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O MUNDO DAS FERAS: OS MORADORES DO SERTÃO
OESTE DE MINAS GERAIS – SÉCULO XVIII
Marcia Amantino
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento
de História do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos para a obtenção do título
de Doutor em História.
Orientador: Prof. Dr. Manolo G. Florentino
Volume I
Outubro de 2001
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2
O MUNDO DAS FERAS: OS MORADORES DO SERTÃO
OESTE DE MINAS GERAIS – SÉCULO XVIII
Marcia Amantino
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento
de História do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos para a obtenção do título
de Doutor em História.
Orientador: Prof. Dr. Manolo G. Florentino
Volume II
Outubro de 2001
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O MUNDO DAS FERAS: OS MORADORES DO SERTÃO
OESTE DE MINAS GERAIS – SÉCULO XVIII
Marcia Amantino
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em
História.
Aprovada por:
___________________________________
Presidente da Banca
____________________________________
_____________________________________
______________________________________
_______________________________________
Outubro de 2001
4
AMANTINO, Marcia Sueli
O mundo das feras: Os moradores do Sertão Oeste de Minas Gerais
– século XVIII. Rio de Janeiro, UFRJ, IFCS, 2001.
V, 426 f.
Tese: Doutorado em História Social do Brasil
1. Sertão 2. Índios 3. Quilombolas 4. Minas Gerais
5
RESUMO
Este trabalho é um estudo sobre o processo de ocupação ocorrido sobre as áreas do interior
da Capitania de Minas Gerais durante a Segunda metade do século XVIII. Naquele
momento o contexto nesta região estava condicionado a necessidade de se encontrar terras
para aumentar as extrações de ouro, aumentar a agricultura e consequentemente,
incrementar a arrecadação dos impostos devidos à Metrópole. Para tanto, era necessário
buscar a incorporação de novas áreas. Em função destes objetivos foi criado na Metrópole
e transferido para a Colônia, um Projeto Civilizacional baseado no controle sobre as
populações que viviam nestas áreas e na montagem de expedições enviadas à várias partes
da Capitania.
O objetivo destas eram civilizar e povoar estas áreas com grupos que pudessem ser
controladas. Era necessário “limpar” os Sertões de seus moradores considerados
indesejados, ou seja, índios tidos como bravios, quilombolas e vadios. Para justificar estas
expedições foram criadas inúmeras imagens negativas a respeito destes moradores e para
cada um deles foram desenvolvidas atitudes específicas. Todavia, todas negavam o direito
a estas terras por estes grupos.
6
ABSTRACT
The present dissertation is a study about the process of occupation over the lands of
interior in Minas Gerais during the second half of 18
th
century. At that moment, the context
in Minas Gerais was conditioned by the necessity of finding more lands to improve the
agriculture and to be a promise of finding more gold to solve the diminution of collection.
To do this was necessary to make an expansion to interior’s areas (Sertão) which were
inhabited by runways slaves and indigenous, considered as beast.
So, the metropolitan and colonial’s authorities made a “Civilisation’s Project” to permit the
accomplishment of this intents using different types of expeditions.
The principal objective was to civilise and to populate these areas with people that could
be controlled on his movements and they were obliged to pay the taxes. It was necessary
“to clean” the Sertão of dangerous people: runways slaves and brave indigenous.
To justify this a lot of depressing images about those people were created. The first part of
this work shows the Sertão and the images created about it. After that the next part
analyses its inhabitants (indigenous, runways slaves and people without work). All were
identified with negatives images.
Later, the next parts are going to show the authorities”s attitudes over each one: to the
indigenous there were two possibilities: the good indigenous were “aldeados” but the brave
were exterminated in name of progress and security; the runways slaves were attacked to
be re- slaved. As the “quilombos” were numerous in Minas Gerais during the 18
th
. It was
necessary do a classification of them according to their characteristics; the people without
work were considered by the authorities as dangerous because they didn’t work, they used
7
to steal and lived in the cities. So, many of them were removed by force to interior’s areas
to populate them.
The next part analyses the expeditions in Minas Gerais and shows that it was part of an
older and bigger project. The last part is a study about the failure of this project because the
indigenous and the runways slaves didn’t accept the control over their lands. Besides, the
project was based on poor people without conditions to improve these lands.
8
AGRADECIMENTOS
Depois de quatro anos entre a pesquisa e a escrita deste trabalho restaram inúmeras pessoas
a quais devo algum tipo de gratidão.
Inicialmente, devo agradecer à CAPES pela bolsa recebida nos anos iniciais da pesquisa.
Ela foi essencial para as viagens a Belo Horizonte, onde grande parte do material analisado
foi coletado.
Aos professores participantes da banca deixo registrada minha gratidão por terem
prontamente aceito o convite.
Agradeço ao Carlos Engemann por ter copiado todos os anúncios publicados no Jornal O
Universal localizado na Biblioteca Nacional. Seu trabalho foi de grande valia para a
pesquisa.
Sou grata também à Carla Carvalho Almeida pelo seu carinho e a bondosa entrega de
material coletado para suas próprias pesquisas, como por exemplo, o testamento de Ignácio
Correia de Pamplona e alguns inventários localizados nos arquivos de São João del Rei.
Ao Tarcísio José Martins, agradeço “nossas conversas” por correio
eletrônico. Graças a ele conheci um pouco mais sobre Minas Gerais.
Devo a ele também o envio do mapa do Campo Grande,
exaustivamente procurado nos arquivos de Minas Gerais e Rio de
Janeiro. Tarcísio, num trabalho de detetive, localizou o mesmo em
São Paulo e desenvolveu uma profunda análise sobre o mesmo.
Ao Hélio, um estatístico que adora a História, sou grata pela ajuda no que diz respeito à
parte técnica. Sua contribuição foi essencial para a montagem das tabelas e gráficos
apresentados.
Alzira Salles foi quem pacientemente corrigiu o texto indicando alterações valiosas.
Demonstrou todo o tempo, além de competência, um carinho especial tanto por mim como
pelo texto. Obrigada, amiga.
9
Ao Manolo Florentino devo muito mais do que agradecimentos. Em todos os momentos
pude contar com sua ajuda, seu carinho e compreensão. Este trabalho não teria sido
possível se não fosse a sua presença sempre segura. Muito obrigada.
A minha família e amigos devo não só agradecimentos, mas também pedidos de desculpas
pelas ausências e pelo tempo dedicado a elaboração deste trabalho e “roubado” do
convívio com eles.
Ao Rogério, companheiro de todos os dias e de cada projeto de vida, agradeço seu carinho.
Seu apoio foi essencial em cada momento deste trabalho e sem ele, certamente a jornada
teria sido muito mais difícil.
Finalmente, devo um agradecimento especial a uma pessoa que já não está mais entre nós:
meu avô, Jorge Carvalho. Foi ele quem me ensinou a gostar de ouvir e de contar Histórias.
Foi ele o responsável por esta minha paixão.
ÍNDICE
CONTANDO UMA HISTÓRIA... 1
PARTE 1 O ESPAÇO REBELDE 26
I – O palco da barbárie: o Sertão 26
II- O Sertão Mineiro: um palco de disputas 34
As imagens sobre a região 47
PARTE 2 – OS REBELDES DOS SERTÕES 57
I - As imagens criadas sobre os índios 57
Os europeus e a crença na dualidade indígena: os Tupi e os Tapuia 57
10
O século XVIII e a racionalidade sobre o índio 72
Os índios de Minas Gerais e as Guerras Justas 86
II- Os negros e suas representações 111
A África e seus habitantes 111
A sociedade letrada e o cativeiro negro no Brasil: o bom e o mau escravo 119
O escravo fugitivo e os anúncios do Jornal “O Universal”. 130
O quilombola: o pior dos escravos 150
As imagens sobre os quilombolas 154
III- Os vadios: aqueles que não tem lugar na boa sociedade 168
PARTE 3 – UMA TIPOLOGIA PARA OS QUILOMBOS MINEIROS 181
PARTE 4 - UM PROJETO DE CIVILIZAÇÃO PARA O SERTÃO MINEIRO 238
I – Conquistar, civilizar... 238
II - O ideal civilizador fora da Capitania de Minas Gerais 251
III – As tentativas de controle e povoamento do Sertão Mineiro através das expedições 264
IV - Uma trajetória civilizadora: O Mestre de Campo, Ignácio Correia de Pamplona e seu tempo 280
O lado literário da expedição de 1769: o Arcadismo 291
Um outro lado da vida de Pamplona 303
PARTE 5 - O LIMITE DO PROJETO: A POBREZA 310
CONCLUINDO UMA HISTÓRIA... 346
PARTE 6 - FONTES E BIBLIOGRAFIA 352
I – Fontes Primárias Manuscritas 352
11
II- Fontes Primárias Impressas 357
III – Bibliografia secundária 358
Índice Remissivo 370
PARTE 7- ANEXOS 386
12
Índice de figuras
Figura 1: Divisão do Brasil por regiões – IBGE ................................................................. 35
Figura 2: Mapa aproximado das Comarcas da Capitania de Minas Gerais no século XVIII
..................................................................................................................................... 36
Figura 3: Mapa aproximado das Comarcas da Capitania de Minas Gerais no século XIX 37
Figura 4- Região aproximada considerada no século XVIII como Sertão em Minas Gerais.
..................................................................................................................................... 38
Figura 5- Itinerário feito pela comitiva de D. Luis Diogo Lobo da Silva em 1764 ............ 43
Figura 6 - Adoração dos Reis Magos .................................................................................. 58
Figura 7-Aygnan Cacodaemon Barbaros Vexat.................................................................. 59
Figura 8- Americae.............................................................................................................. 60
Figura 9-Casal Tapuia ......................................................................................................... 67
Figura 10-Casal Tupi........................................................................................................... 67
Figura 11- Aldeia de Coroados............................................................................................ 69
Figura 12- Botocudos, Puris, Patachos e Machacalis.......................................................... 69
Figura 13- Documento de doação de terras do Aldeamento do Etueto - 1875.................... 95
Figura 14-Africanos antropofágicos.................................................................................. 117
Figura 15-Anúncio do Jornal O Universal ........................................................................ 131
Figura 16- Negro com ferro e argola................................................................................. 141
Figura 17- “Um negro rebelde armado e em guarda” ....................................................... 156
Figura 18- Um negro suspenso vivo pelas costelas numa forca........................................ 157
Figura 19- Imagem de Palmares........................................................................................ 158
Figura 20- Região do Campo Grande............................................................................... 186
Figura 21- Artífices trabalhando o ferro............................................................................ 210
Figura 22-- Tecoaba........................................................................................................... 231
13
Figura 23-Quilombo de um dos braços da Perdição ......................................................... 235
Figura 24-Quilombo da Samambaia.................................................................................. 235
Figura 25-Quilombo do Rio da Perdição........................................................................... 236
Figura 26-Quilombo dos Santos Fortes............................................................................. 236
Figura 27-Quilombo do Ambrózio.................................................................................... 237
Figura 28-Quilombo de São Gonçalo................................................................................ 237
Figura 29-Índios recolhendo Pinha ................................................................................... 253
Figura 30- Os contatos....................................................................................................... 254
Figura 31-A aceitação dos presentes ................................................................................. 254
Figura 32- Recebimento de presentes................................................................................ 255
Figura 33-Índios ................................................................................................................ 258
Figura 34-Ataque............................................................................................................... 259
Figura 35-Ataque............................................................................................................... 260
Figura 36-Ataque............................................................................................................... 261
Figura 37- A retirada ........................................................................................................ 262
Figura 38 - Mapa de todo o Campo Grande...................................................................... 285
14
Índice de tabelas
Tabela 1- Distribuição segundo sexo e etnia dos escravos anunciados no “O Universal” 132
Tabela 2- Distribuição das profissões dos escravos segundo suas etnias......................... 135
Tabela 3- Distribuição dos homens segundo etnias e profissão........................................ 135
Tabela 4- Presença da população forra em Minas Gerais - 1786 a 1821 .......................... 142
Tabela 5- Doenças e problemas físicos anunciados no Jornal “O Universal”................... 148
Tabela 6- Quilombos em Minas Gerais durante o século XVIII....................................... 182
Tabela 7 -Arraial Velho –1717.......................................................................................... 341
Tabela 8-Rio das Mortes Pequeno –1717.......................................................................... 341
Tabela 9-Bichinho - 1717.................................................................................................. 342
Tabela 10- Caminho Velho - 1717 .................................................................................... 342
Tabela 11-Córrego–1717................................................................................................... 342
Tabela 12-Rio Abaixo –1717 ............................................................................................ 342
Tabela 13-Itaberaba e Norvega –1717............................................................................... 342
Tabela 14-Caminho Novo –1717 ...................................................................................... 343
Tabela 15-Vila de São João –1717.................................................................................... 343
Tabela 16-Caminho do Campo –1717............................................................................... 343
Tabela 17-Brumado–1717................................................................................................. 343
Tabela 18-Lagoa Dourada–1717 ....................................................................................... 343
Tabela 19-Ponta do Morro e Prados –1717....................................................................... 343
Tabela 20-Rio Acima –1717 ............................................................................................. 343
Tabela 21-Somatório das localidades–1717...................................................................... 344
Tabela 22-Proprietários que possuíam no máximo 5 cativos – São João del Rei, 1718 ... 345
Tabela 23-Proprietários que possuíam mais de 6 cativos – São João del Rei, 1718......... 345
Tabela 24-Cuieté -1770 ..................................................................................................... 346
15
Contando uma história...
Corria o ano de mil setecentos e cinqüenta e nove do nascimento de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Os poucos religiosos jesuítas que ainda haviam conseguido permanecer no
território de Minas Gerais, estavam agora fugindo rumo ao Sertão, levando consigo seus
índios “administrados” e seus escravos. Deixavam para trás as ordens de expulsão e
confisco de seus bens, dadas por Pombal, para Portugal e suas colônias.
O grupo seguiu enfrentando várias refregas com as tropas do governo. Os escravos
e os índios serviram como soldados lutando para a proteção dos religiosos. Juntos
atravessaram o rio de São Francisco e ali não ficaram porque já não era uma região segura
para eles; desbravada e povoada anos antes. Preferiram seguir para o Espigão Mestre. Lá,
atravessaram a Serra da Mata da Corda e alcançaram as cabeceiras do rio Misericórdia.
Em um determinado ponto que mais tarde recebeu o nome de Quilombo, deixaram
para trás, sob a liderança do escravo alforriado Ambrósio, todos os que haviam lutado e
matado brancos para facilitar a fuga dos religiosos. As ordens a Ambrósio, eram de que se
criasse um quilombo capaz de abrigar os mais de 200 homens que ficariam sob seus
cuidados. Eram homens perigosos que para os defenderem praticaram toda sorte de
violência, e os religiosos não queriam ser acusados de proteção a facinorosos.
Os jesuítas seguiram em frente guiados por Tucum, líder indígena de uma das tribos aliadas, levando
cerca de duas mil pessoas. Pararam na Aldeia de Sant’Anna, onde já havia uma pequena tribo que os
acolheu
1
. A razão da escolha deste local teria sido por motivos estratégicos: de lá poderiam catequizar os
índios de Minas Gerais, Goiás e São Paulo, e pelo rio Paranaíba poderiam, em caso de ataque, fugir para
Goiás e Mato Grosso.
Ambrósio, neste momento, já era um homem alforriado.
Entretanto havia sido comprado, assim como sua mulher
Cândida, no mercado do Valongo, no Rio de Janeiro. Ele era um
“...descendente de uma família real, um príncipe em sua
terra...”. Era também, “... homem purificado de muitos vícios
1
Na realidade, os índios que ali viviam faziam parte dos aldeamentos criados em 1741 por Antonio
Pires de Campos.
16
próprios à sua nação e ilustrado o quanto possível...”. Cândida,
havia sido “...educada o quanto possível para sua época e
condição...”.
Era nas mãos de Ambrósio e Cândida que estava a
responsabilidade de erigir o quilombo e liderá-lo. Para isso,
contavam com o apoio de João Wrumeia e Hyunhnguera,
nomeados generais comandantes. Pelos nomes, há um indício de
que poderiam ser índios ou paulistas.
A vida no quilombo transcorreu em relativa paz, sobretudo,
quando Ambrósio se livrou dos elementos mais perigosos.
As noções de hierarquia no interior da estrutura eram
baseadas nas ligações políticas africanas. Ambrósio havia sido
escolhido para liderar o grupo, porque trazia em si todas as
condições para exercer o cargo, inclusive, o fato de ser
descendente de uma família nobre africana. Desta maneira os
demais quilombolas respeitavam-no sem questionar suas ordens.
Assim, o ex-senhor de Ambrósio aproveitou-se deste poder sobre
os demais e
“... não deixou perder esse incentivo, incutindo no ânimo do
aprendiz o valor de suas qualidades e fazendo até que os outros
o considerassem, longe, o mesmo que pátria-mãe, estabelecendo,
por esse meio, um natural ascendente sobre os demais escravos,
que, longe de se insurgirem na arrogância da vaidade,
prestavam de fato a Ambrósio a homenagem que lhe era devida,
tanto mais sincera, quanto o garbo do homenageado, que
correspondia com o respeito e atenção próprias de sua alta
hierarquia...”.
O quilombo funcionava de maneira organizada, suas leis
eram severas e os atos mais sérios eram julgados na Aldeia de
Sant’Anna pelos religiosos. O trabalho era repartido com
igualdade entre os membros do quilombo, e de acordo com as
qualidades de que eram dotados,
17
“... os habitantes eram divididos e subdivididos em classes...
assim havia os excursionistas ou exploradores; os negociantes,
exportadores e importadores; os caçadores e magarefes; os
campeiros ou criadores; os que cuidavam dos engenhos, o
fabrico do açúcar, aguardente, azeite, farinha; e os agricultores
ou trabalhadores de roça propriamente ditos...”
Todos deviam obediência irrestrita a Ambrósio. O casamento era geral e obrigatório na idade
apropriada. A religião era a católica e os quilombolas,
“...Todas as manhãs, ao romper o dia, os quilombolas iam rezar, na igreja da frente, a de perto do portão,
por que a outra, como sendo a matriz, era destinada ás grandes festas, e ninguém podia sair para o trabalho
antes de cumprir esse dever religioso, para o qual o sino dava o sinal conhecido... “...As aspirações daquele
povo limitava-se ás festas dos sábados e domingo, á pesca, á caça e, sobretudo ás danças em que aluá,
servido, a vontade, levantava os espíritos nos mais chorosos devaneios...”
Por causa de um acordo feito entre Ambrósio e os Jesuítas, o quilombo não poderia receber escravos
fugitivos da Aldeia de Sant’Anna e nem roubar outros. Entretanto, não era bem assim que o quilombo
funcionava e isto provocou algumas rupturas com a aldeia jesuítica.
Assim, sob estas leis e o domínio de Ambrósio, o quilombo cresceu absorvendo centenas de pessoas
que vinham de todos os lados, inclusive, contrariando as regras, os escravos dos religiosos. Isto gerou
problemas sérios entre as duas lideranças e as relações acabaram sendo rompidas. Neste momento, a
população do quilombo já estava em torno de cinco mil habitantes, de ambos os sexos e de todas as idades.
O interior do quilombo era dividido espacialmente como uma cidade qualquer, sem contudo,
esquecer os elementos protetores da estrutura quilombola.
“...Os primeiros estabelecimentos foram duas igrejas, a residência do chefe, o palácio,
como diziam, a cadeia, o engenho e mais dependências de uma grande fazenda. Ao redor
deste edifício foram-se erguendo habitações, que respeitavam a praça e as ruas... A cidade
ou quartel ambrosiano estava colocada em um lindo descampado, no encontro de dois
córregos, que forneciam grande abundância de água, tanto para o consumo público, como
para os engenhos, moinhos e outros mecanismos. Circulava-o um valo com a extensão de
uma légua em circunferência largo e profundo, eriçado no centro com pontiagudas estacas
de aroeira do sertão, cuja rijeza o durabilidade são legendárias: acima do valo e
acompanhando todo este, a guisa de muralha, levantava-se um terraço de oito palmos de
altura por dez de largura: um só portão, junto ao qual havia uma ponte levadiça, dava
acesso á cidade, que era um perfeito arremedo das antigas cidades fortificadas. Logo ao pé
do portão havia uma igreja e dali seguia a rua principal, até ao grande largo ou praça, onde
se erguiam as torres de um belo templo com seu campanário; palácio real ou residência do
Ambrósio; a cadeia com seu grande pátio fechado, por grossos muros; o patíbulo, e os mais
18
importantes edifícios. O portão era de duas bandeiras, muito largas e cosidas com grossas
chapas de ferro. O erário público era no palácio...”
A economia era baseada na caça, na pesca, nas criações de gado e na agricultura de milho e açúcar.
“...Vastas roças de milho e canaviais ondulavam ao sopro da brisa sertaneja e, desde a madrugada até ás
primeiras horas do dia, evitando o rigor da canícula chiavam os carros que conduziam milho e outros
cereais para o paiol ou tulhas, ou cana para a moagem...”
Na caça, “...Onde houvesse um rincão, os caçadores abriam fogos, cujos orifícios ou bocas tapavam
com frágeis ramos e capim; açulavam os cães nos capões e esperavam, cercando as saídas. As caças
acossadas e tiradas de seus ninhos, procuravam a salvação no campo e caiam nos fogos ou na boca das
espingardas, no gume dos facções ou no golpe dos cacetes ferrados e próprios para tais misteres...”
Todavia, estas atividades só se tornaram possíveis porque os índios abandonaram a
região e foram viver com os jesuítas na Aldeia de Sant’Anna.
Ainda que tudo fosse dividido entre os quilombolas,
“...Todos trabalhavam para a sociedade; tudo era de todos, mas
não havia meu nem teu. Todo o produto era recolhido ao
tesouro, se dinheiro ou pedras preciosas; aos armazéns, se
produtos da lavoura....”, as diferenças e hierarquias sociais
existiam: “... O chefe e os principais tinham roupas finíssimas,
que vinham da capital jesuítica; para o comum, porém, o pano
era fiado e tecido ali mesmo, de algodão que cultivavam, ou de
lã de seus carneiros, que, eram grande manadas povoavam os
campos adjacentes....”
A vida familiar era preservada:
“...Cada família tinha sua residência que edificava; se, porém, se ausentava de vez, o que nunca acontecia,
nada podia vender, contentando-se com a indenização que o chefe julgava merecida. Para a vida ali, de
nada tinham necessidade, por que havia tudo, com fartura, devido ao lato tino administrativo de Ambrósio.
Do trabalho, que faziam, tinham, entretanto remuneração em dinheiro, que ali mesmo empregavam em
compras no grande armazém, sempre bem sortido pelas constantes expedições de exportadores e
importadores do Quartel....”
O quilombo seguia assim, em relativa paz, e crescia a cada ano graças aos
conhecimentos e à liderança de Ambrósio.
Depois desta visão geral sobre o quilombo é necessário conhecer outras personagens que são
importantes nesta trama: os Jesuítas Caturra e Custódio Coelho Duarte, e o negro Pedro Rebolo.
Caturra e Custódio preferiram viver junto com Ambrósio e rapidamente abandonaram a aldeia de
Sant’Anna. Anos depois resolveram ir novamente “em busca de novos ares e fortuna”. Ambrósio comprou-
19
lhes todos os escravos a 60 oitavas cada um e deu a Caturra, seu antigo senhor, presentes, dinheiro e pedras
preciosas.
A história deste religioso parece ter saído de um romance repleto de aventuras. Após ter deixado o
quilombo e seu companheiro, dias depois Caturra disfarçou-se de padre regular e foi para o Rio de Janeiro, de
onde partiu para a África a fim de comprar escravos e revendê-los no Brasil. Entretanto, a embarcação em
que estava sofreu um ataque de pirataria e todos foram “...espoliados de todos os seus haveres e vendidos
como escravos na Argélia, onde experimentaram os horrores da escravidão...” . Tempos depois, resgatados
pelo governo português são “...levados para o reino, pobres e torturados sempre pelos estigmas da passada
escravidão...”. Em Portugal, ao afirmar que era do Brasil, para cá foi enviado e, em Vila Rica, fez-se
soldado raso.
Pedro Rebolo é outra peça chave desta história. Algumas vezes ao ano Ambrósio enviava seus
auxiliares à Vila Rica para que eles comprassem mantimentos, pólvora e escravos. Muitas vezes, os
auxiliares ao invés de comprarem, roubavam esses escravos. Ainda que contrariando as ordens de Ambrósio:
“...não só roubavam pelo caminho, como [faziam]... furtos, depredações, correrias e outros atos reprovados
e proibidos pelas leis ambrosianas..”.
Em uma destas expedições compraram Pedro Rebolo, moço forte e que mal falava o português.
Ambrósio não se agradou do rapaz e repreendeu seus auxiliares, até porque eles não haviam comprado
também uma “... rapariga por que preço fosse para mulher deste animal em quem não posso absolutamente
ver coisa boa...”
Os assistentes de Ambrósio sabiam que ao comprarem um negro, deveriam também comprar uma
mulher para lhe ser companheira. Como os casamentos eram gerais e obrigatórios, não haveria no quilombo
mulheres em número suficiente para todos os homens; as que existiam, ou já estavam casadas ou quem sabe,
prometidas a alguém. A importância de comprarem uma mulher para Pedro Rebolo também era para evitar
desordens e conflitos sociais como as que ele provocou ao importunar duas mulheres, uma casada e outra
solteira. O pai desta última, ao socorrê-la, foi gravemente ferido pelo negro. Ambrósio o castigou
severamente e colocou-o a ferros.
Ambrósio, prevendo confusões ainda maiores, ordenou que em oito dias levassem o negro para
longe do quilombo. O tempo se passou e a expedição que ia escolta-lo não pôde sair por causa de uma
doença do comandante.
Rebolo mostrou-se arrependido e jurou obedecer cegamente às leis. Trabalhou durante dias com
afinco e sob o pretexto de caçar, fez um arco e flechas.
“...Sabendo manejar arco e flechas como o melhor indígena, nas horas vagas, a título de
caçador, preparou um bom arco , afiou e temperou as melhores setas com que munido seu
carcaz, preparou matulagem e, em uma noite de sábado, quando toda cidade enchia os
templos e a praça em uma festividade religiosa que se celebrava, fugiu, a caminho de Vila
Rica...”
Por causa da festa só deram falta de Pedro Rebolo na segunda-feira. Vários grupos partiram ao seu
alcance com ordens para matá-lo. Nada conseguiram. Pedro Rebolo chegou em Vila Rica e lá revelou sobre o
gigantesco quilombo.
A partir daí iniciaram-se os preparativos para a guerra contra o quilombo, considerado pelas
autoridades mineiras como impossível de ter sido construído por
“...simples negros boçais, de rudes calhambolas; com toda a certeza eram os jesuítas que, corridos do Rio
de Janeiro, da Bahia, de S. Paulo, lá se haviam reunido e, fortes como estavam, não tardaria muito que
viessem contra o governo mineiro, contra todo o Brasil...”
Na concepção das autoridades, os negros, inferiores por natureza, não poderiam ter construído tão
adiantado núcleo sozinhos. A participação dos jesuítas que, naquele momento eram tidos como inimigos
públicos, era fundamental ao projeto daquele quilombo.
As preparações para a grande guerra iniciaram rapidamente e “...começaram os preparativos
bélicos, os aprestos para uma grande, nunca vista expedição, que tinham delineado, com todo o aparato
possível, para o sertão mineiro; mas tudo debaixo de tal sigilo...”
20
Para manter o sigilo das expedições, as autoridades explicavam que a montagem de tal esquema
militar era, ora para combater os estrangeiros que ameaçavam invadir o Rio de Janeiro a partir de
Montevidéu, ora para liquidar os índios ferozes do Rio Doce
2
.
Novamente entra em cena o ex-jesuíta, ex-padre secular, ex-traficante, ex-escravo e finalmente,
soldado raso. Sabedor da expedição, Caturra quis, de diferentes maneiras, avisar aos negros no quilombo,
nada conseguindo. Ao contrário, fez parte da tropa que seguiu em marcha. Os chefes da expedição ganhariam
quatro oitavas de ouro em pó por cada quilombola morto enquanto que seus ajudantes receberiam 400 réis.
Três meses depois, a expedição partiu com 3000 homens entre pedestres, comandantes, índios e
capitães do mato. Estes eram homens que sabiam:
“...trepar nas árvores como macacos, nadar como lontras, correr como veados; por instrução ser bom
feiticeiro; rezar o credo em cruz; saber tomar parte com o diabo, na noite de S. João; matar com veneno;
chamar cobras com assobios; rezar a oração de S. Marcos; passar por entre cães de fila, sem estes latirem;
em fim e ai estava a supra suma do valor – saber de um só golpe decepar uma cabeça! E eram os senhores
de baraço e cutelo e seu mais estupendo triunfo era trazer o maior número possível de orelhas das vítimas
que sacrificavam, na fúria do canibalismo, ficando memorável a expedição em que o triunfo subiu a três mil
e novecentos pares de orelha...”
Enquanto a tropa se preparava, iniciaram no quilombo as
decisões sobre o que fazer. Ambrósio, esquecendo-se de seus
conflitos com os jesuítas, buscou ajuda e concordaram que a
melhor saída seria abandonar o quilombo, e voltarem todos ao
aldeamento de Sant’Anna. Entretanto, o povo de Ambrósio não
aceitou o acordo, temendo que os padres os fizessem novamente
escravos e decidiram lutar por sua liberdade.
Quando a população de Ambrósio já não esperava mais o embate, repentinamente foi cercada, uma
vez que os espias foram mortos silenciosamente pelas flechas. O ataque ocorreu de manhã bem cedo, no
momento em que muitos quilombolas ainda estavam acordando e outros assistindo a missa diária. A batalha
foi trágica e mostrou a ferocidade dos membros da expedição.
“...E os lamentos dos que caiam ceifados pelas balas, e os gemidos das mães varadas, quando ainda no
leito, e os vagidos lancinantes das inocentes criancinhas pilhadas pelos estilhaços, pelos ricochetes dos
projeteis, na última sucção do leite materno, e o vozear infrene dos sitiantes, o clangor dos clarins, e o
alvorotos dos sitiados espavoridos, correndo ás armas, contrastavam-se com o ribombo sinistro da
artilharia e o pipocar cerrado da fuzilaria, vomitando a morte contra o povo inerme, contra velhos trôpegos,
mães fraquíssimas e presas no leito, criancinhas incapazes, contra a velhice, contra a fraqueza, contra a
inocência!...”
O embate durou algumas horas. No início, os quilombolas usaram armas de fogo, mas a munição
acabou e passaram a lutar com flechas.
“... Cerca de 9 horas da manhã, acabada a munição para as armas de fogo, os sitiados, o resto de bravos
que sobreviviam, a peito descoberto, sobem as muralhas e despejam contra os sitiantes um chuveiro de
flechas... Sobre as muralhas flechavam os sitiantes; mas caíam aos punhados pelas esfuziantes balas da
fuzilaria, que não perdoava...”
2
Todas as expedições de ataques aos quilombos eram montadas com grandes dificuldades,
exigindo-se contribuições das diversas Câmaras e com o alistamento de homens para formar os
batalhões. Assim, era completamente impossível o sigilo.
21
Depois de horas de batalha, Ambrósio percebeu que não poderia fazer mais nada. Recolheu seu
povo e iniciou um sacrifício coletivo, onde seus comandantes degolavam os quilombolas a fim de que não
fossem presos e reconduzidos ao cativeiro.
Do alto do trono, vestido como um rei que era, assistia ao sacrifício de seu povo. “...Trajava
sobrecasaca de pano finíssimo, com galões dourados e botões de ouro; calças da mesma fazenda com largas
listras vermelhas, nas costuras, lado exterior; camisa de cambraia; chapéu de Braga com cinco bambolins
de retrós, pendentes para as costas; botas pretas e justas, de bico fino e salto de prateleira, esporas de prata
com correntes. Por armas prediletas tinha Ambrósio uma linda espada, um jogo de pistolas, rico punhal e
uma espingarda inglesa, de dois canos, tudo bordado a prata e ouro. ..”
Uma mulher em desespero conseguiu fugir, e avisar à tropa o que estava acontecendo. Os soldados
que ainda estavam recolhendo seus próprios mortos, entraram no quilombo e impediram a continuação da
matança.
O comandante das tropas ao ver Ambrósio, percebeu que ali estava muito mais do que um simples
negro:
“...Ambrósio ergueu-se, sereno e majestoso, e fitou os olhos do comandante, que, então, pôde reconhecer o
homem que jamais venceria, o leão que nunca domaria, se aquela inteligência fosse aquecida pelo benefício
do sol da civilização e não vítima do obscurantismo e das superstições próprias das pragas africanas...”
O líder das tropas, insultando Ambrósio, chamou-o de cacique. Este respondeu-lhe então que,
“...cacique é rei dos índios e eu não sou índio...” Ambrósio afirmou ser um Zambi, um rei na África.
O comandante ofereceu-lhe a possibilidade de entrega pacífica ou então, ser morto ali mesmo. O rei
escolheu a segunda opção, mas antes que seu carrasco chegasse até ele, propôs ao comandante a troca da vida
de seus súditos por uma grande quantidade de riquezas escondidas na região. O chefe das tropas imaginou
que não seria necessário aceitar a proposta para ficar com o tesouro e mandou executar Ambrósio, Cândida e
quase todo o povo. O carrasco era curiosamente não um branco, pois tal função vil não lhe caberia, mas sim
um indígena:
“...Baixo, grosso, peito largo, fronte também larga e desprovidos os olhos de supercílios, cabelos grossos e
duros: eis o índio que se apresentou, uma figura de horripilante batráquio. Suas armas – e trazia-as todas
– eram: um bacamarte preso ao correirão da cinta, uma espingarda baluda (Lazara, lazarina, legítima de
Braga), uma pistola-reuna e um alfanje curto, largo e pesado, próprio para a degola...
O dia terminava e,
“...os últimos lampejos do sol poente beijaram aquela triste cena e o rei do dia, como envergonhado
ocultou-se na orla do horizonte, ao passo que os soldados assassinos, inebriados por tão deslustrado triunfo,
atroavam a cidade com os gritos de vitória, e, nas quebradas daquelas montanhas, os ecos repetiam o
estampido da artilharia e da fuzilaria, repercutindo-se plangente, para que, perpetuado na memória dos
sertanejos, o mundo civilizado, contasse a negregada lei do absolutismo...”
Cobiçosos por encontrarem o grande tesouro, o comandante e seus soldados partiram ao seu
encalço. Mas ao pressentir que o ataque seria iminente, Ambrosio retirou todo o ouro guardado em sua
morada e o escondeu em pontos diferentes na mata. Ao morrer, levou consigo o segredo da localização exata.
Depois de muito procurar sem sucesso, descobriram entre os sobreviventes aquele que era o
responsável pela guarda do tesouro, Manoel Cabinda acompanhado de sua mulher, Catarina, ambos
comprados e depois alforriados por Ambrósio de um jesuíta que vivia no Rio de Janeiro e que havia fugido
anos antes para Minas Gerais com todos os outros escravos. Estes dois escravos haviam chegado ao
quilombo comprados por um dos auxiliares de Ambrósio.
O comandante das tropas propôs a Manoel Cabinda que lhe mostrasse onde estavam as riquezas em
troca de liberdade para si e para sua mulher. Cabinda explicou o que Ambrósio fizera com o tesouro e que
somente poderia ajudá-los participando também da busca. Na realidade, isto era um plano de vingança
tramado juntamente com sua mulher.
22
Enquanto Cabinda fingia ajudar aos inimigos, Catarina interessava-se falsamente por Pedro Rebolo,
responsável pela destruição do quilombo. Todos já percebiam o quanto Pedro Rebolo estava desrespeitando
Cabinda e cobravam uma atitude. O capitão da tropa, Feliciano, era um destes e ao exigir uma reparação de
Cabinda, ouviu a resposta de que ele de bom grado mataria Pedro Rebolo se alguém o ajudasse. Para
convencer mais facilmente ao capitão, ofereceu-lhe uma bolsa de couro de ema cheia de moedas.
Depois de tudo combinado, Cabinda autorizou Catarina a
marcar um encontro com Pedro Rebolo. Na hora exata, Cabinda e
Feliciano o agarraram e logo depois, eu Catarina saía do mato:
“...Toda de branco, lenço á cabeça, fita vermelha a tiracolo,
machadinha á cinta, ricos sapatinhos com fivela. Catharina
mereceu as saudações de uma verdadeira uri e, por entre
admiração e aplausos, caminhou certa para o criminoso, de
cujas penas ela ia ser o juiz. Falando em africano, entregou a
machadinha a seu marido e enquanto era preparado o
instrumento que escolhera para castigo do traidor, ela frágil,
mas sedutora, espicaçava o resto da consciência da vítima,
aplicando-lhe no rosto a ponta de seus sapatinho !... Catharina
não era mais mulher dos carinhos, não era a suposta esposa
infiel, não era a simples negra: era a própria deusa da vingança.
E a negra, nesse belo-horrível que não se descreve,
transformada em justiça, não cessava de golpear com a ponta de
seus sapatos a face de Rebollo, repetindo a cada golpe: eu sou
Ambrósio; eu sou Cândida; eu sou Wrumeia; eu sou
Hynnhanguera; eu sou o povo todo a quem mataste pela
traição! Com as mãos nos quadris, feroz na vingança,
voluteando, a negra era o símbolo das fúrias cavernais. O
castigo merecido pelo traidor fora a empalação...”
23
Enquanto matavam Pedro Rebolo diziam:
“...Cortemos-lhe os pés, para que não vão mais a Vila Rica nos denunciar; as mãos, para
que não façam mais sinais no pauzinho; a língua, para que não fale; as pálpebras, para
que tenha abertos sempre os olhos e contemple o mal que nos fez. E os membros
mencionados caiam aos rudes golpes da machadinha empunhada pelo negro...”
Durante três meses a expedição permaneceu no sertão procurando o tesouro de Ambrósio. Porém,
nada encontraram...
Em março de 1900 Carmo Gama
3
concluía esta história intitulada “Lenda Quilombola”
4
, relatando a
saga dos jesuítas em fuga pelos Sertões Mineiros quando foram expulsos por Pombal, em 1759
5
, e a posterior
criação de uma cidadela, ou quilombo, para abrigar os negros e assassinos que os auxiliaram nas lutas
travadas com as autoridades. O texto é marcadamente favorável aos jesuítas, mostrando a harmoniosa
sociedade quilombola criada sob as ordens dos religiosos e mantida sob o domínio do grande líder negro
Ambrósio
6
.
Completando o quadro, Gama afirma que os escravos dos Jesuítas eram seres de
boas índoles porque haviam sido educados, catequizados e purificados da barbárie em que
viviam. Comentando sobre o tratamento que os Jesuítas dispensavam aos seus cativos,
assim se refere: “...pretendendo fazer do escravo, senão um sócio, pelo menos um amigo e
um braço forte e pronto para as emergências da vida, os jesuítas educaram-nos,
ilustrando-os quanto possível, aproveitando as boas qualidades que ressaltavam,
transpareciam por entre os bárbaros costumes africanos...”.
Por ocasião do relato, apenas doze anos havia passado desde que a escravidão fora abolida no
Brasil. Carmo Gama era, portanto, um homem contemporâneo do sistema escravista e havia convivido parte
de sua vida com esta realidade. Muitas das histórias ouvidas a respeito de escravos ainda estavam vivas em
sua memória, assim como na das outras pessoas de seu tempo, principalmente em Minas Gerais, onde o
número elevado de quilombos desde o século XVIII era propiciador de um imaginário capaz de transformar
quilombolas em mitos, heróis ou monstros.
Esta história traz um número elevado de informações que de
perto nos interessa e suscita fatos importantes. Através deste texto,
buscou-se recuperar o imaginário do final do século XVIII sobre
quilombolas e seus quilombos, para que algumas questões
3
Segundo Tarcísio José Martins, Quilombo do Campo Grande: a história de Minas roubada do
povo. São Paulo: Gazeta Maçônica, 1995, Carmo Gama seria o pseudônimo de Augusto de Lima
Júnior, diretor da Revista do Arquivo Público Mineiro na época. O mesmo teria se utilizado de um
fato histórico, permeando-o com criações pessoais.
4
Ver anexo 1.
5
Decreto Real de 21 de julho de 1759 e Alvará Real de 3 de setembro de 1759 reforçando o
primeiro.
6
O referido autor explica que a história havia chegado até ele graças a um manuscrito feito por
Januário Pinto Moreira
6
que, por sua vez, teria ouvido esta narrativa de seu antigo professor - o
Padre Caturra - um dos jesuítas que havia fugido para o Sertão Mineiro.
24
pudessem ser pensadas e, na medida do possível, respondidas no
decorrer do trabalho. O objetivo maior era não apenas identificar
estas comunidades quilombolas, mas também perceber como os
outros moradores dos Sertões Mineiros se relacionavam entre si, e
quais teriam sido os projetos voltados para esta região. Utilizou-
se, portanto, a narrativa de Carmo Gama como um elemento
introdutório para pensar alguns traços norteadores de todo o
trabalho, tais como:
1. Que região era compreendida no século XVIII, em Minas
Gerais, como sendo Sertão? Qual a sua importância?
Quem a habitava e por quê? Quais eram os conflitos
existentes na área?
2. Quais as imagens criadas sobre seus moradores e o que
significavam em termos de relações sociais com outras
etnias?
3. De onde se originaram algumas das idéias acerca destes
habitantes presentes na narrativa?
4. Qual a importância dos habitantes dos Sertões para a
execução e/ou fracasso de planos propostos para a
região?
5. Quais foram os planos das autoridades para esta área?
Conseguiram seus intentos? Por quê?
6. Quais foram os resultados destes planos e das concepções
sobre os moradores dos Sertões mineiros?
A partir destas idéias, algumas preocupações foram básicas na análise desta história. A primeira
delas dizia respeito ao resgate do imaginário de uma sociedade através desta narrativa. Seria isto possível, ou
tudo que estava ali exposto não seriam apenas as visões de alguns, no caso o Padre Caturra, ou Januário Pinto
Moreira, ou ainda o próprio Carmo Gama teriam sobre este tema? Pode ser. Mas também nada impediria, já
que a memória é um processo seletivo
7
, que os elementos integrantes desta história estivessem presentes na
sociedade, fossem apropriados por alguém e transformados numa narrativa exatamente porque continham
fatos importantes para esta mesma sociedade ou para a região.
Segundo Halbwachs, “...a memória individual é um ponto de vista da memória coletiva, e esse
ponto de vista, varia de acordo com o lugar social que é ocupado; este lugar, por sua vez, muda em função
das relações que se tem com outros meio sociais...”
8
Tentando minimizar estas questões, optou-se por analisar o
texto como sendo uma construção individual permeada por
conceitos e valores da época em que foi narrado. Se acreditarmos
no que o próprio autor afirma, isto é, ser o relato baseado no
7
HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris: PUF. Apud. BARROS, Myrian M. Luis
de . Memória e família. In: Estudos Históricos
. V.2, n.3, 1989..
8
Idem. P. 31
25
manuscrito de Januário Pinto Moreira - que teria ouvido a
história de seu mestre, o Padre Caturra - as narrativas voltam-se
para o século XVIII. Isto, porém, não significa que Carmo Gama
não tenha também colocado seus valores e sua visão de mundo do
final do século XIX no relato que ora temos em mãos. A Lenda
Quilombola resgata vários elementos presentes na documentação
do século XVIII, e através do discurso de Gama percebe-se
algumas continuidades importantes para identificar a
compreensão que a sociedade tinha sobre os escravos e,
principalmente, sobre os quilombolas.
A segunda questão-problema que surge ao lidarmos com
este tipo de fonte é a veracidade dos fatos apresentados. Como
identificar no emaranhado de informações prestadas pelo texto
aquilo que realmente ocorreu, a opinião de Carmo Gama, o que
foi escrito por Januário P. Moreira , o contado por Caturra e o
que seria senso comum? Esta questão apresenta-se bastante
complexa, mas o real problema não está localizado na falsidade
ou na veracidade dos fatos, ou em quem contribuiu com uma
determinada informação. O que vai condicionar e fazer diferença
é o uso que se faz do texto e, em que medida, este apresenta ou
representa imagens sobre o cotidiano da população de
quilombolas. Pois, concordando com O’Gorman, ainda que uma
lenda ou história possua elementos que não sejam verdadeiros,
“...não impede que contenha uma interpretação do
acontecimento a que se refere...”
9
Assim, o importante é resgatar estas interpretações e perceber como elas podem
auxiliar o entendimento maior sobre quilombos e quilombolas, já que o imaginário de uma
sociedade é um locus privilegiado para um historiador. É nele que, de uma forma ou de
outra, grande parte do cotidiano de uma população fica registrado, ainda que com variadas
nuanças.
Em 1990, Carlos Magno Guimarães
10
, ao tentar recuperar a história e a arqueologia do Quilombo do
Ambrósio, utilizou esta narrativa para auxiliar suas pesquisas. Salientou sua importância como meio de
resgatar questões essenciais ligadas ao cotidiano dos quilombolas e nela reconheceu fatos verídicos e
fictícios. Exemplificou esta última situação utilizando a data em que, segundo a narrativa, os fatos teriam
9
O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. P. 29
10
GUIMARÃES, Carlos Magno. O Quilombo do Ambrósio: lenda, documento e arqueologia. In:
Estudos Íbero Americanos
, PUCRS, XVI, 1990
26
ocorrido, ou seja, 1759. Este seria o ano da expulsão dos jesuítas, mas segundo Guimarães, não seria o da
expedição contra o Quilombo do Ambrósio. Entretanto, em 1759 houve realmente uma gigantesca expedição
enviada aos sertões de Minas Gerais com o objetivo de destruir o que era conhecido como Quilombo do
Campo Grande, ou ainda como Quilombo do Ambrósio:
“... O mais famoso dos quilombos em Minas Gerais, o Quilombo do Ambrósio, era oficialmente designado
como Quilombo Grande. Depois da destruição do Quilombo e morte de Ambrósio, renasceu mais forte e
mais poderoso, com a mesma denominação de Quilombo Grande, embora, às vezes, aparecesse na
correspondência oficial, a designação popular de Quilombo do Ambrósio...”
11
O que se percebe nesta história é que ela foi claramente baseada em dois fatos reais, quais sejam, a
expulsão dos jesuítas e a destruição do quilombo. Pode-se dizer que os detalhes apresentados e os realmente
acontecidos variaram. Mas os fatos históricos ocorreram em sua maioria, ainda que não da maneira como são
apresentados pela narrativa.
Se houve realmente algum tipo de relação entre jesuítas expulsos e quilombolas é algo que até hoje
não foi resgatado e talvez não o seja nunca. Mas, é curioso imaginar o que teria acontecido com inúmeros
religiosos que foram constantemente proibidos de permanecerem nas minas, mesmo antes de 1759. Eram
homens com posses, donos de escravos e quase sempre controladores de grupos indígenas. Era muito comum
na região que pessoas envolvidas em algum tipo de desentendimento com as autoridades fugissem levando
tudo o que podiam para o sertão. Quem melhor que os religiosos para buscarem uma nova vida nestas áreas,
já que estariam sendo auxiliados pelos índios que “administravam”?
Entretanto, esta é apenas uma indagação que não nos cabe responder. A importância da fuga dos
jesuítas, no momento, é que ela serviu de pano de fundo para uma história que resgatou algumas tradições
quilombolas. Dentre estas tradições, pode-se citar a questão da liderança do quilombo, a alimentação do
grupo, a forma de organização interna e social, práticas cotidianas, entre outras.
Com relação ao líder Ambrósio, restam algumas dúvidas. De acordo com diferentes documentos, ele
teria sido o chefe do quilombo destruído em 1746. Para alguns estudiosos teria morrido na batalha; outros
afirmam que não só escapou, como fundou o segundo Quilombo do Ambrósio ou Quilombo do Campo
Grande. Novamente, o que importa é que Ambrósio conseguiu permanecer no imaginário da população não
só negra como também branca, e está presente como sendo o grande líder.
Esta mesma história informa que a razão para o ataque ao quilombo foi a traição de Pedro Rebolo
que, ao fugir, contou sobre a estrutura quilombola. As razões oficiais que constam na documentação mineira
do século XVIII, relatam a existência de um plano geral dos escravos e dos quilombolas para se rebelarem no
dia de Endoenças (3.4.1756) e matarem todos os brancos
12
. A rebelião não ocorreu e não se sabe nem se ela
teria sido planejada de fato. Mas, em 1757 o governador Gomes Freire Andrade confirmava que ainda estava
reunindo forças para destruir o quilombo:
“Às Câmaras da Capitania de Minas Gerais:
Ano passado me escreveram algumas câmaras desta capitania dando-me conta em Quinta feira das
Endoenças se disse vinham os negros fugidos em assalto aos brancos e que para se evitar este irreparável
dano, tinham requerido estivessem em cautela no dito dia as ordenanças; não houve com efeito nada, de que
devemos louvar a Deus: algumas das mesmas Câmaras requeriam ser preciso dar-se em o Quilombo
Grande, junto ao do Ambrósio...e que seria preciso para esta expedição duzentos e cinqüenta até trezentos
homens...”
13
.
Esta possível rebelião teria desencadeado um gigantesco ataque ao quilombo. As autoridades
levaram três anos formando uma expedição para destruí-lo, mas a cada dia as notícias alardeavam o aumento
de sua população. A rebelião seria a causa principal para o ataque, mas não a única. Os quilombolas
habitavam uma área muito rica e fértil, portanto, valorizada aos olhos coloniais.
11
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1972. p. 31
12
APM SC116 p. 98-99
13
Carta de José Antonio Freire de Andrade aos Juízes ordinários , vereadores e oficiais da Câmara
de Vila Rica. 12.2.1757. APM. SC 116, p. 98 e 99
27
A história de Gama informa que depois de muitos preparativos, a expedição partiu com mais de
3000 homens, entretanto, não há menção ao seu líder. A documentação do período afirma que foi Bartolomeu
Bueno do Prado - a partir deste momento chamado de Governador do Campo Grande - o responsável por
mais de 400 soldados que partiram rumo ao quilombo com ordens expressas de destruí-lo. A tropa partiu no
dia 18 de junho levando índios, negros, capitães do mato e um capelão cirurgião. Possuíam também botica e
tudo mais que uma grande tropa precisaria ter. Além das 400 pessoas diretamente lideradas por Bueno do
Prado, o grupo contava ainda com mais pessoas vindas de todas as partes da Capitania, pois o Governador
havia ameaçado com seis meses de prisão a quem não atendesse à convocação para ir ajudar na guerra ao
Campo Grande.
Durante todo o tempo de preparativos o governador foi arrecadando armas, munições e mantimentos
não só da população, como também junto a Câmaras de diversas vilas. Em 1756, Gomes Freire de Andrade
enviou para São João Del Rei quatro barris de pólvora, balas, munições e armas que estavam nos armazéns
reais de Vila Rica; em janeiro de 1758, a Provedoria da Real fazenda mandava mais 150 espingardas, 150
baionetas e material para os cavalos e bestas. No ano seguinte, 1759, quando o governador mudou-se com a
comitiva para São João Del Rei de modo a poder acompanhar melhor os preparativos, conseguiu reunir 200
granadas para auxiliar nos combates. Os mantimentos, como a farinha de mandioca, o feijão e os porcos
eram adquiridos por toda a capitania e enviados diretamente para as tropas
14
.
Um outro ponto que tem despertado a atenção dos historiadores mineiros e, principalmente, de
Tarcísio J. Martins
15
é a exata localização do Quilombo do Ambrósio ou do Campo Grande. Ainda que esta
discussão seja importante para resolver algumas questões relativas à história de Minas Gerais, neste
momento, não é essencial ao tipo de análise que se pretende fazer, uma vez que se busca apenas identificar
alguns resquícios do imaginário sobre os quilombos.
Assim, não nos importa saber se a autoria desta história pode ou não ser identificada, se o
manuscrito realmente existiu ou se foi fantasia de um suposto Carmo Gama. O que nos interessa é a história
relatada em suas entrelinhas e como curiosamente introduz, já que destaca alguns elementos básicos para o
entendimento da vida no Sertão mineiro, vários assuntos que serão a partir de agora tratados.
Com estas idéias em mente e pensando na força que tem o imaginário sobre uma
sociedade, suas ações e reações, urge conhecer melhor o que era considerado como Sertão
para depois, entrar realmente no Sertão Mineiro e identificar seu cotidiano.
As definições para o termo Sertão são vastas e sofreram, desde o século XVI, processos que
buscaram incorporar concepções diversas aos significados primários do termo. Entretanto, algumas
características intrínsecas a este conceito podem ser identificadas, ainda que em momentos históricos
diferentes. Uma delas remete ao aspecto geográfico, associando Sertão à região oposta ao litoral. Todavia,
esta definição não delimita onde começaria o Sertão, apenas o relaciona com o interior do continente. A
segunda, identifica-o como sendo um lugar onde a civilização ainda não teria chegado, ou o processo
civilizatório não estaria totalmente efetuado. Esta região, portanto, não seria nem uma área civilizada e nem
impossível de ser conquistada e trazida à civilização.
O sertão tem, além de uma série de determinações que serão vistas posteriormente, uma
característica: a de ser uma área de fronteira, assim definida por Amado
16
: “ ... regiões em processo de
conquista e de integração à nação, onde foi comum duas ou mais culturas se encontrarem ou
confrontarem...”
17
Assim, o Sertão é também uma fronteira interétnica, isto é, área que é transformada, por excelência,
em local de trocas ou de imposições culturais de um grupo sobre o outro, e de estratégias diversas de
resistências culturais e avanços desta mesma fronteira. Seja como for, o Sertão, enquanto um espaço de
conflitos e disputas era, consequentemente, uma área de mortes, mas era também uma região que propiciava
sobrevivências físicas e culturais quase sempre dos mais aptos tecnologicamente.
Foi justamente nesta zona de fronteira que o contato entre brancos, mestiços, escravos fugidos ou
não, e índios se deu em Minas Gerais durante o século XVIII.
O Sertão em Minas Gerais pode ser identificado, dependendo da época, em várias regiões. Aqui se
buscou analisar o Sertão Oeste, ou seja, a região que parte de São João Del Rei em direção à Goiás.
14
BARBOSA, Waldemar de A . Op. Cit. p. 46 e 47
15
MARTINS, T. J. Op. Cit..
16
AMADO, Janaina. Construindo mitos: a conquista do Oeste no Brasil e nos EUA. In: Pimentel,
Sidney V. e Amado, Janaina. Passando dos limites
. Goiânia: Ed. UFG. 1995. P. 51
17
Ibidem
28
Entretanto, os limites temporais não estão rigidamente delimitados. O século XVIII é o momento
predominante, todavia, as permanências mentais que nortearam as vidas das pessoas envolvidas, de diferentes
maneiras e nas várias atividades que este trabalho busca recuperar, não permitem a reclusão em seus limites.
Por diversas vezes, recuos ou avanços no tempo serão necessários a fim de verificar de que maneira as
imagens que se construíram sobre determinados aspectos adquiriram características próprias e, como elas
remontam à períodos anteriores, conseguindo chegar até épocas posteriores.
O Sertão Oeste de Minas Gerais era uma região habitada e controlada por diferentes grupos:
indígenas, escravos fugidos e mestiços, quase sempre associados aos vadios que eventualmente travavam
sérios conflitos pela posse da terra. Mas havia também um espaço de convivência entre eles. Não só etnias
diferentes disputavam entre si estas áreas. A disputa podia ser vista também entre os diversos grupos
indígenas, utilizando-se claramente de um sistema de alianças com outros aborígenes ou mesmo com os
colonos. A presença dos vadios, ou dos que as autoridades identificavam como tal, complicava ainda mais
este cenário. Tidos como salteadores dos caminhos ou simplesmente como não trabalhadores e, portanto, não
pagadores de impostos, estes elementos ajudavam a desestabilizar a vida nos caminhos mineiros, já bastante
complicados em função dos escravos fugidos e dos índios nada amigáveis. Assim, os conflitos internos no
Sertão entre os diversos grupos propiciaram alianças variadas e forjaram inimigos.
As relações entre estes grupos podem ser percebidas em vários sentidos: tanto a cultura branca ou
mestiça intervieram na cultura indígena e negra, como estas duas nas primeiras e estas alterações não foram
recebidas de forma passiva. Cada um dos grupos procurou adaptar às suas condições culturais o que estava
sendo introduzido. É necessário salientar que neste momento já havia quase 300 anos de contatos entre os
diferentes grupos, e que, portanto, muito da cultura de cada um já estava presente no cotidiano do outro.
A situação já conflituada nos Sertões ficou ainda mais insustentável quando um outro elemento
entrou em cena com mais freqüência e interesse pela área: a sociedade colonial, através de suas expedições
chamadas de civilizatórias. Grupos de colonos, soldados, padres, pequenos fazendeiros, comerciantes, vadios
e mineradores perceberam as potencialidades da região e também começaram a participar da disputa pelo seu
controle. A instabilidade ficou patente no desencadeamento de guerras travadas contra os indígenas e contra
os escravos fugitivos que viviam no sertão. Para os colonos, estes eram empecilhos a seus intentos de
enriquecimento; para as autoridades, eram dificultadores do projeto civilizador que estava sendo colocado em
prática em quase toda a colônia, objetivando o povoamento e desenvolvimento de determinadas regiões.
Para que este projeto pudesse ser levado a efeito, era necessário manter os índios mansos sob
controle, exterminar os incivilizáveis, forçar os vadios ao trabalho e à produção, e destruir os quilombos.
Assim, o povoamento poderia ser feito tranqüilamente, ou quase. Este projeto civilizador intensificou várias
frentes de expansão
18
, ou seja, fenômenos dinâmicos, onde a população colonial promovia um avanço sobre
áreas que até então estavam sob o controle de grupos indígenas e, no caso, também de escravos fugidos.
Ao se identificar o cenário onde todas estas relações se deram, pode-se entender um pouco mais
sobre a mentalidade que impulsionava o homem da fronteira, ou os homens que eram enviados para lá como
recompensa ou castigo. Homens que, quando poderosos, eram associados à heróis povoadores, mas quando
considerados vadios, e, portanto, indesejáveis, eram para lá enviados compulsóriamente a fim de povoar o
lugar.
A estrutura do texto tem, portanto, uma lógica que se inicia com a construção de diferentes imagens
que foram sendo formadas sobre estes elementos, sempre ligados à barbárie e à falta de civilidade. O texto
está dividido em quatro partes.
A primeira busca resgatar as imagens, as representações que foram feitas sobre o Sertão. No
primeiro capítulo, procurou-se identificar o processo de formação destas imagens sobre o Sertão em geral,
para depois compreender o que viria a ser o Sertão Mineiro, objeto de análise do segundo capítulo.
Visto isto, buscou-se, na segunda parte, analisar os moradores considerados rebeldes que viviam no
Sertão Mineiro. O primeiro item se ocupa das imagens criadas para os indígenas desde o século XVI, até
chegar às idéias que permearam o século XVIII. A fim de verificar como estas construções se comportaram
no decorrer dos tempos, prolongou-se a análise até o início do século XIX.
O mesmo tentou-se fazer no segundo item, quando o foco de atenção recai sobre os negros. A idéia
era fornecer um panorama geral acerca das imagens e das concepções sobre os africanos ainda na África, já
que, de uma forma ou de outra, estas idéias permaneceram no cotidiano das populações, sendo
posteriormente, estendidas aos cativos no Brasil, aos escravos fugidos e por fim, aos quilombolas.
É necessário ressaltar que em função das diferentes imagens, havia entre estas categorias uma certa
hierarquização do perigo que eles representavam à população branca. O quilombola, era portanto, o último
18
VELHO, Octávio. Frente de expansão. In: Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas. 1987. P. 493
29
estágio de periculosidade negra. Em função disto, este item é analisado mais profundamente na terceira parte
do texto.
O último item da segunda parte, ou seja, o terceiro, refere-se àqueles que foram considerados pelas
autoridades mineiras como vadios. Percebeu-se na documentação uma clara distinção entre vadios associados
aos homens pobres e sem trabalho, e vadios relacionados aos bandidos. Cada uma destas categorias foi
analisada separadamente e em locais distintos, exatamente para a compreensão de suas particularidades.
Desta maneira, o vadio analisado neste momento é aquele que é associado aos marginais que fazem roubos,
assaltos, mortes e muitas vezes, se unem aos quilombolas, gerando pânico na população e obrigando as
autoridades a despenderem recursos para conseguirem se livrar deles.
Na terceira parte do texto busca-se desdobrar as análises de inúmeros quilombos localizados em
Minas Gerais durante o século XVIII. Neste momento, é proposta uma tipologia para classificar os
quilombos mineiros tendo em vista não perder suas riquezas e, ao mesmo tempo, completar as lacunas na
documentação.
Pretende-se também neste momento, retomar algumas das questões propostas anteriormente e
analisar as interações travadas entre os quilombolas e os índios. Algumas vezes estas interações foram
pacíficas, entretanto, em outras, a disputa entre os dois grupos foi inevitável, pois ambos lutavam pelos
mesmos elementos: terra e liberdade.
A partir da constatação de que todos estes grupos eram bárbaros e de que deveriam ser civilizados
ou então exterminados, justificaram-se as inúmeras expedições enviadas ao Sertão a fim de travar contatos,
pacíficos ou não. Este é o tema principal da quarta parte do trabalho. A longa duração continuará a servir de
suporte, a fim de permitir a percepção no tempo da manutenção das idéias referentes à civilização de um
grupo sobre o outro. Além disso, neste momento, Ignácio Correia de Pamplona, um dos grandes líderes
destas expedições e seus projetos serão conhecidos, assim como, os seus limites e a inviabilidade do
povoamento e civilização de tais áreas, com moldes nos projetos civilizadores propostos.
30
Parte 1 O ESPAÇO REBELDE
I – O palco da barbárie: o Sertão
As diferentes imagens criadas sobre os Sertões revestiram-se não apenas de significados geográficos
mostrados sempre como áreas distantes do litoral e no interior de uma dada região, como também
carregaram consigo representações com sentidos mais sutis, que de uma forma ou de outra acabaram por
personificar estas regiões.
A principal imagem criada para o Sertão foi, via de regra, a de uma área rebelde que precisava ser
controlada e domesticada. Era assim também que os habitantes de Minas Gerais no século XVIII viam o
Sertão. Entretanto, para se construir uma idéia sobre o que seria esta área neste momento é necessário recuar
no tempo e resgatar os primórdios destas concepções.
Etimologicamente, Sertão é um local inculto, distante de povoações ou de terras cultivadas e longe
da costa. É oriundo do radical latino “desertanu” que se traduz como uma idéia geográfica e espacial de
deserto, de interior e de vazio. Em fontes de procedências variadas, o fato do Sertão ser identificado enquanto
um deserto, remete sempre à noção de que era vazio de elementos civilizados.
Os dicionários antigos ou os atuais registram uma oposição clara entre Costa e Sertão, e este aparece
sempre como área interiorana. A utilização destes dicionários permite a percepção da permanência dos
significados para o termo Sertão. Assim, o dicionário do Padre Bluteau, publicado em oito volumes entre os
anos de 1712 a 1721, descreve-o como sendo uma “...região apartada do mar e por todas as partes, metida
entre terras...”
19
.
O Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de 1899, define o Sertão como:
“...Lugar inculto, distante de povoações ou de terrenos cultivados; floresta, no interior de
um continente, ao longe da costa...”
20
Já no Dicionário Aurélio, esta área é uma “... região agreste, distante das
povoações ou das terras cultivadas...”
21
Percebe-se nestas definições que Sertão não é entendido apenas como uma região geográfica. Os
conceitos apresentados trazem em si elementos que o associam à falta de traços culturais, como por exemplo,
a não existência de plantações e afastadas de povoações.
Para os portugueses da época das Grandes Navegações, “Sertões” eram identificados em quase todas
as partes do mundo. Já na Carta de Pero Vaz de Caminha a idéia está presente. No dia 1 de maio de 1500, ele
escrevia que:
“... Esta terra senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que
contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos visto, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte
e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas
19
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Lisboa; Oficina de Pascoal da Sylva, 1713.
Esta publicação já se encontra em sua totalidade gravada em CD-Rom e o trabalho é de
responsabilidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
20
FIGUEIREDO, Cândido de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2 vol. Lisboa, Ed. Tavares
Cardoso e irmão. 1899
31
brancas; e a terra por cima toda é chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-
calma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque a estender
os olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecei muito longa...”
22
.
Referindo-se às aves, afirmava que “...os arvoredos são muitos e grandes e de infinitas maneiras,
não duvido que por este Sertão haja muitas aves...”
23
Para o autor posicionado no litoral, o restante da terra,
ou seja, aquele que eles não percorreram, era o “Sertão”, região oposta à Costa. Portanto, a primeira definição
do termo Sertão para estes homens era toda a porção de terra que estivesse longe do litoral, única área
conhecida, explorada e quase sempre controlada. O Sertão era a região do desconhecido, do descontrole e,
portanto, de perigos para os civilizados
24
.
Os Sertões foram definidos pelos primeiros cronistas da época colonial em relação ao seu
afastamento dos núcleos populacionais, sua escassa população, pela dificuldade em transitar pelos seus
caminhos, quase sempre trilhas dentro de matas, e pelo perigo constante de ataques de feras, de índios ou de
quilombolas.
Gandavo, em 1573, tratou dos perigos reinantes no Sertão com relação aos índios, vistos por ele
como perigosos, posto que não eram humanos: “... porque ninguém pode pelo Sertão dentro caminhar
seguro nem passar por terra onde não ache povoações de índios armados contra as nações humanas...”
25
O próprio Sertão era para ele um local onde os homens precisavam ter todo o cuidado para que não
perecessem. Narrando sobre uma expedição enviada para procurar ouro, assim se referiu:
“... disto não fizeram mais experiência por ser aquilo no deserto e haver muitos dias que padeciam
grande fome nem comiam outra coisa senão semente de ervas e alguma cobra que matavam... nem podiam
esperar pelas guerras dos índios que se alevantaram contra eles...”
Não era apenas Gandavo que o identificava desta maneira. Além dele, os demais
cronistas que trataram sobre os períodos iniciais da colonização como Pero Lopes de
Souza, Gabriel Soares de Souza, Frei Vicente do Salvador e outros, associaram o Sertão a
um local do vazio, de perigo e do desconhecido. Era uma área oposta à região colonial, já
colonizada e controlada. Mas o Sertão era, contraditoriamente, uma região de riquezas. Lá
estariam o ouro, a prata e os possíveis escravos indígenas. Ou seja, o Eldorado. Assim, o
21
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
1998.
22
CAMINHA, Pero Vaz . Carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel datada de Porto Seguro em
1 de maio de 1500. In: CORTESÃO, Jaime (org). A carta de Pero Vaz de Caminha
. Rio de Janeiro,
Livros de Portugal, 1943. P. 239-240
23
ibidem. P. 228-229
24
Cf. MADER, Maria Elisa Noronha de Sá. O vazio: o Sertão no imaginário da Colônia nos
séculos XVI e XVII. Dissertação apresentada ao Departamento de História da PUC-RIO. Rio de
Janeiro, PUC, 1995. Nesta obra, a autora busca recuperar as imagens dos primeiros cronistas sobre
o Sertão, desenvolvendo a idéia de Região Colonial como sendo constituída pelos núcleos
colonizados. O Sertão, ao contrário, seria a região onde a colonização portuguesa ainda não havia
conseguido chegar efetivamente.
25
GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa
Cruz. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp. vol 2 p. 48
32
interesse da Coroa e também dos colonos em localizar riquezas prevaleceria sobre o medo
e sobre as dificuldades impostas à conquista desta área.
Para Gandavo, que escrevia com o objetivo de atrair pessoas para povoar a terra
recém descoberta, o Sertão era também um local onde se achariam as riquezas prometidas.
Ainda que afirmando não serem os índios confiáveis, porque bárbaros, acreditou na
história contada por eles de que haveria uma lagoa onde se encontraria muito ouro - a
Lagoa Dourada:
“... Principalmente é publica fama entre eles que há uma
lagoa mui grande no interior da terra donde procede o Rio de
São Francisco... dentro da qual dizem haver algumas ilhas e
nelas edificadas muitas povoações, e outras ao redor dela mui
grandes onde também há muito ouro, e mais quantidade,
segundo se afirma, que em nenhuma outra parte desta
Província...”
26
Existindo ouro ou não, o mito da Lagoa Dourada permaneceu no imaginário colonial e em pleno
século XVIII havia uma região no Sertão Oeste de Minas Gerais chamada por este nome. É sintomático que
Pamplona, líder de várias expedições que foram enviadas em busca dentre outras coisas de ouro, possuísse
neste lugar uma fazenda e de lá exercia seu poder sobre a região.
Gabriel Soares de Souza (1587) foi um dos que também acreditava ser o Sertão uma área rica. Sua
crença foi tal que partiu em busca da mesma lagoa. A expedição foi um fracasso e quase todos morreram,
inclusive ele.
Frei Vicente do Salvador (1627) via a questão sob um outro prisma: além de possuir ouro e prata
esta parte de terra retinha também uma outra riqueza - os índios que poderiam ser escravizados.
“... Um soldado de crédito me disse que, indo de São
Vicente com outros, entraram muitas léguas pelo Sertão, donde
trouxeram muitos índios, e em certa paragem lhes disse um que
26
ibidem vol.I p. 145
33
dali a três jornadas estava uma mina de muito ouro limpo e
descoberto, donde se podia tirar em pedaços...”
27
Para o cronista, a “fome” por índios era tanta que os participantes das expedições quando
localizavam minas de ouro, nada faziam:
“... quando vão ao Sertão é a buscar índios forros ...E é tanta a fome que disto levam que, ainda
que de caminho achem mostras ou novas de minas, não as cavam nem ainda as vêem ou demarcam...”
Em toda a sua obra, Frei Vicente do Salvador mistura realidade com fantasia e afirma o que ele
esperava da terra, uma vez que esta já fazia parte de seu imaginário. O que descrevia não era a realidade, mas
sim o que se acreditava. Um exemplo disto é a sua descrição dos animais encontrados no Novo Mundo. Após
relatar todos os que já eram conhecidos na Europa, passou a demonstrar a existência de seres fantásticos,
povoadores do imaginário popular:
“... Há raposas e bugios ... chamados guaribas, que tem
barbas como homens, e se barbeiam uns aos outros, cortando o
cabelo com os dentes. Andam sempre em bandos pelas árvores
e, se o caçador atira a algum e não o acerta, matam-se todos de
riso; mas se o acerta e não cai, arranca a flecha do corpo e torna
a fazer tiro com ela a quem o feriu, e logo foge pela árvore
acima e, mastigando folhas, metendo-as na feridas, se cura e
estanca o sangue com elas...”
28
Percebe-se nesta passagem o imaginário de uma época ainda muito povoada de mitos e lendas. Os
mitos indígenas confundindo-se com os portugueses e vice-versa.
Entretanto, a crença em mitos, lendas ou monstros não foi privilégio apenas dos séculos iniciais de
nossa colonização. As regiões consideradas como fazendo parte dos Sertões mineiros eram tão pouco
exploradas ainda no século XVIII que as imagens associadas ao maravilhoso permaneciam com bastante
força.
Em 1769, Cardoso de Souza foi enviado numa expedição ao Rio Doce, refúgio preferido de índios
Botocudos. Lá, ele e sua comitiva encontraram uma lagoa “... tão grande que parecia o próprio mar, com
ondas e marolas que faz temer navegar nela em canoas...” Além disso, continuava ele em seu relatório, “ A
dita lagoa tem animais monstruosos que várias pessoas da minha conduta os viram; além de eu mesmo
chegar a ver o rastro de um que saiu de noite a praia que vários soldados chegaram a ver antes de
retornarem a precipitar a água.”
29
O que se percebe nas definições para o termo Sertão é que em todas, ainda que haja entre elas um
distanciamento no tempo, aparece muito claramente a oposição entre costa e interior, assim como entre
povoado e despovoado.
27
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. São Paulo: Edusp. 1982 p. 63
28
ibidem p. 70
29
Relatório de Cardoso de Souza para Conde Valadares. Local: Vila Vitória do ES. 15.9.1769 .
Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 doc 301
34
Este último par de idéias remete a um outro ponto de discussão. A noção de que existiria uma área
povoada, civilizada e controlada, contrária a uma outra, selvagem, bárbara e despovoada de cristãos – uma
preocupação também para os religiosos que, em diversos momentos, para cá vieram com o objetivo de
catequizar os habitantes do Brasil. Para eles, os Sertões eram povoados apenas por índios muito próximos às
feras. Se, os índios do litoral que já haviam recebido os ensinamentos da fé, eram muitas vezes, identificados
como “bestas”, o que não dizer dos que viviam no interior, sem contatos com a “civilização”? Estes eram
para os portugueses, religiosos ou não, os piores moradores do país, os que precisavam ser conduzidos à
religião, ou então exterminados.
Finalizando, pode-se afirmar que no âmbito da historiografia colonial brasileira, Sertões eram
regiões que ainda não haviam passado por processos civilizatórios, ou seja, ainda eram habitadas e
controladas por grupos que não estavam subjugados pelo poder oficial. No decorrer de todo o período
colonial, essas imagens praticamente não sofreram mudanças. O Sertão continuou sendo – na visão das
autoridades- o espaço habitado por índios ferozes, nada dispostos a aceitar o contato com o europeu. Assim,
tornou-se também um espaço de guerras contra estes indígenas. Manteve-se como uma região perigosa, mas
cada vez que a colonização precisava avançar rumo ao interior, novas áreas eram requisitadas e novas
necessidades se impunham aos colonos. Controlá-la passou a ser condição importante para a viabilização
econômica da colônia. Desta maneira, o Sertão no século XVIII tornava-se uma região essencial ao projeto
de civilização pensado para o Brasil.
No caso de Minas Gerais, este Sertão era ao mesmo tempo um estoque de índios aptos ao trabalho
desde que escravizados, e um esconderijo perfeito para quilombolas ou tribos consideradas inimigas,
provável fonte de ouro e espaço destinado à agricultura ou à pecuária. Todos estes motivos fizeram com que
as autoridades coloniais e mineiras tentassem de diversos modos tê-la sob controle. Assim, transformar esta
região em área colonial era um dos maiores anseios das autoridades portuguesas e coloniais. Mas para isso
era preciso conhecê-la, e foi com este intuito que as elites mineiras empreenderam várias expedições aos seus
Sertões.
35
II- O Sertão Mineiro: um palco de disputas
“o nome Sertão ou deserto não designa uma divisão
política do território; não indica seção de espécie alguma; é uma
espécie de divisão vaga e convencional determinada pela
natureza particular do território e principalmente pela escassez
da população. O Sertão compreende nas Minas Gerais, a bacia
do São Francisco e dos seus afluentes, cerca de metade da
província de Minas Gerais...”
30
.
Assim Saint-Hilaire explicava o que era o Sertão de Minas Gerais. Percebe-se que para ele, esta
região poderia ser identificada, principalmente, pela escassez de sua população.
Recuando no tempo, há uma outra definição para esta
mesma área:
“...Chamam-se Sertões nesta capitania as terras que ficam
pelo seu interior desviadas das povoações das Minas, e onde não
existe mineração. Uma grande parte porém d’ estes Sertões é
formada pelas terras chans, que ficam da outra banda da
Grande Serra, e ao poente d’ ella: o Rio de São Francisco corre
pelo seu centro e recebe as águas por um a outro lado de ambas
as suas extremidades...”
31
Nesta definição, o Sertão além de contar com uma população pequena, não possui ouro. Em comum
nas duas definições acima, a presença do rio de São Francisco. Este aparece como um elemento central e é
essencial para o entendimento do Sertão de Minas Gerais, porque ele e seus afluentes dominavam a região de
maneira a impedir ou facilitar o seu povoamento. Este rio nasce na região que era, no século XVIII, a
30
SAINT- HILAIRE. Viagens pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975 p. 20
31
COUTO, José Vieira. Descripção dos Sertões de Minas, despovoação, suas causas e meios de os
fazer florentes (1801). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
. Tomo 25, 1862. P.
430
36
Comarca do Rio das Mortes e recebe uma série de outros rios menores e ribeirões, e de acordo com Rocha,
“... o fazem o mais soberbo de todos os da capitania...”.
32
Embora Saint-Hilaire e Couto tivessem explicado o que era o Sertão em Minas Gerais, eles não o
delimitaram. Isto porque era por si só, um espaço fluido. Se ele tivesse condições de ser delimitado, deixaria
de ser Sertão porque traria em si elementos capazes de o definir, tais como, população, casas, fazendas, etc.
As divisões geográficas atuais e antigas de Minas Gerais podem ser mais bem
compreendidas a partir das figuras nº 1, nº 2 e nº 3. Nelas estão localizadas, de forma
aproximada, as diversas comarcas que compreendiam a Capitania e posteriormente, a
Província mineira.
Figura 1: Divisão do Brasil por regiões – IBGE
A capitania de Minas Gerais era, no século XVIII, dividida em 4 Comarcas, a saber: Comarca do
Rio das Velhas ou Sabará, Comarca do Rio das Mortes, Comarca do Serro Frio e Comarca de Vila Rica,
todas criadas em 1714. A situação só mudará no século seguinte, mais precisamente no ano de 1815, quando
será criada a Comarca de Paracatu na região que pertencia antes à Comarca do Rio das Velhas. Há que
ressaltar, contudo, que os limites entre as comarcas e entre as próprias capitanias não estavam ainda definidas
no século XVIII.
Figura 2: Mapa aproximado das Comarcas da Capitania de Minas Gerais no
século XVIII
32
ROCHA, José Joaquim da. Geografia histórica da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, 1995. P. 160
37
Fonte: Adaptado de José Ferreira Carrato. Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais. São
Paulo: Cia Editora nacional. 1968.
Figura 3: Mapa aproximado das Comarcas da Capitania de Minas Gerais no
século XIX
38
Fonte: Adaptado de José Ferreira Carrato. Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais. São
Paulo: Cia Editora nacional. 1968.
A área do Sertão mineiro que será prioritariamente analisada é a região Oeste de Minas Gerais,
englobando o Campo Grande, área pertencente à Comarca do Rio das Mortes e parte da Comarca de Sabará.
(figura 4). Este Sertão também era conhecido como a Região do Campo Grande.
39
Figura 4- Região aproximada considerada no século XVIII como Sertão em Minas
Gerais.
Fonte: Adaptado de José Ferreira Carrato. Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais. São
Paulo: Cia Editora nacional. 1968.
Campo Grande era um termo genérico e, assim como Sertão,
não precisava uma determinada área. De acordo com Dean
33
, a
região total do Campo Grande seria da ordem de 860 quilômetros
quadrados e durante todo o século XVIII foi, assim como outras
regiões, devastada em nome da busca pelo ouro e, posteriormente,
em função da agricultura e da pecuária. Isso explica porque no
século seguinte, quando os viajantes a percorreram, só
encontraram paisagens devastadas e sem a floresta nativa. Saint-
Hilaire, já desgastado da viagem, comentou sobre a existência do
capim gordura, visto em quase todas as partes. Segundo ele, este
capim: “... só prolifera em terras esgotadas por sucessivas
33
DEAN, Warren. A ferro e a fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São
Paulo: Cia das Letras, 1998. P. 120 e ss.
40
culturas ou queimadas acidentalmente o que infelizmente não é
raro acontecer...”
34
Além do que, a “... viagem foi tão penosa para mim quanto infrutífera para a
ciência. No meio de campos, onde não há sombra, o calor era excessivo, e ao final de uma
jornada tediosa e fatigante eu encontrava apenas uma comida grosseira, nada mais do que
água para beber, alojamentos detestáveis e hospedeiros ignorantes e estúpidos...”
35
A região do sertão Oeste mineiro estava compreendida numa estrutura que remete ao ecossistema do
Cerrado e que possuí, portanto, características específicas a este tipo de vegetação. Entretanto, determinadas
sub-áreas, devido à formação do solo e a presença maior de reservas de água, tiveram facilitada a formação
de ilhas de matas mais ou menos fechadas. Estas áreas eram assim, os locais escolhidos pelos quilombolas
para viverem, não somente em função de servirem de esconderijos, mas também porque era ali que estavam
os solos mais férteis para a agricultura e era maior a concentração de animais próprios à caça.
Esta região se caracteriza também por ter sofrido transformações bruscas em suas
paisagens. No século XVIII ainda havia matas e, portanto, condições de esconderijos e de
vida para os indígenas e os quilombolas. A situação mudou completamente no século
seguinte e os viajantes que por lá passaram, perceberam e deixaram suas impressões
registradas.
Grande parte do Sertão Oeste de Minas Gerais era
conhecido como Campo Grande e era uma área com terras
aparentemente disponíveis. Logo, era passível de ser conquistada
por qualquer agente social e, como conseqüência, convivia com
uma série de conflitos declarados ou não.
Mesmo nas esferas oficiais, estes conflitos pela posse da região não estavam resolvidos. Durante
anos discutiu-se e empreendeu-se lutas para saber quem realmente teria direitos às terras e ao mesmo tempo,
às suas riquezas. A Capitania de São Paulo alegava que a região lhe pertencia. As autoridades mineiras
diziam que a região havia sido desbravada e colonizada por mineiros sem a ajuda de São Paulo, logo, a área
estaria sob sua jurisdição. A capitania de Goiás, desmembrada de São Paulo em novembro de 1744, também
a partir de 1764 reclamava a posse da região. Para rebater todas as pretensões, Minas dava as mesmas
justificativas para o seu controle: havia sido eles que retiraram da área os elementos considerados como
perturbadores da ordem e iniciaram o povoamento. Daí, a posse.
Nos mapas mineiros a região em questão era mostrada como pertencendo à esta capitania, mais
precisamente a Comarca do Rio das Mortes
36
. Todavia, a mesma região apareceria também nos mapas
paulistas como fazendo parte de seu território.
Estas disputas interessam muito porque evidenciam um descontrole da área por parte das
autoridades, quer fossem mineiras ou não. Isto certamente favorecia muito a sobrevivência dos índios e dos
quilombolas.
34
SAINT- HILAIRE. Viagem as nascentes do Rio de São Francisco. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1975. p. 121
35
ibidem p. 123
36
Como exemplo, pode-se citar os mapas de ROCHA, Joaquim José da.Op. Cit.
41
Oficialmente o limite entre a Capitania de Minas Gerais e a de São Paulo era o ponto mais alto da
Serra da Mantiqueira, passando pelo Morro do Lopo até o Rio Grande. Entretanto, esta área foi palco de
disputas entre as duas capitanias em função do ouro, ou mesmo da possibilidade de achá-lo. Os paulistas
alegavam ter sido os desbravadores da região e, consequentemente, haviam sido eles os descobridores do
ouro e os povoadores. Logo, as terras lhes pertenceriam. O ponto culminante desta disputa entre mineiros e
paulistas foi sem dúvida, a Guerra dos Emboabas nos anos iniciais do século XVIII. Entretanto, as disputas
pelas terras seguiram durante praticamente todo o desenrolar do século em questão.
A capitania de São Paulo alegava que toda a região abaixo do Rio Grande lhe pertenceria. D. Luis de
Mascarenhas, governador de São Paulo, em função disto nomeou o Guarda Mor Bartolomeu Bueno para
governar esta região
37
. Gomes Freire Andrade, governador de Minas Gerais, conseguiu a interferência do rei
e os paulistas tiveram que recuar, passando a exigir apenas a região meridional do Rio Sapucaí. Para
comandar esta área foi nomeado pelo governador de São Paulo, Francisco Martins Lustoza. As disputas entre
mineiros e paulistas se acirraram novamente e houve uma violenta batalha às margens deste rio
38
.
A conseqüência imediata foi que Gomes Freire, usando toda a sua influência e prestígio junto ao rei,
conseguiu fazer com que em 9 de maio de 1748, a Capitania de São Paulo fosse suprimida e sua área
incorporada, como Comarca, à Capitania do Rio de Janeiro. Gomes Freire passou a governar então, a
Capitania do Rio de Janeiro, Minas Gerais e a comarca de São Paulo.
Novamente ele fixou os limites entre Minas Gerais e São Paulo (agora, Comarca) no Alto da Serra
da Mantiqueira e entre a Comarca de São Paulo e a Capitania de Goiás, no Rio Grande.
Quando Gomes Freire morreu em 1763, a Capitania do Rio de Janeiro e São Paulo passou a ser
governada pelo Vice Rei, Conde da Cunha e a Capitania de Minas Gerais, por Luis Diogo Lobo da Silva.
Em 24 de maio de 1764, o Conde da Cunha escreveu ao Governador de Minas Gerais, Luis Diogo
Lobo da Silva, dizendo-lhe que após ter tomado conhecimento dos intentos do Ouvidor da Comarca de São
Paulo que procurava “usurpar” as terras do “...Rio das Mortes... os descobertos de Campo Grande e a
Campanha do Rio Verde”, determinou ao Ouvidor que não tentasse avançar em seus intentos porque a região
referida pertencia à Capitania de Minas Gerais, já que a conquista havia sido feita às custas das Câmaras
mineiras e que a demarcação havia sido estabelecida pelo Conde de Bobadela, e dada a posse à Vila de São
João. Além do que, Minas Gerais teria expulsado os quilombolas enquanto que os habitantes de São Paulo
nada haviam feito.
39
Querendo solucionar esta situação, Luis Diogo Lobo da Silva, saiu em 1764 numa viagem de
reconhecimento de partes da Capitania de Minas Gerais que faziam limites com São Paulo. Um de seus
maiores objetivos era estabelecer de uma vez por todas, os limites entre as duas Capitanias e diminuir o
contrabando de ouro e diamantes por falta de registros e guardas.
Figura 5- Itinerário feito pela comitiva de D. Luis Diogo Lobo da Silva em 1764
37
ARQUIVO DE SÃO PAULO. Documentos Interessantes. Vol. XXII . 1896. p. 177
38
FRANCO, Francisco de Assis C. Dicionário de Bandeirantes e sertanistas do Brasil: séculos
XVI, XVII, XVIII. São Paulo: Comissão do Quarto Centenário da cidade de São Paulo. 1953.
39
ARQUIVO DE SÃO PAULO. Documentos Interessantes. Vol. XI - 1896 p. 58-62
42
Luis Diogo e sua comitiva
40
partiram de São João del Rei no dia 5 de setembro de 1764 em direção à
Oeste
41
. O itinerário foi, segundo Vasconcelos
42
de 356 léguas percorridas em torno de três meses e alguns
dias. Segundo consta, todas as despesas correram por conta do governador e a Fazenda Real não arcou com
nenhum tipo de gasto.
Além de verificar e remarcar os limites com São Paulo, Luis Diogo preocupou-se também com
outros aspectos da região. Sabendo que o local apresentava inúmeros problemas, convidou Ignácio Correia de
Pamplona para liderar uma expedição que tinha por objetivos procurar ouro, destruir quilombos e índios
bravos, e restabelecer os limites entre Goiás e Minas Gerais, área rica em ouro.
A área mais ao noroeste, próxima ao que hoje é a fronteira com Goiás, era também uma região sem
limites definidos. Os goianos alegavam ser de seu domínio. Os mineiros diziam que não. Justificavam
novamente a posse pelo desbravamento e controle.
Através de dois documentos pode-se perceber estes conflitos entre mineiros e goianos. Tratam-se da
Carta que a Câmara de Tamanduá enviou a Rainha D. Maria em julho de 1793, e do Requerimento dos
moradores de S. Domingos do Araxá pedindo sua passagem para a Capitania de Minas Gerais.
43
Na carta enviada à Rainha, os Camaristas de Tamanduá relataram que as autoridades de Goiás
haviam entrado em território mineiro, feito novas demarcações e cobravam nos registros estabelecidos por
eles. Tudo isso havia começado porque os goianos contaram com o apoio e auxílio dos habitantes do Arraial
do Rio das Velhas, criado em 1761. Estes moradores, incitados pelo Padre Felix José Soares, vulgo “o
pequenino”, contrabandista afamado e traficante de gado vacum e cavalar, passaram a prestar obediência à
Câmara de Vila Boa, em Goiás. A causa disto teria sido o fato de que a dita capitania não precisava pagar
40
Cláudio Manoel da Costa era o secretário do Governo e também fazia parte da comitiva. Foi ele
que em 26 de novembro de 1764, lavrou o termo da diligência, onde consta todo o histórico da
viagem.
41
Carta de Luis Diogo para Francisco Xavier Furtado de Mendonça enviando relação e mapas das
marchas que se seguiram na diligência da mostra geral, iniciada em agosto de 1764 e terminada em
dezembro. 6.3.1765. Arquivo Ultramarino. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro . Cx 85 doc.
34, cd 24.
42
VASCONCELOS, Diogo de. História Média de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p.
192
43
Carta da Câmara de Tamanduá a cerca dos limites de Minas Gerais com Goias.- julho de 1793.
In: RAPM. Ano II, fascículo 2, abril a junho de 1897 e o Requerimento dos moradores de S.
Domingos do Araxá pedindo sua passagem para a Capitania de Minas Gerais. In: RAPM ano IX,
Fascículos I e II, jan.-jun 1904
43
100 arrobas na derrama de 1762 e 1763. Logo, os que estivessem sob sua jurisdição estariam isentos do
imposto. O governador de Goiás assim que soube dessa pretensão dos mineiros, enviou um oficial para que
assumisse o posto de comandante do Arraial. O comandante original, Gabriel Ferraz, empossado pelo
Governador Luis Diogo em 1764, nada conseguiu fazer, principalmente porque o governador não queria
conflitos abertos. Em função disto, em 1781, Goiás aumentou seus domínios, indo até as cabeceiras do Rio
das Velhas, Campanha dos Dourados, Paranaiba até o Esmeril
44
.
Tentando provar que esta região pertencia a Minas Gerais, os camaristas iniciaram um longo
apanhado de todo o processo de limpeza, ocupação e povoamento da área. Não deixaram de citar também, as
inúmeras mortes de ilustres mineiros provocadas pelos índios “bárbaros”.
De acordo com eles, o passo inicial para o povoamento havia sido dado com a abertura da Picada de
Goiás em 1733. Três anos depois, o Guarda Mor Feliciano Cardoso Camargo juntamente com sua família e
alguns companheiros foram atacados na região do Campo Grande por índios Caiapós. Alguns foram
devorados e os restantes fugiram para o caminho das Perdizes onde sofreram um novo ataque, desta vez dos
quilombolas. O resultado foi a morte de 16 pessoas, incluindo o povoador da vila. Os que conseguiram
sobreviver a estes dois embates fugiram para Pitangui. Estes e outros ataques foram a causa, segundo os
camaristas, para que os mineiros tivessem abandonado a região. Novas tentativas de povoamento foram feitas
na região a partir de Gomes Freire, mas esta já é uma outra história. O que importa agora são as discussões,
na esfera oficial, sobre as jurisdões para a região do Campo Grande.
Aparentemente, não faria diferença para os quilombolas ou mesmo para os índios, qual capitania
controlava a área. Entretanto, se a questão for observada com mais cuidado, percebe-se que não era bem
assim. Conforme já foi visto, tratava-se de uma região de conflitos legais e ilegais. Logo, a capitania que se
mostrasse mais presente e efetivasse a sua posse, controlaria as riquezas e os homens. Para as Câmaras
mineiras este controle através da presença era muito mais fácil devido à proximidade com o Campo Grande.
Goiás, mais distante e muito mais pobre que sua rival, não conseguiria manter a vigilância constantemente.
Daí, as facilidades de esconderijo, de fugas e de sobrevivências para os indígenas e para os quilombolas.
Quando os camaristas de Tamanduá alegaram que deixando a região sob o domínio de Goiás, ela se
tornaria “...quilombo ou couto das assíduas hostilidades de violentas mortes e roubos e aos escandalosos
extravios do ouro em pó e diamantes...”
45
, não deixavam de ter razão em determinados pontos.
É evidente que eles estavam valorizando a sua posse na região. Esta valorização se fazia
principalmente no referente à cobrança dos quintos. Se perdessem a área, os cofres reais também perderiam.
Não seria um bom negócio nem para Minas Gerais, nem para a Coroa. Mas os camaristas estavam corretos
quando diziam que a região ficaria sem controle se passasse para o domínio de Goiás. Índios e quilombolas
sempre foram empecilhos ao desenvolvimento da região, mesmo com os avanços e ataques que sofriam por
parte das Câmaras mineiras desde pelo menos o final do século XVII e início do XVIII. Como ficaria a área
dependendo de expedições promovidas pela capitania de Goiás, distante e sem condições financeiras para
arcar com as despesas? Quem controlaria os “bárbaros”?
Em função de tudo o que foi exposto, a Rainha ratificou os limites anteriores para as duas capitanias.
A divisão seria o Rio de São Marcos, desde a sua foz no Paranaíba até a Barra do Ribeirão dos Arrependidos.
As imagens sobre a região
Após a delimitação da área compreendida como sendo formadora do Campo Grande, ou seja, do
Sertão, busquemos as imagens elaboradas para esta região. Ela era descrita sempre com palavras que
procuravam demonstrar sua grandiosidade: enormes extensões de terras por todos os lados, suas muitas serras
44
Requerimento dos moradores de São Domingos do Araxá ....
45
Carta da Câmara...
44
sempre elevadas, e seus incontáveis rios caudalosos que fugiam sempre do controle quando em épocas de
chuvas, tornando a região um grande pântano de difícil controle e permanência em função das doenças. O
Rio São Francisco em épocas de chuvas inundava de tal forma a região que “... chega[va] a sobrepor as
suas águas cinco e seis léguas, cobrindo todas as fazendas, que se acha[va]m em dez léguas de distância das
suas margens, e a sua furiosa corrente destrui[a] casas e conduzi[a] a maior parte dos gados...”
46
Esta
grandiosidade também pode ser vista de uma outra forma: tratava-se, segundo os depoimentos, de um local
habitado por incontáveis números de tribos errantes e em estado selvagem, incapazes de qualquer tipo de
atitude humana e civilizada.
O Sertão mineiro era também uma região que, para os colonos, seria pautada pelo descontrole e pelo
excesso. Tudo era visto como excessivamente grande e difícil. Desbravá-lo significava reunir forças, pessoal
e dinheiro, tidas como descomunais. Para conquistá-lo era necessário pacificar hordas intermináveis de
índios; alguns poucos eram identificados como mansos, mas a maioria era tida como bravia e nem um pouco
disposta a aceitar a escravização ainda que disfarçada dos brancos.
A existência de inúmeros quilombos na região demonstrava todo o tempo, os limites da escravidão e
o quanto ela poderia colocar a segurança do sistema em risco quando se perdia o controle sobre os cativos.
Os índios e os quilombolas passaram a ser associados a empecilhos à expansão e, por que não, à civilidade
apregoada pelas autoridades. Eram vistos declaradamente como inimigos públicos.
A associação dos quilombolas e dos índios, considerados como bárbaros, com a noção de inimigos
não era nova. Em 1697, o padre Pero Rodrigues, religioso da Companhia de Jesus, ao escrever uma carta para
o padre João Alvares, informava que por aqui existiriam “...três gêneros de inimigos por mar e por terra e
um só amigo, e chega a tanto a cega cobiça que só aos amigos fazemos guerra, largando o campo aos
contrários, e deixando os cada vez tomar mais força e ânimo...”
47
Para o padre, os três inimigos seriam: os franceses que ameaçavam o domínio de
Portugal em algumas áreas da colônia; os escravos fugidos “...negros da Guiné
alevantados que estão em algumas serras, donde vem a fazer saltos e dar algum trabalho e
pode vir tempo em que se atrevam a cometer e destruir as fazendas, como fazem seus
parentes na Ilha de São Thomé...” e os indígenas que não aceitavam a colonização. Estes
eram para ele, “...uns gentios por extremo bárbaros por nome Aymorés...”
48
O único
aliado na manutenção do Império seriam os índios pacificados que não recebiam
tratamento condigno, apesar de terem aceitado a verdadeira palavra de Deus e abandonado
seus bárbaros costumes.
Segundo Pero Rodrigues, a diferença era clara. Havia aliados e inimigos, e estes eram todos aqueles
que não colaboravam com o estabelecimento do Império Colonial. Para ele, ser francês invasor, negro fugido
e aquilombado ou índio hostil, não fazia a menor diferença. Eram todos perigosos porque além de colocarem
em risco uma situação por si só já difícil de controlar, eram também não católicos. O perigo era muito maior
do que parecia, pois se corria o risco de perder a colônia não só fisicamente, mas também e principalmente,
no sentido espiritual.
46
ROCHA, José Joaquim da. Op. Cit. p. 160
47
Cópia de uma carta do padre Pero Rodrigues, Provincial da Província do Brasil da Companhia de
Jesus para o padre João Alvares da mesma companhia, assistente do padre Geral, Bahia, 1.5.1697 ,
Biblioteca Nacional I. 31,28,53
48
Ibidem
45
Para piorar a situação, os colonos, além de não perceberem este fato, tratavam os que, segundo o
padre, seriam os amigos - os índios pacificados - como se inimigos fossem. Estes haviam abandonado seus
“bárbaros costumes” e aceitaram a “verdadeira palavra de Deus”, mas mesmo assim não recebiam
tratamento condigno. Sua carta não explicita que tipo de tratamento os índios que de acordo com ele eram
pacíficos, estavam recebendo. Mas, conhecendo a realidade dos contatos entre brancos e índios, podemos
inferir que o problema passava pelo uso que se fazia dos indígenas enquanto mão-de-obra e pelo controle
sobre suas terras.
Pode-se perceber ao analisar a documentação produzida pelas expedições enviadas ao Sertão de
Minas Gerais e lideradas por Bartolomeu Bueno do Prado e pelo Mestre de Campo Ignácio Correia de
Pamplona, a identificação da existência de uma concepção própria do que viria a ser Sertão.
As notícias dadas pela expedição de Ignácio Correia de Pamplona
49
mostram a noção que as pessoas
tinham de tais áreas como sendo uma região isolada e propensa a servir de esconderijo aos escravos fugitivos
: “... pois como no Sertão não mora mais ninguém, é infalível conseqüência que os fogos haviam ser dos
mesmos negros [quilombolas] ...”
50
Sertão, para os mineiros, era tudo o que foi exposto acima, mas havia mais do que
isto. A documentação deixa entrever que inúmeras nuanças permeavam os conceitos e os
sentidos do que viria a ser esta área, sendo os valores e os seus significados bastante claros,
ultrapassando sempre a noção espacial. Este conceito carregava consigo concepções de
uma época e de imagens próprias àquela sociedade.
Esta região era sempre associada à idéia de ser um território vazio onde reinava a desordem, a
barbárie e a selvageria, graças ao fato de ser um lugar habitado por índios e por quilombolas. Há nesta
colocação uma contradição latente: trata-se segundo as fontes, de um território vazio. Contudo, as mesmas
fontes indicam que a região é habitada por índios e negros fugidos. Na realidade, para as autoridades, era
uma região vazia de elementos civilizados e civilizadores e que precisava ser ordenado e controlado, o que
só se conseguiria no momento em que a ocupação efetiva da região fosse possível através de uma população
civilizada.
Há na documentação duas possibilidades para perceber como que a população entendia o Sertão
mineiro. Uma positiva e outra negativa. Se, por um lado, o Sertão era visto como local por excelência do
descobrimento de ouro e da riqueza rápida, havia, também, um grande medo envolvendo sua conquista. Era
um local associado à fome, a guerras com índios e escravos fugidos, às más condições de vida, à insegurança
e à morte.
Era um local que para ser trazido à civilidade precisava ser conquistado, ou seja, para aquelas
pessoas que, de uma forma ou de outra, necessitavam conviver com a região, ela precisava ser
“desinfestada” dos elementos que simbolizavam a sua barbárie: escravos fugidos, índios e vadios. As
expedições de conquistas visavam povoar e civilizar estas áreas trazendo-as para o sistema. Elas eram
importantes porque o aumento da arrecadação de impostos e da extração de ouro eram essenciais para
diminuir os efeitos da crise econômica que se vivia. A idéia era levar a regiões longínquas o sentido de
pertencimento a uma estrutura maior, qual seja, a do Império Colonial Português.
Se uma das imagens construídas sobre o Sertão era a de que se tratava de um lugar bom, com
capacidade para grandes fazendas e, principalmente, possuidor de ouro, havia também a associação desta
imagem à existência de perigos que impossibilitavam seu povoamento. Os índios, os quilombolas e os vadios
eram vistos por todas as partes e provocavam na população um pânico generalizado. Os ataques faziam com
que fazendas fossem abandonadas e sesmarias requeridas não fossem ocupadas.
49
Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jornada que fez o Sr.
Mestre de Campo Regente e Guarda Mor Ignácio Pamplona, desde que saiu de sua casa e fazenda
do Capote às conquistas do Sertão, até de tornar a recolher a mesma sua dita fazenda do Capote,
etc, etc,etc. In: Anais da Biblioteca Nacional
, vol 108, 1988 p. 47-113.
50
Ibidem
46
“...o Sertão tinha mostras de ser bom e capacidade de boas fazendas e inda boas
formações de ouro, porém contudo, que tinham dado graças a Deus muitas vezes por se
verem livre dos sustos e receios que tiveram de não sair cá fora nenhum com vida porque
até certa altura é muita a negraria e que tudo são quilombos, e de certa altura por diante
tudo gentios...”
51
Os participantes de uma das expedições enviadas ao Sertão e liderada por Pamplona, após tomarem
conhecimento de que a região onde estavam era controlada por índios, quiseram fugir. Ele, como um bom
líder, convenceu-os a ficar dizendo as seguintes palavras:
“ ... os vejo a todos temoratos e amedrontados de ouvirem diferir destes
exploradores no Sertão que este estava cheio por uma quantidade de gentio v. m. não hão
de permitir que estes imagine que os tememos advirtam Sr.. que as terras em que nos hoje
habitamos na consulta em que agora nos achamos não duvidam eram infestadas dos
mesmos, nem por isso agora deixaremos de servir nossa casa a esse fim e donde se acha
estes lhes há de suceder o mesmo... não lhes sirva de obstáculo as varias aldeias dos
inimigos não se deixam vencer do que ainda não virão, nem dos estrepes, nem flechas,
nem temam dos seus arcos, porque as nossas armas lhe hão de suprimir todos os seus
impulsos sem mais vigorosos ataques de sorte que os obrigara a largar o terreno e nos
ficaremos Sr. dele, esta gente foragida não comete senão do descuido e donde ...
resistência logo fogem...”
52
Para as autoridades, dentre elas o Conde de Valadares, o povoamento desta área e de outras também
localizadas em regiões identificadas como Sertões, estava atrelado à sua “limpeza”. Ignácio Correia de
Pamplona foi muito claro em uma de suas cartas ao referido Conde. Para ele, o povoamento das “...terras
era uma empresa difícil e que já havia sido tentado muitas outras vezes e sempre sem sucesso graças à
oposição do gentio bravo e a de negros que por todos os lados cercavam este continente...”
53
. Isto fazia com
que as fazendas ficassem desamparadas e que logo seus sesmeiros as abandonassem.
Para tornar aquela região habitável, ou seja, livre dos que se consideravam como malfeitores, foram
estabelecidas várias expedições com o objetivo de civilizar a área e, se possível fosse, localizar ouro. O
objetivo das expedições era, portanto, tornar aquela região habitável e produtiva. Em um dos documentos,
Pamplona chegou mesmo a dizer que não podia sossegar enquanto não visse efetuadas: “... as lisonjeiras
esperanças que tenho de ver nele um pequeno retrato da Europa naquela parte que respeite as searas de
trigo, centeio, legumes, criações e ainda frutas.”
54
51
Ibidem
52
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Conde de Valadares, Estância de São Simão
10.10.1769. 18,2,6 Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos)
53
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valladares . s/data. Arquivo Conde de
Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) - 18,2,6 doc 7
54
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valladares Estância de São Simão, em
30.3.70..Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) – 18,2,6 doc
57.
47
A ocupação do Sertão ligava-se diretamente a um processo de conquista da região.
Era necessário tomar estas terras dos índios que ali habitavam e para isso havia duas
possibilidades: aldeá-los ou exterminá-los caso colocassem empecilhos a esta tarefa. Além
disso, em muitos casos, era necessário destruir os quilombolas através das expedições e
trazer para o controle colonial a população de vadios que vivia clandestinamente ou nos
Presídios localizados nos Sertões.
Os vadios que viviam nos Sertões, ou os que para lá fugiam, eram para as autoridades mineiras do
século XVIII, um outro grave problema porque não estavam inseridos no mundo do trabalho, não pagavam
impostos e viviam de uma maneira perigosa:
“O contínuo desassossego em que tem andado o Arraial do Arasuahi e seus
subúrbios com insultos de mortes e outros distúrbios que nele a cada passo sucedem
suscitado por uns poucos malfeitores atrevidos e vagamundos que por aquele continente
andam sem temor a Deus em respeito a Justiça...
No Sertão são tão freqüentes as mortes e insultos que parece se esquecem os homens da sua
racional natureza para se revestirem na de feras que mais indômitas que estas executam toda a qualidade de
delitos sem o menor receio que os obrigue a depor sua crueldade; por não haver emenda a tanto mal e já
que Deus foi servido trazer a V. Ex.a. a estas alturas para terror destes malévolos esperam estes povos
todos da sua inata piedade ponha termo a tanto dano....”
55
Em agosto de 1769, uma expedição entrou pelos Sertões com o objetivo de prender Antônio
Mendes, um assassino que estava escondido
“... em uma ilha cercada de dois rios caudalosos onde se não entra senão por canoas. E na casa
onde assistia tinha feito uma trincheira de pau a pique e com fossos e estrepes para não poder entrar pessoa
alguma...”
De acordo com o relato, os soldados “estavam tremendo pelo horror que metia aquele malfeitor
(...)” . Mas, mesmo assim, conseguiram dar-lhe três tiros no momento em que tentava fugir através do rio.
Desta maneira, o facínora foi preso e o relato termina mostrando que:
... Em Minas nunca se prendeu neste sertão criminoso algum, nem nele entra
Justiça pois é o couto de todos os réus tanto de crimes como de dívidas...”
56
55
Carta de Manoel Jacome Sueiro para Conde de Valadares. Local: Tejuco. 7.02.1769. Arquivo
Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos). Códice: Documentos. 233
18,3,5
56
Carta do Coronel Souza para o Conde de Valadares. 28.08.1769. Arquivo Conde de Valadares
(Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) Códice: Documentos. 106. 18,2,3
48
Havia pré-definido na população ou mesmo nas autoridades que lideravam as
expedições e em seus seguidores, diversas concepções sobre os grupos que deveriam ser
conquistados. Entretanto, a questão não é somente perceber que existiam imagens próprias
sobre estes grupos, mas sim, identificar de onde elas surgiram e porque conseguiram se
manter, sem grandes alterações, durante tanto tempo.
As imagens criadas não são, via de regra, muito lisonjeiras. Normalmente o índio
era mostrado como um entrave ao avanço da sociedade e da civilidade. Os mansos eram
considerados aliados, mas os que não aceitavam o domínio sobre suas vidas ou territórios
eram intitulados inimigos, e como tal eram tratados. A Guerra Justa era o mecanismo de
castigo e de exemplo aos demais, pois além de provocar muitas mortes, fazia também com
que um bom contingente de índios fosse distribuído entre a população como cativos.
A respeito dos quilombolas, segundo grupo de habitantes rebeldes dos Sertões, o objetivo principal
é conhecer as origens das imagens criadas e compreender porque eles sempre foram associados às feras.
Ainda que muitas vezes, através de quilombos extremamente organizados, eles tenham mostrado para a
população seu alto nível de desenvolvimento, a imagem de fera, de bárbaro e de inimigo público,
permaneceu e construiu um quadro mental muito interessante. Acreditando que o início destas construções
estaria fora da colônia, buscou-se a África e as primeiras imagens feitas sobre seus habitantes. A partir daí,
pode-se perceber uma continuidade nestas representações sobre o negro e, depois, sobre o escravo. Contudo,
adaptando-se às circunstâncias, as imagens vão sofrendo alterações. E, em conseqüência, o negro que foge é
visto de uma forma diferente daquele que vive no conjunto da escravaria. Ainda que escravo e inferior, o
fugitivo é um indivíduo com características particulares. O caso se torna ainda mais grave, e as imagens o
demonstram, quando se trata de negros aquilombados. Estes são feras, completamente irracionais.
Os vadios considerados criminosos também fazem parte das imagens que se
criaram a respeito dos moradores dos Sertões. São seres percebidos pelas autoridades de
maneira ambígua. De um lado, são enviados aos Presídios, como castigo a algum delito, a
fim de impedir o avanço de índios bravos ou de quilombolas estando, portanto, a serviço
da Coroa. Entretanto, são identificados como perigosos ao sistema porque negam ser
controlados e, em muitos casos, tornam-se uma ameaça real à segurança da população.
Assim, pode-se concluir que o Sertão Oeste em Minas Gerais, ao mesmo tempo em que era uma
região atrativa aos interesses coloniais, apresentava problemas de difícil solução para a época, ou seja, a
presença e, consequentemente, a necessidade de controlar grupos nada propensos a colaborar com a
metrópole, ou mesmo com as elites coloniais. O controle sobre estes grupos passava necessariamente pelo
estabelecimento de um corpo de idéias negativas a respeito dos mesmos, justificando assim, seu
aniquilamento.
49
Parte 2 – OS REBELDES DOS SERTÕES
I - As imagens criadas sobre os índios
Os europeus e a crença na dualidade indígena: os Tupi e os Tapuia
Para os europeus, a suposta dualidade identificada entre Costa e Sertão na área colonial podia ser
vista também entre os que habitavam estes dois mundos: havia os índios que viviam no litoral e os que
habitavam o interior, os Tupi e os Tapuia, respectivamente.
Mas, acima de tudo, o índio, quer fosse do litoral ou do Sertão, era identificado como um ser exótico
que alguns associavam à pureza dos costumes, à falta de pecados e à possibilidade de catequização; e outros,
à absoluta degenerescência, ao pecado e aos pactos com o demônio. Na realidade era apenas mais uma forma
dual para se entender o que era o índio.
Sobre o primeiro grupo de idéias acerca destes habitantes, esta imagem é sintomática:
Figura 6 - Adoração dos Reis Magos
50
Fonte: Adoração dos magos. Anônimo. (Escola de Viseu). C. 1505
No quadro acima de autoria desconhecida, há uma cena corriqueira na construção deste tipo de
tema: os Reis Magos são substituídos por representantes de diferentes povos que, juntos, formariam a
Cristandade. Todos estariam assim, rendendo homenagens a Cristo. O índio, neste caso, estaria representando
o processo de catequização realizado por religiosos, demonstrando a viabilidade do projeto cristão nas
Américas.
Entretanto, representações do indígena de maneira positiva são raras; na maior parte
das vezes é associada a visões negativas.
Estas cenas de conflito, exacerbadas também nas pinturas que os europeus faziam destes índios,
podem ser claramente percebidas nos quadros feitos por aqueles que por aqui estiveram, ou mesmo pelos que
ouviram falar sobre o Brasil. Nelas, percebe-se quase sempre, visões estereotipadas e, em alguns casos,
fantásticas. Há, via de regra, um predomínio da natureza sobre os homens e associações destes com o mundo
animal. Ocorrem também idéias que apresentam a população americana como que vivendo sob o domínio de
forças demoníacas, conforme esta imagem:
51
Figura 7-Aygnan Cacodaemon Barbaros Vexat.
Ilustração do texto de Jean de Lery. Le voyage au Brésil. Ed. Por Theodore de Bry em America Testia Pars.
3
º
vol. De Grands Voyages. 1592.
Esta iconografia é muito rica em termos de concepções acerca deste Novo Mundo e de seus
habitantes. O que primeiro se percebe é a visão de que os índios são seres à mercê dos demônios e que
mesmo os religiosos podem ser abarcados pelos representantes do mal. O principal objetivo é demonstrar o
papel da Igreja e da evangelização sobre as almas perdidas dos índios.
Há também presente nesta obra, uma mistura de elementos reais e maravilhosos de maneira a
construir uma idéia de caos. Se as ocas indígenas são reais, o mesmo não se pode dizer com relação às suas
posições tão próximas da praia e o restante do quadro que apresenta seres voadores, corpos humanos com
cabeças de animais; enfim, uma cena que só seria possível na imaginação de um artista europeu impregnado
de valores ainda medievais.
As imagens que misturavam o real e o fantástico permaneceram no tempo e no século seguinte,
ainda as encontramos. Um quadro de autoria desconhecida, mas inspirado claramente em Charles Le Brun,
mostra como seria a América:
Figura 8- Americae
52
Americae. C.1650. Autoria desconhecida. In: Catálogo da exposição “O Brasil redescoberto”. Rio de
Janeiro. Paço Imperial, 1999.
Esta tela é surpreendente não somente pela mistura de idéias como também pelas posições que as
diferentes cenas ocupam no quadro. O cenário é uma praia, portanto, provavelmente trata-se de índios Tupi.
A maioria está vestida com roupas e adereços europeus: colares e brincos de pérolas, sapatos e até um casaco
de pele. Entretanto, há também, alguns índios nus ou com adereços claramente indígenas. O curioso é que os
que se apresentam assim, não fazem parte da cena principal do quadro, mas em segundo plano e,
principalmente, desenvolvendo alguma atividade. Um está caçando, outro carrega em seus ombros um
prisioneiro, um outro grupo prepara os corpos que estão sendo assados no moquém e, por último, há um
grupo que executa algum tipo de tarefa, talvez ajudando a descarregar as embarcações. O único europeu que
está em destaque, parece estar conversando com um índio que não possui nenhum atributo para que
possamos identificá-lo como o líder.
Os animais representados são também muito curiosos. Os macacos são extremamente humanizados
e, pode-se perceber que a macaca que está no lado direito do quadro segura seu filhote com o mesmo cuidado
e serenidade que a índia colocada um pouco acima o faz com o seu filho. Seria uma tentativa de aproximação
feita pelo autor do quadro entre os macacos e os índios, ou mais precisamente, entre a animalidade que
reinava nos dois? Infelizmente, as demais cenas não nos permitem perceber esta hipótese com maior clareza.
Além dos macacos, há também na cena, um jacaré e um animal que parece ser uma ema ou um avestruz.
Todos colocados de maneira a fazer parte do cenário e convivendo harmoniosamente.
O índio que carrega um prisioneiro nos faz pensar nas relações que estes indígenas tinham com os
outros que habitavam as proximidades. Trata-se, provavelmente, de um prisioneiro de guerra que será, assim,
como os demais, assados no moquém.
Nestas primeiras imagens não há qualquer indicação de diferenças entre os indígenas da Colônia.
Entretanto, rapidamente os europeus que para cá vieram e começaram a lidar com as diversas tribos,
perceberam existir algumas disparidades básicas entre os índios e que manter ou acentuar estas
desigualdades, significaria aumentar o controle sobre a nova terra e sobre sua população.
Os habitantes da terra de Santa Cruz em seus primeiros contatos com europeus, já narravam a
existência de seres identificados como não-homens, vivendo numa área distante, no interior. Eram os índios
que os europeus acabaram mais tarde identificando aos Tapuia. Para os Tupi que viviam no litoral, os
habitantes do interior eram diferentes porque não eram associados com o mundo conhecido e possuíam uma
outra cultura. Cada grupo via o outro como formado por “não-homens” porque não possuíam os valores
esperados e nem falavam a mesma língua. Cada um via o outro como desprovido de humanidade.
Levi Strauss, tentando explicar este conceito indígena de humanidade, assim se expressou:
53
“... A humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes mesmo da aldeia; a tal
ponto que um grande número de populações ditas primitivas se designam por um nome que significa os
“homens” (ou por vezes, digamos com mais discrição – os “bons”, os “excelentes”, os “perfeitos”),
implicando, assim que as outras tribos, grupos ou aldeias não participem das virtudes – ou mesmo da
natureza- humana, mas são, quando muito, compostos por “maus”, “perversos”, “macacos de terra” ou
“ovos de piolhos...”
57
É curioso perceber que, de uma certa forma, os portugueses ao interagirem com os Tupi através de
casamentos, alianças ou mesmo do uso da língua Tupi-Guarani, apropriaram-se de seus valores, bem como
das imagens que faziam sobre os Tapuia e o Sertão. Assim, além do português identificar o Sertão como o
espaço longe da costa, passou a identificá-lo também, numa aparente contradição, como área despovoada e
ao mesmo tempo habitada pelos Tapuia, estes mais bárbaros do que os Tupi. Na realidade, o Sertão para o
português seria sempre identificado como espaço vazio de elementos civilizados, logo, vazio de populações
que merecessem algum tipo de tratamento humano.
Por tudo isto, pode-se perceber que os Tupi não só auxiliaram como também legitimaram as guerras
coloniais contra os Tapuia e também o seu extermínio e escravização, pois estes, além de serem diferentes,
eram inimigos. Isto explica o porquê da utilização, por parte de portugueses e depois por colonos, de
algumas tribos que lutavam ao lado destes contra outros grupos. Era apenas uma retomada, agora sob novo
prisma, de uma guerra secular entre os diferentes grupos indígenas
Para o Tupi, tratava-se de manter acesa a tradição da guerra contra aquele que vivia em uma região
afastada e de maneira diferente, podendo então ser guerreado, morto, devorado ou escravizado. Para o
português, interessava não só manter este conflito, como também obter o controle sobre suas terras e sobre
uma possível mão de obra. Assim, os interesses de ambos os lados confluíam. Há que se ressaltar, todavia,
que as disputas não ocorriam apenas entre Tupi e Tapuia. Mesmo no interior destes grupos havia guerras e
inimizades seculares e os colonos souberam utilizar muito bem estas divergências.
No final do século XVIII, o Padre Manoel Vieira Nunes, em uma carta enviada ao Conde de
Valadares
58
, mostra isto de maneira muito clara. No aldeamento de Laranjeiras estavam reunidos dois
grandes grupos de nações indígenas: o primeiro, formava-se com as nações “...Manhoxos, conunhoxós e
machacalis” ; o segundo grupo com os “...maycunis, panhamos a cataxos”. O Padre declara que havia boa
relação entre eles e os brancos, mas que “... uns e outros não se devam julgar amigos contudo não se devem
denominar inimigos por que não nos fazem hostilidades...”. Continua a carta afirmando que o primeiro grupo
utiliza-se da amizade dos colonos para atacar os inimigos de ambos e que sempre é necessário desconfiar dos
índios porque além deles serem inconstantes por natureza, têm uma índole desconfiada. Além de tudo, o
Padre desconfiava que:
“... E mais sempre se deve presumir que a necessidade os obriga a conservar a nossa amizade com que
podem melhor castigar os seus inimigos assim capochoses como aimorés, os primeiros rebeldes infiéis
dissimulados na paz que tem assassinado algumas pessoas nossas. E os segundos rebeldes pertinazes e
vorazes da carne humana que nunca deixam e nem se param de nos danificar e aos nossos confederados
gravissimamente...”
59
Desta maneira é fácil entender porque determinados grupos indígenas chegaram até o século XIX
lutando contra outros, aprisionando e auxiliando os portugueses no controle de áreas pertencentes a outros
grupos e na sua escravização.
57
LEVI STRAUSS. Raça e História. Lisboa, Ed. Presença. 1980. P. 21-22
58
Carta do Padre Manoel Vieira Nunes ao Conde de Valadares. Sem data. Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Códice 18,2,6 doc 321
59
ibidem
54
Esta elaboração mental mostrando os habitantes do Sertão como sendo inferiores aos do litoral,
permaneceu na construção das primeiras obras da historiografia brasileira e, a partir dela, criou-se a
dicotomia entre Tupi e Tapuia.
60
Cardim, em 1621, após relatar as características dos Tupi apresentados como amigos dos
portugueses, passou a demonstrar como que os Tapuia eram diferentes, inferiores e selvagens. Viviam nos
matos, não utilizavam o fogo para cozer os alimentos, matavam crianças, devoravam inimigos, possuíam
couros ao invés de peles, eram covardes, despovoavam regiões, não falavam uma língua que pudesse ser
entendida e eram extremamente perigosos.
“... Há outras nações contrarias e inimigas destas,[dos Tupi] de
diferentes línguas, que em nome geral se chamam Tapuya, e
também entre si são contrarias ... e para o Sertão quanto
querem, são senhores dos matos selvagens, muito encorpados, e
pela continuação e costume de andarem pelos matos bravos tem
os couros muito rijos, e para este efeito açoitam os meninos em
pequenos com uns cardos para se acostumarem a andar pelos
matos bravos; não têm roças, vivem de rapina e pela ponta da
frecha, comem a mandioca crua sem lhes fazer mal, e correm
muito e aos brancos não dão senão de salto, usam de uns arcos
muito grandes, trazem uns paus feitiços muito grossos, para que
em chegando logo quebrem as cabeças. Quando vêm á peleja
estão escondidos debaixo de folhas, e ali fazem a sua e são mui
temidos, e não ha poder no mundo que os possa vencer; são
muito covardes em campo, e não ousam sair, nem passam água,
nem usam de embarcações, nem são dados a pescar; toda a sua
vivenda é do mato; são cruéis como leões; quando tomam alguns
contrários cortam-lhe a carne com uma cana de que fazem as
frechas, e os esfolam, que lhes não deixam mais que os ossos e
tripas: se tomam alguma criança e os perseguem, para que lha
60
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, Brasília: INL,
1878. p. 123 e 124
55
não tomem viva lhe dão com a cabeça em um pau,
desentranham as mulheres prenhas para lhes comerem os filhos
assados...não se lhes pode entender a língua..”
61
Além de demonstrar o quanto eram diferentes os Tupi dos Tapuia, Cardim também faz um tipo de
análise que será constante em diversos cronistas. Ele associa o índio não domesticado a animais, aqui no
caso, ao leão; são ferozes e antropófagos, comendo inclusive, para grande pavor dos cristãos, mulheres e
crianças, e, principalmente, não se consegue compreender a língua, o que confirma o grau de barbárie que
este povo estaria na mentalidade destes homens nos primeiros contatos. Esta barbárie pode ser percebida
também pelo fato dos Tapuia não dominarem a agricultura e a pesca e nem utilizarem o fogo para cozer seus
alimentos.
Algumas das imagens mais famosas sobre indígenas no Brasil são deste momento. São quadros a
óleo do pintor holandês Albert Ekhout no século XVII, onde ele demonstra como eram alguns habitantes do
Brasil, e dentre eles os índios Tupi e Tapuia.
As duas mulheres indígenas foram reproduzidas no ano de 1641, e os dois homens, em 1643. Nestes
quadros identifica-se não só a imagem que o pintor tinha sobre eles, como também a imagem que a época
fazia sobre os Tupi e os Tapuia. O par Tupi é apresentado como civilizado. Carregam utensílios de cerâmica
e de cestaria, o que é um indicativo do “grau de civilidade” e, principalmente, portam um dos elementos que
mais identificaria o quanto civilizada estaria uma sociedade: as roupas. Eles estão vestidos, logo, são
civilizados. Já o par Tapuia é apresentado como o oposto daqueles. Estão nus, apresentam imagens mais
agressivas e trazem consigo um pé e uma mão decepados.
O curioso é que se sabia que ambos os grupos faziam rituais antropofágicos, ainda que por razões
diversas, mas nas imagens, esta “falta de civilidade” é associada apenas aos Tapuia. Entretanto, o mais
contundente destas imagens é o cenário dos quadros. Tanto no que apresenta o índio Tapuia como no que traz
a índia também Tapuia, há a presença de animais peçonhentos e de uma natureza bravia, ao contrário do que
ocorre nos dois quadros dos Tupi. O cenário apresentado neste caso, é o de uma natureza domesticada,
trabalhada pelo homem. Há, inclusive, ao fundo do quadro da índia Tupi, uma construção que pode ser
remetida a um aldeamento ou fazenda.
61
Ibidem
56
Figura 9-Casal Tapuia
Figura 10-Casal Tupi
Fonte: Eckout, A. óleo sobre madeira. Museu Nacional da Dinamarca.
In: Herkenhoff, Paulo. O Brasil e os holandeses...
57
Rocha Pita, escrevendo em 1730, ainda que não diferencie os Tupi dos Tapuia, também percebia
variações entre os diversos grupos de índios, divididos em “...inumeráveis nações, algumas menos feras,
mas todas bárbaras...”
62
. Todos os grupos viviam sem religião, nus, e alguns, eram antropófagos.
Esta mesma idéia a respeito das diferenças entre os índios permanece até o século XIX, e pode ser
identificada em Varnhargen
63
:
“ ...Além das alcunhas, um nome geral havia, com que cada
grêmio designava todos os outros que lhe eram absolutamente
estranhos – nome que se pode comparar ao de que na
antigüidade usaram os Gregos e depois os Romanos...para
designar todas as nações estrangeiras, o de Bárbaro, ou na
língua geral Tapuia...”
64
Um outro grupo de imagens sobre estes indígenas também reflete representações
estereotipadas, ainda que seus autores afirmem nos textos explicativos, como fez
Rugendas, que existiam muitas tribos no Brasil “mas é difícil dizer quais delas são Tupi e
quais Tapuia. Em geral este último vocábulo compreende todos os índios selvagens
independentes, por oposição aos que estão domesticados e civilizados...”
65
. Essas idéias de
que existiam índios dóceis e índios bravios e que estas características poderiam ser
associadas aos Tupi ou aos Tapuia podem ser percebidas através de uma série de imagens
feitas por Rugendas, Spix e Martius, Wied-Neuwied e Debret. Nelas, percebe-se
claramente identificadas estas concepções maniqueístas e dicotômicas.
62
PITA, Rocha. História da América Portuguesa. Lisboa; Ed. Francisco Artur da Silva, 1980. p. 25
63
VARNHAGEN, Francisco A de. História Geral do Brasil. São Paulo: Companhia Melhoramentos
de São Paulo, s.d.
64
Ibidem. p. 22
65
RUGENDAS, João Maurício. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Livraria Martins
Ed. 1954. p. 69
58
Figura 11- Aldeia de Coroados
Johann Baptiste von Spix e Carl F. Philip von Martius.
Figura 12- Botocudos, Puris, Patachos e Machacalis
Jean Baptiste Debret. In: Voyage pittoresque et historique au Brésil., vol. 1, p. 10
59
Através destes dois exemplos pode-se identificar que em ambos os índios estão nus
e em contato com a natureza. Entretanto, há enormes diferenças entre os dois grupos. Os
Coroados, índios litorâneos e que tiveram contatos com os portugueses, foram retratados
em uma área clara e são mostrados com indícios culturais, como o abrigo de palha, a
domesticação de animais, a preparação de algum alimento ou bebida, e a caça. O quadro
que representa os índios tido como bravos, ou seja, aqueles que se recusavam a ter
qualquer contato com os colonos, mostra uma cena completamente diferente.
O cenário procura passar uma idéia de lugar inóspito, perigoso e escuro. Os índios
pintados demonstram toda a sua fereza e não há qualquer indício que se refira a algum
aspecto cultural, pelo menos aos que os olhos civilizados reputavam como tal. A própria
maneira deles se alimentarem foi representada de modo a dar uma sensação de que se trata,
na realidade, de índios bárbaros. Assim, a aproximação destes com as feras é inevitável.
Estas diferenças entre os Tupi e os Tapuia foram fortes e duradouras, podendo ser observadas nas
pinturas que foram feitas sobre ambos em vários momentos. Via de regra, nelas o Tupi é sempre associado à
civilização e ao projeto de colonização. Já o Tapuia, é sempre identificado em um habitat natural, selvagem e
sem elementos civilizadores.
Resumindo tudo o que já foi dito, pode-se afirmar que em seus primeiros contatos com a terra
Brasílica, os europeus identificaram dois grandes grupos indígenas, os Tupi e os Tapuia e duas grandes áreas.
Estas idéias permaneceram no tempo e chegaram aos séculos seguintes com bastante força explicativa. A
primeira área seria o litoral, rapidamente conhecido e controlado. Seus habitantes foram vistos quase sempre
como pacíficos e aliados e os que assim não agiam, rapidamente foram expulsos ou aniquilados. Desta
maneira, a verdadeira palavra de Deus pôde ser levada a estes homens. A segunda área seria o seu oposto: o
Sertão, local onde primava a barbárie, a selvageria e era para lá que os índios que não aceitavam a religião
cristã fugiam. Assim, o Sertão passou a ser também refúgio para os incivilizáveis.
60
O século XVIII e a racionalidade sobre o índio
As idéias sobre o Sertão e sua natureza, e sobre os índios, podem ser melhor entendidas com base no
pensamento filosófico e científico europeu a partir do final do século XVII. As origens da idéia da
superioridade européia sobre os demais povos podem ser encontradas nos pensadores do século XVII que, ao
desenvolverem a noção de que o povo europeu havia atingido um grau elevado de civilização através do uso
da Razão, justificaram a fé inabalável no Progresso, obtido graças aos esforços de uma sociedade que vivia
sob o domínio das Leis. Se a sociedade européia era vista como a civilizada, as demais eram o seu oposto.
Tratavam-se de povos sem cultura, ou no mínimo, com uma cultura atrasada. Desta maneira, inaugurava-se o
racismo natural baseado na razão e nas ciências, e balizado pelo europocentrismo.
66
Estas idéias forneceriam as bases para que no século seguinte, os iluministas pudessem filosofar a
respeito das diferenças entre a humanidade. De acordo com Benzaquen
67
, a partir do século XVIII, e
principalmente do Iluminismo e da Revolução Francesa, foram elaboradas duas concepções sobre os gêneros
humanos. A primeira delas, o poligenismo, teve como seu mais ilustre defensor, Voltaire, para quem a
superioridade branca justificaria a escravização dos negros. Para os adeptos desta corrente, a raça humana
teria sido criada a partir de vários centros, “...muitos, inclusive, antecedendo o aparecimento de Adão...”
68
.
Acreditavam que as diferenças entre as diversas raças humanas estariam explicadas no fato de que
descendiam de raças “completamente distintas”
69
.
A segunda concepção, contrária à primeira, defendia a noção de que existia apenas uma única
origem para a humanidade. Buffon, um dos maiores partidários desta linha de pensamento, explicava que as
diferenças entre as raças eram causadas pelos variados ritmos de evolução que cada povo passava. Todos, de
uma forma ou de outra, deveriam atingir o mesmo estágio cultural que a Europa já havia conquistado. Era
uma questão de tempo e de competência.
Em sua obra Histoire naturelle, générale et particuliére, publicada em 1749, analisou, segundo as
concepções da época, a história natural de todos os seres vivos habitantes do planeta. Utilizava para suas
análises os relatos de viajantes que percorreram diferentes partes do mundo, diários de viagens, observações
de naturalistas, e as cartas trocadas entre os ilustrados e a Academia de Ciência.
Com relação à América, Buffon defendia a tese de que haveria uma debilidade e uma imaturidade
geral nesta região: tanto os animais quanto os homens estariam presos a este problema. Os animais, com
exceção dos insetos e dos répteis, seriam pequenos e mais frágeis se comparados aos da Europa e os homens,
presentes também em número reduzido, viviam esparsos e errantes, não tendo conseguido em momento
algum dominar o território e nem submeter os animais ou a natureza a seu favor. Era um ser que vivia de
maneira débil e sem a preocupação de progredir. A causa desta pequenez dos homens e dos animais poderia
ser buscada, segundo Buffon, nas condições apresentadas pela natureza: a América era extremamente úmida.
Em função do calor constante, chovia muito , fazendo com que os rios, lagos, lagoas, ribeirões e riachos
ficassem cheios durante muito tempo ao ano. O sol desta forma, não conseguia aquecer totalmente a
superfície da terra, daí, a geração de animais pequenos e de um homem de natureza fria, sem qualquer
aptidão para o desenvolvimento e para o progresso. A natureza ainda estaria em um estado de
amadurecimento
70
.
Linneu, outro adepto desta corrente e um de seus maiores expoentes, ficou célebre por ter
integrado o homem em um sistema classificatório, inserindo-o no reino animal e denominando-o de homo
sapiens. Como um ser de sua época, acreditava que cada categoria de “homem”, possuiria características
66
POLIAKOV, Leon. O mito ariano. São Paulo: Ed. Perspectiva, EDUSP, .. p. 120
67
BENZAQUEN, Ricardo de Araújo. Guerra e Paz. Casa Grande e Senzala e a obra de Gilberto
Freira nos anos 30. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994
68
Ibidem p. 35
69
Ibidem
70
GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica. São Paulo: Cia das Letras. 1996
capítulo 1 Buffon e a inferioridade das espécies animais na América.
61
físicas e culturais que a diferenciaria das demais. Entretanto, estas características eram dotadas de visões
estereotipadas e totalmente eurocêntrica.
Pratt cita a classificação feita por Linneu em 1758, onde ele teria distinguido cinco variedades
humanas:
1. “Homem selvagem. Quadrúpede, mudo, peludo.
2. Americano. Cor de cobre, colérico, ereto, cabelo negro, liso, espesso,; narinas largas;
semblante rude; barba rala; obstinado, alegre, livre. Pinta-se com finas linhas vermelhas.
Guia-se por costumes.
3. Europeu. Claro, sangüíneo, musculoso, cabelo louro, castanho, ondulado; olhos azuis;
delicado, perspicaz, inventivo. Coberto de vestes justas. Governado por leis.
4. Asiático. Escuro, melancólico, rígido; cabelos negros; olhos escuros; severo, orgulhoso,
cobiçoso. Coberto por vestimentas soltas. Governado por opiniões.
5. Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos, pele acetinada; nariz
achatado, lábios túmidos; engenhoso, indolente, negligente. Unta-se com gordura. Governado
pelo capricho.”
71
A primeira constatação que se pode fazer desta classificação é a de que o Homo Sapiens era, para
Linneu, não só passível de ser separado em categorias, como também se poderia identificar em cada um dos
grupos, características negativas e positivas no que tange aos aspectos físicos, culturais e morais. As
características apresentadas por Linneu deixam transparecer que mesmo para um homem das Luzes, o
pensamento sobre as diferenças entre as sociedades não era algo aceito como natural.
Percebe-se na classificação acima apresentada que, quando o objetivo de Linneu era fornecer dados
sobre a conduta e os valores de cada um dos grupos, com exceção do homem europeu, todos os outros eram
rotulados com palavras pejorativas: são coléricos, rudes, melancólicos, orgulhosos, cobiçosos, relaxados,
indolentes, preguiçosos. Os europeus, ao contrário, são delicados, perspicazes e inventivos. Com relação à
forma de governo, ou melhor dizendo, de controle e ordenamento sociais, os europeus são os únicos
possuidores de leis. Todos os demais são regidos por entidades abstratas: costumes, opiniões, caprichos.
Trata-se, sem dúvida, de uma classificação comparativa e que mostra o europeu como o único grupo
civilizado. Ele, além de possuir leis, é, de acordo com a classificação, inventivo. Daí, o progresso alcançado
pela sociedade européia. Desta forma, estaria justificado o controle sobre as áreas menos evoluídas, em nome
do avanço do progresso, da razão e da civilização. As diferenças entre as categorias humanas seriam tão
grandes em alguns elementos que Linneu chegava ao ponto de questionar sua crença no monogenismo: “...
seria difícil alguém persuadir-se de que eles saíram da mesma origem...”
72
Para De Pauw
73
, um outro pensador do século XVIII, a natureza americana seria decaída e decadente
em função de ser pantanosa. Após o dilúvio que havia acometido toda a Terra, esta região teria sofrido um
outro, de caráter particular. O Velho Mundo já havia secado, enquanto que o Novo Mundo ainda estaria
sofrendo as conseqüências deste último dilúvio. Homens e animais teriam perecido e somente alguns poucos
haviam conseguido escapar para partes mais altas da região. Segundo este autor, isto explicaria o fato de
haver poucas pessoas na América e também justificava todas serem bárbaras e incultas segundo o ponto de
vista da época. Esta população não teria tido tempo de se desenvolver e atingir o grau de civilização que a
Europa já havia conseguido.
71
PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. São Paulo:
EDUSC, 1999 p. 68
72
Cf POLIAKOV, Leon. Op. Cit. p. 137
73
Ibidem capítulo 3
62
Quanto aos índios, estes seriam para De Pauw, animais não políticos e incapazes de progredir
porque não viviam em sociedade. Eram associados aos animais selvagens, às feras e às bestas. Por tudo isso,
eram passíveis de serem capturados pelos mais fortes e civilizados
74
.
Percebe-se que para alguns filósofos iluministas, a humanidade na América estaria pautada pela
incivilidade. E, ao contrário dos pensadores dos séculos XVI e XVII que viam no Cristianismo a salvação
para este povo atormentado pelas bruxarias e pelas artimanhas do Diabo (que controlava a região) e fazia
com que os índios praticassem atos nefandos, como a antropofagia, os filósofos Iluministas já não
acreditavam em uma possível salvação para a população americana. Os problemas de incivilidade eram
causados por catástrofes e condições naturais, portanto, irreversíveis
75
.
Para uma elite colonial que de uma forma ou de outra tinha contatos com os pensamentos europeus,
haveria dois tipos de regiões: uma já civilizada, ocupada e controlada pela sociedade, e outra ainda em estado
de barbárie. A civilizada seria aquela que possuía população branca habitando e desenvolvendo-a
economicamente. A segunda seriam os Sertões, áreas de moradia dos selvagens e vazias de populações
brancas e, portanto, incivilizadas para os valores da época. Era também uma região desconhecida da ciência
do século XVIII, tão ávida por contatos com “outros mundos”. Suas plantas e animais não eram ainda, em
sua maioria, conhecidos e apenas os que eles consideravam bárbaros tinham acesso a este conhecimento e
sua utilidade. Conquistar esta área significava também conquistar sua natureza, domá-la e assim civilizá-la.
Mas para isso, era necessário conhecê-la, classificá-la e ordená-la.
Pombal, durante o período de seu governo apoiou a criação de inúmeras academias literárias ou
científicas não só em Portugal, mas também no Oriente e no Brasil, com estes objetivos em mente
76
.
Em Minas Gerais, o Conde de Valadares, Governador da Capitania no período de 1768 a 1773, era
um homem de seu tempo e estava afinado com o que se pensava e se discutia na Europa. Em um documento
de sua autoria, enviado ao líder de uma expedição ao Sertão, ele pedia que lhe fossem enviadas algumas
amostras de:
“...alguns bichos mais caros e borboletas e outros insetos; como
também sementes de todas as qualidades, resinas, raízes com
alguns pequenos troncos com a sua folha, fruto e flor. É certo
que não poderão vir verdes e bastará que venham secas com a
folha estendida, e flor há preciso que em cada uma destas...
ponha V.Me. o seu nome e sítio onde foi achada e em uma
relação a qualidade em verde e em seco, a figura, a grandeza, as
cores, as utilidades, o modo da manipulação, as dores e as
enfermidades a que são aplicáveis e ainda aquelas que não tem
ou não se lhes conhecem do préstimo...”
77
.
74
Ibidem
75
RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização. A representação do índio de Caminha a Vieira.
Rio de Janeiro, Zahar. 1996.
76
Wehling, Arno e Wehling, Maria José. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1994. p. 283
77
Carta do Conde Valadares sem indicação de destinatário. Vila Rica, 9 de dezembro de 1772.
Papéis Vários -Biblioteca Nacional manuscritos – 1,4,1 . Documentos 16
63
Continua o Governador dizendo que todos esses exemplos eram muito úteis para o adiantamento da
História Natural.
Em 1799, D. Rodrigo de Souza Coutinho havia pedido que lhe fossem enviadas algumas amostras
de sementes de plantas de Minas Gerais. Bernardo José de Lorena, governador das Minas, lhe escreve
dizendo ter mandado “... 48 caixas de plantas vivas e que constam da Descrição Botânica que se vê no
catálogo incluso...” . Além das plantas, enviava também alguns caixotes com ornamentos, produtos
artificiais, armas e móveis domésticos dos índios. Prometia ainda, enviar “...todas as qualidades de sementes
que se recolherem nas matas e campinas deste Distrito...”
78
Pode-se perceber que havia uma preocupação em conhecer para melhor controlar. E ainda que esta
natureza fosse considerada perigosa e os índios incivilizados, era importante ter acesso às suas informações e
as utilidades de suas plantas. A sociedade civilizada saberia dar valor e, principalmente, utilidade a estes
conhecimentos.
As concepções acerca dos indígenas e de seu meio ambiente parecem que não sofreram alterações
bruscas durante o século XVIII, ainda que em regiões diferentes. Vários memorialistas, cientistas, viajantes,
pensadores e outros, possuíam imagens e idéias sobre estes grupos humanos e suas áreas de domínio, criadas
a partir de representações feitas anteriormente.
Azeredo Coutinho assim se expressava sobre os indígenas que viviam dispersos pelas matas:
“.. não acharão [os portugueses] Nações propriamente, acharão sim alguns bandos de homens selvagens,
sem algum gênero de governo, nem de subordinação; eram algumas famílias errantes e dispersas, que
viviam em pobres choupanas, muito ainda no primeiro estado da Natureza, talvez desgarradas dos primeiros
habitantes do México, ou do Peru: em toda a extensão do Brasil, até hoje não se tem descoberto algum
vestígio de Grande população, nem um só edifício, ou Obra de Arte que denotasse algum princípio de
civilização...”
79
Couto Reys achava que os índios que viviam nos Sertões do Distrito dos Campos dos Goitacazes
eram:
“... dotados de uma condição feroz, e inclinados a mais brutal crueldade, de tal sorte, que caindo qualquer
indivíduo de diferente nação nas mãos de sua barbaridade, o dilaceravam logo para uso dos seus
manjares...”
80
.
Além do mais, estes índios “selvagens”
81
eram dotados, para Couto Reys, “da extrema preguiça”
82
e viviam, segundo sua concepção claramente moldada no Iluminismo, na “...maior, e mais lastimosa
escuridade de ignorância...”
83
.
As concepções dos filósofos Iluministas podem também ser observadas mais adiante, quando ele
tratando sobre as leis e os costumes indígenas, afirma que “...Na sua miserável e ignorante vida... faltam-lhe
luzes, que os ilustrem melhor...”
84
. Além de tudo isto, Couto Reys percebe também que “...No estado de
barbarismo em que vivem, não tem conhecimento do comércio...”
78
Carta de Bernardo José de Lorena, governador das Minas para D. Rodrigo de Souza Coutinho,
dando cumprimento à sua carta de 22 de agosto de 1796, remetendo 48 caixotes com plantas vivas,
ornatos, produtos artificiais, móveis domésticos e armas dos índios. 30 de março de 1799 .
Arquivo Ultramarino. Cx.148, doc. 12. Cd. 43
79
COUTINHO, J.J. Azeredo. Concordância das Leis de Portugal e das Bullas Pontíficias das quaes
humas permitem a escravidão dos pretos d’ Africa, e outras prohibem a escravidão dos índios do
Brasil. Lisboa, Nova Oficina de João Rodrigues Neves. 1808. Apud. CUNHA, Manuela Carneiro
da. Antropologia do Brasil
. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 170
80
REYS, Manoel Martins do Couto. Manuscritos de Manual Martins do Couto Reys. 1785- Rio de
Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1997. P. 71
81
ibidem p. 75
82
ibidem p. 74
83
ibidem p. 75
84
ibidem p. 75
64
Praticamente as mesmas idéias podem ser percebidas em Domingos Alves Moniz Barreto, capitão
de infantaria e autor de um “Plano sobre a civilização dos Índios do Brasil e principalmente da Capitania da
Bahia”
85
. É possível identificar na obra, características típicas do pensamento iluminista. O Rei era para ele,
um ser iluminado e que devia acudir os índios, pois, “...um homem, considerado no estado bárbaro [não
pode] conhecer as suas obrigações para com Deus e para com seu Rei...”
Acreditava também poder dividir os índios do Brasil em dois grupos: os mansos e os bravos. Os
primeiros habitavam a costa, falavam a língua geral, não comiam carne humana e possuíam uma “sujeição a
um só cabeça”. Já os bravos eram “... homens agigantados e muito valentes e por isso usam de uns arcos
demasiadamente grandes... A sua morada é incerta... nada semeiam.. caça, comem-na crua... São muito
amigos da carne humana...não tem mais lei que a da sua vontade... não adoram a Deus...tem uns confusos
vestígios da imortalidade da alma...”
Em todos os casos apresentados, o índio é analisado pelo que o conquistador acredita que falte em
sua cultura, ou melhor, pelo que não condiz com o que se espera de uma cultura evoluída. Todos estes
elementos que “faltam” na cultura indígena provocam um sentimento de que se trata de bárbaros, na maioria
das vezes, perigosos. São associados sempre ao estado bruto, muito próximo à natureza – também bravia,
sendo a condição de antropófago a mais grave dentre todos os elementos negativos apresentados pelos índios.
Estavam em um estado tão primário que nem mesmo poderiam ser classificados como sociedade. Eram
apenas bandos sem qualquer liderança ou apego à religião.
As mesmas concepções podem ser vistas em Alexandre Rodrigues Ferreira, um estudioso baiano de
História Natural, que tinha o objetivo de conhecer a natureza e os habitantes das capitanias de Grão-Pará, Rio
Negro, Mato Grosso e Cuiabá durante uma viagem empreendida nos anos de 1783 a 1792. Diz o autor que o
objetivo maior de sua viagem era:
“... recolher e aprontar todos os produtos dos três reinos da
natureza que encontrasse e remetê-los ao Real Museu de Lisboa,
bem como fazer particulares observações filosóficas e políticas
acerca de todos os objetos da viagem...”
86
Este estudioso concordava com Buffon ao afirmar que “A América desde o seu princípio só
produziu animais pequenos em comparação com os do mundo antigo...”
87
Ao descrever os índios Tapuia
chegou a algumas conclusões interessantes e que respaldavam o que já se admitia sobre este indígena. Para
ele o Tapuia era um homem, assim como qualquer outro. Possuía uma grande diversidade de cor, língua e
moradia em virtude de habitar diferentes áreas com características diversas. Mas, mesmo com todas estas
particularidades, o autor informa que: “... Ao se ver um, pode-se dizer que estamos vendo todos...”
88
Para o autor, estes índios não possuíam qualquer tipo de individualidade ou de
identidade que pudesse ser destacada, ainda que ele mesmo tivesse demonstrado a
existência de diferenças. Mas, essas diferenças eram apenas as que ele classifica como
sendo acidentais ao ser humano, ou seja, a cor da pele, do cabelo, e outras
89
. Para
85
BARRETO, Domingos Alves Branco Moniz. Plano sobre a civilização dos Índios do Brasil e
principalmente para a capitania da Bahia (1788). In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Tomo XIX. 1856.
86
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica. Brasília:Conselho Federal de Cultura.
1972 p. 89
87
Ibidem p. 73
88
Ibidem p. 76
89
Ibidem p. 74
65
Alexandre Rodrigues, assim como para a grande maioria dos naturalistas de sua época, o
índio, quer fosse Tapuia ou Tupi, não passava de uma tábula rasa onde poder-se-ia
inscrever a civilidade. Suas diferenças não eram percebidas porque sua cultura não era
identificada enquanto cabível, posto que não era baseada nos ensinamentos cristãos. O
índio apresentado por ele era uma massa homogênea e com o espírito menos ativo que o
dos negros, também selvagens.
Esta imagem, ou melhor, esta falta de imagem do índio não era nova. Colombo,
também via assim os índios contatados. Para ele, os indígenas não possuíam “qualquer
propriedade cultural... e [eram todos] parecidos entre si”.
90
A continuidade na percepção
do indígena é fantástica: Frei Vicente do Salvador, a mostra da seguinte maneira:
“... O que de presente vemos é que todos são de cor castanha e
sem barba, e só se distinguem em serem uns mais bárbaros que
outros (posto que todos são assaz)...”
91
Novamente o que se consegue perceber nos índios são os aspectos físicos – cor de pele e falta de
barba – e também a falta de civilidade. Desta forma, o índio não é descrito pelo o que ele é, e sim, pelo que
lhe falta; no caso, a civilidade. Ele é, portanto, um bárbaro sem cultura e preso à natureza .
Com relação ao trabalho, Alexandre Rodrigues informa que os índios eram, em alguns casos,
superiores aos negros, e em outras circunstâncias de nada serviam em função de sua propensão ao não-
trabalho: “... a sua indolência e toda a sua felicidade consiste em não trabalhar...”
92
Segundo ele, haveria trabalhos que os negros
desenvolveriam melhor que os índios:
“... Um preto para uma diligência ao mato é menos ágil que um
gentio, assim também para o serviço das canoas e em tudo que
se relacione ao pescar, nadar, remar pelos rios, ele não tem a
sua esperteza. Por outro lado, para o trabalho na enxada e do
machado o negro é mais forte. Há gentio que quando obrigado a
90
TODOROV, T. A conquista da América: A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1999
p. 42 e 43
91
SALVADOR, Frei Vicente do. Op. Cit p. 52
66
trabalhar, imediatamente se deixa levar pela violência. Um
preto, constrangido ou não, dá conta da tarefa que se lhe impõe,
contanto que não lhe falte o sustento. Isto porque sofrem menos
a fome do que os gentios e bem alimentados recompensam a
despesa e o cuidado de seus senhores. Os gentios, alimentados
ou não, são inimigos do trabalho porque não podem fazê-lo
quando lhes falta alimento e mesmo abastados, não
querem...”
93
.
De acordo com este autor, haveria algumas causas que faziam com que os índios não se dedicassem
ao trabalho. Seriam elas conseqüência de não “... estarem, desde que nasceram, acostumados a trabalhar...”
Para ele “ ... os meios que facilita [riam] o trabalho est[ariam] ausentes: [porque] não [haveria]
instrumentos, ignora[riam] a arte da fundição e o uso dos metais úteis, [e] não se serv[iam] da ajuda de
animais...” Além do que “ A natureza tudo lhes oferece sem cobrar fadigas e trabalhos em troca do sustento
e do regalo.” E era “ tão limitada a esfera de seus desejos e necessidades que na menor atividade praticada,
ficam amplamente satisfeitos, sem precisarem de se fadigarem para alcançar os meios necessários à
satisfação.” Concluindo, havia “ A liberdade de relação dos dois sexos, onde, quando e como lhe
apetecem.”
94
Em termos práticos, inúmeras resoluções sobre os indígenas foram tomadas no século XVIII, com
base no que se acreditava que era moderno, ou seja, nas discussões dos filósofos Iluministas. Para estes,
ainda que com grandes reservas ao papel da Igreja e da religião, os índios eram selvagens, porém sensíveis à
persuasão feita através da religião. Esta seria o veículo básico e mais rápido para trazê-los à vida social e
civilizada, pois foram os jesuítas que melhores progressos obtiveram com os índios. O importante era não
destruí-los, mas sim civilizá-los, tirá-los do estado selvagem e acostumá-los pouco a pouco ao trabalho.
Deveria-se reunir os grupos, fixá-los e incorporá-los à sociedade via casamentos. Isto feito, provocaria neles
uma necessidade de se relacionarem com a sociedade e os incorporaria no comércio e nas trocas de cada
região.
Parte destas premissas coincidiam com as das autoridades
coloniais e mesmo com as das metropolitanas. Pombal tinha um
projeto civilizador para as colônias e, no caso brasileiro, este tinha
que passar necessariamente pela utilização racional dos índios.
Entretanto, os Jesuítas não faziam parte deste projeto. Pelo
contrário, para que ele funcionasse de acordo com os moldes
imaginados por Pombal, era necessário retirar destes qualquer
poder sobre os indígenas. Assim, em 1757, o Diretório Pombalino
ao conceder total liberdade aos índios cativos e determinar o fim
da administração temporal dos aldeamentos pelos religiosos, na
92
FERREIRA, Alexandre R. Op. Cit. p. 89
93
Ibidem p.83
94
Ibidem p.84
67
realidade, tentava um plano de civilização para os índios e um
programa de colonização que levasse a Colônia a um pleno
desenvolvimento. Civilizar para o Diretório, significava fazer com
que os índios se convertessem “...aos valores e comportamentos
dos colonizadores portugueses...”
95
A partir daquela data, os aldeamentos deveriam ser
controlados por Diretores leigos e contar com o auxílio de seus
principais (líderes internos). A secularização dos aldeamentos era
importante porque liberava os índios do controle até então,
exercido pelos religiosos. A fé não seria mais a mola mestra da
civilização. Era necessário primeiro, desenvolver este conceito nos
ânimos dos índios depois de civilizados, ou seja, somente depois de
fixados, trabalhando e alfabetizados no português, é que se
poderia ensinar o evangelho
96
. Para evitar problemas com a
acreditada indolência dos índios, Pombal determinou que
“...deveriam ser incitados a trabalhar pelos párocos e
funcionários coloniais, a quem caberia estimular os “aplicados”
e ridicularizar os “vadios”. Por fim, os “viciosos incorrigíveis”
deveriam ser enviados a casa de correção ou obrigados ao
trabalho nas obras públicas...”
97
Já em 1798
98
, o Diretório foi abolido, os índios continuaram na condição de órfãos
e os aldeamentos passaram a ter em sua administração além do principal, um diretor e um
pároco. Resta-nos identificar, oportunamente, todas estas mudanças com relação às formas
de tratamento dadas aos índios em Minas Gerais.
Por tudo o que foi visto anteriormente ficam algumas conclusões. A primeira é, sem
dúvida, a diferenciação criada para os habitantes do litoral e os do Sertão, sendo os
primeiros apresentados sempre como superiores em relação aos últimos. A segunda, a
visão que se tinha do Sertão como um local perigoso, mas cheio de riquezas. E a terceira, a
95
ALMEIDA, Rita Heloisa de. O Diretório dos Índios: Um projeto de civilização no Brasil do
século XVIII. Brasília, UNB, 1997
96
ibidem
97
FARAGE, Nádia. As muralhas dos Sertões.Os povos indígenas no Rio Branco e a colonização.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, ANPOCS, 1991, p 45
68
imagem negativa que o século XVIII fazia dos índios, principalmente, os que não
aceitavam a catequização. A estes, estava reservada a Guerra Justa.
Os índios de Minas Gerais e as Guerras Justas
Os índios do Sertão foram, em sua maioria, encarados como inimigos e acusados de
dificultarem o povoamento e desenvolvimento da região. Daí, segundo as autoridades, a
necessidade de enviar algumas expedições para atacar suas aldeias e conseguir sua
pacificação e aceitação dos ensinamentos de Deus, mesmo que à força.
Em Minas Gerais, durante o século XVIII, houve inúmeras expedições preparadas
com este fim. Em 1734, uma bandeira liderada por Matias Barbosa e contando com 70
homens e 50 escravos, atacou grupos de Botocudos e “limpou” o Sertão Leste até as
Escadinhas da Natividade. Nesta mesma região, foi fundado o Presídio do Abre Campo;
em 1748, o coronel Antonio Pires de Campos criou vários aldeamentos de Bororós para
controlar e atacar os Caiapós que circulavam na área; em 1769, Antonio Cardoso de Souza,
recebeu do Conde de Valadares ordens precisas para a conquista do gentio nas imediações
do Cuieté; em 1775, D. Antonio de Noronha, governador de Minas Gerais, decretou guerra
aos Botocudos que atacavam o aldeamento do Pomba e atrapalhavam a conquista do
Cuieté; em 1782, João Pinto Caldeira liderou uma expedição que tinha por objetivo
liquidar com os quilombolas e os Caiapó que fossem encontrados no Campo Grande
99
.
As justificativas ideológicas para as expedições se pautavam na importância de colonizar e povoar o
sertão a fim de desenvolvê-lo. Para isso, tornava-se necessário eliminar de uma forma ou de outra, a
presença marcante dos grupos considerados hostis. Os índios mais “teimosos” em não aceitarem os contatos
deveriam ser exterminados em nome de uma ocupação mais efetiva.
Estes índios não pacíficos poderiam também, segundo uma legislação que mudava constantemente,
ser escravizados, desde que fossem respeitadas algumas condições. As principais eram provar que os índios
em questão eram bravios, não aceitavam a catequização, atacavam os colonos e eram antropófagos. A estes
deveria ser decretada a Guerra Justa.
98
Carta Régia de 12.5.1798 In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro n. XX. P.
433 e ss
99
VASCONCELOS, Diogo de. Op. Cit.
69
A Guerra Justa seria assim, o mecanismo mais utilizado para a obtenção desta mão-de-obra. Esta
era, segundo Farage, “um conceito teológico e jurídico enraizado no direito de guerra medieval”.
100
As
principais justificativas para a guerra seriam a propagação da fé aos povos bárbaros, sua falta de moralidade,
suas práticas canibais e os casos de ataques à sociedade estabelecida.
Novamente utilizando a longa duração, pode-se ver que estas são as mesmas justificativas
apresentadas por Sepúlveda em 1550, quando da discussão sobre a possibilidade de escravização dos índios
da América. Suas idéias baseavam-se na inferioridade destes e na superioridade dos europeus. Logo,
seguindo as idéias de Aristóteles, poderiam ser escravizados. Seus pressupostos eram os seguintes:
1. “ É legítimo sujeitar pela força das armas homens cuja condição natural é tal que
deveriam obedecer aos outros, se recusarem essa obediência e não restar nenhum outro
recurso.
Em Minas Gerais, o uso de armas de contra os índios estava autorizado caso estes
atacassem ou interferissem na colonização. O documento a seguir é um bom exemplo desta
prática, ainda que não seja o único:
“...Sua majestade, que Deus guarde atendendo as devassas e representações que se lhe
mandaram sobre as mortes, roubos e insultos que tem feito os gentios Paiaguazes
[Cataguases] e mais bárbaros que infestam essas Minas e o seu caminho foi servido
mandar lhe dar guerra para a qual manda assistir com armas. pólvora e bala e os mais
petrechos necessários declarando a todos os gentios que se aprisionarem por cativos e que
estes sejam repartidos pelas pessoas que se empregarem na dita guerra.”
101
2. É legítimo banir o crime abominável que consiste em comer carne humana, que é uma
ofensa particular à natureza, e pôr fim ao culto dos demônios, que provoca mais que nada
a cólera de Deus, com o rito monstruoso do sacrifício humano.
Para a realidade mineira, temos, dentre outros, o seguinte documento:
“...Este gentio[Caiapó] é de aldeias, e povoa muita terra por ser muita gente, cada aldeia com seu cacique,
que é o mesmo que governador, a que no estado do Maranhão chamam principal, o qual os domina, estes
vivem de suas lavouras, e no que mais se fundam são batatas, milho e outros legumes, mas os trajes destes
bárbaros é viverem nus, tanto homens como mulheres, e o seu maior exercício é serem corsários de outros
gentios de várias nações e prezarem-se muito entre eles a quem mais gente há de matar, sem mais interesse
100
FARAGE, Nadia. Op. Cit. p. 27
101
Carta do Conde de Serzedas para Antonio Pires de Campos em 15 de outubro de 1733.
Biblioteca Nacional . Manuscritos. 1,4,1. Documentos 18 Papéis vários.
70
que de comerem os seus mortos, por gostarem muito da carne humana, e nos assaltos que dão aqui e presas
que fazem reservam os pequenos que criam para seus cativos...”
102
Estes índios caiapós foram sistematicamente guerreados e, posteriormente, extintos.
3. É legítimo salvar de graves perigos os inumeráveis mortais inocentes que esses bárbaros
imolavam todos os anos, apaziguando seus deuses com corações humanos.
Nos documentos localizados sobre os indígenas de Minas Gerais que eram acusados de
antropofagia, não foi identificada nenhuma informação sobre o motivo pelo qual supostamente comeriam
carne humana, além do fato de serem associados às feras e apreciadores desta. Ou seja, o aspecto cultural
destas sociedades não foi em nenhum momento levado em consideração por aqueles que tiveram contatos
com eles.
4. A guerra contra os infiéis é justificada, pois abre caminho para a difusão da religião cristã
e facilita o trabalho dos missionários.”
103
O documento seguinte é ilustrativo para a realidade mineira:
“...e só sim a conquistar o gentio bárbaro e disperso ou aldeado por aquele continente e reduzi-los ao
grêmio cristão... e suave modo ou aterrá-los a força de ferro e fogos quando rebeldes os mesmos gentios não
queiram abraçar o nosso amigável trato... a fim de que se consiga ou a redução dos gentios pelo meio de
persuasão ou arruiná-los de todo para que vivam sossegados os moradores daquelas vizinhanças em quem
eles tem feito repetidas hostilidades...”
104
Ainda utilizando os pensadores do século XVI e identificando as continuidades nas
ideologias sobre os índios, vejamos Las Casas, para quem controlar e pacificar os índios
segundo a lei de Deus, era vantajoso para a Coroa.
105
Esta alegação de ordem econômica
está sempre presente na documentação mineira enviada aos governadores ou mesmo ao
Rei:
“... o gentio silvestre que a longos anos se continha nos confins do Cuieté agora
atravessando sem medo o Rio Doce tem cometido nos últimos habitantes do círculo deste
102
CAMPOS, Antonio Pires de. Breve notícia que dá o Capitão Antônio Pires de Campos em 20
de maio de 1723. In: : TAUNAI, Afonso de E. Relatos Sertanistas
.(org.). Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Edusp., 1981
103
SEPÚLVEDA, Gines . Democrates secundo. De las causas de la guerra contra los índios.
Madri; Instituto F. de Vitória, 1951. Appud: Todorov. T. Op. Cit. P. 186
104
“...Memória que se deve observar na derrota que tem de seguir o Cap. Antônio Cardoso de
Souza para a conquista do gentio a que vai destinado e do que há de praticar nesta importante
diligência 9 de abril de 1769. Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de
Manuscritos) Códice: 18,2,6 doc 308 p. 1417
105
TODOROV, T. Op. Cit. p. 205
71
termo os mais horríveis e funestos estragos por seus insultos feroz e antropofágico, por
cujo motivo muitos dos mesmos habitantes fugindo a morte tem lastimosamente
desamparado as suas fazendas que constam de terras minerais e de culturas não só em
gravíssimo prejuízo aqueles, como do bem público, dos dízimos e reais quintos...”
106
Estas permanências podem ainda ser vistas nas discussões travadas dentro do próprio Império
português. Em 1570, o rei de Portugal ordenava que:
“... daqui em diante se não use das ditas partes do Brasil, de modo que se até agora usou em fazer cativos os
ditos gentios, nem se possam cativar por modo nem maneira alguma, salvo aqueles que forem tomados em
Guerra Justa... aqueles que costumam saltear os portugueses ou a outros gentios para os comerem...”
107
Em 1702, pela Carta Régia de 21 de abril, o Rei determinava que o cativeiro indígena estava
proibido, mas a administração dos índios por tempo determinado era admitida às pessoas que
voluntariamente os trouxessem dos matos de maneira pacífica.
108
A partir destes exemplos de como Sepúlveda e Las Casas pensavam a questão indígena e de como a
legislação e os mineiros durante o século XVIII agiram com os índios, pode-se perceber a manutenção de um
corpo de idéias a eles referentes, sem que sofressem alterações substanciais num período de tempo longo, e
em espaços físicos bastante distintos.
Isto nos leva a pensar a questão da longa duração como locus privilegiado para a percepção das
manutenções mentais. Por isso, neste texto, a longa duração está sendo utilizada em vários momentos ao lado
de enfoques que privilegiam a análise detida nos detalhes das expedições e a história regional vista pelo
Sertão Mineiro.
Como se pode perceber, as justificativas para a Guerra Justa e a conseqüente possibilidade de
aprisionamento dos indígenas, permaneceram no tempo e em espaços geográficos diferentes. Ainda que a
legislação portuguesa tenha em diversos momentos tentado impedir esta escravização, na realidade, pouco
conseguiu efetivamente.
Havia um ponto positivo para a elite mineira no que se refere aos constantes ataques que os
indígenas faziam à sociedade. O “barbarismo” destas tribos legitimava a Guerra Justa, o extermínio e mesmo
a escravidão. Eram inferiores e teriam sido feitos por Deus para servirem aos superiores ou não atrapalharem.
Os colonos viam as Guerras Justas como uma opção para adquirirem mão-de-obra e, conseguirem assim,
desenvolver suas atividades econômicas. Para os religiosos, o barbarismo justificava a necessidade da
catequese e transformava o religioso em um mártir a serviço de Deus. Era preciso transformar “bestas
humanas e feras” em cristãos.
109
.
O Padre Manoel Vieira Nunes em sua carta escrita ao Conde de Valadares relatando suas opiniões
sobre alguns grupos indígenas que habitavam o aldeamento de Laranjeiras, volta a ser importante para a
discussão. Conforme já visto, ao descrever algumas tribos de índios com os quais a sociedade colonial
conseguia travar algum tipo de relação, concluí afirmando que não se podia acreditar que os índios eram
amigos dos portugueses, mas sim, estariam apenas usando-os segundo seus próprios interesses. Entretanto,
agora, o foco sobre sua carta, é a sua explicação e justificativa para a escravidão indígena.
Depois de ter concluído serem os índios Capochós e Aimorés, rebeldes, infiéis, dissimulados,
vorazes devoradores de carne humana e possuidores de outros defeitos, declara que “... enquanto seu orgulho
não for prostrado como justamente pode e parece se deve efetuar até os reduzir sendo necessário e
106
Representação dos oficiais da Câmara de V. Nova da Rainha para D. Maria I. Arquivo
Ultramarino Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro . Códice: cx 142. Documentos 53 cd 42
Local: Vila Nova da Rainha. 3 de janeiro de 1796
107
LEITE, Serafim. História da Cia de Jesus no Brasil. Tomo 2. Rio de Janeiro, 1943. p. 207
108
Carta Régia de 21.4.1702. Apud: CARVALHO, José de Almeida Vasconcelos de Soveral e.
Carta ao Provedor da Real Fazenda em 15.11.1774. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, vol 84, p. 101.
109
RAMINELLI, Ronald. Op. Cit
72
conveniente a escravidão por ser a causa da nossa guerra agressiva e juntamente defensiva com título muito
justo em direito fundado...”
110
Continua a carta utilizando-se de elementos medievais para justificar a Guerra Justa: “... e os
prisioneiros de justa guerra não sendo católicos tem por direito comum imperial a pena de servidão
perpétua... “
111
Para o padre, estes índios eram tão bárbaros que sua servidão estaria plenamente justificada. Chega a
afirmar que nem mesmo alguns negros africanos eram tão bárbaros como estes, e que “... bem pode ser que
da Costa da Guiné para cá tenham passado negros e servos com muito menos justificado do que estes
bárbaros principalmente os aimorés...”
112
Aos que defendiam a não escravização indígena, alega que suas posições poderiam parecer
absurdas. Entretanto, é de opinião que estas posturas favoráveis aos indígenas haviam partido de “...sujeitos
nada zeladores do bem comum...” e com “... simulada piedade estabelecida nesta América...”.
113
Os religiosos tiveram um papel muito complexo no que se refere às atitudes com relação aos índios.
Em vários momentos aproveitaram-se de uma situação não muito bem definida, e obtiveram algum tipo de
controle sobre uma mão-de-obra bastante significativa. Muitos conseguiram autorização e ajuda para entrar
nos Sertões e catequizar os índios. Todavia, na maioria dos casos, estes religiosos passavam a controlar – via
doação de sesmaria para o aldeamento – uma enorme faixa de terra. Usavam os índios como mão-de-obra,
compravam escravos africanos, recebiam ajuda do governo e acabavam por arrendar partes das terras que
pertenciam aos índios aos colonos. Estes, além da terra, obtinham também os indígenas como trabalhadores
mediante um aluguel pago diretamente ao religioso. A lei determinava que esta jornada de trabalho fosse
apenas por um período estabelecido, devendo o indígena voltar ao aldeamento ao término do prazo.
Entretanto, era comum o índio permanecer em poder do fazendeiro e aparecer, anos depois, em seus
inventários - como índios administrados.
Esta situação permaneceu até o século XIX e o Aldeamento do Etueto é um exemplo desta situação.
O aldeamento da Imaculada Conceição do Etueto foi criado durante o ano de 1875, no Vale do Manhuaçú,
para abrigar os índios Puri, vistos como empecilho ao desenvolvimento econômico da região, não só porque
eram índios violentos e arredios ao contato com o branco, mas também porque viviam em violentas e
intermináveis guerras com os Botocudos provocando, desta maneira, uma onda generalizada de insegurança
local. A razão da inimizade entre os Puri e os Botocudos estava nas tentativas de controle das terras na região
pelos dois grupos. Este problema ficou ainda mais acirrado a partir do momento em que os Puri começaram a
penetrar cada vez mais para o interior de Minas Gerais fugindo do avanço provocado pela expansão do café
e encontrando pelo caminho seus inimigos Botocudos.
O Aldeamento do Etueto traz em seu interior elementos que permitem a análise e a compreensão de
uma estrutura maior: a do complexo mecanismo de acesso à terra e obtenção/controle da mão-de-obra no
Brasil Imperial nas regiões que não se inseriam na estrutura agrária exportadora, e que possuíam,
teoricamente, uma fronteira agrícola aberta, ou quase. Desta maneira, os índios do aldeamento passaram
efetivamente a fazer parte da reserva de mão-de-obra da região.
Já no ano de 1878, o aldeamento estava sofrendo um processo de extinção causado, entre outros
fatores, pelo pouco ou nenhum sucesso com os índios. Além do que, seu administrador, um religioso
capuchinho de nome Frei Miguel Maria Angelo de Troina, estava sendo acusado de roubo, fraude, e por
permitir a entrada de fazendeiros nas terras pertencentes aos índios provocando desta forma, a fuga de quase
todos.
O aldeamento havia sido estabelecido numa região extremamente fértil, porém de difícil acesso e
isolado das demais áreas. Isto facilitou o controle sobre a doação de terras pelo religioso e em pouco tempo
ele se tornou o principal recebedor de rendas provenientes dos arrendamentos. Havia, inclusive, um
documento impresso onde o religioso dava ao arrendador das terras o direito de ocupar determinada área.
110
Carta do Padre Manoel Vieira Nunes ao Conde de Valadares. Sem data. Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Códice 18,2,6 doc 321
111
ibidem
112
ibibdem
113
ibidem
73
Figura 13- Documento de doação de terras do Aldeamento do Etueto - 1875
Fonte: Biblioteca Nacional. Manuscritos. I-48,16,20. Rio Doce. Aldeamento indígena
Rapidamente, estes fazendeiros tomaram posse definitiva destas terras e expulsaram as famílias
indígenas. Em função de todos esses problemas a Diretoria Geral dos Índios oficiou ao Presidente de
Província de Minas Gerais pedindo a extinção do aldeamento pelo fato dele ser um “inútil sorvedouro de
partes das rendas públicas
114
Após a extinção, seus poucos índios se dispersaram ou se mantiveram
vivendo nas terras que faziam parte do mesmo, sem contudo, receber qualquer auxílio do governo
115
.
114
Relatorio do Diretor Geral de Índios ao Presidente da Província, Antonio Teixeira de Souza
Magalhães. em 18 de agosto de 1887.
115
De acordo com o Decreto n.. 426 de 24 de julho de 1845, os índios que vivessem em um
determinado aldeamento, no momento de sua extinção deixariam de receber estes auxílios, mas
74
Apesar dos aldeamentos terem sido utilizados como um facilitador sobre o controle
da mão de obra indígena, a maioria dos índios do Sertão não o admitiam. Daí, as
constantes expedições punitivas às suas aldeias.
Um grupo indígena que sofreu perseguição implacável dos colonos foi o dos
Caiapós, habitantes, segundo o bandeirante paulista Antonio Pires de Campos, da área
compreendida desde “...a zona do Pardo e Camapuã, no Sudeste de Minas Gerais até a área
... do Triângulo Mineiro; e para cima até a altura quase da embocadura do Araguaia...”
116
.
Segundo Neme, a primeira entrada de paulistas que teve contatos com eles em 1608
foi amistosa. Porém, em 1612 Garcia Roiz Velho aprisionou alguns índios que viviam
próximos às vilas e em paz. O citado autor conclui que:
“... nos princípios do século XVII os Caiapó, também
chamados Bilreiros, eram um povo pacífico e assentado,
mantendo relações amigáveis com os brancos de São Paulo... É
com a entrada de levas seguidas de mineradores, aventureiros e
traficantes, soldados e colonos, nas terras de domínio dos
Caiapó, a partir de 1726, que estes índios se tornam mais
agressivos....”
117
A partir desta “agressividade”, ou seja, da recusa em facilitar o domínio sobre suas terras, os Caiapó
se tornaram “inimigos do Estado”. Segundo Karash, “em 1741 aproximadamente 8000 Caiapós foram
escravizados pelos Paulistas e os sobreviventes se refugiaram no Sul de Goiás, perto de Vila Boa”.
118
Barbosa dá conta de que o capitão Antonio Pires de Campos, tentando impedir os constantes ataques
dos Caiapós, fundou três aldeias de Bororos no caminho para Goiás: “...Sua finalidade era não só garantir
os viandantes que se dirigiam àquela capitania, como também constituíram-se como bases para as investidas
contra os terríveis inimigos dos brancos...”
119
As principais aldeias Caiapós localizavam-se em território goiano, mas estes indígenas usavam a
região do Campo Grande para caça e movimentação. Nestes momentos atacavam fazendas e povoados,
ficariam de posse das terras que haviam sido demarcadas. Entretanto, isto só aconteceria se os
índios tivessem “um bom comportamento e [se quisessem] ficar nas mesmas terras, apresentando
um modo de vida industrial, e principalmente agrícola...:”
116
NEME, Ségio. Dados para a história dos índios Caiapó. In: Anais do Museu Paulista. n. 23,
1969 . p. 190-248
117
Ibidem p. 120 e 129
118
KARASH, Mary. Conflito e resistência interétnicos na fronteira brasileira de Goiás nos anos
1750 a 1890.In: Revista da SBPC, Curitiba, n. 12. 1997. p. 35
119
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte:
s/Ed. p. 88
75
matando e roubando criações, roupas, enfim, o que pudessem levar. Em 1701, eles haviam atacado nas
Lavras de Nossa Senhora dos Remédios, território atualmente pertencendo a Mato Grosso:
“... deu o gentio Caiapó um assalto nas Lavras... aonde matou oitenta e cinco pessoas, quatro homens
brancos e os demais pretos que andavam trabalhando em serviço de minerar. Deu nas fazendas do doutor
Francisco Pereira dos Guimarães e na de Agostinho de Faria Castro por onde matou toda cousa viva que
achou pôs fogo e roubou o que lhe fez conta. Passou para o distrito de Cocais onde matou três escravos de
Salvador R. de Siqueira e pelos sítios circunvizinhos a mais de cinqüenta pessoas abrindo as crianças pelo
meio fazendo em pedaços pondo fogo as casas roubando aquilo que lhe fazia mister...”
120
Os contínuos ataques foram a razão que as autoridades queriam para justificar a Guerra Justa, o
aprisionamento de cativos e o controle da região. Assim, em 1736 foi autorizada a Guerra Justa contra os
Payaguases e seus confederados, ou seja, os Guaycurus e os Caiapós.
“... Atendendo as muitas queixas que me tem feito os viandantes do caminho das Minas dos Guaiazes e a
representação que me fizeram os roceiros e moradores do mesmo caminho das hostilidades e estragos que o
gentio caiapó tem feito assim nas roças como em algumas tropas e ao que S. Majestade pela sua real ordem
de 5 de março de 1732 foi servido ordenar que se fizesse guerra aos Gentios Paiaguazes e todos os seus
confederados e os mais que infestam o caminho das Minas, havendo precedido as devassas pelas quais
foram culpados assim os referidos gentios Paiaguazes como esse mesmo gentio Caiapó que barbaramente
continua nos seus insultos e quererem os Suplicantes a sua própria custa dar o castigo que merece este
atros delito pela utilidade e que se segue a segurança dos quintos de Sua Majestade e aumento de sua real
fazenda e bem público. Mando que pessoa alguma lhe não ponha impedimento antes lhe dêem toda ajuda e
favor que lhe for pedido para com mais facilidade se conseguir o desejado efeito desta diligência cujo
serviço haverá Sua Majestade por bem e poderá premiar como for servido”.
121
Ao que tudo indica, a situação não foi resolvida e, em 1740, D. Luis Mascarenhas, governador de
Goiás, decretou o aprisionamento de índios Caiapós e Paiaguás que foram capturados em Guerra Justa, tendo
em vista seus constantes ataques.
“ ...Por quanto é conveniente evitar as contínuas mortes e repetidos insultos e grandes estragos que o gentio
bárbaro da nação Caiapó ou Bororo proximamente tem cometido nas vizinhanças do Arraial do Ouro Fino
termo desta Vila vindo insultar aos roceiros assistentes naquela paragem em suas próprias casas, matando-
lhes suas mulheres, filhos e escravos, e também cavalos, porcos e mais criações, queimando lhe as casas em
que habitam e aonde tem recolhido os seus frutos de que resulta grande prejuízo aos povos destas minas e a
real fazenda de Sua Majestade. E sendo convocados em Junta os Ministros delas e outras pessoas mais, que
todos uniformemente acertaram que era conveniente se praticasse com este gentio o que o dito Sr. Foi
servido mandar observar com os Paiaguás e seus confederados Guaicurus e Caiapós: toda a pessoa que
quiser ir explorar a campanha e dar nos próprios alojamentos daqueles inimigos para os fazer apartar
destas povoações e livrar aos habitadores delas dos referidos insultos lhe prometo em virtude da dita Junta e
em nome de sua Majestade de lhe dar por cativos todos os que apanharem e para que venha a notícia de
120
SÁ, Joseph Barbosa de. Relação das povoaçoes do Cuiabá e Mato Grosso de seus princípios thé
os prezentes tempos. (1775), Cuiabá, SEC/UFMT, 1975
121
ARQUIVO DE SÃO PAULO. Documentos Interessantes. n. 22.1896
76
todos se publicará este bando a som de caixas nesta vila e se registrará nos livros da Secretaria deste
Governo e aonde mais tocar.”
122
Anos se passaram sem que as autoridades conseguissem efetivamente resolver o problema dos
ataques indígenas e, em 1748, o coronel Antonio Pires de Campos obteve autorização para estabelecer
aldeias de índios Bororos na área hoje conhecida como o Triângulo Mineiro para servir de escudo contra os
Caiapós. Os Bororos deveriam andar “ ...sempre explorando as estradas fazendo sortidas de umas partes
para outras, especialmente pelas paragens em que o gentio caiapó costuma insultar aos viandantes e
roceiros afim de os intimidar e evitar com esta diligência as suas hostilidades...”
123
Se no prazo de um ano os Caiapós ficassem sob controle, como recompensa por seus serviços, o
coronel receberia o hábito de Cristo e mais 50$ de tença. Se este prazo de tranqüilidade se estendesse por três
anos, ele receberia a mercê de proprietário de ofício de escrivão da Ouvidoria de Vila Boa. Entretanto, as
coisas não saíram como deveriam. Um mês depois, D. Luis Mascarenhas deixava o governo da Capitania
que foi anexada à Capitania do Rio de Janeiro e Gomes Freire Andrade nada fez para cumprir as promessas
de Mascarenhas. Quando a capitania de Goiás foi novamente desmembrada, D. Marcos de Noronha que
assumiu o governo, também não as cumpriu.
O Capitão Antonio Lemos e Farias não estava exercendo seu maior dever que era o de manter as
estradas e os caminhos livres dos Caiapós para que os viajantes e os comerciantes pudessem se locomover
com tranqüilidade. Sua situação complicou-se ainda mais quando três índios Bororos fugiram da vila onde
ele se achava e foram à presença do Conde de Noronha contar que queriam um novo capitão, e que todos
estavam descontentes com Antonio Lemos porque “...a única vez que saiu com eles as sertão foi com tão
grande equipagem que lhe servia mais de embaraço do que de utilidade a sua pessoa ...”.
124
Os índios
exigiam também que fosse escolhido um novo capitão e que este fosse paulista. Os indígenas conseguiram o
que queriam. O capitão escolhido foi realmente um paulista e do agrado desses índios porque era “...muito
capaz de andar no sertão, do que há larga experiência...”
125
: o capitão João Pinto de Godói. Este documento
é importante porque além de demonstrar que, em alguns casos, os índios conseguiam barganhar e obter o que
desejavam, aponta também para a manutenção pelas autoridades de um costume indígena, ou seja, a
inimizade entre tribos. Tal inimizade favorecia claramente aos colonos uma vez que, destruído um grupo,
diminuia a quantidade de índios não amistosos para se preocuparem.
Em 1782, Pamplona liderou uma expedição que tinha por objetivo exterminar este grupo e limpar a
área. Ao que tudo indica, não conseguiu realizar plenamente seu intento, já que Cláudio Manoel da Costa em
1824, relatava que na área que dividia a Capitania de Minas Gerais com a de Goiás era grande o número de
Caiapós, “que em contínuo giro anda acometendo aos viandantes, que por aqueles sertões transitam...”
126
Os índios do grupo Botocudo sofreram também uma perseguição implacável. Eram
acusados de serem terríveis e de não aceitarem qualquer contato pacífico. Há que ressaltar,
contudo, que eram denominados como Botocudos todos os índios que usavam botoques
nos lábios e nas orelhas, não faziam parte do grupo Tupi e eram hostis ao contato com o
branco.
O grupo Puri, confundido inúmeras vezes com eles, vivia no Sul de Minas Gerais,
no Norte do Rio de Janeiro, no Sudoeste do Espírito Santo e no Nordeste de São Paulo e
122
ibidem
123
ibidem p. 210 a 13
124
Carta do Conde de Noronha ao Sr. Manoel de Campos Bicudo. 16.4.1753. 1,4,1 Papeis Vários
Documento 19 - Biblioteca Nacional
125
Ibidem
77
sofreu constantes guerras justas. Os que restaram foram, muitas vezes, transportados de
um lado para outro a fim de liberar novas áreas de terras aos colonos. Desta forma, índios
que viviam em Minas Gerais foram levados aldeados para o Espírito Santo para abastecer a
região com uma mão-de-obra alternativa e mais barata que a escrava. Assim, ficava mais
difícil a fuga porque eles perdiam seus referenciais geográficos e culturais.
O Comandante do Arraial do Cuieté, em uma carta enviada ao Governador Valadares, reclamava
destes mesmos grupos e afirmava que eles eram muito bravos e que várias regiões eram povoadas e
posteriormente despovoadas por causa deles:
...há sem dúvida que o gentio Botocudo e Poris são as nações
mais brabas que há e os que tem infestado com distúrbios os
moradores de Santa Rita, São José, Ribeirão do Macuco, Santa
Anna do Abrecampo e o próprio Cuieté, despovoado três vezes
por conta do mesmo, roubando e destruindo tudo de tal sorte
que se acham muitos sítios desertos e povoações solitárias... a
causarem os danos que se experimentam fazendo com o temor
das suas crueldades que os moradores se não alarguem a
explorarem os córregos que se acham na Barra do rio Cuieté até
o Mainguassu...”
127
No ano seguinte, em uma outra carta, confirmava a natureza
agressiva dos Botocudos e afirmava serem antropófagos,
“sustentando-se de carne humana, tanto dos índios que matam
como dos católicos...”. Em função de todos os problemas
causados pelos Botocudos, sugere sua completa extinção
128
.
126
COSTA, Cláudio Manoel da. Memórias e notícias referentes a Provincia de Minas Gerais. -
Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos - II. 36,9,30
127
Carta de Paulo Mendes Ferreira, Comandante do Cuieté ao Governador Valadares, em
novembro de 1769. Arquivo Conde de Valadares - Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos -
18,2,6
128
Carta de Paulo Mendes F. Campelo ao Conde de Valadares, em 23 de abril de 1770, Cuieté.
Arquivo Conde de Valadares -Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos. 18,2,6 doc. 229
78
Entretanto, alguns dias antes, já havia sido dada uma ordem de
ataque a estes indígenas acusados de responsáveis por algumas
mortes na região do Pegabem.
129
Os Caitaguás ou Caitaguases, outro grupo indígena da região de Minas Gerais, habitavam o Centro,
o Oeste e o Sul de Minas Gerais até o século XVIII e segundo Oillan Junior
130
, foram os que “sofreram mais
rudemente a ação escravizadora dos bandeirantes do ciclo paulista...”
131
Além do que:
“... Sem meios para se oporem aos avanços dos rudes e
indomáveis homens das bandeiras, acabaram vencidos,
exterminados no próprio solo que ocupavam ou, em hipótese
mais feliz, levados como prisioneiros para a orla marítima...”
132
Em 1773, o rei português decretou que, diante das constantes reclamações contra estes índios, estava
estabelecida a Guerra Justa:
“...Sua Magestade, que Deus guarde atendendo as devassas e
representações que se lhe mandarão sobre as mortes, roubos e
insultos que tem feito os gentios Payaguazes [Cataguases]e mais
bárbaros que infestam essas Minas e o seu caminho foi servido
mandar lhe dar guerra para a qual manda assistir com armas.
pólvora e bala e os mais petrechos necessários declarando a
todos os gentios que se aprisionarem por cativos e que estes
sejam repartidos pelas pessoas que se empregarem na dita
guerra...”
133
Há uma grande diferença entre o que é pensado e o que é feito. O índio que precisava e merecia ser
aldeado era aquele considerado manso, ou seja, o que aceitava pacificamente ser explorado economicamente
pelos fazendeiros da região. Os que não aceitavam, sofreram processos de extermínio:
129
ibidem p. 1055
130
JOSÉ, Oillan. Indígenas e Minas Gerais. Aspectos sociais, políticos e etnológicos. Belo
Horizonte: Edições Movimento-perspectivas. 1965. P. 11 e ss
131
Ibidem
132
Ibidem p. 19
133
Carta do Conde de Serzedas para Antonio Pires de Campos 15 de outubro de 1733 1,4,1 Papeis
Vários Documento 18 - Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos -
79
“... e quando este gentio se mostre renitentes aos amigáveis
persuasões que se lhe fizerem e sem atenção se queiram levantar
e opor com violência neste caso, e justamente deve usar das
armas para sua defesa.”
134
“... creia me v. Ex.a. propriamente as minhas suplicas que enquanto senão extinguir estes
bárbaros gentios receio muito a povoação da terra”
135
A questão da escravização destes grupos humanos foi um dos fatores responsáveis pelo processo de
extermínio pela qual passaram, e também por um paulatino esvaziamento demográfico da região. Isto não
ocorria apenas em Minas Gerais. As regiões do Grão-Pará e Maranhão também passavam por um processo
semelhante, também causado pela diminuição dos grupos indígenas. Mendonça Furtado, Governador e
capitão general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, em uma de suas muitas cartas a seu irmão Pombal,
afirmava que as tropas de resgates, tão em voga na região, eram na realidade, um grande problema, porque
além de enganarem os índios e os aprisionarem para vendê-los como escravos, serviam também para “...ser
uma das principais causas de se despovoarem as terras dos domínios de Sua Majestade e de em
conseqüência, fazer mais poderosos aos nossos confinantes...”.
136
Em Goiás, durante o século XVIII, a escravização dos indígenas acarretou inúmeros problemas ao
seu Governador, D. Marcos de Noronha. Em várias cartas ao Rei, afirmava não ter como controlar o fato. A
situação se agravava por causa da Carta Régia de 21 de abril de 1702, que decretava a proibição do cativeiro,
mas liberava a administração por tempo limitado dos índios que fossem atraídos pacificamente.
137
O
Governador afirmava que tal administração era, na realidade, um cativeiro disfarçado e :
“... ainda mais rigoroso do que os dos negros, porque como os senhores compram estes por muito maior
preço, tratam-os com muito mais cuidado: ordinariamente o índio administrado anda nu e sua sustentação
não passa de um pouco de milho. Se ausenta da casa do administrador é preso e escoltado asperamente
...”
138
.
Neste mesmo ano, o Governador, referindo-se à uma Bandeira enviada ao Norte da Capitania com o
objetivo de fazer guerra defensiva aos índios que estavam atacando a população, afirmou que a expedição era
na realidade uma farsa, porque atacariam índios com o objetivo apenas de os aprisionarem como cativos. Diz
que não tinha condições de evitar estas atitudes porque se começasse a castigar as pessoas que se lançam a
134
Instrução e despedição que faz desta Estancia de São Simão do Rio da Ajuda da ordem do Ilmo
Exmo Sr Conde de Valadares e General da Capitania de Minas Gerais, no dia 4 de setembro de
1769 Arquivo Conde de Valadares - Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos- 18,2,6
documento 3
135
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valladares , em 15 de novembro de 1769
Arquivo Conde de Valadares -Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos- 18,2,6. Documento 19
136
Carta de Francisco Xavier de M. Furtado ao Marquês de Pombal. In: MENDONÇA, Carneiro de
M.(org). A Amazonas na Era Pombalina. Correspondência inédita do Governador e Capitão
General do Estado do Grão Pará e Maranhão- Francisco Xavier M de Furtado, 1751-1759. Rio de
Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1963. 28 ª Carta p. 290 e ss.
137
Carta Régia de 21 de abril de 1702. Apud: Carvalho, José de Almeida Vasconcelos de Soveral e
carta ao Provedor da Real Fazenda em 15 de novembro de 1774. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro vol. 84, p. 101
138
Carta de D. Marcos Noronha. Correspondências com a Corte. 20 de janeiro de 1751- SDEGO
Livro 192. p. 43. Apud: CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás. 1749-1811
. São
Paulo: Nobel; Brasília:INL, 1983. p. 71
80
tais empreendimentos iria provocar “ ...uma revolução nos ânimos dos moradores que se persuadem que
matar índios está tão longe de ser homicídio que o julgam um ato de virtude..”.
139
Além do que, continuava o Governador, eles não davam ouvidos nem as ordens dele e nem às do
próprio rei
140
.
A escravização de índios e o seu uso sistemático durante o século XVIII nas áreas que estavam fora
do eixo econômico destinado ao abastecimento externo, tem proporcionado alguns debates calorosos. Há os
que defendem que não era uma prática geral e que, mesmo nas regiões mais interiorizadas, já haveria neste
momento uma predominância de mão-de-obra escrava de origem africana.
Contudo, as fontes têm demonstrado que estas afirmativas precisam, no mínimo, ser repensadas. A
escravização de índios foi, durante todo o século XVIII, uma constante na vida de fazendeiros de Minas
Gerais ainda que os religiosos ou os Diretores das Aldeias tentassem, em alguns poucos casos, minimizar este
uso ou mesmo impedi-lo. As fontes têm demonstrado também que no século XIX, os índios eram utilizados
como mão-de-obra cativa, ainda que sob diferentes disfarces.
141
A escravização indígena, legítima ou não, mas disfarçada quase sempre, pode ser vista de diferentes
maneiras e em locais e períodos distintos:
Em 1701, o Governador da Capitania do Rio de Janeiro, escreveu para o Rei dando conta de que
algumas pessoas queriam acompanhar Garcia Rodrigues em direção à nova povoação que ia se formar as
margens do Paraíba. Entretanto, estavam com medo de que os “...carijós da sua administração... poderão
fugir...”. O Rei respondeu a carta afirmando que “... e não tendo os índios justa causa para fugirem para o
que serão ouvidos e se examinará a que tiveram para este feito, os façais logo restituir a seus donos quando
se averigúe que não houve razão lícita para se ausentarem...”
Esta resposta é bastante interessante. Primeiro, o fato dos índios estarem sendo usados como uma
mão-de-obra e afastados de sua vida tradicional, não seria motivo suficiente para que fugissem. A única
causa aceita pelo Rei seriam os maus tratos. Entretanto, como seriam constatados se os índios realmente
fugissem? Caso a fuga fosse sem motivos justos, deveriam ser entregues novamente a seus “donos”. É
curioso que o próprio Rei não os tratasse como administradores, e sim como donos dos carijós. É oportuno
salientar que “carijó” era todo índio escravo e o termo era usado para diferenciá-los dos escravos negros.
Em 1718, o Conde de Assumar, perdoava os amotinados da Vila de Pitangui com
receio de que a região se esvaziasse novamente facilitando assim, a vida dos quilombolas e
dos índios. No documento abaixo, percebe-se que além do perdão, os amotinados
receberam grandes benefícios, dentre eles, a diminuição nos impostos sobre negros e
carijós, ou seja, escravos indígenas:
"...concedo a todos, tanto a uns como a outros [amotinados e pessoas que quisessem ir
para Pitangui], uma cobrança de quintos com suavidade, sendo que os novos moradores
da vila que tiveram mais de dez negros ou carijós, nos próximos dois anos, só pagarão
metade dos quintos; serão dadas aos novos moradores que tiverem família, por sesmarias
“in perpetum” a eles e seus descendentes, terras para suas lavouras ..."
142
.
139
Carta de D. Marcos Noronha ao Ouvidor Geral Agostinho Luis, em 4 de outubro de 1751.
SDEGO. Livro 192 p. 211v. Apud: CHAIM, Marivone Matos. Op. Cit. p. 83-84
140
ibidem
141
Relatórios dos Diretores de Índios .SG 04,07,12,15,20,21,22,24. Arquivo Público Mineiro
142
Bando de Assumar em 30 de maio de 1718. Citado por MARTINS, Tarcísio José. Quilombo
do Campo Grande: a História de Minas roubada do povo. São Paulo: Gazeta maçônica, 1995 p. 27
81
O Conde de Noronha, escrevendo em 1754 para João de Godói Pinto da Silveira, afirma que havia
recebido a sua carta onde ele relatava sua entrada aos sertões mineiros. Nesta carta estava escrito também que
durante a conquista ele havia sido perturbado pelos agrestes e que teria perdido, por causa de uma doença,
seis Índios Bororos de muita serventia para ele porque eram treinados no uso das armas. Além do que,
reclamava também que em um ataque feito à uma aldeia indígena (não informa qual) havia conseguido
aprisionar poucos índios. O Conde lhe respondeu de maneira ambígua dizendo que não poderia concordar
com o fato de que a expedição fosse dirigida a aprisionar índios dentro de suas aldeias, posto que o Rei
proibia. Mas que ficava satisfeito pelo fato da expedição ter sido bem coordenada e explicava que
possivelmente não havia sido mais lucrativa porque dias antes, dois “caciques” haviam abandonado a aldeia.
“...que bem se podia esperar uma gloriosa vitória, se os
alojamentos em que estavam os gentios fossem tão populosos
(como seriam) se não tivessem saído antecedentemente os dois
caciques com as suas Bandeiras uma para a parte do Mogy do
Campo outra para estas partes de Goiás sendo este o motivo
porque V.M. fez menos prezas do que queria...”
143
Continuava a carta reafirmando que o Rei não queria violências contra os indígenas, mas lembra que
ele não a proibia quando os índios atacassem as expedições. Neste caso estaria liberado o uso de violência
“iguais ou ainda muito maiores”. E que o Rei “.... só quer usar força da necessidade quando de outra
maneira não pode rebater os insultos que o mesmo gentio ordinariamente está fazendo aos seus
vassalos...”
144
Um outro exemplo do uso de índios como escravos pode ser apreendido na carta que Paulo Mendes
Ferreira Campelo, Comandante do Arraial do Cuieté enviou ao Governador Valadares em novembro de
1769, dando-lhe várias notícias do estado em que se encontravam as entradas ao sertão. Dizia ele também
que seria muito útil se as pessoas envolvidas na conquista da região e no aprisionamento de gentios, não os
pudessem reparti-los entre si sem que antes todos fossem entregues ao Comandante para que ele os
distribuíssem entre os que pudessem instruí-los na fé. O objetivo do Comandante era:
“... evitar o pernicioso meio de cada um fazer seu o que apanha
e distribuí-lo debaixo de algum interesse próprio como se tem
visto....”
145
Em 1770, o capitão Pedro Bueno, paulista e fugitivo da Justiça em São Paulo, morador em uma ilha
no Rio Doce, possuía escravos carijós que trabalhavam faiscando ouro nas proximidades da fazenda. Estes
escravos, segundo o documento, não se afastavam muito das imediações da propriedade por temerem os
143
Carta do Conde de Noronha para João de Godoi Pinto da Silveira Arraial de Prairas 11 de
janeiro de 1754 (Goiás) , Biblioteca Nacional doc. 17 - 1,4,1 papeis vários.
144
Ibidem
145
Carta que Paulo Mendes Ferreira Campelo, Comandante do Arraial do Cuiethé enviou ao
Governador Valadares em novembro de 1769. Biblioteca Nacional 18,2,6 Arquivo Conde de
Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos)
82
“bugres” que por ali viviam.
146
Os “bugres” eram os indígenas que não haviam sido aculturados ou que eram
agressivos e ferozes.
Em seu testamento, Ignácio Correia de Pamplona
147
, afirmava ter gasto uma considerável soma com
as despesas feitas na expedição de 1769. Entre seus gastos havia o pagamento “...dos que andavam com a
corda...”, ou seja, eram índios prisioneiros de alguma tribo que foram comprados por Pamplona. De acordo
com a lei, estes se tornavam assim, propriedades do comprador por um período de tempo estipulado.
Um inventário de Sete Lagoas em 1832 nos informa que Manoel José Machado era proprietário de
36 escravos
148
. Destes, 23 eram de descendência africana e 13 eram indígenas, e aparecem identificados no
documento como sendo gentios. Dos 13 índios, 11 eram adultos e dois eram idosos, todos do sexo masculino,
e seus valores equiparavam-se com os dos escravos de descendência africana.
Este inventário é um indício de que a escravidão indígena foi usada durante muito
tempo em determinadas áreas. Infelizmente não há como sabermos a que grupo eles
pertenciam, mas é provável que sua aquisição tenha se dado através dos administradores
que controlavam os diversos aldeamentos espalhados em Minas Gerais, conforme visto
anteriormente. Era opinião corrente entre as autoridades leigas que os administradores
negociavam com fazendeiros a utilização de mão-de-obra indígena, em troca de um
aluguel que nunca ia para as mãos dos índios. O aluguel era algo legal, mas deveria ser por
um tempo determinado e com vencimentos. O que acontecia era que, na maioria das vezes,
os indígenas eram alugados e quem recebia os vencimentos eram os administradores.
Outro fator é que esses índios não eram devolvidos aos aldeamentos, acabando por entrar,
com o passar dos anos, nas listas dos escravos do fazendeiro.
Em alguns episódios, esta situação mudava um pouco. Em 1772, o índio João, vindo da Capitania do
Maranhão, que estava vivendo “debaixo das obrigações do mais rigoroso cativeiro” foi vendido pelo
Cônego Francisco Ribeiro da Rocha como cativo, juntamente com alguns bois e outros escravos, a Cipriano
Pereira de Azevedo. O Conde de Valadares, imediatamente ordenou que se soltasse o índio e lhe fosse
restituída a liberdade.
149
. Em novembro, os Cônegos Francisco e José Botelho foram presos devido ao
cativeiro ilegal do índio.
150
Por tudo isto, fica evidente que a questão da escravização de indígenas durante o século XVIII
precisa ser revista e pesquisada com maior profundidade. Mesmo que ela não tenha sido, neste momento, de
caráter estrutural como a africana, ela existiu e foi pelo menos em determinadas regiões da Capitania,
essencial aos projetos de colonização e povoamento.
146
Roteiro da paragem do rio Doce para Serra da Escadinha de 1770 - Arquivo Conde de
Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) documento 165 - 18,2,6
147
Testamento de Ignacio Correia Pamplona, de 1821. São João del Rei, Cx 100
148
Inventário de Manoel José Machado. Sete Lagoas, Minas Gerais. 1832. Arquivo Nacional- Rio
de Janeiro.
149
Carta de Conde de Valadares a João da Silva Tavares, em 3 de julho de 1772. Arquivo
Ultramarino. Cx. 103, doc 6, cd. 29 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
150
Carta de Conde de Valadares ao Marquês de Pombal. Em 20 de novembro de 1772. Arquivo
Ultramarino. Cx 103. Documentos 87, cd 30 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
83
Pode-se perceber, portanto, que os indígenas em Minas Gerais foram vítimas de políticas que
objetivavam transformá-los em uma reserva de mão-de-obra - quando pacíficos - ou exterminados em nome
do sossego público e da segurança do povoamento da região, com base em um corpo de idéias que justificava
a Guerra Justa. Desta forma, o povoamento, a criação de aldeamentos e as políticas de extermínio de alguns
grupos faziam parte de um mesmo contexto, qual seja, a do alargamento e manutenção do Império Colonial
Luso.
Entretanto, não eram apenas os indígenas que perturbavam o tal sossego público. Os negros também
faziam parte dos pesadelos da população.
84
II- Os negros e suas representações
A África e seus habitantes
A Bíblia relata que após ficar durante quarenta dias fechado na arca com sua
família e os casais de animais, Noé, uma vez baixadas as águas, resolveu dedicar-se à
plantação da vinha. Um dia, embriagado, deitou-se completamente despido e dormiu em
sua tenda. Seu filho caçula, Cam ali o surpreendeu e foi comentar com os irmãos, Sem e
Jafé. Estes, ao saberem do estado do pai, o cobriram sem olhar para seu corpo. Quando
Noé soube do que havia acontecido, em represália a atitude de Cam, amaldiçoou-o e a toda
sua descendência dizendo: “...Maldito seja Canaã, servo dos servos seja aos seus
irmãos”... Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo...”
151
.
Começava assim, pelo menos para o mundo Ocidental
Católico, a saga e o cativeiro do povo africano associado aos
descedentes de Cam. A partir desta história, a Europa Cristã
legitimava o cativeiro da África negra que, associado aos
ensinamentos religiosos, serviria para purificar este povo
amaldiçoado. Seria uma nova oportunidade para a redenção dos
pecados do passado.
Ainda que a Bíblia tenha criado a primeira justificativa para
o cativeiro dos africanos, não foi a única. Outras idéias que
procuravam legitimar a escravidão surgiram através dos viajantes
que percorriam aquele território desde o século XV. Suas
descrições sobre os povos, formas de vida e de relacionamentos
foram utilizadas pela sociedade cristã ocidental na elaboração de
diversas imagens sobre os negros, que foram sendo forjadas não
só nos contatos dos primeiros cronistas que visitaram a África,
mas também através de crenças desenvolvidas a priori ao próprio
contato. Iniciava-se assim, um lento processo de construção de
representações sobre este povo com o objetivo maior de legitimar
ou justificar a sua escravidão.
151
Bíblia Sagrada. Gênesis, capítulo 9, versículos 20 e ss.
85
Zurara, Cadamosto, Alphonse de Saintonge e Pacheco
Duarte Pereira, escrevendo entre o final do século XV e início do
XVI, são apenas exemplos de como seus discursos foram sendo
apropriados pelas elites para criar uma visão do que seria o
africano e de suas possíveis utilizações.
As primeiras representações eram carregadas de idéias confusas que envolviam aspectos reais e
mitos, fazendo com que o imaginário sobre a África ficasse envolvido nesta atmosfera. Para estes cronistas, a
África era uma região tão diferente do que eles já conheciam ou admitiam que seria mais do que plausível
existirem pessoas como as que Duarte Pereira descreveu ao tratar sobre o povo de uma região identificada
como a Província de Toom: “... E os moradores desta província tem rosto e dentes como cães, e rabos como
de cão, e são negros de esquiva conversação, que não querem ver outros homens...”
152
Ou a de Alphonse de Saintonge que, em 1544, após descrever os negros de Angola,
passou a relatar como seriam os habitantes do interior daquela região:
“... E au dedans de la Terre, bien loing, y a gens qui n’ont point de testes et est la test
dedans la poictrine, et toute la reste forme d’homme. Et plus en oriant y en a d’ autres Qui
n’ont que ung ocul au front. Et au septentrion les montagnes de la Lune, y en a d’autres
Qui ont les piedz comme de chièvre et aultres Qui ont visaige de chien et le reste forme d’
homme. Et de la Terre d’Angola vers le cap de Bonne Esperánce, vers ‘ austre midy, les
gens para la plus grand part, ne parlent point et ne font que sibler et ont forces beufz et
vaiches...”
153
Pode-se perceber que para estes autores, assim como outros de seu tempo, embora
já se soubesse que os habitantes da África eram homens, a crença de que pelo menos
alguns deles eram monstruosos e animalescos ainda se mantinha. Algumas destas imagens
foram, evidentemente, criadas antes dos contatos. Todavia, estes não foram suficientes
para acabar com as representações baseadas na crença e repletas de idealizações
oriundas do mundo medieval. Por mais que os Descobrimentos tenham empurrado os
europeus ao contato com outros povos e derrubado velhas crenças, as imagens arraigadas
152
PEREIRA, Pacheco Duarte. Esmeraldo de Situ Orbis. Lisboa: Academia Portuguesa de História.
1988. p. 107
153
SAINTONGE, Alphonso de. Cosmographic. Paris: Ed. De Georges Musset, 1904. P. 342. Apud.
RANDLES, W.G.L. L’image du Sud-est Africain dans la literature européenne au XVI siècle
.
Lisboa,. Centro de Estudos históricos Ultramarinos. 1959. p. 166
86
vindas do período medieval permaneceram, tornando-se necessário então, explicar as
diferenças encontradas de diversas maneiras
154
.
Um fator que, segundo Cadamosto, contribuía para a animalidade destes povos era o calor excessivo
de sua terra que impediria o desenvolvimento humano, animal, vegetal e cultural
155
. Era uma região difícil de
ser habitada por homens.
“... E no dito país [Meli] não há animais quadrúpedes, pois todos morrem; não há animais para cavalgar
nem para carga, porque não podem viver. E também muitos dos sobreditos árabes e azenegues adoecem no
dito lugar, e outros morrem, e isto por causa do grande calor...e por causa desse excessivo calor, em certo
tempo do ano, se lhes apodrece o sangue, de tal modo que se não fosse o remédio desse sal, morreriam...”
156
Em momento algum, Cadamosto afirma que o calor poderia também prejudicar os
negros habitantes da região. Somente os árabes e os azenegues, ou seja, os mouros, ambos
pardos, portanto, quase brancos, sentiriam as agruras do clima. Pode-se deduzir que para
Cadamosto, os negros não eram totalmente homens já que conseguiam viver sem maiores
problemas na região. Eram tão primitivos que sua humanidade ainda não havia se
desenvolvido completamente e caberia aos cristãos acelerar este desenvolvimento, mesmo
que para isso utilizassem o cativeiro, pois, “...que pero a eles parecesse que vivendo assim
viviam livres, em muito maior cativeiro jaziam seus corpos...”
157
Para estes cronistas, os negros haviam sido enganados pelos árabes e caberia aos cristãos a missão
de salvar estas almas perdidas através da verdadeira religião.
“...circoncisos sem saberem a razão porque a tal circoncisão fazem e costumam; somente dizem que o fazem
por andarem limpos, e outros dizem que não fariam geração se se não circoncisassem, outros que assi o
costumaram seus padres...”
158
Um outro elemento que caracterizaria o estado bruto e primitivo do africano era o seu corpo. Este
era observado e rotulado como disforme e horrível. O povo Azenegues
159
, pardo e simpatizante do
154
RODRIGUES, José Honório. A imagem da África. In: Brasil e África; outro horizonte. Rio de
Janeiro: Ed. Civilização Brasileira. Vol. 1 p. 2
155
CADAMOSTO, Luis de . Viagens de Luis de Cadamosto. Lisboa: Academia Portuguesa de
História. 1988. p. 108
156
Ibidem
157
ZURARA, Gomes Eanes. Crónica de Guiné. Lisboa: Livraria Civilização Brasileira, 1994.p.
283
158
PEREIRA, Pacheco Duarte. op. cit. p. 116
159
Azenagues era um povo que vivia nos limites com a parte negra da Africa e que mantinha
intenso comércio tanto com estes como com os árabes. Eram pardos e professavam a fé
maometana. No início, os portugueses os aprisionavam e os vendiam como escravos, mas depois,
houve um acordo e passaram apenas a negociar com eles.
87
maometismo, relatou para Cadamosto como era um povo negro com quem estes comercializavam o sal de
pedra. Relataram que,
“... eram homens muito pretos e bem formados de corpo, e maior um palmo do que eles; e têm o lábio
inferior com mais de um “somesso” [medida italiana] de largo, o qual cai até o peito,
grosso e vermelho,
mostrando pela parte de dentro deitar como que sangue; e o lábio de cima tinha no pequeno como os seus.
Em razão da qual forma dos lábios, mostram a gengiva e os dentes, que diziam ser maiores que os seus; e
[diziam] ter aos lados dois grandes dentes e [que] tinham dois olhos grandes e negros; e que eram terríveis
de aspecto; e que as gengivas deitavam sangue, tal como o lábio...”
160
Esta descrição é interessante em vários aspectos. Mesmo para os que viviam no território africano,
os habitantes negros eram percebidos como diferentes. Provavelmente, o mesmo poderia ser identificado
numa relação inversa: os povos negros também deveriam ver os claros que viviam ali como seres ‘diferentes
e feios’. Cada grupo via o outro exatamente desta forma, como “o outro”
161
; e um outro disforme.
Os Azenegues viam os lábios dos negros como excessivamente grandes, grossos e vermelhos, e os
dentes também muito grandes. Possuíam dois olhos, entretanto, eram “grandes e negros”. O resultado desta
combinação de traços é que eles eram “terríveis de aspecto” - eram diferentes. A descrição feita pelos
Azenegues se pauta na diferença. Eles são descritos com elementos que os distanciam destes. Pode-se inferir
deste discurso que a lógica que pautava o raciocínio dos Azenegues era a de que eles não eram negros e nem
disformes. Pelo contrário, se assemelhavam com os europeus. Logo, não deveriam ser escravizados. Os
outros, sim.
A diversidade entre corpos negros, pardos e brancos ficou muito evidente em Zurara quando,
descrevendo um grupo heterogêneo que havia sido aprisionado, assim se referiu:
“...era uma maravilhosa cousa de se ver, que entre eles havia alguns de razoada brancura, fremosos e
apostos; outros menos brancos, que queiram semelhar pardos; outros tão negros como etíopes, tão
desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quase parecia, aos homens que os esguardavam, que
viam as imagens do hemisfério mais baixo...”.
162
Percebe-se que os homens que se aproximavam fisicamente dos europeus não receberam nenhum
adjetivo negativo. Entretanto, os negros eram “desafeiçoados”. Novamente, a diferença impera e serve como
elemento definidor de padrões físicos, aceitos ou não.
Com relação aos aspectos culturais, Zurara descreve os habitantes da África como homens que:
“...viviam em perdição das almas e dos corpos... das almas, enquanto eram pagãos, sem claridade e sem
lume da Santa Fé; e dos corpos, por viverem assim como bestas sem alguma ordenança de criaturas
razoáveis, que eles não sabiam que era pão nem vinho, nem cobertura de pano, nem alojamento de
casa...”
163
As descrições feitas por Cadamosto, por Alphonse de Saintonge e por Pacheco Pereira no que se
refere aos seus hábitos e cultura assemelham-se as de Zurara e todas são pautadas pela ausência. Seus reis
não se pareciam em nada aos reis cristãos
164
. Sua cultura material era pobre, não usavam pedras, cal, ferro,
aço ou navios
165
. Não havia edifícios e suas casas eram de palhas
166
. Sua fé era instável
167
. Não havia leis.
168
Faziam guerras uns aos outros
169
. E alguns, eram antropófagos
170
. Sobre este último “defeito” é curiosa esta
imagem do século XVI:
160
CADAMOSTO, Luis de. op. cit. p. 111 e 112
161
TODOROV, T. op. cit
162
ZURARA, Gomes Eanes. op. cit. p. 122
163
ZURARA, Gomes Eanes. op. cit. p. 126
164
CADAMOSTO, Luis de. op. cit. p. 117
165
Ibidem
166
PEREIRA, Pacheco Duarte. op. cit. p. 118
167
ZURARA, Gomes Eanes. op. cit. p. 124
168
CADAMOSTO, Luis Eanes de. op. cit. p. 147
169
PEREIRA, Pacheco Duarte. op. cit. p. 97
88
Figura 14-Africanos antropofágicos
Fonte: “Os íncolas do Reino do Congo e os Anzicos”. Gravura da obra Relatione del
Reame di Congo de Pigafetta e Duarte Lopez. 1591
Esta gravura poderia representar uma cena do cotidiano africano se não fosse o
detalhe ao fundo mostrando uma espécie de depósito de carne humana. O responsável
pelo “depósito” está calmamente repartindo um corpo de um homem e pendurando as
partes de forma que fiquem visíveis. A partir desta informação pictórica, a cena posterior
pode assumir dois significados: trata-se de uma cena de caça ou de combate, onde um dos
presentes será o próximo a ocupar os ganchos do “depósito”. O que teria levado o autor
da imagem a representá-la? Teria assistido algo parecido ou tudo não passaria de sua
imaginação ou da vontade de impressionar com uma história portadora de elementos mais
170
Ibidem p. 171 e ZURARA, Gomes Eanes. op. cit. p. 212
89
violentos? Infelizmente, não há qualquer menção que possa explicar a imagem, mas a
mensagem moral e didática passada pelo quadro é muito clara: os africanos além de tudo
o que já se sabia, eram antropófagos. Logo, o cativeiro tornava-se ainda mais essencial
para a salvação destas almas...
Para os europeus, Azenegues, “gente pobre, mentirosos, ladrões, traidores e com mal cheiro”, ou
negros, “gente selvagem, muito pobre, porcalhões, luxuriosos e idólatras” eram, em sua maioria, feras que
precisavam conhecer a civilidade para passar a um nível mais evoluído da humanidade. Esta civilidade só
seria conseguida através dos contatos com os europeus, da aceitação da verdadeira religião e das trocas feitas:
trocava-se ouro e escravos por agrados e presentes.
Mesmo tendo abandonado a idéia inicial de que os africanos eram monstros, com
metade do corpo de homem e a outra de animal, os europeus e mais precisamente, os
portugueses, em momento algum conseguiram ver o africano como um povo semelhante.
Ele sempre foi o outro. E um outro inferior. Daí para a escravidão, foi um passo muito
pequeno.
Todas estas imagens preconceituosas chegaram à Europa e rapidamente se
espalharam pelo seu mundo colonial, justificando a escravidão deste povo em função de
sua inferioridade racial, religiosa e cultural. Eram povos que estavam na perdição.
Precisavam do cativeiro físico para se libertar de um outro, ainda maior e de piores
conseqüências: o da alma. A escravidão serviria, portanto, para libertá-los do jugo da
barbárie. Zurara, por exemplo, justificava a escravidão negra associando-a com o
comportamento não civilizado das tribos. Os africanos eram para ele “...seres
pecaminosos, bestiais, e, por isso, naturalmente destinados à servidão...”
171
Como conseqüência de todas estas elaborações, as imagens que os colonos e mais
tarde, os brasileiros fizeram destes cativos foram profundamente influenciadas por estas
idéias. Através de práticas cotidianas e de relações pautadas na dominação, a população
acabaria tendo contato com estas imagens que criavam, principalmente, a noção de
superioridade da raça branca sobre a negra. Esta era diferente e contrária à dos brancos
90
e, em função disto, poderia ser escravizada. Logo as descrições passaram a ser não mais
do africano, mas sim de uma nova personagem recriada pela modernidade: o cativo.
Tornava-se necessário explicitar quem era e porque deveria viver sob a sujeição do
cativeiro. Para isso, os letrados do período colonial foram essenciais.
A sociedade letrada e o cativeiro negro no Brasil: o bom e o mau escravo
Para os escritores que trataram sobre a colônia, a escravidão africana era imprescindível para a
manutenção e desenvolvimento da terra. Ter escravos era um dos requisitos básicos para quem quisesse
tentar a sorte e tornar-se senhor de engenho e de homens.
Estes escritores eram, em sua maioria, jesuítas que vieram para a colônia catequizar os indígenas.
Consequentemente, a sua liberdade era básica para que seu projeto de ampliação do número de almas
convertidas ao cristianismo fosse levado a efeito. Para eles, somente a escravidão africana seria aceitável e
até louvável, já que retiraria os africanos de seu estado bárbaro e lhes ensinaria a verdadeira religião. Assim,
percebe-se que para estes autores religiosos haveria duas propostas: aos índios, a catequese; aos negros, o
cativeiro.
O tráfico negreiro, era visto pelos jesuítas da mesma forma: era imprescindível ao bom andamento
da economia, quer da África, quer do Brasil. Desta maneira, a carta que o Padre Luis Brandão, reitor do
Colégio de Luanda, enviou à Alonso de Sandoval, de Cartagena de las Índias em agosto de 1611, é
significativa porque demonstra claramente as concepções acerca do tráfico, da escravidão e do que seria
legítimo em termos de cativeiro:
“... Nós mesmos que vivemos aqui já faz quarenta anos e temos entre nós padres muito doutos, nunca
consideramos este tráfico como ilícito. Os padres do Brasil também não, e sempre houve, naquela província,
padres eminentes pelo seu saber. Assim tanto nós como os padres do Brasil compramos aqueles escravos
sem escrúpulos... Na América, todo escrúpulo é fora de propósito...É verdade que quando um negro é
interrogado, ele sempre pretende que foi capturado por meios ilegítimos. Mas por esta resposta ele quer
obter sua liberdade: por isso nunca se deve fazer este tipo de pergunta aos negros....”
O padre até acreditava existir alguns poucos casos de cativeiros feitos de maneira injusta, mas,
“...estes não são numerosos e é impossível procurar estes poucos escravos ilegítimos entre os dez ou doze
mil que partem a cada ano do porto de Luanda...” Assim, concluía o padre, “... Não parece um serviço a
Deus perder tantas almas por causa de alguns casos de escravos ilegítimos que não podem ser
identificados...”
172
Percebe-se que nas primeiras obras sobre a colônia, as colocações acerca do cativeiro negro fazem
parte de uns poucos comentários dispersos, e em obras que não objetivavam discutir esta questão. Este
tópico surge como um comentário, sem qualquer crítica ou análise, apenas constatam um fato aceito e
171
SAUNDERS, A .C. de C.M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal. Lisboa:
Presença. S/data. p. 66
172
SARAIVA, A . J. Le père Antonio Vieira er la question de l’esclavage des noirs au 17e siècle.
In: Annales, (Economies, Sociétés et Civilizations),1967 citado por HOORNAERT, E. et alli.
História da Igreja no Brasil. Primeira época
. Petrópolis, Ed. Vozes, 1992. p. 273.
91
necessário
173
. A preocupação é mostrar, à Coroa, as riquezas e as maravilhas da terra, incentivando assim a
vinda de novos colonos.
174
Esta situação só mudará a partir de fins do século XVII e início do seguinte, quando diversos
escritores iniciam uma série de análises sobre a escravidão e a sociedade formada a partir de sua influência
direta. São deste momento as obras de Antônio Vieira, Antonil (1711), Benci (1705), Manoel R. da Rocha
(1758), Rocha Pita (1730), Domingos Loureto Couto (1758), Azeredo Coutinho (1798) e outros, que
passaram a fazer parte das leituras de um corpo muito restrito desta sociedade. Entretanto, as idéias nelas
contidas atingiam a população através de sermões, discursos, ou mesmo de comentários que circulavam entre
as pessoas.
Para todos esses cronistas, a escravidão africana era legítima porque seria uma salvação para o
pecado original
175
, ou ainda uma eleição feita por Deus. Este, na realidade, estaria usando os negros, criados
à imagem e semelhança de Cristo, para salvar a humanidade através do seu sacrifício.
176
. Uma explicação
mais prática foi dada por Antonil
177
, para quem a escravidão seria legítima porque sem ela não se conseguiria
criar riquezas no Brasil. Uma outra justificativa, agora de natureza jurídica, foi dada por Manoel R. da
Rocha
178
. Para ele, a escravidão era justa desde que as práticas de apresamento também o fossem. Azeredo
Coutinho acreditava que era legítima porque na África a escravidão sempre havia existido e seria melhor os
europeus comprarem os cativos, porque caso contrário, seriam vendidos aos mouros e/ou continuariam
vivendo debaixo da licenciosidade em que sempre viveram.
179
Justificava também que:
“... saber tirar vantagem do trabalho dos homens e aproveitá-los é um dos primeiros objetos da grande arte
de governar; aqueles povos estão ainda muito longe desta perfeição...”
180
Ainda que divergissem sobre as causas da legitimidade da escravidão africana, todos concordavam
em um ponto: ela era legítima e caberia a eles, homens cultos e formados na religião cristã, mostrar o
caminho para ordenar da melhor forma esta sociedade. Com este objetivo em mente, cada um procurou
ensinar os melhores métodos para se atingir este fim. Através destes textos, pode-se perceber as diversas
imagens que construíram sobre os negros. É este o ponto que nos interessa.
Em 1705, foi publicada a obra de Benci, e ele, assim como os demais escritores de sua época, via os
escravos como brutos e boçais. Acreditava, inclusive, que “ ... entre essas gentes há gente que mais tem de
bruto, que de gente...
181
Eram viciosos e, somente através do trabalho se conseguiria controlá-los. Com o
objetivo de exemplificar, utiliza-se de uma comparação:
“... Assim como o ginete necessita de espora e o jumento do freio para serem governados, assim os
imprudentes e maus necessitam da vara e do castigo para que sejam morigerados como devem, e não faltem
a sua obrigação...”
182
A comparação é clara. Assim como os jumentos e os ginetes precisam do jugo e das rédeas para
serem controlados, os cativos precisariam do trabalho contínuo. O trabalho seria uma forma de domesticar o
negro para que “...não se fi[zessem] insolentes e para que não bus[cassem] traças e modos com que se
livr[assem] da sujeição de seu senhor, fazendo-se rebeldes e indômitos...”
183
Além do que, a labuta do negro
173
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil
colonial. Petrópolis: Ed. Vozes, 1986. Cap. 3
174
Ibidem p. 66
175
BENCI, J. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. Porto: Livraria Apóstolado
da Imprensa, 1954.
176
VIEIRA, Antonio. Sermão 26. apud: CIDADE, H. (ed). Padre Vieira (sermões). Lisboa, 1940,
v. III p. 25
177
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo;
Edusp, 1982. Capítulo 1.
178
ROCHA, Manoel Ribeiro da. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e
libertado. Petrópolis, Vozes Ed. 1992.
179
COUTINHO, J.J. da Cunha Azeredo. Análise sobre a justiça do comércio do resgate de escravos
da Costa da África. In: Obras econômicas
. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1966.
180
Ibidem p. 274
181
Ibidem p. 66
182
BENCI, J. op. cit. p. 158
183
Ibidem .p. 155
92
seria um descanso para o senhor: “... só trabalhando eles, pode viver descansado o senhor...”
184
. O negro
que trabalhasse durante o dia não pensaria em maneiras de fugir, apenas iria querer descansar à noite. O ócio
era perigoso pois levava à perda de controle por parte do senhor e ao desregramento moral:
“... o ócio é a escola onde os escravos aprendem a ser viciosos e ofender a Deus... E como os pretos são sem
comparação mais hábeis para o gênero de maldades que os brancos, por isso, eles com menos tempo de
estudo saem grandes licenciados do vício na classe do ócio...”
185
Os escravos eram também pecadores, inferiores aos brancos e portadores de
uma sensualidade desenfreada. Para ele,
“... Sendo os Africanos tão inclinados por natureza ao vício da sensualidade ... não faz dúvida que os etíopes
excedam na lascívia. A razão desta grande propensão dos pretos à impudicícia não só lhes vem do clima
quente em que nascem mas muito mais do pouco temor de Deus e pejo dos homens, que neles há...”
186
Novamente, o clima quente surge como uma justificativa, dentre outras, para explicar a aparente
diferença entre os negros e os brancos. Entretanto, esta suposta diferença estava cada vez menos latente.
Benci, e outros antes e depois dele, afirmava que a razão da vida desenfreada que os cativos levavam no
Brasil era o exemplo que partia da classe senhorial. Os cativos não tinham bons exemplos para seguirem.
“... Daqui se pode inferir qual é a principal causa da escandalosa vida com que ordinariamente vivem os
escravos e escravas do Brasil. Mas como não há de ser assim, se nos senhores e senhoras não vêem
exemplos de cristãos, senão escândalos próprios de gentios?”
187
O que se percebe do discurso de Benci é que, para ele, o cativo é um ser inferior, uma espécie de
criança. Caberia ao senhor educá-lo na obediência a si e a Deus. Ao cativo, restava aproveitar esta
oportunidade e tornar-se um verdadeiro homem.
Antonil, cuja obra foi publicada em 1711, elaborou uma tipologia dos escravos que vinham para a
Colônia e mostrou cada etnia com características diversas que as tornariam mais ou menos aptas para
determinados serviços. Entretanto, alguns cativos não conseguiam melhorar em nada sua natureza e
permaneciam boçais durante toda a sua existência: “ ...uns mais boçais que outros...”
188
. Mas alguns, ainda
que chegassem rudes ao Brasil, com o tempo acabavam ficando ladinos e aptos para aprenderem a doutrina
cristã
189
e para desenvolverem vários serviços. Mas, para ele, os melhores para quaisquer serviços eram os
mulatos. O problema é que eram “...soberbos e viciosos...”
190
e acreditavam ser muito valentes. As mulheres
mulatas conseguiam alforrias e ganhavam dinheiro através do uso de seus corpos, utilizando assim, a
vantagem da cor.
Desta maneira, pode-se perceber que para Antonil, haveria distinções entre os africanos e os
crioulos. Estes eram mais socializados que os primeiros e, consequentemente, se prestavam melhor ao
trabalho e ao cativeiro, embora possuíssem características muito negativas: eram soberbos e viciosos.
Manoel Ribeiro da Rocha teve sua obra publicada em 1758 e, preocupado em criar um labirinto de
idéias que justificassem o tráfico e, por conseguinte, a escravidão, deixa transparecer em seu texto uma
imagem do africano como sendo gentio, bárbaro, pagão, inferior, idólatra, e que só será salvo através do
resgate
191
. No Brasil, estes africanos resgatados deveriam ser tratados pelos senhores como sendo apenas um
jure pignoris, ou seja, um direito de penhor e não de propriedade. Utilizando a fórmula de Benci, Manoel
Ribeiro da Rocha prossegue o texto narrando como este resgatado deve ser educado no modelo cristão.
184
Ibidem
185
BENCI, J. op. cit. p. 158
186
Ibidem p. 160
187
Ibidem p. 90
188
ANTONIL, A . J. op. cit. p. 89
189
ibidem
190
ibidem
191
ROCHA, Manoel Ribeiro da. Op. Cit.
93
O que se identifica em todos esses autores é que o escravo tratado não possui qualquer
individualidade e nem elementos que o diferencie dos outros. A exceção é Antonil que traça algumas
distinções entre as etnias, transformando-as em mais ou menos aptas a determinados tipos de trabalhos. De
uma maneira geral, o que se discute nestas obras, é uma visão geral sobre a escravaria e em todos estes
autores, a imagem feita sobre o cativo é sempre negativa: ele é o boçal, o bruto, a besta, o bárbaro, o vicioso,
o sexualmente desregrado, o rebelde e outras colocações depreciativas. Cabe ao senhor e ao próprio cativeiro,
moldar este ser e transformá-lo em um verdadeiro cristão.
A visão que a população no século XVIII tinha sobre os negros não era muito
diferente destas apresentadas acima. Estes negros eram quase sempre vistos como
inimigos, posto que eram bárbaros e não entendiam que o cativeiro era a sua única chance
de ingressar no mundo civilizado. O documento a seguir é uma pérola para a percepção de
como a sociedade percebia o negro de uma maneira geral. Ao mesmo tempo em que ele era
essencial ao sistema, gerava na população um pânico em função de suas revoltas, fugas e
outros mecanismos utilizados para acabar com a exploração sofrida.
“Senhor
Representa um vassalo amante da pátria e desejoso que se propague a Conquista
Portuguesa e se estenda a Monarquia com aumento da Santa Madre Igreja para maior
glória de Deus, ... Porém leal e justamente devem por na presença de V. M. com a mais
humilde submissão o risco em que deixam suas mulheres e filhas nas mãos dos inimigos
mais perniciosos porque sendo estas Minas só cultivada com gente preta bárbara de
África e Guiné, que todos moradores possuem, uns mais, e outros menos conforme suas
posses com a sujeição de cativos pelos comprarem naquela região ... e estando as mesmas
Minas tão abastadas destes bárbaros, ainda que de mestiço a força do temor e inclinados
só a fazerem mal e matarem os brancos, que julgam capitais inimigos, pelo privar da
liberdade, e contando-se para cada um branco mais de cem etíopes, que como bárbaros
impelidos da sua natural fereza, tem por várias intentado despojar-nos das próprias vidas,
e nossas mulheres e filhas cativarem...”
192
Para o autor do documento, a utilização maciça da população africana, vista como
bárbara, em Minas Gerais, provocava grandes problemas de ordem interna. Ainda que seja
um texto voltado para problemas mineiros, é possível identificar as principais idéias sobre
os negros presentes no século XVIII de uma maneira geral: eles eram bárbaros, só se
94
domesticavam através do medo. Ou seja, para subjugá-los, somente utilizando meios
violentos, porque acreditavam que os brancos eram seus inimigos já que os mantinham em
escravidão; eram feras; matavam os brancos, e não mereciam piedade em caso de
efetuarem ataques às populações brancas e senhoriais. Para controlá-los, somente a
criação
“...em todas as povoações certo número de Capitães dos Matos pagos pelos povos e que
estes sem a mínima piedade matassem todos os negros que encontrassem armados fora do
domínio de seu senhor ... e mandando os mesmos senhores que lhes não permitissem
ajuntamentos nem ... nas quais maquinavam a intestada sublevação recomendando aos
Capitães das Ordenanças fizessem assim praticar com graves penas aos
transgressores...”
193
Continua afirmando que a solução seria “...acrescentando o número de brancos
para maior terror dos negros ... ainda que tem experimentado vários assaltos dos mesmos
negros que andam dispersos pelos matos e brenhas com algumas malocas fugidos do
domínio de seus senhores cometendo vários insultos de roubos e mortes e atrevendo-se a
povoações que suspeitam menor fortificadas para a defesa e fazendo séquitos de maior
força para o seu intento naquelas paragens que julgam serão menos perseguidos onde tem
multiplicado levantando casas e fazendo-se fortes para defesa vivendo sem lei nem
obediência as Leis de Sua Majestade e menos os preceitos da Igreja principalmente onde
chamam Campo Grande que confina com a Capitania de São Paulo, onde não é fácil
combatê-los sem avultada despesa...”
194
A maior conseqüência deste quadro de calamidades, seria que “...Estes
[quilombolas] e os domésticos vendo se diminuir o número de brancos e que seguem para
fora das Minas certamente nos cometem e seremos por falta de forças entregues em suas
mãos sem esperança de remédio vindo-se a seguir terrível perda de umas Minas que pelos
seus haveres de ouro e pedras preciosas faz a nossa nação temida ...”
195
A clara associação entre escravos e africanos presente neste e em outros documentos, remete à
questão de como a africanidade era percebida pela população e pelas autoridades mineiras. Via de regra, ela
era perigosa para o sistema. O Conde de Assumar tinha isto muito claro em suas análises. Para ele, um dos
192
APM SC 218 fls. 191-193
193
ibidem
194
ibiem
195
ibidem
95
grandes perigos para a eclosão de revoltas escravas, era as uniões possíveis entre os cativos. Para evitar isto,
determinou que não fossem aceitos padrinhos negros para os cativos batizados, pois,
“...a maior parte dos negros que se batizam tomam por seus padrinhos outros que nas suas terras são de ...
mais autoridades... e parentes dos régulos que os governam a quem reconhecem algum gênero de
superioridade e lhes ficam tão subordinados que não somente lhes obedecem quanto lhes é possível muitas
vezes lhes entregam os jornais de seus senhores sem temer o castigo que por esta causa recebem, e são
deles favorecidos nas suas fugidas...”
196
.
Uma das piores conseqüências destas relações entre africanos era, para Assumar, a possibilidade
deles manterem entre si relações de hierarquias e de domínio, favorecendo assim, a obediência dos cativos e
facilitando a formação de quilombos:
“...tendo-se considerado os grandes prejuízos que sucedem de terem os negros ou negras escravos ou forros
domínio algum sobre outros negros, ou negras e de fazer atos por donde estes reconheçam algum gênero de
subordinação aos primeiros a experiência tem mostrado que nas vilas e mais partes onde há muitos negros
juntos se encontram alguns que foram filhos ou parentes dos régulos das suas pátrias que indiferentemente
os vendem: a estes tais tomam quase todos por padrinho no sacramento do batismo e matrimônio por cuja
causa lhes tem subordinação e respeito o que redunda em fazerem-se capatazes e formar séquito metendo-se
pelos matos em quilombos governados por eles...”
197
Estas relações perigosas entre africanos podiam ser vistas também, segundo Assumar nas vendas.
Lá, mulheres africanas forras, consideradas pelo Governador como depravadas, favoreciam os negros fugidos
ou não:
“...para melhor convidarem o concurso dos negros da sua nação,,, e recolhendo de noite negros fugidos
roubando-os e fazendo-lhes gastar os jornais de seus senhores... aos quilombos de negros fugidos que nas
casas destas depravadas fazem seus ajuntamentos...”
198
.
Se para a população branca, os negros por si só já representavam perigos reais a suas vidas, o que
não dizer quando estes mesmos negros organizavam-se em padrões sociais mantendo características
africanas? Significava em última análise que mesmo sob o aparente controle, eles conseguiam burlar a
vigilância. E isto era muito perigoso para os senhores.
Percebe-se em todos os documentos acima que mesmo havendo uma grande preocupação por parte
das autoridades com a sujeição dos escravos, havia também uma falta de preocupação com o cativo enquanto
indivíduo. Todavia, isto mudava radicalmente quando ele não aceitava passivamente sua condição e fugia.
Neste momento era necessário descrevê-lo de outra forma, com outras características que não aquelas gerais
vistas acima. Era necessário individualizá-lo, oferecer detalhes físicos ou mesmo psicológicos. Estas
características individuais olhadas em conjunto graças aos anúncios que eram publicados nos diversos jornais
da época, permitem traçar uma visão sobre o negro que conseguia fugir do sistema.
196
APMSC - SG Cód. 04 fls.740 - 748
197
APMSC - CMOP Cód. 06 fls. 17 - 19.
198
APMSC - SG Cód. 04 fls. 740 - 748
96
O escravo fugitivo e os anúncios do Jornal “O Universal”.
Conforme visto anteriormente, as imagens que a sociedade colonial e depois, a brasileira, criou
sobre os cativos eram oriundas, na realidade, de tempos remotos, dos séculos XV e XVI, quando os europeus
e, mais precisamente, os portugueses tiveram os primeiros contatos com o mundo africano. Todas estas
imagens que associavam os negros a seres inferiores, disformes, primitivos e outros adjetivos pejorativos,
permaneceram no decorrer do tempo e, ainda no século XIX podiam ser encontradas no discurso cotidiano da
população. A longa duração neste caso, é essencial para a percepção desta manutenção de imagens negativas
sobre a população negra. É ela que, segundo Vainfas, “...permite acompanhar a lenta maturação das idéias,
revelando-nos o movimento, mas também a inércia...”
199
É em busca desta maturação das idéias sobre os negros que serão analisados os anúncios de um
jornal mineiro intitulado “O Universal”. Os anúncios foram publicados entre 1825 a 1832, perfazendo
durante estes sete anos, um total de 65 anúncios. O objetivo neste momento não é fazer um levantamento
exaustivo deste tipo de fonte. Na realidade, pretende-se apenas fornecer um pequeno panorama acerca de
como esta sociedade lidava com seus escravos fugitivos e, principalmente, identificar através dos anúncios, a
visão produzida e perceber a permanência das idéias anteriores na construção de imagens sobre escravos
fugidos no decorrer do tempo.
Figura 15-Anúncio do Jornal O Universal
199
VAINFAS, R. op. cit. p. 21
97
Fonte: O UNIVERSAL. Ouro Preto. 25.5.1836. p. 4
Pode-se dizer que o jornal tem um perfil que tende à crítica ao governo
monárquico. São comuns as notícias de Paris e as sátiras ao governo, mostrando suas
deficiências e inoperância. Entretanto, as matérias mais agressivas são sempre assinadas
por pseudônimos e o jornal faz questão de deixar claro que não tem qualquer tipo de
responsabilidade sobre elas.
Os anúncios de escravos fugidos estão colocados, quase sempre, na última página com a caixa e a
letra um pouco menor que o do restante do periódico. Eles aparecem com o título “aviso” ou “anúncio”.
Nos 65 anúncios publicados, identificou-se um total de 106 escravos fugidos. Destes, 99 referiam-se
a cativos do sexo masculino (93.40%) e apenas 7 eram mulheres (6,60%).
Tabela 1- Distribuição segundo sexo e etnia dos escravos anunciados no “O Universal”
Sexo Africanos % Crioulos % Total %
Homens 54 54.54 38 38.39 99 93.40
Mulheres 5 71.43 2 28.57 7 6.60
Total 59 55.66 40 37.74 106 100.00
Fonte: O Universal – 1825-1832
98
Esta realidade não é muito diferente da encontrada por Luna
200
, ainda que em épocas diferentes. Ao
analisar a estrutura de posse de escravos para o período de 1718 a 1804, chegou a números expressivos
quanto à diferenciação dos sexos dos escravos nas Vilas de Pitangui, Serro do Frio, Sabará, São Caetano e
Vila Rica. O citado autor encontrou nas fontes por ele utilizadas
201
, um total de 11.986 homens e apenas
3.508 mulheres.
A esmagadora maioria de homens entre os fugitivos nos anúncios e na estrutura de
posse analisada por Luna, não deve ser explicada somente pelo fato de que eram
predominantes no conjunto da escravaria. A presença pouco marcante de mulheres, sejam
elas crioulas ou africanas, no contingente de fugitivos, deve ser também questionada a
partir das suas relações familiares. O motivo principal para tão baixo resultado, se
comparado com os homens, é provavelmente o estabelecimento de laços familiares fortes o
bastante para evitar as fugas e, principalmente, a existência de crianças que dependeriam
delas. No caso mineiro há ainda a grande possibilidade de alforrias conseguidas pelas
mulheres, desencorajando-as a partir para uma atitude tão radical como a fuga. Segundo
Luna e Cano
202
, a grande diferença entre homens e mulheres, mesmo para a população
livre, favorecia as relações entre senhores e escravas, “...conferindo a elas e às suas crias,
maiores chances de serem alforriadas”.
203
Os anúncios do Jornal “O Universal” demonstraram que mesmo em um conjunto tão pequeno de
cativos, a proporção de escravos africanos era maior que a de crioulos. Novamente estes dados estão em
consonância com pesquisas demográficas feitas para Minas Gerais.
Com relação à procedência dos escravos, Luna identificou que a imensa maioria era formada por
africanos, (12.046) enquanto que os crioulos perfaziam um total de 3.275 cativos. Contudo, salienta que entre
os anos de 1718 a 1738, o percentual de africanos dentre a massa escrava flutuou em torno de 82,2 %, em
Pitangui, a 94,9% em Serro do Frio, mas que estes índices sofreram um processo de declínio a partir de
1771, ocasionado pela diminuição da mineração e aumento dos nascimentos de escravos na colônia.
Os anúncios do Jornal aqui analisado mostram uma realidade bastante próxima à encontrada por
Luna no que se refere à divisão étnica dos cativos. Este autor percebeu que a diferença entre africanos e
crioulos tendeu a uma progressiva diminuição no decorrer dos anos. Esta mesma diferença foi identificada
por Almeida
204
, ao analisar os inventários post mortem da Vila de Mariana entre os anos de 1750 a 1850. A
autora percebeu que a razão de africanidade entre os cativos também tendeu a um declínio. Assim, em 1750
esta razão era de 157,8 africanos e em 1850, a taxa já havia caído para 37,9. O que significam estes dados?
Almeida acredita que eles podem ser explicados principalmente pelo crescimento vegetativo dos escravos
crioulos.
200
LUNA, Francisco Vidal. Estrutura da posse de escravos . In: Minas Colonial: Economia e
sociedade. São Paulo: FIPE e Pioneira Ed. 1982
201
Livros de arrecadação dos quintos e censos populacionais.
202
LUNA, Francisco V. e CANO, Wilson. Economia escravista em Minas Gerais. In: Cadernos do
IFCH-UNICAMP. Campinas, n. 10, out. 1983
203
ALMEIDA,Carla Maria Carvalho de. Alterações nas unidades produtivas mineiras:
Mariana,1750-1850. Niterói, 1994. Dissertação (Mestrado em História) - UFF.
204
ibidem
99
Assim também, os anúncios do jornal “O Universal” demonstraram que, à exceção dos sete fugitivos
sem qualquer indicação de suas procedências (6,60%), a diferença entre africanos e crioulos era
significativa. Havia um total de 59 africanos (55,66%) e 40 crioulos (37,74%). O que levaria um escravo
africano a fugir mais do que um crioulo? Uma explicação possível seria a sua socialização junto aos demais
escravos. Normalmente o africano era inserido no contingente de cativos através do tráfico já em fase adulta,
pois o sistema privilegiava claramente homens adultos aptos para o trabalho. Chegando à fazenda, era
considerado pelos demais escravos como mais um inimigo, já que seria mais um candidato às poucas
mulheres existentes.
205
Além disso, era um “boçal”, pois não conhecia a língua e os costumes e, agravando
ainda mais a sua situação, o africano chegava sem seus laços parentais.
Com o crioulo ocorria exatamente o contrário. Ele era inserido no sistema basicamente através do
nascimento, portanto, com ligações parentais fortes o bastante para conferir-lhe algum tipo de suporte
emocional. Mesmo aquele inserido já adulto através de compra, não era um inimigo, posto que não era um
estranho. E, principalmente, sabia manejar com certa habilidade os valores que se esperavam que ele
possuísse. Entretanto, mesmo reconhecendo todos esses valores, ou talvez, exatamente por tê-los, o escravo
crioulo também fugia em proporções elevadas.
Um desses valores que os crioulos dominavam era, sem dúvida, o conhecimento de uma profissão.
Entre os 106 escravos anunciados, apenas 15 fugitivos tinham algum tipo de especialização profissional.
Todos homens. Destes, 12 eram crioulos. O que podem significar estes números? O que primeiro chama a
atenção é o fato de sugerirem que para o crioulo, portador de uma cultura mais adaptada aos padrões
coloniais, conhecedor da língua e integrante de redes sociais amplas e estáveis, era mais fácil o aprendizado
de uma profissão.
Tabela 2- Distribuição das profissões dos escravos segundo suas etnias
Profissão Africano Crioulo Total
Boleiro, cozinheiro, lavador e engomador 0 1 1
Ourives, carpinteiro e outros ofícios 0 1 1
Vários ofícios, tece, sapateiro, trabalhador na cana-de-
açúcar
0 1 1
Oficial de alfaiate
0 3 3
Oficial de carpinteiro
1 3 4
Oficial de ferreiro 0 1 1
Valeiro 1 0 1
Lavador de ouro 1 0 1
Peão 0 1 1
Oficial de sapateiro 0 1 1
Total 3 12 15
Fonte: O Universal – 1825-1832
Tabela 3- Distribuição dos homens segundo etnias e profissão
Com Profissão % Sem Profissão % Total %
Crioulo 12 80 26 30.95 38 38.38
Africano 3 20 51 60.7 54 54.55
Indeterminado 0 0 7 8.33 07 7.07
Fonte: O Universal – 1825-1832
A maior parte dos anúncios sobre os escravos fugidos do Jornal “O Universal”, refere-se aos cativos
que não possuíam especialização profissional (84 casos). O que representa este dado? Poderia-se dizer que o
escravo sem especialização fugia mais porque era a grande maioria no contingente escravista. Contudo,
constituiria uma explicação simplista e que na realidade nada responderia.
205
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José R. Tráfico negreiro e estratégias de socialização
parental entre os escravos do meio rural do Rio de Janeiro - 1790-1830. In: Lemos, Maria T.
América Latina e caribe: desafios do século XXI
., Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, 1995. p. 201-219
100
Um outro caminho para a análise da questão poderia ser
buscado em Cardoso
206
: Para este autor, uma maneira de o
escravo resgatar um pouco sua humanidade, seria a
aprendizagem e o exercício de uma profissão, posto que com ela, o
escravo conseguiria acentuar frente aos senhores, a sua condição
de homem, melhorando desta maneira sua vida.
Contudo, esta posição “privilegiada” dentro do contingente
escravista necessitava sempre do aval do senhor e se o escravo
passava a ter um certo status junto aos demais, na realidade quem
lucrava com esta profissionalização era novamente seu
proprietário. A partir daí, o que contava na relação
senhor/escravo era a fidelidade e a pontualidade do escravo no
momento de prestar contas de seu trabalho.
Aceitando o fato de que a especialização desencadearia
melhorias nas condições de vida dos cativos, seria de se supor que
não tentariam fugir tanto quanto um escravo sem qualquer
conhecimento profissional específico e, portanto, sem qualquer
regalia.
Um outro elemento que pode ser percebido nos anúncios do
jornal “O Universal” remete aos aspectos culturais dos fugitivos.
Dos 106 escravos anunciados, 24 foram descritos com algum
indício que nos permitiram identificar determinados itens
culturais. Deste universo de 24 escravos, 14 eram africanos que
possuíam traços distintivos de sua cultura de origem marcados
definitivamente nos corpos: 7 tinham nos rostos, peito e braços, as
marcas de suas nações; 5 possuíam os dentes limados ou abertos,
1 possuía um furo no lábio superior e 1 tinha as orelhas com
furos.
Rugendas
207
foi um dos artistas que, preocupado em
registrar as diferentes etnias dos escravos no Brasil, acabou por
identificar também as suas marcas étnicas. Entretanto, nos seus
relatos textuais propriamente ditos, não se encontra qualquer
referência.
As marcas corporais são elementos importantes em
diferentes culturas. São elas que estabelecem o sentimento de
206
CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravismo e dinâmica da população escrava nas Américas. In:
Estudos econômicos
. São Paulo. V.13, 1983. p. 41-53.
207
RUGENDAS, J. M. Op. Cit.
101
pertencimento a este ou aquele grupo. E, mais ainda, as marcas
servem para registrar a memória do grupo. O corpo assume assim,
o espaço onde são inscritos elementos tribais importantes e que
não devem ser esquecidos. De acordo com Clastres, “...A marca é
um obstáculo ao esquecimento. O próprio corpo traz impresso
em si os sulcos da lembrança . O corpo é uma memória...”
208
Para Mendes
209
, os “... Pretos da África... na sua
menoridade, e ainda já adultos, fazem pôr por enfeite, e sinal
em as suas faces muitos lanhos...”
210
Ainda segundo este autor, “... Esses ditos lanhos não só tem
por fim o enfeite que eles presumem; mas também são
indicativos da família, do Reino, do Presídio, e do lugar onde
nasceram e são moradores...”
211
Os anúncios do jornal com este tipo de descrição que
priorizava os aspectos africanos foram muito comuns, em parte
porque era uma maneira eficiente e rápida de localizar e
reconhecer um fugitivo. Um outro jornal de Minas Gerais,
intitulado “O Guarda Nacional”, assim descreveu quatro escravos
fugidos que estavam presos na cadeia de Ouro Preto
212
:
“...Annúncio
Na cadeia desta cidade existem quatro escravos fugidos, cujos nomes e signaes são os seguintes: João de
nação Moçambique, estatura ordinária. Bem feito de corpo, com signaes nos cantos dos olhos e na testa
todos voltados a maneira de meia lua, com riscos dentro dos círculos e uma orelha furada; diz ser escravo
de Dona Francisca Bernarda, moradora na rua do Sabão adiante do Largo do Capim da Cidade do Rio de
Janeiro e diz que a dita sua Senhora é filha de Lisboa. Frederico de nação Moçambique, baixo, cheio de
corpo, dentes abertos, signaes nos cantos dos olhos e na testa todos voltados a maneira de meia lua com
riscos dentro do círculo, orelhas furadas, diz ser escravo do capitão Thomaz Francisco, morador na sua
Fazenda da Pedra Branca. Pedro de nação Angola, estatura ordinária, cheio de corpo, com faltas de dentes
do queixo de cima, diz ser escravo do Alferes José Pereira Valverd, morador na sua Fazenda do Piau. João
de nação Congo, estatura ordinária, delgado de corpo, com um signal grande no peito a maneira de um
recortado e outros signaes nas costas, uma orelha furada, diz ser escravo de José Bento, morador na Villa
de Barbacena. Quando não sejam procurados por seus senhores se entregues a justiça para serem
arrematados a fim de se não consumirem em despesas os seus valores.
208
CLASTRES, Pierre. Da tortura nas sociedades primitivas. In: A sociedade contra o Estado. Rio
de Janeiro: Francisco Alves Ed. 1990. p. 128
209
MENDES, Luis Antonio de Oliveira. Memória a rspeito dos escravos e tráfico da escravatura
entre a Costa da África e o Brasil. (1790). Porto: Publicações Escorpião. 1977.
210
Ibidem p. 28-29
211
Ibidem
212
Jornal “O Guarda Nacional”, Ouro Preto, 29.8.1838
102
Ouro Preto, 19.8.1838
Além dos 14 africanos descritos pelo jornal “O Universal”,
havia mais um que portava consigo um elemento de ordem
cultural. Durante sua fuga preocupou-se em carregar consigo, seu
cachimbo e uma bolsa com tabaco. De acordo com Agostini
213
, os
cachimbos decorados foram usados pelos escravos como
mecanismos propiciadores de “manifestação de etnicidade” e
como “veículos de informação” sobre suas culturas africanas,
muitas vezes recriadas no Brasil.
Entretanto, o tabaco não era de uso exclusivo de africanos.
José Custódio, crioulo, fugiu em setembro de 1827, carregando
tabaco e uma viola. Além destes elementos tradicionais da cultura
africana, alguns outros anúncios remetem a visões que
procuravam mostrar o cativo com características psicológicas
conferidas pelos seus senhores: dois africanos foram identificados
como sendo muito ladinos; um crioulo, que costumava mudar o
nome de seu senhor, foi considerado como “muito esperto e
velhaco em seus negócios”
214
; outro como “muito vivo de
natureza”; um outro como “folião” e um último como “civilizado
e muito espevitado”
215
.
Nem sempre as imagens que foram construídas para os
escravos fugitivos foram tão positivas. Há aquelas que os
associam claramente aos animais ou com características físicas
depreciativas e, portadoras de uma estética preconceituosa e
segregadora. Novamente o anúncio do escravo José Custódio será
utilizado. Ele fugiu no Rio de Janeiro, mas seu anúncio circulou
em Minas Gerais, provavelmente por que seu senhor tinha alguma
razão para pensar que ele poderia ter buscado ajuda em terras
mineiras. José Custódio é assim descrito pelo anúncio: “...
estatura baixa, cara feia, e mal feito de corpo... olhar de
porco...”
216
213
AGOSTINI, Camilla. Resistência cultural e reconstrução de identidade: um olhar sobre a
cultura material do escravo do século XIX. In: Revista de História Regional
. V.3. n.2, 1998, UEPG.
214
Anúncio do Jornal “ O Universal”. 23.5.1831
215
Idem 2.2.1831
216
Idem 12.9.1827
103
Gregório, outro escravo anunciado, também não teve melhor
descrição: Tratava-se de alguém “...mal encarado no
aspecto...”
217
. Assim como um outro escravo também africano,
que foi descrito por sua senhora como possuidor de um
“...semblante carregado...”
218
Florentina, africana de Moçambique, foi descrita como
tendo o “...andar aperiquitado...”
219
Em todos estes anúncios, o que se percebe são as tentativas,
por parte dos senhores, de aproximar os fugitivos a uma realidade
animalesca ou grotesca, retirando deles qualquer indicativo de
humanidade.
Esta humanidade porém, podia ser visualizada de uma outra
maneira se alguém acompanhasse os anúncios dia-a-dia. Uma das
formas encontradas pelos escravos de mostrar reiteradamente sua
humanidade foram as fugas sucessivas ou em direção a locais
onde viviam no passado, o fingir-se forro e mesmo, os
assassinatos de seus senhores.
Vejamos cada um destes itens separadamente. Anastácio, um
“mulatinho” de 15 anos foi bastante audacioso em sua fuga
220
.
Seu anúncio foi publicado no dia 16 de maio de 1831 e consta
que sete dias antes, ele havia sido recapturado de uma outra fuga.
Mais “audácia” tiveram Elias e Miguel, de etnias Congo e
Cabinda. Os dois tinham cerca de 20 anos e já era a terceira vez
que fugiam. Desta vez haviam conseguido evadir carregando
ambos, “...um gancho de ferro ao pescoço com aros de ferro
rebatido...”
221
. Mas foram recapturados. Cerca de dois anos
depois, encontramos novamente os mesmos escravos anunciados
como fugitivos, desta vez, era a quarta fuga. Haviam fugido juntos
e ambos levavam presos aos tornozelos esquerdos uma argola de
ferro.
222
Ainda que não se saiba se nas duas fugas anteriores Elias e
Miguel estivessem juntos, há pelo menos duas ocorrências
registradas onde ambos estavam associados. O curioso é saber
217
Idem 12.6.1826
218
Idem 11.11.1831
219
Idem 1.8.1832
220
Idem 16.5.1831
221
Idem 21.11.1828
222
Idem 14.7.1830
104
como que dois africanos de origens diversas conseguiram não só
fugir juntos, mas, principalmente, fazer isto no mínimo duas
vezes, o que demonstra uma provável ligação entre eles, e ainda
mais com os ganchos de ferro aos pescoços e depois com as
argolas de ferro presas aos tornozelos. E mais surpreendente é
saber que em ambas fugas não foram apanhados imediatamente,
ainda que com os apetrechos criados especialmente para impedir
estas situações.
Carlos Julião, aquarelista do século XVIII, retratou uma
cena em que mostra o que seria este ferro preso ao pescoço de um
escravo:
Figura 16- Negro com ferro e argola
Fonte: Carlos Julião. Riscos Iluminados...
105
A busca pelo passado perdido no momento da compra esteve
também presente nos anúncios publicados: Natário, um crioulo de
cerca de 30 anos, fugiu de seu senhor e foi para Coramatahi, de
onde era natural
223
. Parece que a movimentação de fugitivos era
constante não só dentro do espaço de Minas Gerais, como também
entre Minas e Rio de Janeiro. No dia 9 de abril de 1832, um
anúncio publicava que 17 escravos haviam fugido de uma fazenda
situada em Campos dos Goitacases, Rio de Janeiro, e segundo o
senhor sabia, teriam subido para Minas Gerais
224
. O mesmo
aconteceu com Salvador, um preto Cabinda fugido da Corte
225
, e
com quatro escravos de Antônio José de Souza Braga.
226
Uma alternativa para o escravo fugido era fingir-se de forro.
Misturando-se a uma população de escravos, mestiços, forros e
escravos coartados, não deveria ser muito difícil se esconder nas
cidades mineiras e passar como livre. Goulart
227
apresenta dados
interessantes sobre esta população em Minas Gerais: segundo ele,
entre os anos de 1786 a 1821 a população forra variou de 34,4% a
41%. Assim, ter-se-ia os seguintes números:
Tabela 4- Presença da população forra em Minas Gerais - 1786 a 1821
228
Ano População Total
População forra
% de forros na pop.
1786 362.847 123.048 35%
1805 407.004
140.188
34,4%
1808 433.049 177.593 41%
1821 514.537 206.643 40,3%
Fonte: GOULART, Maurício. GOULART, Maurício. Escravidão Africana no Brasil. São Paulo: Livraria
Martins Fontes Editora S.A, 1950.
Parece que os escravos fugitivos de Minas Gerais, e também
os do Rio de Janeiro, percebiam este fato. Francisco e Joaquim,
ambos Benguelas, fugiram levando passaportes e cartas de
223
Idem, 3.2.1832
224
Idem, 9.4.1832
225
Idem, 14.6.1830
226
Idem, 25.11.1831
227
GOULART, Maurício. Escravidão Africana no Brasil. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora
S.A, 1950
228
Citado por Almeida, Carla Maria Carvalho de. Op. Cit. P. 106
106
alforrias falsas
229
; José Custódio, dizia ser forro, mas era um
escravo fugido do Rio de Janeiro
230
, assim como Francisco
Pantaleão
231
.
Joaquim, escravo da nação Camundá, demonstrou sua
humanidade de outra forma: assassinou seu senhor e fugiu. O
escravo era propriedade do Frei Antonio da Conceição, guarda e
procurador do hospício da Terra Santa na Vila de Sabará e na
noite de 31 de janeiro de 1831, assassinou seu senhor com várias
facadas e feriu um outro religioso na mão. Logo depois, fugiu.
Uma outra maneira de perceber a humanidade dos escravos
através dos anúncios é identificar a presença da família escrava.
A existência da família era um mecanismo que provavelmente
dificultava as fugas, contudo, não é possível afirmar que as
impediam. A família poderia fazer com que este número decaísse,
porém nunca foi um impedimento total. Infelizmente, através da
maioria dos anúncios do jornal não se pode imaginar que tipo de
relações familiares possuíam os escravos que fugiam em Minas
Gerais, pois apenas em quatro anúncios aparece algum tipo de
indício sobre este tema. Em um dos deles aparece um casal
fugindo junto
232
; em outro, são dois irmãos crioulos
233
, no
terceiro, uma mulher, cujo irmão havia fugido anos antes, fugiu
ajudada por um pardo
234
e o último anúncio retrata uma mulher
que estava fugida acompanhada de sua filha, com 7 anos de
idade
235
.
A historiografia brasileira tradicional deu pouca importância à família escrava, chegando mesmo a
afirmar que não existiria:
"...A questão da existência de uma vida privada ou de uma vida familiar se apresenta como uma contradição
inerente à condição escrava... Constituir família, ter uma prole é algo inacessível àqueles que não possuem
nem a si próprios..."
236
Tais suposições eram baseadas na crença de que ao senhor não era
conveniente a formação de famílias no conjunto de seus escravos:
229
Anúncio do Jornal “O Universal” 14.6.1830
230
Idem, 12.9.1827
231
Idem, 22.11.1830
232
Idem, 18.12.1829
233
Idem, s/data
234
Idem, 17.8.1831
235
Idem, 9.4.1832
107
"...Livre para decidir sobre o conjunto da vida, os interesses do senhor parecem ter sido incompatíveis com a
existência da "família escrava" no Brasil..."
237
E que havia um grande desinteresse por parte do escravo em constituir
famílias já que a qualquer momento poderiam ser desfeitas pelo sistema:
"...Na verdade, o direito civil não dá qualquer privilégio aos casais confirmados pelo sacramento religioso,
pois o senhor pode continuar a separar os que a Igreja uniu, vendendo ou doando separadamente pai, mãe,
filhos. Compreende-se que os escravos não vissem vantagem em casar-se..."
238
Alegavam ainda, que a elevada taxa de masculinidade não favorecia a uniões
estáveis:
"... O número reduzido de mulheres, em geral, na proporção de quatro para um, às vezes cinco para um,
estimulava o caráter temporário das ligações..."
239
Ou mesmo que as relações sexuais entre os escravos eram apenas instintivas e promíscuas; não
cabendo, portanto, a instituição do matrimônio.
A historiografia recente tem procurado analisar a família escrava em suas particularidades. Ela tem
aparecido com características bem definidas, quer seja pelo caráter de estabilidade nas relações, quer pela
presença da vontade da população escrava intervindo diretamente na escolha do parceiro.
240
Analisando por um outro lado, percebe-se que a instituição familiar era um mecanismo de que os
grandes proprietários lançavam mão para melhor controlar seus escravos. O senhor tinha consciência de que
se o cativo possuísse uma família e portanto, laços sociais mais fortes e abrangentes através do compadrio
com outros escravos, seriam mais difíceis a rebelião e a fuga.
A família possuía, assim, diversas características. De um lado servia em alguns casos como um
controlador da escravaria, elemento necessário para a manutenção da tranqüilidade nas senzalas; de outro,
para o escravo era um meio de aumentar sua socialização, seus mecanismos básicos de adaptação e
consequentemente melhorar sua condição de vida dentro do sistema.
A Antropologia demonstra claramente que o casamento é uma relação social de importância crucial
porque, entre outros motivos, relaciona-se com vários fatos sociais que interagem na sociedade. E conclui
que os casamentos nos grupos de pequena escala são muito mais importantes do que nas sociedades tidas
como "modernas", já que estes pequenos grupos precisam manter os laços de união e de proteção acarretados
pelo casamento, assim como precisam manter o nível de nascimentos compatíveis com a sua capacidade
econômica.
Sahlins
241
analisando a função do parentesco em sociedades tribais, chegou á conclusão de que uma
das maneiras de se obter a paz é o parentesco, porquanto estabelece ligações recíprocas e constantes entre
todo o grupo. Acreditamos poder expandir esta análise à comunidade escrava, pois as relações entre estes
eram permeadas tanto por estratégias de negociação, que nada mais eram do que a manutenção da paz, como
também por rupturas, ou seja, as guerras, principalmente entre africanos e crioulos.
Florentino e Góes
242
demonstraram que as relações entre africanos e crioulos eram de constantes
possibilidades de conflitos tendo em vista não somente o fato de serem grupos com culturas diferentes
obrigados à convivência, mas também ao fato de que as mulheres eram sempre em números reduzidos,
dificultando as relações sexuais e impondo que determinados sujeitos ficassem sem acesso às suas
companheiras.
236
GIACOMINI, Sônia. Mulher e escrava- uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no
Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1988, p. 29
237
ibidem. p. 29
238
MATTOSO, Katia Q. Ser escravo no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1990. p. 126 e 127.
239
COSTA, E. Viotti. Da senzala a colônia. São Paulo, Brasiliense, 1989. p. 257
240
MOTA, J. Flávio. Família escrava: uma incursão pela historiografia. In: História, Questões e
Debates. Curitiba, 1988
241
SAHLLINS, Marshall. Sociedades tribais, Rio de Janeiro, Zahar, 1974
242
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José R. Op. Cit.
108
Um outro tipo de informação que pode ser retirada destes anúncios refere-se ao estado de saúde dos
escravos fugidos. Ao fornecerem dados que permitissem identificar seus escravos, os senhores acabaram por
indicar os aspectos ligados à saúde. Através de doenças, cicatrizes, marcas de doenças e condições
psicológicas pode-se traçar um esboço do que seria a saúde destes cativos. Entretanto, é necessário salientar
que os anúncios apresentam inúmeras limitações, como por exemplo, o uso de termos nada precisos. Um
grande problema desta fonte é que por constituir-se de linguagem leiga ou popular, a precisão dos termos das
patologias é reduzida e são empregados termos de sentido equivalente, como, “bexiguento”, “bexigoso” e
“com bexigas”, que aparecem tantas e tantas vezes nos anúncios. Essas informações dadas sobre os escravos
fugidos, por exemplo, não indicam necessariamente que se tratava de doentes ativos e portadores do vírus da
varíola, podendo ser casos superados em que a doença deixou suas marcas. O lógico seria imaginar que se
referem apenas às marcas, pois dificilmente um escravo com a doença e, portanto, em condições de saúde
bastante precárias, tivesse condições de empreender tão arriscada atitude como a fuga.
Mas mesmo assim tal fonte pode se tornar útil como
introdução ao conhecimento das condições físicas dos escravos
que procuravam a fuga como uma alternativa de vida.
De um total de 72 casos, 21 eram portadores de algum tipo
de má formação, outros 21 indivíduos possuíam doenças de
caráter traumáticas. Vejamos inicialmente o primeiro caso: a má
formação normalmente, era percebida em partes do corpo que
possuíam algum tipo de defeito, como por exemplo, pés, braços,
joelhos ou pernas tortas ou arcadas, que não poderiam ser
associadas a qualquer tipo de trauma. Eram características que
remetiam a problemas durante a gestação ou adquiridas com o
passar do tempo ao exercerem atividades prejudiciais à saúde.
As doenças traumáticas, ou seja, as que acarretavam feridas, cortes ou depois, as que deixavam
cicatrizes ou os sinais das feridas, também perfizeram um total de 21 casos, demonstrando o nível de
periculosidade das atividades exercidas. Estas marcas apareceram equilibradamente por todo o corpo do
cativo.
A seguir, com 10 casos, aparecem as doenças infecto-contagiosas. Destas, apenas um caso foi de
contaminação por parasitas, a sarna. Todas as demais foram contaminações pelo vírus Poxvirus variolae, ou
seja, o vírus causador da varíola, conhecida também como Bexiga. Seu contágio se dá de forma direta, pelo
suor, espirro, enfim, as secreções de um doente podem causar o contágio em outra pessoa que não esteja
imunizada por vacinas. Como não havia nenhum tratamento específico para este mal, a solução encontrada
era manter o doente afastado dos demais membros sadios a fim de evitar o contágio. Isto quase nunca era
conseguido devido às condições de vida da população que eram muito precárias. Desta forma, a varíola
encontrava um excelente campo para se disseminar. É significativo o número de escravos que apareceram
nos anúncios referidos como portadores de varíola ou como bexigosos ou ainda como portadores das marcas
deixadas pela doença, pois os que a adquiriam, caso conseguissem sobreviver, ficavam marcados pelo
resto da vida.
Os demais tipos de doenças, ou seja, as reumáticas, as tumorais, as disfunções óticas e as
psicológicas, foram minorias. Isto não significa de maneira alguma que os escravos fugidos não possuíssem
estas doenças. Apenas indica que como estes anúncios eram um mecanismo usado para identificar escravos
fugidos, era necessário que o senhor de cada um, fornecesse informações que tornassem possível a sua
captura. Assim, dizer que um escravo tinha problemas na coluna ou que enxergava pouco ou que tinha um
tumor em alguma parte do corpo, de pouco ou nada adiantaria a quem tentasse reconhecê-lo nas ruas. Por
este mesmo raciocínio, pode-se entender o porque de um número tão expressivo de anúncios informando
sobre o estado dos dentes dos fugitivos,11 casos.
Tabela 5- Doenças e problemas físicos anunciados no Jornal “O Universal”
TIPO Casos
TIPO
Casos
Infecto-contag. Parasitárias 1
109
Infecto-contag. Virais 9 Tumorais sem especificações 1
Total 1 10 Total 5 1
Traumáticas: cortes e feridas 9 Disfunções óticas 3
Cicatrizes/sinais de feridas 12 Disfunções motoras 1
Total 2 21 Total 6 4
Reumáticas sem especificações 1 Psicológicas- gagueira 2
Total 3 1 Total 7 2
Má formação . estrabismo 1
Má formação . defeitos em geral 20
Falta de dentes
11
Total 4 21 Total 8 11
Total Geral 71 casos
Fonte: O Universal
O panorama fornecido pelos anúncios permite-nos identificar um quadro de carência alimentar
provocando más formações ainda durante a gestação, um diagnóstico de disseminação de doenças virais, no
caso, a varíola, exacerbada pelas condições de vida nas senzalas, e um tipo de alimentação favorável ao
surgimento de diferentes problemas, dentre eles, os dentários.
Concluindo pode-se afirmar que os anúncios do Jornal “O Universal” demonstraram um perfil do
escravo fugido que se pautava pelo predomínio do homem africano, ainda que seguido de perto pelo crioulo,
sem especialização profissional, detentor de traços culturais vários e de diversos tipos de problemas de saúde.
Demonstraram também que, ainda que portadoras de elementos culturais, as imagens passadas pelos senhores
sobre esta população se revestiam todo o tempo de significados negativos.
Entretanto, para as autoridades coloniais ou mesmo para uma parcela considerável da população,
pior e mais perigoso que um escravo fugido, somente um aquilombado, pois este reunia em si a fuga, a
rebeldia e a possibilidade de conseguir viver à margem do sistema associando-se a outros tão perigosos
quanto ele.
110
O quilombola: o pior dos escravos
As primeiras análises escritas feitas na Colônia por cronistas
e escritores não se preocuparam em descrever a existência de
quilombos e de escravos aquilombados. A exceção foi Palmares e
mesmo assim, recebeu pouca atenção. Dentre os que de uma
forma ou de outra trataram sobre este tema, pode-se destacar um
escritor anônimo do século XVII
243
, Antônio Vieira, em um breve
comentário feito em 1691
244
, Rocha Pita
245
e Domingos Loureto
Couto
246
.
O que se identifica nas obras citadas, com exceção de Vieira
que não se preocupou em analisar as causas das fugas e da
formação do quilombo, é que existiam alguns motivos que
levavam os escravos à fuga. Os principais seriam o ócio, a fome e
o frio. Caberia aos senhores evitar todos esses problemas para que
elas não ocorressem. Para estes autores, os cativos não seriam
capazes de fugir visando uma alternativa de vida fora do cativeiro.
Os escravos fugiam porque não recebiam comida e vestimentas
necessárias à sua manutenção. Com relação ao ócio, novamente
ele é apontado como causador de problemas nas fazendas. O ócio
levava aos vícios que levavam ao pecado que levava à perdição dos
senhores e mesmo da colônia.
Em 1678, um escritor anônimo preocupado em fazer um relatório militar das
guerras travadas entre as tropas e os quilombolas durante o governo de D. Pedro de
Almeida, afirmou que a causa da existência de escravos rebelados era a própria existência
da escravidão e que o quilombo de Palmares só havia sido possível porque os senhores
passaram por um período de enfraquecimento causado pela invasão holandesa. Os
243
Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador D. Pedro de
Almeida, de 1675-1678. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
. 1859, vol 22. P.
305
244
Carta do Padre Antonio Vieira a certo fidalgo. Bahia, 2 de junho de 1691. Apud. J. L. de
Azevedo. História de Antonio Vieira
. Lisboa, vol. II. P. 372
245
PITA, Sebastião da Rocha. História da América portuguesa. Lisboa: Ed. Francisco Artur da
Silva, 1880. p
. 214 e ss
246
COUTO, Domingos Loureto. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. In: Anais da
Biblioteca Nacional. Livro 8, vol. 25. Cap. IV, p. 540
111
quilombolas seriam os “inimigos internos” que ameaçavam a “conservação de
Pernambuco”, destruíam “a vida, a honra e as fazendas”
247
Há neste autor uma contradição que pode ser encontrada em outros de sua época. Para ele o
quilombola é, em última instância, conseqüência de erros senhoriais (neste caso, fraqueza). O que levaria o
escravo ao quilombo seriam estas atitudes. Por outro lado, ele também percebe o quilombola como um
inimigo interno em potencial – ameaçador da ordem. Ora, como ter condições de ser um inimigo e não ter
mecanismos para por si só, tornar-se um quilombola?
O que parece justificar a posição deste autor e de outros é a tentativa de análise do processo de fuga
e de formação de quilombos, feita de maneira a diminuir o impacto da evasão, da formação da estrutura
quilombola e do que isto representava no cerne do sistema escravista: o cativo sabia se aproveitar de uma
situação política desfavorável para as elites, estabelecendo uma alternativa de vida que lhe fosse mais
cômoda. Ou seja, ele participava a seu modo, aproveitando-se das conjunturas do sistema pleno de diversos
tipos de falhas, o que era perigoso, pois significava que a qualquer momento outros fariam a mesma coisa.
Era preciso redimensionar a questão. O quilombo passa a ser visto não como fruto de negociações e políticas
no seio da escravatura, era sim, uma conseqüência das atitudes dos senhores da qual os negros apenas se
aproveitavam. Desta forma, sempre que a sociedade livre resolvesse ou não permitisse a existência de
problemas que os enfraquecesse, os quilombos não conseguiriam se desenvolver, posto que eram formados
por seres inferiores sem condições próprias de se organizarem.
Para Vieira, o quilombola além de ser inferior, era um indivíduo em constante pecado, e buscando
explicar e justificar a escravidão, o padre criava imagens associativas com os sacrifícios feitos por Cristo para
salvar a humanidade. Aos escravos, caberia a sujeição pacífica ao cativeiro como forma de atingir os céus e
contribuir para a salvação da humanidade. No momento em que fugiam, rompiam com este papel que lhes
fora imputado. Logo, eram pecadores que deveriam ser trazidos ao cativeiro e punidos exemplarmente
248
.
“... Porque sendo rebelados e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo e atual, de que não podem ser
absoltos, nem receber a graça de Deus, sem se restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o que
de nenhum modo hão de fazer. Só havia um meio eficaz e efetivo para verdadeiramente se reduzirem, que era
concedendo-lhe sua Majestade e todos os seus senhores, espontânea, liberal e segura liberdade, vivendo
naqueles sítios como os outros índios e gentios livres, e que então os padres fossem seus párocos e os
doutrinasse como os demais ..”
249
A solução possível para o problema “Palmares”, passaria primeiramente pela concessão da liberdade
aos cativos e, somente depois é que os religiosos poderiam cristianizar os rebeldes. Entretanto, o próprio
Vieira sabia que se esta liberdade fosse dada aos palmarianos,
“...seria a total destruição do Brasil, porque conhecendo os demais negros que por este meio tinham
conseguido o ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho seriam logo outros tantos
Palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é mais que o próprio
corpo...”
250
O que Vieira deixa claro aos seus ouvintes e posteriores leitores, é que a cristianização só era
possível aos negros enquanto cativos e pacíficos. Nunca ao negro rebelado, contestador de uma forma ou de
outra, ao sistema. Assim, dar qualquer tipo de orientação religiosa aos Palmarianos, significaria reconhecer
como legítima sua organização e isto significaria a ruína da escravidão e, consequentemente, do Brasil: “...
sem escravidão não há Brasil, e como deve haver Brasil, assim deve haver escravidão...”
251
Para Domingos Loureto Couto
252
, o quilombo era o local para onde convergiam “negros atrevidos”
e era o “receptáculo de foragidos”. O que explicaria a razão das fugas e da ida para o quilombo seria a
247
Relação das guerras.... Op. Cit.
248
. Carta do Padre Antonio Vieira... Op. Cit.
249
Ibidem
250
Ibidem
251
Ibidem
252
COUTO, Domingos Loureto. Op. Cit.
112
ilegitimidade dos apresamentos na África, a persistência de costumes africanos e o excesso de escravos na
colônia.
Rocha Pita, escrevendo em 1724, acreditava haver uma propensão nos escravos para a rebeldia e
para a rebelião, pois eram pecadores e insolentes por natureza. Para evitar isto se deveria punir e educar o
cativo na fé tornando-os obedientes ao senhor e fiéis a Deus. Mas, se tudo isto falhasse e o escravo fugisse,
tornava-se culpado do “delito da ausência”. Segundo este autor, o cativo preferia “a liberdade entre as feras
que a sujeição entre os homens”.
253
Palmares recebeu de Rocha Pita alguns comentários, entretanto a preocupação não era tanto mostrar
o quilombo e seus habitantes, ou mesmo suas estruturas internas e externas. Na realidade, o objetivo era
exaltar a grandeza e o poder metropolitano que havia conseguido destruir “...a calamidade que padecia
Pernambuco com esta opressão dos Palmarianos...”
254
As imagens sobre os quilombolas
Com relação as imagens pictóricas sobre escravos aquilombados, infelizmente o universo é muito
pequeno tanto no Brasil como em outras regiões escravistas. Para o Suriname existem duas imagens feitas
como ilustração de um livro publicado em 1796 e intitulado “Narrativa de uma expedição de cinco anos
contra os negros revoltosos do Suriname” de autoria de John Stedman
255
. Seu autor era um oficial da
Brigada Escocesa do Exército Holandês, voluntário na destruição dos quilombos que ameaçavam o sistema
escravista no Suriname.
Além de contar detalhes da expedição, como por exemplo, as doenças que atacavam a expedição, a
falta de preparo técnico e militar dos soldados e outras dificuldades, Stedman relata o seu casamento com
uma escrava local. Todavia, são as duas imagens referentes a quilombolas que nos interessam no momento.
Em uma delas, intitulada “Um negro rebelde armado e em guarda”, percebe-se elementos que
tradicionalmente estão associados a grupos considerados pelos europeus como não civilizados: o negro
representado está nu, apenas porta uma pequena tanga e está descalço. Como armas carrega na cintura um
machado e na mão uma arma de fogo, demonstrando o perigo em potencial para a população e, portanto,
justificando a expedição. Ao fundo do quadro pode-se identificar dois outros negros rebelados. Ambos
carregam uma espécie de lança, arma também relacionada a grupos tidos como primitivos. Em primeiro
plano, aos pés do negro está um crânio. Estaria o desenhista tentando mostrar a crueldade dos quilombolas?
Ou quem sabe poderia ser uma demonstração de que os europeus estavam conseguindo eliminar o perigo
representado por eles? São suposições, mas é curioso notarmos a presença de crânios na outra imagem
referente a um outro escravo rebelde, também no mesmo livro.
A figura recebeu o título “Um negro suspenso vivo pelas costelas numa forca”. Além do negro
pendurado pode-se ver em primeiro plano um outro crânio e mas ao fundo, outros dois presos em um tipo de
poste. Além destes crânios, esta imagem traz também ossos inteiros e alguns outros em pedaços espalhados
pela cena, como que indicando, quem sabe, a ferocidade do ser disforme preso pelas cordas. O corpo do
escravo aprisionado é uma excelente fonte para identificarmos as concepções sobre o escravo fugitivo.
Novamente, ele está nu, coberto apenas com uma pequena tanga. Seus traços são disformes e sua fisionomia
é agressiva.
253
PITA, Sebastião da R. Op. Cit.
254
ibidem
255
Esta obra é analisada no livro de PRATT, Mary Louise. Op. Cit. p. 164 e ss
113
Figura 17- “Um negro rebelde armado e em guarda”
Fonte: PRATT, Mary Louise. Os Olhos do ... p. 177
114
Figura 18- Um negro suspenso vivo pelas costelas numa forca
Fonte: PRATT, Mary Louise. Os olhos do... p. 166
Para o Brasil, só se conhece uma imagem feita sobre Palmares durante sua existência. Trata-se da
feita por Barleus em 1647 e reproduzida em Reis
256
. Infelizmente, esta imagem não possui riquezas de
detalhes ou de informações. Aparentemente, trata-se de um posto de observação à beira de um rio que serve
de local de pescaria coletiva.
256
REIS, João José e GOMES, Flavio dos S. Liberdade por um fio: história dos quilombos no
Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1996. p. 33
115
Figura 19- Imagem de Palmares
Barleus, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1974.
Todas as construções teóricas formuladas sobre os quilombolas passaram de uma forma ou de outra
para o cotidiano das populações coloniais, podendo-se perceber fragmentos destas idéias na documentação
criada durante o século XVIII. Algumas imagens elaboradas sobre os quilombolas de Palmares
permaneceram e se difundiram para todos os quilombolas e para épocas posteriores, criando um corpo de
imagens sobre o que seria o negro aquilombado.
A noção que as pessoas tinham dos quilombolas durante o século XVIII em Minas Gerais merece
ser acompanhada mais de perto. A idéia que os associa aos bárbaros é uma constante nesta documentação,
assim como a de que eram feras e inimigos públicos. Que eles eram, segundo suas concepções, os causadores
dos distúrbios, das desordens e das insolências freqüentes que os moradores próximos da região sofriam, não
resta dúvida. Os quilombolas também eram vistos em vários tipos de documentos relacionados pelas
autoridades ou pela população, como feras, como bandidos perigosos e não possuidores de qualquer tipo de
sentimento humano.
“... brutos que se fazem abomináveis pela sua ferocidade com que não perdoam aos que lhes não fazem a
menor resistência...”
257
Eram seres desprezíveis e que levavam perigo imediato à população. Eram, entre outras coisas,
negros insolentes, logo deveriam ser capturados ou exterminados. Referindo-se a Serra da Marcela,
257
APM SC Cod 159 fls. 31 v
116
Pamplona, um dos vários líderes de expedições enviadas aos Sertões em Minas Gerais, diz que ela era um
“...sítio ... que tem sido até aqui habitação de feras e de calhambolas que vem a ser o mesmo...”
258
Para
destruí–los os Capitães dos Matos não eram suficientes, sendo necessário estabelecer mecanismos que
permitissem um controle mais efetivo e mais eficiente:
"... a grande decadência em que se acha o povo destas Minas,
(...) em que vem causada da multidão de negros fugidos e
aquilombados que há em todas elas de que resultam os
extraordinários casos que continuamente estão sucedendo nos
arraiais que a cada instante estão fazendo sem averiguarem
prova de remédio a tanto malefício nos faz preciso representar a
Vossa Majestade não adiante termos satisfeito mais por crermos
ir em aumento a força de tais inimigos por que a ter
noticiamente estão executando mortes de brancos e negros;
roubando casas e assaltando outras de que se faz preciso que
Vossa Majestade fica servido dar providências a tão atroz e
sanguinolento mal ordenado por seu especial decreto ao
governador Ministros e mais justiças de Vossa Majestade
cuidem em fazer uma junta em que uniformemente se ajuste
melhor meio e forma com que se deve extinguir estes inimigos
capitais ...."
259
Os quilombolas também podiam ser vistos como
conspiradores que perturbavam o sossego e a paz pública.
260
O
Conde de Assumar, os percebia como uma “...peste que está [va]
contaminando todo esse governo...”
261
No final do século, em
1792, o governador, Luis Antônio Furtado de Mendonça, deferiu
favoravelmente a uma petição que tinha como objetivo destruir
258
Carta De Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valladares , Tejuco, 3.4.70 Arquivo
Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos). 18,2,3
259
APM SC 49. P. 81;82. 1741
260
APM SC Cod 163. Fls. 53
261
APM SC Cod 04, fls. 790-793
117
um quilombo na Comarca do Rio das Mortes. Segundo o
governador, cada vez mais,
“... aumenta[va] cada vez mais o prejuízo na fuga dos escravos e
liberdade dos que lhes dão asilo, assaltando, roubando e
matando os povos viandantes...” . Continuava a carta dizendo
que “infinitos” senhores “... já tem sido vítimas de suas traições
e infidelidades experimentando violentas e cruéis mortes...”
262
Os quilombolas do Campo Grande foram vistos pela Câmara
de Vila Rica como “...um feroz monstro que virá a ser a total
ruína destas Minas...”. Era necessário criar mecanismos que
liquidassem de vez “aquele veneno” que poderia ir crescendo cada
vez mais.
263
A presença destes quilombolas provocava ainda, o
despovoamento de várias áreas da Capitania:
“... e crescendo o dano e o perigo se despovoam já as partes
contíguas ao dito quilombo e sofrem ainda as mais distantes
perniciozíssimos estragos...”
264
Os estragos a que este documento e outros se referem dizem
respeito não só as fazendas que sofrem ataques constantes; os
viajantes também eram alvos fáceis destes quilombolas:
“... os negros tão demasiadamente absolutos em fazerem crimes
atrozes que não podem os viandantes fazerem as suas jornadas
com segurança sem que muitos deles fiquem mortos pelas
estradas... e os negros que estão em quilombos são uns ladrões
públicos e matadores porque se não sustentam senão de roubos
262
APM SC Cod 260 fls. 16 e 17
263
APM SC Cod 76 fls. 85v-86
264
APM SC Cod 84 fls. 108v-109
118
e em consequência deles se seguem o matarem, por serem
demasiadamente tiranos...”
265
Entretanto, mesmo que os quilombolas fossem identificados como sendo “inimigos capitais”, havia
um outro elemento, segundo as autoridades, com muito maior capacidade para levar à ruína a colônia.
Tratava-se da própria população livre que o alimentava e através de seus exemplos, conduzia os cativos aos
desvios:
"...O dano maior que considero no caso que os negros se
levantem não é tanto das conseqüências que isto pode produzir,
como do terror pânico dos brancos que com a menor coisa se
desanimam e é sem duvida que por isto não é de pouca
ponderação a matéria porque ainda que os negros não tenham
ordem nenhuma, e por isso seria menos durável a sua
sublevação: o medo dos brancos podia causar maior desordem,
e dar aos outros maior atrevimento para o que ajuda muito as
consciências gravadas, o concubinatos, e os malefícios deste país
que clamam ao léu pelo seu castigo, e quando Deus o quer dar
aos que merecem não busca meios estrondosos, mas serve-se
daqueles que aos olhos humanos parecem mais desprezíveis...
"
266
Para o autor, os negros, ainda que rebelados, não possuiriam condições de provocar danos
irreversíveis à sociedade e, por conseguinte, à escravidão, porque eram inferiores aos brancos e não tinham
condições de se manterem organizados. O perigo real estava no seio do grupo senhorial e dos homens livres e
em função de seus próprios problemas e fraquezas, eles estariam colocando a segurança e o progresso da
colônia em risco.
Os cativos, neste discurso, não tinham elementos civilizatórios suficientes para se estruturarem de
forma significativa e destruir a sociedade. Os danos causados pelos negros deixavam, portanto, de fazer
parte de um contexto sócio-econômico e se tornavam um castigo divino. Com esta explicação era retirado
dos escravos fugidos a possibilidade deles se rebelarem e agirem enquanto agentes históricos possuidores de
uma consciência e de vontades. Tratava-se de um castigo da ordem do divino e não dos homens. Portanto, a
solução estaria dentro da própria sociedade: bastaria acabar com os elementos de desordem e de desapego à
fé e, consequentemente, a Deus e este não mais castigaria a população usando os seres “mais desprezíveis”.
Este discurso é muito parecido com as idéias de Benci, para quem as crises pelas quais passava a
colônia eram causadas pela ausência de consciência cristã nos senhores. Para solucioná-las, deveriam deixar
265
APM SC Cod 32 fls. 92v-93
266
Carta do Conde D. Pedro de Almeida, Conde de Assumar para Ouvidor do Rio das Mortes, em
24 de março de 1719. APM SC 11. P. 118,118v.
119
de ser infiéis, gentios, brutos, irracionais, homicidas, mentirosos e pecadores
267
. Deveria-se criar na colônia
uma verdadeira cristandade através do reforço da noção de família e da depuração dos hábitos sexuais,
sempre tão desregrados. Assim, vivendo de forma correta e dentro dos ensinamentos de Cristo, os senhores
tratariam bem de seus escravos, e estes, não fugiriam.
Benci não era o único que pensava assim. Em 1728, foi publicada em Lisboa uma obra que tinha
como único objetivo mostrar e sanear os problemas de ordem moral que ocorriam no Brasil. Entre os anos de
1728 a 1765, o livro teve cinco edições, o que demonstra sua aceitação pelo público leitor. Refiro-me ao
“Compêndio narrativo do peregrino da América” que trata de vários discursos espirituais e morais, e muitas
advertências e documentos contra os abusos que se acham introduzidos pela malícia diabólica no Estado do
Brasil”
268
. Seu autor detectou inúmeros problemas de ordem moral na colônia e se propôs, através da
parábola de um peregrino, a mostrá-los a fim de que fossem eliminados e que a fé verdadeira e pura pudesse
ser vencedora da luta entre o bem e o mal. Para ele, diversos abusos eram cometidos no Brasil em nome da
luxúria, da soberba e da vaidade, e as pessoas deveriam mudar suas formas de vida para que não fossem
condenadas ao inferno. Com relação aos escravos, aconselha a paciência e que prestassem obediência aos
senhores e, a estes, que fossem cristãos e que dessem bons tratamentos aos cativos a fim de que não
fugissem.
Pode-se perceber que para todos os autores tratados aqui, o quilombo não era identificado como
fazendo parte de um projeto de vida dos cativos. O escravo só fugiria se não tivesse um bom tratamento.
Estas mesmas colocações podem ser identificadas no poema a seguir de autoria de Joaquim José de Lisboa,
alferes do Regimento Regular de Vila Rica:
“...Os escravos pretos lá
Quando dão com mau senhor
Fogem, são salteadores
E nossos contrários são
Entranham-se pelos matos
E como criam e plantão
Divertem-se, brincam, cantam
De nada tem precisão.
Mas ainda, que não criassem,
Ou que não fizessem roças,
Benignas as terras nossas.
Mil silvestres frutos tem.
E como eles sejam ágeis
Descobrem naquelas matas,
Carajú, cará, batatas,
E muito mel que há também.
Vem de noite aos arraiais,
E com indústrias e tretas
Seduzem algumas pretas,
267
BENCI, J. op. cit. P. 80
268
PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio narrativo do peregrino da América em que se tratam de
vários discursos espirituais e morais e muitas advertências e documentos contra os abusos que se
120
Com promessas de casar
Elegem logo Rainha,
E Rei, a quem obedecem,
Do cativeiro se esquecem
Toca a rir, toca a roubar
Eis que a notícia se espalha,
Do crime e do desacato.
Caem-lhe os capitães do mato
E destróiem tudo enfim.
Ora ai vem o pobre preto
Entre cordas, prezo, e nu,
Vão lhe os bacalhaus ao c...
E o seu Reino acaba assim...”
269
O autor, utilizando-se claramente das concepções estéticas do Arcadismo Mineiro e copiando
inclusive, o nome da amada – Marília -, descreve-lhe as riquezas encontradas e produzidas na Capitania de
Minas Gerais. Demonstrou como a natureza era boa, propiciadora de alimentos em grande quantidade e
diversidade, facilitadora da existência de grande variedade de animais e de homens.
Após descrever estes elementos, passou a tratar dos negros fugidos e também dos indígenas da
região. O que nos importa são as suas idéias sobre os negros habitantes dos quilombos.
A primeira imagem que nos chama a atenção é que, também aqui, os escravos fugiam por causa de
maus senhores. Viravam salteadores e se tornavam contrários não somente de quem escrevia, mas também de
toda uma sociedade. E por que se tornavam contrários? Porque passavam a viver nos matos em contatos com
a natureza e, distantes portanto, da civilidade. Eles trabalhavam, criavam, se divertiam. Mas a natureza era
tão boa que mesmo que eles nada fizessem, não morreriam de fome. A mãe natureza tudo lhes daria. Eis aqui
uma das características mais marcantes do Arcadismo: a exaltação da natureza e de seu aspecto fértil.
Com relação à sociedade estabelecida pelos fugitivos, esclarece que usavam de artimanhas e
seduções para convencer as negras a irem para o mato com eles. O curioso é que tudo isto era feito baseado
em promessas de casamento, algo importante para a sociedade cristã e não, provavelmente, para os escravos
envolvidos. Entretanto, o autor nos informa um aspecto significativo da cultura negra: a eleição de Rei e
Rainha, elementos de chefia africanos encontrados no interior de diferentes grupos de escravos no Brasil.
A prisão destes negros foi feita pelo capitão do Mato em função dos roubos e desacatos promovidos
por eles mesmos. Ocorreu, então, a destruição do quilombo, a prisão, o castigo e o fim de seu Reino.
A idéia clara oferecida por este poema é a de que o quilombo existia como possibilidade aos
escravos, mas sempre a partir de atitudes dos senhores. Todavia, a sociedade branca acabava vencendo e
mostrando seu controle sobre a situação; por outro lado, a menção da existência dos quilombos em um poema
que busca demonstrar as riquezas e belezas da capitania mineira, já nos sugere que este era um problema
constante para esta região e que escravos fugidos faziam parte deste universo, da mesma maneira que seus
companheiros cativos. O quilombo fazia parte do cotidiano.
Diante desta presença constante, os grupos quilombolas eram vistos como elementos capazes de
perturbar o sossego público e no caso do Sertão, impedir o avanço da civilidade e do povoamento. Se o
Sertão era uma área de perigos reais, estes em muitos momentos eram causados pelos negros fugitivos que lá
viviam. Como a inserção desta região se fazia cada vez mais necessária, inúmeras tentativas ocorreram
visando à liquidação destes grupos. Contudo, sempre foram inúteis. Quando muito, conseguiam aprisionar
acham introduzidos pela malícia diabólica no Estado do Brasil. Lisboa, Oficina de Manoel
Fernandes da Costa (Impressor do Santo Ofício), 1728.
269
LISBOA, Joaquim José de. Descripção curiosa das principaes produções, rios e animaes do
Brasil, principalmente da Capitania de Minas Gerais. Lisboa, na Impressão Regia, 1806.
121
alguns poucos escravos ficando a grande maioria dispersa nas matas. Em toda a documentação percebe-se
que havia um clima de terror provocado por estes negros não só na população que vivia por perto, mas
também entre os próprios participantes das expedições que buscavam acabar com os quilombos e com os
quilombolas.
“...neste mesmo lugar senti um notável enfadamento porquanto
todos os principais homens que me acompanhavam e tinham
por exercício a freqüência nos matos, entraram a difundir pelo
mais povo uma voz vaga de que estávamos mui vizinhos a mais
fortes quilombos de negros e que havia um que só esse tinha
mais de duzentos e que já os mesmos negros andavam na nossa
escolta explorando as nossas forças e que este projeto hera
infalível porque os vestígios que deles tinham encontrado assim
o certificavam entrarão logo todos a ficar pavorosos e com
repetidas lamentações prezaguravão uniformes a sua
desgraça.”
270
Durante muito tempo foi sendo formada uma visão sobre o quilombola que passava por uma
proximidade com os animais e com a natureza, considerada local de descaminhos e fora do controle social e
religioso. A notícia da presença de quilombolas numa região qualquer gerava quase sempre atitudes de medo
e de auto proteção por parte das pessoas. Este pânico pode ser verificado de várias maneiras na
documentação: uma forma seria a identificação de várias cartas pedindo socorro, armas e munições para se
resguardarem dos possíveis ataques quilombolas; um outro caminho seria a verificação do número de
sesmarias abandonadas e outras nem mesmo assumidas, em função do medo dos ataques; por último, mas
talvez a melhor maneira de identificarmos o poder deste pânico, seriam as constantes expedições enviadas
aos Sertões com o objetivo claro e específico de combater quilombolas.
Ainda que os quilombolas fossem para os mineiros o foco constante de suas inquietações, não foram
os únicos. Os indígenas também contribuíram muito para os medos desta população, assim como os vadios,
ou seja, aqueles que de uma forma particular estavam, da mesma maneira, fora do controle social. Os vadios
representavam uma outra forma de perigo, posto que conviviam muito perto da população, ao contrário dos
demais grupos que se isolavam ou tentavam se manter afastados o máximo possível.
270
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valladares , Em 15.11.69. Arquivo
Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) 18,2,6
122
III- Os vadios: aqueles que não tem lugar na boa sociedade
Além dos índios considerados bravios, dos garimpeiros clandestinos, dos escravos
fugidos e dos quilombolas, as autoridades mineiras tinham um outro foco de constantes
preocupações: os vadios, ou melhor dizendo, aqueles que elas percebiam desta forma.
Entretanto, é necessário ressaltar que havia, no mínimo, duas concepções acerca da
vadiagem
271
. A primeira, que será vista posteriormente, remete à população pobre, com
poucos ou nenhum escravo, e que vive em busca de terras para cultivar e é muitas vezes
identificada enquanto grupo de vadios sem trabalho. A segunda refere-se aos vadios
enquanto marginais na sociedade. São os que não trabalham e que vivem de expedientes. É
este grupo que será analisado agora.
Em diversos documentos percebe-se que foi sendo construída no tempo, uma
imagem sobre estes elementos sociais, passando a ser apresentados como responsáveis por
uma série de problemas sociais e como causadores de desordens. Mas quem era passível de
ser caracterizado como vadio em Minas Gerais durante o século XVIII?
Talvez a resposta mais completa possa ser buscada na “Instrução” de Teixeira
Coelho. Para ele, haveria dois grupos de vassalos: um bom e outro mau. Os bons vassalos
seriam aqueles que mineravam ou se dedicavam a cultivar a terra, ou seja, aqueles que
possuíam ocupações e, consequentemente, eram tributáveis. Os maus vassalos eram os
vadios que não admitiam ocupações e viviam como “feras nos arraiais, nos Sertões e nos
lugares inacessíveis”
272
Um agravante para a ociosidade dos vadios é que esta levava à
marginalidade, criando desordens, assassinatos e roubos. Os vadios, para Coelho, eram
271
Sobre a questão da vadiagem, ver o livro de SOUZA, Laura de Melo e. Os desclassificados do
ouro: a pobreza mineira do século XVIII. Rio de janeiro, Graal, 1982.
123
membros “infectos”
273
da Província e eram homens atrevidos mas, ainda assim,
importantes nas atividades de avanço da civilidade, ou seja, na conquista dos Sertões, no
combate aos índios e aos quilombos:
“... Por estes homens atrevidos é que são povoados os Sítios remotos do Cuiethé, Abre
campo, Pessanha e outros: deles é que se compõem as Esquadras, que defendem o
Presídio do mesmo Cuiethé da irrupção do Gentio bárbaro, e que penetram, como feras,
as matas virgens, no seguimento do mesmo gentio: e deles é finalmente, que se compõem
também as Esquadras, que muitas vezes se espalham pelos matos, para destruir os
quilombos de negros fugidos, e que ajudam as Justiças nas prisões dos réus...”
274
Temos, portanto, uma outra característica do vadio. Ele era pernicioso à sociedade.
Mas no caso de Minas Gerais, um mal necessário. Continuando com Teixeira Coelho,
percebemos que o vadio era basicamente o mestiço e o negro forro, ainda que alguns
brancos também o fossem. Entretanto, era a minoria. A cor da vadiagem era resultante dos
contatos interétnicos, o resultado de algo perigoso que, no século seguinte, irá merecer
estudos mais aprofundados: a mestiçagem. Ou era ainda, a cor de um outro perigo social: a
negra.
O vadio, qualquer que fosse a sua cor, era a personificação do perigo. Perigo talvez
maior que o provocado pelo quilombola, porque este estava nos matos, escondido nos
Sertões. O vadio, ao contrário, vivia nas vilas, nos centros urbanos, cometia ataques à
população e somente quando precisava, escondia-se nos Sertões. Daí, sua ameaça em
potencial à sociedade. Através de sua não aceitação ao trabalho e ao domínio, colocava em
risco a disciplina e a hierarquia, fundamentais ao controle social de uma região, por si só,
bastante explosiva. Estes eram, em linhas gerais, os traços que caracterizavam os vadios.
Mas se olhados com maior atenção, percebe-se que havia outras particularidades inerentes
272
COELHO, José João Teixeira. Instrucção para o governo da Capitania de Minas Geraes. (1780)
. In: RAPM
. Ano VIII, fascículo I e II, Jan/jun 1903. p. 478
273
ibidem p. 479
124
ao grupo. Um traço sempre presente nos comentários sobre os vadios era a sua
itinerância que não permitia o controle total, dando autonomia e, mesmo condições de
sobrevivência àquele que era reputado enquanto vadio:
“... O homem pobre...permanece por muito pouco tempo num mesmo lugar. Sua
característica marcante é a extrema mobilidade. Mover-se, em busca de melhores
condições de sobrevivência, tornava-se uma atitude previsível e esperada...”
275
Ainda que a autora esteja tratando dos homens pobres e não propriamente dos
vadios, não há como negar que a itinerância era também parte integrante da vida destes
grupos desprovidos de riquezas.
Em Minas do século XVIII, esta itinerância pode ser vista de diferentes maneiras:
Havia os que perambulavam pela Capitania em busca de novas regiões para esmolar; os
que paravam em determinados locais a fim de viverem da caridade ou mesmo de furtos e
jogos; os que em nome da religião, conseguiam donativos e depois fugiam ou gastavam em
bebidas, ou ainda aqueles que não conseguindo ou não querendo trabalho temporários nas
fazendas, acabavam por cair na categoria de vadios. Enfim, o leque para esta categoria era
amplo e comportava uma gama variada de opções. Todavia, havia um traço comum a todos
os vadios, a sua pobreza. Para as elites mineiras, o vadio era o miserável que além de nada
possuir, esbanjava o que conseguia porque era um desregrado total.
A carta que a Câmara de Sabará enviou ao Conde Valadares relata este problema e,
apresenta um outro: o aproveitamento por parte dos vadios dos benefícios advindos com a
religião. Através dela, conseguiam perambular pela capitania, obtendo esmolas que eram
gastas em atividades profanas.
“...Não obstante a Providência que para a pública utilidade foi sua Majestade servido dar com a proibição
dos pedidores para quaisquer santos com caixinhas e oratórios portáteis. Se tem introduzido nestas minas a
274
ibidem p. 479
275
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial.
Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 1998. P. 102
125
este respeito vários abusos bem prejudiciais ao público e abomináveis pelas ruins conseqüências que todos
os dias se estão experimentando. Um deles é o costume de ser expedida de uma para outras freguesias uma
bandeira com o título do Divino Espírito Santo acompanhada de 4 ou 5 homens a quem chamam foliões que
para uma só festa que fazem em cada um ano correm por toda esta capitania e ainda pelos Sertões que
podem chegar e são tantos os pedidores que muitas vezes em um só lugar se contam 4 e 5 bandeiras com
aquelas companhias ou uma semana de diversos distritos ou freguesias. Para estas companhias ou para
servirem de foliões só se procuram aqueles homens que por desocupados se podem reportar por vadios, os
quais por algum ajuste ou de ordinário pelo interesse de certa parte das mesmas esmolas andam vagando
por onde lhes parece e com o descaramento de desconhecidos em qualquer terra fazem muitos distúrbios, e
despendem as esmolas que tiram em usos profanos e excessivos absurdos e que parece se evitaria se ao
menos os tais pedidores não fosse permitido saírem em tal diligência fora das suas freguesias...”
276
A construção da imagem do vadio era pautada no fato de que seriam um problema à
sociedade. O vadio estava à margem e não tinha um espaço social próprio. Ele, em Minas
Gerais do século XVIII, fazia parte de uma sociedade escravista, onde os papéis sociais
eram muito claros. Havia os senhores e havia os escravos. À camada intermediária, cabia a
adequação a um papel definido quase sempre em função do trabalho.
Entretanto, esta mesma sociedade desenvolveu a idéia de que o trabalho não era
algo que devesse ser valorizado. O trabalho era relacionado às atividades dos escravos.
Logo, quem não era escravo, não trabalhava. Quem trabalhava se aproximava dos cativos,
assim, a negação ao trabalho por parte do vadio não deixava de ser a negação de ser
equiparado ao escravo, elemento tão baixo na sociedade. O vadio, qualquer que fosse a sua
cor, era um homem livre. E livre, para esta sociedade, não exercia funções de escravos.
“... Não há na Capitania de Minas um homem branco, nem uma mulher branca, que
queiram servir; porque se persuadem, que lhes fica mal um emprego, que eles entendem
que só compete aos escravos. Deste modo centos de escravos e cento de escravas se
ocupam nos serviços domésticos e deixam de se ocupar no trabalho das terras e na
extração do ouro...”
277
276
Carta da Câmara de Sabará ao Conde Valadares, em 30.12.1769. Arquivo Conde de Valadares
(Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) Documentos. 116 18,3,6
126
Estas idéias estavam presentes em toda a sociedade. O branco não aceitava o
trabalho porque era branco, livre e, portanto, superior. Os mulatos, mulatas e negros e
negras forros também não queriam trabalhar para não se reduzirem novamente às
ocupações dos escravos
278
.
A sociedade se via numa encruzilhada: como induzir ao trabalho numa estrutura
que não o valorizava enquanto atividade para todos os segmentos sociais? A solução
evidentemente, passaria pela coerção e controle. Os escravos, teoricamente, não seriam
problemas porque eram controlados – ou pelo menos deveriam ser – pelos seus próprios
senhores. O vadio precisava de alguém que o controlasse e, para isso, houve
sistematicamente, um processo de criminalização destes.
279
Vários bandos, Cartas Régias ou alvarás, foram estabelecidos com o intuito de
forçá-los ao trabalho ou pelo menos, de torná-los útil à sociedade. O Bando de 16 de julho
de 1736 é um exemplo que mostra as concepções acerca dos vadios e o que deveria ser
feito com aqueles que não se adequassem ao sistema:
"... todos os vadios que vagarem por estas Minas, sem fazenda sua ou a maior ofício ou
amo a quem sirvam, se dentro de vinte dias não tiverem estabelecimento por algum dos
referidos meios e o havendo por pretexto o tornarem a largar para viverem em vida livre
sejam presos e remetidos às justiças ordinárias ... “
280
.
Um outro exemplo é a Carta Régia de 22 de julho de 1766 que determinou a
urgência de se fixarem os vadios e proceder contra eles com as mesmas penas dos
salteadores. Dirigida a Luis Diogo Lobo da Silva, o teor da carta régia era o seguinte:
277
COELHO, J.J. Teixeira. Op. Cit. p. 561
278
Sheila de Castro Faria analisando os registros paroquiais de Campos dos Goitacases, percebeu
que as pessoas livres alforriadas movimentavam-se em maior número que as demais. Uma
explicação para este fenômeno foi, sem dúvida, segundo a autora, o medo de uma possível re-
escravização por parte de seus antigos senhores ou de seus descendentes.
278
279
FRAGA Filho, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo:
Hucitec, EDUFBA, 1996. Cap. 4
280
APM SC- 130, fls. 55 e 56v.
127
"...Sendo-me presente em muitas, e repetidas queixas, os cruéis, e atrozes insultos, que nos
Sertões dessa Capitania têm cometido os vadios; e os facinorosos, que neles vivem, como
foram separados da Sociedade Civil, e Comércio humano: sou servido ordenar que todos
os homens que nos ditos Sertões se acharem vagabundos, ou em Sítios volantes, sejam
logo obrigados a escolher em lugares acomodados para viverem juntos em Povoações
Civis, que pelo menos tenha de cinqüenta fogos para cima com Juiz Ordinário,
Vereadores, Procurador do Conselho, repartindo-se entre eles com justa proporção as
terras adjacentes; e isto debaixo da pena, de que, aqueles, que no termo competente, que
se lhes assinar nos Editais, que se fixarem para este efeito, não aparecerem para se
congregarem, e reduzir à sociedade civil nas Povoações acima declarada (sic), serão
tratados como Salteadores de Caminhos, e inimigos comuns, e como tais punidos com as
severidades das Leis; excetuando-se contudo primeiramente os Roceiros, que com criados,
Escravos, e Fábrica de lavoura vivem nas suas Fazendas sujeitos a serem infectados
daqueles infames, e perniciosos vadios: Em segundo lugar os Rancheiros, que nas
Estradas públicas se acham estabelecidos com seus Ranchos para a hospitalidade e
comodidade dos Viandantes, em benefício do Comércio, e da comunicação das gentes: Em
terceiro lugar as Bandeiras, ou Tropas, que em Corpo, ou sociedade louvável vão aos
Sertões congregados em boa união, para neles fazerem novos Descobrimentos: Sou
servido outrossim que os mesmos Roceiros, Rancheiros e Tropas de Bandeira tenham toda
a autoridade necessária para prenderem, e remeterem às cadeias públicas das comarcas
que tiverem mais vizinhas, todos os homens, que se acharem dispersos, ou seja nos ditos
chamados Sítios Volantes, sem estabelecimento permanente, e sólido, ou seja nos
Caminhos, e Matos, remetendo com eles autuados os lugares, Estado e circunstâncias, em
que estiverem ao tempo, em que forem encontrados . . . "
281
Esta mesma preocupação foi a do governador da Capitania de São Paulo, Luis
Antonio de Souza Botelho, em 1765. O referido governador criou 18 vilas e aldeias,
forneceu incentivos para que os colonos se fixassem a fim de que mestiços, mulatos e
indígenas mansos “...abandona [ssem] a floresta virgem” e assumissem o “arado e a
vaca”. Autorizou, inclusive, “ ...que uma certa dose de corção fosse aplicada para
281
RAPM Ano XVI, fascículo I. p. 451-2
128
recolher moradores de “fazendas flutuantes” e teria usado mais coerção caso tivesse os
meios para tal...”
282
A preocupação com a vadiagem e seu controle não era um fato corrente apenas
nestas regiões e também não se restringia aos vadios tradicionais, podendo ser vista
também no Norte da colônia e relacionado aos índios. Em 1754, Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, Governador do Grão-Pará e Maranhão, decretou um bando que foi
posteriormente confirmado por Carta Régia de 14 de março de 1755, afirmando que todo
índio que não estivesse trabalhando “fossem dados de soldada aos moradores de acordo
com despachos governamentais”.
283
Parece que o problema do controle dos vadios nunca foi solucionado a contento das
autoridades. Ainda em 1831, a então Província de Minas Gerais, estava às voltas com seus
“vadios”. No dia 16 de dezembro deste ano, foi enviada uma proposta ao Conselho Geral
da Província, cujo objetivo maior era organizar o trabalho, impondo-o aos vadios
284
. Este
texto é marcadamente fisiocrata. Para seus autores o que vale como riqueza é a terra. No
caso, a terra mineira. Rica, fértil, grande e, infelizmente, segundo eles, capaz de manter
uma população enorme sem que ela precise produzir nada. Desta forma, a natureza
acabava por facilitar a ociosidade de seus moradores, principalmente, os dos Sertões. O
texto continua alegando que os vadios além de não trabalharem e portanto, de não
produzirem, viviam de expedientes, roubos, vícios, embriaguez e imoralidades, como por
exemplo, o concubinato e a prostituição.
Ainda que com características de ordem moral, o texto demonstra preocupações
também com a situação política e econômica da província e do Império. O fim do tráfico
282
DEAN, Warren. Op. Cit. p. 117
283
AHU – Pará. Cx 110 doc. S/ número. Cit. Por DOMINGUES, Angela. Ameríndios do Norte do
Brasil na Segunda metade do século XVIII: as contradições da liberdade. In: RSBRH. Curitiba, n.
12, 17-30, 1997. p. 21.
129
determinava que cada vez mais, o trabalho desta população fora do sistema, precisava ser
organizado. Para tal, recomenda a elaboração de uma lista com os nomes dos vadios, ou
seja, aqueles que “...não sendo proprietários, ou não vivendo de outra profícua, conhecida
e lícita indústria, ou ofício, estão sem Amo, ou se não se ocupam proveitosa e
continuadamente...”
285
A partir destas listas, deveriam os Juízes de Paz, delegados ou
Inspetores, reuni-los em povoações e destiná-los aos serviços dos proprietários de
fazendas sempre que fosse necessário. Em troca, receberiam um salário. Os homens novos
deveriam ser entregues como aprendizes a fim de ter alguma profissão. O mesmo ocorreria
com as mulheres novas que deveriam ser colocadas em casas de respeito a fim de
aprenderem os ofícios do lar e contraírem casamentos.
Percebe-se que o documento acima é uma elaboração conservadora de elementos
sociais preocupados com a segurança e a tranqüilidade pública, ameaçadas pela
“ociosidade nas classes baixas da população”
286
. Os autores do projeto acabam o texto
levantando uma questão preocupante para a época: como fazer para organizar, controlar e
exigir uma ocupação das “classes baixas da população” e ao mesmo tempo, respeitar o
“regime de liberdade” e os “direitos do cidadão” vigentes? Além disto, criticavam que
estes direitos dos cidadãos “...eram tão grande que pouca e bem escassa margem havia
deixado aos deveres...”, e que nem ao menos eram “compreendidos sequer pela maioria
do povo...”.
287
Conforme pode ser observado, a questão do controle sobre uma população vista
como vadia, foi uma constante nas pautas dos governadores de Minas durante a Colônia,
mas o foi também no Império. O Conde de Valadares foi um dos governantes de Minas
284
Repressão da vadiagem: Proposta enviada ao Conselho Geral da Província, organizando o
trabalho e impondo-o aos vadios. 16.12.1831. In: VEIGA, José Pedro Xavier da. Efemérides
mineiras. S/ed. 1926
285
ibidem
286
Ibidem
287
Ibidem
130
Gerais do período colonial que mais de perto percebeu a importância dos vadios para a
Capitania. Conforme já visto, Minas Gerais no século XVIII possuía ainda muitas regiões
controladas por índios e por quilombolas que precisavam ser trazidas ao controle colonial.
O governador percebeu que os vadios seriam úteis ao projeto de conquista destas
áreas, já que a utilização de escravos era onerosa e também perigosa ao sistema, pois, o
cativo poderia uma vez na mata, fugir e tornar-se um quilombola. O vadio, além de não
significar qualquer gasto para as autoridades (a não ser os referentes à formação das
Bandeiras), era um elemento que precisava ser retirado das vilas. Logo, o melhor local para
ele, seriam as fronteiras entre a civilidade e a barbárie: os Sertões. Mas não deveriam viver
isolados e sem rédeas. Os vadios eram enviados aos Sertões a fim de formarem os
Presídios, ou seja, áreas controladas por homens armados que deveriam defendê-la de
quaisquer ataques.
Nem todos os vadios ficavam sob o domínio das autoridades. Há na documentação
sobre o século XVIII mineiro, uma gama variada de queixas sobre os salteadores e
assassinos que vagavam pelas Serras e Sertões. O caso da Quadrilha da Mantiqueira foi
talvez o mais famoso. Mas não foi o único.
A existência da quadrilha e de seus atos veio a público em 1783 e quem governava
a capitania era D. Rodrigo de Meneses. A quadrilha ficou famosa por assaltar
contrabandistas de ouro e de diamantes. Os assaltados simplesmente sumiam e os parentes
ou sócios não procuravam investigar a fim de não levantar suspeitas sobre o ofício ilegal.
Entretanto, a quadrilha foi ficando cada vez mais audaciosa e passou a atacar todos os tipos
de pessoas que pudessem portar consigo riquezas. Rapidamente o medo se espalhou pela
população e a Serra da Mantiqueira ficou sendo um local perigoso:
“... Estes acontecimentos, senhor, têm atemorizado tanto os tropeiros e viandantes do
caminho, que fazem parar na Borda do Campo e no Registro até terem número bastante
131
para seguirem; o mesmo fazem os que vêm debaixo da Mantiqueira com medo de ser
roubados, e com temor daquele passo...”
288
De acordo com Vasconcelos, os componentes da quadrilha viviam em dois locais
distintos, Barroso e Ressaca. De cada um destes locais, vigiavam os que iam para a Serra,
comunicavam-se entre si e partiam para as áreas mais altas à espera da vítima. Estes
componentes da quadrilha eram homens da várias etnias. Havia ciganos, mestiços carijós,
negros e brancos. O líder, Joaquim de Oliveira, conhecido pelo apelido de Montanha, era
um branco.
Em setembro de 1782 um morador do Tejuco, José Antonio de Andrade
desapareceu após passar pelas últimas vilas antes de chegar ao pé da Serra. Várias
diligências foram enviadas a sua procura. Tudo em vão.
Em abril do ano seguinte, um grupo de tropeiros, acidentalmente, localizou uma
cova. Descobriu-se mais tarde que dentro dela haviam três cadáveres e alguns pertences.
Os corpos pertenciam a Antônio Sanhudo de Araújo, negociante de fazendas e morador no
Rio das Pedras, um rapaz que o acompanhava e um pajem. José Aires Gomes, em carta ao
governador informava que:
“...Parece serem pegados a mão e levados para o mato, onde os mataram a facadas, e o
companheiro sangrando na garganta de ambos os lados, sem mais ferida, e o preto
também sangrando na garganta; se inferem serem pegados a mão, porque o dito Sanhudo
se achava com uma faca na algibeira...”
289
Próximo a esta cova foi localizado um sítio com “...uma cafua com sinais de camas para
várias pessoas e vestígios onde permaneceram animais amarrados...” O Coronel José
Aires, fazendeiro importante da região e responsável por seu patrulhamento, escreveu a D.
288
Carta de Joaquim José da Silva Xavier a D. Rodrigo de Meneses, 19.4.1783. Appud.
Vasconcelos, Diogo de. Op. Cit. P. 273
132
Rodrigo relatando o caso e citando outras mortes que haviam acontecido na região.
Informou também, ter formado uma companhia para procurar nas matas, o corpo de José
Antônio Andrade. Continuava a carta revelando que dias depois, auxiliado pelo Alferes
Joaquim José da Silva Xavier, havia encontrado uma farda, um freio e um selim, que eram
provavelmente de um soldado da tropa paga que havia sido trucidado. A companhia havia
também localizado um sítio com lugar para dez camas e uma outra sepultura que era de
José Antônio, de seu pajem e de um cão. José Antônio havia sido morto com um tiro na
testa e uma facada no peito. A companhia conseguiu ainda efetuar várias prisões. Dentre
elas, a do cabra Joaquim José que deu todos os detalhes sobre a quadrilha. Mostrou ainda
outra sepultura com 12 corpos e posteriormente, uma outra com um homem gordo
desconhecido, dois negros, selas e as bestas. Foi preso também o caboclo Miguel Pinheiro
de Resende, cúmplice da quadrilha. Foi ele quem afirmou ser o Montanha, líder do grupo.
A partir de alguns poucos ofícios citados por Vasconcelos, chega-se à conclusão de
que a quadrilha possuía em torno de 15 pessoas: o cabra Januário Vaz, o caboclo Miguel
Pinheiro de Resende, o soldado Baltazar José Lauriano, João de Almeida ou João da
Gama, Bartolomeu, o cigano João Galvão , o líder Joaquim de Oliveira, e mais outros 8
presos.
A formação heterogênea permite perceber o que era a estrutura social em Minas
Gerais, ou seja, uma sociedade formada com grupos oriundos de diferentes meios e etnias,
vivendo em busca de riquezas e de ouro. Além disso, havia também uma grande e não
controlada transitoriedade permanente entre Minas Gerais e Rio de Janeiro. Os caminhos
se transformavam assim, em locais por excelência para a sobrevivência de todo tipo de
pessoas e atividades.
289
Carta de José Aires Gomes a D. Rodrigo de Meneses, em 9.4.1783. Appud. Vasconcelos, D. Op.
Cit. P. 271
133
Após a identificação dos vários grupos étnicos que
compunham a vida no Sertão Oeste de Minas Gerais e das
relações travadas entre eles e a população, é possível a
identificação de que o grupo considerado mais perigoso à
manutenção do sistema era o de quilombolas, espalhados por
vários recantos do Sertão. Para as elites e autoridades mineiras,
eles precisavam ser destruídos a qualquer custo porque
inviabilizavam seus projetos de civilização e de ocupação numa
área importante para a existência da Capitania.
Em função desta periculosidade este grupo será analisado
mais detidamente a seguir. O objetivo é a partir das imagens
criadas para estes, identificar as várias formas de estruturação
social, econômica, política e cultural, desenvolvidas por cada
grupo de quilombos.
134
Parte 3 – UMA TIPOLOGIA PARA OS QUILOMBOS MINEIROS
A vida dos mineiros do século XVIII era, no mundo real assim como no universo da imaginação,
permeada pela presença marcante e às vezes aterrorizante das populações quilombolas. Estes eram quase
sempre uma ameaça à segurança e à prosperidade de muitos, inclusive, da própria Coroa. Conforme mostra o
documento seguinte, os quilombolas,
“...não só inquietam as Pessoas, que por cartas de sesmaria intentam estabelecer com fazendas de criação e
Agricultura no extenso País que compreende o referido Distrito, de que de segue não só os movimentos de
embaraçarem as utilidades que resulta ao bem comum dos habitantes desta capitania mais prejuízos dos
Dízimos, nos que respondem provir dar ditas criações e Agriculturas além do perigo de aumentos humano
com outros fugitivos que consentem ao seu partido...”
290
Assim, aos capitães do mato era exigido que fizessem “...todas as diligencias possíveis para
procurar, extinguir o mais que for possível o flagelo em que se acha esta Capitania com o excessivo número
de negros fugidos, sendo, públicos os roubos e impiedade que tem cometido...”
291
Os prejuízos causados pelos quilombolas eram muitos e, em 1737, as vizinhanças de Ibituruna
estavam “infestadas de negros calhambolas que salteavam (sic) os caminhos e casas dos moradores, que ...
não se atreviam a descobrir ouro por aquelas paragens...”
292
. O autor desta carta, o Capitão Francisco
Bueno da Fonseca, afirmava ainda que “...ele estava para fazer uma entrada com a esperança de descobrir
ouro a qual lhe estorvava o sobredito receio...”
293
Estas constatações ficam ainda mais evidentes ao sabermos que Minas Gerais foi um palco fértil
para a proliferação destas estruturas. Guimarães
294
, em um estudo pioneiro, registrou mais de uma centena
para o século XVIII. Contudo, como o próprio autor afirma, este número provavelmente tende a ser maior,
uma vez que alguns foram destruídos e se formaram novamente repetidas vezes, e outros não foram sequer
descobertos.
Tabela 6- Quilombos em Minas Gerais durante o século XVIII
QUILOMBO ANO
1. Mariana 1711
2. Curralinho 1714
3. Brumado 1716
4. Palmital 1718
5. Serra da Caraça 1719
6. São Bartolomeu 1719
7. Sabará 1720
8. Palmital 1720
9. Santa Barbara 1720
10. Serro Frio 1722
11. Curral do Torino 1722
12. Casa da Casca 1726
13. no Turvo 1728
14. Tejuco 1731
15. do Queimado 1732/3
16. São João d’EL Rey 1733
17. no Ribeirão do Carmo 1733
18. Rio das Velhas Abaixo 1733
19. Carijós 1733
20. Mariana 1733
290
APM COD 118 PAG 172v e 173
291
APM COD 277 pag 13
292
APM SC 57 p. 17
293
idem
294
GUIMARÃES, Carlos Magno.Quilombos: Uma negação da ordem escravista. São Paulo: Ícone,
1992 .p. 137 e ss
135
21. Baependi 1736
22. Guarapiranga 1736
23. São Sebastião 1736
24. Ibituruna 1737
25. Rio Verde 1737
26. Baependi 1737
27. Rio Abaixo 1737
28. São Caetano 1737
29. Guarapiranga 1737
30. São Miguel 1738
31. Sabará 1738
32. Caeté 1738
33. Congonhas do Campo 1738
34. Inficionado 1738
35. São Caetano 1738
36. Catas Altas 1738
37. Itam 1738
38. Paracatú
1738
39. Pitangui
1739
40. Rio Verde 1740
41. Vila Rica 1740
42. Suassui 1741
43. Ambrózio
1741/3/6
44. Paraopeba 1741
45. Sertão das Contagens 1741
46. Comarca do Rio das Mortes
1742
47. Forquim
1743
48. Guarapiranga
1743
49. Serra de São Bartolomeu 1743
50. São Bartolomeu 1745
51. Vale do Prata 1745
52. Arassuaí 1745
53. Campo Grande
1746
54. Vila Rica 1748
55. Borda do Campo
1748
56. Sapucaí
1751
57. Parauna 1751
58. Demarcação Diamantina 1752
59. Demarcação Diamantina 1753
60. Sabará 1753
61. Campo Grande
1754
62. Brejo do Salgado 1754
63. Itaverava 1755
64. Caeté 1755
65. Rio da Prata 1755
66. Rio das Velhas
1756
67. São João d’EL Rey 1756
68. Indaiá e outros
1757
69. Ambrózio
1757
70. Itaverava 1758
71. Entre Lambari e São Francisco 1758
72. Pitangui
1758
73. Indaiá
1759
74. Serra da Marcela
1759
75. Sapucaí (Campo Grande)
1759
76. Ibituruna
1759
77. Comarca do Rio das Mortes
1760
136
78. Mariana 1760
79. Paraibuna 1764
80. Sitio da Caveira 1764
81. Serra da Marcela e São Francisco
1765
82. Inficionado 1765
83. Serra da Marcela
1766
84. Pitangui
1766
85. Paranaiba 1766
86. Pitangui
1767
87. Vila Rica 1767
88. Rio Pomba
1768
89. Pedra Menina
1768
90. Pitangui
1768
91. Indaiá e Abaeté
1768
92. Borda do Campo
1769
93. Cabeceiras do Parnaíba e Indaiá
1769
94. Catiguá
1769
95. Santos Fortes
1769
96. São Gonçalo
1769
97. Morocos
1769
98. Samambaia
1769
99. Paraibuna
1769
100. Suassui 1769
101. Cachoeira do Campo 1769
102. Tabua 1769
103. Serra Negra
1769
104. Carijos 1770
105. Rio do Pinto ou dos Cachorros 1770
106. Paragem do Quilombo 1770
107. Borda do Campo
1770
108. Fazenda Marimbondo
1770
109. Bambui
1770
110. Tamanduá
1770
111. Caeté 1770
112. Casa da Casca 1770
113. Mariana 1770
114. Brumado 1771
115. Morro do Chapeu 1772
116. Fidalgo 1772
117. Mariana 1772
118. Paracatu
1773
119. São João do Rio das Mortes
1773
120. Curimatai 1773
121. Arassuai 1774
122. Rio do Peixe e Pomba
1776
123. Forquim 1777
124. Rio do Sono 1778
125. São José 1780
126. Paraopeba 1780
127. Mariana 1780
128. Curral d’EL Rey 1781
129. Paracatu
1781
130. Serro 1782
131. Matheus Leme 1782
132. Itamarandiba 1785
133. São José do Rio das Mortes
1785
134. Caeté 1785
137
135. ( )* local desconhecido 1786
136. Rio Pomba
1786
137. Serra do Funil 1788
138. Itaverava 1795
Fontes: GUIMARÃES, Carlos Magno. Quilombo: uma negação da ordem escravista. .. ,Martins, J. S.
Quilombo do Campo Grande... , Anais da Biblioteca Nacional..., Documentos primários
Obs: Os quilombos em negrito encontravam-se localizados no Sertão Oeste de Minas Gerais.
Há uma outra razão para se pensar que o número de quilombos e suas populações seja maior do que os
inúmeros documentos têm atestado. De acordo com Martins
295
o que se convencionou chamar de Quilombo
do Ambrózio ou do Campo Grande, foi na realidade, uma confederação de quilombos de portes distintos –
não necessariamente formados apenas por negros fugitivos- e divididos de acordo com a região em dois
grandes grupos: (ver o mapa n. 20)
1. Na margem direita do Rio Grande estavam os quilombos do Ambrózio, São Gonçalo, Mamoí, Ajudá,
Indaiá, Pernaíba e Marcela. (sete quilombos)
2. Na margem esquerda do Rio Grande, ou seja, na região do Sapucaí, estavam localizados os quilombos
do Gondú, um sem nome e despovoado, Quebra-Sê, Boa Vista, Paiol, Cascalho, Primeira Povoação do
Ambrózio, o Fala, das Pedras, Goiabeiras, Oopeu, Boa Vista (na realidade, Nova Angola), Nova Angola
(na realidade, Cala Boca), Pinhão, Caetê, Zondu e Careca. (dezessete quilombos).
Figura 20- Região do Campo Grande
Fonte: Mapa de todo o Campo Grande, tanto da parte da
conquista, que parte com a Campanha do Rio Verde e de São
295
MARTINS, Tarcísio José. Op. Cit. P. 171 e ss
138
Paulo, como de Pihui, cabeceiras do Rio de São Francisco e
Goiases. 1760.
296
Legenda do mapa:
1. Quilombo do Gondu 80 casas
13. Quilombo Nova Angola 90 casas
2. Quilombo despovoado -
14. Quilombo do Pinhão 100 casas
3. Quilombo Quebra Sê 80 casas
despovoadas
15. Quilombo do Caetê 90 casas
4. Quilombo Boa Vista -
16. Quilombo do Zondu 80 casas
5. Paiol -
17. Quilombo do Cala Boca 70 casas
6. Quilombo do Cascalho 80 casas
18. Quilombo do Careca 220 casas
7. Primeira povoação do
Ambrósio
Despovoada
19. Quilombo do Ambrósio Despovoado
8. Quilombo O Fala Despovoado
20. São Gonçalo Despovoado
9. Quilombo das Pedras -
21. Quilombo do Mamoi 150 casas
10. Quilombo das
goiabeiras
90 casas
22. Quilombo do Ajudá Despovoado
11. Quilombo do Oopeo 137 casas
23. Quilombo do Indaá 200 casas
12. Quilombo da Boa
Vista
200 casas
24. Quilombo do Pernaíba 70 casas
Com relação à população há uma série de dados que serão
discutidos posteriormente. No momento, cabe ressaltar que
qualquer número proposto para contabilizar os quilombos em
Minas Gerais não deixará de ser uma aproximação, pois muitos
quilombolas trocavam todo o tempo de lugar para não serem
aprisionados e muitos não foram descobertos. Percebe-se assim,
uma série de atitudes que foram empreendidas com o intuito de se
protegerem. Entretanto, estas tentativas de contabilização são
válidas porque permitem um panorama da situação referente ao
cotidiano das relações escravistas e também que novas pesquisas
surjam em busca de conhecer com mais profundidade esta
história.
Pensando neste quadro complexo que envolve numerosos quilombos e suas características
específicas, percebeu-se que seria necessário estabelecer uma maneira que, de alguma forma, permitisse um
enfoque particular para cada tipo de estrutura quilombola. Um quilombo com uma população de centenas de
296
Este mapa foi localizado por T. J. Martins na Universidade de São Paulo e gentilmente cedido à
autora. Segundo este pesquisador, o mapa teria sido feito de maneira equivocada. Em relação as
legendas, o mesmo está de cabeça para baixo. De acordo com o autor o mapa precisa “...ser virado
ao contrário e inclinado de forma que a linha que parte da roda dos ventos fique paralela à linha do
Equador...” Ainda segundo Martins, os nomes dos quilombos foram alterados e trocados. Para esta
discussão ver Martins, T. J. Op. Cit. p. 175 e ss.
139
pessoas, com agricultura, armazéns, paióis, lideranças e outros elementos, não poderia ser analisado da
mesma forma que um outro formado por algumas poucas pessoas errantes e escondidas no meio dos matos,
sem economia própria e sem lideranças. Seria necessário dividi-los segundo suas características internas e
externas, a fim de que pudesse ser formado um conjunto que favorecesse a observação geral de cada um dos
grupos específicos. Caso contrário, se não fosse efetuado nenhum tipo de classificação, as análises seriam
apenas “análises de casos”, impossível com um número tão grande de quilombos. Analisar um ou outro seria
perder de vista muitas das individualidades de cada um. Logo, ainda que concordando que o uso de
classificações pode em alguns casos ser um limitador, seria um mal menor.
A tipologia criada para classificar os quilombos no Rio de Janeiro durante o século XIX
297
,
demonstrou no decorrer das pesquisas sobre estas estruturas em Minas Gerais que seria uma ferramenta útil
se fosse adaptada às especificidades econômicas da Capitania durante os setecentos. Por esta tipologia, os
quilombos encontrados na Província do Rio de Janeiro nos anos oitocentos foram divididos em três grupos:
Auto Sustentáveis, Dependentes e Mistos. Os principais requisitos para a caracterização de um grupo de
quilombos como Auto Sustentáveis era uma economia baseada numa agricultura capaz de sustentar seus
membros; a existência de uma liderança estável, e o fato de que sua população crescente conseguia se
manter pela elaboração e manutenção de uma estrutura econômica própria, baseada não só em plantações e
criações, mas também em trocas comerciais com os que habitavam nas proximidades. Normalmente, este
comércio permitia a obtenção de pólvora, de armas e de chumbo, elementos básicos para o cotidiano dos
quilombolas. Mas esta aquisição poderia também ser feita através de doações da população escrava ou não,
ou ainda mediante ataques e roubos periódicos às fazendas, vilas ou pessoas. Estes tipos de quilombos foram
definidos como Auto Sustentáveis porque não necessitavam da população externa para disporem de
alimentação e consequentemente, sobreviverem como comunidade. A existência de uma agricultura de
subsistência capaz de mantê-los era o que determinava o tipo de contato externo que os quilombolas teriam.
Os ataques, quando existiam, eram periódicos e os quilombolas não dependiam deles para obterem alimentos
visando à manutenção do grupo enquanto uma comunidade.
O segundo grupo da tipologia foi denominado como Quilombos Dependentes. Estes quilombos não
conseguiram desenvolver condições de prover sua existência, ou optaram por não possuí-las. Sua principal
característica era a de não terem criado uma economia básica, necessitando fazer incursões às fazendas e às
vilas próximas com o objetivo de promoverem razias e dedicando-se também, à prática de assaltos às
pessoas que passavam pelos caminhos. Estes quilombolas viviam escondidos nas matas e ao menor sinal de
aproximações indesejadas, fugiam para outra área. Sua população pequena não exigia nenhum tipo de
liderança ou de hierarquia.
O terceiro grupo é o dos Quilombos Mistos, ou seja, aqueles que tinham características tanto dos
Quilombos Auto-sustentáveis como dos Dependentes. Eles seriam uma espécie de quilombos em transição.
Desenvolviam a agricultura, mas esta não era suficiente para manter o grupo, daí, os roubos às fazendas.
Entretanto, a realidade dos quilombos mineiros do século XVIII demonstrou que alguns
pressupostos da tipologia precisavam ser adaptados à realidade mineira do século XVIII. Uma das diferenças
encontradas entre os quilombos da Corte e os de Minas Gerais, refere-se à prática de assaltos. Os quilombos
mineiros quer fossem pequenos ou não, praticavam assaltos de caráter diversos à população, ainda que
tivessem uma economia interna significativa e capaz de alimentar a todos. Estes ataques constantes à
população podem sugerir que estes quilombolas teriam, diferentemente dos encontrados na Província do Rio
de Janeiro, uma concepção política sobre o papel do quilombo enquanto desestabilizador da ordem
escravista, mas isto é algo que o nível atual das pesquisas ainda não permite concluir com alguma
confiabilidade. Além disto, e talvez como um desdobramento da idéia anterior, foram localizados em
diversos quilombos pequenos que tinham mobilidade e facilidade de esconderijos, determinados tipos de
lideranças ainda que temporárias.
Essas diferenças de comportamentos entre os quilombolas do Rio de Janeiro e os de Minas Gerais
não invalida a utilização da tipologia, porque o que define um quilombo como Auto Sustentável é a
existência de uma prática interna de produção de alimentos para manter uma população estável e de porte
elevado, e isto alguns quilombos mineiros possuíam. Da mesma forma, o que caracteriza os Quilombos
Dependentes é a existência de uma população pequena, sua não fixação em um único local e a ausência de
práticas sistemáticas de produção de alimentos no interior do quilombo. Até porque a própria noção espacial
de quilombo nestes casos é temporária.
A grande diferença encontrada entre a realidade do Rio de Janeiro e a mineira foi no tocante ao que
a tipologia classifica como Quilombos Mistos. Como os quilombolas de Minas Gerais praticavam roubos à
população, quer tivessem ou não uma agricultura capaz de alimentar a sua população, este item da tipologia
diluiu-se nos dois anteriores.
297
AMANTINO, Marcia S. O Mundo dos fugitivos: Rio de Janeiro na Segunda metade do século
XIX. Dissertação de mestrado apresentada na UFRJ. 1996
140
Além desta tipologia, o conceito de Comunidade foi essencial para o entendimento e
aprofundamento da realidade dos quilombos em Minas Gerais:
"...Uma comunidade humana é um agregado de pessoas funcionalmente relacionadas que vivem numa
determinada localização geográfica, em determinada época, partilham de uma cultura comum, estão
inseridas numa estrutura social e revelam uma conscientização de sua singularidade e identidade distinta
como grupo."
298
Além disto, uma comunidade é também, “... uma coletividade de atores que partilham de uma área
territorial limitada como base para o desempenho da maior parte das suas atividades cotidianas...”
299
Assim, determinados quilombos podem ser identificados como comunidades, pois, além do fato de
serem formados por escravos fugidos, portanto, marginais à sociedade oficial, eram estruturas próprias a
quem possuía consciência do seu caráter de fugitivo, logo, singular dentro do contexto escravista,
necessitando para manter esta condição de proteção e união junto às outras pessoas na mesma situação.
300
Evidentemente, havia também a possibilidade de defesa em caso de tentativas de recondução ao cativeiro.
Assim, a identidade de fugitivo unia todo o quilombo em torno de um mesmo ideal: manter a condição
escrava afastada de suas vidas, ou pelo menos ter uma espécie diferente de relação com ela.
Com base nestas definições sobre comunidades e mediante uma série de documentos sobre
quilombos em Minas Gerais, pode-se inferir que nem todos os grupamentos quilombolas devem ser
identificados como comunidades. Assim, foi preciso entender em que ponto esta diferença poderia ser mais
sentida. Uma resposta possível estava na relação que os grupos tinham com a terra, ou seja, as relações
econômicas que eles desenvolviam. A partir daí, seria possível chegar às suas atividades e interações
políticas, sociais e culturais.
Segundo Claude Meillassoux,
301
Marx havia estabelecido dois tipos de economias primárias para
caracterizar os grupos humanos menos complexos: as hordas e as comunidades agrícolas. O que as diferia
seria principalmente o tipo de relação que os homens de cada um destes dois conjuntos estabeleceria com a
terra. Para as comunidades agrícolas, a terra seria um meio de trabalho, ou seja, o grupo manteria com a terra
uma relação destinada a fazê-la produzir para alimentar a todos. A partir deste tipo de relação, os demais
ramos sociais acabariam por sofrer alterações ou adaptações que visassem manter o grupo harmônico e
estável. Desta maneira, os quilombos maiores, com população elevada, com economia própria e lideranças,
classificados na tipologia como Quilombos Auto Sustentáveis, nada mais são do que Comunidades
Agrícolas.
A carta endereçada ao Juiz Ordinário Antônio Gonçalves Monte, relatava a prisão
de alguns negros fugidos que viviam em um quilombo. Infelizmente, o autor da carta não
informa o nome do quilombo e como não específica também a área, fica-se sem condições
de localizar esta estrutura quilombola. Entretanto, este documento fornece pistas valiosas
para o entendimento destas organizações:
“... a informação que passo a VM. das dos negros apreendidos no Quilombo é a que me dão alguns
moradores da Estrada que me dizem que não consta que estes negros tenham feito mortes, nem roubo,
porque meteram se para aquelas gerais, a donde plantavam para comer e algodão para se vestir, o que eles
298
MERCER, B. E. The American Community. New York: Random House, 1956. p. 27 Apud.
Dicionário de Ciências Sociais
. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1987. P. 229
299
PARSONS, T. The social system. Glencoe, Free Press, 1951, p. 91 Apud. Dicionário de
Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1987. P. 229
300
É necessário salientar que estes fugitivos não precisavam ser necessariamente escravos.
Poderiam ser brancos, livres, forros, índios, enfim, qualquer um que não estivesse enquadrado na
sociedade oficial.
301
MEILLASSOUX, Claude, Mulheres celeiros e capitais, Porto: Ed. Afrontamento, 1976
141
assim mesmo indiciavam porque não tinham armas e menos vestuário que só constava de couros e algodão e
por armas flechas...”
302
Este é um documento raro não só pelas informações mas, principalmente, porque difere da imensa
maioria que trata sobre quilombos ou quilombolas na Capitania de Minas Gerais. A diferença é percebida
quanto aos contatos que estes mantinham com a população. Na maior parte dos documentos encontrados em
diferentes arquivos, os quilombolas são definidos pelos roubos, ataques e mortes que fazem e pelo pavor que
causam à população. Consequentemente, é urgente a necessidade de destruí-los a fim de parar com seu poder
e audácia, sempre crescente, segundo os relatos.
Todavia, esta carta diz exatamente o contrário. Os moradores que viviam próximos ao quilombo
afirmaram para as autoridades que eles não praticavam roubos, assaltos ou mortes na região. Viviam
plantando o necessário para a sua sobrevivência e cultivando o algodão para confeccionar roupas. Não
tinham armas de fogo, apenas flechas.
Este documento é uma exceção no quadro apresentado pelos quilombos em Minas Gerais, com uma
estrutura que se assemelha às encontradas durante o século XIX no Rio de Janeiro. A partir da análise dos
diversos relatos sobre quilombos e quilombolas, chega-se à conclusão de que, diferentemente do que ocorria
nesta Capitania, o ataque à população não pode servir, no caso de Minas Gerais, para caracterizar este ou
aquele tipo de quilombo. Praticamente todas as estruturas encontradas, grandes ou pequenas, praticavam
algum tipo de ataque à população; o que difere um pouco é a sua constância. Há alguns grupos que o
praticam como mecanismo de sustento; outros o fazem esporadicamente.
A documentação informa, por meios variados, que determinados quilombos eram grandes em
termos populacionais. Isto seria uma outra característica dos quilombos Auto Sustentáveis. Com base nestas
informações, fica difícil imaginar que uma estrutura de porte tão elevado conseguisse manter populações
numerosas somente através de roubos e ataques. Como manter, por exemplo, uma população como a do
quilombo do Campo Grande que, em 1746 tinha mais de 600 pessoas? Ou a do Quilombo do Catiguá, que
em 1769 foi localizado com mais de 150 jiraus?
303
Para o sustento desta população era necessário que o quilombo conseguisse produzir alimento
suficiente. Os documentos citam as roças e os armazéns onde os quilombolas guardavam o que colhiam e o
seu excedente: Em 1733 foi localizado um Quilombo em Mariana
304
com roças; o Quilombo do Campo
Grande
305
(1746) possuía além das roças, armazéns e paiós; O Quilombo do Sapucaí
306
(1759) também
possuía roças, o de Pitangui
307
(1767) tinha roças de milho, feijão, algodão, melancia e outras frutas; o da
Paranaíba
308
(1766) tinha copiosas lavouras e mantimentos nos paiós, o de Catiguá
309
(1769), o dos Santos
Fortes
310
(1769) tinham roças; o de São Gonçalo
311
(1769) possuía uma horta e o de Samambaia
312
(1769)
tinha, além do milho plantado, um mandiocal e mais uma roça. Um Quilombo situado nos braços do Rio da
Perdição
313
(1769) tinha um mandiocal e uma plantação de algodão.
302
Carta de Manoel Rodrigues da Costa para o Sr.. Juiz ordinário Antônio Gonçalves Monte.
Jan.1770. Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos). Códice: doc.
88 18,3,5
303
Jirau é um estrado de varas de madeiras usado como mesa, cama ou como armação para a
edificação de casas. Se no documento, o autor estiver se referindo a camas, a população do
quilombo pode ser avaliada em torno de 150 pessoas, o que já seria um número bastante elevado
para uma população quilombola. Mas se estiver tratando de casas, este número pode subir muito.
Calculando-se uma média de 4 pessoas por casa, teríamos uma população de 600 pessoas (a mesma
indicada na documentação sobre o Quilombo do Campo Grande).
304
SCAPM, Cod 15. P. 109v
305
RAPM, 1903 jan-jun. p.619-21
306
APM, Cod 110, p. 135
307
APM, SC 60, P COD. 118v-119
308
APM SC Cod 60 p. 110v
309
Anais da Biblioteca Nacional. Op. Cit.
310
Idem
311
Idem
312
Idem
313
Idem
142
A presença de plantações de algodão em alguns quilombos demonstra a existência de práticas de
confecção de tecidos e/ou roupas e pode sugerir a existência de grupos específicos responsáveis por estas
atividades.
Em 1770, uma expedição que circulava pelas imediações da Serra Negra avistou uma grande
fumaça. Perceberam que deveria se tratar de um quilombo, porque os índios que restavam na região já
estavam no aldeamento de onde o grupo havia saído. Seguiram na direção da fumaça e acabaram por
aprisionar um negro que dizia ter fugido do quilombo. Segundo seu depoimento, ele e mais quatro parceiros
haviam sido levados a “...uma grande povoação dos mesmos pretos...” dizia ainda que “... há lá grandes
roças e canaviais bananas, laranjeiras e descarossadores e muito algodão, que sendo como ele diz é cousa
grande...”
314
Sabendo-se que a agricultura pressupõe o sedentarismo e um tempo para que a plantação seja feita e
depois recolhida, pode-se perceber que estes quilombolas conseguiram, de uma forma ou outra, manter-se
num mesmo espaço por amplos períodos de tempos.
Este tempo de fixação em um mesmo local pode ser percebido de maneira mais efetiva em alguns
documentos, bastante raros em sua freqüência, onde há citado o período de existência do quilombo. Em 1733
havia um “...quilombo já com famílias por ter dezessete anos de estabelecimento...”
315
. Os quilombos do
Campo Grande, em 1746 tinham mais de vinte anos de existência
316
. Em 1770, a notícia de um quilombo no
Rio da Pomba causou preocupação por ser “... muito grande, e muito antigo...”
317
Sobre a população destas estruturas é oportuno lembrar Leroi-Gourhan, para quem a dimensão dos
grupos humanos varia de acordo com a relação "...massa alimentar, número de indivíduos e o tamanho da
área na qual este grupo vive, não esquecendo é claro, o estágio tecnológico de seu conhecimento..."
318
O caso dos quilombos não é diferente, pois a agricultura tenderia a permitir uma maior concentração
populacional diante da capacidade em alimentar um grupo maior. Já os grupamentos que não possuíam ou
não adotaram, por variadas razões, a agricultura, tenderiam ainda, segundo os relatos da Antropologia, a uma
menor complexidade, não só em relação à quantidade de pessoas, mas também às suas condições de vida, sua
organização política, social e religiosa. Para estes grupos, a única forma de manutenção seriam os roubos às
fazendas e aos habitantes ou viajantes.
Os documentos informam que as populações de muitos quilombos eram numerosas. Mas qual seria a
sua formação? Ao que tudo indica, haveria uma gama variada de possíveis arranjos populacionais no interior
dos quilombos mineiros. Havia alguns formados apenas por negros, mas também os que permitiam relações
mais próximas com índios, mulatos e brancos.
Na região de Tábua existia:
“...um quilombo de Negros que fugidos a seus senhores se conjuram publicamente contra
o sossego publico que segue com tanto prejuízo aos súditos de Vossa Majestade habitantes
naquele continente Ordena a um e que sem perca de tempo se faça as ordens condizentes
para que seja desta cabo e destruído o dito Quilombo, fazendo conduzir presos os pretos e
as pessoas que nele se acharem a Cadeia da Vila do Príncipe...”
319
Em 1769, numa expedição de combate a este quilombo conseguiram prender 80 pessoas de etnias
diferenciadas. Dentre elas, havia algumas que viviam “...estabelecidos em terras do mesmo quilombo com
famílias, roças, crianças e mulheres...”
320
Em Minas Gerais, na mata de Carlos Vieira, havia um grande quilombo em 1785 “... muito antigo
não só de negros e mulatos fugidos, mas também de alguns brancos...”
321
314
Carta de Manoel Jesus de Maria para Conde de Valadares. Local: Aldeia da Vila do Pomba .
Data: 30.09.1770 - Biblioteca Nacional. Documento 112 - 18,2,6
315
APM SCAPM Cod 15. p. 109v 110
316
APM SCAPM Cod 45 p. 64v 65
317
Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Cod. 18,2,6 doc. 111
318
LEROI-GOURHAN. O gesto e a palavra.Lisboa, Ed. 70. 1978.
319
Carta de Liberato José Cordeiro ao Conde de Valadares. Biblioteca Nacional. Códice 18,2,5
doc. 216
320
. . Idem
143
É curioso perceber que em alguns momentos, a população branca utilizou-se abertamente dos
quilombos como forma de escapar das autoridades. O caso de Bento Correia de Melo, ocorrido em 1751, é
bastante interessante para perceber como que os quilombos poderiam servir aos interesses de diversos grupos
sociais.
Bento Correia de Melo foi descrito pelas pessoas que o acusavam de ter tomado algumas lavras à
força, como um homem “revoltoso” e cometedor de vários crimes. Ele, auxiliado por uns companheiros,
invadiu a região do Sapucaí, destituiu o Guarda Mor do Distrito, o prendeu e nomeou um de seus
companheiros para o cargo. Logo depois, tomou posse das terras e lavras de uma série de pessoas. Os
prejudicados remeteram ao Governador Gomes Freire de Andrade, uma Petição solicitando providências.
Alegavam ainda que o referido Bento já havia se envolvido em uma série de revoltas e crimes na Borda do
Campo, razão pela qual havia fugido para o Quilombo do Sapucaí e de lá comandava uma série de insultos à
população.
322
O Governador respondeu à Petição criticando não ter sido avisado com mais prontidão e de não
terem sido os amotinados controlados a contento. Ordenava também que “.... faça toda a diligência para
por em prisão os cabeças e remetê-los a minha ordem a cadeia de Vila de São João del-Rei, ordenando a
quem tiver que requerer sobre a lavra, o faça pelos meios competentes...”
Apesar deste exemplo, a heterogeneidade populacional dos quilombos mineiros pode ser mais
facilmente percebida com relação aos índios.
Conforme visto anteriormente, muitas vezes os índios foram, ou se deixaram ser usados, como
inimigos dos quilombolas. Mas há um outro aspecto dessas relações que remete a uma situação
completamente diferente das vistas anteriormente. Havia situações em que grupos indígenas travavam com os
quilombolas relações muito próximas e cordiais. Ocorreram casos, inclusive, de índios que viviam no interior
dos quilombos. Percebe-se em todos os exemplos encontrados sobre estes tipos de arranjos populacionais
mais complexos que estes ocorreram sempre em estruturas grandes e possuidores de condições para manter a
população.
Isto nos leva a pensar no caso do Quilombo do Campo Grande. De acordo com o mapa feito em
1770 durante uma expedição enviada à região, haveria 24 quilombos distribuídos nas duas margens do Rio
Grande. Dos 24 quilombos apresentados, 15 possuíam indicação do número de casas. Tarcísio Martins,
fazendo uma média de 6 pessoas por cada casa, chegou a um número possível para esta população: 9.822
pessoas. Continua suas contas demonstrando que considerando os 24 quilombos do mapa e sabendo os
números de casas apresentados pela maioria deles, chega-se a um número médio de 108 casas por cada
quilombo, totalizando 2.592 casas e uma população de 15.552 pessoas.
323
São números impressionantes que despertam a atenção. Como Martins usou uma média de 6 pessoas
por casa, tomando com base os dados de Cunha Matos para 1834
324
seria possível encontrar uma diferença
grande se os dados fossem jogados para o século XVIII. Por isso, as contas foram refeitas tomando com base
uma média de 4 pessoas por casa. Os resultados continuam elevados: os dados apontam um total de 6.548
pessoas.
É impossível imaginar que estas 6.548 pessoas ou como indica Martins 15.542, fossem apenas
compostas por negros fugidos do cativeiro. Por tudo o que já foi visto anteriormente fica uma possibilidade
que ajudaria a explicar um número tão significativo: esta população poderia ser formada por diversos
elementos étnicos reunidos em função de diferentes problemas. Os índios poderiam buscar ajuda contra a
exploração de suas terras e também oferecê-la nos quilombos; os mulatos, brancos ou mesmo negros forros
poderiam perceber o quilombo como uma alternativa de vida que os liberasse do controle colonial e do
pagamento de impostos cada vez maiores. Estes poderiam ser os que as autoridades identificaram várias
vezes como sendo vadios que viviam no Sertão.
Infelizmente, na situação atual das pesquisas sobre quilombos em Minas Gerais, ainda não é
possível esclarecer com uma certa dose de certeza esta situação. Somente inferências podem ser feitas.
De acordo com Meillassoux
325
, a utilização da agricultura por um determinado grupo provoca,
dentre outras coisas, relações sociais mais estáveis uma vez que os diversos membros da comunidade
possuem interesses comuns e necessitam para sua manutenção, uma cooperação constante. Além disso,
paulatinamente é estabelecido um tipo de hierarquia entre seus membros, devido ao controle que alguns
exercem sobre as sementes ou ao fato de ser mais antigo no grupo. Há desta forma, uma clara diferenciação
321
APM. SC 241. P. COD. p. 70v
322
APM SC 93 p. 140v-2
323
MARTINS, T. J. Op. Cit. p. 202-203
324
MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica da Província de Minas Gerais. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial. 1981.
325
MEILLASSOUX, Claude. Op. Cit. p. 74 e ss
144
entre os que já estão no grupo e os que chegam depois criando uma hierarquia social baseada na
“anterioridade”
326
.
No caso dos quilombolas, além da anterioridade, há que se levar em conta também a maneira pela
qual cada indivíduo foi para o quilombo. Assim, criava-se uma hierarquia que dividia os negros entre os que
foram para o quilombo de livre e espontânea vontade e os que foram vítimas de seqüestros. Em 1776, nos
matos do Forquim, foi destruído um quilombo e dentre os prisioneiros, constavam um rei e uma rainha. O rei
era um cativo que andava fugido há mais de 10 anos, e a rainha era uma fugitiva que fora para o quilombo de
livre vontade. É bastante sintomático o fato de que a rainha era uma mulher que estava no quilombo
espontaneamente, ao contrário de várias outras, levadas à força ou roubadas de seus senhores.:
“... só uma das escravas, a que tinham por rainha não foi violenta para o quilombo...”
327
O documento continua ordenando que todas as mulheres deveriam ser devolvidas aos seus senhores,
mas as que foram para o quilombo de espontânea vontade deveriam antes ser castigadas.
A população numerosa e a exigência de uma agricultura capaz de mantê-las,
acarretava a formação de algum tipo de liderança apropriada para conduzir o grupo e de
organizar a defesa em caso de ataque. Ainda que vários documentos citem a presença de
Reis, Rainhas, Príncipes e Capitães, não há como saber se trata de denominações dadas
pelos quilombolas ou pelas autoridades, ou mesmo que tipo de poder eles tinham no
interior dos quilombos
328
. Além destes, alguns documentos citam também a existência de
uma hierarquia baseada nos moldes da sociedade colonial. O Bando de Luis Diogo L. da
Silva, de 1764, é ilustrativo. Além de afirmar que os quilombolas roubavam mulheres
brancas do povoado, seguia dizendo que levavam os escravos que tiravam de seus senhores
para “... reforçarem as tropas de seus parciais erigindo-se nelas os mais temerários e
absolutos com o distintivo de capitães, tenentes, alferes e sargentos na idéia de se
constituírem de maior terror ao público e de dificultarem a destruição de tão prejudiciais
quadrilhas...”
329
Todavia, analisando os documentos onde aparecem elementos ligados a qualquer tipo de liderança,
percebe-se que estas estão associadas aos quilombos que possuíam uma população razoável. Na Comarca do
Rio das Velhas em 1730, foi localizado um quilombo relativamente pequeno, se comparado aos demais, mas
que ainda assim, apresentava lideranças:
“...fazendo-se poderosos em quilombos que há quarenta, cinqüenta e mais negros com rei levantados que os
governa, outros com capitão...”
330
E um outro localizado na Freguesia de Pitangui, em 1767:
“... deram sobre os ditos negros que passaram ao número de trinta de que se fez presa de seis, e como estes
resistiram no conflito mataram o chamado rei e capitão destruindo catorze ranchos de capim e plantas de
roças...”
331
326
ibidem p. 75
327
APM SG Cod 215. Fl. 2v-3v
328
APM SC Cod 215 fl. 2v-3v; Cod 56, fl. 102v-103v; Cod 67, fl. 26; Cod 165, fl. 42
329
APM SC Cod 50, f. 90-96v
330
APM SG Cod 29 doc 129.
331
APM SG Cod 60 fl. 118
145
Neste último quilombo, além da presença de lideranças, há uma evidente menção a estruturas de moradia
e de alimentação e de forma implícita, declara que os quilombolas possuíam algum tipo de armamento capaz
de oferecer resistência no momento do ataque.
Mesmo que estes relatos sejam pobres em explicações sobre o tipo de liderança que havia nos
quilombos, a simples presença destes elementos é suficiente para a percepção de que existia uma certa
hierarquia social no interior de alguns.
Uma outra maneira de identificar estas lideranças é a análise dos mapas
332
referentes
aos quilombos onde havia a presença das Casas de Audiência com assentos (Samambaia),
da Casa do Conselho ( Rio da Perdição) e da Casa do Rei ( Braços da Perdição). Todos
estes exemplos remetem claramente a um sistema político. Contudo, não há como saber
que tipo de organização política havia no interior destas comunidades. As denominações
para estas estruturas foram dadas pelas expedições de ataques, portanto, com concepções e
valores da sociedade européia. Entretanto, a própria localização destas casas no interior do
espaço ocupado pelos quilombolas, já é um indício interessante. Nos três casos, estas casas
estão situadas no centro do quilombo ou então em uma área destacada, não fazendo parte
do espaço destinado a circulação, ao serviço ou a moradia dos quilombolas.
Normalmente, estas lideranças, no caso de prisão, eram punidas exemplarmente com a morte ou
enviadas para fora da Capitania, pois havia um medo enorme de que se permanecessem na região, poderiam
fugir novamente e aliciar um número grande de outros escravos.
O aliciamento de negros para compor a estrutura populacional destes quilombos é interessante para a
percepção de como funcionava o próprio sistema escravista em Minas Gerais. Quando a tipologia de
classificação de quilombos foi proposta para o Rio de Janeiro durante o século XIX, percebeu-se que
praticamente não havia casos de raptos de mulheres ou mesmo de homens para participarem dos quilombos.
Isto sugeria que, de uma forma ou de outra, os quilombolas conseguiam manter os níveis de natalidade em
termos razoáveis, obtendo assim, uma boa taxa demográfica no interior dos quilombos; ou ainda, que não
seria interessante para os quilombolas do Rio de Janeiro aumentar sua população via seqüestros e
desencadear a ira dos senhores. Entretanto, em Minas Gerais, o que se vê é um quadro completamente
diferente. É constante na documentação a afirmativa de que os escravos seduziam ou raptavam mulheres
negras ou mesmo brancas para seus quilombos. Este dado permite pensarmos em vários elementos.
1. Ao analisar as listas demográficas dos escravos de Minas Gerais, fica explicado, pelo menos em
parte, a falta de mulheres nos quilombos mineiros. Estes censos demonstram em qualquer período, a
grande diferença entre homens e mulheres escravos. Este desequilíbrio refletia-se também nos
quilombos. A necessidade do rapto de mulheres escravas também poderia significar que a vida no
quilombo não era interessante para todos os escravos e que as mulheres, por algum motivo,
evitavam fugir para estas estruturas.
Conforme visto anteriormente, havia mulheres que iam para o quilombo como uma opção de vida e
havia as que iam seqüestradas. Destas últimas, algumas iam à força e outras pacificamente. Em 1756, uma
patente de Capitão do Mato foi justificada pelo fato de que “... por falta de capitães do mato se achavam a
maior parte dos negros da dita comarca fugidos, por não haver quem os amarrasse, perturbando os ditos
negros a república com roubos de gados e outros gêneros, andando apanhando negras para os
quilombos...”
333
332
Anais da Biblioteca Nacional. Op. Cit. e Biblioteca Nacional, Manuscritos. 18,2,5
333
APM SC Cod 114. Fls. 28v-29
146
2. O rapto de mulheres brancas poderia indicar uma forma de afronta à sociedade colonial, na medida
em que tocava no ponto chave daquela sociedade machista: a honra de suas mulheres.
Em 1737, Tomé Rodrigues Nogueira de Oliveira, escreveu uma carta para Gomes Freire de Andrade
relatando o ataque que fizeram a um quilombo onde estavam duas moças e o irmão menor. A carta informa
que durante o ataque ao quilombo, apenas conseguiram matar um dos quilombolas e que os demais fugiram
deixando as moças e a criança no rancho. Deixando-os em segurança, a expedição seguiu ao encalço dos
quilombolas, conseguindo prender “...as negras e crianças, um negro e um bastardo, que mandei entregar à
Justiça por me dizerem as ditas moças era o que matara a seu pai...”
334
O quilombola morto teve sua cabeça exposta “... na encruzilhada onde fazião os maiores
insultos...”
335
Os quilombolas usaram o seqüestro de mulheres brancas também como uma forma
de vingança. Em 1740 em Vila Rica, esquartejaram um negro junto com algumas outras
pessoas. Infelizmente o documento não diz a causa desta pena. Como conseqüência, 50
negros armados, provavelmente quilombolas, foram para a cidade em busca de vingança.
No meio do caminho resolveram mudar a tática e decidiram que para cada negro morto
pelos brancos, haveriam de matar duas pessoas e começaram a cumprir seus intentos ali
mesmo. De acordo com o documento “...por modo mais bárbaro...”. Raptaram duas
mulheres, uma branca que estava grávida e uma mulata, levaram-nas para o mato, as
degolaram e despedaçaram a uma delas.
336
Os corpos foram encontrados no quilombo,
mas os quilombolas, avisados por escravos da região, já tinham mudado de lugar.
Em 1760, os moradores de vários arraiais estavam indignados com os danos causados pelos
quilombolas “... que atrevidos e temerariamente os estavam acometendo e as mulheres brancas, casadas e
donzelas carregando-as violentamente para o mato, prendendo e metendo freios nas bocas dos maridos, pais
e irmãos...”
337
Neste mesmo ano, há novamente um caso de uma mulher branca sendo seqüestrada. Desta vez, a
moça tinha 13 anos e ao atacarem o quilombo conseguiram resgatá-la com vida.
338
Entretanto, estes grupos não seqüestravam apenas mulheres. Há muitos casos de aliciamento de
grupos inteiros de escravos, algumas vezes, à força. Novamente pode-se pensar que a vida nos quilombos não
era um sonho a que todos os escravos aspiravam, já que fugir era uma atitude muito radical e de difícil
resolução. Todavia, há um outro ponto que precisa ser analisado: O rapto de escravos poderia ser uma tática
utilizada pelos quilombolas para desestruturar o trabalho e consequentemente, a vida financeira dos
fazendeiros nas regiões. Uma vez sem escravos, ou na iminência de perdê-los para os quilombolas, muitos
fugiam deixando suas terras livres para eles. Era preferível abandonar as terras do que perder seus bens
representados pelos escravos. Estes ataques provocaram a ruína de muitos colonos e não foram poucos os
documentos que relataram isto às autoridades.
334
APM SC 56 P COD, p. 102v
335
ibidem
336
APM SC COD 65 p. 100-101
337
APM SC Cod 50 fls. 80-82
338
APM SC 130 P COD p. 5v –7
147
Em 1746 Gomes Freire de Andrade afirmava que os quilombolas do Campo Grande estavam
entrando nos sítios e nos povoados e levavam deles “... não só os bons escravos e escravas mas matando os
senhores... cuidando que tudo em tirar negros em lotes de 10-12 de cada sítio os quais hoje com pouca
violência os seguem...”
339
Em uma outra de suas várias cartas a respeito do Quilombo do Campo Grande, Gomes Freire de
Andrade afirmava que precisava socorrer “... os miseráveis a que não só os tais negros tem levado os
escravos, mas insultando-lhes suas famílias, lhes roubarão, sem deixar-lhes uma camisa...”
340
Em 1770, a situação ainda era a mesma. Ignácio Correia de Pamplona, escrevendo para o Conde de
Valadares, informa que o vigário de Bambui havia lhe escrito contando sobre o “...vexame a aflição em que
estão...”. Os quilombolas estavam atacando as fazendas , “destruindo tudo, pondo-o em miserável estado,
ultimamente levando os seus escravos e escravas, sem um só lhe deixarem...”
341
Ao atacarem sabiam que estavam despertando a fúria de uma sociedade disposta a
acabar com o perigo que eles representavam. Como eram estruturas grandes, de difícil
locomoção, o meio mais empregado para se defenderem foi o uso de diferentes tipos de
armadilhas, ora com características africanas, ora com marcante presença indígena.
Schwartz ao tratar da segurança de um quilombo na Bahia, denominado Buraco do Tatu, chama a
atenção para o fato de que a disposição dos mecanismos de defesa e os tipos utilizados com esse propósito
seguem a estética e a funcionalidade africanas:
"...armadilhas cobertas e estacas pontiagudas eram usadas para
proteção de povoados na África, a partir da Nigéria em direção
sul até o antigo reino do Congo, e foram também utilizadas em
Palmares e por outras comunidades de fugitivos."
342
O sistema de segurança do quilombo variava de acordo com a sua localização, mas havia um limite
claramente estabelecido entre o núcleo de moradia e a mata. Normalmente, esta delimitação era feita através
do uso de fortalezas, estrepes e fossos. Mesmo nos quilombos que não possuem algo físico delimitando seu
espaço não há como deixar de perceber uma certa limitação espacial da área destinada ao convívio do grupo.
As diferentes construções e suas disposições fazem com que haja uma delimitação natural no ambiente do
quilombo.
O Quilombo da Tábua, por exemplo, no momento em que foi destruído em 1769 possuía além da
casa principal, 200 outras casas, todas cobertas com telhas e a metade delas estava protegida por uma
fortificação
343
.
Observando os mapas do Quilombo de São Gonçalo, o da Samambaia e o do Ambrózio, todos com
uma duração temporal grande permitindo, em última instância, uma certa estabilidade populacional e social
capaz de gerar uma sociedade mais complexa, propiciadora de elementos materiais mais duráveis, percebe-se
que eles possuíam muitas semelhanças e dentre elas, a delimitação de seus territórios por fossos, estrepes e
trincheiras. Neste território se dava a vida social do grupo, ou seja, as relações econômicas, sociais e
339
APMSC SG Cod 50 fl 43-44
340
Carta de Gomes Freire de Andrade aos Vereadores da Camara de Vila Rica, em 16.6.1746. In:
RAPM. Jan-jun 1903
341
Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Cod. 18,2,6 doc. 65.
27.5.1770
342
SCHWARTZ, S. Mocambos, quilombos e Palmares: A resistência escrava no Brasil colonial.
In: Estudos Econômicos.
São Paulo. Vol. 17 n. especial. 1987. p. 74
343
Carta de Liberato J. Cordeiro ao Conde de Valadares, Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca
Nacional , Seção de manuscritos. Cod. 18,2,5 doc. 216
148
provavelmente políticas. As casas dos quilombos estavam divididas entre moradias e casas para atividades
específicas, como por exemplo, ferraria, casa do curtume e a casa dos pilões.
No Quilombo do Campo Grande, em 1746, foi localizado mais de 600 negros vivendo com “...
fortaleza, cautelas e petrechos tais que se entende pretendem se defender-se...”
344
Uma outra referência sobre o mesmo quilombo, afirma que os quilombolas se defenderam por mais
de 24 horas, protegidos por um palanque. Gomes Freire noticia ao rei, informando-o que foi preciso atacar
“... com fogo e dar terceiro assalto para render uma forma de trincheira a que recolheram depois de
destruído o primeiro palanque...”
Este documento permite a identificação de, no mínimo, duas formas de proteção usada pelos
quilombolas: o palanque e, depois que este já estava destruído, a trincheira.
A segurança dos quilombos contou com influências africanas e também com as condições do terreno
onde se localizava. Os trabalhos realizados pela equipe da arqueologia da Universidade Federal de Minas
Gerais propiciaram o encontro na região da Serra da Canastra, no Quilombo do Ambrózio, restos de um fosso
de proteção com dimensões variando de 1,5 a 2,0 m. de largura por 2,0 a 3,0 m. de profundidade,
circundando uma área de aproximadamente 90,0 m. de comprimento por 70,0 m. de largura. Ao norte, além
do fosso, os quilombolas contavam também com a proteção de um brejo. Além desses dois elementos de
segurança havia a oeste o Morro do Espia, ponto mais alto da região usado por eles para observação.
345
O uso de espiões foi uma outra forma utilizada pelos quilombolas, colocados em pontos estratégicos
com a missão de avisar assim que fossem avistadas as tropas enviadas para liquidar o quilombo ou qualquer
outro inimigo. Em 1768, o Capitão Mor Manoel de Souza Moreira dava notícia ao governador da Capitania
que ao atacar um quilombo nas margens do Rio das Velhas, somente havia conseguido aprisionar oito
quilombolas porque os demais fugiram avisados pelos espiões, antes mesmo da tropa chegar ao quilombo.
346
Pode-se perceber também nos mapas feitos sobre os quilombos que o espaço interno da estrutura era
usado de maneira a indicar uma provável especialização das diferentes construções. Esta espacialidade
poderia indicar uma certa hierarquia social dentro da comunidade. O fato de que a casa de ferreiro (São
Gonçalo), a Casa do Conselho e do Tear ( Perdição), a Casa de audiência (Samambaia) e a Casa do Rei
(Braço da Perdição), estarem sempre em local destacado é sugestivo. O que isto pode indicar? É possível a
partir destes dados, pressupor que houvesse no interior das comunidades quilombolas uma hierarquização
política e social, já que elementos que desempenhavam um papel de destaque para a manutenção dos grupos
claramente tinham seu espaço físico igualmente destacado.
O caso das Casas de ferreiro que aparecem no quilombo da Samambaia e no de São Gonçalo é
curioso porque pode nos remete à uma prática antiga na África, ou seja, o uso do metal. É provável que os
quilombolas utilizaram-se desse conhecimento na hora de promoverem os mecanismos de defesa do
quilombo e de se armarem contra seus inimigos. A ferraria citada pelos escravos deve ter sido de grande
utilidade, já que nela poderiam fabricar, consertar e preparar armas, armadilhas e instrumentos de trabalhos
diversos.
Figura 21- Artífices trabalhando o ferro
344
RAPM, 1093. Jan-jun. p. 619-621.
345
GUIMARÃES, C. M. e LANNA, Anna L. D. Op. Cit. p. 150.
346
APM, Cod 159. P. 83v a 85. 11.12.1768
149
Fonte: Montecuccolo Cavazzi, G. A.Istorica Descrizione de Tre Regni, Congo, Matammba er Angola. 1687.
In: A rota dos escravos...
Alguns dos quilombos mineiros desenhados possuíam também casas e forje de ferreiro, e a
Arqueologia de quilombos em Minas Gerais tem demonstrado indícios muito claros da presença de artefatos
de metais no interior de comunidades quilombolas. No Quilombo da Cabaça foram encontrados:
“ ...dezenas de fragmentos de ferro fundido, chapas de metal e
tiras de estanho... Além de três panelas, três caldeirões, uma
chaleira, uma colher e um pequeno pote com cabo...”
347
Alguns desses objetos apresentavam ainda, reparos feitos com rebite, o que demonstra um certo grau
de conhecimento desta técnica pelos quilombolas.
Ainda que estas estruturas fossem bastante complexas, a maior parte dos quilombos mineiros pode
ser classificada no segundo tipo, ou seja, são Quilombos Dependentes ou ainda, Hordas Quilombolas.
As Hordas teriam uma relação completamente diferente com a terra, vista apenas como um objeto de
trabalho. Segundo Marx, suas principais características: a) a exploração sobre a terra seria direta, ou seja, não
haveria investimento de energia humana; b) os que nela viviam, obtinham o sustento por meio de caça,
pesca, coleta e razias; c) eram grupos pequenos e nômades, com uma grande mobilidade entre os diferentes
bandos; d) a existência do grupo se fazia basicamente por adesão e possuíam uma organização social
precária, isto é, seus elementos só se mantinham unidos por necessidades momentâneas, como auxílio, busca
de alimentos, fuga etc.. e) estes grupos não necessitavam de um líder para dirigi-los.
Uma outra visão sobre as hordas foi fornecida por Warner. Segundo ele, “...a horda é um grupo
econômico instável, cujos membros e cuja dimensão são regulados pelo ciclo das estações...”
348
Os Quilombos Dependentes, com pequenas populações, sem lideranças ou com lideranças
temporárias, não fixados em um único local e sem grandes ligações com as práticas agrícolas, podem ser
associados a este tipo descrito como hordas, uma vez que compartilham das mesmas características e todas
apontam para a relação que tinham com a terra: para eles a terra era um objeto de trabalho e não um meio.
347
GUIMARÃES, C.M. e LANNA, L.D. Op. Cit. p. 150
348
WARNER, W. L. A black civilization. New York. Harper, 1937. P. 138. Apud. Dicionário de
Ciências Sociais. Op. Cit. P. 562
150
A maior parte dos quilombos brasileiros se enquadra neste tipo, ou seja, foram quilombos que
sobreviveram graças aos ataques à população e não à agricultura. Eram estruturas menores, porém
constantes. Os quilombos que se mantiveram através destes mecanismos foram os mais comuns entre outros
motivos porque eram menores, portanto, com maiores facilidades para dispersar seus membros quando
atacados e também escondê-los no mato.
Entretanto, ainda que fossem estruturas menores, a quantidade de quilombos deste tipo dispersos por
praticamente todo o território era muito elevada, fazendo com que esta estrutura fosse o grande pavor da
população branca. Minas Gerais não fugiu à regra.
“...Por me constar com certeza que a fazenda chamada dos Azevedos no caminho do Rio de Janeiro da
qual é possuidor Francisco Coelho se acham seis negros fugidos e alguns que aparecem... e haver notícia de
grande número deles, em todas as vizinhanças, andam fugidos aquilombados e dispersos causando grandes
danos e prejuízo ao bem comum, moradores e viajantes daquele continente, e estradas...”
349
Não se pode descartar a possibilidade destes tipos de quilombos serem uma espécie de primeira fase
do estágio para atingir uma etapa posterior onde se transformariam em estruturas mais complexas. Desta
maneira, pode-se imaginar que a maioria dos quilombos brasileiros conhecidos não teve tempo hábil para
aprimorar suas estruturas.
Em muitos casos, estas estruturas eram confundidas e associadas aos grupos de
garimpeiros clandestinos, aos homens livres pobres ou mesmo aos bandidos. Assim, seus
limites ficam muito tênues e às vezes, de difícil percepção.
Laura de Mello e Souza, chama a atenção para este fato ao analisar um documento já citado
anteriormente. Em carta de junho de 1782, Pedro Gomes Barbosa informava sobre o estado em que achava o
garimpo clandestino, repleto de negros que os senhores fingiam estar fugidos e/ou de quilombolas. A autora
conclui observando que “...No Distrito Diamantino as autoridades locais fingiam que os garimpeiros eram
quilombolas para assim dar continuidade ao extravio e poupar os senhores do confisco de escravos postos
de caso pensado na mineração clandestina de diamantes...”
350
Machado Filho salienta que “... ao garimpeiro se aliou o quilombola, pois um e outro fora da lei,
ainda que por motivos diversos, não tardou se encontrassem solidários, buscando a subsistência nas
minerações furtivas...”
351
Esta fluidez entre as camadas sociais mais baixas da sociedade foi percebida também na análise das
devassas eclesiásticas existentes no Arquivo de Mariana, tornando-se “... amiúde difícil distinguir os homens
livres pobres dos escravos e dos quilombolas, sobretudo se os primeiros são forros...”
352
O mesmo processo pode ser observado no restante da capitania. Muita vezes a documentação não
deixa claro se está tratando de quilombolas, de bandidos ou de garimpeiros clandestinos. Eventualmente a
rede de ligações entre eles era tão intensa que, para as autoridades, significavam a mesma coisa. Na
realidade, eram todos perniciosos ao sistema uma vez que demonstravam alternativas de vida que não
passavam pelo controle das autoridades quer coloniais ou mesmo metropolitanas.
Bandidos eram no século XVIII: “...ladrões de estradas, e assassinos degradados, que andam em
bandos correndo... fazendo roubos, violências, hostilidades...”
353
Estas mesmas atividades podem ser observadas em documentos que se referem a quilombolas:
“... Os negros calhambolas não deixavam de sair em várias partes desta estrada a fazerem insultos e roubos
tanto aos viajantes como aos moradores...e os malfeitores se iam fazendo mais poderosos em número...”
354
349
APM SC 170 P. Cod. 96
350
SOUZA, Laura de Melo e. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. p. 146 e ss
351
MACHADO FILHO, Aires da Mata . O negro e o garimpo em Minas Gerais. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1985. p. 20
352
SOUZA, Laura de Melo e. Norma e conflito.... Op. Cit. p. 23
353
BLUTEAU, Raphael. Op. Cit.
354
APM SC 56 p. 102v -103
151
Igualmente aparecem quando fala de escravos fugidos, sem mencionar que se trata de quilombolas:
“...moradores da freguesia de Santo Antonio do Mato Dentro... experimentado vários roubos, incêndios e
morte dos negros fugidos chegando a tal extremo os assassinos que cometiam que lhes proibia a saírem de
suas casas a tratarem de suas roças por temerem a morte e por evitarem os assaltos que davam nas casas
onde lhes parecia achariam menos resistência...”
355
.
Percebe-se que os limites que separavam estas diferentes categorias sociais não
eram muito definidos. Uns e outros poderiam ser confundidos entre si, aumentando a
fluidez desta sociedade já tão pouco propensa em obedecer as regras impostas pelas
autoridades metropolitanas.
Neste momento torna-se necessário definir o que era considerado na época um
quilombo, e quais eram as implicações de ser um escravo fugitivo identificado como
quilombola.
Para a legislação da época, era quilombola todo escravo fugido que fosse apanhado longe de
povoações. O número de fugitivos necessários para caracterizar um local como quilombo variou de “...acima
de quatro...”, no Regimento dos Capitães do Mato de 1722
356
e no Despacho do Governador D. Luis Diogo
Lobo da Silva
357
e “...acima de cinco...” na Carta Régia do Governador Gomes Freire Andrade
358
. Este
mesmo documento afirma que não era necessário encontrar junto com os escravos fugidos, ranchos, pilões ou
qualquer coisa que facilitasse a conservação do grupo, fatos que eram básicos nos outros dois documentos.
Sabendo-se que por cada negro que fosse apanhado em um quilombo, o Capitão do mato receberia
20 oitavas de ouro como tomadia
359
e aos que fossem apanhados errantes, este valor diminuía de acordo com
a distância da captura, fica claro o porque do número elevadíssimo de escravos quilombolas em Minas
Gerais. Era muito mais vantajoso para um capitão do Mato prender um “quilombola”, mesmo que ele não o
fosse , do que prender um escravo apenas fugido. Assim, qualquer escravo fugido virava um quilombola em
potencial.
Isto não significa dizer que o número de quilombos em Minas Gerais não tenha sido grande. Pelo
contrário. Foi realmente significativo, de acordo com o que a documentação deixa registrado. Mas seria
ingenuidade não perceber que a maioria destes quilombos não passava, na realidade, de grupos muito
pequenos de escravos fugidos errantes pelas matas, e que os interesses dos Capitães do Mato é que os teria
transformados em quilombolas perigosos capazes de promoverem grande resistência à recaptura.
Estes grupos de escravos fugidos organizados segundo o que a tipologia classificou como
Quilombos Dependentes, mantinham com a terra uma relação de apenas recolher o que ele ofertava, ou seja,
eram hordas de quilombolas errantes pelas matas.
A população formadora deste tipo de quilombo pequeno que não produzia alimentos para se manter
tende a ser reduzida não só por razões estratégicas já citadas anteriormente, como também por razões de
ordem econômica. Quanto menor a população, menor a necessidade de obtenção de alimentos, de moradias,
enfim, de uma estrutura complexa. Por não se dedicarem à agricultura ou criação de animais, não produziam
355
APMSC-SG Cód. 49 fl. 107.
356
Regimento dos Capitães do Mato de 17 de dezembro de 1722 de D. Lourenço de Almeida. In:
RAPM, Ano II, fasc. II, 1897. p. 389.
357
APM SC 59 p. 102 e v
358
Resposta do Rei de Portugal a consulta do Conselho Ultramarino, de 2 de dezembro de 1740.
Cit. Por MOURA. Clóvis. Rebeliões da senzala
. Rio de janeiro: Ed. Conquista, 1972. p. 87
359
Este valor foi fixado no Regimento dos Capitães do Mato de 1722.
152
no interior do quilombo alimentos, alimentando-se através da caça, pesca, coleta, roubos e razias às fazendas
da região. Este tipo de estrutura quilombola não teria como praticar estas atividades, uma vez que exigem um
sedentarismo dos grupos envolvidos. E este não poderia ser o caso destas estruturas.
É bastante comum na documentação sobre quilombos em Minas Gerais, os relatos de que os
quilombolas atacavam as fazendas roubando gado. Guimarães cita algumas Cartas Patentes de Sargento-Mor
do Mato, concedidas em função dos prejuízos que as pessoas vinham sofrendo. José da Guerra Chaves foi um
dos que conseguiu uma destas Cartas alegando estar tendo prejuízos com as “...mortes de seus bois e porcos
praticados pelos quilombolas...”
360
O mesmo aconteceu com o Tenente Auxiliar Francisco José Soares em 20 de julho de 1793. Ele
recebeu a autorização para atacar um quilombo nas imediações de suas terras devido à reclamação feita de
que estava sofrendo “...grave prejuízo nas suas canas que atualmente as estão devorando os negros
fugidos...”
361
Estes grupos mantinham-se de roubos, de trocas e de vendas com donos de armazéns ou mesmo
com garimpeiros clandestinos, permanecendo juntos apenas por determinados períodos, podendo se separar a
qualquer momento e formar novos grupos. O que os mantinham unidos eram as necessidades do momento. A
própria mobilidade fazia com que durante as andanças, novos integrantes se juntassem e outros saíssem do
grupo em busca de um quilombo maior e mais estável ou em busca de uma nova região para viver. Portanto,
eram populações formadas basicamente por pequenos grupos de homens armados e que ficavam pouco
tempo em um mesmo local.
No ano de 1770 “... Foram apreendidos em um quilombo do Rio do Pinto... vários negros que se
achavam aquilombados que em número eram 14...”
362
No ano seguinte, quatro quilombolas invadiram a casa de José Pereira Lima, roubaram-lhe e
mataram uma sobrinha. Imediatamente, o governador Valadares ordenou uma expedição para prender estes e
outros quilombolas. Dos quatro, apenas um foi preso.
363
A mobilidade era para estes grupos, uma de suas maiores defesas. Como
eram formados por poucas pessoas, portanto, com poucas armas, sem proteção de
trincheiras, fossos ou estrepes, a melhor solução em caso de um provável ataque era
a retirada para outras paragens. O tamanho destes grupos também agia como
facilitador desta mobilidade, uma vez que conseguiam sem maiores dificuldades
esconderem-se nas matas.
Sobre esta mobilidade, os documentos seguintes são ilustrativos:
“... me dá parte de ter aprontado gente para invadir o Quilombo... porém se frustrava esta diligência tanto
pela demora do dito capitão como pelo mesmo devagar ao que havia ... os negros aquilombados que estes
mudaram de sítio...”
364
Em 1770, numa carta relatando o insucesso do ataque a um quilombo, o Tenente Caldeira é acusado
pelo Governador de não ter tido habilidade suficiente para combater o quilombo e, como conseqüência, os
quilombolas “... mudaram de sitio, e aqueles deram para as Campanhas retirando-se as suas casas...”
365
A situação encontrada por Pamplona era a mesma. Em uma de suas cartas ao Conde Valadares,
reclamava das “... muitas desordens que causam naquelas paragens povoadas os negros que fogem de umas
para outras...”
366
360
GUIMARÃES, Carlos magno. Op. Cit. p. 45
361
Idem. p. 42
362
APM SC 178 p. 10
363
APM SC 177 p. 190
364
APM Cod 177 p. 67
365
APM SC 177 P Cod p. 67v.
153
Em função da necessidade de mobilidade, seus quilombos quase sempre não possuíam elementos
arquitetônicos. Eram apenas ranchos temporários.
Alguns grupos de quilombolas chegavam mesmo a viver escondidos em lapas, grutas e cavernas.
Sabendo disto, o Governador Luis Diogo Lobo da Silva, ordenou que durante uma batida na região das
Serras de Antonio Pereira procurassem localizar quilombolas
“...batendo e prendendo todos os negros fugidos e aquilombados que se descobrirem ocultos. Examinar
buracos, lapas, matos e esconderijos e ranchos suspeitos advertindo que naquelas partes com que pelas
asperezas das mesmas serras e dificuldades...”
367
Poderiam ou não, possuir algum tipo de liderança capaz de organizar a defesa, os ataques e a
sobrevivência do grupo. Normalmente, estas lideranças eram esporádicas e diferentes das encontradas nos
quilombos maiores. De fato, os líderes existiam apenas nos momentos de ataques e dos roubos às fazendas,
às vilas ou aos viajantes.
Pode-se perceber que tanto os quilombos organizados enquanto hordas ou Dependentes e os outros,
organizados como comunidades agrícolas ou ainda como Quilombos Auto Sustentáveis devem ser encarados
não como estruturas excludentes, mas como possíveis elementos – diferentes, é claro – de uma mesma
realidade que, engloba não só os quilombolas e seus quilombos, mas também uma sociedade que, de uma
forma ou de outra, travava relações com estes.
Ajudas e agasalhos para os negros quilombolas: as interações sociais
Não há como analisar os quilombos sem identificar os elementos que eram
intrínsecos às suas estruturas, ou que favoreciam a sua manutenção. Suas redes sociais
com outros escravos, com alguns senhores, com os donos das vendas ou mesmo com
alguns grupos indígenas foram essenciais aos seus projetos de manutenção.
As vendas têm uma presença marcante e constante na documentação que trata sobre os quilombos
mineiros. As relações dos quilombolas com esses comerciantes possuíam um caráter mais amplo do que
simplesmente econômico. As vendas eram pontos de encontros amorosos, de notícias a respeito de amigos e
parentes, mas também de informações sobre as expedições enviadas contra os quilombos. Além disso, elas
eram estratégicas porque o resultado das atividades de razias e assaltos, ou mesmo do excedente da produção
agrícola ou da criação, era freqüentemente vendido aos comerciantes locais.
As autoridades não viam distinção entre as vendas controladas por brancos ou por negros. Elas eram
encaradas de maneira única e todos, ou quase todos, eram acusados de ser receptadores dos furtos dos
escravos, fugidos ou não:
“... as ditas negras e referidos tratantes os receptáculos aonde vai parar não só muita parte dos furtos que
fazem os calhambolas mas todo o ouro e trastes que das lavras e casas divertem os que não andam fugidos a
seus senhores...”
368
366
Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Cod. 18,2,3 doc. 7
367
SC 130 p. 103-3v
368
APM SC Cod 50. Fl. 90-96v.
154
Era sintomático que parte destes donos de vendas fossem pessoas identificadas
como brancas. As autoridades que tentavam de todas as formas controlar a população,
percebiam que o apoio dado aos quilombolas era extremamente perigoso porque partia de
um grupo que teoricamente deveria ajudar a manter o sistema funcionando a contento.
Assim, para as autoridades, “as vendas dos brancos são ainda piores do que as das
mesmas negras...”
369
O documento seguinte além de mostrar as relações comerciais entre escravos
fugidos e os vendeiros trata também de relações de caráter pessoal entre ambos:
“... quase todas estas negras ... [recolhem]... não somente os negros mineiros mas os negros fugidos... nas
mesmas casas tem os negros fugidos o seu asilo porque escondendo-se nelas se ocultam a seus senhores e
dali dispõem as suas fugidas, recolhendo-se também nas mesmas casas os furtos que fazem, nos quais as
mesmas negras são às vezes conselheiras e participantes...”
370
De acordo com uma carta enviada ao Conde de Galvêas, o rei pedia um parecer
sobre como proceder contra as negras donas de vendas onde além de proverem-se do
necessário,
“... os negros salteadores dos quilombos, tomando notícia das pessoas que hão de roubar,
e as partes onde lhes convém entrar e sair, o que tudo fazem mais facilmente achando
ajuda e agasalho nestas negras que assistem nas vendas...”
371
O papel destas vendas era tão importante para a manutenção dos quilombos que
chegaram mesmo a ser identificadas enquanto tal:
“... saem [os quilombolas] das mesmas vendas de madrugada, de sorte que cada venda é um quilombo...
372
A situação estava tão caótica para as autoridades que em dezembro de 1729, o Governador Dom
Lourenço de Almeida determinou que todas elas deveriam fechar às nove horas da noite e o dono da venda
que não obedecesse a esta ordem seria preso e remetido à cadeia de Vila Rica. Isto porque os escravos
aproveitavam-se delas e faziam inúmeras desordens acompanhados muitas vezes, de negros fugidos:
369
APM CMOP. Cod 63 fl. 174
370
APM SC Cod 35 documento 110
371
APM SC Cod 35. Documento 110
372
APM. CMOP. Cod 63 fl. 174
155
“... Fui informado que no Arraial de Antonio Pereira e suas vizinhanças andam de noite vários negros
fugidos misturados com outros do mesmo arraial inquietando os moradores dele e cometendo vários insultos
...”
373
A solução encontrada pelo governador foi ordenar que se fizessem rondas
noturnas e aumentassem o controle sobre as vendas e seus donos, responsáveis por
esta desordem graças,
“...a grande ambição dos vendilhões os quais tem as vendas abertas até muito tarde da noite e alguns deles
recolhem os negros fugidos e o que mais é , os furtos que fazem contratando com eles, fomentando-os nestes
desaforos porque o intento de alguns é conseguir cabedais seja como for ... ”
374
Ainda que as vendas fossem essenciais aos projetos dos quilombolas, eles recebiam também os
auxílios de outros escravos e em alguns casos, de alguns senhores interessados no acoutamento dos fugidos.
Em 1769 o Conde de Valadares havia ordenado ao Capitão Mor Manuel Rodrigues da Costa que
entrasse na Fazenda Azevedos e localizasse os quilombolas que costumavam ir lá em busca de contatos com
os escravos “...procuram as capoeiras da dita fazenda, indícios certos de terem língua dos mais escravos da
dita fazenda...”
375
Ordenava ainda, que usasse de todos os meios possíveis para fazer com que os
escravos da fazenda dissessem onde localizar os quilombolas. Deveria fazer a mesma coisa
com todos os escravos de outras fazendas nas imediações e com os roceiros do caminho.
376
Em 1792 o capitão Elias Antonio da Silva pedia permissão para atacar um quilombo e dar buscas
nas senzalas próximas a sua fazenda. O referido capitão estava com cinco escravos fugidos e,
“... por mais diligências, tocaias, ou negaças que lhes tem feito não é possível apreendê-los pela razão de se
refugiarem e acoutarem-se em umas poucas fazendas que é constante servem de couto aos negros que fogem
de seus senhores e que os escravos das mesmas fazendas lhes facilitam o dito couto e o que mais é também
alguns donos das mencionadas fazendas... sendo público e notório que um dos escravos das ditas fazendas é
acostumado e atualmente dá asilo a escravos errones, socorrendo-os de todo necessário com tanto
escândalo e animosidade que não falta quem diga que ele é ciente e noticiado de qualquer quilombo ainda
existente na distância de 30 ou 40 léguas...”
377
Situação idêntica demonstrou em 1795 o fazendeiro Marcelino da Costa Gonçalves que teve sua
casa atacada por quilombolas. Em um documento enviado ao governador afirmava que os escravos das
fazendas tinham “... aliança ... com os do mato...” Além disso, estes escravos “... repartem os mantimentos
dos paiós de seus senhores ...” com os quilombolas.
378
As autoridades estavam tão desesperadas com o crescente poder dos quilombolas auxiliados por
escravos, forros e todos os tipos de vendedores que em 1769 o Governador Valadares determinou que o
Capitão mor José Álvares Maciel deveria organizar os Capitães do mato de Vila Rica e ordenar uma batida
373
APM SC 27. P. 60v-61
374
ibidem
375
SC 170 P.COD p. 46
376
ibidem
377
APM SC 260. P. 16v-17
378
APM SC Cod 260 fls. 44v-45
156
aos quilombos e verificar se “... alguma pessoa de qualquer qualidade ou condição que seja, socorre, vende
e assiste com mantimentos e armas aos mesmos facinorosos...”. Caso isto estivesse ocorrendo os deveria “...
mandar presos para se fazerem as averiguações de seus procedimentos...”
379
Em 1773 os escravos de D. Francisca Antonia foram acusados de auxiliarem quilombolas. Quando o
capitão de esquadra do mato Silvestre Vieira da Silva foi à fazenda averiguar e “dar buscas nas senzalas”, os
mesmos o receberam “armados”. Segundo o capitão a audácia deles foi tanta que o provocaram “até o
rancho que dista mais de meia légua de Domingos de Tal...”
380
Através de sucessivos documentos percebe-se que a situação parece não ter mudado
no decorrer do tempo. As ordens de Valadares dadas em 1769 repetiram-se durante todo o
período escravista. Mudava-se apenas a região, a data e o governador. A idéia era a
mesma.
Entretanto, não eram apenas os escravos das fazendas que auxiliavam os quilombolas. Há vários
casos de fazendeiros que faziam a mesma coisa, interessados nos benefícios que o acoutamento dos
quilombolas acarretavam.
O Alferes Antonio Moniz de Medeiros foi acusado de dar proteção a alguns escravos fugidos. Por
causa de sua postura nada recomendável para o sistema escravista, foi enviada uma expedição em 1782 à
região em que ele vivia. O grupo foi comandado por Pedro Gomes Barbosa e tinha como objetivo controlar
os excessos cometidos pelos moradores, pelos garimpeiros e pelos escravos
381
. Em seu relatório afirmou que:
“...Dei busca na casa do Alferes Antonio Moniz de Medeiros, por ter notícia que na dita
casa havia uma venda, aonde os negros fugidos e garimpeiros se iam prover de
mantimentos; achei a dita venda, fiz tomadia em tudo quanto nela se achava, e avisei ao
dito alferes para que não continuasse em ter a dita venda, como sempre até ali tinha feito;
porque se eu o tornasse a achar o havia prender...”
Todavia, o Alferes tentou não se comprometer alegando que “... a venda era para
os seus negros, e que não vendia a outros...” mas o comandante conhecendo o que se
comentava a respeito das relações do Alferes com os quilombolas não acreditou. Para ele,
não seria:
“... provável que ele sortisse uma venda de toda a qualidade de mantimentos, e com muita
abundância, para vender a três ou quatro negros, que é o mais que podia ter em casa; pois
os mais todos estão no contrato; mas ainda no caso de ter muitos, não há pessoa alguma
que ignore o ele não vender aos seus negros; mas só aos fugidos e garimpeiros; é tanto
assim que nunca deixou de haver quilombo ao pé da sua casa; e com tanta liberdade que
até as suas escravas iam de dia ao quilombo conversar com os negros fugidos...”
382
379
APM 152 p. 171v
380
APM SC 199 p. 13
381
APM SC códice 224 Carta de 15.6.1782.
382
ibidem
157
O mesmo fizeram na casa do Sargento Mor José Luis França. Nela, acharam a
“...venda... porém não tinha mantimentos, só achei cinco barris de aguardente enterrados,
os quais quebrei, e um rolo de fumo. Fiz-lhe o mesmo aviso que ao outro..”
383
.
A expedição tentou também destruir um quilombo. Nada conseguiram porque os
fugitivos “...tiveram aviso de uma fazenda que está ao pé como é costume de todos; pois a
maior parte dos Quilombos estão ao pé das fazendas para destas serem providas de
mantimentos e terem aviso de qualquer movimentação haja, como estes tiveram aviso,
assim que foi noite fugiram, e de madrugada, indo-se dar no quilombo, não se achou
pessoa alguma; seguiram-se pelo rasto todo o dia, porém não se puderam alcançar;
porque eles, além de não pararem, deram aviso a dois quilombos mais que estavam no
caminho, juntaram-se todos, e foram fugindo sempre; no outro dia acharam-se os ranchos
deles; cada quilombo tinha 9 ranchos grandes, que pareciam arraiais, e estava um
quilombo de fronte do outro...”
384
Além do apoio dos donos das vendas, dos escravos e de alguns senhores, os
quilombolas podiam contar também com a ajuda de grupos indígenas que coabitavam nos
quilombos, ou que apenas faziam contatos.
A existência de índios convivendo com negros em quilombos era um fato marcante em muitas áreas
que vivenciaram a escravidão. Em Porto Rico, desde o século XVI, há notícias de que índios e negros
fugidos viviam juntos nas matas levando o pânico à população.
Francisco de Ortega, em 1526 afirmava que a Ilha estava se despovoando de espanhóis por causa do
medo generalizado que as alianças entre negros fugidos e índios provocavam. No ano seguinte, a Coroa
dizia ter recebido uma relação do cabildo da Vila de San German constando o mesmo problema. Em
dezembro de 1550 a situação ainda não havia sido resolvida. O governador Vallejo em carta ao Rei afirmava
que tentava impôr a ordem da seguinte forma:
“... Y esta orden e tenido com todos los índios que hay en la isla
poniendolos a todos com amos porque dejarlos andar
vagabundos me pareció no convenía... por ser gente muy
liviana y superticiosa y también porque fuera ocasión de que
com ellos se alzassen negros que es uno de los grandes peligros
383
ibidem
384
ibidem
158
que esta tierra tiene por los muchos que hay en ella, que cada
día se alzan y nos ponen en necesidad para sossegarlos...”
385
O caso citado anteriormente, de uma expedição incumbida de atacar um quilombo em Minas Gerais
com o objetivo de resgatar uma moça raptada por um grupo de quilombolas, é um bom indicativo de que os
índios viviam nos quilombos e o defendiam de ataques tanto quanto os seus habitantes negros:
“... atacando um quilombo de negros saíram ao encontro uma
grande porção de gentio que instantaneamente os rebateu com
um grande número de flechas na qual ficaram três capitães do
mato feridos, dois com duas flechas presas no pescoço e com
grande perigo de vida...”
386
Estes não foram casos isolados. Em Mato Grosso, durante uma batida no Quilombo
do Piolho em 1795 foram capturadas 54 pessoas, dentre elas:
“ ... seis negros muito velhos, que eram os patriarcas deste
escondido povo, oito índios e 19 índias e 21 caburés nascidos no
quilombo, com idades variando entre dois e 16 anos... Os pretos
velhos, depois da primeira destruição, voltaram ao local do
quilombo... construíram famílias com índias, de quem tiveram
filhos...”
387
Os índios faziam parte desta comunidade quilombola da mesma maneira que os negros desde pelo
menos 1770, época da sua primeira destruição, pois neste momento foram presos 79 negros e 30 índios.
Através do número de prisioneiros capturados no quilombo em 1795, podemos perceber que 19 índias faziam
parte desta comunidade e que 21 pessoas haviam nascido das relações travadas entre negros e índios.
Evidentemente que a presença deste número elevado de mulheres, se comparado aos oito índios capturados,
nos evidencia uma clara preferência pela presença de mulheres índias no interior dos quilombos. Tal prática
385
Carta del dr. Vallejo al rey, San Juan, 14 de diciembre de 1550,AGI Santo Domingo 155, Ramo
1, núm. 9 Cit.por: MOSCOSO, Francisco. Formas de resistência de los escravos en Puerto Rico.
Siglos XVI-XVIII. IN: America Negra,
Bogotá, PontíficiaUniversidad Javeriana. Dez 1995, n. 10
p. 31-48
386
Carta sobre ataques que se fizeram a vários quilombos. 12.7.1760 p. 5v -7 APM - SC 130 P
Cod.
387
Citado por VOLPATO, Luiza R. Ricci. Cativos do Sertão: vida cotidiana e escravidão em
Cuiabá. 1850-1888. Cuiabá: Ed. Marco Zero e Ed. Federal de mato Grosso 1993. p. 188
159
pode nos remeter a uma falta de mulheres negras e a incorporação das índias como uma solução para estes
problemas.
No Brasil pode-se perceber em vários quilombos uma grande miscigenação, originando uma
população mestiça que comportava traços culturais de várias etnias. Daí a dificuldade encontrada por Funari
em Palmares, pois após a localização de vários artefatos com características claramente indígenas, ficou
impossibilitado de saber ao certo se tais utensílios eram provenientes de um comércio entre os quilombolas e
os índios, ou se estes viviam no interior do quilombo, ou ainda se apenas passavam para os quilombolas sua
tecnologia.
Estas possibilidades de arranjos populacionais alternativos no interior dos quilombos só seria
possível em se tratando de comunidades portadoras de uma grande complexidade. De maneira geral, através
de documentos variados, percebe-se que as principais características deste tipo de comunidade seriam: a
existência de uma agricultura capaz de manter a população e permitir um excedente que era comercializado
com os habitantes que viviam próximos da região; um quadro demográfico significativo propiciador de
crescimento populacional e relações de parentesco entre os habitantes e estruturas delimitadas de hierarquias
internas. Essas características só foram possíveis em quilombos que conseguiram se manter por um tempo
maior e com uma certa estabilidade.
Nas regiões que possuíram quilombos e índios, ou seja, em praticamente todo o território colonial,
pode-se encontrar indícios da coexistência de índios com quilombolas. Seria isto uma forma de aliança contra
um possível ataque de populações brancas? Seria uma união de oprimidos contra os opressores?
Ao que tudo indica os contatos entre estes dois grupos foram se dando de maneira lenta, porém
contínua, em áreas que prioritariamente eram habitadas por índios. Contudo, estes índios já haviam tido
contato com o homem branco, e muitos já estavam em fuga de suas próprias aldeias, de fazendas onde
trabalhavam quase que como escravos, ou de aldeamentos, onde o tratamento também não era muito melhor.
Durante o século XIX a situação não havia melhorado em nada. O índio Francisco Soares, chefe de
uma numerosa aldeia foi uma das vítimas deste tipo de exploração e posterior expulsão por parte de colonos
brancos. Sua aldeia situava-se nas cabeceiras do Rio Ubá, na freguesia do Presídio de São João Batista. O
mesmo foi expulso de lá com toda a sua gente pelo Alferes Antônio Dutra Caldeira e seus escravos. A aldeia
foi queimada e o Diretor de Índios da região nada fez para coibir semelhante abuso.
No relatório elaborado por Guido Thomaz Marliere, Diretor Geral dos Índios de Minas Gerais, fica
patente a situação em que se encontravam os indígenas da região:
“... Semelhante atentado, imitado pela maior parte dos
Portugueses destes Presídios, que não contentes de usurpar as
suas terras, os maltratam nas suas pessoas com pancadas e
quando os fazem trabalhar nas suas culturas, lhes negam a paga
dizendo que a beberão de aguardente...”
388
Por estas e outras razões, em inúmeros documentos de Diretores de Índios, de Diretores Gerais, de
Presidentes de Províncias e outras autoridades, toma-se contato com um universo grande de indígenas que
viviam em constante fuga e sem suas terras originais.
Por este motivo é fácil entender porque em muitas vezes os índios não entravam em conflito com os
negros fugidos. Ambos não possuíam onde ficar e se esconder. Deste ponto de vista, tratava-se realmente de
uma união de elementos que sofriam na pele a exploração de seu trabalho e de sua condição de homens.
Não só através da população podemos perceber a presença indígena nos quilombos. A religião
também pode dar subsídios a este respeito. No Quilombo do Limoeiro, no Maranhão, foi presenciada pelo
grupo que o atacou, uma festividade que demonstra a circularidade entre as culturas branca, negra e índia: o
líder do quilombo presidia uma festa que as fontes indicaram como sendo uma “festa de pajés”. A sua
descrição é a seguinte:
388
Ofício de Guido T. Marlière ao Presidente de Província de Minas Gerais. Em 12 de setembro de
1823. APM. São Paulo JGP 1/8 cx. 4
160
“Formados os calhambolas em círculo, o preto Bernardo
ocupava o centro, e batendo palmas, cantava - eu já vai no céu,
eu já vem do céu - e os mais faziam coro. Tinha Bernardo na
sua volta do céu de fingir-se sonâmbulo e, então, revelar o
futuro; porque tudo lhe havia dito Santa Bárbara com quem
havia conversado. Durante esta nigromancia, era Bernardo
chamado - menino do céu...”
389
Pode-se perceber nesta breve descrição elementos católicos (Santa Bárbara) e elementos indígenas
(festa de pajés) sendo utilizados por negros. Tal circularidade cultural nos remete mais uma vez à grande
complexidade que era uma comunidade quilombola, pois conseguia criar uma nova forma cultural a partir de
seus traços culturais de origem africana, mas recebendo influências da cultura branca e católica e também
indígenas, e ainda influencia influenciando as demais culturas.
Todavia, um problema de ordem prática se coloca no momento de resgatarmos estes contatos
interétnicos nos interiores de comunidades quilombolas: salvo através de alguns documentos repressores,
nada mais evidencia a presença dos indígenas no quilombo.
Uma alternativa possível para minimizar este fato seria a utilização do resgate da cultura material
destas comunidades. Contudo, as pesquisas arqueológicas nesta área estão ainda em desenvolvimento e
pouco contribuíram ainda para elucidar o tema. Funari
390
, tentando explicar a presença de elementos
indígenas no quilombo de Palmares salienta que:
“...Considerando-se a presença de cerâmica de estilo indígena
no sítio, as referências, nos documentos, a nativos que
mantinham relações amigáveis com os quilombolas e viviam nos
mocambos, e mesmo o fato de que três aldeias de Angola Janga
tinham nomes nativos (Arotirene, Tabocas e Subupira), é
natural supor que alguns grupos tenham se aliado às forças
coloniais, enquanto outros pudessem compartilhar
preocupações comuns com os rebeldes...”
391
389
MARANHÃO. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO. A invasão do Quilombo Limoeiro. São
Luis:SIOGE, 1992. P. 55
390
FUNARI, Pedro Paulo A. Contribuições da Arqueologia para a interpretação do Quilombo de
Palmares. Mesa redonda apresentada no IX Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira.
Rio
de Janeiro. 22 a 26 de setembro de 1997.
391
Ibidem
161
O capitão Luis Borges Pinto ao descobrir nas matas da região da Casa da Casca um quilombo, supôs
inicialmente tratar-se de uma aldeia indígena em função do grande número de choças e roças.
392
Será que foi só por causa do tamanho da estrutura localizada que Borges Pinto se confundiu? Não
seria possível que a estrutura por ele vista possuísse características das aldeias indígenas da região?
Uma destas prováveis características foi identificada numa Carta Régia enviada ao Governador
Lourenço de Almeida, afirmando com base em informações prestadas que, na Comarca do Rio das Velhas
existia um quilombo que era como “...aldeias de gentio escondidas entre os matos...”
393
Pensando nesta possibilidade, localizou-se uma contribuição que permite pensar nessa convivência
e nas trocas culturais entre índios e quilombolas. Trata-se de uma análise sobre as aldeias tupinambás
394
.
Figura 22-- Tecoaba
392
TAUNAY, Afonso de E. Op. Cit. p. 161
393
Carta Régia para o Governador Lourenço de Almeida. 9.11.17...APM, SC 29 p. 129
394
ASSIS, Valéria S de. Uma proposta de análise espacial de sítios tupinambá pela abordagem
Etnoarqueológica. Comunicação apresentada no IX Congresso da Sociedade de Arqueologia
Brasileira. Rio de Janeiro. 22 a 26 de setembro de 1997
162
Fonte: ASSIS, Valéria S de. Uma proposta de análise espacial de sítios tupinambá...
De acordo com um grupo de estudiosos sobre os indígenas de Minas Gerais, estes seriam em sua
grande maioria do grupo Jê também conhecidos como Tapuias - bárbaros em Tupi. As suas origens
remontariam aos constantes cruzamentos entre os Caraíbas e os Tupis do litoral que buscaram refúgio nas
áreas mais interioranas, estabelecendo migrações internas sempre em direção a Oeste evitando a Serra do
Mar
395
De acordo com a análise sobre as aldeias Tupinambás, elas possuiriam um “território de domínio”
formado por diferentes áreas específicas bem delimitadas - o tecoaba. Neste viveria um grupo com
parentesco, alianças e interesses comuns. A aldeia seria, na realidade, o núcleo residencial do tecoaba e seria
construída nas regiões mais elevadas de uma determinada ecozona com capacidade diversificada de
recursos. As casas estariam dispostas em torno de uma praça central e circundada por paliçadas. Ainda
protegidas por estas paliçadas poderiam encontrar também espaços para atividades específicas. Do lado de
fora desta proteção estariam as áreas livres para pesca, coleta ou agricultura feita em clareiras abertas nas
matas. Poderiam também estabelecer em áreas próximas, acampamentos de caça e de agricultura bem
menores que o tecoaba.
Analisando uma série de mapas sobre quilombos mineiros feitos durante uma das expedições de
Ignácio Correia de Pamplona
396
, percebemos o quanto esta definição do tecoaba se aproxima dos desenhos
elaborados durante ou após a destruição das comunidades quilombolas.
Com relação aos mecanismos de defesa do tecoaba e dos quilombos, encontramos algumas
proximidades. Ambos possuem sistemas artificiais. Em diferentes quilombos espalhados por todo o período
395
OILLAN, José. Op. Cit. p. 11 e ss
396
Arquivo Conde Valadares. BN Manuscritos. 18,2,6
163
colonial e mesmo durante o império, foram encontrados sistemas de defesa que tanto podem se remeter às
práticas africanas como às indígenas. Além disso, todas as construções localizadas no interior de quilombos
faziam parte de um espaço em comum e protegido, assim como o tecoaba. Mais uma vez utilizando o modelo
do teocaba, pode-se identificar que do lado de fora da proteção do quilombo havia áreas voltadas para outras
especializações, como por exemplo, roças plantadas com milho, mandioca, hortas e algodão. Além do que
também estavam presentes as fontes de água e os matos, propiciadores de caça, pesca e coleta,
complementando a alimentação.
Comparando o esquema do tecoaba apresentado por Assis e a série de mapas dos quilombos,
podemos perceber as semelhanças. A principal é, sem dúvida, o fato de que tanto um quanto o outro está no
interior de uma mata, circundado por ela. É ela que além de fornecer alimentação, serve de barreira e de
esconderijo. A segunda semelhança é que as roças, ainda que estejam bastante próximas do núcleo
residencial, estão separadas deste (a exceção é o quilombo da Samambaia). Seria uma separação do mundo
onde se praticavam as relações sociais daquele destinado ao contato com a natureza e com a terra?
Seja como for, o fato é que comparando os desenhos dos quilombos e a
descrição do tecoaba não se pode deixar de pensar nas proximidades espaciais e
culturais entre ambos. Esta proximidade pode ser entendida como apenas uma
apropriação por parte dos quilombolas de mecanismos funcionais à vida na floresta,
como pode indicar também um possível contato cultural maior entre ambas as
culturas.
O fato marcante é que índios e quilombolas mantinham contatos e compartilhavam de uma mesma
região. Se este compartilhar era feito de maneira pacífica ou não é uma outra questão.
Ainda que os indígenas fizessem parte destas comunidades, não podemos perder de
vista que quilombos eram estruturas formadas por escravos fugidos que possuíam
consciência de sua condição de cativos. E que a presença destes índios em seu interior
passava pela necessidade de convivência em busca de uma maior proteção, e pelas
tentativas de conseguir sobreviver fora da sociedade escravista concentradora de terras e
homens.
Estas variadas relações dos quilombolas com os escravos, com alguns senhores, com os donos de
vendas ou mesmo com grupos indígenas, demonstram que as teias sociais desenvolvidas foram de tal monta
que, parte de suas forças, provinha delas. E as autoridades sabiam que para destruí-los somente cortando
estas teias, eliminando qualquer tipo de contato e ou ajuda entre os quilombolas e os demais moradores da
região. Como nunca conseguiram este intento, os quilombos permaneceram por todo o período escravista.
Onde quer que houvesse escravo, havia um quilombo - real ou imaginário.
A existência destas estruturas, quer fossem Auto Sustentáveis ou Dependentes,
propiciava uma série de arranjos sociais e de atitudes por parte da população. Uns
interessados na manutenção dos quilombos; outros em sua destruição. Este último grupo
via nos quilombolas uma ameaça à vida e sobrevivência na região. Em função disto,
164
precisavam ser destruídos a fim de que o projeto civilizador pensado para a Colônia
pudesse ser efetivado.
165
Figura 23-Quilombo de um dos braços da Perdição
Figura 24-Quilombo da Samambaia
166
Figura 25-Quilombo do Rio da Perdição
Figura 26-Quilombo dos Santos Fortes
Figura 27-Quilombo do Ambrózio
167
Figura 28-Quilombo de São Gonçalo
168
PARTE 4 - UM PROJETO DE CIVILIZAÇÃO PARA O SERTÃO MINEIRO
I – Conquistar, civilizar...
As autoridades coloniais e metropolitanas entendiam que o Sertão mineiro precisava ser controlado
e civilizado - com base em suas próprias concepções do que viria a ser “civilizado” - devido às suas riquezas
e possibilidades econômicas, mas para isto era imprescindível sua conquista.
Conquistar uma região nunca foi tarefa simples. Desde que o homem pôde ser entendido como
membro de uma comunidade, as tensões nas fronteiras de seus territórios de domínio foram permanentes e
sempre oscilaram em favor de um grupo ou de outro. Constantemente esteve presente a aventura de partir
para terras desconhecidas a fim de conquistá-las e logo a crença na superioridade de um grupo frente aos
demais os impulsionava nessa direção. O ideal civilizador capaz de acabar com a barbárie, também foi um
elemento presente nos movimentos das sociedades humanas em busca de novas regiões. Em função destas
premissas, torna-se necessário delimitar alguns conceitos.
Conquista é, dentre várias definições possíveis, um movimento de povoamento que ocorre quando
um grupo mais desenvolvido tecnologicamente inicia um processo de agressão sobre um outro menos
aparelhado. Assim, para que tal ocorra efetivamente, é necessário que o agressor, ou o conquistador, detenha
um potencial bélico dotado de maior tecnologia ou mais adaptado às novas condições históricas ou mesmo
ambientais
397
. Conquistar tem, portanto, no mínimo duas concepções: uma é o avanço sobre terras
controladas por povos com menor tecnologia; a outra concepção que está inserida neste termo é o de que se
conquista além das terras, riquezas e homens.
Uma das grandes conseqüências da dominação de uma sociedade por outra é que juntamente com o
domínio ocorre, quase sempre, o controle sobre o meio ambiente que era explorado pelo grupo subjugado,
em geral áreas ricas e com boas possibilidades de proporcionar benefícios aos seus novos desbravadores.
Como estes “novos controladores” são possuidores de uma tecnologia mais avançada ou mais adaptada as
novas necessidades, suas relações com a natureza são de esfera diversa daqueles. Desta maneira, o meio
ambiente passa a refletir, em última instância, as concepções de vida do novo grupo que o domina. Um
exemplo desta situação é a coivara, também conhecida como queimada. Enquanto os indígenas brasileiros
viviam organizados em seus próprios sistemas sociais ela não era um grande problema para a natureza, pois
uma área queimada e explorada era alguns anos depois abandonada, e tinha tempo para se recuperar. Além
disso, como a população dos grupos era relativamente pequena, não havia a necessidade de se derrubar e
queimar imensas áreas para o plantio. Um outro fator que atenuava os efeitos da queimada sobre o meio
ambiente como um todo, era que muitos grupos indígenas ainda não haviam se dedicado às práticas agrícolas,
vivendo apenas da caça e da coleta.
Quando os colonos conseguiam expulsar ou controlar os indígenas de determinadas regiões esta
situação mudava radicalmente. Ainda que eles fossem considerados inferiores, muitas de suas técnicas foram
apropriadas e a queimada foi a que teve maiores conseqüências para o meio ambiente. A partir de então eram
necessárias grandes áreas para o mercado externo, seja para o abastecimento interno. As regiões já não
possuíam tempo para se recuperar. Áreas cansadas eram abandonadas e novas terras eram buscadas
398
.
Pode-se perceber também que junto à idéia de Conquista havia claramente definida a busca por algo
que era identificado com o conceito de riqueza. No caso de Minas Gerais, esta era associada principalmente
ao ouro e aos diamantes. E para obter estas riquezas nenhum esforço seria demais. Era por elas que todas as
forças eram reunidas e tudo era justificado. As expedições enviadas ao sertão exemplificam isto, dizimando o
que restava dos Caiapós e dos Puri e empreendendo uma implacável guerra aos Botocudos, com o objetivo
de localizar ouro e transformar aquelas terras em áreas seguras aos mineradores. O ouro justificava as
guerras. Graças a elas, territórios ficavam “limpos” para o controle da sociedade que se via como civilizada.
As relações com os homens que habitavam as terras recém incorporadas pelas conquistas
rapidamente caminharam para confrontos abertos, acarretando posições antagônicas em termos culturais,
sociais, políticos e religiosos. O conquistado rapidamente tornou-se o “Outro”
399
- aquele que não era
semelhante a quem estava conquistando. Assim os subjugados foram tratados como inferiores, feios, sujos,
397
Dicionário de Ciências Sociais. FGV verbete: conquista.
398
DRUMMOND, José Augusto. Devastação e preservação ambiental. Niterói: EDUFF,
1997.
399
TODOROV, T. Op. Cit.
169
desprovidos de cultura, enfim, sem qualquer traço que merecesse algum tipo de aceitação pelos “superiores”.
As relações estabelecidas entre os dois grupos que se chocaram foram sempre baseadas no estranhamento.
Cada um via o Outro como não-homem devido às suas diferenças.
400
Logo a sociedade mais avançada
percebeu que os conquistados poderiam ser exterminados física ou culturalmente ou ainda utilizados de
maneira mais proveitosa, ou seja, transformando-os em cativos.
As variadas possibilidades nas relações estabelecidas com o Outro foram classificadas por Sérgio
Rouanet em quatro tipos principais: diferencialismo repressivo, igualitarismo abstrato, diferencialismo
crítico, e igualitarismo concreto. O primeiro conceito é o que nos auxilia no momento. Trata-se, segundo o
autor, da forma mais primitiva das relações com o Outro. Ele, o Outro, é “investido das características de
uma estranheza radical” e a comunicação entre ambos torna-se impossível porque o abismo que os separa é
identificado como sendo muito grande
401
.
Esta diferença entre os dois grupos étnicos foi diagnosticada pelos conquistadores como sendo
causada por um grande distanciamento civilizacional entre ambos ou ainda pela ausência completa de
civilização no Outro conquistado. Neste caso, este foi transformado em um bárbaro sem qualquer elemento
cultural que o pudesse assemelhar com o conquistador. Daí a dicotomia entre bárbaros e civilizados.
Ser civilizado é um conjunto de maneiras que a sociedade encara como sendo a forma superior de se
portar, crer e fazer
402
. E civilização é um processo em movimento constante “para a frente”.
403
Ainda
segundo este autor, civilizado era no século XVIII, “...um dos muitos termos usados ... com os quais os
membros da corte gostavam de designar, em sentido amplo ou restrito, a qualidade específica de seu próprio
comportamento, e com os quais comparavam o refinamento de suas maneiras sociais, seu “padrão” com as
maneiras de indivíduos mais simples e socialmente inferiores...”
404
Ao analisar o conceito de civilização utilizando o referencial desenvolvido acima, identificou-se que
no século XVIII, ser civilizado era estar ligado ao mundo cristão, ou seja, era ser um filho de Deus,
cumpridor de todos os seus deveres não só para com a divindade mas também, por tabela, com seu
representante legal na Terra: o rei. Logo, ser civilizado era ser cristão e súdito
405
.
Estas características de “ser civilizado” são os elementos que Bluteau tinha em mente ao definir os
índios do Brasil:
“...Também chamamos índios aos povos da América. No Brasil, dividiram os portugueses aos Bárbaros, que
vivem no sertão em índios mansos e bravos. Índios mansos chamam aos que com algum modo de República
(ainda que tosca), são mais tratáveis e capazes de instrução. Pelo contrário, chamam índios bravos aos que
pela sua natural indocilidade, não tem forma alguma de governo, nem admitem outras leis, que as que lhes
dita a sua fera natureza.”
406
Estes últimos eram para Bluteau, “...gens fera... cujos ... costumes são mais bravos que as bestas
mais bravas...”
407
Era exatamente como feras e como bestas que a sociedade mineira via a maioria dos índios do
sertão. Um dos maiores problemas que as autoridades tinham no século XVIII, era o que fazer com o
gigantesco número de índios não domesticados espalhados pelos territórios do interior, dominando áreas ricas
em ouro e próprias para a agricultura e ou pecuária. Sabia-se que somente controlando-os é que a civilização
chegaria a estas regiões. Civilização entendida é claro, como controle sobre as terras, sobre a mão-de-obra e
sobre as riquezas minerais, feito por um grupo que se considerava superior em detrimento do outro, visto
como inferior.
A idéia de inferioridade e de superioridade é o que marcará as relações entre o conquistador e o
conquistado. Entretanto, a crença na existência de raças superiores e inferiores, devendo esta última ser
400
ibidem
401
ROUANET, Sergio Paulo. Identidades e diferenças: uma tipologia. In: Revista Sociedade e
Estado. Vol. IX, n. 1-2, jan/dez 1994. p. 80-84.
402
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Vol. 1: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro,
Zahar, 1994. p. 24
403
Idem
404
ibidem p. 54
405
OLIVEIRA, Ricardo. Sertão e nação: Euclides da Cunha e a construção da Brasilidade
sertaneja. Dissertação de Mestrado. UFRJ. 1998.
406
BLUTEAU, R. op. Cit. Verbete: índios
407
Ibidem verbete: bravo
170
controlada ou extinta em nome de melhorias para a outra, ou em nome da expansão de um mundo entendido
como civilizado sobre um bárbaro, parece ser bastante antiga e não foi um atributo exclusivo da sociedade
Ocidental Cristã. Os Incas, por exemplo, justificavam seu avanço sobre outros povos quase que da mesma
forma que os espanhóis o fariam
tempos depois:
“ Diziam-se investidos de uma missão civilizadora junto às populações dos Andes que ainda estavam
mergulhadas na barbárie. Acusavam freqüentemente esses povos de praticarem o incesto, de comerem carne
humana e de viverem em estado de guerra permanente; e iriam ensinar-lhes as relações de parentesco, o
cultivo do milho e a arte de viver em paz que distinguia o “ civilizado” do “ bárbaro” .”
408
A semelhança com as idéias espanholas de anos depois é interessante para a percepção de como uma
sociedade encara grupos diferentes de si. Os espanhóis da época das conquistas acreditavam que os índios
eram inferiores aos europeus porque não compartilhavam da mesma cultura. Em alguns momentos
acreditavam, inclusive, que eles não chegavam a ser homens, ou na melhor das possibilidades, se o fossem
seriam bárbaros inferiores pois não falavam as línguas conhecidas e entendidas como civilizadas
409
.
Deveriam ser educados na verdadeira fé a fim de se tornarem homens. Colombo nos serve de exemplo: ele
acreditava que os índios precisavam ser levados à Espanha para que aprendessem a falar.
410
Na realidade, o
“aprender a falar” significava aprender um idioma que ele considerava enquanto tal – as línguas conhecidas e
aceitas na Europa. A linguagem indígena não era considerada como possível assim como sua cultura.
A idéia de Conquista e todos os valores que estão ligados à ela conseguiram, de uma forma ou de
outra, permanecer no tempo e em situações bastante diferentes entre si. Parte do que foi realizado nas
conquistas em Minas Gerais durante o século XVIII, também já havia sido executado por diferentes grupos
sociais há muito tempo e muitas destas práticas continuaram sendo utilizadas no século seguinte. Pode-se
perceber que houve uma certa continuidade no ideário referente às Conquistas de novas áreas. Isto leva a
inferência de que alguns valores permaneceram impregnados na maneira das pessoas viverem e perceberem o
mundo, ainda que em contextos sócio-econômicos diversos.
Conforme já visto, os europeus dos séculos XV e XVI tinham uma visão dos índios que passava pela
inferioridade absoluta. Além disso, eram bárbaros, tábulas rasas sem cultura, sem identidades individuais,
não sabiam falar, não eram homens e, em função de tudo isto poderiam ser escravizados
411
.
No século XVIII estes mesmos conceitos sobre os índios foram reelaborados e resgatados de épocas
anteriores. Todavia, estas imagens também foram utilizadas para caracterizar o negro, permitindo a dedução
que não importava muito se o Outro era um índio ou um negro. O que marcava o espaço entre estes e a
sociedade européia, ou mesmo a colonial, era a construção pelos dois últimos grupos de imagens negativas
acerca do primeiro, pois portadores de sistemas tão diferentes não eram percebidos como possuidores de
cultura. E com bases nestas imagens negativas justificava-se a dominação e o aniquilamento.
As razões para se considerarem “os Outros” como bárbaros são quase as mesmas, quer se trate dos
Incas, dos espanhóis, dos portugueses ou dos mineiros do século XVIII. Para eles, os povos que estão fora do
controle exercido pela civilização vivem de maneira errada, e em função disto, precisam ser conquistados.
Para as autoridades mineiras, os Botocudos e os Puri eram nações bravias porque comiam outros homens e
viviam em constantes guerras com os demais índios e com a sociedade branca. Logo, precisavam ser
controlados através do aldeamento ou exterminados em nome do desenvolvimento da sociedade. Os
quilombolas eram bárbaros porque não aceitavam sua condição de cativos e, ainda por cima, atacavam a
sociedade senhorial branca. Para controlá-los, aldeá-los ou exterminá-los, foram preparadas inúmeras
expedições enviadas aos sertões.
Mas nem tudo estava do lado da sociedade colonial e de suas
expedições de conquistas. Os índios aparecem em todos os relatos
como um sério obstáculo aos seus intentos. As notícias dadas pelo
Alferes José Peixoto da Silva Braga são interessantes para
perceber estes contatos violentos entre a “civilização e a
408
FAVRE, Henri. A civilização Inca. Rio de Janeiro, Zahar Ed. 1990. p. 26
409
. TODOROV, T . Op. Cit. P. 90
410
Ibidem p. 36
411
Ibidem
171
barbárie”. Este documento nos inicia também em um outro tema:
a preocupação demonstrada em não ferir os índios. Isto não teria
sentido se não fosse a possibilidade de escravizá-los. O Outro é
diferente não só nas armas que usa, mas também em suas
atitudes. É um antropófago bárbaro, mas pode ser útil ao sistema
ao se tornar um cativo:
“ Na noite do terceiro dia avistamos as rancharias do Gentio, e seus fogos: emboscamo-nos no mato para
lhe darmos na madrugada, mas sendo sentidos dos cachorros que tinham muitos, e bons, quando os
avançamos, nos receberam com os seus arcos e flechas. Não demos um só tiro por ordem do Cabo, de que
resultou o fugir-nos quase todo o gentio, o investir um deles ao sobrinho do Cabo com tal ânimo, que
lançando-lhe a mão à rédea do cavalo lhe tirou a espingarda da mão, e da cinta o traçado, e dando-lhe com
eIa um famoso golpe em um dos ombros, e outro no braço esquerdo, fugiu levando-lhe consigo as armas.
Desembaraçado do Tapuia o Paulista correu sobre ele sem mais efeito, que recuperar a espingarda que lhe
largou o Tapuia, retirando-se com o traçado. Nesta mesma ocasião outro Tapuia em uma das suas portas
feriu levemente no peito com uma flecha a um Francisco Carvalho de Lordelo, e acudindo outro lhe deu na
cabeça com um porrete de que caiu logo, caindo-lhe deu outra porretada outro Tapuia, que apareceu de
novo, deixando-o já por morto.
É para admirar, que em todo este conflito não fizesse ação alguma mais o nosso Cabo, que o andar
sempre ao longe, gritando, e requerendo-nos, que atirássemos só ao vento por não atemorizar o gentio. Foi
Deus servido levarmos os ranchos chovendo sobre nós as flechas, e os porretes. Retiraram-se para o mato os
Tapuias, mas sem nunca nos perderem de vista, e tanto, que querendo darmos sepultura ao Carvalho
persuadidos, a que estaria morto, procuraram em duas avançadas que nos deram, o tirá-lo e comê-lo, e
vendo-se rebatidos nos pediram por acenos lhe déssemos ao menos a metade para a comerem, por ser
diversa a língua da geral...”
412
Além dos índios, um outro fator que segundo as fontes atrapalhava o cotidiano destas expedições,
era a natureza percebida como agressiva e selvagem:
“ ...Aqui começou a gente a desfalecer de todo: morreram-nos
quarenta e tantas pessoas entre brancos e negros, ao
desamparo, e o eu ficar com vida o devo a meu cavalo, que para
me montar nele pela nímia fraqueza, em que me achava era
412
Notícia 1ª prática - que dá ao P. Manoel Diogo Soares o Alferes José Peixoto da Silva Braga,
do que passou na Primeira Bandeira, que entrou ao descobrimento das Minas do Guayases até sair
na Cidade de Belém do Grão Pará. In: TAUNAY, Afonso de E. Relatos Sertanistas
. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. P. 129
172
preciso o lançar –me primeiro nele de braços levantados sobre o
primeiro cupim que encontrava...”
413
Entretanto, a dificuldade apresentada pela natureza bravia acabava sendo transformada por estes
homens em mais um sinal de sua boa vontade para com Deus e para com seu Rei. A guerra contra a barbárie
do terreno e de seus habitantes tornava a conquista mais necessária, mais valorizada e, portanto, mais
dignificada. Quanto mais problemas a enfrentar, maiores seriam as recompensas espirituais e financeiras.
Todas estas dificuldades tinham um local por excelência: o sertão, ou seja, a fronteira que separava a
barbárie da civilização
414
. Fronteira é“... a marca ou linha de demarcação de dois sistemas de poder, que se
caracterizava pela falta de estabilidade. [É] uma zona não perfeitamente definida e também despovoada
devido à insegurança...”
415
Além disso, “ ...fronteira não é um conceito estático e atemporal... é um exercício soberano do
poder sobre um território... com controle militar, econômico, cultural e político-administrativo...”
416
Ainda que autores com posturas diferentes sobre fronteira divirjam em alguns pontos, parece que é
unânime a noção de que o conceito de fronteira pressupõe o de movimento. A diferença é que este
movimento no caso norte-americano é ininterrupto, rápido e contou com diferentes mecanismos. Como o
avanço se deu sobre regiões densamente povoadas por tribos indígenas ou controladas por países europeus,
várias táticas foram sendo desenvolvidas para obter o seu controle de acordo com a “hierarquia” de quem
controlava o território: guerras, extermínios, compras, acordos e conflitos. Isto tudo ocorreu durante o século
XIX, e foi apenas no sentido Leste-Oeste. Não houve interrupções ou recuos que atrapalhassem esta marcha.
Uma outra característica desta conquista é que, ao mesmo tempo em que novos territórios eram incorporados,
iniciava-se imediatamente sua colonização, povoamento e exploração econômica. Isto fez com que pouco a
pouco, a identidade americana fosse pautada no mito da Conquista do Oeste. O que iria unir todo o povo
americano seria esta concepção de que eram criadores de uma nação confiante e vitoriosa e que contava com
a figura de um herói civilizador, vencedor da luta contra os “inferiores”.
No caso brasileiro parece que só temos em comum com os norte-americanos o fato de que aqui
também o conceito de fronteira abarca a idéia de movimento. Entretanto, este movimento não é ininterrupto.
Pelo contrário, várias foram as tentativas, avanços e recuos desta fronteira. Foi também um deslocar lento
iniciado no século XVI e que continua se estendendo até os dias de hoje. Portanto, no Brasil houve avanços,
recuos, dispersões e estagnações no processo de povoamento e de incorporação de novas áreas
417
.
Em Minas Gerais, a situação durante o século XVIII exemplifica esta realidade. O povoamento do
Oeste de Minas Gerais - e do Leste também - apresentava um problema de difícil solução: por mais que as
autoridades tentassem por meios diversos controlar esta região, ela continuou a ser - pelo menos até meados
do século XIX - esconderijo de inúmeros quilombos e palco de tribos consideradas como selvagens e
bárbaras.
O Sertão Oeste mineiro era um local fora do controle das autoridades. Por mais que tentassem
controlar as terras e os homens pouco ou nada conseguiam. Pode ser visto na documentação com clareza, o
caráter oscilatório desta fronteira, ou melhor dizendo, das fronteiras. Regiões eram conquistadas de índios ou
grupos quilombolas e entregues ao povoamento. Pouco tempo depois, os povoadores recuavam em virtude de
ataques destes mesmos grupos, fazendo com que os limites que separavam a civilização e a barbárie
estivessem sempre em movimento.
Estudos têm demonstrado que enquanto nos EUA o avanço da fronteira criou um mito de origem
capaz de unir todo o povo americano e assim explicar sua origem, no Brasil a conquista de áreas que estavam
fora do controle não provocou o mesmo processo. Muito pelo contrário, a conquista do Oeste brasileiro
acabou produzindo dois mitos que não unem o povo: o mito da Amazônia e o do Sertão. Este último foi
413
Notícia 1ª prática - que dá ao P. Manoel Diogo Soares o Alferes José Peixoto da Silva Braga,
do que passou na Primeira Bandeira, que entrou ao descobrimento das Minas do Guayases até sair
na Cidade de Belém do Grão Pará. TAUNAY, Afonso de E. Op. Cit. p. 128
414
Sobre uma discussão sobre Sertão ver a parte 1
415
Dicionário de Ciências Sociais. Verbete fronteira
416
OLIVEIRA, Lucia Lippi. A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro. In:
Manguinhos: História, ciências e saúde
. Vol. 5 suplemento. Julho 1998.
417
Sobre esta discussão sobre fronteiras ver TURNER, C.J. La fronteira en la historia
americana. Madri: Castela, 1960 e HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de
Janeiro: Livraria José Olímpio. 1975.
173
formulado nos primeiros séculos de povoamento e o sertão foi identificado como local de difícil moradia,
distante, remoto e isolado, sem lei ou ordem. Só era habitado por seres inferiores e somente homens
valorosos poderiam conquistá-lo
418
:
“...no Brasil, os mitos relativos à Conquista do Oeste não são mitos de origem... Esses mitos têm caráter
regional e não são mitos de inclusão, pois não são capazes de incluir a nação inteira numa única
narrativa...não contribui para criar ou reforçar qualquer sentimento de identidade nacional...”
419
O conceito de fronteira trás consigo um outro que é o do espírito do homem da fronteira. Os
participantes das expedições possuíam um sentido que os moviam em busca de outras regiões, sempre
capazes de propiciar riquezas e glórias a seus desbravadores. Para os contextos de suas épocas eram homens
vitoriosos. E vitoriosos porque conquistaram. Eram homens que não se prenderam a qualquer região. Uma
vez já conquistadas partiam para outras em busca de outros locais e atrativos. Eram homens que nas áreas de
interiorização exerciam todo o poder, os representantes legais das autoridades metropolitanas. E, portanto,
eram temidos, respeitados e quase sempre obedecidos. Estes homens de fronteiras eram “... produto do
encontro do português e do indígena...” e portavam em si próprios o “...encontro de hábitos, de etnias, de
linguagens, em suma, de culturas...”
420
Por tudo o que foi visto, pode-se afirmar que durante o século XVIII houve um projeto civilizador
voltado para a Colônia. Embora tenha sido desenvolvido na Metrópole, tal projeto foi, em linhas gerais,
absorvido pelas elites coloniais. Uma das principais idéias era a crença de que a sociedade branca vista como
a “civilizada”, deveria incorporar outras áreas à fronteira colonial, preferencialmente ricas e com
possibilidades de produzirem, mas que estavam sob o controle de bárbaros, ou seja, daqueles que não
compartilhavam dos mesmos sistemas culturais e de valores. Para isso, era necessário eliminar de uma forma
ou de outra, estes elementos.
Este projeto civilizador foi executado em regiões que poderiam propiciar algum
tipo de retorno financeiro não só às próprias expedições que partiam para o seu controle,
como também às elites locais e à metrópole. O próximo capítulo procura analisar algumas
destas expedições que percorreram diferentes áreas durante o século XVIII demonstrando
que o projeto não foi exclusivo para a região de Minas Gerais e nem envolvia apenas os
interesses relativos ao ouro.
418
AMADO, Janaina. “ Construindo mitos: a conquista do Oeste no Brasil e nos EUA. In:
PIMENTEL, Sidney Valadares e AMADO, Janaina (org). Passando dos limites
. Goiânia: Ed. Da
UFG, 1995.
419
Idem p. 68
420
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ, UCAM,
1999 . p. 743
174
II - O ideal civilizador fora da Capitania de Minas Gerais
As expedições civilizadoras no decorrer do século XVIII assumiram características que podem ser
percebidas em outras áreas Coloniais, demonstrando que este projeto não era próprio apenas para o território
mineiro. Havia uma idéia maior de “civilizar” toda a Colônia, ou pelo menos, as áreas mais interessantes
economicamente. O grande problema enfrentado pelas autoridades era os indígenas que as habitavam. Para
elas, estes atrapalhavam o progresso ao impedirem a entrada da civilização naquelas regiões. Logo, deveriam
ser convencidos ou então, exterminados em nome da civilidade e do progresso. Quanto aos quilombolas,
parece não ter havido nenhum plano geral e sistemático de eliminação. Cada região cuidou dos seus
quilombos da forma como pôde. Ou não.
Na região Norte destaca-se neste período a expedição feita em 1781, por Henrique João Wilckens,
que percorreu o Rio Japurá com os objetivos de reconhecer a região e pacificar os índios Mura
421
. Este rio
servia como limite entre as terras pertencentes à Espanha e as de Portugal e era dominado por estes índios,
envolvidos diretamente nas disputas metropolitanas. Wilckens, embora fosse um militar, tinha como
formação os ensinamentos jesuíticos e durante toda a expedição tentou por diferentes maneiras sujeitar os
Mura ao Cristianismo. Uma forma de convencer os índios de que o Cristianismo era o caminho verdadeiro
para o homem ideal, foi o comportamento exigido a todos os participantes da expedição que deveriam ter boa
conduta a fim de que dessem o exemplo aos indígenas. Apesar de tudo, as tentativas de catequização dos
Mura fracassaram e rapidamente os indígenas que não aceitavam a civilização imposta pelas autoridades
coloniais portuguesas, passaram a ser identificadas como Mura. Desta maneira, Mura assim como Botocudo
passou a significar Índio bárbaro, incivilizado e que não aceitava a civilidade ofertada. Assim sendo, estes
índios poderiam ser escravizados e exterminados, e o foram.
Na região mais ao Sul da Colônia, portanto oposta à percorrida por Wilckens, encontram-se registros
de expedições com os mesmos objetivos e características. De 1768 a 1773, onze expedições partiram para os
Sertões do Rio Tibagi. Hoje esta área pertence ao Paraná, mas na época fazia parte da Capitania de São
Paulo. Os objetivos da expedição eram o reconhecimento do território, de seus recursos naturais e a
conversão do gentio
422
.
A maior de todas as expedições foi a décima, ocorrida em 1771. Além do relatório que foi
posteriormente enviado à Metrópole, ela conta ainda com uma série de imagens retratando os acontecimentos
envolvendo o seu cotidiano, e os contatos com os índios da região permitindo inferências sobre o que não foi
dito no relatório
423
.
Joaquim José de Miranda foi o autor dos desenhos aquarelados que ilustraram este relatório.
Provavelmente, o autor das imagens não esteve em campo acompanhando a expedição, apenas retratou
posteriormente, baseado no que estava escrito. Era, na realidade, um trabalho de ilustração do texto. Assim,
teria-se uma explicação plausível para o fato de os índios aquarelados serem tão parecidos fisicamente com
orientais e não com indígenas. Tratava-se da reprodução de uma imagem prévia sobre o que o aquarelista
imaginava ser um índio.
As imagens propiciam um material muito interessante com relação ao aspecto físico destes índios.
Alguns indivíduos foram retratados com uma cor bem mais escura que os demais. (figuras 29,30,31,32).
Poderiam ser negros? Sabendo-se que negros fugidos e indígenas conviviam pacificamente em muitas
regiões pode-se imaginar que sim. Entretanto, os relatórios nada dizem sobre terem encontrado algum
elemento negro na área. Mas como explicar a diferença de cor entre os que, teoricamente, seriam da mesma
etnia? Por que a utilização de cores diferentes para registrar um mesmo grupo?
421
Diário da viagem ao Japurá, de Henrique João Wilckens. 23 de fevereiro de 1781. Manuscrito
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, RJ, Arquivo do Conselho Ultramarino, 1.1.4.
422
Notícias da conquista e do descobrimento dos Sertões do Tibagi na Capitania de São Paulo, no
governo do General D. Luis Antonio de Sá Botelho Mourão, conforme ordens de Sua Majestade.
Por Afonso Botelho de S. Paio e Souza no ano de 1768 até o de 1774. Biblioteca Nacional .
Manuscritos, 9,3,14
423
Notícias da conquista e do descobrimento dos Sertões do Tibagi na Capitania de São Paulo...
Op. Cit. Ou. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. T. 18, 1896
175
Figura 29-Índios recolhendo Pinha
Fonte: Aquarelas de Joaquim José de Miranda. Séc. XVIII. Coleção de Beatriz e Mário
Pimenta Camargo. São Paulo.
Figura 30- Os contatos
Fonte: Idem
176
Figura 31-A aceitação dos presentes
Fonte: Idem
Figura 32- Recebimento de presentes
Fonte: Idem
Na primeira imagem, o autor das aquarelas buscava retratar uma cena cotidiana, ou seja, o
recolhimento da Pinha. Junto ao casal de índios aparecem três crianças que possuem a mesma cor de pele que
os adultos. Entretanto, há também duas outras crianças mais escuras.
177
Nos outros três quadros há novamente a presença de elementos mais escuros que o
restante da população indígena. Dos quatro índios caracterizados desta forma, pelo menos
duas são mulheres.
No último quadro, ao fundo da cena, quase que escondido pela vegetação ou quem sabe, se
escondendo, há um indivíduo também mais escuro.
O que a presença destas crianças, mulheres e homens mais escuros pode significar? Se o autor das
aquarelas não esteve no local, porque retratou possíveis negros convivendo com indígenas? Seria um fato
conhecido e aceito pelo senso comum devido à sua constância? Infelizmente não há como ter certeza das
reais intenções do autor. Apenas inferências podem ser feitas.
Todas as expedições enviadas à esta região estavam inseridas no contexto criado pelo Tratado de
Madri. Assim, os objetivos delas eram o reconhecimento do território e de seus recursos naturais, o
favorecimento do povoamento e, conseqüentemente, a efetivação da posse da região para Portugal.
A estrutura do relatório é muito parecida com os documentos das expedições de Minas Gerais. Os
seus participantes contavam com o apoio de Deus pois estavam a seu serviço e do Rei de Portugal. Sofriam
vários tipos de incômodos e desconfortos, mas tudo era válido porque sabiam que estavam prestando um
importante serviço ao Império, dilatando-o em sua extensão e “...Ter acrescentado aos domínios de Sua
Majestade... esses grandiosos campos e dilatados sertões...”
424
.
Há no relatório uma preocupação em se descrever o território, suas possibilidades de ser povoado,
de desenvolver a agricultura e de localizar ouro. Entretanto, acreditavam que o povoamento só seria efetuado
se Deus assim o permitisse. Daí, a presença de religiosos capuchinhos no grupo, as constantes missas e
festividades religiosas:
“... no Domingo, dia de Nossa Senhora da Conceição, cantou o reverendo padre frei José
a missa, e festejou-se a mesma Senhora com o maior culto, que foi possível, confessando-
se muita gente, e quase no fim da missa sucedeo o que consta da relação inclusa: passou-
se todo o dia com muito contentamento e vários divertimentos pelo gosto em que todos
estavam...”
425
Sabiam que para povoar a região - considerada como “... campo fértil...”
426
- precisavam construir
uma fortaleza “para conservar a obediência dos bárbaros que habitam os Sertões...”
427
.
Os índios contatados foram os do Grupo Xaclán, conhecidos também como Xokleng. Vivam em
áreas de florestas entre o litoral e o planalto de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a Paranaguá, no Paraná.
No início dos relatórios da expedição de 1771, as descrições que fizeram destes índios foram as mais
elogiosas possíveis: eram dóceis, amáveis, bons, bem feitos de corpos e de cores claras. Assim, conseguiram
sem maiores dificuldades trocar presentes e agrados. Das 37 imagens, 11 retratam os índios recebendo
objetos e presentes dos brancos. Em apenas três quadros a situação é contrária. O curioso é que os presentes
oferecidos pelos índios aos brancos são armas, elemento importante para quem está no meio de uma floresta,
seja de que cultura for. Trata-se assim de um presente utilitário. Entretanto, os presentes oferecidos pelos
soldados aos índios são espelhos, roupas e toucas, importantes apenas para a sociedade que está ofertando e
não para aquela que está recebendo. Não há nesta troca de presentes qualquer tipo de reciprocidade, mas
apenas sobre o indígena, uma imposição de elementos valorizados pela cultura católica Ocidental. A
principal função da maior parte dos presentes é apenas cobrir os corpos nus dos índios: “... o vê-los mansos
causou prazer, compaixão grande foi vê-los nus, sem roupa ou compostura alguma...”
428
424
... Descoberta dos Campos e Guarapuava... Op. Cit. p. 263
425
Idem p. 266
426
Ibdem
427
Ibdem p. 279
428
Ibdem p. 271
178
A imagem a seguir demonstra claramente o “antes” e o “depois” do recebimento do
presente. O índio nu é retratado com suas armas de selvagem. O que porta roupas já
aparece apenas segurando um pedaço madeira.
Figura 33-Índios
Fonte: Idem
Entretanto, a visão positiva dos índios vai se alterando com o passar dos dias e com os vários
contatos que tiveram. Em pouco mais de um mês na região os participantes da expedição conseguiram dar e
receber presentes, ensinar práticas religiosas aos índios e serem emboscados e assassinados por um grupo
que, segundo eles, fingiam ser amigos. No dia 8 de janeiro de 1772 os índios mostraram “...todo o seu poder,
e em fé de paz [foram ao acampamento] com demonstrações da mais sincera amizade para nos acabarem à
traição... usando de sua ferocidade e modos...
429
”. Assim, os indígenas deixaram de ser amáveis para se
transformarem em “bárbaros selvagens”. Vale a pena observar as quatro aquarelas que mostram os
diferentes momentos de ataques, as lutas entre os dois grupos e o resultado final.
A primeira aquarela mostra que enquanto um grupo vai em visita ao acampamento militar, fingindo
assim, amizade, um outro ataca o restante da expedição que havia saído para caçar e fazer o reconhecimento
da área.
429
Ibdem p. 279
179
Figura 34-Ataque
Fonte: Idem
Há um detalhe curioso nesta tela. Não há como saber se ela foi obra da criatividade do aquarelista ou
se os índios realmente estavam portando desenhos nos braços. É a única cena onde tais desenhos aparecem.
Em várias tribos brasileiras eram e ainda são feitos desenhos nos corpos em algumas situações especiais e a
guerra é uma delas. Estariam os índios realmente se preparando para a guerra? Se os militares tivessem se
interessado em conhecer mais o grupo teriam percebido as intenções? Ou ao contrário, trata-se apenas de um
enfeite colocado pelo artista? Infelizmente não há como sabermos. Mas, é necessária a atenção a este detalhe,
principalmente porque o relatório afirma que os índios deram alguma comida aos soldados, mas que estes por
repulsa não comeram. Entretanto, um cachorro que havia comido um bolo de milho ofertado morreu, pois o
alimento estava envenenado. Tal fato demonstra que, de alguma forma, os índios pretendiam atacar o grupo.
A segunda aquarela deste grupo de imagens é o ataque propriamente dito.
Figura 35-Ataque
Fonte: Idem
180
O interessante desta imagem é a demonstração de que no momento do ataque - portanto, momento
em que os índios - segundo o relatório - retornam ao seu estado mais bárbaro, os poucos que estão portando
as roupas dadas pelos soldados as utilizam de maneira nada propícia para os parâmetros cristãos. Usam
apenas uma camisa acima da linha da cintura ou uma espécie de saia amarrada também na cintura.
As armas apresentadas são os tradicionais arcos e flechas e uma espécie de tacape para abater os
inimigos.
Na penúltima aquarela deste grupo de imagens, os mortos estão desenhados tombados e
transpassados por flechas. Alguns estão praticamente sem roupas. Teriam os indígenas sido despojados de
suas vestimentas? O relatório nada afirma sobre isto.
Figura 36-Ataque
Fonte: Idem
Nesta cena o padre da comitiva está perto de uma pessoa ferida – que segundo o relatório ainda teria
vivido por mais algumas horas - ministrando os sacramentos e delimitando o caráter cristão da empresa. Este
caráter será ainda mais acentuado no relatório, onde se afirma que aqueles que sobreviveram somente
deixaram o local após voltarem com os mortos e os enterrarem “... com a possível piedade...”
430
A última aquarela retrata a retirada do restante do grupo. Vendo que não conseguiriam conter a fúria
dos indígenas, fugiram desistindo do intento de colonizar a região. Além do que a comida estava no final, a
caça era impossível por causa do medo de novos ataques e os membros da expedição estavam “...doentes e
debilitados do trabalho...”
431
. Assim,
“... A necessidade de forças e gente para rebater a fúria de tão grande multidão de
gentios, que mais cresceria em se juntando os da aldeia, que existe ao norte; a
impossibilidade de podermos ser socorridos de povoado em pouco tempo; o perigo de nos
tomarem os caminhos com ciladas... determinei retirar para salvar as vidas e o trem de
Sua Majestade que sem remédio pereceria tudo em poucos dias sem remédios...”
432
430
Ibdem p. 287
431
Ibdem p. 287
432
Ibdem p. 288
181
Figura 37- A retirada
Fonte: Idem
Entretanto, a situação não estava definitivamente solucionada. No início do século seguinte os
contatos com os índios Xaclán ainda eram feitos de maneira agressiva. Eles continuavam sendo um obstáculo
sério às intenções dos povoadores da região. Em 1808 D. João, através de Carta Régia de 5 de novembro
deste ano, decreta Guerra Justa aos Botocudos Xokleng do Paraná, acusados de “...matar cruelmente todos
os fazendeiros e proprietários que nos mesmos países tem procurado tomar sesmarias e cultivá-las em
benefício do Estado...”, concluía afirmando estarem esgotados “... todos os meios humanos para a sua
civilização...”
433
Percorrendo a documentação pode-se perceber que havia uma clara preocupação das autoridades
coloniais e metropolitanas em pacificar ou eliminar os índios que habitavam as regiões interessantes
economicamente. Para isto, expedições organizadas pelos segmentos mais influentes da Colônia ou mesmo
da Metrópole foram criadas. Com relação aos grupos de quilombolas a situação parece ter sido diferente.
Isto ocorria porque as expedições enviadas aos Sertões para contatar os indígenas tinham um caráter
“científico” e religioso. Um dos objetivos era conhecer estes grupos e catequizá-los, desde é claro, que não se
mostrassem resistentes aos projetos das elites. Tais preocupações eram impensáveis quando se tratava de
grupos de escravos fugidos. Evidentemente, não havia um projeto civilizador para os negros quilombolas. A
estes estava reservada a guerra, a destruição de seus quilombos e o cativeiro.
Todavia, o projeto civilizador proposto e levado à cabo em Minas Gerais durante o século XVIII não
foi de maneira alguma específico para a região. Muito pelo contrário, o que se percebe em diversas
documentações é um projeto maior que visava em última análise colonizar - através do conhecimento das
áreas e de seu povoamento - não só para garantir a produção de riquezas, mas também para manter a posse
sobre as terras.
433
Carta Régia, 5.11.1808. Coleção das Leis do Brasil.
182
III – As tentativas de controle e povoamento do Sertão Mineiro através das
expedições
O Projeto Civilizador proposto para Minas Gerais só seria levado a efeito se houvesse um controle
sobre a existência dos que viviam no Sertão, e se este controle fosse estendido também às terras. O controle
sobre estas era teoricamente de fácil solução, uma vez que eram doadas em forma de sesmarias a quem
tivesse condições de desenvolvê-las. Os sérios obstáculos com relação ao povoamento das áreas mais
afastadas eram os grupos indígenas e os quilombolas.
Assim, com o objetivo de controlar esta região e sua população, várias expedições foram enviadas
aos sertões - tanto do lado Oeste como do Leste de Minas Gerais. Com destino ao Sertão Oeste foram
localizadas seis expedições entre os anos de 1735 e 1750; quatorze de 1750 a 1777 (Período Pombalino) e
quatro até o ano de 1784.
Antes de 1735, as expedições que eram mandadas aos sertões eram esporádicas e não se percebe
nelas uma preocupação mais ampla em controlar toda a região através da destruição de quilombos e do
extermínio de grupos indígenas hostis. São apenas interesses locais que partem para destruir um quilombo ou
uma aldeia que está perturbando o sossego público ou à procura de ouro.
O Conde de Assumar, terceiro governador das Capitanias de São Paulo e Minas Gerais (1717-1720),
foi um exemplo claro desta situação. Ainda que ele fosse um elemento chave para o controle e
desenvolvimento do Império Colonial português
434
, parece que não associou este fato ao povoamento das
terras. Assumar entendia que bastava haver total obediência dos vassalos às ordens do suserano para que o
crescimento do Império estivesse assegurado. Esta é a tônica de seu primeiro discurso em terras paulistas no
momento de sua posse:
"Não há nação, por bárbara que seja, que não respeite, e submissamente não venere aquele que reconhece
por cabeça: os mais imbecis, os mais bastos e mais inertes povos, e mais semelhantes aos brutos foram
sempre os gentios cá da América, ...mas até este quase refugo do gênero humano respeitava os seus
morubixabas, os seus ulmenos, curacâo, apocuracâ, os seus caciques, os seus incas, e os seus montezumas,
tanto assim que sendo estes magnatas tão faltos de boa razão, como os mesmos súditos ordinariamente era
tirânico o seu governo, contudo leis invioláveis eram os seus preceitos, e não só submissa, mas escravamente
eram obedecidos, como se entre gente tão estulta houvesse algum Samuel, que lhe dissesse o absoluto
Império que o soberano tem sobre os vassalos....”
Para Assumar, se até o “refugo do gênero humano” respeitava as suas leis, o mesmo deveria ser
esperado e até com mais ardor, dos povos civilizados, pois o rei português, segundo ele, governava não
somente como um “Vice-Deus na Terra” mas também o fazia como um pai tratando os seus filhos vassalos
com bondade e suavidade, impondo a obediência através de meios não violentos.
Depois de deixar claro que considerava os paulistas homens valorosos e heróicos
devido aos seus feitos contra as Missões indígenas espanholas, a destruição de Palmares e
a luta contra os Emboabas, conclama a todos que passem a obedecer ao soberano de
maneira incondicional já que a obediência acarretaria a riqueza de todos: do soberano e
deles, vassalos.
434
Assumar além de Governador das Capitanias de São Paulo e Minas Gerais em 1717, foi em
1744, nomeado Vice-rei da Índia, onde recebeu o título de Marquês do Castelo Novo; ao participar
da tomada da Praça de Alorna, recebeu o título de Marquês de Alorna.
183
Assumar entendia ou precisava acreditar, que era possível obter a obediência dos paulistas. O
grande problema para ele eram os negros, insolentes, revoltosos e para seu desespero, em maior número que
a população branca. Palmares é o grande fantasma da vida do governador. Em seu primeiro discurso, o
quilombo aparece e seus quilombolas são vistos como “cabeças de hidras rebeldes”, abatidas graças aos
esforços paulistas. A partir daí, Palmares reaparecerá em inúmeras cartas, bandos e provisões de Assumar,
sempre como um enorme perigo prestes a se repetir em Minas Gerais.
Esta visão de que bastaria o controle político e econômico sobre a colônia para fazê-la produzir
riquezas irá se modificar aos poucos e tais alterações podem ser percebidas também nas expedições enviadas
às áreas mais longínquas do território colonial. Todas elas com objetivos claros de conhecer as regiões, fazê-
las produzir riquezas e povoá-las. Mas para atingir estes estágios seria necessário eliminar os agentes que os
impediam: índios e quilombolas. Era preciso também civilizar as novas regiões recém incorporadas ou em
processo de incorporação.
Com relação a Minas Gerais percebe-se que as expedições posteriores a 1735, quando Gomes Freire
assumiu a Capitania e ainda mais a partir de 1750, momento que Pombal assume efetivamente o controle em
Portugal, possuem um caráter mais global. Identifica-se nelas um projeto maior que visava, em última
instância, controlar toda a região do sertão, ampliando áreas de mineração e os limites da capitania. Tratava-
se de um projeto que buscava tornar uma região propícia a receber os ideais da civilização.
As expedições feitas a partir deste momento em Minas Gerais eram grandes em suas formações
humanas, caras e de difícil organização e não partiam para destruir um quilombo ou uma aldeia indígena. O
objetivo era destruir qualquer elemento que estivesse prejudicando o povoamento e desenvolvimento da
região. Após ter solucionado este problema, sesmarias deveriam ser distribuídas a fim de que pessoas idôneas
passassem a arcar com a responsabilidade de manter a área livre dos quilombolas e dos índios. Durante a
expedição era preciso também criar igrejas, símbolo do poder espiritual sobre os homens; cuidar das
pendências judiciais que fossem encontradas; casar as pessoas que viviam em concubinato e iniciar
plantações que facilitassem novas expedições, ou conforme eram chamadas, novas entradas
435
. Por tudo isto,
fica claro que estas expedições possuíam uma preocupação com a civilidade. Era necessário civilizar estas
áreas, até então, entregues aos bárbaros e a necessidade de civilizar era estendida também à população livre
que habitava o Sertão. O concubinato, os desmandos dos régulos, a falta de fé, tudo isso deveria ser
combatido em nome de uma moral cristã.
436
Civilizar neste momento significava não só controlar fisicamente
a região mas também transformar aquelas pessoas em súditos leais do rei
437
.
Para efetuar todos estes passos, as expedições possuíam uma estrutura que pouco se alterava de uma
para outra. Através de seu cotidiano pode-se identificar que elas eram chefiadas por um líder poderoso e
capaz de manter centenas de homens sob seu controle que exercia plenamente a Justiça sem qualquer
questionamento de seus pares ou seguidores. Ignácio Correia de Pamplona, líder de uma das expedições
enviadas aos sertões de Minas Gerais, fazia questão de resolver as pendências judiciais, prender criminosos,
processar outros e matar os inimigos indígenas e quilombolas
438
. Pamplona possuía poderes absolutos dados
pelo Governador ao lhe patentear como Mestre de Campo e Regente dos distritos de Pium-í, Bambuí, Campo
Grande e Picada de Goiás.
439
O controle sobre estas regiões tornava-se necessário em função de problemas nas vilas e arraiais
mineiros, pois o crescente número de vadios exigia uma solução que passava pelo envio deles a estas áreas.
Um outro agravante foi a diminuição do volume de ouro extraído que forçava a busca por novas regiões
auríferas. Todavia, para que isto fosse levado a efeito, era necessário que estas regiões do Sertão ficassem
desimpedidas de seus “moradores perigosos”.
Para tanto, estas áreas foram sistematicamente visitadas e exploradas por grupos de homens armados
e religiosos que buscavam trazê-las para o seio da civilidade. Na realidade, tratava-se de conquistar terras aos
grupos tidos como bárbaros e colocá-las sob a tutela do Estado e da sociedade que se imaginava enquanto
veículo de civilização.
Mesmo que alguns indígenas fossem vistos como “úteis”, para as autoridades coloniais a maioria
deles não passava de bárbaros que atrapalhavam o desenvolvimento. Logo, era preciso retirá-los da região.
Contudo, esta retirada era muito complexa e envolvia uma série de leis que quase nunca foram respeitadas.
Os quilombolas eram bandidos e propriedades fugitivas de alguém. Logo, poderiam e deveriam ser presos e
ou exterminados. O índio era, de acordo com as leis, um ser que precisava ser respeitado e protegido pelas
435
Anais da Biblioteca Nacional. Vol. 108, 1988 Op. Cit.
436
Ibdem
437
SILVEIRA, Marco Antônio. Op. Cit p. 27 e ss.
438
ibdem
439
Provisão de 24 de junho de 1769 e Patente de 26 de junho de 1769.
184
autoridades, desde que pacífico
440
. O índio pacífico era um aliado em potencial e deveria receber melhores
tratamentos
441
e os considerados indomáveis e “incivilizados” - leia-se incapaz para o trabalho nas fazendas –
deveriam ser rapidamente exterminados ou expulsos para mais longe.
Uma das saídas encontradas para controlar os indígenas considerados mansos e que viviam
espalhados por territórios propícios à agricultura ou à mineração, foi a utilização deles como elementos
capazes de, sob certas condições, favorecer o povoamento e a colonização, através de seu uso como mão-de-
obra e defesa do território, sempre atacado por outros índios ou por quilombolas.
Assim, determinados grupos indígenas teriam funções específicas a desempenhar no Projeto
Civilizacional proposto pela Coroa. Com relação à repressão aos negros quilombolas, o papel dos indígenas
seria de suma importância, uma vez que eles eram os maiores conhecedores do terreno.
Baseado nestas idéias, em 1714, o Rei D. João escreveu ao Governador e Capitão General de São
Paulo e Minas Gerais dizendo ter recebido uma carta sua em que ele:
“... dá[va] conta do que achando a Comarca do Rio das Velhas,
expostas as invasões de vários negros fugitivos e salteadores que
desciam as estradas e a roubar os passageiros sem que os
Capitães do Mato pudessem remediar este dano...”.
442
O Rei afirmou ter gostado muito da solução proposta para acabar com os desmandos dos negros, ou
seja, a criação de um aldeamento para os índios que viviam dispersos na região. Este aldeamento seria
construído “junto à estrada que fica mais exposta e os índios receberiam armas e auxílios de pessoas para
acabarem com os quilombolas. D. João chamou a atenção do Governador de que ele não poderia colocar
nestes novos aldeamentos índios que já tivessem sido aldeados em outros estabelecimentos, e que só deveria
entregar-lhes armas nos momentos de grandes problemas. Cessando o fato, todas as armas deveriam ser
recolhidas a fim de que outros tipos de conflitos não ocorressem.
Em 1718, o Conde de Assumar escreveu ao Rei dizendo que o tal aldeamento não havia sido feito
porque o Governador não teria encontrado índios para povoá-lo e que portanto, a solução para acabar com os
quilombolas da região ainda não havia sido encontrada, ainda que ele, Assumar, tivesse procurado “...dar
toda a possível providência a este mal, [entretanto] como os negros fugidos são muitos, cada dia estão
rebentando por diversas partes...”
443
O Rei, entretanto, não havia desistido da criação de um aldeamento para por fim as excessos dos
negros fugidos. Em 1719, enviou ao Conde de Assumar uma Ordem Régia
444
onde determinava a criação do
posto de Capitão do Mato, e reiterava a necessidade da criação da dita aldeia, uma vez que o número de
aquilombados aumentava cada dia mais e nada conseguia destruí-los ou pelo menos “... os dividir e
desgregar...”. Assim, cada vez ficavam mais perigosos. O Rei entendia que,
“...Com uns bárbaros emboscados se podem competir e ter partido outros bárbaros que vivem nos matos e
assim com estabelecimento e criação de uma aldeia do gentio doméstico em cada comarca poderão se ter
440
Sobre a legislação e os tratamentos dispensados aos índios aliados e aos considerados inimigos,
ver PERRONE, Maria Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação
indigenista do período colonial. (séculos XVI a XVIII). In:CUNHA, Manuela Carneiro da. (org).
História dos índios do Brasil
. São Paulo: Cia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP,
1992.
441
Mesmo assim, alguns índios que por inúmeros motivos haviam aceitado a catequese, foram
enviados para aldeamentos em novas áreas e, em alguns casos, até mesmo para fora da Capitania,
como foi o caso de Castelo, no Espírito Santo, originariamente, aldeamento para índios Puri de
Minas Gerais. É evidente que um dos objetivos deste afastamento das tribos de suas áreas de
habitação, era retirar deles os laços culturais e de identidade com a terra de seus antepassados.
442
Carta Régia do Governador sobre a formação de aldeias de ìndios na Comarca do Rio das
Velhas para dispersar negros fugitivos. 4.11.1714. APM SC 04
443
Cartas do Conde de Assumar o Rei de Portugal- Sobre os quilombolas e os castigos delles.
RAPM
, Belo Horizonte, 3 (1): 251-66, 1898.
444
Ordem Régia enviada ao Conde de Assumar em 12.1.1719. APM SC 03. P. 87
185
limite as insolências que atualmente praticam os ditos negros, cujo ímpeto pode o gentio rebater e
paulatinamente disgrega-los porque tanto que andarem dividi-los e dispersos será fácil a execução do
castigo para o que se faz precisa a criação da dita aldeia...”
445
Entretanto, ainda assim, o aldeamento não foi criado em função de uma série de
problemas na região.
Anos depois foi enviada aos sertões uma expedição com o objetivo de resgatar uma moça que havia
sido seqüestrada por quilombolas, aproveitando para destruir os quilombos que fossem encontrados no
caminho. A expedição realmente conseguiu recuperar a moça, prender alguns negros e matar outros.
Continuando sua jornada encontrou com outro quilombo que ao ser atacado foi defendido por uma série de
flechas disparadas por índios que ali viviam em contato com os negros fugidos. Três Capitães do Mato
ficaram feridos, “...dois com duas flechas presas no pescoço e com grande perigo de vida”
446
. A solução
proposta foi a de utilizar nas próximas investidas contra o quilombo, os índios “...mansos de Frei Ângelo que
se acham no Xopotó”
447
. Estes índios eram na realidade do grupo Coroado e estavam aldeados há alguns
anos na região e serviam também como mão-de-obra para os fazendeiros.
O curioso desta situação é que um mesmo quilombo propiciou dois tipos de contatos com indígenas:
os que conviviam com os quilombolas no interior do quilombo e portanto, tinham interesses em comum; e
aqueles que os consideravam como inimigos, ainda que estivessem apenas cumprindo ordens.
A utilização de índios aldeados para atacar quilombos ou para procurar negros fugidos dentro das
matas foi uma constante em Minas Gerais. Durante uma expedição na Serra Negra, novamente no Xopotó,
liderada por Manoel Rodrigues da Costa e seguida pelo Frei Manoel de Jesus Maria juntamente com alguns
de seus índios aldeados, foi vista uma fumaça a alguns quilômetros dentro da mata. Todos imaginaram que
pela sua formação, ela estaria sendo feita por grupos de negros fugidos que viviam naquelas imediações ao
prepararem a área para plantações futuras. As lideranças retornaram ao aldeamento e deixaram apenas um
grupo de 30 homens entre brancos e índios à procura do quilombo. Na realidade, o grupo conseguiu localizar
um dos supostos quilombolas e o levaram preso ao aldeamento. Lá, conseguiram que o dito negro
confessasse algumas coisas a seu próprio respeito e sobre a estrutura quilombola.
“...O puseram alguns camaradas em confissão dando lhe alguns
tratos e como ele tem mais de boçal do que ladino declarou ele
preto angola...”
448
Disse também que:
“...Há verdade, é certo ser o quilombo muito grande, e muito
antigo e distancia grande e sempre...”
449
Para entenderem o que dizia o negro usaram um outro escravo, também africano, que vivia no
aldeamento. E através dele ficou-se sabendo que ele havia sido “...induzido ele com quatro parceiros por
outros pretos e levados a uma grande povoação dos mesmos pretos...”
450
445
Idem
446
Carta sobre ataques que se fizeram a vários quilombos , em 12.7.1760 - APM SC 130
447
Ibidem
448
Carta de Manoel de Jesus Maria da Aldeia da Vila do Pomba 30.9.70 - Biblioteca Nacional ,
Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) Documentos. 112
18,2,6
449
Ibidem
450
Ibidem
186
Sobre o quilombo, afirmou que era grande e que possuía inúmeras roças com
plantações de cana de açúcar, bananas, laranjas e tinha também descaroçadores e muito
algodão.
O negro quando foi capturado pelos índios, afirmou que estava fugindo do quilombo por causa dos
maus tratos que lá recebia e da obrigação de ter que trabalhar. Ele e mais um outro parceiro resolveram então
fugir. Seu companheiro foi rapidamente aprisionado pelos quilombolas e ele conseguiu ir mais adiante, até
encontrar com o grupamento da expedição.
As explicações dadas por este quilombola aprisionado são bastante interessantes e podem mostrar
uma tentativa desesperada de atenuar sua culpa enquanto escravo fugido e aquilombado. Ao afirmar ter ido
para o quilombo induzido por outros estava, na realidade, usando um artifício muito comum entre
quilombolas recapturados. Ser induzido a ir para um quilombo era menos grave do que ter ido de livre e
espontânea vontade e ao dizer que estava fugindo por causa de maus tratos e da exigência do trabalho, tirava
de sobre si mesmo o fato de ser um quilombola, algo muito mais grave do que ser apenas um escravo fugido.
Além do que, não poderia ser acusado também de ser um dos líderes, caso em que a pena era normalmente a
morte.
Com base neste depoimento, a tropa resolveu que deveria voltar à região, continuar procurando o
quilombo e descobrir seu exato tamanho a fim de que todas as medidas com relação à expedição, as armas, as
tropas e a alimentação fossem tomadas objetivando destruí-lo
451
.
Infelizmente não sabemos de mais nada com relação a esta nova expedição e nem se o quilombo foi
localizado ou não.
No Rio de Janeiro, já no século XIX, a situação também não era muito diferente,
ainda que sua população indígena fosse muito pequena, mesmo a aldeada. A Real Fazenda
de Santa Cruz é um exemplo claro de como se poderia utilizar os índios aldeados para
ajudar a destruir os quilombos. Em 1822 o Superintendente da Fazenda escreveu um ofício
ao Ministro da Justiça comunicando que de acordo com a autorização recebida por ele dada
pelo mesmo Ministério, havia pedido aos Capitães Mores das Aldeias de Itaguaí e de
Mangaratiba, para que junto com seus índios aldeados viessem em socorro da Fazenda a
fim de acabar com grupos de escravos aquilombados em suas matas. Desta diligência
participaram 91 índios comandados pelos seus chefes e informa ainda o ofício que:
“... A diligência dos índios foi muito bem dirigida pelos seus
próprios chefes, apesar das grandes chuvas, que sofreram de dia
e de noite com muita constância. Em alimentos para sua
sustentação despendeu esta Fazenda em poucos dias, bem perto
451
Carta de Manoel Roiz da Costa ao Conde de Valadares em Borda do Campo,.. out 70Arquivo
Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) doc 66 18,2,4
187
de 60 mil réis, motivo porque os não demorei por mais algum
tempo. Ainda não foram pagos os seus jornais sem outra causa
que a de esperar o arbítrio e determinação de Vossa Alteza Real
sobre o que cada um deverá ganhar por dia assim tão bem os
dois Capitães Mores.”
452
Não era somente através dos aldeamentos que os índios conseguiam capturar quilombolas. Houve
vários casos individuais de indígenas contribuindo para o aprisionamento de escravos fugidos. Em 1770, sob
o governo do Conde de Valadares ocorreu um caso interessante. Em agosto deste ano, os índios do grupo
Pataxó, Joaquim Barbosa, Manoel da Cunha e outros, todos considerados como civilizados e residentes do
distrito da Casa da Casca, prenderam nas matas próximas de suas residências quatro negros quilombolas. Os
escravos foram levados amarrados para a cidade, e os índios exigiam o pagamento das tomadias, conforme
era a praxe.
Os senhores dos escravos se recusavam a pagar a tomadia alegando que eles não eram Capitães-do-
mato. Por isso, João Seixa da Costa escreveu ao Conde de Valadares pedindo que lhe desse instruções de
como proceder, e o avisando que havia recolhido os escravos à Cadeia e que havia feito os índios voltarem ao
seu aldeamento com a promessa de que seriam muito bem recompensados pelo aprisionamento dos
fugitivos.
453
O Conde de Valadares não apenas concordou que os índios haviam feito um excelente trabalho,
como também mandou que fossem pagas as tomadias a fim de que os mesmos ficassem satisfeitos. Além
disso, mandou o Sargento - Mor estabelecer um corpo com estes índios e outros mais, para que dessem
batidas nos matos no sentido de buscarem mais quilombolas e receberem outras recompensas.
Este caso mostra claramente um conflito declarado pelo controle da área pelos quilombolas e pelos
índios, levando estes últimos, a melhor. Indica-nos também a apropriação de valores do mundo branco pelos
índios. Os índios ao aprisionarem os negros e exigirem a tomadia, na realidade, estavam lidando com valores
e conceitos da sociedade que os mantinham submissos. Este serviço de capitão-do-mato poderia ser uma
maneira encontrada pelos indígenas de se manterem dentro do sistema montado, já que o seu já estava
desarticulado há tempos.
Esta utilização dos índios como Capitães do Mato pelas autoridades aproveitando-se de suas
experiências e a vontade de livrar as matas que consideravam suas da presença dos quilombolas, pode ser
considerada como um jogo. Analisando detalhadamente a fonte e sabendo como foi o processo de retirada
dos índios da região, pode-se observar que se tratava de um mecanismo mais complexo por parte do
Governador da capitania. Os índios capturariam os quilombolas da área, deixando-a “desinfestada” e assim
os fazendeiros poderiam se instalar na região. Bastava para isso retirar os ditos índios de circulação. Neste
momento, entrariam em cena os aldeamentos, no próprio local ou em áreas mais afastadas. Enquanto os elos
mais fracos da corrente lutavam entre si, o planejamento de extermínio físico ou ainda cultural dos elementos
capazes de impedir a expansão feita pelas autoridades nas possíveis frentes agrícolas seguia seu rumo.
Ainda que os índios servissem algumas vezes como aliados, era de vital importância que o controle
sobre eles se efetivasse de maneira cada vez mais ampla. E um dos grandes problemas que as autoridades
tinham que resolver era como controlá-los para que servissem de alguma forma ao projeto civilizacional em
andamento. Em 1769, Paulo Mendes Ferreira Campelo, Comandante do Arraial do Cuieté, ao escrever ao
Governador Valadares, afirmava que uma saída para a região seria reunir num único local todas as tribos que
viviam isoladas e soltas pela área, pois de acordo com ele, eram pequenos grupos e não se justificava ficarem
controlando tantas terras e impedindo o povoamento. Além do que sua dispersão inviabilizava a sua
catequização:
452
Ofício do Superintendente da Fazenda de Santa Cruz, Manoel Martins do Couto Reys ao Ilmo e
Exmo. Sr. Francisco José Vieira, em 9.1.1822 AN Cx. 507
453
Carta de João Seixa da Costa ao Conde Valadares em 28.8.70, Arquivo Conde de Valadares
(Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) - 18,3,5 doc. 25
188
“...é constante e se manifesta por certo serem as aldeias dos
índios que se pretende agregar bastantemente dispersas umas
das outras e não muito abundantes de gente, suposto que unidas
de um só corpo se compõem de numero avultado estas não
podem ser doutrinados na fé com separação por ser custoso
admiti-las ao grêmio da igreja nas suas residências e para
melhor êxito de se congregarem se deve passar para a parte sul
da outra banda do rio Doce... porque não pode o sacerdote
assistir a todos separados.
454
Ainda que fossem percebidos como empecilhos e causadores de diferentes problemas os índios da
região serviram em vários momentos aos interesses das autoridades. O Conde de Valadares havia ordenado a
Ignácio Correia de Pamplona que deixasse alguns soldados no Rio São Francisco para impedir o contrabando
de ouro por ali. Pamplona respondeu-lhe de que de nada adiantaria tal medida, uma vez que o rio era muito
extenso e com numerosas cabeceiras e que ninguém se atreveria a tentar passar por ali por causa dos negros e
índios que lá viviam e que eram “...as melhores guardas que V. Exa tem para segurança do prejuízo que
nesta parte receia...”
455
É interessante a idéia da utilização dos índios como guardas naturais das áreas mais
afastadas e, portanto, perigosas da colônia. Pombal, anos antes, havia determinado esta
mesma medida através dos aldeamentos dirigidos pelos Diretores, organismo máximo
segundo este, de controle dos indígenas
456
.
A situação neste momento é praticamente idêntica em Minas Gerais. Os índios,
ainda que vistos como em total barbárie acabavam sendo também usados como peças
chaves na defesa do território, mesmo que sem o saberem.
Estas idéias de aproveitarem alguns índios para auxiliar no desenvolvimento das
regiões permaneceram e Marlière, um dos mais importantes Diretores Gerais dos Índios de
Minas Gerais no século XIX , alegava que o Brasil era um país imenso em extensão e com
454
Carta de Paulo Mendes Ferreira ao Governador Conde de Valadares, em nov 1769 Arquivo
Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) - 18,2,6 doc .não identificado
455
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Conde de Valadares.15.11.1769. Arquivo Conde de
Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) 18,2,6 doc 19
189
uma população muito pequena, o que dificultava todas as tentativas de povoar
determinadas regiões e também em defendê-las. Uma alternativa proposta por ele era a de
que se deveria organizar:
“...a todos os índios mansos capazes de pegar em armas, em
companhias e batalhões. Cada companhia teria seus oficiais
tirados dos mesmos índios... Cinco companhias formariam um
batalhão e este batalhão poderia ser comandado por um oficial
índio em tempos de paz. Os batalhões nos dariam excelentes
tropas ligeiras pouco dispendiosas em tempo de guerra para
defesa do país e dos nossos matos impenetráveis aos europeus
mesmo aos oriundos não sendo índios. Neste caso, venceriam
soldo. Fariam parte em todo o tempo da segunda linha. Falo por
que já experimentei... Organizei os Coroados desse modo e aos
coropós contra os Presídios da Pomba e São João Batista hoje
são todos mansos. Os jesuítas do Paraguai usavam como se sabe
deste método e deram o que fazer com seus índios as tropas da
Europa empregadas contra eles. É escuso dizer que este método
lisonjeia muito aos índios que nunca se recusam a obedecer o
chefe de sua nação e nunca se aceitam a dar obediência a outros
exceto se lhes forma longa experiência e suas intenções
benévolas para com eles...”
457
O que o comandante estava propondo era a criação de um grande aldeamento, onde um grupo
numeroso de índios pudesse ser controlado mais facilmente.
456
Diretório. Op. Cit.
457
Guido T Marliere ao Tenente Coronel Inspetor Director Geral de índios - Quartel de Guidoval.
1.10.1823 Junta do Governo Provisório JGP 1821/1824 - Sub-Série: Diversos- São Paulo - Caixa 5
JGP 18
190
Em Minas Gerais, os aldeamentos durante o século XVIII tinham, além de sua função estratégica,
um papel econômico: visavam suprir também a demanda por mão-de-obra nas regiões. Para tanto, ofereciam
índios aos fazendeiros que seriam utilizados por tempo determinado recebendo em troca um salário. Em
muitos casos, esta exigência ficava apenas na teoria.
Em 1701, o Rei respondendo sobre umas datas que possuía, afirmava que as mesmas deveriam ser
entregues a Manoel Rodrigues de Arzão para que este cuidasse delas como se fossem suas. Várias facilidades
foram oferecidas a ele. Com respeito à mão-de-obra, assim se referiu o Rei:
“... Os índios que hão de trabalhar nestas datas hão de ser das aldeias não se tirando mais que cinco de
cada uma, que serão os que se entendem podem bastar para trabalharem nas datas e plantarem os
mantimentos os quais hão de ser todos os anos reformados para que não percam o amor as suas
aldeias...”
458
O controle exercido pelos Diretores dos índios ou pelos religiosos antes de 1759, provocou
inúmeros conflitos em várias regiões do Brasil com os fazendeiros que acusavam os demais de exigirem
pagamentos altos pelo trabalho dos indígenas e não permitirem a negociação direta entre o fazendeiro e os
índios, ficando com o pagamento que a eles seria devido.
Os aldeamentos também serviam em alguns casos, como um núcleo populacional capaz de atrair
novos moradores. É necessário ressaltar o caráter civilizatório destas estruturas, na medida em que se
percebe momentos distintos no estabelecimento dos aldeamentos. Alguns eram fixados em locais de grande
movimento econômico e populacional, com o objetivo de tentar trazer os índios à civilização e
evidentemente, fornecê-los como uma alternativa de mão-de-obra. Por outro lado, havia aldeamentos que
eram estabelecidos em áreas longínquas e com uma pequena população, ou seja, nos sertões. Neste caso,
percebe-se que a principal razão da sua criação era a de colonizar e civilizar a área. O aldeamento servia
neste caso, para junto com ele levar e fixar uma população capaz de produzir e desenvolver áreas que até
então estavam isoladas. Os índios domesticados serviriam ainda para proteger a população de ataques de
outros grupos indígenas ou mesmo de quilombolas. Seja como for, o fato é que as políticas oficiais de
estabelecimento para os índios levavam necessariamente ao mesmo ponto: a exploração da mão-de-obra
indígena e ao desenvolvimento de determinadas áreas.
Para que estas áreas fossem desenvolvidas as autoridades coloniais contavam com pessoas que viam
nas expedições a chance de obterem riquezas, terras e escravos. Os moradores da região que possuíam
condições de arcar com essas despesas, as usavam para incrementar seu poder econômico, político e social.
Liderar uma delas significava adquirir títulos, privilégios econômicos e prestígio. Além é claro, de riquezas.
Ignácio Correia de Pamplona foi um destes homens e mostrou através da trajetória de sua vida, o que
permeava o modo de pensar destes homens que viviam nas áreas fronteiriças entre o Mundo Colonial e o
Sertão.
458
Carta do Rei para o Governador da Capitania do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Meneses, em
30.1.1701. Cód. 952, vol 12 p. 72
191
IV - Uma trajetória civilizadora: O Mestre de Campo, Ignácio Correia de
Pamplona e seu tempo
O português Ignácio Correia de Pamplona nasceu em 1731 na Ilha Terceira, no
Bispado de Angra. Era filho legítimo de Manoel Correia de Melo e Francisca Xavier de
Pamplona. Casou-se com Eugênia Luisa da Silva, mulata e filha de uma negra forra da
nação Mina e de pai desconhecido. Com ela teve seis filhos: Simplícia, Rosa, Teodora,
Inácia, Bernardina e Inácio Correia de Pamplona Corte Real, que se tornou padre.
459
Antes de completar trinta anos já era comerciante no Rio de Janeiro e abastecia Vila Rica e São João
del Rei com diversas mercadorias. São João del Rei foi o local escolhido para fixar residência e trabalhar
como cobrador do Contrato das Entradas do Tejuco ao lado de José Alvares Maciel durante os anos de 1759
a 1761.
Sua vida foi pautada pelas grandes expedições no combate aos índios, pelas batidas aos quilombos
que se localizavam no Oeste de Minas Gerais e pelo controle quase que absoluto que detinha na região em
função de possuir muitas terras e poderes conferidos pelos próprios Governadores. Além é claro, de sua
participação ainda pouco compreendida na Inconfidência Mineira e na sua posterior delação do movimento.
Em 1764, quando o Governador Luis Diogo Lobo da Silva, precisando aumentar o
número dos contribuintes e das riquezas empreendeu uma expedição por várias partes de
Minas Gerais com o objetivo de conhecê-la para melhor fiscalizá-la, Pamplona foi
convidado para auxiliá-lo no sentido de povoar e transformar os sertões de Minas em áreas
produtivas.
O Governador Lobo tentava novamente civilizar a região e para isso encarregou Pamplona “... de
formar uma companhia de pessoas idôneas, gente de valor, a fim de penetrarem com ânimo de se
estabelecerem na Zona do Campo Grande e além da Serra da Marcela, obrigando-se o governo a lhes
conceder por sesmarias as terras que escolhessem...”
460
O objetivo desta expedição também era esvaziar as vilas das pessoas consideradas
como vadias e sem trabalho.
“...As vilas e arraiais regurgitavam então de gente sem trabalho,
ansiosas, aliás, por se colocar em novos distritos, onde
melhorasse de sorte, e neste caso o primeiro passo a dar-se era
459
Testamento de ICP Test. 1821 Cx.100 São João del Rei
460
VASCONCELOS, Diogo de . História Média de Minas Gerais..Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1974 p. 196
192
criar lugares garantidos pela ordem e fortalecidos pela
autoridade pública, livres de perturbações, tanto internas entre
os moradores, como externas provenientes de malfeitores...
461
O que Vasconcelos não percebeu foi que tais “vadios” eram provavelmente pessoas
sem trabalho e sem perspectiva de obtê-lo em função do declínio da mineração e de todas
as suas conseqüências.
Cumprindo as ordens do Governador, Pamplona em 1765 - com 34 anos de idade -
fez sua primeira entrada nas nascentes do São Francisco acompanhado de alguns sócios
interessados na ocupação daquelas terras: José Alves Diniz, Afonso Lamounier, José
Fernandes de Lima, Antonio José Bastos, Inacio Bernardes de Souza, Simão Rodrigues de
Souza, Pedro Vieira de Faria, Timóteo Pereira Pamplona e outros. Faziam parte do grupo
vários escravos e índios pacificados. O capelão era o Padre Antonio Pereira Henriques que
possuía o poder de vigário da vara e provisor de novas capelas. Como conseqüência desta
Entrada, o Governador assinou várias cartas de Sesmarias com datas de 1° de dezembro de
1767. Em todas elas a causa principal para que os requerentes pedissem as terras era a de
que tinham participado de alguma forma na conquista do sertão devoluto do Rio de São
Francisco, Serra da Marcela e Quilombo do Ambrósio. Os homens alegavam ter
acompanhado Ignácio Correia de Pamplona; as mulheres e suas filhas, diziam ter
contribuído com escravos para que a conquista pudesse ocorrer. Simplícia e Teodósia
Correia Pamplona receberam terras na Freguesia do Arraial da Senhora Santa Ana do
Bambuí; Francisca, Rosa, Timóteo e o pai, Inácio Correia Pamplona receberam sesmarias
no Arraial de Nossa Senhora da Conceição da Conquista do Campo Grande.
462
Havia também um outro ponto em comum nas petições requerendo terras na área
conquistada: todas alegavam que se tratava de sertão devoluto e que a campanha de
461
Idem p. 215
193
conquista havia sido uma empresa perigosa devido aos quilombolas que dominavam a
região
463
.
A expedição teve, contudo, sérios problemas com os índios Caiapós e os quilombolas que ali viviam
escondidos do avanço branco. A condição básica para a ocupação do território seria a sua aniquilação e este
foi o primeiro passo do grupo. Pamplona instalou-se no Desempenhado, perto de Bambuí e de lá comandou
várias expedições contra estes grupamentos. A partir daí, teve início o seu poderio. Em função dos serviços
prestados adquiriu autoridade sobre o “sertão do sul de Minas que se situa[va] ao norte do Rio Grande até
dividir-se com o sertão da Farinha Podre...”
464
Durante sua vida, Pamplona conseguiu adquirir várias sesmarias, quase todas com extensão de três
léguas de terra em quadra.
465
Ele também possuía a Fazenda dos Perdizes, a do Mendanha, a do Capote, e
uma outra na Lagoa Dourada, freguesia dos Prados, Comarca do Rio das Mortes. Durante a campanha de
Conquista do Bambui e Campo Grande, conseguiu adquirir oito sesmarias: uma era dele (a do
Desempenhado) e as sete restantes eram de seus filhos e genro, mas controladas por ele. Em seu testamento
datado de 1821
466
, afirmava que para conseguir medir e demarcar todas estas terras precisou fazer muita
despesa com “...pólvora, chumbo, armas de fogo, mantimentos, tropas de bestas e muitos homens...”,
deixando claro o espírito de guerra que norteava a expedição.
Em 1769 Pamplona fez sua segunda expedição ao Sertão de Minas sob as ordens do Conde de
Valadares, e já com o título de Mestre de Campo e Regente dos distritos de Pium-í, Bambuí, Campo Grande
e Picada de Goiás. Seu objetivo era principalmente dar combate a índios e negros quilombolas
467
e povoar a
região. Para isso distribuiu mais de cem sesmarias na área e deixou inúmeros documentos relatando toda a
rota da expedição além de uma série de mapas feitos durante a viagem dando detalhes da área e dos
quilombos encontrados.
Figura 38 - Mapa de todo o Campo Grande
462
Notícia diária e individual...Op. Cit. p. 91 a 93
463
SC 156 Livro de Sesmarias. 1767. Arquivo Público Mineiro
464
JARDIM, Marcio. A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. RJ, Biblioteca do Exército.
1989, p. 202
465
De acordo com Waldemar de Almeida Barbosa, uma sesmaria de três léguas de terra em quadra
seria igual a nove léguas quadradas. Uma légua quadrada corresponderia a 43,56 Km2 ou
43.56.000 m2. Como as sesmarias eram de 3 léguas de terra quadradas, possuiriam na realidade,
392.040 Km2 ou 392.040.000 m2 ou 8.100 Alqueires Mineiros Ou 39.200 Hectares.
466
Testamento de Ignácio Correia de Pamplona. 1821. São João del Rei. Cx. 100.
467
Sobre esta expedição, ver o Arquivo Conde de Valadares. Seção de Manuscritos da Biblioteca
Nacional. Códice 18,3,1-7
194
Durante esta expedição Pamplona estabeleceu várias capelas: a de São Francisco de Sales, a de N.
Senhora da Conceição, a de Santa Margarida de Cortona, a dos Santos Mártires, e outras.
468
Este tipo de
edificação era vantajoso porque a partir dele o bispado de Mariana podia tomar posse espiritual da região e
conseqüentemente, cobrar os dízimos
469
.
Entremos na expedição. Era o dia 8 de agosto de 1769. A Fazenda do Capote estava repleta de
homens tão aventureiros quanto seu próprio proprietário, Ignácio Correia de Pamplona. Quase todos tinham
um único objetivo em mente: enriquecer. Por isso aceitaram participar de uma empreitada bastante arriscada
– a conquista do Campo Grande, área de moradia de índios e de quilombolas. Entretanto, ainda que fosse
perigosa, a expedição valia a pena. Era uma maneira de se conseguir muita terra, três léguas em média para
468
VASCONCELOS, D. Op. Cit. p. 215
469
Esta região pertencia anteriormente ao Bispado de Pernambuco
195
cada sesmeiro, além de ter acesso, se a sorte ajudasse, a grupos de índios capturados e tornados cativos. Desta
forma, as despesas com a mão-de-obra já seriam menores e os lucros, naturalmente, maiores.
Se os homens poderosos e ricos queriam obter mais terras para ampliar seu poder e prestígio, os que
nada tinham - a maioria - viam a expedição como a solução para seus problemas e o abandono da miséria.
Era a única maneira de obterem terras de graça ou quase, já que este acesso tinha um preço. Muitos só
conseguiriam encontrar no caminho a própria morte, atacados por doenças, animais ferozes, índios ou
quilombolas.
Para os escravos que acompanhavam seus senhores era mais uma empreitada da difícil vida no
cativeiro. Teriam que seguí-los, arriscando suas vidas para torná-los ainda mais poderosos. Além do que, em
caso de ataques seriam os primeiros a serem colocados na linha de frente da batalha. Mas, talvez o pior da
jornada fossem os ataques aos quilombos, locais de moradia de homens que um dia foram como eles, cativos.
Era necessário destruir o que eles provavelmente desejavam para suas vidas. Entretanto, no meio de todas
estas constatações havia uma chance de liberdade. No interior do Sertão, embrenhados em matas, quem sabe,
poderia ser possível uma fuga? Seria sempre uma esperança...
Quando todos os preparativos estavam prontos, com as 52 bestas de cargas já estavam carregadas
com comida, bebida e a botica, todos partiram. Além dos fazendeiros, dos que queriam ser fazendeiros e dos
escravos, iam também o Capelão Gabriel da Costa Resende, oito músicos, dos quais sete eram escravos de
Pamplona e um branco livre, e mais dois negros tocadores de tambores. Logo à frente, iria juntar-se à
comitiva um cirurgião, responsável por tentar mantê-los vivos.
A quantidade de armas levadas pelo grupo mostrava a todos que não seria uma expedição pacífica.
Havia espingardas, clavinas, facões, patronas, pólvora, chumbo e muita munição. Tudo indicava tratar-se de
uma expedição de guerra.
Naquele primeiro dia andaram cerca de três léguas e pararam para pernoitar na Fazenda Cataguases.
Lá, iniciaram uma rotina que os acompanharia durante toda a jornada, ainda que as paradas fossem já no
meio do Sertão sem qualquer abrigo por perto: a janta com os requisitos básicos da civilidade. A comida era
servida quente, em pratos e acompanhada de vinho. Após a janta ou um pouco antes dela, era costume que
um dos acompanhantes recitasse poemas louvando o espírito empreendedor de Pamplona.
Na manhã seguinte, assim como em todas, os músicos tocavam a alvorada e continuavam com seu
repertório musical até o momento da missa quando em seguida, a comitiva partia novamente.
Os dias foram transcorrendo nesta rotina, e a medida que a expedição ia se interiorizando pelo
Sertão, iniciavam-se as contendas por causa da falta de Justiça e de controle. A todos os problemas,
Pamplona resolvia utilizando-se para isso dos amplos poderes conferidos a ele pelo Governador da Capitania,
o Conde de Valadares.
Para facilitar a vida dos novos entrantes e também para promover o povoamento e desenvolvimento
da região, Pamplona foi fundando arraiais, criando Igrejas, pontes, estradas, tudo nomeando e tomando
posse para a Câmara de São João del Rei. Depois, o capelão rezava a missa e ao seu término, eram
distribuídas sesmarias às pessoas que os acompanhavam.
Em alguns casos, como por exemplo, quando a ponte sobre o Rio de São Francisco ficou pronta, foi
feita uma procissão e rezada uma missa solene. A construção desta ponte é muito interessante. Ainda que
Pamplona soubesse o quanto seria difícil construir uma ponte sobre o rio São Francisco por causa da
distância entre as margens e violência de suas águas, sabia que era imprescindível caso quisesse realmente
povoar a região. Isso porque os quilombolas sempre roubavam e soltavam as canoas que atravessavam o rio,
impedindo a constância e a segurança do local.
Os problemas com a expedição não demoraram a aparecer. Bestas de cargas não agüentaram o peso
e ficaram pelo caminho. Escravos e pedestres desertaram. Os participantes foram entrando em pânico com a
presença cada vez mais próxima dos índios e dos quilombolas. Os conflitos entre Pamplona e seu Tenente,
José Serra Caldeira foram ficando cada vez mais sérios. Além destes, Pamplona teve também problemas com
o juiz de sesmarias de São José, João Ribeiro de Freitas. Alegava este ao Conde de Valadares que Pamplona
estava “usurpando a jurisdição e medindo e demarcando sesmarias no Sertão de São Francisco sem
faculdade ou comissão [dele]...”
470
. Em maio de 1770 Pamplona escrevia ao Conde dizendo que um Juiz de
sesmarias havia alterado as demarcações feitas por ele e que isto estava provocando sérios problemas na
região. Ameaça dizendo que desta maneira, não haveria como continuar a povoação do Campo Grande.
471
470
Carta de João Ribeiro de Freitas ao Conde de Valadares em 24.9.1769. Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Cód. 18,3,5 doc. 124
471
Carta de Ignácio Correia Pamplona ao Conde de Valadares em 15.5.1770. Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Cód. 18,2,6 doc. 61
196
Um outro problema enfrentado foi a impossibilidade de conseguir homens nos arraiais por onde
passavam. João Pinto Caldeira recebeu ordens de Pamplona para que montasse uma patrulha com 30 homens
retirados de diversas localidades. Não conseguiu porque, segundo Pamplona, os moradores não queriam ter
qualquer despesa. Sabendo-se que estes moradores eram pessoas pobres pode-se questionar até que ponto não
queriam ou não podiam participar de um empreendimento oneroso como este. Provavelmente, não poderiam.
Além do que, fica uma outra dúvida em suspenso. Alguns dias depois desta carta, Pamplona enviou uma
outra ao Conde dando conta que se os quilombolas soubessem do número ínfimo de pessoas que habitavam
as localidades fariam maiores estragos. Eles já haviam colocado fogo na Capela de Santa Anna do Bambuí.
Que mais não poderiam fazer? O que nos surpreende é que se Pamplona sabia que estas localidades possuíam
poucos moradores, como dias antes alegara que a retirada de alguns indivíduos destas vilas não provocaria
nenhum “desfalque”?
Mas as dificuldades continuavam a aumentar. As expedições menores que partiam a procura de ouro
voltavam sem nada achar, tornando seus gastos infrutíferos. As pessoas, já fixadas ou não, negavam-se a
emprestar seus escravos para as obras públicas alegando não os possuir ou tê-los em número muito reduzido.
Depois, pediam sesmarias justificando o pedido pela posse de numerosos escravos. Achavam ainda que
Pamplona havia os enganado e que a região não era tão fértil assim:
“....estes moradores [ de Campo Grande] já irados de mim uns com os outros clamam que
eu os enganei e os guiei aquele lugar com promessas vãs e os reduzi a pior estado e que
não querem fazer as suas fabricas de teares para não pagarem o que não podem lucrar
dos algodões, trigos, centeio, cevadas e outros legumes de abundância e fartura que
servem a terra e que logo todos daquela paragem se retiravam sem demora...”
472
Em todos os quilombos nos quais a tropa chegou aconteceu a mesma coisa: seus habitantes já os
tinham visto e haviam fugido para áreas mais longínquas. Mesmo assim, a expedição tomava posse do
terreno, queimava as edificações e dividia as terras entre os acompanhantes. Nestas áreas um pedestre fazia o
mapa do quilombo e anotava as distâncias.
473
Enfim, ocorreram uma série de contratempos que a expedição teve que enfrentar até a volta para a
Fazenda do Capote, no dia 27 de novembro de 1769. Ignácio Correia de Pamplona chegou a sua fazenda com
poucos homens. A maioria ficou pelo caminho tomando posse de suas terras, mortos ou desertados.
O resultado prático desta expedição foi de caráter duvidoso. Praticamente não se prendeu
quilombolas pois, todos os quilombos estavam vazios. Para onde teriam ido? Provavelmente mais para o
interior onde já estavam os índios. Ouro, não se localizou. A única medida efetiva foi a posse da região pela
Câmara de São João del Rei e a distribuição de terras. Mas mesmo assim, isto acabou sendo um problema,
pois com a saída da expedição da área, grupos de quilombolas ou de índios voltaram e desencadearam
ataques constantes aos novos sesmeiros, ocasionando suas fugas e abandono das fazendas.
De tempos em tempos, outras expedições tiveram que voltar à área e recomeçar o
processo.
No ano de 1773, Pamplona entrava novamente no Sertão desta vez com o objetivo de averiguar os
boatos da descoberta de ouro nas redondezas. Infelizmente, quase nada se sabe sobre esta expedição. Em
1781 Pamplona organizou uma outra também com o mesmo objetivo, e desta vez não passou da Serra da
Marcela. Em 1782, Pamplona organizou uma outra entrada, mas dela não participou, ficando a liderança com
João Pinto Caldeira. Seu objetivo era dar combate aos quilombolas e aos índios Caiapós.
É curioso ressaltar que todas estas entradas corriam por conta de Pamplona. Os gastos com
alimentação, armas, munições e qualquer outro elemento ficavam por seu risco. Isto não significava que ele
tivesse qualquer tipo de prejuízo, ainda que tivesse alegado isto como uma das justificativas para solicitar
novas sesmarias.
472
Carta de Ignácio Correia Pamplona ao Conde de Valadares em 22.9.1770. Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Cód. 18,2,3 doc. 8
473
Sobre estes mapas ver o capítulo sobre os quilombos mineiros.
197
“...ele fora por isso ao sertão, cabeceiras do Rio de São
Francisco com algumas pessoas adjuntas a descobrir terras
para a existência da mencionada fabrica, na qual diligência
experimentara prejuízos grandes e uma despesa considerável
por ser sertão devoluto, pedindo-me lhe concedesse nele três
léguas de terra por sesmaria em atenção das despesa e a
utilidade que esta povoação se seguiria aos reais interesses e
bem comum...”
As inúmeras sesmarias concedidas à família Pamplona, graças a estas entradas, além de
simbolizarem prestígio social e político, forneceram todos os créditos necessários às suas pretensões. Além
do mais, as terras foram concedidas de modo que uma fizesse fronteira com a outra, o que acabou por
acarretar um gigantesco latifúndio controlado por Ignácio Correia de Pamplona. Com toda esta terra, ele
passou igualmente a controlar os arrendamentos na região. E, em última instância, toda a vida econômica do
local.
A fim de melhor compreensão sobre a sociedade mineira e mais precisamente sobre o que ocorria
durante as expedições em termos culturais, torna-se necessário uma breve análise sobre o século XVIII e sua
relação com o Arcadismo e deste com as concepções sobre os indígenas, sobre o papel de Portugal,
principalmente na figura de Pombal, e sobre o destino dado aos jesuítas.
O lado literário da expedição de 1769: o Arcadismo
A principal escola literária que se formou com base nas idéias filosóficas defendidos por pensadores
Iluministas foi o Arcadismo. Seus autores contestavam os dogmas e os valores do Barroco, visto então como
exagerado. Os Árcades propunham uma literatura mais simples, menos rebuscada e baseada na
espontaneidade. Propunham ainda, a volta aos padrões clássicos, recuperando não apenas o estilo mas
também seus heróis e mitos. Entretanto, os problemas expressados nestas obras deveriam ter ligação direta
com a época em que viviam, pois a ciência dava mostras de que o progresso era uma realidade e que os
homens já não precisavam explicar todos os acontecimentos através da fé. Porém, a Revolução Industrial, já
em pleno vapor na Inglaterra e caminhando a passos largos em outros países, mostrava também o lado
perigoso desse mesmo progresso. As cidades passaram a ser os locais por excelência dos problemas
humanos: eram sujas, poluídas, com uma população que se aglomerava em casebres insalubres e onde se
geravam todos os tipos de marginais e de doenças. Enfim, não era decididamente ali que se poderia buscar o
progresso humano. Ele deveria ser encontrado em outro local. Desta forma, o campo surgia como o
verdadeiro paraíso, refúgio ideal para o homem civilizado. Como a fuga para o campo era utópica e
idealizada, este afastamento do Arcadismo da realidade acabou por levar o movimento a um caráter artificial
que pouco a pouco foi perdendo vigor.
Mas para entender o Arcadismo não bastam apenas as explicações de suas estruturas estéticas. É
necessário entendê-lo no contexto político do século XVIII. As obras árcades não se preocuparam em mostrar
apenas o campo, a sua beleza e os aspectos da cultura clássica. Em muitas de suas obras apareciam também,
preocupações com problemas do cotidiano político e seus desdobramentos sócio-econômicos.
Em 1756 quando a Arcádia Lusitana foi fundada, Pombal já estava há cinco anos na direção do
governo português. Três anos após a sua posse, este dirigente conseguiu expulsar de Portugal e de todas as
suas colônias uma das ordens religiosas que mais poder possuía na época: os jesuítas.
198
Esta expulsão é muito complexa e exige uma reflexão que busque entendê-la como um processo
montado tal qual num jogo de xadrez, onde cada peça tem a sua função, mas o objetivo final é aprisionar o
rei e retirar seu poder. O rei neste momento é o imrio temporal criado pelos jesuítas graças ao controle
sobre os indígenas. As peças deste xadrez foram as diferentes formas encontradas por Pombal para devagar ir
eliminando os poderes dos religiosos.
Pombal foi um homem esclarecido que absorveu muito do que pregavam os filósofos iluministas,
mas talvez a sua maior contribuição para os projetos políticos pombalinos tenha sido o anti-clericalismo.
Nas Instruções Régias de 1751
474
que foram enviadas à Mendonça de Furtado, seu irmão e
governador da Capitania de Maranhão e Grão Pará, havia ordens para que fosse incentivada a criação de
aldeamentos especialmente nos limites da Capitania, a fim de que através do povoamento esta região ficasse
mais protegida do ataque de inimigos, índios e estrangeiros. Recomenda também bons tratamentos aos índios
aldeados para que estes não fizessem alianças com inimigos da Coroa. Seriam os índios os responsáveis
diretos pela manutenção do domínio português nas áreas de fronteiras. Nas palavras de Pombal, “Os gentios
são as muralhas dos sertões”
475
.
Pombal via com clareza que somente utilizando os índios é que se poderia ampliar a população na
colônia e mantê-la protegida. Suas diferentes ordens passaram por um complexo corpo de medidas que iam
desde a aceitação de determinados tipos de escravização indígena até a abolição total da escravidão, passando
pela inserção deles na sociedade colonial, pela proibição de designá-los como negros “porque não lhes
caberia a vileza do mesmo nome”
476
, pela adoção de sobrenomes, elevação de parte dos aldeamentos à vilas e
a convivência de brancos com índios dentro dos mesmos, a obrigatoriedade do pagamento dos dízimos pelos
índios, a utilização obrigatória da língua portuguesa e, finalmente, pelos casamentos interétnicos.
477
O
Alvará de D. José de 4 de abril de 1755 é bastante significativo a este respeito:
“Eu, El Rey faço saber... os meus vassalos deste Reyno e da América que casarem com as índias dela não
ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos da minha real atenção e que nas terras em que se
estabelecerem serão preferidos para aqueles lugares e ocupações que couberem na graduação de suas
pessoas, e que seus filhos e descendentes serão hábeis em dignidade, sem que necessitem de dispensa
alguma, em caso destas alianças em que serão também compreendidas as que se acharem feitas, antes desta
minha declaração e outrosim proíbo que os ditos meus vassalos casados com índias e seus descendentes
sejam tratados com o nome de caboclos ou outro semelhante que possa ser injurioso...”
478
Todas estas idéias passaram depois a fazer parte de um documento de caráter geral que estabelecia
as medidas a serem adotadas no tocante aos índios. Esta coleção de ordens recebeu o nome de Diretório dos
Índios e era um projeto de povoamento que se baseava na utilização dos indígenas.
Pombal teve que, dentre outras coisas, encarar uma realidade assinada com a Espanha - o Tratado de
Madri - que dava à esta a Colônia do Sacramento no extremo sul do Brasil, enquanto que Portugal ficava com
a posse dos Sete Povos das Missões e mantinha a região Oeste da Colônia brasileira. Nesta última área, a
população em constantes movimentos de avanços e de recuos nas fronteiras em busca de riquezas, terras ou
índios, havia descoberto anos antes o ouro. Portugal cedia Sacramento, mas ficava com o ouro e com os Sete
Povos das Missões. Para assegurar os limites negociados era importante que efetivamente a população
tomasse posse do território.
A população branca não era suficiente para povoar e controlar um território de tamanho tão elevado.
A solução, então, seria o povoamento com os indígenas. O projeto colonizador e povoador tendo como base a
utilização de índios fazia parte das preocupações do Marquês de Pombal que via como solução para
incrementar o poderio e riqueza de Portugal, um aumento demográfico considerável na colônia. Isto seria
conseguido através da multiplicação dos povos, principalmente os que viviam ou deveriam viver nas áreas de
fronteiras. Este crescimento populacional estava também intimamente ligado às necessidades de defesa e
manutenção do território e mais ainda, ao aumento da produção econômica.
479
E ele só seria conseguido de
474
Instruções Régias, parágrafo 27. Arquivo do Estado de Pernambuco - I- 35
475
Parecer do Conselho Ultramarino 20.12.1695. Apud. J. Nabuco. O Diretório no Brasil. São
Paulo, Ed. Nacional, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1941 p. 64-65
476
Diretório que se deve observar nas povoações dos indios do pará e maranhão enquanto Sua
Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues. parágrafo 10
477
Diretório Op. Cit. parágrafo 10
478
Alvará de D. José de 4 de abril de 1755. Cod 50, fl 71 APM
479
MAXWELL. Keneth. Op. Cit.
199
forma satisfatória se os índios fossem incorporados à sociedade acreditada como civilizada. De preferência,
sem o controle religioso dos jesuítas. Esta foi uma das muitas causas dos choques com os inacianos.
Pombal precisou efetivar este tratado e conseguir maneiras de fazê-lo funcionar. Neste momento
começaram os problemas e um dos maiores enfrentados foi a Guerra Guaranítica. Os índios dos Sete Povos
das Missões
480
catequizados por padres jesuítas espanhóis, não aceitaram passar para o domínio português e
nem estavam dispostos a abandonarem suas terras e irem para o lado que passava a pertencer a Espanha. Seus
antepassados estavam enterrados naquelas paragens e era exatamente ali que queriam ficar. Para isto pegaram
em armas e defenderam o território. Os jesuítas sabiam também que se aceitassem o domínio português
teriam problemas com a política de Pombal. Logo, era melhor defender seus interesses à bala e a flechas.
O resultado deste conflito foi que Portugal e Espanha uniram suas forças e atacaram as missões com
uma força militar composta de 3.700 homens. Milhares de índios morreram e anos depois, não mais
satisfeitos com o Tratado, os dois países resolveram revogá-lo e o território que era das Missões acabou
voltando para o domínio espanhol, mas já sem os índios
481
.
Esta Guerra Guaranítica foi tema de um poema árcade
482
. Seu autor Basílio da Gama tem uma
história muito interessante e bastante ligada ao seu tempo. Basílio era mineiro, nascido na Vila de São José,
atual Tiradentes e tornou-se um jesuíta. Não se sabe o motivo pelo qual foi preso em Portugal por ordens de
Pombal. Dias depois foi solto e começou a escrever um poema encomendado pelo Ministro e em homenagem
ao irmão deste, Mendonça de Furtado, responsável pela Comissão de Demarcação dos limites do Tratado de
Madri. O poema, datado de 1769, recebeu o nome de Uraguai e narrava a expedição de Gomes Freire
Andrade contra as Missões na parte Oriental do rio Uruguai.
483
É evidente que há neste poema uma tentativa desesperada de agradar Pombal e manter-se vivo, pelo
menos fora das prisões portuguesas ou do degredo. Entretanto, as idéias contidas nele são quase que um
modelo não só do Arcadismo mas também do Iluminismo, da política voltada aos índios e das estratégias de
Pombal.
Através da leitura do poema dividido em 5 cantos, toma-se contato com a arena dos combates. Esta
arena não é apenas física; ela está também presente nos conflitos apresentados pelo autor. De um lado, o
governo português, simbolizado por Gomes Freire de Andrade; de outro, os índios das Missões. O papel dos
espanhóis é diminuído, ainda que tenha sido o Governador de Montevidéu o responsável pela morte de um
dos grandes líderes indígenas facilitando a vitória européia.
Os versos iniciais já mostram um cenário desolador. Há dor, perdas e mortes espalhadas por toda
parte. A culpa de toda esta calamidade? A ambição dos jesuítas, considerados como rebeldes
484
e construtores
de um império
485
. Eram eles que pela sua ambição e para manter o controle sobre a mão-de-obra indígena,
haviam arrastado aqueles seres puros à guerra e à destruição. Os índios eram por natureza seres bons. A
influência dos religiosos os estava levando à destruição.
O herói português, Gomes Freire de Andrade, é mostrado sempre com palavras que expressam sua
tristeza em atacar o indígena, posto que eram apenas escravos da tirania dos religiosos. Gomes Freire é
descrito como famoso, de excelso coração, peito nobre e invicto em suas lutas
486
. Todavia, esta última
qualidade é, no mínimo, contraditória, uma vez que poucos versos acima o autor relata que em seu avanço no
campo de batalha, Gomes Freire não havia conseguido derrotar os indígenas e teve que assinar um acordo de
paz, tomando posse apenas das terras as quais suas tropas haviam conquistado na luta.
Gomes Freire, segundo o autor do poema, havia feito tudo para evitar a guerra, mas como os jesuítas
não abandonaram seus intentos foi necessário guerrear para livrar os índios daquela tutela que tanto mal
fazia. De qualquer forma, o general tentou em todos os momentos negociar a paz, persuadindo os índios e
mostrando sua bondade. Um sinal disso foi a libertação dos prisioneiros de guerra.
487
Como não ficaria bem um herói lutar contra homens indefesos e fracos, os índios são apresentados
em todo o poema como valorosos e guerreiros.
A parte mais marcante do texto é quando Gomes Freire “dialoga” com os índios. Estes são
representados por Cacambo, um dos líderes inventados por Basílio da Gama. O índio, utilizando-se da lógica
480
São Borja, Santo Antônio, São João Batista, São Nicolau, São Luis, São Miguel e São Lourenço
481
MAXWELL, K. Pombal: O paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. P. 54
482
GOMES NETO, Darcy. O Indianismo na poesia brasileira: contradições ideológicas. Rio de
Janeiro, PUC, Dissertação de Mestrado. 2 vol. 1982
483
Idem
484
GAMA, Basílio da. O Uraguai. Rio de Janeiro. Livraria Agir, 1964. Canto II, verso. 141
485
Idem . C. I, V. 9
486
Idem. C.II, V. 37-38
487
Idem C.II, V. 25 a 34
200
mercantilista portuguesa afirmou que para o rei de Portugal, a troca de Sacramento pela região habitada pelos
índios (na realidade, os Sete Povos das Missões), não seria satisfatória, uma vez que através de Sacramento
Portugal controlaria,
“toda a navegação do largo rio
que parece que pôs a natureza
para servir-vos de limite e raia”
488
.
Além do que, conforme dizia o tratado, os índios deveriam abandonar as terras e irem para outro
lugar. Isto era, segundo o indígena, também um grande erro, pois
“As campinas que vês é a nossa terra
- Sem o nosso suor e os nossos braços -
De que servem ao teu rei? Aqui não temos
Nem altas minas , nem caudalosos
Rios de areias de ouro...”
489
.
Exemplifica tentando convencer Gomes Freire de que são
povos pobres e que retiram seu sustento do cultivo da terra,
“Sem outra paga mais que o repartido
Por mãos escassas mísero sustento.
Pobres choupanas, e algodões tecidos,
E o arco, e as setas, e as vistosas penas
São as nossas fantásticas riquezas.
Muito suor ,e pouco ou nenhum fausto...”
490
.
Partindo para o campo simbólico-político, o indígena lembra a Gomes Freire que o seu rei estava
muito longe e que não assustava a eles
491
. Além do mais, eles tinham um outro rei a quem deviam
obediência: os religiosos
492
.
Neste momento, Gomes Freire responde tentando mostrar que os religiosos estavam enganando a
eles, e que o rei de Portugal, ainda que estivesse longe, na realidade estava ali, representado por ele: “Por
mim te fala o Rei”
493
. Em uma outra passagem ele vai reafirmar a mesma idéia:
“Os reis estão na Europa; mas adverte
Que estes braços, que vês, são os seus braços”
494
.
Continua dizendo que a liberdade que eles tanto prezam é
falsa, uma vez que os jesuítas os controlam e lhes ensinam
calúnias a respeito de seu verdadeiro rei:
“Em vós os padres – como vós, vassalos –
É império tirânico, que usurpam.
Não são senhores, nem vós sois escravos”
495
488
Idem. C. II, V. 55 e ss.
489
Idem. C. II, V. 86 e ss
490
Idem. C. II, V. 97 e ss
491
Idem. C. II, V. 108 e ss
492
Idem. C.II, V. 110
493
Idem C. II, V. 117
494
Idem. C.II. V. 157-158
201
O rei de Portugal só queria vê-los felizes, como bom pai que era
496
. Chega até a compará-los a si
mesmo, afirmando que todos os indígenas seriam livres, desde que entregassem a região
497
. Esta entrega
deveria obedecer ao “bem público” e manteria assim “o sossego da Europa”
498
.
Caso não obedecessem seriam considerados como rebeldes, ainda que ele soubesse que os rebeldes
eram os jesuítas que se serviam dos índios “como de escravos”
499
.
Neste momento, um outro líder indígena – Sepé - entra na
conversa com palavras mais firmes e decididas, dizendo que
aquelas terras livres eles haviam recebido de seus antepassados e
que iriam deixá-las para seus filhos. E mais ainda, afirmou que:
“ Desconhecemos, detestamos jugo
Que não seja o do céu, por mãos dos padres”
500
.
Com esta declaração a guerra é reiniciada. O resultado final pode ser visto através dos números
apresentados no poema, que são suficientes para percebermos a sua missão ideológica. Dos 1700 índios,
1500 foram mortos e 154 aprisionados. Do lado espanhol três morreram e 10 ficaram feridos enquanto que
um português foi morto e 30, feridos.
501
A conclusão moral do poema é que o extermínio dos índios foi culpa exclusiva dos jesuítas, e que
em função de seus desmandos, a maioria dos índios morreram ou foram aprisionados enquanto que o lado
que lutava ao lado da justiça pouco revés sofreu.
As características básicas do Arcadismo vistas no poema de Basílio da Gama podem ser
encontradas sem muitas alterações no Arcadismo Mineiro, com exceções do ideal do Bom Selvagem e da
busca pela natureza. Pelo contrário, o que se percebe é que, de uma maneira ou de outra, o indígena
atrapalhava a vida no campo e este - ainda que refúgio ideal e paraíso perdido - ficava abalado com a sua
existência. A natureza que se buscava nestes poemas não era a bravia e a natural. A que se desejava era a
natureza domesticada e produtiva, quer seja com o ouro ou com produtos agrícolas.
Através das 14 recitações de poemas
502
oferecidos à Pamplona durante a expedição de 1769,
impregnados de discursos e de idéias que associavam barbárie x civilização, natureza bravia x natureza
domesticada, feras x homens civilizados e outras, percebe-se a construção de uma imagem para o líder.
Pamplona é mostrado sempre como o herói capaz de civilizar o sertão, de organizar a natureza, domar os
homens não civilizados e, conseqüentemente, levar riquezas à região e a seus moradores.
Após as refeições ou mesmo em pequenas paradas, os acompanhantes da comitiva declamavam seus
versos. A qualidade estética é algo de menor importância se pensarmos que os discursos e as idéias neles
presente é o suporte para o entendimento desta sociedade, ou pelo menos desta parte dela. Entretanto, é
necessário ressaltar que estes versos seguem a funcionalidade e a base dos poemas considerados como
pertencendo ao Arcadismo
503
.
O sertão é apresentado como terra de feras, sem domínio e sem qualquer controle oficial. Em um
dos poemas feitos por um religioso, estas imagens estão claramente definidas. O poema inicia afirmando que
desde que o mundo havia sido criado por Deus, os filhos de Adão que viviam no Sertão estavam sem
assistência, estavam padecendo de
“um desprezo total da gente humana
495
Idem. C. II, V. 130 e ss
496
Idem. C.II. V. 133-4
497
Idem C. II, V. 135-6
498
Idem. C.II, V. 137-138
499
Idem. C. II. V. 143
500
Idem. C. II, V. 182
501
GOMES NETO, Darcy. Op. Cit.
502
Cinco poemas foram de autoria de religiosos, sete de fazendeiros que o acompanhavam e dois
não possuíam indicações de seus autores
.
503
O Arcadismo Brasileiro oficialmente começou com a fundação da Arcádia Ultramarina nesta
cidade, em 1768. É deste mesmo ano a publicação de “Obras” de Cláudio Manoel da Costa
202
experimentando das feras o bramido”
504
.
Mas, que com a chegada de Pamplona tudo isto estava mudando: “Agora parece que é chegado o
tempo da melhor correspondência”
505
. Se antes o que se tinha era o “Sertão Silvestre
506
”, ou seja, a natureza
bravia e sem controle, agora com as mudanças desencadeadas por Ignácio Correia de Pamplona, esta mesma
região estava tornando-se uma Corte
507
, porque recebia um “Mestre”
508
. A associação de Pamplona com a
salvação é tão evidente que ele é identificado como “Filho do Sol”
509
.
Em um outro poema, de autoria desconhecida, Pamplona já é identificado como um Herói, mais
precisamente como Hércules.
510
Em um outro ele é associado a Moisés, liderando o povo em busca de um
local melhor.
511
As imagens construídas sobre Pamplona são tão grandiosas que em um poema de autoria de
um vigário, ele afirma que a criação de um templo em Israel (citava o Velho Testamento) havia sido obra
de fácil execução, uma vez que se estava no seio da civilização. Entretanto, o erguimento da Igreja de Santa
Anna do Bambuí por Ignácio Correia de Pamplona era um ato admirável porque fora “edificado num sertão
de gentios...”
512
A terra era tida pelos poetas como boa e portadora de tesouros escondidos porque esperavam a
chegada de alguém que merecesse receber suas benesses. Além disso, a conquista do Sertão era algo que
procurava “dilatar o domínio Americano” e que através de Pamplona,
“...o Império aumenta sem disputa,
intrépido buscais a terra inculta a gentes solidão a mais oculta”.
513
Após a chegada de Pamplona e seus homens o sertão mudava. A natureza, antes bravia passava a ser
um “jardim
514
. Os habitantes, tidos como feras, deixavam de ser e se transformavam em quimeras. Ou seja,
havia neste caso um incentivo ao povoamento dos que seguiam a comitiva. A afirmação de que não havia
mais perigos no sertão era um recado aos novos povoadores.
Em todos os poemas havia uma preocupação de mostrar Ignácio Correia de Pamplona como o
salvador da região, das pessoas e como o elemento que levaria riqueza, prosperidade e glórias através de suas
comitivas. Algumas palavras foram usadas com uma certa constância para designá-lo nestes poemas. Elas
remetem sempre a atos de honra e valentia: intrépido, ardente, herói, condutor de um congresso portentoso
de célebres varões, Hércules
515
, rigoroso, amoroso, Xerxes
516
, nobre regente
517
, altivo coração, impávido,
forte, arrojado
518
e varão famigerado
519
.
Estas eram as imagens sobre Pamplona que puderam ser percebidas através dos poemas árcades
elaborados durante a expedição de 1769. Mas sua vida como líder das expedições ao Sertão vai mais além.
Um outro lado da vida de Pamplona
504
Poema de um religioso (anônimo) ao Mestre de Campo Ignácio Correia de Pamplona. In:
Notícia diária .. Op. Cit. p. 54-55
505
Idem
506
Idem
507
Idem
508
Idem
509
Idem
510
Poema de autoria desconhecida dedicado a Ignácio Correia de Pamplona. In: Notícia... p. 56
511
Idem p. 70
512
Poema do Reverendo Vigário da Senhora de santa Anna. In: Notícia...p. 84
513
Poema de um Padre anônimo. In: Notícia...p. 87
514
Poema de um religioso (anônimo) ao Mestre de Campo Ignácio Correia de Pamplona. In:
Notícia...p. 54-55
515
Idem
516
Poema de Manoel Bernardes de Cristo. In: Notícia... p. 62
517
Poema de Domingos Antonio . n: Notícia p. 67
518
Poema de um anônimo. In: Notícia p. 70
203
Em 1789, com 58 anos de idade e vivendo na Freguesia de Prados, na Comarca do Rio das Mortes,
Pamplona já era um potentado local. Além de todas as sesmarias recebidas para si e para seus filhos (que ele
administrava pessoalmente), possuía também uma série de títulos, como por exemplo, Mestre de Campo,
Guarda Mor substituto, Regente e Chefe da Legião da Conquista do Piuí, Bambuí, Campo Grande, Picada de
Goiás e seus anexos. Por outro lado, Pamplona também auferia lucros com a manutenção de tropas, de
expedições e mesmo de abastecimento das vilas e arraiais.
Todos estes privilégios concedidos à Pamplona estavam em consonância com as “regras sociais e
políticas” do Antigo Regime. Em suas cartas ao Governador Valadares ou mesmo ao rei, Pamplona
apresenta-se sempre adulando as autoridades, afirmando tudo o que fez em nome e em honra do Rei ou do
Governador e deixando claro que estará sempre à disposição para quaisquer serviços que se façam
necessários. Em vários momentos, Pamplona relembra todos ao solicitar favores. Estas práticas seriam
normais na sociedade do Antigo Regime, pautada pela economia do Dom. Esta seria uma cadeia de
benefícios onde as partes envolvidas se dividiam entre aquele que tinha disponibilidade de dar e, portanto,
com maiores poderes do que aqueles que apenas recebiam. Estes últimos, em troca deviam respeito, serviços,
atenções e prestações de serviços. Acima de todos, estava o Rei, o elo mais poderoso da cadeia
520
. Assim, o
que parece bajulação nas cartas de Pamplona nada mais é do que a manutenção de uma regra social aceita por
todos como normal.
Além de todas essas participações nas expedições Pamplona ficou também famoso por ter
participado da Inconfidência Mineira e de ter sido um dos seus três delatores. Pamplona foi o último a fazer a
denúncia e o fez de maneira sucinta omitindo muitos dados. Sua denúncia só ocorreu no momento em que o
movimento já havia fracassado completamente, e muitos líderes já estavam presos, incluindo seu amigo, o
padre Toledo. O Visconde de Barbacena exigiu que fossem dados mais detalhes e desta vez Pamplona em
reunião com ele contou o que sabia mas conseguiu uma espécie de acordo e recebeu total proteção.
Esta proteção foi tanta que os devassantes do Rio de Janeiro enviados a Minas Gerais não
conseguiram ouvi-lo. Em uma das vezes, o próprio Visconde de Barbacena mentiu, dizendo que Pamplona
estava em missão oficial na Serra da Marcela. Na realidade, ele estava em sua fazenda. E em outro momento,
Pamplona ao ser localizado afirmou não poder falar alegando determinações de Barbacena
521
.
O auxílio entre Pamplona e o Governador foi tão significativo que obteve a concessão de municiar
as tropas que ficaram sediadas em Vila Rica - o Regimento de Infantaria do Moura que estava ali justamente
para manter sob controle a população agitada com os Inconfidentes. Através de um Termo de Rematação,
Pamplona obteve licença para abastecer com milho, azeite e outros produtos, determinadas pessoas que
repassavam estes mantimentos para as tropas. Depois, através de seu procurador, ele entrava com um
documento na Contadoria pedindo para ser ressarcido destas despesas
522
.
O que levaria um homem como Pamplona a se envolver com os Inconfidentes? Porque uma pessoa
com tantas regalias dadas pelo poder metropolitano, pensaria em conspirar contra este mesmo poder?
Analisando sua vida financeira pode-se perceber que Pamplona, assim como vários participantes da
Inconfidência, era um homem bastante endividado não só com particulares mas também com a Coroa
através dos Contratos de Entradas ou de Arrematação
523
. Quem sabe não foi uma solução vislumbrada para
tentar se livrar de todas as dívidas, já que uma vez vitoriosos os Inconfidentes, todos os compromissos com a
Coroa deixariam de existir? Ao perceber que o plano falhara e que já havia sido denunciado, tratou ele
mesmo de fazer uma nova denúncia. Desta forma, aparecia como súdito leal aos olhos das autoridades.
Em 1806, novamente temos notícias de Pamplona. Ele fez um requerimento ao Rei de Portugal onde
pedia que lhe fosse concedida a mercê do Hábito de Cristo para si e para seu filho Inácio, pedia a
administração e o usufruto dos dízimos da Freguesia e Termo de Tamanduá para seus filhos, assim como o
subsídio literário dos Termos das Vilas de São João del Rei e São José e por último, o usufruto das passagens
do Rio de São Francisco.
O Rei escreveu a Pedro Maria Xavier d’Ataíde e Mello perguntando-lhe sua opinião sobre estes
pedidos. O Governador respondeu-lhe mostrando o que significava em termos financeiros cada um daqueles
pedidos. Os dízimos de Tamanduá no período de 1799 a 1801 tinham rendido 5:660$000, de 1802 a 1804,
519
Poema do Reverendo Vigário da Senhora de santa Anna. In: Notícia...p. 84
520
XAVIER, Angela Barreto e HESPANHA, Antonio Manuel. As redes clientelares. In:
MATTOSO, José (direção). História de Portugal. O Antigo Regime
. Lisboa: Estampa, 1998
521
MAXWELL, K. Marques de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra,
1996. P. 186
522
Ordens sobre a arrecadação e despesas - Ignacio Correia de Pamplona. Casa dos Contos.
Biblioteca Nacional , manus. I- 25,8,2 .
523
Sobre este assunto, ver o capítulo referente aos vadios em Minas Gerais
204
7:741$000 e de 1805 a 1807, havia recolhido 10 contos de réis. O subsídio literário tinha rendido no período
de 1804 a 1806, 1:600$000 e as passagens do Rio de São Francisco, de 1804 a 1806 tinha conseguido
recolher 910$000.
O governador, através destes números sugere ao Rei que seria muito prejudicial ao Erário Real a
concessão de tudo isto à Pamplona. Sugere ainda que lhe fosse dado apenas a mercê do Hábito de Cristo. Isto
porque se tratava de “um vassalo que tem servido com dignidade, e mesmo com dispêndio a Vossa Alteza
Real neste continente...”
524
Através do testamento de Pamplona feito em 1810 conhece-se um outro Pamplona. Não é mais
aquele homem preocupado em aniquilar seus inimigos. Trata-se de alguém preocupado com sua morte e
disposto a deixar suas vontades registradas. Se não o conhecêssemos, poderíamos pensar que se tratava de
uma pessoa que passou a vida voltado apenas para o sagrado. Era sua vontade que quando ele morresse
fossem celebradas em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e mesmo em Portugal, um total de 350 missas. A
primeira seria no dia de seu enterro em São João del Rei. As demais seriam divididas por várias regiões, e em
cada igreja ou capela dever-se-ia celebrar determinados números de missas até atingirem o total de 350.
Seu testamento mostrou também que ele conseguiu durante todos estes anos acumular uma riqueza
que circulava através da vendas de terras, todas conseguidas durante as expedições, através de empréstimos e
de dívidas que ele reconhecia mas protelava seus pagamentos ao máximo.
Este testamento é importante não só porque demonstra a contabilidade espiritual e financeira deste
homem, mas também revela a sua estrutura de posse de escravos. No final de sua vida, morando na Chácara
da Palestina de Matosinhos, em São João del Rei, Pamplona ainda tinha 18 escravos.
525
A lista fornecida por
ele, indica que havia entre os seus cativos, uma família composta de pai, mãe e dois filhos e mais duas outras
formadas apenas pelos casais. As dez pessoas restantes eram solteiras ou não tinham indicadas sua condição
civil. Com relação aos sexos, 11 eram homens e 7 mulheres. A grande maioria era formada por pardos (12
pessoas). Apenas a metade era de crioulos.
No testamento, Pamplona confirma que os dois filhos de Lúcio e Valeriana eram forros, assim como
Esmeria, filha de Luzia, forra desde 1800. Determina ainda que alguns escravos também ficariam na mesma
condição. Seriam eles: o casal Lúcio e Valeriana, Tomás, João, Quintiliano, Juliana, Silvestre Correia,
Manoel Correia e Feliciano Correia. Parece que a escolha não foi aleatória. Lúcio, Valeriana e Tomás são
escravos que possuem famílias. Juliana era a cozinheira, portanto, vivia dentro de casa, com grande
proximidade com Pamplona. Silvestre, Manoel e Feliciano eram escravos que ficavam sozinhos em uma
outra fazenda logo, tinham a confiança dele. Silvestre era o condutor da tropa no caminho para o Rio de
Janeiro, Manoel era feitor e Silvestre era o administrador dos gados. Com exceção de Quintiliano e João que
não se sabe se tinham ou não uma profissão ou se eram escravos com algum tipo de envolvimento com
Pamplona, todos os demais faziam parte de um grupo de escravos que possuíam provavelmente alguns
privilégios.
Além destes que foram alforriados, Pamplona também deixou outros no sistema de coartação. A
coartação foi uma modalidade de alforria muito presente em Minas Gerais durante o século XVIII.
Normalmente o senhor do escravo registrava em testamento sua vontade de deixá-lo em coartação. Isto
significava que o mesmo teria um prazo determinado para pagar uma quantia pré-estipulada. No final deste
tempo se conseguisse saldar a dívida estaria livre. Caso contrário, voltava a ser um escravo comum. Portanto,
a coartação seria um momento intermediário entre o cativeiro e a liberdade e o preço que deveria ser pago
pelo escravo para obter sua liberdade tendeu a diminuir com o avançar do século
526
. Laura de Mello e Souza
analisando um universo documental de 22 casos
527
de coartação localizados em diversos tipos de
documentos, tais como, testamentos, cartas, ações cíveis, cartas de alforria, e outros demonstrou que os
valores que os escravos deveriam pagar a seus proprietários variaram de 150 mil réis a 96 mil réis. As
exceções foram dois casos de 1718 e 1719. Cada escravo teve que pagar respectivamente, 183 mil réis e 240
mil réis.
A análise do testamento de Pamplona coincide com a análise da referida autora no que diz respeito à
diminuição dos valores pagos pelos escravos que eram coartados. Eufrásia, a mulher de Tomás deveria pagar
no prazo de quatro anos, 66$000; Bento e sua mulher, Gertrudes deveriam saldar em quatro anos o valor total
524
Carta de Pedro Maria Xavier d’Ataíde e Mello ao Rei de Portugal, em 20.11.1806. Vila Rica.
RAPM. Ano 11, 1906 p. 294
525
Pamplona vendeu quase todas as outras sesmarias, assim como os escravos e os seus animais de
criação.
526
SOUZA, Laura de Melo e. Norma e conflito.. p. 159
527
Com exceção de apenas dois casos ocorridos em 1718 e 1719, todos os demais documentos são
dos quarenta últimos anos do século XVIII.
205
de 120$000; Felício, escravo solteiro, em seis anos deveria pagar 80$000; Claudina em três anos, 80$000 e
André Crioulo tinha seis anos para pagar 80$000.
Evidentemente que decorridos estes prazos, quem não conseguisse saldar os valores voltaria à
condição de cativo. Ainda que a coartação fosse muito utilizada em Minas Gerais ficam algumas dúvidas ao
analisar as condições dos pagamentos que cada um dos escravos deveria efetuar. Os valores serem diferentes
de escravo para escravo não surpreende; um poderia ser mais valioso que o outro. Entretanto, como entender
as diferenças de prazos? Os escravos que deveriam pagar 80$000 tiveram todos, com exceção de Claudina,
um prazo de seis anos. Ela teve apenas três. Porque? Que tipo de atividade ela poderia exercer que fosse tão
mais rentável? Além do que, fica uma outra questão. Ela foi a única mulher avaliada em 80$000. Também
não ficou em uma boa situação o casal Bento e Gertrudes. Como os dois iriam conseguir juntar em quatro
anos a quantia de 120$000, já que cada um precisava pagar 60$000? São perguntas para as quais
provavelmente jamais saberemos as respostas.
Pamplona é um exemplo que trás em si o espírito do homem da conquista, atuando de forma a
executar na região o que apregoava o projeto civilizacional das autoridades metropolitanas. Ele foi um
elemento de ligação entre a realidade mineira e seu Sertão e as teorias desenvolvidas pelos que nunca por ali
estiveram. Entretanto, este projeto não funcionou a contento da área. A concentração de terras nas mãos de
poucos que - diga-se de passagem - não conseguiam controlá-las; os ataques freqüentes de índios e de
quilombolas; as fugas dos escravos, foram fatos fundamentais para este fracasso. Mas não foram os únicos.
A pobreza dos moradores e conseqüentemente, a impossibilidade de incrementar o povoamento e a produção
foram os aspectos mais importantes para este contexto.
206
Parte V - O Limite do Projeto: A Pobreza
A vida estava muito estranha para os moradores das Gerais
no ano de 1735. Ao mesmo tempo que a extração do ouro estava
no auge, cada vez mais a sociedade percebia que a tempestade não
demoraria e que dias negros se abateriam sobre suas cabeças. O
custo de vida aumentava sensivelmente e os problemas sociais se
avolumavam, criando hordas de pessoas sem qualquer tipo de
ocupação e de miseráveis jogados nas ruas. Contraditoriamente,
a imagem que se tentava manter era a de fausto, um “falso
fausto”
528
.
Na proporção que se avolumavam as extrações do ouro também aumentavam o controle, o fisco e as
tributações. A Coroa, ainda assim, achava que muito metal estava se perdendo em prejuízo claro aos seus
interesses. Era necessário controlar melhor, fiscalizar e impedir os extravios e os contrabandos. Para isso
criou neste ano o imposto da capitação, determinando que cada trabalhador das minas deveria pagar um
tributo fixo em ouro. Os senhores de escravos pagariam por estes, mas os forros e os homens livres deveriam
pagar sobre si mesmos, caso contrário, seriam presos, açoitados, despejados e degredados. Este imposto
gerou uma série de reclamações da população mineira e, em 1744, os oficiais da Câmara de São José
remeteram uma carta ao rei onde informavam sobre as dificuldades encontradas pelos mineradores para
continuarem a pagar o imposto
529
. Iniciavam o documento afirmando que o “grande corpo quase
agonizando, pobre, débil e aflito ... se anima[va] a expor ... a sua extrema miséria...”
530
. Reclamavam
também da desigualdade que era o pagamento do imposto tanto por pessoas que extraiam muito ouro como
por quem conseguia pouco. Como conseqüência deste quadro, ocorria na maioria das vezes que estes últimos
perdiam os escravos e acabavam ficando em uma situação muito difícil
531
.
Alegavam também que as mulheres -forras, pardas e negras - eram obrigadas a usar de meio ilícitos
para conseguirem o valor do imposto e outras “...com mais lágrimas que palavras dão alguma pequena peça
de ouro do seu pobre adorno...”
532
. O mais grave era, segundo os oficiais, o número de escravos que não
sendo mais sustentados por seus senhores, também na miséria, se lançavam às ruas, atacando, roubando,
matando e fugindo para os quilombos.
A cobrança do imposto da capitação e a falta de condições de pagá-lo fizeram com que muitas
pessoas abandonassem as vilas e buscassem refúgio no interior, nas áreas de sertões, tornando-se perseguidos
pelas autoridades
533
.
Entretanto, este não era um problema apenas de Minas Gerais. São Paulo na mesma época passava
por algo semelhante. O governador Luis Antonio de Souza Botelho, tentou de várias maneiras fixar as
528
SOUZA, Laura de Melo e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de
Janeiro: Ed. Graal, 1982. Capítulo 1
529
Carta da Câmara de São José ao Rei, em 30 de setembro de 1744. IN: RAPM. Ano II, fascículo
II, abril a junho de 1897. P. 292 e ss.
530
Ibidem
531
Silveira
531
, acredita que uma das causas dos problemas econômicos da região foi a cobrança
deste imposto que ao gerar maior controle sobre a população, favoreceu um alargamento das
dívidas, “aumentando a pobreza e a violência”
531
.
532
Ibidem
533
MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: A História de Minas, roubada do
povo. São Paulo: Gazeta Maçônica, 1995 p. 147 e ss. Martins acredita também que o primeiro
povoamento do Ambrósio, destruído em 1749, era, na realidade, um povoado de homens livres
pobres, em sua maioria negros fugidos do imposto e que criaram ali uma sociedade alternativa. Daí,
seu extermínio.
207
pessoas em vilas e aldeias a fim de melhor controlá-las. No entanto, pouco conseguiu. Segundo ele as pessoas
caíam no “...engodo do mato virgem...” e para seu desespero “... larga [vam] a habitação das povoações e
[iam] atrás do mato, afastando-se cada vez mais da sociedade civil, reduzindo-se a viver sem missa e sem
doutrina... familiarizando-se com as feras...”
534
Em Minas Gerais, as conseqüências desta itinerância foi notada no século seguinte por Mawe. Para
ele os colonos viviam “...como se a posse de suas terras estivesse prestes a ser abolida...”
535
A itinerância da sociedade colonial era um problema não só de cada uma das
regiões, mas remetia a um aspecto muito maior, qual seja, o impedimento de um efetivo
controle sobre a população. O que Mawe não percebeu ou não quis entender, foi que a
posse das terras poderia realmente ser momentânea. Inúmeros documentos relatam o
avanço de grandes proprietários sobre as terras dos pequenos colonos. Além disso, estes
estavam à mercê de ataques indígenas e de quilombolas. Um outro problema era a pobreza.
Muitos colonos chegaram a tal ponto que tiveram que abandonar as terras devido à
impossibilidade de arcar com seus gastos e impostos. Realmente, a posse das terras era
momentânea.
Além do tributo da capitação não ter dado certo por causa das dificuldades encontradas em sua
execução
536
, criou um movimento interno na capitania que muito de perto nos interessa. Inúmeras pessoas,
principalmente os pobres e os considerados como vadios, fugiram dos centros populacionais onde o controle
se efetivava, e buscaram novas regiões para garimparem ou mesmo “tentarem a sorte”. As áreas privilegiadas
para isto eram os sertões ainda não povoados, pois lá não havia nenhum tipo de controle ou fiscalização
537
.
Entretanto, este avanço populacional esbarrou em um sério problema. Estas áreas já eram desde
muito habitadas por índios e por quilombolas. O conflito foi inevitável e chamou a atenção para esta região,
fértil e na maioria das vezes, rica em ouro.
Novamente ficava latente a exploração de reservas auríferas sem o pagamento dos tributos. A fim de
evitar que tal ocorresse, foi incentivada a criação de picadas e estradas oficiais que passassem por estas
terras. A Picada de Goiás, a estrada que ligava Pitangui a Paracatu, e a estrada do Caminho Velho de São
Paulo até Goiás, foram obras feitas a partir de 1736 cortando o sertão e chegando até áreas bem afastadas
538
.
Estas estradas foram financiadas por particulares e contaram com apoio do governo da capitania.
Seus empreendedores receberiam sesmarias em toda as suas extensões, e durante um ano nenhum outro
sesmeiro foi empossado na área
539
.
Desta forma iniciava-se efetivamente o povoamento do Oeste de Minas Gerais. Todavia, depois de
várias investidas dos quilombolas e de grupos indígenas, o povoamento da região declinou e a maioria
abandonou suas fazendas e sesmarias. A situação só começou a se reverter um pouco a partir de 1743,
quando recomeçou o povoamento na região em função dos ataques aos quilombolas. Mas ainda em 1754 o
534
Estas pessoas estavam fugindo da cobrança cada vez maior de impostos e do alistamento
compulsório para as lutas no Presídio do Iguatemi, nas fronteiras com o Paraguai. Citado por
DEAN, W. Op. Cit. p. 117
535
MAWE, John. Citado por DEAN, W. Op. Cit. p. 124 .
536
Todos os trabalhadores teriam que pagar o tributo mesmo em momentos de pesquisas para
localizar o ouro. Como em muitas vezes as pesquisas resultavam em fracassos, este imposto ficava,
cada vez mais injusto e odioso aos mineiros.
537
MARTINS, Tarcísio José. Op. Cit. p. 146
538
Ibidem
539
VASCONCELOS. Diogo de. Op. Cit. P. 169 e ss.
208
problema persistia, conforme pode ser observado no pedido de obtenção de uma sesmaria na região da Picada
de Goiás:
“... e como na Paragem do Campo Grande, picada que ia para Goiás, se achavam campos e matos devolutos
não povoados por causa dos negros fugidos, quer povoar as ditas terras não só para afugüentá-los mais
ainda para dar sentido a dita picada de Goiás...”
540
Uma situação muito parecida pode ser percebida em outras áreas de Minas Gerais neste momento.
A partir de 1734, com a publicação do Bando de 19 de julho, o Conde de Galvêas proibia toda a mineração
de diamantes no recém demarcado Distrito Diamantino. A área tornava-se monopólio real, e milhares de
mineradores foram expulsos tendo que buscar novas regiões para viverem. Novamente as regiões escolhidas
foram os sertões, aumentando muito as pressões e os conflitos nele. Deste momento em diante, o que se viu
foram tentativas de controlar a mineração e a extração de diamantes, diminuir a população no Distrito e
impedir todo o contrabando. Todas as cartas de datas recebidas desde 1730 foram cassadas e as anteriores
foram analisadas para saber se poderiam ou não possuir diamantes em suas terras. Os escravos ou mesmo os
livres que fossem encontrados “...com suspeita de que quer extraí-los [diamantes]...” seriam presos. Os
escravos eram açoitados e vendidos. Os homens livres pagariam uma multa de 100$000, ficariam dois meses
na prisão e depois seriam expulsos da Comarca
541
.
Os moradores da Comarca do Serro endereçaram uma reclamação ao Rei D. João V no ano de 1738
alegando, entre outras coisas, que estavam em deplorável estado em função da proibição da mineração na
região. Continuaram afirmando que “... esta Comarca que era uma das mais abundantes e ricas, ficará
reduzida a miserável estado, em que já se principia a ver, e poderá outra vez ser ocupada do gentio bravo e
de negros fugidos, de que se seguirão grandes desordens e malefícios...”
542
Com esta proibição ou por causa da cobrança cada vez maior de impostos, parte da população de
Minas Gerais viu-se de um momento para o outro, impelida à garimpagem clandestina. O“...Garimpeiro
tornava-se muitas vezes aquele que, obrigado a expatriar-se ou a passar uma vida de misérias, porque com a
proibição da mineração se lhe tirava o único meio de subsistência, ia exercer uma indústria, a mineração
clandestina, que julgava um direito seu, injustamente usurpado...”
543
Pode-se perceber que o povoamento do Oeste de Minas Gerais, quer se trate de negros fugidos, quer
se trate de ondas formadas por livres egressos do imposto ou da proibição de extração dos diamantes, está
intimamente ligado aos problemas econômicos pelos quais passava a capitania. Estes dois tipos de
deslocamentos populacionais podem ser classificados como sendo “...migrações internas inter-regionais,
voluntárias e permanentes”
544
. Alguns traços caracterizariam tais migrações, como por exemplo, a busca por
novas terras no sistema de agricultura e /ou pecuária extensiva, o próprio sistema de posse da terra através da
distribuição de sesmarias em áreas mais afastadas, o incremento populacional desenvolvido pela política
fisiocrata e iluminista, o esgotamento de lavras auríferas forçando a busca por novas regiões e, finalizando, a
fuga de escravos e a formação de quilombos. Todavia, estes movimentos migratórios acabavam por
desencadear um outro tipo de migração que a referida autora denominou de “...migrações internas
temporárias...”, ou seja: os deslocamentos de tropeiros, vaqueiros e peões em busca de oportunidades de
negócios nas novas áreas; o envio de tropas, companhias de soldados e milícias para as áreas em conflitos; as
Entradas e Bandeiras em busca de mão de obra ou de localizar ouro, as monções – no caso de São Paulo,
entre outros
545
.
Todos estes elementos podem ser encontrados neste momento em Minas Gerais. O deslocar da
população, quer se trate de livre ou mesmo de escravos fugidos, era um problema que precisava ser vigiado
de perto, pois significava manter o controle sobre as descobertas de ouro e sobre as terras. Logo, tornava-se
imprescindível para a Coroa sujeitar não só as pessoas, mas também estas novas áreas para que elas
passassem a fazer parte do sistema colonial.
540
Carta de Sesmaria de Domingos Vieira da Mota, em 6.4.1754. SC 106 p. 140 APM
541
SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Petrópolis. Vozes, 1978.
p.83
542
Idem p. 88
543
Idem p. 108
544
MARCÌLIO, Maria Luiza. Migrações no Brasil colonial: uma proposta de classificação. In:
LPH
. Revista de História. Vol. 1, n. 1, 36-45. 1990
545
Idem
209
Entretanto, isto não era tarefa simples. Os índios bravios e os quilombolas permaneceram nos
Sertões provocando durante todo o século XVIII ondas de povoamento e de despovoamento. Se no momento
das Entradas para os destruir havia um processo de distribuição de sesmarias com o intuito de promover o
povoamento, logo este se retraía quando os índios ou os escravos fugidos conseguiam se reorganizar e
atacavam os novos entrantes. Em diversos momentos, áreas que aparentemente estavam ocupadas por
elementos considerados como capazes de promover o desenvolvimento, se viram de uma hora para outra
vazias e, para desespero das autoridades, povoadas novamente pelos “bárbaros”: índios e quilombolas.
“...Em 1737 foram doadas as sesmarias aos abridores da picada
de Goiás; e pelos territórios de Formiga, Piui e para a frente
instalaram-se... Retiraram-se estes sesmeiros, poucos anos
depois, quando a região se povoou de negros fugidos que, por aí,
organizaram seus quilombos...”
546
Ignácio C. de Pamplona também nos indica este problema:
“... V. Ex.a. sabe que o seu favor foi o motivo que me fez
intentar a difícil empresa de povoar estas terras desertas e
incultas esforço por outras tantas vezes principiados quantos
desvanecida pela oposição do gentio brabo e quilombos de
negros que por todos os lados cercavam este continente o que
bem mostram as fazendas que se viram desamparadas...”
547
A questão das sesmarias abandonadas era um problema para a efetiva colonização do Campo
Grande. Ao mesmo tempo em que elas eram importantes para controlar a existência dos quilombos e dos
índios, estes acabavam por provocar sua ruína e desistência. Algumas vezes estas terras abandonadas foram
dadas em sesmarias a novos entrantes dando início a contentas intermináveis sobre quem teria direito a elas.
Isto aconteceu com Ignácio Correia de Pamplona. Depois de conquistar parte do sertão, doou algumas
sesmarias aos seus companheiros. Tempos depois, começou um grande conflito na região porque os
sesmeiros antigos que haviam abandonado as terras por causa dos ataques de índios e quilombolas, voltaram
e exigiram seus direitos. Um juiz local deu apoio aos primeiros sesmeiros e Pamplona sentiu-se ameaçado em
seu poder.
A carta do juiz ao Conde Valadares mostra estes conflitos de maneira muito clara:
“...No termo desta Vila de S. José onde sou juiz das medições e demarcações das
sesmarias na forma das ordens de S. Majestade Fidelíssima me vejo perturbado pelo
Mestre de Campo Ignácio Correia de Pamplona usurpando me a jurisdição e medindo e
demarcando sesmarias no sertão do Rio São Francisco sem faculdade ou comissão minha,
546
BARBOSA, Waldemar de Almeida. A decadência das minas e a fuga da mineraçào. BH,
UFBH, 1971 p. 31 e 32
210
e como pela obrigação do meu cargo devo proceder contra o mesmo vendelando (sic) a
usurpação da jurisdição para evitar algum distúrbio naquele sertão causado pelo dito
Mestre de Campo quando não desista, recorro a V. Ex.a. queira me dar auxilio militar
para as diligencias por me faltarem oficiais que dêem a execução as ordens que precisar
distribuir ... da jurisdição poder ser obedecido e reconhecido legitimo juiz daquelas
paragens.”
548
A presença de índios considerados como ferozes foi uma das causas do abandono de terras em várias
regiões de Minas Gerais, ou mesmo da sua impossibilidade de serem avaliadas e colocadas no mercado. Isto
acontecia tanto com o pequeno proprietário e seus poucos escravos como com o grande fazendeiro. Alguns
inventários do 1º Ofício mostram estes casos de maneira exemplar
549
:
Antonio Gonçalves Pedrozo era casado com Faustina Gonçalves e viviam em um pequeno sítio na
Freguesia de Piranga junto com seus três filhos de seis, quatro e dois anos e mais oito escravos. Um dia
sofreram o ataque de índios e sua mulher foi morta no dia 9 de março de 1749 mas somente em 1750 é que
Antonio fez o inventário. Alegou que não o pôde fazê-lo antes porque precisou abandonar seu sítio em
“razão da vizinhança de gentio...”
550
Também em 1750, um grande proprietário sofria o mesmo problema com a presença dos índios. A
viúva do Capitão Antonio Alvarez Ferreira, falecido em dezembro de 1749, declarou que possuía 58
escravos, um sítio de roça e lavra de terras minerais, uma terra de roças em capoeira com terras minerais,
duas datas de terras minerais, uma morada de casas que servem de venda, uma morada de casas que servem
de loja, umas capoeiras, uma morada de casas térreas e uma posse de roça com terras de matos virgens com
índios.
Esta roça localizava-se na Barra do Rio Chopotó e segundo a inventariante, eles eram sócios do
Padre Roque Leal. Contudo, não se podia fazer qualquer avaliação por causa da “vizinhança do gentio...”
551
Em pior situação estava Maria Valentina da Silva Leal. Seu marido, o Capitão-Mor José da Silva
Pontes, havia morrido em 29 de janeiro de 1800. O casal possuía 75 escravos e o monte geral de sua fortuna
era de 16: 452$392 contos de réis. Entretanto, duas sesmarias na “Paragem chamada os Oratórios Beira Rio
de Guarapiranga” estavam dominadas por índios Botocudos e por isso não podiam ser avaliadas. Uma outra
sesmaria, agora no Rio Doce, que pertencia ao casal estava apresentando o mesmo problema e também não
podia ser avaliada.
Estes exemplos mostram que tanto os pequenos proprietários como os que possuíam muitas terras e
escravos passavam pelos mesmos problemas com relação aos índios. Mostram ainda, a luta destes últimos
para manter suas terras, “legalmente” entregues à população colonial.
A historiografia tradicional sempre tratou a questão da terra como se houvesse uma oferta elástica
em função da existência de muita terra livre. Analisada sob esta perspectiva, pouco ou nada valeria no
mercado. Isto só mudaria em 1850 com uma lei específica começando assim o “Cativeiro da Terra”.
Entretanto, sendo isto real, como explicar as constantes disputas e conflitos pela posse que sempre existiram
em todo o território colonial? Se realmente existisse tanta terra disponível, porque os conflitos
552
?
Os estudos atuais têm demonstrado que desde o período colonial, a terra estava no mercado sendo
vendida, arrendada ou mesmo alugada e que o índio, assim como o meio ambiente, servia, na maioria das
547
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Conde de Valadares. Sem data, 18,2,6
548
Carta de João Ribeiro de Freitas para Conde de Valadares, em 24.09.1769 . Vila de São José .
Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) Documentos. 124
18,3,5
549
Agradeço à Carla Maria Carvalho de Almeida ter- me cedido estes inventários.
550
Inventário de Faustina Gonçalves. 1º Ofício cód. 10, auto 375 – 1750 Freg. Guarapiranga.
551
Inventário do Capitão Antonio Alvarez Ferreira. 1º Ofício cód. 36, auto 843 – 1750 Freg.
Guarapiranga.
552
Sobre esta discussão ver FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: Fortuna e família
no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Capítulo 2: Histórias esquecidas: os
andarilhos da sobrevivência.
211
vezes, como obstáculo à expansão. Pode-se acrescentar os quilombolas a este grupo pois, de uma forma ou de
outra, impediam o avanço ilimitado dos demais elementos populacionais.
Na realidade, o povoamento em áreas controladas por índios ou quilombolas só poderia ser levado a
bom termo se fosse feito com bases militares. No início do processo se deveria mandar expedições à área a
fim de aniquilar os “inimigos”. Depois, os Presídios
553
ou Fortalezas seriam montadas com o objetivo de
impedir o avanço dos que restassem. Só assim teriam alguma possibilidade de sucesso.
A montagem destes quartéis ou presídios acabou ganhando o reforço de outras medidas que visavam
garantir a segurança dos que habitavam estas regiões ermas. Uma delas, foi a utilização de determinadas
regiões como áreas a serem povoadas por pessoas livres, dispostas a irem para lá com a expectativa de
localizarem ouro e receberem do governo as respectivas datas e terras. Cuieté, Abre Campo, Pessanha e São
João Batista foram algumas dessas regiões.
D. Rodrigo José de Meneses, governador de Minas Gerais em 1780, acreditava poder localizar
muito ouro no Cuieté, e com ele salvar a capitania da decadência econômica. Mas, como a população que foi
para lá de livre e espontânea vontade era pouca, mandou
... prender os vadios que se encontrassem e remetê-los para aquele sítio, fazendo desse modo com pouca
despesa aquela importante obra e purgando também a sociedade civil dos pertubadores dela...”
554
Anos depois, como esta e outras regiões estavam ainda abandonadas, transformaram-se em áreas
para os degredados das vilas porque de lá era impossível a fuga, pois os Botocudos matavam todos os que
tentavam tal proeza.
O abandono das sesmarias e a conseqüente volta dos índios e quilombolas, ocasionava a necessidade
de recomeçar o processo de conquista: identificar uma pessoa capaz de liderar a Bandeira, convocar homens
para segui-lo, arranjar alimentos, pólvora, animais de cargas e tudo mais que fosse necessário para entrar no
Sertão, novamente expulsar ou aniquilar os inimigos e recomeçar o povoamento. Contudo, isto também
esbarrava na pobreza dos moradores das regiões próximas. A montagem da Bandeira era um processo caro e
que tirava da população das vilas uma quantidade de alimentos e de animais que, na realidade, eles não
possuíam. Estas negociações sobre o que cada povoação poderia dispor para armar as bandeiras era um dos
motivos para a grande demora em suas partidas e consequentemente, tornar público algo que deveria ser feito
em segredo para evitar que os escravos aquilombados tomassem conhecimento. Como resultado, quando a
bandeira chegava ao local os quilombolas já estavam há muito tempo longe dali.
Já no final do século XVIII, momento de decadência da extração do ouro, José Eloi Ottoni em sua
“Memória sobre o estado atual da Capitania de Minas Gerais
555
, sugeria que as autoridades mantivessem
viva a tradição das primeiras entradas paulistas, ou seja, a idéia de que um líder ia à frente de um grupo como
chefe supremo, investido de total autoridade para resolver quaisquer tipos de contendas ou problemas que por
ventura aparecessem. Esses líderes assumiam o poder de pregar a justiça. As entradas seriam feitas à custa
553
A existência dos presídios remete à uma hierarquia militar complexa: eram praças fortes com
destacamentos militares. Normalmente havia em seu interior um contingente de tropas e oficiais, e
de lá saíam as maiores decisões a respeito da segurança e do desenvolvimento da área. A função
destes presídios era bastante clara. Seu objetivo era manter a ordem na região, estabelecendo
povoados e desenvolvendo-os. Para isso combatiam índios que resistiam à catequização e ao
aldeamento e mantinham os demais aldeados sob controle, e combatiam também os quilombos
através das expedições ou de capitães-do-mato. Serviam como barreiras ou fortificações nas áreas
de fronteiras mais distantes. Entretanto, tudo isto era apenas teoria. Na realidade, estes presídios
pouco ou nada podiam fazer devido à falta de pessoal qualificado, de munições e armas e aos
constantes ataques que sofriam. Um caso que exemplifica esta afirmação foi o ataque ocorrido com
um quartel da Cavalaria em 1745. Os membros do quartel acreditavam serem os quilombolas os
responsáveis pelo ataque que deixou um dos guardas ferido:”... Supondo suceder-lhe essa
infelicidade por negros que se acham em um quilombo junto ao dito quartel...”
553
554
Exposição do governador D. Rodrigo José de Meneses obre o estado de decadência da
Capitania de Minas Gerais e meios de remediá-lo. In: Revista APM, Ano II, fascículo 2, abril a
junho de 1897.
555
OTTONI, José Eloi. Memória sobre o estado actual da Capitania de Minas Gerais, estando em
Lisboa no ano de 1789. In: Anais Biblioteca Nacional
vol. 30 1908, RJ, Typ. Biblioteca Nacional,
1912
212
do próprio organizador e como pagamento ficavam com as riquezas encontradas (ouro ou índios) e
receberiam ainda sesmarias das terras que lhe interessassem. Entretanto, estas características das expedições
não são somente as das efetuadas pelos paulistas. As expedições lideradas por Ignácio Correia de Pamplona
possuíam esses elementos.
Ottoni, contraditoriamente, demostrava que os descobrimentos das minas tinham sido feitos por paulistas
aventureiros, insaciáveis, exploradores dos índios e nutridos na mais estúpida indolência.
556
Todavia,
momentos depois, ao descrever as terras conquistadas demonstrava serem elas cobertas de “matas espessas e
habitadas somente de íncolas ferozes e bárbaros”
557
. Em função disto, propõe o incentivo para que os
mesmos paulistas voltem à região incitados em:
“...projeto de novos descobrimentos por meios de graças, privilégios e indultos concedidos aqueles que
inflamados de um zelo patriótico entrarem pela mata geral não com o espírito de conquista, sim como
hóspedes sensíveis e humanos que encarando somente o objeto da sociedade vão libertar diversas tribos
errantes do infame jugo da estupidez e da inércia. Daqui podem resultar duas grandes vantagens: a primeira
é o estabelecimento de novas sociedades, que sendo animadas por diversos modos do que até aqui se tem
praticado, podem ao mesmo tempo dilatar a Igreja e utilizar ao Estado dando de livre vontade a Deus o que
é de Deus, ao Cezar o que é de Cezar. A Segunda é descobrir se ouro e pedras preciosas...”
558
Seu texto não deixa dúvidas sobre o objetivo destas conquistas: É necessário povoar com almas
cristãs, desenvolver o trabalho e, conseqüentemente, a riqueza e, porque não, descobrir ouro e pedras
preciosas, aumentando o poder da Coroa. A Igreja sempre acompanhando os interesses da Coroa. O que o
autor não relata é o que fazer com os grupos indígenas que não aceitassem a fé cristã. Mas, para isso já
sabemos a resposta...
Se as finanças não estavam indo muito bem, pior ainda estava a situação política e social da
capitania. Após os primeiros descobrimentos do ouro, inúmeras autoridades reclamaram sobre a ausência de
controle da população por parte do Estado. A região tornou-se palco de disputas e conflitos que, de uma
forma ou de outra, diziam respeito ao domínio absoluto que os grandes mineradores detinham, a não
aceitação da intromissão do poder real e a pouca ou nenhuma fé dos moradores
559
.
Estas reclamações continuaram sendo feitas no decorrer de todo o século XVIII. Uma das
conseqüências da falta de moderação nos costumes era para os mais moralistas, a licenciosidade em que o
povo vivia. Bebida, prostituição, batuques, esmolas que não eram usadas adequadamente, tudo servia para
demonstrar como vivia aquela sociedade e quanto ela precisava ser ordenada a fim de que o povoamento das
áreas mais afastadas pudesse ser levado a cabo de maneira correta e sem desvios. Para aqueles que tentavam
controlar tal sociedade, todos estavam envolvidos nesta atmosfera de libertinagem, inclusive, os religiosos.
Em uma carta de Gabriel Alves da Costa ao Conde de Valadares toma-se contato com esta atmosfera:
“... O sentimento de ver o pouco adiantamento que tem tido a conquista desse continente
de Cuieté me anima por na presença de V. Ex.a. Os principais motivos de seu desmancho
sendo um dos mais nocivos as muitas cachaças que os comerciante trazem a ele havendo
conduta que vem 80 a 100 barris que logo se gastam, fazendo bulhas e outros distúrbios
inauditos. O que melhor se compara com a chegada do novo vigário que também trouxe
para o seu interesse uma carregação dela e pela não ter havido algum tempo, logo no
556
Ibidem p. 312
557
Ibidem
558
Ibidem
559
Os principais momentos desta luta são a Guerra dos Emboabas e a Revolta de Filipe dos Santos.
Tentando diminuir estes problemas e evitar futuros, a região das Minas Gerais foi separada da
Capitania do Rio de Janeiro em 1709 e incorporada a de São Paulo. Contudo, anos mais tarde
(1720), foi também desmembrada desta última.
213
desembarque ficaram todos fora de si com repetição de dias e dias e levando outros 20
barris para o Pegabem se foram pondo pelo caminho...”
560
A situação de bebedeira estava tão fora do controle que se os índios os atacassem
morreriam todos porque “... nenhum sabia parte de si...”
561
. O autor sugere que fosse
proibida a entrada de aguardente no sertão do Cuieté e que se proibisse também “...toda a
qualidade de jogos e batuques que servem de não pequena ruína a terra...”.
562
Os batuques e as festas que os negros faziam, quase sempre acompanhados de vadios, era segundo
se acreditava, um outro foco de problemas alimentador da licenciosidade em que viviam os povos em Minas
Gerais. Os grupos se organizavam em Bandeiras do Divino Espírito Santo e saíam de freguesia em freguesia
pedindo esmolas, fazendo festas e batuques com o dinheiro arrecadado. A solução, de acordo com o
documento, seria não permitir que estes grupos saíssem de suas freguesias. Um outro grave problema era:
“...o abuso de andarem os negros ou negras com imagens de N. Senhora do Rosário a tirarem esmolas pelos
serviços minerais e de fazenda em fazenda, e de com as mesmas imagens fazerem em lugares destinados e já
sabidos certos meses com o título de tirarem esmolas, juntando-se para este fim muitos negros e negras pela
liberdade que tem nos domingos e dias santos, porque nestas ocasiões armam cultos, embebedam se e já
todo dia gastam em danças desonestas a que chamam batuques e em outras profanidades com que fazem na
presença das mesmas sagradas imagens, graves irreverências e desacatos e da que sucedem muitas mortes,
fugidas e outros mais danos que experimentam os seus senhores...”
563
.
Vários contemporâneos afirmavam a quase impossibilidade de fazer com que aquele povo se
tornasse civilizado dado a inconstância das pessoas que, quase nunca, admitiam a idéia de se fixar e cultivar a
terra, única forma para alguns de promover a civilização. Preferiam seguir sempre em busca do ouro,
elemento tido como o principal fator de desregramento social, pois era uma forma de enriquecimento rápido
e que não criava raízes:
“... Esta riqueza tão casual, tão variável e tão caprichosa, assim como faz que seja sempre vária e
inconstante a riqueza do mineiro do ouro, assim também faz a riqueza da nação mineira do ouro seja sempre
vária e inconstante...”
564
Para vários memorialistas ou autoridades que escreveram sobre Minas Gerais do século XVIII, por
aquela região ser encravada entre a barbárie e a civilização, provocava sérios problemas de ordem social,
política e econômica. O Conde de Assumar, analisando a população das minas e as causas para tantos
problemas de indisciplina, chegou a algumas conclusões:
560
Carta de Gabriel Alves Costa para Conde de Valadares, em 12.03.1769, no Presídio do
Cuiethé. Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) Documentos.
318 18,2,6
561
Ibidem
562
Ibidem
563
Ibidem
564
COUTINHO, J.J. da Cunha. Obras econômicas. São Paulo; Ed. Nacional, 1966. p. 197
214
“... contaminava a influência das emanações do ouro
entranhado no solo. De tais fluidos provinham a inquietação e a
rebelião dos homens a cujos pés infeccionavam as fezes do fulvo
metal do clássico chavão. Emitia o chão vapores e fumos
corruptores do ar. Pelos poros, narinas e bocas penetrava o seu
bafo tênue e sutil, entranhava-se nos ossos a cuja medula
exinania (sic). Aí, residia facinorosos, homens cheios de toda a
espécie de maldade, luxúria, cobiça, inveja e dolo. Daí, a causa
de tantos homicídios, contendas, malefícios, murmurações, de
sujeitos execrandos, ignomiosos, indisciplinados, destituídos de
qualquer amor a ordem, amizade e compaixão...”
565
Além do ouro, propiciador de riqueza fácil, havia um outro elemento que para J.J. Rocha explicaria
a tendência à vadiagem de parte da população mineira: as facilidades encontradas na natureza e a bondade
dos povos:
“ ... Os mais povos cada um dá utilidade conforme o uso de seu
viver, ainda que entre estes há muitos vadios, sem exercício de
qualidade alguma, o que não aconteceria se não houvesse tanta
abundância de víveres nas Minas e a liberalidade que há nos
habitantes delas , em darem de comer a todos aqueles que a
horas o procuram...”
566
Anos depois as condições sociais ainda permaneciam as
mesmas. Saint-Hilaire constatou uma situação que, aos olhos
europeus, lhe parecia caótica. Atravessando a região do Campo
Grande em 1719 percebeu que tratava-se de uma área
565
Discurso Histórico Político do Conde de Assumar, citado por GOULART, Jose Alipio. Tropas e
tropeiros na formação do Brasil. RJ, Conquista, 1961. P. 24
566
ROCHA, Joaquim José da. Geografia Histórica da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, 1995. P. 163
215
praticamente despovoada: “...em toda a parte só se via uma
imensa e monótona solidão...”
567
. Acreditava que seus parcos
habitantes não eram totalmente civilizados e só não voltavam ao
estado de selvageria total porque, de vez em quando, era obrigado
a irem às vilas assistir as missas. Entretanto, este era um outro
problema, pois os padres eram os primeiros a não respeitarem a
religião e os bons costumes. Para piorar a situação, nas vilas
havia uma tal quantidade de vadios e prostitutas que tornavam
algo que poderia ser benéfico em uma reunião perigosa. Além do
que, a indolência era de acordo com ele “...uma das principais
chagas desta região...”
568
. Ninguém queria trabalhar. Os casados
o faziam apenas o suficiente para viver, e os que eram solteiros
não se davam a esta ocupação. Viviam de casa em casa sendo
alimentados por caridade. Ele mesmo foi vítima desta prática
local: Seu auxiliar, um homem que estava há muito tempo
desempregado e que somente havia aceitado o emprego por causa
de uma ordem superior, fugiu um dia sem dar qualquer
explicação. Saint-Hilaire buscou uma justificativa para o fato que
passava pela facilidade que as pessoas encontravam para
sobreviver sem trabalhar: “...Mas porque iriam trabalhar esses
homens, se em toda a parte encontram gente que lhes dê
alimento a troco de nada?...”.
569
A visão de Freireyss não difere muito. Referindo-se às
moradias dos habitantes dos Sertões afirmava que “... as suas
habitações, como as suas terras, estão no estado mais miserável
e muito poucos procuram tornar a vida mais agradável pela
diligência e pelo trabalho...”. De maneira radical identificou a “...
maior parte [dos] habitantes dos Sertões [como] criminosos que
fugiram da justiça e se localizaram aqui, ou são descendentes de
criminosos...”
570
Pode-se perceber que tanto no século XVIII quanto no
seguinte, os problemas da região para as elites eram praticamente
567
SAINT HILAIRE. Viagens as nascentes do São Francisco. Belo Horizonte: Itatiaia;São Paulo:
EDUSP, 1975. P. 59
568
Idem p. 76
569
Idem p. 80
570
FREIREYSS, G. W. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo; EDUSP,
1982 p.60
216
os mesmos: falta de uma população criada nos moldes civilizados,
ociosidade, libertinagem, enfim, uma absoluta falta de controle.
Seja como for, é evidente que esta situação de pobreza associada à cobrança crescente de impostos e
à diminuição do volume de ouro encontrado, fez com que a população de Minas Gerais se locomovesse cada
vez com maior intensidade, buscando novas regiões onde pudessem “tentar a sorte”. Não é gratuito que
nestas regiões de conquistas recentes, de acordo com novas pesquisas, as taxas de ilegitimidade entre as
crianças batizadas fossem tão elevadas assim como as famílias fossem formadas normalmente apenas por
um dos pais, normalmente, a mãe.
571
Algumas conclusões já foram tiradas sobre a economia de Minas Gerais e todas, de uma forma ou de
outra, dizem respeito à grande concentração de lavras e terras nas mãos de um pequeno número de pessoas, e
a posse de escravos disseminada pela sociedade – ainda que com um numerário por pessoa bastante reduzido.
Pelo que já foi visto, pode-se perceber que num contexto caracterizado pela pobreza generalizada
destes colonizadores e pela necessidade de dirimir os conflitos entre os diferentes grupos sociais pela posse
da terra, contar com pessoas com pouco ou nenhum recurso financeiro significava que a qualquer momento o
avanço sobre tais áreas poderia ser posto em cheque.
O povoamento e a colonização do Sertão mineiro foi projetado para ser desenvolvido através de
pessoas pobres com nenhum ou uns poucos escravos. E esta estrutura praticamente não sofreu variações no
decorrer do tempo. Assim, “ o plantel médio na Capitania variou entre 3,7 e 6,5 escravos”
572
. Luna também
chegou a números muito próximos: seus dados demonstram para os anos entre 1718 a 1804, “a absoluta
preponderância do conjunto de senhores com cinco ou menos cativos”.
573
Saint-Hilaire já havia também
demonstrado este padrão de posse de escravos para o ano de 1819. Segundo ele, em Araxá, os senhores que
possuíam oito ou dez escravos eram considerados ricos
574
.
Como conseqüência desta estrutura de posse, um contingente populacional bastante significativo
ficava à margem desta estrutura, ou seja, não tinha acesso às terras, aos escravos e nem conseguiam
ocupações. Eram os que a sociedade considerava como vadios.
Entretanto, é necessário ressaltar que a documentação oferece no mínimo, dois tipos de elementos
que são identificados pelas autoridades como vadios. Há em alguns momentos, uma associação aos pequenos
arrendadores sem escravos, ou seja, aos indivíduos pobres. Todavia, conforme visto anteriormente, os vadios
podiam ser também associados aos sem ocupações que praticavam roubos, e aos que viviam de expedientes.
Analisando a população composta de homens pobres com ou sem escravos, chega-se à conclusão de
que ele é caracterizado por sua,
“... extrema fluidez ... a indefinição que muitas vezes manifestam ante a camada escrava e, em menor escala,
ante a camada senhorial. A indefinição é maior na franja inferior da camada: torna-se amiúde difícil
distinguir os homens livres pobres dos escravos e dos quilombolas, sobretudo se os primeiros são
forros...”
575
A segunda metade do século XVIII foi marcada por sucessivas e agravantes crises econômicas
provenientes da diminuição do volume de ouro extraído, e da manutenção a níveis elevados dos impostos
cobrados. Contudo, estas crises assumiram nesta sociedade um caráter diverso porque juntamente com elas,
assistiu-se, ainda que atingindo apenas uma pequena parcela social, um desenvolvimento econômico e um
crescimento da produção agrícola e comercial. Isto não significa concordar com as teses que defendem que a
agricultura, assim como as outras atividades produtivas, só tenham se desenvolvido a partir da crise da
mineração. Pelo contrário, o século XVIII apresentava uma diversificação econômica grande. Mesmo em
571
FARIA, Sheila de Castro. Op. Cit. p. 50
572
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: Estratégias de
resistência através dos testamentos. São Paulo: ANNABLUME, 1995. P. 80
573
LUNA, Francisco Vidal. Estrutura de posse de escravos. In: LUNA, Francisco Vidal e COSTA,
Iraci del Nero da. Minas Colonial: Economia e sociedade
. São Paulo, Livraria Pioneira Ed. 1982.
p.38.
574
SAINT_HILAIRE. Op. Cit. P. 131
575
SOUZA, Laura de Melo e. Norma e conflito. Aspectos da História de Minas no século XVIII.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999 p. 23
217
torno das áreas de mineração foram surgindo fazendas e roças voltadas para o abastecimento interno da
Capitania, talvez quem sabe, graças ao aprendizado causado pelas grandes epidemias de fome de 1697/8 e de
1700/1 e também da ocorrida em Pitangui em 1713
576
.
“...Assim, a atividade mineradora exerceu sobre a agropecuária
efeito multiplicador bastante grande durante o século XVIII e,
simultaneamente, a agropecuária permitiu a montagem e
garantiu a expansão das atividades mineradoras...”
577
As crises econômicas acentuaram um quadro caracterizado pela carência de moeda circulante, pelo
aumento na concentração de riquezas, pelo crescente endividamento de sua população e pelo aumento da
pobreza. Esta situação de crise econômica pode ser mais claramente visualizada a partir da segunda metade
do século, quando a descapitalização dos grandes homens associada ao preço elevado dos escravos e de
ferros necessários à mineração provocou uma endividamento generalizado
578
. Tal endividamento, causado
pelos preços elevados que se pagava sobre os ferros, já havia sido percebido por Azeredo Coutinho. Para ele,
não seria o alto preço do escravo que provocaria a desgraça do minerador, e sim, a do ferro, “...por que se
gasta e se consome todos os dias e todos os instantes...”
579
O endividamento poderia ser percebido:
“... Na grande quantidade de ações cíveis, devassas e
correspondências particulares do período, encontram-se
referências a acordos estipulados a anos ou mesmo papéis
assinados representando empréstimos ou vendas a prazo. Os
principais credores eram, sem dúvida, os comerciantes...”
580
Ainda que os maiores credores fossem os comerciantes, os homens de patentes também apareciam
como participantes deste quadro econômico. No outro lado desta situação, ou seja, dos devedores, estavam as
pretas forras, os pequenos e médios comerciantes e até mesmo os fazendeiros, pequenos ou não.
Pamplona, depois de incitar os novos sesmeiros a ocuparem as sesmarias dadas por ele após a
conquista de uma parte do sertão, lembrou que aquela era uma oportunidade única, pois eles, homens pobres,
haviam conseguido terras e não precisariam pagar os valores cobrados no mercado e que não corriam o risco
de ficarem devedores a vida inteira sem conseguir saldar a dívida:
“...que toda a sua vida trabalhavam para os pagar sem nunca
poder satisfaze-los e que no fim se achavam sempre
576
GUIMARAES, C. M. e REIS, Liana M. Minas Gerais: agricultura e escravidão.1700-1750. p.
20 artigo não publicado
577
MARTINS, Marcos Lobato. Mineração, agricultura e degradação ambiental em Minas Gerais
nos séculos XVIII e XIX. In: LPH.
Revista de História. N. 4, 1993/4, Dep. História. UFOP.p. 108
578
Sobre esta questão do endividamento na sociedade mineira do século XVIII, ver Silveira, Marco
Antonio. Op. Cit.
579
COUTINHO, J.J. Azeredo. Op. Cit. P. 201
580
Ibidem
218
empenhados, e as suas famílias, em extremosa pobreza, como
eles bem experimentavam...”
581
Entretanto, o próprio Pamplona também era uma pessoa endividada: Além de dever a particulares
era também devedor do Direito de Entrada no Registo do Caminho Novo.
582
Em 1797 de sua fazenda do
Mendanha, escreveu ele a João Roiz de Macedo agradecendo as inúmeras vezes que este o auxiliou, e pedia-
lhe que tivesse mais paciência “...porque me vendo na maior consternação da fortuna botei me a todo o risco
a formar dois engenhos de cana para ver se melhorava da mesma para pagar aos meus credores...”
583
. Uma
outra carta com igual teor foi mandada para o Capitão José Alvares.
584
Há nesta carta um outro aspecto importante. Trata se da mudança dos interesses econômicos de
Pamplona. Se antes o que tínhamos era um homem interessado na conquista de novas terras e na exploração
de ouro, agora com a decadência da mineração, ele claramente mudava de ramo e estava se dedicando a
outras atividades, no caso, a cana de açúcar.
Contudo, Pamplona também era um credor. Há uma carta de sua autoria onde afirma que Antonio
José Bastos iria procurá-lo depois dos dias santos para conversarem sobre as contas que tinha com ele.
585
Através do testamento de Pamplona registrado em 1810, fica-se sabendo sobre a situação financeira
deste homem tão curioso. Após listar todas as pessoas que lhe deviam dinheiro e a quem ele devia, chegou-se
aos seguintes números: Devia 18.277$026 e tinha um crédito de 30.025$668.
586
O endividamento generalizado e a pobreza são fatores essenciais para o entendimento desta
sociedade onde “...um maior número de pessoas dividiam a pobreza
587
. Isto significa postular que quaisquer
que fossem os projetos destinados à região, esta imensa maioria da população fora dos mecanismos
econômicos teria que ser, de uma forma ou de outra, envolvida, engajada ou ainda, “empurrada para fora”.
A solução encontrada foi retirá-la dos grandes núcleos populacionais. Empurrar esta população para
fora significava, no século XVIII, ocupá-la em regiões de fronteira, pois nas vilas não havia trabalho para
todos. O Sertão surge neste contexto como o local por excelência para esta população de vadios ou de pobres.
A eles, caberá a tarefa de povoar esta área, até então, moradia de feras quer fossem índios bravos ou
quilombolas.
O mecanismo de levar a população ao sertão estava diretamente ligado à necessidade de povoar e
civilizar a região. Contudo, este projeto esbarrava num problema maior: a região era habitada por elementos
que o impossibilitavam. Daí, a solução encontrada foi “limpar” a área, eliminando os índios que não
aceitavam ser aldeados, e exterminando os quilombos encontrados.
Neste sentido, as Bandeiras - também chamadas de Entradas, Expedições ou Conquistas - foram
essenciais ao projeto porque graças a elas, grupos armados limpavam ou usando o termo empregado por eles,
“desinfestavam” a área, possibilitando que os entrantes, na sua maioria pequenos fazendeiros, se fixassem e
iniciassem o povoamento. Aos vadios cabia um outro papel: deveriam habitar os presídios, uma espécie de
quartel que tinha como objetivo maior, impedir os avanços de grupos hostis – índios ou quilombolas - sobre
a população fixada.
Os entrantes, com exceção dos líderes, eram em sua quase totalidade homens com poucas condições
financeiras. Buscavam encontrar no sertão a possibilidade de fazer fortuna e de ter acesso a terras que, por
causa das inúmeras dificuldades apresentadas, não eram normalmente interessantes aos grandes proprietários:
“... Pelo que consta o aumento da povoação do Cuieté e mais terras que se forem desinfestando ... que todos
os descobertos a princípio destas minas tem sdo povoadas por homens faltos de fortuna que na mudança
581
Notícia diária e individual...Op. Cit. p. 80
582
Coleção Casa dos Contos. I- 25,29,6 Biblioteca Nacional manuscritos.
583
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Sr Joào Roiz de Macedo. Mendanha, 25 de março de
1797. Biblioteca Nacional - manuscritos I- 10,27,13 n. 2
584
Ibidem
585
Carta de Ignácio Correia de Pamplona a Manoel Pereira Alvim, avisando do envio de um
documento , Mendanha, Biblioteca Nacional - manuscritos. I- 10,27,13 n. 3
586
testamento de ICP. Testamento 1821 cx. 100 SÃO JOÃO DEL REI
219
dos lugares de sua habitação pelos retiros com proveito próprio e alheio procurarão refazer se de seus bens
para pagarem a seus credores...”
588
Francisco Pires Farinho, padre e Diretor dos Índios Coropós, denunciou em uma carta endereçada ao
Governador D. Rodrigo José de Meneses as tentativas que os colonos entrados na região do Xopotó após a
pacificação dos índios estavam fazendo com o objetivo de se apoderarem de suas terras. Dizia que os
colonos, mesmo sabendo que ele estava construindo uma capela que atendesse tanto aos índios como aos
demais moradores, iniciaram a construção de uma outra, desrespeitando assim, uma ordem superior.
Afirmava ainda que “...como na paragem não há número suficiente para sustentar duas Capelas ao
presente, mal poderão sustentar estando unidos a uma Capela pela pobreza dos novos povoadores...”
589
No diário feito durante a conquista do Campo Grande, Pamplona, depois de tomar
posse da Serra da Marcela, reduto segundo ele mesmo de feras, reuniu sua gente com o
objetivo de despedir-se dos que por ali iam ficar. Em um discurso pronunciado depois da
missa e de um “banquete”, incitava os recebedores de sesmarias que:
“...Não se esquecessem de ir povoar as suas fazendas, porquanto
era melhor possui-las ali de graça do que em outra parte como
era ordinário costume por muitos mil cruzados...”
590
Um outro grande problema relacionado às sesmarias era, segundo Pamplona, o tamanho das áreas e
quem as estavam recebendo: para ele uma das causas de não se conseguirem efetivamente povoar e cuidar da
região era o tamanho da sesmarias. As sesmarias doadas possuíam uma extensão de três léguas de terra em
quadra, o que seria em sua concepção uma extensão grande demais. Associava isto ao fato de que a maioria
das pessoas não possuíam condições de manter estas terras, pois não contavam com número elevado de
escravos. Este tamanho exagerado das sesmarias fazia com que grandes áreas ficassem sem controle por parte
do seu proprietário, servindo assim, de esconderijo aos quilombolas e índios. Acreditava que se as concessões
fossem menores, o controle seria mais fácil, pois as pessoas estariam mais próximas umas das outras e
poderiam se socorrer em caso de ataques de um ou de outro grupo:
“...no modo que me tem sido possível tenho dado em parte a
V.Ex.a. das muitas terras que os povoadores delas querem
avançar cada um para si que as sesmarias concedidas aqui neste
país, de três léguas enganosamente se chamam sertão e lhes dão
estes o título fora de registros de três léguas Srs.; é uma
587
SOUZA, Laura de Melo e . Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII Rio de
Janeiro: Ed. Graal, 1982 p. 30
588
Carta do Padre Manoel Vieira Nunes para o Conde Valadares. Sem data. Cuieté. 18,2,6
documento 321. Biblioteca Nacional. Manuscritos
589
Carta de Francisco Pires Farinho denunciando a ereção de uma nova capela para apossar das
sesmarias dadas aos índios. In: RIHGMG
, vol. VII, 1960
220
extensão demasiado... conhecimento do que vou avançando
tenho que concedendo o Ilmo. Sr. Luís Diogo as três léguas e de
várias sesmarias e lhe representam a quem não tem mais
fábrica que somente o seu corpo e destes esta dilatada
compreensão parece as terras desertas e jamais nunca se
poderão chamar povoadas , e por conseqüência nunca isenta de
gentios e calhambolas, e sendo a concessão mais diminutas
ficam nos povos mais conchegados mais hábeis e dispostos para
se socorrerem juntos a qualquer acometimento dos bárbaros
gentios e não sendo assim Sr, nunca se chegara a concluir o
intuito que V.Ex.a. apetece de perfeita povoação destas
terras...”
591
Na realidade, o que Pamplona parece não ter compreendido é que o grande problema enfrentado não
era o tamanho das sesmaria e sim, quem as recebia. Como os recebedores eram em sua maioria pessoas
pobres e com poucos escravos, ficava muito difícil sua plena utilização, facilitando assim, a vida dos
quilombolas ou a dos índios. O problema maior do povoamento do sertão era que estava sendo feito baseado
na pobreza.
Em uma de suas cartas ao Conde de Valadares, Pamplona informa como o
povoamento do Sertão estava sendo levado adiante e como isto resultava em fracassos e
inúmeros problemas. No cerne da questão estava a crítica ao povoamento, feito com base
no que ele percebe como sendo vadios, indicados como ociosos e possuidores dos mais
diversos vícios e a sua extrema pobreza, inviabilizadora do projeto de povoamento:
“...Pelo caminho dos vadios se me faz muito difícil aquela
povoação. Todos aqueles são uma casta de gente dominada pela
ociosidade, e arrastados pelos vícios, e por fim sumamente
590
Notícia. Diária e individual.. p. 80
591
Carta de Ignacio Correia Pamplona ao Governador Valadares. Estância de Santa Maria
Francisco de Salles, em 7.10. 1769. 18,2,6
221
pobres que é o que mais obsta. Manda lhos é o menos, mais é
conservá-los. De que servirá reparti-lhes terras se lhes faltam
todos os meios de as cultivar? Sem dinheiro como hão de eles
comprar armas, pólvora, chumbo e bala, enxadas, foices,
machados, toucinho, sal e mais coisas precisas a lavoura e a
subsistência? Se a minha fortuna estivesse mais bem segura
ânimo tinha eu para toda a despesa, mas empenhado como
estou o não posso fazer...”
592
Pamplona sugere que o rei poderia lhe pagar um soldo e que ele, com este dinheiro, poderia investir
no projeto de povoamento e financiar os povoadores nas suas dificuldades.
As próprias expedições de ataques aos índios ou aos quilombolas que deveriam receber ajuda dos
moradores das regiões afetadas, geravam um gasto avultado para a época. Combater quilombos e índios
significava não apenas colocar a vida das pessoas em perigo mas, principalmente, gastar muito dinheiro com
alimentação, armas, munições, e ainda correr o risco de se ver sem autoridade frente aos moradores de alguns
locais, porque era comum que a autoridade requisitasse ajuda e estes não colaborassem alegando diferentes
razões. Ignácio Correia de Pamplona inúmeras vezes reclamou com o Conde de Valadares sobre este
problema. As pessoas simplesmente não queriam colaborar com as expedições. De acordo com ele os
moradores que ele deixou vivendo no Campo Grande seriam:
“... Gente inconciderada que estão todos os dias experimentando
dano dos calhambolas, percas de escravos, que lhes carregam e
lhes matam e não se atrevem para o seu sossego a fazer uma
leve despesa...”
593
João Pinto Caldeira também conheceu este problema de perto. Em sua carta ao
Conde de Valadares reclamava que não tinha pessoas para a conquista e nem bestas para
transportar os mantimentos. As pessoas não queriam auxiliar a bandeira e que “... muita
parte desse povo não fazem apreço nem caso de serem notificados...”
594
592
Ibidem
593
Ibidem
594
Carta de João Pinto Caldeira ao Conde de Valadares, em 20.06.1770. Arquivo Conde de
Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) documento. 74 18,2,6
222
Em uma outra carta ele afirmava que: “...que tendo saído de sua vila há um mês e
oito dias, ainda não tinha conseguido reunir as condições para entrar na Conquista...”
Isto ocorreu no mês de junho. Em agosto, escreveu outra carta ao Governador dizendo que pretendia
sair no dia 15 deste mesmo mês “...com a gente que tiver ou pouca ou muita e mais não espero porquanto
Ilmo Sr a gente capaz para esta empresa os menos ocupados uns fogem outros os comandantes o querem
valer e tudo são desculpas...”
595
Além do que os moradores dos distritos em muitos casos tentavam - via legalidade - não colaborar
nas expedições. Os moradores de Santa Cruz do Salto, da Boa Morte e de São Gonçalo enviaram uma Petição
ao Governador alegando não poderem colaborar com o abastecimento de 80 mulas para as tropas que seriam
enviadas ao Campo Grande, porque eles já haviam participado da anterior, comandada por Domingos
Moreira Ganja e que haviam entrado com mais de “... mil e quinhentos alqueires de farinha e trezentos de
feijão e com 200 capados pagos a três oitavas e meia e sal que pagaram fora o mantimento; vieram a pagar
e uns a dez e outros a doze oitavas de ouro de que experimentamos uma sucinta derrama o que satisfizemos
ao comandante Antonio Francisco França...”
596
.
A Petição sugere ainda que os moradores de Passatempo concorram com a ajuda.
Na realidade, o que Ignácio Correia de Pamplona e João Pinto de Caldeira não
percebiam ou não interessava a eles perceber, é que esta população era composta em sua
maioria por pessoas com pouco ou nenhum recurso, e que contribuir com estas expedições
significava um transtorno financeiro enorme com o qual eles não podiam arcar.
A pobreza destes povoadores propiciava um outro tipo de problema. Como a região
ocupada era, por maiores que fossem as tentativas em contrário, locais de moradias de
índios e quilombolas, a existência e o desenvolvimento das terras estavam sempre em
risco, e ele se tornava muito maior e mais grave por envolver pessoas pobres que possuíam
na maioria das vezes de um a três escravos. Ter um deles ou todos roubados pelos
quilombolas ou assassinados pelos índios, significava cair na mais absoluta miséria e
retroceder com os planos de povoamento para a região.
As listagens dos moradores de algumas localidades do Oeste de Minas Gerais,
elaboradas em 1717, pode ser útil para perceber esta questão. Ainda que elas tenham sido
feitas em um período anterior às expedições de Pamplona, elas nos remetem a uma
realidade que praticamente não sofreu mudanças no tempo. De um total de 529
595
Carta de João Pinto Caldeira para Conde de Valadares, em 01.08.1770. Arquivo Conde de
Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) documento 78, 18,2,6
223
proprietários, 252, ou seja, 47,64% possuíam de um a três escravos. Se a este universo
forem acrescentados os proprietários que possuíam de quatro a nove escravos que podem
ser identificados como remediados, (171 – 32,32%) tem-se um total de 423, ou 79,96%. Os
senhores que possuíam acima de 10 cativos resumiam-se a 106 indivíduos que juntos,
representavam apenas 20,04%.
Estes resultados sugerem que eram os proprietários com poucos recursos e escravos
que entravam nas áreas de fronteiras arcando com o ônus deste empreendimento.
Observando cada uma das localidades em separado, excetuando-se Caminho Novo
(45,45%), em todas as demais a porcentagem de pequenos proprietários de escravos, ou
seja, possuidores de um a nove escravos, não é inferior a 60%. Enquanto os proprietários
que possuíam mais de 10 escravos estão abaixo de 25%, com exceção novamente de
Caminho Novo (54.55%) e de Córrego (38.89%).
Tabela 7 -Arraial Velho –1717
Faixas de posses de escravos
Total de proprietários
% Total de escravos %
1-3
25 47.17 42 13.55
4-9
17 32.08 107 34.52
>10
11 20.75 161 51.93
TOTAL
53 100 310 100
Tabela 8-Rio das Mortes Pequeno –1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1- 3
11 45.84 20 12.74
4- 9
8 33.33 44 28.02
>10
5 20.83 93 59.24
TOTAL
25 100 157 100
Tabela 9-Bichinho - 1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
17 37.78 33 11.66
4-9
19 42.22 116 40.99
596
Petição dos moradores de Santa Cruz do Salto, da Boa Morte e de São Gonçalo ao Conde de
Valadares, em 2.8.1770. Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos)
documento 97. 18,2,6
224
>10
9 20.00 134 47.35
TOTAL
45 100 283 100
Tabela 10- Caminho Velho - 1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
7 31.82 15 11.20
4-9
10 45.45 52 38.80
>10
5 22.73 67 50.00
TOTAL
22 100 134 100
Tabela 11-Córrego–1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
8 44.44 19 10.06
4-9
3 16.67 17 8.99
>10
7 38.89 153 80.95
TOTAL
18 100 189 100
Tabela 12-Rio Abaixo –1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
5 38.46 11 11.83
4-9
5 38.46 35 37.63
> 10
3 23.08 47 50.54
TOTAL
13 100 93 100
Tabela 13-Itaberaba e Norvega –1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
21 42.86 37 11.25
4-9
18 36.74 107 32.52
>10
10 20.40 185 56.23
TOTAL
49 100 329 100
Tabela 14-Caminho Novo –1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
0 - 0 -
4-9
10 45.45 70 18.47
>10
12 54.55 309 81.53
TOTAL
22 100 379 100
Tabela 15-Vila de São João –1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
54 56.84 107 19.74
4-9
21 22.11 110 20.30
>10
20 21.05 325 59.96
TOTAL
95 100 542 100
225
Tabela 16-Caminho do Campo –1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-4
5 38.46 13 15.12
5-9
5 38.46 31 36.04
>10
3 23.08 42 48.84
TOTAL
13 100 86 100
Tabela 17-Brumado–1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
23 58.97 47 28.14
4-9
14 35.90 85 50.90
10
2 5.13 35 20.96
TOTAL
39 100 167 100
Tabela 18-Lagoa Dourada–1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
13 50.00 22 22.00
4-9
12 46.15 68 68.00
>10
1 3.85 10 10.00
TOTAL
26 100 100 100
Tabela 19-Ponta do Morro e Prados –1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
28 47.46 52 14.86
4-9
18 30.51 109 31.14
>10
13 22.03 189 54.00
TOTAL
59 100 350 100
Tabela 20-Rio Acima –1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
35 68.63 62 35.22
4-9
11 21.57 62 35.22
>10
5 9.80 52 29.56
TOTAL
51 100 176 100
Tabela 21-Somatório das localidades–1717
Faixas de posses de escravos Total de proprietários % Total de escravos %
1-3
252 44.45 480 8.73
4-9
171 33.33 1013 25.40
>10
106 22.22 1802 65.87
TOTAL
529 100 3295 100
226
Através de dados recolhidos e analisados por Luna, toma-se contato com um universo muito
parecido ao exposto acima . Em São João del Rei no ano de 1718
597
havia um total de 393 indivíduos, dos
quais 50 eram proprietários e 343 escravos. Analisando a posse de cativos distribuídos por proprietários, o
referido autor percebeu que 30 senhores (60,00%) possuíam um, ou no máximo cinco escravos, assim
distribuídos:
Tabela 22-Proprietários que possuíam no máximo 5 cativos – São João del Rei,
1718
Número de escravos possuídos Proprietários %
1
14 28.00
2
10 20.00
3
1 2.00
4
1 2.00
5
4 8.00
Fonte: Luna, Francisco Vidal. Características...
Os senhores que possuíam de 6 a 21 escravos perfaziam um total de 16 pessoas
(33,00%) e com mais de 21 cativos, apenas 4 senhores (7,00%). A distribuição de cativos
por proprietários estava estruturada desta forma:
Tabela 23-Proprietários que possuíam mais de 6 cativos – São João del Rei, 1718
Número de escravos possuídos Proprietários %
6 a 10
9 18.00
11 a 20
7 14.00
21 a 40
3 6.00
41 e +
1 2.00
Fonte: Luna, Francisco Vidal. Características...
Os números, sejam os provenientes da listagem de moradores feita em 1717, ou os
fornecidos pelo arquivo Casa dos Contos de 1718, são muito próximos, e indicam uma
597
LUNA, Francisco Vidal. Características da massa escrava em Minas Gerais. Relatório final.
São Paulo: IPE, FINEP, 1980.
227
estrutura de cativos disseminada pela população que não possuía muitas condições
econômicas.
Comprovando que esta realidade não sofreu alterações significativas no tempo, a
listagem de moradores de Cuieté (tabela 18) para o ano de 1770 demonstra praticamente o
mesmo resultado: Dos 18 proprietários listados, 14 possuíam de um a nove escravos
(77,78%), enquanto que quatro eram proprietários com mais de 10 escravos (22,22%).
Tabela 24-Cuieté -1770
Faixas de posses de escravos
Total de proprietários
% Total de escravos %
1-3
8 44.45 11 8.73
4-9
6 33.33 32 25.40
>10
4 22.22 83 65.87
TOTAL
18 100 126 100
Através destes números e de outros indícios já vistos, pode-se inferir que a expansão da fronteira no
Oeste de Minas Gerais foi feita utilizando-se de vadios, homens pobres ou pequenos proprietários com alguns
poucos escravos. Este universo populacional significa que eram pessoas que não tinham muito a perder
deixando seus pertences para trás e entrando numa região desconhecida. Aos que possuíam alguns escravos,
significava obter terras para assim, tentar “fazer fortuna”. Logo, a aventura de se introduzir rumo ao
desconhecido, de travar batalhas com quilombolas ou com índios, e ainda poder receber indígenas como mão
de obra e terras, era uma excelente chance de mudar suas condições de existência. Aliás, estas eram as
maiores promessas para atrair estes homens: a possibilidade de mudar totalmente de vida, obtendo sesmarias
e repartindo os índios capturados entre os participantes das bandeiras. O butim era assim, uma possibilidade
para propiciar esta mudança.
Entretanto, foram estas características que acabaram por inviabilizar o Projeto
Civilizacional. Como contar com estes grupos com parcos recursos no momento de
defender a região? Sem dinheiro e sem escravos, estas terras ficavam a mercê dos
interesses de índios e de quilombolas em atacá-las ou não. Em caso de ataque, os entrantes
pouco ou nada poderiam fazer e assim, na maioria das vezes, estes colonos morriam ou
perdiam os poucos escravos que possuíam. Se o processo de entrada se mostrava como
uma aventura que poderia ser muito lucrativa para estes homens, logo esta imagem positiva
se desfazia e ficava a dura realidade: o Sertão era uma terra que abrigava pessoas que não
estavam dispostas a facilitar a vida destes colonos e em escala maior, das autoridades que
228
tentavam controlá-las. Assim, pode-se afirmar que a pobreza foi um dos elementos que
mais inviabilizou o Projeto Civilizacional pensado por Pombal, e colocado em prática por
diversos governadores e auxiliares. A outra ponta desta inviabilização ficou a cargo dos
índios e dos quilombolas.
229
CONCLUINDO UMA HISTÓRIA...
A Lenda Quilombola termina com a execução de Ambrósio,
Rei do Quilombo, de sua Rainha e demais líderes realizada por
um carrasco indígena – segundo a Lenda, “um horripilante
batráquio”. O grande líder de centenas de homens morreu
recusando-se a aceitar o seu cativeiro e o de seu povo. Além
destas, houve também a morte dos guerreiros e da população
quilombola durante e após a batalha e os que escaparam com vida
foram re-escravizados. Foi um fim trágico para todos aqueles que,
durante anos, conseguiram desenvolver um tipo de vida
alternativo dentro do sistema escravista.
Melhor sorte não teve também o seu delator: morreu vítima da vingança de um casal quilombola:
Cabinda e Catarina. As tropas que de maneira cruel atacaram o reduto também não saíram completamente
vitoriosas do embate, uma vez que ninguém conseguiu localizar o grande tesouro do grupo, e assim a maior
parte das riquezas prometidas ficou perdida.
O fracasso econômico desta expedição que havia partido para destruir o Quilombo do Ambrósio
pode ser encarado como uma forma simbólica que o autor desta história encontrou para demonstrar que, na
realidade, a conquista deste povo e de uma forma mais ampla, de grande parte do povo que vivia nos Sertões,
não foi totalmente efetivada por diferentes motivos.
A Lenda Quilombola foi utilizada para introduzir este trabalho porque ela trazia elementos que de
uma forma ou de outra, estariam presentes no texto que então se propunha desenvolver. Agora, finalizado
este mesmo texto, torna-se necessário concluí-lo. Nada melhor para isto do que retomar as questões surgidas
a partir da leitura desta história e que haviam sido indicadas como norteadoras do trabalho.
A primeira delas questionava o que viria a ser o Sertão, sua importância para a Capitania, e buscava
entender os conflitos desenrolados em seu espaço. Vejamos. Durante todo o século XVIII a presença
constante de quilombolas, de índios nada propensos a facilitar o controle sobre suas regiões e de hordas de
pessoas sem trabalhos fixos foi uma realidade com a qual a população em Minas Gerais teve que conviver.
Na proporção que diminuíam as extrações de ouro e se mantinha a cobrança de impostos devidos à
Metrópole, novas áreas passavam a ser incorporadas como solução para os problemas econômicos, sociais e
políticos na Capitania. Estas áreas buscadas estavam fora do sistema colonial. Eram regiões afastadas e sem
qualquer tipo de controle. Eram os Sertões, vistos pelas autoridades mineiras como áreas difíceis de serem
“domesticadas” porque eram habitadas por “feras”. Porém eram regiões essenciais aos projetos que visavam
desenvolver a capitania de Minas Gerais, e consequentemente, aumentar a extração de riquezas enviadas para
a Metrópole, quer seja através de impostos provenientes do ouro ou da agricultura.
O segundo e o terceiro questionamentos diziam respeito ao entendimento que a sociedade fazia dos
moradores do Sertão, e de onde teriam partido as idéias a respeito de índios, negros e mais especificamente,
escravos fugidos e vadios. Como justificar seus aniquilamentos, a expansão por suas terras e a suposta defesa
de um território ameaçado? A solução encontrada pelas elites passou pelo uso de imagens negativas
previamente elaboradas, que os associavam aos bárbaros. Assim, Sertão passou a ser também terra de
bárbaros, incivilizados.
Desta forma, durante todo o período colonial e mesmo os posteriores, criou-se para as áreas
sertanejas imagens negativas, e o mesmo foi feito com relação a quem vivia ali, justificando-se uma série de
atitudes de avanço sobre estas regiões e o aniquilamento de sua população. Entretanto, de nada adiantaria
“limpar” estas áreas se elas não fossem povoadas e colonizadas por pessoas que aceitassem o controle. Logo,
era importante também manter esta região ocupada por determinadas populações para assegurar a posse na
área.
A importância destes grupos que habitavam as terras do
Sertão e seus apoios, ou os confrontos abertos contra as políticas
de expansão sobre estas áreas foram a tônica da quarta questão. É
230
evidente que as autoridades desenvolveram políticas de “limpeza”
para a região, levando em conta as diferenças entre cada um
deles. De uma forma geral, pode-se dizer que para cada um dos
grupos que habitavam os Sertões foram desenvolvidas políticas
específicas: aos índios identificados como bravios, à Guerra Justa
e a sua conseqüente escravização; aos negros fugitivos e
aquilombados, às tentativas de recaptura e ataques, pois eram
propriedades de alguém e deveriam ser reconduzidos ao cativeiro
ou então, se fossem extremamente perigosos e não aceitassem a
recondução, deveriam ser mortos; aos vadios, o envio compulsório
para lá como elementos capazes de promover a ocupação
definitiva da região. Desta forma, eles que incomodavam nas
vilas, passaram a ser usados como barreira ao avanço de índios e
de quilombolas. Aos homens pobres que através do mercado de
compra ou de doações de sesmarias não teriam condições de
conseguir terras, foi dada a possibilidade de participar das
expedições de ataques e limpezas destas áreas e de obter assim,
terras e mão-de-obra indígena. Era uma chance para tentar fazer
a vida.
O último ponto levantado refere-se ao resultado de todas
estas políticas propostas para civilizar o Sertão. Teriam dado
certo? A resposta foi negativa em praticamente todos os pontos
analisados. O Projeto Civilizador pensado pelas elites do século
XVIII resultou em fracasso devido, principalmente, à pobreza de
seus moradores que ficavam a mercê de ataques de índios e de
quilombolas, correndo o risco de perderem o pouco que tinham ou
mesmo a vida, e a falta de disposição de índios e quilombolas para
“cooperarem” com as elites e assim, facilitar o controle sobre
estas áreas. Durante todo o período de escravidão no Brasil, houve
também quilombos demonstrando que as autoridades, quando
muito, conseguiam apenas espantar alguns escravos para outras
áreas, matar ou prender uns poucos. Com relação aos índios,
praticamente pode ser dito a mesma coisa. Vários grupos
continuaram vivendo nas áreas mais afastadas da região. Para o
Sertão Oeste, houve sim, um deslocar destes grupos em direção a
Goiás e Mato Grosso, mas continuavam a fazer incursões à
Capitania mineira. A utilização dos vadios como povoadores
231
também pouco resultado mostrou. Como eram pessoas pobres,
sem condições de arcar com as despesas e mesmo com a
manutenção de suas terras e defesa, rapidamente abandonavam a
região e voltavam a tentar a vida nas cidades. Iniciava-se
novamente o mesmo processo de controle sobre os que a sociedade
encarava como vadios e sua conseqüente expulsão.
Se este fracasso pode ser identificado de várias maneiras
durante o período colonial, ao analisar o mapa e a sociedade
brasileira percebe-se que seus reflexos chegaram até os dias
atuais:
1. Mesmo com várias tentativas feitas no decorrer do tempo, pouco ou nada foi alterado nas regiões do
interior do Brasil. Ainda hoje a população sertaneja deste país vive praticamente à margem do que
acontece nos grandes centros políticos e econômicos, demonstrando que o processo de ocupação do país
ainda não está plenamente efetivado. A grande concentração de cidades e de populações nas áreas mais
próximas ao litoral é um indicativo desta situação e remete à conjuntura histórica da formação e
desenvolvimento dos centros econômicos brasileiros. Os Sertões ainda são regiões desconhecidas pela
maioria das pessoas e sua natureza é vista como hostil e seu território abriga escassa e dispersa
população se comparado com o litoral. Entretanto, paradoxalmente, o sertanejo é encarado para alguns
como o depositário da cultura nacional que estaria mais preservada junto a estes grupos porque foram os
que teriam sofrido menos influências externas. Seriam estes os verdadeiros “brasileiros”.
2. A lembrança social sobre a existência de índios e de quilombolas em determinadas localidades é algo
marcante na cultura popular brasileira. Hoje em dia, em praticamente todo o território nacional existem,
por exemplo, danças folclóricas que retratam momentos de intercâmbio cultural entre estas etnias e seus
contatos sociais com diferentes grupos. Algumas envolvem elementos participantes que podem ser
associados a escravos fugidos e aos indígenas, e os contatos que tiveram com o restante da sociedade.
Tais danças demonstram de maneira performática supostos embates, disputas, mortes e aprisionamento e
re-escravização feitas ora por indígenas, ora por escravos. Nestas encenações são cantadas músicas que
demonstram as imagens depreciativas que um determinado grupo possuía a respeito do outro, deixando
claro, dentre outras coisas, a incapacidade de aceitar as diferenças do Outro. Além disso, tais danças
executadas desde pelo menos o século XIX reafirmam a importância e a generalização da presença de
negros e indígenas, e os conflitos sociais em diferentes áreas brasileiras. Se estas presenças não tivessem
feito parte do cotidiano das populações, elas provavelmente não teriam registrado isto e, muito menos,
teriam mantido as encenações em seus repertórios culturais. Desta forma, as interações entre estes
grupos foram absorvidas e recriadas pelo folclore brasileiro para serem executadas em épocas de festas
religiosas ou profanas, demonstrando que as localidades que em algum momento conviveram com estas
etnias guardaram algum tipo de memória sobre isto.
3. Ainda que muitos quilombolas tenham sido recapturados ou mortos, e diferentes povos indígenas não
tenham conseguido sobreviver física ou culturalmente ao avanço da sociedade branca por suas áreas, de
uma forma ou de outra, alguns destes grupos conseguiram desenvolver mecanismos que capacitavam a
sua manutenção no decorrer do tempo. Ao se tomar conhecimento do número de comunidades de
descendentes de quilombolas e terras de negros, ou ainda de tribos indígenas espalhadas pelo território
nacional que hoje em dia lutam para conseguir a posse efetiva de suas terras assegurada pela
Constituição, percebe-se que a luta travada entre uma elite dominante controladora de terra e de poder e
a de grupos dominados, quer sejam índios ou afro descendentes, anda não acabou.
4. As elites brasileiras e seus partidos ligados à preservação de interesses que privilegiam
claramente a concentração de terras nas mãos de uns poucos, e a manutenção do
domínio sob uma imensa maioria da população alijada de quaisquer benefícios, têm
ainda hoje representatividade ampla. São os novos Pamplonas que ainda buscam
232
transformar o Brasil e toda sua riqueza cultural numa imensa aldeia criada nos moldes
estrangeiros. Pamplona sonhava em ver o Sertão transformado numa parte da Europa.
Nossos líderes preferem, ou percebem que assim conseguem maiores privilégios,
transformar o país numa parte de um “mundo globalizado”, onde a globalização nada
mais é do que, dentre outras coisas, a perda da identidade de um povo e a manutenção
de uma enorme diferença entre as camadas da sociedade – características essenciais à
manutenção desta forma de governar.
Assim, analisar as trajetórias percorridas durante o século XVIII em Minas Gerais, conhecer as idéias
acerca das populações que habitavam o Sertão, acompanhar as expedições enviadas, e entender o projeto
civilizacional proposto para a Capitania, significaram na realidade, uma tentativa de entender o país hoje.
Entender suas diferenças sociais, econômicas e culturais. Entender também não só a dispersão de nossa
população, mas o processo que nos levou a isto e mais ainda, os mecanismos de exclusão social tão
competentemente orquestrados por nossas elites no passado e ainda no presente.
233
Parte 6 - FONTES E BIBLIOGRAFIA
I – Fontes Primárias Manuscritas
A- Biblioteca Nacional – RJ:
Arquivo Conde de Valadares:
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Conde de Valadares, Estância de São Simão 10.10.1769. Arquivo
Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6.
Relatório de Cardoso de Souza para Conde Valadares. Local: Vila Vitória do ES. 15.9.1769 . Arquivo Conde
de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 documento 301.
Carta de Manoel Jacome Sueiro para Conde de Valadares. Local: Tejuco. 7.02.1769. Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,3,5 . documento. 233.
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valadares . s/data. Arquivo Conde
de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 documento 7.
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valadares Estância de São Simão, em 30.3.70.
Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 documento 57.
Carta de Paulo Mendes Ferreira ao Governador Conde de Valadares, em novembro de 1769 Arquivo Conde
de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 documento não identificado.
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Conde de Valadares.15.11.1769. Arquivo Conde de Valadares.
Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 documento 19.
Carta de Manoel de Jesus Maria da Aldeia da Vila do Pomba 30.9.70 - Arquivo Conde de Valadares.
Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6. documento 112.
Carta de Manoel Roiz da Costa ao Conde de Valadares em Borda do Campo em outubro 70 Arquivo Conde
de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,4 documento 66.
Carta de João Seixa da Costa ao Conde Valadares em 28.8.70, Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca
Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,3,5 documento 25.
Carta da Câmara de Sabará ao Conde Valadares, em 30.12.1769. Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca
Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,3,6. documento 116.
Carta De Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valadares, Tejuco, 3.4.70 Arquivo
Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,3.
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valadares em 15.11.69. Arquivo Conde de Valadares.
Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6.
Carta de João Ribeiro de Freitas ao Conde de Valadares em 24.9.1769. Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Cód. 18,3,5 documento 124.
Carta de Ignácio Correia Pamplona ao Conde de Valadares em 15.5.1770. Arquivo Conde
de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Cód. 18,2,6 documento 61.
Carta de Ignácio Correia Pamplona ao Conde de Valadares em 22.9.1770. Arquivo Conde
de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Cód. 18,2,3 documento 8.
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Conde de Valadares. Sem data. Arquivo Conde de Valadares.
Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6.
Carta de João Ribeiro de Freitas para Conde de Valadares, em 24.09.1769 . Vila de São
José . Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice:
18,3,5 documento 124.
Carta de Ignacio Correia Pamplona ao Governador Valadares. Estância de Santa Maria
Francisco de Salles, em 7.10. 1769. Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional,
Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6.
Carta de João Pinto Caldeira ao Conde de Valadares, em 20.06.1770. Arquivo Conde de Valadares.
Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 documento 74.
Carta de João Pinto Caldeira para Conde de Valadares, em 01.08.1770. Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 documento 78.
234
Petição dos moradores de Santa Cruz do Salto, da Boa Morte e de São Gonçalo ao Conde
de Valadares, em 2.8.1770. Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de
manuscritos. Códice: 18,2,6 documento 97.
Memória que se deve observar na derrota que tem de seguir o Cap. Antônio Cardoso de Souza para a
conquista do gentio a que vai destinado e do que há de praticar nesta importante diligência. De Conde de
Valadares para Antonio Cardoso de Souza, Vila Rica, 9.4.1769 Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca
Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 documento 308.
Carta do Padre Manoel Vieira Nunes ao Conde de Valadares. Sem data. Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice 18,2,6 documento 321.
Carta de Gabriel Alves Costa para Conde de Valadares, em 12.03.1769, no Presídio do Cuiethé. Arquivo
Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice:18,2,6 Documento 318.
Memória que se deve observar na derrota que tem de seguir o Cap. Antônio Cardoso de Souza para a
conquista do gentio a que vai destinado e do que há de praticar nesta importante diligência 9.4.1769. Arquivo
Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6 documento 308.
Carta de Paulo Mendes Ferreira, Comandante do Cuieté ao Governador Valadares, em
novembro de 1769. Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de
manuscritos. Códice: 18,2,6.
Carta de Paulo Mendes F. Campelo ao Conde de Valadares, em 23.4.1770, Cuieté.
Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6
documento. 229.
Instrução e despedição que faz desta Estancia de São Simão do Rio da Ajuda da ordem do Ilmo Exmo Sr
Conde de Valadares e General da Capitania de Minas Gerais, no dia 4 de setembro de 1769 Arquivo Conde
de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos – Códice: 18,2,6 documento 3.
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Governador Valadares, em 15.11.1769 Arquivo
Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6.
Documento 19
Carta que Paulo Mendes Ferreira Campelo, Comandante do Arraial do Cuiethé enviou ao Governador
Valadares em novembro de 1769.Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos.
Códice: 18,2,6.
Roteiro da paragem do rio Doce para Serra da Escadinha de 1770 - Arquivo Conde de
Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice: 18,2,6. documento 165.
Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice. 18,2,6
documento 111.
Carta de Manoel Rodrigues da Costa para o Sr.. Juiz ordinário Antônio Gonçalves Monte. Jan.1770.
Arquivo Conde de Valadares. Biblioteca Nacional , Seção de manuscritos. Códice: 18,3,5 documento 88.
Carta de Liberato J. Cordeiro ao Conde de Valadares, Arquivo Conde de Valadares.
Biblioteca Nacional, Seção de manuscritos. Códice. 18,2,5 documento 216.
Arquivo Papéis Vários:
Carta do Conde de Serzedas para Antonio Pires de Campos 15.10. 1733 Documento. 18,
Biblioteca Nacional 1,4,1 Papéis Vários.
Carta do Conde de Noronha para João de Godoi Pinto da Silveira Arraial de Prairas
11.1.1754 (Goiás) , Biblioteca Nacional documento. 17 - 1,4,1 papéis vários.
Carta do Conde de Noronha ao Sr Manoel de Campos Bicudo. 16.4.1753. Documento. 19 -
Biblioteca Nacional 1,4,1 Papéis Vários.
Carta do Conde Valadares sem indicação de destinatário. Vila Rica, 9.12.1772. Papéis
Vários -Biblioteca Nacional manuscritos – 1,4,1 . Documento 16.
Arquivo Casa dos Contos:
Ordens sobre a arrecadação e despesas - Ignacio Correia de Pamplona. Casa dos Contos. Biblioteca Nacional,
Seção de manuscritos I- 25,8,2 .
235
Carta de Ignácio Correia de Pamplona ao Sr João Roiz de Macedo. Mendanha, 25 de
março de 1797. Coleção Casa dos Contos. I- 10,27,13 n. 2.
Carta de Ignácio Correia de Pamplona a Manoel Pereira Alvim, avisando do envio de um documento ,
Mendanha, Coleção Casa dos Contos I- 10,27,13 n. 3.
Documentos avulsos:
COSTA, Cláudio Manoel da. Memórias e notícias referentes a Província de Minas Gerais. II. 36,9,30.
Cópia de uma carta do padre Pero Rodrigues, Provincial da Província do Brasil da Companhia de Jesus para
o padre João Alvares da mesma companhia, assistente do padre Geral, Bahia, 1.5.1697 , Biblioteca Nacional
Códice: I- 31,28,53.
B – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – RJ:
Representação dos oficiais da Câmara de V. Nova da Rainha para D. Maria I. Arquivo Ultramarino IHGB .
caixa 142. Documento 53 CD 42 Local: Vila Nova da Rainha. 3.1.1796
Carta de Bernardo José de Lorena, governador das minas para D. Rodrigo de Souza
Coutinho, dando cumprimento a sua carta de 22.8.1796, remetendo 48 caixotes com
plantas vivas, ornatos, produtos artificiais, móveis domésticos e armas dos índios.
30.3.1799 . Arquivo Ultramarino. caixa.148, documento. 12. CD. 43
Carta de Luis Diogo para Francisco Xavier Furtado de Mendonça enviando relaçõ e mapas
das marchas que se seguiram na diligência da mostra geral, iniciada em agosto de 1764 e
terminada em dezembro. 6.3.1765. Arquivo Ultramarino. caixa 85 documento. 34, CD 24.
Carta de Conde de Valadares a João da Silva Tavares, em 3.7.1772. Arquivo Ultramarino.
caixa. 103, documento 6, CD. 29
Carta de Conde de Valadares ao Marquês de Pombal. Em 20.11.1772. Arquivo
Ultramarino. caixa 103. Documento 87, CD 30
C – Arquivo Nacional – RJ:
Ofício do Superintendente da Fazenda de Santa Cruz, Manoel Martins do Couto Reys ao Ilmo e Exmo. Sr.
Francisco José Vieira, em 9.1.1822 Arquivo Nacional. caixa. 507
D – Arquivo Público Mineiro – BH:
SC Códice 159 fls. 31 v
SC 49. P. 81;82. 1741
SC Códice 163. Fls. 53
SC Códice 04, fls. 790-793
SC Códice 260 fls. 16 e 17
SC Códice 76 fls. 85v-86
SC Códice 84 fls. 108v-109
SC Códice 32 fls. 92v-93
SC- 130, fls. 55 e 56v.
SC 11. P. 118,118v.
SC 156 Livro de Sesmarias. 1767 Arquivo Público Mineiro
236
SC Códice 15. P. 109v 110
SC Códice 45 p. 64v 65
SC 241. P. CÓDICE. P. 70v
SC Códice 114. Fls. 28v-29
SC Códice 50 fls. 80-82
SC Códice 215 fl. 2v-3v; Códice 56, fl. 102v-103v; Códice 67, fl. 26; Códice 165, fl. 42
SC Códice 50, f. 90-96v
SC Códice 50. Fl. 90-96v.
SC Códice 35 documento. 110
SC Códice 35. Documento 110
SC 178 p. 10
SC Códice 177 p. 67
SC Códice 260 fls. 44v-45
CMOP. Códice 63 fl. 174
SG Códice 50 fl 43-44
SG Códice 159. P. 83v a 85. 11.12.1768
SG Códice 215. Fl. 2v-3v
SG Códice 29 documento 129.
SG Códice 60 fl. 118
Carta sobre ataques que se fizeram a vários quilombos. 12.7.1760 p. 5v -7 APM - SC 130 P Códice.
Ofício de Guido T. Marlière ao Presidente de Província de Minas Gerais. Em 12 de
setembro de 1823. APM. SP JGP 1/8 caixa. 4
Alvará de D. José de 4 de abril de 1755. Códice 50, fl 71 APM
Carta de Sesmaria de Domingos Vieira da Mota, em 6.4.1754. SC 106 p. 140 APM
Relatórios dos Diretores de Índios .SG 04,07,12,15,20,21,22,24. Arquivo Público Mineiro
Carta de Guido T Marliere ao Tenente Coronel Inspetor Director Geral de índios - Quartel de Guidoval.
1.10.1823 Junta do Governo Provisório JGP 1821/1824 - Sub-Série: Diversos- SP - Caixa 5 JGP 18
Carta do Rei para o Governador da Capitania do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Meneses,
em 30.1.1701. Cód. 952, vol 12 p. 72
Carta Régia do Governador sobre a formação de aldeias de ìndios na Comarca do Rio das
Velhas para dispersar negros fugitivos. 4.11.1714. SC 04
Carta sobre ataques que se fizeram a vários quilombos , em 12.7.1760 - SC 130
E – Museu dos Inconfidentes – São João del Rei:
Testamento de Ignácio Correia de Pamplona -Test. 1821 caixa.100 São João del Rei
Inventário de Faustina Gonçalves. 1º Ofício cód. 10, auto 375 – 1750 Freg. Guarapiranga.
Inventário do Capitão Antonio Alvarez Ferreira. 1º Ofício cód. 36, auto 843 – 1750 Freg.
Guarapiranga.
237
II- Fontes Primárias Impressas
Carta de Pedro Maria Xavier d’Ataíde e Mello ao Rei de Portugal, em 20.11.1806. Vila
Rica. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano 11, 1906 p. 294
Carta de Gomes Freire de Andrade aos Vereadores da Câmara de Vila Rica, em 16.6.1746.
In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Jan-jun 1903
Carta ao Provedor da Real Fazenda em 15.11.1774. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro vol. 84, p. 101
Carta de D. Marcos Noronha. Correspondências com a Corte. 20.1.1751- SDEGO Livro
192. P. 43. Apud: CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás. 1749-1811.
São Paulo: Nobel; Brasília:INL, 1983. P. 71
Carta de D. Marcos Noronha ao Ouvidor Geral Agostinho Luis, em 4.10.1751. SDEGO.
Livro 192 p. 211v. Apud: CHAIM, Marivone Matos. Op. Cit. P. 83-84
Regimento de hua portaria que se deu no Caminho dos Guayazes para se conquistar o gentio Caiapó -
Caminho dos Guayazes, no sítio do Payva, 18 de dez de 1736 -Conde de Sarzedas. p.120-121 Documentos
Interessantes Arquivo de São Paulo. Typ Cia Industrial de São Paulo. n. 22 1896.
Registro de hum bando sobre se darem por captivos os gentios que se apanharem p. 153-4 - Dado nesta Vila
Boa a 7.12.1740 – Documentos Interessantes
. Arquivo de São Paulo. Typ Cia Industrial de São Paulo. n. 22
Regimento que há de observar o coronel Antonio Pires de Campos no estabelecimento dos
Bororos, ajuste de Sua Magestade e procedimentos mais que há de Ter como abaixo se
declara. Documentos Interessantes. Arquivo de São Paulo. Typ Cia Industrial de São
Paulo. n. 22
Carta ao Provedor da Real Fazenda em 15.11.1774. In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, vol 84, p. 101.
Breve notícia que dá o Capitão Antônio Pires de Campos. 20.5.1723. In: : TAUNAI, Afonso de E. Relatos
Sertanistas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp., 1981
Carta de Francisco Pires Farinho denunciando a ereção de uma nova capela para apossar
das sesmarias dadas aos índios. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais. vol. VII, 1960
Carta da Câmara de São José ao Rei, em 30 de setembro de 1744. In: Revista do Arquivo
Público Mineiro. Ano II, fascículo II, abril a junho de 1897. P. 292 e ss.
Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador D. Pedro
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Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, 3 (1): 251-66, 1898.
Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jornada que fez o Sr. Mestre de
Campo Regente e Guarda Mor Ignácio Pamplona, desde que saiu de sua casa e fazenda do Capote às
conquistas do sertão, até de tornar a recolher a mesma sua dita fazenda do Capote, etc, etc,etc. In: Anais da
Biblioteca Nacional, vol 108, 1988 p. 47-113.
Notícia 1ª prática - que dá ao P. Manoel Diogo Soares o Alferes José Peixoto da Silva Braga, do que passou
na Primeira Bandeira, que entrou ao descobrimento das Minas do Guayases até sair na Cidade de Belém do
Grão Pará. In: TAUNAY, Afonso de E. Relatos Sertanistas
. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,
1981. P. 129
Notícia 1ª prática - que dá ao P. Manoel Diogo Soares o Alferes José Peixoto da Silva Braga, do que passou
na Primeira Bandeira, que entrou ao descobrimento das Minas do Guayases até sair na Cidade de Belém do
Grão Pará. TAUNAY, Afonso de E. Op. Cit. p. 128
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247
248
Índice Remissivo
A capitania de Goiás, 40
Academia, 73, 112, 113
academias, 77
África, 55, 111, 112, 113, 116, 119, 121, 126, 153, 207, 209, 375, 382
africana, 105, 109, 110, 119, 121, 122, 126, 138, 139
africanos, 92, 93, 118, 119, 124, 125, 127, 128, 133, 134, 136, 137, 138, 140, 145,
146, 153, 166, 229
agricultura, 189, 195, 196, 200, 215, 227, 239, 316, 331, 332
Aimorés, 91
Albert Ekhout, 66
aldeamento, 64, 66, 86, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 245, 268, 269, 270,
271, 272, 275, 278, 279, 321
aldeamentos, 84, 85, 86, 96, 109, 227, 268, 274, 275, 277, 278, 279,
293, 294
aldeia, 88, 107, 227, 230, 262, 264, 266, 270
Alexandre Rodrigues Ferreira, 81, 383
Alphonse de Saintonge, 112, 116
Amado, 21, 249
América
, 68, 73, 74, 76, 81, 87, 92, 120, 135, 150, 163, 240, 242, 265,
294, 377, 383
249
Antonil, 121, 124, 125
Antônio Vieira, 121, 150
antropofagia, 76
antropófago, 245
antropófagos, 65, 68, 87, 88, 101, 116
Antropologia, 196, 378, 380, 381
Arcádia Lusitana, 293
Arcádia Ultramarina, 302
Arcadismo, 165, 292, 293, 297, 301, 302
Arcadismo Mineiro, 165, 301
arqueologia, 208, 379, 381
Arraial do Rio das Velhas, 44
assaltos, 189, 193, 219
Azenegues, 114, 115, 118
Azeredo Coutinho, 79, 121, 332
bandeira, 86, 171, 323, 339
Bandeira, 104, 174, 246, 322, 372
Bandeiras, 317, 326, 335
bandidos, 24, 159, 268
250
barbárie, 24, 50, 51, 65, 71, 77, 118, 177, 238, 243, 245, 246, 247,
248, 277, 301, 327
bárbaros, 29, 45, 46, 48, 49, 70, 77, 81, 82, 87, 88, 92, 102, 103, 125,
126, 159, 241, 243, 244, 245, 257, 258, 267, 268, 270, 317, 324, 337
Barroco, 292
Bartolomeu Bueno do Prado, 49
Basílio da Gama, 296, 298, 301
Benci, 121, 122, 123, 124, 125, 162
Benzaquen, 72
Bluteau, 26, 242
Bororos, 86, 97, 99, 100, 107
Botocudos, 86, 100, 101, 240, 245, 320
Botocudos., 31, 93
Buffon, 73, 74, 81
Cadamosto, 112, 113, 114, 116, 373
Caiapó, 86, 88, 96, 97, 98
Caiapós, 45, 86, 96, 97, 98, 99, 100, 240, 283, 291
calhambolas, 228, 318, 337, 339
Câmaras, 42, 45, 46
251
Campo Grande, 37, 38, 39, 42, 45, 46, 47, 86, 97, 127, 160, 183, 184,
185, 186, 194, 195, 198, 206, 208, 267, 282, 283, 284, 285, 286,
289, 290, 304, 312, 314, 315, 318, 328, 336, 339, 340, 379
canibais, 87
capitação, 311, 312, 313
Capitania de Minas Gerais, 44, 372
Capitania de São Paulo, 40, 41, 174
Capitania do Rio de Janeiro, 41, 42, 99, 105, 279, 325, 370
capitão, 201, 230, 376
Cardim, 65
carijó, 106
carijós, 105, 106, 108, 178
Carlos Julião, 141
catequização, 85, 87, 251, 276, 321
Cerrado, 39
civilidade, 24, 48, 51, 55, 66, 82, 118, 165, 166, 169, 177, 267, 268,
287
civilização, 32, 33, 70, 80, 84, 242, 251, 263
civilizadores, 25, 72, 75, 76, 79, 80, 241, 243, 245, 247, 248, 266, 268, 279,
301, 302, 326, 327, 380
252
Cláudio Manoel da Costa., 301
coivara, 239
Colombo, 82, 243
colônia, 23, 48, 49, 55, 119, 120, 150, 153, 161, 162, 163, 170, 174,
277, 294, 295, 329, 374
Colônia, 28, 84, 124, 150, 176, 251, 252, 295
Colônia do Sacramento, 295
colonos, 23, 29, 33, 49, 63, 70, 87, 91, 93, 96, 100, 101, 118, 120, 174,
206, 227, 239, 313, 336
Comarca de Sabará, 37
Comarca do Rio das Mortes, 35, 37, 40, 183, 184, 284, 304
comunidades agrícolas, 192, 218
comunidades quilombolas, 210
Conde de Assumar, 106, 127, 160, 162, 264, 270, 327, 372
Conde de Bobadela, 42
Conde de Valadares, 32, 52, 53, 54, 64, 77, 86, 89, 91, 92, 101, 102,
103, 108, 109, 110, 159, 167, 171, 176, 192, 195, 196, 197, 206,
208, 218, 221, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 284, 288, 289, 290,
318, 319, 325, 338, 339, 340, 366, 367, 368, 369
253
conflitos, 21, 22, 40, 44, 45, 247, 279, 288, 297, 315, 317, 318, 320,
324, 374
conquista, 21, 42, 51, 53, 86, 107, 108, 169, 176, 186, 238, 240, 246,
247, 248, 249, 283, 286, 303, 310, 322, 324, 325, 333, 334, 336,
339, 367, 374, 380, 384
Conquista, 125, 214, 238, 240, 244, 247, 249, 283, 284, 304, 327, 339
Conquista do Oeste, 247, 249
conquistas, 50, 238, 240, 243, 244, 245, 324, 372
Conquistas, 244, 335
continente, 27, 52, 307, 318, 325
contrabandos, 311
Contratos de Entradas ou de Arrematação, 306
Coroa, 46, 56, 120, 225, 294, 306, 311, 317, 324
Couto Reys, 79, 80, 274, 369, 373
criminosos, 55, 267, 329
crises econômicas, 331, 332
cristãos, 32, 65, 82, 91, 114, 116, 124, 163, 260
Cristianismo, 76, 251
cronistas, 29, 65, 111, 112, 114, 121, 150
Cuieté, 86, 89, 101, 102, 107, 276, 322, 325, 326, 336, 346, 367
254
cultura, 72, 80, 82, 116, 135, 136, 138, 139, 166, 191, 229, 240, 243,
244, 257, 293
custo de vida, 311
D. Rodrigo de Souza Coutinho, 78, 368
De Pauw, 76
Debret, 68, 69
derrama, 44, 340
desbravamento, 44, 373
Diabo, 76
diamantes, 42, 46, 177, 315, 316, 382
Diretório, 84, 85, 277, 294, 295
Diretório Pombalino, 84, 277
Distrito Diamantino, 315
Domingos Alves Moniz Barreto, 80
Domingos Loureto Couto, 121, 150, 153
El Dourado, 29
Elias, 241
entradas, 108, 267, 291, 323
255
Entradas, 281, 306, 317, 335
entrantes, 288, 317, 318, 335
escravaria, 55, 125, 132, 145
escravidão indígena, 86, 91, 109
escravização, 48, 64, 72, 87, 91, 92, 103, 104, 105, 110, 294
escravização indígena, 294
escravo, 55, 106, 125, 129, 130, 151, 153, 155, 163, 168, 172, 272,
332, 376, 377
escravo fugitivo, 155, 214
escravos, 202, 203, 205, 206, 210, 225, 227, 228, 282, 286, 287, 289,
297, 300, 307, 308, 309, 311, 312, 315, 316, 317, 319, 320, 323,
330, 331, 332, 337, 338, 339, 340, 341, 342, 343, 344, 345, 346,
371, 372, 376, 377, 378, 379
escravos fugidos, 48, 51, 130, 131, 132, 135, 137, 138, 146, 148, 162,
166, 168, 191, 214, 215, 220, 222, 223, 274
quilombolas, 23, 50
escravos rebelados, 151
espanhóis, 225, 243, 244, 245, 296, 297
etnia, 124, 132, 253
Etueto, 93, 95
256
Europa, 31, 53, 73, 76, 77, 118, 244, 278, 299, 300
europocentrismo, 72
expedição, 29, 30, 31, 43, 50, 54, 77, 86, 100, 107, 108, 154, 195, 197,
198, 204, 217, 223, 224, 225, 251, 252, 256, 257, 258, 259, 262,
266, 270, 271, 272, 273, 281, 282, 283, 284, 285, 286, 287, 288,
289, 290, 297, 301, 303
expedições, 30, 46, 49, 51, 52, 53, 54, 86, 90, 96, 107, 166, 167, 202,
219, 240, 245, 246, 249, 251, 252, 256, 264, 266, 267, 281, 283,
289, 291, 303, 304, 305, 307, 321, 323, 338, 339, 340
Expedições, 287, 335
expedições civilizatórias, 23
expedições de conquistas, 51
extravios, 311
Faria, 97, 172, 282, 320, 329, 383
fazendas, 47, 48, 51, 52, 97, 150, 151, 170, 174, 178, 188, 196, 216,
227, 268, 290, 314, 318, 331, 336
feras, 28, 32, 53, 55, 68, 70, 76, 88, 91, 118, 126, 153, 159, 168, 169,
242, 301, 302, 303, 313, 335, 336
festas, 326
257
filósofos do século XVIII, 80
forros, 308, 311
Frei Vicente do Salvador, 29, 30, 82
Freireyss, 329
fronteira, 21, 44, 247, 248, 249, 291, 335, 346, 379, 380, 383, 384
fronteiras, 62, 177, 238, 248, 249, 294, 295, 313, 321, 341, 383
Funari, 226, 229
Gabriel Soares de Souza, 29, 30
Gandavo, 28, 29
garimpagem, 316
garimpeiro, 316
gentio, 226, 245, 246, 316, 318, 319, 320, 373
gentios, 48, 51, 83, 87, 88, 89, 90, 98, 102, 103, 107, 108, 109, 124,
152, 162, 262, 265, 294, 302, 337
Goiás, 41, 44, 46, 97, 98, 99, 100, 104, 107, 314, 315, 317
Gomes Freire, 206, 266, 297, 298, 299, 371
Gomes Freire Andrade, 41, 99, 214
Gomes Freire de Andrade, 206, 297, 371
Guerra dos Emboabas, 41, 324
258
Guerra Guaranítica, 296
Guerra Justa, 55, 85, 87, 90, 91, 92, 97, 98, 102, 262
Guimarães, 182
herói civilizador, 248
História Natural, 78, 81
homem da fronteira, 23, 249
homens livres pobres, 312
homens pobres, 24, 170, 331, 333, 346
hordas, 47, 192, 211, 311
humanidade, 72, 73, 76, 114, 118, 121, 136, 140, 143, 152
ideal civilizador, 238
Ignácio Correia de Pamplona, 43, 49, 50, 52, 53, 103, 159, 167, 276,
277, 281, 283, 286, 290, 291, 302, 303, 318, 334, 339, 340, 366,
367, 368.
Igreja, 84, 302, 324, 376
Iluminismo, 72, 79, 296, 297, 305, 374
iluministas, 72, 76, 293
imagens, 24, 26, 47, 50, 51, 54, 55, 59, 68, 79, 111, 113, 115, 118,
119, 122, 130, 150, 152, 154, 158, 244, 301, 302, 303, 326, 374, 378
imagens dos cativos negros no Brasil, 119
259
imagens sobre o quilombola, 150
Império Colonial, 49, 51
impostos, 51, 53, 106, 199, 313, 316, 329, 331
Incas, 243, 245
incivilizáveis, 23, 71
Inconfidência Mineira, 281, 283, 305
índios, 23, 25, 28, 29, 30, 31, 32, 40, 44, 45, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53,
55, 59, 62, 64, 66, 68, 70, 71, 76, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86,
87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 96, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104,
105, 106, 107, 108, 109, 119, 152, 168, 169, 174, 176, 191, 196,
198, 199, 225, 226, 227, 228, 239, 242, 243, 244, 245, 246, 248,
251, 252, 257, 258, 259, 260, 262, 264, 266, 268, 269, 270, 271,
272, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 279, 281, 282, 283, 284, 286,
288, 290, 291, 293, 294, 295, 296, 297, 298, 300, 314, 317, 318,
319, 320, 321, 322, 323, 325, 335, 336, 337, 338, 340, 346, 368,
370, 371, 372, 373, 380
inimigos, 48, 49, 52, 55, 65, 83, 96, 97, 99, 151, 159, 161, 173, 198,
209, 267, 293, 321, 322
inventários, 93, 319
itinerância, 170, 313
260
jesuítas, 84, 119, 278, 292, 293, 295, 296, 297, 298, 299, 300
João Pinto Caldeira, 86, 289, 291, 339, 340, 367
Joaquim José de Lisboa, 163
John Stedman, 154
José Eloi Ottoni, 323
José Serra Caldeira, 288
Lagoa Dourada, 29, 30, 284
Las Casas, 89, 90
Leroi-Gourhan, 195, 196
limites, 21, 25, 41, 42, 43, 44, 46, 48, 114, 248, 249, 266, 293, 295,
296, 372
Linneu, 74, 75, 76
litoral, 26, 28, 32, 62, 64, 70, 85, 257
longa duração, 87, 90, 130
Luis Diogo Lobo da Silva, 42, 43, 173, 214, 218, 281
Manoel R. da Rocha, 121
mão de obra indígena, 96, 109
Marcílio, 316
Martins, 185, 186, 240, 373, 374, 378
Mendonça de Furtado, 293, 296
261
mestiçagem, 169
Minas Gerais, 21, 26, 30, 33, 34, 35, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45,
46, 77, 78, 85, 86, 87, 88, 95, 96, 97, 100, 101, 102, 103, 105, 109,
126, 133, 137, 139, 142, 143, 159, 165, 168, 169, 171, 175, 176,
179, 182, 187, 188, 191, 193, 197, 198, 199, 202, 203, 208, 210,
212, 213, 215, 216, 219, 225, 228, 229, 240, 244, 248, 251, 256,
263, 264, 266, 267, 268, 269, 271, 274, 277, 278, 281, 282, 305,
306, 307, 308, 309, 312, 313, 314, 315, 316, 317, 319, 322, 323,
324, 326, 327, 328, 329, 330, 332, 340, 344, 346, 367, 368, 369,
372, 373, 378, 379, 380, 381, 382, 384
mineração, 216, 266, 282, 315, 316, 331, 332, 334, 383
miséria, 286, 312, 340
mito da Amazônia, 249
mito de origem, 249
mobilidade, 170, 218
monogenismo, 73, 76
naturalistas, 73, 82
natureza, 34, 66, 72, 73, 76, 77, 78, 81, 82, 83, 88, 101, 121, 123, 124,
153, 165, 167, 239, 242, 246, 297, 298, 301, 302, 303, 327, 375
262
negro, 49, 55, 74, 83, 114, 120, 122, 125, 129, 153, 154, 156, 157,
158, 169, 195, 204, 205, 213, 215, 244, 253, 272, 375, 376, 377,
378, 381
negros, 48, 50, 52, 55, 72, 74, 75, 82, 83, 92, 104, 106, 111, 112, 113,
114, 115, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 125, 126, 127, 128, 130,
151, 152, 153, 154, 159, 161, 162, 165, 166, 167, 169, 172, 178,
179, 181, 192, 196, 197, 199, 200, 201, 202, 203, 205, 206, 208,
212, 213, 214, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 225, 226,
228, 229, 246, 253, 265, 269, 270, 271, 274, 275, 277, 284, 287,
294, 311, 312, 315, 316, 317, 318, 321, 326
Novo Mundo, 31, 74, 76, 374
ouro, 29, 30, 40, 42, 44, 46, 50, 51, 52, 108, 118, 172, 177, 240, 242,
267, 276, 289, 291, 299, 301, 311, 312, 313, 314, 317, 323, 324,
326, 327, 329, 331, 334, 340, 372, 379, 382
Pacheco Duarte Pereira, 112
Paiva, 330
Palmares, 150, 151, 152, 153, 157, 158, 207, 226, 229, 371, 379, 380,
381
Pamplona, 30, 50, 51, 53, 100, 108, 159, 218, 267, 277, 281, 282,
283, 284, 285, 287, 288, 289, 290, 291, 301, 302, 303, 304, 305,
263
306, 307, 308, 309, 310, 318, 333, 334, 336, 337, 338, 366, 367,
368, 372
paulistas, 323, 378
Período Pombalino, 264
Pero Lopes de Souza, 29
Pero Rodrigues, 48, 49, 368
Pero Vaz de Caminha, 27, 28
Picada de Goiás, 45, 267, 284, 304, 314
Pimentel, 21, 249
pobreza, 170, 306, 311, 312, 322, 329, 332, 333, 334, 336, 338, 340,
382
poligenismo, 72
Pombal, 77, 85, 103, 104, 110, 251, 252, 266, 277, 292, 293, 294, 295,
296, 297, 305, 369, 372, 374, 376
Portugal, 48, 77, 79, 90, 266, 269, 270, 292, 293, 295, 296, 298, 299,
300, 306, 308, 371, 372, 373, 375
portugueses, 27, 31, 32, 64, 65, 70, 79, 84, 90, 91, 114, 118, 130, 242
povoadores, 23, 31, 41, 248, 303, 336, 337, 338, 340
264
povoamento, 23, 25, 34, 45, 51, 52, 86, 110, 166, 238, 247, 248, 249,
256, 263, 264, 266, 269, 276, 288, 293, 295, 303, 312, 314, 316,
317, 321, 322, 325, 335, 338, 383
Pratt, 74
Presídios, 53, 55, 177, 228, 278, 321
Progresso, 72
projeto civilizador, 23
Puri, 101, 240, 245, 268
Quadrilha da Mantiqueira, 177
quartação, 308, 309
quilombo, 46, 150, 151, 153, 160, 163, 166, 187, 191, 192, 193, 194,
195, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 207, 208, 209,
214, 215, 216, 217, 219, 220, 222, 224, 225, 226, 227, 228, 229,
230, 234, 264, 265, 266, 271, 272, 273, 290, 321
Quilombo da Cabaça, 210
Quilombo da Samambaia, 235
Quilombo de São Gonçalo, 207
Quilombo do Ambrósio, 283
Quilombo do Ambrózio, 185
265
quilombola, 150, 151, 152, 167, 169, 177, 185, 187, 192, 194, 204,
213, 214, 215, 216, 226, 229, 272
quilombolas, 25, 28, 33, 39, 40, 42, 45, 46, 48, 50, 51, 53, 55, 86, 106,
127, 151, 154, 158, 159, 160, 161, 166, 167, 168, 176, 187, 189,
193, 194, 198, 200, 201, 202, 204, 205, 206, 208, 209, 210, 212,
213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 225, 227,
229, 233, 245, 248, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 271, 272,
273, 274, 275, 279, 283, 284, 286, 288, 289, 290, 291, 313, 314,
317, 321, 322, 331, 335, 337, 338, 340, 346, 372, 379, 380
quilombos, 23, 44, 48, 51, 55, 97, 128, 152, 154, 161, 165, 166, 167,
169, 185, 186, 187, 188, 189, 191, 192, 193, 195, 196, 197, 198,
199, 200, 201, 202, 203, 205, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 215,
216, 218, 219, 220, 222, 224, 225, 226, 227, 228, 234, 248, 264,
270, 271, 273, 281, 284, 286, 290, 312, 316, 317, 318, 321, 335,
338, 369, 370, 377, 378, 379, 380, 381
quintos, 46, 90, 98, 106, 132
Razão, 72
razias, 189, 212, 216, 219
rebelde, 26, 125, 154
rei, 201, 267, 293, 298, 299, 300, 311, 338
266
Reis, Rainhas, Príncipes e Capitães, 200
representações, 26, 55, 68, 79, 87, 102, 111, 112, 113
Rio de Janeiro, 27, 28, 34, 41, 72, 77, 79, 85, 90, 101, 104, 113, 134,
137, 138, 139, 142, 144, 145, 170, 179, 188, 189, 191, 193, 202,
212, 229, 241, 243, 248, 250, 273, 281, 294, 296, 297, 305, 307,
308, 311, 329, 334
rio de São Francisco, 34
Rio Doce, 31, 89, 95, 108, 320
Rio São Francisco, 47, 276, 318
roças, 194, 201, 230, 319, 331
Rocha Pita, 68, 121, 150, 153
Rouanet, 241
Rugendas, 68, 137
Saint- Hilaire, 328
Saint-Hilaire, 328, 330
Santos, 184, 194, 285, 324, 377, 379, 380
São João del Rei, 43, 281, 288, 290, 306, 344
São Paulo, 186, 240, 246, 294, 312, 314, 317, 325, 327, 328, 329, 330,
344, 371, 372, 373, 374, 375, 376, 377, 378, 379, 380, 381, 382,
383, 384
267
Sepúlveda, 87, 90
seres fantásticos, 31
Serra da Mantiqueira, 40, 41, 177
Serra da Marcela, 159, 184, 282, 283, 291, 305, 336
Sertão, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 34, 35, 37, 38, 47, 50, 51, 52, 53, 64, 65,
71, 72, 77, 85, 86, 90, 96, 199, 242, 248, 264, 267
Sertão Oeste, 25, 27, 28, 29, 30, 32, 37, 39, 47, 50, 86, 166, 183, 226, 238, 249,
264, 268, 284, 286, 287, 288, 301, 302, 303, 322, 335, 338, 378, 383, 384
Sertões, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 34, 52, 53, 54, 55, 77, 79, 85, 92, 167,
168, 169, 171, 173, 175, 177, 252, 257, 329
sesmarias, 51, 167, 266, 282, 283, 284, 288, 289, 291, 304, 309, 314,
316, 317, 318, 320, 322, 323, 333, 336, 337, 346, 371
sesmeiros, 52, 290, 317, 318, 333
Sete Povos das Missões, 295, 296, 298
Silveira, 312, 332
Souza, 78, 86, 89, 174, 282, 312, 334, 367, 368
Spix e Martius, 68
subsídio literário, 306, 307
Tamanduá, 44, 46, 184, 306
Tapuia, 57, 64, 65, 66, 67, 68, 70, 81, 82, 245
268
Teixeira Coelho, 168, 169
territórios, 55, 208, 238, 240, 242, 247, 269, 317
tipologia, 188, 202, 212, 241
Todorov, 89, 244
trabalho, 25, 37, 48, 82, 83, 84, 85, 89, 93, 122, 124, 170, 171, 172,
173, 206, 228, 268, 275, 282, 324, 329, 384
Tratado de Madri, 295, 297
tribos errantes, 47, 324
tributações, 311
Tupi, 57, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 70, 82, 101
vadios, 23, 53, 55, 85, 168, 170, 171, 173, 174, 175, 176, 177, 199,
267, 282, 313, 322, 326, 328, 330, 335, 338, 346, 374
Vainfas, 130
Varnhargen, 68
Velho Mundo, 76
viajantes, 38, 39, 73, 79, 99, 111, 161, 196, 212, 213, 218
Visconde de Barbacena, 305
Voltaire, 72
Wied-Neuwied, 68
Zurara, 112, 115, 116
269
Parte 7- ANEXOS
QUILOMBOLAS - LENDA MINEIRA
INÉDITA POR CARMO GAMA
PRELIMINAR
A narrativa que sob, o título Quilombolas, ofereço a meus benignos leitores, especialmente a meus
patrícios, não é simples produto de imaginação romanesca.
Acabo de extraditá-la de um pequeno manuscrito Apontamentos geográficos e históricos por Janoário Pinto
Moreira
, que devo á gentileza de meu ilustrado parente e amigo, Padre Euzébio Nogueira Penido, vigário de
Itatiay-ussu, em aquiescência ao pedido que lhe fizera, como tenho feito a outros amigos, de documentos
antigos e notícias sobre Minas e nossos antepassados, que sirvam, quer para assuntos de escritos, quer para o
Arquivo Público Mineiro, de que me desvaneço de ser correspondente nesta Comarca e para cuja
prosperidade me empenho com todas as veras. Coordenados os fatos e formando narrativa, procurei conservar
sempre o fundo, no que vai a homenagem de meu respeito e gratidão ao autor do manuscrito. Não conhecendo
pessoalmente os lugares em que se deram os acontecimentos, no sertão mineiro, para não incidir em erros
palmares, tive sempre aberta ante minha mesa a carta “Geográfica de Minas” cortejando-a com a do grande
mapa do senador Cândido Mendes, e o leitor que quiser melhor orientar-se tome por ponto a cidade do Araxá,
perto da qual se deu a ação principal da narrativa. Faltam as datas dos acontecimentos, que supondo se deram
do fim do passado ao princípio deste século, e o próprio autor diz que, ouvindo a narração dessas histórias da
boca de um dos protagonistas, o celebre padre Caturra, seu professor de primeiras letras, este nunca precisava
as datas, quando a repetia. Procurando nos autores a meu limitadíssimo alcance a confirmação, quando menos
referência a tais acontecimentos, nada encontrei, mas Varnhagem forneceu-me a razão deste silêncio, que
aceito. Diz ele: “As empresas de submeter vários covis de negros calhambolas ou quilombos rebelados e de
avassalar algumas tribos de índios indômitos; cometidas a pequenos destacamentos de tropas, bem que
freqüentes por este tempos, apenas são dignas de menção na história; pois que mais que a esta, pertencem á
policia do país, como ainda hoje em dia”.(*)
Desprezando a crítica soez e estéril que possa aparecer, aceitarei, de bem grado e com agradecimento
sincero, as retificações históricas ou geográficas com que os leitores quiserem honrar-me, a respeito deste
pequeno trabalho, e de todas que me chegarem ao conhecimento farei menção em tempo oportuno.
Considerando aqui meu agradecimento a meu bom parente e amigo padre Euzébio Nogueira Penido, pelo
ótimo assunto mineiro que me proporcionou, á saudosa e venerada memória do autor do manuscrito fica
perene a homenagem de minha gratidão, com votos sinceros para que tenham ambos imitadores. Rio Novo,
Abril 1900. Carmo Gama.
270
1
Os perseguidos
O deserto é o templo, os astros círios,
Aras os montes, e sacrário o peito,
Depois...... a natureza e a liberdade!
F. Varella
(Ev. nas selvas - Canto 2.º).
A Companhia de Jesus, que, como se sabe, teve seu humilde início pela reunião de dez associados á vontade
enérgica e inquebrável de Ignácio de Loyola, diante cujo predestino, no caminho traçado, desapareciam, como
por encanto, todos os óbices, todas as dificuldades, tal incremento teve, com asas tão fortes rompeu os
espaços e galgou as culminâncias, que, em 1608 tinha dez mil sócios, em 1700 vinte mil e em 1750 mais de
trinta espalhados pelo mundo, cabendo grande parte ao Brasil, onde, desde Vieira, Nóbrega, Anchieta e tantos
outros, encontrava vastos campos para seus triunfos e se firmara, pondo em ação todas as qualidades que lhe
eram peculiares, inatas. As draconianas leis da metrópole excluíam os filhos do Brasil, tivessem os predicados
que tivessem, dos cargos civis e militares, por mínimos que fossem, deixando-lhes apenas os ofícios
mecânicos, então considerando vis, os simples trabalhos de agricultura, ou quando muito, os empregos mais
humildes de soldados baixos ou marinheiros, sem direito a acesso, por melhores que fossem
598
. As ordens
religiosas, pelo contrário, admitindo em seu seio a todos os brasileiros, aproveitando os peregrinos talentos
que viam desabrochar no novo mundo, deram ocasião a que muitos nomes de nossos patrícios figurassem no
primeiro plano dos homens eminentes de então em quase todos os ramos de conhecimentos, descendendo de
um brasileiro ilustre o próprio Marquês de Pombal. Mais que todas as outras, a Companhia de Jesus sabia
conhecer e aproveitar os talentos e isso foi mais uma fortíssima razão para o extraordinário incremento que
teve entre nós, merecendo Anchieta a mais sublime epopéia, o canto mais suave que produziu a inimitável
lira do nunca assaz chorando Fagundes Varella, o poeta por excelência, o mestre. E não era só. Mais que todas
as outras, dedicando-se as estudo da língua indígena e chegando a conhecer seus vários idiomas, a ponto de
escrever livros, gramáticas, dicionários, e ensiná-los em seus colégios, conseguindo, por isso, a maior talvez
de todas as armas para seus triunfos inauditos sobre os habitantes das virgens florestas do novo mundo, que
perlustrou, tendo por armas a palavra, o exemplo e por único lábaro a cruz de Cristo com que afrontava os
perigos e ganhava vitórias.
Por tudo a companhia progrediu tanto, que um historiador chegou a dizer que ela nunca teve
infância; nasceu viril
599
. Entretanto veio um dia em que sua estrela empalideceu, obumbrou-se o rico farol que
598
VARNHAGEM, F. A . História Geral do Brasil. Vol. 2. São Paulo: Melhoramentos,
s/data. p.266
599
Vide Melo Moraes- Brasil histórico. Tomo 2, 1867.
271
havia guiado por tão longo caminho de vitória, e a companhia caiu na penumbra. Quer porque convertesse as
missões em empresas de comércio, tornado-se os sócios banqueiros, negociantes e monopolizadores de
gêneros da agricultura e da industria, quer porque alienasse de si os favores dos governos, o amor e a afeição
dos governados, o que é certo é, que condenada ao exílio, á abolição, a Companhia viu a realidade do que
disse Ovídio: si têmpora fuerint nubla, solus eris. Como muito bem disse o conselheiro Pereira da Silva
600
“está regulada a vida, quer moral, quer física, já das nações e dos homens, já das instituições e idéias. A cada
um a sua sorte e o seu tempo. Tudo se extingue, ou atinja as grandezas, ou estorça-se na miséria, seja-lhe a
existência prolongada ou curta a duração. Nasceu em tempo próprio a Companhia de Jesus”.
Como meteoro esplendoroso fulgurou na sua idade primitiva. Já lhe não era propícia a época quando
caiu e quando se desmoronou no século XVIII; estava minada pelos vícios que se lhe haviam introduzido no
seio e lhe tinham transformado inteiramente o instituto. Nem lhe salvaram a memória os eminentes serviços
que ao princípio prestava á causa da religião e da humanidade. Correndo na ampulheta fatal o último grão da
areia reguladora, soou na tuba suprema o grito do exício contra os jesuítas; romba tornou-se a espada, que,
tendo os corpos em Roma, na mão do Geral, tinha a ponta em toda a parte, em todo o mundo conhecido, e a
lei de 3 de setembro de 1759, sancionada por D. José I, com a qual Sebastião José de Carvalho e Mello conde
de Oeiras e marquês de Pombal, expulsara do reino e de todas as possessões portuguesas os jesuítas, havia
repercutido plangente por todos os cantos do Brasil-Colônia, onde a respeitável Companhia mais firmara sua
grandeza, pondo em ação habilidade, inteligência e todos os meios práticos de que, mais que todos, dispunha
e em que ninguém a sobrepujava.
Corridos, varejados pelos mastins do despotismo, deslocados, em suma, da capital, os jesuítas
lançaram seus penetrantes olhares para as virgens florestas, para os sertões mineiros, e ali, antolhasse-lhe um
vasto, ubérrimo e seguro campo para refugo de vida, nas margens dos grandes rios, na alcantil das serras, na
majestade dos nossos montes e, sobretudo na aliança e obediência certa das imensas e fortes tribos indígenas,
que dominavam senhoras as margens do rio das Mortes, do Pará, do Abaethé, do S. Francisco, do Guaycuhy
(rio das Velhas) e do Paranaiba, e seu alvo foi algo romper as barreiras do baionetas que os encantoavam,
correndo a entregar-se nos braços do indígena, de cuja memória não haviam apagado ainda as vozes angélicas
de Nóbrega, de Anchieta e de tantos outros, que iam de geração em geração. Ricos quase todos, tinham os
jesuítas muitos escravos, todos bons, pode-se dizer, porque os compravam no Vallongo ou noutra parte,
depois da maior fiscalização, estudo de caráter, hábitos e capacidade intelectual; de maneira que raríssimas
vezes haviam de se enganar e, dado o conhecido engano, era facílimo dispor da peça pouco satisfatória. Não
era somente isso: pretendendo fazer do escravo, senão um sócio, pelo menos um amigo e um braço forte e
pronto para as emergências da vida, os jesuítas educaram-nos, ilustrando-os quanto possível, aproveitando as
boas qualidades que ressaltavam, transpareciam por entre os bárbaros costumes africanos. Não se enganaram
nem perderam o seu trabalho; porque, quando perseguidos, encontraram nos próprios escravos os auxílios, os
recursos inteligentes e práticos, para a fuga, tendo mais de uma vez,– di-lo a tradição, de cruzar ferro, dar
combate em regra contra as forças do governo. Não se frustou a esperança nos filhos das floresta, nos que
600
A História e a legenda. Ignácio de Loyola.
272
habitavam as margens de nosso rios: no indígena mineiro, representado em muitas tribos, encontraram os
jesuítas amigos e aliados e, semelhantes ao povo hebreu, fugindo dos horrores do Egito, lá foram, não pelo
deserto, na carência de tudo, mas por uma zona ubérrima e, caracterizando por entre os atrativos da natureza,
iam arrebanhado a seu centro, por essa magia tão peculiar, curvando a seu nutro os centenares, os milhares de
aborígenes mineiros, libérrimos na vontade, libertinos na locomoção, por entre as luxuriantes florestas,
exuberantes de seiva, regadas pelos majestosos rios e vigiadas pelas altaneiras montanhas, mudas atalaias de
nossas riquezas, de nossas glórias, de nossas lágrimas, tantas vezes vertidas sobre o venerando esquife da
liberdade, incessantemente golpeada, amordaçada e amortalhada pela férrea mão do despotismo.
O Rio de S. Francisco a cujas margens se acampavam os fugitivos, qual raça êxul que, longe da
pátria procurasse lenitivo a seus males, não oferecia perfeitamente a segurança que procuravam, e os jesuítas
levantando constantemente acampamento e arrebanhando sempre as tribos encontradiças, cuja ferocidade
domavam, falando a própria língua, imiscuindo-se intemeratos, por entre suas tabas, deixando pouco a pouco
o majestoso rio, ganharam o caminho dos naturais pelo espigão mestre, atravessaram a serra da ubérrima
“Mata da Corda” e alcançaram as cabeceiras do “Misericórdia”. Ali, nesse canto, cheio do atrativos, formado
pelas serras da “Parida” e da “Canastra”, reunidas mais tribos indígenas, estabeleceram acampamentos, em
quanto os exploradores assuntavam além. Estavam no caminho desejado. Seguiram pela margem direita do
“Misericórdia”, ninguém deixando, até um lugar que ainda guarda o nome de Quilombo, lugar predestinado a
representar um papel saliente na lendária retirada, que a tradição nunca deixou perder-se. Nas lutas travadas,
nas refrega sustentadas, muitos dos escravos apenados dos jesuítas tinham embebido no sangue humano o
ferro homicida de suas espadas, a curva alfanjes ou cuspido a morte pelas balas esfuziantes de seus
bacamartes. Criminosos esses, não era prudente que os homens da paz os conservassem em seu rebanho, para
que, de futuro, não lhes fossem assacados mais os crimes de coito ou homicídios de delituosos.
Por entre os escravos um havia, por nome Ambrósio, inteligente, valente, esbelto, e dotado de todas
as qualidades próprias de um bom general, de que havia dado as mais robustas provas por ocasião da fuga na
salvação de seus senhores. Resolveram, portanto, os chefes deixar no “Misericórdia” todos os criminosos e
mais pessoal indispensável, sob o mando absoluto de Ambrósio, e seguiram, levando cerca de duas mil
pessoas, entre padres, seculares, escravos e índios, ao passo que com Ambrósio ficaram ao todo, umas
duzentas pessoas. Seguiram na exploração margeando o “Misericórdia”; ganharam e seguiram o S. João;
alcançaram e acompanharam o quebra-anzól até o Rio das Velhas (nesse tempo Guaycuhy), e seguiram-no até
ao legendário lugar que teve e tem o nome de Aldeia de Sant’Anna. Bela e penosa foi essa nova cruzada dos
que fugiram em demanda de outra Jerusalém, que afinal supunham encontrar nas margens do Guaycuhy, tal a
perspectiva de paz, de liberdade e salvação que se lhes oferece na Aldeia, onde já encontraram estabelecida
uma pequena tribo indígena pela qual foram acolhidos do melhor modo, tal a notícia de amizade e aliança que
os tinha precedido....
Do Misericórdia ao Rio das Velhas, com que prática, com que presteza se faziam canoas, se cavavam
pirogas, se formavam ajoujos, que se deslizavam suavemente pelas águas majestosas daqueles rios! E de tal
modo eram preparados os ajoujos, que, nas cachoeiras, eram desmanchados, sendo as canoas que os
compunham carregadas por terra e, passando o empecilho, de novo jungidas não deixavam entre si a menor
273
greta por onde penetrasse água. Poucos dias depois, estavam assentes os sólidos alicerces dos principais
edifícios, principalmente dos templos católicos, cujas terras, buscando as nuvens, sublimes com seus
campanários, mais tarde o ponto de mira daqueles sertões, desafiariam a voracidade do tempo e, quando
ruíssem ao camartelo da destruição, deixariam, nos seus fundamentos, o atestado vivo de sua passada
grandeza. Não foi sem cálculo nem sem muito fortes razões a escolha desse pano escuro e desconhecido, para
o estabelecimento da nova capital dessa Província que os jesuítas pretendiam fundar, como fundaram, nos
sertões mineiros. Podendo facilmente continuar na faina da catequese, arrebanhando sempre o gentio de
Minas, de S. Paulo e Goiás, tinham ali o caminho seguro, pelo Paranaíba, quando as emergências futuras
acelerassem e instassem a fuga para o centro de Goiás e Mato Grasso, o que de fato aconteceu mais tarde.
Deixemos desenvolver-se a capital jesuítica e, enquanto os fugitivos, descansando das lides de tão árdua quão
longa jornada, vieram os novos alicerces de sua grandeza sempre pujante, voltemos às margens do
Misericórdia e acompanhemos os que ali ficaram, sob a direção do chefe que lhes fora escolhido. Durante a
grande retirada que vimos, três companheiros de modo tão eloqüente, que a todos sobrepujaram em denodo,
mais de uma vez, emprelios (sic) sanguinolentos, expondo a própria vida na salvação de todos: foram o padre
Caturra, Ambrósio seu escravo e Tucum o cacique de uma das tribos aliadas, que serviu de guia por todo o
sertão percorrido, até a Aldeia de Sant’Anna. Ambrósio era casado com uma linda africana, por nome
Cândida e ambos foram comprados, muito crianças, no Vallongo do Rio de Janeiro. Não tinham e jamais
tiveram filhos. Tão gratos ficaram os jesuítas a esse escravo, que o libertaram com a mulher, dando a seu
senhor, em troca, quatro escravos escolhidos de entre os melhores da não pequena escravatura que possuíam,
e o nomearam Capitão-general do núcleo que deixaram á margem do Misericórdia, dando a esse ponto o título
de “Posto do Tengo-Tengo”. Não se enganaram os jesuítas na escolha do seu pessoal; conhecendo, como os
naturais, os diversos idiomas africanos e indígenas, que falavam perfeitamente, estavam sempre ao corrente
de tudo. Além disso, Caturra, o inteligentíssimo ex-senhor de Ambrósio, ao comprá-lo, adivinhara no
moleque as qualidades latentes, que, ao desabrocharem, elevam o homem aos altos cometimentos; ante vira as
asas que um dia poderiam fazer da humildade e desprezível ave um condor, no domínio do espaço, e não
perdeu ensejo de formar do escravo, senão um eminente sócio, ao menos um braço amigo e forte, purificando-
o, desde logo, com as águas lustrais da instrução, no compatível á qualidade social do discípulo. Não perdeu
seu tempo. O escravo era muito jovem, fez-se homem purificado de muitos vícios próprios de sua nação e
ilustrado o quanto possível, para o realce dos dotes que possuía ingênitos, ressaltando, entre todos, o tino
administrativo, a intrepidez, e mais que todos, a gratidão para com seus benfeitores. Igualmente seu senhor,
pelo conhecimento que tinha da língua africana, conheceu, por ouvir a muitos e a ele próprio, que o escravo
era descendente de família real, um príncipe em sua terra; não deixou perder esse incentivo, incutindo no
ânimo do aprendiz o valor de suas qualidades e fazendo até que os outros o considerassem, longe, o mesmo
que pátria-mãe, estabelecendo, por esse meio, um natural ascendente sobre os demais escravos, que, longe de
se insurgirem na arrogância da vaidade, prestavam de fato a Ambrósio a homenagem que lhe era devida, tanto
mais sincera, quanto o garbo do homenageado, que correspondia com o respeito e atenção próprias de sua alta
hierarquia. Cândida, também comparada pelo mesmo padre, no Vallongo, igualmente inteligente, talvez mais
que Ambrósio, mostrou aptidão para a aprendizagem e da boçal africana fez-se uma rapariga educada o
274
quanto possível para sua época e condição, mostrado até decidido pendor para as letras, para mais uma vez se
provar que a bela planta não depende tanto, em certos casos, da natureza do solo, como dos cuidados do
horticultor. E assim aquele jesuíta, aliás pobre, fez da única fortuna que possuía, seus dois escravos, um casal,
que, núbeis, ou recíprocos afetos, sagrados pelos cânones, uniram até a morte, levando-o pelo caminho
plácido e vivificante da mútua afeição, sem os mínimos acúleos da discórdia. Eis a que braços, foi confiado o
posto de T
ENGOTENGO, onde se desenrolaram os principais fatos que me servem de assunto delineados os
fundamentos de uma nova cidade, que a tradição conservou sob o título de Quartel Ambrosiano, Ambrósio,
com os melhores oficiais, foi auxiliar os jesuítas na construção dos principais edifícios da Aldeia de
Sant’Anna, destinada a capital, e, quando viu dispensável o seu concurso, regressou para o Quartel, onde
tratou com empenho e esmero da construção, não só de uma cidade sertaneja, como de uma praça de guerra,
que era, ao mesmo tempo, uma grande fazenda. Em pouco tempo as margens do Rio das Velhas, do Quebra-
anzol e do Misericórdia e seus confluentes, de ermos que eram, começaram a povoar-se, a olhos vistos, tal a
quantidade de forasteiros que chegavam, tal o comércio que se fazia. Tornou-se em pouco tempo aquele canto
ubérrimo de Minas o centro para onde estendiam seus olhares e corriam açodados e esperançosos, todos
aqueles que, alguns acossados pelo infortúnio, pelo ódio, pela inveja, pela ganância, procuravam, no ermo um
seguro abrigo á sua liberdade, á sua vida, a seus haveres, ás vezes disputados com unhas e dentes pelo
despotismo do tempo, insaciável na veracidade, inclemente na insolência, arrogante na ignorância seu mais
incoercível apanágio e de que faziam garbo. As duzentas pessoas que tinham ficado sob o domínio de
Ambrósio, em pouco tempo agregaram tantas outras vindas de pontos longínquos, atraídas pelas notícias que
corriam ao longe que o número subiu a mais de mil. Dentre seus companheiros, Ambrósio escolheu dois: João
Wrumeia e Hyunhnguéra aos quais nomeou generais comandantes e estabeleceu as leis do seu reino, que se
resumiam no seguinte: Todos trabalhavam com igualdade para o centro tanto ganhando o chefe, como
qualquer trabalhador; obediência cega ao chefe que tinha direito de vida e de morte; o maior respeito possível
para com as mulheres; casamento geral e obrigatório para todos os homens, para todos os rapazes, logo que se
tornassem púberes, não podendo moça alguma casar-se antes dos dezesseis anos completos; castigo imediato
para os criminosos, que eram processados sumariamente. O tribunal julgador do Quartel era, por assim dizer
de primeira instância; porque autônomo, reconhecia na Aldeia o tribunal superior; que julgava em última
instancia; mas isso somente em certos delitos que admitiam recursos ex-ofício. Por exemplo: o desacato a
qualquer mulher, casada ou solteira era punido: pela primeira vez com repreensão severa do chefe; pela
segunda, com pranchadas; pela terceira, com pena de morte na forca. Assim, o reincidente pela terceira vez,
preso, era remetido para a Capital (cidade dos jesuítas ou Aldeia); ali, julgado pelo tribunal superior, era
recambiado para o quartel, onde sofria logo a pena última com as formalidade semi-bárbaras dos africanos,
atenuadas no quanto possível. Entretanto, outros crimes havia, que, reincidentes ou não os criminosos, eram
estes julgados e punidos sem intervenção do tribunal superior, ao qual não eram afetos, quer fosse a pena
simplesmente corporal, quer a de morte (forca ou decapitação), ali mesmo no Tengo-Tengo. Os habitantes
eram divididos e subdivididos em classes, conforme as qualidade de que eram dotados; assim havia os
excursionistas ou exploradores; os negociantes, exportadores e importadores; os caçadores e magarefes; os
campeiros ou criadores; os que cuidavam dos engenhos, o fabrico do açúcar, aguardente, azeite, farinha &; e
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os agricultores ou trabalhadores de roça propriamente ditos. E ninguém descuidava de suas obrigações,
ninguém discutia uma ordem; todos obedecia ao chefe, superintendidos por seus lugares-tenentes; por que
todos viam em Ambrósio o verdadeiro rei, o príncipe africano e lhe prestavam obediência cega, curvados ao
seu nuto como á suprema vontade. E o negro, compenetrado de sua nobre missão, não abusava de seu poder e
fazia-se estimar de todos. Além do gado que tinham em grande abundância, com a retirada dos índios para a
cidade dos jesuítas, aumentou-se extraordinariamente a caça de pena e cabelo, nos domínios ambrosianos, que
abrangiam os rios Misericórdia, S. João e Ferreiros, parte do Quebra-anzol, do Araxá e do Guaycuhy. E o
modo de caçar era o mais simples possível. Onde houvesse um rincão, os caçadores abriam fogos, cujos
orifícios ou bocas tapavam com frágeis ramos e capim; açulavam os cães nos capões e esperavam, cercando
as saídas. As caças acossadas e tiradas de seus ninhos, procuravam a salvação no campo e caiam nos fogos ou
na boca das espingardas, no gume dos facções ou no golpe dos cacetes ferrados e próprios para tais misteres.
Vastas roças de milho ou canaviais ondulavam ao sopro da brisa sertaneja e, desde a madrugada até ás
primeiras horas do dia, evitando o rigor da canícula chiavam os carros que conduziam milho e outros cereais
para o paiol ou tulhas, ou cana para a moagem.
Os primeiros estabelecimentos foram duas igrejas, a residência do chefe, o palácio, como diziam, a
cadeia, o engenho e mais dependências de uma grande fazenda. Ao redor deste edifício foram-se erguendo
habitações, que respeitavam a praça e as ruas; como vimos, a notícia daquele paraíso ia longe e diariamente
chegavam novos forasteiros, que vinham pedir agasalho, proteção, trabalho nas lei ambrosianas respeitadas e
veneradas como emanantes de um supremo poder, e Ambrósio via sempre crescente seu valor; no
reconhecimento de suas nobre qualidades via sempre e sempre mais amplo, mais verdadeiro o ascendente que
conquistara sobre seus súditos, cujo número subia a milhares. Diante o ceptro de sua autoridade que ele sabia
realçar, todos se curvavam reverentes e o ex-escravo no garbo de sua alta linhagem passeava seus olhares de
senhor sobre tantas cabeças como outrora os rudes senhores feudais sobre o castelo, a gleba e todos os servos
adstritos a ela.
E os anos iam correndo na placidez nunca sonhada pelos filhos de deserto; o povo aumentava; o
erário público bem vigiado dilatava-se na melhor espécie; os cabelos do chefe iam-se grisalhando e cada fio
de prata que apontava na sua fronte, era mais um pedestal seguro de sua onipotência reconhecida e acatada
por todo o vasto domínio que se movia, sem relutância, a seu simples e adorado sic volo, sic jubeo.
Como vimos, os jesuítas haviam deixado com Ambrósio em Tengo tengo, todos os criminosos e
relapsos, todos os que podiam, com sua índole, por seus vícios ingênitos, poluir os costumes ou introduzir a
cizânia na nova capital, que desejavam extreme de todos os vícios e males.
Pouco tempo depois, Ambrósio libertou-se também desses viciosos, a uns fazendo subir ao patíbulo
por novos crimes; a outros expulsando e relegando para tão longe e de tal modo, que não pudessem
reaparecer. Por muito tempo viveram de perfeita harmonia com a capital, com a qual mantinham as mais
amistosas e respeitosas relações, sendo de fato o Quartel ambrosiano dependência daquela, a qual servia de
auxiliar em todo o sentido, considerando como quartel militar. Nem sempre, porém, as feituras humanas
podem gozar da perfectibilidade, ou chegar ao fim, sem a lufada do vício que as esboroa em pó da inerente
contingência.
276
Para seus domínios fugiram muitos escravos dos jesuítas; os senhores reclamaram e Ambrósio,
Senhor absoluto em seu quilombo, cercado de prestígio e fortaleza, confiando em seu poder, insurgiu-se
contra os reclamos da capital, arrogante, despediu os emissários sob o peso de um terrível – não! E deu coito,
guarita aos fugitivos homiziando-os, e acolhendo-os sob sua poderosíssima bandeira. Houve, por isso, um
profundo estremecimento e conseqüente rompimento de relação, tornando-se os domínios de Ambrósio
independentes da Capital, desaparecendo a aliança tão gigantesca que tinham mantido até então. Por esse
motivo dois padres, portugueses ambos, Caturra e Custódio Coelho Duarte, despediram-se da Capital de seus
Superiores e sócios e vieram para o quartel trazendo muito dinheiro, principalmente o segundo, que sempre
fora rico e fizeram-se ambrosianos participando do progresso do novo reino. Todos os anos, por duas ou três
vezes Ambrosios mandava expedições a Vila Rica
601
, levando objetos ou gêneros de sua exportação e
voltando com escravos, comprados ou arrebanhados que iam aumentar os habitantes do sertão e súditos do
novo rei. Este, é bom que não se esqueça – proibia ás depredações, o furto, até o aliciamento de escravos e
exigia sempre dos chefes das expedições os documentos comprobatórios da lisura dos negócios feitos; nem
por isso deixava de se ilaqueada sua boa fé e entre os seus figuravam muitos escravos furtados ou
desencaminhados que seus emissários traziam, justificando seu ato com documentos falsos que forjavam e
apresentavam.
Querendo os dois padres retirar-se, cansados talvez da vida sertaneja, em busca de novos ares e
fortuna, Ambrósio comprou-lhes os escravos que tinham, a sessenta oitavas cada um, cumulou a seu ex-
senhor e mestre padre Caturra, de presentes, todos consistentes em dinheiro e pedras preciosas, deu-lhes uma
boa escolta, e aproveitando uma das regulares expedições retiraram-se ao padres, despedindo-se entre
lágrimas e protestos daquele povo que os queria tanto. Em uma destas expedições, talvez a mesma em que se
retiraram os padres, chefiada pelo valente João Wrumeia, os saldados de Ambrósio só puderam comprar e
levar um escravo, moço e forte, mas desses entes humanos em cujos cérebros parece ter estampado a natureza
o estima da antipatia, da repulsa, do desagrado. Seu nome era Pedro Rebollo.
Falava muito mal português e esse fora o motivo porque seu senhor o vendeu. Havia guerra em Vila
Rica – diziam os da expedição –; por isso não haviam podido fazer mais negócios. Ambrósio, que na escola
da experiência, no correr dos anos que lhe nevavam a fronte, no desabrochar das cãs, tinha aprendido a
conhecer os homens e as coisas, reprovou seriamente o negócio e severamente repreendeu seu lugar tenente
pela compra do moleque, mormente não tendo comprado e levado também uma rapariga núbil para com ela o
casarem, pois ele devia lembrar-se de que os assistentes no quartel eram todos casados ou, si solteiros, não
passavam de quatorze anos, – Fizeram muito mal, João, disse Ambrósio, em particular, a seu representante,
em trazeres para aqui este rapaz, cuja aparência não me engana; antes mil vezes o tivesses comprado,
libertado e largado por lá mesmo.
Moço, robusto e bruto... queira Deus que não traga alguma desgraça, que ela já não anda muito
longe, – eu o sei – depois que gritamos nossa independência e nos separamos da capital, por ... um capricho...
uma tolice!... devias ter comprado, uma vez que o trouxeste, uma rapariga por que preço fosse para mulher
601
Conservo sempre o nome Vila Rica a Ouro Preto pela época dos fatos.
277
desse animal, em quem não posso absolutamente ver coisa boa. Cuidado! Cuidado! – Havia muita guerra em
Vila Rica e eu fiquei com medo de ser preso com meus soldados. Recordas-te do que sofremos com os
criminosos que ficaram conosco, aqui? Oh! Muito! Pois o melhor é reconduzires esse rapaz, deixando-o livre
por onde quiser.
– Como o Capitão quiser. Senão estivéssemos mal com a capital... enfim, sessenta oitavas pouco
valem e por estes quinze dias há de levá-lo daqui para fora. Mais se arraigaram no ânimo de Ambrósio as
suspeitas contra o novo escravo, quando, mandando vir este a sua presença e fazendo explicar-lhe, por outros
negros da mesma nação, as leis do Quartel e os castigos a que estavam sujeitos, mostrando-se-lhe o patíbulo,
as prisões, Rebollo, em vez de amedrontar-se, ria-se, mas com riso alvar da maldade que se envolve na
estupidez e nunca podia firmar as pessoas e coisas, por que seu olhar suíno buscava o chão e não o espaço, as
trevas e não a luz. A esta prova, Ambrósio chamou de novo Wrumeia e ordenou-lhe que em oito dias
aprontassem nova expedição e seguisse, levando dali aquela víbora de nova espécie. Ambrósio acabava de
saber novamente que a exceção de seus dois generais, Wrumeia e Hynnhanguera, todos os mais que
costumavam fazer parte das expedições a Vila Rica, não só roubavam pelo caminho, como se juntavam a
outros quilombolas, para furtos, depredações, correrias e outros atos reprovados e proibidos pelas leis
ambrosianas. Além dos dois generais, outro havia de plena confiança no quartel, tanto que ele estava confiada
a guarda do tesouro: era Manoel Cabina. Este, porém, era fraco de espírito, capaz de render-se no perigo e o
chefe não lhe confiava arriscadas empresas próprias dos dois experimentados campeões. Mandou chamar
Hynnhanguera ao estreito dos fogos no Rio de S. João; mas esse chefe não pode vir logo, por se achar
mordido de cobra. Dois dias depois da prova a que foi sujeito Rebollo este faltou com o respeito devido a uma
mulher casada, pelo que foi asperamente repreendido. Não se corrigiu. Logo depois, quis forçar a uma
rapariga solteira; esta gritou; seu pai acudiu e o atrevido quase prostrou o velho com um cacetada que lhe
descarregou com toda força de seu pulso.
Preso e levado a presença de Ambrósio, este fê-lo castigar severamente, rigorosamente e pô-lo a
ferros. Mal sarou dos castigos, quando estava preparada a expedição, Wrumeia caiu doente de, maleitas,
apanhadas no Rio S. Francisco! Tudo coincidia de tal modo, que pareciam congregados todos os elementos,
todas as coisas, e na linguagem tétrica das superstição de que os pretos ainda não se tinham forrado totalmente
e jamais se forrariam, para nos legarem muitos males, Ambrósio ouvia constantemente a lufada da desgraça
que não lhe passaria longe. E não eram sem fundamento os temores do velho africano.
Rebollo, logo que pode, mostrou-se completamente morigerado e, nas mais pronunciadas juras de
resignação, pediu que queria trabalhar e foi mandado para o oito com os mais. Durante os dias que trabalhou,
tal arte teve, tal procedimento aparentou, que iludido perfeitamente aos encarregados de sua vigilância.
Sabendo manejar arco e flechas como o melhor indígena, nas horas vagas, a título de caçador, preparou um
bom arco , afiou o temperou as melhores setas com que munido seu carcaz, preparou matulagem e, em uma
noite de sábado, quando toda cidade enchia os templos e a praça em uma festividade religiosa que se
celebrava, fugiu, caminho de Vila Rica.
A festa ocupou a noite de sábado e todo o domingo seguinte, de maneira que somente na segunda-
feira, á hora de partirem para os trabalhos, foi que se notou a falta de Rebollo, que não respondera á chamada.
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O encarregado desse mister correu a dar parte a um dos maiores e este ao chefe, ouvindo-lhe dos
lábios meios cerrados o seguinte solilóquio: – Estamos perdidos! Tendo o calhambola, aquele maldito, saído
na noite de sábado e andando regularmente, deve atravessar, hoje, as matas do Rio Sujo (Bambuhy) e daqui
até lá são 25 léguas a 30 léguas bem puxadas! Na mata há boa picada; no rio S. Francisco boas canoas e ele
sabe onde elas estão! Em todo o caso... sim, uma escolta deve seguir a seu encalço e matá-lo, consumi-lo,
onde o encontrar! Foram dadas logo terminantes ordens e uma escolta bem preparada seguiu ao encalço do
fugitivo, sentenciado á morte sem remissão.
Caturra
Como vimos, logo após o rompimento entre a capital dos jesuítas e o Quartel ambrosiano, os dois
padres deixaram aquela e vieram para este, sendo recebidos com entusiasmo e as mais pronunciadas provas de
contentamento por toda a população da cidade que orçava já por seus cinco mil habitantes de ambos os sexos,
de todas as idades. Cansados daquela vida sertaneja ou visando maior glória e mais fortuna, quiseram retirar-
se; Ambrósio comprou-lhes escravos que ainda tinham a sessenta oitavas por cabeça, cumulou-os de
lembranças, principalmente a Caturra, seu ex-senhor, à quem presenteou com muito dinheiro em moeda e
pedras preciosas fornecendo-lhes boa escolta para a viagem, e os padres saíram, deixando todo o povo imerso
nas mais sinceras saudades. Não havia o menor perigo na viagem naquele tempo, sob a proteção de
Ambrósio, por que, os índios, sobre serem aliados, estavam todos na capital com os jesuítas: A estrada já não
era a antiga, pelo espigão; ganhava-se o rio S. João, deste ao S. Francisco, Santo Antônio do Monte e, dali,
por estrada fácil, até Vila Rica. Em Sant’Anna de S. João separaram-se os padres: Custódio ficou e Caturra
seguiu, sempre como secular, por que os jesuítas não podiam aparecer em parte alguma como tais, por causa
da desenfreada perseguição que sofriam. O melhor negócio nesse tempo era a compra de moleques, na Costa
da África, para vende-los no Rio de Janeiro, e tal foi a ganância de nossos antepassados nesse nefando e
condenável gênero de comércio, que foi necessária uma lei especial para acabá-lo, (1831) o que de todo não
conseguiu, por muito tempo ainda, continuou clandestinamente, tendo então os moleques o epíteto de meia-
cara. Possuindo, como vimos, muito dinheiro, produto de seu trabalho antigo, da venda dos escravos e
presentes de Ambrósio, Caturra foi para o Rio de Janeiro, onde, aproveitando a companhia de outros
traficantes de carne humana, se embarcou para a costa da África. Sua estrela, até então brilhante, começou a
empalidecer-se, e, não sem muitas lágrimas, o jesuíta lembrava-se de sua vida tranqüila e respeitada nos
sertões mineiros. É tudo isto efeito do nunca saciado desejo humano. É a ambição eterna do gênero humano,
que, quanto mais sobe, mais deseja subir, por que novos horizontes e mais belos se erguem além, mal se galga
uma colina, antes considerada o último ponto dos Anelos, o término tantas vezes almejado dos nossos loucos
sonhos.
Caturra somente se lembrava dos audazes que percorriam os mares (audaces mare qui currunt) e
esquecia-se completamente da sátira com que o velho Horácio castigou os que não vivem contentes com a
sorte exclamando:
279
“Qui fit, Mecenas, ut nemo quam sibi sortem
Seu ratio dederit, seu fors objecerit, illa
Cetentus vivat, laudet diversa seguentes?”
602
Entregar-se a mercê das vagas, á dubiedade da empresa, á incerteza do negócio, ao terrível dos
perigos foi o que menos o abalou; por que no Caleidoscópio de sua imaginação, quiçá de sua vaidade, antevia
tudo feito, tudo bem coroado, tudo cor de rosa, e ele um grão-senhor, um potentado, como jamais pudesse
alcançar na simples roupeta de religioso. E a lenda de Ahasverus sempre a mostrar-nos a figura da ambição,
do insaciável desejo do além! Caturra surdo á razão, somente ouviu a voz de sua cobiça e entregou-se ás
aventuras; a nau que o conduzia, singrou nas salsas ondas do oceano e em pouco desapareceram nas fímbrias
do horizonte os vestígios da terra de Santa Cruz, onde tão bem lhe correra a mocidade, nem lhe magoando a
lembrança a imagem tétrica da perseguição, por que nascera com o temperamento mais para guerreiro, do que
para o claustro, ou para os combates da cruz, na paz da religião. Acossados, em alto mar, Caturra e seus
companheiros foram presos pelos piratas, espoliados e todos os seus haveres e vendidos, como escravos, na
Argélia, onde experimentaram os horrores da escravidão aqueles mesmos que procuravam entes humanos
para escraviza-los. Quão varia é a vida! Resignou-se ali, no cativeiro, e, tempos depois, pelo governo
português, a cujos ouvidos chegaram os lancinantes gritos de seus súditos, foram resgatados e levados para o
reino, pobres e torturados sempre pelos estigmas da passada escravidão. Quem, após tantos acontecimentos,
adivinharia em Caturra um jesuíta e dos mais considerados pela Ordem?! Em Portugal alegou que era
brasileiro e, como tal, reenviado para aqui onde, com justo pesar reviu a arena de suas passadas glórias,
murchos os louros de seus antigos e proclamados triunfos. Não se lhe arrefeceu de todo o fogo da esperança,
que tanto e sempre o alentara nos difíceis transes por que passara; se não podia vergar de novo a roupeta que
lhe pertencia e apresenta-se qual fora em melhores tempos, embora bastante alquebrado pelos anos e curvado
ao peso dos sofrimentos inauditos, ainda tinha força e vigor para não deixar morrer á mingua, na esteira dos
hospitais, e de novo investiu contra a sorte, em riste a lança de sua inquebrável vontade. Meteu pés a
caminho; chegou a Vila Rica e fez-se soldado, obtendo praça entre os milicianos de então. Deixemos, por
enquanto, o ex-padre, ex-rico, ex-senhor, ex-negociante, ex-escravo feito soldado raso, nos limites da caserna,
sujeito aos horrores da faxina e do toque da corneta, e reatemos o fio de nosso assunto, buscando o ponto em
que ficamos.
A traição
Nada há mais forte, mais rijo, mais incoercível, mais indomável do que a vingança, esse fogo
ardente que se acende em nós, quando chega a aparecer-nos o único caminho, o único alvo a que devemos
atingir. Quando é sincero o desejo da vingança ao mal sofrido, o homem esquece ilustração, religião, posição,
deveres para com amigos, para com a família, para consigo mesmo e somente pensa no sangue que quer
derramar, no trono que pretende desmoronar, no orgulho que anela abater, na miséria que deseja cavar, no
602
Horacio. Satir. 1.
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inimigo, em suma que aspira, almeja subjugar, nulificar, suprimir. Para o homem afetado desse mal terrível,
desse morbos que lhe corrói a consciência e lhe apaga a luz da razão, só há caminho e dele debalde quererão
afastá-lo as circunstancias, as próprias conseqüências, por funestas que se lhe antolhem, quando por acaso lhe
perpassam pela mente enferma. Edmundo Dantes, riquíssimo, cerra os olhos á glória, ao renome, a tudo e
fazendo escabelo de sua inimitável riqueza de Monte Cristo, só tem olhos para o escopo de seus anelos: a
vingança de seus inimigos. Nem os anos que passou cárcere, nem a lembrança de seu benfeitor, nem os
sofrimentos, nem a glória da riqueza imensa, nada pode demove-lo sequer do alvo que mirava sua vontade
inquebrantável: sentia a sede da vingança a torturar-lhe a alma e ver seus inimigos, os autores do seus
sofrimentos, subjugados, nulificados a seus pés, era seu único almejo na vida. Seu farol, seu guia, seu céu era
a vingança. O homem que tem por alvo certo a vingança, é um furacão desencadeado: envolve e varre tudo
que tenta obstar-lhe o caminho ou deter-lhe a fúria. Voltaram como saíram os emissários de Ambrósio ao
encalço de Rebolo. No Rio São Francisco não encontraram as canoas; uma só estava do lado oposto. Que o
fugitivo desatara as outras, largando-as rio abaixo, menos uma única em que atravessara, foi a conclusão
natural e lógica que tiraram do que presenciaram.
Tudo prenunciava ao Chefe próxima tempestade a que talvez não pudesse obstar e aos olhos de seu
espírito caia desfeito tudo que fizera, um passado inteiro!
Domou seu orgulho, pôs de parte o tão nefasto respeito humano e, por cabos de sua inteira confiança,
comunicou aos jesuítas tudo que acontecera e tudo que temia viesse acontecer. Reuniu seu conselho e
determinou que de então para o futuro todos os guerreiros tivessem prontas suas armas e muita munição; que
o povo recolhesse á cidade tudo que quanto tinha e ninguém saísse sem ordem expressa. Pedro Rebolo estava
animado pelo espírito, pelo desejo ardente da vingança e, assim, fez o que ninguém fazia só, senão muito
acompanhado: rompeu o sertão bruto, na distância de quase cem léguas, tendo por arma seu arco e por
alimento talvez uma rapadura e um pouco de farinha no bornal e parou em Vila Rica, de onde e levaram.
Falava muito mal o português, era quase incompreensível para quem não conhecesse o idioma africano.
Chegando a Vila Rica, procurou logo seu ex-senhor, oficial de milícia e, por interpretes narrou o que vira,
dando idéia, não de um quilombo qualquer, mas de um reino perdido e ignorado lá no centro de Minas. Não
sabendo contar mais de dez, para dizer ou denunciar o número de quilombolas do tal reino, apresentou um
pedaço de pau lavrado em cujas quinas havia uma infinidade de piques; conforme esses piques, fez uma
porção de montículos de grão de milho, de dez cada um, pelos quais chegaram á conclusão de que no
quilombo havia cerca de seis mil habitantes, governados por um rei, que tinha a suas ordens um poderoso
exército e morava num palácio talvez melhor do que o de Vila Rica! E o negro, boçal para tudo, menos para o
mal, descrevendo essas grandezas, nas hipérboles tão comuns e próprias entre os indígenas, dava idéia de tal
quilombo, de tal reino como nunca houvera.
O Alvoroço causado por tal notícia, naquele tempo, foi uma bomba que estourou de modo
descomunal.
O ex-senhor detendo o ex-escravo e impondo o mais absoluto segredo ás pessoas presentes, transido
de medo ou fascinado pelas alviçaras, mais que depressa correu a palácio e misteriosamente, como o mais fiel
dos súditos, o mais digno dos cidadãos, pediu reservada audiência ao Governador e despejou-lhe nos ouvidos
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tudo o que sabia o mais o que sua imaginação pode preparar. – Jesuítas! – foi o eco que retumbou por todas as
salas, todos os corredores, todas as abóbadas do palácio. – Jesuítas! – foi o reoforo, o imã que percorreu
célebre, mas debaixo de todo o mistério, as altas patentes, todo o exército e fez explosão no meio do povo,
naquele tempo, tão sujeito a moções dessa ordem, a surpreso que o despotismo não cessava de fazer. E o
povo, assustado com aquela palavra fatal, repetia também “Jesuítas”! sem ao menos saber do que se tratava!
O negro delator foi imediatamente conduzido ao palácio, preso e detido com sentinela á vista, para que nem
sequer pisasse na rua o que sabia. Comunicações oficiais foram logo mandadas para o Vice-Rei, no Rio de
Janeiro, e o governo mineiro começou a cuidar logo nos aprestos necessários. Caturra perspicaz e habilíssimo,
fazendo mo papel de um soldado ignorante, cabelos e barbas grisalhos e sempre em desalinho, apanhou no ar
a história e quis entrar-lhe no amargo. Na sua vez de sentinela, porque falava perfeitamente a língua africana,
como o guarany, tupy e outras, logo que teve ocasião e pode, conversou largamente com Pedro Rebollo e pôs-
se ao corrente de tudo. É preciso não esquecer que a ida de Pedro para o Quilombo, foi posterior á saída de
Caturra; por isso não se conheciam. Outros soldados, entretanto, que ouviram a demorada conversação, nada
entendendo, suspeitaram de Caturra e este continuou também vigiado. Embora, desde que assentara praça,
pusesse em tudo a maior dissimulação, fazendo-se bronco até, apesar de todo o cuidado, uma vez ou outra,
traia-se dando a entender aos bons observadores que não era o homem que pretendia parecer, mas sim
ilustrado e possuidor de todos os dotes, não para soldado raso e sim para general. Sabia-se que da primeira
perseguição, logo após a lei expulsão, auxiliados por índios e escravos, tinham-se salvado muitos jesuítas e
muito não seria fosse Caturra um deles, e tanto assim suspeitavam que o haviam alcunhado O padre-mestre
jesuíta. Por isso tem sempre razão o antigo brocardo: voz do povo, voz de Deus, (vox populi vox Doi) ou este
outro: as aparências enganam muitas vezes (frons, oculi, vultus, percoepe mentiuntur).
Não se enganavam os que mantinham tais suspeitas, porque naquele velho e simples soldado estava
um jesuíta, o que queria dizer: um sábio; naquele vulto, como em um bloco de granito, estava a estátua, o
símbolo do valor, do sofrimento, da resignação, da coragem, o receio enfim açoitado tantas vezes pelas ondas
bravias do infortúnio desapiedado, no mare magnum da existência. Pelas narrativas muito exageradas que
corriam estavam todos convencidos de que tal quilombo, o tal reino, o tal novo mundo nos sertões mineiros
não podia ser obra de simples negros boçais, de rudes calhambolas; com toda a certeza eram os jesuítas que,
corridos do Rio de Janeiro, da Bahia, de S. Paulo, lá se haviam reunido e, fortes como estavam, não tardaria
muito que viessem contra o governo mineiro, contra todo o Brasil. Em muitos semblantes estampava-se o
terror: cada dia esperavam ouvir o grito de guerra do exército jesuíta invadindo a Capital da província. O
negro continuava em palácio, bem tratado, mas muito vigiado e incomunicável para com os do povo.
Conhecendo a história, de que não perdia uma linha, um ponto, Caturra dava tratos á imaginação a ver se
descobria um meio de comunicar a Ambrósio o que se passava em Vila Rica; mas debalde. Um piquete de
cavalaria foi expedido, com carta de prego do Rio de Janeiro, levando a nova tão importante. Caturra, que da
infantaria passara para cavalaria, meteu empenhos para fazer parte dessa embaixada, mas não o conseguiu.
Esse empenho, entretanto, que mostrou em prol do governo, o ódio que, com arte mostrou contra os jesuítas, a
indústria enfim, com que se aveio, desde que se percebeu suspeitado, tudo lhe valeu a suspensão da dúvida e
ficou verificado que aquele velho soldado não passava de um bom homem cuja jovialidade todos achavam a
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maior simplicidade de pensamento. E, se o jesuíta soldado, antes, se fizera estimado de seus companheiros e
chefes, dali em diante pela redobrada assiduidade, pela bonomia, pelo respeito para com todos, mais estimado
se fez, merecendo as atenções dos superiores e amizade de todos. Seu desejo ardente, seu empenho era
encontrar um meio de comunicar a Ambrósio o que preparavam a seu respeito; debalde porém, por que as
circunstâncias, as coincidências como guiadas pelo espírito adverso pareciam congregadas, conspiradas no
mais terrível conubio contra seus amigos. Expedições não vinham mais a Vila Rica e comunicações não havia
de espécie alguma com aquele reino, com aquela espécie de Golconda, alvo do medo e da cobiça dos
potentados e ambiciosos, em seus cálculos leoninos. Muitas vezes, alta noite, Caturra chegou a levantar-se,
cingir a espada, tomar o bacamarte, meter no bornal qualquer matalotagem para fugir, arrostar o sertão com
seus perigos e ir levar aviso e salvação aos seus. Como fazer, porém, naquele tempo, só, velho, alquebrado,
desabituado das grandes viagens a pé sem conhecimentos dos caminhos, por entre os selvagens e animais
ferozes? Que fazer em tais emergências, senão confiar em Deus, curvando-se aos latos desígnios da
Providencia? Foi o que fez. Pedro Rebollo havia rompido tudo e chegara a seu alvo: mas o negro era moço,
forte, e alimentado sobretudo, pelo desejo irresistível da vingança pelo ódio, pelo rancor, pouco lhe doendo a
vida que se lhe servia de meio. Além disso todas as autoridades já deviam estar avisadas, o desertor seria
preso, talvez reconhecido e, então ficaria confirmado o que supunham e recrudesceria o ódio contra seus
irmãos e aliados. Os Aymorés, apertados nas matas gerais, invadiam o campo e chegavam até a serra da
Canastra, divisa do reino ambrosiano, indo dali até ao Quartel o sertão bruto, o império absoluto dos animais
bravios, que não se arreceavam das setas indígenas nem das espingardas dos negros, uns e outros ocupados na
capital jesuítica e no Tengotengo. Apertado entre tantas contingências, Caturra desistiu de qualquer tentativa e
quedou-se, resignado na vontade de Deus, a quem, no silêncio de sua crença, suplicava pelos seus. Pedro
Rebollo, cumprindo o voto que fizera, havia traído, lançado aquela bomba da delação, que havia estourado e
cujos estilhaços lhe cairiam um dia sobre a própria cabaça. E com isso tinha aberto igualmente um campo, em
que os bajuladores representavam seu triste papel, conseguindo as graças e mais intimidade com os
potentados, não por amor ás instituições, não pelo bem da pátria, mas somente pelo seu, particular, que, talvez
periclitasse, não havendo um motivo justificado, para, com mais segurança, se inculcarem patriotas e
abnegados que absolutamente lhes faleciam. Somente Caturra compreendia o que via; por isso cada vez se
fazia mais ativo e insinuante para com todos, ganhando estima e simpatias, sem jamais deixar de ser nas
casernas o Padre-mestre-jesuíta, que de fato o era. Inteirado da magnitude dos assuntos, que tanto mais se
avultara na sua imaginação, quanto os petroleiros e pretrorianos aguçavam a intriga, o governo mandou logo,
com todas as cautelas apenas pedestre e convidar os melhores capitães do mato, naquele tempo, pessoas de
tão alta relevância, que havia leis e decretos a seu favor
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entidades criadas especialmente para a caçada de
negros fugidos, e que tinham a seu mando jagunços e ganha-pães, todos escudados na égide do despotismo e
tirania daqueles tempos. Como se tivesse o governo de Minas de sair a conquistar por longes terras, qual,
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Esta expedição terá relação com a mencionada pelo ilustrado Comandante José Pedro
Xavier de Veiga nas Ephemerides Mineiras de 8 de maio de 1747 e 15 de abril de 1756?
Parece-me que sim.
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outrora Roma e Grécia; como se estivesse ameaçado invasão estrangeira, já tocando os limites de seus
domínios, desde a terrível delação começaram os preparativos bélicos, os aprestos para uma grande, nunca
vista expedição, que tinham delineado, com todo o aparato possível, para o sertão mineiro; mas tudo debaixo
de tal sigilo para com o exército que somente Caturra, sabia, não que lhe contasse alguém, mas que ele
deduzia de tudo, até dos mínimos movimentos, fazendo-se para isso, cada vez mais abstrato e alheio das
coisas que fervilhavam por todo seu ambiente. Para que lembradas, duas circunstâncias havia de alto
interesse. Tanto em Vila Rica como no Rio de Janeiro, logo que se iniciaram, com açodamento desusado, os
preparativos bélicos, ignorando o povo o fim principal, fazia correr duas versões, qual mais cheia de
afirmações categóricas. Um diziam que tais aprestos eram para rebater os franceses ou ingleses que vinham
por Montevidéu com tal frota, que, num ápice, era capaz de subjugar e vencer todo o Rio de Janeiro; diziam
outros que os inimigos tão metuendos não eram nem franceses, nem ingleses, mas simples e unicamente os
índios ferocíssimos do Rio Doce que já estavam de marcha e pretendiam atacar Vila Rica. Ao passo que o
povo, mais razoável, assim supunha, os governos e altas patentes, tanto do Rio como de Minas, só viam diante
de si, como fantasmas, duendes poliformes e descomunais, as figuras dos jesuítas, não os humildes
missionários, vergando a roupeta e alçando a cruz, por entre as florestas a catequizar, mas sim terríveis
guerreiros, com o facho da vingança em punho, reclamando seu direito, seus bens, sua fortuna, seus
discípulos, suas ordens, de que haviam sido esbulhados! E o remorso, cravando os dentes de ira, que rangiam
na alma do despotismo, espalhava a insônia nos macios leitos dos governantes ou provocava-lhos os sonhos
de monstros que lhes babujavam as faces descarnadas, rojando-se depois pelo tesouro e engolindo todo o ouro
com que o mísero povo era tributado para regalo da metrópole! – jesuítas era a palavra terrível que, dia a dia
noite a noite, toda a governança tinha atravessada na garganta; era o pesadelo que continuamente a tortura e a
cada instante, a cada momento parecia ouviram nas altas serras que servem de atalaia á antiga Vila Rica, as
roucas vozes de vingança, do extermínio voando nas envenenadas e aceradas setas indígenas, ao mando cruel
e incoercível da grande companhia, na reivindicação do seu direito, insurta contra a lei Tirânica! Os
preparativos continuavam ininterruptos e não se falava senão naquilo; para muitos o trono vacilava, a derrota
era certa e, como tinham haveres, não se esqueceram de os guardar bem guardados, confiando a terra, em
esconderijos bem escusos, o que, não propriamente á terra, que está dava aos pobres, mas á sua industria
deviam. De vários pontos foram chamados o célebre Cavaco, o famigerado Gregório, o valente Feliciano,
cada um com o seu troço de cinqüenta bacamartes, ganhando os chefes quatro oitavas de ouro em pó cada um
e seus ajudantes um cruzando novo (400 reis) por cabeça de ... calhambola. Dali a merecida alcunha de Corta-
cabeças que a posteridade deu a esses executores de ordens tão bárbaras com que o Governo de Ultra-mar
mimoseava a pátria mineira colonial nos ominosos e infanos tempos do canibalismo – lei. E quais os
predicados desses escravos do despotismo apontados para tais empresas? Fanáticos até a superstição,
ignorante até a estupidez, esses capitães do mato e seus apaniguados tinham por ginástica o saber trepar nas
árvores como macacos, nadar como lontras, corres como veados; por instrução ser bom feiticeiro; rezar o
credo em cruz; saber tomar parte com o diabo, na noite de S. João; matar com veneno; chamar cobras com
assobios; rezar a oração de S. Marcos; passar por entre cães de fila, sem estes latirem; em fim e ai estava a
supra suma do valor – sabor de um só golpe decepar uma cabeça! E eram os senhores de baraço e cutelo e
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seu mais estupendo triunfo era trazer o maior número possível de orelhas das vítimas que sacrificavam, na
fúria do canibalismo, ficando memorável a expedição em que o triunfo subiu a três mil e novecentos pares de
orelha
604
. Três meses depois da delação do negro, que continuava preso e incomunicável em palácio,
chegados os contigentes do Rio de Janeiro e de outros pontos, reuniu-se em Vila Rica um exercito de três mil
homens e marchou para o sertão, sendo tradição que o tropeiro condutor do trem bélico fora Pedro Rodrigues
Lopes Vital, morador na fazenda Pedreiros no arraial Aranha.
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Fluia então o mês de Maio. Pedro Rabello,
nédio, satisfeito, foi levado como guia especial, sob pena dos mais severos castigos, se claudicasse, o que
aconteceu mais de uma vez, por que mais de uma vez errou o caminho. Quase dois meses depois que saiam de
Vila Rica, chegaram ao Rio São Francisco, ao lugar, posteriormente denominado – Porto de José Simões.
A Expedição
Ai conhecido o rio, vaqueanos que tomavam parte na expedição, derrubaram madeiras, fizeram
pirogas, canoas e ajoujos e atravessaram a mata e ganharam as cabeceiras do Abaethé, a esmo. Ameaçado de
novos castigos, por que os chefes da expedição já cansados e mortificados por tal viagem, supunham traídos
pelo negro, talvez um emissário dos jesuítas, por felicidade inaudita, Rebollo conheceu as alturas e
comunicou-o ao comandante. Voltaram ao Sul, pelo espigão mestre e chegaram a lagoa dos Patos o negro, em
transporte de alegria, reconheceu e mostrou ao chefe um corte que havia feito em uma árvore, quando fugira!
O que lhe valeu ser solto, pois, desde muito longe, vinha preso, na suposição de que fosse traidor. Ali
acamparam, seguindo no outro, mais animados, porém mais cautelosos, pois aproximavam-se já do ponto
almejado e demandado com tanto afã e sacrifício. Três dias depois avistaram uma sentinela e um morro, para
o qual o negro, satisfeitíssimo apontou repetindo: Tengo-tengo! Por todo o exército, desde os comandantes até
os tropeiros, corre aquele frêmito próprio das vésperas de grande batalha, confiando cada qual no valor que
devia ter e nas armas, que examinavam, para que não falhassem no preciso momento. Um dos soldados,
entretanto, barba cerrado e quase toda já de neve, enquanto a alegria ressumbrou na fisionomia de todos, ao
avistar aquele morro, tão seu conhecido, simulando uma dor física qualquer, abaixou os olhos e grossas
lágrimas umedeceram o chão em que pisava: era Caturra! A cidade ou quartel ambrosiano estava colocada em
um lindo descampado, no encontro de dois córregos, que forneciam grande abundância de água, tanto para o
consumo público, como para os engenhos, moinhos e outros mecanismos. Circulava-o um valo com a
extensão de uma légua em circunferência largo e profundo, eriçado no centro com pontiagudas estacas de
aroeira do sertão, cuja rijeza e durabilidade são legendárias: acima do valo e acompanhando todo este, aguiza
de muralha, levantava-se um terraço de oito palmos de altura por dez de largura: um só portão, junto ao qual
havia uma ponte levadiça, dava acesso á cidade, que era um perfeito arremedo das antigas cidades
fortificadas. Logo ao pé do portão havia uma igreja e dali seguia a rua principal, até ao grande largo ou praça,
onde se erguiam as torres de um belo templo com seu campanário; palácio real ou residência do Ambrósio; a
604
Ephem. Mineiras. Loc. Cit.
605
Do manuscrito não consta o nome do chefe da expedição.
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cadeia com seu grande pátio fechado, por grossos muros; o patíbulo, e os mais importantes edifícios. O portão
era de duas bandeiras, muito largas e cosidas com grossas chapas de ferro. O erário público era no palácio.
Dies Iroe
Quanto a vida social, o quartel ambrosiano apresentava o melhor paradigma das cooperativas. Todos
trabalhavam para a sociedade; tudo era de todos, mas não havia meu nem teu. Todo o produto era recolhido
ao tesouro, se dinheiro ou pedras preciosas; aos armazéns, se produtos da lavoura. O chefe e os principais
tinham roupas finíssimas, que vinham da capital jesuítica; para o comum, porém, o pano era fiado e tecido ali
mesmo, de algodão que cultivavam, ou de lã de seus carneiros, que, eram grande manadas povoavam os
campos adjacentes. Cada família tinha sua residência que edificava; se, porém, se ausentava de vez, o que
nunca acontecia, nada podia vender, contentando-se com a indenização que o chefe julgava merecida. Para a
vida ali, de nada tinham necessidade, por que havia tudo, com fartura, devido ao lato tino administrativo de
Ambrósio. Do trabalho, que faziam, tinham, entretanto remuneração em dinheiro, que ali mesmo empregavam
em compras no grande armazém, sempre bem sortido pelas constantes expedições de exportadores e
importadores do Quartel. O chefe era respeitadíssimo e a comunidade progrediu sempre a olhos vistos. As
aspirações daquele povo limitava-se ás festas dos sábados e domingo, á pesca, á caça e, sobretudo ás danças
em que aluá, servido, a vontade, levantava os espíritos nos mais chorosos devaneios, podendo, com toda a
razão dizer com Tytyro: este paraíso é um dom celestial nosso verdadeiro éden. (Deus nobis hoec otia fecit.)
Mal convenceu-se Ambrósio da emergência em que se encontraria, por que a fuga de Rebollo lhe aparecia
como a pequena nuvem que se adelgaça na barra do horizonte e horas depois, se transforma em horrenda
tempestade, deu as mais severas ordens a seu povo, suspendeu as expedições a Vila Rica e comunicou tudo
aos jesuítas, então fortes em sua Capital. Seus antigos senhores esqueceram-se do que tinha havido e
convidaram instantaneamente a Ambrósio e seu povo para a fuga, por que tinham diante de si o Paranaiba
coalhado de inúmeras e próprias embarcações, e, por ele em novo e mais seguro êxodo, ganhariam os intensos
sertões de Góiais, e além os de Mato Grosso, onde ninguém se atreveria a procura-los, como aconteceu de
fato mais tarde. Príncipe de direito em sua terra natal e de fato nos sertões mineiros, experimentado campeão
em mais de uma refrega, quando interpusera a própria para salvar a vida do seus senhores, livre já, chefe e
senhor absoluto em seu pequeno reino, respeitado e encomiado constantemente por todos os que o rodeavam,
poderoso em suma, ainda assim Ambrósio não rejeitou logo o convite que, por si, aceitara de olhos fechados.
Convocou seu Conselho, reuniu o povo e provocou um plebiscito. Os chefes queriam aceitar o convite; o
povo, porém, na maior parte cativos fugidos da Aldeia de Sant’Anna, opôs-se receiando o cativeiro, e o chefe
acedeu, a menos que não quisesse uma revolta tremenda. Ficou: mas nunca se enganou, por que na
clarividência própria de sua sagacidade, antevia muito carregado o horizonte e tenebroso o futuro de seu
povo; no entanto, chefe, não podia abandonar o posto de honra que lhe fora confiado e no qual soubera fazer-
se merecedor da estima de todo um povo que guindara a um mundo ideal. Que fazer em tais conjunturas?
Fraquejar, nunca! Esperar, sim! E esperou. Em Conselho determinou que os três mil homens que formavam o
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exército, estivessem sempre prontos, tanto dentro, como fora dos muros, ao primeiro sinal; que o povo se
recolhesse todas as noites, ainda aqueles habitante que, por especial permissão, tinham residência fora do
vale, á cidade, cujo portão seria fechado por um dos chefes; que os vedetas, lá denominados – gaviões –
revezados sempre, alongassem constantemente os olhos para não serem surpreendidos. Parecia premunido
com estas simples precauções; no entanto faltava-lhe o essencial: um emissário, um ousado que lhe fosse
noticiar o que se passava em Vila Rica a seu respeito! Bem que o quisera Caturra, envidando todos os meios
para isso; mas parecia chegado o tempo fatal, em que tinha de se apagar para sempre a bela estrela que o
guiara e soava-lhe aos ouvidos a trombeta com que Jeová proclamava o castigo do antigo povo hebreu! Corria
o mês de Agosto. A sentinela que vigiava o morro Tengo-tengo, descuidada pelo decurso pacífico de tanto
meses, caio logo flechada por um apenado dos Capitães do mato. Protegido pelo mato, pelos morros, pela
natureza do lugar, o exército preparou-se para a sortida, que prelevava. Circulada pelo grande valo o terraço,
retida a ponte levadiça e fechado o grande portão os habitantes supunham inexpugnável sua cidade. Que
engano! Caiu a noite e, nas negras dobras do seu longo manto, envolveu a cidade, o campo, os montes e serras
circunjacentes. O negro traidor, em cujo semblante ressumbrava a alegria feroz do tigre, foi o guia, e, quando
todos na cidade dormiam o sono tranqüilo do inocente, as sentinelas das ameias rolavam no vale tiros não
acordasse aos que dormiam! A cidade foi cercada em regra. Bem formado, o primeiro cuidado do
comandante, foi mandar, no silêncio que reinava, arrancar do vale os estepes que calçavam. Todas as manhãs,
ao romper o dia, os quilombolas iam rezar, na igreja da frente, a de perto do portão, por que a outra, como
sendo a matriz, era destinada ás grandes festas, e ninguém podia sair para o trabalho antes de cumprir esse
dever religioso, para o qual o sino dava o sinal conhecido. A cidade estava sitiada. O sacristão subiu á torre e,
regularmente, como nos mais dias, badalou no sino as pancadas do despertar; no interior as luzes iluminavam
o belo templo e o povo, homens, mulheres e crianças, uns bocejando, outros ainda persignando-se, estes
atando as calças com o correeiro, aqueles abotoando a camisa, uns lépidos, outros estremunhando ainda,
fazendo repetidas cruzes bocejante, com o polegar direito, todos vinham chegando e penetrando no templo,
que em pouco se viu pejado de crentes, devotos ou cumpridores de seus deveres, que se premiam nas naves,
na mais respeitosa compostura. Um dos maiores veio ao portão, abri-o, desceu a ponte levadiça para que as
sentinelas como de costume, entrassem, e voltou para o templo, sem coisa alguma reparar, nem pressentir, tal
a cautela dos sitiantes. Começavam os cânticos sagrados, e por uma coincidência especial, nunca as vozes se
haviam casado tão bem, nunca houvera tanta harmonia naqueles louvores matutinos ao Criador e a Nossa
Senhora Virgem-Mãe. Foi nesse momento que o comandante da força sitiante, cada vez mais convencido de
que cercava Jesuítas e não negros, Padres e não simples leigos, obliterados por completo seus sentimentos
religiosos, os sentimentos que oficialmente, obrigatoriamente eram incutidos no lar, nas escolas, na quartel,
nos templos, na rua, em todo parte, lembrando-se somente dos louros, execrandos na posteridade, que podia
colher surdo aos ditames da consciência que ia ter, fez assestar na abertura do portão as peças de campanha,
rompendo fogo contra o templo, contra todo aquele povo inerme e descuidado, indo o ribombo da artilharia
cortar em meio as vozes dos devotos e crentes, que, nesse momento, subiam ao trono excelso do Senhor! E os
lamentos dos que caiam ceifados pelas balas, e os gemidos das mães varadas, quando ainda no leito, e os
vagidos lancinantes das inocentes criancinhas pilhadas pelos estilhaços, pelos ricochetes dos projeteis, na
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última sucção do leite materno, e o vozear infrene dos sitiantes, o clangor dos clarins, e o alvorotos dos
sitiados espavoridos, correndo ás armas, contrastavam-se com o ribombo sinistro da artilharia e o pipocar
cerrado da fuzilaria, vomitando a morte contra o povo inerme, contra velhos trôpegos, mães fraquíssimas e
presas no leito, criancinhas incapazes, contra a velhice, contra a fraqueza, contra a inocência! Os sitiados,
colhidos tão de súbito no auge do desespero, por falta de aviso de seus gaviões (sentinelas) a voz do Valente
João Wrumeia, lançam-se ás armas e, em coluna cerrada ou em grosso pelotão avançam contra o portão.
Ignorando talvez a existência da artilharia encontram obstruída a única saída e contra eles recrudesce o fogo
dos sitiantes, varrendo o interior da cidade. Não cedem os sitiados. Comandados por Wrumeia, por
Hinnhanguera e pelo próprio Ambrósio em pessoa, fazem do templo trincheira, galgam aqui e ali a grande
muralha e, se não podem bater-se em prélio campal, cantam, com certeza de suas balas, os sitiantes, que
também juncam de cadáveres a parte externa da cidade. Cerca de 9 horas da manhã, acabada a munição para
as armas de fogo, os sitiados, o resto de bravos que sobreviviam, a peito descoberto, sobem as muralhas e
despejam contra os sitiante um chuveiro de flechas. Foi o último lampejo daquela grande lâmpada, sustentada
pelo combustível da coragem, tão de rijo batida, espicaçada pelo vento da desgraça. Sobre as muralhas
flechavam os sitiantes; mas caiam ao punhados pelas esfuziantes balas da fuzilaria, que não perdoava. Ao
meio dia, fez-se silêncio no interior; cessam o fogo e o comandante manda fechar por fora o grande portão
assustado com aquele silêncio tão repentino; pouco depois, sobre o terraço aparece uma negra, trazendo na
fisionomia a imagem do terror, gesticulando, batendo palmas, dando, enfim, mostras de que queria falar.
Prendendo no terraço a extremidade de uma corda, atirou a outra para dentro do vale, como perito funâmbulo,
por meio de movimentos acrobáticos, desceu pela corda ao centro do vale, e, auxiliada por um pequeno pau,
galgou a extremidade do talude e correu para o acampamento, aflita, quase não podendo exprimir o que
sentia. O comandante destacou-se do grupo e a negra pediu-lhe que acudisse, porque Ambrósio mandara
aprontar os facões! Que fossem!.... Que Fossem!...
Homens há que a ninguém cedem a palma na execução de qualquer trabalho que lhes confie, por
árdua e difícil que seja; no caminho traçado seguem, haja o que houver; no entanto são incapazes de conceber
um plano, de elaborar por si, qualquer idéia, qualquer coisa, por simples que seja. Desconfiados de si
próprios, nem tentam a concepção nem resistem ao menor obstáculo que na elaboração intelectual se lhes
antolhe: pode-se dizer que sua imaginação é imperfeita e árida, verdadeira tábula rasa, como diziam os
antigos filósofos. Ambrósio era um desses. Executor como ninguém; desde, porém, que fosse mister
conceber, suas faculdades encontravam-se num tal labirinto que nada produziam. Tinha elevado o posto
Tengo-tengo a um ponto de tal progresso e de prosperidade, que, hoje, causaria inveja aos mais ativos
administradores; mas não nos devemos esquecer de que havia cumprido fielmente e com tino invejável um
plano preconcebido e traçado pelos jesuítas, seus ex-senhores, que mandaram estabelecer aqueles posto com
um quartel militar, simplesmente, ou melhor, um degredo par onde pudessem mandar os criminosos e os que
não lhe conviesse que fixassem na capital. A Aldeia de Sant’Anna tinha chegado a um grande adiantamento
que parecia uma verdadeira capital e se os padres quisessem, quando Ambrósio, por causa dos escravos que
acoitara proclamou sua independência, com um poderoso exército formado por muitas tribos indígenas,
teriam vindo e o chefe seria o primeiro a capitular. Não convinha, entretanto, não só por que sabiam o que
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podia acontecer, como porque em caso do perigo, antes que os inimigos chegassem á Aldeia, haviam de
passar primeiro por Tengo-tengo. Ensinaram o meio de defesa, de ataque e de retirada; os recursos, porém, de
momento, esses recursos napoleônicos, inteiramente relativos a ocasião, não ensinaram, nem o podiam fazer
porque são eles próprios dos bons generais, são a tática de guerra no seu maior exercício, o cadinho em que se
prova o valor dos amestrados capitães. O general em chefe dá o plano geral dos combates; fica, porém, aos
comandantes o saber mandar, tudo subordinado ao tempo, ao lugar, ás circunstâncias de momentos.
O Sacrifício
Ricamente trajado com todas as insígnias do seu alto posto, assentado em uma cadeira, ao lado sua
mulher, Cândida, toda vestida de branco, banhada em lágrimas e com o vestido já manchado de sangue,
Ambrósio punha em prática o que projetara, á imitação dos antigos, como tinha ouvido contar, perdida
completamente a esperança de salvação. O lugar do sacrifício era o grande pátio da cadeia. Pelo chão jaziam
já alguns cadáveres, mostrando na glote a larga cisão da degola, e aos pés de Ambrósio, ajoelhadas, novas
vítimas para o sacrifício, velhos trêmulos, mães que amamentavam seus filhinhos, moças em todo viço da
puberdade, crianças implorando misericórdia, compaixão. Os Algozes, comandados por Hynnhaguera, não
descansavam; os afiados cutelos descarregavam seus rudes e certeiros golpes; o sangue das vítimas,
espadanando, sapecava as brancas vestes de Cândida e cadáveres caiam sobre cadáveres! E que contraste da
natureza: criancinhas inocentes, inconscientes de tudo aquilo, enquanto sua voz, osculadas, beijadas e
abraçadas por sua mãe, escabujaram pelo chão, no lodo formado pelo sangue.
Posto abaixo o portão e surpreendidos pelo exército Wrumeia, Hynnhanguera e todos os outros,
como leões ou panteras acuados na toca, saltaram, armas em riste; mas a um simples aceno de Ambrósio
abaixaram as armas e esperaram. Estava vencido o último reduto e o exército vencedor entregar-se-ia logo aos
desatinos de seu paladar, se naquele tribunal, na figura de Ambrósio, no espetáculo inaudito não encontrasse
um quer que fosse de solene que o deteve respeitoso. Com a entrada do exército suspendeu-se a execução
terrível e as vítimas votadas ao sacrifício puderam respirar contentes pelo medo natural da morte de que viam
livres, muito embora o costume dos antigos, que, em tais emergências, o chefe punha em prática. Ambrósio
ergueu-se, sereno e majestoso, e fitou os olhos do comandante, que, então, pode reconhecer o homem que
jamais venceria, o leão que nunca domaria, se aquela inteligência fosse aquecida pelo benéfíco sol da
civilização e não vítimas do obscurantismo e das superstições próprias das pragas africanas. Houve um
silêncio; vencidos e vencedores, como interditos, miravam-se como estátuas e os olhos dos forasteiros se
fixavam em Ambrósio. Viram nele: um negro fula, com barba cerrada e basta carapinha, quase
completamente brancas, nessa cor dúbia, entre o grisalho e a neve; porte alto e airoso; olhos grandes, boca
pequena e lábios delgados, deixando transparecer nas comissuras esse tremor convulso que reflete as
tempestades d’alma; pés e mão pequenos; dedos finos e compridos; no rosto existiam os lanhos próprios de
sua nação, mas ocultavam-se na espessa barba. Trajava sobrecasaca de pano finíssimo, com galões dourados e
botões de ouro; calças da mesma fazenda com largas listras vermelhas, nas costuras, lado exterior; camisa de
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cambraia; chapéu de Braga com cinco bambolins de retrós, pendentes para as costas; botas pretas e justas, de
bico fino e salto de prateleira, esporas de prata com correntes. Por armas prediletas tinha Ambrósio uma linda
espada, um jogo de pistolas, rico punhal e uma espingarda inglesa, de dois canos, tudo bordado a prata e ouro.
É preciso notar que a expedição não tinha por escopo vencer e fazer prisioneiros; seu fim principal era
destruir. Entretanto, encurralados os sitiados no pátio da cadeia, sua morte, sua destruição facílimas, foram
poupados, não por humanidade, mas somente como meio por que o comandante, mirando o rico traje de
Ambrósio, lançou suas vistas além, dando curso á cobiça. De hostiário transformou-se o grande pátio em
tribunal e á barra dele foram levados os vitimários. Ali mesmo sumária e verbalmente foi interrogado
Ambrósio, que continuava de pé firme, onde estava. – Quem és tu ? – perguntou o comandante. – Sou
Ambrósio, capitão deste Quartel. – Capitão !... Quem é teu senhor, negro? – Sou livre e livre é toda a gente
deste posto militar. Fui escravo, todos os adultos que aqui estão também o foram; mas somos todos livres.
Minha carta de liberdade aqui está e a de meu povo neste cofre. Ao mesmo tempo que Ambrósio apresentava
a sua, um de seus generais apresentava um cofre de madeira. – Não conheço a letra, disse o comandante,
lendo a carta. Quem é teu senhor negro? – Já disse ao senhor general que não tenho senhor. Fui escrevo, sim;
mas aquele que tinha direito sobre mim, antes de expirar, deu-me liberdade. – Pois ou há de dizer quem é teu
senhor ou sofrerás muitos castigos. – Sou livre! Repito Ambrósio e seus lábios sofreram um tremor convulso.
Um oficial lendo a carta de liberdade: – Ela é bem passada e datada do posto Tengo-tengo do Araxá – Onde é
este Posto? Perguntou o comandante.
É aqui. – E que veio fazer aqui seu senhor ? – Salvar a vida. – Salva a vida! Ah! Com certeza os
jesuítas!... – Jesuíta! Repetiram as vozes do exército e ouviu-se um tilintar de armas, qual se novo inimigo
surgisse, poderosíssimo. – Pois bem. São todos cativos e da Real Fazenda, á qual pertencem todos os bens dos
tais padres, desde sua condenação á morte: portanto tu e toda esta canalha, da qual és cacique. – Perdão,
senhor general! Cacique é rei dos índios e eu não sou índio; na minha terra o rei é Zambi, e lá cabe-me esse
título. O comandante desfez-se numa gargalhada feroz e prosseguiu: Sejas rei dos índios, rei da África, rei do
Araxá, capitão-general do Tengo-tengo, grande em ponto de pequeno, com toda essa lengalenga, o que é certo
é que todo o teu poder nada vale e tens que escolher uma de duas: Ou hás de sujeitar-se ao cativeiro, ou
morrer. Escolher. Nos lábios do negro esboçou-se um desses sorrisos que somente traduzem o desespero, a
ânsia, o inferno de uma alma angustiada; ao mesmo tempo que um tremor percorria todo o seu corpo, uma
névoa passou por toda a face e condensou-se em seus lábios, que se embranqueceram, numa quase palidez
mortal, e Ambrósio respondeu: Já declarei ao senhor general que não sou cacique; mas aceito essa dignidade
que me é conferida, e, três vezes rei, uma vez capitão-general, aceito a morte!
–Gregório, continuou o comandante. – Pronto ! regougou uma voz pousada e quase tumular e
apresentou-se o tipo do verdadeiro verdugo. Baixo, grosso, peito largo, fronte também larga e desprovidos os
olhos de supercílios, cabelos grossos e duros: eis o índio que se apresentou, uma figura de horripilante
batráquio. Suas armas – e trazia-as todas – eram: um bacamarte preso ao correirão da cinta, uma espingarda
baluda (Lazara, lazarina, legítima de Braga), uma pistola-reuna e um alfanje curto, largo e pesado, próprio
para a degola. Ambrósio, a quem não haviam despido das armas, nem das insignias, tendo a seus lados seus
generais e mulheres, ao ver aproximar-se aquele mostrengo, instintivamente levou a mão aos copos da
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espada. Hynnhanguera deteve-o e falou-lhe em Africano. O Capitão Cavaco que falava perfeitamente o
africano, substituía o interprete comandante, morte em combate, e muito interessado na sorte dos
quilombolas, somente traduzia para o comandante o que os negros diziam sem ofensa. As mulheres avisadas
da sorte que as esperava, pediram licença e, ali mesmo, entre o riso sarcástico de uns, zombaria de todos os
verdugos, ajoelhadas, na mais reverente compostura encomendavam-se a Deus! Gregório, o verdugo, olhos
faiscante, atento ao primeiro sinal, aguardava o momento propício de mostrar a fúria de seu alfanje. Então,
negro ! perguntou o comandante – queres servir ou morrer ? – Quero morre; mas... se o senhor general
quizesse, pelo completo resgate nosso e da cidade, tanto dinheiro em ouro e prata quanto bastasse para cobrir
o chão de toda praça, em poucas horas lho daria. Entendendo o comandante que tinha seguro também a
grande tesouro, o sonho dourado de sua vida, companheiro de suas vigílias, com sarcástica gargalhada
retrucou: Oh ! além de rei, de cacique, de capitão-general, é também milionário ! Não duvido, porque, há
muitos anos tu e teus companheiros viveis a roubar e por isso podes ser o maior banqueiro do Araxá. Melhor,
porque o erário rela anda bastante obrado e isto o concertará....
A notícia do tesouro causou ganância do comandante tal prurido, que ele quis vê-lo quanto antes e
gritou como possesso:...
Foi trazido o terrível cepo e o verdugo alçou o alfanje fatal. Começando pelas mulheres, as cabeças
das vítimas começaram a rolar pelo chão, num rio de sangue. Ambrósio, altivo, impassível, estátua sublime da
dor, de pé, com todas as suas armas, nada via, por que seus olhos estatelados no infinito, não podiam abaixar a
tanta infâmia.
Seus dois generais caíram. O último foi ele. Agarrado para o sacrifício, lançou um olhar sereno por
sobre a soldadesca sedenta de sangue, e, estoicamente, sem mínima relutância, chegou-se ao cepo e sua
cabeça rolou também pelo mar de sangue, misturando-se com as demais. Era a tardinha. Os últimos lampejos
do sol poente beijaram aquela triste cena e o rei do dia, como envergonhado ocultou-se na orla do horizonte,
ao passo que os soldados assassinos, inebriados por tão deslustrado triunfo, atroavam a cidade com os gritos
de vitória, e, nas quebradas daquelas montanhas, os ecos repetiam o estampido da artilharia e da fuzilaria,
repercutindo-se plangente, para que, perpetuado na memória dos sertanejos, o mundo civilizado, contasse a
negregada lei do absolutismo.
O Tesouro
Era já bem tarde, quando o clarim pós termo á bacharel que seguiu aquela hecatombe, talvez sem
exemplo nos anais do despotismo, com que na generosa terra mineira foi celebrada a transição do século
dezoito para o século dezenove. Cabeças decepadas, corpos traspassados de balas, poças de sangue
coagulado, membros de corpos humano em frangalhos, cadáveres, sangue transformado em rubra crosta, a
morte, a miséria – eis o que os raios da lua crescente encontraram naquela praça, no pátio da cadeia, na
cidade, onde, antes iluminavam festas, alegria! Os corvos, animados no alcantil das escarpas, nos inacessíveis
rochedos, pressentindo o cheiro de cadáveres, instintivamente arrufaram as asas da esperança de farto
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banquete, de opíparo repasto para o dia seguinte. Era já bem tarde o comandante mandou sair o exército,
distribuiu sentinelas ao redor da cidade, fechou por fora o portão e guardou a chave; mas ninguém pregou
olho, ninguém procurou descanso, porque suas forças eram retemperadas pela esperança do tesouro, em que
o comandante e comandados tinham fixos os olhos da cobiça. Fora da cidade havia várias casinhas; para elas
foram levados os feridos e amontoados alguns prisioneiros postos a ferros, ficando os outros do mesmo modo
da prisão. De todos os habitantes da cidade que orçavam por cerca de cinco mil pessoas, só restavam da
hecatombe uns duzentos ! No dia seguinte, mal desabrochou a aurora, o comandante mandou tocar a reunir e
baixou uma ordem do dia ou fez uma proclamação, dizendo que, não obstante terem sido infelizes, por não
terem encontrado os jesuítas, não obstante estivesse bastante dizimados o exército pela resistência ao
heroísmo dos negros, eles, os que formavam o exército vencedor, em pouco tempo teriam perfeita
compensação da fadiga e o prêmio do valor na posse do grande tesouro, e que ele, se comprometera, a
exemplo de Alexandre Magno, daria a maior prova de sua liberdade para seus companheiros de lutas e
perigos; mandou ler os artigos de guerra e terminou com prolongados e repetidos vivas a El-Rei e a Portugal !
Formada a força e aberto o grande portão, entraram de novo na cidade em passo triunfal. O comandante
mandou retirar os cadáveres e enterra-los no grande fosso que circulava a cidade, desmoronando sobre eles o
terraço, e assim aqueles trabalhos de defesa serviram ao menos, para sepultara dos corpos, sem o que seriam
pasto infalível dos corvos. Triste espetáculo ! A soldadesca desenfreada, inebriada sempre pelo fumo da
vitória, entre chufas e esgares, na prática da mais imunda profanação, canibais que se mostravam, do pacto
fatal, das igrejas, da prisão, da praça, de toda a praça, de toda parte conduzia, arrastava os restos mortais de
um povo e com eles obstruía o grande valo, sobre o qual desmoronavam todo o terraço, produto de tanto
trabalho improfícuo. E enquanto os soldados isso praticavam, suavizando pela profanação a dureza daquele
mister, o comandante acompanhado de Cavaco e de Pedro Rebollo, penetrou no palácio, sepulto na mais triste
desolação, farejando o tesouro, para onde convergiam todos os seus sonhos, todos os seus haustos; mas... não
encontrava a pista, nem Rebollo podia dar a mínima indicação, porque nunca entrara no palácio. O
comandante, no auge da ambição, queria, anciava um guia e mandou vir algum prisioneiro que fosse ladino,
que... soubesse de tudo. Do número dos duzentos e tantos que haviam sobrevivido á catástrofe, que haviam
escapado da hecatombe em que desapareceram cerca de cinco mil cabeças, faziam parte dois vultos de que
não nos podemos esquecer: Manoel Cabinda e sua mulher Catharina, ambos africanos.
Manoel Cabinda viera muito criança de sua terra natal. Comprado no Vallongo por um padre jesuíta,
este esmerou-se o quanto possível, a ver si, como estatuário, daquele bloco de granito poderia arrancar, senão
um trabalho de Fedias, linhas que transformassem, suavizassem o repelente do feiticismo, com que viera
maculado de origem. Posto a prender o ofício de marceneiro, depois de saber ler e escrever, tempos depois, o
antigo moleque conquistou a boa nomeada de artista, com que voltou homem feito para a companhia de seu
senhor, que lhe deu por esposa Catharina, também comprada, muito criança no Vallonge, e para a qual o
padre se esmerou do mesmo modo, tendo-a batizado logo com aquele nome. Entregue aos cuidados de uma
boa família, Catharina aprendeu todos os trabalhos domésticos daquele tempo. O padre viu coroados seus
desejos e dos dois africanos fez um perfeito casal. Votado o extermínio da Companhia, e expulsos os jesuítas
do Brasil, logo que rompeu a primeira perseguição, o senhor de Cabina salvou-se em um caixão de segredos e
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do Rio de Janeiro veio para Minas, trazendo todos os escravos que possuía; protegidos pelos índios, foram
para a serra da Canastra, e passados anos, o padre voltou ao lugar, em Minas, onde tinha enterrado seu
dinheiro, sempre disfarçado, e, em mão todos os seus cabedais, foi estabelecer-se em Vila Rica, não como
padre, porém como negociante ou outra qualquer coisa. Por esse tempo já Ambrósio se tinha estabelecido em
Tengo-tengo. Um dia, Cabinda encontrou-se com João Wrumeia, seu antigo amigo que a Vila Rica fora em
uma das expedições ambrosianas; com muita alegria, levou-o a casa de seu senhor, que também o conhecia, e,
confundindo-se nos mesmos transportes de contentamento senhor e escravos, passaram juntos horas de
verdadeira alegria.
Wrumeia propôs negócio para a liberdade de Cabinda e sua mulher; o padre aceitou e deu-lhes a
carta de liberdade, mudando-se também, logo depois, para Pitanguy. Em companhia de Wrumeia foram para o
Quartel Ambrosiano, onde conhecidos de Ambrósio e de muitos outros, foram muito bem recebidos.
Cabinda fez logo sua cozinha, empregando, o quanto possível, os recursos da arte que conhecia
muito bem. Um tanto tagarela e franzino de corpo, não servia para expedições; mas fiel a toda prova foi por
Ambrósio encarregado da guarda do tesouro que era na própria residência do chefe. De sua fidelidade todos
tinham tido prova cabal na fuga de seu senhor dentro de um caixote de segredo. Por astúcia e muito de
indústria Cabinda fez-se inimigo figadal dos jesuítas, uma vez, porém, salvo seu senhor, fugiu com sua
mulher e outros parceiros e, em Minas, reuniram-se ao padre.
No dia da hecatombe, não tendo já o tesouro para guardar como ajudante de ordens, de tal artimanha
usou, que não entrou em combate e, assim, ficou ileso e nunca teve remorsos de ter morto um só dos
assaltantes. Não lhe fora confiado o plano da degola; ele, porém, perspicaz que era, percebeu-o e quando o
chefe deu ordens para a reunião no pátio fatal correu a Wrumeia, transmitiu-lhe a ordem e voltou a sua casa.
A imitação de sua antigo senhor havia preparado também um caixão de
segredo: nele salvou ou pôs a salvo sua mulher e, como tinha de reserva antiga boa soma de
dinheiro, com tal perícia se aveio, que se tornou muito simpático a um dos capitães do
governo, o que, lhe valeu, quando preso, ser solto e, mais tarde, até empregado, com sua
mulher, do exército, ao qual foi guia de retorno. Quando por isso mandou o comandante vir
algum ladino, para mostrar o tesouro, trouxeram-lhe Cabinda, a quem o comandante
interrogou
Como te chamas, negro ?
Manoel Cabinda, para servir meu Senhor.
Onde
é o tesouro de teu parceiro Ambrósio ?
O tesouro... era debaixo do sobrado, sim, senhor,
e eu era o guarda dele senhor, e mesmo,
Oh ! então! ... Onde é ele ?
Mas...
Fala negro !
Vosmicê não encontra nesta cidade um vintém, nem um cobre de X ou de U.
Como é ?
Ou falas onde está o tesouro ou mando-te surrar. Se mostres o tesouro, darei liberdade a ti e
a todos os teus companheiros: do contrário... sabes o resto.
Aqui, éramos todos livres e
nossas cartas estavam em poder de Ambrósio; mas ouvi dizer que foram todas já
293
queimadas. Eu fui libertado pelo dinheiro da sociedade, como todos os outros, com a
condição de trabalhar vinte anos aqui. Há dez anos de Vila Rica fui trazido para aqui por
Wrumeia.
Deixemos de prosa, negro. O que quero saber é onde está o tesouro !
Não
posso saber senhor ! Desde que Pedro fugiu, Ambrósio mandou reunir todo o dinheiro que
havia na cidade, e, durante muitos dias, ele, Cândida, Wrumeia, e Hynnhaguera carregaram
dinheiro em tachas, conduzidas cada uma por duas pessoas, por meio de um pau que
passava pelas alças ou orelhas, e iam sempre para aquele lado (e apontou o rumo do
Misericórdia, distante cerca de duas léguas) sem que alguém pudesse segui-los e ver onde
depositavam as riquezas desta cidade, riquezas que talvez sejam superiores ás do Reino.
Alguns dos quatro condutores é que podiam mostrar o depósito, se ainda fossem vivos. Oh
raiva ! Oh desespero ! Semelhante ao caçador que, depois de cuidadosa pontaria, desfecha o
tiro certeiro, vê a caça cair e, quando suas mãos ávidas a querem apanhar, encontram o
vácuo, ás ultimas palavras do prisioneiro, o comandante sentiu sobre a cabeça o peso
enorme da decepção, da desilusão e por todo o seu corpo correu o calafrio, o gelo da morte.
Rompendo o sertão bruto, vadeando e transpondo rios, combatendo e expondo-se as balas,
ás flechas, arrostando tudo, no ardor, na cegueira da temeridade, ele cumpria seu dever, é
certo, mas sua mira apoiava-se inteira na posse do tesouro que a fama proclamava
acumulado naquele canto do sertão mineiro.
Entretanto, rompidos todos os óbices, ganha a vitória, engalanado seu espírito pelos louros do
triunfo, sua antiga e louca ilusão de desfaz aos raios imponentes da realidade, projetados dos lábios do próprio
guarda do tesouro, já não ali, oculto, confiado talvez aos misteriosos escrínios, aos tragadores sorvedoiros do
rio, que, próximo corria sob o nome de Misericórdia ! Ao sair de Vila Rica, com um exército de três mil
homens, bem armados, bem municiados, sua missão era combater jesuítas, cujas riquezas fascinavam os
magnates de então, esperançosos de engalfinha-los: no entanto não são os jesuítas que encontra, mas
quilombolas poderosos. Ambrósio condenado à morte, denuncia a existência de uma riqueza tal, que
ultrapassa as raias de seus desejos. O comandante pensa que tem tudo seguro; sacrifica os negros, os chefes e
com eles corta o fio que conduz aos desejados Elyseos, fana o sibilino ramo condutor, encontra-se perdido em
trevas e não consegue o tão disputado velocino !
No momento supremo, Ambrósio esquece por um pouco sublime estoicismo a que se abraçara e
oferece para resgate dos sobreviventes um montão de ouro, uma quantia fabulosa. O comandante cego,
inebriado não aceita; pelo contrário, do alto de sua ilusão, faz a carnificina e, após os mais horripilantes atos
de canibalismo, sente-se esmagado pelo peso do ludibrio, do escarno, com que a sorte o castiga ! Suas ilusões
vão caindo, uma a uma, e o abantesma da realidade vai-se erguendo, erguendo, tétrico, feérico, majestoso e
insondável no longo sudário de sua incoercibilidade ! Ele, o vencido, ele o ludibriado, ele o escarnecido, sente
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por seus olhos a nuvem do desespero, fantasmagóricas visões da raiva; ouve o riso soturno dos mortos, e, na
consciência desperta sente as longas unhas do remorso, que a prendem, mordem, rasgam, estracinham ! E,
louco, possesso, vandálico, empunha o facho da vingança, descarrega sua ira contra os prisioneiros, que faz
maltratar, nos edifícios, que faz derruir, em toda a cidade, que faz revolver, cavar, arrasar, incendiar! Debalde!
A cidade transformara-se em um montão de ruínas e de sobre os desolados escombros, na alucinação em que
se acha, vê levantar-se o vulto atlético de Ambrósio e de seus lábios irrompe a voz sepulcral e majestosa que
brada: Tiranos ! Não era Ambrósio. Era a Posteridade que, severa, diademada pela áureola da civilização,
relendo as páginas da história mineira, bradava, na voz potente de sua reprovação: Bárbaros!
Terrível Castigo!
A bela cidade, conhecida por Quartel Ambrosiano, Posto do
Tengo-tengo, ou simplesmente Quilombo, foi o bode expiatório da
decepção alheia, foi a tácita vítima sobre que o comandante
branco, no auge do desespero, despejou todos os raios de usa
cólera, todos os dados de sua negra vingança. Naquele dia terrível,
só se ouviam gritos lancinantes dos pobres prisioneiros castigados,
muitos dos quais dando o último suspiro no rigor dos açoites, das
pranchadas, das torturas ! O fogo ateado pela vingança, na
destruição dos templos, das imagens, dos edifícios, de tudo em
fortes estalidos, levantava altas labaredas e um rolo de fumo, como
se queimasse uma derrubada, atraia os gaviões, as aves de rapinas
que nele se enovelavam, na esperança de frescos manjares na
queimada, ao mesmo tempo que os soldados, na procura do
tesouro, resolviam tudo, vasculhavam tudo, profanando tudo, não
poupando cavernas nem grutas, nada ! Cabinda havia apontado o
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Misericórdia como o guarda escolhido por Ambrósio para confiar-
lhe as riquezas.
O comandante, em pessoa, com um troço de homens
escolhidos, para lá foi, faminto, sedento do que via escapar á sua
avidez, e as margens do pobre rio, suas furnas, suas cavernas
foram vítimas improdutivas da sanha, do vandalismo, e o branco,
doentia sua imagem, parecia ouvir a cada passo atroar lhe os
ouvidos o riso sarcástico do infortúnio, a voz rouca da decepção,
ao mesmo tempo que, nos momentos mais calmos, sentia os dentes
do remorso a corroerem-lhe o íntimo. Nada !
era a resposta do
todas as pesquisas. Nada !
era o produto do incêndio, da
destruição. Nada !
era a voz soturna que todos ouviam do
montão de escombros. E dias se passaram nesse atropelo, nesse
execrando mister. Os corpos mal sepultados pela quantidade,
começaram a sofrer decomposição e o ambiente tornou-se por
demais deletério. O exército reuniu toda a criação que havia pelos
campos; carneou-a; ajuntou o vasilhame encontrado e retirou-se
para um lugar algum tanto distante, mas tão lindo, tão aprazível,
que mereceu o nome de paraíso. Cabinda e Catharina, de tal modo
e tal jeito se inculcaram, com tanta astúcia e perspicácia empregou
aquele, o resto do dinheiro ou o pequeno pecúlio que tinham
guardado, que puderam escapar a todos os castigos, a todas as
torturas infligidas a seus companheiros; não só isso: conseguiram
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também ser admitidos como empregados dos oficiais, conquistando
simpatias sinceras do Capitão Feliciano. Os dois pretos faziam
rostos alegres; mas seus corações tinham a nódoa das saudades
dos companheiros mortos; não os podiam esquecer. Evocando o
sentimento de sua raça, esqueceram as novas doutrinas que
tinham ouvido dos missionários, e, de então em diante, seu
pensamento foi alimentado por um só manjar: a vingança dos
males recebidos. Pedro Rebollo fora o traidor, o autor, a mola de
todos aqueles males; era preciso que ele também sofresse. Para
isso os dois negros mostraram-se de um talento sem igual.
Catharina, á imitação de Judith contra Holofernes,
principalmente de Dalila contra Sansão, tomou a si terrível
incumbência de levar a efeito o que supunha um verdadeiro
sufrágio aos manes de seus inditosos parceiros. Com afagos e com
carinho lançou e prendeu a Pedro Rebollo tão estreitamente, que
nunca mais o libertou; ao mesmo tempo empregou tal habilidade,
que contra o mesmo indispôs todos os soldados e oficiais. Em
campo pôs todas as seduções de que é capaz uma Dalila inteligente
e sagaz, e a tal ponto que mais de uma vez Cabinda esqueceu-se de
que tudo aquilo era meio e não fim, que a chamou a ordem,
reclamando o império de seus direitos. Tão claros, tão francos, tão
a descoberto eram os carinhos de Catharina para com Pedro,
moço e robusto, que, um dia, o Capitão Feliciano chamou
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Cabinda a parte e tiveram este colóquio:
Cabinda, disse
Feliciano
como pode você tolerar as liberdades deste negro com
tua mulher ? Cabinda, ou muito de indústria ou porque de novo
esquecesse da trama que, com seu consentimento, armara sua
mulher, olhos lacrimosos e voz entrecortada respondeu:
Que ei
de fazer meu Senhor ? Pedro fez morrer tanta gente !... Não tenho
coragem de matar uma galinha; mas deste rapaz sou muito
homem para... beber o sangue e trincar o coração ! E, tirando da
cinta a bolsa de couro de ema, ainda bem recheada, acrescentou:
eu daria, da melhor boa vontade, este resto de minhas economias
a quem me livrasse de tal tentação.
Deixa por minha conta,
Manoel, deixa por minha conta, retrucou Feliciano, tomando a
bolsa e despejando em suas algibeiras aquelas moedas, cujo som
lhe fizeram tanto agrado.
Grande é o poder do ouro! Catharina que via caminharem as
coisas perfeitamente para o alvo que tinha mirado, ouvindo,
oculta, o último colóquio e a cena da bolsa, que ela preparara,
procurou Pedro e , em secreta confidência, mas de ponto onde
pudesse ser ouvida, tratou com ele uma entrevista para o dia
seguinte, no mesmo lugar onde fora o pátio fatal, no quartel,
assinalado apenas pelos restos de muros que o cercavam.
Justamente como ela queria, aos ouvidos de Feliciano e
Cabinda chegaram os cicios daquele idílio. Por esse tempo já
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havia acabado o mau cheio da carnificina, por que o comandante
mandara derruir sobre o valo, onde estavam sepultados os
cadáveres, o resto de terraço que circulava a, outrora, bela cidade,
e Feliciano com seu batalhão moravam ali pertinho. Feliciano,
queria justificar seu direito á bela propina, falou a alguns rapazes
possantes e traçou-lhes o plano, para que escondidos nos
escombros, na hora da entrevista, aparecessem, e ...Pedro não
podia continuar a viver. Como corria lento o tempo para Rebollo!
Afinal chegou o momento feliz e, mal se libertou dos olhares
desconfiados de Cabinda, célere corre e, como a cascavel,
ocultou-se nos tristes escombros.
Qual, não foi, porém, sua surpresa, seu ódio, seu desespero,
sua fúria, quando, mal aboletado naquele fatídico lugar, se viu
agarrado pelos braços possante de Feliciano, de Cabinda e de seus
sequazes! Quis reagir, por que era forte; mas as mãos de seus
perseguidores eram tenazes.
Então, como o tigre, que se vê subjugado, rugiu surdamente,
rangendo os dentes, rilhando em seco, transformando-se-lhe as
faces em horrível catadura, olhos injetados, boca espumante. Qual
não foi igualmente surpresa de todos, quando viram sair de seu
esconderijo e aparecer trajada no último apuro da moda a
africana, a suposta adúltera ?
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Toda de branco, lenço á cabeça, fita vermelha a tiracolo,
machadinha á cinta, ricos sapatinhos com fivela. Catharina
mereceu as saudações de uma verdadeira uri e, por entre
admiração e aplausos, caminhou certa para o criminoso, de cujas
penas ela ia ser o juíz. Falando em africano, entregou a
machadinha a seu marido e enquanto era preparado o
instrumento que escolhera para castigo do traidor, ela frágil, mas
sedutora, espicaçava o resto da consciência da vítima, aplicando-
lhe no rosto a ponta de seus sapatinho ! O próprio Feliciano
recuou, assustado, quase interdito. Catharina não era mais mulher
dos carinhos, não era a suposta esposa infiel, não era a simples
negra: era a própria deusa da vingança. E a negra, nesse belo-
horrível que não se descreve, transformada em justiça, não
cessava de golpear com a ponta de seus sapatos a face de Rebollo,
repetindo a cada golpe: eu sou Ambrósio; eu sou Cândida; eu sou
Wrumeia; eu sou Hynnhanguera; eu sou o povo todo a quem
mataste pela traição! Com as mãos nos quadris, feroz na vingança,
voluteando, a negra era o símbolo das fúrias avernais. O castigo
merecido pelo traidor fora a empalação.
Empalado devia morrer. Assim foi. Cabinda trouxe o
instrumento fatal, que preparara. Preso, como estava, sofreu
Pedro Rebollo esse castigo crudelíssimo, dando o último suspiro
no meio das mais acerbas dores. Os dois negros não eram já o que
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foram dantes; nesse momento tornaram-se verdadeiros bárbaros,
no auge do canibalismo: eram a própria vingança! Tal foi o
quadro, que Feliciano e os rapazes, que pareciam tão obcecados de
humanidade na carnificina geral, recuaram, trânsidos de medo, de
vergonha, de horror! No mesmo cepo, em que foram vitimados
seus parceiros, Cabinda e Catharina deceparam os membros do
traidor, repetindo a negra a cada operação, satanicamente:
Cortemos-lhe os pés, para que não vão mais a Vila Rica nos
denunciar; as mãos, para que não façam mais sinais no pauzinho;
na língua, para que não fale; as pálpebras, para que tenha abertos
sempre os olhos e contemple o mal que nos fez. E os membros
mencionados caiam aos rudes golpes da machadinha empunhada
pelo negro. Assim acabou seus dias o traidor e os dois negros,
satisfeitíssimos, além do dinheiro dado, cumularam de presentes,
em jóias e objetos de valor, que ainda tinham, ao Capitão
Feliciano, o único de todo o exército que viu e possuiu uma parte
das riquezas ambrosianas, em recompensa dos meios fornecidos
para sociedade de tal vingança, que seus protagonistas julgaram o
mais apropriado tributo, que poderiam prestar, de respeito, amor e
veneração á memória de Ambrósio e de todas as vítimas de um
empregado traidor.
A ausência de Pedro foi notada pelo comandante em chefe;
tal, porém, foi o horror causado pela execução de tal pena, que
301
nem os próprios auxiliares jamais a denunciaram, mergulhando-a
no maior e mais absoluto segredo, tornando até, entre eles
mesmos, em assunto completamente evitado.
Retrospecto e Conclusão
Por longos três meses permaneceu o exército restante no
sertão mineiro, na faina sempre improfícua de procurar o
encantado tesouro ambrosiano, que, como o Eldorado de Orelana,
tanto mais se engolfava nas dobras de insondável mistério, quanto
era o afã de sua procura. Na raiva, no desespero da decepção, os
emissários do governo, tornaram-se vândalos, e o incêndio, as
pancas, as picaretas, foram vento que soprou rijo contra o produto
de tantos anos, de tanto trabalho, de tanta constância, roubando á
posteridade o que diz a tradição, merecia ser poupado, se não
dominasse o mais ferrenho despotismo. Lançado um olhar
retrospectivo sobre o que vimos, catemos aqui e ali, os conhecidos
que a lenda conservou para a hospitalidade da história. Caturra
assistiu a toda a hecatombe e ao que se lhe segui. Por mais de uma
vez em encontros terríveis ele trocou olhares com Ambrósio, de
quem fora logo conhecido, com Wrumeia e Hynnhanguera.
Por mais de uma vez em língua africana, trocavam palavras
de animação recíproca, sem se traírem, sem se denunciarem, nesse
302
esforço titânico e incomparável, só próprio das almas grandes. E o
pobre padre não podia pedir pelos antigos amigos e aliados, não
podia derramar uma lágrima, não podia deixar de fazer fogo
contra a cidade, onde passara os melhores dias de sua vida, sem
incorrer nas suspeitas que tinham rastilho em Vila Rica, onde era
alcunhado por Padre mestre-jesuíta! Calado, petrificado,
impotente, foi testemunha ocular, presencial daquela carnificina,
daquela devastação de que os próprios bárbaros do norte antigos
teriam repugnância. Logo após a vitória, foi mandada uma
expedição a Vila Rica levar notícia dos heroísmos. Caturra fez
parte dessa expedição e em Sant’Anna de S. João Acima (Hoje
Itatuna) desertou.
Tempos depois, esse homem extraordinário, que havia sido
jesuíta, padre, rico, marinheiro, cativo, soldado, dedicou-se ao
magistério, tendo como discípulo o ator dos “Apontamentos”, que
de seus lábios, por mais de uma vez ouviu a narração desse lutusos
acontecimentos dos tempos coloniais. Manoel Cabinda e
Catharina, levados no exército para Vila Rica, ali chegados,
declararam quem fora seu senhor. Este, que também havia
regressado de Pitanguy, confirmou o que diziam os pretos e deu-
lhes nova carta de liberdade. Outros quilombolas, haviam também
chegado a Vila Rica, ou foram entregues a seus senhores ou ex-
senhores ou foram vendidos em hasta pública, justamente no
303
lugar, onde mais tarde, a gratidão mineira erigiu á memória de
Tiradentes a coluna comemorativa. E os jesuítas ? A aldeia de
Sant’Anna chegou a tal grau de prosperidade que bem justificou o
título de Capital. Após a fuga de Rebollo, os padres mandaram
convidar Ambrósio e seu povo para que se mudassem para lá, onde
estariam mais seguros, pis que, apesar de tudo os jesuítas tinham
sempre notícias do que se passava no Rio de Janeiro e Vila Rica.
Ambrósio quis, seus generais quiseram: mas o povo não quis,
opôs-se, com receio da vindita pela fuga de muitos escravos para
Tengo-tengo. Desfeita a nuvem borrascosa que se armara, no
excidio cruel, os índios, que, cautelosamente a tudo assistiam,
propositalmente, correram e levaram á Capital a triste notícia.
Ardia já muito perto de mais o incêndio da perseguição e os
jesuítas, precavidos como eram, nada mais tiveram que esperar.
Do muito dinheiro, ouro, prata, e pedras preciosas que tinham, o
que não empregaram ou reservaram para comprar armas,
munições e ferramentas e tudo o mais que lhes era necessário,
esconderam ou deram a guardar algum irmão que por ali tinha de
ficar. Avisados os aliados das margens dos rios, despediram-se dos
que ficaram, e, lançando seus ajoujos e outras ligeiras
embarcações no rio das Velhas, então Guaycuhy, em novo e mais
importante êxodo, desceram aquele rio ganharam o Paranaiba e
internaram-se pelos intensos sertões de Mato Grosso de onde os
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sobreviventes só voltaram, sempre como seculares depois da
promulgação da Constituição de 1824. Os jesuítas, previdentes em
tudo, tinham sempre muito escondidos sua fortuna, seus cabedais
preciosos sabidos dos sócios.
Em seus manuscritos, em seus mapas havia entrelinhas a
tinta simpática e os sobreviventes, com estes seguros
apontamentos, quando puderam voltar, descobriram e
desenterraram todos os tesouros que continuaram a pertencer á
Companhia. Assim foi que,
di-lo a traição
depois de
promulgada a Constituição do império vários apareceram pelo
sertão mineiro, aparentando humildade, pobreza, ignorância,
como transviados; demoravam-se algum tempo e desapareciam
como tinham aparecido
misteriosamente.
*
* *
Eis na simples narrativa uma pálida imagem do que foi o absolutismo nos tempos
coloniais. Ainda bem que ele, em Minas, alçou seu colo no fim do século passado e
princípio deste, porque este o XIX, contra a tirania, contra a ignorância e o obscurantismo
trouxe hasteada a auri-verde bandeira da civilização, perfeitamente desfraldada, em todo a
pujança de luz, na áurea Lei de 13 de Maio de 1888 e na aurora de 15 de Novembro de
1889, seguindo-se a promulgação da grande Carta, que ao convívio das nações cultas levou
a Terra de Santa Cruz proclamado: “Todos são iguais perante a lei.” Todos os indivíduos e
confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para
esse fim e adquirido bens, observadas as disposições do direito comum. “ Constituição de
24 Fevereiro de 1891, Art 72 §§ 2º e 3º” Rio Novo
Março de 1900. Carmo Gama. Cop.
em Bicas aos 29 de outubro de 1903 .
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