, diante da violência da “ditadura militar
fascista” - como a caracterizou Marighella - no fim de 67 ele liderou a dissidência
13
paulista do PCB: surge o Agrupamento Comunista de São Paulo, que logo viria a
ser a Ação Libertadora Nacional. Concretiza-se assim o seu rompimento
definitivo com o Partido e passa a atuar na luta armada de resistência à ditadura
militar. Os órgãos de repressão o elegem o inimigo público número um.
Carlos Marighella será assassinado pela ditadura militar em 4 de novembro
de 1969, por volta das 20 horas, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, no
bairro dos Jardins.
Na manhã do dia 5 de novembro, a professora Philomena Gebran recebe a
seguinte informação de Terezinha Furtado, pessoa que trabalhava em sua casa, e,
como de costume, já havia lido os jornais: “_Professora, mataram o nosso Che
Guevara”!
14
CAPÍTULO 1
CARLOS EM FAMÍLIA
1.1 PO-LI-TE-A-MA!
O Elevador Lacerda com sua torre gigante,
como um H monumental enfeitando a Bahia.
E as praias seguindo,
abraçando a cidade...
Areias brancas
como a espuma das ondas.
Visão da Cidade de Salvador no Mar em uma viagem de Saveiro.
Carlos Marighella.
O Brasil, na passagem do século XIX para o XX, era a contradição de
uma sociedade agrária, que ensaiava os primeiros passos da indústria. Na
verdade, a agricultura, “ainda em 1920, ocupa 66,7% da população
economicamente ativa do país”
11
. O poder político hegemônico da “República
Velha (1889-1930)” é marcado pela alternância de presidentes ligados a Minas
11
FRAGOSO, João Luís. O Império Escravista e A República dos Plantadores. In: História Geral do Brasil. Maria
Yeda Linhares (organizadora). Rio de Janeiro: Campus, 1996.
15
Gerais e São Paulo. A disputa entre o café e o leite se estende aos interesses dos
demais estados da República. Na Bahia não será diferente.
A saudosa Bahia de Todos os Santos convivia com a Bahia de todos os
coronéis. No início da República a política baiana ganharia características que se
estenderiam até 1930: “uma divisão política entre o litoral e o sertão, um forte
sistema de grupos múltiplos dominados por personalidades, e um alto grau de
política de reflexos pavlovianos, ditada segundo o capricho do governo do
Rio”
12
.
A sucessão de Afonso Pena, que morreu em 1909, contou com a
articulação de Pinheiro Machado, do Partido Republicano Rio-grandense, com
os coronéis do norte e nordeste do país, em torno do apoio à candidatura de seu
conterrâneo, o Marechal Hermes da Fonseca. O candidato a vice-presidente seria
o Governador de Minas Gerais, Venceslau Brás. Formava-se uma frente que
compreendia o Rio Grande do Sul, o Exército e Minas Gerais. Do lado oposto,
com a campanha civilista, Rui Barbosa encabeçava a chapa de oposição,
juntamente com o Governador de São Paulo, Albuquerque de Lins. A vitória do
Marechal Hermes da Fonseca facilitaria a candidatura de José Joaquim Seabra ao
governo da Bahia, marcada para 1912. J.J. Seabra atuou, na Bahia, como cabo
12
PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias (1889-1934): A Bahia na Primeira República Brasileira. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
16
eleitoral do presidente eleito. O ano de 1911 será agitado pela sucessão no
governo
baiano. A situação se complica quando o governador João Ferreira Pinho
renuncia, faltando três meses para completar seu mandato. O governador
interino, Aurélio Viana, do Partido Republicano Baiano, manobra no sentido de
transferir o legislativo estadual fora de Salvador e proíbe a participação dos
“seabristas” nas sessões. A crise política só será resolvida com a intervenção
do Marechal Hermes da Fonseca, inaugurando um recurso dos presidentes que, a
partir de 1910, “usaram o Exército nacional para resolver disputas políticas locais
e estaduais a favor de seus interesses”
13
. Com a recusa do governador Viana em
acatar uma determinação judicial que garantia o acesso dos “seabristas” ao
legislativo do estado acentua-se o impasse, que só será resolvido com a
intervenção direta do presidente Hermes: “que ordenou ao general Sotero
Menezes, veterano da Guerra de Canudos, que garantisse a decisão judicial”
14
. À
ordem do Marechal desencadeou-se um terrível bombardeio na capital baiana.
Recuperada a normalidade, garantiu-se a eleição de Seabra, em 1912,
contrariando os interesses do Partido Republicano na Bahia.
13
PANG, Eul-Soo. Op. cit. p.100.
14
JOSÉ, Emiliano. Carlos Marighella: o inimigo público número um da ditadura militar. São Paulo: Sol & Chuva,
1997.
17
Na casa número 9, da rua Barão do Desterro, na Baixa dos Sapateiros,
bairro de Salvador, viveu a família de Augusto Marighella e Maria Rita do
Nascimento Marighella.
Maria Rita nasceu no ano da Abolição da Escravatura, em 1888. Descendia
dos negros haussas, sudaneses “afamados na História das sublevações baianas
contra os escravistas”
15
. A irmã de Carlos Marighella, Tereza, insiste em dizer
que o temperamento de sua mãe teve uma influência muito forte na educação dos
irmãos, sobretudo em Carlos: “Ela era uma pessoa muito doce, muito
compreensiva, muito caridosa e humana. Ele teve a quem sair, ela ajudava muito
as pessoas necessitadas. Os pobres chegavam lá em casa e ela dava o que tivesse,
embora nós tivéssemos pouco, aquele pouco ela sempre tinha para dar a alguém”
16
.
Por Augusto Marighella dedicar-se à oficina mecânica, localizada nos
fundos da casa, a mãe mantinha um contato maior com os filhos, alternando
tarefas domésticas com a educação. Augusto Marighella era italiano de Ferrara,
norte da Itália, região da Emília, chegara como imigrante a São Paulo e se
transferira para a Bahia. Caetano, irmão caçula e afilhado de Carlos Marighella,
declarou, ao Jornal da Tarde, que Augusto Marighella
15
MARIGHELLA, Carlos. Por que resisti a prisão. São Paulo: Brasiliense, 1994.
16
Depoimento de Tereza Marighella colhido pelo autor em 30/07/1998.
18
“foi ferreiro na capital paulista e esteve, com muitos outros operários, fazendo
manifestações para conseguir a fixação do período de trabalho em oito horas
diárias. Ficou marcado e fugiu para a Bahia onde foi motorista do asseio (limpeza
pública)”
17
. Na reportagem fica nítida a intenção de associar a imagem de
Augusto a de um agitador, numa tentativa de estabelecer, sob esse aspecto, um
elo entre o pai e o filho Carlos. A imprensa, sob censura durante a ditadura
militar, será um instrumento determinado em traçar uma imagem negativa de
Carlos Marighella, qualquer chance é aproveitada. O fato, no entanto, é que
Augusto Marighella não viria a se tornar um militante político engajado. Foi, no
limite, um dedicado profissional de seu ramo, isso fica mais nítido à proporção
que a família vai crescendo e a oficina se torna a principal fonte de sustento. Foi
ele quem introduziu, na Bahia, o martelo de borracha, que não era conhecido,
para ser usado em consertos de automóveis. Essa informação é de Carlos
Augusto, o Carlinhos, filho de Carlos Marighella. Ele diz ainda que o avô, durante
a Segunda Guerra Mundial, ensinou converter motor a gasolina em motor a
gasogênio, principalmente na região da Chapada Diamantina
18
. O abastecimento
de combustível durante a guerra era limitado. Augusto Marighella era a pessoa
que consertava navio na Bahia. Dos filhos, o que mais se aproximou do ofício
do pai é Humberto, o Betinho, como era chamado pela família.
17
Jornal da Tarde, São Paulo, 10 nov. 1969.
19
Carlos Marighella é o primeiro filho do casal Augusto e Maria Rita. Depois
viriam Anita, Agostinho, Humberto, Julieta, Tereza, Edwirges e Caetano. Na
infância, Carlos Marighella aprontava das suas. Sua mãe recordava aos irmãos
quando passavam os soldados do Exército baiano marchando próximo a sua
casa, “ele ia atrás, sumia, ia marchando também”
19
. Ironia do destino: ele, bem
mais tarde, seria caçado em todo o país pela ditadura militar, que o nomeou
inimigo público número um. O Exército, a Marinha e todos os órgãos da
repressão marchavam agora no encalço do líder da Ação Libertadora Nacional.
Tereza Marighella guarda na memória as falas de sua mãe. Ela explica que
o irmão era muito levado, gostava muito de fugir, qualquer porta aberta, portão
aberto, ele já estava na rua. A mãe o repreendia, amarrava-o com uma corda no
pé da mesa para evitar a fuga. Tereza se recorda de uma vizinha que fazia um
alerta a sua mãe, de que mãe que prende o filho, mais tarde o filho pode ser
preso. Quando as prisões ocorrem na trajetória política de Carlos Marighella,
Maria Rita se arrepende de ter amarrado o filho. O que a vizinha
não sabia é que a militância política de Marighella, como a de vários militantes,
comunistas ou não, que lutaram por transformações na sociedade brasileira,
nesse século, seria uma História que revelaria a face brutal da repressão do
Estado, para garantir os interesses das elites no poder, seja esta civil ou militar. O
18
Depoimento de Carlos Augusto Marighella colhido pelo autor em 6/11/1998.
20
método preferido utilizado pela repressão seria, em vários contextos políticos, as
prisões seguidas de tortura. A tortura, em qualquer circunstância, é um recurso
criminoso sem justificativa, a perda da credibilidade de qualquer órgão de
segurança.
Retomando Marighella, que aos quatros anos aprendeu a ler, era difícil
para sua mãe, certas situações. Quando saía com a mãe era comum ele ler
anúncios do cinema, em casas comerciais. A mãe querendo andar, puxando-o e
ele lendo. Maria Rita nunca se esqueceu quando com quatro anos, ele dizia: “PO-
LI-TE-A-MA”
20
, que foi um local onde se realizaram bailes de carnaval e
também cinema, em Salvador, desde 1900. Foi demolido em 1933. Mais tarde, na
escola, no início do ginásio, costumava corrigir a mãe quando esta lia
“Nabocadonosor”, imperador na Babilônia antiga. Carlos Marighella retrucava:
“Não é ‘Nabocadonosor’, é Na-bu-co-do-no-sor”
21
.
Já Augusto Marighella era rígido com os filhos, afinal eram oito e criá-los
exigia uma definição sensata das prioridades. Porém, procurava municiá-los
como podia. O interesse de Carlos Marighella pelos livros era incentivado pelo
pai, que comprava livro a prestação. A leitura será um hábito do qual Marighella
19
Cf. Depoimento de Tereza Marighella.
20
Idem.
21
Idem.
21
não se afasta durante toda a vida. Era comum na casa da rua Barão do Desterro,
pai e filho conversarem sobre a Itália, Tereza se impressionava com o
conhecimento do irmão.
A cultura baiana é bastante caracterizada pela sua ritmidade. Se torna difícil
imaginar algum baiano que não tenha gosto pela música. O próprio sotaque
baiano soa rítmico. Evidentemente, não queremos criar um determinismo. Em
Marighella o contato com a música estará presente, nada profissional. Gostava
muito de fazer paródias tocando o bandolim da irmã Anita. Tereza Marighella não
se esquece de um refrão que o irmão cantava nas horas vagas: “Justiça de deus
na voz da História”
22
.
Com o irmão Caetano dividiu alguns momentos de lazer. Ambos saíam no
carnaval fantasiados de mulher, Caetano era a “francesa” e Marighella a “cigana”
que ia lendo a mão das meninas, sem esconder o rosto. Marighella tinha alguns
relances de boêmia. No final da década de 20 e início dos anos
trinta, em Salvador, “o modismo dos intelectuais juvenis eram as serenatas em
Itapuã. Os poemas, as músicas compostas ao dedilhar do violão, são facetas de
Carlos Marighella testemunhadas nas longas viagens da Baixa dos Sapateiros até
22
Idem.
22
Itapuã, no período em que levava-se um dia, por caminhos difíceis, para atingir
aquelas praias”
23
.
O interesse por futebol fez com que Marighella, no início da adolescência,
pedisse a seu pai uma chuteira. Augusto foi taxativo: _ “Você escolhe! Ou lhe
dou a chuteira para o futebol ou uma botina para ir à escola e sair à rua”.
Passados dois dias Marighella fez a escolha pela botina: “depois que ganhou foi
para a oficina mecânica do pai e pregou alguns cravos na sola. E a botina passou
a servir de chuteira”
24
.
À medida que a família vai crescendo a presença de Marighella em casa
não era tão assídua. Ocupava-se com os afazeres do estudo no Ginásio da Bahia
e com os primeiros passos na militância política. No Ginásio da Bahia ficaria
notória a prova de Física que respondeu em 40 versos, cujo tema era
‘Catóptrica, leis de reflexão e sua demonstração, espelhos,
construções de imagens e equações catóptricas’. Cursava, então, o 5º ano do
Ginásio da Bahia, em 23 de agosto de 1929, aos dezoito anos. O tema da prova
fora sorteado na sala de aula, antes do exame, um detalhe pouco
conhecido. Marighella assim respondeu:
Ginásio da Bahia aos 23
de 29 deste oitavo mês.
..............................................
23
Jornal do Brasil, Caderno B, 12 jul. 1979.
24
Jornal da Tarde, 6 nov. 1969.
23
Doutor, a sério falo, me permita,
Em versos rabiscar a prova escrita.
Espelho é a superfície que produz, Quando polida, a reflexão da luz.
Há nos espelhos a considerar
Dois casos, quando a imagem se formar.
Caso primeiro: um ponto é que se tem;
Ao segundo um objeto é que convém.
Seja a figura abaixo que se vê,
o espelho seja a linha betacê.
O ponto P um ponto dado seja,
Como raio incidente R se veja.
O raio refletido vem depois
E o raio luminoso ao ponto 2.
Foi traçada em seguida uma normal
o ângulo I de incidência a R igual.
Olhando em direção de R segundo,
A imagem vê-se nítida no fundo,
No prolongado, luminoso raio,
Que o refletido encontra de soslaio.
Dois triângulos então o espelho faz,
Retângulos os dois, ambos iguais.
Iguais porque um cateto têm comum,
Dois ângulos iguais formando um.
Iguais também, porque seus complementos
Iguais serão, conforme uns argumentos.
Quanto a graus, A+I possui noventa,
B+J outros tantos apresenta.
Por vértice opostos R e J
São iguais assim como R e I.
24
Mostrado e demonstrado o que é mister,
I é igual a J como se quer.
Os triângulos iguais viram-se acima,
L2, P2, iguais, isto se exprima.
IMAGEM DE UM PONTO
Atrás do espelho plano então se forma
A imagem, que é simétrica por norma.
IMAGEM DE UM OBJETO
Simétrica, direita e virtual,
E da mesma grandeza por final.
Melhor explicação ou mais segura
Encontra-se debaixo na figura.
....................................................
25
A prova em versos rendeu a Marighella nota dez e “ficou exposta no
corredor do colégio até 1965, protegida por uma moldura envidraçada, como
exemplo para os demais estudantes”
26
. O Ginásio da Bahia ficava no Bairro de
Nazaré, futuro Colégio Central. Por lá passaram, na década de 30, Mário
Alves e Jacob Gorender, que estudaram bem depois de Marighella. Gorender
afirma que o colégio era laico, não tinha aula de religião
27
. É dele também a
informação de que existia nessa escola um professor de história, Conceição
25
MARIGHELLA, Carlos. Poemas: Rondó da Liberdade. São Paulo, Brasiliense, 1994.
Os espaços pontilhados foram preenchidos pelo enunciado das questões, além da figura desenhada, que
também faz parte da prova. Nota-se ainda que, conforme é uso na Bahia, R pronuncia-se “rrê”; J pronuncia-
se “ji”; L pronuncia-se “Lê”.
26
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 07 jul.1979.
27
Depoimento de Jacob Gorender colhido pelo autor em 07/12/1998.
25
Menezes, um incentivador do interesse por sua disciplina. Gorender atribui a
escolha de Marighella pelo nome de guerra Menezes, na militância, em
homenagem a esse professor.
Carlos Marighella era um jovem como outro qualquer, gostava de música,
de futebol, de carnaval e de estudar. A militância política revolucionária não é
algo que surge da simples relação do indivíduo com a sociedade. A tendência
geral do indivíduo com o meio é acomodar-se, para tanto não carece o Estado
em incentivar o desenvolvimento de meios coercitivos, através de suas
instituições. A aproximação de Marighella com a política é algo que vai se
construindo ao longo de sua vida, e uma das características essenciais de sua
trajetória política é a capacidade de intercalar uma intensa atuação com a ternura
que Che Guevara julgava imprescindível.
O jovem estudante, devorador de dicionários, vai aos poucos construindo
suas convicções políticas. Na rua onde morava, na Barão do Desterro,
Marighella não se contentava em concentrar seus esforços apenas para seu
proveito:
“Ele pegava as crianças que não freqüentavam a escola e os adultos que
não sabiam ler e levava todo mundo lá pra casa para ensinar. O forte dele era a
26
Matemática. Às vezes as crianças estavam ruins na escola, a mãe pedia e ele dava
aula, sem cobrar nada”
28
.
Não que Marighella fosse um gênio, mas sua inteligência, aliada a
determinação fizeram com que sempre se destacasse nos estudos. No Ginásio da
Bahia, mesmo que não fosse às aulas era procurado pelos colegas para explicar
os pontos da matéria
29
. O estudante já começara a aprontar das suas, a rebeldia
aflorava no futuro revolucionário, e alguns manifestos começam a surgir no
Ginásio da Bahia. Marighella não era apenas o estudante da prova em versos.
Tereza atenta para dois protestos de Marighella no Ginásio: um em que ele
raspou a cabeça, a hoje professora Tereza explica: “O padre raspa a cabeça e
deixa aquela coroa, ele fez o contrário, raspou a cabeça toda em volta e deixou só
aquela coroinha de cabelo em cima”
30
.
O outro protesto é mais cômico: não se usava sandália na escola, ele
cortou o sapato, fez uma espécie de sandália para ir a escola. A mãe o
repreendeu pelo ato, Marighella responde prontamente: “Mãe! Jesus Cristo andou
de Sandália, por que eu não posso andar?”
31
28
Cf. Depoimento de Tereza Marighella.
29
Idem.
30
Idem.
31
Cf. Depoimento de Tereza Marighella.
27
“Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes
cada uma a sua maneira”
32
. A família Marighella era feliz a sua maneira. Era uma
família numerosa, com oito filhos, no mínimo espera-se uma casa
movimentada. Sem dizer que nos fundos funcionava a oficina de Augusto
Marighella. A vida da família Marighella tinha alguns rituais próprios de toda
família. Como bom italiano Augusto fazia questão de ver todos os filhos
reunidos à mesa, misturava vinho na água e todos bebiam na hora da refeição,
onde não faltava a macarronada. As brincadeiras rolavam soltas entre os irmãos,
como guerra de travesseiros e a correria no quintal, que era grande. Todo
domingo os filhos eram acordados por Maria Rita, o destino era a missa na igreja
católica. Apesar do pai ter a vida presa à oficina, era brincalhão. Uma das
brincadeiras favoritas era quando ele chegava em casa, a farra era motivada pela
pilhéria dos irmãos, que o chamavam de papai-buick _ um carro americano da
General Motors _ ele enrolava a toalha e simulava uma perseguição à garotada
33
.
Carlos Marighella participava a seu modo, era um gozador de primeira, gostava
de apelidar os irmãos. Caetano, por exemplo, era o Sergipano, por ter pescoço
enterrado. A irmã Julieta apelidara de canela de sabiá, porque tinha as
pernas finas. Tereza era a professora sem juízo, ela caçoava dele ter
32
TOLSTÓI, Leon Nikolaicvith. Ana Karênina. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
33
Cf. Depoimento de Tereza Marighella.
28
envolvimento com a política, ele em resposta lançou esse apelido. Para os irmãos
ele era o “Carrinho”, não tinha apelido especial.
A aproximação de Carlos Marighella com a militância política ocorre no
decorrer de seu ingresso na Escola Politécnica da Bahia, no curso de Engenharia.
Data desse período a sua aproximação com o Partido Comunista, fundado no
Brasil em 1922. Porém, como a opção política de Marighella vai se construindo é
por ele definida da seguinte maneira: Abracei a causa do comunismo quando
ainda freqüentava os estudos de Engenharia Civil na velha Escola Politécnica da
Bahia”
34
.
Prossegue Marighella mais adiante:
“Desde criança habituei-me a meditar sobre um problema a respeito do
qual meu pai falava quase diariamente: _Por que o pobre trabalha toda a vida e
nunca tem nada”
35
?
O cidadão Marighella vivia seu cotidiano, mas isso não o impedia de ater-
se às injustiças sociais: “O estudo, o tato intelectual com os problemas da vida, o
gosto pelos livros, a tendência para a observação científica levaram-me na
lógica formal ensinada no ginásio à indagação teórica em
torno da filosofia marxista. Buscava uma interpretação da sociedade brasileira,
algo que explicasse as contradições observadas no ambiente em que vivia _
29
operários, estudantes, homens e mulheres do povo, sincretismo religioso,
preconceitos das elites. E em tudo isso, presente, inarredável, a imagem das
crianças, sofrendo, trabalhando, pongando em bondes _ como eu via diariamente
em Salvador, para ganhar uns míseros tostões vendendo jornais. Como homem do
povo, escolhi cedo o caminho, que só podia ser o da luta pela liberdade”
36
.
A luta pela liberdade foi um princípio inseparável da trajetória política de
Marighella. Seja no Partido, ainda como estudante, seja nas prisões por que
passou e resistiu, seja como deputado constituinte em 46, seja na luta armada de
resistência a ditadura militar. Essa determinação de luta, ele deixou registrado no
poema “Liberdade”
37
, escrito em São Paulo, em 1939, quando se encontrava
detido no Presídio especial:
“Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.
...E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome”.
Na passagem pela Escola Politécnica, Marighella conserva o hábito de
escrever provas em versos. Não chegaria a concluir o curso de Engenharia, foi
34
MARIGHELLA, Carlos. Por que resisti a prisão. São Paulo: Brasiliense, 1994.
35
MARIGHELLA, Carlos. Por que resisti a prisão. Op. cit., p.23.
36
Idem.
30
até o terceiro ano. Numa prova sobre as propriedades do hidrogênio, Marighella
disserta com precisão. Corria o ano de 1931, dia 27 de junho:
“De leveza no peso são capazes
Diversos elementos, vários gases.
O hidrogênio, porém, é um gás que deve
ter destaque, por ser o gás mais leve.
Combina-se com vários metalóides,
Com todos, aliás, e os sais halóides
Provêm de ácidos por aquele gás
Formados reunindo-se aos metais.
Cloro e Hidrogênio combinados dão
Um ácido _ o clorídrico _ e a explosão
Produzida por bela experiência
Pode ser de funesta consequência.
Vale a pena que seja aqui descrita
Essa experiência, que acho tão bonita.
O desejado efeito se produz
Na escuridão, ausente toda a luz.
O cloro ao lado do hidrogênio fica
Num vaso, e isso por forma alguma implica
Numa veloz combinação dos dois,
Porquanto a mesma só virá depois.
Então, do vaso em se chegando à boca,
Uma chama, rebomba, estrugue, espouca
O violento estampido que anuncia
37
MARIGHELLA, Carlos. Poemas: Rondó da Liberdade. Op. cit., p.21.
31
Pronta a combinação. À luz do dia
Faz-se a combinação rapidamente
(Nesse caso o perigo é iminente).
De uma notável propriedade goza:
Atravessa veloz qualquer porosa
Superfície e, por ser incomburente
É queimado, não queima. A luz ardente
Que possui é de cor azul no tom,
E, na harmônica química, o seu som
É típico e semelha um longo ronco
De um urso velho dorminhoco e bronco”
38
.
Nessa prova em verso, um detalhe pertinente é o jogo de palavras um tanto
desconhecidas. Isso se deve ao próprio hábito de leitura e a fama de “come
dicionário”, atribuída por sua irmã Tereza. Palavras como “rebomba”, “estruge”
e “espouca”, não são vocábulos tão comuns. Por outro lado, ambas as provas
aqui dispostas exprimem a habilidade do estudante com os respectivos assuntos
abordados.
No final da década de 20 chega ao fim a “República Velha”, cai o
monopólio da chamada política do café com leite. As elites do poder apresentam
sucessivos choques entre si, que produzem uma circulação no poder. A década
38
MARIGHELLA, Carlos. Op. cit., p. 8-9.
32
de vinte é caracterizada por um acentuado desgaste da oligarquia paulista e
mineira. No campo da arte, de 11 a 18 fevereiro de 1922, são os artistas que se
manifestam na Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo.
No setor militar a intolerância dos tenentes com a política oligárquica era latente,
surge movimentos questionando a corrupção da República, mas sem um projeto
político e econômico concreto: “o país mergulha entre 1920 e 1929 num clima de
efervescência política e cultural, de disputas ideológicas e inquietação social _
fundação do Partido Comunista, revoltas armadas, irrupção do modernismo,
renovação católica e acirramento da disputa presidencial”
39
. A Revolução de 30,
por mais que apresente limites quanto a transformação da sociedade brasileira,
foi um acontecimento político interrelacionado com o desdobramento da agitada
década de 20, e de fato proporciona algumas modificações no cenário político
do país: “com efeito, pode-se dizer que o exercício da cidadania começa a se
efetivar a partir de 1930; antes de sua
existência era uma prerrogativa das elites que não concebiam em sua ótica a
extensão desse princípio ao povo, sempre depreciado e tido como incapaz de
influir nos destino do país”
40
.
39
BRANDÃO, Gildo Marçal. A Esquerda Positiva: As duas almas do Partido Comunista - 1920/1964. São Paulo:
HUCITEC, 1997.
40
PENNA, Lincoln de Abreu. Uma História da República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
33
A Revolução de 30 assinala a deposição de Júlio Prestes, sucessor de
Washington Luís, e a ascensão ao poder de Getúlio Vargas, pela Aliança Liberal,
liderada pelo Rio Grande do Sul. Para consolidar a rede de apoio ao novo poder
instalado, o governo Vargas adota a nomeação de interventores nos estados. Na
Bahia, o nome escolhido foi o interventor cearense, de vinte e seis anos, o tenente
Juracy Montenegro Magalhães. No plano político, Juracy desenvolve uma
política que permite o controle dos coronéis da Bahia, minando assim as bases
políticas do Partido Republicano Baiano e do Partido Republicano Democrático.
A oposição mais contundente a nomeação de Juracy se resume ao fato dele não
ser baiano. José Joaquim Seabra, o mesmo que foi apoiado por Hermes da
Fonseca, em 1912, é um dos principais articuladores dessa oposição. No
entanto, a enérgica ação de Juracy no combate ao banditismo do cangaço, que
ameaçava o coronelato, aliada a uma política de modernização da economia
do cacau, revela-se suficiente para consolidá-lo no poder: “conseguiu
empréstimos do Banco do Brasil e do governo federal para o aprimoramento da
valorização da economia, importação de novos equipamentos e desenvolvimento
do uso industrial do cacau”
41
.
41
PANG, Eul-Soo. Op. cit. p.221.
34
O questionamento sobre a inconstitucionalidade do interventor do estado
motivava uma série de manifestações em Salvador. Em 32,
São Paulo lidera uma revolta contra o regime de Vargas, o motivo era o
mesmo: a inconstitucionalidade do regime instalado. Em Salvador, no mesmo
ano, a repressão do governo era intensa: “o governador Juracy trava verdadeira
guerra contra a imprensa, censurando e empastelando jornais, prendendo
jornalistas, opondo-se a qualquer movimento constitucionalista no Estado. Em 22
de agosto ordena que o prédio da Faculdade de Medicina seja cercado pela
polícia, e reprimida a assembléia estudantil para a organização de atos de
solidariedade à revolta paulista pela recondução do país à normalidade
constitucional; 514 estudantes e 7 professores são presos, registrando-se ainda a
morte de um civil”
42
. No meio dessa turbulência, Carlos Marighella
conhecerá sua primeira prisão. Da prisão registra-se o trecho do poema “Vozes
da Mocidade Acadêmica, em que Marighella ataca Juracy Magalhães: Qual
Zigomar, tu me encerraste um dia
Nas celas vis da infinda galeria,
Provisório galé!
Por tóxico _ me deste uma água escassa!
E imenso bolachão _ foi a argamassa...
42
Assembléia Legislativa da Bahia. Bahia de Todos os Fatos: Cenas da vida Republicana 1889-1991. Salvador:
Assembléia Legislativa, 1996.
35
Que ligaste ao café”
43
.
Carlos Marighella se aproximava do Partido Comunista e sua prisão
foi um arraso para a família. O pai, Augusto Marighella, temendo maiores
complicações, resolve enterrar os livros de Marighella
44
. A inserção no Partido
leva Marighella a se transferir par o Rio de Janeiro.
Hoje, num olhar a distância, Tereza se recorda de quando veio para o Rio
de Janeiro a procura de emprego e estudo, que já havia iniciado na Bahia _ em
1948, o Partido Comunista havia sido cassado e na esteira da repressão do
governo Dutra, também são cassados os mandatos dos deputados comunistas,
entre eles Marighella. Tereza chega ao Rio de Janeiro no final de 1947. Marighella
era deputado. Foi pedir a ele que lhe arrumasse um emprego, pois já era formada
em professora primária, desde 45, na Bahia. Ele disse que não ia influenciar em
nada, que não daria carta nenhuma. Marighella a orientou para fazer concurso
45
.
Tereza Marighella foi aprovada no concurso do Governo do Estado do Rio de
Janeiro, hoje é professora aposentada, lecionou no presídio Esmeraldino
Bandeira, em Bangú, foi uma amiga para os detentos, seguiu seus
próprios caminhos, sem o
menor ressentimento com o irmão. Diga-se de passagem, uma
professora realizada. Mas, em alguns momentos da trajetória de Tereza
43
MARIGHELLA, Carlos. Rondó da Liberdade. Op. cit. p.13.
44
Cf. Depoimento de Tereza Marighella.
36
Marighella temos um exemplo típico do modo como uma imagem negativa
esteve associada a seu irmão. Ela, por duas vezes tentou arrumar emprego no Rio
de Janeiro, o motivo de não conseguí-lo era o mesmo: o sobrenome. Na primeira
vez, quando chegou da Bahia, logo no início de 1948, tentou arrumar emprego
junto a Secretaria de Fazenda do Estado, lá conheceu a primeira retaliação, com
aquele sobrenome ficava difícil. Posteriormente, fez uma prova para telefonista.
O rendimento no exame havia sido satisfatório. Tereza Marighella foi chamada
para a entrevista, preencheu a ficha de inscrição e foi orientada para aguardar um
comunicado que confirmaria a negativa. Mesmo quando professora de português
_ Tereza complementou seus estudos no Rio de Janeiro, na SUAM, formou-se
em Português e Literatura _ do presídio Esmeraldino Bandeira, na década de
setenta, o dia de pagamento era um constrangimento. Os bancos não possuíam a
tecnologia de hoje, o pagamento era na base da listagem e da fila, por sinal, as
filas ainda continuam. Tereza Marighella tinha seu nome chamado, o relato é dela
mesma: “todos me olhavam meio espantados, dava uma vergonha, dava uma
vontade de chorar”
46
. Marighella já não era o simples “Carrinho” de Salvador,
já tinha uma sólida carreira política, foi preso, resistiu à prisões, foi deputado
constituinte em 1946, e em 1967, lidera o racha do Partido Comunista em São
Paulo e parte para a ação armada contra a ditadura militar. Parodiando o próprio
45
Idem.
37
Marighella: a injustiça também está presente na voz da História. Isso é matéria
para mais adiante.
Por hora, retornemos a uma análise final sobre a infância e a adolescência
do personagem na Bahia. Podemos verificar que a impetuosidade é uma
característica inerente a qualquer indivíduo, seja no cotidiano, seja no
engajamento político, enfim, em várias circunstâncias. Entretanto, no caso de
Carlos Marighella, na infância podemos reter alguns indícios dessa
impetuosidade, como exemplo: as fugas constantes e o interesse precoce pela
leitura. Na adolescência, esse ímpeto é mais direcionado, as provas em versos e
os protestos no Ginásio da Bahia, bem como o episódio em que negocia com o
pai a chuteira ou a botina, a alfabetização desenvolvida na Barão do Desterro. À
medida que sua inserção num espaço social maior se acentua, essa
impetuosidade que Marighella traz como característica, é um elemento que não
pode ser desprezado. A proposta aqui é verificar como essa impetuosidade se
construiu na trajetória de vida personagem e qual a contribuição que ela tem na
trajetória política. É evidente que as opções políticas de Carlos Marighella estão
imbricadas num contexto político muito complexo e específico, seja no Partido
ou na luta de resistência a ditadura militar, em momentos distintos da conjuntura
brasileira: o peso do político é sempre maior. O ímpeto será um elemento
46
Cf. Depoimento de Tereza Marighella.
38
estratégico para ampliar a compreensão da trajetória política do personagem, em
especial a sua opção pela luta armada. Isso não significa que a impetuosidade
seja uma condição obrigatória para todo revolucionário. No caso específico de
Carlos Marighella ela o foi, e teve um peso relevante.
1.2 COM CLARA CHARF E CARLOS AUGUSTO
Urca, Pão de Açúcar _ o bondinho flutuando
como uma caixinha de fósforos dependurada no ar.
O rádio, a televisão, a novela, o cinema,
39
o futebol com o Maracanã _ o maior estádio do mundo, que ficou incompleto porque é a imagem do
Brasil.
(Carlos Marighella, Rio, 1958)
“Alameda Casa Branca, 10 horas da manhã de ontem. De Marighella, resta
apenas uma grande mancha seca, de sangue, que a terra e o cimento da calçada
não beberam de todo”
47
. Assim informava o Estado de São Paulo, em 6 de
novembro de 1969. Não era essa a mesma opinião dos familiares de Carlos
Marighella após sua morte em 4 de novembro de 1969. Desde o assassinato, a
família Marighella empenha-se em recuperar a imagem do militante revolucionário.
O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) paulista fez o sepultamento
de Carlos Marighella ignorando a posição da família. Na cova rasa, número 1106,
do Cemitério de Vila Formosa, todo cuidado era pouco. Uma equipe composta
de doze policiais armados com metralhadoras acompanhavam o cortejo fúnebre.
A cova em que foi enterrado Marighella não tinha cruz nem vela, algo que
acontecia mesmo com indigentes
48
. O aparato policial, certamente, temia
qualquer ato da Ação Libertadora Nacional em resgatar o corpo. Ressuscitar
é que Marighella não podia, apesar dos muitos mitos ligados a sua pessoa, às
vezes causados pela própria valentia que demonstrara no entrevero com policiais.
47
O Estado de São Paulo, São Paulo, 6 nov. 1969.
48
Jornal da Tarde, São Paulo, 7 nov. 1969. Durante a ditadura militar era comum o sepultamento de militantes
políticos tratados como indigentes. Trata-se de uma medida que visava dificultar a localização dos corpos e ao
mesmo tempo serviria para isentar á repressão política dos crimes cometidos.
40
Dias depois chega ao cemitério o filho de Marighella, Carlos Augusto, e o irmão
e também afilhado, Caetano. Vinham da Bahia para prestar a primeira
homenagem. Foi um ato singelo, afinal vivia-se o tempo da ditadura militar e o
que valia naquele instante era a presença do irmão e do filho como representante
dos familiares. Carlinhos, como é conhecido o filho de Carlos Marighella,
providenciou flores e uma cruz de cimento para o túmulo. Era apenas um gesto,
um primeiro passo para o que viria marcar, dez anos mais tarde, a obstinação
pela memória do líder comunista.
Em 1979, no desenrolar da Lei de Anistia aprovada no Congresso
Nacional, retornam para o Brasil muitos militantes que se haviam exilado. Entre
eles Clara Charf, companheira de Marighella desde meados de 1948 até o
assassinato em 1969. Daí em diante, Clara e Carlos Augusto se unem na tarefa
incansável de recuperar a imagem de Marighella. No mesmo ano de 79, o corpo é
transladado para a Bahia, para o Cemitério de Quintas, em Salvador. Antes foi
motivo de um ato público no Sindicato dos Engenheiros, em São Paulo. Todos
os anos seguintes, na medida do possível, Clara e Carlinhos promovem eventos
com o mesmo objetivo. Um fato considerável foi a recente vitória na Comissão
dos Mortos e Desaparecidos durante o período da ditadura militar, criada pela
Lei 9.140 de 1995, ressalvando-se que esta lei ainda não é o bastante para se
fazer justiça aos crimes cometidos pela repressão política, durante a ditadura
41
militar. O Estado Brasileiro reconhece oficialmente o assassinato de Marighella.
Nota-se que no início dos trabalhos o Estado organizou a Comissão visando
reconhecer casos onde ficava comprovada a morte de pessoas dentro das
dependências do Estado. Marighella foi morto na Alameda Casa Branca, rua
localizada no bairro dos Jardins, em São Paulo. Foi fuzilado sem chance alguma
de reação, num cerco policial envolvendo 45 homens. Relatos oficiais da época
atribuíam um tiroteio que acabaria por provocar o assassinato de Marighella, que
segundo o DOPS, havia reagido. Laudo pericial do próprio DOPS constatou que
do revólver calibre trinta e dois, portado por Marighella, nenhum tiro foi dado
49
.
Como assinala Jânio de Freitas: “Não poderia haver troca de tiros entre autores
de um cerco e o cercado que não usou a arma cuja posse foi atribuída”
50
. Não
restou apenas sangue no asfalto.
O personagem deste trabalho é Carlos Marighella e nessa parte a narrativa
se restringe a sua relação com Clara Charf e o filho Carlos Augusto, procurando
ressaltar aspectos diferenciados da vida cotidiana que revelam facetas
desconhecidas do personagem. A ordem cronológica dos fatos narrados não se
acomoda numa seqüência, assim como a contextualização dos períodos
abordados é sucinta, sofre cortes temporais, que ao longo do trabalho serão
49
Maiores detalhes sobre o trabalho da família ao longo dos anos e na Comissão de Mortos e desaparecidos
durante a ditadura militar, ver o cuidadoso trabalho de Emiliano José. Carlos Marighella: o inimigo público
número um da ditadura militar. São Paulo: Sol & Chuva, 1997. Em especial o capítulo 2.
42
devidamente repostos com maior abrangência. Para concluir, parcialmente, uma
análise sobre os caminhos da abordagem biográfica e a sua relação com o
personagem Carlos Marighella ao longo da sua trajetória política.
O romance entre Clara Charf e Carlos Marighella se inicia na segunda
metade da década de 40, exatamente, em 1948. Tanto Clara como Marighella
pertenciam ao Partido Comunista. Ambos com trajetórias díspares que acabam
se encontrando. Clara descendia de família judaica. O pai Gdal Charf e a mãe,
Esther Charf, eram da Ucrânia, da região de Odessa. Gdal se instalara, na década
de 30, em Alagoas, na capital Maceió, onde desenvolvia a atividade de mascate.
Logo percebe que as possibilidades em Recife seriam mais promissoras do que
em Maceió. Em 1942, a família Charf se transfere para a Pernambuco. Clara, os
pais e os irmãos Sara e Abraão. Em Alagoas, Clara presenciou algumas
manifestações de oposição ao nazismo, ia despertando assim seu interesse por
política. Em Recife, com a morte da mãe, foi obrigada a abandonar os estudos e
começa a trabalhar. O sonho de ser médica esbarrava nas circunstâncias da vida.
Entre 42 e 45, foi trabalhar na base naval norte-americana, em Recife, como
datilógrafa copista. Graças a insistência da mãe no estudo de inglês e datilografia
consegue o emprego. A aproximação com o Partido Comunista vai se
cristalizando à medida que, na conjuntura nacional, o Partido passa a atuar na
50
FREITAS, Jânio de. A Prova Escrita. Folha de São Paulo, São Paulo,14 maio. 1996.
43
legalidade, insuflado pelo papel desempenhado pela União Soviética na derrota
imposta ao nazifascismo. Entra para o Partido e passa a atuar na Associação de
Mulheres. A noção de comunismo ainda não era embasada teoricamente. Pesava
a sensibilidade das dificuldades da própria vida da família, marcada pelos limites
de uma vida dura e de muita batalha, como a própria situação a sua volta, um
olhar atento as injustiças sociais no Recife. Em 45, se transfere para o Rio de
Janeiro, convence Gdal e passa a morar com Sarah Shurt, tia materna. Além de
médica desejava ser aviadora, via nessa profissão alguma identificação com a
liberdade. Mas, aquela época a aviação era tarefa reservada aos homens.
Consegue emprego em um escritório da Panair. Adiante, presta concurso para a
Aerovia do Brasil e conquista a vaga de aeromoça. O conhecimento da língua
inglesa foi importante para alcançar a nova função
51
. No Rio de Janeiro o elo
com o PC será mais direto, a militante passa a freqüentar a célula do Partido no
Largo do Machado. Célula era o local de referência, localizado em um bairro, ou
local de trabalho, em que atuavam os militantes do PC. O contato com Marighella
foi acidental, se cruzaram casualmente na sede do Comitê Central, na Glória.
Clara, como era aeromoça, ia algumas vezes à sede do Partido, na Glória,
recolher correspondências. O contato com Marighella, que para ela era um
desconhecido, se resumiu numa troca de olhares. Não seria tão simples passar
51
Depoimento de Clara Charf colhido por Emiliano José em 20/07/1996.
44
desapercebido um mulato de um metro e noventa de altura olhando em sua
direção. O estreitamento se realiza quando o Partido Comunista organiza a
Assessoria Parlamentar Coletiva, que assistiria aos deputados comunistas eleitos
para a Constituinte de 46. Clara passa a integrar a Assessoria, que era
comandada por Marighella. O romance surge nesse ambiente de trabalho, onde
os dois se apaixonam
52
. Ela foi flagrada por um conhecido de seu pai vendendo
jornal do Partido Comunista pendurada num bonde, na cidade do Rio de Janeiro.
Não era uma burocrata do Partido. A partir daí algumas tensões começam a
surgir em relação a seu pai. O casual espião enviou uma foto para o Recife. O
temor de que a filha
fosse presa faz com que Gdal se desloque para o Rio de Janeiro e pressione a
filha para que retorne com ele. Como o PC teve seu registro cassado em 7 de
maio de 1947, a cassação dos mandatos dos comunistas seria uma questão de
tempo e logo a repressão acirraria os ânimos. Clara se refugia na casa do ex-
deputado comunista José Maria Crispim. Mas, o impasse continua e só foi
solucionado quando Clara atende o pedido do pai. A intervenção de Marighella
acabou por também auxiliá-la na decisão. Mesmo assim, ela continua a militar no
Partido, tudo sem o consentimento de Gdal Charf. Seria perfeitamente
compreensível a preocupação do pai com a filha, nada que atingisse um grau de
52
Idem.
45
anticomunismo exacerbado. Gdal não era um judeu ortodoxo, sendo bastante
flexível em relação as tradições judaicas. No entanto, judeu ou não, qualquer pai
apresentaria a mesma inquietação. O fato é que Clara estava decidida a atuar
politicamente no Partido Comunista e, além disso, já se encontrava envolvida
numa relação amorosa com Carlos Marighella. Elabora um plano de fuga do
Recife para o Rio de Janeiro. Irá casar com Carlos Marighella em de dezembro
de 1948. Isto se realiza com o Partido retornando à clandestinidade, ambos com
prisão preventiva decretada, a evidência leva a concluir que não precisariam de
papel para oficializar a união
53
.
A vida conjugal de Clara Charf e Carlos Marighella se entrelaça com os
difíceis momentos por que atravessa o Partido Comunista após a cassação dos
mandatos dos parlamentares, lançado novamente na ilegalidade. Não foram
poucas as privações divididas pelo casal, pois a clandestinidade exigia que
mantivessem suas reais identidades sob sigilo. Os aluguéis jamais poderiam trazer
o nome de ambos, levando-se em conta que Marighella já era bastante conhecido.
Em oposição, a vida do casal, tomado os devidos cuidados, seria um álibi para
ludibriar a vizinhança. Nem por isso Clara e Marighella tiveram a paixão
esvaziada. Além do amor em comum, os unia a ideologia política e a dedicação
às atividades partidárias. Marighella, com a perda do mandato de deputado,
53
Depoimento de Clara Charf colhido pelo autor em 03/11/1998.
46
passa a receber uma ajuda de custo para se manter. O Partido Comunista
auxiliava os militantes mais procurados.
Clara descreve Marighella como um homem alto, de porte atlético, cabelos
crespos, lábios grossos, nariz meio adunco, com mãos grandes e gesticulação
acentuada ao falar. Ela destaca que o marido sempre procurou manter-se
fisicamente em boa forma, mesmo nos momentos de clandestinidade. Os
exercícios físicos eram um dos hábitos preferidos de Marighella. Nos momentos
de maior liberdade política gostava muito de caminhada, sempre que podia
caminhava, essa foi uma inclinação marcante em sua trajetória. Relatos de
companheiros de Marighella atestam que o baiano gostava muito de doces. Nos
tempos difíceis de clandestinidade, em São Paulo, entre 1937 e 1938, ele
percorria distâncias enormes, evitava a condução, guardando o dinheiro para
comprar doce. Como Parlamentar, no Rio de Janeiro, uma década depois,
Marighella preferia fazer a pé o percurso entre o Palácio Tiradentes _ na Praça
XV _ e o escritório parlamentar dos comunistas, situado na Avenida Rio Branco
54
. Além da caminhada, a dedicação aos exercícios físicos foi uma tônica
bastante presente em seu cotidiano. Nos momentos de clandestinidade
procurava fazer exercícios em casa mesmo. Como não havia recursos
disponíveis para a aquisição de instrumentos, Marighella improvisava. Pegava
47
duas latas de leite em pó, enchia de cimento, atravessava um cabo de vassoura
entre as latas e pronto, já possuía o necessário para manter sua forma física
55
.
Em outra oportunidade, na semilegalidade, na segunda metade da década de 50,
Marighella aparecia em casa com algo semelhante a um remo. Simulava uma
situação de remador e, em paralelo a atividade, aproveitava o tempo para
aprender inglês. Àquela época saíram os primeiros discos em inglês, ele
aproveitava o tempo “remando” e ouvindo os discos para aprimorar o idioma.
De fato, o interesse por atividades físicas pode ser notado em algumas fotos de
Marighella. No episódio em que resistiu a prisão, em 1964, logo quando é solto,
aparece nas redações dos jornais denunciando o tiro que havia sofrido. Retira o
paletó e passa a apontar o local onde a bala o atingira. Nota-se um
abatimento pela prisão a que se submeteu, mas também podemos verificar um
pouco de seu porte atlético. Evidentemente, nada que se aproxime de uma
escultura grega clássica, mas realça um porte físico nada desprezível. Clara
ressalva que esses hábitos de praticar exercícios eram circunstanciais, estariam
muito ligados a conjuntura.
Marighella era fascinado por leitura, não foram poucas às vezes que
chegaria em casa com alguns livros e publicações. Lia de tudo. Do pouco que o
54
Cf. Depoimento de Clara Charf.
48
Partido Comunista assegurava a seus militantes, pouco mais o suficiente, sempre
sobrava uma quantia para adquirir livros, tanto para si como para presentear os
amigos e parentes. Um costume que o acompanhava desde a adolescência. Outro
hábito mantido é a relação com a música. Esta não ficou restrita as serenatas em
Salvador. O destemido militante comunista tomava o cuidado de trabalhar
escutando música, sua preferência, nessas situações, era por ritmos rápidos,
como Tico-Tico no Fubá, sucesso da década de 40, facilmente localizado nas
rádios. A relação com a música é eclética. Talvez por influência de Augusto
Marighella, tenha despertado seu interesse pela ópera. Juntamente com os livros,
sempre que podia comprava alguns discos. Contava com o apoio de Clara
Charf, que havia estudado piano em Alagoas. Além de ópera, o comunista
Marighella admirava o chorinho e música popular brasileira, sobretudo Noel Rosa
56
. O samba, por sinal, serviria de inspiração no poema “Como Nasceu o
Samba” , onde Marighella explica, a seu modo, a origem do ritmo no Brasil:
“Dizem que o samba nasceu na Bahia,
mas dizem também que nasceu no Rio de Janeiro.
Vestiram a cidade com um vestido de nylon moderno,
só que era feito com raios de sol de um dia tropical,
quando o sol arrancava faíscas das águas da Guanabara,
como quem tira reflexos de luz de um espelho de metal.
Quando foi noite,
por cima do vestido de sol,
55
Idem.
56
Cf. Depoimento de Clara Charf.
49
botaram na cidade um manto de estrelas,
que um malandro do morro
cortou a navalha de um pedaço de céu.
E começou um batuque no morro...
E uma cabrocha dançava, dançava,
com um vestido de sol e um manto de estrelas, remexendo.
Um malandro que levava embaixo do braço
um embrulho de fubá para o mingau da família,
ficou bestificado,
e o embrulho caiu e espatifou-se no chão.
De manhã quando os pássaros acordaram
e ouviram o canto do morro que ainda estrugia,
calaram o bico e não cantaram mais,
só que foram pro chão
catar o fubá que havia caído.
E pegavam o fubá e o fubá caía...
e tornavam a pegar e o fubá fugia...
E o batuque batendo em cadência perfeita...
O espetáculo no morro era tão imponente,
que dava um remelexo no corpo da gente.
E assim que o samba que nasceu na Bahia
acabou nascendo também no Rio de Janeiro”
57
.
Não se deve entender Marighella como um conhecedor profundo de
música. Trata-se aqui apenas de apresentar costumes do personagem no seu
cotidiano. À mesma medida, os poemas escritos por Marighella são de todo
compostos de versos previsíveis, sem contudo perder o brilho: era um
revolucionário poeta e não um poeta revolucionário.
57
MARIGHELLA, Carlos. Poemas: Rondó da Liberdade. Op. cit. p. 46-47.
50
Na cultura brasileira samba e futebol são ingredientes indispensáveis,
porém, não são obrigatórios. Futebol era uma das paixões de Marighella,
torcedor do Corinthians, em São Paulo, e do Flamengo, no Rio de Janeiro,
clubes de grande popularidade nacional. Na Bahia, torcia pelo Vitória. Na
clandestinidade, não poderia ir aos estádios, mas procurava acompanhar lendo as
notícias esportivas. Num episódio ocorrido dentro de um táxi, acompanhado por
Clara Charf, um chofer começa a interrogá-lo sobre uma partida entre times de
São Paulo. Marighella estava desinformado. Ao sair do
táxi ele lamentou com Clara o constrangimento por não ter conhecimento do
fato narrado pelo motorista
58
. A simpatia pelo futebol fez Marighella registrar um
poema em homenagem a Garrincha, “Alegria do Povo”, destaca-se uma estrofe
que demonstra a mortal jogada do ponta direita:
Voa Garrincha,
invade a área contrária,
indo até a linha de fundo
para cruzar...
E as redes balançam
no delírio do gol”.
59
Outro detalhe salientado por Clara é o gosto por presentear as pessoas.
Marighella poderia esquecer uma data de aniversário, a do próprio casamento,
mas não raro surpreendia com alguma lembrança. Sobre esse aspecto, podemos
58
Cf. Depoimento de Clara Charf.
51
verificar em carta endereçada ao irmão Caetano, residente em Salvador, datada
do mês de fevereiro de 1960, na qual relata as novidades. Não se esquece de
relembrar ao irmão o dia 14 de janeiro, data em que se comemorava o aniversário
de Caetano. Assim escreve: “Não esqueci o 14 de janeiro. Seu presente está
comigo e logo você o receberá”
60
. Aliás, o acesso a família sempre estará
presente, dentro dos limites impostos pela atividade política. A irmã Tereza,
então no Rio de Janeiro, recebia a visita de Marighella algumas vezes. Num
desses encontros coincidiu ser aniversário de seu filho, José Augusto, e de sua
filha Regina Lúcia. O filho completaria cinco anos e a filha um ano. Como as
datas eram próximas decidira-se fazer a festa conjunta. Na hora de cantar o
parabéns, José Augusto pilheriou, queria o aniversário só para ele, chegou a
puxar a toalha em tom de inocente protesto. Marighella, que estava acompanhado
de Clara, se divertiu muito com o fato. Pegou um guardanapo e escreveu um
verso parodiando uma peça de teatro em cartaz no Rio de Janeiro. Tereza
recorda: “No dia de seu aniversário/José Augusto Teixeira/chorava de fazer
dó!/encenando aquela peça:/ bububú no bobobó”
61
.
Este seria um dos últimos contato mais íntimos com o irmão. Em 64,
Tereza soube pelo rádio que Marighella havia sido baleado num cinema na Tijuca,
59
MARIGHELLA, Carlos . Rondó da Liberdade. Op. cit. p. 50.
60
Carta manuscrita de Carlos Marighella ao irmão Caetano Marighella. Edições Contemporâneas: Rio de Janeiro, 02
fev. 1960.
52
ao resistir a prisão, fato mencionado anteriormente. O marido, Armando Teixeira,
fez uma incursão no Hospital Souza Aguiar onde Marighella estava internado.
Tereza, com o sobrenome que possuía, rapidamente seria identificada, e, além
disso, estava abalada emocionalmente. Armando Teixeira, usou da habilidade
para chegar ao leito onde se encontrava Marighella. Aguardou cuidadosamente a
distribuição das senhas, não anunciou o objetivo de sua visita. Chegada a sua vez
tratou de localizar rapidamente o leito onde estaria o cunhado. Ao vê-lo se
aproximou. Marighella percebendo sua presença alerta piscando os olhos
avisando-o da presença de dois agentes policiais à paisana. Armando será
interpelado pelos policiais sobre o motivo pelo qual ali se encontrava. Disfarçou
afirmando estar a procura de uma pessoa que imaginara ser aquela no leito.
Marighella estava vivo
62
.
Na convivência entre o casal Clara enfatiza a divisão das tarefas
domésticas como um dos componentes mais marcantes que atenuavam a vida de
militante. Ambos não possuíam ninguém para auxiliá-los nas tarefas da casa, e
também viviam atarefados com a militância. Principalmente nos momentos de
clandestinidade, a cooperação era fundamental. Marighella combinou com Clara
que lavaria as roupas, ela se encarregaria de passá-las. Não existia máquinas de
lavar naquele tempo e Marighella não sabia passar roupas. Enquanto Clara
61
Depoimento de Tereza Marighella colhido pelo autor em 30/07/1998.
53
cumpria sua tarefa, Marighella havia combinado que leria, em voz alta, os jornais
ou alguns textos políticos, assim a companheira não sairia prejudicada. Clara
nunca encerou casa, era o marido que, de acordo com as circunstâncias, se
encarregava dessa tarefa. Na verdade, a preocupação de Marighella era manter o
ambiente organizado, desde a adolescência tinha essa característica. Na luta
armada orientava os mais novos para limparem a casa que alugavam, mesmo
porque era uma medida de segurança, não era para deixar nada bagunçado. Na
convivência com Clara atos mínimos como pendurar toalha, lavar louça, eram
imprescindíveis. Ou seja, nesse aspecto Marighella se afastava de uma
concepção machista, reinante na sociedade brasileira. Veremos mais adiante, em
um de seus pronunciamentos como deputado, que a sua opinião sobre o papel
da mulher na sociedade brasileira era avaliado como um tanto submisso.
Já foi destacada a avidez de Marighella pelo estudo de línguas estrangeiras.
Uma situação cômica ocorre em 1952, quando viaja para a China e para a União
Soviética, gigantes do comunismo internacional. Marighella vai chefiando uma
delegação do Partido Comunista. Clara destaca que o conhecimento do marido
sobre a língua inglesa centrava-se na grafia, ou seja, Marighella tinha a prática de
consultar o dicionário e verificar a grafia e o som das palavras, bem como o seu
respectivo significado, enfim, um amplo domínio do vocabulário. Quanto a
62
Idem.
54
pronúncia, não era das melhores. Na viagem a China, aprender o idioma do país
revolucionário de Mao-Tsé Tung exigiria muito tempo. A solução encontrada por
Marighella foi treinar o inglês com a esposa. Passaram a dialogar tudo em inglês
na convivência mais íntima. O prazo era de um mês. Clara explica que ele
possuía um problema na pronúncia, trocava o H pelo l, por exemplo: ao dizer
Hat, chapéu em inglês, dizia Lat. Rato em inglês, rat, ele pronunciava lat.
Realizado o treinamento, Marighella partiu para viagem. Ela ignorava o país que
ele iria, regra rigorosa da vida clandestina. Quando retorna, um ano mais tarde,
Clara o interroga sobre como havia se driblado os defeitos da pronúncia.
Marighella explica que havia ido a China e a União Soviética. Na China,
Marighella explicou que, assim como ele, o chinês trocava o R pelo L, e
acabaram se entendendo
63
. No decorrer da década de 50, a convivência do casal
passa a ser dividida com Carlos Augusto.
Carlos Augusto Marighella nasceu em 22 de maio de 1948, no bairro do
Méier, na cidade do Rio de Janeiro. Era o filho de Carlos Marighella com uma
funcionária da Light, Elza Sento Sé. Elza nasceu na Bahia, em 1922, o curto
romance com Marighella ocorre quando era funcionária da Light. Os dois se
conhecem nas atividades políticas envolvendo os funcionários da empresa, que
63
Cf. Depoimento de Clara Charf.
55
reivindicavam melhoria nos salários
64
. Os comunistas atuavam politicamente na
empresa. Do romance com Marighella, terminado no mesmo ano de 48, nascera
o filho Carlos Augusto. Carlinhos não manteria contato com o pai, isso ocorreria
anos mais tarde. A razão de tal afastamento não é difícil de ser analisada. O ano
de 48 assinala nova clandestinidade para os militantes do PC. O contato com o
filho só poderia trazer transtornos. Ana Montenegro explica que a mãe não pôde
registrar Carlinhos por uma razão muito simples: Marighella estava ilegal
65
. Elza
retornou para a Bahia com o filho. Diante da situação em que se encontrava seu
pai, a melhor solução seria ir para Salvador. Carlinhos passará 8 anos junto da
mãe em Salvador. O retorno para o Rio de Janeiro foi para conhecer o pai.
Favorecia esse encontro a situação política do país, um pouco menos acirrada
para os comunistas. O PC apoiou Juscelino Kubitschek para a presidência da
República, com a vitória de JK a tendência era a situação se amenizar. Porém, em
57, a casa de Marighella e Clara, no Méier, é invadida pela polícia. O casal não se
encontrava e por isso escapa de ser preso.
Em 58, inicia-se o único período em que Clara e Marighella viveriam com
suas reais identidades. Já era hora de conhecer Carlinhos. No retorno para o Rio,
a princípio, Carlinhos ficaria sob os cuidados da avó materna. Marighella alugou
um apartamento na rua Mem de Sá para os dois. Até então pai e filho não
64
Depoimento de Carlos Augusto Marighella colhido pelo autor em 6/11/1998.
56
se conheciam pessoalmente. O encontro ocorre na escola Vladimir Mata,
Carlinhos cursava a terceira série primária, é dele a narrativa que se segue: “fiquei
ressabiado, impressionado com a figura física, me aproximei. Meu pai me
colocou no colo e me beijou. Era uma pessoa extremamente carinhosa e revelava
ali seu traço terno e atencioso com os jovens, apesar de ter sido um homem
muito atarefado”
66
. Passará a viver com Clara e Marighella num apartamento
situado na rua Correia Dutra, no Flamengo, bairro carioca. Marighella trataria de
prestar todo o auxílio ao filho em relação aos estudos, não importando se a avó
o matriculasse em colégio religioso, o que acabou acontecendo quando o menino
foi matriculado na escola batista, localizado na rua Frei Caneca. A relação de
Marighella com o filho se dá num clima de aproximação cada vez mais intensa.
No estilo de Marighella não bastava fornecer apenas orientações acerca dos
estudos, do pouco tempo que tinha com o filho, procurava retribuir-lhe toda a
atenção desejada. Era comum propor a Carlos Augusto a resolução de
problemas de matemática, aliás, um de seus assuntos preferidos. Carlinhos fica
admirado ao relembrar como o pai conseguia alternar as exigências da atividade
política com o carinho dispensado ao filho. Era o tipo de pai que beija os filhos
toda à noite, propunha brincadeiras, ajudava Carlinhos a montar pequenos
brinquedos manuais, ia a praia, geralmente aos domingos, isso quando podia. Em
65
Depoimento de Ana Montenegro colhido pelo autor em 6/11/1998.
57
algumas visitas a companheiros do Partido, nos finais de semana, era comum
Marighella levar o filho. Muitos queriam conhecer o filho do revolucionário
comunista. À proporção que o menino vai crescendo, Marighella começa a
orientá-lo sobre sexualidade. Falava abertamente sobre o assunto. As razoáveis
noções científicas sobre sexo, Carlinhos assimilou com o pai. Marighella recorria
a livros para demonstrar ao filho o que era um pênis, uma vagina, chamando a
atenção para possíveis doenças e cuidados a serem prevenidos. Alerta também
sobre o cuidado que Carlinhos deveria ter sobre a questão da virgindade das
moças e os danos eventuais ao freqüentar prostíbulos. Enfim, uma relação
paterna que, muitas vezes, na vida de um inteirado militante comunista poderia ser
inimaginável. A casa onde viviam Clara, Carlinhos e Marighella era modesta. O
apartamento de um dos maiores dirigentes do Partido Comunista se resumia a um
quarto e sala, cozinha e banheiro. No entanto, não era uma vida de privações.
Tinham telefone, televisão, gravador, que era raro na época, a alimentação era
boa, Carlinhos estudava em bons colégios, não seria forçoso afirmar que
compunham um estilo da classe média carioca.
A relação entre Clara Charf e o filho de Marighella era cercada pelo mesmo
carinho. Clara procurava agradar o menino. Ele adorava os pães da culinária
judaica que ela fazia, pães à base de farinha de trigo, água e sal. Para Carlinhos
66
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 jul. 1979.
58
ele tem o privilégio de tê-la como segunda mãe. Assim como o pai, Clara vivia
atarefada com a militância, aos poucos Carlinhos vai assimilando o clima da
família. Nas férias ia para Salvador, rever Elza Sento Sé e os parentes.
No início dos anos 60, Carlos Augusto começa a ler livros que tratam de
política. A atmosfera em que vivia tratava de icentivá-lo no assunto. Marighella
municia o filho com livros clássicos como a “História da Riqueza do Homem”,
de Leo Hubbermans; “A Origem da Família, do Estado e da Propriedade
Privada” de Engels e, como não poderia deixar de faltar, a literatura baiana de
Jorge Amado. Carlinhos chegou a ter algumas discussões marxistas com o pai,
nada ainda muito elaborado. A literatura fornecida era direcionada, mas nunca
exerceu qualquer pressão ostensiva para que o filho integrasse o Partido
Comunista, o que ocorreria mais tarde por sua própria iniciativa
67
.
A década de 60, como veremos mais adiante, será marcada pela instalação
da ditadura militar no Brasil. Os efeitos daí advindos caem de cheio sobre a
relação de Carlinhos com o pai. O último contato que teve foi quando visitou-o
no DOPS do Rio de Janeiro. Marighella estava preso por resistir a prisão. Ele e
sua tia Anita, irmã de Marighella, contataram Sobral Pinto para impetrar um
Habeas Corpus que o libertaria. Enquanto isso não se realizava, ficar no Rio de
Janeiro era muito arriscado. O pai preso, Clara Charf clandestina. Carlos Augusto
59
retorna para Salvador. A relação com o pai restringiu-se a troca de cartas, nunca
mais o veria.
O militante revolucionário, a priori, não deve ser analisado como um ser
totalmente aquém dos fatos comuns do dia-a-dia, os princípios políticos,
conjugado com as atividades da militância, tomam boa parte do tempo, e podem
inclusive se diluir e exercer um peso considerável que orienta a conduta do
indivíduo em seus atos mais comuns. Em contrapartida, ao atuar politicamente
isso já não ocorre, pois o indivíduo já atua acima da cotidianidade, potencializa
sua ação.
A vida de Carlos Marighella será extremamente dedicada a atividade
política. Uma análise de sua trajetória revela uma vida pública completamente
ligada ao Partido e depois a Ação Libertadora Nacional. O cotidiano com Clara
e, posteriormente, com a companhia de Carlos Augusto deve ser retido nessa
interrelação com a militância. O tempo não era tão disponível para os prazeres do
dia-a-dia. Por outro lado, não devemos compreender o personagem como
detentor de uma característica solidária e afetiva contínua. Momentos de tensão,
ou até de choques pessoais, surgem de qualquer relação madura e franca, seja
entre amigos ou entre familiares.
67
Cf. Depoimento de Carlos Augusto Marighella.
60
O estudo da trajetória de um militante comunista, como o foi o
revolucionário Carlos Marighella, é priorizada sobre o ângulo do seu pensamento
político. Traço perfeitamente compreensível, pois trata-se, como já afirmamos,
de uma vida voltada para os princípios revolucionários que delinearam os
comunistas ao longo do século XX. O público tem um peso e um interesse muito
maior que o privado. Por outro lado, também nas relações da vida privada a
dimensão política não está ausente, pois é ela quem coordena as ações e
determina as escolhas.
A biografia como gênero de abordagem historiográfica, apresenta uma
característica recente, mais propriamente a partir da década de 70, onde “os
autores procuram resgatar facetas diferenciadas dos personagens e não apenas,
como nos trabalhos tradicionais, a vida pública e os feitos notáveis dos
mesmos”
68
. Para tanto, é comum recorrer a certos aspectos da história de vida
que se afastam da intenção de aplicar ditirambos sobre o personagem.
Marighella é apenas um exemplo, jamais intocável a críticas. Carlos
Marighella também é um exemplo que encerra uma tendência estereotipada da
análise sobre a militância dos comunistas. É um personagem que tem em sua
trajetória política uma marca especial pela inserção na guerrilha urbana. Cria-se
68
SCHDMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias - Historiadores e Jornalistas: aproximação e afastamento.
In Estudos Históricos - Indivíduo, Biografia, História. Rio de Janeiro, Vol.10, N 19, 1997, P.1-156.
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da F.G.V
61
daí um componente enriquecedor de discussão, através do personagem e
sua trajetória política, sobre a própria questão envolvendo a luta armada, não
ofuscando a sua trajetória dentro do PC. Entretanto, a vida
pública pode, muitas vezes, ser utilizada para rotular. Os interesses podem variar.
No caso de Carlos Marighella, a ditadura militar tentou a todo custo ofuscar uma
trajetória de acertos e de erros, sempre procurando associar a figura do
personagem ao que se chamava de terror: a luta armada. “Marighella, o chefe do
terror”, era a expressão favorita. A linearidade da vida pública, muitas vezes
exigida em demasia na análise de aspectos do cotidiano, tinha a intenção de
divulgar uma imagem negativa do personagem. Algo como se o “chefe
terrorista”, em sua trajetória de vida, não fizesse outra coisa a não ser estar
voltado exclusivamente para a revolução comunista. Esta linearidade criou um
indivíduo mecanizado em relação a revolução. Ao analisar o cotidiano do
personagem, podemos verificar que o militante comunista, o “chefe do terror”,
era uma pessoa comum, um simples mortal. Talvez o mero registro da trajetória
de um revolucionário acabaria por encobrir essa face oculta, humana e
profundamente generosa do homem Marighella.
CAPÍTULO 2
62
SEM PERDER A TERNURA
Hoje o mundo respira mais livre,
eu peço licença pra dizer simplesmente:
_ Você, sim, que é muralha, União Soviética!
Muralha. Carlos Marighella, Colônia dos 2 rios, Ilha Grande, 1944.
A trajetória de Carlos Marighella no Partido Comunista é marcada por
intensa dedicação. Foram mais de trinta anos de militância política no Partido.
Mas, esse elo não implica analisar a trajetória do personagem tendo o PC como o
objeto central. As intervenções do Partido Comunista na macro-política brasileira
é um objeto muito mais amplo do aqui que se propõe. Interessa os momentos em
que o personagem tem destaque nessas intervenções. Como exemplo: a
participação na resistência do Coletivo dos comunistas, no presídio da Ilha
Grande, entre 1939 à 1945 ; a atuação do personagem como deputado
constituinte em 46; a clandestinidade, em seus vários momentos; ao Marighella
editor da Revista Problemas, de 47 à 49; até a reação ao XX Congresso do
Partido Comunista da União Soviética, em 1956. Definidos esses momentos, o
centro da abordagem passa a ser o lado humano do personagem em suas
relações dentro do Partido. O rompimento com o PC é matéria do próximo
capítulo, pois daí Marighella vai construir sua opção pela luta armada.
63
Fundamentar a trajetória de um militante comunista tendo o seu lado
humano como ponto principal é uma tarefa complexa. No caso dos militantes do
PC muitos estereótipos são atribuídos, nem sempre condizentes com a realidade
de cada momento, sem levar em conta que o homem é o seu tempo. Num artigo
publicado no Correio da Bahia, em 8 de março de 1990, Ana Montenegro explica
a dificuldade em separar o humano do político: “ao longo do exercício da prática
das idéias, há sempre um confronto entre o ser e o estar na vida cotidiana”
69
. No
caso específico de Marighella, como militante vai se tornar uma referência dentro
do Partido Comunista, porém, não abdicando de uma aproximação mais intimista
junto aos companheiros de Partido: o humor, a solidariedade, a cordialidade e a
valentia são marcas registradas do personagem. Em contrapartida, o outro
Carlos, possui características um tanto retraídas. A liderança de Luís Carlos
Prestes dentro do Partido pode ser questionada de vários pontos, mas o carisma
do Cavaleiro da Esperança era uma realidade. Ana Montenegro narra as
impressões que teve de Prestes, durante os contatos na legalidade do Partido,
em meados da década de 40, e mais tarde, no exílio: “a impressão que ele me
dava era de que, como pessoa humana, não desejava ser conhecido, no sentido
da intimidade de seus sentimentos, de suas emoções. Nunca presenciei um gesto
de carinho de sua parte, mesmo com as pessoas mais íntimas. Nunca o ouvi
69
MONTENEGRO, Ana. O Homem. Correio da Bahia, Salvador, 8 mar. 1990, p.6.
64
falar de outros assuntos que não fossem os políticos partidários, mesmo um
comentário qualquer sobre uma notícia, um livro, uma peça de teatro. Nunca
deixou a sua postura militar, até na maneira como se sentava e como se punha de
pé”
70
. O comportamento de Prestes somado ao que ele representava para o
Partido, e para a sociedade brasileira, acabou por criar uma referência dentro do
Partido Comunista Brasileiro. Talvez a explicação mais plausível seja a presença
considerável de militares no Partido, por mais que estivessem próximos do
comunismo não abandonavam os rígidos métodos contidos no setor militar. Para
Gorender “o PC se singularizou no quadro mundial pelo afluxo de oficiais do
Exército, bem menos na Marinha, sobretudo do Exército. Esse afluxo se dá nos
anos 30 e continua nos anos 40. A principal significação é a desagregação do
Tenentismo, que gera um fluxo de oficiais, ou de ex-oficiais, que vão para a
esquerda e até para o PC”
71
. Mas, o PC não deve ser entendido como um
grande quartel do Exército, à proporção que o Partido passa a atuar na
sociedade brasileira, vários setores vão sendo incorporados a seus quadros.
Em 1936, Marighella sai da Bahia e se transfere para o Rio de Janeiro. O
ano de 1935 foi marcado por intensa agitação política no cenário nacional. A
Aliança Nacional Libertadora, organizada a partir de janeiro de 1935, passa a
atuar como uma organização diferente do que até então se via na política
70
Idem.
65
brasileira. Sob a liderança de Luís Carlos Prestes _ que ingressou inicialmente na
Internacional Comunista e, como consequência teve que ingressar, desde 1º
agosto de 1934, no Partido Comunista do Brasil, e, um ano depois, passaria a
fazer parte do Comitê Executivo do Partido _ a ANL defendia três princípios
básicos: “o antiimperialismo, o antifascismo e a luta contra os interesses
latifundiários. Preconizava a constituição de um governo popular, a reforma
agrária, a suspensão da dívida externa e a nacionalização das empresas
estrangeiras que operavam no Brasil”
72
. A Aliança Nacional Libertadora, como o
seu próprio nome sugere, reunia os mais variados segmentos da sociedade
brasileira, com destaque para os comunistas, sindicalistas e boa parte de uma
corrente extremada do tenentismo. Da teoria
a prática, a Aliança insurge a 24 de Novembro de 1935 contra o governo de
Vargas. O foco inicial é o estado do Rio Grande do Norte, seguido pelo Recife.
Três dias depois é a vez do Rio de Janeiro, sob a liderança do 3º Regimento de
Infantaria do Exército e a Escola de Aviação. O movimento no Rio não terá
grande sucesso, “desarticulados das grandes massas trabalhadoras, os insurretos
se vêem depressa sob o cerco de tropas muito superiores. Após longas horas de
71
Entrevista de Jacob Gorender a Revista da Bahia, Encarte Especial, dez. 1988, p.12.
72
PENNA, Lincoln. Uma História da República. Op. cit., p.196.
66
árduo e sangrento combate, a insurreição é derrotada no Rio”
73
. O mesmo
aconteceria no Recife e em Natal, apesar do sucesso inicial.
O período que antecede o Estado Novo conta ainda com a Ação
Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado, versão brasileira dos regimes
de extrema direita em ascensão na Europa, como o fascismo e o nazismo. A AIB
era um contraponto ao comunismo e ao marxismo, para tanto valia-se da
influência do pensamento católico tradicionalista, de um nacionalismo
exacerbado e o primado da família e da Nação
74
. A aproximação com o governo
Vargas, com a indicação de Plínio Salgado para o Ministério da Educação, em
36, parecia ampliar as perspectivas de poder. O que se tornaria ilusório quando
em 3 de novembro de 1937 é assinado decreto que extingue a AIB. Como
ocorrera com a ANL em julho de 35. Era o caminho que levaria ao Estado Novo.
Nesse clima de agitação e progressiva repressão é que Marighella sai da
Bahia e chega ao Distrito Federal. As prisões porque passaria na segunda metade
da década de trinta serão descritas por ele da seguinte maneira: “já fui torturado
a frio, no mesmo DOPS de hoje e na antiga Polícia Especial! Isto foi em
consequência da derrota do movimento armado de 1935, desencadeado pela
Aliança Nacional Libertadora. Embora eu não tivesse participado desse
73
GORENDER, Jacob. Figuras do Movimento Operário: Prestes. Revista Problemas, Rio de Janeiro, ano 3, nº 24, p.
118-125, Jan./Fev. 1950.
74
PENNA, Lincoln. Op. cit. p.199-200.
67
movimento, e mesmo sem jamais ter sido militar em minha vida, fui preso por
atividades subversivas. A tortura a frio por que passei então no cárcere, sob a
vigência da ditadura de Getúlio Vargas e Felinto Müller, ensinaram-me que é
melhor mil vezes morrer lutando com os policiais do que permitir-lhes que
supliciem o preso imobilizado e sem poder oferecer resistência”
75
. Em 36, já não
era apenas o estudante da prova em versos, já era um militante de destaque.
Nota-se que Marighella afirma não ter participado da Aliança Nacional, em 35,
essa informação deve ser compreendida como uma participação direta nos
acontecimentos, o que não o afasta por completo como membro do Partido.
A prisão no Rio de Janeiro é novamente citada numa sessão do Congresso
Nacional, de 21 de Agosto de 1947, na Comissão de Inquérito sobre os atos
delituosos da Ditadura do Estado Novo: “no dia 1 de maio de 1936, por volta
das 6 horas da manhã, eu me dirigia para uma casa sita na Ladeira do Castro,
não me recordo agora o número, à procura de um amigo cujo nome também não
retive por completo _ o farmacêutico Taciano _ e, ao bater na porta de seu
quarto, fui surpreendido com a presença de investigadores que lá se encontravam.
A porta foi aberta, naturalmente entrei e os investigadores me agarraram, tiraram
o cinto, os suspensórios e me fizeram descer, ainda agarrado pelo cós das calças,
pela Ladeira do Castro, acompanhado dos tiras, até um automóvel parado na Rua
75
MARIGHELLA, Carlos. Por que resisti a prisão. Op. cit., p.37.
68
do Riachuelo”
76
. No Presídio Especial, o homem que na década de 60 seria
qualificado pela propaganda oficial da ditadura militar como o chefe do terror dá
o seu relato: “As torturas a que fui submetido foram as seguintes: depois de
murros e pontapés e outros golpes que me aplicaram, fui queimado por todo o
corpo com pontas de cigarros que os próprios investigadores estavam fumando.
Além disso, o investigador Galvão tirou seu alfinete de gravata, que enfiou
debaixo de minhas unhas, deixando-as em sangue. Reuniram-se todos e, através
dos golpes chamados ‘chave de braço’, fui levado ao chão várias vezes, o que me
produziu um ferimento na testa como se pode verificar pela cicatriz que
apresento. Na Polícia especial, o espancamento durou até a madrugada. Cheguei
lá mais ou menos às 7 ou 8 horas da noite, e só de madrugada suspenderam o que
chamavam de sessão espírita”
77
. Marighella retornou mais vezes para as estranhas
“sessões espíritas”, o exaustivo relato de sua prisão é um exemplo de como a
repressão política foi desencadeada na História Política do país. Esta
constatação contribui para melhor análise sobre a trajetória de um militante
comunista e o cerceamento a que estava sujeito. No seu relato perante a
Comissão de Inquérito, Marighella procura detalhar todos os passos seguidos
pela polícia política, um detalhe curioso é que ele não se abate e procura mesmo
76
Comissão de Inquérito sobre Atos Delituosos da Ditadura. Ata da Reunião de 21 de Agosto de 1947. Editado em
“O Estudante Marighella nas prisões do Estado Novo”. Rio de Janeiro: Editorial Vitória Ltda., 1948.
77
Id., p.11.
69
agredir seus carrascos: “o Sr. Emílio Romano deu ordem, diante do fato de que eu
procurava reagir aos espancamentos, para que eu fosse algemado. E, assim, com
as mãos para traz e deitado de bruços na cama, fui espancado a canos de
borracha que me atingiram as costas, as nádegas e as solas dos pés”
78
.
O motivo das torturas, além do fato de ser comunista, era a revelação do
nome dos destinatários das cartas em poder de Marighella quando foi preso. Ele
mesmo ignorava o nome dos destinatários, como estratégia haviam sidos
escritos nomes falsos nos envelopes, o conteúdo eram documentos que
analisavam a conjuntura brasileira no governo Vargas, e seriam remetidos ao
exterior. Insistia a polícia em obter informações a respeito da localização da
oficina onde era impresso o jornal “Classe Operária”, periódico comunista. De
Marighella não se arrancou nada. Não se restringia, perante a Comissão, em
revelar outros casos de violência presenciados na Polícia Especial. Ao final de
sua exposição, o deputado Euclides de Figueiredo faz o seguinte
pronunciamento: “Não há perguntas a fazer, depois de exposição tão completa,
tão lúcida e feita com a responsabilidade de tão eminente colega”
79
.
Carlos Marighella será libertado em 15 de julho de 1937, com a concessão
de um habeas corpus. Daí vai para São Paulo onde ficaria aguardando o
78
Id., p. 13.
70
julgamento. O resultado da sentença foi a condenação a dois anos e meio de
prisão. Como não havia cumprido todo o prazo, Marighella cai na
clandestinidade até ser preso novamente em 1939. Este é um
acontecimento que veremos mais adiante.
Segundo Noé Gertel, Marighella foi para São Paulo para prestar assistência
política ao Partido Comunista. Vai com a intenção de eliminar um o foco
trotskista em São Paulo. Num rápido contato com Noé, em São Paulo,
Marighella descreve as dificuldades que havia passado no Rio de Janeiro, sem
contudo perder o humor que lhe era peculiar. Marighella, como tinha pouco
dinheiro, dividia o dinheiro para comprar o jornal “A Noite” _ o objetivo era ler a
coluna de Humberto Campos _ e reservava outra parte para comprar pão. Diante
das limitações chegou a dormir na praia de Copacabana
80
. O humor se fazia
presente mesmo nos momentos mais difíceis da militância.
Em 1937, é implantado o Estado Novo, era o fechamento do regime que se
desenhava desde a decretação da Lei de Segurança Nacional em 1935, que
culminaria no fechamento da ANL. O Estado Novo para alcançar legitimidade
“precisaria surgir como um gesto de defesa da legalidade, isto é, precisava de
respaldo político e social”
81
. Para tanto é forjado o Plano Cohen, pelo então
79
Id., p.19.
80
Cf. Depoimento de Noé Gertel.
81
PENNA, Lincoln. Op. cit., p. 204.
71
general Olímpio Mourão Filho. Tal plano “previa” uma insurreição comunista no
país. O nome Cohen procurava dar um caráter de complô internacional, nome
do suposto autor do documento. A farsa
orquestrada por Olímpio Mourão e denunciada a 30 de setembro pelo Ministro
da Justiça, Eurico Gaspar Dutra, serviria de base para a decretação do estado de
guerra, em 1º de outubro. Suspende-se as garantias constitucionais por noventa
dias e em 10 de novembro o país mergulha na
ditadura do Estado Novo.
De 1937 à 1939 Marighella vive clandestino em São Paulo. A
clandestinidade foi uma tônica presente na vida do personagem. A vida
clandestina, e não só de Marighella, mas de vários militantes do PC, bem como
de outros militantes no período do regime autoritário iniciado em 64, é um
capítulo para ser melhor conhecido na História do país. Ninguém cai na
clandestinidade porque deseja, o que a princípio parece uma evidência
incontestável. Entretanto, no caso específico de Marighella, a imprensa da
década de 60, quando se refere a sua trajetória no Partido Comunista, não mede
conseqüências. Vejamos: “Marighella já foi do Grupo de Pistoleiros ‘Comando
Suicida’ do Partido Comunista, formado por seus membros mais audazes,
especializados em missões quase impossíveis”. Ou ainda: “Quem é Carlos
Marighella? É um baiano de quarenta anos de comunismo, acostumado a
72
clandestinidade”
82
. Inverte-se a prioridade na tentativa de caracterizar uma
imagem negativa do personagem: clandestinidade não é um costume optativo, ela
é imposta pelas condições de determinado período, ou é a clandestinidade, ou a
prisão com torturas. Deve, portanto, ser contextualizada para que se tenha a
dimensão da luta dos militantes, e no caso de Marighella essa luta foi uma
constante.
Em 1939, Carlos Marighella foi novamente preso em fins de maio.
Conduzido de São Paulo para o Rio de Janeiro e daí o destino seria a Ilha de
Fernando de Noronha. Novo julgamento condena Marighella a sete anos e meio
de prisão. Nesse período, praticamente toda a direção do Comitê Regional do
Partido Comunista de São Paulo é presa. Na sua passagem pelo Presídio
Especial de São Paulo, em 1939, registra-se um poema em tom de desabafo, do
qual destacam-se duas estrofes:
“Pairando pelo espaço onde quer que pressinta
carniça, podridão, matéria decomposta,
essa ave original de cor preta e retinta
o cheiro da imundície alegremente arrosta”.
“Assim como o urubu há no alto muita gente
poderosa a fartar que, entanto, moralmente
só consegue viver à custa de carniça”
83
.
82
O Estado de São Paulo, São Paulo, 05 nov. 1969 e Jornal da Tarde, São Paulo, 23 nov. 1968.
83
MARIGHELLA, Carlos. Rondó da Liberdade. Op. cit. p. 22.
73
Entre 1939 e 1942, Marighella ficará detido na Ilha de Fernando de
Noronha, sendo transferido em 42 em razão do acordo entre Getúlio Vargas e os
Estados Unidos. O Brasil cedeu a ilha como base norte-americana, no contexto
da Segunda Guerra Mundial. Tanto na Ilha de Fernando de Noronha como na
Ilha Grande, a prisão não seria um refúgio para os detentos, ali estavam por
motivos políticos e a política também fazia parte do cotidiano.
Noé Gertel _ militante do Partido Comunista na década de 30 _ esteve
preso com Marighella na Ilha Grande. Foi detido no Rio de Janeiro, em 1940.
Noé afirma que no presídio da Ilha Grande encontravam-se presos políticos
das mais variadas tendências: integralistas, comunistas, um número considerável
de militares do Exército e da Marinha, que participaram da Aliança Nacional
Libertadora: trabalhadores, camponeses, intelectuais, analfabetos, enfim, pessoas
das mais variadas ascendências
84
. A organização dos comunistas dentro do
presídio se realizava através do Coletivo. O que era esse Coletivo? Regulavam a
relação com os guardas, a relação com o diretor, e o mais importante,
desenvolvia um trabalho cultural, educativo, esportivo e, como não poderia
deixar de ser, político entre os detentos. Era, em síntese, uma resistência dos
detentos, além de mantê-los com moral elevada.
84
Cf. Depoimento de Noé Gertel.
74
De acordo com Gertel, Carlos Marighella era um dos líderes do Coletivo
dos comunistas, e para fazer valer sua liderança não recorria a métodos de um
militante tradicional: “Marighella era um homem a quem os companheiros levavam
os problemas domésticos. Você via o Marighella conversando, às vezes, com um
companheiro, com um camponês, um ferroviário, um ex-cabo, um ex-marinheiro,
cuidando de problemas particularíssimos, ele ouvia, provavelmente aconselhava,
era muito ouvido por todos”
85
. O que mais chamava a atenção de Noé era o fato
de Marighella não ser uma pessoa experiente, não era um velho conselheiro, era
simplesmente um líder. Ao comparar Prestes a Marighella, Noé explica que a
diferença entre os dois se resume à intimidade, ou seja, entrar na intimidade com
Prestes era muito difícil, apesar de seu lado amável e cordial, fato que corrobora
a avaliação de Ana Montenegro. Com Marighella havia uma proximidade que
relegava o político a um outro plano, não desprezando-o completamente. Na
verdade, de nada adiantaria uma discussão política sem se levar em conta os
estorvos provocados com a prisão. Marighella sabia disto e procurava se
aproximar ao máximo das pessoas. Participava de várias tarefas, como a redação
de um jornal manuscrito, todo escrito, por ele, em letra de forma. No artesanato
era um dos que mais se destacava. Segundo Noé Gertel, os presos faziam um
trabalho artesanal a partir do coco. Ele explica que o coco tem um brilho próprio,
85
Idem.
75
mais forte que o verniz. Para se chegar a esse ponto é necessário retirar a casca e
lixar o coco até ir surgindo o brilho. Marighella era um dos artesãos de maior
destaque, gostava de copiar objetos da arte marajoara. Os presos possuíam um
livro de uma estudiosa da arte marajoara, Heloísa Torres, que servia de fonte
para o artesanato
86
. A utilidade desse artesanato situa ainda mais o grau de
organização dos presos. Esse artesanato era entregue aos parentes dos presos no
Rio de Janeiro para serem vendidos, com a permissão da direção do presídio.
Com o dinheiro arrecadado eram remetidos alimentos para a ilha, enriquecendo
assim a dieta dos presos. A direção do presídio fornecia apenas a alimentação
básica. O Coletivo é que teve a iniciativa de suplementar a alimentação. Além do
artesanato, cultivavam verduras e tudo o que pudesse para reforçar a alimentação
87
. Clara Charf acrescenta que durante a trajetória de Marighella na prisão, ele
adquiriu um calombo no ombro por trabalhar no transporte de água. Apresentava
também um problema na vista em decorrência de se dedicar ao artesanato, que
era praticado à noite, reservando o dia em outras tarefas
88
. Mesmo possuindo
uma liderança, Marighella não admitia privilégios, era ativo nas tarefas a serem
desempenhadas pelo Coletivo, não só ativo como um dos principais
incentivadores.
86
Idem.
87
Depoimento de Clara Charf colhido pelo autor em 03/11/1998.
88
Idem.
76
A resistência organizada pelo Coletivo dos comunistas é sem dúvida uma
das páginas mais dignas dos presos políticos brasileiros. Amenizava a agonia
dos prisioneiros, ocupando-os com diversas atividades. A vida, como a luta, de
alguma forma continuava. A educação e a política também estavam presentes no
cotidiano da prisão. Na educação desenvolveram a alfabetização, escolas,
universidades, palestras. Qualquer conhecimento de um companheiro seria
dividido com os demais. Marighella se destaca no ensino de matemática e
português, além de História do Brasil. Noé ressalva que Marighella era um dos
professores que mais se destacava
89
. O que não seria difícil de se constatar, haja
vista o seu passado nos estudos. Inclusive, no cárcere, Marighella não
abandonará um de seus hábitos mais vorazes: aprender línguas estrangeiras.
Do inglês e do francês, ele assimilou mais a grafia e o significado das palavras,
era um autodidata
90
. O mesmo se dá com o idioma grego. Clara Charf esclarece
que o grego era usado, posteriormente, em anotações para driblar a repressão
91
.
Na cultura, os prisioneiros elaboravam peças de teatro, onde Marighella atuava no
papel de turco.
As discussões políticas também eram elemento indispensável, afinal,
tratavam-se de presos políticos reunidos num Coletivo de comunistas. Mesmo
89
Cf. Depoimento de Noé Gertel.
90
Idem.
91
Cf. Depoimento de Clara Charf.
77
encarcerados na Ilha Grande, os prisioneiros recebiam notícias do mundo
exterior. No período de detenção na Ilha Grande, se desenrolava o conflito entra
as potências aliadas contra o nazifascismo. Um dos debates mais polarizados na
prisão é narrado por Noé Gertel: “o Partido se reorganizava com a chamada
Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), os comunistas levavam
para a cadeia os problemas que o Partido vivia aqui fora. O Partido ofereceu
colaboração no esforço de guerra. Era uma colaboração integral aqui fora. Lá
dentro começou a discussão: vamos colaborar trabalhando para o presídio? Uma
parte achava que sim, seríamos igual a preso comum. Outra parte, dirigida pelo
Marighella, achava que não, isso jamais. A conversa que eu tive com o
Marighella foi essa, quando essa coisa estava quente, eu disse: _ ‘Marighella,
isso pode levar a uma cisão’. Minha preocupação era unidade. Ele disse com
toda clareza: _ ‘Vai levar a uma cisão’. O impasse se fazia presente e
Marighella, na noite em que é eleito presidente do Coletivo vai tomar uma posição
decisiva sobre a questão. Prossegue Gertell: “Marighella perguntou a um por um,
foi de cubículo em cubículo: _ ‘Tá com o Coletivo ou está com a casa’? E
dependendo da resposta: _ ‘Fora’! Os camaradas arrumavam as malas e iam
embora, iam pedir para o diretor do presídio arranjar alojamento. Não foi nem a
metade”
92
. A decisão de Marighella é objetiva, para ele o contato direto entre
92
Cf. Depoimento de Noé Gertel.
78
presos e guardas poderia gerar atrito. Uma garantia conquistada pelo Coletivo
junto a direção do presídio, valendo-se de muito esforço, incluindo aí greve de
fome. O Coletivo havia conquistado para si a relação entre os prisioneiros com a
direção e os guardas. Caso contrário, Marighella temia que o Coletivo perdesse a
autoridade
93
.
O combate ao nazifascismo, durante a Segunda Guerra Mundial, não se
restringiu à política. No esporte tinha competição envolvendo comunistas e
integralistas. As modalidades eram natação, vôlei, corrida e futebol. Os
comunistas garantiram a vitória em três delas, excetuando a corrida. Marighella
sempre manteve interesse particular sobre exercícios físicos, na cadeia não será
diferente, participará sobretudo do futebol, de preferência descalço, jogando na
posição de zagueiro
94
.
As prisões de 1932, 1936 e 1939, não condenam Marighella ao ostracismo.
Em 36, ele se destaca pela valentia diante das torturas. Mais tarde, vai se
caracterizar por uma atuação determinada no objetivo de manter acesa alguma
esperança com os demais prisioneiros. Era preciso se organizar para demonstrar
que a prisão não aniquilara os ideais políticos. Apenas se organizar não
significaria nada, era essencial participar ativamente do cotidiano dos presos,
ampliar o contato com as pessoas, entrar na
93
Idem.
79
intimidade. Marighella poderia restringir-se a uma liderança fundamentalmente
política e deixar que cada um buscasse forças próprias para suportar as
inconveniências de uma prisão. No entanto, ele escolhe outro caminho. Prefere
praticar esportes, fazer artesanato, lecionar, fazer jornal, tudo dentro dos limites
precários que envolvem uma prisão, e quando necessário atuar diretamente na
política também estará presente. Mesmo porque também era um dos presos.
O PC, durante o período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), alterna
uma situação de desestruturação política e retorno a legalidade. Até 1940, há a
prisão de suas principais lideranças, era a repressão desencadeada pelo Estado
Novo. Após a Segunda Guerra, a redemocratização estava em pauta no mundo
ocidental. A derrota imposta aos regimes totalitários, com a participação da
Força Expedicionária Brasileira, na Itália, criava uma contradição na política
interna brasileira. Desde 1937, o país era governado por uma ditadura tendo a
frente Getúlio Vargas. Esse período será marcado, economicamente, pela
implantação da industrialização de base no país, com a criação da Companhia
Siderúrgica Nacional. No plano político, os acontecimentos da primeira metade
dos anos quarenta vão ser marcados por uma interrelação com a política externa
e a sustentação de uma base política populista, onde Vargas vai inserir a
Consolidação das Leis do Trabalho. O Partido Comunista começa a se
94
Idem.
80
reorganizar através da Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP),
da qual Marighella fazia parte, juntamente com Maurício Grabois, Arruda
Câmara, Giocondo Dias, entre outros. A posição tomada pela CNOP implicava
no apoio ao governo no esforço de guerra. O inimigo era comum: o
nazifascismo. A CNOP culmina na Conferência da Mantiqueira, realizada em
agosto de 1943, em Barra do Piraí, na região do Vale do Paraíba, reafirmando a
posição de apoio interno e externo ao governo Vargas. Valia-se o PC do
prestígio proveniente da intervenção direta da União Soviética na derrota alemã.
A participação de alguns militantes na CNOP era impossível porque estavam
detidos, como é o caso de Marighella e Prestes. Nesta Conferência, Carlos
Marighella é eleito membro do Comitê Nacional do Partido Comunista. Em 45, o
país caminha em direção a redemocratização, no mês de abril é decretada a
anistia aos presos políticos e o Partido Comunista volta a atuar na legalidade: “O
PC cresce de modo excepcional com a legalidade de 45. Pela primeira vez em
sua história torna-se um partido de massas. O número de aderentes e de
simpatizantes aumenta de maneira extraordinária.. A vitalidade demonstrada é
sinal dos novos tempos, tempo em que o Partido lança seus próprios candidatos
para o Congresso Nacional e para a presidência da República. A eleição de 3 de
janeiro de 1946 leva ao Congresso Constituinte um Senador (Prestes) e 14
deputados; no pleito para as Assembléias estaduais Constituintes, em 1946, há
81
comunistas eleitos na maioria dos Estados”
95
. Carlos Marighella é eleito
deputado constituinte pela Bahia com 5187 votos. Na campanha eleitoral
constava um panfleto com a prova em versos realizada no Ginásio da Bahia
sobre Catróptica, que havia contribuído para sua notoriedade no tempo de
estudante. Para Gorender na legalidade de 45 “o PC se iludiu pela aparente
concórdia internacional reinante no breve lapso entre a derrota do Eixo
nazifascista e a deflagração da Guerra Fria”
96
e adotou uma política de “trivial
pacifismo”, fundamentada na aliança com a burguesia progressista. Mais tarde, a
7 de maio de 1947, o PC teria seu registro cassado e em janeiro do ano seguinte
eram cassados os mandatos dos deputados comunistas.
A participação de Carlos Marighella no Congresso Nacional foi marcada
por grande número de discursos. Foram 195 em dois anos de mandato. Mas, a
intensidade com que o deputado atuava no Congresso
Nacional não o tornara um burocrata da política. Os comunistas tinham uma
Assessoria Parlamentar com a função de auxiliar os deputados na elaboração de
seus discursos no parlamento. Era uma única assessoria para todos os deputados
do Partido Comunista, ali eram pesquisados todos os assuntos a serem
abordados no Congresso, funcionários das mais variadas funções se revezavam
no trabalho de assessoria. Não existia uma assessoria particular para cada
95
CARONE, Edgard. O PCB (1943-1964). São Paulo: Difel, vol. 2, 1982.
82
deputado, como vigora hoje. Marighella era o responsável pelo trabalho da
assessoria. Clara Charf foi trabalhar nesta assessoria quando o Partido já tinha o
seu registro cassado. Clara expressa a atuação de Carlos Marighella no
Congresso como um deputado que não era de gabinete. Era o tipo de deputado
que mantinha contato com a população, conforme é atestado pela existência de
fotos que registram Marighella sentado numa linha de trem conversando com
ferroviários
97
, o que a princípio não era um fato comum entre os deputados.
Era um porta-voz das reivindicações mínimas e máximas dos trabalhadores e do
povo em geral, recebendo cartas e denunciando as injustiças sociais por que
passavam. Clara ressalva que isso não significa que ele fosse o único deputado a
apresentar-se dessa maneira. Quanto aos discursos pronunciados no Congresso
Constituinte, Marighella possuía uma velocidade muito grande
ao falar, parecia uma metralhadora. As taquígrafas, muitas vezes, não conseguiam
registrar certos trechos de seus pronunciamentos, sendo comum após as sessões
requererem junto ao deputado Marighella possíveis correções ou inclusões
desses trechos. Clara Charf manifesta ainda o conteúdo dos discursos de
Marighella pautado na contestação e nas reivindicações dos trabalhadores, onde
o deputado lia telegramas denunciando e levando ao conhecimento do plenário as
mais diversas situações e irregularidades. Numa Sessão em 2 de abril de 1947,
96
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1998.
83
Carlos Marighella levanta uma questão sobre a ordem de despejo autorizada pelo
juiz Nicolau Barros, em Salvador, que atingia a comunidade do bairro
denominado Corta-Braço. Marighella lê o telegrama denunciando a situação dos
moradores: Deputado Carlos Marighella _ Palácio Tiradentes _ Rio DF _ Rua
da Glória 52 _ de Salvador:“Moradores Corta Braço ocupantes mil e tantas casas
virtude mandato de despejo estão ameaçados ser postos na rua sem nenhuma
esperança abrigo; neste meio estão mulheres baianas todas classes sociais
solicita ilustre deputado denúncia Nação essa situação de angústia milhares
pessoas...”
98
.
O telegrama vem em nome da União Democrática Feminina da Bahia e é
assinado por Mariana Pedreira, presidente da instituição. O mandato impetrado
pela justiça atendia ao proprietário, de nome Pelozzi, que se recusara a aceitar o
pagamento de aluguel proposto pelos moradores da área
ocupada no Corta-Braço. Após expor a situação dos moradores, Marighella
passa a tecer suas considerações finais: “Espero Srs. Deputados, que feita a
reclamação que me competia como representante do povo baiano, o interventor,
Sr. General Cândido Caldas e o Prefeito da cidade tomem as providências
97
Ver anexo Iconográfico, p. 336.
98
ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS FEDERAIS (Brasil). Diário do Congresso Nacional. Discurso de
Carlos Marighella proferido em Sessão Parlamentar, maio 1947, p.176.
84
necessárias, fazendo sustar as medidas de repressão contra os moradores de
Corta-Braço e, ao mesmo tempo, proporcionando meios não só para que essas
famílias se mantenham nos casebres já ali construídos, mas também para que
possam melhorar os mesmos casebres”
99
. Em sessão posterior, em 25 de abril de
1947, Carlos Marighella comunicava ao Congresso Nacional a solução do
problema envolvendo os moradores baianos pelo então eleito governador
Octávio Mangabeira, que considerou o terreno ocupado como de utilidade
pública, mantendo assim os moradores no local.
Nos debates parlamentares aflora uma característica que explica, em parte,
a grande quantidade de discursos do assíduo deputado Carlos Marighella.
Quando assumia a palavra na tribuna Marighella procurava conduzir seus
discursos sem procurar deixar qualquer dúvida a respeito do que expunha. A
“metralhadora” girava por todos os lados da matéria a ser tratada, sendo o
deputado várias vezes interpelado pelo presidente da mesa para que concluísse
seu pronunciamento. Entretanto, Marighella, sempre procurava estender um
pouco mais o tempo que lhe era de direito, em alguns momentos contava com o
aparte de outros deputados, o que facilitava ainda mais seus planos. Os
argumentos eram minuciosamente expostos, sendo difícil contestá-lo. Na Sessão
do dia 2 de abril de 1947, Marighella antes de tratar do assunto envolvendo os
99
Idem, p. 176.
85
moradores do bairro Corta-Braços, havia debatido um tema relacionado com a
majoração de taxas na Universidade do Brasil, como a taxa de matrícula e
freqüência. Marighella argumenta que os estudantes além de conviverem com os
gastos de livros e material didático ainda iriam arcar com o aumento. Se não
bastasse denuncia a má remuneração do professorado brasileiro, como ponto
também a ser observado pelos demais deputados. Adiante, avalia a questão
propondo que as taxas cobradas aos estudantes fossem mínimas, “senão de
todo abolidas”
100
. Por fim encaminha um projeto de lei para que seja liberado um
crédito suplementar em nome da Universidade do Brasil, no valor de três milhões
de cruzeiros, que era a moeda da época. Após expor o projeto de lei, e já no final
de sua exposição, Marighella entra com a questão do mandato de desapropriação
expedido na Bahia. Prosseguindo em seu discurso, Marighella é advertido pelo
presidente da sessão que seu tempo está esgotado, polidamente agradece o alerta
e prossegue sua prosa.
Em outra sessão discursa sobre o fechamento do Partido Comunista.
Marighella adverte que este seria o caminho mais curto para “o pedido de
providências reacionárias, como a cassação das imunidades e dos próprios
mandatos dos representantes comunistas”
101
. Na mesma sessão Marighella trata
da inserção do imperialismo norte-americano em setores estratégicos da indústria
100
Idem, p. 174.
86
brasileira, como a usina siderúrgica de Volta Redonda. Expõe o deputado: “a
comissão de técnicos que lá esteve, incumbida de ensinar aos operários
brasileiros os segredos da siderurgia, ao esgotar-se o prazo estipulado nos
contratos, chegou a uma solução que não pode, em hipótese alguma, servir aos
interesses nacionais, isto é, os técnicos brasileiros, formados por essa
comissão, tiveram de ser despedidos, para que outros
operários, formados por essa comissão, fossem admitidos e recebessem
novamente instruções dos norte-americanos, que por este meio, conseguiram
renovar seus contratos, permanecendo, ainda, dentro do Brasil, de onde já deviam
ter se retirado”
102
. Ainda sobre o imperialismo, Marighella discorre sobre a
indicação de técnicos norte-americanos para
elaborarem projetos de lei referentes ao petróleo. Os técnicos indicados pela
embaixada dos Estados Unidos no Brasil pertenciam a Standard Oil Company of
Brazil, era o mesmo que colocar raposa para tomar conta de galinheiro. A
nomeação fora atendida pelo governo Dutra e, diante de tal fato, Marighella
indaga: “não compreendo, Sr. Presidente, como para fazer projetos de lei, o
governo tenha de encomendar técnicos à Standard. Se isto não é prova de que o
imperialismo norte-americano está interferindo na vida do país, então não sei o
que é imperialismo, nem o que é dignidade dos representantes do povo, nem
101
Op. Cit. Discurso de Carlos Marighella proferido em Sessão Parlamentar, jun. 1947, p.462.
87
soberania de uma assembléia como esta, em que temos assento”
103
. Tema atual,
como a utilização da energia nuclear, será objeto dos debates proferidos por
Marighella. Em 1º de julho de 1946, onde se discutia a experiência nuclear
americana no atol de Bikini, o deputado baiano não perde a oportunidade de
manifestar a oposição da bancada comunista a tal fato e faz um alerta: “a energia
atômica deve ser colocada a serviço da paz e do progresso da humanidade,
constituindo patrimônio científico de todos os povos do mundo; e não
deve ser ela
utilizada como arma de guerra, a serviço de grupos ou de governos já que assim
se desvirtuaria a finalidade da ciência, deixando de ser a energia atômica fonte de
desenvolvimento dos povos, para constituir um terrível fator de destruição e,
certamente, de opressão”
104
. A pluralidade de temas discutidos na Câmara dos
Deputados torna Marighella um dos mais combativos parlamentares. Fato
reconhecido até mesmo por seus adversários políticos. Anos mais tarde, a
revista Veja circula numa edição histórica com Marighella na capa. A
reportagem descreve a trajetória política de Marighella sempre de modo
superficial, com o exclusivo objetivo de caracterizar a imagem negativa que o
perseguia. Quando fala da atuação do deputado baiano prefere exaltar a
102
Idem, p. 463.
103
Idem.
88
quantidade de discursos, sem contudo se esmerar no conteúdo. Destaca a
revista que “até ser cassado, Marighella continuou falando quase todos os
dias”. Mais adiante, ao comentar a cassação do mandato dos comunistas, a
reportagem não mede conseqüências: “Marighella saiu dos salões brilhantes da
Câmara para os quartos escuros da clandestinidade”
105
. Fica implícita a intenção
de propor uma linearidade na trajetória de Marighella conciliada a uma intensa
agitação, sem analisar a conjuntura do país e dos fatos narrados. Pode-se
contrapor a esse episódio o fato da censura vigorar com toda a sua força, mas,
no entanto, isso não retira o esforço da ditadura em associá-lo o quanto mais a
uma imagem extremamente perigosa e violenta.
Nos comícios que o levaram a Câmara dos deputados, Marighella tinha o
hábito de não preparar os discursos previamente, eram todos ligados a princípios
básicos e práticos do Partido Comunista, como a unidade dos trabalhadores do
campo e da cidade. Ana Montenegro, que conviveu com Marighella nesse
período, afirma que nunca presenciou uma preparação prévia
106
. Essa
característica estará presente também na Câmara dos deputados. Se Marighella
fosse preparar todos os discursos que fez no Congresso não haveria tempo
suficiente para complementar a tarefa. A partir do trabalho da Assessoria
104
CAMARGOS, Márcia. Um Constituinte Atuante. Unidade (Órgão Oficial do Sindicato dos Jornalistas
Profissionais no Estado de São Paulo), São Paulo, nov. 1987, nº 9, p. 7.
105
VEJA, 20 de nov. de 1968, nº 11, p. 16.
89
Parlamentar ele reunia informações básicas, um ou outro documento a ser lido no
plenário e partia para o plenário. Clara Charf ressalta que Marighella tinha o
hábito de elaborar discursos, organizar as idéias caminhando. A caminhada,
reafirma, era uma atividade das que mais gostava
107
.
A trajetória política de Carlos Marighella não o afastaria do contato com
mais íntimo com as pessoas. Um exemplo desse contato cotidiano é
relatado pelo professor Marcos Paraguassu de Arruda Câmara, o Marcucha, filho
de Diógenes Arruda, militante histórico do Partido Comunista. Diógenes Arruda
foi eleito deputado constituinte por São Paulo, em 1948, e a partir daí sua família
se transfere para o Rio de Janeiro. Marcucha, se recorda do nome do edifício
que moravam no Leme: Majoí. No apartamento em que residia a família Arruda
era extremamente comum a presença dos companheiros da fração parlamentar do
Partido. É evidente que uma criança de seis anos não possuía ainda
discernimento sobre o motivo daquelas visitas freqüentes. Mas nem por isso
deixaria de notá-los. A curiosidade de Marcucha o levou a espionar os encontros
a seu modo. O local preferido dos militantes, dentro da casa, era exatamente o
quarto onde dormia Marcucha e sua avó. Esse quarto era dividido por um
guarda-roupas, ficando do outro lado o quarto de seus pais. Como o acesso ao
recinto se restringia aos militantes do Partido, Marcucha subia no guarda-roupa
106
Depoimento de Ana Montenegro colhido pelo autor em 6/11/1998.
90
para ouvir o que estava se passando no outro lado. Mesmo sem entender o que
discutiam o prazer de bisbilhotar as reuniões se repetiu algumas vezes, até que
uma queda improvisada denunciou o espião, que levou uma tremenda bronca.
Dos que participavam desses encontros, alguns entravam na casa,
cumprimentavam ligeiramente os moradores e logo se trancafiavam na reunião.
Como Explica Marcucha: “entravam sisudos e sisudos saíam _ Boa tarde! , Boa
Noite! Nenhuma conversa, nenhuma aproximação além da reunião”
108
. Outros
mais descontraídos apresentavam comportamento mais amistosos, é o caso de
Pedro Pomar, Apolônio de Carvalho e Carlos Marighella. Entravam na casa e já
iam ao encontro de Haydée Santos, mais propriamente dona Caçula _ a avó de
Marcucha. Abraçavam-na e perguntavam pelos seus doces e bolos. A respeito de
Marighella há uma recordação especial. Marcucha, aos seis anos de idade,
adquiriu uma pleurisia _ doença relacionada a inflamação na pleura _ provocada
por uma pneumonia mal curada. A doença, na época, tinha sua cura
condicionada à importação de antibióticos extremamente difíceis de serem
encontrados. Com a ajuda dos companheiros do Partido Comunista foi possível
adquirir doses de estreptomicina _ antibiótico de alta eficácia no combate a
doenças infecciosas. Marcucha sofria com as doses diárias do antibiótico,
que deveriam ser aplicadas de quatro em quatro horas. Chegou ao ponto de não
107
Cf. Depoimento de Clara Charf ao autor.
91
saber mais qual região do corpo que não havia sido picada. Carlos Marighella
_então deputado constituinte _ se prontificava a substituir os pais de Marcucha
na árdua tarefa, que era efetuada de modo descontraído, conforme narra
Marcucha: “cada aplicação era motivo de choros e lamentações, uma verdadeira
novela que Marighella sabia muito bem como contornar. Com jeito, começava a
me contar histórias, e quando me distraía, - zás -, de repente, aplicava as
injeções. Estas histórias ficaram gravadas na minha memória. Eram histórias de
um enfermeiro, ao qual Mariga dava o nome de Dr. Fragoso, que chegava na
casa dos doentes montado em uma mula _ a mula manca. Andava quase sempre
com uma seringa enorme e, às vezes, uma pasta”
109
. Marighella distraía o garoto
contando histórias e desenhando. A mula manca tinha orelhas enormes, juntas
largas, grandes patas. Marcucha indagava se o tal doutor não chegava atrasado
na casa dos pacientes. Marighella explicava que era assim mesmo, a mula sempre
empacava e o Dr. Fragoso, nervoso, brigava com ela. A mula era engraçada,
dava coices entre risadas e rinchos. Jogava o Doutor muitas vezes no chão.
Distraído Marcucha era pego de surpresa pela dose de estreptomicina
110
.
Outro episódio que Marcucha relembra de Marighella é a organização de
um bloco de carnaval, cujos participantes eram membros do Partido e seus
108
Depoimento de Marcos Paraguassu colhido pelo autor em 5/11/1998.
109
Idem.
110
Idem.
92
familiares. O Bloco da Mula Manca saía com estandarte, marchinha e tudo.
Marcucha brincou carnaval pela primeira vez nesse bloco, fantasiado
de pirata da perna de pau, ele relembra um verso: “não importa que a mula
manque / Eu quero é rosetar”. A concentração era na Glória, em frente a sede do
Partido Comunista, isso no período da legalidade, mais propriamente entre 46 e
47. Marighella não era apenas um coadjuvante, mas sim um autêntico folião,
coordenando a animação, convocando os companheiros e elaborando
paródias
111
. Jacob Gorender afirma ter ouvido relatos da participação Marighella
no carnaval do Rio de Janeiro em 1946: “saiu fantasiado e fazendo brincadeiras
de rua”
112
.
Os exemplos expostos pelo professor Marcos Paraguassu são vitais para
elucidar a conciliação da vida política com o cotidiano. Mesmo nos limites da
atuação como deputado, Marighella procurava vivenciar prazeres comuns a
qualquer pessoa, como o carnaval. Não interessava a referência conquistada
dentro do Partido Comunista, isso não criava nenhuma barreira para estar atento
a questões menos rebuscadas. O fato de colaborar na aplicação das injeções em
Marcucha poderia passar desapercebido, afinal questões muito mais amplas
motivariam a presença dos comunistas nas reuniões. Em Marighella situações
93
como essa eram, naturalmente, uma maneira solidária de retribuir a vida o
valor que ela merece, muito embora
nem sempre a solidariedade é uma característica essencial do militante político de
esquerda comunista. Os temperamentos são distintos, mas há os que cultivam a
solidariedade. Ana Montenegro enfatiza que uma das impressões mais
marcantes que teve de Marighella foi a simplicidade com
que ele se autodefinia. Intrigava-a quem seria aquele baiano folgazão que tanta
resistência oferecera na prisão, dedicava a vida ao socialismo, sofrendo ameaças,
passando por clandestinidade. Marighella respondia que se considerava um
mulato baiano, não apenas fisicamente, mas também por dentro. Ou seja, uma
pessoa como outra qualquer, sem a mínima questão de fazer valer o prestígio
que ele sabia que detinha. Para Ana Montenegro o que fazia com que Marighella
cativasse as pessoas era justamente sua capacidade de comunicar-se por inteiro
com as pessoas, ou seja, ir além da superficialidade. Para ela as pessoas que
conviveram com Marighella gostavam dele por um motivo básico: por ele não ter
empáfia de personalidade
113
.
É evidente que o personagem não deve ser visto como uma divindade
imune aos pecados de qualquer mortal. Na análise de sua trajetória política certas
111
Cf. Depoimento de Marcos Paraguassú.
112
Depoimento de Jacob Gorender colhido pelo autor em 07/12/1998.
113
Cf. Depoimento de Ana Montenegro.
94
particularidades de seu lado humano são elucidativas, apontam para um
personagem que se norteava pela teoria e a prática, não se enquadrava apenas
como militante orgânico do Partido. Do estudo que fez sobre os gregos
Marighella apreendeu um princípio que o acompanharia ininterruptamente. Ana
Montenegro participava da Comissão de Massas do Comitê Central do PC, no
Rio de Janeiro. Ana vivia atormentada, temendo o esvaziamento da Comissão.
Aconselhada por Marighella, ela preparou um programa, definiu mais claramente
os objetivos e passou a aplicá-los, atingindo o que desejava. A orientação de
Marighella estava centrada num fato político, a questão da Comissão de
Mulheres do Partido, mas ilustra um dos traços mais marcantes de sua trajetória.
Diante do dilema de Ana Montenegro, Marighella alerta: “A prática é o critério da
verdade”
114
. Não bastaria programar uma comissão, traçar planos sem levar à
prática política, ao contato direto com as pessoas. Não bastaria ser um quadro
do Partido Comunista, era preciso estar atento as dificuldades do dia-a-dia
enfrentadas pelos demais militantes. Atuar nas fronteiras do político não
significaria excluir qualquer questão comum do cotidiano, Marighella não tinha
essa rigidez. Talvez por ser tão expansivo expôs-se demais, principalmente na
fase posterior, da Ação Libertadora Nacional, mas esse é um tema a ser analisado
114
Idem.
95
mais adiante. Por ora retornemos a conjuntura política no desenrolar da década
de 40.
As eleições presidenciais de 1945 levariam ao poder Eurico Gaspar Dutra,
derrotando a candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes. O PC, de uma
alternativa inicial propondo constituinte com Getúlio, viu seu projeto ir por água
abaixo quando Vargas é deposto, em 29 de 0utubro de 1945. Lançou a
candidatura do engenheiro Yedo Fiúza. A eleição de 14 deputados e um senador,
entre eles Luís Carlos Prestes, ilustra a força política que os comunistas
representavam nesse período. O General Dutra fora o mesmo que articulara a
farsa do Plano Cohen, o que criou um pretexto para a decretação do estado de
guerra e mais tarde o fechamento do regime através da implantação do Estado
Novo. No plano político, todo o potencial reunido na redemocratização daria
lugar aos efeitos da Guerra Fria. Para o Partido Comunista isso significaria a
cassação do seu registro, a 7 de maio de 1947, e o mandato dos deputados e do
senador Prestes, em 7 de janeiro de 1948. Gorender destaca a participação do
PC nas eleições de 1945 como um dos motivos que levaram à perseguição ao
Partido: “o PC tinha _ durante o período da legalidade _ habitualmente, cerca de
dez por cento da votação nacional, foi a sua primeira votação na primeira eleição
de dezembro de 45. Em algumas cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, o
PC tinha uma votação que ia bem além dos dez por dento. No Rio de Janeiro em
96
50 vereadores o PC fez 18; 11 em 30 e poucos em São Paulo, um terço por
conseguinte. Isto é que levou as forças conservadoras e reacionárias a armarem
aquele processo que culminou na cassação do registro do PC, do registro legal,
na cassação do mandato dos parlamentares e o Partido voltou a ser ilegal,
clandestino, embora muito de seus militantes pudessem atuar legalmente”
115
.
Em Agosto de 1947 saiu o primeiro número da Revista Problemas, cuja
direção era responsável Carlos Marighella. Uma revista que contava com a
participação das principais lideranças do Partido Comunista, abordando temas
relacionados à conjuntura nacional e internacional. Às vezes priorizando em
excesso a conjuntura internacional, o que será reconhecido por Marighella
quando a revista completa um ano de circulação
116
. Não se limitava a revista a
artigos de militantes nacionais, como também era extensiva a figuras do
movimento comunista internacional, sendo comum artigos de Stálin, Tito, entre
outros, ou pelo menos a tradução de seus textos. Marighella, durante o período
em que dirigiu a revista, ocupava, com raras exceções, a coluna denominada
“Nossa Política”. Uma espécie de análise conjuntural dos últimos acontecimentos
ao nível internacional e nacional. Em algumas ocasiões é possível encontrar
discursos de Carlos Marighella na Câmara dos Deputados ocupando esta coluna.
Num desses artigos, da edição referente a janeiro de 48, Marighella após fazer
115
GORENDER, Jacob. Entrevista. Revista da Bahia, Salvador, nov. 1988, p.16.
97
uma breve exposição sobre a bipolaridade da Guerra Fria, identificando a União
Soviética como nação expoente da democracia e do antiimperialismo, e os
Estados Unidos como artífice da antidemocracia e do imperialismo, passa a
relatar a situação pela qual o governo Dutra vai desenvolvendo a política de
coerção das forças democráticas no país. Marighella afirma que no Brasil a
correlação de forças, daquele momento, era brutalmente a favor da reação, ou
seja, do latifúndio e do imperialismo
117
. A partir daí situa as medidas
antidemocráticas tomadas pelo governo Dutra, como: “o fechamento da
Confederação dos Trabalhadores do Brasil, do Partido Comunista e da União da
Juventude Comunista; rompidas as relações com a União Soviética,
empastelados e atacados a tiros ‘O Momento’, a ‘Tribuna Popular’, o ‘Hoje’ _
três dos mais combativos órgãos da imprensa popular”. Prossegue o artigo
chamando a atenção para os recursos legais utilizados pelo governo Dutra que
culminariam na cassação dos mandatos comunistas em todos o país:
“Ressuscitou-se a Lei de Segurança Nacional do Estado Novo, prendem-se e
condenam-se jornalistas com essa lei caduca dos tempos do fascismo,
reprimem-se a bala os comícios, decretam-se intervenções em sindicatos, que
são controlados pela polícia. Por último, cassam-se os mandatos dos
parlamentares comunistas e são por este meio expulsos das assembléias
116
MARIGHELLA, Carlos. Nossa Política. Revista Problemas, Rio de Janeiro, ano 2, nº 12, p. 1-3, jul. 1948.
98
legislativas do país 78 representantes do povo”
118
.O artigo avança em direção a
uma autocrítica, onde Marighella atribui parte da situação deflagrada ao próprio
Partido, quando diz: “não organizamos o movimento de massas; nosso
movimento sindical é muito débil”
119
. E conclui defendendo a formação de uma
frente democrática “com forte apoio de amplas organizações de massa”
120
, para
se chegar a verdadeira democracia. João Amazonas era membro do Comitê
Central do Partido Comunista juntamente com Marighella, e é dele a informação
que se segue, onde podemos compreender pouco da impetuosidade de
Marighella diante da repressão do governo Dutra: “as sedes e os jornais do
Partido eram freqüentemente invadidos por agentes da repressão. Muitas vezes
Marighella cumpria a dura tarefa de exigir a retirada dos policiais armados até
os dentes. Homem forte e valente, não raro respondia à pancadaria com socos e
pontapés nos esbirros policiais”
121
.
O governo Dutra voltaria a sofrer fortes ataques do líder comunista. Um
ano mais tarde, em janeiro de 49, Marighella aponta o déficit orçamentário
calculado em 1.300.000 cruzeiros, moeda da época. Para cobrir esse déficit
Marighella denunciou o governo, que recorrera ao aumento de impostos e a
117
MARIGHELLA, Carlos. Nossa Política. Revista Problemas, Rio de Janeiro, ano 1, nº 6, p. 1-5, jan.1948.
118
Id., p. 3.
119
Id., p. 4.
120
Id., p. 5.
121
Depoimento de João Amazonas a Emiliano José, s/d.
99
emissão de moeda, gerando mais sacrifício para a classe trabalhadora. Ele
explica que “o custo da alimentação elevou-se em cerca de 342% desde 1939, só
para a capital de São Paulo”
122
. Estende seu artigo acusando o governo
brasileiro pelo destino, em seu orçamento, de “38% das despesas para gastos
militares”, normalmente usados para adquirir equipamentos junto aos Estados
Unidos
123
. Em 47, a revista Problemas traz um pronunciamento do deputado
Carlos Marighella no Congresso, retroativo ao dia 4 de julho de 1946, que trata
da Religião, do Estado e da Família. Sobre a questão da família, Marighella
particulariza a situação da mulher dentro do mercado de trabalho, ou “dentro
da produção social”
124
. Para o parlamentar, o homem era o “único que está a
trabalhar ligado à produção e que sustenta a família e, por isso, se acha com o
direito de fazer todas as imposições sobre a mulher”
125
. Regra geral os artigos
de Marighella eram arrolados à conjuntura nacional e as posições defendidas pelo
Partido Comunista.
Na clandestinidade, após a cassação dos mandatos, Marighella passa a
atuar em São Paulo. A vida clandestina, por si só, implica uma série de medidas
de segurança, que alteram por completo a vida dos militantes. Todo cuidado é
pouco. No fim de 49, Marighella atuava como Secretário Político do Partido em
122
MARIGHELLA, Carlos. Nossa Política. Revista Problemas, Rio de Janeiro, ano 2, nº16, p. 3-11, jan. 1949.
123
Id., p. 4.
100
São Paulo, e teve um ponto com um jovem militante revolucionário. Ponto era o
local onde os militantes marcavam seus contatos, poderia ser numa rua, dentro
de um carro, ou num apartamento, numa residência qualquer, denominada
aparelho. Naquele ponto, em plena clandestinidade, com vários assuntos
políticos a serem tratados e a polícia cercando os comunistas, Marighella ouve
atentamente o jovem militante narrar problemas pessoais. O jovem estava
namorando uma operária tecelã e temia revelar seu envolvimento político.
Marighella sugere que ele estude a situação e exponha a verdade à namorada.
Num ponto posterior os dois voltam a tratar do assunto. A namorada
compreendeu o rapaz, ambos se casariam e ela impôs uma condição: só se
casava mediante a compra de móveis de quarto. Marighella ria da situação e
pacientemente procurava auxiliar o rapaz. O empecilho não acabou por
completo. O casal deveria se transferir de São Paulo e a noiva só iria acompanhar
o militante se os móveis de quarto fossem junto. Marighella, mais experiente,
explicaria que não haveria problema algum, era só retirar os móveis, deixar
temporariamente num depósito, depois seria encaminhado ao seu destino final.
Isso funcionaria para ludibriar a polícia
126
. Este é outro exemplo que serve para a
dimensão humana de Marighella. Acima das questões envolvendo o Partido e o
124
MARIGHELLA, Carlos. A Religião, O Estado, a Família. Revista Problemas, Rio de Janeiro, ano 1, nº2, p. 20-34,
set. 1947.
125
Id., p.32.
101
momento duro da clandestinidade, a prioridade poderia ser, resolver primeiro,
essa questão pessoal. Marighella certamente teria motivos de sobra para não se
envolver em questões pessoais de outros militantes, mas sabia que a luta exige
sacrifícios muitas vezes ignorados pela insensibilidade das pessoas. Além de
recusar a empáfia de personalidade, Marighella também tinha o hábito de tornar a
militância menos superficial e mais solidária.
Geraldo Rodrigues dos Santos, o Geraldão, como é conhecido, filiou-se
ao Partido Comunista em maio de 1945, após ser demitido da Companhia das
Docas de Santos, uma empresa que explorava o porto. Atuava no sindicato dos
portuários e vinha se destacando em sua atividade. Conheceu Marighella em
1945, mas só estreitou esse contato cinco anos mais tarde. Marighella passa a
atuar na direção estadual do Partido em São Paulo. Em 1950, Ramiro Luchese,
dirigente ferroviário, manteve contato com Geraldão, em Santos. O contato inicial
se resumia ao convite a Geraldão para ser militante revolucionário. Ele alega que
não compreendia muito essa idéia de ser revolucionário profissional, o que sabia
era que vinha trabalhando a vida toda. Geraldão acabaria por integrar a Sessão
Sindical do Comitê Estadual do PC, em São Paulo. A empatia com Marighella
surgiu logo no primeiro contato. Geraldo qualifica essa empatia pelo fato de
Marighella tê-lo deixado à vontade. Em contrapartida, a maioria dos dirigentes do
126
Cf. Depoimento de Clara Charf.
102
Partido só tratavam das questões do Partido, não se conversava sobre outras
questões. Geraldo foi membro da Executiva do PC por mais de dez anos, hoje é
integrante do Partido Popular Socialista. Dos diálogos que teve com Prestes nada
estava fora do contexto político e do Partido. Ele aponta para uma vaidade
curiosa do Cavaleiro da Esperança, que não admitia que não o chamassem de
senhor. Segundo Geraldão, “para falar com Prestes o militante precisava estar
todo perfilado”
127
. No caso específico de Marighella o contato era diferente.
Geraldão refere-se a um acontecimento ocorrido após o golpe de 64. A
clandestinidade forçava os militantes a freqüentarem reuniões que duravam de
dois a três dias. Num desses encontros Marighella vira-se para Geraldão e faz
uma proposta em tom de brincadeira: propõe que ambos abandonassem o
Partido Comunista, seria mais proveitoso montar um terreiro de macumba, no
qual Geraldão seria o balalaô e iriam faturar
128
. A descontração era um aperitivo
que não podia faltar em momentos de tensão,
Marighella e Geraldo eram mestres em provocar um clima mais ameno entre os
militantes. Geraldo ainda se recorda que nas reuniões era comum Marighella dar
a impressão de que estava desligado, escrevendo algo, desenhando, de
repente pedia a palavra e fazia sua intervenção no formato de um poema, sobre o
127
Depoimento de Geraldo Rodrigues dos Santos colhido pelo autor em 12/11/98.
128
Idem.
103
assunto tratado
129
. A solidariedade refutada a Marighella como um componente
da sua relação entre os companheiros de Partido Comunista retira um pouco uma
visão maniqueísta e até de organicidade que envolve a militância. Marighella
driblaria os limites da rigidez predominantes no Partido através de atos
impetuosos que o mantinham atento à vida, ao seu lado humano e de outras
pessoas. É obvio que ele não se afastaria por completo dos assuntos e do
contexto político em que estava inserido. Num desses episódios, Geraldo dos
Santos é elucidativo. Na proximidade de um natal Marighella indaga a ele quantos
filhos possuía. Geraldo tinha um casal de filhos. Marighella explica que tinha em
seu poder alguns brinquedos e, diante da afirmativa de Geraldo, pede que faça
uma escolha para seus respectivos filhos. Inclusive insiste para que leve uma
boneca para a menina. Entretanto, o gesto foi extensivo a todos. Na verdade,
Marighella fez o mesmo com os demais militantes, incluindo até os que estavam
desenvolvendo tarefas fora de São Paulo. Mandou que se entregasse os
presentes para os filhos desses militantes
130
. Pelas práticas costumeiras essas
atitudes poderiam ser consideradas impróprias aos dirigentes do severo período
estalinista do Partido.
Clara Charf descreve como Marighella se “acostumava” à vida clandestina.
Ele era obrigado a se esconder, não podia ficar circulando normalmente, só em
129
Idem.
104
horários estratégicos. Era conhecido e temido por policiais, que sobre ele
criavam vários mitos com base na resistência a que demonstrara nas prisões.
Num desses refúgios forçados Marighella fica na casa de um casal de operários.
O casal tinha filhos e Marighella atenuava a clandestinidade procurando
descontrair-se com as crianças enquanto os pais estavam fora. Marighella
cozinhava, caracterizava-se de palhaço para fazer brincadeiras, pegava as tampas
de panela tornando-as mais um instrumento da algazarra e, para complementar,
mantinha a casa toda arrumada com o objetivo de não sobrecarregar os pais,
sobretudo a dona da casa quando retornasse do trabalho
131
, enquanto isso, a
polícia o procurava sempre alardeando a auréola de homem violento. Clara cita
esse exemplo para reafirmar que “o gesto, a atitude, a solidariedade, o interesse
pelos problemas das pessoas que estavam na luta é uma característica muito
importante do comportamento de Marighella”
132
. Ana Montenegro amplia essa
aproximação com os problemas das pessoas como uma maneira de oferecer as
mínimas condições familiares para o militante desempenhar suas funções. Ela
mesma foi interpelada por Marighella a respeito da criação de seus filhos e da sua
inserção na militância. Não daria para conciliar as duas coisas, pelo menos em
determinadas situações. Marighella alerta Ana Montenegro. Ela teria muitas
130
Idem.
131
Cf. Depoimento de Clara Charf.
132
Idem.
105
dificuldades com os filhos, e era preciso solucionar aquela situação. Ana diz que
ele mesmo é que se propôs a ajudá-la. Marighella tinha um contato muito estreito
nos bairros populares, e providenciou uma pessoa para auxiliar Ana Montenegro
na criação dos filhos. Sabina, que ficaria íntima de seus filhos como tia Sabina,
era viúva de um militante assassinado numa greve. Marighella adverte que Sabina
não era uma pessoa qualquer. A mulher tinha consciência e seria a companhia
ideal para suprir as prováveis ausências da mãe
133
. Marighella também tinha seus
momentos de explosão, pois suportar a tensão da militância não era fácil. O
jornalista João Falcão, diretor do jornal “O Momento”, na Bahia, havia sido
convidado pelo Comitê Central do Partido para desenvolver um estudo sobre a
imprensa comunista no Rio de Janeiro, em especial sobre a Tribuna
Popular, no período da legalidade. Num ponto que teve com Marighella, João
Falcão chegou atrasado. Marighella não perdeu tempo e repreendeu-o
bruscamente pelo atraso. João não se abateu. Deixou-o terminar de falar e, logo a
seguir, explicou que assim como Marighella, havia dedicado toda a sua vida ao
Partido Comunista, ambos eram companheiros de Partido, não havia razões para
ralhar daquele jeito. Marighella ouviu a réplica calado. Porém, antes de sair do
carro quebra o clima de tensão e pede desculpas pelo acontecido
134
.
133
Cf. Depoimento de Ana Montenegro.
134
Depoimento de João Falcão colhido pelo autor em 9/11/1998.
106
Seja na prisão ou na própria militância legal ou ilegal, Marighella vai
acentuar sua marca expansiva. Nota-se que ao abordar Marighella tendo como
base certas características, não se quer torná-lo um exemplo único dentro do
Parido Comunista, muito menos condenar os demais militantes valendo-se de
precário juízo de valor. O que se propõe é o inverso, chegando mesmo a
demonstrar que no Partido Comunista havia militantes que não possuíam
palavras de ordem política como modelo único de vida. Certamente, Marighella
não foi o único a conduzir sua convivência tendo a extroversão como um de seus
pilares, muitos outros personagens seguiram pelo mesmo caminho. Nos dias
atuais, onde a profecia precipitada do neoliberalismo decreta o fim das ideologias
e chega mesmo a propor o fim da História, os comunistas, sejam no passado ou
no futuro, são tratados dentro de uma visão estereotipada.
A década de 50 assinala o retorno de Getúlio Vargas à presidência da
República. Para tanto, os erros cometidos na gestão do General Dutra
contribuíram de forma considerável. Dutra havia traçado uma linha econômica de
governo centrada na iniciativa privada, preterindo o desenvolvimento econômico
sustentado pelo Estado. Dessa maneira o Plano SALTE, centralizados no
investimento dos setores de saúde, alimentação, transporte e energia não levaram
a economia do país a nenhum salto desenvolvimentista. No plano político
externo, o Governo Dutra alinha-se aos Estados Unidos, era a Guerra Fria e o
107
caminho escolhido foi a submissão aos limites impostos pela Doutrina Trumman,
em 46, e consequentemente a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN), que compunha o bloco militar ocidental capitalista, opondo-se a União
Soviética e ao avanço do comunismo. No bojo da Guerra Fria, o capital norte-
americano acentua sua presença na economia brasileira. No final da década de
40, várias categorias se insurgem contra a política de arrocho salarial do governo.
A insatisfação popular criava o clima necessário para se recolocar “o quadro do
velho na parede”: Getúlio retornara ao poder.
Na contra-mão dos fatos políticos de 1950, o Partido Comunista lança o
Manifesto de Agosto. Reagindo ao anticomunismo do Governo Dutra o PC
“mudou do pacifismo à pregação da violência revolucionária imediata”
135
. Por
esse Manifesto os comunistas passavam a defender um governo popular e
democrático, a nacionalização das empresas imperialistas, a reforma agrária e a
formação de um exército popular de libertação nacional. O governo de Vargas
implanta uma linha econômica voltada para o desenvolvimento das indústrias de
base financiadas pelo Estado, através da criação do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE). O pólo catalisador do investimento na
indústria de base se concentra na campanha do petróleo. Setores organizados,
como a UNE, encampam a palavra de ordem: “o petróleo é nosso”. Em 3 de
108
outubro de 1953 foi finalmente sancionada a lei 2004, criando a Petrobrás. No
plano político, a marca registrada do segundo governo Vargas foi a adoção de
um conjunto de medidas de cunho populista, dentre elas destaca-se o aumento
do salário mínimo em 100%, em maio de 1954. À medida que avança, o
governo será cercado por uma forte
oposição tendo como símbolo Carlos Lacerda. Lacerda será vítima de um
atentado ocorrido na rua Toneleros, em 5 de agosto de 1954. O mentor do
atentado foi Gregório Fortunado, segurança pessoal de Getúlio Vargas. Nesse
episódio, ao invés do jornalista da Tribuna da Imprensa, morre o major Rubens
Vaz, da Aeronáutica. A partir daí o governo Vargas vai sofrer pressão cada vez
mais intensa, inclusive do setor militar. O desfecho da crise política levaria
Vargas a dois caminhos: renunciar ou ser deposto. Diante de tal escolha o
presidente escolhe “sair da vida para entrar na história”. Em 24 de agosto de
1954, no palácio do Catete, Getúlio Vargas suicida-se com um tiro no peito. O
suicídio de Vargas comove os trabalhadores, “a reação popular fez-se sentir nas
principais capitais do país”
136
.
Mais uma vez o Partido Comunista se dissociava da realidade política
nacional e não percebera o quanto a liderança de Vargas era presente: “a direção
nacional do PC custou a sair da perplexidade ao constatar que se encontrava ao
135
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. Op. cit., p.23.
109
lado dos setores vinculados ao imperialismo norte-americano”
137
. A palavra de
ordem dentro do Partido Comunista era a derrubada do governo e a tomada do
poder pela via armada. Diante das manifestações populares revela-se a visão
míope do PC sobre a conjuntura política do país. Entretanto, essa tendência não
era predominante dentro do Partido. Em São Paulo, por exemplo, entre
março e abril de 53, ocorre a
greve dos trezentos mil: “ o temerário do custo de vida e do congelamento dos
preços dos gêneros alimentícios de primeira necessidade fundiu-se com a
campanha salarial dos trabalhadores paulistanos e ganhou as ruas facilmente”
138
.
Em 1952, Carlos Marighella chefia a primeira delegação do PC a viajar para a
recém criada República Popular da China e visita a URSS. Volta no ano seguinte
e passa a atuar em São Paulo. Gorender relata que na greve de 53, em
contraposição ao Manifesto de Agosto, havia uma Resolução Sindical, elaborada
por uma Comissão da Executiva do Comitê Central, que se baseava no retorno
dos comunistas aos sindicatos. Por esse período, Gorender manteve contato
com Carlos Marighella e com o jornalista João Saldanha. O primeiro teve uma
participação limitada, nos limites da vida clandestina, pois caso contrário poderia
ser preso. O segundo atuou junto aos sindicatos dos tecelões. João Saldanha se
136
PENNA, Lincoln de Abreu. Op. cit., p.242.
137
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. Op. cit., p.24
138
COSTA, Hélio. Em Busca da Memória. Brasília: SCRITTA, 1995.
110
notabilizaria como comentarista e técnico de futebol, inclusive foi afastado do
comando da seleção brasileira, em 1970, pois a ditadura militar não queria que a
glória pela conquista do tricampeonato, no México, ficasse a cargo de um
comunista
139
. A greve durou vinte e nove dias, paralisando 930 empresas de São
Paulo, subdividas entre metalúrgicos, fábricas de móveis, oficinas de
carpintaria, vidrarias, malharias, fábricas de cristais e tecelões, entre outras
categorias. O impasse não acabaria com a concessão pelo Tribunal Regional do
Trabalho (TRT) do reajuste de 32% para os trabalhadores em fiação e tecelagem,
bem como para os metalúrgicos. Os trabalhadores só cessariam o movimento se
as lideranças detidas pela greve fossem libertadas, o que ocorreria até o dia 29 de
abril de 1953
140
.
A segunda metade da década de 50 abre uma crise nos partidos
comunistas de todo o mundo. O motivo básico se concentra nas revelações
ocorridas no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em
fevereiro de 1956, pelo primeiro secretário do Partido, Nikita Kruchev, que
denunciara os excessos do culto à personalidade e as atrocidades cometidas
durante o período do stalinismo. Após a morte de Stálin em 53, cria-se na cúpula
do poder soviético uma diretriz política que esvaziaria os principais órgãos de
segurança: “menos de seis meses depois da morte de Stalin, a polícia política e
139
Cf. Depoimento de Jacob Gorender.
111
outros órgãos que dispunham de elevado grau de autonomia, como Estados
dentro do Estado, tinham sido desativados ou colocados sob controle”
141
. Nikita
Kruchev, na ânsia de reestruturar o papel do Partido Comunista Soviético e se
contrapor à hegemonia do poder do Estado, divulga no XX Congresso um
informe secreto que revelaria ao mundo e, aos próprios russos, a dualidade do
líder do socialismo soviético: “Stalin, canonizado até então como o principal
líder e guia do socialismo contemporâneo, que, pelos seus méritos, chegara a
obscurecer os grandes do passado, e que repousava placidamente ao lado de
Lenin no suntuoso mausoléu da Praça Vermelha, não passara de um déspota
liberticida, um criminoso de Estado, cruel e sanguinário, um tirano”
142
. A
tentativa de fazer um informe de tamanha importância se tornar secreto foi
frustrante, pois logo as notícias correriam as redações da imprensa mundial. O
Brasil não tardaria a receber a informação. “O Estado de São Paulo”, jornal que
compunha a grande imprensa da época traz, em partes, as denúncias de
Kruschev. Num primeiro momento, o núcleo dirigente do PC encara a
informação como uma invencionice da burguesia. Diógenes Arruda, representante
do PC brasileiro no XX Congresso, retornaria ao país 6 meses depois,
encontrava-se em viagens pela China e em algumas capitais européias. A
140
COSTA, Hélio. Op. cit., p. 178.
141
REIS FILHO, Daniel Aarão. Uma Revolução Perdida: a história do socialismo soviético. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 1997.
112
posterior confirmação do informe abre uma crise dentro do PC. A reação de
Carlos Marighella diante da confirmação dos crimes de Stalin não poderia ser
diferente do da maioria dos militantes: ao ocupar a tribuna na primeira reunião
da Executiva do Partido Comunista, Marighella chorou compulsivamente. Seria
algo como se o chão desaparecesse de repente. Ampliando o que significava a
dedicação ao Partido, vale a pena conferir um discurso de Marighella
pronunciado na reunião do Comitê Nacional do PC e publicado na Revista
Problemas, em 52. Havia uma seção da revista que destacava personalidades de
renome do movimento operário internacional, no caso específico, o
revolucionário grego Nikos Beloyannis. Escreve Marighella: “Só os que estão
armados com a ideologia comunista, os que têm a plena convicção da vitória do
comunismo, só os que colocam o amor do Partido acima de tudo e não separam
sua vida da do Partido podem sair vitoriosos das provas mais difíceis diante de
um inimigo desesperado”
143
.
Contudo, Marighella não deve ser compreendido aqui como um órfão
ideológico. O fato concreto é que sem a menor cerimônia desabafa seus
sentimentos através do choro visível a todos os presentes na reunião.
Certamente, outros militantes tiveram a mesma reação. No caso de Marighella
142
REIS FILHO, Daniel Aarão. Op. cit., p.197.
143
MARIGHELLA, Carlos. Beloyannis: Modelo de Firmeza Proletária . Revista Problemas, Rio de Janeiro, ano 5,
nº42, p. 125-126, set./out. 1952.
113
esse fato ficou notório, talvez para ilustrar um exemplo do impacto do XX
Congresso nos comunistas brasileiros.
Salomão Malina, membro do PC desde a década de 40, teve um contato
estreito com Carlos Marighella nesse período de crise dentro do Partido. Malina
atribuía a si próprio uma visão política quase religiosa, somada a uma base
teórica ainda precária, dados suficientes para ampliar o impacto causado pela
denúncia. Marighella vai se aproximar um pouco mais de Malina, passa a
convidá-lo para encontros sem nenhuma relação com atividades políticas
concretas. Poderia ser mesmo um almoço num dos bairros suburbanos do Rio
de Janeiro. Malina relata que, sobre o assunto em questão, Marighella procurava
demonstrar que a denúncia do culto a Stalin era algo mais positivo do que
negativo, que o culto revelou-se uma deformação e o mais importante seria
superar aquela tortuosa situação. Malina voltará a ter um curioso encontro com
Marighella, encontro que na verdade foi uma coincidência. Entretanto, isto é
matéria para o capítulo posterior.
114
CAPÍTULO 3
SEM TEMPO DE TER MEDO
“É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer”.
Carlos Marighella, Rondó da Liberdade.
As eleições presidenciais em outubro de 1955 levaram o governador de
Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, ao poder, tendo como vice-presidente João
Goulart. A dobradinha do PSD (Partido Social Democrático) e PTB (Partido
Trabalhista Brasileiro) ganharia as eleições por apertada margem de votos sobre
os demais concorrentes. Isso provocaria setores conservadores das forças
armadas e grupos golpistas, sobretudo do Exército, a contestarem a legitimidade
do novo governo eleito e articulassem um golpe militar que foi prontamente
rechaçado pelo Ministro da Guerra, Henrique Lott. Lott alcançara o cargo logo
após o trágico fim de Getúlio Vargas, sob a nomeação de Café Filho, então vice-
presidente. Com o estado de saúde do presidente abalado, assume a presidência
115
o líder máximo da Câmara dos Deputados, Carlos Luz. Este terá um curto prazo
de governo marcado pela pressão dos militares em não permitir a posse de
Juscelino e Jango. Afasta Lott do cargo de ministro e nomeia o General Fiúza de
Castro. Lott, em meados de novembro de 1955, retoma o posto de Ministro da
Guerra, fez aprovar estado de sítio no país, num prazo de 30 dias, e garante a
posse dos eleitos. O governo de Juscelino pode ser definido, sinteticamente,
como ligado a um nacional-desenvolvimentismo que tem na construção de
Brasília, em 21 de abril de 1960, o seu símbolo maior. A inserção do capital
estrangeiro na economia nacional, com destaque para os Estados Unidos, é
também uma marca registrada desse período.
O Partido Comunista apoiou a candidatura de Juscelino à Presidência da
República. Em troca o Partido visualizava uma situação de semilegalidade. De
fato, a partir de 1958, o governo Kubitschek manda finalizar o processo contra
Prestes e outros comunistas. Vimos que em 1956 desabam sobre os comunistas
de todo o mundo as denúncias sobre os crimes cometidos por Stálin, no
histórico XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética. A partir
daquele congresso, Carlos Marighella terá uma participação efetiva na campanha
para que se altere o nome do registro do Partido Comunista do Brasil para
116
Partido Comunista Brasileiro
144
. Uma forma de aproximar os comunistas da
realidade política nacional e desvincular sua vocação internacionalista. Marighella
passa a integrar a executiva do PC, alternado suas funções com a comissão de
finanças do Partido. Na visão de Gorender, essa campanha de troca do nome do
Partido não traria a imediata legalidade, porque “até 64 o PC se esforçou em ser
legal e não conseguiu”
145
. Progressivamente, o Partido Comunista volta a atuar na
conjuntura brasileira, e o mesmo Gorender atribui ao período que vai de 1959 a
1964 “a época de maior enraizamento do PC dentro da política brasileira”
146
. O
Partido passa a atuar dentro dos sindicatos, junto ao movimento estudantil,
penetra no movimento camponês, e exatamente por ter destaque político no
início da década de 60 é que tem a sua legalidade plena negada.
O início dos anos 60 merece um destaque à parte para dois
acontecimentos políticos: a renúncia do presidente eleito Jânio Quadros e a
instalação, em 1º de abril de 1964, do regime autoritário liderado pelo alto
comando do Exército Brasileiro. A eleição de 1960 foi disputada tendo como
candidatos majoritários o Marechal Lott, pelo PSD-PTB, Ademar de Barros,
pelo PSP e Jânio Quadros pela UDN. O resultado do pleito dera a Jânio uma
porcentagem de 48% dos votos, sendo seguido por Lott com 32% e Ademar
144
Depoimento de Geraldo Rodrigues dos Santos colhido pelo autor em 12/12/98.
145
Entrevista de Jacob Gorender a Revista da Bahia, Encarte Especial, dez. 1988.
146
Id., p.16.
117
com 20%
147
. Na legislação eleitoral o vice eleito seria o que reunisse o maior
número de votos, fato atingido por João Goulart, com 4,5 milhões. Jânio
Quadros foi um político sempre envolvido com situações um tanto
surpreendentes. Fizera carreira política no estado de São Paulo desde vereador a
governador, chegando depois a presidência. Seu estilo espalhafatoso rendera a
ele o estigma da vassoura, cuja propaganda, significava varrer a corrupção do
Brasil. A União Democrática Brasileira, partido de cunho conservador e muito
ligado aos militares, vê em Jânio o candidato ideal. O Partido Comunista optou
pelo apoio ao General Henrique Teixeira Lott e a seu vice, João Goulart. O
general seria o nome mais aceito, haja vista sua recente participação na defesa da
posse de Juscelino. Jânio Quadros governou a seu modo e das muitas atitudes
imprevisíveis que teve uma se destacou: a condecoração do líder revolucionário
Ernesto Che Guevara _ um dos líderes da Revolução Cubana, que depôs o
ditador Fulgêncio Batista em Cuba, em janeiro de 1959 _ com a medalha cruzeiro
do sul, símbolo de honra da república brasileira. A desilusão da UDN com seu
candidato só aumentou e a crise política se acentuaria quando em 25 de agosto
de 1961, sete meses após sua posse, Jânio renuncia. Pelas regras constitucionais
vigentes João Goulart seria o substituto imediato de Jânio Quadros. O Vice-
Presidente se encontrava em viagem à República Popular da China, onde desde
147
PENNA, Lincoln de Abreu. Uma História da República. Op. cit., p.252.
118
1949 vigorava o regime comunista sob a liderança de Mao-Tsé Tung. A
indisposição dos setores mais conservadores em relação ao nome de João
Goulart era uma realidade que tumultuaria ainda mais esse período. Jango, como
era conhecido popularmente, foi ministro do segundo mandato presidencial de
Vargas. Destacou-se no ministério do trabalho pelo aumento de 100% concedido
ao salário mínimo. Nas duas eleições realizadas após a morte de Vargas, o nome
de Jango despontava como uma liderança dos segmentos populares urbanos e
ampliava ainda mais sua participação no setor rural. Nota-se que o Partido
Trabalhista Brasileiro, do qual fazia parte, tem um crescimento considerável na
sociedade brasileira, em especial a partir da década de 50, devido a política
trabalhista implantada por Getúlio Vargas e será um dos termômetros do
populismo no país. Soma-se a esse fator o incremento da urbanização no Brasil,
que ocorre de mãos dadas com a industrialização dos anos 40 e 50. À medida
que a urbanização aumenta, teremos um maior contigente participando das
eleições: “em 1945 o percentual de eleitores era de 15%; em 1950 esse número
cresce para 22% e finalmente, em 1955, atinge 25%”
148
. Para os militares a posse
do vice-presidente era algo fora de cogitação. Declaram o impedimento de
Goulart. O contraponto a essa medida viria sob a liderança do Governador
148
TEIXEIRA, Francisco Carlos. A Modernização Autoritária. In: História Geral do Brasil. Maria Yeda Linhares
(org). Rio de Janeiro: Campus, 1996.
119
Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, que lança a rede da legalidade para
que
Jango assuma o poder. Conta o governador com o apoio do estado de Goiás,
tendo a frente Mauro Borges. O III Exército, um dos mais poderosos no país,
comandado pelo General Machado Lopes, localizado no Rio Grande do Sul,
apoiou a legalidade e a posse de Jango. A crise é parcialmente resolvida com a
proposta encaminhada ao Congresso Nacional pelo então deputado Tancredo
Neves. Por Emenda Constitucional, o deputado mineiro propôs a adoção do
regime parlamentarista, o que limitava Jango, agradando os militares. Em 7 de
setembro de 1961 João Goulart toma posse. Tancredo era o primeiro-ministro.
O Brasil no triênio 1961-1964 era um país onde a inflação crescia a passos
largos. Nesse período a inflação variou entre 38,1% a 91,6%, sendo seguida por
um decréscimo da renda per capita de 2,3 em 1962 para menos de 1,5 em 1963
149
. A concentração de terra se fazia presente, sendo que o latifúndio respondia
por “47,3% do total das terras, tendo em cultivo apenas 2,3% dessa área”
150
. A
crise política desencadeada com a renúncia de Jânio era ampliada quando
associada a conjuntura econômica brasileira. O salário corroído pela pressão
inflacionária, crises de abastecimento, como a ocorrida em 1962 que levou a
população a saquear armazéns na cidade do Rio de
120
Janeiro, criava uma demanda por uma política de reformas. O retorno do
presidencialismo se concretiza com o plebiscito realizado em 6 de janeiro de
1963. Com 10 milhões de votos João Goulart recupera o cargo de presidente.
Seu governo tem a incumbência de colocar na ordem do dia as chamadas
‘Reformas de Base’, que possuía na reforma agrária seu maior desafio. Um dos
pontos chaves do Plano Trienal elaborado pelo economista Celso Furtado é a
“desapropriação, para pagamento a longo prazo, de todas as terras consideradas
necessárias à produção de alimentos”
151
. A pressão da sociedade civil pelas
reformas se fazia presente, com várias entidades no encalço do governo. Entre
elas destacam-se a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Confederação
Geral do Trabalho (CGT).
No plano político interno algumas medidas adotadas pelo governo
Jango impunham uma linha de independência política que alarmava os
interesses norte-americanos, no país e no continente. Em novembro de 1961, o
Brasil reata relações diplomáticas com a União Soviética. Na mesma direção,
vota contra a expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos
(OEA), em conferência realizada na cidade de Punta del Este, em janeiro de 1962.
No ano de 1962, é aplicado pela prefeitura da cidade de Natal, no estado do Rio
149
PENNA, Lincoln de Abreu. Op. cit., p. 266.
150
TEIXEIRA, Francisco Carlos. Op. cit., p. 312.
151
Id., p. 313.
121
Grande do Norte, um método de educação voltado para a conscientização do
homem, estando este inserido em sua realidade social. No Rio Grande do Sul, o
governador Leonel de Moura Brizola encampa a Companhia Telefônica Nacional,
subsidiária da ITT (International Telephone and Telegraph). Na área rural crescia
a organização dos camponeses através das Ligas Camponesas, lideradas pelo
advogado Francisco Julião. O foco do movimento camponês era o estado de
Pernambuco. O Jornal do Brasil de 26 de janeiro de 1962, no seu editorial,
noticiava: “É na vida rural que está o ponto mais frágil da estrutura social
brasileira, como bem se pode sentir através de movimentos como os das Ligas
Camponesas no nordeste, dos conflitos entre posseiros e grileiros nos estados
do Rio e do Paraná, nas reivindicações dos camponeses de Goiás”
152
. Em 1963
o governo lança o Estatuto do Trabalhador Rural, visando a extensão ao campo
da legislação social da cidade, como o salário mínimo e a jornada de oito horas.
Tais medidas eram encaradas como um autêntico exemplo de como o país se
aproximava do comunismo. Um certo exagero, se aplicado ao Presidente. Na
verdade, nesse período a geopolítica da América Latina passa a ter um
componente contestador para os interesses imperialistas dos Estados Unidos. A
Revolução Cubana poderia estimular uma série de movimentos revolucionários
que ameaçariam a hegemonia norte-americana no contexto da Guerra Fria. O
152
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 jan.1962.
122
Brasil sempre teve uma atuação, na história da América Latina, voltado de costas
ao continente e de braços abertos ao imperialismo europeu ou norte-americano.
Inclusive essa é uma tendência, que até certo ponto, se reflete na diferenciação
em relação ao estudo das Américas: o Brasil é um caso a parte. Os Estados
Unidos passam a atuar nesse período de acirramento das contradições
políticas através dos princípios da “Aliança para o Progresso”. Os estados
oponentes ao governo de Goulart passam a receber empréstimos e suprimentos.
Numa medida ostensiva é criado e financiado pelos Estados Unidos o Instituto
de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD). O primeiro vinculava-se aos militares, liderados por
generais da Escola Superior de Guerra. O segundo tem uma atuação mais
declarada “subvencionando candidatos considerados fiéis no combate às
reformas de base”
153
. Ambos eram institutos que teriam a missão de difundir
na sociedade brasileira o temor das reformas, preparando o terreno para o golpe
de abril de 1964.
Dois fatos acabam por selar a o destino do governo Goulart e ampliar a
idéia golpista. Um ocorrido em meados de 1963, em Brasília, com o motim de
suboficiais da Aeronáutica e da Marinha exigindo o direito ao voto e melhores
condições da tropa. Outro, em 26 de março de 1964, foi a Revolta de
153
PENNA, Lincoln de Abreu. Op. cit., p. 271.
123
Marinheiros no Rio de Janeiro, liderada pelo cabo Anselmo, espião a serviço da
CIA, mais tarde colaborador da polícia paulista na perseguição aos partidários da
luta armada através da infiltração e delação
154
. Os marinheiros queriam certa
autonomia para se organizarem e reivindicarem seus direitos. Os militares viam
nesses movimentos um abalo profundo naquilo que eles julgam ser quase
tudo: a hierarquia. E, progressivamente, vão articulando o golpe.
Em 13 de março de 1964, João Goulart participa de um comício na Central
do Brasil, local de assídua presença de trabalhadores. Neste comício exalta a
extensão do voto aos analfabetos, soldados, cabos e marinheiros; a anistia
política a civis e militares indiciados por atividades sindicais; defende a soberania
nacional e a reforma agrária. Os efeitos desse comício reforça a tese dos
golpistas. Para se ter uma idéia, os Estados Unidos, articulado com vários
governadores, como Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Carlos
Lacerda, do Rio de Janeiro, garantem uma base naval, em Pernambuco, para
uma possível repressão a resistência ao golpe. Sem apoio dos militares e das
principais lideranças civis, o governo Goulart é deposto em 1º de abril de
1964. De início os militares argumentavam que a intervenção seria rápida,
apenas para normalizar a situação política do país. Esta rapidez durou vinte cinco
anos, mergulhando o Brasil numa das ditaduras mais brutais do continente.
154
Sobre o cabo Anselmo, não se sabe o momento exato em que passou a colaborar com os aparelhos repressivos
124
O Partido Comunista não sairia ileso a instalação do regime autoritário no
país. Na avaliação que faz do V Congresso do Partido Comunista, realizado em
agosto de 1960, Jacob Gorender aponta falhas no Partido e nas avaliações
predominantes sobre a conjuntura política nacional e internacional: “seu erro
consistia em partir abstratamente de teses universalmente conhecidas (como as
teses de revolução nos países dependentes, sobre a frente única e a aliança
operário-camponesa, sobre a hegemonia do proletariado, etc.), delas
pretendendo deduzir, por via lógico-formal, as idéias particulares da revolução
brasileira, sem submeter tais idéias à mediação indispensável da realidade
concreta do país”
155
. Emerge do V Congresso dois documentos, “As Teses” e
a “Resolução Política” em que os comunistas previam uma etapa da revolução
como antiimperialista e antifeudal, nacional e democrática, sendo promissor a
instalação de um governo centrado na acumulação de forças, sob a liderança
do proletariado.
A possibilidade de uma reação contra-revolucionária poderia alterar a alternativa
pacífica do PC levando-o à luta armada. A posição do Partido Comunista em
relação ao governo de João Goulart era de apoio às reformas de base, admitindo
da ditadura militar.
155
GORENDER, Jacob. O V Congresso dos Comunistas Brasileiros. Estudos Sociais, Rio de Janeiro, n.9, p.3-11,
out. 1960.
125
mesmo uma aliança com a burguesia progressista. Salomão Malina faz uma
avaliação do período que antecede o regime autoritário de 1964 destacando a
posição de Prestes, que chegara a afirmar que se os golpistas colocassem a
cabeça para fora, teriam as mesmas cortadas. Para Malina, não era apenas a
cabeça de algumas pessoas que seriam cortadas, mas sim o pensamento e a ação
das forças militares
156
.
Passados um mês e nove dias do golpe instalado em 1964, Carlos
Marighella será preso e baleado num cinema carioca situado no bairro da Tijuca,
o episódio ocorre no dia 9 de maio de 1964. Porém, antes disso, na renúncia de
Jânio Quadros, em 1961, o apartamento de Clara e Marighella, na rua Correia
Dutra é invadido pela polícia. Marighella não estava presente. Clara resistiu aos
invasores denunciando a invasão. O desapontamento por não encontrar
Marighella era evidente, quando a polícia se retirou. Comentando este fato,
posteriormente, Marighella destaca a simplicidade do apartamento onde residia,
que deveria ter surpreendido os policiais. Afinal tratava-se de um destacado líder
comunista, ex-deputado, morando num quarto e sala alugado. Marighella não
perde a oportunidade para ironizar e manter aceso o seu humor: “Alguma tramóia
existe nessa coisa de comunista morar nesses apartamentos pequenos _ deve
156
Depoimento de Salomão Malina colhido pelo autor em 16/12/98.
126
pensar lá o DOPS com os seus botões”
157
. Com o golpe deflagrado em 64,
Marighella “tentou organizar a resistência na Cinelândia. Ele com alguns militantes
de esquerda, estudantes e pessoas que se encontravam na Cinelândia. Achava
que era inconcebível aceitar o golpe sem fazer nada”
158
. Mas a resistência viria
mesmo no fato ocorrido no Cine Esky-Tijuca, no mês de maio. Marighella, com
o golpe, não iria ficar esperando a repressão invadir seu apartamento. A polícia
seguira a zeladora do prédio em que ele morava com Clara. A zeladora tinha
um encontro com Marighella na Tijuca, onde entregaria a ele peças de roupa. A
narrativa a partir daí é do próprio Marighella: “ao perceber à certa distância um
indivíduo em atitude suspeita, como que vigiando os passos da zeladora, preferi
ingressar no cinema. E o fiz repentinamente, visando a receber no interior do
salão, às escuras (o espetáculo estava começando) o embrulho de roupa que ela
trazia. Meu intuito era iludir a vigilância policial e sair algum tempo depois por
outra porta. A polícia invadiu o cinema, obrigou o gerente a acender as luzes
e iniciou o cerco em plena platéia, depois de ocupar
as saídas. Não demorou muito e ouvi ao meu lado o clássico “Têje preso!” Isto
me foi segredado aos ouvidos por um tira, de pé, à direita da cadeira em que eu
estava sentado. O convite do policial era para que eu me retirasse do cinema,
157
MARIGHELLA, Carlos. Por que resisti à prisão. Op. cit., p. 16.
158
Entrevista de Clara Charf a Teoria e Debate, n.8, out./nov./dez. 1989.
127
acompanhando-o preso”
159
. A partir daí Marighella começa a perceber que o
intuito dos policiais era de abatê-lo ali mesmo. Antes que isso se consumasse
procura resistir: “Levantei-me gritando: Matem, bandidos! Abaixo a ditadura
militar fascista! Viva a democracia! Viva o Partido Comunista!”
160
O policial
mais próximo de Marighella puxou o gatilho atingindo-o próximo ao tórax
esquerdo. O tiro foi para matar. Os demais policiais lançam-se sobre o militante
comunista na esperança de detê-lo com algo que justificasse sua prisão,
um documento qualquer que o incriminasse. Vão se desiludir ao encontrarem
apenas um embrulho rosa contendo algumas “cuecas com remendos, camisas,
calças, vestes usadas”
161
. A platéia estava assustada com o que via. Marighella
baleado não se entregava aos policiais, resistiu com golpes de capoeira. Eram
catorze o número de agentes do DOPS carioca tentando encarcerá-lo numa
viatura. Após uma coronhada desferida sobre a sua cabeça acaba sendo
dominado. A resistência no cinema, a princípio, atingiu objetivo de tornar pública
a prisão de Marighella. Por outro lado, era a primeira manifestação de resistência
ao regime instalado. Marighella também enviava um recado ao Comitê Central do
Partido Comunista com o aquele gesto. Delineava-se seu rompimento com o
Partido.
159
MARIGHELLA, Carlos. Op. cit., p. 18.
160
Idem.
161
MARIGHELLA, Carlos. Op. cit., p.19.
128
Marighella seria socorrido no Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro,
e dali seria transferido para a Penitenciária Lemos de Brito. As condições em que
se encontrava na cela eram péssimas. Em 26 de junho recebe a notícia de que iria
ser levado a São Paulo. O DOPS paulista queria esclarecimento sobre menção de
seu nome na famosa Caderneta de Prestes, o transporte entre o Rio e São Paulo
foi feito numa viatura da polícia carioca. Recém baleado lutava também
contra o frio. O DOPS de São Paulo armara uma autêntica festa particular para
tomar o depoimento, logo iria desapontar-se, pois, ao invés de se constranger
Marighella reafirmava seus ideais comunistas, não poupando a ditadura.
Na passagem por São Paulo um velho conhecido de Marighella toma
conhecimento de sua presença na cidade, era Noé Gertell, e providencia uma
visita ao companheiro. Gertell não estava clandestino, sua casa foi vasculhada,
nada foi encontrado. Prestou depoimento e foi liberado. Preparou um embrulho
contendo roupa de frio, revistas e livros. Foi até o prédio do DOPS, onde
Marighella estava detido. Lá chegando identificou-se de modo a driblar o
delegado de plantão. Corria o mês de julho em São Paulo, inverno rigoroso, era
feriado, poucos policiais no plantão. Noé chega até a sala do delegado e anuncia:
“Eu queria visitar o professor Marighella!” A princípio foi bem recebido, só que
o pedido não poderia ser aceito. O delegado substituto tinha ordens para manter
Marighella incomunicável. Noé, sem pestanejar, sugere ao policial que ao menos
129
autorizasse a entrega do embrulho a Marighella. Diante da insistência o delegado
permite que ele se encaminhe a carceragem e envie a encomenda. Noé aproveita o
espaço e envia um bilhete perguntando a Marighella se precisava de mais alguma
coisa. Marighella responde: precisava apenas de pasta de dente e sabão. Noé
providencia o pedido e volta para casa com a certeza do dever cumprido e de
que Marighella estava vivo
162
. A solidariedade não ficou esquecida no cárcere da
Ilha Grande.
Carlos Marighella ficaria preso por três meses. Ao sair da prisão cada vez
mais se acentuava a sua discordância com o Partido Comunista. Volta a atuar na
militância em São Paulo. Num desses encontros proporcionados pela
coincidência, revê Salomão Malina. Malina ia de São Paulo em direção ao Rio
Janeiro. No curso da viagem, resolve parar e tomar um café. Jamais imaginaria
encontrar Marighella. Mas lá estava o dirigente do Partido Comunista, líder
máximo em São Paulo. A conversa entre ambos é rápida. Malina indaga a
respeito da posição política de Marighella naquele momento. Carlos Marighella
desconversa, sem antes confessar a Malina que entre os dois “estava tudo
limpo”
163
.
A amizade estaria acima das divergências para Marighella. Num momento
posterior, em que se desliga do Partido, em meados de 1967, vai a Cuba e lá revê
162
Depoimento de Noé Gertell colhido pelo autor em 23/12/1998.
130
Ana Montenegro. Nessa época estava mais do que decidido à luta armada, como
veremos mais adiante. Ana não via esse caminho da mesma forma. Ela chegava
mesmo a acreditar que não o veria mais, em função da divergência. Em
Cuba, Marighella relata a Ana Montenegro que a amizade estaria acima
das divergências. Se ambos acreditavam em caminhos diferentes para a
implantação do socialismo no Brasil, a amizade faria com que os caminhos se
juntassem: “os meus princípios não acabaram, nem os seus, apenas você sabe que
para se chegar a algum lugar, o lugar que nós queremos, o socialismo, os
caminhos podem ser diferentes, mas nós seremos conduzidos pelos mesmos
transportes”
164
. Um dos aspectos da personalidade de Marighella que mais
marcaram na sua amizade com Ana Montenegro foi a coragem. Ana receava
muito, dentro do
Partido, o enfrentamento a uma maioria. Comentaria com Marighella a respeito do
assunto. Ele prontamente responde utilizando uma frase que marcaria sua
trajetória: “Não tive tempo de ter medo”. Marighella aponta que se ele tivesse
medo não teria passado pela prisão, não continuaria na luta política. Medo era
para se ter da repressão, da polícia e não dos companheiros de Partido, mesmo
que esses optassem por caminhos opostos, sendo maioria ou não
165
.
163
Cf. Depoimento de Salomão Malina.
164
Depoimento de Ana Montenegro colhido pelo autor em 6/11/98.
165
Idem.
131
Em reunião realizada em meados de 1966, onde Marighella oficializa seu
desligamento da Comissão Executiva do Partido Comunista, realizada em
Campinas, São Paulo, Geraldo Rodrigues dos Santos o vê pela última vez. O
Partido Comunista em São Paulo era dirigido por Marighella, e aquela altura a
luta armada era palavra de ordem. Geraldo fez sua intervenção tentando
demonstrar que aquele não era o caminho mais viável, “o caminho tinha que ser
de acumulação de forças, um caminho que as massas participassem”
166
. Mas os
delegados presentes já haviam escolhido o seu rumo, a liderança de Marighella se
fazia notar nitidamente. Os dois amigos de épocas passadas se abraçaram e
Marighella chora. Era uma difícil despedida. Geraldo se recorda das últimas
palavras que teve com ele,
Marighella foi taxativo ao afirmar que se fosse para continuar a seguir a política
defendida pelo Partido Comunista, era preferível “vender gravatas pelo país
afora”
167
.
Se a amizade não foi tocada, se os princípios continuavam os mesmos,
por que Carlos Marighella vai consubstanciando seu desligamento do Partido
Comunista? Afinal, foi boa parte de uma vida dedicada ao Partido. Após a
primeira tentativa de assassinato que sofrera no Rio de Janeiro, em 9 de maio de
1964, Carlos Marighella lança “Por que resisti a prisão”, documento em que narra
166
Cf. Depoimento de Geraldo Rodrigues dos Santos.
132
todo o episódio do tiro no cinema, sua prisão, as versões falaciosas da polícia,
as condições do cárcere, o envolvimento dos policiais que o prenderam com o
crime organizado, a aflição da platéia com o fato _ a sessão no cinema exibia o
filme “Rififi no Safari”, era uma matinê e muitas crianças se encontravam no
local. Os últimos dois capítulos são embasados numa crítica aberta a posição
adotada pelo Partido durante o governo de Jango, que acreditava nas reformas de
base tendo na burguesia progressista um aliado indispensável. Para Marighella, “a
grande falha deste caminho era a crença na capacidade da burguesia, a
dependência da liderança proletária à política efetuada pelo governo de então. A
liderança da burguesia nacional é sempre débil e vacilante. Ela é destinada a entrar
em colapso e a capitular sempre que do confronto com os inimigos da nação
surja a possibilidade da passagem do poder ao controle direto ou imediato das
massas”
168
. Na avaliação de Clara Charf, Marighella, desde a renúncia de Jânio,
defendia a tese de que o Partido Comunista deveria se preparar contra a situação
golpista que estava se desenhando. O Partido não podia seguir a reboque da
burguesia. Devia preparar a resistência ao golpe militar. Em contrapartida o PC
seguia afirmando que Jango tinha um esquema militar que sufocaria qualquer
rebelião. Veio o golpe e nenhuma resistência eficaz foi oferecida
169
.
167
Idem.
168
MARIGHELLA, Carlos. Op. cit., p.147.
169
Depoimento de Clara Charf colhido pelo autor em 15/12/1998.
133
Em 1966, Carlos Marighella escreve o ensaio político “A Crise Brasileira”.
Logo no início aponta o despreparo das forças antigolpistas, entre elas os
comunistas, diante do golpe militar, sem oferecer qualquer resistência, com
exceção da greve geral que não tinha forças, pois estava isolada. Sobre a
renúncia de Jânio Quadros em 1961, realça: “fomos tomados de perplexidade e
reconhecemos que não estávamos preparados para enfrentar os acontecimentos”
170
. Alerta que a solução para a crise brasileira não estaria na conciliação com a
burguesia. Esta, sem o auxílio do Estado, nem mesmo conseguira lançar as
bases da industrialização no país. A solução, por vocação, pelo destino
histórico, centrava-se no “proletariado e seus aliados da frente única. Atraindo o
camponês _ seu aliado fundamental”
171
. Recorre ao papel desempenhado pela
luta de guerrilhas na história do país, destacando a expulsão dos holandeses, em
meados do século XVII. Não se trata de transplantar aquele episódio para o
momento vivido, mas sim de validar a luta de guerrilhas como uma “luta política
diferente _ aplicável quando a luta política já não pode resolver-se pacificamente
e tem que fazer-se por outro meio”
172
. Entretanto chamava a atenção para que a
170
MARIGHELLA, Carlos. A Crise Brasileira (Ensaios Políticos). Assírio & Alvim, 1966; coletânea de textos
reunidos por Adérito Lopes, 2ª ed.
171
Id., p. 15.
172
Id., p. 16.
134
guerrilha a ser deflagrada era típica do campo, “não era uma forma de luta
apropriada às áreas urbanas”
173
.
Marighella não rompe imediatamente com o Partido Comunista. Apenas
expõe suas desilusões em face da linha política adotada. Quando percebe que
não existem canais abertos dentro do Partido para suas convicções encaminha a
formação do Agrupamento Comunista de São Paulo e se insere definitivamente
na luta armada. Entretanto, avaliar a sua opção política tendo o PC como pólo de
motivação, é ignorar os acontecimentos e o acirramento do regime autoritário.
Ambos, Marighella e o Partido Comunista, se encontravam imersos num
contexto político que só acentua as divergências.
A ditadura militar instalada em 1964, reinaugurou a prática legalizada da
violência política pelo Estado brasileiro. Notabilizaria-se a sustentação do regime
através da larga utilização dos Atos Institucionais, que mais justamente deveriam
ser denominados atos inconstitucionais, pois foi preciso que rasgassem duas
Constituições, a de 1946 e a de 1967. O primeiro Ato Institucional é decretado
em 9 de abril de 1964 e impunha eleição indireta para a Presidência da República.
Nota-se que o Congresso Nacional encontrava-se amordaçado, tendo as
principais lideranças políticas seus mandatos cassados. A abertura de Inquérito
Policiais Militares (IPMs) foi um mecanismo utilizado para coibir atividades de
173
Id., p. 55.
135
funcionários públicos, civis e militares, supostamente simpáticos à subversão. O
segundo Ato Institucional vai mais longe no cerceamento da política nacional e
extingue os partidos políticos existentes. Por esse ato instituiu-se o
bipartidarismo, de um lado composto pela ARENA (Aliança Renovadora
Nacional), base de apoio ao regime autoritário, e o MDB (Movimento
Democrático Brasileiro), reunindo todas as forças de oposição ao novo regime.
Em virtude do relativo sucesso das candidaturas de oposição aos governos de
alguns estados, como o Rio de Janeiro, como a eleição de Negrão de Lima, surge
novo Ato Institucional, o AI-3, em 5 de fevereiro de 1966, cuja intervenção na
política eleitoral avançava ainda mais. Impõe a eleição indireta para o cargo de
governador e os municípios das capitais teriam o chefe do executivo nomeados
pelos governadores. Ou seja, ficava claro que “o regime não toleraria qualquer
contestação”
174
. Em 3 de outubro de 1966,
o Marechal Artur da Costa e Silva
assume a Presidência da República, sucedendo o General Castelo Branco. Ainda
no final do ano de 1966, em 7 de dezembro, é baixado o Ato 4, caracterizado
pela hegemonia do poder executivo federal sobre os demais poderes, pois o
presidente poderia encaminhar projetos, com força de decretos, a revelia do
Congresso Nacional, bastava para isso o caráter de urgência. Municípios
174
PENNA, Lincoln. Op. cit., p. 290.
136
considerados área de segurança nacional teriam os prefeitos nomeados pelo
Conselho de Segurança Nacional, órgão direto da Presidência da República.
O Ato Institucional nº 5 é implantado em 13 de dezembro de 1968. Foi o
único Ato Institucional sem prazo determinado para expirar e o mais radical da
ditadura militar. O motivo para sua imposição pode ser explicado na leitura atenta
da seguinte reportagem do Jornal do Brasil: “Um memorando da CIA à
Casa Branca fazia, no dia 29 de novembro de 1968, uma avaliação da crise
política que encurralava o então presidente, Marechal Arthur da Costa e Silva. A
análise da CIA descrevia o crescimento da linha-dura nas Forças Armadas,
especialmente entre oficiais jovens, que estavam insatisfeitos com a repressão ao
movimento estudantil, à imprensa e a setores de oposição. Esses oficiais
apresentavam a Costa e Silva um claro dilema: o endurecimento do regime,
rompendo qualquer barreira constitucional, ou um golpe palaciano, para derrubá-
lo”
175
. Nota-se que a CIA, agência de espionagem americana, informa ao
governo dos Estados Unidos a frustração da oficialidade pela forma como a
repressão vinha sendo desencadeada pelo governo. Na reunião ministerial que
precede o Ato, o então Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, sintetiza numa
frase o teor com que esse ato viria a vigorar: “às favas senhor presidente, neste
175
ALVES, Rosental Calmon. O AI-5 Segundo a CIA. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 dez. 1988. Caderno B,
p.6.
137
momento, todos os escrúpulos de consciência”
176
. Institucionalizava-se o terror
da ditadura militar. Em seu Artigo 5º, item III, constava: proibição de atividades
ou manifestações sobre assunto de natureza política. O Artigo 10º é mais direto:
Fica suspenso o habeas corpus, nos casos de crimes políticos contra a
segurança nacional, a ordem econômica e social. Com esta última medida
legitimava-se a tortura.
Carlos Marighella, ao ser preso em 9 de maio de 1964, denuncia os
métodos utilizados nas prisões da ditadura militar, bem antes da instalação do
Ato Institucional número 5: “Antônio Pereira Neto, marítimo, teve o olho quase
vazado no DOPS da Guanabara. O ferroviário Ladislau Silva sofreu o suplício da
espuma de sabão nos olhos, que foram em seguida lacrados com esparadrapos.
O Dr. Simão Kossubutski, preso em Goiás, passou pelo suplício do torniquete,
aperto dos testículos entre duas pequenas tábuas”
177
. Esses três casos são
ilustrativos de uma seqüência abordada por Marighella, incluindo as péssimas
condições no tocante a alimentação e ao alojamento dos presos e os inúmeros
casos de suicídios e tortura seguida de morte. O fechamento do regime se faria
maior através da perseguição a profissionais das mais variadas funções.
Marighella relata: “o professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de São
Paulo, o sociólogo Florestan Fernandes, porque escreveu uma carta ao coronel
176
ALTMAN, Fábio. 13 de dezembro de 1968: O Dia do AI-5. Época, Rio de Janeiro, nº 29, p. 74-89, 7 dez. 1998.
138
encarregado de um IPM, defendendo a liberdade de cátedra e dando motivos
por que decidira depor, foi detido no xadrez de um quartel. Carlos Heitor Cony,
escritor de mérito inconfundível, foi processado pelo ministro da Guerra, que
tentava cercear-lhe o direito de escrever. Maria Yeda Linhares _ um dos valores
da nova geração _ foi demitida da direção da Rádio Ministério da Educação
e enxovalhada publicamente porque imprimira à emissora uma orientação mais
consentânea aos interesses culturais do nosso povo. Jornais foram ilegal e
arbitrariamente fechados em todo o país ou simplesmente não puderam mais
circular. A União Nacional dos Estudantes (UNE) teve sua sede incendiada pelos
vândalos golpistas, e posteriormente foi declarada extinta por iniciativa do
Ministério da Educação. Contra os sindicatos mais importantes foram
instaurados IPMs, com prazos excedidos e funcionando ilegalmente, e onde são
chamados a depor líderes sindicais que não saíram do país. Punidos com
cassações de direitos políticos e outras sanções. Perseguidos no país ou
vivendo no exílio, existem muitos brasileiros”
178
. Entre esses últimos destacam-se
Leonel Brizola, João Goulart, Juscelino Kubitschek, Luis Carlos Prestes, Ana
Montenegro, Paulo Freire, Francisco Julião, Anísio Teixeira e o próprio Carlos
Marighella. Marighella reuniu essas denúncias no livro editado em 1965, “Por que
resisti à prisão”, pouco mais de um ano de vigor do regime militar.
177
MARIGHELLA, Carlos. Por que resisti à prisão. Op. cit., p. 83-84.
139
O Partido Comunista realiza o seu VI Congresso em 1967, privilegiando a
luta pela reconquista das liberdades democráticas através da organização e
mobilização das massas e de uma política de aliança com os setores
antigolpistas. Seria uma maneira de relegar a luta armada a um plano
secundário. Como conciliar uma mobilização de massas diante dos limites
impostos pela ditadura militar? Por mais que o ano de 68 apontasse para uma
considerável atuação popular, sobretudo dos estudantes, a ditadura não estaria
disposta a ceder, assim pensava Marighella.
Entre 31 de julho a 10 de agosto realiza-se em Cuba a Conferência da
Organização Latino-Americana, OLAS. Carlos Marighella , em dezembro de
1966, apresentou carta à Executiva do Partido Comunista Brasileiro renunciando
a seu cargo. Saía da Executiva, mas não do Partido, restringindo sua atuação em
São Paulo. Por esse documento crítica o comportamento da Comissão
Executiva do Partido que segundo ele “repousa em fazer reuniões, redigir notas
políticas e elaborar informes”
179
. Tal como ocorrera em 1961 e em 1964, o
Partido Comunista, para Marighella, não estaria disposto a combater o regime
autoritário. Sugere que as lutas pelas reformas de base não se dariam de forma
pacífica, mas sim “através da tomada de poder por via revolucionária e com a
178
Idem, p. 87-95.
179
MARIGHELLA, Carlos. Carta à Comissão Executiva do PCB. Rio de Janeiro: Assírio & Alvim, 10/12/1966;
coletânea de textos reunias por Adérito Lopes, 2ª edição.
140
conseqüente modificação da estrutura militar que serve às classes dominantes”
180
. Contrariando o Partido viaja a Cuba por ocasião da OLAS e de lá remete
missiva, notabilizada como “Respostas ao Questionário de Pensamento Crítico”.
Num dos itens Marighella expõe definitivamente o porque da opção que vinha
tomando: Antes do golpe militar de abril de 64, a linha de ação traçada pela
direção do PCB era de apoio à luta pelas reformas básicas, através da expansão
do movimento de massas e da aliança com a burguesia. Depois do golpe militar,
a linha de ação do PCB foi proposta no documento intitulado TESES, de junho de
1966, para ser discutido em todo o partido. A linha de ação formulada neste
documento não difere no fundamental, da tática e estratégia anteriores, pois
preconizam um caminho de desencadeamento do movimento de massas para a
instauração de um governo que restitua as liberdades democráticas. A direção da
burguesia na revolução brasileira continua sendo reconhecida neste documento,
que igualmente não aceita com o solução dos problemas do povo
brasileiro o caminho da luta de guerrilhas”. Para mais adiante definir de uma vez
por todas sua posição: “No Brasil só a luta armada, com a luta de guerrilhas
com sua melhor expressão, pode levar à unidade das forças revolucionárias”
181
.
A carta é datada em 8 de agosto de 1967, em setembro Marighella seria expulso
do Partido Comunista. De retorno ao Brasil, passa atuar na liderança do
180
Id., p.19.
141
Agrupamento Comunista de São Paulo, dissidência do PC que se simpatizava
com a luta armada.
A divisão dentro do Partido Comunista não se restringiu ao Agrupamento
Comunista. Militantes como Jacob Gorender, Mário Alves, Apolônio de
Carvalho e Miguel Batista dos Santos vão romper com o PC, criando um novo
partido político, o PCBR. O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário se
opunha ao imobilismo da Comissão Executiva, porém julgavam que a luta
revolucionária não seria realizada sob uma direção militar, era preciso uma
direção política
182
. Em “Combate nas Trevas”, Jacob Gorender explica o afluxo
de várias organizações a luta armada no Brasil: “À exceção da maioria do Comitê
Central do PC, a esquerda considerou a falência do caminho pacífico um fato
provado. Seguia-se que a luta armada, não travada contra o golpe de direita,
tornava-se imperativa quando os golpistas já tinham o poder nas mãos”
183
. Nem
por isso pode-se reter uma unidade desses segmentos de esquerda ao optarem
pela luta armada. Surge no cenário nacional um conjunto de organizações que
passam a atuar isoladamente, tendo como objetivo a derrubada imediata da
ditadura. A Revolução Cubana deve ser vista aí como um elemento propulsor
181
MARIGHELLA, Carlos. Respostas ao questionário de Pensamento Crítico. Havana, 8/08/1967.
182
Depoimento de Jacob Gorender colhido pelo autor em 7/12/1998.
183
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1998.
142
dessas tendências. Não significaria uma cópia fiel do modelo revolucionário
cubano, mas o seu exemplo surtia efeitos no Brasil.
Nesse exato momento, a narrativa passa a enfocar a passagem do
Agrupamento Comunista de São Paulo à Ação Libertadora Nacional. Procurando
enfatizar a atuação de Carlos Marighella dentro da luta armada.
Em abril de 1968 circula o primeiro exemplar de “O Guerrilheiro”, jornal
que se intitulava “órgão dos grupos revolucionários”
184
. O mesmo exemplar
trazia o “Pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo”. No
Pronunciamento é sustentada, logo no seu início, a idéia de que não eram
partidários do foquismo por considerá-lo inaquedado a realidade brasileira: “o
foco seria o mesmo que lançar um grupo de homens armados em qualquer parte
do Brasil e esperar que, em consequência disso, surgissem outros focos em
pontos diferentes do país”
185
. A proposta do Agrupamento era de uma
organização que se libertasse dos vícios cometidos pelo Partido Comunista e da
Comissão Executiva, encaminhada na guerra de guerrilhas, tendo na área urbana
papel de relevo, sem esquecer o papel de “fiel da balança da revolução brasileira”
exercido pelo camponês
186
. Para tanto, era necessário surgir uma nova
organização. Esta deveria ser “clandestina, pequena, bem estruturada, flexível,
184
O Guerrilheiro , São Paulo, Abr. 1968.
185
Id., p.2.
186
Id.
143
móvel. Uma organização de vanguarda para agir, para praticar a ação
revolucionária constante e diária, e não para permanecer em discussões e
reuniões intermináveis”
187
. Mais adiante, na conclusão do artigo, é revelada a
base teórica que move o Agrupamento: “a ação faz a vanguarda”. Uma leitura
atenta do Pronunciamento reflete o quanto os comunistas de São Paulo, ao
partirem em direção a uma nova organização, criavam a Ação Libertadora
Nacional (ALN). E seu líder e articulador mais notório era Carlos Marighella. A
ALN não seria apenas Carlos Marighella, sua liderança tinha, pela própria
trajetória política, um peso considerável. Em junho de 1969, Carlos Marighella
lança “O Minimanual do Guerrilheiro Urbano”. Na introdução destaca-se uma
palavra de ordem que muito define o grau de descentralização da ALN. Assim
define Marighella: “o dever de todo revolucionário é fazer a revolução”
188
. O
princípio que moldava a formação do Agrupamento Comunista de São Paulo
concentrava-se na ação como vanguarda. Enfim, a ALN surge de uma dissidência
do Partido Comunista, mais se afirma no panorama político nacional como
uma organização de resistência a ditadura militar, fundamentada na luta de
guerrilhas.
187
Idem, p.2.
188
MARIGHELLA, Carlos. Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano. Assírio & Alvim, jun.1969; coletânea de
textos reunias por Adérito Lopes, 2ª edição.
144
Manuel Cyrillo é um exemplo de como vai se constituindo a militância da
ALN. Cyrillo, em 1964, era um jovem de 18 anos com afazeres normais. Morava
nas imediações do bairro das Perdizes, zona sul de São Paulo. Natural da Bahia _
o que não era pré-condição para ingresso na ALN _ vivia em São Paulo desde
1954. A vida cotidiana incluía o futebol, o namoro, as festas, as brigas, enfim,
tudo normal. O interesse por política desponta, particularmente, em 1961. Com a
renúncia de Jânio Quadros e o veto declarado das forças armadas a João
Goulart, dois amigos de Cyrillo vão se engajar na resistência liderada por Leonel
Brizola, no Rio Grande do Sul. Ambos prestavam serviço militar na Aeronáutica.
A vida cotidiana se entrelaça com a política, não a inibia. Na verdade, o que
Manuel Cyrillo deixa claro é que o seu início na militância política não tem uma
relação simétrica com o movimento estudantil, nem com o movimento operário.
O interesse por política se dá nos bairros, no movimento popular, da turma de
bairro que convivia
189
. O engajamento político na ALN vem a posteriori, após
uma avaliação dos fatos que se debatiam sobre a política nacional. À proporção
que o regime militar vai fechando os canais formais da militância política a
aproximação com a Ação Libertadora Nacional se estreita. A identificação com a
ALN não foi imposta. A ALN, segundo Cyrillo, não se apresentava
fundamentalmente como socialista. Tinha por definição um caráter de resistência
189
Depoimento de Manuel Cyrillo colhido pelo autor em 18/12/1998.
145
à ditadura militar. Isto pelo menos era a conclusão a que ele e seus pares
chegaram e por isso se engajaram. Uma organização, como o nome dizia, de
libertação nacional, de oposição à ditadura instalada. O livro “Por que resisti à
prisão”, escrito por Marighella, foi relevante para a uma definição
190
. Análise
semelhante é compartilhada pelo ex-militante da ALN, Carlos Fayal. Para ele, um
dos pontos de maior destaque da ALN e de Marighella foi reunir um número de
pessoas independente politicamente. Fayal era estudante do Colégio Mallet
Soares, em Copacabana, bairro da zona sul carioca. O elo com a política aflora
na passagem pelo Mallet Soares. Ali chegou a dirigir um jornal de curta duração.
Articulara-se com demais grupos de diversas áreas que propunham uma
discussão acerca da resistência ao golpe militar. Os limites impostos pela
ditadura refletia-se nas escolas impedindo o funcionamento dos grêmios
estudantis. Grupos de estudos eram repelidos. Se optassem por atuar
publicamente corriam os riscos de serem assassinados. Do ensino fundamental,
passando pelo pré-vestibular, a militância política vai se acentuando
191
.
O movimento estudantil, em especial no ano de 1968, vai se transformar
num dos principais focos de contestação ao regime militar. E por isso será
nomeado um dos inimigos públicos mais perseguidos. O limiar dessa
190
Idem.
146
perseguição estoura no assassinato do estudante Edson Luís, em 28 de março de
1968, no Rio de Janeiro. Ele se encontrava no restaurante Calabouço, restaurante
bastante freqüentado pelos estudantes, haja vista o preço acessível da
alimentação. O Calabouço situava-se próximo da Embaixada dos Estados
Unidos. Era uma época de efervescência do movimento estudantil. Cada vez
mais os estudantes vêem que a solução de problemas de ordem educacional,
como o aumento de verbas, se identificam com a política desenvolvida pela
ditadura. Cada vez mais, os estudantes vão assimilando a brutalidade com que
havia se instalado o regime autoritário em 1964. A morte de Edson Luís
escancara de uma vez com a perversidade do regime e dela ascende um barril de
pólvora que motiva a classe média carioca, bem como a igreja católica mais
progressista, a apoiar os estudantes na oposição ao regime. A passeata dos cem
mil, realizada em junho de 1968, é elemento significativo desse período. Entre
março e dezembro de 1968 explodem duas das principais greves operárias
enfrentadas pelo regime militar: no estado de Minas Gerais com a Belgo Mineira,
na cidade de Contagem; em São Paulo, com a Cobrasma, localizada em Osasco.
Em meados de outubro realiza-se o XXX Congresso da União Nacional dos
Estudantes. O local escolhido foi Ibiúna, cidade interiorana do estado de São
Paulo. Cerca de novecentos estudantes invadiram Ibiúna, despertando a atenção
191
Depoimento de Carlos Fayal colhido pelo autor em 2/12/1998.
147
dos moradores. Seria impossível passar desapercebido os visitantes da cidade,
mesmo que o local do congresso se restringisse a um sítio nas imediações da
cidade. As notícias, no interior do Brasil, não necessitam de muita tecnologia
para circular. Ainda mais se tratando de um contigente de tamanha densidade. Em
14 de outubro, “os 920 congressistas de Ibiúna são presos, entre eles os quatro
principais líderes estudantis brasileiros da época: Vladimir Palmeira, José Dirceu,
Luís Travassos, e Jean-Marc Charles Frederic Von der Weid”
192
.
Entre os estudantes presos em Ibiúna encontrava-se Carlos Fayal. Ele
enfatiza que sua inserção na ALN não está dissociada de uma atividade política
anterior. Contribuiu para isso a guerrilha desencadeada por Che Guevara na
Bolívia, onde o líder revolucionário acabaria morto. Che Guevara defendia a tese
da criação de vários Vietñas como estratégia para derrotar o imperialismo dos
Estados Unidos. Para Fayal essa visão teve um peso considerável na sua
opção pela luta armada, mesmo não emplacando
historicamente. Vários grupos de luta armada sondaram os estudantes para
ingressarem, entre eles a Ala Vermelha do PC do B (Partido Comunista do
Brasil)
193
. Carlos Fayal, em particular, defendia a tese de uma organização
identificada com o país: “vinha linha chinesa, linha cubana, linha soviética, linha
192
POERNER, Artur José. O Poder do Jovem: a história política dos estudantes no brasileiros. São Paulo: Centro
de memória da Juventude, 1995.
148
albanesa. Eu queria uma linha brasileira”
194
. O que acabou se consumando com a
opção pela ALN.
Mas como funcionava, em termos práticos, a Ação Libertadora Nacional?
Manuel Cyrillo narra sua primeira ação política, em 27 de dezembro de 1968,
quando vigorava o Ato Institucional 5. O objetivo era a expropriação de
explosivos de uma empresa paulista registrada como pedreira, mas que
clandestinamente fabricava explosivos. Para esse tipo de ação a ALN dispunha
do Grupo Tático Armado (GTA). Este que Cyrillo participa era uma terceira
composição de GTA da ALN. Chegam na empresa munidos de um mandado
judicial de busca e apreensão assinado por um juiz de nome Carlos Marighella. A
apreensão transcorre sem maiores problemas, tudo havia sido checado antes da
ação. Os “oficiais de justiça” possuíam um mapa da fábrica explicitando a
localização dos paióis, alguns eram subterrâneos. A rota dos carros para o
transporte dos explosivos já estava previamente determinada
195
. Como não
houve nenhuma resistência dos funcionários a operação foi um sucesso. O GTA
quando atuava na área urbana, nas palavras de Celso Horta, ex-militante da ALN,
era um aprendizado para a guerrilha rural. A própria guerrilha urbana era um
trabalho de propaganda, de aprendizado, de infra-estrutura, essa era a concepção
193
O Partido Comunista do Brasil (PC do B) surge de uma dissidência do PCB, em 1962, e segue uma linha política
inspirada na revolução chinesa ocorrida em 1949.
194
Cf. Depoimento de Carlos Fayal.
149
196
. No “Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano”, há uma definição de como o
guerrilheiro faria para se manter, e nesse caso, manter a própria organização:
“as pequenas expropriações são destinadas à manutenção do guerrilheiro urbano
e as grandes necessidades da Revolução”
197
. Podemos reter das assertivas acima
que o Grupo Tático Armado passa a atuar na cidade com dois objetivos básicos:
desestruturar a ditadura através de ações político-militares e arrecadar recursos
para se manter e financiar uma fase posterior de guerrilha rural. A área urbana não
era, a rigor, o único objetivo da ALN. Tanto que Carlos Marighella planejava uma
viagem para o Mato Grosso no dia 9 de novembro de 1969, cinco dias após sua
morte, com a finalidade de implantar a guerrilha rural
198
.
Retornando a Manuel Cyrillo, logo depois da sua primeira ação, cai na
clandestinidade. Passa, aproximadamente, mês e meio em Juiz de Fora. Quando
retorna encontra o GTA de São Paulo se reorganizando. Na sua definição o
Grupo Tático Armado de São Paulo tinha como objetivo inicial verificar na
guerrilha urbana se o guerrilheiro reunia condições para ser enviado ao exterior,
onde receberia treinamento para a guerrilha rural
199
. De início, o GTA deveria
atuar numa fase posterior a guerrilha rural, essa era a estratégia. Entretanto, passa
195
Cf. Depoimento de Manuel Cyrillo.
196
Depoimento de Celso Horta colhido por Emiliano José, s/d.
197
Marighella, Carlos. Minimanual do Guerrilheiro Urbano. Op. cit. p. 59.
150
a atuar na área urbana. Em meados de 1969, há uma reorientação das ações
dentro desse GTA, cujo teor passaria a conciliar ações urbanas mais politizadas.
Ao invés de expropriar apenas um banco, o impacto seria maior reunindo,
simultaneamente, áreas onde se localizavam várias agências. Conjuntamente à
ação eram distribuídos panfletos, contavam, para tanto, com o isolamento da
área. Ocupam a Rádio Nacional, onde é lido um manifesto assinado por
Carlos Marighella. A ação de maior repercussão da ALN foi o sequestro do
embaixador dos Estados Unidos, em setembro de 1969, mas isso veremos mais
adiante. Cyrillo demonstra que a guerrilha, por definição, só aparece quando tem
superioridade tática. Isso implica reunir superioridade militar em relação ao
inimigo. Um componente indispensável é a surpresa. O inimigo, no caso a polícia
brasileira, pode estar vigilante, de prontidão, mas nunca sabendo ao certo o local
exato da ação. Mesmo a retirada deve ser programada dentro da idéia de
superioridade militar. Na área urbana, em particular, a retirada é eficaz porque ao
virar uma esquina se desaparece, já na área rural as esquinas são mais longas, o
guerrilheiro fica mais exposto
200
. Na sua trajetória dentro a ALN Manuel Cyrillo
teve apenas um contato com Carlos Marighella, logo após o sequestro do
embaixador americano. Entretanto, enfatiza que dentro da ALN não havia uma
198
Cf. Depoimento de Clara Charf.
199
Cf. Depoimento de Manuel Cyrillo.
200
Idem.
151
centralização das ações do GTA por parte de Marighella. As ações eram
decididas pelos membros do GTA, os locais escolhidos, os pormenores da
ação, tudo era decidido pelos componentes do GTA. Não que este se
estruturasse de modo unificado. Era composto por subgrupos que se
encarregavam das ações urbanas. Cyrillo mesmo tornou-se um subcomandante
do GTA de São Paulo. No entanto, pelo respaldo dentro da ALN, a opinião de
Carlos Marighella, seja positiva ou negativa, surtia seus efeitos. No sequestro do
embaixador americano Charles Elbrick, Marighella, a princípio, não tomara
ciência da ação. Fato que despertaria sua contrariedade. A idéia do sequestro não
partiu da ALN. Foi o “grupo político Dissidência _ um racha universitário do
Partido Comunista, que desde o início de 69 começara a fazer ações armadas no
país”
201
. De início a idéia era elaborar uma estratégia para a retirada do líder
estudantil Vladimir Palmeira da prisão. O sequestro foi encaminhado por Franklin
Martins, militante da Dissidência, após conversa com Cid Benjamin. Para efetuar
a ação a Dissidência resolve convocar uma organização mais experiente
militarmente: a ALN. Para o Rio de Janeiro se deslocam Joaquim Câmara
Ferreira, Virgílio Gomes da Silva, Paulo de Tarso Venceslau e Manoel Cyrillo de
Oliveira Netto. A data escolhida foi a semana da pátria, no dia 4 de setembro. Da
idéia inicial de libertar Vladimir Palmeira projeta-se um ato político de maior
201
LIMA, Roni. O dia que o embaixador foi seqüestrado. Jornal do Brasil, 1º caderno, 3 set. 1989.
152
impacto, onde outros quatorze presos políticos comporiam a lista, entre eles
Gregório Bezerra, militante do PC. Além disso, a ditadura foi obrigada a ler nas
emissoras de televisão um manifesto, contendo o seguinte trecho: “Finalmente
queremos advertir a todos aqueles que torturam, espancam e matam nossos
companheiros que não vamos aceitar a continuação dessa prática odiosa”. Para
mais adiante concluir em tom enfático: “Agora é olho por olho, dente por dente”
202
. O manifesto aparecia assinado pela ALN e pelo MR-8. Na verdade, a
denominação MR-8 surge de um fato inusitado. Quem explica é o historiador e
participante da ação, Daniel Araão Reis Filho: “no primeiro semestre de 1969, o
CENIMAR (órgão de informação da Marinha) tinha desbaratado a Dissidência
do Estado do Rio, que era uma organização sem nome, porém, tinha uma folha
mimeografada que eles chamavam de ‘8 de outubro’, em homenagem ao dia da
morte de Che Guevara na Bolívia (8/10/67). Quando o CENIMAR estourou essa
organização não podia anunciar uma organização sem nome. Então inventou e
batizou a organização como Movimento Revolucionário 8 de Outubro para que
tivesse maior repercussão”
203
. A autoria pessoal do manifesto foi realizada por
Franklin Martins, com a contribuição de Joaquim Câmara Ferreira e correção de
Fernando Gabeira, já com o manifesto redigido e os nomes escolhidos.
202
Jornal do Brasil, 1º Caderno, p. 9, 3 set. 1989.
203
Entrevista de Daniel Aarão Reis ao Estado de São Paulo, 01/05/1997.
153
Manuel Cyrillo participou diretamente do sequestro do embaixador.
Quando foi preso, em setembro de 1969, Cyrillo não foi condenado por
sequestro. Nada havia juridicamente que regulamentasse o sequestro do
embaixador como crime. Recebe a condenação por quebra de imunidade
diplomática e por cárcere privado. Condenação, que se aplicada com rigor,
serviria para encarcerar toda a cúpula da ditadura militar. Do contato com
embaixador Cyrillo relembra a falta de compreensão de Elbrick pelo fato de
seu vice, Pedro Aleixo, não assumir a presidência em função dos problemas de
saúde de Costa e Silva. Governava o país uma Junta Militar composta por
representantes das três forças. Elbrick relatou que havia questionado o
Chanceler, Magalhães Pinto, e mesmo assim não compreendia: “Por que não
Pedro Aleixo?”
204
Outro ponto abordado por Cyrillo foi o questionamento junto
a Elbrick a respeito de uns documentos que ele carregava no dia do sequestro.
Tal documento vinha com o carimbo de Top Secreet e o seu conteúdo uma
extensa lista de nomes da política nacional. O embaixador explicou que aquilo
era serviço realizado pela CIA. Esta estava impressionada com a resistência
popular a ditadura militar, em especial a luta armada e já previa um nome de
consenso, que possivelmente pudesse implantar um governo civil. O nome
escolhido foi o de Dom Hélder Câmara. A lista em poder do embaixador não
204
Cf. Depoimento de Manuel Cyrillo.
154
tinha mais efeito. A conversa com o embaixador americano ficou gravada numa
fita cassete. Dois dias após a libertação dos presos e do embaixador, Manuel
Cyrillo e Virgílio Gomes se encontravam em pleno Rio de Janeiro. O material
utilizado na operação estava num aparelho da Dissidência, que foi encontrado
pela polícia. Informados sobre o cerco, ambos conseguem chegar a São Paulo.
Driblaram a perseguição da polícia comprando dois ingressos de um jogo de
futebol que se realizava no Maracanã. Palmeiras e Vasco pelo torneio Rio-
São Paulo. Lá tentariam se infiltrar na torcida do Palmeiras e retornar para São
Paulo. O estádio do Maracanã estava vazio, o torneio ainda no início não
motivava o público. O jeito foi se separarem e tentar chegar a São Paulo ilesos. O
que acabou acontecendo. Enquanto a repressão revirava a cidade eles cruzavam,
em horários alternados, a via Dutra a bordo de um coletivo. Cyrillo explica que
essa fita pode estar nas mãos do Exército
205
.
Em São Paulo, Marighella convocaria uma reunião com os participantes do
sequestro. De fato, de início ele foi pego de surpresa com o sequestro do
embaixador. Argumentou que nem mesmo a ALN do Rio de Janeiro sabia que
aquela ação ocorreria, fato que a expunha a repressão que certamente se
desencadearia no Rio. Alerta que Cyrillo e os demais participantes acatam sem
maiores problemas. Outra questão é que pelo teor da ação ela devia ser mais
205
Idem.
155
aprofundada, afinal tratava-se do embaixador americano junto a ditadura militar
no Brasil. A resposta a esses argumentos é narrada por Manuel Cyrillo. De fato a
ação poderia ser melhor capitalizada, poderia ser melhor potencializada, o risco
de perder quadros no Rio de Janeiro foi um vacilo. Entretanto, “era um ato
revolucionário, justo, correto, estava dentro da nossa linha”
206
. Mesmo com
as ponderações feitas, o clima na reunião não foi de animosidade. Marighella
estava revendo alguns companheiros do Partido Comunista que haviam
ido à Cuba fazer
treinamento militar. Procurou primeiro descontrair o ambiente com naturalidade.
Na hora de tratar do assunto expôs sua visão mais diretamente a Virgílio, o
comandante do GTA. Ao final, acabou compreendendo a posição do GTA
207
.
Apenas como registro, Joaquim Câmara Ferreira, velho companheiro de
Marighella desde os tempos do PC, também estava nessa reunião, que
aproximadamente reunia um número de dez militantes da ALN. Não havia,
portanto, uma centralização dentro da ALN por parte de Marighella, porém é
inegável que sua posições tinham um peso político muito forte. Se o cerco a
ALN se acentua após o sequestro é uma questão que no todo não deixa de ter
suas implicações. Entretanto, já vimos que desde a implantação do AI-5 a própria
CIA situa a posição do regime em relação a repressão como um dos pontos
206
Cf. Depoimento de Manuel Cyrillo.
156
prioritários. Não foi o sequestro que motivou, isoladamente, o processo de
quedas que sofreriam ALN e outras organizações da luta armada. Caso contrário,
pode-se cair num raciocínio maniqueísta de justificar e legitimar a ação repressiva
que a ditadura vinha conduzindo desde 1964.
Já Carlos Fayal, no Rio de Janeiro, encontrou-se com Marighella mais
vezes. Fayal recorda que ao conversarem dentro de um carro pelas ruas do Rio,
ouviu de Marighella o alerta de que era melhor os mais visados saírem do país.
Sempre alertava para a questão da segurança. Ao invés de garantir a própria
retaguarda, o atormentava a segurança dos demais militantes da ALN.
Além disso, havia a necessidade de se preservar para uma guerra de longo
prazo
208
. Uma frase sintomática de Marighella era a seguinte: “Isso aqui não é um
desfile na passarela!”
209
Esta característica aproximava Marighella dos demais
militantes, retirando a auréola de mito, sem contudo empanar o carisma que
exercia. Num aparelho arriscado situado no bairro do Flamengo, no Rio de
Janeiro, onde se a polícia chegasse as chances de escapar seriam pequenas, lá
estaria Marighella: “Ele fazia questão, até contra nossa vontade, de dar
assistência, de levar esse calor humano, uma coisa super importante, além dele
207
Idem.
208
Cf. Depoimento de Carlos Fayal.
209
Idem.
157
estar ali correndo riscos na prática”
210
. Mantém-se a característica de não
fomentar uma empáfia de personalidade. Fayal é taxativo ao afirmar que a
ditadura militar foi a responsável por instalar um clima de terror no país. Explica
que as ações urbanas da ALN, no Rio de Janeiro, repercutiam positivamente. A
fase que as ações passam a ser mais politizadas, de certa forma, a população
acena com apoio a ALN. Daí a tendência de aprofundar as ações na cidade, que
também era uma deformação da idéia inicial. A ditadura percebe o potencial da
ALN e passa a atuar de forma acirrada e violenta na tentativa de anular essa força
211
.
Roberto Barros Pereira, ex-militante da ALN, relata sua inserção na
organização via movimento estudantil. Foi militante da Juventude Estadual
Católica (JEC), durante o período que cursou o ensino secundarista. Ao entrar
na Universidade Mackenzie, em São Paulo, cursando Engenharia, passaria a JUC,
Juventude Universitária Católica. Como Carlos
Fayal, Roberto vinha de família de classe média. No período que antecede o
golpe militar passa a atuar na União Estadual dos Estudantes (UEE). Após o
golpe militar um grupo da JUC achava que os católicos deveriam se engajar na
luta política. Surge daí a Ação Popular (AP), em Minas Gerais. O intermediário
entre a AP e componentes da JUC foi Betinho, que anos mais tarde, na década
210
Idem.
158
de 90, lideraria o movimento pela erradicação da fome no Brasil. Roberto sai da
JUC e vai para a Ação Popular. A princípio a AP acreditava que o golpe não iria
muito longe. A redemocratização era questão de tempo
212
. Na medida que o
regime autoritário revela a sua verdadeira face ditatorial, com o aparecimento dos
Atos Institucionais, a luta armada vai se tornando uma opção inevitável. Em
meados de 67, Roberto Barros era um
jovem de vinte e cinco anos, com físico avantajado e conhecimentos de judô e
karatê. A militância política fornecera um embasamento teórico consistente.
Régis Debray, com “Guerra de Guerrilhas, Leo Hubermanns, com o clássico
“História da Riqueza do Homem”, eram leituras obrigatórias.
À medida que o regime vai se fechando a opção pela luta armada vai se
tornando uma realidade na prática. Tanto que passa a atuar em ações calcadas
na arrecadação de armas. Essas ações, de início, causavam um impacto terrível,
mas com o passar dos meses se tornariam algo bastante comum
213
. A mesma
opinião é registrada por Manuel Cyrillo, “depois do batismo de fogo, a guerrilha,
particularmente, a urbana, dá um nível de tranqüilidade muito grande
214
. No
movimento estudantil, Roberto ampliou seus contatos políticos com o Partido
Comunista de São Paulo. Era comum a troca de textos, as alianças políticas. Um
211
Idem.
212
Depoimento de Roberto de Barros Pereira colhido pelo autor em 8/12/1998.
213
Idem.
159
contato político que aparentemente era normal. Entretanto, o Partido Comunista
de São Paulo, a partir de 1964, reunia um das principais dissidências, como já foi
citado acima. Da Ação Popular, Roberto passa a atuar na luta armada junto a
ALN
215
. Dos três militantes da ALN mencionados acima, Roberto foi o que mais
estreitou contato com Carlos Marighella. Desses contatos surgiram as ações.
Roberto conhecia bem o trânsito de São Paulo, além de ser um bom motorista.
Numa dessas situações é acompanhado por Marighella e mais dois companheiros
de ALN. Marighella questiona Roberto sobre as ações de que havia participado.
A resposta confirmaria as expropriações de armas. Marighella faz uma proposta
até então inesperada para Roberto: expropriar um banco. A tarefa reservada para
Roberto seria ficar na porta do banco dando cobertura a Marighella e aos demais
militantes. Contava para isso com uma arma. O detalhe era que o revólver em seu
poder era de brinquedo, muito semelhante a uma arma de fogo. Realizado o
assalto, Roberto não conseguia sair do lugar, não conseguia andar e era ele o
motorista. Os demais tiveram que carregá-lo um quarteirão inteiro até o
automóvel. Em situações posteriores ele narra que Marighella tinha um certo
apreço por sua pessoa. Gostava muito que guiasse o carro nos seus
deslocamentos por São Paulo, sempre procurando as ruas secundárias, fugindo
assim de um possível cerco policial. Seria arriscado, por exemplo, se expor a
214
Cf. Depoimento de Manoel Cyrillo.
160
trafegar em plena Avenida Paulista. Lembremos que, a essa altura, a
caracterização de terrorista não o imobiliza. Por sinal rebate, posteriormente, essa
denominação no “Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano”: “A acusação de
terrorista já não tem o sentido pejorativo que se lhe dava antes. Este termo,
ornou-se de cores e de um sentido novo. Já não causa medo nem vergonha,
representando, ao contrário, um pólo de atração”
216
. Num desses
deslocamentos por São Paulo, Roberto Barros Pereira conta que passavam pela
rua Heitor Penteado, no exato momento em que cruzam com um carro do
exército repleto de homens armados. Marighella estava no fusca, na parte traseira
com mais dois acompanhantes, outro se encontrava ao lado de Roberto que
dirigia. A reação de Marighella foi de uma coragem a beira da temeridade. É
evidente que chamaria a atenção de qualquer policial distraído um carro
contendo cinco elementos. Roberto, na tensão daquele momento, ouviu
Marighella sussurrar: “Tão perto e tão longe. Olha, se eles soubessem, hem?”
217
Roberto procura explicar esse comportamento de Marighella caracterizando-o
como a pessoa mais destemida que conheceu
218
. Em situação semelhante, com
Carlos Fayal, pelos subúrbios do Rio de Janeiro, ambos se deparam com uma
batida policial. Marighella com a calma de sempre procura contornar a situação, e
215
Cf. Depoimento de Roberto Barros Pereira.
216
MARIGHELLA, Carlos. Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano. Op. cit., p. 54.
217
Cf. Depoimento de Roberto Barros Pereira.
161
a polícia, indicando o trajeto a ser seguido. Costumava tranqüilizar a situação
indicando a seguinte frase: “O inimigo quando pensa que nós estamos longe, nós
estamos perto”
219
.
Temeridade à parte, o que Marighella revela nessas ocasiões, além da
coragem, é a intenção de transferir confiança aos demais militantes. Sem contudo
se afastar de uma das suas características fundamentais que é a impetuosidade,
presente em vários momentos de sua trajetória. Tal comportamento acaba por
gerar uma discussão entre ele e Barros Pereira a respeito de um fato. A rua
Teodoro Sampaio, situada no Bairro de Pinheiros, desembocava num largo, onde
se podia encontrar uma igreja. Era um local de constantes batidas do Exército.
Por volta das quatro horas da tarde, Marighella e Roberto tinham um ponto
marcado. A regra básica era chegar rigorosamente no horário. Roberto, ao se
aproximar do local, percebe um cidadão de um metro e noventa de altura, em
cima de uma banca de jornal, fazendo discurso. Nem mesmo o disfarce da
peruca que usava tirava a certeza de que aquela pessoa era Carlos Marighella.
Marighella explicou a situação. Antes do encontro marcado houve uma batida da
repressão. Alguns operários chegaram a apanhar. Marighella não se conteve e
tratou de dar o seu recado. Apesar de colocar em risco a vida de ambos,
Roberto analisa a situação hoje sem o peso daquele momento e aponta nesse
218
Idem.
162
episódio um exemplo de como a solidariedade de Marighella era intensa, mesmo
transgredindo todas as normas de segurança que ele mesmo defendia
220
. Por
sinal, uma das preocupações mais presentes que ouviu de Marighella era
relacionada às normas de segurança a serem tomadas numa ação. Ele alerta que
pela norma da guerrilha uma ação só deveria ser colocada em prática a partir do
acúmulo de todas as vantagens possíveis. Se faltasse algum item, era para
abortar imediatamente e cair fora. Destacava, sobretudo, que nos pontos
marcados não havia motivo para sentimentalismo. Algo que na prática seria
muitas vezes contrariado. Se houvesse algum atraso a instrução era para
abandonar o local. Muitas vezes isso não foi seguido, o que acabou provocando
algumas perdas irreparáveis a ALN
221
. Entretanto, Roberto analisa as quedas da
ALN num plano mais amplo. Segundo ele, a guerrilha urbana, à proporção que se
desenvolve, cria uma condicionante nos seus participantes que passam a usufruir
de uma força interior acentuada
222
. Cria-se daí uma flexibilidade no rigor com as
normas de segurança, com prejuízos tamanhos à organização. Por outro lado,
devemos ter a exata noção de que o regime militar mobilizava todas as forças
policiais e militares existentes no país. Um dos exemplos mais latentes foi a
Operação Bandeirantes (OBAN), criada em meados de 1968, com a doação de
219
Cf. Depoimento de Carlos Fayal.
220
Cf. Depoimento de Roberto Barros Pereira.
221
Idem.
163
dinheiro de vários setores do empresariado paulista no fortalecimento da
repressão.
Concluindo parcialmente, Gorender, ao analisar o período da luta armada,
em que foi contemporâneo e atuante, amplia a compreensão ao
defender a tese de que “no Brasil, o milagre econômico dissolveu a base social
que a esquerda armada poderia ter. Era a época em que os profissionais de
classe média tinham ótimos empregos, de 68 em diante. Foi a época áurea da
profissão de economista e também os operários qualificados tinham
possibilidades cada vez melhores e em geral o desemprego foi diminuindo e em
73 o Brasil atingiu a situação de pleno emprego. Os empresários disputavam
entre si os empregados porque não havia mão-de-obra disponível. Isto em todo
o Brasil e não só no Centro-Sul”
223
. Mesmo que o milagre brasileiro fosse
mantido pela concessão de empréstimos no mercado externo a juros
escorçantes, algum efeito político daí advinha de modo a desmobilizar a inserção
popular numa resistência à ditadura. O efeito mais latente foi o fechamento do
regime. A ofensiva sobre as principais lideranças da luta armada
desarticulou em muito os caminhos da revolução brasileira. Mas é justamente
esse estado de coerção instalado com o regime ditatorial, a partir
222
Cf. Depoimento de Roberto Barros Pereira.
223
Entrevista de Jacob Gorender a Revista da Bahia, Encarte Especial, dez. 1988, p.20.
164
de 1964, que faz desse período algo de relevante na recente história política do
país. Não porque houve a ditadura. Mas porque houve resistência. Como disse
Carlos Eugênio Paz, ex-comandante da ALN: “tenho orgulho de pertencer ao
lado que não se calou”
224
.
224
Jornal do Brasil, Caderno B, p. 1, 7 de jul. 1996.
165
CONCLUSÃO
Um aspecto central nesta dissertação foi a preocupação de não criar sobre
o personagem um juízo de valor que o elevasse a condição de herói. Ana
Montenegro, em seu depoimento, chama a atenção para um fato pertinente. Ela se
remete aos humanistas franceses para afirmar que “o herói é aquele que faz tudo
o que pode”
225
. Segundo Ana, “todos nós somos heróis e heroínas: quando
você abre a janela de manhã e vê o homem limpando a rua, como você andaria na
rua sem esse homem? Quando você come um pão, quem plantou o trigo? Você
iria comer o pão sem trigo?”
226
No decorrer deste trabalho procuramos analisar a imagem de Carlos
Marighella, tendo como elemento condutor as suas relações pessoais dentro do
círculo familiar, como também alguns militantes do Partido Comunista e da Ação
Libertadora Nacional. Tal estratégia está ligada à verificação de como esse
personagem compartilhou sua vida cotidiana. A princípio essa estratégia se
tornaria inviável, haja vista a dedicação do personagem à militância política. Os
escritos políticos de Marighella foram explorados visando incorporar parte de
sua visão de mundo, interrelacionados com a vida cotidiana. Além disso, os
textos políticos do personagem são indispensáveis para reunir um panorama mais
225
Depoimento de Ana Montenegro colhido pelo autor em 6/11/1998.
226
Idem.
166
próximo da época. Conciliando sempre um alerta: não acatando seu conteúdo
gratuitamente.
A primeira conclusão a que se pode chegar desse estudo é exatamente a
particularidade do personagem em valorizar as relações humanas na mesma
medida que a atuava politicamente. Vimos, ao longo da militância, tanto no PC e
ALN, um Marighella que em vários momentos não sustenta uma barreira junto
aos demais militantes. Esse é um ponto que contribui para ampliar a imagem do
líder comunista e revolucionário. Sua imagem não se encerra no Marighella
comunista, na resistência às prisões, nos longos discursos na Câmara de
Deputados, na edição da Revista Problemas, nos pronunciamentos realizados na
época da luta armada ou na liderança da Ação Libertadora Nacional, para
relembrarmos alguns exemplos. Vai mais além, privilegiando nas relações
humanas uma face solidária e generosa que complementam o revolucionário:
Marighella, como já foi dito, não perdeu a ternura.
A relação familiar _ tanto em Salvador como, posteriormente, com Clara
Charf e Carlos Augusto_ reforça essa imagem, à proporção que anula uma idéia
do homem comum Carlos, conduzido preponderantemente pelo homem político,
Marighella. Enfim, uma face revelada do irmão Carlos, do pai e da convivência
com Clara.
167
Na vida cotidiana, em Salvador, aflora uma característica, como a
impetuosidade, que acompanha o personagem ao longo da sua trajetória. A
impetuosidade não chega a ser um elemento determinante na trajetória política do
personagem. Mas nem por isso poderia ser desprezada. Ao longo do texto
procuramos reunir vários momentos que traduzam essa impetuosidade, sem
pormenorizá-la, evitando com isso cair numa repetição desnecessária. Assim,
podemos reter alguns exemplos do ímpeto de Marighella, antes mesmo de entrar
no Partido Comunista: o menino Marighella das fugas constantes; o interesse
pelos estudos; a rebeldia na adolescência, quando passa a responder provas em
versos; os protestos quando ainda era estudante no Ginásio da Bahia; o tocador
de bandolim; para daí acompanhá-lo durante a militância, em vários momentos,
destacando-se a participação no Coletivo dos comunistas junto a prisão da Ilha
Grande; o modo como conduzia seus pronunciamentos quando exercia o
mandato de deputado constituinte, entre 1946 e 1948. Durante a clandestinidade,
nos “pontos” marcados, o exemplo registrado na época do Partido Comunista,
em que prioriza as relações humanas, a descontração, o interesse pelos
problemas dos outros. A resistência à ditadura no episódio ocorrido no cinema
Esky-Tijuca, talvez seja o fato mais latente dessa impetuosidade, sem retirar o
peso do momento político ali presente. A presença em Cuba, junto a OLAS, em
meados de 1947, quando consuma seu rompimento com o Partido Comunista; e
168
ainda alguns exemplos narrados de sua atuação dentro da ALN, onde se revela
algo mais do que uma liderança institucionalizada. Por fim, a impetuosidade, em
alguns momentos de sua trajetória na ALN, ilustra o quanto Marighella
demonstra-se temerário.
Não se quer, ao enumerar esses exemplos da impetuosidade, sugerir um
juízo de valor sobre a trajetória política do personagem, em seus vários
momentos. Como afirma Clara Charf: “os mortos não fazem autocrítica”
227
.
Carlos Marighella foi assassinado em 4 de novembro de 1969, assunto que
foi rapidamente mencionado, por não ser objeto desta dissertação, mesmo tendo
gerado muita polêmica, e seria até uma omissão, não abordá-lo. Tal polêmica está
centrada no envolvimento dos padres dominicanos na morte de Marighella. Frei
Ivo e Frei Fernando foram usados como armadilha para atrair Carlos Marighella a
Alameda Casa Branca, onde ocorreria o assassinato. Fato que os dois já admitem
publicamente.
Em ‘O Batismo de Sangue’, Frei Betto narra o envolvimento do líder
guerrilheiro com os dominicanos: “em meados de 1967, Frei Osvaldo acertou
recebermos, no parlatório do convento dos Perdizes, um professor um
interessado em conhecer melhor a renovação da igreja católica”
228
. O
227
Depoimento de Clara Charf colhido pelo autor em 15/12/1998.
228
BETTO, Frei. O Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira,1983.
169
professor de codinome Menezes era Carlos Marighella, e seu interesse estava
muito mais além de discutir sobre as reformas da igreja, como ficaria mais
claro posteriormente. Queria ele criar “uma passagem de refugiados políticos que
se destinavam a entrar no Uruguai, para em seguida, viajar à Europa”
229
, tendo o
apoio de Frei Betto, que estaria estabelecendo-se em Porto Alegre, na época.
Mais adiante, Frei Betto analisa as circunstâncias em relação à morte de
Carlos Marighella, procurando se contrapor a versão de que Frei Yves e Frei
Fernando foram os principais responsáveis por “abrir” o contato que tinham com
Marighella, o que facilitou para a repressão fechar o cerco. Inclusive, menciona
uma possível infiltração da C.I.A na Ação Libertadora Nacional.
Gorender vai se opor à versão apresentada por Frei Betto, e, mesmo
reverenciando respeito aos dominicanos envolvidos no episódio, vai afirmar: “o
meu silêncio de historiador significaria conivência com a versão apresentada por
Frei Betto”
230
. Para ser mais explícito adiante: “Frei Betto preferiu a meia
verdade o que é igual a meia falsidade”
231
. Para o autor não se trata de execrar
os Freis Fernando e Yves, entretanto, não concorda com a versão de Frei Betto
por suscitar outras possibilidades, além do envolvimento direto dos
dominicanos.
229
BETTO, Frei. Op. cit., p.57.
230
GORENDER, Jacob. Op. cit., p.197
231
Idem, p. 198.
170
Em ‘Carlos Marighella - o inimigo público número um da ditadura militar’,
a sua morte é um dos destaques, o autor reacende o debate sobre os
envolvidos no episódio. Com base no depoimento de Alípio Freire, militante da
ala vermelha do PC do B, afirma que Paulo de Tarso de Venceslau fora o pivô
da denúncia sobre o envolvimento dos dominicanos com Marighella. Ambos
estiveram presos no DEOPS de São Paulo, “exceto sábado e domingo, recorda
Freire, Venceslau era levado para a tortura, e durante muitos dias segurou muitas
informações. Até que na madrugada de 28 para 29 de outubro Alípio ouviu a
nova confissão: _ Abri o esquema dos padres”
232
.
Não obstante, há de se fazer uma ressalva para não cometer injustiça com
os autores citados. Eles não se limitam a abordar apenas as circunstâncias e os
envolvimentos de pessoas na morte de Marighella. Eles propõem análises sobre a
trajetória política do personagem, sendo uma tendência comum as intervenções
políticas de Marighella, em principal quando do seu desligamento do PC e a
inserção na luta armada.
A morte de Marighella tem um significado muito mais amplo a ser
abordado. O que ocorreu no dia 4 de novembro de 1969 foi um assassinato
cometido pela polícia de São Paulo, liderada pelo delegado Sérgio Paranhos
Fleury, a serviço da ditadura militar instalada desde 1964 no país. Fato que foi
232
JOSÉ, Emiliano. Op. cit., p. 42.
171
reconhecido pela Lei 9140/95 da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos
Políticos durante o regime militar. O envolvimento dos padres dominicanos é
assunto mais do que encerrado. O envolvimento de Paulo de Tarso acrescenta
um dado significativo para o cerco à ALN e a Marighella.
Entretanto, por trás dessas indicações é importante salientar que a morte
de Marighella deve estar associada a um momento em que a Ação
Libertadora Nacional preparava um deslocamento em direção a área rural.
Marighella tinha viagem marcada para o Mato Grosso, em 9 de novembro de
1969, logo, cinco dias depois de sua morte
233
. Por mais que tenha prevalecido a
derrota militar das organizações que optaram pela luta armada, um fator que daí
pode ser retido é exatamente a dimensão com que essas organizações
conquistaram uma sobrevida dentro do regime ditatorial, inclusive realizando o
primeiro sequestro político da história contemporânea, como foi o do
embaixador americano Charles Elbrick.
Nesse período recente da história política brasileira persiste uma lacuna,
que é exatamente o modo como a Ação Libertadora Nacional conseguiu se
sustentar diante do regime ditatorial. Assim, a morte de Marighella tem um
significado muito mais amplo. A forma como foi conduzido seu assassinato
233
Cf. Depoimento de Clara Charf colhido pelo autor em 15/12/1998.
172
denota uma concreta participação da ALN na resistência à ditadura. Este é um
tema ainda mal explorado, normalmente analisado sob uma visão reducionista.
Portanto, a pesquisa histórica ainda tem muito a contribuir para passar a
limpo esse passado recente.
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RJ: Editorial Vitória Ltda., 1948.
5. DEPOIMENTOS
_ Depoimento de Tereza Marighella, irmã de Carlos Marighella, colhido pelo
autor em 30/07/1998.
_ Depoimento de Clara Charf, esposa de Carlos Marighella colhido pelo autor em
03/11/1998 e 15/12/1998.
_ Depoimento de Marcos Paraguassu de Arruda Câmara, filho de Diógenes de
Arruda Câmara, ex-militante do PC, colhido pelo autor em 5/11/1998.
176
_ Depoimento de Ana Montenegro, ex-militante do Partido Comunista, colhido
pelo autor em 6/11/1998.
_ Depoimento de Carlos Augusto Marighella, filho de Carlos Marighella, colhido
pelo autor em 6/11/1998.
_ Depoimento de João Falcão, ex-militante do Partido Comunista, colhido pelo
autor em 9/11/1998.
_ Depoimento de Geraldo Rodrigues dos Santos, ex-militante do Partido
Comunista, colhido pelo autor em 12/11/98.
_ Depoimento de Carlos Fayal, ex-militante da Ação Libertadora Nacional,
colhido pelo autor em 2/12/1998.
_ Depoimento de Jacob Gorender, ex-militante do Partido Comunista, colhido
pelo autor em 07/12/1998.
_ Depoimento de Roberto de Barros Pereira, ex-militante da Ação Libertadora
Nacional, colhido pelo autor em 8/12/1998.
_ Depoimento de Salomão Malina, ex-militante do Partido Comunista, colhido
pelo autor em 16/12/98.
_ Depoimento de Manuel Cyrillo, ex-militante da Ação Libertadora Nacional,
colhido pelo autor em 18/12/1998.
_ Depoimento de Noé Gertel, ex-militante do Partido Comunista, colhido pelo
autor em 23/12/1998.
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ANEXOS
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE TEREZA MARIGHELLA
Este depoimento foi realizado no dia 30 de julho de l998, na cidade do Rio de Janeiro, na
rua Arabá , n 173, onde reside a irmã de Carlos Marighella.
Quando nasceu sua mãe?
Em 1888, no ano da abolição.
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O que a senhora quer dizer sobre a questão do preconceito quando alguns autores se referem ao
fato de sua mãe ser negra?
Eles dizem: uma negra, negra, com um italiano. Ai a gente vê uma ponta de preconceito. (já
colocado?) Já colocado muitas vezes.
Ela não era negra?
O pai dela já não era negro, o pai dela já era mulato, ela era descendente de negros. Um dos
meus irmãos, o Humberto, o Betinho, ele era muito parecido com meu avô...
Pelos traços que a senhora apresenta e o próprio Marighella, percebe-se que não há essa
negritude tão badalada. Nesse livro tem uma foto de sua mãe..
A gente vê que o cabelo não é de gente branca, mas também ela não é negra.
Como era o temperamento de sua Mãe ?
Uma pessoa maravilhosa, muito doce, muito compreensiva, muito caridosa e muito humana. Ela
ajudava muito as pessoas, Ele teve a quem sair, ela ajudava muito as pessoas necessitadas. Os
pobres chegavam lá em casa pedindo alguma coisa e ela dava, o que tivesse ela dava, dava tudo,
embora nós tivéssemos pouco, aquele pouco ela sempre tinha para dar a alguém.
Ela tinha outra atividade além da casa, ela trabalhava?
Não, ela trabalhava só em casa, mas trabalhava muito bem. A minha mãe foi criada por uma
família francesa. Ela tinha um porte, uma delicadeza, gente fina. Sabia pouca leitura, escrevia pouco,
lia também pouco, mas tinha uma educação exemplar. Tanto que os filhos foram todos bem
educados, certinhos, e o meu pai quase que não influenciou na nossa educação porque a vida dele
sempre foi dentro daquela oficina. Ele trabalhava, chegava em casa conversava com a gente, mas a
educação sempre foi quase toda dada pela minha mãe.
A senhora atribui a Carlos Marighella essa preocupação com os pobres e excluídos como uma
influência originada do contato com a mãe?
É, do contato com a mãe.
_ E como se dava a relação dele com a mãe?
Ele era muito bom, minha mãe adorava ele e ele adorava minha mãe. Ela sempre tinha umas
coisas para contar dele, que ele era muito levado, gostava muito de fugir, qualquer porta aberta,
portão aberto, ele já estava na rua. Então ela tinha que ir lá, procurava onde ele estava, batia,
naquele tempo os pais batiam muitos nos filhos, dava umas palmadas nele, pegava uma cordinha ou
um barbante e amarrava ele no pé da mesa para evitar que ele fosse para rua. Tinha uma vizinha da
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minha mãe que dizia: Ah! Dona Maria Rita não amarre seu filho, isso é muito ruim porque mãe que
prende, que amarra o filho, o filho um dia vai ser preso. Depois do dia que a vizinha falou isso ela
então ficou com medo e não amarrava mais. Anos depois que ele foi preso, já na política , ela dizia: -
eu amarrei meu filho, não devia ter amarrado.
Então ele era um pouco arteiro, uma criança agitada?
Ela contava que quando passava, ás vezes, os soldados marchando, o batalhão passando na rua,
ele ia atrás, sumia, ia marchando também. Ia em frente.
Qual o outro tipo de brincadeira que ele mais gostava?
Gostava muito de futebol, gostava muito de música. Tanto que tínhamos lá em casa um bandolim,
que era da minha irmã Anita, e então, quando ele tinha uma folga pegava o bandolim e tocava. Ele
gostava muito de fazer paródia. Ele tocava uma música que tinha um refrão que dizia assim - Justiça
de deus na voz da história. O bandolim era o instrumento que ele tinha mais afinidade, que ele mais
gostava.
Ele gostava de tocar em casa?
Sempre em casa, ele pegava o bandolim, tocava um pouco e ia embora. Isso eu acho que era
para refrescar a cabeça.
Ele gostava de música mesmo, teve uma vez que ele foi a Salvador, quando já estava no Rio, eu
disse a ele que queria estudar música, então ele me matriculou no Centro Operário da Bahia, que
ensinava música e outras coisas. Meu pai comprou um violino que estudei um bom tempo; depois eu
queria aprender piano, violino era muito difícil, papai disse que piano era muito caro e que era para
ficar no violino mesmo. Se era para estudar, se era para melhorar Carlos fazia todo sacrifício pela
gente.
Qual foi a opinião de Carlos Marighella quando a senhora optou por tocar piano?
Proletário não toca piano, piano é de gente rica, é instrumento de gente rica. Eu retrucava
dizendo que não queria aprender a tocar violino, além de ser muito difícil é um violino velho que meu
pai comprou num prego, nessas casas de penhor, eu queria tocar era piano.
E o carnaval, Marighella gostava de carnaval?
Pelo que eu me lembre ele gostava de apreciar, não me lembro dele brincar carnaval, naquela
onda do baiano, que gosta muito. Já meu irmão mais novo, o Caetano, esse gostava de brincar
carnaval, inclusive se fantasiava de mulher, o Carlos não.
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A senhora reforçou a tese de que ele gostava muito de ler...
Olha ele me deu uns livros, alfarrábios mesmo, um livro sagrado, não sei se era a Bíblia, não tem
capa, não tem mais nada, está todo ruim. Ele mandou para mim, daqui do rio, um dicionário francês
e Os Lusíadas, de Camões. Isso quando eu estava me preparando para entrar na faculdade, escrevi
para ele aqui no rio afirmando que faria Letras, neolatinas, então imediatamente ele enviou o
dicionário e o livro de Camões. Eu fiz o vestibular e cursei só um ano, depois quando minha mãe
morreu, em 1947, larguei tudo e fui para o Rio, onde prestei outro vestibular. Lá na Bahia eu iria
fazer neolatinas - português, francês, espanhol, latim - aqui não, aqui eu fiz só português e literatura,
na SUAM.
A senhora sabe dizer se na infância Marighella teve alguma doença grave?
Não. Ele era muito sadio, tinha uma saúde de ferro. Ora ele suportou aquela prisão da Ilha
Grande e Fernando de Noronha, em São Paulo e outras vezes, sendo inclusive baleado em 1964,
dentro do cine Esky-Tijuca.
Esse interesse pela leitura era presente na infância?
Lia tudo, tudo que passava na mão dele ele lia. Quando saia com mamãe queria ler todos os
anúncios, no cinema, em casas comerciais, mamãe querendo andar com ele, puxando ele, e ele
lendo. Mamãe lembrava muito a gente do cinema Politeama, ele dizia, com quatro anos: PO-LY-
THE-A-MA. Outra coisa que ela dizia é que quando ela lia “Nabocadonosor” ele corrigia: não é na
“Nabocadonosor” é “NA-BU-CO-DO-NO-SOR”.
No livro de Emiliano José (Carlos Marighella - O inimigo número um da ditadura militar), o autor
afirma que Marighella contribuiu muito para complementar a alfabetização da sua mãe?
Minha mãe lia pouco e na hora da lição ele já estava sabendo mais do que ela.
E namoro, ele era muito namorador?
As garotas eram loucas por ele, mas ele não tinha tempo não. As garotas ficavam frustradas
porque ele não tinha tempo, jogava uma coversinha e daqui a pouco já tinha ido embora. E as
garotas perguntando por ele, batendo na porta, me chamava para perguntar por ele, eu dizia não sei,
não sei, namoro não foi muito não, foi pouco. Depois que ele veio aqui para o Rio é que ele se
envolveu com o grande amor da vida dele que foi, sem dúvida , a Clara, que ele escreveu vários
poemas em sua homenagem.
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Ele serviu ao Exército?
Serviu, me lembro que ele tinha a perneira, que colocava a calça por dentro, abotoava. Não sei
se era o exército, tinha outro nome lá na Bahia.
Quando ele ainda adolescente tinha o hábito de escrever?
Bom, tinha o hábito de escrever, pois, nesse livro ai tem poemas dele que data de 1931, 1932,
por aí assim. Mas ele não dava para ninguém ver. No tempo que ele estava lá em casa, ele tinha um
quarto com os livros dele, a biblioteca dele, ninguém mexia. Ali era sagrado, era do “Carrinho”,
como a gente chamava ele, porque quando nós éramos pequenos não sabíamos dizer Carlinhos, a
língua não dava, e ficou “Carrinho, Carrinho, Carrinho”, ele atendia por Carrinho. Então, as coisas
do Carrinho ninguém mexia não.
Quando ele passou a política, como foi isso na família, qual foi a relação da família, vocês já
sabiam?
Foi um choque. Quando ele entrou na política nós só ficamos sabemos quando ele foi preso.
Antes nós não sabíamos que ele estava envolvido com militância política, não sabíamos nada disso.
Foi um choque grande, foi um baque muito grande. Ele mantinha tudo em sigilo, em segredo.
A senhora já havia me dito que ele conversava muito com seu pai, ele deveria ter alguma
informação a respeito?
Tenho a impressão de que meu pai devia saber, porque eles conversavam muito. Conversavam
sobre a Itália, os papos deles eram a Itália, meu pai nasceu em Ferrara e como Marighella estudava
muito, ele sabia tudo, discutia com meu pai os lugares, parecia até que ele conhecia, parecia até que
os dois eram do mesmo lugar. Ele perguntava onde estava aquilo, onde ficava aquilo, meu pai
respondia.
Então a família não sabia de seu envolvimento com a política?
Não. A família ficou meio arrasada. Eu estava estudando e não queria saber de política, queria
estudar, queria ser professora, quando o negócio estourou ai foi aquele baque muito grande.
Antes dele entrar para a política ele já possuía uma preocupação com a pobreza?
Já. Isso tudo vem de criança quando ele pegava as pessoas de onde nós morávamos, uma rua
sem saída, chamada Barão do Desterro, lá em Salvador, era uma rua pequena. Ele pegava as
crianças que não freqüentavam a escola e os adultos que não sabiam ler e levava todo mundo lá para
casa para ensinar. E matemática, o forte dele era a matemática. As vezes a criança estava na escola,
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estava ruim na matemática, a mãe ia lá pedir e ele dava aula de matemática. Isso assim “manda lá”,
sem cobrar nada. Ensinava tudo, a mãe ficava mais contente o filho mais ainda.
Como foi o contato com a família depois que ele entrou para a militância?
Aí é que ficou difícil. Pois depois que ele entrou mesmo na militância ele não podia ir, estava
sendo procurado, clandestino, com a polícia sempre atrás dele, antigamente tudo quanto era banco
tinha lá o cartaz - procura-se - quando ele podia mandava sempre uma pessoa de confiança dele dar
notícias, chegava lá em casa chamava minha mãe, falava que queria falar em particular. Quando
estava sendo procurado não aparecia mesmo, mandava sempre uma pessoa. Quando eu vim para cá
em 1948 ele estava sendo procurado, e mais tarde ele aparecia aqui nessa casa, de madrugada,
vestido de padre ou disfarçado com um bigode, e de manhã ia embora.
A senhora foi uma dos parentes mais próximas dele aqui no Rio?
É, era eu, a minha irmã mais velha a Anita e a Julieta. Eu fui a última das mulheres a vir para cá,
as outras já estavam aqui. Quando ele esteve preso na Ilha Grande a minha irmã Anita foi visitá-lo na
Ilha Grande, foi na polícia, tirou os documentos todos para visitá-lo e foi lá no presídio.
E como foi a visita, ela comentou alguma coisa com a senhora?
Ele dizia que estava tudo bem, mas bem não estava não é.
A senhora havia comentado quando eu cheguei que ele ia a missa, fez primeira comunhão, como
foi a vida religiosa na infância de Marighella?
Fez primeira comunhão, ia a missa, tinha santinhos, na igreja distribuíam santinhos, ele tinha
santinhos, tudo direitinho como uma criança boa, normal. Depois ele lia muito, e com essa leitura foi
tendo outra mentalidade.
Qual o último contato que a senhora teve com ele aqui em sua casa, ou um dos últimos?
Foi em um dos aniversários de meu filho, não sei se era 5 anos. Ele veio com a Clara, meu filho
estava fazendo 5 anos. Esse negócio de data para mim é muito difícil. Meu filho estava fazendo 5
anos e minha filha estava fazendo 1 ano, então, nós inventamos de fazer um bolo de aniversário e
comemorar juntos (José Augusto e Regina Lúcia) eles vieram almoçaram aqui, chegaram em cima da
hora do bolo. Fizemos um bolo só com uma vela de 5 anos e outra de 1 ano. Mas o José Augusto
não aceitou e queria o dele sozinho, a veia revolucionária (risos), fez uma revolução na hora de
cantar o parabéns, puxou a toalha da mesa. Ah, mas ele riu tanto, ele achou tão gozado aquilo,
pegou um guardanapo que estava na mesa e fez um poema na mesma hora, esse poema eu tinha até
bem pouco tempo e entreguei ao José Augusto e ele não sabe onde colocou, escrito no guardanapo,
eu sei que dizia assim: “No dia do aniversário / José Augusto Teixeira / chorava de fazer dó /
encenando aquela peça / bububú no bobobó . Estava passando uma peça no teatro bububú no
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bobobó, então ele fez uns versos, uma paródia, só sei que terminava assim. Foi a última vez que ele
esteve aqui. Teve uma vez que ele veio aqui acompanhado de José Frejat, não sei se ele era
militante, não sei o que ele era, ele veio aqui almoçar e ele estava ajudando a lançar a candidatura do
José Frejat a algum cargo político.
n Eu anotei algumas coisas aqui, e gostaria de você ver se já falei tudo. Marighella era nosso irmão
mais velho, o Carrinho, carinhoso, e orientador de todos, ele nos incentivou muito para que
estudássemos e trabalhássemos. Ele frisava muito que era muito importante que estudássemos e
trabalhássemos. “Tanto que quando eu cheguei aqui em 1948, fui procurá-lo, ele era deputado.
Fui pedir a ele que me arrumasse alguma coisa, pois já havia me formado em professora primária
em 1945,lá na Bahia. Ele disse: “negativo, você vai procurar com suas próprias mãos, não vou
influenciar em nada, não vou te dar carta nenhuma, você vai procurar, você vai fazer concurso,
você não estudou? Você vai fazer concurso”. Na hora fiquei desapontada, poxa! mais um
deputado. Eu não entendia como é que podia ser uma coisa daquela, deputado. Depois eu
entendi, depois a posição dele eu entendi bem, mas naquele momento eu fiquei muito
desapontada, ele não ajudou não. E fiz o que eu fiz, fui procurar meus caminhos. Então, sempre
nos incentivou a que estudasse e trabalhasse. Eu era apaixonada por ele. Ele foi meu ídolo, para
mim ele era uma biblioteca ambulante, tudo que eu queria ia perguntar a ele , e ele sabia, mas
sabia tudo. Eu pegava no dicionário, criança ainda, e escolhia uma palavra e pensava assim: essa
aqui eu duvido que ele saiba. “O Carrinho vem cá, eu estou com uma dúvida e o que significa
essa palavra assim, assim?”. Ele respondia igual ao que estava no dicionário, empregasse assim,
pode ser empregado assim. Eu perguntava para ele: Você estuda o dicionário? Ele começava a
rir. “Que estuda o quê, toma juízo. Dicionário é para a gente consultar, para na hora que está
precisando vai lá, procura a palavra”. Todas as palavras que eu pergunto ele sabe, então ele já
procurou, já precisou de ler essas palavras todas, então, ele já leu esse dicionário. Ele parecia
uma biblioteca ambulante, estava andando, fazendo o que estivesse fazendo, comendo, as vezes
tomando água e estava respondendo, ia em frente. Nem pestanejava para responder nada. Sabia
tudo. E na minha inocência, ou talvez, na minha ignorância pensava que ele decorava o dicionário.
n Ele era alegre, andava sempre apressado com seus vários compromissos e afazeres. Mas não
deixava, “de vez em quando”, de pegar no bandolim. E cantando tirava uns acordes e dizia
sempre um refrão: justiça de deus na mão da História. Ele compunha e cantava suas canções de
paródias. Aquela história do Juracy, ele não suportava o Juracy, ele fazia aqueles poemas para o
Juracy, botava a letra dele e a música de outra canção e tocava lá no bandolim.
n Olha, nós choramos muito quando ele veio para o Rio e ficamos sem notícia dele muito tempo.
Lembro quando ele voltou a Salvador para batizar o Caetano, e a minha avó, mãe de meu pai,
que morava em São Paulo. Ele foi o padrinho e minha avó a madrinha. Ele era católico e fez
primeira comunhão.
_ Quando já era comunista ele manteve uma posição religiosa?
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n Bom, eu não sei. Mas que ele entrava na igreja, ele entrava. Tanto que quando minha mãe
faleceu, em 1947, ele foi a missa do sétimo dia. No enterro ele não foi porque não deu tempo,
mas na missa de sétimo dia ele foi.
n Ele era inteligentíssimo. Nunca deu trabalho na escola primária e no ginásio. Sempre no final do
ano, depois de todas as provas, ele chegava em casa e dizia para mamãe: -e, fui chutado.
Isso queria dizer “fui aprovado”.
n Quando ele estava no ginásio ele já começou a fazer das dele. Então, ele fazia greve, não ia a
aula, faltava a aula e quando chegava o dia da prova ele aparecia para fazer a prova, e tirava
aquele notão.
Isso no ginásio?
É, no ginásio. Ele não ia a aula. Os colegas iam lá em casa para ele explicar o que os professores
explicavam, mesmo se ele não estivesse na aula, mas ele sabia explicar para os colegas. Sempre ele
reunia os colegas que estavam com dúvidas em alguma matéria, sobre a aula que ele assistia ou não.
n Ele era alegre e brincalhão, ele botava apelido na gente, cada um tinha um apelido, eu não me
lembro bem, eu sei que um era o da irmã Julieta, era canela de sabiá, ele dizia que era canela de
sabiá porque ela tinha as pernas finas. O outro meu irmão Caetano, ele dizia que era sergipano,
porque sergipano não tinha pescoço, era pescoço enterrado, então, chamava o Caetano de
sergipano. Eu era professora sem juízo, cada um ele inventava um apelido. A outra minha irmã
chamava-se Edwirges, tinha uma velha que ia lá em casa todo dia, minha mãe gostava muito de
ajudar pessoas idosas e pessoas carentes, essa velha ia a missa todo dia, nós morávamos perto
de uma igreja, e essa velha após a missa ia lá em casa tomar café, mamãe já reservava o café da
velha. E essa velha tinha o apelido de xixi. Essa velha era a xixi. E a minha irmã a Edwirges que a
gente colocou o apelido de Luizinha, ele dizia que era a xixi porque a xixi levava uma bolsa cheia
de roupas, de tralha. Ela chegava lá em casa , conversava, tirava as tralhas da bolsa para mostrar,
para contar os casos, a minha irmã, que era pequena também andava com uma bolsa cheia de
boneca, de roupa de boneca, aí ele botou o apelido nela de xixi. O Betinho ele botou o apelido
de carocha.
E o apelido dele?
Ele não tinha apelido, ele botava o apelido em todo mundo. Sabe por que eu era a professora
sem juízo?
Por que?
Porque eu dizia para ele: - olha, esse negócio de política não vale nada, ficava “metendo o
malho” para ver se ele desistia. A minha impressão é que ele iria desistir comigo falando assim, aí ele
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dizia: olha a professora sem juízo. Isso logo depois que ele entrou para esse negócio de política,
quando a gente desconfiava.
n Olha teve uma vez, era uma espécie de protesto, ele raspou a cabeça. O padre raspa e deixa
aquela coroa, ele fez o contrário, raspou a cabeça toda em volta e deixou só aquela coroinha de
cabelo em cima. Esse protesto foi na escola, no ginásio.
Então, já na escola ele já apresentava sinais de protesto?
Ele já estava com essas idéias de protestar sobre alguma coisa. Outro protesto também que ele
fez foi ir para a escola - naquele tempo não se usava muito sandália - então, ele cortou o sapato, fez
uma espécie assim de sandália, para poder ir para a aula com aquilo, uma sandália. Então minha mãe
falou para ele: - meu filho para que fazer isso, cortar o sapato para fazer isso! E ele então: - Mãe!
Jesus Cristo andou de sandália, por que eu não posso andar?
Na escola era proibido ... o que ele queria era...
Na escola era proibido, isso para chamar a atenção, fazer algum protesto para dizer que aquilo
não tinha nada a ver, que o sapato não tinha nada a ver com a escola.
O carinho e a aproximação de Marighella parece comum a todos os irmãos?
É. Eu já fazia a faculdade e ele se lembrou de enviar o dicionário. Quando eu terminei o curso
normal, em Salvador, escrevi para ele e ele me mandou o dicionário de francês e os Lusíadas. Longe
de nós. Isso demonstra que ele nunca havia esquecido. Eu me casei em 1951, eu acho que ele estava
cassado, ele mandou uma pessoa, eu morava com minha irmã Anita, na Vila da Penha. Ele mandou
um moço, eu nem estava em casa na hora, mandou levar o dinheiro para eu comprar meu vestido de
noiva.
Aí não precisou de a senhora ir pelos seus próprios caminhos...
O Caetano ainda chegou a trabalhar com ele algum tempo, não me lembro bem. Quando vim de
Salvador o Caetano veio comigo, ele era o mais novo, ele mandou um recado para o Caetano e eles
se encontraram. Eu não sei se o Caetano ficou com ele algum tempo, só sei que ele trabalhou com o
Carlos. Não sei se era de motorista, não sei se para o pessoal do partido. Mas, o Caetano não tinha
veia política nenhuma.
Eram quatro homens e quatro mulheres, como o senhor Augusto Marighella sustentava essa
família?
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Seu Augusto Marighella tinha uma oficina mecânica, ele era engenheiro mecânico, eu me lembro
que tinha um quadro na parede, um diploma - diploma concedido a Augusto Marighella - só sei que
era engenheiro mecânico, estava escrito lá. Ele fazia tudo numa oficina mecânica, tinha solda elétrica,
solda, ferreiro, conserto de automóvel.
A oficina era em casa?
Não. Tinha a nossa casa, tinha um quintal, um portão que dava passagem para a oficina, e a
oficina tinha entrada por outra rua, mas se comunicava pela minha casa através do portão que havia
no quintal.
Ele ensinava aos filhos?
A oficina tinha máquinas, tinha tudo. O Agostinho aprendeu a profissão com ele, o Betinho
também, que era o Humberto. O que aprendeu menos foi o Caetano, que era o mais novo e não
aprendeu muito. Mas o sustento vinha dali.
E Marighella?
O Marighella, o Carlos, era só no estudo, na oficina não. Ia lá uma vez ou outra.
Seu pai disse - no livro de Emiliano José - que seus livros eram as ferramentas ...
Ele disse a mim, disse muitas vezes. Quando eu disse a ele:- o papai, estou precisando comprar
uns livros. Ele disse: - comprar livros para que, eu nunca precisei de livros, olha aqui, meus livros
estão aqui, essas ferramentas aqui ( na oficina ). Mas ele comprava livro. Para o Carlos ele
comprava, livros a prestação, enciclopédias, aqueles volumes, livros caríssimos, livros de engenharia.
Quando ele cursou até a faculdade de engenharia, não chegou a concluir, mas até o terceiro ano ele
foi. Tudo que ele queria ele comprava. Ele era um xodó para o pai. Depois ele começou a dar aula,
ganhava um dinheirinho lá em Salvador, e começava a comprar por conta dele mesmo. Mas, o pai
comprou muito livro para ele.
n Olha, ele tinha livros, esses livros de política, sobre o Partido Comunista, essas coisas assim de
política. Ele tinha livros que ele mandava vir de fora e quando ele foi preso meu pai enterrou os
livros, tinha tanto livro, tanto livro, que meu pai não sabia o que estava dizendo aqueles livros, ele
não os lia. Quando soube da notícia que ele foi preso, meu pai ficou com medo, fez um buraco
enorme e enterrou quase aqueles livros todos. Ele dizia: - Eu não sei o que tem ai nesses livros, eu
não sei se vai comprometer mais ainda. A polícia estava cassando ele por tudo que era lado.
Como é que vocês ficaram sabendo dessa perseguição?
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Foi pelo rádio.
E o lazer entre os irmãos, como era o lazer entre vocês?
Era uma farra danada, quintal grande, um corria para lá, pegava o outro, tinha guerra de
travesseiro, guerra de almofada, a brincadeira era boa. Tinha lá no terreno da oficina uma espécie de
incenerador, um forno, que meu pai mandou fazer, porque tinha uma marcenaria na esquina da rua,
então, o dono da marcenaria entrou em contato com meu pai para queimar a serragem, os restos de
madeira. Então, a serragem ia para a oficina para ser queimada no forno. E o forno era alto, a gente
subia ali, em cima de uma escada, apoiada na própria terra, que existia para jogar o material a ser
queimado no forno. A brincadeira da gente era subir ali e dar um pulo para ver se pegava o outro.
Seu pai aproveitava as crianças, com suas brincadeiras para o desempenho de certas atividades,
é o que relata Emiliano José, ao citar o episódio em que ele construiu uma bomba hidráulica através
da observação de uma roleta que ficava na porta da oficina, onde vocês brincavam.
Eu não li o livro do Emiliano. Sabe por que eu não li? Mexe muito. Já tenho muita recordação.
As minhas recordações eu recordo quando eu quero. Eu vou ler aquilo ali e já está forçando, já está
forçando, não vai não.
Como era a vida religiosa de vocês?
Minha mãe era muito religiosa. Meu pai também era religioso, mas não tanto como minha mãe.
Todo domingo ela acordava todo mundo às 5H da manhã para ir a missa das 6H do domingo.
E o Marighella também ia?
É, ia também.
Como era o contato com os vizinhos?
Nós tínhamos contato. Essa rua que nós morávamos era sem saída. Então, aquela rua era uma
família. Tinha uma família que se dava muito mesmo, que era o mesmo que irmãos nossos, todos
negros, era a família de meu padrinho. Nós brincávamos muito. Inclusive essa brincadeira de subir na
escada e pular, os rapazes que eram filhos do meu padrinho entravam na brincadeira. O Mário e o
Astrogildo eram nossos colegas e brincavam com a gente. Inclusive ele deu muita aula de matemática
a esse Astrogildo, que era o mais velho deles, regulava mais ou menos a idade dele, do Carlos.
O Carlos era vaidoso?
Não. Muito simples, não tinha vaidade nenhuma, desde criança.
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E seu pai tinha outras atividades além da oficina?
A vida dele era toda na oficina. Quando ele saía da oficina, ele vinha para casa tomar banho, aí
era a ora da brincadeira. Ele era muito brincalhão. Ele pegava toalha, enrolava a toalha, torcia, aí a
gente chamava ele de papai-Buick, aquele carrão de marca antiga que ele tinha: _ Papai-Buick, aí
todo mundo apanhava de toalha, de brincadeira, é claro.
E a macarronada italiana, não era um hábito?
Tinha. Ele fazia questão que todos sentassem na mesa e todo mundo tinha que tomar vinho,
botava vinho misturado com água e todos bebiam na hora da refeição.
E o samba?
Ele gostava de ver, de apreciar. Dele sambar eu nunca vi.
O pai exerceu alguma influência política sobre Marighella?
Não. Ele conversava muito com o pai, sobre tudo. O pai era muito trabalhador, mas ele
desconfiava, certamente ele sabia de alguma coisa.
Qual é a dor da ausência de Carlos Marighella?
É tão difícil. A humanidade... cada vez... pior. Porque tudo que está acontecendo agora ele
queria dar um jeito, amenizar, apaziguar tudo, mas não deixaram ele fazer o que ele queria, não
deram oportunidade a ele, ele sabia das coisas.
E desde cedo?
Ele faz muita falta. Muita coisa que ele queria fazer está até hoje sem resolver, esse negócio dessa
reforma agrária, isso é coisa que ele falava quase diariamente, o que resolveram até hoje? A história
desses camponeses era uma preocupação constante para ele. Esses sem-terra que estão aí, era uma
preocupação dele, naquela época. E eu falava para ele: _ por que é que você tem que se preocupar
com isso? Quantas vezes eu falei isso para ele.
E ele?
Ele dizia: não, você também tem a ver com isso, ele falava para mim. Por isso é que ele dizia que
eu não tinha juízo. Ele dizia que isso é uma luta nossa. Nós temos a obrigação de lutar por isso.
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E o temperamento dele?
Ele era duro, era um homem muito forte, tenho a impressão que tudo que ele fazia era tudo
medido, calculado, ele não fazia nada assim por fazer não. Ele sabia as conseqüências.
E Clara Charf, vocês tiveram contato?
Não muito. A vida deles era muito dura, eu estive na casa da Clara lá no Catete, ele não estava,
duas vezes que eu fui lá ele não estava. Depois ele estava viajando. Quando chegou veio para o
aniversário dos meus filhos.
Esse seu depoimento é interessante para ampliar esse lado humano de Marighella...
Ele era muito bom. Quando foi preso na Ilha Grande ensinava os presos de lá dentro, era tido
como um professor, ensinou muita gente lá.
E a senhora também foi ser professora no presídio?
Sim. No Esmeraldino Bandeira, em Bangú, parece que é coisa do destino.
DEPOIMENTO QUE NÃO FOI GRAVADO
Tereza Marighella veio para o Rio de Janeiro, em 1947, logo após a morte de sua mãe.
Quando foi procurar emprego munida de uma carta de apresentação trazida da Bahia, viu sua
oportunidade ir por água abaixo, pelo seguinte motivo: se encaminhou a secretaria de fazenda, onde
fora orientada para procurar um funcionário conhecido, lá obteve a seguinte resposta (ele leu a carta
e disse) - Com esse sobrenome, lamento, mais fica difícil.
Pegou o jornal para procurar emprego. Achou uma prova para telefonista. Passou no exame
e logo foi chamada para a entrevista. Mais uma vez o sobrenome pesou: _ Tereza de quê? _ Tereza
Marighella. Disse ela ao preencher a ficha de entrevista. Elogiada pelo seu desempenho, pediram que
aguardasse um comunicado, onde brevemente se consumou a negativa.
Quando ia para a fila dos bancos e era chamada - Tereza Marighella - “todos me olhavam
meio que espantados, dava uma vergonha, dava vontade de chorar”. Seu marido, Armando Teixeira,
até evitou colocar o sobrenome nos filhos (José Augusto Teixeira e Regina Lúcia Teixeira).
O marido, Armando Teixeira visitou Marighella no hospital Souza Aguiar, logo após o
episódio do cine Esky-Tijuca, quando ele foi baleado. Para ter acesso ao local onde se encontrava
Marighella era necessário aguardar as senhas, tomando o cuidado para não identificar o “parente a
ser visitado”. Após esperar algum tempo Armando obteve a permissão para subir, avistou Marighella
num quarto, deitado sobre um leito, cercado por dois policiais à paisana. Marighella percebendo a
presença do cunhado fez sinal com os olhos e um alerta sobre os “acompanhantes”.
Armando foi interrogado sobre o que estaria fazendo ali, disfarçou se justificando: _ que
estava procurando uma pessoa e pensava ser ela aquela que se encontrava no leito.
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TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE CLARA CHARF
Esse depoimento foi realizado no dia 03 de novembro de 1998, na cidade de Salvador, na
residência de Carlos Augusto Marighella, o Carlinhos. A título de esclarecimento, Clara Charf foi
casada com Carlos Marighella, e nessa oportunidade, concordou conceder as informações abaixo
transcritas.
Edson Teixeira _ Clara, para iniciar, gostaria que você fizesse uma descrição física de Carlos
Marighella? Em termos gerais, quando a senhora o conheceu, como ele era fisicamente?
Clara Charf _ Era parecido com ele (Carlinhos), ele é bem parecido com o pai, assim mais ou menos
dessa mesma cor, cabelos crespos, lábios grossos, nariz assim meio adunco, ele é muito parecido
com o pai. É claro que ele é completamente diferente do pai no temperamento, mas fisicamente é
bastante parecido com o pai. Ele tem também algumas coisas do temperamento, mas é muito
diferente, é outra formação, é outra experiência de vida, não é?
ET _ Como era o temperamento de Carlos Marighella?
CC _ Eu digo a você, fisicamente, aquilo que todos os jornais escrevem é verdade. Ele era um
homem alto, a mistura do italiano com negra, então, ele tinha aquela gesticulação assim, a mão
grande, aquela gesticulação de italiano; e o físico muito do negro, os lábios grossos, o cabelo bem
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crespo, como a gente diz assim pixaim, tinha um porte atlético mesmo, pé grande, um homem alto,
que se movia bastante ao falar. Uma pessoa de hábitos muito simples, pela própria vida que ele teve
se pode dizer que, enquanto ele foi clandestino, ele quase só usou roupas que os outros davam.
Porque era militante, como os militantes clandestinos, em sua maioria, não tinham muitos recursos,
não tinham quase nada. Mesmo quando ele foi deputado o que ele ganhava, como deputado,
entregava ao partido, e o partido dava a ele uma quantia x, para ele pagar pensão, quando ele
morava lá no Rio. Seus gastos eram mínimos, era uma pessoa muito simples. Então, como naquela
época havia um trabalho de solidariedade, muitas famílias, que tinham mais recursos, davam roupa.
Por exemplo: ele usou muito os ternos, de um antigo militante comunista, da família Campos da Paz.
Era uma pessoa de hábitos absolutamente simples, quer dizer, alto, porte atlético, adorava
fazer exercícios. Não vou dizer praticar esportes, porque esportes seria uma coisa muito mais
metódica, que ele não pôde fazer. Desde garoto ele jogava futebol, batia bola na rua, mas a Tereza
já deve ter dito para você, adorava isso, batia bola na rua e tomava muito sol, gostava muito de ficar
andando na rua ao ar livre. Infelizmente, depois a vida o deixou preso muitas vezes, não é?
EJ _ Isso nos momentos de mais liberdade?
CC _ De mais liberdade. Mas, ele era um homem sadio.
EJ _ Não apresentava nenhum problema de saúde?
CC _ Teve alguns problemas normais, de dente, problemas na vista, adquirido na própria cadeia,
pois, ficou preso por muitos anos. Mas era um homem muito sadio, com uma força física muito
grande, ele inclusive procurou manter, mesmo nas épocas mais difíceis, ele procurou fazer exercícios.
Mesmo quando ele estava fechado, clandestino, num quarto, ele se mantinha fazendo exercícios.
EJ _ Isso na prisão?
CC _ Não. Clandestino não é prisão, clandestino é outra coisa. Prisão é outra coisa, outro capítulo.
Como ele gostava muito de fazer exercício físico e, muitas vezes, não podia praticar devido à vida
clandestina, ele sempre procurou fazer exercícios em casa mesmo. Ele não tinha muitos instrumentos
para praticar dentro de casa, mas ele fazia aquelas marombas, pegava aquelas _ não sei se você
conhece _ a gente comprava latas de leite em pó, enchia de cimento, duas latas daquelas, colava
aquilo, como se fosse num cabo de vassoura e fazia peso com aquelas duas latas. Não sei se você
consegue visualizar?
ET _ Sim, consigo...
CC _ Então, ele não tinha outras coisas, ele manteve esse hábito até ser assassinado.
ET _ E era um ato freqüente?
CC _ Ele achava que era importante para poder manter a musculatura mais rija, ainda mais que ele
esteve muitas vezes na vida clandestina, não podia ir a um parque, a um bosque, ao longo da vida.
Eu não vou falar da primeira fase da vida dele, porque a Tereza já falou, eu vou falar a partir do
momento em que eu o conheci.
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EJ _ Exatamente, este que é o meu objetivo.
CC _ Essa característica dele, gostava muito de sol, adorava caminhar. Em todos os momentos que
ele podia, caminhava.
EJ _ Ele gostava de praia?
CC _ Imagina, nascido aqui na Bahia, você já imaginou: praia, natação. Sempre que podia. Isso está
muito relacionado às épocas da vida dele. Porque quando ele foi jovem, você tem aí todas as
histórias da juventude dele, quando ele começou a entrar para militância política, a vida dele se
modificou. Aí entrou a cadeia, depois a clandestinidade, depois a semilegalidade, depois, novamente,
a clandestinidade, depois a liberdade. Esses períodos eram intercalados de acordo com a
conjuntura política do país, diante da qual ele sempre se posicionou de uma maneira muito firme, e
ele se movia de acordo com essas circunstâncias, ora estava em liberdade, ora estava preso, mas
mesmo nas prisões ele manteve atitudes de praticar esportes, fazer exercícios. Onde ele teve mais
oportunidade de fazer isso foi na Ilha de Fernando de Noronha, quando ele esteve preso de 39 à 45.
Quer dizer, passou pela ilha de Fernando de Noronha, indo depois para a Ilha Grande.
ET_ Que outro tipo de exercício ele mais praticava?
CC_ Na época que a gente morava no Rio, quando ele era semilegal, ele conseguiu algo como se
fosse um remo, ele fazia o exercício em casa, como se estivesse remando. E o mais engraçado que
ele fazia isso e ao mesmo tempo aproveitava para estudar inglês. Naquele tempo surgiram os
primeiros discos em inglês, ele ouvia inglês e ao mesmo tempo ficava remando, que era para não
perder tempo. O negócio dele era não perder tempo, aproveitar o máximo de tempo para tudo.
Como ele era um homem que tinha muita curiosidade intelectual, muita sede de conhecimento,
achava que sempre devia estudar, se preparar para todas as circunstâncias. Procurava estudar
idiomas também, ele aproveitava fazendo exercício, ligava lá os discos. Isso era conforme as
circunstâncias, não era uma coisa regular de todos os dias. Era uma vez ou outra. Era muito difícil ele
ter uma vida absolutamente organizada, esquematizada. Ele tinha alguns princípios de vida que
nortearam o comportamento dele.
ET _ Quais seriam esses princípios?
CC _ Eu digo esse por exemplo: de ser sempre uma pessoa preocupada com os outros. Isso era um
primeiro princípio dele, tanto que ele deu a vida na luta pelo ser humano. O que foi a luta política de
Marighella? A luta dele para transformar a sociedade, não era para transformar a vida dele,
individualmente, era para transformar a vida do povo, do país onde ele tinha nascido, onde vivia,
onde tinha estudado, onde ele tentou ajudar a transformar uma sociedade que considerava injusta,
cruel, desumana. Então, a coisa principal da vida dele era lutar para transformar este tipo de
sociedade, usando todos meios que estivessem ao seu alcance. Assim ele lutou na década de 30, na
década de 40, 50 e 60, até quando ele foi assassinado, em cada momento da história de acordo
com as circunstâncias, que o levaram a agir dessa ou daquela maneira. Esse é um princípio. Outra
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coisa: Marighella era um homem muito solidário, o que completava esse primeiro princípio da luta
pelos outros.
ET _ A senhora poderia fornecer um exemplo dessa solidariedade?
CC _ Em toda a sua vida foi absolutamente solidário com os outros. Você vê, um homem com o
talento que ele tinha, inteligentíssimo, fazia prova em versos, ficou conhecido como estudante
rebelde, inteligentíssimo, criativo, crítico. Com essas características ele poderia ter sido um tremendo
engenheiro, já que ele fez engenharia até o terceiro ano. Ele era uma das inteligências brilhantes na
escola, tanto no primeiro grau, no segundo, naquele tempo não chamava assim, como na
Universidade. E abandonou toda essa carreira, que teria sido brilhante. Um homem com essa
inteligência, com essa capacidade, com esse grau de cultura, que ele cada dia adquiria mais, pois
estava sempre estudando, um lutador como ele era, e ele largou tudo por causa da luta, isso que eu
digo para você. Tem um exemplo mais solidário, você dedicar toda a sua vida na luta pelos outros,
fazer a luta com os outros e para os outros, para que essa sociedade passe a deixar de ser como é?
E depois, na vida diária, ele sempre era muito solidário com as pessoas. Por exemplo, tem casos
assim pequenos que você vê o tipo de pessoa que ele era. Quando ele estava clandestino numa casa,
em quantas ele viveu? Ele viveu em muitas casas porque ele tinha que se esconder, para fazer
trabalho revolucionário. Como exemplo, ele ficou numa época na casa de um operário e uma tecelã.
Eles saíam para trabalhar e deixavam os filhos, ele não podia sair de dia, ficava em casa. Ele só
podia sair de madrugada ou de noite. Como ele estava perseguido, para não ser localizado. E a
operária tinha filhos pequenos, ele ficava brincando com as crianças em casa, era o “tio” daquelas
crianças. Fazia comida para aquelas crianças, ele inventava brinquedos, se caracterizava como um
palhaço para fazer brincadeiras com essas crianças. Como as crianças eram pobres e não tinham
muito dinheiro, ele pegava as tampas de panela para fazer brinquedo. Deixava a casa toda arrumada,
tudo lavado, para quando a companheira chegasse do trabalho, não tivesse que fazer aquele
trabalho, que normalmente ela teria que fazer. Estou te dando um exemplo, mas existem centenas de
pessoas que conviveram com ele, que contam essas características. São pessoas que tinham um
carinho enorme com ele. Não tem uma família que tenha convivido com ele e que não tenha
guardado essa impressão. Solidário em todos os sentidos, assim em casos de doença. Tudo ele
queria fazer pela pessoa, mesmo não tendo recursos. O gesto, a atitude, a solidariedade, o interesse
pelos problemas das pessoas que estavam na luta também. Isso é uma característica muito
importante do comportamento de Marighella. Se ele sabia que você tinha um problema com sua
mulher, com sua namorada, com seus pais, ele ficava preocupadíssimo, queria ver como te ajudava,
queria te ajudar indiretamente, conversava, tinha uma paciência fantástica para ouvir as pessoas.
Coisa que não é muito comum.
ET _ De fato...
CC _ Pois então, esse homem, a primeira pergunta que você fez foi como ele era fisicamente, aquele
homem de porte atlético, que se não fosse a circunstância da luta, da vida clandestina, seria
engenheiro, esportista, etc. Procurava ao longo dos seus dias ter esses traços de seu
comportamento. Isso é uma coisa muito interessante.
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Mas voltando ao físico. Ele realmente adorava caminhar, para ele não tinha problema.
Quando ele foi clandestino em São Paulo, 37, 38, os companheiros daquela época contavam que ele
gostava muito de doce, ele tinha pouco dinheiro. Ele, por exemplo, saía da Penha, que é um bairro
de São Paulo, para o centro da cidade, se ele tivesse que ter um encontro com alguém, fazer um
contato, ele tinha que tomar uma condução. Como ele gostava muito de doce e tinha pouco dinheiro,
ele vinha a pé, eram caminhadas gigantescas, para ele poder comprar o doce com aquele
dinheirinho. Mas, independente disso, ele caminhava para poder economizar o dinheiro e comprar o
doce. Gostava muito de caminhar. Quando ele era deputado, caminhava do escritório parlamentar,
onde ele e todos os deputados comunistas trabalhavam (era uma espécie de um coletivo, na Avenida
Rio Branco), até a Praça Tiradentes, jamais ele tomou uma condução, não era tão longe naquela
época, mas o negócio dele era caminhar. Fora isso ele ia caminhar de manhã, a hora que ele
estivesse livre ele ia para a rua caminhar, quando tinha essa liberdade, não é? Ele elaborava
caminhando. Ele tinha muito essa característica. Ele caminhava e ia elaborando os discursos, as
idéias, aquilo que ele queria depois transformar em fala ou em escritos. Qualquer oportunidade que
ele tivesse para caminhar, ele fazia isso. Ao longo de toda a vida dele foi assim, tanto que para ele,
coisa terrível, quando o cerco apertou, não podia caminhar muito, para ele era um sofrimento
terrível. Ele caminhava dentro do lugar em que ele estivesse, fazia exercício para se manter.
EJ _ Conforme a senhora falou, na clandestinidade?
CC _ É.
EJ _ Nessas caminhadas ele tinha o hábito de parar para conversar com as pessoas?
CC _ Não, isso depende.
EJ _ Eu digo que além de caminhar ele tinha o hábito de conversar com as pessoas?
CC _ Isso sim, foi a marca do comportamento dele. Na cadeia foi assim. Ele criou escola, tentou
fazer um trabalho cultural com os presos. Foi exatamente por isso, ele achava que o ser humano era
importante nessa luta, e você tinha que manter as pessoas juntas, lendo, uma ensinando a outra, não
só ele ensinando a outros, mas aprendendo com os outros, isso era o campo dele. Quando ele era
deputado, Marighella não era deputado de gabinete, era deputado de andar na rua, de fazer contatos
com os movimentos, tem fotos dele, que não tenho aqui, ele sentado no trilho do trem, lá no Rio de
Janeiro, conversando com os operários, sentado no chão, tem uma foto, as vezes sem paletó,
batendo o maior papo. Isso era uma coisa inédita para um deputado. Não estou dizendo a você que
ele fosse o único a fazer isso. Os deputados comunistas tinham um comportamento, enfim, mas eu
não vou analisar os dos outros, vou analisar o dele.
Ele tinha muito isso de conversar com todo mundo. Ele sentia uma agonia enorme de ficar
fechado. Ficava porque ele era muito disciplinado. Na Câmara Federal, por exemplo, como ele era
um tremendo orador, mas ele tinha uma velocidade muito grande na voz, para transmitir o
pensamento dele, parecia uma metralhadora, as taquígrafas, às vezes, não conseguiam nem pegar
tudo o que ele dizia. Então, as taquígrafas, quando terminava a sessão da Câmara diziam para ele,
depois que todo mundo ia embora: _ “A gente vai ter que pedir a sua ajuda, pois teve uma frase que
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a gente não conseguiu captar”. Ele ficava naquela paciência lá, ajudando a completar frases, para
ajudá-las, ele não deixava ninguém em dificuldades, muito menos a taquígrafa que tinha que dar
conta do trabalho dela. Mas, assim, quando elas terminassem saía para andar, quer dizer, saía para
fazer outras atividades, mas ele ia caminhando. Claro que ele tomava bonde, ou ônibus, se fosse
preciso, mas de preferência ele fazia tudo a pé.
EJ _ Isso no Rio de Janeiro.
CC _ Aqui na Bahia era todo na rua. Quando ele morou em São Paulo fazia caminhadas enormes.
Claro que nos momentos da clandestinidade muito grande, nos momentos que ele tinha que suportar,
ele tinha que ser levado de carro, mas aí é outro momento, outra circunstância.
EJ _ Nós vamos chegar lá. A senhora relatou agora, há pouco, que ele como deputado gostava de
conversar com os outros, evidentemente que a conversa girava em torno de política. O que eu quero
saber é se a senhora tem exemplos concretos dos assuntos que ele gostava de conversar além de
política?
CC _ Todo mundo que conheceu Marighella sabe que ele gostava de conversar sobre tudo, ele
gostava de esportes, conversava sobre futebol, conversava sobre qualquer assunto do cotidiano das
pessoas, o que estava acontecendo. Mas, ele como deputado, tinha que discutir também
politicamente com àqueles operários, por quê? Porque ele foi muito porta-voz das reivindicações
mínimas e máximas dos trabalhadores e do povo em geral. Se ele conversar por exemplo, você
imagina, ele fazendo discurso pra defender os interesses dos carteiros da Bahia, ou dos policiais, ou
dos ferroviários do Rio de Janeiro, ou de Minas Gerais. O pessoal mandava telegramas para ele com
denúncias, ele lia aquilo tudo no plenário da Câmara, que era uma forma de transmitir a
reivindicação. Quando conversava com as pessoas, é claro que ele sabia, a sensibilidade que
Marighella tinha, a sensibilidade dele era tamanha e tão voltada para esse povo, que era impossível
que ele não discutisse todas as questões. Por exemplo, na luta pela exploração do petróleo no Brasil,
você imagina ele conversar com pessoas, homens, mulheres, de classe média, ou operários, ou
intelectuais que não fossem conversar sobre esse problema? Então, eram os problemas do cotidiano,
a vida pessoal, o esporte, a cultura e os grandes problemas da nação. Ele tinha que mobilizar as
pessoas para lutar por aquelas idéias que ele defendia. Ele não era deputado que falava dos
problemas dele. Ele falava dos problemas que a nação enfrentava, contestava, criticava e
denunciava.
Você pega o discurso dele na Câmara, eram sempre de contestação, discursos denunciando
ou propondo soluções para esses problemas. Essa foi a grande característica que fez com que ele
ficasse famoso como deputado. De uma ação muito arrojada, muito corajoso, muito decido, muito
ágil, determinado. A produção dele foi enorme, segundo todas as pesquisas feitas até agora, ele fez
195 discursos, em 2 anos de parlamento. Quer dizer, era um deputado presente, ia todo dia, ouvia,
falava, se posicionava, participava das comissões, ele foi da comissão de finanças da câmara,
quando ainda no tempo da Constituinte. Porque quando foram eleitos, em 46, foi para fazer a
constituição da época, tanto que ele é um dos constituintes daquela época. Ele deu uma contribuição
muito grande. Tem discursos dele sobre orçamento, proposta, naquela fase, por quê? Porque aquela
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fase era chamada a fase da democratização do país, depois do Estado Novo, então é claro que o
comportamento dele na Câmara era diferente do que tinha sido o comportamento na luta clandestina
anterior, ou o que seria depois.
EJ_ Por isso na época que a senhora se referiu a redemocratização?
CC_ Claro. O parlamentar, o homem que faz política, vale e até hoje para qualquer um, você não
faz a política só de acordos, do seu desejo. Eu tenho a vontade de transformar o Brasil. Como eu
transformo hoje? Como? Por onde? Tem que estudar todas as circunstâncias, como mobilizar o
povo naquela luta junto com você, fazer as propostas para que as pessoas entendam o que você
quer fazer, porque que se pode fazer; muitas vezes o povo acha que é impossível. Então, muitas
vezes, você lida com os contextos históricos, a figura do político revolucionário está ligada a um
contexto, fora do contexto ele não existe. Esse é o caso de Marighella.
E.J._ Como foi seu primeiro combate com Carlos Marighella?
C.C._ A gente se conheceu, eu era militante desde Recife, não tinha nada com ele, não sabia que ele
era essa pessoa, coisa e tal. Eu era militante que comecei a militar quando terminou a Segunda
Guerra Mundial, no Partido Comunista daquela época. Depois eu fui da primeira associação de
mulheres de Pernambuco, já era militante. Por circunstâncias da minha vida familiar, a mãe morta, pai
com muita dificuldade financeira, etc. Eu vim paras o Rio, queria arranjar trabalho no Rio, meu sonho
era ser aviadora, mas a legislação não permitia mulheres na aviação comercial. Então eu acabei
sendo aeromoça. Vim para o Rio com a idéia de trazer depois meus irmãos e meu pai, para ver se
melhorava a nossa condição econômica, porque minha família era pobre, meu pai lutava com muita
dificuldade.
Então, eu comecei a militar no Partido do rio, no Largo do Machado. Morava na casa de
uma tia, que era perto dali do Largo do Machado. Eu conheci o Marighella acidentalmente na sala
do Comitê Central. E olhei, foi assim uma coisa muito rápida. Depois eu vim a ter contato com ele,
quando eu havia deixado de ser aeromoça. O Partido já tinha o registro cassado, mas os
departamentos continuavam no Parlamento. Eu fui trabalhar na Assessoria Parlamentar, que era uma
única assessoria de todos os parlamentares comunistas. Era como se fosse um grande escritório,
onde tinha um economista, pessoas que lidavam com a área de cultura, tudo. Todas as áreas que os
deputados tinham que abordar todos os temas nos discursos, em geral, eram pesquisados e
produzidos ali, naquela assessoria coletiva. Então ali trabalhavam muitas pessoas, ali iam o Jorge
Amado, o Gregório Bezerra, todo mundo ia ali, porque a bancada não tinha assessoria individual,
como é hoje, a assessoria do deputado tal. Naquele tempo era uma única assessoria coletiva. Ficava
na Avenida Rio Branco. Os deputados todos elaboravam, pesquisavam o seu material, consultavam
os dados estatísticos, tudo era feito ali. Por isso que tinha nessa assessoria gente de muitas
profissões. E eu fui trabalhar com o Marighella nessa assessoria. Marighella era o responsável por
essa assessoria. Era também o deputado com mais experiência política, talvez por ter cultura política
e cultura geral, ele foi colocado como responsável pela assessoria coletiva.
E.T. _ Então ali nasceu o romance?
C.C. _ Sim, ali.
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E.T. _ Num primeiro momento, quando nasceu, todos sabiam ou era um romance reservado?
C.C. _ É claro, reservado.
E.T. Indo mais além, evidente que a senhora e Carlos Marighella, mesmo tendo um romance
reservado, vocês tinham alguns programas, e programas no bom sentido, sair...
C.C _ Olha isso aí é muito diferente. A nossa vida foi muito complicada, porque logo depois eles
tiveram o mandato cassado. Eu voltei para Pernambuco, depois eu vim de Pernambuco novamente,
e aí a gente já foi viver junto.
E.T _ A senhora se recorda em alguma conversa com ele, não só início do relacionamento com ele,
mas durante a sua trajetória, alguma lembrança que ele tinha da adolescência, da sua infância aqui na
Bahia, algo que ele mais gostava de recordar do passado?
C.C _ Claro. Ele era um ser humano como outro qualquer.
E.T_ E o que ele mais lembrava?
C.C _ Ele lembrava tudo, a família, o esporte, a relação com a mãe, com o pai, com os irmãos, as
brincadeiras, deitar no chão para estudar de noite, porque não tinha espaço para estudar dentro de
casa durante o dia. Na oficina mecânica do pai, ele tinha mania de deitar e botar travesseiro de
pedra no chão para estudar de noite, para não perder a hora. Porque ele esperava todo mundo fazer
silêncio, quando todo mundo ia dormir, quando estava tudo em silêncio, ele levantava para estudar.
Essas coisas ele recordava e mantinha contato com a família. Ele escrevia carta, conseguiu livros, tem
inclusive vários bilhetes dele para a família, mantendo contato com a família, com o Carlinhos, isso já
depois, com os irmãos, procurou manter. Mesmo com as irmãs ele manteve contato, com a Tereza,
com a Julieta que já morreu, que era enfermeira. Mesmo na época clandestina ele procurou manter
algum contato, mas era muito estreito, porque podia ser que a polícia a localizasse a família e o
localizasse.
E.T_ Pediria outro detalhe que a senhora se estendesse um pouco mais sobre como ele se mantinha
financeiramente?
C.C_ Mas é isso que eu falei para você como era o sistema naquela época da partição. Quando ele
era deputado, o salário era entregue inteirinho ao Partido e recebia uma parcela. Haviam casos de
famílias muito grandes, casos de deputados casados. Ele era solteiro e recebia uma pensão mínima.
Como ele era uma pessoa de hábitos modestos e as necessidades eram muito pequenas, então ele
recebia o mínimo, tanto para o quarto da pensão, tanto para comer, comprar livros, o mínimo você
entende? O mínimo.
Então ele gastava muito pouco, isso quando parlamentar. Quando deixou de ser parlamentar
ele era revolucionário profissional, ele trabalhava só para a causo revolucionária, então o Partido
tinha um sistema de manter as pessoas também muito precariamente. Se na família tivesse alguma
outra pessoa que trabalhasse fora, com uma profissão, mas quando era uma família totalmente
clandestina, que só vivia do trabalho revolucionário não podia, você podia fazer uma tradução, era
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uma coisa, tudo não era registrado, não podia, você não podia dar seu nome, você não podia dizer
onde você estava trabalhando, tudo era muito difícil. O Marighella era um homem que gostava de
música, que gostava de comprar disco, livro ele era apaixonado, livro era a grande loucura dele, e se
ele passasse numa livraria, e visse lá aquela coleção, naquela época do Pocket Books, ele comprava
de tudo quanto era coisa. Até uma coisa muito pitoresca sobre ele, como ele escolhia os assuntos,
daquele dinheiro pouco, isso que eu quero dizer para você. Ele não comprava roupa praticamente,
eu estou te dizendo que naquela época o Partidão tinha um trabalho de solidariedade, nós usamos
muitas roupas usadas por outras pessoas, roupas em bom estado. Ele como parlamentar ele nunca
comprou um terno. Usou os ternos dados pelo Campos da Paz, que era um médico, de família
tradicional, revolucionária. Campos da Paz achava que o Marighella, sendo deputado, tinha que
estar bem vestido.
E.T_ A senhora falou em música, que tipo de música ele mais gostava?
C.C_ Ele gostava de música italiana, ópera e de música popular brasileira. Chorinho, essas coisas ele
gostava muito.
E.T_ Nos poemas dele a gene percebe uma certa exaltação do samba ...
C.C_ É música popular brasileira.
E.T_ Ele tinha o hábito de ouvir música. Como que era a relação dele com a música? A senhora
também gostava, não é?
C.C_ Eu estudei piano em Alagoas. Mas ele gostava muito de trabalhar ouvindo música, que até eu
contei na entrevista do Jô Soares, eles ficaram até assim emocionados, porque o negócio dele era
velocidade, tudo dele era rápido, então, quando ele sentava para escrever, ele gostava de ouvir rádio
_ naquele tempo não tinha esses CD’s da vida nem nada disso _ mas tinha as estações de rádio, ele
queria que ligasse : _ bota aí, no tico-tico no fubá (risos). Vê se você consegue localizar. Era música
ágil, rápida. Ele trabalhava na máquina com os dois dedos, ele nunca trabalhou com os dedos todos.
Aí eu dizia: _ “Pôxa Marighella aí não dá para trabalhar com Tico-Tico no Fubá (Risos).
Ele dizia: _ “Então tá bom, tira o Tico-Tico no Fubá e vamos ouvir outra coisa”.
Mas ele gostava muito de ópera também, como eu também gostava, quando ele podia, se
ele passava numa livraria e tivesse alguma coisa de ópera, ele também comprava. Ele tinha o hábito
de dar presentes não nas datas, por exemplo, se ele gostasse de uma pessoa e ele queria dar uma
flor, ele não esperava chegar o dia do aniversário, ele dava na hora que tivesse o dinheiro no bolso,
se lembrasse da pessoa naquela hora, porque ele tinha uma coisa muito interessante, ele era muito
sensível. O Marighella tinha uma característica que às vezes o revolucionário não tem, veja bem, às
vezes, não vai botar na minha boca coisa que eu não disse. O revolucionário, eu acho que todo
revolucionário tem que ser sensível, senão ele não seria revolucionário. Isso era uma das
características mais particulares, o Marighella tinha muito essa coisa da delicadeza, aquele homem
grande aquele homem valente, aquele lutador, ele tinha muito essa coisa delicada.
Ele era capaz de chegar, por exemplo, com um doce, trazer um docinho, trazer uma flor,
entende, umas coisas, um pequeno livro, de acordo com as posses, com o dinheiro que ele tivesse
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no momento, não esquecia as coisas, às vezes ele fazia que tinha esquecido, por exemplo, num
aniversário _ eu mesma_ (risos ). Eu dizia: _ “Pôxa! Sim senhor, esqueceu a data do nosso
casamento.Ele não tinha esquecido nada. Quando ele tinha oportunidade com um gesto...
E.T_ Supria aquela...
C.C_ Exatamente. Todas as pessoas que conviveram com ele, tiveram um convívio muito fácil.
Outra coisa ele era limpíssimo e arrumadíssimo. Eu nunca vi um cara tão organizado, olha que na
clandestinidade ser organizado não é brincadeira, tudo dele, os livros arrumados, tudo em pacotinho
enrolado com o nome em cima, o jornal, não era como agora, o papel de tal cor, essas coisas
modernas, a vida era muito modesta, então você tinha que resolver suas coisas de acordo com as
circunstâncias.
E.T_ Eu gostaria até de mostrar dois exemplares, dois livros, que a dona Tereza, ela guardou. Esse
aqui provavelmente, ele entrou em contato na escola. Esse aqui, um livro de poemas de Casimiro de
Abreu.
C.C_ Ele lia muito.
E.T_ Além de política, ele lia basicamente qual assunto?
C.C_ Ele lia tudo, tudo, tudo. Não só lia tudo, ele leu muita poesia, tanto que você vê que ele era
poeta, um revolucionário poeta, e não um poeta revolucionário. Ele lia muita história, filosofia, bíblia.
E.T_ Essa me parece que foi na escola. Bíblia também lia?
C.C_ Lia tudo. Ele tinha um interesse. O Marighella tinha uma cultura geral e uma grande curiosidade
intelectual. Ele achava que era importante a pessoa ler, estudar e conhecer. Você vê ele era
estudante _ não sei se a Tereza contou _ ele estudou grego, começou a estudar grego. Estudou
francês, quando era estudante aqui na Bahia ainda. O grande problema dele com o idioma era o
seguinte, ele não tinha facilidade para falar os idiomas, porque como foi muito autodidata, ele
estudava sozinho. Na cadeia ele fez muito isso. Lá ele estudou grego, ele lia o livro, ele tinha que ler,
o som para ele era muito difícil, porque como ele não tinha com quem falar, não é, então, foi muito
difícil. Ele tinha vocabulário, mas dificuldade para pronunciar.
Vamos admitir que aqui estivesse escrito, por exemplo, Gold, uma hipótese, ele dizia - Gold
- mas ele não sabia se pronunciava daquele jeito, entendeu? Só foi saber isso depois, quando saiu da
cadeia, quando começou a falar, mas tinha muita dificuldade para falar. Ele não tinha muito bom
ouvido para idioma. Tem muitas coisas engraçadíssimas dele quando ele estudou inglês e depois
quando foi para a China. Tem mil história.
E.T _ Uma delas que a senhora poderia dizer.
C.C _ Uma delas, essa eu já contei para o Emiliano, em outra época. Porque foi assim: isso não tem
seqüência, não tem cronologia nenhuma o que eu tô falando para você, eu estou falando das
características dele. Então, quando ele foi a China, em 53, a vitória da Revolução Chinesa tinha sido
em 49, e até então, 49, 51, 52, não havia ido nenhuma delegação oficial do Partido Comunista à
China, para fazer contato com o novo poder revolucionário de Mao - Tsé Tung. E aí fizeram uma
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delegação e o Marighella foi chefiando essa delegação. Então imaginava qual era o idioma que ele ia
falar, o chinês ele não sabia, então tinha que usar o inglês. Ele tinha um vocabulário enorme de inglês,
ele traduzia melhor que eu, ele falava inglês, tinha um vocabulário muito grande, era uma espécie de
come dicionário _ aquilo que a Tereza disse que parecia que ele comia um dicionário, ele vivia
pesquisando em dicionário, palavras, etc e tal; com ansiedade, com aquela coisa de aprender mais.
Então, no dicionário ele via como é que escrevia as palavras e qual era o som, todo dicionário tem
isso, né. Aí ele aprendia por aquilo ali, mas aquilo na hora de falar, não dá certo. Então, ele chegou
em casa um dia, em 52, fins de 52 para 53, ele chegou em casa e disse: _ Clara, eu preciso treinar
inglês.
Eu disse: _ “Para que”?
_ “Porque eu vou viajar”.
Nem perguntei para onde, porque a clandestinidade era assim, eu não perguntava para onde
ele iria. Perguntei: _ “Quanto tempo você tem para treinar”?
Ele disse: _ “Tenho um mês”.
Aí eu disse a ele: _ “Mas em um mês não dá (risos). Como treinar em um mês para fazer
uma viagem mesmo que fosse para qualquer país que falasse o inglês. Pois bem, eu disse a partir de
hoje, de agora, não se fala uma palavra em português aqui em casa, entre ele e eu, nada, água, leite,
pão, livro, o que fosse. Tinha que ser em inglês. Mas acontece que a gente não ficava o dia inteiro
em casa, se ficasse o mês inteiro só fazendo isso, mas não era, era com todas as atividades, quando
ele chegava em casa, roupa, tudo. E aí fomos treinando, mas ele tinha uma dificuldade enorme para
dizer o R.
E.T _ A pronúncia?
C.C _ É a pronúncia, era muito difícil. Aí eu dizia para ele: Hat, chapéu. Não conseguia dizer o H,
ele puxava pelo L. Rato, rat, ele dizia: _ “Lat”. Eu dizia não diga lat, pois é outra coisa. Mas não
tinha jeito, ficou sem saber, mas tá bom. Ele foi embora, quando ele foi eu não sabia para onde. Só
soube um ano depois. Na China ele fez todo o trabalho que tinha que fazer, pegou pneumonia, eu só
soube tudo isso quando ele voltou. Quando ele voltou eu estava presa, aí a gente se encontrou
depois. Mas enfim, quando ele voltou, quando a gente se encontrou, aí eu disse: _ “Vem cá, posso
saber onde você andou”? Eu estava aflitíssima, mas não podia saber onde ele estava, porque a
clandestinidade não permitia. Eu também acho que era muito disciplinada demais, que eu devia ter
pressionado para saber, mas eu achava que aquilo era segredo. Então, quando ele chegou eu
perguntei: _ “Onde você andou”?
Ele contou: _ Fui para China, União Soviética e tal, inclusive terminei meu tratamento lá.
E voltou. Então eu perguntei: _ “Na China, com é que você fez na China, como se virou com
o inglês”?
Ele disse: _ “Ah! Foi ótimo. Então, você não dizia que eu não sabia dizer o R, mas o Chinês
também não. (risos). Mas eu ri tanto com as histórias que ele contou, essas histórias são ótimas. Ele
até falou lá em atividade pública, apesar de que tinha na delegação um companheiro que já morreu,
que foi um companheiro, que era comunista, era da direção, falava muito bem o inglês, ele que foi
para trabalho de tradução lá. Marighella voltou felicíssimo porque ele tinha conseguido falar inglês
210
com os Chineses, né. Mesmo com essa coisa da dificuldade da fala, ele sabia falar muito bem o
francês, tudo, mas ele sabia o idioma pelo conhecimento da ortografia, do vocabulário, mas na hora
de falar ele tinha essa dificuldade.
E.T_ Esse contato com o grego foi na cadeia?
C.C_ Foi na cadeia. Inclusive ele usava para fazer pequenas anotações para driblar a repressão.
E.T_ Ele tinha algum interesse pelo teatro?
C.C_ Pois ele fez teatro na cadeia. Quando ele estava preso na ilha de Fernando de Noronha _ e
esse é um capítulo muito especial do comportamento revolucionário de Carlos Marighella _ eram
muitos presos, muitos, porque a ditadura do Getúlio Vargas prendia gente no país inteiro, mas os
presos considerados mais perigosos eles botavam na ilha de Fernando de Noronha. Isso foi de 39 à
42. Em 42, quando Getúlio fez o acordo com os Estados Unidos e cedeu a base militar, tiravam os
presos e passaram para a Ilha Grande. Ele e muitos presos foram juntos, Noé Gertell, por exemplo,
esteve preso com ele na Ilha Grande. Estou dando um exemplo, então você imagina, preso em
Fernando de Noronha, fugir não podia, se fugisse o tubarão comia, então ninguém tentava fugir.
Certa vantagem que eles tiveram por lá, é que eles podiam circular fora da cela, estavam na cela à
noite, só que podiam circular, só que não podiam fugir, era perigoso. Eles tinham que subir e descer
para pegar água, porque a cadeia não tinha água para uso, para consumo. Imagina aquilo é mar.
E.T_ Era uma ilha?
C.C_ É uma ilha. Então eles plantavam, tiveram a iniciativa de plantar verdura, por causa do
escorbuto, que dava muito por falta de vitamina C, porque a cadeia fornecia alimentação básica, só
isso. Tinha farinha, feijão, carne seca. Eles, o coletivo dos comunistas resolveu organizar a vida, e
organizar como? Fez um acordo com o diretor da cadeia: nós vamos cozinhar, nós vamos reforçar a
qualidade da comida. De que maneira? Porque tinha o navio que de tanto em tanto tempo trazia
mantimentos para a cadeia. Os presos faziam artesanato, e o artesanato ia embora com o navio,
entregue a família de presos no Rio de Janeiro, que pegavam o artesanato, vendiam, levantavam um
dinheiro, e compravam leite condensado e outros alimentos, e mandavam no próximo navio. Isso
reforçou a comida deles, não é. Mas, eles também plantavam verdura, tudo que podia plantar ali
para reforçar a alimentação. Fora disso eles organizavam o sistema de cozinha, plantão, quem
cozinhava, Marighella era ajudante, não era cozinheiro-mor. Tinha cozinheiros de profissão, que
haviam sido presos por participar do levante de 35, eram da Marinha. Mas Marighella aprendeu a
cozinhar sim, aqueles panelas enormes, que era para muita gente. Mas fora disso eles organizavam a
vida cultural, esportiva, tinha aula de tudo. Se você fosse mecânico teria que ensinar mecânica para
os outros, se você fosse professor de matemática você ensinaria, você entende? Eles organizavam
um sistema onde cada um ensinava aquilo que sabia.
E.T_ Marighella atuou em qual área?
C.C. Imagina. Atuou em história, matemática, várias coisas, com o nível de cultura dele ele tinha
majoritariamente mais cultura que os marinheiros, soldados, o pessoal que tinha a cultura naquela
211
época, né. Gente de nível cultural inferior, porque não tinha tido chance para estudar. Fora disso
você imagina, tantos anos presos aquilo era uma coisa terrível, que ele achou que tinha que ter
alegria, brincadeira, então eles organizavam um teatro, faziam peças, ele fazia o papel de turco, que
como ele era alto, com o nariz meio adunco, ele fazia o papel de turco.
E.T_ Também era ator?
C.C_ Ator, claro. Não sei se ele escrevia peça, mas foi ele que inventou aquele negócio todo lá.
Quem soubesse pandeiro, qualquer coisa que a pessoa soubesse tocar, participava. Eles
organizaram a vida, faziam palestras, conferências. Aula de marxismo também. Aí, claro, ele estudou
muito também. Então ele teve uma participação muito grande na organização da vida coletiva da
cadeia. Ele contava, mais tarde, assim como seus companheiros, como aquele que foi capitão da
marinha, o Antônio, ele dizia que graças ao Marighella _ e não só graças ao Marighella, graças ao
coletivo _ mas o Marighella teve um papel preponderante nisso aí, eles evitaram que alguns
companheiros tentassem o suicídio, porque a maioria era casada, estavam longe da família.
Marighella era solteiro naquele época, então, eles sentiam muita solidão, não é. Às vezes perdiam
aquele sentido, porque eles não sabiam o que iria acontecer com eles ali. A guerra aí no mundo, eles
na Ilha. Havia debates ideológicos na cadeia quando a União Soviética fez aquele acordo com a
Alemanha, a cadeia se dividiu, uns diziam que Stálin tinha traído, outros que não tinha traído, quer
dizer isso tudo era a vida na cadeia. E faziam o trabalho manual também. O artesanato, ele mesmo
ficou com um problema na vista, porque eles faziam o artesanato quando estavam na cela, durante o
dia eles aproveitavam aquela oportunidade para circular, plantar, carregar água, ele por exemplo
tinha um calombo nos ombros, de carregar aquelas caçambas de água, latas amarradas num cabo de
vassoura, ele como era muito jovem e forte, ia no poço para pegar água e abastecer a cadeia. Ele
podia fazer aquilo por ser fisicamente forte. Ele deixava de fazer outras tarefas para fazer essa. Eu
me lembro que uma vez ele contou que tiravam água de 4h da manhã até às 9h. Era muita gente,
tinha que abastecer aquilo tudo. Não sei se todos os dias, mas ele carregava.
Transcrição _ Fita II
E.T_ Como era cotidiano do casal, como viviam a senhora e Carlos Marighella?
C.C_ Marighella possuía uma atividade que todo revolucionário deve ter. Ele nunca me explorou, no
sentido de se acomodar nas tarefas, quando tinha tempo dividia as tarefas. Ele lavava roupa, e
naquele tempo era no muque, lavava mas não sabia passar. Então, para ilustrar a sua determinação,
ele propôs que quando eu passasse as roupas, ele lia em voz alta, lia os jornais, textos políticos, nós
estudávamos, passando roupa. Ele encerava a casa, eu nunca encerei casa, ele encerava e passava
aquele escovão. E essa característica era em qualquer casa que ele ficasse, gostava de um ambiente
organizado, arrumado, tomava banho e pendurava a toalha. Ao acordar se eu não estivesse por
perto, esticava o lençol. Jamais você veria ele sujar um copo e dei-lo sem lavar. Ele lavava louça,
adorava água, era muito organizado. Seus livros eram todos organizados, limpos. Ele também era
limpo.
212
Quando na época da guerrilha, ele ensinava aos meninos a ter essa organização. Ele falava
que era para limpar a casa onde se encontravam, afinal, a casa era emprestada, e eles não iriam
deixar aquela bagunça. Era para pegar tudo, enrolar num papel e colocar no lixo.
Quando eu falei isso no programa do Jô Soares eles ficaram espantados, admirados de
conhecer esse lado do Marighella.
E.T_ Eu queria avançar um pouco mais.
C.C_ Então essa vida cultural é um capítulo da vida dele, isto é, 39, 40, 41, 42. E quando eles foram
para a Ilha Grande já tinha outras características que era mais aberto, os presos que eram casados
podiam receber as famílias ali. Agildo Barata recebia a família ali. Alguns tiveram direito a ter uma
casinha separada para ficar com a mulher e os filhos, já era outro sistema de carceragem, isso de 42
à 45, ficaram 3 anos lá.
E.T_ Eu só queria lembrar a senhora que por uma questão de metodologia, de método, eu não me
prendo a cronologia.
C.C_ Eu também acho que não.
E.T_ Das datas.
C.C _ Eu acho que o problema de Carlos Marighella, que fica muito chato você dizer em 39 ele foi
preso, em 42 ele saiu foi para a Ilha de Fernando de Noronha, em 47 chegou, não dá para fazer
isso. Uma vida tão rica. Nós poderíamos podar.
E.T_ Agora, e o gosto pelo futebol a senhora tinha alguma coisa...
C.C_ Isso aí a Tereza conheceu melhor, mais do que eu, porque ele jogava futebol quando menino
aqui na Bahia, todo mundo sabe dessa história, não é. Tinha um “pezão” enorme, Jorge Amado falou
demais disso aí, que ele era louco por futebol, e mesmo depois, quando ele morou no Rio, quando
era possível, se ele pudesse ir a uma praia, adorava a dar uns chutes aí.
E.T_ Ele acompanhava o futebol?
C.C_ Imagina. Ele lia todas as páginas esportivas, todas, lia tudo. Já clandestino, quando não podia
ir ao estádio sabia tudo sobre o futebol. Até dos outros times. Aquela história do taxi eu te contei
(para Carlinhos), que ele entrou no taxi uma vez e o motorista começou a perguntar sobre os times
de São Paulo, sobre um campeonato, que eu não me lembro, mas ele não tinha lido os jornais
daquele dia, quando ele entrou no taxi o motorista não sabia quem ele era e começou a falar do
jogo, quanto foi a partida, e ele não pôde acompanhar, não tinha lido os jornais naquele dia sobre
aquele jogo, ele ficou chatiadíssimo (risos): _ Eu não posso fazer isso de jeito nenhum, dizia, até para
a minha segurança, como é que um homem no Brasil não pode gostar de futebol? Ele lia tudo,
normalmente.
E.T_ Que time ele torcia?
C.C_ Flamengo no Rio, Corinthians em São Paulo. Na Bahia ...
213
E.T_ Ele era de acompanhar jogos pelo rádio?
C.C_ Não me lembro, só sei que ele acompanhava tudo. Discutia, conversava.
E.T_ Flamenguista no Rio, e Corinthiano em São Paulo,
C.C_ Flamenguista, Corinthiano, e o Jorge Amado que me falou que aqui na Bahia naquela época,
ele torcia pelo Vitória.
E.T_ Retornando um pouco quando a senhora falou do teatro, a senhora falou da prisão, mas em
alguns momentos da sua vida pública fora da prisão, ele não só tinha interesse mas ele freqüentava o
teatro?
C.C_ Você imagina que a maioria da nossa vida em comum foi clandestina, né. Você se lembra
(Carlinhos) quando você foi morar com a gente; quando a gente mudou para aquele apartamento, foi
em 54,55. Foi em 55, 56, 57, 58, quando você ficou com a gente.
Carlinhos_ Foi em 56.
C.C_ Até 64, quando veio o golpe. Naquele período antes do Carlinhos chegar, que ele estava
estudando na escola aqui na Bahia, e lá no Rio ele ficava com a gente. A gente ia ao cinema quando
podia. Foi o único período da nossa vida em comum que nós moramos com o nome verdadeiro,
naquele apartamento.
E.T_ Em qual bairro?
C.C_ Era Catete, ali é Flamengo - Catete, era perto do Palácio do Catete, na rua Correia Dutra. O
único período em toda a nossa vida em comum que nós morávamos com o nome verdadeiro,
quando alugamos o apartamento, foi no nosso nome mesmo. Nas outras vezes era impossível, ou
você morava na casa de alguém , ou você alugava... Enfim, a maioria com outras pessoas. Então,
naquele período a gente ia ao cinema, não sempre, não muito, porque ele fazia muita atividade
política, mas a gente ia de vez em quando.
E.T_ Outros hábitos da vida social que vocês tinham nesse período já que ele era mais tranqüilo.
C.C_ Nunca tinha tempo. Era a militância. Bom, tinha os bailes as festas da própria organização
política. Baile a gente não ia naquela época, porque ele não sabia dançar. Passeio, ele gostava muito
de sair, ir a Tijuca, isso no Rio. Visitar algum parente, naquele tempo a gente visitava a Tereza de vez
em quando, a Julieta, a Duizinha.
E.T_ A Dona Tereza falou de um aniversário que vocês foram...
C.C_ Então, programa familiar. Praia quando podia. É uma vida simples, comum. Visitava umas
pessoas, naqueles anos que eu estou te falando.
E.T_ Voltando ao futebol, todo apaixonado por futebol gosta de comentar sobre o assunto.
214
C.C_ Mas comigo era impossível.
Carlinhos_ Quando você tenta tratar da vida íntima de meu pai, ele não era uma pessoa que saía as
6h da manhã e voltava as 6h da noite né.
C.C_ Não era uma vida regular.
C_ Meu pai falava com os ministros, de Jango por exemplo, ele viajava muito para o Amazonas,
Bahia. O cotidiano dele era muito reservado por essas discussões. Ele não era uma pessoa que
meio-dia de domingo ia tomar uma cervejinha. Meu pai às vezes me levava aos domingos com ele,
atividades horríveis para uma criança, porque ele me pegava pelo braço, e aproveitava que tinha um
contato relativamente pouco, pegávamos um táxi e íamos a Belford Roxo, contactar um companheiro
do partido.
C.C_ Era um carro, né?
C_ É. Meu pai tinha dinheiro para tomar todos os táxis que ele queria, para fazer as atividades dele.
O Partido Comunista era uma organização poderosa, não era o PRONA de Enéias, era um Partido
Comunista de representação nacional, não era esse o problema, meu pai podia viajar para qualquer
lugar do Brasil na hora que ele quisesse. O Partido Comunista era um partido como é o PT hoje,
mais ou menos assim. Marighella era uma pessoa de hábitos modestos, não usava perfume francês,
meu pai poderia sair hoje daqui e em três dias estar em Moscou, por tarefa. A família não ia
precisar, como eu preciso, quando vou a Cuba, compro uma passagem, gasto mil reais e tenho que
tirar do meu orçamento. Ele podia passar 10 dias em Havana, ou em Moscou, por trabalho e é bom
deixar claro que isso também interferia na nossa vida cotidiana. Meu pai não tinha um domingo para
o lazer, para as atividades dele. Lá em casa, como foi a sua pergunta sobre futebol, todo mundo
discute, mas ele não tinha tempo. Ele era flamenguista, daí ele sentar no barzinho da esquina para
bater papo sobre futebol, os craques da época era Dida, jogadores populares, famosos e tal. Não
passava pela vida dele, parar um minuto, esse lado não é uma coisa que existia na vida de meu pai.
Domingo, uma segunda-feira, uma terça feira, raramente ele ficava com a família, eu me lembro que
nós tentávamos ter uma vida normal, mesmo porque tinha uma criança que vivia na casa, mas eu me
lembro que Clara fazia suas comidinhas, meu pai fazia um esforço muito grande para almoçar as duas
horas, uma hora, ele aparecia em casa.
C.C_ Eu digo que você tem que ter cuidado com que você vai escrever, porque você pode dar uma
idéia falsa, para um tipo de atividade revolucionária, como ele tinha, o político era predominante na
vida dele, a ação revolucionária, o estar em função da vida revolucionária era a vida principal dele,
então, tudo tinha que haver com aquilo. Você não podia dizer domingo, eu vou. Por exemplo, tinha
um aniversário na casa da Tereza, ele lutava para poder ir naquela data, porque muitas vezes não
dava certo.
215
E.T_ Uma coisa que a senhora apresentou, no depoimento do Emiliano, foi a vida do cotidiano do
casal. Como isso se realizava?
C.C_ Era uma coisa não formal. Também depende dos momentos, uma semana que ele estivesse
saindo, viajando, chegando não sei que hora do fim da noite, é claro que ele não poderia fazer nada
dentro da casa, mas a atitude dele, fundamentalmente, quando a gente morou em São Paulo, que foi
um período de clandestinidade bastante grande, ele tinha mais condições dessa ajuda, porque os
horários eram, por exemplo, ele não podia sair durante o dia, então de dia ele ficava em casa, só saía
à noite ou bem cedo de madrugada, muitas vezes ele fez isso. São coisas delicadas, nós não
tínhamos nenhum tipo de aparelho, como tem hoje, para facilitar a vida das tarefas domésticas, como
a máquina de lavar roupa, etc.
Em 49 e 50, por aí, quando Getúlio foi deposto e depois voltou pela eleição, e se matou em
54. Foi antes de 50, mataram gente, prenderam, teve levante camponês, em Tupã, em alguns lugares
de Goiás e São Paulo, um período da vida mas eu não consigo saber dizer certamente o ano, nem o
mês, mas naquela época, na época clandestina. O que eles faziam? Eles mandavam companheiro
para trabalhar, Marighella era o dirigente maior, era o secretário político do Partido em São Paulo,
então ele distribuía as tarefas, o coletivo reunia, a Executiva, etc. e tal, para organizar o povo. O
Gorender trabalhou com ele naquela época em São Paulo, também. E Marighella sempre atento aos
problemas dos companheiros. Um dia ele teve um ponto, um encontro na rua, com um companheiro
jovem, solteiro, batia papo, ali andando na rua, porque era andando, ou entrava num carro ou era
andando, ele conversa com o companheiro e viu que o companheiro estava assim triste (risos). Aí ele
diz: _ Ô fulano _ nem me lembro mais o nome dele_ porque você está triste?
_ Pois é, me apaixonei por uma menina aí, tá danado. Como é que eu faço?
E aí Marighella: _ Ué!
Ele era revolucionário, não podia dizer a ela, ele estava num trabalho de militante, como dizer
isso para ela, sem assustar a menina.
Aí o Marighella disse: _ Você vai ter que encontrar uma forma de ela ir entendendo, senão,
como é que você vai namorar essa menina.
A moça era operária tecelã. Aí o rapaz meio sem graça, não sei que ele fez lá, até que a
moça pouco a pouco soube o que era.. E eles iam casar.
Aí num outro ponto: _ Pois é Marighella, agora você imagina, eu propus a gente viver junto,
ela e eu, ela disse tudo bem, mas ela ia ter que pensar, ela ia ter que largar o trabalho, como é que ia
ser, ele tinha medo, outra coisa, ela só ia se juntar com ele _ ele dizendo para o Marighella _ se ela
tivesse um móvel de quarto (risos). Você sabe por quê? Não sei agora, a operária de hoje é outra
coisa, naquele tempo não tinha TV, nem rádio, nem nada, o rádio era diferente. Toda moça que
casava, o sonho da moça pobre era casar e ter um quarto montado, era a cama, a cômoda com
espelho, com as gavetas, isso era um sonho de toda moça trabalhadora. O sonho era casar e ter os
móveis de quarto. Agora você imagina, o rapaz não tinha dinheiro para comprar móvel de quarto, aí
ele veio e contou para o Marighella, isso no ponto (risos), falando nas tarefas políticas e ele contando
as histórias.
216
Ele disse: _ Pois é, só fica comigo se eu comprar os móveis de quarto. Aí o Marighella riu
muito, porque achava muita graça dessa coisa toda, né, não sei se ele facilitou o dinheiro, só sei que
eles compraram o móvel de quarto.
Um outro dia Marighella decidiu mandá-lo para o interior, esse rapaz tinha que fazer uma
outra tarefa numa outra cidade do interior, aí Marighella chegou para ele e disse assim: _ Bom,
fulano, você vai ter que ir para tal lugar.
E ele: _ Como é que vou fazer, eu vou deixar minha mulher aí, como é que eu faço.
Marighella disse: _ Bom, é melhor que você vá sozinho, vai primeiro, vê as condições.
Enfim, conversou com ele, sempre facilitando, ajudando a encontrar solução para as coisas.
Para resumir, que a história é um pouquinho comprida, o rapaz foi lá primeiro, depois voltou, já
acertou tudo, onde ele iria viver na tal cidade, e chegou e foi falar com a mulher para eles poderem ir
embora, e ele tinha aprendido que os revolucionários quando mudavam não levavam nada, para não
deixar pistas. Às vezes você pega um caminhão para transportar móveis, vamos admitir que você
pode estar sendo observado, e vão saber onde você vai morar. Era uma norma, eles usavam
bastante (risos). Então, não levava.
_ Pois é Marighella, eu fui falar com ela e ela só vai comigo se levar o móvel de quarto.
Aí ficou mais encrencado, levar os móveis do quarto. Como é que eu faço? Quer dizer, o
rapaz não tinha muita experiência das coisas, então ele tinha que discutir com Marighella que era a
pessoa com quem ele estava mais ligado, com mais experiência.
Aí o Marighella: _ Ah! Por tão pouco, você aperriado por tão pouco, faz o seguinte: Você
pega os móveis, coloca num depósito _ que é assim que a gente fazia _ tira os móveis da sua casa,
bota no depósito, deixa lá, quando passar um tempo, a gente tira os móveis do depósito e manda
para onde você está morando.
E.T_ E qual o nome desse casal?
C.C_ Eu não me lembro. Acho que o nome dele era Antônio, não sei o nome dela não, Laura, não
me lembro. Bom eram dois jovens, ela era operária tecelã, ele era comunista, que parece que havia
sido operário tecelão e depois passou à luta clandestina.
Eu estou te contando assim que é para você ver que tipo de personalidade que era o
Marighella, se fosse outro poderia dizer: Imagina se eu tenho tempo para dizer onde tira móvel, bota
móvel, entendeu? Ele tinha esse lado humano, o que revela nele que ele não era egoísta de jeito
nenhum, “quer dizer vou cuidar de mim, deixa isso pra lá ”, essa coisa que você encontra muito, e
hoje você encontra muito isso, cada um pensa no seu, ele tinha essa coisa de ser solidário com o
outro, de ajudar o outro a enfrentar os seus problemas, porque era para facilitar a própria luta
também, não criar problemas para o cara não ficar atrapalhado também, entende? Era o lado, assim,
paciente, humano, carinhoso com as pessoas. Por isso eu sempre digo, todas as mulheres, todos os
homens que lidaram com Marighella são apaixonados por ele.
E.T_ Esse exemplo que a senhora deu da divisão de tarefas é fantástico?
C.C_ Você sabe, desculpe, o Edson...
217
E.T_ Pode falar...
C.C_ Eu fui num debate de femininas, quando voltei de Cuba, eu contei esse exemplo e ficaram
admiradíssimas. Até hoje se discute, em todas as entidades hoje, que o trabalho doméstico deveria
até ser remunerado, porque o Estado deveria facilitar, implantando lavanderias coletivas, o Estado
arcaria com tudo, para poder liberar a mulher para entrar no trabalho produtivo. Então, até hoje se
discute muito porque a mulher não ascende, isso se discute muito, no movimento feminista, por que
tem homens na direção dos partidos e tem poucas mulheres? Por que a mulher é menos inteligente?
A mulher é menos capaz? Não. Porque ela não tem as condições, porque como ela tem que fazer o
trabalho dentro de casa, sem colaboração nenhuma, do companheiro, do pai e do marido, ou do
irmão, ou de quem for, ela não tem chance, o tempo não dá, você imagina se ele arruma o quarto
dele, eu não tenho que arrumar. Por exemplo, se eles não arrumam o quarto, o quarto pode ficar
desarrumado, ele sai para fazer as tarefas, ou vai sentar no escritório para trabalhar e a mulher vai
fazer, você entende? O Marighella nunca teve comigo nenhuma discussão feminista, naquela época,
essas coisas não existiam na sociedade, mas a atitude dele foi de valorização do trabalho da mulher.
Estou te dizendo que ele fez isso por todas as casas por onde ele passou, todo mundo conta essa
história dele, pena que a gente não pode recolher todos esses casos, pois muita gente já morreu.
Quem não lembra de um caso dele por onde ele passou? De um menino que ele cuidou, de um
remédio que ele deu. O Marcucha, poderia ser interessante você conversar com ele, eu não tenho o
endereço dele aqui.
E.T_ Mora aqui em Salvador?
C.C_ O Marcucha sabe alguma história dele, foi o Marighella que fez ele perder o medo da injeção.
Ele conta muito esse história.
E.T_ Mora em Salvador?
C.C_ É, ele é filho de um dos velhos dirigentes comunistas, Diógenes Arruda, que era conhecido
como um dos dirigentes mais autoritários do Partido Comunista. Ele teve dois filhos, o Marcucha e a
Eva. O Marcucha tem lembranças lindas do Marighella, porque quando ele era menino o Marighella
ia na casa deles. Agora, tudo isso sempre falando em revolução, né, veja bem. O Marighella, o
homem, o ser humano, o cara solidário, o cara humano, tudo, a cabeça dele, a vida dele, tudo era
em função da vida revolucionária.
E.T_ E o hábito de escrever poemas?
C.C_ Tem uma coisa, o Marighella tinha o hábito de escrever. Ele elaborava caminhando, ele ia
daqui até 10, 20, 30 ruas caminhando, quando ele voltava, ele já havia escrito aquilo aqui, na
cabeça, ele tinha muito essa coisa de andar e elaborar, né. Ele gostava muito de escrever, tinha uma
facilidade enorme para escrever. Agora poema, o verso eu acho que foi sempre uma coisa de
impressão, ele olhava uma coisa e punha no papel.
Você conhece o livro dele, “O Rondó da Liberdade”, tanto que o Clóvis Moura analisa as
poesias evocativas, poesias líricas, poesias revolucionárias. Ele tinha muito isso, ele às vezes ficava
calado, não era uma pessoa que falava o tempo todo, às vezes ficava olhando e tudo, você nem
218
imaginava o que estava passando na cabeça dele, e daí a pouco saía um verso, ele tinha essa
facilidade, ele gostava muito, muito de fazer versos.
Carlinhos _ Bahia, Clara, é o seguinte: ela firmou um valor dos dotes intelectuais. A Bahia sempre
deu valor a dotes intelectuais. Então eles falam que o baiano fala bem, é bem articulado, um povo,
uma pessoa que fala bem, que tem dotes culturais, que tem cultura, isso tudo se reconhece muito
hoje, quer dizer, boa parte que a Bahia conquista hoje de música é fruto disso, ao longo de muitos
anos, tá entendendo. Caetano Veloso é um cara de um interior, de uma cidade absolutamente
decadente e acabada e ele lia muito, trabalho que deu muito valor a ele. Eu sempre fui muito
estimulado a ler, inclusive meu pai, que me presenteou muito com livros, eu li tudo que criança tinha
que ler naquela época. Meus filhos não tem a metade desse saber, hoje em dia já não se lê tanto
assim.
E.T_ Pelas leituras que até então eu tenho, me chamou atenção as medidas de segurança que
Marighella tomou quando ele estava na clandestinidade, os disfarces que por hora ele utilizava, os
nomes e os codnomes que ele usava, esta questão é apenas um aspecto técnico, alguns eu tenho,
como Menezes, Fabiano...
C.C_ Fabiano?
E.T_ Fabiano quem usa é o Carlos Eugênio Paz, utiliza no livro dele.
C.C_ Mas não era.
E.T_ Eu acho que não era, até uma confirmação. Porque há uma metodologia para que na parte
introdutória se coloque alguns codnomes mais conhecidos, caso utilizado.
Eu gostaria, então, que a senhora falasse das medidas de segurança que ele tomava,
principalmente, na época da clandestinidade?
C.C_ Tomava medidas que, em geral, as pessoas tomam, as medidas variavam de acordo com a
vida dele, de acordo com a situação. Na última fase da vida dele ele usou peruca, mas,
anteriormente, mesmo quando clandestino ele não usava peruca. Normalmente, ele não podia ir a
lugar nenhum, não podia manter relações com a família, eu digo parente, irmãos, não podia ter a vida
normal do cidadão que bate na porta do vizinho, conversa, e vão ver um jogo, senta para comer
junto, visitar um parente na cidade, ele não podia fazer isso.
E.T_ Na época de Guerrilha a clandestinidade foi muito acentuada?
C.C_ É, mas ele teve muitas fases da clandestinidade. A vida dele teve tantas épocas, a
clandestinidade de 37 à 39, antes de ser preso na Ilha de Fernando de Noronha, ia em casa com o
nome trocado, tinha contato nas ruas com as pessoas, não podiam se visitar para um não prejudicar
o outro, tinha que prestar atenção se não era seguido, usava chapéu em alguns casos; isso variou
muito, se ele vivia sozinho ou em casa com outras pessoas, se ele ia na casa de alguém. Variou muito
de acordo com a época.
219
E.T_ Há uma passagem, não sei exatamente onde eu ouvi essa passagem, ele estava num ônibus e
reconheceu um policial do DOPS... (Interrupção.)
Eu queria que a senhora me explicasse mais, como que foi essa associação, ou melhor, essa
aproximação do Marighella, pré-64, com os marinheiros, com baixas patentes do Exército, que
evidentemente não articularam o golpe. Eu gostaria que a senhora me explicasse melhor.
C.C_ Aliás, tem um livro que saiu agora, sobre o episódio, eu estou muito interessada em ler. Acho
que saiu no ano passado ou neste ano, ele era militar, participou de um levante, eu acho, foi preso.
Depois saiu, tentou fazer guerrilha em Caparaó ligado ao Brizola, uma história comprida. Hoje, me
parece que ele vive lá no sul, trabalha, foi até muito acusado, é um rapaz que teve muita fama num
determinado momento por ter participado do Movimento de Caparaó, que foi abortado.
O problema do Marighella com os marinheiros, a única coisa que eu posso dizer para você,
o Marighella era da direção do Partido Comunista no momento que precedeu o golpe e sempre foi
da frente de massas, sempre teve contato com os movimentos mais populares. Como ele fez o
contato com os marinheiros eu não sei, deve ter entrado em contato com algum marinheiro comunista
ou de família comunista, sei lá. Só sei que ele chegou a ter muito contato mesmo. E é claro, era a luta
pelo direito do voto para os militares, o direito a casar, todas aquelas reivindicações que eram
bandeiras dos marinheiros naquela época, e o movimento foi crescendo muito, era a época do
Jango, e havia uma pressão muito grande, de baixo para cima, para que essas reivindicações fossem
reconhecidas. E eles se colocando contra a tentativa de golpe, contra ameaça, contra perseguição,
etc., etc., etc.. Esse foi o primeiro capítulo da história que precedeu o golpe. E o Marighella tinha
contato muito grande com a Associação dos Marinheiros. Eles se rebelaram mesmo, ocuparam o
Sindicato dos Metalúrgicos. Eles não eram tratados como cidadãos normais como qualquer outro.
Não podiam casar, tinham todas aquelas limitações, e o Marighella apoiava os militares nos marcos
da luta pela democracia aqui no Brasil, com as lutas pelas reformas de base que eles também
apoiavam. Marighella teve contato com eles e quando houve o capítulo da ocupação Sindicato dos
Metalúrgicos, eu não sei te dizer se Marighella teve lá. Eu estive, porque eu era do trabalho de
mulheres naquela época e nós fomos levar mantimentos, fizemos um grande trabalho de
solidariedade. Porque quando eles ocuparam o Sindicato ficaram lá um tempo, então, a gente foi
ajudar as famílias dos marinheiros que ficaram do lado de fora sem ter nada para comer. Ficaram
responsáveis com a gente os intelectuais também, que naquela época formaram o CGI, Comando
Geral dos Intelectuais. Estava Álvaro Lins com a mulher dele, o Ênio Silveira e outros.
E.T_ Uma outra questão, e agora é para finalizar, evidentemente quando se fala em Marighella há
uma badalação, um interesse muito forte sobre o momento em que ele rompe com o Partido
Comunista e funda a ALN. Ao que a senhora atribui como elementos que fossem decisivos para que
ele de fato optasse pela luta armada?
C.C_ Posso fazer um resumo, pois esse é um capítulo muito longo. A postura do Partido Comunista,
não só naquele momento, mas antes, já desde a renúncia do Jânio, o Marighella achava que o
Partido Comunista, por muitas razões que eu não posso analisar aqui em dois, três ou quatro
220
minutos, não se colocava de forma revolucionária para enfrentar as crises do próprio sistema, a crise
política, a expectativa de mudança na condução da política interna desse país, etc., etc.. Ele achava
que o Partido não de colocava de forma revolucionária, o Partido ia a reboque das classes
dirigentes, acreditavam muito na burguesia, nos acordos com a burguesia, na acumulação de forças
para apoiar esse ou aquele político mais progressista ou mais democrático, ele achava que isso não
ia ajudar a transformação da sociedade. Então, ele pegou ( _Eu não vou para trás, eu vou agora
para frente.) quando houve a renúncia do Jânio, ele se utilizou desse argumento para mostrar que o
Partido estava despreparado, também não é o caso de analisar aqui. Esse é um fato do
conhecimento público. E o Partido ficou isolado, porque aí no momento da renúncia do Jânio, houve
uma espécie de tentativa de golpe mesmo, quer dizer, uns dizem que o golpe era do Jânio, ele
renunciou pensando em voltar nos braços do povo, uma forma de pressionar o Congresso. Agora, o
fato concreto é que o país ficou praticamente dividido, as forças militares ocuparam, naquele
momento, as comunicações entre Rio de Janeiro e São Paulo, você não podia se locomover. O país
ficou sem ação, o povo não sabia o que fazer, o Partido Comunista não tinha orientação para nada,
foi apanhado de surpresa diante do golpe. O que aconteceu? Numa reunião posterior, Marighella fez
uma crítica dentro do Partido, dizendo que um Partido revolucionário não pode continuar
enfrentando as diferentes crises, que se dão ao longo da história do país, sem ter sua própria política,
sem estar preparado, sem ter seus militantes preparados. A direção foi apanhada de surpresa, com
as casas sendo invadidas, nossa casa foi invadida com a renúncia do Jânio. Marighella não estava em
casa, por isso que ele não foi preso naquele momento...
E.T_ A senhora narra esse episódio no depoimento ao Emiliano José?
C.C_ Então, até que a polícia invadiu a minha casa e eu gritei e eles acabaram indo embora, mas ele
poderia ter sido preso naquele momento, como outros foram. Naquele momento quem dominava era
Carlos Lacerda que se aproveitou do momento para ver se controlava a situação. Marighella
aproveitou todos esses acontecimentos para dizer que não podia, o Partido tinha que ter a sua
política independente, fazer uma análise de classes do país tudo bem, mas tinha que ter política
própria, dar orientação ao povo quando aconteciam esses fenômenos. Ele foi mostrando as várias
experiências desde quando Getúlio se matou, etc., etc., você entende? Foi aquilo ao longo da
história até chegarmos ao golpe. O que precedeu o golpe foi essa posição dele, já desde 62. Aí
começou a discussão no país, a luta pelas reformas de base foi se intensificando, os golpistas se
preparando e o Partido Comunista dizendo que nós estávamos no poder. Que o Jango tinha um
esquema militar fantástico, que ele ia poder reagir, que o Partido estava controlando a situação, que
nós tínhamos secretarias, no governo Jango. E o Marighella dizia que isso era impossível,
inconcebível, que isso ia dar em golpe, e que os militares estavam se preparando para esse golpe o
Partido não estava preparado. Ele tinha essa consciência, por isso que a postura dele, logo após o
golpe, foi aquela reação no cinema, porque ele acreditava que era preciso reagir, o Partido não
podia aceitar as coisa de joelhos. Os militares deram o golpe, você não estava preparado, ele
mesmo tentou organizar a resistência na Cinelândia, não tinha com o quê. Então, foram se
acumulando todas essas análises, essa compreensão que ele tinha do processo brasileiro, porque
todas as propostas que ele foi fazendo dentro do Partido para mudar não eram aceitas, para
221
reconstruir aquelas posições, para reorganizar a luta do povo, preparar o povo já depois do golpe
dado, para enfrentar o que vinha por aí, porque os militares começaram a matar gente logo nos
primeiros dias. Marighella sabia que vinha uma ditadura, como ele caracterizou. Ele foi a primeira
pessoa que caracterizou a ditadura como militar fascista, na hora que ele recebeu o tiro dentro do
cinema, uma coisa incrível a visão que leve do processo, às custas do sangue dele, com a postura
que ele tomou ali. E pregando tudo isso e tenteando convencer o Partido a mudar de posição, fazer
uma frente anti-ditadura _ que é o que ele prega naquele livro Por Que Resisti a Prisão?, que você
deve ter lido.
Você vê que ele prega uma frente gigante, aberta, que todas as forças entravam naquele
tempo, Brizola, Igreja, o bispo Calheiros, todo mundo estava contra a ditadura e contra aquele
golpe, nada disso passou. Ele tentou dentro do Partido, ainda no Congresso que ia se realizar, que
era o V Congresso, defender a posições dele, ele ganhou as posições dele em São Paulo, mas o
Partido não reconheceu e fez uma direção paralela. Aí então que ele viu que estava tudo esgotado,
que ele não tinha condições de dentro do Partido levar o Partido para uma postura de resistência
frontal contra a ditadura, é que ele foi evoluindo para a condição de que era preciso fazer um outro
tipo de organização. Nesse meio tempo ele foi a Cuba, na OLAS , onde ele especificou, fez um
pronunciamento público a favor da luta armada, saiu inclusive no Jornal do Brasil, aquele trabalho
dele sobre Algumas Questões de Guerrilha no Brasil.
E.T_ Na íntegra?
C.C_ Na íntegra. E ele estava em Cuba, aí ele voltou para o Brasil. Formado o Agrupamento
Comunista de São Paulo, com vários militantes que defendiam a posição dele, e daí do Agrupamento
eles passaram a uma fase mais adiantada de organização, que era uma organização para a ação.
Com um programa de libertação nacional. Assim surge a Ação Libertadora Nacional.
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE CLARA CHARF II
Esse depoimento foi realizado no dia 15 de dezembro de 1998, em São Paulo, na residência
de Clara Charf.
E.T. _ Existe algum monumento em Cuba em homenagem a Marighella?
C.C. _ Marighella é uma personalidade da história da América, não é só da história do Brasil, tanto
é verdade que em Cuba existe uma escola que foi construída em 1973, que se chamava antes Escola
Secundária Básica no Campo. Em Cuba existe um sistema de escolas em que os alunos estudam e
trabalham durante a semana toda e vão para casa no final da semana, se localizam fora do perímetro
urbano. Existe a escola Che Guevara, existem escolas com o nome de outros revolucionários.
Figuras que fizeram alguma coisa pela humanidade, um cientista, um grande médico, qualquer pessoa
que tenha dedicado a sua vida na luta pela humanidade em qualquer setor, em qualquer forma de
atividade, pode ser na ciência, na cultura, na política. Com a mudança que houve no sistema escolar
cubano nos últimos anos, a escola passou a ser pré-universitária. Ela se chama hoje Escola Pré -
Universitária Carlos Marighella, fica em Pinar del Rio, que é uma região da ilha de Cuba, na parte
222
Ocidental. Em Santiago de Cuba (região oriental) no Moncada, que é o quartel que os
revolucionários cubanos tentaram assaltar em 1953, para obter armas e distribuir as armas para o
povo, e começar o processo revolucionário como eles imaginavam e foram derrotados naquele
momento, a maioria foi morta e outros foram presos. Aquele quartel se transformou depois numa
escola e ali existe também um Museu dos revolucionários latino-americanos. Neste museu existe uma
grande sala com fotos e lembranças dos revolucionários latino-americanos, ali tem fotos do Che
Guevara, fotos do Salvador Allende, de outras figuras revolucionárias na América Latina e também
fotos do Marighella, nessa sala da solidariedade.
E.T. _ Só fotos ou outros objetos?
C.C. _ Quando visitei o Museu, há muitos anos atrás quando estava lá, havia fotos, posters, etc..
Não me lembro agora qual é o bairro _ existia também o chamado Comitê de Defesa da Revolução
Carlos Marighella, que são comitês que se formaram logo após a vitória da revolução Cubana para
defender as conquistas revolucionárias, vigiar se não havia contra-revolução, cuidava dos prédios
públicos, para que os contra-revolucionários não jogassem veneno nos poços das creches, etc.. Era
um trabalho todo feito pelo Comitê de Defesa da Revolução, isso existe até hoje com algumas
características diferentes.
E.T._ Essa informação eu queria confirmar com a senhora pelo fato de haver uma rua no Rio de
Janeiro com o nome de Carlos Marighella, inclusive a Cecília Coimbra dá um depoimento dizendo
que no dia da inauguração retiraram as placas.
C.C._ Existe também uma rua com o nome de Marighella em Pernambuco. Em Recife, na gestão
passada, não nessa gestão municipal, mas na anterior, o deputado do PT, Fernando Ferro,
apresentou um projeto dando o nome de muitas ruas, numa região que tinha havido uma invasão de
moradores, onde havia uma ocupação, uma área que não estava habitada e depois construíram as
suas casas ali. Ele apresentou um projeto em que aquelas ruas, de um bairro novo, tivessem nomes
dos revolucionários assassinados pela repressão, tanto os de Pernambuco como fora de
Pernambuco, entre eles está o Marighella. Depois o prefeito, que é agora governador, Jarbas
Vasconcelos, em 94, sancionou o projeto aprovado pela Câmara Municipal, em consequência do
projeto do Fernando Ferro, ele sancionou com a minha presença quando eu fui lançar esse livro do
Marighella em 94, Por Que Resisti a Prisão. Tem rua Carlos Marighella, rua Carlos Lamarca, vários
revolucionários de Pernambuco.
E.T._ É uma homenagem em que particularmente, eu que me interesso por esse período, cabível em
Cuba, é evidente.
C.C._ Não, principalmente cabível no Brasil.
E.T._ Existe em Cuba e no Brasil tem que existir uma escola, algo relacionado a educação, à
política, que preste essa homenagem a Marighella. Essa confirmação serve para confrontar o resgate
da memória em Cuba e aqui como que ele existe.
223
C.C._ Eu espero que no próximo ano, em 1999, ao se completar os 30 anos do assassinato dele
esse resgate da memória tenha avançado mais, tenha criado mais consciência nas pessoas, nas
figuras públicas, nos professores, nos diretores, nas autoridades de muitos municípios, quem sabe se
poderá dar o nome de Marighella a várias escolas.
E.T._ Essa é a minha preocupação, a gente acaba se envolvendo no trabalho com o próprio
personagem, não só no caso de Marighella, por sinal eu fico observando as ruas, como conheço
mais o Rio, então posso falar pelo Rio. Morre o Tom Jobim imediatamente surge uma rua Antônio
Carlos Jobim. Gosto do Tom Jobim, tenho uma admiração pelo trabalho dele, mas espera aí, o país
não é só uma Bossa Nova, o país teve e tem muita gente a homenagear, como Marighella, Lamarca
e outros mais. Fica uma reprodução da história, e nesse exemplo, no nome das ruas, das escolas,
como se fosse a história oficial, é o reflexo da história da elite dominante. Isso a meu ver tem que ser
confrontado, esse grupo de pessoas não pode ficar esquecido.
C.C. _ Eu acho que isso depende muito do trabalho que se faça e é isso que a gente vem fazendo há
muitos anos, recuperando a memória histórica dele e de outros para que o povo vá relembrando,
porque você vê o Zumbi virou herói popular 300 anos depois, graças a todo trabalho de consciência
do movimento negro. É muito importante você ter o nome de escolas, o nome de praças em
homenagem a essas pessoas, mas é importante que o povo saiba quem essas pessoas foram. Não é
tão simples, hoje em dia como é que se coloca uma placa de rua no Brasil? As autoridades é que
colocam o nome, a população nem toma conhecimento. Eu espero que no caso de Marighella as
pessoas saibam, se tem uma sala de uma escola, se tem uma praça, uma escola, uma estátua, que o
povo saiba melhor quem foi essa figura, qual foi a contribuição dele, a luta pelo desenvolvimento do
país, o crescimento do povo. Espero que isso aconteça.
E.T._ Voltando aqui eu queria que a senhora se estendesse um pouco mais sobre aquilo que nós
conversamos no lançamento do livro de Emiliano José, do comportamento de Marighella sempre
compreensivo, sempre aberto ao diálogo. O que a senhora quis dizer naquela situação sobre essa
característica do comportamento de Marighella?
C.C._ Você sabe que Marighella foi assassinado com 58 anos de idade. Eu o conheci em 46 e
convivi com ele até quando ele foi assassinado, com altos e baixos, dependia da própria vida
clandestina. Eu não posso saber de todos os momentos dos 58 anos da vida dele. O traço marcante
da personalidade dele - ele não era nem um santo, também ficava zangado, bravo, exasperado
diante das coisas - mas o traço marcante é que ele não era uma pessoa nem irascível, nem intolerante
e não era grosseiro com as pessoas de um modo geral. Eu nunca vi na minha convivência com ele,
ele maltratar um ser humano, ele podia não concordar, podia ficar danado da vida com a besteira
que a pessoa fazia ou dizia, mas ele era incapaz de fazer uma grosseria pessoal. A divergência do
Marighella com as pessoas se travava no terreno político, ou vamos dizer cultural, fosse o que fosse,
mais ele não maltratava as pessoas, pelo fato de divergir, que é uma coisa que não é muito comum,
porque as pessoas ou pela paixão, pela falta de educação, ou porque razões seja, quando
conversam, quando discutem, quando tem divergência maltratam no ponto de vista pessoal, se
agridem, procuram machucar a pessoa. Isso é uma coisa que Marighella não fazia.
224
E.T._ Em que momento a senhora viu Marighella tenso, nervoso?
C.C._ Tenso e nervoso tinha que ser. Você acha que a vida da gente era fácil?
E.T._ Mas eu digo ele reprimindo alguém por exemplo com rispidez.
C.C._ Não era essa a característica dele, ele podia dar uma bronca por não concordar com a
maneira da pessoa proceder, mas ele não machucava a pessoa, não ofendia, não usava palavra de
baixo calão, não tinha essa forma de proceder, era uma pessoa de muito respeito aos sentimentos do
outro como ser humano. Essa que é uma característica muito importante da personalidade dele.
E.T. _ Um outro ponto é o comportamento emocional de Marighella a partir do momento em que se
insere definitivamente na luta armada. Como ele ficou no convívio? Tenho noção de que ele ficou
muito atarefado, mas no seu dia-a-dia como ele estava, no geral, como ele se comportava ?
C.C._ É muito difícil você dar essa resposta assim. É muito simples a sua pergunta, simplista. Você
imagina, uma pessoa que toma a decisão que ele tomou, quando ele achou que a linha do Partido
Comunista não propunha resistência contra a ditadura militar, você há de convir que foi um processo
muito delicado, muito difícil. Basta ver a carta que ele escreveu à Executiva do Partido quando ele se
desliga do Partido dizendo que não havia para ele nenhuma questão de ordem pessoal nessa saída
do Partido, mas era porque ele não poderia conviver com procedimentos que ele achava que não
eram revolucionários e a situação exigia comportamento de caráter revolucionário. Você há de
convir que isso teve muita influência na decisão dele, no comportamento. Não é que de repente ele
fechou a cara e antes vivia rindo. Depende da circunstância, a pessoa porque está numa luta muito
difícil não deixa de rir, conforme o momento. O problema é que era uma decisão muito grave, ele
tomou com muita consciência essa decisão, não tomou uma decisão quando ele tinha 18 anos, já
tinha mais de 50 anos de idade, um homem absolutamente maduro e quando se encontrava
esgotadas todas as possibilidades de reação diante do quadro que vivia a nação naquele momento.
Ele era bem humorado - como eu disse antes - de personalidade bem humorada, brincava, fazia
piada. Você há de convir que isso não podia ser o dia inteiro, nem todas as vinte e quatro horas do
dia. Depois, cada vez que havia uma ação, uma reação, ou cada vez que havia um acidente com
alguém ou alguém era assassinado, quando ele sabia que alguém era torturado, como que ele ia
ficar? Ele sofria muito com tudo isso. Exatamente por essa sensibilidade que ele tinha, ele sofria
muito. Só que isso não fazia com que ele desistisse da luta, porque ele achava que a luta envolvia
tudo isso. A luta não era brincadeira, era muito séria. E que implicava em perigos, riscos de vida,
decisão, enfrentamento. Lógico que se ele pudesse ter feito a luta e ter sobrevivido, e hoje estar vivo,
contribuindo para que esse Brasil não fosse o que ele é hoje, seria uma coisa maravilhosa.
E.T._ Num momento em que há um cerco, principalmente a partir do seqüestro do embaixador
americano do qual ele foi contra. Nesses momentos ele previa uma retirada para o campo no dia 9
de novembro?
C.C._ Eu acho que o que é importante é que ele era a favor, naquelas circunstâncias, que você
libertasse os presos políticos. Achava que era uma barbaridade o pessoal torturado, indefeso. Ele
225
achava que a única forma que havia naquele momento para libertar os presos políticos era você fazer
a troca dos embaixadores por presos políticos, esse era o sentido do seqüestro, isso como posição
política dele. Uma pessoa como Gregório Bezerra, um velho comunista, uma figura humana
maravilhosa que foi arrastada, humilhada, torturada depois do golpe militar, ele tinha uma tristeza
muito grande de saber que o Gregório estava preso, podia morrer na cadeia, ele tinha muito esse
sentimento. O desejo dele era poder ajudar a libertar essas pessoas. É claro que a ditadura não ia
libertá-los pura e simplesmente. Por isso que ele achava que o seqüestro era uma forma de você
fazer a troca de uma figura pública, diplomática, pelos presos políticos, ele era a favor. Só que o
seqüestro do embaixador americano foi realizado numa circunstância, eu não sei dos detalhes todos,
do que eu sei, do que eu ouvi, não era aquele o momento para fazer o seqüestro, porque você
tocava na figura da potência que tinha inclusive ajudado a fazer o golpe no Brasil. O embaixador
americano era representante de um segmento que participou do golpe. Era mexer com uma figura
que ia ter um impacto muito grande. Obrigar, por exemplo, a ditadura a ler o manifesto dizendo pela
televisão qual era o quadro de tortura, era uma coisa muito séria. Ele sabia que ia se desencadear
uma repressão muito grande, achava que os revolucionários não estavam preparados para enfrentar
aquilo naquele momento, tanto que você vê que as coisas se precipitaram bastante, caíram alguns
companheiros que participaram da operação, inclusive o Virgílio que foi assassinado barbaramente
depois, enfim, desencadeou-se a repressão de maneira muito mais rápida, mais violenta, como
resposta também ao seqüestro. Por um lado ele achou fantástico os presos saírem da cadeia, tem um
manifesto dele muito bonito, você deve conhecer, um texto saudando...
E.T._ Saudação aos 15 patriotas.
C.C._ Exatamente. Ele achava que não era aquele momento, mas depois que foi feito ele achou que
foi muito importante a libertação dos presos do ponto de vista humano, político.
E.T._ E essa estratégia de ir para o campo?
C.C._ Isso não é de agora. Desde de que ele se definiu pela resistência direta, frontal, como
caminho para enfrentar a ditadura, ele achava que deveria ter duas formas de luta no Brasil: a luta na
cidade e a luta no campo. Ele sempre definiu isso em todos os textos, em todos os livros que ele
escreveu, achava que você deveria mexer com a cidade, para ter o apoio dos operários, das
universidades, os profissionais liberais, da classe média, todos que estivessem sendo atingido pela
repressão e pela ditadura apoiariam a luta, a posição dele era essa. E no campo porque os
camponeses, até aquele momento, eram praticamente a maioria da população no país, e eram
reprimidos, perseguidos, a luta pela terra era violentamente perseguida, muitos líderes camponeses
foram assassinados logo depois do golpe, antes do golpe inclusive. Os camponeses eram aliados
importantíssimos nessa luta. Ele sempre teve a visão de que a luta ia se travar na cidade e no campo,
só que por circunstâncias específicas da luta no Brasil, o movimento revolucionário tinha que captar
recursos na cidade, por isso que ele achava que o papel da luta na cidade era muito importante.
Mas, antes mesmo do seqüestro do embaixador americano, ele achava que era preciso diminuir as
ações na cidade e começar a fazer o trabalho no campo, e ele tinha mesmo a idéia de ir para o
interior no dia nove de novembro de 1969.
E.T._ A questão da autocrítica que a senhora faria naquele momento, naquele exato contexto da
opção pela luta armada.
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C.C. _ Eu não posso fazer autocrítica. Não cabe a mim aqui no caso. Eu sou uma pessoa que acho
que é muito complexa uma análise da luta no Brasil no período da ditadura militar, e os mortos não
fazem autocrítica.
E.T._ Como a senhora vê aquela época, naquele momento, não hoje, havia um canal aberto para a
luta armada? Uma coisa é eu falar hoje de luta armada, a luta era viável, qual sua posição? Havia
condições da revolução se concretizar no Brasil? Naquela conjuntura, naquele momento.
C.C._ Eu acho que os povos, nenhum povo do mundo opta por caminhos mais difíceis se há os mais
fáceis. Isso não existe na história dos povos do mundo. Se você pega a revolução em todos os
países do mundo, as guerras, você só entra na guerra para responder ao ataque, como é que se
realizaram as grandes guerras do mundo? Os países que atacaram e os povos que tinham que se
defender, e aí se defendiam com exércitos regulares ou com pequenos grupos armados, como foi a
última grande Guerra Mundial. O exército dos países aliados contra o eixo nazifascista, além de
exércitos também entraram em ação grupos guerrilheiros. Os povos adotam esse caminho não
porque escolheram previamente. Você pega os processos revolucionários de todos os povos do
mundo, que fizeram lutas de libertação, a Revolução Argelina, a Revolução Cubana, ninguém opta,
traça assim no papel “vamos fazer o caminho armado”. Os povos se organizam para lutar pela sua
liberdade, a independência do país. Ao traçar esses caminhos, os caminhos podem, as vezes, se
tornar mais profundos ou menos profundos. Você pode ter a consciência de que a luta não vai ser
fácil, você tem que estar preparado para qualquer tipo de luta que venha por aí. E foi isso que
aconteceu no Brasil. Quando houve o golpe militar, o povo estava absolutamente despreparado, não
esperava o golpe. Haviam pessoas no Brasil que achavam que o golpe estava sendo preparado e iria
se desencadear, uma dessas pessoas era o Marighella, dentro do Partido Comunista ainda ele dizia
que o golpe estava em preparação, particularmente, depois da renúncia de Jânio Quadros, ele dizia
isso permanentemente: _ “O Partido tem que se preparar para resistir”. Ele defendeu muito essas
posições, dizia que era impossível que o país continuasse a se desenvolver pelo caminho
democrático só dependendo dos discursos ou das liberdades que haviam naquele momento. O povo
tinha que estar preparado para outras situações, essa era a visão que ele tinha do processo. Bom o
golpe pegou todo mundo desprevenido, porque a maioria esmagadora das forças democráticas do
país achava que o golpe não ia ser deflagrado e caso fosse o governo do João Goulart, com seu
esquema militar, seria suficiente para enfrentar o golpe. Não era o que Marighella pensava, ele tinha
consciência que o golpe viria, que os americanos estavam ajudando a preparar o golpe, estimulando,
para barrar o processo da democratização daquela época e que o povo não estava preparado, que
ia sofrer muito por causa disso. Daí a postura dele da resistência pessoal quando foi baleado dentro
do cinema, daí a insistência dele em procurar pessoas para ver como organizar a resistência, e aí
começou a repressão violentamente, quando ninguém tinha um trabuco, nada, tudo isso é mentira
dizer que logo que o golpe foi deflagrado o povo estava armado, fazendo isso ou aquilo, isso não é
verdade. O que o povo estava fazendo era um movimento de massa na rua: luta pela terra, luta para
mudar a educação, luta para impedir a remessa de lucros para o exterior, itens como reforma de
base, isso quem estuda História sabe os pontos principais. Bom veio a repressão e ele foi baleado
um mês e nove dias depois do golpe. Quando ele chegou preso a cadeia estava cheia de gente
227
torturada, o que ele conta no livro “Por Que Resisti a Prisão”, lideranças camponesas já tinham sido
assassinadas. Não foi ele que escolheu esse caminho, por ele faria a luta democraticamente, como
ele fez como parlamentar. Ele não foi deputado? Não fazia discursos na Câmara Federal propondo
as reformas pela mudanças do Brasil? Quem foi que interrompeu aquele processo? Não foi ele,
foram as classes dirigentes do país que fecharam o Partido Comunista. Ele era membro do partido
naquela época, era deputado, cassaram o mandato dele, até que ele caiu na clandestinidade. Então
você vê que os caminhos não são preestabelecidos, teoricamente você pode dizer pelas experiências
das lutas no mundo, você pode imaginar tudo isso. Ele psicologicamente, politicamente, estava
convencido de que o povo ia ter que resistir para enfrentar inclusive a barbaridade que a repressão
desencadeou no país. A repressão foi se tornando cada vez maior, quando o povo tentou novamente
levantar a cabeça, fazer manifestações, reorganizar os sindicatos, o movimento estudantil, as
passeatas, tudo aquilo, que era um processo democrático. A luta dos cantores, dos músicos, da
cultura, tudo era no caminho da democracia, quem foi que interrompeu isso?
Então, daí sim ele estava convencido de que a ditadura militar não iria permitir um outro
caminho. E foi por isso que ele optou pelo caminho da luta armada, não que fosse louco pela luta
armada, essa análise tem que ser feita pelo contexto correto. O povo que se deu conta, a gente fala
nele porque ele foi a figura que mais explicou ou que tenha explicado melhor o sentido daquela
resistência, mas ele foi se dando conta que não tinha como, você ia para o sindicato não podia fazer
nada, você ia para a Associação Popular tudo era perseguido, escolas sendo invadidas procurando
estudantes considerados subversivos, Grêmios Acadêmicos fechados, a passeata dos 100 mil você
viu como que acabou, então não tinha caminho, quem fechou os caminhos legais, democráticos? Foi
a ditadura militar que estava com todas as armas na mão, desde quando foi dado o golpe, aliás bem
antes. Por isso que o processo de luta armada foi deflagrado e na medida que foi deflagrado houve o
acirramento, a repressão cada vez maior, a tortura cada vez maior. E os revolucionários tinham que
resistir. Ninguém fez aquilo por que achava que era bonito, por se achar o máximo, não é isso. Claro
que a opção aí era consciente, acredito, tenho certeza, todas as pessoas que entraram naquele
processo, a maioria não entrou nisso por brincadeira, por aventura. Você tinha consciência de que
não havia outro caminho para poder se contrapor aquele quadro deflagrado no Brasil com aquele
grau de violência. E aí vieram todas as outras questões que você já conhece.
E.T._ Como foi o último dia, o 4 de novembro de 1969, que a senhora teve contato com ele?
C.C._ Mais já está dito lá.
E.T._ A questão é que o cerco estava fechado demais, e por que Marighella não preservou a ele e
se preocupou com as pessoas em torno dele. Ele queria preservar os padres. Isso era uma
característica da personalidade dele, mas ele em nenhum momento pensou nele, em sair um pouco,
porque ele se expunha de uma forma . . .
C.C._ Se expunha mesmo.
E.T._ Não estou fazendo isso para desmerecê-lo, pelo contrário, a gente tem que avaliar isso por
um outro lado, ele se preocupava mais com as outras pessoas do que com ele. Isso chama a atenção
228
porque no dia da morte ele teve uma reunião, teria um ponto com os padres, ele já sabia, tinha
algumas noções do que vinha acontecendo, eu fico pensando o que o levou a pensar mais nos
outros. Mas retornando, qual foi o impacto da morte de Carlos Marighella para a senhora ?
C.C._ É muito difícil responder essas coisas porque ele realmente se preocupava mais com os outros
do que com ele, se fosse o contrário ele tinha saído da cidade muito tempo antes. Ele era incapaz de
fazer isso. Marighella nunca abandonou os companheiros na luta. Ele achava que tinha que estar
junto, na frente, tinha que dar o exemplo mesmo, já que ele propunha uma luta que exigia tanto
sacrifício das pessoas, fazia parte da visão da luta dele esse sacrifício, tanto que numa entrevista que
ele deu em setembro, depois do seqüestro do embaixador norte-americano, um jornalista belga, o
jornalista pergunta se ele achava que podia morrer, ser assassinado. Ele respondeu tranqüilamente
ali, que isso podia acontecer e se ele morresse outras pessoas o substituiriam, isso ele disse na
entrevista em setembro de 69. Não é que dentro dele não existisse a compreensão, ele podia ser
assassinado a qualquer momento, ser preso, torturado, ou morto, morto porque eu acho que ele não
se entregaria jamais.
E.T._ Ele tinha essa determinação?
C.C._ De todas as experiências que ele já tinha passado, Marighella foi um homem que ao longo da
trajetória revolucionária sempre foi muito torturado, muito machucado, sempre teve um
comportamento heróico, não abriu a boca, era uma decisão. Dessa vez ele sabia que se fosse pego
vivo seria morto na tortura, a decisão dele era não se deixar prender. As circunstâncias é que
levaram a morte a ser daquele jeito, uma emboscada. É claro que ele estava muito preocupado. Nos
últimos dias a pressão era muito maior, ele sabia que estavam caindo companheiros, ele estava muito
mais preocupado. Mas você vê que as preocupações dele não chegaram ao ponto de interromper os
contatos. Ele cobria os pontos. Se é verdade, se ele sabia que haviam sido presos padres lá no Rio,
segundo relato das pessoas que estiveram com ele no fim do dia e ele foi assim mesmo se encontrar,
é uma decisão como quem diz eu vou, quem sabe eu posso ajudar em alguma coisa, vou ver se a
gente facilita a vida deles ou de outros para impedir que fossem atingidos, sempre a preocupação de
impedir que as outras pessoas fossem atingidas pela repressão, tentou fazer com que as pessoas não
fossem atingidas. Tanto é que durante um tempo enorme ele tentou tirar gente daqui. O próprio
Toledo (Joaquim Câmara Ferreira), que saiu antes do Marighella ser assassinado. Marighella fez
toda uma montagem para que o Toledo saísse do Brasil. Ele sabia que o Toledo estava doente,
estava enfraquecido fisicamente, achava que seria muito difícil caso o Toledo fosse preso. Queria
evitar isso. Então ele programou a saída do Toledo, inclusive com a ajuda dos padres. Ele tinha
muito essa decisão. Talvez ele não tenha avaliado - se ele soubesse que havia emboscada ele não
teria entrado - esse é outro lado da questão, mas a impressão que eu tenho, impressão, veja bem, de
que a idéia dele era encerrar o contato com os Dominicanos, quem sabe designar tarefas para
facilitar a saída de outras pessoas para escapar o cerco, e ele iria para o interior. Essa era a
perspectiva dele, mais do que isso eu não sei.
Agora você imagina, eu não o vi durante o dia, não estive com ele. Eu o vi de madrugada
quando ele saiu do lugar onde nós estávamos, e ele ia voltar de noite. A gente ia se encontrar à noite.
Aí você imagine...
229
DEPOIMENTO DE MARCOS PARAGUASSU
Este depoimento foi realizado em Salvador, na residência do professor Marcos Paraguassu
de Arruda Câmara, no dia 5 de novembro de 1998.
1. Gostaria que você fizesse um resumo de sua história de vida.
MP. Nasci em 1942, em São Paulo, mais precisamente na Liberdade, na rua Pirapitingui. Meus pais
tinham se mudado pouco tem o antes, vindos de Salvador. Meu pai, logo após a conclusão do
Curso de Agronomia, em 1939, tinha sido preso. Já era militante do Partido Comunista. Minha mãe,
por outro lado, tendo concluído as Faculdades de Direito, Música e Agronomia conseguira passar
no primeiro concurso público para Juiz do Trabalho. Dois foram os motivos da mudança: receio de
perseguições e desejo de reorganizar o Partido, desmantelado pela repressão. Do mesmo modo que
meu pai, diversos outros militantes baianos também foram para São Paulo, tal como Milton Caires
230
de Brito. Sei que morávamos na mesma pensão, na rua Mourato Coelho, em Pinheiros, nesta época
um bairro bem distante do centro. O chamado “grupo baiano”, do qual acredito Marighella fizesse
parte, liderou a conhecida Conferência da Mantiqueira, durante a qual se reorganizou o PCB,
exatamente no ano em que nasci. Nesta conferência, meu pai foi eleito para o Comitê Central.
Um ou dois anos depois, iríamos nos mudar par ao Rio de Janeiro, onde fomos morar no
Grajaú. Com o fim da ditadura Vargas, em 1945, o Partido entraria na legalidade e meu pai seria
eleito deputado federal por São Paulo, nas mesmas eleições que consagraram Prestes senador. A
bancada comunista, nesta época, conseguiu brilhar na Constituinte. Em 1948, mudamo-nos do
Grajaú para a rua Gustavo Sampaio, no Leme. Lembro-me, inclusive, do nome do edifício que
morávamos: Majoí. No apartamento em que morávamos era extremamente comum a presença dos
companheiros de meu pai, principalmente dos que compunham a “fração parlamentar”. As figuras de
Marighella, Grabois, Pomar, dentre outros, tornaram-se bastante familiares.
2. Quais as recordações que você tem de Marighella nesse período?
MP. Em 1948, com seis anos, contraí pleurisia, após uma pneumonia mal curada. Era uma doença
pouco conhecida, à época e sua cura estava condicionada à importação de anti-bióticos,
extremamente difíceis de serem adquiridos. Graças a ajuda de companheiros, no entanto, foi possível
conseguir estreptomicina, que deveriam ser aplicadas de quatro em quatro horas. Durante quase um
mês sofri com as injeções, aos cuidados de minha mãe e meu pai. Depois de certo tempo, tornaram-
se verdadeira tortura, pois _ a mim _ parecia não haver lugar no corpo que não tivesse sido picado.
Cada aplicação era motivo de choro e lamentações, uma verdadeira novela que Marighella sabia
muito bem contornar. Com jeito, começava a me contar histórias e, quando me distraía, _ zás_ de
repente, aplicava as injeções. Estas histórias ficaram gravadas na minha memória. Eram histórias de
um enfermeiro, ao qual Mariga dava o nome de Dr. Fragoso, que chegava na casa dos doentes
montado em uma mula _ a mula manca. Andava quase sempre com uma seringa enorme e, às vezes,
uma pasta.
3. Ele desenhava isto?
MP. Desenhava.
4. Esta era uma história que Marighella inventava para você?
MP. Inventava e desenhava. Era um bom desenhista, que me fascinava. Lembro-me muito bem da
mula manca: orelhas enormes, juntas largas, grandes patas. Com um pouco de tempo consigo me
lembrar aproximadamente desta figura. Era um símbolo fantástico.
5. Ele dizia o que?
MP. Eu perguntava se o doutor Fragoso não chegava atrasado na casa dos pacientes e ele dizia que
era assim mesmo, que era assim que acontecia em quase todo o Brasil. A mula sempre empacava e
o Dr. Fragoso, nervoso, brigava com ela. A mula era engraçada, dava coices entre risadas e rinchos.
Jogava muitas vezes o Dr. Fragoso no chão. O Dr. Fragoso tinha um narigão, usava um avental e um
pano na cabeça com a insígnia da cruz vermelha. Tinha também uma pasta de mão com o mesmo
231
distintivo. Quando eu pedia para desenhá-lo, ele o fazia rapidamente, sempre rindo e brincando: aí
vem o Dr. Fragoso com a sua seringa!
6. Ele inventava essa história para te convencer a tomar a injeção. Você tinha quantos anos, a
época?
MP. Seis anos.
7. Ele aplicava a injeção?
MP. Aplicava, quando eu me distraía. “Olha o doutor Fragoso”! E _ pá! (risos). Esta é a história de
Mariga que mais me marcou.
Além desta, lembro ainda que Mariga era um folião e tanto. Em 1946 ou 47, com o Partido
na legalidade, ele era o organizador do “bloco” dos comunistas no carnaval. Era o bloco da Mula
Manca, com direito a estandarte e tudo, no qual saí pela primeira vez fantasiado de pirata da perna
de pau. A concentração era na Glória, na frente da sede do Partido. Muitos se fantasiavam.
Pelo que me lembro a mula era motivo de uma marchinha. O único verso que ficou na minha
memória foi: “Não importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar”. Coisas de baiano. Outro
baiano, aliás, Célio Guedes, primo a quem eu considerava tio, também do Partido, amigo do
Mariga, traduzia rindo esta frase da seguinte forma: “Não obsta que onagro claudique, o que anelo é
acicatar”. Português castiço, que me custou horas para decorar e, embora eu não visse qualquer
sentido nas palavras, achava muito engraçadas.
8. A figura da mula não era, então, só para aplicar injeção?
MP. Acho que a mula manca tinha um significado para eles, pois adoravam a idéia da mula. Talvez
lhes lembrasse, por analogia, suas dificuldades e revezes na luta por um mundo melhor. Era uma
forma de rir destas mesmas dificuldades, de enfrentá-las com bom humor e alegria. Quem sabe?
9. E a participação dele no bloco?
MP. Era o principal responsável, o folião por excelência, o animador de todas as brincadeiras.
Incansável, organizava, convocava companheiros, fazia paródias. Transformava as letras de
marchinha e samba em letras “revolucionárias” ou de “protesto”.
10. Quem participava deste bloco?
MP. Membros do Partido e seu s familiares, com o eterno cuidado de evitar “provocadores
infiltrados”, que podiam causar confusões para justificar prisões e perseguições policialescas.
11. Outra coisa que quero saber é como se davam estas reuniões do Partido em sua casa. Como era
o clima? Como era isto para a sua família?
MP. Com a idade que eu tinha (cinco, seis anos), é óbvio que eu não tinha condições nem de saber
o que era essas reuniões. Despertavam minha curiosidade normalíssima, porque eu não podia entrar
e nem sequer falar com meu pai. Como o apartamento era pequeno e a sala, devassada, tais
reuniões ocorriam no quarto onde eu dormia, ao lado de minha avó, que vivia conosco. O outro
232
quarto era de meus pais. Pelas minhas lembranças não havia parede entre ambos, sendo separados
por um grande armário (um guarda-roupa) que não chegava ao teto. Moleque curioso, cheio de
energia, pois quase não podia sair à rua para brincar e nem ter amigos em casa, por questões de
segurança, subi várias vezes encima deste armário para ver a reunião do outro lado. Levava cada
bronca! Só deixei de fazê-lo quando, certa feita, utilizando as gavetas do armário com escada,
acabei por desequilibrá-lo, o que com que caísse por cima de mim. Podes imaginar a confusão. Mas,
além destas reuniões “político-confidenciais”, as reuniões de domingo erma também muito comum.
Eram reuniões festivas, nas quais a minha avó era perfeita anfitriã. Minha mãe, também militante (não
muito ativa) convidava as companheiras que faziam parte do Comitê Feminino. Era o dia dos
companheiros mais chegados, dos amigos íntimos, dos parentes também militantes. Dentre estes,
Celito, Armênio, Rui Facó, Zuleika d’Alembert...
12. Marighella ia?
MP. Que eu me lembre, poucas vezes.
13. Neste momento de confraternização, já que a reunião de domingo era uma confraternização, não
se discutia política?
MP. Política era, evidentemente, um assunto que voltava constantemente a baila, mas em dias de
festas era levado na brincadeira. Afinal de contas, éramos uma família.
14. E o temperamento de Marighella junto a sua avó? Você havia enfatizado, antes de gravarmos
seu depoimento? Como o definiria?
MP. Carinhoso e brincalhão. Marighella, assim como Grabois, era um brincalhão. Ambos estavam
sempre rindo, contando piadas, jogando conversa fora de maneira agradável.
15. E sua avó tinha certo apreço por ele?
MP. Tinha. O que não posso, no entanto, responder é se este apreço era efetivamente
correspondido, pois era muito pequeno para discernir sutilezas comportamentais. Era perceptível, no
entanto, mesmo para mim, que alguns entravam, cumprimentavam ligeiramente, trancavam-se na
reunião e, muitas vezes, saíam sem sequer se despedir, enquanto outros eram mais chegados. É
evidente que os freqüentadores lá de casa tinham a política partidária como modo de vida e,
possivelmente, não davam muita importância aos códigos de sociabilidade, considerados veleidades
“burguesas”; entradas sisudos e sisudos saíam: “Boa Tarde!” “Boa Noite”! Nenhuma conversa,
nenhuma aproximação além da reunião. Outros, no entanto, sabiam que o Partido não era escusa
para atividades anti-sociais; tinham um comportamento mais amistoso e carinhoso. Chamavam minha
avó de tia, cumprimentavam-na: “Cadê Dona Caçula?”, pois ela era conhecida assim, até mesmo
pela família, embora seu nome fosse Haydée. Iam abraçá-la, perguntar pelos eus doces e bolos.
Entre estes, estavam Mariga, Pomar e Apolônio.
16. Havia muita diferença do tratamento dado pelos três à sua avó?
MP. Todos três chamavam minha avó de “tia Caça”, assim como suas mulheres e as amigas de
minha mãe. Entre as mulheres, aliás, muitas a tratavam quase com uma segunda mãe: buscavam
conselhos, carinho, compreensão para seus problemas existenciais.
233
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE ANA MONTENEGRO
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Este depoimento foi realizado no dia 6 de novembro de 1998, em Salvador, com Ana
Montenegro, do Partido Comunista Brasileiro.
ANA MONTENEGRO_ Certa vez eu disse ao Marighella: _“Você não pode tomar esse
caminho, lembre-se do que disse Lenine, que a revolução não é obra de algumas pessoas, mas de
milhões.
Ele disse: _ “Ana você tem que me entender, eu estou cansado de ficar na praia esperando a
onda”.
Eu disse: _ “Você se lembra daquele trecho de um texto meu? Tinha uma pedra lá na praia
que as ondas não deixaram sair. Ela ficou lá para sempre”.
Ele disse: _ “Mas eu vou vencer, você sabe que eu deixo a pedra aí e volto, mas para outra
praia, não esta, pois eu já estou cansado de ficar nessa praia”.
Eu achava Marighella especial, muito especial, pelas respostas filosóficas e humanas que ele
dava. Eu fui para a Europa e estava para voltar, e me encontrei com alguns amigos, com alguns
companheiros, lá na Itália, mas demorei muito, não cheguei no dia certo e o pessoal me criticou por
isso.
ET_ Isso foi quando?
AM_ Isso foi à ocasião da chamada revolução que houve aqui. Então, disseram a Marighella que
Ana Montenegro não apareceu no dia certo. Ele disse que Ana não chegou no dia certo porque tinha
uma exposição de pintores franceses, que eu amava muito, surrealistas, mais ligados a esse
companheiro da Espanha, Picasso. Eu conheci Picasso, aliás eu tenho até um presente que ele me
deu.
Eu disse, certa vez, a Marighella sobre os pintores surrealistas: _ “Esse realismo, essa
claridade, parece que recolheram toda a luz da natureza”.
Ele disse: _ “Isso é engano seu, venha cá, olhe aqui desta janela, o universo continua
iluminado, logo não recolheram toda a luz”.
Ele tinha respostas que eram humanas, mas eram filosóficas. Ele era dialético _ ‘o universo
continua iluminado’_ é uma resposta que não é todo mundo que dá.
ET_ A senhora se lembra de alguma outra passagem?
AM_ Outra coisa de Marighella era que a gente queria saber quem era ele. É uma coisa que eu
nunca esqueci na minha vida, é a simplicidade com que ele se autodefinia. Eu disse uma vez: _
“Marighella, você que foi torturado, que sofreu tanto, você que está dando sua vida, tudo isso, sendo
ameaçado - foi nas vésperas de quando eu fui embora do Brasil _ eu quero lhe perguntar uma coisa:
quem é você”?
Ele disse: _ “Olha Ana, eu me considero um mulato baiano! Como é que você não me vê
como um mulata baiano”?
Eu disse: _ “Eu vejo, fisicamente”.
Ele disse: _ “Não, dentro de mim também, porque eu não sou uma pessoa diferente dos
outros, você não pode me considerar uma pessoa diferente dos outros”.
235
Outra coisa que eu achava de Marighella era o problema que ele tinha a respeito da
necessidade de se por as coisas em prática. Ele foi quem me ensinou uma coisa que os gregos
escreveram.
ET_ O quê?
AM_ “A prática é o critério da verdade”. Eu participava de uma subcomissão de mulheres da
Comissão de Massas do Comitê Central do PCB no Rio de Janeiro e eu disse a ele: _ “Não sei, as
mulheres não aparecem, a coisa não vai”.
Ele disse: _ “Sente aí! Depois que vocês fizeram toda aquela programação, lembre-se do
que eu te disse sobre a prática é o critério da verdade? É o seguinte Ana, vocês têm um programa,
vocês planejaram alguma coisa para a Comissão, um novo programa determinando aquelas tarefas
todas?
Eu disse: _ Não.
Ele disse: _ Como é que você quer que as coisas aconteçam? Vocês não tem uma proposta,
um programa, não chegaram a conclusões do que é mais necessário.
Eu disse: _ Tá certo, eu vou fazer.
Passou-se uns tempos ele me procurou e disse: _ Como é que está o negócio lá das
mulheres, para eu dar informações ao pessoal da Comissão”.
Eu disse: _ Olhe Marighella, depois que você me deu aquele conselho da prática...
Ele disse: _ Eu já lhe disse que a prática é o critério da verdade, se você não leva à prática o
que projeta, as pessoas não podem trabalhar.
Ele era uma pessoa muito concreta, objetiva. Ele me dizia: “Você adora os pintores”. Por
isso eu guardo isso aqui , esta pomba foi desenhada por Picasso, em homenagem ao 8 de março,
por ocasião da Federação Internacional das Mulheres, em Paris, em 1945. Isso foi Picasso que
pintou e nos deu. Marighella teve várias vezes com isso na mão.
ET_ O que ele disse?
AM_ Ele disse o seguinte: _ Realmente a paz depende das mulheres, porque vocês tem os filhos,
como dizia José Marti, o cubano, que as crianças nascem para serem felizes, então, elas merecem
isso que fez o Picasso, porque o que ele fez foi a pomba da paz levando flores para todas as
crianças.
Eu sempre perguntava pelo filho dele, o Carlinhos, você sabe a história do Carlinhos? A mãe
dele não pôde registrar imediatamente o menino, por que não pode registrar o menino? Porque ele
estava ilegal.
Outra coisa que eu quero dizer de Marighella, isso eu tenho muita vontade de contar, quando
houve essa discussão, não sei se a palavra é essa, você que vai me dizer, sobre o Partido Comunista,
quando o Partido Comunista se dividiu entre os que eram a favor da luta armada, eu estava em
Paris, ele foi a Cuba e lá, em 67, eu pensei que ele nunca se encontrasse comigo, porque nós
tínhamos idéias diferentes a respeito da luta. Passei por Cuba para ir a um seminário do trabalho que
eu fazia na América Latina, ele soube do que eu pensava e disse: _ “O que é isso? Se eu for a
236
Europa a primeira pessoa que eu pergunto é por você. Ele disse: _ Amizade é uma coisa Ana. Os
princípios, outra.
Ele disse: _ Se eu quero um pequeno caminho diferente e você quer um caminho
diferente, a amizade faz com que esses caminhos se juntem, você pensa que a amizade de tantos
anos, a solidariedade, o nosso conhecimento, você se preocupava até com a camisa que eu ia vestir,
queria saber se eu tinha camisa para o Natal, queria até saber o número do meu sapato, como é que
eu vou deixar de ter amizade com uma pessoa dessas? Os meus princípios não acabaram, nem os
seus, apenas você sabe que para se chegar a um lugar, o lugar que nós queremos, o socialismo, os
caminhos podem ser diferentes, mas nós seremos conduzidos pelos mesmos transportes.
Eu me lembro dessa palavra.
ET_ Como ele retribuía a amizade com a senhora?
AM_ Retribuía desse jeito, com essas conversas, com esse contato, com tudo isso, ele passou a ser
a pessoa a quem eu levava meus problemas. Por incrível que pareça ele sabia do amor que eu tinha
pelas crianças, do amor por Carlinhos e tudo isso, ele disse que eu não tinha direito de não sair do
Brasil, porque eu tinha que cuidar dos meus filhos: _ “Você não pode tem o direito de ficar aqui,
você pode prejudicar seus filhos, a criação”.
Ele tinha uma capacidade de comunicação nos comícios extraordinária.
ET_ Como ele era nesses discursos, ele se preparava?
AM_ Não era nada preparado, nada preparado, claro, ele não se afastava dos princípios do
socialismo, da defesa da unidade dos trabalhadores do campo e da cidade, da defesa de um
instrumento que era o Partido Comunista, ele não se afastava desses princípios básicos e práticos,
ele não se preparava, pelo contrário, a gente viajava pra cima e pra baixo, para esses subúrbios e
nunca vi assim ele se preparar anteriormente. Ele era uma pessoa como outra qualquer, normal, o
problema era o seguinte: era uma pessoa que todo mundo gostava dele.
ET_ Por que todo mundo gostava dele?
AM_ Talvez por essa comunicação social e por não ter essa empáfia de personalidade. Apesar do
valor que ele tinha, apesar da capacidade de comunicação, de levar à prática, ele não dava a
aparecer isso, uma pessoa como outra qualquer.
Uma vez eu censurei Marighella. Houve uma reunião no Partido Comunista em São Paulo, as
pessoas se preparavam para fazer um pouco de referências ao Luis Carlos Prestes, eu estava louca
que ele fizesse essas críticas, não sei se você conhece meu artigo sobre o Prestes, na minha opinião
foi o guerrilheiro número um da América Latina, mas ele não fez, mas aí eu disse: _ Olha! Ô Mariga
_ chamava ele, naquele tempo, de Mariga _ ô mulato, você não fez a crítica que devia fazer a
Prestes por essa personalidade dele, de trazer as coisas arrumadas, feitas.
Ele disse: _ “Olha! não valia a pena, nós éramos minoria para criar uma briga, acho que não
era a ocasião, de uma atitude que pudesse dividir _ nunca me esqueço disso _ eu não quero dividir
nada, quero somar, acrescentar, somar, unir”.
237
Esse negócio da unidade de Marighella me influenciou até hoje. Essa influência que ele podia
exercer mas não exercia. Eu quero lhe contar uma pequena história de Marighella que me
impressionou, que está relacionada ao problema do “Não Tive Tempo de Ter Medo”.
ET_ Eu gostaria que a senhora falasse sobre isso.
AM_ Eu dizia que estava com medo, ele dizia: _ “É aquela frase que eu disse sempre a vocês, eu
nunca tive tempo de ter medo, porque se eu tivesse medo não tinha estado na prisão, se eu tivesse
medo não continuava na luta, então, é melhor que na vida não se tenha tempo de ter medo”.
Foi nessa ocasião que eu ouvi pela primeira vez essa frase dele, eu disse que ficava com
medo de enfrentar essa maioria aqui no Partido, ele disse: _ “Imagina nós temos que ter medo de
outras coisas, da polícia, da repressão, você acha que a gente tem de ter medo de companheiros”?
Tanto que eu achei que não era justo, na ocasião.
ET_ Ele disse isso quando para a senhora?
AM_ Numa ocasião em que houve uma reunião em São Paulo, no fim da década de 50. Agora
também a preocupação que ele tinha com os problemas dos outros...
ET_ Como que se dava a relação dele com vocês que estavam mais próximos da militância política,
como era essa relação em termos de cotidiano, em termos de brincadeiras, o homem comum
Marighella?
AM_ O homem comum Marighella era justamente isso, ele era aquela coisa que chegava na minha
casa e sempre dizia : _ “Eu vim colocar um problema”.
Ele se preocupava com esse negócio de família, isso eu tenho que dizer a você: quando eu
fui a Cuba, depois da revolução, passei uns dias lá para ajudar, eu não sabia como fazer, pois eu
tinha um filho pequeno. Eu disse a ele: _ “Eu não sei como meu marido vai reagir”.
Ele disse: _ “Ah! Seu marido eu falo com ele”.
Quando ele chegava ia conversar com os maridos também, para poder amenizar a situação
da família das mulheres. Outra coisa interessante, ele fazia muito trabalho nos bairros, o pessoal dos
bairros o conhecia, ele conseguiu uma mulher baiana no Rio de Janeiro, que foi ela quem criou meus
filhos. Ele disse que eu ia ter muitas dificuldades com essas crianças: _ “Vou arranjar uma pessoa,
vou arranjar uma empregada”. Arranjou uma moça lá para casa, que criou meus filhos. Mandou uma
mulher lá do Rio de Janeiro, de uma favela. Ele disse: _ “Olha! O marido dela foi assassinado numa
greve, você tem que levar isso em consideração, ela é uma mulher que tem consciência”. Sabina,
meus filhos a chamavam tia Sabina. Ele se preocupava com a organização das famílias dos
comunistas.
ET_ Além das preocupações políticas.
AM_ Ele se preocupava que os militantes comunistas, os companheiros, tivessem condições
familiares de prestar a ajuda necessária.
Olha! As mulheres se apaixonavam por Marighella, ele era muito atrativo.
238
ET_ Ele era assediado?
AM_ Não sei se ele chegava a ser assediado, mas conversando com a gente elas confessavam estar
apaixonada por ele. Havia uma coisa, eu não sei se você sabe, mas o Evangelho de Cristo, eu sou
ecumênica, tem muitas coisas interessantes. Então, ele diz o seguinte: ‘entre o céu e a terra ainda tem
muita coisa a se descobrir’. Por que você gosta de umas pessoas e outras não? Por que você sente
essa atração, essa simpatia? Muitas pessoas dizem: _ Como você gosta das pessoas sem conhecê-
las! Eu digo: _ “Eu não sei”. Há qualquer coisa de interior, era isso que Marighella tinha, talvez o
próprio Prestes tivesse também. Eu queria te mostrar um trabalho sobre princípios, você conhece?
ET_ Não, eu conheço um trabalho seu que me foi fornecido por Emiliano José.
AM_ Saiu na Tribuna, um artigo sobre Jorge Amado e sobre Castro Alves. Era essa coisa, o
problema da história. Ele, por exemplo, foi quem mais me incentivou para ver esse problema da
Guerra do Paraguai. De forma que quando eu voltei da Europa, eu me lembrei disso, e me lembro
dele, me lembrei da preocupação que ele tinha para que se esclarecesse historicamente o problema
da Guerra do Paraguai. E então eu fui lá no Rio Grande do Norte e fiz todo um estudo, eu cheguei à
conclusão que as mulheres lutaram contra a Guerra do Paraguai, as mulheres do Rio Grande do
Norte, principalmente da cidade de Mossoró, rasgaram os documentos que chamavam os soldados
para irem para a guerra, nas igrejas, nos cartórios, eu tenho tudo isso.
ET_ Que interesse ele tinha?
AM_ Que se recuperasse a verdade histórica. Isso me influenciou demais a primeira vez que eu
soube desse poema de Bertold Brecht _ “quem reconstruiu Babilônia mil vezes destruída...”_ me
lembrei dele.
ET_ O que ele falava para a senhora?
AM_ Ele me dizia muito que era para se recuperar esse problema da história. Principalmente, esses
negócios dos negros, a resistência dos negros.
Você vê vários militantes foram presos, torturados e ainda há interesse por Carlos
Marighella, por quê?
ET_ A pessoa mais indicada para responder isso aqui é a senhora. Por que a senhora acha?
AM_ Talvez pela continuidade, por essa luta e por esse não afastamento, em nenhuma ocasião, dos
princípios, por causa do exemplo que ele dava, principalmente essa frase “Não tive tempo de ter
medo”, dizia com tanta convicção, era com tanta convicção com que ele expressava suas idéias, os
seus pensamentos, será por isso? Eu penso que sim, mas não posso assegurar com referência aos
outros.
ET_ A senhora escreveu aqui no artigo de Prestes que ele não era carinhoso, e Carlos era?
AM_ Era.
ET_ A senhora pode me dar um exemplo?
239
AM_ Eu estive doente, cansada e ele soube. Eu não me lembro de nenhum companheiro que tenha
em toda vida me telefonado, perguntado, insistido para saber como estava minha saúde, como eu
estava. E foi ele. Tinha um médico no Rio de Janeiro, Niemeyer, que examinava esse negócio
cerebral, foi ele que foi atrás desse médico para me ver, mas ele não fazia esse negócio só comigo
não, mas com qualquer companheiro que estivesse nessa situação de doença, de dificuldade.
Ele dizia: _ “Ana você tem que saber dizer as coisas, saber expressar de forma que toque _
era essa a apreciação que ele fazia do meu trabalho _ você tem que aproveitar isso”.
ET_ Incentivava a senhora?
AM_ Para fazer comícios, comunicar-me com as pessoas. Por exemplo, dentro do Partido, quando
o pessoal dizia que tinha que falar com uma pessoa, ele dizia: “manda a Ana, ela chega lá e conversa
com as pessoas, se comunica, ela tem uma capacidade, essa condição de se comunicar com as
pessoas”.
ET_ Logo ele que era um bom discursador?
AM_ Não, era o melhor, eu admirava que ele fizesse essa comunicação e ainda tivesse essa
capacidade de compreender que as pessoas podiam dar. Os humanistas franceses dizem que o herói
é aquele que faz tudo o que pode. Eu acho que todos nós somo heróis e heroínas, quando você abre
a janela de manhã e vê o homem limpando a rua. Como você andaria na rua sem esse homem?
Quando você come um pão, quem plantou o trigo? Você iria comer o pão sem o trigo?
ET_ A senhora falou que Che era poeta e Marighella a senhora presenciou ele fazendo poesias?
AM_ Ele gostava de escrever poemas. Era poeta, além disso gostava muito de fazer palestras como
eu, comunicação com as massas populares, transmitir aos jovens, porque a convivência da gente era
meio difícil.
ET_ E na hora do lazer dele ele gostava de música, futebol?
AM_ Não, mais de ler, cansou de levar livros lá de casa para ler. Eu tentava enfiar na cabeça dele
esses humanistas franceses.
ET_ Ele discutia essas leituras com a senhora?
AM_ De vez em quando, mas, principalmente, história do Brasil. Ele foi o primeiro a me despertar o
interesse em não escrever estória, mas sim história. Eu aprendi com ele uma coisa e depois fui buscar
no dicionário: é fatores e fautores, fautores é a motivação do fato, nunca se usa essa palavra, fatos e
fautores.
ET_ Ele que falou para a Senhora?
AM_ Foi a primeira pessoa que eu vi usar essas palavras, porque o problema não era só ter efeito
e causa, ninguém passa fome sem causas, o mundo está cheio de comida, né.
ET_ Qual a relação que a senhora teve com Clara naquela época?
240
AM_ Convivi como membro do partido, não tive grande convivência até quando os encontrei em
Cuba. Eu conheci Clara e ela me aceitou muito bem. Achava bonita a minha amizade com
Marighella. Ela também colocava a amizade acima das divergências.
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE CARLOS AUGUSTO MARIGHELLA
Este depoimento foi realizado na cidade de Salvador, no dia 6 de novembro de 1998.
Carlos Augusto Marighella, o Carlinhos, é filho de Carlos Marighella.
E.T._ De início gostaria que você - apesar de eu já ter em mãos o seu depoimento ao Emiliano -
gostaria que você se apresentasse, e evidentemente, depois dessa apresentação - quem é o
Carlinhos - que você demonstre como foi o contato com seu pai.
CARLOS AUGUSTO MARIGHELLA_ Está lá colocado no livro do Emiliano, mas eu posso
fazer isso sucintamente. Eu nasci no ano de 1948, exatamente no ano que o partido comunista foi
colocado na clandestinidade, exatamente neste ano meu pai saiu do Brasil, de maneira que eu só
pude conhecê-lo quando já tinha aproximadamente 7 para 8 anos de idade.
E.T._ Ele foi para onde nessa viagem?
241
C.A.M._ Eu não sei assim exatamente, a gente sabe que no ano de 48 ele foi fazer uma viagem pelo
mundo, esteve em Moscou, foi conhecer a experiência da revolução na China, a China teve a
experiência revolucionária em 49, e o que é verdade é que eu vim para a Bahia, minha mãe tinha uma
base familiar forte aqui, tanto a família de meu pai, como da minha mãe eram da Bahia. Então, minha
mãe veio para a Bahia e eu fiquei aqui até 55, 56, quando eu fui finalmente para o Rio de Janeiro,
quando eu já sabia que iria conhecer meu pai. Eu morei inicialmente com minha família materna lá,
com minha avó, minha tia...
E.T._ Quando você retornou, pois você nasceu no Rio?
C.A.M._ Eu nasci no Rio em 48. E finalmente fui morar no apartamento com meu pai, no
apartamento que meu pai viveu com Clara. Então, vivemos juntos até mais ou menos 64, quando eu
voltei para a Bahia, com a prisão de meu pai, e a desestruturação, digamos assim, daquela já
precária vida familiar que existia.
E.T._ Aonde era esse apartamento? Em qual bairro no Rio?
C.A.M._ Nós morávamos no Flamengo, na Correia Dutra.
E.T._ Quando você retornou para a Bahia ficou com sua mãe?
C.A.M._ Não, minha mãe, quando eu retornei pequenininho, você quer dizer, com meses de
nascimento?
E.T._ Isso. O que ela passava com relação a seu pai?
C.A.M._ Olhe, tanto a família materna quanto paterna viviam aqui, todos os irmãos, quer dizer, a
maioria dos irmãos viviam aqui na Bahia, tio Humberto, tio Caetano, toda a história familiar está aqui
na Bahia, então, eles não me passavam nada, eu vivia como um Marighella aqui, era filho do Carlos.
Eu sabia que meu pai era um dirigente político, que ele estava foragido, que ele vivia
clandestinamente, enfim, não havia nenhum mistério, digamos assim.
E.T._ Mas o contato de sua mãe com seu pai, ela , ou melhor, explica como foi o contato de sua
mãe Esther com seu pai?
C.A.M._ Minha mãe o quê?
E.T._ Não era Esther o nome dela?
C.A.M._ Não, não, Elza. Minha mãe e meu pai se conheceram lá no Rio de Janeiro. Minha mãe,
como era muito comum acontecer naquela época, foi para o Rio de Janeiro, cidade grande, venceu
na vida, né. Então minha mãe trabalhava na Light. A Light tinha uma atividade política muito intensa,
atividade sindical, e dessa atividade conheceu meu pai, ficaram amigos e viveram juntos inclusive,
uma determinada época.
E.T._ Na década de 40?
242
C.A.M._ É. Eu não sei assim muitos detalhes dessa relação, talvez a Ana Montenegro, que conheceu
minha mãe lá nessa época, a irmã do Prestes, enfim, minha mãe era uma pessoa do partido também,
tinha relação com pessoas do partido.
E.T._ Elza Sento Sé era o nome dela. Antes você morava no Flamengo e depois começou a
estudar. Uma dúvida que eu tive no seu depoimento ao Emiliano foi aonde você começou a estudar?
C.A.M._ Olhe, é, a primeira vez, eu fui ao Rio antes e fui apresentado a meu pai, embora eu tivesse
ido ao Rio com essa finalidade. Depois, por incrível que pareça, Clara até falou isso ontem aqui, os
únicos períodos de legalidade que meu pai viveu, foram aqueles que antecederam o golpe de 64. Aí
de 58 em diante meu pai pode ter um endereço no nome dele, pode aparecer, pode ter um
escritório, incrível isso, porque o Brasil, em tese, inteiramente democratizado, já há eleições, tinha
eleições normais, em 55 o Juscelino foi eleito presidente e os comunistas não podiam ter uma vida
legal, em 1958, por aí, antes de morar no Flamengo, meu pai morava no Meiér, num endereço já
sabido. A casa foi invadida pela polícia, a polícia invadiu, prendeu documentos, pegou material,
fotos, livros.
E.T._ Ele conseguiu se safar dessa ?
C.A.M._ Conseguiu, mas eu não podia morar com meu pai numa situação dessa. Ele não podia se
dar ao luxo de ter um filho, que era menino ainda, tivesse que ser protegido e correndo o risco de ir
morar com ele. Mas eu fui para o Rio em 56 e minha primeira escola no Rio foi a Escola Batista que
ficava ali na Frei Caneca, eu fiz o segundo ano de ginásio, me parece, nessa escola. Depois disso eu
estudei no MAB, que era uma escola na rua do Riachuelo, estudei numa grande escola, uma escola
da Fundação Getúlio Vargas, uma escola muito boa de primeira linha. Eu freqüentei nos primeiros
anos o Colégio Batista da Frei Caneca. Nos anos seguintes eu estudei no MAB, em seguida estudei
numa fundação internato da Fundação Getúlio Vargas, que era um colégio assim de, colégio
experimental até, assim de força, digamos assim, experimental. Então, basicamente, eu fiz todo o
meu ginásio lá nessas escolas e quando eu fiz o ginásio lá, mas o colegial eu fiz aqui na Bahia, que foi
exatamente quando eu terminei, em 64, meu ginásio, eu retornei, exatamente quando eu ia fazer os
exames do Colégio Pedro II, quando estourou o golpe de 64.
E.T._ O motivo Central deve você ter ido para o Rio foi conhecer seu pai ?
C.A.M._ É, conhecer meu pai, eu não conhecia até então.
E.T._ Foi um acordo com sua mãe ?
C.A.M._ Provavelmente, eu muito menino, ninguém ia parar para me explicar isso. Eu tinha 7, 8 anos
de idade, foi isso que aconteceu. Aconteceu, inclusive na época, meu pai alugou uma casa lá para
minha avó, porque eu não podia, nem eu podia ficar do lado dele, nem podia também ficar distante
de meu ambiente familiar assim né. Então meu pai alugou um apartamento pra gente lá na Mem de
Sá, perto da Lapa, por ali, um edifício ali, ele alugou um apartamento para minha avó, um
apartamento pequeno, dois quartos, eu morei lá um período até que eu pude me transferir de mala e
bagagem para a casa de meu pai.
243
E.T._ Eu queria agora que você se estendesse mais sobre os momentos de lazer, o contato que
você tinha com ele, qual era conversa que você tinha com ele?
C.A.M._ Meu pai era uma pessoa muito carinhosa, eu rapidamente me senti a vontade com ele, uma
pessoa carinhosa, desses pais que beijam, desses pais que se interessam pela vida escolar. Hoje eu
fico pensando, com as dificuldades que eu tenho com meus filhos, como é que meu pai conseguia,
com as preocupações que ele tinha, ainda ter esse tipo de atenção, esse tipo de carinho com o filho.
Mas ele era tipo assim, me beijava todas as noites, ele falava sobre sexo, quer dizer, coisas que não
eram comum numa relação entre pai e filho, ele fazia bem assim.
E.T._ O que ele falava sobre sexo ?
C.A.M._ Eu fico imaginando e acho que meu pai era uma pessoa muito conservadora, digamos
assim. Mas ele era uma pessoa conservadora assim: meu pai falava sobre virgindade, certos
cuidados com a virgindade das moças: “Olha lá, cuidado, a moça pode ser virgem”! Ninguém hoje
trata esse assunto dessa maneira, né. Mas todas as noções, mais ou menos científicas que eu tive de
sexo aprendi com meu pai. Ele falava, mostrava a literatura que havia em casa, os livros de Fritz
Kam. Os livros de sexualidade, que naquela época deveriam ser uma revolução em termos de
educação familiar que ele seguia.
E.T._ Qual o autor do livro?
C.A.M._ Fritz Kam. Que tinha livros sobre sexualidade, que tinha fotos, desenhos de pênis, vagina,
doenças e ele falava abertamente desses assuntos comigo. Era uma pessoa muito carinhosa e eu me
lembro que era excessivamente preocupado com meu currículo escolar. Eu nunca fui assim um bom
aluno, um aluno interessado na escola, cheguei a perder um ano. Mas meu pai olhava os boletins,
me dava conselhos e as vezes me ajudava a resolver problemas de matemática, que ele gostava
muitíssimo, ele adorava resolver problemas de matemática e ensinar matemática para mim, né.
E.T._ Você ia a praia com ele?
C.A.M._ Ia. Nós morávamos num lugar próximo a praia, lá no Flamengo. Era muito comum assim
aos domingos, saíamos juntos, geralmente essas visitas que fazíamos, eram visitas relacionadas com
as atividades dele, ele aproveitava prá visitar alguém do partido. Me carregava com ele, eu me
lembro que dava um certo “ibope” para ele aparecer nesses lugares com o próprio filho, porque
tinha umas pessoas com vontade de conhecer. Programas, nós íamos muito a praia, era muito
divertido, apostávamos corrida e tal, era uma pessoa muito carinhosa e alegre. Entende? Meu pai
sempre foi uma facilidade muito grande de relacionamento, porque ele era uma pessoa divertida,
gostava de fazer desenhos, me ajudava a fazer pequenos serviços manuais, montar coisas, aviões,
carrinhos e tal. Ele participava muito disso comigo quando ele tinha tempo, porque era visível que ele
era uma pessoa muito ocupada e muitas vezes ausente de casa, não tinha tempo.
E.T._ Que outro tipo de lazer se recorda com ele ?
244
C.A.M._ Ele era uma pessoa muito camarada, meus primos todos, porque tinha uma parte da família
que morava lá, tanto irmãs de minha mãe, quanto irmãs de meu pai. Meu pai era muito querido ele
levava queimado e tal, fazia esse gênero, né. Mas, afora a praia, afora essas visitas, que as vezes que
eram pessoas da relação política dele, né, nós não tínhamos tempo para mais outras coisas.
E.T._ O contato com os parentes lá no Rio, no contato com os sobrinhos, me parece que ele era o
tio preferido. Por que isso?
C.A.M._ É por isso, porque ele participava das brincadeiras da gurizada, ele levava queimada, ele
sentava, essa mesma atenção que ele tinha comigo percebia que ele tinha com as outras crianças, ele
gostava mesmo do contato como esses, dessa relação com os meninos e as meninas.
E.T._ Aquele episódio do colégio onde ele tinha que responder um questionário. . .
C.A.M._ Exatamente. Esse colégio da Fundação Getúlio Vargas que era ultraliberal, lá não haviam
restrições. Eles tinham lá as disciplinas da escola, era um internato, mas lá você não tinha
preocupação com a roupa. O colégio tinha um banquinho, um banco que passava cheque lá, um
banco que contava seu dinheiro, você fazia pagamento. E o colégio permitia que as pessoas
fumassem, mas era preciso que a família tivesse conhecimento. Quando você se matriculava na
escola tinha uma fichinha onde o pai declarava se concordasse ou não se o filho fumasse ou não, já
que lá era liberado. Você imagina como o colégio era liberal, tinha o ginásio e o científico, tinham
crianças de 12 anos até os 18 anos de idade. Então, não era proibido fumar, desde que o pai desse
consentimento.
E.T._ Era ele que escolhia os colégios para você. Todos esses colégios que você estudou ele que
escolhia ?
C.A.M._ É. Com exceção dessa primeira escola que era Escola Batista, e aí foi minha avó mesmo
que escolheu em função da proximidade do local em que nós morávamos; as outras escolas foram
indicações de meu pai, escolhas pessoais dele. Então, resultado, nessa escola ele me perguntou: Se
eu queria que declarasse se eu fumava ou não fumava.
E.T._ E você tinha idade?
C.A.M._ Uns 14 anos mais ou menos. Ele era uma pessoa liberal, eu nunca tive nenhuma imposição,
a tática dele era uma tática de assumir responsabilidade comigo.
E.T._ Afinal de contas você fumava ou não fumava ?
C.A.M._ Eu acabei fumando nessa escola, mas fumei escondido, porque não havia uma declaração
de meu pai autorizando, mas essa declaração foi eu mesmo que autorizei a dar. Eu não fumava,
depois fumei durante muito tempo, mas já com 18 anos de idade. Essa tática funcionava muito, por
exemplo: era muito comum naquela época prostitutas. Era muito comum, todo adolescente tinha
contato com prostíbulos. E eu me lembro que dessas conversas com meu pai ele me passou muito a
idéia de como era perigoso e danoso, eventualmente, você freqüentar essas casas. Então, do meu
grupo de amigos fui o último a ir numa casa de prostituição, já velho com meus 19 anos, muito por
245
conta desse tipo de lição que meu pai passava para mim. Ele enfocou muito essa postura de diálogo,
de conversar.
E.T._ Ele pedia para você evitar?
C.A.M._ Ele tinha aquele discurso que hoje é muito comum. Um discurso assim: “Você pode
contrair doenças nesse tipo de local”. Eu ia com meus amigos, mesmo quando voltei para a Bahia,
já adolescente, havia os prostíbulos tradicionais, onde você chegava, dançava, era uma verdadeira
folia esses puteiros. Teve uma determinada idade que praticamente fui seduzido, ou nunca tive uma
iniciação sexual, que comumente era feita nos prostíbulos, a minha iniciação foi de uma tal maneira
em função dessa crença nas lições que meu pai havia me dado, que era perigoso, que não era
condizente com esses valores que aprendi com meu pai, que eram os melhores para mim.
E.T._ Conforme você já falou o tempo dele era limitado, mas ele o visitou no colégio algumas vezes,
eu quero que você me explique esse contato.
C.A.M._ Ah! Nos vimos . . . o que era surpreendente. Eu que sou separado hoje, mas que não
tenho nenhuma restrição, vejo meus filhos talvez menos do que meu pai me via. O que é
surpreendente é que ele encontrasse tempo para ter atenção com a família, com o filho, com os
amigos. Era uma pessoa que cultivava muito isso. Ele me via muito, me via sempre. Agora o que eu
disse naquele depoimento - acho que é isso que chamou sua atenção - é que ele estava sendo
caçado por toda a polícia em maio de 64, mesmo assim ele foi algumas vezes no colégio me visitar.
E.T._ Qual era o teor de conversa que ele tinha com você ?
C.A.M._ Ele ia me ver. Quando meu pai foi preso em 64, isso talvez seja interessante para lhe situar,
Clara falou ontem da vida comedida, meu pai era uma pessoa sem luxo, sem ostentação, viveu num
apartamento de quarto e sala, grande, é bem verdade, mas a casa de um dos maiores dirigentes do
Partido comunista era um apartamento do tamanho desse primeiro andar aqui. Tinha uma cozinha
grande, tinha um quarto, eu dormia na sala, tinha um sofá cama que virava sofá durante o dia e cama
durante a noite. Mas não foi uma vida de privações, de maneira nenhuma, eu estudava em boas
escolas, me alimentava bem, tínhamos telefone, televisão, meu pai tinha um gravador, que era uma
coisa rara naquela época, um eletrodoméstico que não era acessível a maioria da população,
aparentemente não passava nenhum tipo de privação. Na minha escola, eu me lembro, meu pai
pagou a escola o ano todo, ele não pagava por mês, ele me matriculava e pagava o ano todo da
escola, quando meu pai foi preso em 64 todo mundo fugiu, eu fiquei numa escola sozinho. A escola
era um internato, saía até para casa, eu iria para onde? As minhas tias moravam distantes, eu
estudava na Tijuca, minha tia mais disponível morava com minha avó na Ilha do Governador, e eu
fiquei perdido, não tinha uma roupa, a polícia chegou lá em casa e levou todas as minhas roupas,
coisa minhas também, coisas de meu pai, de Clara.
E.T._ Isso em 64?
C.A.M._ 64. Então meu pai ia à escola. Me lembro que ele chegava lá com uma peruca, ele ficou
muito estranho, ele cortava o cabelo retinho, ele raspava com uma navalha, e só ficava uma mecha
de cabelo encima. Então, ele chegava lá cabeludo, como se fosse o nosso cabelo mesmo, meu
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cabelo quando cresce fica igual ao dele, meio black power. Ele andava de calça jeans, que era uma
roupa de gente jovem, de roqueiro, de playboy, naquela época. Calça jeans, blusão jeans, e aquela
cabeleira, parecia um motoqueiro, era outra pessoa. Mas ele ia na escola me visitar, entrava na
escola e ia falar comigo.
E.T._ Na escola, você teve algum problema com o sobrenome Marighella?
C.A.M._ Eu fui expulso da escola, expulso com solenidade, o diretor, que era um militar, reuniu
todos os estudantes e disse que ali não podia estudar o filho de um comunista.
E.T._ Isso na frente de todo mundo ?
C.A.M._ Todo mundo. Eu tinha 15 anos.
E.T._ O que você entendia desses acontecimentos ?
C.A.M._ Eu não conseguia entender direito, fiquei muito traumatizado até, não imaginei que uma
pessoa pudesse fazer isso. Na verdade era uma coisa que me atingia cruelmente, a desmoralização
na frente de meus colegas, dos meus amigos, e o que é pior, a escola estava paga, internato, quer
dizer tinha comida, tinha dormida, estava com minha vida garantida, a escola era um ponto
absolutamente seguro, era uma casa, eu não precisava sair da escola. Lá eu comia e dormia. Então
me expulsar da escola acabou com minha estrutura pessoal. Eu tive que voltar para a Bahia por
causa disso, até então não havia passado isso pela minha cabeça. Quando meu pai foi preso
finalmente e eu expulso da escola, minha mãe foi pra lá e me trouxe para a Bahia.
E.T._ Qual era o nome do diretor da escola ?
C.A.M._ Não me lembro agora, era um coronel lá. Seria bom levantar esse nome para desmoralizar
bem a memória dele. A próxima vez que eu for ao Rio vou com esse objetivo.
Mas veja bem, eu estudei na escola Batista. Essa escola era também uma escola Batista, mas
não era a mesma escola que eu estudei inicialmente. Era o ginásio Batista e tinha o internato e o
externato, e esse diretor era diretor do internato. Era um general reformado que era diretor do
internato. Ele me comunicou, e decidiu me expulsar num visível prazer, não foi nenhuma entidade, ele
tomou essa decisão praticamente sozinho.
E.T._ Nessa escola você tinha aula de religião ?
C.A.M._ Tinha. Uma outra coisa interessante é que minha família paterna era muito religiosa, meus
tios, minhas tias sempre foram muito ligados. Aqui na Bahia é esse sincretismo, você não sabe dizer
se é católico, se é do candomblé, mas todo mundo se diz católico, eu sempre fui a missa, o meu pai
nunca criou algum tipo de objeção, embora ele sempre se manifestasse como um ateu, ele não
acreditava em Deus, ele dizia isso de uma forma muito clara.
E.T._ Ele era ateu?
C.A.M._ É, ele era ateu.
247
E.T._ E ele que escolheu essa escola Batista ?
C.A.M._ Eu quero dizer que ele escolheu para poder pagar a escola. Ele teve algum tipo de
facilidade para assumir na escola esse compromisso. Ele deve ter dito assim: “Olha, se eu não estiver
aqui, meu filho está aí, a escola está paga”. Ele nunca me explicou esses detalhes, eu diria que a
convivência se deu mais em função disso. Em 64, meu pai era uma das pessoas do partido - e isso
eu vim a conhecer depois - que defendiam a tese que o caminho que o partido estava trilhando não
era seguro e que havia o risco de um golpe militar, coisa que era descartada pela maioria do partido.
Obviamente ele achava que ia ter um golpe militar, era natural que ele pegasse seu filho e chegasse a
alguma solução para ele, a solução que ele encontrou foi pagar o colégio o ano todo, na pior das
hipóteses a mãe dele vem aqui e leva ele, o que finalmente aconteceu.
E.T._ Quando ele foi preso em 64, você ficou, diríamos assim, no escuro ?
C.A.M._ Exatamente.
E.T._ Como que você conduziu esse seu retorno para Salvador ?
C.A.M._ Antes de eu vir para a Bahia eu fui visitar meu pai na cadeia. Uma das poucas pessoas que
puderam visitá-lo. Ele me pediu para que contratasse um advogado, coisa que eu fiz com uma tia que
era muito amiga dele, tia Antônia, irmã de minha mãe, saindo da cadeia fomos até o escritório de
Sobral Pinto, que foi o advogado que ele escolheu, coisa que Sobral Pinto fez com muito brilho.
Sobral Pinto foi um advogado muito intuitivo, que deu grande destaque aquela defesa dele no
processo que se instaurou contra ele, o que permitiu que ele fosse solto. Em 64 havia uma regra: as
pessoas eram presas durante 50 dias, e depois disso permaneciam na cadeia quem tinha uma espécie
de culpa formada. Sobral Pinto questionou e conseguiu a libertação dele. Quando eu ia na cadeia, lá
mesmo ele sugeriu que eu fosse para a Bahia.
E.T._ Ele tinha sido baleado . . .
C.A.M._ Ele já tinha superado a fase mais crítica, estava magro, mas já estava bem.
E.T._ Onde ele estava preso ?
C.A.M._ No DOPS, no Rio.
E.T._ Quando você retorna para a Bahia vai ficar com sua mãe?
C.A.M._ Eu nunca me afastei de minha mãe. Quando eu fui para o Rio, foi com minha avó, e minha
mãe eventualmente ia, todas as férias eu voltava para a Bahia, nunca passei as férias longe de minha
mãe. E então, naturalmente fui morar com minha mãe, onde era minha casa.
E.T._ Você também teve contato com a família paterna?
C.A.M._ Sempre tive, desde pequeno, eu fui cuidado pelos meus tios, tio Betinho, tio Caetano,
conheci minha avó rapidamente, meus bisavós, estava velhinha.
E.T._ Quando você retornou sua avó Maria Rita já havia falecido.
C.A.M._ Ela morreu quando eu fui para o Rio.
248
E.T._ Quais as recordações que você tem do seu avô?
C.A.M._ Dele pessoalmente nenhuma. Quando o vi era muito pequenininho, em seguida, viajei para
o Rio e não tive muito contato. Quando voltei em 64 meus avós já eram mortos e posso dizer que
praticamente eu não os conhecia. Conheci pela memória, como eles eram descritos pelos meus tios.
Meu avô era uma grande personalidade. Ele era uma pessoa que praticamente fundou a Colônia
Italiana. Colônia Italiana na Bahia é muito importante para a cultura local. Na Colônia que se instalou
aqui na Bahia eles eram construtores, mestres de obra, tanto que se você for pegar os prédios
novos, neoclássicos daqui de Salvador, todos foram construídos pelos italianos, tipos de frisado.
Tem muitos prédios no centro da cidade, daquelas famílias mais tradicionais, as casas e prédios
dessa primeira metade do século, de 1900 a 1950, eram construídos pelos italianos, eles é que
sabiam fazer aquelas colunas, aqueles frisos. A outra parte da Colônia se dedicava a indústria e
manutenção. Meu avô foi quem introduziu aqui na Bahia o martelo de borracha, que não era
conhecido como um aparelho para fazer serviços de chaparia. Meu avô durante a Segunda Guerra
ensinou converter o motor a gasolina em gasogênio, que é uma substância que é produzida a partir
de frutas, cereais e vegetais, você coloca para ferventar e tem uma água que é um combustível de
primeira qualidade. Meu avô ensinava fazer o gasogênio, ensinava a converter o motor de gasolina
em motor de gasogênio. Principalmente nas fazendas, em áreas de agricultura, continuaram usando,
eu já vi dezenas de fazendas, sobretudo na região da Chapada da Diamantina, que tinha um motor
construído por meu avô, que não era gasolina, era gasogênio. E meu avô era a pessoa que
consertava navio aqui na Bahia, qualquer navio quebrado lá vinham aquelas grandes máquinas. Ele
era tido como um grande engenheiro daqui.
E.T._ Mecânico.
C.A.M._ É mecânico não transforma motor a gasolina em gasogênio. Mas ele não era engenheiro
formado, ele tinha conhecimento da tecnologia trazida da Itália, onde a tecnologia era bastante
conhecida e ele trouxe para cá. Ele era uma personalidade aqui em Salvador. Não era uma pessoa
qualquer.
E.T._ Com quem você teve mais contato aqui da família de seu pai?
C.A.M._ Com o Caetano que era o irmão caçula e afilhado, que tinha por meu pai uma grande
admiração e Humberto Marighella, que no currículo familiar era o mecânico da família. Tinha um
outro mecânico que dizem que era o mais talentoso de todos, mas esse morreu muito jovem.
E.T._ Desse contato que você teve com seus tios eles se referiam a memória para falar de seu avô.
Eles também se referiam a seu pai?
C.A.M._ Ah! Claro. Meu pai era o grande herói da família.
E.T._ O que eles diziam?
C.A.M._ No caso de Caetano meu pai era como se fosse um outro pai dele. Meu pai era o mais
velho e Caetano o mais novo, a família era muito numerosa, a diferença de idade era muito grande.
249
Caetano era uma pessoa extrovertida, brincalhona, muito conhecido na cidade e ele falava em todo
canto com muito orgulho e amor de meu pai.
E.T._ Ele dava exemplos, contava histórias de seu pai?
C.A.M._ Contava, o que ele sabia ele contava.
E.T._ Você se recorda de alguma?
C.A.M._ Tudo que eu sei do meu pai foi através de Caetano. Essas histórias todas, que ele era um
jovem que entrou para o Partido Comunista muito cedo, que ele fazia versos na escola, que ele
gostava muito de jogar futebol, que meu avô educava os filhos com uma educação muito rígida,
espartana. Conta a história que uma vez meu pai foi pedir uma chuteira, e meu avô: “Você quer uma
chuteira ou um buziguiim”? Ele pegou o buziguim, o sapato que se usava na escola, botou umas
travas e poderia também jogar bola. Uma outra história que meu avô pegou uma borboleta de
caminhão e botava os meninos todos amigos de meu pai para ficar dando volta na borboleta, depois
verificou-se que a borboleta na verdade era uma bomba d’água, cada vez que as crianças passavam
na borboleta bombeava água para o abastecimento da casa. Meu pai jogava bola, ele deve ter
percebido os dotes de meu pai e ele deu uma atenção muito grande em relação a isso. Meu pai tinha
muitos livros, meu avô comprava muitos livros para ele, conversava muito com ele, tinha uma visão
em relação a isso. Enquanto os outros eram mais farristas e brincalhões. Meu pai destoava dos
demais.
E.T._ E Caetano e Humberto lamentavam de alguma forma esse distanciamento pela vida política?
C.A.M._ Não. Minha família cresceu toda ela se sentindo meio comunista, todos eram muitos
solidários com meu pai.
E.T._ Chegaram a militar?
C.A.M._ Caetano foi motorista de meu pai no partido comunista. Ele foi da Petrobrás, foi dirigente
sindical, ao modo dele, ninguém era da organização como foi meu pai. Mas todo participavam,
contribuíam e não negavam sua simpatia pelo Partido Comunista.
E.T._ Você afirma no depoimento do E.J. que seu pai foi o âncora da sua vida. Eu queria que você
me explicasse o que significa esse âncora em sua vida?
C.A.M._ Meu pai me ensinou os valores morais que as crianças vão consolidando, eu aprendi pelos
diálogos com ele. Vocês tem filhos?
E.T._ Sim.
C.A.M._ Pois vocês sempre vão querer que seus filhos se ancorem num valor de vida que vocês
tenham, valores morais, culturais, sociais. Eu tive essa influência que foi a única em minha vida,
porque eu sempre fui filho do Marighella, quer dizer, eu sempre fui apresentado a essa minha
condição. Eu quando conheci meu pai eu espontaneamente decidi que devia ser do Partido
Comunista, que devia ter aqueles valores que ele cultivava como valores meus também.
E.T._ Então ele te influenciou politicamente?
250
C.A.M._ Meu pai nunca disse entre no Partido Comunista, saia do Partido Comunista. Ele já era
comunista desde pequeno, se desenvolvia na minha família uma idéia de que meu pai era um cara
perseguido, foragido, então os inimigos de meu pai eram meus inimigos. Consequentemente os
amigos de meu pai eram meus amigos. Foi um decorrência natural. Meu ingresso no partido não
decorria do fato de ser filho do Marighella. Sempre tive Marighella. Marighella era neto de meu avô,
era sobrinho de Caetano Marighella, era sobrinho de Humberto Marighella. A família Marighella é de
saída uma família comunista, nem todo mundo se integrou ao Partido Comunista, mas em princípio
essa solidariedade com a causa comunista já existia na parte de qualquer descendente de Augusto
Marighella.
E.T._ Ele nunca conversou com você sobre entrar no partido. Mas ele teve alguma conversa sobre
política com você ?
C.A.M._ Olhe, eu falo que ele sentava comigo para discutir marxismo, o que era a visão dele no
mundo. Isso era uma coisa natural, era na mesa. Eu li todos os livros de Engels que meu pai comprou
para mim, ou aquele “Origem da família e da Propriedade Privada”, li economia, li a “História da
Riqueza do Homem”, eu lia todos os livros de Jorge Amado, que eram livros que faziam uma
pregação socialista muito intensa. Era uma literatura muito orientada, mas meu pai nunca chegou para
mim e disse: “Você vai entrar no Partido Comunista amanhã”. Essas coisas foram acontecendo
naturalmente e eu quando voltei para a Bahia ingressei no Partido Comunista sem ninguém me pedir,
sem ninguém me dizer, que era fruto daquela visão que eu tinha, que foi uma experiência de vida,
mas que não foi só do meu pai, já da família, no contato com meus tios e foi se consolidando.
E.T._ Quando você retornou para a Bahia continuou a ter contato com ele?
C.A.M._ Não, nunca mais. Eu falava com meu pai por cartas, escrevo diversas vezes. Eu quero
dizer até que meu pai, pelo tipo de vida que levava, queria proteger a família, se afastar da família.
Numa única vez que meu pai viria a Bahia marcamos um encontro e ele não apareceu nesse
encontro, mas nos falávamos, trocamos muitas cartas nesse período.
E.T._ Qual o conteúdo dessas cartas?
C.A.M._ Por incrível que pareça, as principais coisas que eu me lembro dessas cartas eram
conselhos para que eu estudasse, para que prosseguisse, coisas muitos paternais.
E.T._ Depois de 64 você nunca mais o viu?
C.A.M._ Nunca mais. A última vez que vi meu pai foi no DOPS, na cadeia algumas vezes, porque
enquanto durou aquelas negociações para a contratação do Sobral Pinto estávamos juntos.
E.T._ Como foi sua relação com Clara Charf?
C.A.M._ Normal. Clara nunca teve filhos, de tal maneira que eu não tive nenhuma concorrência. Eu
fui muito bem recebido, ela é uma pessoa fantástica, ela me enchia de mesuras, de docinhos,
pãezinhos. Ela, como meu pai, era uma pessoa ocupadíssima. Eu não via Clara. Eu saía de manhã
para ir à escola, Clara saía também para a rua, eu voltava mais cedo que todo mundo e Clara não
251
havia chegado ainda. A gente se encontrava nos finais de semana, ela é judia, e tem muito
conhecimento daquela culinária judia, me lembro que eu adorava os pães que eles fazem, pães de
judeu, não tem nada, é só farinha de trigo, água e sal, era uma delícia, eu comia muito. Eu tive com
ela uma relação muito interessante, que foi evoluindo, ela é como se fosse uma segunda mãe para
mim. Uma relação muito carinhosa, eu gosto muitíssimo dela.
FITA II
E.T._ No seu depoimento ao Emiliano José você se refere a um encontro de seu pai com os
dominicanos no início de novembro, no Rio de janeiro. Não sei se você tem certeza, mas é uma
informação que hoje é contestada, até pelos próprios padres. Como você hoje revê isso?
C.A.M._ O que acontece é que nós somos os depositários de todas as informações, porque as
fontes somos nós, geralmente nos procuram, as pessoas não querem falar a qualquer um etc. Então,
não há nenhuma visão nossa, o que eu disse a Emiliano é o que nós acreditávamos - em relação a
esse episódio dos padres - porque o que é verdade é que há, e isso está muito evidenciado, mesmo
entre os historiadores de esquerda, duas versões pressupostas. E o pressuposto de uma versão, as
vezes alguém que tem uma versão, que os padres colaboraram, que eles devem ser até
responsabilizados, que chegam a uma conclusão, as vezes sem muito fundamento, de que Marighella
teria morrido dentro do carro com os padres, numa forma evidente de que ele foi atraído para o
carro pelo padre e que isso teria sido um ato de traição espontânea, obviamente, com a ressalva de
que eles estavam presos, enfim, era isso ou morrer, colaborar ou morrer. E a outra tese é que não,
que foi absolutamente acidental ter acontecido daquela maneira, tanto que meu pai poderia ser
emboscado em qualquer outro lugar, com ou sem padre, e tanto que é verdade que nem no carro
morreu. O Gorender defende uma tese, Frei Betto defendendo outra. O que é verdade é que nós, ao
contrário do que muita gente pensou, nós temos feito até então é adotado uma medida digníssima e
de grande responsabilidade política. Gorender tem uma discussão com Frei Betto há muito sobre
essa questão, e aí como nós nos colocamos o tempo todo da seguinte maneira, nós independente
que seja verdade ou mentira, não queremos com a nossa declaração apoiar uma queima, uma caça
aos padres que fundamentalmente delataram Marighella motivados por uma situação ensejou isso a
muita gente, muita gente mata, tortura, nem todo mundo tem a força física, moral, o nível de
convicção que um cara como Marighella, e é por isso que Marighella é herói, e por isso que o Frei
Betto não é herói, o Frei Yves. Agora você pegar pessoas que foram espancadas, fragilizadas,
estranguladas, transformar essas pessoas nos vilões dessa história é um absurdo. E o que é verdade,
o que Gorender passa o tempo todo defendendo é a sua versão como historiador, uma versão que
tem falhas como qualquer outra versão. Se você vai escrever alguma coisa em relação a isso
provavelmente vai ter muitas imprecisões, o Emiliano encontrou as dele, porque é muito difícil você
construir essa história letra por letra, como ela é. Muitas das coisas que Emiliano disse vão sendo
contestadas se ele for uma pessoa realmente...Ele vai reformular seu pensamento e rescrever em
edições posteriores no livro. Da mesma forma que estou aqui dando atenção a você, não lhe
conheço, mas o fato de você levantar verdades históricas de Marighella, vai contar antecipadamente
com toda facilidade de mim e de Clara, de tudo o que for possível poder fazer, o resultado do que
252
você vai fazer é responsabilidade sua, não é minha, as conclusões são suas, eu não vou assinar a sua
tese, nem o livro de Emiliano, nem nada. Posso apenas dizer o que eu penso, o que eu sei, tudo isso
para dizer o seguinte, nós nunca demos nenhuma versão definitiva sobre isso. O que a gente disse
num determinado momento é que nós não tínhamos condições de determinar aquelas circunstâncias
exatas, isso é polêmico, a nossa é de que os padres não agiram em colaboração espontânea com a
polícia, a verdade é que esses padres todos salvaram muitas vidas, eles foram muito úteis, fizeram um
grande trabalho, eram indiscriminadamente amigos de meu pai.. E não cabe a nós familiares
recriminá-los por não resistir a tão feroz e desumana tortura. Eu prefiro me concentrar na critica ao
Pinochet, no Fleury, nos militares, no que condenar os padres, não só os padres como todo mundo
que foi torturado. Clara não é a sucessora de Marighella, eu não sou o sucessor, não tenho a
inteligência de Marighella, não tenho que explicar o pensamento político dele, devo guardar coisas
que são da memória dele de uma forma institucional porque você não pode cuidar disso, ninguém
vai lhe entregar os retratos que estão lá no DOPS, isso só se entrega a família, é uma questão legal,
de direito, as coisas são assim. E nós nem fizemos a nossa defesa. A indenização que nós recebemos
foi repartida com a família, Clara não custeou despesas, ela é uma pessoa que vive disso, viaja, faz
palestras, não recebe um tostão por isso. Clara é uma pessoa que vive muito modestamente, o
dinheiro não deu para ela, sei lá. Enfim, um absurdo que ele tenha limitado a nossa participação a um
pleito indenizatório.Estou te dizendo isso porque nós nunca chancelamos nenhuma versão sobre isso,
acho até que o Emiliano hoje por conta do aprofundamento que ele fez, defende uma tese que é
contestada pelo Gorender. O Gorender quer que a única verdade que existe seja a dele. O modo
como que ele reage, desqualificando as pessoas, me parece que eles só quer que haja a verdade que
ele escreveu, como Emiliano é um cara muito sério, tem fontes, ele discorda, ele acha que não é
como o Gorender citou certos episódios.
Eu quero lhe dizer que talvez você pudesse ter versões mais bem fundamentadas, Gorender
e Emiliano são pessoas que estão já escrevendo sobre esse assunto com grande riqueza de detalhes,
com grande visão política e histórica sobre esse fato.
E.T._ Qual a posição que vocês tomam?
C.A.M._ Tomamos uma decisão de sair do meandro que era, a armadilha que era a acusação pura e
simples dos padres. Os fatos são verdadeiros, meu pai tinha um contato com os padres, eles eram
amigos, meu pai utilizava o mosteiro, meu pai ligou para lá antes, ele estava procurando os padres
porque ele havia recebido notícias que haviam prendido padres no Rio de Janeiro. Só que ele não
atinou, os que haviam sido presos já estavam em São Paulo, ele ligou para lá queria falar isso com os
padres, que eles tomassem cuidados. E os padres, atenderam o telefone e não efetivamente disseram
para ele, se dissessem teriam sido mortos ali na mesma hora. Daí eu chegar e dizer que meu pai só
morreu porque o padre denunciou vai uma distância grande. Havia inclusive outras maneiras, talvez,
de se defender que não foram utilizadas para essa situação. Não dá para atribuir exclusivamente essa
responsabilidade aos padres, e ao mesmo tempo entrar nesse discurso antidominicano que Gorender
tem, não tem sentido isso. Está bom, denunciou, delatou, isso retira dos padres esse carinho, essa
atuação que eles tiveram para com a luta contra a ditadura, pelo contrário, eles retiraram milhares,
centenas de pessoas do Brasil. Meu pai encontrou neles uma maneira de livrar da morte dezenas de
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companheiros, e eles colaboraram, sempre se arriscaram, não estavam nisso como inocentes úteis,
fizeram espontaneamente porque acreditavam nisso. Nós adotamos uma tática de não estender
excessivamente nesses dados que, eventualmente, davam conta a esse discurso antidominicano, que
era um discurso meramente sentimental. Quando você examina esse assunto de uma maneira mais
fria, você tem motivos para isentar os dominicanos de culpa naquilo que é intencional, subjetivo.
Objetivamente ele recebeu o telefonema, objetivamente ele não disse “olha Marighella tem um
policial aqui do meu lado”, objetivamente ele estava lá na hora que Marighella entrou na alameda e
foi fuzilado, e objetivamente um deles se suicidou, provavelmente com remorsos, que aliás deve
acometer a todos eles, a Frei Betto e a todos os outros. Tirando o objetivo eu não quero dar
nenhuma opinião subjetiva. Vamos agora reconstruir os fatos como eles foram efetivamente, porque
agora a família não tem nem mais que ficar como era antigamente porque agora os fatos estão muitos
expostos, qualquer pessoa pode chegar a conclusões cada vez mais próximas do que foi a verdade,
e nesse episódio foi bom que a família tivesse tomado essa providência. O governo edita uma lei que
diz quem foi morto pela ditadura e não botar o nome de Marighella no meio, a principal
personalidade, o inimigo número um da ditadura militar? Se isso aí decorreu que há uma indenização,
é obvio que a família tem direito, nós não chegamos lá “quero indenização”, e sim “queremos que
Marighella seja reconhecido”. Essa pecha é uma tentativa de desqualificar a família, não é nem uma
crítica a nossa conduta apenas porque a gente não quer, não continuaremos fazendo isso com
nenhum sentimento antidominicano desse episódio. Nós não queremos realmente que essa questão
sobre Marighella se transforme numa disputa fraticida entre nós mesmos, porque na verdade temos
um grande respeito pelo Gorender, pelo Emiliano, pelos padres, e qualquer historiador que proponha
a contar essa história. o Gorender é uma figura respeitável, mas eu não posso ficar sem me defender,
com todo respeito, com o carinho que eu tenho à pessoa dele.
E.T._ Mudando um pouco o nosso rumo eu queria que você me explicasse como ficou o seu nome,
Carlinhos Marighella, após a morte de seu pai, ficou reverenciado de forma positiva ou negativa?
C.A.M._ Já fui demitido de emprego porque era Marighella.
E.T._ Qual emprego?
C.A.M._ Eu comecei minha vida profissional trabalhando em indústria, trabalhei no pólo. Meu
primeiro emprego, eu fui demitido porque era Marighella.
E.T._ Isso exatamente quando?
C.A.M._ Em 69, exatamente no ano que meu pai morreu. Não havia nenhum motivo para me
demitir, na minha primeira experiência de emprego. Em muitos lugares a gente percebe que há
restrições. De modo geral o nome Marighella tem me trazido muitos benefícios, belas acolhidas. Em
muitos lugares que eu estive aqui e fora do Brasil o nome Marighella me faz alvo de carinho e de
atenção, mas não tenha dúvida que ainda é uma anátema, ainda para muitas pessoas há preconceitos
unânimes inspirados por esse pensamento direitista.
E.T._ Você poderia citar exemplos dessas restrições direitistas? Exemplos práticos.
254
C.A.M._ Cada vez é menor isso, cada vez é menor isso. Mas é muito comum eu chegar num lugar
assim e dizer “Marighella”, e o cara diz assim: “Ah! Se fosse Camarão, mas me vê aí, deixe eu
olhar”. Marighella é tratado com uma reverência, as vezes com uma certa simpatia, as vezes quer ver
melhor, quer apurar melhor. Eu tenho culpa no cartório pois eu fui do partidão durante muitos anos,
eu militei, fui do movimento sindical, mas era muito comum as pessoas me dizerem, até muito
inocentemente, “olha você precisa olhar, esse nome Marighella”, isso já aconteceu muitas vezes na
rua, abrindo conta em banco, tirando documento, já aconteceu muitas vezes.
E.T._ E na prisão?
C.A.M._ Eu fui preso porque era dirigente comunista aqui na Bahia.
E.T._ Por ele ser temido, pela sua resistência, houve alguma referência por você ser filho dele?
C.A.M._ Sabiam que eu era filho de Marighella, mas eu era do partido, eu não era da A.L.N, isso
não apareceu com força, nós apanhamos muito, fomos torturados, mas a circunstância da nossa
prisão aqui já foram bastantes atenuadas pelo fato de que nós não tínhamos a vida clandestina.
Então, no dia que eu fui preso tiveram que me prender em casa, e aí correram no sindicato, houve na
Bahia um grande movimento público de solidariedade que impedia a nossa eliminação física, embora
lá a gente percebesse que eles quisessem, havia esse interesse, não havia condições políticas para
uma eliminação física. Para você ter idéia no dia que eu fui removido da prisão para o quartel o
Bispo foi nos visitar lá, ele era um direitista, D. Avelar Brandão Vilela, minha avó que era muito
carola veio do Rio e obrigou ele a me visitar na cadeia. O Partido tinha uma base social em função
da tática que ele pregava, que repercutia muito esse tipo de intervenção, vide o caso de Manoel
Filho, vide o caso do Herzog. O fato de que o Partido tem uma trajetória de luta geral, isso criava
uma couraça que impedia uma repressão mais ostensiva.
E.T._ Eu quero saber se você, por ter o nome Marighella, sofreu algum tipo de perseguição?
C.A.M._ Eu fui espancado o mais que podia. Eles estavam motivados pelo fato de que eu era
comunista.
E.T._ Pela sua militância?
C.A.M._ Isso.
E.T._ Como que você avalia hoje a posição que seu pai teve pela luta armada?
C.A.M._ Eu já amadureci muito esse assunto. Eu acho que o grande problema da esquerda, de um
modo geral, foi não ter conseguido encontrar um caminho comum de luta contra a ditadura e luta
pelo socialismo nas condições do Brasil. Eu posso lhe assegurar que a questão da luta armada era
plenamente justificável em diversos momentos, digamos assim. Na verdade, aquele drama que se
tinha sobre os caminhos que se tinham para a revolução no Brasil era uma discussão falsa, porque
partia de um pressuposto de um caminho único. Na verdade, tanto o Partido Comunista com sua
tese de luta legal, que permitiu inclusive a ocupação dos sindicatos, puderam ter na vida nacional,
pelo menos naquele momento, em oposição a pregação do Partido Comunista, em que se devia se
organizar sindicatos, partidos, quer dizer, já que o MDB existia o partido achava que devia ser uma
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trincheira de luta, já que existiam os sindicatos o partido achava que devia ser uma trincheira de luta.
Essas instituições foram preservadas, foram salvas, existiam, porque o outro lado, a guerrilha, a luta
armada pregava que não, para que esse negócio de sindicato, tudo isso existia apenas para na
verdade dar validade aos militares, segundo essa tese os militares apareciam no cenário internacional
como um governo democrático porque eles tinham instituições que foram preservadas como os
sindicatos e os partidos. Graças a isso essas organizações sobreviveram e passaram a ter papel
importante que pode até progredir. Eu acredito que aquela tese dos sindicatos, que se houvesse
consolidado nós teríamos uma política sindical como você tem nos E.U.A, onde o sindicato não tem
nenhum papel, nenhuma presença na memória política e cultural dos E.U.A, como uma organização
que tinha alguma característica política. Para fazer na verdade birôs de promoção de interesse
sindicais, operários, trabalhistas. Agora, indiscutivelmente, a luta armada também expôs e teve um
papel muito importante até na debilitação da ditadura. Naquela época se discutia muito
apaixonadamente esses caminhos excludentes, ou era a luta armada ou era a reforma _ como se dizia
_ ou era o movimento reformista, ou era o movimento foquista e vanguardista. Se a gente fosse
analisar pelos resultados talvez a luta não armada tenha deixado resultados mais duradouros pois foi
ela ao final que triunfou sobre a idéia de constituinte, teve uma permanência maior no sentido de
oposição ao regime militar. O regime militar triunfou em relação a luta armada mas não conseguiu
triunfar diante da luta legal, civil, essa permaneceu, cresceu com a anistia, com a constituinte ela
chegou até o desfecho de hoje, mas eu hoje, sinceramente, vejo muitos méritos à luta armada, eu
acho que o que faltou foram lideranças serenas para encontrarem uma solução que combinasse essas
duas formas de luta e talvez esse tipo de ação tivesse nos levado a uma situação mais correta, mais
permanente, porque a verdade é que a gente ganhou mais não levou, a luta socialista no Brasil, a luta
contra a ditadura, terminou desembocando numa eleição indireta, desembocando numa constituinte
feita pela metade e hoje em dia as pessoas se indagam muito se tudo aquilo transformou o bem estar
e progresso para a população de um modo geral.
E.T._ Durante a inserção de seu pai na luta armada você teve algum contato com ele?
C.A.M._ Não.
E.T._ Ele já estava completamente envolvido?
C.A.M._ Meu pai, no caso dele, era perfeitamente previsível uma solução dessa. Meu pai foi
estudante perseguido, foi para São Paulo organizou o Partido Comunista, foi preso. Passou nove
anos em diversas cadeias, inclusive em Fernando de Noronha. Saí, se elege deputado, pratica a mais
aberta luta legal, sendo inclusive um tribuno fantástico, cassaram o registro do PCB, cassaram o
mandato dele, vai para a clandestinidade com governos constituídos, participa da eleição de
Juscelino, de Jango, quando tudo estava maduro, naquela época, aquela esquerda ganharia o poder
pela via eleitoral, fatalmente. Quando tudo indica para isso vem a direita dá um golpe, prende ele,
bate, prende. Ele não tinha outra alternativa, a experiência de vida dele forçosamente leva aquele
pensamento radical. A violência não fora pregada por ele, foi aqui exercida contra ele o tempo todo,
em que ele tentou uma ação democrática, em que ele tinha uma inspiração, um desejo, um projeto
para o país. Meu pai não optou pela luta armada de forma impensada. Agora em relação a mim ele
nunca fez um proselitismo de tentar me convencer a escolher esse caminho. Aliás, eu acho que se ele
pudesse amadurecer um pouco mais tudo que ele acumulou com a experiência, tudo que ele
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acumulou com uma liderança querida e respeitada, com trânsito em todas as frentes, eu acho que ele
poderia ser uma pessoa capaz de estar numa posição exata de formular um projeto capaz de reunir
mais gente. A esquerda era muito fracionada, mesmo aqueles que optaram pela ação armada haviam
muitas divisões, muito fracionamento, o que não ajudava nem um pouco.
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE JOÃO FALCÃO
Este depoimento foi realizado em Salvador, no dia 9 de novembro de 1998, na residência de
João Falcão, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro.
JOÃO FALCÃO_ Quando houve o período da legalidade ele, assim que foi solto, veio à Bahia
com aquela auréola de líder, que deixou aqui, de estudante excepcional. Então, ele voltou a Bahia e
foi recebido como um jovem extraordinário, mas isso na verdade circunscrito ao Partido, o povo não
sabia nada disso. Mas com a campanha para deputado em 45 ele teve um contato com o povo, ele
era um bom orador, tinha um discurso muito bonito, muito popular. E foi tanto assim que ele teve
mais votos do que Prestes. Prestes era candidato a Deputado Federal, mas foi candidato, a
legislação permitia, ele foi candidato em vários estados para reforçar. E aqui na Bahia ele foi o
candidato preferencial, mas o Marighella teve mais votos que ele, foi o mais votado.
ET_ Porque o senhor saiu do Partido?
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JF_ Eu saí por convicção. Depois do informe do Kruschev eu vi que era uma merda. Eu estava
equivocado, estava enganado, o próprio Kruschev denunciou o Stálin como um monstro, um
criminoso, com dados, eu li o informe dele quando foi publicado no Brasil, saiu no Estado de São
Paulo. Li o informe e vi que eu estava num partido que não era nada do que eu pensava, era uma
ditadura. Eu saí com muita convicção e fui respeitado. Os que continuaram são verdadeiros
energúmenos, são pessoas sectárias demais, a deserção do partido naquela época foi muito grande,
principalmente os intelectuais, o Presidente da Academia Brasileira de Letras da União Soviética,
esqueci o nome dele, suicidou-se. Então eu fiquei muito a vontade. Se alguém dizia: “Ah! Você traiu,
abandonou o partido, se aburguesou!” Eu dizia: “Nada disso, eu era burguês e agüentei o Partido
durante anos, tudo que eu ganhava era para o Partido”. Eu não comprava nem sapato nem roupa,
vivia como um mendigo, mas todo dinheiro eu dava para o Partido. Eu não fiz nenhuma apologia
disso, nem acentuei, eu viajava pelo Partido ao exterior com os companheiros e custeava tudo isso,
Arruda. . . Então, eu saí por isso. Nesse livro estão as memórias de vinte anos dedicado ao partido,
nem em biblioteca você encontra, na daqui você não encontra, eu já dei três livros, foram todos
roubados. Semana passada eu estava pesquisando na biblioteca e precisava confirmar um fato nesse
livro, fui consultar e não existia mais. Em três vezes eu dei seis livros, procurei a diretora e disse.
ET_ A gente vê a referência de seu livro em algumas obras e quer conhecer, mas infelizmente...
JF_ Outro dia mesmo saiu na televisão um documentário sobre Carlos Lacerda, que diz que ele
colaborou numa revista comunista Seiva, dá alguns dados que só poderiam sair desse livro, só eu sei,
porque todo mundo já morreu. E a Globo, uma ocasião, mandou me pedir, eu mandei o livro para lá
para o depoimento de pesquisa.
Mas voltando ao Marighella. Existem algumas referências a atuação dele nesse livro. Tem
muitas coisas que eu consulto nesse livro para posicionar, questão de datas, a gente já não lembra
mais. Mas o Marighella era uma figura fascinante. Inclusive, eu era diretor do jornal o Momento aqui,
o jornal foi fundado antes da legalidade, que foi em maio, ele foi fundado em março. Foram fundados
jornais em vários estados, mas todos eles eram altamente deficitários para pagar o pessoal. Então, o
Comitê Central fazendo análise da imprensa popular (INTERRUPÇÃO)... Então, “O Momento” era
o único jornal para o qual o partido não havia mandado nenhum recurso, pagava em dia seus
funcionários e não devia, não tinha dívidas, estava equilibrado. Ele disse: “Quem é que dirige esses
jornais? Manda buscar o Falcão para cá”, nós não temos experiência nenhuma de imprensa, o único
jornal que havia dado uma experiência positiva é esse, manda buscar o Falcão para cá”.
E.T._ Para cá onde?
JF_ Para o Rio de Janeiro, tinha o Comitê Central e ele mandava me buscar. Eu fiquei lá adido a
Comissão fazendo um estudo sobre a imprensa comunista, um especial sobre a Tribuna Popular,
esse estudo foi concluído e entregue para o Prestes dois dias depois do Partido ser fechado e por
sorte minha ainda conseguiram tirar da escrivaninha dele, onde estava guardado, esse relatório
porque senão eu estaria preso e lá eu não era conhecido, eu era daqui da Bahia e ninguém me
conhecia lá, polícia muito menos. Por isso mesmo o Prestes foi entregue ao fechamento do Partido,
seguiu para o aparelho dele, em maio de 47 no mesmo dia que o Partido era fechado.
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E.T._ Foi aí que ele caiu na clandestinidade?
JF_ Ninguém sabe disso. Todos os livros falam da clandestinidade dele depois da cassação dos
mandatos dos deputados comunistas, em 48. Mas ele ficou na clandestinidade, na verdade, desde
maio de 47 e eu tenho um depoimento completo sobre esse período inclusive conversando com o
próprio Prestes. Tem muitos detalhes inéditos sobre o partido nesse livro do Giocondo. Tem uma
passagem séria do livro do Giocondo de uma conversa do Comitê Central com o Marighella, antes
que ele rompesse, foi uma conversa de dez horas, dele e Giocondo. Até o último dia o Giocondo
tentou evitar que o Marighella fosse para a luta armada. um fato tem que ser registrado, ele era
amigo de um milionário fraternal aqui na Bahia que era colega dele, chamava-se Lô Costa Pinto, um
engenheiro, e para quem o Lô mandava ajuda financeira.
ET_ Devem ter se conhecido na faculdade?
JF_ Estudaram juntos. O Lô era maluco por ele. A viúva dele atesta isso.
ET_ E Marighella, qual era o temperamento dele?
JF_ Aqui tem um episódio dele comigo. Quando eu cheguei atrasado num encontro, eu era o chofer
dele no ponto, ele era um pouco grosseiro, mal educado, filho de operário não podia ser um
gentleman. As vezes ele perdia o sentido da coisa, o senso. Eu disse para ele: “Eu sou um
companheiro igual a você, sou um homem formado e dedico minha vida toda ao Partido como
você”. E aí ele ficou calado, depois, quando ele saiu do carro, me pediu desculpas (risos)
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE GERALDO RODRIGUES DOS SANTOS
Este depoimento foi realizado na cidade do Rio de Janeiro, no dia 12 de novembro de 1998,
com Geraldo Rodrigues dos Santos, militante do Partido Comunista Brasileiro e hoje no Partido
Popular Progressista.
Edson Teixeira_ Eu gostaria que você me falasse de Marighella, de quando você o conheceu e
como foi esse seu contato com ele, mesmo que você tenha que tocar, em alguns aspectos, no livro
organizado pelo Lincoln.
Geraldo_ Marighella, como outros dirigentes do Partido, eu conheci em 45. Você sabe, daquela
efervescência política toda em 45, a saída do Prestes da cadeia, os grandes comícios que se
realizavam pela Constituinte e pela legalidade do Partido. Então, os quadros do Partido se
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projetaram na opinião pública. Entre eles o Carlos Marighella. Tinham grandes comícios em São
Januário, Anhangabaú e outros locais. Inclusive passou a ser um fato político novo na sociedade
brasileira e com a legalidade isso era um acontecimento na sociedade daquela época. Aí a gente
estava muito em função do Prestes, que era muito exaltado, muito projetado e também de todas as
lideranças comunistas. Assisti _ eu não era militante, morava em Santos naquela época _ mas,
acompanhava alguns comícios, algumas palestras de dirigentes comunistas que iam a Santos. Embora
eu não fosse comunista eu acompanhava. E aí fiquei conhecendo o Marighella. Agora ter contato
com ele mesmo foi em 1950, por aí, em São Paulo, depois que eu fui demitido da Companhia das
Docas de Santos, que era uma empresa que explorava o porto. Eu aí já era do Partido, já era
militante do Partido. Entrei no Partido em 45, maio de 45. Só fui conhecer o Marighella,
pessoalmente, em 50. Como eu era do movimento sindical, em Santos eu militava nas docas e
também tive participação ativa no Partido, de 45 até 50, quando fui demitido. E o Partido, quando
eu fui demitido, resolveu me procurar. A direção estadual, da qual o Marighella fazia parte, resolveu
me procurar em Santos, sugerindo a minha vinda para São Paulo para ser revolucionário profissional.
Eu a princípio não entendia bem essa perspectiva de ser revolucionário. Sempre trabalhei, sempre
tinha trabalhado.
Vim à São Paulo para uma reunião com o Marighella e o Ramiro que foi um dirigente
ferroviário, veio me buscar em Santos, era um dirigente ferroviário e era responsável pelo trabalho
sindical na época. Foi aí que eu conheci Marighella pessoalmente. Ele me expôs a situação sindical
com esse Ramiro Lucres, me expuseram a situação sindical e colocaram para mim se eu aceitava ou
não fazer parte do que na época se chamava Sessão Sindical do Comitê Estadual. Eu seria um dos
integrantes de uma espécie de Departamento Sindical do Partido, chamava-se Sessão Sindical do
Comitê Central Estadual do Partido de São Paulo. Eu aceitei a tarefa e já gostei do Marighella ali, da
maneira dele conversar, dele me tratar, a gente ficava a vontade com ele. Eu senti que ia me dar bem
porque eu estava à vontade com ele para conversar. Os outros dirigente do Partido não tinha essa
comunicação, você não se sentia à vontade, eu pelo menos. Não sei se era pelo fato do nível
cultural, enfim, não sei bem qual era a razão. Com o Marighella a conversa era fácil, a conversa, ele
falando, brincando e tal. Eu já fiquei me simpatizando com ele. Tem outros dirigentes como o
Diógenes Arruda, ele era considerado um cara autoritário do Partido, dava bronca, embora ele
nunca tivesse tido nenhuma dessas atitudes comigo, também não sei porque, mas nunca teve. Eu não
tinha a mesma simpatia, o mesmo tipo de relacionamento que eu vim ter pelo Marighella. Mais tarde,
eu só vim a conhecer um outro companheiro, mais ou menos do mesmo porte assim do Marighella,
no trato com as pessoas, que era o Giocondo Dias. Foram os únicos que eu conheci no Partido e
que me deram vontade de lutar mais ainda, foi importante ter conhecido esses dois (risos). A maneira
que eles me tratavam, sem arrogância, sem discriminação, aquilo ficou como um amigo, um irmão,
uma coisa dessa, eu até me sentia mais revoltado. Depois que eu conheci esses dois companheiros,
me convenci da necessidade da luta. Até então, eu já tinha um certo convencimento, mas ele se
intensificou.
ET_ Você, antes de conhecê-los, não tinha uma boa relação com os comunistas?
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GR_ Sempre tive uma boa relação com todo mundo. O que eu quero te dizer é que a maioria dos
dirigentes do Partido só tratava das questões do Partido, não saía com ouras conversas, de
brincadeiras, de sacanagem, de piadas. Por Exemplo: eu militei na Executiva do Partido mais de dez
anos com o Prestes, nunca tive um diálogo com o Prestes fora do contexto. Prestes, o homem que
dá a última palavra, fecha a reunião, abre e acabou. O Prestes não era comunicativo, basta te dizer
que ele não admitia militante do Partido não chamá-lo de senhor. Para falar com o Prestes o cara
precisava estar todo perfilado. Não sei se é a razão de muitos deles terem sido militar,
diferentemente de outros dirigentes. Prestes era assim mesmo, não sei se por cópia, uma boa parte
de dirigentes do Partido, tem isso também, a imitação, o cara pensava que ganharia autoridade.
ET_ Qual era o comportamento de Marighella relacionado a descontração. Eu vou ler uma parte de
seu livro, um depoimento da Ângela Sampaio, ela diz assim: conheci o Geraldo, em 1964, numa casa
da Penha, para onde tínhamos nos mudado há pouco tempo . Aquela casa era para dar cobertura a
Comissão Executiva do Comitê Central. Três pessoas ali, sobressaiam naquele grupo de pessoas
mais velhas, o Geraldo, Jaime Miranda e o Marighella. Eram os brincalhões, sempre arrumavam um
jeito para não ficar naquela coisa da clandestinidade. Então, como que eram essas brincadeiras, que
tipo de descontração rolava entre vocês?
GR_ Vou te dar um exemplo: O Marighella era um cara que gostava de futebol, acompanhava time
de futebol e nós brincávamos muito, principalmente eu e ele, principalmente depois do golpe que nós
ficamos mais juntos, e às vezes a reunião levava dois, três dias. A gente tinha uma convivência maior.
Então, tem uma brincadeira que ele fazia muito. Ele dizia: _ “ Olha! O melhor negócio é a gente
montar um terreiro de macumba, você vai ser o babalaô (risos) e nós vamos faturar”. Quer dizer,
vamos deixar esse troço aí que não leva a nada (risos). Era brincadeira desse tipo, entendeu?
Conversa desse tipo assim, muito gostosa, ainda mais numa época daquela, sempre tenso, ameaçado
de morrer a qualquer momento, junto com ele o tempo passava que era uma beleza.
Além disso, ele era um cara _ eu já disse isso no livro _ pela primeira vez eu vi um dirigente
do Partido chegar, no fim do ano, e perguntar quantos filhos eu tinha. Eu tinha um casal de filho. E
ele: _ “Eu estou com uma quantidade de brinquedos aqui, escolhe dois brinquedos, leva uma boneca
para sua filha”. O normal era isso não ocorrer nos dirigentes do Partido. Também em véspera de
festa, de carnaval, pela nossa teoria materialista, havia uma compreensão de que não se dava bola
para essa questão de natal, uma brutalidade. Ele não! Ele não só deu pra eu levar para minha filha,
mas também companheiros que estavam fora, em tarefas fora, ele pediu para levar presentes para os
filhos desses companheiros, na casa deles, isso lá em São Paulo.
ET_ Ele sofreu alguma repreensão por causa desse ato?
GR_ Não, porque ninguém tinha o topete para poder responder o Marighella.
ET_ Por que isso?
GR_ Porque o Marighella era um nome do Partido. Um quadro que veio para o movimento muito
cedo, muito jovem, ainda estudante, foi preso, torturado, se portou bem, manteve a moral. Quando
as qualidades de um bom dirigente naquela época era manter um bom comportamento na polícia, nas
261
mãos da repressão. E ele é uns do que teve, antes de 64, lá por volta de 40, 35, por aí. E ele se
comportou muito bem e ainda escreveu um livro logo depois do golpe militar, explicando como o
cidadão deveria se comportar diante da repressão, se fosse preso. Eu não tenho esse livro por uma
razão fácil de lhe dar, com o golpe eu perdi tudo. Eu acho que minha mulher fez bem, tocou fogo em
tudo. Tudo que eu tinha em casa, eu não estava em casa, mas, acho que ela fez bem. O medo
ajudou, o medo também ajuda, porque aconteceu o mesmo com o Prestes e a mulher dele não fez o
que ela havia feito e aconteceu o episódio das cadernetas do Prestes (risos). Dois meses depois do
golpe apareceram as cadernetas do Prestes, e que eu peguei dez anos de cadeia, fui um dos mais
condenados, embora hierarquicamente tinha gente mais qualificada do que eu (risos) na caderneta
que pegaram menos tempo de prisão, muitos nem foram presos. Eu fui condenado a revelia. Não
compareci ao julgamento, mas a condenação foi de dez anos, se eu fosse preso ia tirar dez anos. O
julgamento foi feito pelo Supremo Tribunal Militar, em São Paulo, se te interessar eu posso mandar
pra você.
ET_ Como o Marighella se comportava nas reuniões?
GR_ Bom. Antes do golpe militar ele era um companheiro (emocionado)... Ouvir ele sempre ouvia
muito. Marighella era homem de ouvir, pegar as opiniões, naturalmente, as que ele considerava justo.
Defendia a linha política do Partido, principalmente, a linha defendida a partir de 1950, depois do
XX Congresso, uma declaração que colocava o Partido mais dentro da realidade brasileira. O
próprio Marighella foi um dos entusiastas para a coleta de assinaturas pela mudança de nome do
Partido. O Partido tinha o nome de Partido Comunista do Brasil, que é esse que está aí, PC do B.
Aí o Marighella deu uma contribuição muito grande. Nós concluímos que Partido Comunista do
Brasil dava uma idéia de pertencer a uma sessão estrangeira, a um departamento estrangeiro, que era
a COMINTERN. Como nós estávamos numa época de outra linha política, havia a necessidade da
legislatura, de que se desse a idéia de que nós éramos, realmente, brasileiros, que era um Partido do
país. Então, daí Partido Comunista Brasileiro. Esse foi um dos argumentos que levou o Partido ao
racha. Ele era um dos que comandou a campanha de assinatura para que o Partido pudesse se
registrar com esse nome: Partido Comunista Brasileiro. E os outros ficaram com a outra legenda que
é PC do B, Partido Comunista do Brasil., que está aí até hoje, que está com o Amazonas, essa
turma aí. Um dos articuladores dessa mudança foi o Marighella.
ET_ Você presenciou, em algum momento, ele ter um procedimento grosseiro?
GR_ Não. O Marighella ele era engraçado. Agora, depois do golpe eu acho que ele pegou uma
outra posição política. Nós começamos a defender, que da maneira que o golpe foi dado o Partido
ficou surpreendido, não só Partido, mas o Partido foi surpreendido. Nós não estávamos preparados
para o golpe, nem direção nem ninguém. Nós estávamos com a idéia de que se houvesse uma
tentativa de golpe, haveria uma revolução no país com a participação do Jango, do Brizola, uma
parte das forças armadas nos apoiariam, apoiariam o Jango. Essa era a idéia que predominava na
nossa cabeça. Veio o golpe e isso não ocorreu, os setores que compunham uma frente política,
compreendida também por nós, alguns aliados que faziam parte das forças armadas, militares que
eram progressistas, que estavam integrados nas forças armadas, não tiveram condições de fazer
262
nada, como o Brigadeiro Teixeira, por exemplo, que comandava uma zona aérea aqui no Estado do
Rio. Então, nós fomos pegos de surpresa. Isso aí influi muito, a meu ver, no Marighella . Influiu em
muitas pessoas, mas no Marighella eu nem esperava. Ele era um homem muito tranqüilo e muito
realista, com muita compreensão da realidade. De repente, ele muda esse comportamento e passa a
defender a luta armada, numa situação onde nós não tínhamos condições de fazer aquilo ali, porque
a correlação de forças não nos era favorável. Nós não tínhamos nos preparado para isso e muito
menos preparado o povo para a luta armada. Então, nós tínhamos que nos resguardar, como
fizemos, tentar nos resguardar para não sofrer mais prejuízo, mais baixas, prisões e assassinatos, etc.
e ao mesmo tempo procurar fazer com que acumulasse as condições políticas para que, com a
participação do povo e de outras forças aliadas, pudéssemos virar o quadro político. À medida que
houvesse intervenção do povo no processo político, o que demorou muito tempo, levou uns seis
meses para que houvesse as primeiras ações de massa com estudantes, aquele negócio lá do
Calabouço, começaram a surgir greves em São Paulo, movimentos no campo. As forças políticas
começaram a se abrir, mas, o Marighella já tinha outros compromissos nessa altura do campeonato.
Ele esteve em Cuba, na OLAS, e lá ele assumiu compromisso com os cubanos de fazer a revolução
aqui no Brasil.
ET_ Ele chegou a ter contato direto com você nessa época?
GR_ Chegou.
ET_ O que ele dizia?
GR_ Ele dizia que não ficaria atuando nos moldes convencionais do Partido e que ele estava
querendo dar uma virada no panorama político brasileiro e que isso só com a luta armada. Ele estava
convencido que era por aí para fazer a revolução. Eu até fui na reunião, que ele se desligou do
Comitê Central do Partido, representado a direção oficial. Eu e mais dois companheiros, um chama-
se Teodoro Melo, que está vivo ainda e o outro Antônio Chamorro, que já morreu. Essa reunião foi
em São Paulo. Nessa reunião, todos os delegados estavam ganhos por ele. As intervenções eram só
numa linha, nos chamavam de oportunistas, que não queríamos nada e por aí a fora. Ele fez contato
comigo, chorou, nós nos abraçamos, nos despedimos. Eu falei contra a opinião dele na reunião, o
que foi chato pra burro, mostrando que aquele não era o caminho, que o caminho tinha que ser de
acumulação de forças, um caminho que as massas participassem, isoladamente nós não íamos
conseguir nada, nós não tínhamos nos preparado, não tínhamos condições para um troço dessa
envergadura. E, infelizmente, a vida provou que nós estávamos certos.
ET_ Qual foi a reação que ele teve depois das suas palavras?
GR_ Ele disse: _ “À ficar na política que nós estávamos _ foi a última palavra dele comigo _ ele
preferia vender gravata pelo país a fora” (risos) . Nunca me esqueço disso. Então, terminou a
reunião, nos abraçamos, ele chorou, eu também chorei um pouco. Eu falei que um dia nós nos
encontraríamos, mas, infelizmente nós não nos encontramos mais.
ET_ No seu livro, você menciona rapidamente, que era comum ele estar presente nos bares, com os
amigos, conversando com as pessoas. Você tem um exemplo concreto disso.
263
GR_ Eu não gosto de falar muito do Marighella porque me dá uma emoção, mas tudo bem. O
Marighella, uma vez, quando a Itália foi campeã, foi depois do golpe militar. Eu sei que eu estava
com ele numa casa lá em Botafogo, já tinha se realizado o golpe militar. Então, nós estávamos
assistindo um jogo, se não me engano era Brasil e Itália, não me lembro o ano, era uma decisão do
campeonato mundial. Ele acompanhava o jogo todinho, falava sobre o jogo e estava defendendo a
Itália (risos), porque a idéia era a seguinte, se o Brasil ganhasse ia reforçar o apoio popular a
ditadura, eu não entendia bem isso. Eu dizia: _ Bom é o Brasil ganhar Marighella.
Ele dizia: _ “Não. Se o Brasil ganhar vai reforçar essa merda aí, vão ficar todos eufóricos”.
Não foi com a seleção do João Saldanha, eu vou ter que ver a data. Não me lembro agora, mas vou
ver pra você.
Mas, então, ele era um homem que não era preso a questão política, porque tinha outros
companheiros do Partido que na conversa com você só conversava sobre política, vinte quatro horas
por dia. Ele gostava muito de fazer poesia, às vezes a gente estava numa reunião durante o dia, a
discussão estava rolando e parecia que ele estava desligado. De repente ele pegava um papel e fazia
a intervenção dele naquela poesia que havia feito, sobre o assunto político que estava se tratando.
Ele era um quadro especial.
ET_ Ele gostava de música?
GR_ Gostava!
ET_ Como era essa relação dele com a música?
GR_ Eu sei que ele gostava, citava nomes de artistas. Ele era um cara diferente dos outros dirigentes
do Partido, mais ligado ao que acontece na vida, ao que acontece no real: o povo é uma coisa e a
doutrina é outra. Por isso mesmo é que eu admiro porque ele entrar nessa linha da luta armada, era
um negócio que o povo não estava engajado.
ET_ O Marighella que você conheceu em 50 guarda uma diferença muito grande do Marighella em
64?
GR_ Ah! Uma diferença muito grande, sem dúvida. Embora as qualidades dele não tivessem se
alterado em nada, o que mudou foi a compreensão política do Brasil real naquele momento. Aí nós
tivemos as nossas divergências políticas aprofundadas, mas sem nenhuma alteração pessoal. A nossa
despedida eu nunca me esqueço.
ET_ Sobre o XX Congresso do Partido Comunista da URSS, a relação com os crimes de Stálin.
Você teve contato com o Marighella nesse período?
GR_ A posição dele não foi uma posição que se esperava, como muitos tomaram na época. Houve
um grupo de companheiros que até saíram do Partido. O Marighella não, ele compreendeu aquilo e
aceitou as mudanças. Foi exatamente aí que surgiu a idéia de se fazer mudança do nome. Ele
comandou, pode-se dizer assim, pela Executiva, toda a atividade do Partido para a coleta de
assinatura para efetivar a mudança do nome. Ele teve uma participação fundamental, isso já
compreendendo a nova situação e condenava o estilo do Stálin, quer dizer, o comportamento do
Stálin era exatamente o contrário do que poderia parecer.
264
ET_ Ele chega a comentar algo relacionado as prisões que ele passou?
GR_ Não. Comigo ele nunca falou sobre isso não. Eu sabia do comportamento dele na prisão mais
pelo relato de outras pessoas. Ele mesmo se vangloriando não, ao contrário, tinha um
comportamento muito modesto.
ET_ Uma curiosidade que eu tenho, quando a irmã dele me deu uma entrevista, ela disse que
Marighella não bebia e não fumava.
GR_ Fumar eu não nunca vi ele fumar. Agora beber, também não digo que ele bebia, eu não via
isso. Agora eu fui a uma celebridade com ele, numa ocasião, foi na casa de um embaixador
soviético, aqui, se não me engano foi na casa dos Oscar Niemeyer, o problema é a data. Vários
representantes do Partido estavam lá, e ali eu fiquei admirado porque ele tomou um bocado de
uísque lá (risos). Nessa solenidade que houve lá, não era corriqueiro, eu nunca tinha visto ele chegar
num bar assim, vamos beber, como eu faço, ‘me dá um chope aí!’. Isso eu nunca vi ele fazer. Mas,
eu vi ele tomar muito uísque, fiquei até admirado. Eu até pensei: Marighella toma um uísquizinho
razoável, viu! (risos). Mas isso não caracteriza um ato comum. Embora eu ache que o cara que beba
não seja nenhum cristo, eu não acho. Não tenho essa ojeriza toda (risos). Mas, eu fiquei admirado
de ele ter tomado o uísque.
ET_ Ele ficou inteiro?
GR_ Ficou! Ficou inteiro. Por isso que eu admirei ainda mais. Eu não sou bebedor de uísque, minha
bebida não é uísque. Mas ele não, ele só gostava de um uísque. Pelo menos naquela ocasião.
ET_ Ele gostava de contar piadas, não é?
GR_ Não era bem assim contar piadas, de vez em quando ele citava esses troços, como eu te falei,
o negócio do babalaô. Uma coisa mais na gozação, na descontração (risos). Não baixava assim o
vício da piada de papagaio, isso aí não. Dessas brincadeiras dele, todo mundo participava e dava
risada. Ele era um cara bem humorado. Nunca vi ele mal humorado. Ninguém tem a perfeição de
ficar a vida inteira dando risadas, fazendo graça. Mas eu nunca vi ele com ar pesado, de mal com o
mundo. O pessoal da intelectualidade aqui do Rio gostava muito dele, porque ele sabia tratar os
intelectuais, coisas que muitos dirigentes não sabiam.
ET_ Como você ficou sabendo da morte dele?
GR_ Por jornais e rádio. Eu fiquei chocado. Interromperam até um jogo do meu time para fazer o
negócio. Eu torço pelo Corinthians. Naquele tempo havia uma rivalidade muito maior que há hoje,
por causa do Pelé. Eu fiquei sabendo no dia.
ET_ A Clara disse que ele era muito dedicado a exercícios físicos. Você presenciou algo a esse
respeito?
265
GR_ Não. Ele era muito forte, devia ter mesmo alguma preocupação com exercício. Mas, ele era um
cara cassado, ela deve ter dito para você, ele mesmo aplicava injeção nele, cortava o cabelo dele,
um negócio gozado, raspava a cabeça. Ele tinha umas coisas meio fora do contexto aí (risos).
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE CARLOS FAYAL
Esse depoimento foi realizado na cidade do Rio de Janeiro, no dia 2 de dezembro de 1998,
com Carlos Fayal, ex-militante da Ação Libertadora Nacional.
Carlos Fayal_ Então, eu estava contando a você, um dos aspectos mais interessantes a respeito do
Marighella é como ele juntou em torno dele uma série de pessoas independentes politicamente.
Achava-se na época o seguinte: o Marighella comunista, dirigente comunista, vindo de um racha
comunista, então, criou a ALN do racha comunista, uma organização comunista, o que não era
verdade. Por exemplo, eu, uma pessoa de classe média, classe média alta, numa situação boa, já
estava na universidade, faculdade de odontologia. Antes fiz lá no Colégio Mallet Soares, o curso
colegial e científico. Tínhamos um grupo forte lá dentro do colégio. Era um grupo que lançou o jornal
Verdade, fez uma reportagem lá na Faculdade Nacional de Medicina (hoje UFRJ). Nós lá
estávamos como secundaristas, houve aquele massacre lá na medicina, um dos números do jornal foi
contando aquele massacre. Depois, logicamente, foi fechado. Fez dois números, mas para você ter
uma idéia eu era o diretor do jornal.
ET_ Você estudava aonde?
CF_ No Mallet Soares, na Xavier da Silveira, em Copacabana mesmo. Por sinal foi o colégio do
Vladimir, do Moreira Franco, tem uma série de pessoas conhecidas que estudaram lá no Mallet.
Da diretoria do jornal, o tesoureiro era o Flávio Molina, que morreu assassinado. Foi um dos
primeiros desaparecidos que foi encontrada a ossada dele. E o Frederico Mayr, que era um dos
editores do jornal. O outro foi o Paulo Henrique, que ficou preso nove anos e os demais foram
pessoas que não se envolveram com a luta armada. Para você ver o nível de seriedade de quem era
secundarista. Bom, a partir daí foi aquele mecanismo, a repressão foi ficando mais violenta e nós que
tínhamos um relacionamento muito grande, particularmente, eu tinha um relacionamento muito
diversificado em diversas outras áreas, fui reunindo as pessoas dispostas a resistir à ditadura. Então,
nós começamos a formar grupos de estudo, grupos de debates, mas já voltado para uma
necessidade de reagir ao golpe, de reagir a ditadura, fazer frente ao processo de endurecimento do
regime, fundamentalmente, pela luta por mais liberdade, pois cada passo que a gente dava era uma
cacetada. Tentava entrar numa turma, tentava um grupo de estudo era impedido. Tentava um grêmio
era reprimido, isso a nível de diretoria, de professor, quando se conseguia passar por tudo isso com
266
bastante dificuldade, bastante sacrifício, no peito e na raça, aí começava a levar tiro nas
manifestações, cacetadas, bombas de gás, depois tiro.
ET_ Isso foi quando?
CF_ Na verdade esse processo começou logo após o golpe, já em 64. Nós já tínhamos alguns
amigos, companheiros, que tentavam fazer alguma coisa, justamente naquela ocasião que o
Marighella acabou levando um tiro resistindo ao golpe. A gente era garoto demais, não tinha nenhum
adulto, éramos da mesma faixa de idade. A partir daí alguns deles, coincidentemente, estudavam no
Mallet naquela época, e a coisa começou ali no Mallet, pegou curso. Tinha o pessoal da Siqueira
Campos, um pessoal amigo de infância. Aqui o que acontece? A coisa vai evoluindo, vai evoluindo,
chegamos num determinado ponto, já como vestibulandos, onde tínhamos uma liderança forte. E eu
por exemplo ia para vários cursinhos, ia para os cursos, entrava na sala de aula, para você entender
como se chegou ao Marighella. Não foi de pará-quedas, foi depois de muita política, de muito
debate, senão parece que foi um negócio como esse filme “O Que É Isso Companheiro?”, um troço
ridículo, uma coisa tão forte e fizeram uma coisa hollywodiana, para vender, o que é lamentável. Um
episódio de alto significado o seqüestro do embaixador americano, daria um filmaço, sem inventar
nada, era só contar a história que seria imbatível, até um pouco de arte, de cinema, mas fiel a
história, aos dramas, das dificuldades, das controvérsias, das deficiências, da verdade, mas eles tem
que fazer de acordo com os interesses que não são os nossos, daqueles jovens que deram a vida por
um Brasil livre e justo.
E a coisa foi evoluindo, evoluindo de acordo com as experiências e chegou num determinado
ponto ou nós parávamos ou... Bom a coisa foi radicalizando, no final de 66 para 67, depois teve
aquele massacre da praia vermelha, o assassinato do Edson Luiz , etc. Então, nós começamos a
formar um grupo de pessoal mais conhecido, na verdade nós éramos uma liderança a nível da nossa
área de atuação, um pessoal já conhecido, que criava respeito, era identificado, o pessoal já era
manjado pela nossa luta política na AMES e na participação nas passeatas.
ET_ Isso na faculdade?
CF_ Não, isso ainda como vestibulandos. Eu entrei na faculdade em 69, já tinha havido Ibiúna, já
tinha sido preso, ajudei organizar Ibiúna. Então, a coisa foi radicalizando, a repressão cada vez maior
e nós começamos a chegar a conclusão que a saída que tinha era uma saída armada, por quê? Não
que fossemos totalmente lunáticos, mas era porque havia uma guerrilha forte bem próximo da gente,
o processo cubano muito efervescente, Che Guevara já tinha sido assassinado, isso marcou, eu,
particularmente, foi uma situação de definição, “esse é o caminho, há um caminho”. A definição do
Che, dos vários Vietñas, era a única visão cabível para romper o ciclo aonde nós acabamos
chegando hoje. Não deu certo porque a história determinou assim, mas o fato é que era uma grande
visão, ele não acreditava naquele negócio de polarização via União Soviética, daí a visão dos vários
Vietñas, ele foi o primeiro cara a ter essa visão e ninguém fala. Então, a coisa foi se definindo e o
nosso grupo começou a ficar muito amplo, bem organizado, o grupo era bem organizado mesmo.
ET_ O grupo era mais de estudantes?
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CF_ Mais estudantes, quase todos estudantes, secundaristas mais universitários, secundaristas e
vestibulandos, que era uma categoria na época e universitários recém saídos do grupo jovem, de 14
a 25 anos, algum ou outro mais velho. Mas aí nós começamos a ter assistência do pessoal mais
organizado, começaram a se aproximar para nos convencer a entrar nessas organizações, tipo Ala
Vermelha do PC do B, o PCBR, praticamente todos os grupos. Eles acreditavam na nossa
seriedade, as coisas que eram preciso fazer a gente estava sempre aí. Esses grupos, que estavam
organizados para a luta armada, começaram a nos procurar e nada nos estava ganhando para essa
proposta. Um dos aspectos que eu defendi muito era a visão brasileira do processo, uma visão
nacional, porque vinha a linha chinesa, linha cubana, linha soviética, linha albanesa, eu dizia: “Eu
quero uma linha brasileira”.
ET_ Era uma maturidade não era aventureirismo?
CF_ As coisas acabavam correndo por aí. Primeiro muita burocracia, muita conversa e tinha muita
coisa acontecendo: manifestações de rua, eventos, congressos, debates e você via o pessoal meio
enrolado, envolvido na participação dos eventos e nas discussões das propostas políticas a respeito
da ação concreta. Até que o Marighella lançou a palavra de ordem que correspondia a realidade,
tanto que a prova éramos nós, quando ele lançou nós dissemos: “Esse é o homem”. Dentro de uma
visão de uma frente ampliada, não era uma coisa comunista, fechada, era uma frente para combater a
ditadura, uma frente de vários segmentos sociais, tanto as duas coisas. Nós já vínhamos atuando, já
tínhamos um poder de fogo, já tínhamos uma estrutura mínima.
ET_ Antes de entrar na ALN?
CF_ Antes. O que a gente sabia é que tinha que fazer a luta armada, se quisesse fazer política tinha
que garantir ela nas armas porque cada vez mais que se mexia era cacetada e tiro encima, ou pára ou
vamos nos organizar para isso. A gente sabia que as coisas estavam acontecendo, nós não éramos
sozinhos no mundo, a gente tinha essa visão do Marighella. Eu acho que isso tem um aspecto
interessante da parte do Marighella, acho que isso, como ele via um grupo muito jovem tomando a
risca toda situação, ele fazia questão de estar nas lideranças desses grupos jovens. Eu tive vários
contatos com o Marighella, saía com ele, geralmente conversava dentro de carro, como eu era legal
pegava ele e a gente saía conversando, batendo um papo e ele procurava mostrar uma coisa que
para nós é fundamental: uma liderança dele, com aquela responsabilidade, ele estava ali, no meio da
guerra, na linha de frente, que era uma coisa que desmitificou. Qual era o problema da direita? Era
dizer que nós éramos inocentes úteis, que nós éramos comandados pelos velhos comunistas de
Moscou, que ficam em casa dando ordens. E isso, de certa forma, funcionava, não era de todo
mentiroso, era um argumento que eles usavam. Mas o Marighella, com a coragem destemida dele,
fez questão de ele mesmo ir para as ações, fiscalizar as ações, dava assistência. Eu me lembro uma
época que nós estávamos perseguidíssimos e nós fizemos várias discussões, ele dizia: “Vocês estão
muito queimados, vocês precisam sair”. Ele ao invés de ficar preocupado em garantir a retaguarda
dele, teria sido o correto do ponto de vista da guerra, porque a liderança dele, a experiência política,
nós não tínhamos. Quer dizer, a visão dele do sistema, do que nós estávamos enfrentando e da
nossa força, Marighella tinha essa noção exata que hoje eu tenho, mas na época esses aspectos, era
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muito difícil com vinte e poucos anos ter essa noção que só a experiência da vida vai dando para
você. Nós achávamos que ele devia se preservar, eu sempre dizia para ele: “Pô Marighella... E ele:
“Que nada, o inimigo quando pensa que nós estamos longe, nós estamos perto”. Nós estávamos
passando perto de um quartel! Enfrentamos algumas complicações, algumas batidas, ele com a
calma de sempre: “é por aqui, é por ali”. Era uma pessoa extremamente carismática, eu não conheci
ninguém mais carismático do que o Marighella, por tudo isso e sempre falando coisas interessantes...
ET- Sobre o que ele falava?
CF_ Primeiro ele procurava transmitir o máximo com relação as possibilidades da luta, da guerrilha.
Ele fez aquele documento dele e conversava a respeito. E depois também conversava, por exemplo,
sobre a clandestinidade, as preocupações com a formação, conversando sempre sobre a
necessidade (risos) de nós nos preservarmos, quer dizer, ele estava sempre preocupado com a
nossa segurança, ele tinha essa preocupação.
ET_ Não era só vocês entrarem na luta armada.
CF_ Era, exatamente, nós nos formarmos enquanto quadros para uma guerra de longo prazo. E daí
uma pessoa que era preocupada com a nossa segurança. Ele superqueimado, o mais procurado,
estava preocupado com o Carlos Fayal, o Flávio Molina. Ele dizia: “Vocês tem que ir para Cuba,
estão queimados, vocês tem que se formar a gente vai precisar de uma pessoa com experiência
aqui”. E as outras coisas sempre voltadas para a política, que eram as nossas proximidades com as
ações, política e militar mutuamente, as nossas conversas giravam em torno disso. O aspecto
interessante é esse: o Marighella ia para os lugares mais arriscados, nós estávamos num aparelho que
não tinha saída nenhuma, se chegasse a polícia ali estava...
ET_ Aonde, por exemplo?
CF_ No Flamengo. Ele fazia questão, fez questão de ir lá mais de uma vez nos visitar para transmitir
solidariedade, uma segurança, uma tranqüilidade que só as pessoas que tem uma índole muito boa
fazem um negócio desse. Num momento de cerco, ele fazia questão, até contra nossa vontade, de
dar assistência, de passar esse calor humano, uma coisa super importante, além dele estar ali
correndo riscos na prática, coisa que ele já fazia antes, fazia questão de levar questão de levar esse
calor humano com as pessoas, conversar.
ET_ Ele esclarecia vocês sobre os perigos da luta armada, que vocês poderiam morrer?
CF_ Sobre esse aspecto ele falava muito, mas era um otimista, uma pessoa de visão otimista das
coisas. E ele era crítico também, por exemplo, foi contra o seqüestro do embaixador norte-
americano, ele sabia que ia trazer uma repressão muito grande e nós não tínhamos condições. Ele
estava tentando voltar todo esforço dele para o chamado desenvolvimento da guerrilha rural, para
desenvolver a guerrilha rural no país. Todas as nossas ações, expropriação de bancos, eram para
isso. Politicamente também era uma maneira de manter a nossa independência, sobre o treinamento
em Cuba ele dizia: “eles tem a experiência militar, nós não temos condições de fazer um treinamento
efetivo aqui no Brasil e os americanos não estão aí, instruindo os caras de todo o jeito aí” ? Os
americanos estavam mandando no país, o que é pior e o Marighella não aceitava essa intervenção.
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ET_ Você participou de alguma ação junto com ele?
CF_ Não. Com o Marighella não.
ET_ Você teve um contato com ele mais nos pontos?
CF_ É. Nos apartamentos, nos aparelhos.
ET_ Dessa proximidade dele com vocês - já com um certo nível de leitura - o que significa o
Marighella para vocês, o que acabaria trazendo vocês para a luta armada. Essencialmente, o que
mais marcou? Para sermos concretos.
CF_ Isso, uma liderança capaz de juntar todos aqueles segmentos, aquelas organizações dispostas a
combater a ditadura e tentar formar um governo popular e democrático no país. A figura de um líder
com esse peso específico e que nos ganhou por estar ali na luta, no fogo, no comando direto, na luta,
e depois, pelas suas posições políticas.
ET_ Em algum momento do seu contato com ele, essencialmente esse contato tinha um peso político
maior, mas em algum momento você teria um exemplo concreto, um gesto em que Marighella
demonstra o seu lado humano, o seu caráter, sua personalidade?
CF_ O Mariga sempre era uma pessoa assim, por exemplo: nesse papo que estou levando contigo,
ele sempre já tinha entremeado esse papo com alguma brincadeira, alguma coisa super inteligente.
Ele era uma pessoa muito criativa, com uma agilidade mental muito grande e esse carisma que eu
falei, era extremamente carismático.
ET_ Que tipo de descontração por exemplo?
CF_ É meio difícil. Eu tenho uma memória muito ruim. Eu me lembro que houve o fato, lembrar
palavras eu sou péssimo nesse aspecto. Mas era uma coisa muito marcante, nós nos sentíamos a
vontade. O Marighella conseguia - desse papo do cotidiano, não mais político - quebrar a tensão
que a gente vivia naquele momento. A gente circulava horas e horas de carro conversando.
ET_ Ele em algum momento foi ríspido, duro, impunha alguma posição?
CF_ O Marighella, no meu caso particular, havia uma sintonia muito grande de pensamentos e
idéias, por quê? Pela própria maneira que nós no ligamos a ele e que ele não decepcionou. Ele por
ter jogado aquela palavra de ordem de “faça a revolução”, ele foi melhor do que a expectativa. A
única coisa que eu questionei bastante com ele, que o nosso grupo era legal e um grupo de classe
média alta, com relações, por exemplo: eu já estava na odontologia, Fred já estava na Arquitetura,
na Nacional, o Molina estava na Química, quer dizer, nós tínhamos uma relação com as faculdades
muito importante e eu achava que nós não deveríamos nos expor as ações diretas, não ficarmos
queimados pelas ações diretas. E aí o Marighella disse não, porque faltavam quadros e nós tínhamos
que nos preparar para isso, a guerrilha rural. Mas, eu não concordei e acho que estava certo nesse
processo. Mas essa eu me lembro que foi uma argumentação que houve. A gente tinha contato com
o Marighella, e aí justamente no meio dessas coisas eu solicitei, ele veio na hora. Aí é que está, ele
270
poderia dizer “esses moleques aí tem que fazer o que eu mando”, mas ele veio aprofundar a
discussão.
ET_ No início, quando vocês entraram na ALN, não estiveram em contato direto com ele?
CF_ Direto não. Tinha uma pessoa que era o contato.
ET_ Eu havia preparado um roteiro aqui para a entrevista e você, de certa forma, se antecipou, o
que facilita o meu trabalho.
CF_ Assim como a minha trajetória até chegar ao Marighella, as expectativas eram muito
específicas. Outras pessoas, por exemplo, que vieram para a ALN do racha no Partidão deve ter
tido outra visão. É isso que está faltando, eu até falei com o Emiliano lá no livro dele, e falei: “Seu
trabalho é muito bom, muito técnico, mas esse lance aqui no Rio de Janeiro é uma marca registrada
muito forte, porque o Agrupamento Comunista de São Paulo, o nome já diz, ele veio de um racha do
Partidão, fundamentalmente, depois veio a dissidência, que era um racha do Partidão. Aqui no Rio
não. Um grupo antigo que era pequeno, que era ligado diretamente a ele e o pessoal jovem, que era
lá do Pedro II, que tinha também um pessoal ligado a ele. O pessoal lá do Xavier, da Zilda, do Alex,
do Yuri, que eram secundaristas, escola técnica. O Alex era do Pedro II, até o meu irmão entrou
para a organização, por ele, não por mim.
Era a própria visão do Marighella: juntar uma frente a mais ampla possível, daí ele não se
apegava naquelas teorias de que a revolução tinha que ser socialista, democrática, de libertação, etc.
Ele procurava pegar alguma coisa mais abrangente, eram poucas pessoas, em termos de Brasil ele
tinha que juntar todo mundo.
ET_ Como que era para um jovem de vinte e dois anos ser comandante da ALN? Como era isso na
sua cabeça? Em algum momento você questionava?
CF_ Nós já falamos aqui no início mas é bom recordar isso. Com quatorze anos de idade, em 64,
não chegamos a resistir, mas chegamos a discutir uma possibilidade de haver resistência ao golpe.
Estava disposto a dar a vida com quatorze anos para manter o governo constitucional do Jango. Está
me entendendo? Como o mundo mudou. Um Brasil que naquele tempo você tinha pessoas dispostas
a isso com quatorze anos de idade. Hoje em dia os políticos só pensam em roubar, a maioria, se dar
bem, usar o país. Era outro planeta se você for parar para analisar o que nós estamos vivendo hoje.
De quatorze até vinte e dois anos, são oito anos de estudos, de lutas, de ações, até chegar aí. O que
não significa que faltasse maturidade. Tanto é que a minha postura ali, eu sempre levantei isso, nós
tínhamos alguns companheiros treinando em Cuba, havia inclusive uma mistificação muito grande
sobre esses companheiros treinando em Cuba, chamado primeiro exército, que realmente tinham
pessoas valorosas naquele grupo. A minha posição que eu sempre procurava transmitir aos
companheiros de luta, era que nós tínhamos que manter a organização tentar fazer o melhor possível,
melhorar um pouco a nossa situação para a chegada desses companheiros que iriam assumir
naturalmente o processo. Eu, particularmente, sempre tive isso e transmiti aos companheiros, eu
estava ali circunstancialmente, eu assumi um comando em função da morte, da prisão, dos
companheiros que estavam comandando antes que eu. Isso é muito importante. Isso dentro de um
271
espírito do Guevara, do Marighella, havia esse idealismo, pelo menos na minha maneira de agir
naquelas ocasiões. Isso foi muito bom porque conseguiu unir, havia divergências sérias entre nós
mesmos e eu consegui transmitir isso de maneira muito verdadeira e consegui essa liderança ali no
momento.
ET_ Marighella já estava morto?
CF_ Marighella já morto.
ET_ De quais ações você chegou a participar na ALN?
CF_ Até ações para conseguir armas para a guerrilha, desarmando a polícia e o Exército,
metralhadoras, revólveres, etc. Uma ousadia, olha que maluquice..
ET_ Esses desarmamentos eram para...
CF_ Arrecadar metralhadoras. Pensando bem, hoje, também foi uma provocação, mas a idéia maior
eram os armamentos.
ET_ E assalto a banco, você chegou a participar?
CF_ Expropriações.
ET_ Como vocês se estruturavam nessas ações? A ALN aqui no Rio, onde você mais atuou, como
vocês se organizavam para as ações?
CF_ Foge um pouco a sua tese mas... Aconteceram algumas fases, uma fase que, por exemplo, foi
ditada pela situação do pessoal ainda ser legal. A gente usava entre os conhecidos, nós tivemos, do
ponto de vista clandestino, uma fragilidade, a origem toda conhecida, freqüentava a casa. Na fase do
pessoal mais queimado aí complicou, tinham os aparelhos com pessoas nossas, que eram os donos
da casa, através de uma fachada legal ou alguma pessoa ainda legal, ou alguma pessoa em processo
de legalização, e tinham os aparelhos onde se guardavam os arsenais.
O pessoal geralmente morava geralmente em quarto, apartamento alugado, naquela época
tinha muito esse lance de quarto, até hoje tem um pouco, mas naquela época tinha muito. O dinheiro
nosso era muito curto, as expropriações, no nosso caso, foram de pouco resultado, ficávamos com o
mínimo, o grosso ia para sustentar a tal da guerrilha rural. Os bancos, por causa do seguro,
declaravam uma quantia muito maior, não perdiam tempo.
ET_ Esse dinheiro - uma curiosidade - Marighella quando ainda vivo, ele centralizava todas as ações
ou as ações e o dinheiro ficavam a cargo dos comandos?
CF_ Não centralizava. Tanto é assim que há o caso do seqüestro do embaixador norte-americano.
Até ele não podia centralizar muito porque iria de encontro ao próprio princípio dele, original. Aquilo
foi uma coisa muito importante num determinado momento, mas que depois tinha que ser
disciplinada, era até dialeticamente correta. A centralização do dinheiro eu imagino que passasse por
ele, por ter um planejamento global.
272
ET_ Esse episódio do seqüestro do embaixador norte-americano, você chegou a participar de
alguma discussão relacionada a esse fato?
CF_ Não. Foi exatamente naquele período que o Marighella estava me convencendo que eu tinha
ficar na geladeira e ele me convenceu. Ele estava circulando assim como eu, e eu quase caí por causa
do seqüestro.
ET_ Você morava aonde?
CF_ Em Santa Tereza. Clandestino. Eu caí na clandestinidade em meados de 69, acho que foi maio,
junho de 69. Na realidade, o Edson, a nossa força era muito grande, nós não sabíamos disso.
Falando isso parece até um paradoxo, mas essa que é a realidade. Um país naquela situação
continental e internacional de Vietña, de Cuba, de América Latina, o nosso potencial era enorme e
os americanos viram isso e eles pensaram “joga tudo pra ferrar aqueles caras o mais rápido
possível”. E nós subestimamos essa nossa força, esse foi o problema, nós subestimamos mais a
nossa força do que a do inimigo.
ET_ Como que você vê a crítica sobre aquele período, especialmente sobre a luta armada e a
ALN? O Minimanual do Guerrilheiro Urbano traça uma estratégia de guerrilha, só que a luta não
ganha as massas.
CF_ Só que a estratégia nossa era do campo para a cidade.
ET_ Por que ela se concentrou nas cidades?
CF_ Isso foi uma deformação. Quando as ações começaram a ter uma repercussão tão positiva
politicamente, aí é que está, as ações eram um sucesso que você não imagina. Quando nós fazíamos
as ações e andávamos de táxi ou de ônibus, os caras queriam se filiar a ALN, população, povo. O
pessoal não tinha medo não, achavam que a gente ia ganhar: pega um embaixador americano, pega
uma rádio, faz ações, a expropriação do cofre do Adhemar, a população, no início, estava
totalmente a nosso favor. Isso aí gerou uma incompreensão de parte das organizações, que
começaram a achar que tinham que fazer mais ações nas cidades. Foi um momento curto e aí a
ditadura impôs um clima de terror. Foram eles que impuseram um clima de terror.
ET_ Quando há esse cerco da repressão me parece que não se preparava um movimento de
massas.
CF_ Quando eu falo da força é a compreensão de uma visão filosófica do processo, do ponto de
vista de estrutura de organização político-militar era fraquíssima, a força que eu digo era a que nós
tínhamos para mobilizar e organizar a sociedade. Essa nós não compreendemos naquele momento
histórico.
ET_ Você participou de alguma ponto com o Marighella? Por exemplo, aquela batida, como foi
isso?
CF_ Ali ele achava que não ia ter, no subúrbio. A gente andava muito no subúrbio.
ET_ Qual era a relação dele?
273
CF_ Tranqüila. Ele dominou o processo ali. Naquele dia estávamos só nos dois no carro, aí ele deu
a saída: “Vai por ali, por ali”! Não chegamos a ser parados.
ET_ Eu imagino a situação.
CF_ Adrenalina a mil por hora.
ET_ Um detalhe do ponto de vista metodológico. Na biografia é recomendável você citar o
codinome, ou nome de guerra. Qual era o usado por Marighella?
CF_ No meu caso, a não ser na primeira vez, usava Menezes. Mas, quando me encontrava com o
Marighella já sabia que era com ele mesmo.
ET_ Ele andava disfarçado?
CF_ Com aquela peruca indecente que ele usava. Aí eu dizia: “Com essa peruca não dá” (risos). Ele
gostava. Batia assim e a peruca levantava.
ET_ Um homem de um metro e novena a peruca chamava mais atenção do que disfarçava.
CF_ É... O Mariga, a gente se encontrava mais à noite.
ET_ Uma crítica que o Gorender faz é que ele desafiava a morte. Não é bem uma crítica, mas
Gorender diz que Marighella, por ser corajoso, não temia praticamente nada.
CF_ Ah! Sim.
ET_ Isso pode ter uma responsabilidade na morte dele.
CF_ Ele confiava muito nas pessoas. A pessoa boa tem esse problema também. Confiava muito.
Dizia que não podia confiar, mas ele mesmo confiava. É difícil você achar que o cara vai trair, já teve
algumas demonstrações de coragem, de apreço, de ações, “esse cara não vai trair”.
ET_ Ele abriu em algum momento ou vocês sabiam do contato com os padres?
CF_ Eu sabia porque o Congresso de Ibiúna teve muito o lance com os padres e até um contato
nosso.
ET_ Como você vê essa polêmica sobre a morte de Marighella?
CF_ Eu acho que não se tem mais dúvidas de que a reta final, o desenlace, foram os dominicanos.
Os freis que levaram o Marighella à emboscada. Agora entrar na tal polêmica do Paulo de Tarso,
do livro do Emiliano, isso aí é complicado. Tem que haver um dia, se as pessoas quiserem opinar,
tem aquele depoimento do Alípio Freire, uma coisa muito forte e muito difícil de ser tratada. De um
lado Marighella cometeu uma liberalidade que não devia ter cometido, o tal negócio da confiança
extremada.
ET_ Ele tinha convicção se não ia ser preso, se ia cair?
CF_ Não. Ele nos alertava com aquelas frases dele: “Isso não é um desfile na passarela”.
274
ET_ Este depoimento é muito útil para mim confrontar com quem faz crítica à luta armada.
CF_ Quem não acompanhou, não vivenciou, de uma forma consciente, o que estava se passando no
Brasil e na América Latina é que pode falar um negócio desses. Eu acho o contrário. Eu acho aquilo
que eu já te falei. Acho que nós não soubemos aquilatar a nossa força. Uma visão exatamente o
contrário disso que se fala.
ET_ A morte de Marighella desarticulou, um pouco, a ALN?
CF_ Não, desarticulou um pouco não, desarticulou muito.
ET_ Qual o efeito dessa morte?
CF_ Foi um efeito bombástico, por quê? O pessoal, como eu já falei, mais experiente, se
capacitando lá em Cuba, estava em Cuba no momento da morte, inclusive o Toledo, que era o
segundo da organização. Aqui no Rio foi justamente onde se desarticulou menos, em termos de
organização propriamente dita. Em São Paulo deve ter sido muito maior, vou lhe dar um exemplo
prático: o nosso pessoal do Rio, que eu articulei a ida para São Paulo foi que assumiu a organização
em São Paulo, durante um período crítico; o Carlos Eugênio, o José Nilton e outros. Estava tão
desarticulada, em São Paulo, que eles acabaram assumindo depois da morte do Toledo. Agora, o
impacto maior, na verdade, foi nesse sentido: que aquela nossa força, quem teria condição de
transformá-la em força real de luta era o Marighella. A nossa força resistiu o maior número de
tempo possível, com o maior sacrifício, de perdas humanas para poder ver se ganhávamos um
fôlego, para poder ver o que estava acontecendo e acabamos perdendo militarmente, mas deu uma
sobrevida de quatro anos, uma sobrevida dramática de quatro anos. A morte do Marighella
significou a nossa derrota, não imediata, mas a derrota em seguida. Não foi imediata.
ET_ Você falou no início que vocês se interessavam pelo que o Marighella defendia. Boa Parte de
vocês que atuavam na ALN tinham uma correlação de idéias e quando ele é morto dá um certo
vazio, não um vazio totalmente...
CF_ Marighella teria condições, a força política e a liderança para fazer as reformulações
necessárias para o encaminhamento do processo revolucionário. A morte dele significou essa falta de
uma liderança com condições de fazer isso. O próprio Toledo não teve condições de fazer, também
foi eliminado, apesar de estar fazendo um coletivo. A figura do peso político, ideológico do
Marighella era fundamental para amalgar aquele conjunto. Ele sobressaía muito em termos de
experiência e liderança.
ET_ Das suas conversas com o Marighella como ele se comportava?
CF_ O Marighella era muito envolvente. Como ele tinha um estilo totalmente extrovertido, ele ia
chegando, começava com um assunto do dia-a-dia e ia colocando temas principais. Não dava muita
chance para esse negócio de formalidade, de tempo, pelo menos comigo foi assim. Quando você
levantava uma coisa ele entrava no assunto, não fugia, sempre procurou dar as respostas. Agora, não
tinha esse negócio que você falou, que todo mundo falava e ele: “Fala você”. Ele já chegava
275
atropelando no bom sentido, conversando, sabendo que se estava vivendo um momento muito
complicado.
ET_ Você pensou alguma vez em parar, sair da organização?
CF_ Não.
ET_ Qual a avaliação que você faria da sua inserção, naquele período, na luta armada?
CF_ Nós que adquirimos um grau de consciência daquela ocasião, nós estávamos certos, por quê?
Porque, naquele momento histórico, as reformas que vinham inspiradas, mais ou menos, nas
reformas de base de Jango, veio o golpe para interromper aquilo, daí a nossa luta pela derrubada da
ditadura, pela instalação de um governo popular, democrático e revolucionário. Isso colocaria, na
ordem do dia, o Brasil como uma nação independente: reforma agrária, urbana, administrativa,
dentro de um contexto de nação-povo, com a participação da população. O Brasil com sua
geografia, com sua população, com sua inserção na América Latina - você não vê o exemplo de
Cuba, até hoje resiste - teria condições de sobra de ser uma nação independente. Acho que nós
conscientes nos deparamos com uma situação dessas naquele momento e fizemos essa opção,
opção correta. Cumprimos com o nosso dever naquele momento histórico. Acho que nossa visão
naquela época era correta. Evitar que o Brasil enveredasse pelo caminho que se enveredou, da
injustiça social e da submissão ao estrangeiro.
ET_ Outra dúvida que eu tenho é sobre as cápsulas de cianureto. Houve alguma orientação para o
uso?
CF_ Houve, mas o pessoal daqui do Rio não entrou nessa história não. Nós não concordamos com
isso. Lá em São Paulo teve essa conversa, conversa não, na hora de fazer essas cápsulas, pior ou
melhor, a pessoa que fez - isso é uma história que contam, não sei se foi checado - deu um
arrependimento e ela botou uma dose que não era letal. O cara passava muito mal, o que é ruim,
pois, passando mal, você já fica meio combalido e não morria, e depois de colocar aquilo na língua
ia para a tortura. Não funcionou. Era melhor não ter nada e no mais morrer. Mas que era um lance,
por exemplo para o pessoal de liderança mesmo maior, podia ser uma medida: como que vai encarar
a tortura? Tortura é foda.
.
276
TRANSCRIÇÃO DE DEPOIMENTO DE JACOB GORENDER
Este depoimento foi realizado na cidade de São Paulo, no dia 7 de Dezembro de 1998, com
o historiador Jacob Gorender.
ET_ O Ginásio da Bahia era um colégio religioso?
JACOB GORENDER _ Não, era laico, não tinha aula de religião.
ET_ Durante o período que você estudou lá, Marighella já havia estudado e fez provas em versos.
Você sabe alguma coisa a respeito?
JG_ Não foi lá. A famosa prova em versos foi feita na Escola Politécnica. Ele freqüentou me parece
que dois ou três anos da Escola Politécnica. Era Engenharia mais chamava Escola Politécnica, e foi lá
que ele fez uma prova, respondeu uma prova em versos.
ET_ Lá no Ginásio na Bahia ele usou esse método para fazer provas?
JG_ Pode ser que sim, mas eu nunca ouvi falar. A famosa prova em versos foi na Escola Politécnica.
ET_ Eu conversei com João Falcão, em Salvador, e ele rapidamente - é apenas uma curiosidade -
ele disse que Marighella, na faculdade, teve um amigo que também se formou em Engenharia, de
certa forma, se estabilizou financeiramente e ele ajudava o Marighella. Você se recorda se houve
esse fato?
JG_ Não, não sei. Veja bem, o Marighella foi de uma geração um tanto anterior a minha, quer dizer,
não há uma diferença de idade, mas ele cursou o Ginásio da Bahia e a Escola Politécnica uns sete a
oito anos antes de eu ir para o próprio Ginásio da Bahia. Eu só vim a saber dele quando iniciei a
militância no PC, Partido Comunista. Antes disso não o conhecia, não tinha ouvido falar nele. Eu não
tenho relações de amizade nem outros aspectos dessa fase. Isso é com o pessoal lá de Salvador.
ET_ Qual foi seu primeiro contato com Marighella?
JG_ O primeiro contato, quer dizer, eu vim a saber o nome dele depois que eu me tornei militante,
de 42 em seguida. Nos meios da esquerda o nome dele já era conhecido, um baiano que tinha ido
para o sul, estava preso, tinha se comportado magnificamente e estava na Ilha Grande, no Rio de
Janeiro. Acontece que nesse período, em 44, eu fui à Itália como soldado da Força Expedicionária.
Na volta, em agosto de 45, eu fui ao Comitê Central, o partido ainda ilegal, no Estado Novo.
Quando eu retornei o partido era legal. Prestes anistiado e todos os militantes estavam
em liberdade e o Marighella também tinha sido anistiado e libertado, foi aí que eu o conheci, na sede
do Comitê Nacional, lá na rua da Glória, no Rio de Janeiro.
277
ET_ Mas você retorna para a Bahia em 45, Marighella vai desenvolver a campanha para deputado
na Bahia nesse período. Você teve algum contato com ele?
JG_ Não. Quando ele fez a campanha, eu fiquei em Salvador até o segundo semestre de 46, durante
um ano e pouco, e ele foi à Salvador e levou lá uns, não me lembro bem, coisa de dois meses
fazendo a campanha eleitoral de 2 dezembro de 45, que elegeu o presidente da república e os
senadores e deputados.
ET_ Naquela a época a legislação permitia se candidatar por vários estados.
JG_ É. Prestes foi candidato por vários estados, não me lembro se elegeu por mais de um, Getúlio
sim, se elegeu pelo Rio de Janeiro, São Paulo e parece que pelo Rio de Janeiro também. Então,
Marighella foi candidato a deputado federal, ali eu convivi com ele naquele ambiente da campanha
eleitoral.
ET_ Qual foi a impressão causada por Carlos Marighella nesse primeiro contato, já que você tinha
essa idéia de um homem que tinha um comportamento, na prisão, de resistência?
JG_ Não tenho uma impressão especial. Eu tinha, obviamente, uma admiração por ele. Eu era
militante, ele já era um homem experimentado, era membro da Comissão Executiva naquele tempo,
do Comitê Central, era um dirigente nacional. O partido estava em ascenso, estava no período da
legalidade, o prestígio de Prestes ainda era grande, faziam-se grandes comícios. E tudo isso me
fortaleceu na idéia de militância. E depois eu tive a oportunidade de ter muito mais contatos com
Marighella, no Rio de Janeiro, antes da ilegalidade, quando o partido foi posto na ilegalidade e
depois atuamos juntos na Comissão de Agitação e Propaganda, já na clandestinidade, no Rio de
Janeiro. Me reuni várias vezes com ele e depois tive um contato muito estreito com ele na direção do
Comitê Estadual do Partido, em São Paulo, de 51 a 53.
ET_ Inclusive vocês participaram de uma greve em São Paulo, a greve dos 300 mil.
JG_ A greve dos 300 mil foi feita sob a direção do Partido, com a atuação do Marighella e minha
sob a direção do Comitê Estadual.
ET_ Eu queria que você me desse um quadro caracterizando como que era o estilo Marighella de
fazer política, principalmente nesse período da greve em São Paulo.
JG_ Marighella era um dirigente na média dos dirigentes daquela época, os dirigentes nacionais de
maior relevo que eram depois do Prestes, que era mais velho que todos eles e tinha uma outra
trajetória, tinha vindo do meio militar. Os outros, o Arruda, o Grabois, o Amazonas, o Pomar e o
Marighella, eles tinham mais ou menos o mesmo nível. Marighella tinha uma vantagem porque tinha
uma parte do curso superior, lia correntemente o francês. O Arruda, por exemplo, não lia. A cultura
deles era mais ou menos semelhante, não havia grandes diferenças. Marighella era um homem que se
formou na época stalinista dos Partidos Comunistas. Então, a grande fonte deles era a literatura
soviética e particularmente Stálin. Eu também fui atingido por esse mesmo tipo de formação, todos
éramos atingidos naquela época, porque os Partidos Comunistas eram moldados pelas normas da
278
Internacional Comunista. Marighella conhecia, naturalmente, obras fora de Stálin, conhecia Lênin,
conhecia Marx, mas não creio que ele tivesse conhecimentos muito profundos, que ele tivesse tido
tempo para se aprofundar em leituras teóricas, ele conhecia, mas não que tivesse se aprofundado,
seja pela trajetória da vida dele ou por predileção especial. Era um homem com uma enorme
capacidade de trabalho, isso sem dúvida alguma, uma capacidade de trabalho tremenda, de varar
noites a fio. As falas dele eram claras, não enrolava, objetivo, era um comandante, como eu vi aqui
em São Paulo, particularmente, nessa greve. Mas em outros episódios era um dirigente comunista
de grandes qualidades. Além da coragem, da capacidade de sacrifício, era formidável também.
ET_ Como que era a relação dele com os demais militantes? Ele impunha uma hierarquia ou ele se
aproximava mais das pessoas?
JG_ Sem dúvida. Desses dirigentes que eu citei, certamente, ele era o mais cordial, o mais
camarada. Ele não tinha pose nenhuma, absolutamente, com qualquer militante ele se abria, era
compreensivo com as dificuldades dos militantes, questões pessoais, enfim, funcionários do partido
que precisavam localizar em algum lugar, era muito compreensivo para tudo isso. Embora rigoroso
no cumprimento das tarefas, mas era bastante humano.
ET_ Com você ele teve alguma conversa, a nível pessoal, porque é evidente que boa parte da
trajetória de vocês teve como ponto central a questão política. Mas com você, baiano com ele,
houve alguma conversa a nível pessoal, coisas do cotidiano?
JG_ Não, a não ser as questões corriqueiras que todo mundo tem, questões mais assim eu não tive
com ele. Eu o observava, estava com freqüência com ele nas reuniões, atos de todo tipo e observava
esse estilo dele de direção.
ET_ Marighella era uma pessoa descontraída pelo que eu pude verificar até agora, mas você
presenciou algum tipo de atitude dele em descontrair, por exemplo, uma reunião, um ponto, ou seja
lá onde for?
JG_ Ele era um cara bem humorado, geralmente, gostava de fazer quadrinhas, troças, ele era
versejador. Ele tem um livro de poesia, mas na minha opinião ele era mais um versejador do que um
poeta. Não é que ele não tivesse dons, mas se a gente tomar por padrão Carlos Drummond de
Andrade, não vou dizer que ele tivesse esse nível, os versos dele são rimados, metrificados, ele não
tinha adotado o verso moderno, mas ele tinha habilidade para compor versos, gostava de fazer isso.
ET_ Em reuniões , por exemplo?
JG_ É, as vezes. Ele era brincalhão.
ET_ Quais eram os hábitos comuns de Marighella? Ele chegava apressado, ele era uma pessoa
tranqüila, ele era uma pessoa um tanto organizada?
JG_ Era uma pessoa organizada, não com excesso, não era fanático de organização, mas era
organizado. Quanto a pressa não era habitual, se comportava com bastante equilíbrio.
279
ET_ Em algum momento você o viu irritado com o Partido?
JG_ As vezes a coisa não sai como a gente quer, isso acontece, qualquer um tem essa reação, mas
não que fosse característico dele, permanente.
ET_ Vocês atuaram juntos de 51 a 53 em São Paulo, sendo o ponto chave a greve dos trezentos
mil. Eu queria ver como vocês interpretaram dessa atuação o Manifesto de Agosto de 1950. Se a
posição de vocês era comum em reação ao Manifesto de Agosto, se não for qual a posição de
Marighella?
JG_ No manifesto de Agosto eu não estava aqui em São Paulo, eu vim em 51. Então, já é posterior
ao lançamento, quando saiu o Manifesto eu não estava em contato com ele, ele já estava aqui em
São Paulo e eu estava atuando no Rio. Em 51 eu fui deslocado para São Paulo e passei a atuar junto
com ele. Aí já estava havendo, digamos assim, um certo recuo com as posições do Manifesto, uma
certa adaptação, que viria com o tempo a inviabilizar a aplicação do próprio Manifesto, o delírio de
suas palavras de ordem e assim por diante. Naquele momento que eu cheguei aqui em São Paulo, já
havia uma resolução da Comissão Executiva de retorno aos comunistas aos sindicatos, em reação a
cassação do registro do partido, da repressão que se seguiu, foi a saída dos militantes dos sindicatos
e a tentativa de organizar, na prática, sindicatos paralelos, isso desde 48, em 51 era evidente que
isso não dava certo, isso só tinha isolado os comunistas. Quando eu cheguei aqui em São Paulo,
havia sido colocada a palavra de ordem de retorno aos sindicatos, isso estava sendo aplicado aqui
em São Paulo e ia dar resultados justamente na greve de 53, quando estávamos aqui, onde foi
possível coordenar a ação de cinco categorias de trabalhadores - metalúrgicos, vidreiros,
marceneiros, gráficos e tecelões - que eram as categorias mais importantes na indústria paulista
daquela época, isso foi feito através dos sindicatos.
ET_ Nessa atuação Marighella falava ao público, ele discursava?
JG_ Não. Ele era clandestino, não podia aparecer, se aparecesse seria preso. Um detalhe aí curioso
é que um dos militantes do Partido Comunista que atuou nessa greve, através do sindicato dos
tecelões, foi o João Saldanha, famoso técnico e comentarista de futebol. O nome dele merece ser
resgatado, a memória, nesse aspecto, ele é muito mais conhecido pela sua atuação no campo
esportivo.
ET_ Principalmente no episódio envolvendo o Médici e a convocação do Dario.
JG_ Ali ele foi excluído. Pelo que eu posso depreender sentiram que o Brasil poderia ser campeão e
não queriam que essa glória _ e eles já sabiam, já era sabido _ ficasse com um comunista.
ET_ Nessa época ele atuou aqui em São Paulo?
JG_ Ele já era militante aqui. Ele era militante do Rio de Janeiro e por certas razões ele foi
deslocado para cá, ele veio, e depois ele foi atuar no norte do Paraná, em Londrina, depois ele se
afastou da militância e voltou a se dedicar ao esporte. Mas nesse episódio ele está presente.
ET_ Um episódio, realmente, pouco conhecido.
280
JG_ É, nunca foi comentado. Era um grande companheiro também o João Saldanha. Ele até o fim,
pelo que eu sei, eu não tive mais contato com ele, aqui em São Paulo eu tive vários contatos, mas eu
sei que até o fim ele morreu comunista.
ET_ Você falou em João Saldanha e sobre esporte. Você presenciou Marighella comentando sobre
futebol, ele gostava de futebol?
JG_ Ele jogava futebol como qualquer jovem brasileiro joga. Uma vez, isso foi em 47, houve uma
festa, um piquenique lá na Barra da Tijuca, que até então era desabitada, foi na III Conferência
Nacional do Partido Comunista, tinha até delegados estrangeiros, daqui e da América Latina, e
improvisaram uma pelada e o Marighella participou. Quanto a relação a torcida não me lembro. Ele
parece que quando pôde, que foi nesse período de legalidade, ele gostava de carnaval.
ET_ Ele chegou a comentar isso?
JG_ Não. Me disseram que no carnaval de 46 ele saiu até fantasiado lá no Rio de Janeiro. Havia um
carnaval de rua, naquela época muito intenso, não era como hoje que é só desfile.
ET_ O Marcucha, filho do Diógenes Arruda, me passou uma informação que na sede do Partido ali
na Glória, durante a época da legalidade, Marighella gostava de fazer paródia, gostava de organizar
o Bloco da Mula Manca.
JG_ É possível, tem uma cançoneta da Mula Manca, uma letrinha qualquer que eu já não m lembro
qual. E depois me falaram que no carnaval de 46 ele saiu fantasiado, fazendo brincadeiras de rua.
Mas depois ele cai na ilegalidade e essas coisas não eram possíveis.
ET_ E música?
JG_ Também pouco. Música, literatura, pouca coisa eu me lembro de comentários com o
Marighella.
ET_ Por que você enfatiza no seu livro, a que você atribui o heroísmo de Marighella?
JG_ Ele era um homem convencido da doutrina comunista e tinha resolvido desde a juventude se
dedicar a ela, e era um homem de grande integridade pessoal, eram as qualidades que ele tinha, uma
enorme coragem, uma fibra extraordinária, nesse ponto ele era realmente inigualável e foi assim até
morrer.
ET_ Quando em 56 revela-se os crimes de Stálin, no XX Congresso do PCUS, não sei se você
teve contato com o Marighella nesse momento, mas qual foi a reação dele ao saber do relatório do
Kruschev?
JG_ Eu pessoalmente não posso lhe falar sobre isso, porque eu estava em Moscou quando o
Kruschev pronunciou e alguns meses depois foi publicado pelo Estado de São Paulo. Agora o que
me disseram é que o relatório foi publicado aqui no Brasil, e a reação de alguns dirigentes _ eu vim a
saber depois, eu não estava aqui _ foi a de achar que aquilo era apócrifo, era um documento
falsificado. Mas daí o Diógenes Arruda, o pai do Marcucha, estava também no exterior e voltou em
281
junho de 56, o relatório foi proferido em fevereiro. E então, o Arruda disse que aquilo era verdade,
que o relatório era verdadeiro. O que me contam, o que foi assentido, é que houve uma reunião do
Comitê Central e o Marighella chorou, chegou a chorar quando foi confirmada a autenticidade do
relatório. Ele era tão apegado a figura de Stálin, é próprio da geração dele, que aquilo foi chocante
para ele.
ET_ E a sua interpretação sobre esse episódio?
JG_ Está no meu livro. Eu estava em Moscou e já estava percebendo muita coisa errada e ruim que
estava se passando, mas aquilo foi, frente ao mundo inteiro, um grande choque. As coisas erradas,
os ciúmes, que na ordem que o Kruschev denunciou, foi só uma parte, depois foram sendo reveladas
muitas outras coisas, mas mesmo só aquilo era algo de terrível.
ET_ Num momento mais além, quando o Marighella se aproxima da luta armada, você o conhecia,
como você o via naqueles dias em que ele queria sair do partido?
JG_ Depois de 64?
ET_ É.
JG_ No meu livro, de certo modo, já exponho o essencial do que tinha que ser dito. Quando se deu
o golpe eu não estava no Rio, eu estava em Goiânia. A primeira reação que ouvi dos dirigentes lá no
Rio de Janeiro, naquela época a direção nacional funcionava praticamente no Rio, Prestes tinha
residência em São Paulo, mas com freqüência ele estava no Rio de Janeiro. Apesar do Rio já não
ser capital, mas ainda a direção nacional funcionava lá. O que eu sei é que Marighella tomou uma
posição de deslanche radical contra a ditadura, ele foi contra capitulações, conciliações e coisas
dessa ordem. Antes do golpe ele já tinha contato com sargentos, marinheiros, com o pessoal do
Brizola, possivelmente com oficiais do exército, setores oficiais do partido e depois do golpe passou
a defender essas posições. Logo depois do golpe, em virtude de alguns dirigentes da Comissão
Executiva não estarem no Rio, e outros ficarem impedidos de circular, como foi o caso do Prestes,
nas primeiras reuniões da Executiva criou-se uma maioria esquerdista, que era o Marighella, o Mário
Alves, o Jover Telles _ que depois seria o que a gente sabe, um traidor _ e vacilantemente o Bonfim,
Orlando Bonfim, que é um dos desaparecidos hoje.
ET_ Apolônio?
JG_ É depois, nesse primeiro momento, o golpe foi em fins de março, em fins de abril, eu digo isso
no meu livro, circulou uma nota da executiva que tomava posições de esquerda. Logo depois a
Comissão Executiva se preencheu, se recompôs e essa maioria de esquerda sumiu. O Marighella foi
preso naquele episódio do cinema lá na Tijuca, foi baleado, ficou um tempo preso e depois saiu.
ET_ Quando você e Mário Alves criam o PCBR, não houve uma sondagem ao Marighella para uma
possível composição?
JG_ Não. Nós tivemos, eu e o Mário Alves várias reuniões com o Marighella dentro da
conspiração, ainda como dirigentes do Partido Comunista Brasileiro. Nos reuníamos na Comissão,
282
mas já articulando uma prática diferente. Com o passar do tempo, já em 67, ficou claro que o
Marighella não queria, de modo nenhum, reorganizar um partido, o modelo dele era o foquismo
cubano, para ele a guerrilha seria um partido. Eu, o Mário Alves, o Apolônio e Miguel Batista dos
Santos tínhamos uma idéia de que era preciso um partido, não se podia ter somente uma direção
militar, era preciso uma direção política. Então, em 67, quando já tínhamos sido excluídos do
Partido, de certo modo, as nossas direções se separaram.
ET_ Você não teria mais contato com ele?
JG_ Não, depois disso não. Ele voltou de Cuba, ele tinha ido a Cuba.
ET_ Na OLAS...
JG_ Não esteve na OLAS, mas estava lá em Havana naquele mesmo momento, quando a OLAS se
reuniu. Ele entrou em contato com os dirigentes cubanos, que decidiram, praticamente, considerá-lo
um homem de confiança deles aqui no Brasil, eles passaram a dar apoio através do treinamento em
Havana. Ele voltou de Cuba, tivemos um contato e depois disso não tive mais contato com ele.
ET_ No seu livro a questão da morte de Marighella está bem clara e definida. Mas o que eu quero
dizer, veja bem, a minha posição aqui não é de fazer oposição, de provocar uma inimizade. Quando
estive em Salvador entrevistando o filho de Marighella, ele se lamentou da forma como você escreve
no livro Tiradentes...
JG_ É, eu sei...
ET_ Ele falou que o admira, ele foi muito pontual, “a historiografia deve muito a Gorender”, mas
esse comentário a respeito da Comissão de Mortos e Desaparecidos, o objetivo ali não era... “só os
padres serem os culpados, eram amigos de meu pai, de modo que Gorender foi muito duro em
relação aos padres. Eu queria saber se que mais te imbricou nessa Comissão dos Mortos e
Desaparecidos foi ela ter se baseado na versão de Frei Betto?
JG_ A comissão não se baseou em nenhuma versão. O relatório que deu origem ao voto a favor da
concessão da pensão, eu tenho esse relatório e ali diz que é um assunto que o relator não pode
resolver. O que ela se limitou a constatar é que Marighella foi morto na rua e que a polícia tinha
absoluto domínio de tudo. Então ela podia ter prendido Marighella com vida, como atiraram em
Marighella e mataram, isso justifica a pensão. O que eu comentei é com base numa série de artigos
que saíram na imprensa, naquela época, antes da concessão, foi um fato muito comentado. Todas
essas matérias eram inspiradas na versão _ no caso a viúva de Marighella, Clara Charf, apresentava
a Comissão _ eram baseadas na versão de frei Betto. O frei Betto tem inclusive no livro dele um
ditirambo que é uma homenagem a Clara, fez um elogio rasgadíssimo. É uma opção dela de acreditar
no Frei Betto ou não. Eu não tenho nada com isso. Mas aí é um problema de verdade histórica, o
Marighella é um personagem que está acima do fato dele ser pai do Carlos Augusto, ele é um
personagem político, ele não pertence a Clara, ao Carlos Augusto, nem a ninguém, está na memória
histórica do povo brasileiro. Eu não podia ali, num caso, num episódio em que foi a morte dele, a
maneira como ocorreu, ter qualquer atitude de complacência com a versão que eu considero
283
absolutamente inverídica. Eu não fui duro, eu simplesmente disse que lamentava eles terem adotado
essa linha.
ET_ A sua posição mais uma vez...
JG_ Mais uma vez e eu não tenho porquê recuar disso. É claro que não é agradável. Hoje eu estou
com boas relações com a Clara, não há problemas entre nós, nós somos militantes, estamos aí,
continuamos a militar e não há problema entre nós, mas num momento isso é claro que provoca um
certo ressentimento. Eu quero só observar para você que há pouco saiu um livro de um autor
americano, a Cynthia Hings, e ela pesquisou durante muitos anos o arquivo da CIA, que agora está
disponível nos Estados Unidos, que abrange essa fase, o ano de 69... E ela pesquisou os papéis que
diziam respeito ao Brasil, ela descobriu lá, como não só a CIA, como outras agências americanas,
treinaram policiais, tinham orientação assim na tortura, uma série de organismos lá de Washington e
daqui do Brasil, e ela não tem a mínima referência a participação dos órgãos de repressão norte-
americanos no caso da morte de Marighella.
ET_ Esta tese é defendida pelo frei Betto.
JG_ Ela não diz nada a respeito disso. Fala em vários outros episódios mais não nesses. Onde que
está a documentação disso? O frei Betto nunca apresentou, ele apresenta uma especulação.
ET_ Eu tenho o relatório da Comissão e me parece que com o passar do tempo ele começou a
entrar em contradição. Mas voltando ao comentário do Carlinhos, ele só achava que o mais
importante era ser reconhecido o assassinato.
JG_ Tudo bem. Ao Carlos Augusto é natural, ele é filho do Marighella, ele tem a versão dele, está
certo, qualquer um tem seu direito. Mas no caso aí eu repito: o Marighella é uma figura pública. Eu
como historiador, se eu defendo uma versão sobre a morte dele, tenho que continuar defendendo
diante da orientação que o noticiário da Comissão dos desaparecidos tomou, não a Comissão, a
Comissão em si não decidiu nada, nem podia decidir. Ela só aprovou a concessão da pensão.
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE ROBERTO BARROS PEREIRA
Este depoimento foi realizado no da 8 de dezembro de 1998, na cidade de São Paulo, com
Roberto Barros Pereira, ex-militante da ALN.
ET_ Quando você começou a se interessar por política?
RB_ Eu comecei a me interessar por política quando estava no 4º ano ginasial, no Colégio Paes
Leme, aqui em São Paulo. Eu era muito amigo de um primo mais velho, que nessa época estava na
faculdade, morava em Rio Claro, São Paulo, quando fui estudar no Colégio Marista em Poços de
Caldas. Depois a família mudou para São Paulo e eu fui estudar no Colégio Arquidiocesano, e
depois no Colégio Paes Leme, onde estudei do 3º ginasial até o 2º colegial. Nessa época,
exatamente por esse meu primo que estava na faculdade, eu entrei para a JEC, o que era a JEC? A
284
Juventude Estudantil Católica. Naquela época, nós estamos falando de que ano? Eu entrei na
faculdade em 63, nós estamos falando de 58. A Ação Católica foi divida em várias áreas, depende
da idade, o que o pessoal fazia? A Juventude Estudantil Católica era os secundaristas, e depois tem
a JUC, que era a Juventude Universitária Católica, depois tem a JOC, Juventude Operária Católica
e tem também os camponeses que eu não me lembro como era a sigla, mais isso foi depois. Eu
comecei a fazer política nessa área de igreja em 1958, quando eu estava no 3º ano do ginásio. O
Colégio Paes Leme ficava na rua Augusta com a Paulista, aqui em São Paulo.
ET_ Qual era o nome desse primo?
RB_ Meu primo era o Luiz Alves.
ET_ Um detalhe: de 59 já se encontraria na década de 60, uma década de efervescência e até nesse
momento você tinha alguma informação sobre Carlos Marighella?
RB_ Nada, nada, nada. Então, aí eu entrei na faculdade, na Universidade Mackenzie, era uma
faculdade superconservadora, fui fazer engenharia lá, entrei em 1963 e me formei em 1967.
ET_ Engenharia?
RB_ Engenharia Industrial. Em 1962 teve uma primeira grande transformação na política estudantil
aqui no estado de São Paulo, o que aconteceu? Pela primeira vez as forças católicas representadas
pela JEC e a juventude do Partido Comunista, se uniram para eleger o presidente da UPES, União
Paulista dos Estudantes Secundaristas, que foi o Moisés. Eu não me lembro o sobrenome dele, mas
ele foi militante do PT, hoje ele é um dos assessores mais importantes do ministro da cultura, do
Weffort, ele que libera esses recursos para projetos culturais, ele foi editorialista da Folha muito
tempo, você é lá do Rio não conhece muito. Então, pela primeira vez, em 1962 _antes era um puta
pau_ quando eu entrei, comunista com a gente era um troço complicado, não podia falar, não podia
fazer. Daí o troço evoluindo, evoluindo e nós fizemos uma aliança para derrotar a direita.
ET_ Quem era essa direita?
RB_ A direita naquele tempo concentrava os principais colégios aqui de São Paulo, colégios
grandes, eu não me lembro o nome desses colégios.
ET_ Era a classe média?
RB_ Classe média alta.
ET_ Você vinha de uma família de classe média?
RB_ Média baixa, meu pai era fazendeiro, vendeu a fazenda, veio aqui para São Paulo e comprou
um posto de gasolina, depois foi diretor de um hospital, tinha patrimônio, tinha um sítio lá em
Taubaté, meu pai era classe média.
ET_ E qual era o nível de leitura que vocês tinham?
285
RB_ A gente lia livro mais ligado a Ação Católica mesmo, eu me lembro que o primeiro livro de
economia que eu li foi do Leo Hubbermans, a História da Riqueza do Homem, o primeiro livro que
me interessou foi esse, depois eu li muito, tentei ler o capital mas não dava, era muito difícil, li muito
texto depois produzido pela Ação Católica.
ET_ Como era uma organização católica? Vocês liam algo de marxismo, alguma leitura sobre o
marxismo?
RB_ Eu comecei a ler já no 2º ou 3º ano do colégio, porque quando a gente fez essa aliança em 62,
com os comunistas, a gente começou a ter contato, a gente teve muitos amigos comunistas, a gente
discutia, eles tinham alguns livros e passavam para a gente, alguns livros do Mao, alguns textos do
Mao, ainda estavam liberados, em 62, ainda tinha bastante coisa para a gente ler, só que mais textos
do que livro na verdade.
ET_ Não era esse mercado editorial que a gente conhece hoje?
RB_ Era superdifícil. Eu me lembro que para você conseguir um livro era superdifícil, você tinha que
ir na livraria ali na praça da República, um cara perseguido, era fechado, prendiam o cara, já naquela
época, em 62.
ET_ E na faculdade, quando você entra na faculdade, como vai ser sua trajetória?
RB_ Eu entrei em janeiro de 63 na faculdade. Eu saí da JEC e fui para a JUC, que era a Juventude
Universitária Católica, que era muito mais politizada do que a JEC, já estava numa efervescência,
aquele negócio do Brasil, do governo Jango, pegava muito o pessoal, aquela radicalização, a gente
vivia muito isso lá no Mackenzie, o radicalismo era grande, a direita era muito forte, a Faculdade de
Arquitetura se dizia comunista e a Faculdade de Engenharia no meio de tudo isso, as outras
faculdades, a Faculdade de Economia, por exemplo, eram mais alienados, agente ia buscar mas era
sempre difícil de achar. Nessa efervescência toda foi radicalizando o nosso movimento. Eu logo fui
eleito representante dos alunos no 1º ano da Escola de Engenharia para fazer parte do Centro
Acadêmico Horácio Lane. O presidente do centro acadêmico era da JUC, o secretário era da JUC,
depois o sucessor também era da JUC, era um grupo muito forte, daí que eu fui ficando mais
politizado mesmo.
ET_ Quais eram as reivindicações que vocês tinham?
RB_ A primeira reivindicação, em 1963, sabe o que era? A federalização do Mackenzie. Naquele
tempo o Paulo de Tarso Santos era ministro da educação, isso marcou muito a minha vida, o
Mackenzie é da igreja presbiteriana, os pastores que orientavam eram todos americanos, a casa que
eles moravam era na Alameda Jaú, quase esquina com o parque Trianon, mas eles eram liberais.
Esse negócio da federalização pegou muito firme mesmo, mas também dividiu muito, porque a direita
não queria e a esquerda queria a federalização. Eu me lembro, em termos de ter uma ação... assim,
militar mesmo, que o Paulo de Tarso, que era ministro da educação, veio falar sobre a federalização
no Mackenzie. Lá tem um auditório que cabe umas mil pessoas, os caras trouxeram gente da
Aeronáutica e tomaram quase a metade do auditório, mas foi uma pancadaria! Quando o Paulo de
Tarso e o Moisés, que era o presidente da mesa, entraram no palco, começou uma chuva de ácido,
286
de ampolas de ácido, aquilo foi uma loucura Foi uma pancadaria, o primeiro grande atrito que teve lá
foi esse.
ET_ Lá no Mackenzie?
RB_ Foi lá no Mackenzie, foi no segundo no segundo semestre d e63.
ET_ Essa reivindicação se centrava em relação ao Mackenzie?
RB_ No Mackenzie era a grande reivindicação interna. A discussão externa estava começando a
iniciar. Eu já vinha um pouco marcado por ter participado dessa eleição do Moisés, a gente já rinha
mais acesso ao PC, o pessoal que vinha das coordenações do Partido já era mais chegado a gente,
então, a gente começava a discutir mais coisas. Daí eu fiz cursos com o Florestan Fernandes, na
Faculdade de Filosofia da USP, eu era muito amigo do Chico Buarque, fiquei mito amigo do pai
dele, Sérgio Buarque de Holanda, que me indicava algumas coisas. Tinha muitos cursos naquela
época, com caras fantásticos.
ET_ Esses cursos do Florestan eram cursos pela Faculdade ou por fora?
RB_ Eram pela universidade, na USP, que era em frente , era a Faculdade De Filosofia, teve aquela
briga em 64,em 65, o pessoal do Mackenzie quebrou a faculdade, que teve que mudar da rua Maria
Antônia. Daí, então, a gente começou a ter muito contato com o pessoal da USP e começamos a
nos politizar muito.
ET_ Você estava na renúncia do Jânio.
RB_ Então, a renúncia do Jânio repercutiu muito na faculdade, era muito claro uma radicalização
meio militarista lá dentro, eram reuniões muito fortes até altas horas da noite. Depois desse evento eu
estava o Paulo de Tarso sabia-se que o pessoal da faculdade de Direito estava muito armado. O
C.C.C. apareceu lá dentro muito forte, era comandado por todo o pessoal da direita, por gente que
hoje é superliberal, esse cara aí que hoje faz o Jornal da Record, como é o nome dele?
ET_ Casoy.
RB_ É, Boris Casoy. Sempre foi da direita do Mackenzie, do C.C.C. Ele fez Direito no Mackenzie,
ele sempre foi da direita, do Comando de Caça aos Comunistas.
ET_ E hoje fica aí tirando onda.
RB_ Hoje é um cara liberal, analisa todas as notícias, é o fim da picada.
ET_ Talvez seja por isso que eu nunca gostei muito dele. Mesmo sendo um bom jornalista, mas eu
não sei, você percebe, há um ponto nele que...
RB_ Claro. Eu sou contra, o jornalista não tem que interpretar a notícia, tem que dar a notícia, não
pode interpretar, levar o cara que está ouvindo o jornal a tomar uma posição que é a dele, é um
troço terrível isso. Eu acho que no Brasil, hoje, na comunicação, eu não sei se lá no Rio, mas aqui
em São Paulo, todos os jornais de rádio e TV tem âncoras. Você vê que é o cara que interpreta a
287
notícia, é uma barbaridade. Não tem mais uma notícia, você que vai na analisar a notícia, ao invés da
notícia o cara vai falar o que ele acha, o que não acha, é brincadeira.
ET_ Mas retornando aquele período...
RB_ Aquele período passou por um processo de radicalização muito grande, já no fim de 63 a
situação já estava muito complicada lá no Mackenzie, eles botaram fogo duas vezes no Prédio do
Centro Acadêmico da Engenharia. Na Arquitetura, saía muita briga, o pessoal já não ia muito para o
pátio, foi uma radicalização muito grande. No golpe eles tomaram conta de tudo, no dia eles fizeram
corredor polonês lá na faculdade.
ET_ Eles quem?
RB_ O pessoal da direita, tinha o pessoal da Economia, da Faculdade de Direito, algumas pessoas
da Engenharia, porque naquele tempo não era obrigatório o voto, ele era livre, embora a gente
conseguisse mobilizar muito, embora a grande maioria fosse da Engenharia, era cara que não tomava
posição, a gente era mais ativo, sempre ganhava as coisas lá dentro. E a direita ficava puta lá na
Engenharia.
ET_ Vocês conseguiam mobilizar?
RB_ Conseguíamos. A gente levava para votar, a eleição para dar quórum era um pega pra capar, a
gente dominava. No dia s golpe eles botaram fogo no Centro Acadêmico da Faculdade de
Engenharia, quebraram tudo, quem estava lá dentro botaram no corredor polonês, entraram em
algumas salas de aula, tiraram muita gente, e no pátio da Engenharia eles fizeram um corredor
polonês grande, foram buscar um pessoal da economia, muita gente da Faculdade de Direito,
tiravam o sapato do cara, amarravam um com o outro e jogavam encima do telhado, o cara passava
pelo corredor polonês e todo mundo batendo nele, um corredor polonês grande, o cara era
obrigado ainda a subir no telhado, pegar o sapato, para depois sair, machucou muita gente.
ET_ Você estava lá no dia do golpe?
RB_ Eu dei a maior sorte. Eu fui lá, logo que eu entrei senti que o negócio estava feio. Alguém me
falou “vão bora, vão bora”, eu fui embora. Eu tenho um amigo que morava na rua Itambé, do outro
lado do Mackenzie, eu fui para lá, só vi o começo e depois o pessoal falou eu fui em bora. Eu fiquei
sem ir lá u “tempão”, no Mackenzie.
ET_ Depois do golpe como é que ficou a situação? O C.C.C de ter continuado lá?
RB_ Claro. O C.C.C, depois do período da revolução, foi senhor, dava as ordens lá, vetava diretor
das escolas.
ET_ E aí você voltou a estudar?
RB_ Voltei. Eu fui para Ubatuba, meu pai tinha uma casa lá em Ubatuba, eu voltei um mês depois, eu
era muito visado ali, retomamos contato, eu sempre mantive alguns contatos aqui, mesmo lá em
Ubatuba. Quando voltei, aí sim, aquilo reativou, logo no começo ninguém saía da sala de aula, mas
288
tem muita gente, esses caras que são independentes vão botando panos quentes, tinha muita gente
que defendia a gente. Acabou o centro acadêmico, virou diretório acadêmico (Lei Suplicy) e a gente
não tinha onde fazer reuniões. O ano de 64 foi um ano complicado.
ET_ E a aproximação com a A.L.N?
RB_ Em 63, no golpe, eu já era da U.E.E, eu era tesoureiro da U.E.E, eu era tesoureiro da U.E.E,
não sei se foi em 63 ou 64. Em um ano eu fui segundo secretário da U.E.E e no outro ano eu fui
segundo tesoureiro, o presidente era o Chico Crestana, no outro era o Antônio Funar Filho.
Depois do golpe começou a radicalizar algumas posições dentro da Ação Católica, um
pessoal achava que o laicato devia fazer política. Depois do golpe isso foi radicalizando muito lá
dentro e houve um grande racha na JUC. Foi quando apareceu a Ação Popular. Onde é que
apareceu a Ação Popular? A Ação Popular apareceu em Minas, foi com o padre Ávila, com um
grupo de gente. Quem veio discutir com a gente sobre a AP foi o Betinho. Nós estamos falando do
fim de 64. Uma grande parte da Ação Católica resolveu sair e ir militar na AP, eu saí da JUC e me
tornei militante da AP.
ET_ A proposta da A.P era de luta armada?
RB_ No começo não era. Na realidade, naquele tempo, a gente tinha grande esperança que a
revolução não ia durar muito tempo. Não sei por que, mas tinha uma expectativa grande de que
haveria um movimento popular, não uma revolução, mas uma democracia de novo. O grande
problema da revolução, que a gente foi para a luta armada, era que a cada hora era uma porrada, a
gente começou a ver que a expectativa deles continuarem a ditadura erra muito mais do que a gente
tinha avaliado naquele momento. No começo todo mundo achava que isso aí ia passar rápido, ia a
o fim d ano de 64, começou a aparecer os Atos Institucionais e radicalizou mesmo no Ato nº 5. Mas
eu já estava bem preparado, como eu tinha contato com o pessoal do Partido Comunista, logo
depois que foi feita a AP uma área começou a achar que o negócio estava indo muito longe, que a
perspectiva não era a curto prazo, mas a longo prazo, aí nós começamos a discutir as alternativas.
Teve aqueles livros do Debray, “Revolução na Revolução e Guerra de Guerrilhas”. Aquilo foi nossa
leitura e muita gente começou a fazer a opção pela luta armada. Em 1968, o Marighella lançou a
A.L.N lá em Cuba, no congresso da OLAS, em julho de 68. Eu Não sei...
ET_ Foi em 67 que ele sai do Brasil e vai a OLAS.
RB_ Deixa eu voltar aqui. Em 1964 eu deixei de fazer política lá no Mackenzie, passei a fazer
política na UEE, daí eu fui segundo tesoureiro e segundo secretário, dois anos seguidos, da União
Estadual dos Estudantes. Em 1966 eu era coordenador da AP, tinha uma região grande, era o
Mackenzie, a USP era muito independente, mas eu tinha contato com os coordenadores, no contato
com esse pessoal de coordenação de A.P, aqui como a gente tinha muito, muito contato com o
pessoal do Partidão, a eleição do Serra, em 63, foi muito discutida, a eleição da U.N.E. Daí em
1966 eu fui fazer parte do TUCA. Veja como eu fiquei fora do Mackenzie! Eu fui tesoureiro do
TUCA e fui ator. Fui para a Europa, nós fomos em maio, fim de maio de 66 e voltamos no fim de
junho de 66.
289
ET_ E o regime se fechando.
RB_ O regime se fechando cada vez mais. Daí eu fiquei fazendo o TUCA, fiquei muito tempo. Em
1967 eu tinha que fazer uma opção: ou voltava para me formar, ou me profissionalizava politicamente
ou continuava no TUCA. Pensei, pensei, pensei, e resolvi que eu estava a fim de abandonar a escola,
daí eu resolvi, conversando com o Toledo, eu resolvi voltar para a escola . Não, aqui ainda não foi
com o Toledo ainda não, foi com esse pessoal do Partidão e estava indo para a A.L.N e o pessoal
de A.P já estava decidido, inclusive nós preparamos um congresso para o Marighella levar uns
documentos que ficou pronto e maio, junho de 67, foi quando ele levou os documentos para lá, para
a OLAS. Nesse tempo já começou algumas ações pequenas.
ET_ Que tipo de ações?
RB_ Na verdade, o que foi definido para a gente era a guerrilha dos pólos. O Marighella achava que
o ganho, a gente ia ter um crescimento. Porque veja bem o seguinte: eu, por exemplo, era um cara
jovem, em 67, eu sou de 1942, tinha 25 anos, eu era faixa preta em artes marciais, judô e karatê, eu
era muito forte, um cara bom de briga. Então, a gente começou a treinar para fazer ações. Então,
como nós começamos as ações? Tomar armas de alguns caras, principalmente dos vigilantes. A
primeira vez que a gente faz isso é um troço pirado. Depois de uns quatro meses era a maior
diversão da gente pegar armas dos caras. Apostava um grupo de três quem pegava mais armas, num
dia, numa semana.
ET_ Isso com a ALN já surgindo?
RB_ Já surgindo. Eu tendo isso como experiência, um dia o Marighella falou: “Vamos fazer um
assalto a banco”. Eu andando no carro, ele falou: “Pára aqui”. Eu peguei e parei. Ele pegou eu e dois
caras que estavam atrás do carro, eu, ele, e fomos num banco, assaltar um banco rapaz!
ET_ Mas assim, sem preparar, sem nada?
RB_ Mas há cinco minutos ele falou comigo: _“Você é macho pra caramba”. Eu falei: _ “Eu sou”.
_ “Você faz isso”?
_ Faço?
_ “Então, você vai assaltar um banco. Você já tem experiência em algumas ações”?
_ “Eu já, tomar armas”.
_ “Então você vai fazer”.
E eu já tinha participado daquele negócio do trem, mas de longe, eu era reserva, mas aí ele
me pegou e me deu um revólver de brincadeira e me deixou na porta do banco. Você imagina que
depois que o assalto saiu eu não conseguia nem andar. Eles me carregaram um quarteirão inteiro
para o carro, não conseguia andar, não conseguia fazer o carro funcionar e só eu que sabia guiar,
como é que ele iria?
ET_ Ele participou da ação?
RB_ Ele, eu e mais dois caras, que eu desconfio, que era esse cara que era o comandante aí deles
depois, o irmão do Virgílio Gomes.
290
ET_ Nessa ação você ficou fora?
RB_ Fora com um revólver de brinquedo para não deixar ninguém entrar. Os três entraram, eles já
viviam na realidade, eu não sei se ele queria me testar, fazer alguma coisa, ele gostava muito de mim,
o Marighella. Eu guiava muito bem, ele gostava muito que eu guiasse o carro para ele, quando ele
chegava e tal.
ET_ Em algum momento vocês foram parados pela polícia?
RB_ A gente escapou de cada uma que eu vou te contar. Era uma sorte, não era dia mesmo. Um dia
eu estava na Heitor Penteado, tinha a maior batida lá, tinha um negócio fechado ali, uma batida, eu e
o Marighella não andávamos nas avenidas, eu conhecia muito São Paulo, a gente só andava nas ruas
secundárias, nunca eu andei com o Marighella na Paulista, nunca na Rebouças, nunca, nunca, nunca,
só em ruas secundárias. No fim de 66 para 67 eu fui trabalhar numa firma de planejamento, e lá tinha
um núcleo da ALN. O chefe lá era o Farid de Hellú, que era o segundo homem da organização em
São Paulo, e a gente planejou a maioria dos assaltos em São Paulo, nós planejamos lá (risos). Era
um núcleo formado por seis pessoas, um dos participantes era o Norberto Nering, o Farid Hellú,
uma arquiteta, que hoje mora nos Estados Unidos, a Rita, um economista e a mulher dele. Nós
recebíamos o levantamento do banco, depois a gente estudava na prancheta todos os planos de
fuga, primeiro tinha que fazer o levantamento, todas a situações, se ele entrasse em tal rua, se ele
chegasse e estivesse fechada como que ele saía.
ET_ O levantamento era o horário...
RB_ Isso mesmo. Você ia pagar alguma conta, entrava na fila, via qual era a saída dos bancos,
quantos caixas ele tinha, se tinha caixa forte, quantas pessoas trabalhavam no banco. Tudo era
mapeado e levado para o pessoal da ação. O pessoal da ação chamava Grupo Tático Armado,
GTA, nós tínhamos, aqui, cinco ao final, era um, depois dois, três... Foi crescendo, e que às vezes
faziam ação conjunta.
ET_ Esses GTA’s atuavam em ações específicas?
RB_ Depende das ações. Teve ações que todo mundo participou. Teve uma ação que nós
assaltamos dois bancos ao mesmo tempo, lá na Mooca, na Avenida Paz de Barros, uma esquina era
a Caixa Econômica Federal, na outra o banco Itaú. Foi lá que matou um cabra deles, você ficou
sabendo? E o Chiquinho que era nosso, teve um cara que deu um tiro no estômago dele. Isso foi um
troço fantástico. Nós saímos dali e fomos para onde tem o autódromo de Interlagos e tomamos um
hospital.
ET_ Para tentar socorrê-lo?
RB_ Tentar não. Chegamos lá dez horas da noite, tomamos o hospital, operamos o cara e saímos de
lá as cinco horas da manhã. Como não tinha sangue, viemos roubar sangue no Hospital das Clínicas
em Interlagos (risos). Quando a gente veio roubar sangue no Hospital das Clínicas, saímos aos gritos
de lá depois (risos).
ET_ As palavras de ordem contra a ditadura?
291
RB_ Lá não. Nós fizemos sempre isso, mas nesse dia não, senão o pessoal podia descobrir que a
gente estava no hospital, nós saímos e a polícia chegou. Teve coisas assim de segundos.
ET_ E como o Marighella se comportava nesse cerco, nesse exemplo que você deu?
RB_ Ele era o cara mais tranqüilo do mundo. O Marighella, eu acho que é um troço meio forte o que
eu vou falar, ele era louco, porque o cara que não tem medo é louco, ele não tinha medo. Olha, um
puta de um troço do exército fechando à rua, e eu subindo, ele atrás com três caras, num fusca meu
mesmo, eu guiando com um outro cara do lado, passa um carro com um bando de caras
superarmado, eu acho que eles desconfiaram quando passou aquele bando de gente no mesmo
carro, ficaram olhando, olhando pra gente e ele tirando sarro. Eu tremendo, quase não conseguia
guiar, e ele tirando sarro dos caras: “Tão perto e tão longe” _ ele falava _ “olha se eles soubessem,
hem”? Estava todo mundo armado ali.
ET_ Ele para vocês ouvirem.
RB_ Falava para nós dentro do sarro, baixinho, tirando sarro. Ele é o único cara que eu conheci que
não tinha medo de porra nenhuma. Um dia, eu quebrei um puta pau com ele, aqui tem uma rua
chamada Teodoro Sampaio, num bairro conhecido, Pinheiros, ela termina num largo, onde tem uma
igreja. Eu fui a um ponto com o Marighella ali, um troço perigoso, eu não gostava daquele ponto,
inclusive depois ele mudou, era muito perto do largo e não tinha saída, a única coisa que tinha era
passar no largo. O largo era um pepino que vivia tendo batida do exército. Você imagina que eu
chego no ponto _ eu nunca cheguei atrasado, eu chegava rigorosamente no horário _ o Marighella
está encima de uma banca de jornal fazendo um discurso (risos). Você imagina, eu com arma no
carro...
ET_ Que hora foi isso?
RB_ Quatro horas da tarde. O que aconteceu? Deram uma batida, tinha um bar, eles foram lá e
baixaram cacete nos caras. Ele ficou revoltado, foi lá, esperou o pessoal sair e meteu bronca (risos).
Você tem alguma fotografia do Marighella? O Marighella era um cara de dois por dois, muito maior
que eu, ele era ridículo, colocava uma peruca. Para você ter uma idéia, eu conheci o Marighella, dois
meses depois que eu conheci o Marighella estive três ou quatro vezes com ele só, eu estou em frente
do Mappin, você conhece a cidade? Em frente o Mappin tem a rua Xavier de Toledo e no fim é a
Praça da República, tem uns quatro quarteirões essa rua, você imagina que eu estou aqui no Mappin
e estou indo para lá encontrar com ele, eu vejo ele entrar aqui, reconheci ele há quatro quarteirões.
Ele era um mulato de dois por dois, o braço dele era deste tamanho, com uma peruca que se dividia
no meio, uma peruca preta, então, ele não se disfarçava, nunca que um homem daquele (risos), com
uma peruca repartida no meio. E ele na cidade comprando livro, entrando na livraria. Ele era foda!
ET_ Nesse contato, ele tinha algum tipo de preocupação com vocês?
RB_ Ele tinha muita preocupação com a gente, ele não queria expor a gente. Ele achava que a ação,
seguindo a norma da guerrilha, a gente tinha que ter todas as vantagens possíveis, se faltasse algum
item era para cair fora. A primeira coisa era a surpresa, nós tínhamos que ter uma surpresa. Nós
tínhamos que ter uma condição de fogo que não podia estar tão abaixo que a do adversário, se
292
possível sempre maior, mas era impossível isso para a gente. O pessoal fez a loucura de assaltar
quartel, se você ler aquele livro daquele cara carioca que depois ficou aqui na organização...
ET_ O Carlos Eugênio?
RB_ O Carlos Eugênio vais dizer o seguinte: que nós começamos a deixar de ganhar quando
deixamos de seguir aquelas regras de segurança, porque esse negócio de atuação clandestina dá uma
força interior fudida, você começa a se achar superior a todo mundo, por exemplo, você pega uma
rua e tinha uma barreira, saía um cara com uma arma e um cara com uma metralhadora, os caras
corriam com medo da gente. Isso foi dando uma força, todo mundo se achava meio super-homem,
chegava um cara e propunha: _“Vamos fazer uma ação assim”? _ Vamos. Mas o que é isso? Você
tem levantamento? Não tem. Tem elemento surpreso? Não sei. Quer dizer, nada era obedecido.
ET_ Vocês superestimaram a força que tinham?
RB_ Isso mesmo, você vê, o Marighella sempre falava pra gente. Muito, muito. Quando se reunia
muita gente, esse pessoal do GTA, ele falava para a gente: “Olha vocês tomam cuidado, vocês tem
que ser frios, tem que analisar, tem que ter rodas as condições, esse negócio do ponto, não tem que
ter sentimentalismo”. Na realidade alguns caras namoravam alguma menina, aí chegava no ponto com
uma menina, era o seguinte: você tinha que chegar no máximo um minuto antes ou dois minutos
depois, se não, se manda; o cara não chegava dez minutos depois, o Jeová, que era um puta quadro
da ALN, era um geólogo da USP, não de formou, era um cara que tinha dois metros de altura, você
via o Jeová de tudo quanto era lugar, “lá vem o Jeová”; Por que caiu? Ele marcou com um cara um
ponto numa hora, o cara foi preso uma hora antes, apanhou, agüentou quarenta minutos, abriu o
ponto. Em quarenta minutos tem que abrir mesmo, é muita porrada. Vai lá e o Jeová está lá no
ponto, uma das maiores lideranças da ALN.
ET_ Era a orientação do Marighella?
RB_ Claro. Cadê o um minuto, dois minutos que você tem que ficar ali e se mandar? E se mandar
para longe, não ficar para ver não. Muita gente também foi presa porque fazia uma ação e depois
voltava para ver a merda que tinha feito, ia ver o resultado. Depois que começou uma puta de uma
decadência, é claro, o pessoal ficou mais com medo. Agora, o Marighella era um cara que de
primeira ele conquistava as pessoas, um cara de puta humanidade, o companheirismo, a
preocupação com as pessoas, com a defesa do Brasil, com os mais humildes.
ET_ Você tem algum exemplo que demonstre esse lado humano, esse lado solidário?
RB_ O Marighella é isso que eu lhe falei. Esse lance que eu te falei, dele subir lá, aquilo marcou muito
para mim, depois eu quebrei um puta pau com ele por causa da segurança. Sabe o que ele me falou:
_ “Eu não consegui, vi os operários apanhando”! Ele arriscou a vida dele e a minha também,
quebramos um puta pau, nesse dia nós conversamos muito feio porque ele contrariou todas as coisas
que ele dizia, que ele prega. Se expôs muito, as quatro horas da tarde, o cara sobe, todo mundo
ficou sabendo que era ele ali. Ele era um cara assim é... Várias reuniões, a gente fez com os
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dominicanos, ele se vestia de padre (risos), gostava de ficar conversando com as freiras (risos),
queria ganhar as freiras no papo, ele vibrava c isso, ele vibrava com isso.
ET_ Isso dentro do convento?
RB_ Dentro do convento. Era muito longe, um convento com freiras e aquele puta crioulão lá, com
batina até no joelho (risos). Eu fiz isso umas três vezes, ele queria ganhar as pessoas.
ET_ Ele queria atrair as freiras para a luta como atraiu os padres?
RB_ É, como atraiu os padres. Então, ele tinha aquele lado, se preocupava muito com a gente,
valorizava.
ET_ Ele tinha algum tipo de brincadeira?
RB_ Eu não me lembro disso. Eu me lembro que ele era muito brincalhão, gostava muito de contar
caso quando a gente estava muito tenso, exemplos do que ele tinha passado, ele contava muitas
histórias do Partido Comunista. Na verdade Ele ridicularizava esse pessoal da ditadura,
principalmente esse pessoal da repressão, ele dizia: “Ah! Esses caras não são de nada. Tem que
fazer cara feia, ir para cima”. Nesse dia mesmo, que um carro ficou andando atrás de mim uns cem
metros, todo mundo naquela tensão, mas até ria do que ele falava: “Olha a cara daquele babaca, que
filho da puta, eu quero sair daqui”. E o cara com uma puta metralhadora, uma C-14, com dez caras
dentro. Ele gostava muito de contar caso, contar piada, na hora da tensão ele conversava muito com
a gente, preparava muito as pessoas. Ele acreditava muito que o povo fosse dar sustentação para a
gente, mesmo nos últimos momentos, assim que ele podia estar acreditando, porque a gente se isolou
muito, esse livro desse rapaz mostra bem, que a gente, na verdade, passou só para a ação militar,
não teve mais ação política O pessoal não acreditava, a dominação, a divulgação jogou o povo
contra a gente, nós éramos vistos com bandidos. Isso foi deixando o Marighella meio... A gente
tenso, e o Marighella meio... Porque aí a gente misturou tudo, os dominicanos, que eram da parte da
inteligência, começaram a assumir coisas que não eram para eles fazerem, faziam até transporte para
o lugar onde nós íamos fazer assalto, isso não era para eles, não tinham estrutura para isso.
ET_ No momento em que o cerco vai se fechando, você teve algum contato com ele?
RB_ Eu tive contato com o Marighella uns vinte dias antes dele morrer. Ele morreu dentro de um
carro que estava no meu nome, num ponto que eu me encontrava com ele, na Alameda Casa
Branca. Aquele carro não era meu, foi comprado no meu nome pelos dominicanos. Ele mostrava
sempre pra gente que ele estava sempre otimista, dava sempre notícia de fora e: “Não, agora a gente
vai ter apoio; não, agora a gente vai caprichar mais na propaganda”. Tanto assim que uns dias antes,
num 1º de maio daquele ano, nós fizemos uma puta de uma divulgação aqui em São Paulo. Eu me
lembro que eu fui escalado para ir na Praça da Sé, eu fui muito carregado mesmo, de manifesto. O
pessoal tinha ido de madrugada e tinha colocado encima dos prédios, era feriado e o vento
começava a levar os manifestos. Quando eu cheguei lá na Sé, já estava caindo muito era repressão
chegou braba na Praça d a Sé, eu estava carregado. Então, eu fui até uma banca de jornal e coloquei
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ali encima, como estava ventando... Quando eu cheguei ali tinha uns três caras da ALN, não
pegaram ninguém ali.
ET_ Nesses vinte dias antes da morte de Marighella, ele se encontrava numa posição de recuo ou
ele...
RB_ O que o Marighella cobrava era a ida para o campo. Ele cobrava muito da gente aqui de São
Paulo.
ET_ O que ele falava?
RB_ Eu não sei o que falhou nesse negócio do campo. Ele falou que não era recursos, que a gente
tinha, a ente fazia os assaltos de cara limpa, todo mundo de cara limpa. Então, tinha uma expectativa
de que o cara ia se queimar logo, tinha que se mandar logo. Daí não foi embora, ficaram anos e anos
assaltando com cara limpa. Deixa eu contar para você uma parte aqui. O grande pepino nosso sabe
quando foi? Um troço inteligente que a repressão fez: quando teve o Congresso de Ibiúna, que eles
levaram o pessoal do DOPS, ficaram lá quarenta dias e o resto ficou mais tempo. Eles ficharam todo
o pessoal de Ibiúna. Na ALN, 80% eram universitários, principalmente da PUC de São Paulo, as
grandes lid eranças do grupo armado, era o Fleury, que era da PUC, e o Takao, que eu não sei se
era da PUC. Mas eles ficharam todo mundo. Eles tiveram dificuldades nos primeiros tempos por
causa de que? Porque todo mundo usava nome falso, embora fosse um negócio meio liberal,
Marighella condenava esse negócio do pessoal, como a gente se conhecia... Eu peava o Marighella e
ia levar numa reunião com vinte caras, daqueles vinte eu conhecia quinze, de tanta conversa e já tinha
ficado o dia inteiro e daí já começava a chamar pelo nome, ele ficava puto com esse negócio, ele
achava que esse negócio de segurança tinha que ser seguido a risca. A repressão baqueou a gente
quando ela começou, fez um álbum, com o nome de todo mundo do congresso e na tortura eles
identificavam, eles apagavam o nome e colocavam o nome de guerra. Então, eles mapearam todo
mundo, esse foi o grande troço, eu acho, que liquidou a gente.
ET_ Ele direcionava a luta para o campo nesse momento? Em outubro, antes da morte dele, afinal
você teve contato com ele em outubro.
RB_ Isso nós não discutimos muito já no fim não. Ele fazia um levantamento de que a repressão tinha
tido um ganho político, inclusive em termos de repressão mesmo. Ele não acreditava que os caras
dessem uma resposta tão rápida. A OBAN, ele não acreditava que no começo o exército fosse para
a repressão, repressão armada, que fizesse um centro de torturas, não pensava que eles fossem até
lá, eu acho que eles foram muito rápidos, montaram essa aparelhagem de toda repressão muito
rápido, acho que eles não esperavam que tanto oficial do exército aderisse tanto a tortura como
aderiu, praçinha, general, capitão.
ET_ Cair de pau em cima?
RB_ É, torturar e gostar de fazer aquilo que fazia. Ele achava que o DOPS era mais fácil, já exercia
essa função, já estava fazendo isso há muito tempo, mas ele, eu acho que ele não acreditou muito
que o exército fosse entrar tão pesado assim.
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ET_ Ele chegou a comentar algo das prisões por que passou?
RB_ Comentou muito. Falava da prisão, aquele episódio do Rio que ele reagiu a prisão, ele contava
muito sobre aquilo lá. Eu o levava em muitos lugares e as vezes ele ia contando.
ET_ Sempre incentivando?
RB_ Sempre incentivando. A vida só valia enquanto você lutava pelos pobres, o resto era...
ET_ Em relação a morte, Roberto, como que você vê essas versões sobre a morte de Marighella?
RB_ Não existe o herói na tortura. Tem um limite. É claro para mim que os operários, naquela
época, resistiram mais do que a gente, classe média, universitários, e é claro que nós resistimos muito
mais do que os padres, eles não estavam preparados para isso. A prisão é uma violência, a tortura é
um massacre, é muito complexo. Quando eu encontrei os dominicanos, os dominicanos tiveram uma
ligação direta comigo, porque a gente estava montando um esquema de gráfica, eles eram muito
meus amigos antes, quando eu era da Ação Católica, freqüentei muito o convento dos dominicanos,
quando eles vieram para a ALN, eles vieram muito depois.
ET_ Antes da JEC e da JUC você já freqüentava?
RB_ Já freqüentava. E lá tinha um cara fantástico, que era o padre Chico, um grande orador. A
missa das 19h dele parava que um quarteirão todo lá, era fantástico.
Bom, mas aí viera esses grupos de dominicanos, a missão que eles tinham era fazer o quê? A
inteligência dentro da ALN; analisar, informar, mesmo depois dos levantamentos ver como é que a
gente ia fazer aquilo, providenciar documentos, mandar informação pra fora, criar uma rede pra fora,
de levar o pessoal embora, o Betto foi lá. Meu caso mesmo, levei o [Norberto Guerra] entreguei na
mão dos tupamaros lá no sul, lá em Porto Alegre ele depois foi assassinado ali na fronteira e
apareceu que ele se enforcou numa pia. Na realidade, não dá para você ter uma certeza sobre as
coisas. Deixa eu contar uma coisa, eu fui preso no dia 4 de novembro de 1969, a uma e meia da
manhã. Antes da morte de Marighella, ele foi morto as vinte horas, em torno das vinte horas. Ele foi
morto num carro que estava no meu nome e num ponto que era o meu, a Alameda Casa Branca. Eu
que encontrava com o Marighella lá algumas vezes. Os dominicanos também tinham esse ponto, isso
eu achava ruim com o Marighella, as vezes os pontos coincidiam, era muita gente num ponto só, era
muito seguro. Os dominicanos, O Yves e Fernando, eles começaram a ser seguidos aqui em São
Paulo, daí eles marcaram encontro com o Sinval, que não era padre ainda, mas estudava no
convento dos dominicanos, no Leme. Foram pra lá encontrar com o Sinval, e o pessoal do Fleury foi
junto com eles no ônibus, eles são tão inocentes que não perceberam. Quando eles desembarcaram
o Ivo levou no bolso dele o documento do carro que estava no meu nome, eles chegaram lá... Eles
saíram daqui à noite, eles chegaram pelas oito horas lá no Rio, foram presos, levaram lá para a
Marinha, eles apanhavam da hora que chegaram até a hora que saíram de lá, onze horas da noite.
Das nove horas, mais ou menos a hora que eles chegaram, às duas da tarde não perguntaram um “a”
para eles, só apanharam, só apanharam.
ET_ Isso ele te relatou?
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RB_ É. Depois, quando eu vi os dois, eu fui preso então a uma e meia, cheguei lá devia ser umas
duas horas, porque eles bateram em mim antes de sair de casa, no carro foram buscar um outro
amigo meu, um engenheiro também, que eu conheci lá no grupo, então eu cheguei lá pelas duas e
meia, três horas. Quando eu cheguei lá tinha uns trezentos presos. Eles me levaram numa sala e
deixaram todo mundo num corredor grande, tinha uns caras, batiam nas pessoas, chegavam com
alicate e tiravam mecha de cabelo, o coro comendo lá. Daí me levara numa sala meio escura que
estavam três paus-de-arara armado, estava cheio de água e o pessoal da tortura brabo lá, tiraram
eles de um lugar, que eu não sei se era o pau-de-arara, estava escuro lá, botaram na minha frente, eu
não reconheci os caras.
ET_ Os dois?
RB_ É, eu não reconheci primeiro o Fernando, eu não reconheci a voz, nem o jeito. O Fernando eles
tinham passado um maçarico aqui e a cara dele estava completamente deformada, estava deste
tamanho, de um lado só estava tudo torto, a boca dele estava toda inchada, não dava para saber o
que ele estava falando, barbaridade.
ET_ E você, chegaram a te perguntar sobre Marighella?
RB_ Claro. Eles vieram logo em seguida para cá, então, eles prenderam uns dominicanos. Eu tinha
muita relação com eles, e esses sim falaram muita coisa a meu respeito, que eu dava cobertura ao
Marighella, que eu fazia isso, fazia aquilo, que eu conhecia o Toledo, isso foi complicando um
pouquinho. O problema da polícia é o seguinte: Se você tentar a história mentirosa, isso você
aprende com outro ara, se ele tem a mesma história mentirosa, se bateu, acabou.
O problema é o seguinte: eles põe você no pau-de-arara, tapam seu nariz assim, põe uma
sonda aqui, tapa a sua boca e eles perguntam a você:_ “Olha! Fulano de tal está ali, ele falou isso,
isso, que no dia tal você saiu para tal lugar, em tal carro, você estava num tal jeito, fazendo assim,
assim. Quem que você foi encontrar lá? _ “Não sei”. Fodeu! Eles levantavam o negócio para fazer
afogamento. E o que era isso aí? Era salmoura e urina. Como que você quer que um cara resista a
isso?
ET_ É complicado.
RB_ (Emocionado) É foda cara. Não tem jeito. Esses caras passara por tudo isso.
ET_ Eles queriam o Marighella?
RB_ Queriam o Marighella. Só o Marighella, chegar no Marighella. “Cadê o Marighella? Cadê o
Marighella”?
ET_ Você sentia uma certa irritação deles um medo em relação ao Marighella?
RB_ Ah! Com certeza. Eles estavam completamente dopados. Eles pegavam esse negócio de
Mogadon, punha na boca e mastigava. Isso aí foi uma tortura direto, troço brabo com todo mundo
até mais ou menos quatro horas da tarde, quatro horas acabou, sumiu. Deixaram a gente no chão.
Daí levaram para a sala de um delegado, ficou todo mundo numa sala meio escura, e daí levaram a
gente para baixo.
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ET_ Isso no DOPS?
RB_ No DOPS. Então, a gente estava sendo torturado pelo segundo ou terceiro andar e as celas
eram lá embaixo, lá pra baixo mesmo, no porão. Era um tal de um delegado, Edson Mainhotti,
porque na tortura sempre tem um jogo fudido, tem os mauzinhos e um bonzinho, e o Edson
Mainhotti era o bonzinho. Então, fechou todo mundo e disse: “Não vou deixar mais torturar vocês.
Vou mandar buscar um lanche.” Mandou buscar lanche, água. Chamava um e falava: “Você falou
muito, não falou muito, cuidado!” Estava querendo tirar o sono da gente. É um jogo que eles fazem.
E aí levou a gente lá pra baixo e eles não, os dominicanos não. E aí estava todo mundo lá, e aí você
imagina, todo mundo arrasado, machucado, ensangüentado, uns colchões muito ruins jogados nos
cantos, uma luz forte assim o tempo inteiro, o banheiro sem nada fechado, aquele banheiro que você
faz no chão, um troço brabo. Bom, aí quando chega lá pelas nove horas eles aparecem lá, o Fleury,
o Raul Pudim, esse pessoal todo, fizeram uma puta festa dizendo que tinha matado o Marighella.
ET_ Vocês, até então, não sabiam o que estava acontecendo?
RB_ Não. E os caras saíram. O acras se mandaram. Já tinham sumido. Daí passou um dia, não sei
daí quantos dias passaram, apareceu um jornal lá, A Última Hora, quando eu fui ver, tomar
consciência das coisas. Eu tive uma sorte. Acho que foi uma sorte. Sabe o que é? Me bateram muito
na minha casa, antes de sair, você já fica meio zonzo, eu fui jogado da escada, três andares, me
davam muito tapa por trás nas duas orelhas, eu já comecei a ficar zonzo, não enxergava direito,
cheguei lá já estava uma confusão. O que eu posso te dizer depois é que um cara, um operário me
chama para ouvir um depoimento de um dominicano, era o Ivo, porque o Ivo tinha aparecido na
noite e eu não tinha notado, eu nem sei quando voltaram, com um machucado muito grande na
nádega. E daí esse cara disse: “Eu quero que você seja testemunhado que esse cara vai falar”. E aí
ele ficou tão desesperado: “Não, eu não quero que vocês achem que nós somos os culpados do que
nós fizemos lá”. Ele estava desesperado, mas confirmou.
ET_ O que ele confirmou?
RB_ Que ele estava lá na rua no dia da morte do Marighella. Ele e o Fernando, que tinha ido lá,
quando o Marighella entrou eles saíram do carro correndo.
ET_ Teve um que foi mordido?
RB_ É o Ivo, quando ele saiu o cachorro veio e mordeu a nádega dele. Quando ele retornou tinha
que fazer curativo na nádega que ele tinha machucado. Esse operário pressionou muito o Ivo para
ele falar, e é o Genésio.
ET_ Genésio Homem?
RB_ Que a gente chamava ele de Rabotti. Ele me chamou e chamou mais umas duas pessoas, o
marinheiro que estava peso lá mais um cara. Daí agente viu que eles tiveram algum envolvimento,
mas dizer que foi aquilo ou não foi e’’ muito complicado. Você vê, quando a gente foi lá tinha uma
rixa muito grande, era o pessoal da ação, do GTA, com os dominicanos, eles não perdoavam os
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caras. Eu sempre fui de uma linha que essa é essa que eu estou te falando, o cara depois de preso, a
resistência dele vai até um certo limite, depois ele... Eu não sei hoje qual é minha posição, eu sou
muito temeroso em acusar, esse troço, essa história é um troço fudido, que eles tiveram participação
eles tiveram, saíram de lá as cinco horas e voltaram à noite.
ET_ Só confirmando aqui, quem estava com você, o Genésio, o Yves e...
RB_ Eu, Genésio e um sargento da marinha, Cavalcanti, foi de madrugada.
ET_ Isso depois da morte do Marighella?
RB_ Um ou dois dias depois. E ele realmente falou que estava no carro, que ele saiu correndo e que
o cachorro mordeu a nádega dele.
ET_ Mas você, que teve contato com Marighella, você não acha que essa valentia dele não fez com
que ele se despreocupa-se com a sua segurança?
RB_ Sem dúvida. O Genésio, hoje, garante que tinha um cara na segurança do Marighella, quando
eu estive com o Marighella, nunca chegou um cara antes no meu carro, ele chegava direto. Nunca o
Marighella veio com mais outras pessoas, nesse mesmo local. Por que exatamente naquele dia ia ter?
Se ele sabia... Isso é que está, vê como há um erro de organização: Como que o Marighella vem pra
cá, eu era um cara que saía mais com ele, guiava o carro, levava ele para tudo quanto era lugar, eu
estava preso uma e meia da manhã, os dominicanos tinham sido preso no dia anterior, e ninguém
sabia, tinha trezentos caras da organização presos, é muito complicado.
ET_ Por mais que a imprensa fosse censurada alguma coisa tinha que vazar.
RB_ Rapaz, alguma coisa de segurança tinha que ter, ele não podia ir num troço sem conversar com
dois, três caras que tinham ligação com aqueles caras. Essa história toda é muito loucura, não é? Se
a história da polícia toda é verdadeira, a segurança é uma irresponsabilidade, ou não é?
ET_ Você discutiu com ele sobre segurança?
RB_ A gente teve várias discussões. Nesse dia que ele fez esse negócio, depois que eu encontrei
com ele, depois que ele veio ali na cidade, eu fiquei puto, ele se expôs muito, ele já estava visado:
“Pô Mariga, eu te vi a quatro quarteirões, imagina um cara do DOPS que é treinado para isso.
ET_ E a reação dele?
RB_ Ele dava risada, ele era foda, ele era um cara forte. Ele ouvia muito a gente, levava na gozação
(risos), mas ouvia muito. A gente teve muita briga sobre segurança.
ET_ Fora da discussão política você o viu alterar com alguma pessoa, ele muito tenso?
RB_ Várias vezes eu vi o Marighella muito tenso, muito triste, quando ele sabia das perdas, quando o
pessoal relatava para ele, tinha época que ele sentia que o negócio não estava avançando, estava
refluindo, perder um quadro naquela época era um troço, nós éramos muito pouco.
ET_ E ele na ação, ele assumia a liderança da ação?
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RB_ Era. Ele não fazia muita ação. Nessa, que eu te contei, mesmo com a polícia chegando, a gente
ouvindo aquele barulhão, ele estava tirando um puta sarro. Nessa ele mandou: “Você vai fazer isso,
você vai fazer aquilo”. Ele entrou tranqüilo, e fez discurso quando o pessoal foi pegar o dinheiro.
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE SALOMÃO MALINA
Este depoimento foi realizado no dia 16 de dezembro de 1998, na sede do Partido Popular
Socialista, em São Paulo, com Salomão Malina, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro.
ET_ Na sua trajetória política qual foi o seu contato com Carlos Marighella?
SM_ Eu entrei no Partido nos anos 40. Eu não conhecia Marighella, ele era daquele grupo da Bahia,
também não conhecia ninguém ali, eu estou falando assim para concatenar as idéias, para você ter
300
um pouco a idéia. Eu ouvi falar a primeira vez do Marighella foi em 46, com a constituinte,
Marighella foi eleito.
ET_ Isso em qual cidade?
SM_ Ele foi eleito pela Bahia, mas a constituinte, no Rio, funcionava onde hoje é a Assembléia
legislativa, ali funcionava a Assembléia Constituinte, naquela época. O Partido tinha uma bancada de
quinze deputados e um senador, se não me falha a memória. Os nomes desses deputados eram mais
ou menos conhecidos, o Partido teve uma atuação destacada e o Marighella era um desses nomes.
Depois, em 47, cassaram o registro do Partido e eu perdi contato com o Marighella, continuei ligado
ao Partido e caí em janeiro de 47. O pessoal me mandou trabalhar no Imprensa popular, eu era tão
burro na época que o que mandava a gente fazia. Você conhece o Rio?
ET_ Sim, conheço.
SM_ O pessoal escolheu um lugar que era uma beleza, era ali na rua do Lavradio, você andava uma
esquina, quase na esquina da Relação, era a polícia central naquela época, atrás tinha um morro, o
morro de Santo Antônio, me parece que demoliram lá no Rio, e se a polícia fosse escolher um
mesmo lugar que a gente não ia escolher outro: era ali. Bom, ficamos lá, fui preso, saí dois anos
depois. Depois foi tudo meio conturbado pelo Manifesto de Agosto, fui preso novamente em 53,
depois em 54 fui candidato _ naquele tempo você era candidato para driblar os caras _ e em 54,
com o processo que eu tinha lá, decretaram a minha prisão, com o golpe que houve, e aí eu vim me
embora para São Paulo. Quando eu cheguei em São Paulo fui trabalhar na Seção de Organização e
aí o primeiro secretário do Partido era o Marighella, aí eu tive um contato com ele aqui, mas era
muito restrito. Eu era de uma seção, ligado a outro secretário e ele era da Executiva Nacional, que
estava em São Paulo. Meu contato com ele era relativamente pequeno, era ocasionalmente em
alguma reunião.
O que posso dizer para você da época? Você ia encontrar um cara boa praça, liberal, se
dava bem com o pessoal, não enchia o saco, porque tinha uma escola naquela época no Partido, que
achava que para você ser um bom comunista tinha que encher o saco de todo mundo, cumprir um
monte de exigências absurdas, coisas que você, que está estudando a história do Partido, deve
conhecer. Ele não era dessa escola, infelizmente tinha pessoas que por índole pessoal se davam
muito bem nesse sistema.
ET_ Mesmo esse contato sendo escasso, qual foi a impressão que ele te causou?
SM_ Eu prefiro continuar, porque depois aí tive maior contato com ele num segundo período.
Pessoalmente ele sempre me tratou muito bem, de forma assim, discutia coisas do partido, mas nada
assim que fosse mais substante. Em 1957, já depois da denúncia do Kruschev, o Partido começou a
fazer uma série de modificações e eu fui transferido para o Rio de Janeiro. Fui pra lá, fui dirigente
distrital lá no Rio e o primeiro secretário lá era o Marighella. E aí sim foi aonde eu tive um contato
mais próximo, como pessoa, ele foi uma pessoa para mim, pessoalmente, foi muito importante na
minha vida, porque eu tinha uma visão política quase religiosa e aquela denúncia chocou muito a mim,
como a muitas pessoas. Devido a minha precária formação teórica, ao meu atraso, pela minha
cabeça que eu tinha, aquele esquema de fazer tudo certinho correspondia exatamente a minha
301
maneira de pensar. Então, de repente descubro que não é nada daquilo, que é uma outra história,
aquilo me baratinou. Nesse momento o Marighella entendeu essa história e foi muito paciente
comigo, várias vezes marcou encontro comigo em horas que não havia necessidade, fora de uma
atividade política, eu comecei a sentir que era mais bater papo comigo, para me explicar e foi me
explicando as coisas. Ele entendeu muito melhor que eu o que houve, melhor do que eu, tanto que
ele começou a ser discriminado no Partido, aí dava para perceber, porque como eu era considerado
um dos mais sectários, alguns deles se abriam comigo e metiam o pau no Marighella, porque ele era
visto como um cara que queria mudar as coisas.
ET_ O que ele conversava com você nesses encontros?
SM_ Naquele período era mais para explicar o que foi o culto a personalidade, a causa daquilo, que
aquilo não foi uma coisa qualquer, era sério e com um pouco de história, ele era um homem
intelectualmente avançado, ele tinha não só uma boa cabeça, mas uma boa bagagem, pelo menos
maior do que a minha. Ele realmente conhecia às coisas, foi me chamando a atenção para certas
coisas do Lênin, do Trotsky, quer dizer, uma revisão daquela história, que do jeito que eu conhecia
comecei a ver que aquilo era algo que não estava havendo, que a denúncia do culto era algo de
positivo e não negativo, dentro do processo geral, que aquilo tinha sido uma deformação, que
superar aquilo foi uma coisa até boa pra mim, foi muito importante isso, se não fosse isso sei lá,
talvez eu tivesse saído Partido tivesse mudado o rumo da vida. E foi diretamente o Marighella, foi
uma pessoa que influiu e fez isso desinteressadamente, eu não tinha nenhuma ligação com ele assim,
ele teve essa boa vontade, provavelmente terá feito isso com outras pessoas também, eu não sei,
mas pelo menos comigo, eu devo isso a ele.
ET_ Ele te procurava fora do âmbito do Partido, na sua casa?
SM_ Em casa não. Não estava também tão mole o negócio não, as vezes ele podia até passar, mas
em geral não era, por exemplo: as vezes ele marcava um encontro comigo, ele dizia vamos almoçar”.
Aí num canto qualquer a gente sentava, num lugar longe do troço e durante a comida conversava
sobre as coisas do Partido, que virtualmente falávamos e o resto era para falar sobre essas coisas aí.
Na medida em que fui sentindo o interesse dele, eu comecei também a me abrir, a mostras minhas
dúvidas, as minhas dificuldades, ele foi discutindo comigo, me orientando, me dando material para
ler. Nesse sentido ele foi uma pessoa muito importante para mim, eu devo isso a ele. Depois foi
também um período curioso, porque foi a primeira vez que eu fui ver, logo depois disso, o Prestes,
eu não sabia que ia ver o Prestes, foi um grupo da direção, não foi a direção inteira, o fato é que de
repente numa reunião: o Prestes! Aquilo foi muito importante também pela figura que era o Prestes,
mostrando os caminhos da mudança. Aí depois de 58 a coisa começou a virar, o Comitê Central
mudou a direção, O Prestes desapareceu pelo processo que tinha com ele, o Marighella foi para a
Executiva, na época, já nova, com a nova, ele era responsável pela área de finanças e por outras
coisas lá. Eu fui para o Secretariado do Partido no regional do Rio, então eu tinha um contato com
ele, mas era muito... Ele andava muito atrapalhado na época, você imagina, negócio de finanças, o
Partido saindo da legalidade, ele era muito solicitado, a gente se cruzava na época, conversava, mas
eu nunca tive assim uma coisa maior. Ele ficou nisso um tempo, depois do V Congresso, se não me
302
falha a memória, ele saiu do que estava e ficou responsável pelo trabalho de massas. Geraldo deve
ter lhe dito melhor, na época já era chefão lá. Meu negócio ainda era no estado, era lá. Então, era
comum no trabalho, eu encontrava o Marighella, ele conversava comigo, essa coisa, mas não havia
assim um contato maior. Eu estava atarefado com as maluquices nossas e ele com as dele lá. Eu o
conheci mais no período anterior, pessoalmente. Mais para frente eu comecei a perceber, aí foi uma
coisa de percepção, duas coisas começaram a acontecer, na primeira é o seguinte: mais uma vez,
quer dizer, o Partido, aquela... Carimbava um pouco as coisas. Qual era o caminho do Marighella?
Que era um companheiro de direita. Essa visão que se tinha de Marighella. Mas aí, logo depois, em
61, com aquela tentativa do golpe do Jango, o golpe no golpe, foi um período muito conturbado. Eu
acho que foi ali, do que eu posso detectar, o próprio Marighella começou a desenvolver uma atitude,
ele começou a depositar, como dizer, uma esperança, uma confiança exagerada em certos
movimentos da área militar. Aí começou aquele negócio dos sargentos, marinheiros, ele andou
fuçando esse troço todo. Umas duas vezes eu tentei conversar com ele. Como eu tenho um passado,
que eu entendo também dessas coisas, eu tinha um pouco os pés na terra mais do que ele, tinha uma
idéia mais clara, que podia não ser bem o que ele estava pensando. Ele me ouvia, tudo bem, mas
estava na dele. Depois veio 64, ele foi preso, eu soube disso aí já separado, ele veio aqui para São
Paulo, eu tinha um atarefa aqui na direção, ele sabia, mas ele mais ele me evitou. Uma ou duas vezes,
nesse período, eu cruzei com ele pessoalmente. Teve uma vez engraçadíssima: eu estava indo para o
Rio, pra uma reunião lá de qualquer coisa, num carro com um companheiro, paramos no meio do
caminho, descemos para tomar um café, quando descemos está ele também tomando (risos). Ele
estava dirigindo o Partido Comunista em São Paulo. Aí conversei com ele, nós tínhamos uma certa
intimidade, eu disse a ele: _ “O Marighella em que você está metido?”
E ele: _ “Não, deixa ficar”. Ele evitou entrar numa conversa maior. Ainda me lembro que ele
disse: “Ah! Não tem nada não! Você sabe que comigo, você tá tudo limpo”. E uma vez, acho que foi
antes, ele me pegou um dia numa reunião da direção do Comitê Central e me pediu uma série de
explicações sobre negócio de armamento. Eu percebi inclusive que ele não entendia nada desse
troço. Ele escreveu aquele troço, uma bobagem, com a cabeça dele! Bom, eles acabaram perdendo
aqui, houve intervenção, e arrebentou-se o Partido. E ele apareceu lá em Cuba pra OLAS, que o
Partido se recusou a participar, mas essas coisas eu já soube por outras vias. Eu não tive nenhum
contato pessoal com ele. Mas eu o reconheci uma vez, uma coisa dessas. Foi mais ou menos um,
dois meses antes da morte dele. Eu tinha um encontro com um companheiro, um ponto como se
chamava na época e eu cheguei um pouco adiantado. O ponto era ali numa área que você desce,
não sei se você conhece a Avenida Paulista, aquela região, era uma área que de noite era
suficientemente movimentada para poder circular, não era deserto de todo, era escura, não era uma
área de muito policiamento. O companheiro marcou comigo e eu cheguei adiantado. Aí pra não ficar
parado eu fui dar uma volta naquela região, eu andei algumas esquinas, calculei quinze minutos e
voltava para chegar na hora. Não me lembro se na ida ou na volta, eu ia descendo uma rua daquelas
ali, naquela região, eu vi duas pessoas andando, eu reconheci alguém de longe, porque não estava
muito escuro, era de noite, eram umas oito horas, por aí. Quando chegaram mais perto, um deles eu
vi era o Arruda. E o outro, eu custeia ver, era o Marighella usando uma peruca, eu custei a ver: “Pô,
eu conheço esse cara”. Era a peruca. Quando eles passaram, o Arruda não me viu, do jeito que ele
303
estava virado eu passei do lado deles, ele estava falando com o Marighella e dali ele não prestou
atenção. O Marighella, Mariga me conheceu e piscou o olho pra mim, ainda me lembro desse
episódio. É claro que eu fui embora ele também. Passado um tempo eu li no jornal e ouvi no rádio
que mataram ele, naquela região, foi por ali que mataram ele, ou pelo menos foi ali que o corpo dele
apareceu, parece que foi ali que mataram ele.
ET_ Na Alameda Casa Branca.
SM_ É, nessa área que é ali atrás, naquela área, não sei se foi exatamente no ponto. Foi meses antes
da morte dele, foi um, dois meses, não é muitos meses não. Foi num período relativamente curto.
ET_ No máximo dois meses para ser mais exato.
SM_ Próximo, suficientemente próximo. Ele devia usar aquela área lá. Isso que eu posso lhe dizer.
ET_ Desse contato mais próximo, em que conversaram sobre as denúncias do XX Congresso. Em
alguma situação, além de uma conversa propriamente política, que era a pauta da conversa, mas
você consegue reconstruir algum tipo de conversa, algum assunto, uma brincadeira, um comentário
da vida comum, que ele tenha feito?
SM_ Marighella era um homem muito aberto. Comentava coisas do dia-a-dia corrente, comentava,
as vezes, um fato assim. E outra coisa, ele era um homem fraternal, porque foi um momento, por
exemplo, para mim as dificuldades pessoais eram grandes e ele sempre se revelou uma pessoa
fraternal, muito camarada, com muita boa vontade e também muito aberto para discutir as coisas,
então, ele discutia futebol, coisas do cotidiano. Conversava sobre as coisas, gostava de música,
gostava de fazer prosa, piada. Nas reuniões do Partido ele gostava de fazer desenhos, era muito
comum ele fazer isso aí. Ele era muito engraçado, um gozador.
ET_ Alguma situação específica que você se lembre dele falando sobre futebol, sobre música.
SM_ Ele falava tudo isso. Talvez se eu fizer um esforço, mas uma coisa tão... no meio de tantas
outras, que tiveram muito mais peso. A minha tendência aí é gravar algumas coisas que chamavam a
atenção.
ET_ Outra pergunta: Por que ele era chamado de direita dentro do Partido durante um certo
período?
SM_ Era um negócio de carimbação. O que houve aí é o seguinte: naquele período, logo depois fico
tudo meio conturbado, tinha uma luta interna muito forte e digamos assim, de uma maneira muito
esquemática, você podia ver duas linhas de ação. Uma basicamente da direção da época, a maior
parte, que estava manobrando, trabalhando no sentido de manter o status quo. Tanto manter uma
forma de afunilar aquilo sem mexer no que estava feito. E, um outro grupo, ao qual depois o Prestes
aderiu, disposto a mudar as coisas, dizendo: “Não. Não é assim não. Vamos mudar mesmo”. O
pessoal majoritário desse primeiro grupo, inclusive no comitê estadual do Rio, era o pessoal ligado a
primeira área. A tendência deles era olhar com desconfiança, inclusive quando eu fui para o
secretariado, cheguei a ter na mão, alguns ficaram lá, ainda no tempo do secretariado do tempo do
304
Marighella, onde tinha pedaços da intervenção dele grifados exatamente para dar essa idéia de uma
pessoa de concepções equivocadas, erradas, fora da ortodoxia, por aí um pouco. Então, quando a
gente fala direita tem um pouco essa conotação. Foi uma época muito complicada, o Partido
dividido e Marighella era olhado como um homem que poderia ser chamado hoje de reformador,
estava aberto para isso. E aí os outros que não eram isso diziam que ele era de direita, que isso ia
tirar o caráter revolucionário do Partido, era absurdo, tanto que o Manifesto de 58, que sai e muda
a direção, foi um negócio muito difícil, só saiu por um voto, uma coisa assim, se não me falha a
memória, foi muito difícil. Então, havia um pouco esse negócio, como havia também o contrário.
Esse pessoal que queria mudar chamava os outros de conservador, sectário, dogmático, mas do
ponto de vista da estrutura orgânica do Partido, era esse pessoal conservador que tinha a maioria
naquele momento
ET_ Não sei se você se recorda, mas esse rótulo e a forma como o Partido conduziu, ele ficou
sabendo?
SM_ Ele era bastante inteligente para saber o que era dito dele, mas ele sabia certamente.
ET_ você acha que isso teve alguma contribuição para que ele abandonasse o Partido um pouco
mais tarde?
SM_ Se você quiser um palpite eu acho que muito pelo contrário. Ele jogou muito forte pela saída
pela democracia, das reformas democráticas e o golpe, o próprio movimento chocou ele
profundamente e aí talvez aconteceu um pouco com ele, é um palpite meu, que ele caiu um pouco
para o outro lado, “não tem mesmo jeito por aí”, o golpe foi uma coisa, muita gente tinha a ilusão, o
Prestes chegou a dizer que “se o golpista botar a cabeça de fora a gente corta a cabeça”, mas não
era a cabeça de uma pessoa só, era, majoritariamente o pensamento das forças. O fato é que o
trabalho de massas, tinha muito militar, muita ilusão, que o Jango tinha militar, aquela bobagem toda.
Mas, na época, isso teve muita força, e eu acho que isso influiu muito na cabeça dele e ele, até para
ser coerente com o que pensava desde o começo, ele estava achando que aquilo era um caminho
sem volta, sem retorno, de repente o troço vira ao contrário. Eu acho que isso deixou ele,
desequilibrou a cabeça dele. Depois vem a prisão, aquele troço todo. E também por que me parece
que ele tinha uma relação ruim com o Prestes, mas eu não quero entrar por aí, porque eu não
conheço os detalhes da história direito. Em todo caso, para você que está estudando talvez possa
acrescentar.
ET_ Ele chegou a comentar algo a respeito?
SM_ Nunca discutiu isso comigo, podia até ter discutido, eu nunca fui íntimo do Prestes ou alguma
coisa , podia até ter discutido. Mas era uma coisa, mais ou menos, nas reuniões, nas intervenções,
algumas reuniões que eu participei com ele, falava muito rapidamente. Agora o comentário geral era
de que havia um certo mal estar.
ET_ Principalmente nessa fase?
305
SM_ Principalmente, porque no princípio pelo contrário, ele foi um dos homens que o Prestes se
apoiou para virar, para dar a virada. Foi muito chato naquele momento. Foi ele, o Dias, uma meia
dúzia de caras que viraram aquilo com o Prestes e se apoiavam em outras pessoas, como eu, que
ajudaram a virar. Não era uma coisa que vinha, se tinha alguma coisa no passado eu não sei, eu não
conheço. O fato é que, naquele momento, parece que a relação dos dois não era muito boa, mas eu
acho que, basicamente, a questão central foi essa, eu acho que ele errou politicamente, ele mesmo
deve ter dito, naquela vez que ele foi preso, deve ter feito uma autocrítica, “eu joguei com isso aí,
deu errado, eu estou aqui na cadeia, fudido aqui”. Ele pensava né, o que está dando certo, a China,
Cuba, na época se falava em revolução na Argélia, um fato numa situação real concreta. Eu acho
que foi isso, não foi só na cabeça dele não. Ele deve ter pensado; a gente está tenteando aqui,
enquanto isso aí deu a merda que deu, enquanto no mundo está acontecendo uma série de coisas
positivas na direção que nós desejamos, não é do jeito que a gente queria, mas está acontecendo,
inclusive Cuba, a América Latina. Eu acredito que foi esse conjunto de fatores que empurrou ele
para lá como muitos companheiros, Câmara Ferreira, um monte de gente.
306
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE MANUEL CYRILLO
Este depoimento foi realizado no dia 18 de dezembro de 1999, na cidade de
Campinas, São Paulo, com Manuel Cyrillo, militante da Ação Libertadora Nacional, na década de
60.
Edson Teixeira_ De início eu gostaria que você fizesse uma apresentação de como foi a sua
aproximação com a vida política, evidentemente que isso vai esbarrar na sua trajetória de vida.
Manuel Cyrillo_ Eu sou Manuel Cyrillo, hoje tenho 52 anos de idade. Sou baiano, mas desde 54 que
eu moro em São Paulo. O meu início na militância política, minha tomada de consciência estava bem
fixa em outro Brasil, em outra época, porque eu não vim do movimento operário e do movimento
estudantil. Eu não vim de nada. Vim do movimento popular, dos bairros. A minha turma de rua, do
bairro, terminou se engajando, quatro companheiros de Ação da ALN vieram daí.
ET_ Isso em São Paulo?
MC_ Em São Paulo, no bairro das Perdizes. Como é que isso aconteceu? Na época do Jânio
começou toda aquela tentativa de golpe da direita. Eles não deixaram o Jango tomar posse, foi
quando o Brizola resolveu resistir. Havia dois amigos nossos que estavam servindo o exército
naquela época, aliás, estavam servindo a aeronáutica, o serviço militar, estavam na PA, Polícia da
Aeronáutica. Provavelmente, por influência do clima de quartel, de discussão dentro do quartel _
esse quartel parecia ser mais progressista _ esses dois terminaram se engajando na resistência lá do
sul. Se mandaram, foram para lá e ficaram. Depois que o incidente foi superado, eles retornaram
para São Paulo, só que com uma nova cabeça.
ET_ Qual era o nome desses seus amigos?
MC_ Saber eu sei, mas prefiro não falar. Quatro companheiros, contando comigo. Aliás, a
repressão não teve informação sobre eles, até teve indicação, alguns fazem parte do processo, do
processão da ALN, mas não sabem direito o que eles fizeram, nunca foram presos. O quarto
terminou sendo assassinado em 72. Eu fui preso em 69, em 72 foi assassinado. Os outros estão por
aí, até entraram no processão da ALN, mas não teve nada. Retornam do sul com uma outra
307
consciência, um grau de politização muito maior. A turma era grande, turma de rua, de bairro.
Continuamos a ter nossa vida normal de garoto, de moleque.
ET_ Qual era a média de idade de vocês?
MC_ Eles eram u pouco mais velho do que eu. Tanto é que eu nasci em 46, em 62 estavam servindo
o Exército, deviam ter uns dois ou três anos mais velhos que eu, mas tinham irmãos da minha idade,
mais próximos, todos muito próximos. Tinha um time de futebol na rua, ali embaixo da Perdizes,
onde é hoje a Avenida Sumaré, na época, eram vários campos de futebol, futebol de várzea, não
estava globalizado ainda e a gente jogava futebol. Tinha um time, o Anchieta (risos), mas,
gradativamente, levávamos uma vida normal, de ir à festas, jogar futebol, conversar nas padarias,
toda noite estar todo mundo junto, cada hora uma fase, de papagaio à xadrez (risos), passando pelo
futebol, namoro, brigas, tudo normal. Só que, paralelamente a tudo isso, a gente começou a
organizar grupos de discussão, acompanhava notícias de jornal, particularmente após 64, a gente
tomou mais gosto ainda. O livro “Porque Resisti a Prisão” foi muito interessante pra gente. E a gente
vem vindo gradativamente, crescendo mais, em termos, o grau de consciência. Por outro lado, o
grupo começou a diminuir, um filtro natural, normal, muitos continuaram próximos, mas com outro
tipo de interesse, com outro tip o de vida, mas a gente andando pra frente, conforme a coisa foi se
aguçando, a resistência crescendo em termos nacionais, a gente foi se engajando mais e mais
também. Enquanto grupo nós chegamos a fazer parte alguns episódios interessantes. A gente tinha
contato com o pessoal de teatro, alguns de nós faziam parte do teatro de Arena. Não foi por qual
caminho, não sei se formalmente ou informalmente, mas a gente começou a fazer segurança para os
espetáculos, segurança informal também, a gente conhecia muita gente do CCC. O CCC também
ficava na Perdizes, pelas imediações, era gente que conhecíamos, numa boa. Um dos nossos amigos,
esse que foi assassinado, o João Carlos, estudava no Mackenzie, que era grande a presença do
pessoal do CCC. Ele fazia Engenharia e estava próximo desse pessoal, particularmente, do Direito.
ET_ Foi uma escolha que vocês fizeram?
MC_ Sim, claro.
ET_ Houve um certo maniqueísmo para atraí-los diante das escolhas que pudessem fazer?
MC_ Não.
ET_ Vocês se identificaram com a ALN.
MC_ Isso. Aí a gente entrou. Não foi o grupo que entrou, foi uma célula, uma base da ALN. Mas,
gradativamente, um puxou o outro, que puxou outro, que depois puxou outro. Eu, particularmente,
entrei direto no Grupo Tático Armado, o GTA. A partir daí, eu fiz uma ação _ aliás, todos nós
entramos no GTA, foi uma opção nossa entrar para a ação armada, a gente já tinha uma prática
anterior, a gente estava querendo dar um salto de qualidade.
ET_ Por que vocês escolheram a ALN?
308
MC_ Olha! A gente acreditava num caminho. A avaliação que a gente tinha é que a proposta da
ALN era mais ampla. Ela não se definia como socialista, comunista, era uma luta de resistência, uma
luta pela democracia. A gente achava que esse era o caminho certo, achava que diversos setores da
sociedade tinha seus interesses contrariados pela ditadura, ou pela violência da ditadura, tanto é que
esses setores foram resistindo a ditadura, forçando mais e mais endurecesse. Fundamentalmente, era
isso. A gente não se achava marxista, a gente só não estava satisfeito era com a situação nacional. É
exatamente a proposta da ALN: de libertação nacional, de redemocratização. Foi uma opção
política.
ET_ Como foi o primeiro contato com a ALN? Foi com esse amigo de vocês?
MC_ É. Isso eu não exponho.
ET_ Você fale o que quiser.
MC_ Não, não é que eu não queira, é que eu não sei. Não sei como apareceu o primeiro contato
com a ALN. Eu sei até quem foi, mas não sei como aconteceu.
ET_ E daí vocês foram para o GTA?
MC_ Isso.
ET_ Era o primeiro GTA?
MC_ Não. Na verdade era uma terceira leva de GTA, porque quando eu entrei, eu e meus dois
amigos, nós ainda fizemos uma ação juntos, no dia 27 de dezembro de 1968. A minha primeira ação
armada e a última deles no GTA. Eles saíram e foram para o exterior para receber treinamento, já
tinha uma outra leva que já tinha ido. Só tive essa ação conjunta com eles.
ET_ Qual foi a ação?
MC_ Foi de expropriação de explosivos. Tinha uma empresa, que era uma pedreira, tinha seu alvará
de funcionamento como pedreira, só que clandestinamente fabricavam explosivos lá dentro. Tinham
os paióis, os depósitos, todos os aprontos, tinham uma fábrica em si. A gente recebeu essa
informação e foi uma ação muito discreta, boa para ser uma primeira ação, pelo menos para mim. A
gente foi lá com um mandado de busca e apreensão, um mandado judicial assinado por um juiz lá,
chamado Carlos Marighella (risos). Então, a gente foi lá, tinha uma frota enorme de carros, cada um
com dois companheiros, um companheiro mais um outro, todo mundo proibido de fumar, todo
mundo tinha que sair de lá com a capacidade de seu veículo carregada de caixas. Até a minha prisão
nós usamos bastante.
ET_ Então, você já tinha um contato com Marighella?
MC_ Em toda a minha militância política _ eu comecei a minha primeira ação no dia 27 de
dezembro, entrei na véspera, nessa mesma época, está fazendo aniversário. Eu terminei sendo preso
no dia 30 de setembro de 1969. Não dá um ano, dá alguns meses. O que é muito, a média de vida
309
mundial de quem sobrevive na guerrilha gira em torno de quatro meses, Neste período eu tive um
encontro com Marighella, já em setembro de 1969, na véspera da minha prisão.
ET_ Voltando a essa ação, a diferença de idade de vocês para os comandantes da ALN era muito
grande?
MC_ Era grande. Porque, por exemplo, o Leonardo estudava Direito, mas deveria ter uns trinta,
trinta e poucos anos. E o Pedrinho _ o nome de guerra do Marquito _ também deveria ter uns trinta
e cinco anos, quarenta anos. Nós éramos mais novos, e é complicado avaliar a idade dele. Mas, eu
diria eu aparentava perfeitamente.
Então, as coisas eram muito bem preparadas. Você vê esse caso dessa pedreira. Eu não
participei da preparação porque eu estava entrando no GTA naquele momento, mas a gente percebe
que teve um levantamento minucioso, que chegou alguma informação através de alguém, chegou a
informação que uma determinada pedreira fabricava explosivos ilegalmente, guardava em tais
lugares. Tudo isso a gente sabia, tinha um mapa do local dos paióis, eram subterrâneos alguns, tipo
um poço e a gente tinha essa informação toda. Pra preparação a gente conseguiu saber de todos os
canais. Através do mandado de busca e apreensão, assinado e carimbado por Carlos Marighella.
Provavelmente tenha sido brincadeira de alguém que forneceu esse documento.
ET_ Era um documento oficial?
MC_ Documento oficial, do poder judiciário, um mandado de busca e apreensão. Ele se apresentou
na fábrica, a porteira estava fechada. Não era uma fábrica, era uma pedreira. Ele se apresentou
como tenente da polícia federal, mostrou documento, deu voz de prisão e nós entramos. Então, você
vê que o grau de preparação era legal. Cada carro com um motorista e um ajudante já tinha uma
rota de fuga traçada. Essa pedreira era distante, era lá na zona leste, um distrito qualquer de São
Paulo, que margeava a Dutra. Cada carro sabia como sair de lá e ir até o lugar onde iria depositar a
sua carga. Eu não sabia dos outros, tudo com muita organização. Tudo isso é preparação.
ET_ Retornando a sua trajetória na ALN, logo após essa ação de dezembro, em janeiro você cai na
clandestinidade. A partir daí você vai para o sul de Minas. Não é isso?
MC_ É.
ET_ E como fica o contato? Quando você volta? Trilhe por esse caminho agora, a sua trajetória
dentro da ALN.
MC_ Eu fiquei meio solto. Era um pessoal ligado ao grupo de apoio nosso, politicamente bacana,
não faziam grandes perguntas sobre quem eu era, por que estava escondido ali. Essa história de
resistência geral à ditadura, era muito ampla. Eu fiquei lá com a vida normal. O cara tinha lá as
atividades dele.
ET_ Qual o lugar que você ficou?
MC_ Fiquei em Juiz de Fora. Ele tinha lá as atividades dele. Eu ia com ele pra baixo e pra cima, o
que dava uma grande disponibilidade de tempo. Durante as atividades dele, eu ficava por lá com ele,
mas totalmente isolado da organização. Uma pessoa que tinha esse contato comigo, ela dizia que ia
310
me buscar lá no momento adequado, quando as coisas estivessem normalizadas. Eu confundo um
pouco o período que eu fiquei lá, calculo um mês, um mês e meio, foi por aí. Foi quando houve a
recomposição do GTA, e aí eu voltei. Chegou um novo comandante do GTA, Virgílio Gomes da
Silva. Ele estava vindo do interior, se não houvesse o problema com o Leonardo, com o Pedrinho,
ele nem viria para a cidade, ficaria no trabalho de campo da ALN, tinha toda uma estratégia lá.
Quando eu volto de Juiz de Fora encontro o GTA se restruturando, com um novo
comandante, incorpora uma série de novos companheiros, outros são afastados, mandados para
fora, todo um remanejamento, tudo estava começando. O novo comandante, o Jonas, Virgílio, ele
tinha uma experiência anterior, antes da ida dele, esta retomando. A gente tinha dificuldade de
armamento naquele momento porque grande parte ficava na casa do Leonardo e foi exatamente a
casa que caiu. O próprio Pedrinho morre lá dentro. Ele vai chamar o Leonardo e termina
assassinado ali na casa. Então, a gente estava com pouco armamento e a gente começou do zero.
Foi uma experiência assim: o nosso GTA teve uma trajetória muito interessante porque algumas das
discussões nossas aconteciam, já dentro da ALN, já estavam presentes naquele momento e terminou
orientando a gente por um caminho diferente do que vinha sendo traçado anteriormente. Por que
isso? Tem explicação: anteriormente, o GTA era área que deveria ser deflagrada, conflagrada,
posterior ao início da guerrilha rural, mas com estratégia. Mas porque começou aqui? Primeiro
porque historicamente nossos quadros estavam aqui. Existia uma série de trabalhos no campo, do
Partidão e outras organizações, mas eram coisas muitos esparsas e cada um estava numa
determinada etapa da vida, de processo, de engajamento, que não poderiam ser atacados, não
poderiam ser recrutados, não poderiam ser incorporadas a gente, até porque a posição política do
Marighella não era essa. Ele achava que cada um pudesse se organizar como conseguisse, nesse
momento inicial de briga, de luta e lá na frente, depois, depois, a gente ia ver como ficava. A História
ia mostrar quem de fato seria uma vanguarda, quem de fato seria uma liderança, quem daria o tom e
a tônica do processo todo. Então, ele até estimulava a multiplicidade das organizações, como a
VPR, o PC do B, o PCBR e a ALN. Havia uma proximidade com várias delas, mas a pretensão
não era de fundir, por problemas de toda ordem, inclusive de segurança. Não se achava um dono da
verdade: “o caminho correto é o meu, quem não estiver comigo é um pequeno burguês, reacionário”.
Coisas desse tipo, um voluntarista, que é uma crítica que a gente houve a torto e a direito. Quer
dizer, todo mundo tem a sua verdade e é o dono da sua verdade, não aceita a posição do Marighella
e outra aberta, vamos para a prática e vamos ver quem está certo, quem vai conseguir alguma coisa,
sempre com a abertura suficiente pra gente juntar forças, pra se unir, pra congregar. Estou falando
tanto que eu vou me perdendo... (risos)
ET_ Não, de forma alguma, afinal, está descrevendo todo o cenário.
MC_ Mas, a gente começa do zero nessa retomada do GTA. A gente vai incorporando essas visões
críticas. Eu estava falando, voltando um pouco, que no início do GTA era algo para viabilizar a saída
do pessoal, era uma forma de você treinar, checar, ver melhor aquele companheiro, ver a disposição
dele, se ele agüentava, se ele tinha estrutura para agüentar o tranco de um processo armado como
esse, se a gente poderia investir nele. É uma coisa complicada você investir em alguém com esse
grau de risco todo e há um custo tão elevado, de vidas, muitas coisas estavam em jogo, um ponto
311
estava em jogo e o cara não quer nem ao menos testar. Às vezes o cara entra em pânico, tem medo,
não tem disposição, esse engajamento maior, não gosta de pólvora e também recursos. Então, o
GTA foi muito usado pra isso, pra testar o cara e mandar pra fora. Foram centenas de pessoas para
o exterior nessa primeira fase de GTA e ele sendo usado para isso.
Quando a gente retorna já havia a preocupação de que tinha que ter preocupações políticas
maiores, tem que divulgar mais todo o programa da organização, ter mais discussões internas e a
gente começa a se voltar para esse tipo de ação, uma série de ações, até ações de desapropriação
de dinheiro, assalto a banco, para falar o português claro. A gente aproveitava a oportunidade pra
fazer comícios armados, panfletava o local, a gente fazia um escarcéu quando estava melhor
estruturado. Em junho, julho de 1969, a gente começa afazer ações mais complexas, inclusive de
expropriação pra promover esse tipo e atividade política. Por exemplo, a gente não assaltava mais
um banco, a gente optava por zonas bancárias que tivesse mais de uma agência, um mesmo trecho,
bloqueava as ruas todas em volta, isolava aquela área, panfletava a área interior, no meio da ação
parava o trânsito inteiro, entrava nas lojas e no comércio e panfletava. A gente fazia um escarcéu, a
gente se preparava para tudo. E isso exigia um grau de preparação grande, agente tinha isso,
cumpria à risca. No início da nossa retomada, a gente teve até problemas de uma preparação um
pouco falha, andava acontecendo acidentes, incidentes, a gente termina saindo superbem nisso tudo.
Houve baixa, morreu gente no conflito com a polícia, mas a gente se saiu bem, consegue e aprende
muito com isso. Então, agente muda um pouco o rumo, o foco de ação do GTA. A gente ocupa
uma torre de transmissão de rádio, foi exatamente no dia em que o americano pisou na lua. A gente
ocupou a torre da Rádio Nacional, aqui em São Paulo, que hoje é a CBN, na época era uma das
rádios de maior audiência, às sete horas da manhã. Havia um programa de maior audiência, que era
policialesco, relacionado ao crime, nem sei, devia ser o próprio Gil Gomes, mas não sei quem era o
locutor chefe desse programa. Era o programa de maior ausência e a gente ocupa a torre e botas
uma mensagem gravada do Marighella, nós deixamos lá um gravador e ele repetiu duas ou três vezes
aquela mensagem.
ET_ Dessas ações que você narrou até agora, qual era a participação de Marighella em termos de
comando? Tinha alguma orientação específica por parte dele? As decisões passavam por ele?
MC_ Não.
ET_ Tudo isso era decidido pelo GTA?
MC_ Não só era decidido. Provavelmente, haviam algumas orientações: façam isso, não façam
aquilo. Mas não havia esse grau de centralização, de ele ser o comandante, não era isso não. Pelo
contrário, o grau de autonomia dos grupos era muito grande, era o oposto. É aquela história: que
quem quiser fazer que faça. A gente seguia a risca aquelas coisas todas. A própria teorização dele, o
primeiro esboço que ele entregou pra gente, o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, já era. A gente
estava muito mais na frente do que ele estava propondo ali. A gente não tinha transmitido a ele. Ele
ainda anão tinha prendido a nossa experiência. Ele veio com uma coisa mais velha. Nunca mais votei
a ler o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, só li esse esboço, tenho ele aí e nunca li. Eu me lembro
que a primeira vez que eu li com o pessoal, o esboço, a gente achou como se fosse o GTA da época
312
que eu estava em Juiz de Fora e não mais aquele GTA que estava fazendo ação da Rádio Nacional,
ação contra Nelson Rockfeller, ações de cunho político muito presentes, muito mais fortes. Esse tio
de expropriação a gente junta o dinheiro, era uma zona liberada, era complexo mesmo. E a gente
buscava muito mais, não queríamos mais pegar o dinheiro escondido porque precisávamos do
dinheiro, não era isso mais. E aí uma vez não se leva esse tipo de coisa em consideração, se bem que
na prática era mínimo o efeito que a gente causava ali, de qualquer forma era uma tentativa e essa
tentativa hoje não é registrada, não existe, não acho correto.
Mas, ele tinha esse comando. Por exemplo, o episódio da Rádio Nacional: ele sabia que ia
ter a ação, ele fez o texto, agora não foi uma decisão dele _ “Vai lá e ocupa a Rádio Nacional” _
não era assim. “A gente tem chance”? “Está tudo esquematizado para ocupar a Rádio Nacional”?
Não vinha de cima pra baixo. A gente estava vivendo uma fase de preparação mesmo, difícil mesmo.
Como é que houve a reunião da OLAS? Como é que houve o rompimento? Como é que nasceu a
ALN? Estava tudo acontecendo naquele momento e a gente não chegou a existir efetivamente. A
gente estava numa fase de preparação quando termina desaparecendo.
ET_ Até esse momento que você está narrando, quem era o Carlos Marighella para você? Você não
o conhecia, mas evidentemente tinha algum contato, seja através de alguma leitura, seja através do
que for.
MC_ Não era um companheiro qualquer. O cara tinha um carisma muito grande. Por exemplo: se
depois de uma ação chegasse uma informação que o Marighella acha isso assim, assim, tinha um
grande peso. Se fosse uma crítica ou se fosse um elogio, vibrou, achou fantástico, tudo tinha um peso
muito grande, a figura dele. É um mito assim...
Eu tinha um respeito muito grande, tinha uma confiança muito grande nele, na proposta dele.
Eu achava que o caminho era por aí. Essa história de não exigir grandes centralizações, uma tentativa
de alguém que tinha consciência d força do outro lado. Sabia que a repressão sobre a gente ia ser
muito forte. Eu acho que foi um caminho, mas pra mim, com a clareza que ele encontrou. Tenho essa
clareza, que ele optou por isso conscientemente. Ele próprio fazia questão de não ser visto como eu
o via, ele fazia questão de não ter essa... De ser um a mais. Ele escreveu isso e praticava isso. Se
tenho essa visão, é problema meu a importância que eu atribui a ele, mas ele próprio se preocupava
em se colocar como um a mais naquelas horas todas, por todas as razões do mundo: teóricas, éticas,
mas lhe garanto também por uma questão de segurança.
Dois meses depois da minha prisão ele estava morto, já devi ater passado pela cabeça dele
essa possibilidade da morte, podia estar presente, estava presente para mim, imagina pra ele. Ele
com toda experiência, a vivência, os problemas anteriores, as ditaduras anteriores.
ET_ Quando foi esse contato que você teve com ele?
MC_ Foi depois do sequestro do embaixador.
ET_ Foi o único contato que você teve com ele?
MC_ Foi, foi. É uma coisa que também é muito explorada, alguém de repente já deve ter falado. Ele
achou incorreta a ação do embaixador, coisas desse tipo. Foi exatamente nessa reunião, a única
313
reunião que participei com Marighella e não teve nada disso. Realmente, ele trouxe uma visão de
crítica, e se você parar para analisar, todas procedentes. Acontece que a gente também contra-
argumenta de uma forma lógica, com grau de verdade, de força, com ele na reunião. Tanto é que ele
acata, aceita nossa posição, sai de lá com o outro tipo de entendimento.
ET_ Qual o teor da reunião?
MC_ O problema é o seguinte: a ALN que participou daquela ação, no Rio de Janeiro, não foi a
ALN sediada no Rio, fomos nós de São Paulo. A primeira crítica dele era essa. A ALN do Rio não
sabia que ia acontecer aquela reação. Foi um absurdo, um puta erro. Algo que a gente,
tranqüilamente poderia verificar que ia aguçar muito a repressão, que ia perturbar muito o cotidiano
da cidade, que iria trazer problemas para a nossa organização lá dentro, a gente não teve o cuidado
de avisar. Então, essa parte da coisa a gente aceitou com um erro nosso. Essa era uma das críticas
dele. O outro é que ele questionava a gente ter discutido mais essa ação, pelo grau de importância,
afinal de contas o embaixador era o embaixador americano junto a ditadura, um embaixador
americano, ela devia ter sido avaliada e discutida pela organização. É um pouco da sua pergunta
anterior, a gente fez sem consultar nada e nem ninguém. Fomos pelo grupo de São Paulo _ Até com
a participação do Toledo, Joaquim Câmara Ferreira, direção nacional da organização _ sem levar a
uma discussão da organização nacional e até a própria figura do Marighella, que estava no Rio,
exposto e não participou de nada disso, não avaliou, não mediu, não pesou. Esse foi o outro ponto.
Quanto isso a gente respondeu com a própria teoria dele: está certo que a gente errou, está certo
que a gente correu risco de perder quadros no Rio, de perder trabalhos e contatos, enfim, não
potencializamos como poderia ter potencializado, não capitalizamos com poderia ser capitalizado,
mas era um ato revolucionário, justo, correto, estava dentro da nossa linha. A gente tinha todo o
direito de ir lá e fazer.
Ele concordou, ele aceitou isso, até porque, a partir daquele momento, a gente podia fazer
tudo isso, não precisava haver mudanças, não tínhamos riscos de segurança, não tinha nada, a
organização podia ter feito tanta cisa assim previamente. A perda seria mínima. Ele segui
concordando. Mas, uma reunião superlegal.
ET_ Essa reunião foi aonde? Como você sentia o Marighella, ele estava tenso, descontraído?
MC_ A reunião foi em São Paulo e com o GTA. Era uma reunião do Marighella com o GTA de São
Paulo. Então, estava o comandante do GTA _ naquela época já haviam dois grupos de GTA , os
vice-comandantes de cada grupo _ e é por isso que eu estava, eu era vice-comandante de um
desses grupos. Ele era uma figura muito segura, humana, era um cara brincalhão, um bom vivant,
sabia viver a vida, com toda experiência, durante a conversa sempre descontraído, sempre
brincalhão.
ET_ Que tipo de brincadeira?
MC_ Ele estava revendo alguns companheiros, alguns eu tinham ido para Cuba e haviam retornado.
Dois eram do Partidão, era um congraçamento mesmo.
314
ET_ Ele não entrou direto no assunto?
MC_ Por toda a reunião ele conversava com a gente, um quebra gelo, com espontaneidade, com
naturalidade, com personalidade.
ET_ Você já sabia dessa característica dele?
MC_ Já tinham me falado, mas eu o conheci nessa oportunidade, achei ele fantástico, parecia que
era muito próximo, não tinha mito não.
ET_ Aquela sua visão de mito acabou?
MC_ Acabou por acabar. Ele falou, na hora do papo sério, mais ao Jonas, Virgílio, que era o
comandante do GTA. Mas todos nós participamos e ele terminou acatando a nossa linha. A gente
relatou, fez um relato minucioso da ação. O toledo estava presente, o comandante e o vice-
comandante de cada GTA, mais o Toledo, umas dez pessoas.
ET_ No sequestro do embaixador americano, você era vice-comandante d GTA. Explique como foi
isso.
MC_ Eu terminei ficando como vice porque a gente assumiu o comando lá. E ele me colocou como
vice-comandante, o Jonas, que era o comandante, porque sabia do meu potencial, por segurança ele
me coloca como o vice-comandante. Somos nós que vamos abordar diretamente o embaixador, ele
de um lado e eu de outro, abordagem direta. Nós é que checamos todo o planejamento da ação, o
pessoal, a preparação.
ET_ E a tensão naquele momento?
MC_ Depois de seu batismo de fogo, a guerrilha, particularmente a urbana, te dá um nível de
tranqüilidade muito grande. Por definição a guerrilha só aparece quando tem superioridade tática,
naquele momento, no lugar, ela tem a surpresa, a superioridade tática, superioridade militar,
superioridade de fogo, tudo, ela é superior a tudo do inimigo naquele ponto, naquele lugar, naquele
instante. Então, isso é tranqüilo. Você fazendo uma ação bem planejada não tem erro. Você
sabendo de onde pode vir o problema, se preparando para enfrentar, pra resolver, não tem erro. Ali
é você. O resto do mundo inteiro, o inimigo pode estar ocupando, pode estar vigilante, pode estar te
esperando, mas você não vai lá. Vai no local que você escolheu, na hora que escolheu, pra fazer do
jeitinho que você quer. Isso dá uma tranqüilidade muito grande, porque você prevê todas as
possibilidades, se prepara para enfrentar e enfrenta. Até quando foge você tem superioridade,
inclusive militar, por mais exército que o inimigo tenha. Particularmente, isso acontece na área
urbana, porque você vira a esquina e pronto: desapareceu. No mato é ainda mais complicado
porque as esquinas são mais longas (risos). As esquinas são mais longe uma da outra e você fica
mais exposto, te cerca numa área maior e você está ali. A área maior é a cidade.
ET_ E embaixador como ele reagiu?
MC_ Bem, pois é! Uma coisa importante a dizer é que esse foi o primeiro sequestro político da
história moderna do mundo. Tudo foi uma grande novidade. Eu não fui condenado por sequestro,
315
porque não estava previsto em lei. Fui condenado por quebra de imunidade diplomática e por
cárcere privado, não existia o sequestro, não estava especificado no Código Penal, na Lei de
Segurança, em nada. Os jornais da época _ a gente conseguiu fazer
romper a censura e fazer anunciar o sequestro _ anunciaram o rapto do embaixador americano, não
se tinha palavra ainda para o termo correto.
O impacto político foi muito grande pelos limites das coisas, pela figura do homem que a
gente estava pegando, pelo sucesso da ação. Tudo era um outro mundo, uma outra realidade.
Também para o embaixador, coitado. Ele não tinha referências de comportamento, não havia
sequestro, hoje em dia qualquer pequeno empresário tem que ter referências de comportamento num
sequestro. Ele não tinha essa referência, ele não sabia o que estava acontecendo, não sabia que ele
estava sendo seqüestrado. Não tinha essa
referência. Nós capturamos ele em Botafogo, a gente subiu o morro o mais rapidamente possível,
chegamos lá no alto do Jardim Botânico, na época uma área muito deserta, com uma ou outra casa
sendo construída, uma ou outra já pronta, muito mato, muita vegetação, um ermo danado. Ele
pensou que seria executado. A gente subiu, fomos lá para cima, paramos o carro e queria que ele
saísse, pediu para que ele saísse do carro. Ele pensou que seria executado. Aí ele teve uma reação
inicial extremamente perigosa, porque ele pulou em cima da arma do Virgílio e tentou resistir a
execução dele ali. Quando eu percebi, eu estava sentado ao lado, quando eu percebi eu pensei: meu
deus do céu tenho que fazer alguma coisa para desmoralizar esse cara. Foi quando dei essa
coronhada pra ele cair na real, pra ele perceber que estava nas mãos de inimigos, de alguma forma
ele tem que entender isso e rapidamente se subjugar, fica quieto,, entender que este estava numa
situação de profunda desvantagem ali. E não dava pra falar alguma coisa, explicar isso pra ele, o
meio que eu encontrei foi a coronhada. Eu lembrei de uma terapia anestésica, uma pancada, um tapa
às vezes na cara e foi o que eu fiz, bati e dei a tal da coronhada. Na hora ele se consolou. Ele
estancou. A gente fez com que ele serenasse, largou a arma, ele estava
segurando a arma na mão.
ET_ Nesse momento estavam você e o Virgílio?
MC_ Não me lembro o que estava acontecendo lá na frente não. Mas devia estar o nosso motorista,
o motorista do embaixador e um terceiro elemento, esse estava no meio. Mas mesmo que estivesse
os três na frente, era um kadilac de embaixada, com um banco alto, bem relaxado, não dava para
eles fazerem nada, pelo contrário, tinha espaço suficiente lá atrás para toda essa movimentação.
ET_ O embaixador poderia ser assassinado ali?
MC_ É, quando ele percebeu que se tratava de um sequestro, que nós estávamos querendo romper
com a censura da ditadura, libertar companheiros nossos que estavam presos, com isso cada um ia
falar a experiência de tortura, estariam denunciando a tortura.
ET_ Vocês falaram isso para ele?
MC_ Falamos com ele ao longo do sequestro. Quando ele teve essa visão mais completa do que
estava acontecendo, pediu desculpas pra gente, particularmente, pra mim, e explicou porque ele
316
reagiu. Foi aí que ele falou _ eu não sabia o que tinha acabado de acontecer _ meses antes, um ano e
pouco antes, foi uma tentativa, uma emboscada contra o embaixador americano na Venezuela. Ele
disse que só aquilo é que vinha na mente dele. Ele achava que seria executado ali. As pessoas não
sabiam que era sequestro, ninguém conhecia e muito menos ele, daí àquela reação. Ele chega a pedir
desculpas, era uma figura fantástica, fala certas coisas interessantes pra gente, que a gente acaba
pedindo autorização pra gravar e grava um depoimento com ele. Depois iríamos tomar uma outra
rádio para por a fita.
ET_ O que ele falava?
MC_ Nós tivemos um relacionamento muito aberto com ele. Todos que estavam na casa
conversavam muito com ele, porque todos nós fazíamos plantão de vigilância com ele dentro do
quarto, ou à noite o deixávamos sozinho, ficava na porta, ele era um prisioneiro mesmo, estava
preso. Então, isso dava oportunidade para a gente conversar, conversava muito, ele falava o
português superbem, ele era casado com uma portuguesa, ele havia sido anteriormente embaixador
em Portugal., casou com uma portuguesa lá. Falava a língua portuguesa. Então, conversamos com
ele. Assim que a gente ficou com ele em casa, no quarto que ele iria ficar, com todo o esquema de
plantão organizado, essa história toda. A gente foi ver o que ele tinha na pasta dele. Na pasta tinha
remédio que ele tomava, a gente comprou mais. Tinha lá umas cigarrilhas, a gente comprou mais, da
mesma marca. Ah! Nós lavamos a camisa dele que estava manchada de sangue. Dentro da pasta
tinha uns documentos do governo americano e com um carimbo de Top Secret. Isso aí dá uma tese
de mestrado, de doutorado (risos). Não era tão secreto assim, porque tinha lá, fulaninho de tal, eram
nomes que você abria o jornal e você lia os nomes, que o cara, ou era empresário, militar ou era
político. Fulaninho de tal, nascido em tal ano assim, assim, tal dia, mês e ano. Fazia isso assim, assim.
Umas biografiazinhas super-sucintas, bem curta, umas seis ou sete linhas para cada um e páginas e
páginas daquilo. Várias pessoas, nome de tudo quanto é tipo de gente. Pegamos aquilo e levamos lá
pra ele ver: o que é isso aqui embaixador? Ele disse:_ Isso aí não tem nada a ver comigo. Eu sou
funcionário de carreira do departamento de Estado, isso aí é coisa da CIA.
Era o seguinte: a CIA estava muito preocupada com a reação do povo brasileiro a ditadura
militar, a amplitude dela e agora estava começando essas ações armadas, isso estava impressionando
os caras e a resistência popular geral. Eles estavam achando que a qualquer momento eles iam ter
que descartar a ditadura militar pra gente manter o controle aqui dentro. Estravam a fim de abortar o
endurecimento da ditadura pelo menos naquele documento. E daí? E os nomes? Os nomes são pra
gente escolher uma alternativa civil para o Brasil, um governo civil. Agora esses aí não, porque
inicialmente eles mandaram uma relação muito mais extensa, que conforme nós fomos aprontando o
dossiê, nós vínhamos remetendo, essa é a última leva. Até onde eu sei o nome já está escolhido, já
está definido.
Falou o nome do chefe da CIA, um tal de Willian Benton, ele era o terceiro secretário da
embaixada. O embaixador é um cargo político, vem, cai, troca, e o terceiro secretário é um nome
fixo, um nome que fica no país. Willian Benton.
ET_ Qual era o nome escolhido?
317
MC_ Ah! Sim. Coisa cinematográfica, que você lê num livro, vê num filme e nunca pensa que pode
estar acontecendo com a gente. Sabe qual é o nome? Eles foram mais à esquerda do que se imagina:
Dom Hélder Câmara.
Fita II
MC_ Ele falava:_ Eu não entendia o que se passava na cabeça dos militares, o Costa e Silva foi
impedido, está doente _ nós estávamos sob uma Junta Militar - por que não Pedro Aleixo, que era o
vice-presidente da República?_ ele não acreditava nessa história._ Eu conversei muito seriamente
com o Chanceler, Dr. Magalhães Pinto, mas eu não entendia: por que não Pedro Aleixo? Por que
não Pedro Aleixo? (risos).
ET_ Eu queria adiantar um pouco mais, depois do sequestro vem umas série de quedas e depois sua
prisão. Como foi sua prisão?
MC_ Não foi numa ação propriamente dita.
ET_ Como é que ficou depois do sequestro?
MC_ Isso aí. Nós saímos da cassa onde estava o embaixador, depois da ação, e fomos pra um
apartamento junto com o pessoal lá do MR-8. Dois dias depois nós ainda estávamos lá esperando
abaixar a poeira da repressão para vir à São Paulo. Eu e o Virgílio, nós ainda estávamos nesse
aparelho deles, com dois companheiros deles, o Salgado e um outro. Esse Salgado é o nome quente
dele, depois você pode levantar. Esse aparelho foi suspeitado, invadiram e a gente até suspeitou do
episódio quando pela manhã. Eu e Jonas avisamos ao cara: _ “Olha! Isso aí tem coisa, fica ligado.
Nós vamos sair”. Nós passamos o dia inteiro fora, pegamos uma máquina fotográfica e fomos dar
uma de turista no Rio, pra poder não ficar em casa. Nós achamos muito suspeito o que aconteceu lá,
marcamos um ponto no final da tarde, início da noite, um pouco mais avançado, umas nove horas.
Marcamos esse ponto para ver se não tinha acontecido nada, aí nós voltávamos para casa. Quando
a gente foi no final da tarde, eles não apareceram, no final da noite não apareceu, as nove horas aí
apareceram, de short, coitados, sem camisa, descalços e eles contaram: “vocês estavam certos, a
repressão foi lá, saímos assim, nós nem viemos antes porque esperamos escurecer, do jeito que a
gente está... E agora a gente vai ter que se mandar”.
Caiu, caiu tudo, caíram todas as nossas armas, todas as nossas armas nós levamos de São
Paulo, eles não tinham metralhadora, eles tinham revólveres, uma série de bombas que nós levamos
pra poder deixar na casa do embaixador, parte da nossa segurança, nossa bagagem de mão, a
peruca do Jonas, ele era careca, em São Paulo andava de peruca, quando foi para o Rio ele
inverteu, deixava a peruca em casa e andava careca para mudar de cara, de fisionomia. Então, no
dia seguinte a gente viu no jornal uma noticiazinha do aparelho que foi estourado, tudo que foi
encontrado lá, a fitinha que tinha essa gravação da conversa com o embaixador. Ela está na mão do
Exército. Eu sempre falo isso, amanhã ela chega no Arquivo Nacional.
ET_ E os textos que vocês viram ficou com alguém?
318
MC_ Eu acho que ficou com alguém. Eu não me lembro não. Deve ter ficado com a gente mesmo.
Já que você está fazendo essa pesquisa no Rio de Janeiro, procura ver lá. Dois dias depois do
sequestro, num dia de jogo de futebol, era um jogo Palmeiras e Vasco, era o início de um
campeonato Rio - São Paulo daquele ano. E quando os caras chegaram nove horas da noite falaram:
ë não temos lugar para vocês, têm que se virar sozinhos”. Porque o nosso dinheiro o grosso ficou lá
no apartamento. Sem mala, sem roupa, sem porra nenhuma, sem arma, sem nada e sem casa, no Rio
de Janeiro em pleno pós sequestro. A gente tirou a idéia. Falei pro Jonas, ele gostou, vamos nessa e
deu certo. Falei vamos lá pra
porra do Maracanã, a gente se mistura com a torcida do Palmeiras, compra um ingresso. Pegamos o
dinheiro com o cara lá do Rio pra poder se virar, pra poder chegar em São Paulo. A gente tinha
pouco dinheiro, eles deram o pouquinho que eles tinham, porque eles estavam em casa. A gente foi
para o Maracanã, compramos um ingresso que deixava um bilhetinho na nossa mão, para provar que
foi ao jogo.
ET_ A idéia foi sua?
MC_É. A gente pode até voltar de ônibus com a torcida, eles podem estar de ônibus lá, a gente
volta de ônibus (risos), compra bandeira. Só que na teoria é uma coisa e na prática é
outra. O campeonato muito no começo, era uma das primeiras rodadas, não tinha torcida
palmeirense em campo, nem do Vasco, meia dúzia de gato pingado vendo o jogo e a gente lá. Mas,
a gente fez tudo que tinha planejado, compramos o ingresso que deixava o papelzinho na nossa mão.
Aí acabou o jogo, a gente chegou já tinha começado. Acabou, a gente com o papel na mão, fomos
pra rodoviária, pegamos um Cometa e viemos embora, cada um num horário. Nós nos separamos
na saída do Maracanã. Cada um foi de táxi até a rodoviária, cada um pegou um ônibus e seja o
que deus quiser! Isso pra gente ter uma chance, se um fosse preso dava pra outro poder passar. Era
eu e ele só. Ele estava com a máquina, deixei com ele. Afinal, ele era mais visado, tinha militância no
exterior, eu era clandestino por causa daquele episódio que eu lhe falei, mas não era tão procurado,
ninguém sabia o que eu tinha feito na porra da vida, o que estava fazendo. Eu deixei a máquina com
ele que poderia ser uma saída, o cara vindo com um ingresso do jogo e uma máquina não pode ser.
Mas ninguém nem parou. Tinha um monte de barreira.
319
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE NOÉ GERTEL
Este depoimento foi realizado no dia 23 de dezembro de 1998, na cidade de São Paulo com
Noé Gertel, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro.
ET_ De início eu gostaria que você fizesse uma rápida explicação de sua trajetória política e como
você chegou a ter contato com Carlos Marighella?
NG_ Bem, não há grandes coisas a dizer. Eu entrei no Partido Comunista em 1931, eu era estudante
de Direito aqui no São Francisco, era uma época que quase todos os estudantes se interessavam por
essa coisa, eu me interessei, ingressei no movimento...
ET_ Aqui em São Paulo?
NG_ Aqui em São Paulo. Primeiro na Juventude Comunista. Não, minto, primeiro o Socorro
Vermelho, organização Internacional que prestava assistência aos presos políticos, chamava-se
Socorro Vermelho Internacional Seção Brasileira, em todo o mundo havia uma seção. Comecei a
trabalhar com outros estudantes de Direito, de Medicina, um grupo razoável de estudantes. Em
seguida veio a Aliança Nacional Libertadora. Eu entrei, participei, depois caí na clandestinidade.
Vieram os integralistas, a marcha dos integralistas, que nós dissolvemos na praça da Sé. Eu fui visto
lá pela polícia, por um dos investigadores que me conhecia e tive que cair na clandestinidade.
Estamos falando de 1934. Em 35 veio a Aliança, depois a repressão, 35, 36, eu quero me lembrar
como o Marighella entrou aí. Eu encontrei o Marighella em São Paulo, fui embora para o Rio de
Janeiro em 37, mas o encontrei aqui antes disso. Aí ele veio para São Paulo e eu me encontrei com
ele na praça da República, ele veio para São Paulo passando pelo Rio de Janeiro. Vinha da Bahia,
também saiu de lá por causa da repressão, do interventor Juracy Magalhães, ele queria ver o
Marighella na cadeia. Eu me lembro que encontrei com ele aqui nessa praça, por causa desse
problema de ligação, ele queria um contato. Ele veio pelo Comitê Central, para prestar assistência
política ao Partido em São Paulo. Eu disse a ele: “O que você fazia no Rio”? Ele chegou ao Rio de
320
Janeiro sem ligação. Nessa época o que aconteceu? Ele tinha saído da cadeia em 36, tinha sido
barbaramente torturado. Ele disse: “Eu fazia o seguinte: como tinha pouco dinheiro, eu gastava um
tostão para comprar ‘A Noite’ e ler a crônica do Humberto de Campos e o outro tostão era para
comprar um pão”. Dormiu várias noites na praia de Copacabana, nos bancos. Bem, esse primeiro
contato foi rápido. Em seguida eu fui para o Rio de Janeiro, em 37. Em 40 caí, fui condenado e o
Marighella havia caído aqui, em 37 ou 38, com toda a direção do Partido, direção regional, caiu
todo mundo, todo mundo caiu. Foram para Fernando de Noronha em 39. Em 40 caiu o Rio de
Janeiro, inclusive eu, mas não fui para Fernando de Noronha, já a Guerra estava aí e Fernando de
Noronha era um posto estratégico para os americanos, aquela coisa toda, quando o Getúlio
começou a pensar em desativar o presídio de Fernando de Noronha e desativou. O Brasil entrou
para a guerra em 42, em 41 o pessoal já foi pra Ilha Grande e nós que estávamos presos no Rio, eu
e toda a direção do Partido, Bangú, Honório _ você já deve ter ouvido falar em tudo isso. Fomos
para a Ilha Grande e lá eu conheci o Marighella melhor, conheci e convivi com ele. Você sabe que
cadeia é cama e mesa todo dia.
ET_ Como que era o comportamento dele?
NG_ Marighella era um homem fora do comum. Ele tinha uma capacidade de liderança inata, eu não
sei como que é isso funciona. Inicialmente, eu devo definir o seguinte, Marighella era um homem de
Partido, um homem forjado pelo Partido Comunista, muito inteligente, muito lido, muito culto,
interessado pela literatura, mas fundamentalmente política, política brasileira, sobretudo História do
Brasil. Estudava muito e tinha uma capacidade política de dirigente, qualidades de um dirigente
comunista, que são qualidades excepcionais, não era fácil ser um dirigente comunista no Brasil ou em
qualquer lugar do mundo, não era fácil não, não era nenhuma brincadeira. Marighella tinha todas
essas condições, além de ter o que se chama hoje de carisma muito grande. O que acontecia? O
presídio, quando eu fui para a Ilha Grande, eu fui meio arrebentado, passei 6 meses incomunicável. E
a primeira coisa que eu vi foi o Marighella. Se eu não me engano ele era o presidente do coletivo.
Pelo menos ele era um dos homens responsáveis pela vida no presídio, digo responsável político e
nesse caso significa que ele era da fração comunista, que dirigia não ostensivamente, dirigia o quê?
Dirigia 60, 70 presos políticos de todas as camadas sociais do Brasil. Não é mole você conviver
num presídio com gente que fez 35, cabo, soldado, sargento, oficiais do Exército, marinheiros,
camponeses, trabalhadores da Great Western, que aderiram em 35, fizeram greves e que eram ex-
camponeses semianalfabetos, gente dedicada ao partido, queria a revolução. Tinha de tudo, tinha
classe média, tinha intelectuais, viver e sobretudo harmonizar essa vida não fácil. Havia uma fração
comunista que cuidava desses problemas. Por que não é fácil? Porque você tem que dirigir
corretamente a relação com os guardas, a relação com o diretor, com a diretoria, tudo isso é política
diária, mas é uma política que precisa ter cuidado. O coletivo era também responsável pelo trabalho
cultural, tinha uma escola, uma universidade, etc.. Tinha professor, gente que sabia fazer contas,
sabia ler, estudar e alfabetizar, não havia problema. O grande problema era a situação política do
país e o nosso relacionamento com a direção da casa e com a vida externa também, com o
movimento político fora. O Partido se reorganizava com a chamada Comissão Nacional de
Organização do Partido, tinha tendências várias cá fora e que entrava lá dentro, os comunistas
321
levavam para a cadeia os problemas que o Partido vivia aqui fora. No momento em que se leva
problemas políticos internos de um partido para a cadeia, onde tem muita gente, acaba-se
fracionando lá dentro também, será preciso tomar muito cuidado. Então, tinha esses problemas
todos e outros, esses problemas tomavam conta o tempo todo. Marighella sabia onde tinha o nariz,
havia momentos de crise, era Marighella que tinha tudo, era respeitado como se fosse um líder, não
como um pai, não é isso, um líder, realmente era um líder. Era um homem a quem os companheiros
levavam problemas domésticos. Dada a seriedade com que ele encarava essas coisas, você via o
Marighella cuidando, conversando, as vezes, particularmente, com um companheiro, um camponês,
um ferroviário, um ex-cabo, um ex- marinheiro, cuidando de problemas particularíssimos, ele ouvia,
provavelmente aconselhava, não sei mas era muito ouvido por todos. Qualquer outro tipo de
problema, como é curioso isso, ele não era experiente, não era um velho, conselheiro, não era nada
disso o Marighella. Era um líder político. Era um homem imaculado nesse sentido, você percebia que
o Marighella era um homem voltado para isso, você não sabia nada do Marighella, você não sabia se
ele tinha mulher, se tinha pai, se tinha mãe, se tinha irmã, nada, se tinha visita. Dele não se sabia nada.
Agora dificilmente o Marighella tinha momentos de isolamento, porque era muito solicitado, sabe
essa vida diária, mas quando ele tinha, ficava numas pedras lá na Ilha Grande, um pouco afastadas,
assim, ele ficava lá, lendo, às vezes ficava pensando, pelo menos é o que se dizia, um pouco de mito
também tudo isso. Ele construiu a fração comunista responsável pela vida política dos presos
políticos; nem todos eram comunistas, a maioria era aliancista, o pessoal do 21, do Rio Grande do
Norte, os oficiais do 3º RI do Rio, marinheiros, o pessoal do Minas Gerais, que tinha feito uma
tentativa de revolta,etc.. David Capistrano, foi da Brigada Internacional na Espanha e estava lá.
Correia de Sá, o querido Correia de Sá, foi cabo do 3º, foi também da Brigada Internacional, major
Costa Leite, Agildo Barata. Joaquim Câmara Ferreira, Tenente Tourinho, sargento Renê Bastos, o
último soldado que se entregou no 3º Regimento, muito marinheiro, muito soldado, muito operário,
de São Paulo. Esse era o homem Marighella. Sem dúvida nenhuma Marighella tinha uma capacidade
de liderança superada só pelo Prestes. O Prestes tinha, não é uma coisa composta, feita, era natural
nele. O Prestes era um homem cordial, amável, mas tinha isso, era muito difícil você entrar na
intimidade com ele. Já o Marighella não, o Marighella tinha um lado, o lado baiano do Marighella.
ET_ Ele fazia poemas lá dentro?
NG_ Fazia. Lá, tínhamos um jornalzinho e ele fazia, gozando os outros, gozando os presos,
gozando a vida. Ele mesmo fazia o jornal, ele tinha uma letra bonita, de fôrma, fazia o jornal, de vez
em quando esse jornal saía. Era manuscrito. E o trabalho, ele trabalhava, ele tinha uma habilidade
manual muito grande. Nós fazíamos um trabalho no côco, caixinhas, não sei o que lá, umas
bobagens. E o côco, não sei se você sabe, tem um brilho natural, a casca do côco tem um brilho
próprio, que mais forte do que o verniz, lindo, muito bonito. Você tira a casca, vai lixando, lixando,
até chegar a um ponto que tem um brilho natural muito bonito. Com aquilo ele fazia umas caixinhas
com uns desenhos marajoara, nós tínhamos lá um livro de uma, Heloísa Torres, uma estudiosa da
arte marajoara, ele copiava aquilo, trabalhava como qualquer outro, e era o melhor que tinha nessa
área.
322
ET_ No artesanato?
NG_ Era. Era o que fazia as coisas mais bonitas e mais bem feitas. No futebol era o melhor jogador
que tínhamos lá, sem dúvida nenhuma, zagueiro com o pé descalço. Era o melhor futeboleiro que nós
tínhamos.
ET_ Daqueles que brigam?
NG_ Ah! Sim. Ele gostava muito de futebol. Nós tínhamos _ eu não gostava de futebol não, jogava
vôlei _ mas ele não era bom de vôlei não. Era também o melhor professor que tínhamos. Ensinava
português, mais didático, mais comunicativo, o que sabia fazer aproveitar mais era ele, como
professor era ele, um pedagogo nato. Era, enfim, o melhor camarada, o melhor coração, o melhor
comunista.
ET_ Você se lembra de alguma conversa com ele?
NG_ Lembro-me de uma que eu tive uma vez, meio séria. Houve um problema interno, eu acho que
era no coletivo. O pessoal que estava no exílio e tinha voltado da Europa, Gay da Cunha, Tourinho,
Tenente França, Costa Leite, não sei mas quem, não me lembro, alguns estavam em Buenos Aires e
alguns em Montevidéu, era o pessoal da Brigada Internacional. A Guerra Civil Espanhola tinha
acabado, o Brasil já estava em guerra, então, eles negociaram, consultaram o governo pra ver se
podiam voltar. O que aconteceria se eles voltassem? Estavam todos condenados, condenados em
35 pelo Tribunal de Segurança Nacional, foi Trifino Correia, que era muito amigo do Prestes, que
mandou o recado, o governo disse: se eles voltarem estão em cana. Aí voltaram assim mesmo, foram
presos e foram parar na ilha. Aí era esse pessoal, mais visitas, mais problema externo, uma série de
fatores lá dentro da cadeia. O Partido aqui fora, ofereceu colaboração e apoio ao governo no
esforço de guerra. Nós tínhamos a disposição e o que tivéssemos para dar ao governo para ajudar
a derrotar o nazi-fascismo. Nós estávamos em guerra contra o nazi-fascismo. Até onde ia essa
colaboração, era uma colaboração integral, aqui fora. Lá dentro começou a discussão, vamos
colaborar aqui dentro trabalhando par ao presídio, uma parte achava que sim, seríamos igual a preso
comum, aqui no meio do mato, ia cortar lenha. Uma parte dirigida pelo Marighella achava que não,
isso jamais. A conversa que eu tive com o Marighella foi essa, quando essa coisa estava quente, eu
disse: _ “Marighella, isso pode levar à cisão. Minha preocupação era a unidade. Meu querido amigo
Câmara Ferreira, era favorável a esse discurso, discurso colaboração total dentro da cadeia.
Devíamos passar a trabalhar para o presídio como se fossemos presos comuns, trabalho forçado,
como prova de colaboração.
ET_ Marighella era a favor?
NG_ Não, Marighella era contra, absolutamente contra. A conversa que eu tive com o Marighella
era de que “isso pode levar a uma cisão”. Ele disse com toda clareza: _ “Vai levar a uma cisão”. Na
noite em que ele foi eleito presidente do coletivo, nessa noite mesmo, Marighella foi de cubículo em
cubículo e perguntava: _ “Tá com o coletivo ou tá com a casa”? A casa era a diretoria d presídio. O
diretor era um homem acessível, tio do Érico Veríssimo, um caudilho gaúcho, aquele tipo coronel
gaúcho, um bom homem, mas não era esse o problema, era sim que tipo de linha política nós
deveríamos adotar. Então, ele perguntou a um por um, foi de cubículo em cubículo: _ “Tá com o
323
coletivo ou está com a casa?” E dependendo da resposta: _ “Fora!” Os camaradas arrumavam as
malas e iam embora, iam pedir para o diretor do presídio arranjar alojamento. Não foi bem a
metade. Hoje eu não sei analisar esse problema, hoje, sabe, a distância, naquele momento claro, eu
concordei, fiquei com ele e rompi com os demais. É difícil você saber se tinha algum princípio nisso,
se havia necessidade de expulsar do coletivo esses camaradas, só por que divergiam.
ET_ Como ficou a situação depois?
NG_ Aí veio a abertura. A situação política começou a desanuviar, veio a anistia, todo mundo saiu.
A guerra acabou, veio a anistia, Getúlio decretou a anistia, Prestes foi libertado, essa discussão,
colabora, não colabora, não tinha mais sentido, aqui não fora não havia mais esse problema.
Marighella fez isso da cabeça dele, ele achava que tinha que fazer isso, por que era isso? Na
conversa ele me explicou muito: _ “Olha o que vai acontecer é que qualquer preso nosso vai ter
contato direto com guarda nessa brincadeira. Aí eu vi, vai dar encrenca, vai brigar com a o guarda
ou não vai brigar, e isso não pode”. Porque toda a nossa relação, a custo de muita luta, de muito
trabalho, a relação com a casa era através do Coletivo. Nenhum guarda, nenhum diretor da cadeia,
nenhum carcereiro, podia ter relação direta com o preso. O que eles quisessem tinha que ser através
do Coletivo, isso evitava, eu não digo traição, mas evitava conflitos, promiscuidade. Preso que
conversa com guarda é promíscuo, era muito ruim para nós, nós não queríamos. Era assim que o
Marighella queria: “o Coletivo vai perder autoridade”. Essa briga pro coletivo ser tratado como
governo, isso foi uma briga, greve de fome, briga, muita briga, muito barulho.
ET_ Marighella presente nessas brigas?
NG_ Participou disso tudo. Ele foi preso em 39, acho que em 40 ele estava na Ilha.
ET_ Você fala 3º, está se referindo ao...
NG_ III Regimento de Infantaria da Praia Vermelha, que se levantou em 35.
ET_ Agora sobre os momentos de lazer, ele gostava de jogar futebol, jogava de quê?
NG_ Ele jogava de zagueiro, beque, descalço. Ele já tinha jogado futebol na Bahia, antes, no
Ginásio, na praia.
ET_ Ele comentou isso?
NG_ Comentou. Era bom zagueiro, ótimo zagueiro. Aliás, era bom em tudo, ele supera o que a
gente possa imaginar, porque ele era bom em tudo. Ele era um excelente professor, por exemplo,
sem nunca ter sido professor na vida.
ET_ Você teve aula com ele?
NG_ Eu assistia de vez em quando. Eu também era professor. Eu me lembro que ele ensinava
português e matemática. Marighella aprendeu inglês sozinho lá, lia, lia muito e acabou aprendendo.
Não sei se falava, mas ele aprendeu muito.
324
ET_ Marighella era uma pessoa muito extrovertida...
NG_ Muito, muito, muito...
ET_ Qual era a brincadeira que ele mais gostava?
NG_ Ele achava graça, ele tinha o senso do pitoresco. Então, inventavam lá um apelido para alguém
e ele começava a pesquisar: “Que diabo, por que esse apelido”? Sei lá, chamava Caroço, ele queria
saber que diabo que houve ali que deram o apelido de Caroço, e fazia uma espécie de pesquisa
gozada. Ele levava, sabia viver, levava a vida como deve ser levada. Ria quando era preciso rir, a
fisionomia ele era sempre muito séria, o Marighella tem os traços de um homem que não ri.
ET_ Fisicamente como ele era?
NG_ Fisicamente? Alto, mais alto que eu, forte, mulato não era não, era morenão. Você sabe que
eu gosto de contar um episódio que eu tive com o Marighella. Marighella, no golpe, em 64, foi
baleado no Rio de Janeiro _ essa história você conhece _ a polícia daqui, na época, ainda era uma
polícia que não estava comprometida com o terror, com a repressão brutal DOI-CODI, era o
DOPS, um a polícia inteligente. Mandou buscar o Marighella lá no Rio de Janeiro. Ele veio, mesmo
ainda ferido, veio num carro de preso. Ele levou uma bala aqui, quase entrou pelo coração,
impressionante. Ele veio para cá, eu não estava clandestino, em julho. Foi quando em?
ET_ 9 de maio de 64.
NG_ 9 de maio. Eu estou falando então de julho, julho, já vou te explicar por que eu sei que é julho.
Eu estava aqui, um frio desgraçado e eu chateado. A polícia esteve lá em casa, eu fui depor, mas me
soltaram. Ainda não era repressão que veio depois com os militares, aquela brutalidade. Resolvi
visitar Marighella na prisão. Telefonei para uma cunhada dele, casada com um proprietário de uma
malharia. Eu fui visitar o Marighella.
ET_ Ele estava hospitalizado?
NG_ Não. Era no DOPS, no xadrez. No dia 9 de julho, aniversário de São Paulo, era feriado _ por
isso que eu me lembro que é julho _ eu peguei um puta de um pacote de roupa, estava frio, que você
não imagina o frio em São Paulo, pacote de malha, de revistas, livros, fui ao DOPS, peguei o
elevador, tinha uma sala assim, estava como nós assim, uma poção de tiras, a mesa do delegado lá
no fundo: _ “Dá licença doutor”?
_ “Pois não”!
_ “Eu queria visitar o professor Carlos Marighella”.
Com a cara e a coragem que eu fiz, hoje eu fico pensando. Era a polícia civilizada, não havia
se instalado ainda a grande repressão que veio com os generais, o governador era o Adhemar de
Barros, eu joguei também com isso e sabia que não seria preso.
_ Faça o favor de entrar!
Aí eu entrei com o pacote, sentei na frente do delegado, ele disse:
_ Um momento.
Passou a mão no telefone e falou não sei o quê, ele dava as costas ao falar:
325
_ “Olha, eu sou o delegado substituto, porque hoje é feriado e o titular não está aí. Eu não posso dar
a licença pro senhor.
Eu falei:
_ Eu posso entregar isso ao menos?
O Delegado:
_ Ah! Sim. Põe o nome dele aí, vai lá na carceragem e o carcereiro entrega para ele.
Aí eu escrevi um bilhete assim: “Marighella aí vai uma roupa, revista e um grande abraço e
tal... Mande um bilhete de volta dizendo o que você quer, mande de volta, embaixo do bilhete, o que
você quer”! Ele escreveu o seguinte: “Noé, não preciso de nada, a não ser sabão e pasta de dente”.
Aí atravessei a rua, comprei a pasta de dente, sabão, cheguei lá e entreguei e fui para casa
tranqüilo, com o dever cumprido. Aí, quando ele saiu foi lá pra casa, saiu logo depois, foi
interrogado, fotografaram ele de todo o jeito. Ele era uma personalidade por causa daquela
resistência dele no cinema lá no Rio. Foi lá pra casa e ficou algum tempo comigo, até escreveu um
poema lá.
ET_ Qual poema?
NG_ Poema da Avenida Angélica, uma coisa assim. Ele lá da janela onde estava, do quarto que eu
dei para ele, tinha u cemitério lá. Ele fez uma imagem desse poema encima de um poema de Castro
Alves. Ele dizia que eram os gorilas, que aqueles túmulos lá pareciam os gorilas avançando (risos).
ET_ Bom eu conheço a que o Vladimir me mostrou.
NG_ O Sachetta. Aí você vê pela mãe do Marighella, quem ele era. Ela parece uma rainha, uma
coisa linda, parece uma princesa. Impressionante. A mãe dele é interessante. Essa fotografia diz
tudo, tudo. Inclusive m fotógrafo de bom gosto, ele botou uma margarida, acho, botou na mão, ela
está com uma expressão soberba.
ET_ De 45 a 64 você não teve muito contato com ele?
NG_ Não, trabalhei com ele rapidamente, politicamente.
ET_ Aqui em São Paulo?
NG_ É, ele vinha pouco. Foi deputado, aí eu perdi contato. Depois foi cassado, aí ele passou a
dirigir o Partido, era ele e o Prestes, ele era da Comissão Executiva do Partido, aí nos víamos
pouco, quando ele passou a luta armada o vi uma vez.
ET_ Como foi esse contato?
NG_ Foi um encontro. Tive um encontro com ele, que ele pediu. Pra dizer a verdade eu não me
lembro bem o que ele queria. Era qualquer coisa ligada, era um documento, precisaria de um
documento, uma coisa assim, eu trabalhava em publicidade, eu tinha facilidade de arrumar algumas
coisas, depois não vi mais. Sabia que ele estava na luta armada, ele tinha vindo de Cuba, eu não
trabalhei nisso, não concordei, fiquei no Partido, aí ele foi expulso, ele e o Câmara Ferreira.
ET_ Como você ficou sabendo da morte dele?
NG_ Eu fiquei sabendo pelo rádio. Estava com o rádio ligado e aí fiquei sabendo em casa.
Interromperam uma transmissão de futebol que estavam fazendo e o cara falou. Era fatal aquilo,
porque a coisa ficou limitada , ficou limitada a Fleury e ele, não tinha mais sentido. É verdade que ele
326
estava organizando coisa séria, até hoje não sei como e o que ele organizou por aí, mas a idéia, se eu
não me engano, era o negócio do Araguaia.
ET_ Você aceitou?
NG_ Eu não estava de acordo. Ajudei o Câmara, que era muito meu amigo, naquilo que foi possível
sem me comprometer com a organização deles. Ajudei ele pessoalmente, mas não concordava com
aquilo, não quer dizer que eu não cheguei a pensar nisso, a garotada se entregou a luta armada com
um heroísmo fantástico.
ET_ Voltando um pouco, a Clara falou para mim que ele gostava muito de exercício físico, além de
futebol, lá na prisão ele pratica esportes, exercícios, corria?
NG_ Não, era futebol e natação. Nadava muito bem, tinha praia o dia inteiro. Lá na Ilha Grande era
praia. Exercícios ele fazia, tinha muita consciência, era um homem fortíssimo.
ET_ Bebia ou fumava?
NG_ Não. Lá na cadeia não tinha bebida. Aqui fora era guaraná. Eu almoçava com ele as vezes,
num boteco qualquer, nos encontros que a gente tinha, eu nunca vi o Marighella beber.
ET_ Ele comia muito?
NG_ Muito, quando nós saíamos para comer gostava sobretudo de peixe.
ET_ Aquela revista Veja diz que ele era apreciador de batida de limão, se fosse não teria problema
nenhum.
NG_ Craque de futebol ele era, craque mesmo, isso ele era. Nós chegamos a jogar futebol contra
os integralistas que estavam presos também, era uma puta responsabilidade.
ET_ Nesse futebol ele caçoava, brincava ou jogava sério?
NG_ Tinha que jogar sério contra os integralistas, era uma competição contra os integralistas, era
natação, futebol, vôlei, corrida e não sei mais o que. No futebol ganhamos, no vôlei ganhamos, na
natação ganhamos, graças a um companheiro que era campeão de natação.
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