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HELENO BRAZ DO NASCIMENTO
A LEPRA EM MATO GROSSO: caminhos
da segregação social e do isolamento
hospitalar (1924 - 1941)
Cuiabá - MT
2001
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ii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
A LEPRA EM MATO GROSSO: caminhos
da segregação social e do isolamento
hospitalar (1924 - 1941)
HELENO BRAZ DO NASCIMENTO
DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DO INSTITUTO DE
CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE MATO GROSSO, COMO REQUISITO
PARCIAL PARA OBTENÇÃ O DO TÍTULO DE MESTRE
EM HISTÓRIA-ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA,
TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS.
Orientadora: Profª. Dra. Lylia da Silva Guedes Galetti
Cuiabá - MT
Abril de 2001
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Ficha Catalográfica
N244l Nascimento, Heleno Braz do.
A lepra em Mato Grosso: caminhos da segregação social e do
isolamento hospitalar (1924-1941) / Heleno Braz do Nascimento.
Cuiabá: Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFMT,
2001.
178p.
Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em
História, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Uni-
versidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial
para obtenção do Título de Mestre em História. Área de Con-
centração: História, Territórios e Fronteiras.
Bibliografia: p. 163-167.
Inclui anexos.
CDU-619.9: 316.647.2
Índice para Catálogo Sistemático
1. Lepra-Segregação social-Mato Grosso-1924-1941
2. Lepra-Isolamento hospitalar-Mato Grosso-1924-1941
3. História da lepra (Doença)-Mato Grosso-1924-1941
iv
Banca examinadora
Profª. Dra. Margarida de Souza Neves (PUC - RJ)
Profª. Dra. Maria Angélica dos Santos Spinelli (ISC - UFMT)
Profª. Dra. Lylia da Silva Guedes Galetti (Orientadora)
v
Aos leprosos de ontem, hansenianos de hoje e morféticos de anteontem.
Ao servente de pedreiro, esmagado por uma parede de taipa, que ruiu
inesperadamente quando das obras de reconstrução do Hospital de São João dos
Lázaros de Cuiabá, no ano de 1924.
In memorian
vi
Agradecimentos
A realização deste estudo foi tarefa que envolveu a colaboração direta ou
indireta de muitas pessoas, sem as quais o mesmo não teria sido concretizado.
Manifesto minha gratidão a todos os envolvidos e, de forma particular:
à Profª. Dra. Lylia da Silva Guedes Galetti, minha orientadora e cúmplice
nos últimos meses de elaboração desta dissertação. Nossa trajetória, neste
momento, foi curta, porém rica e instigante. Muito obrigado pelo aprendizado
saboroso, resultado de uma orientação competente, amiga, responsável e criativa;
à Profª. Dra. Matilde Araki Crudo, que esteve comigo, lado a lado, desde o
início deste curso de mestrado, orientando, sugerindo e ensinando os caminhos
mais frutíferos. Presença amiga, confiável e bem humorada nos momentos de
maior ou menor angústia;
à Profª. Dra. Margarida de Souza Neves, historiadora séria e competente,
que brindou-me com seus valiosos comentários, sugestões e, principalmente,
incentivos, no momento do exame de qualificação. Tenho certeza que sua
presença na banca de defesa desta dissertação se converterá numa oportunidade
ímpar de aprendizado para todos nós;
à Profª. Dra. Maria Angélica dos Santos Spinelli, por ter aceitado o
convite para ser uma das argüidoras desta dissertação. Doutora experiente no
campo da Saúde Pública, espaço que 'invadi' com muita insegurança, buscando
aprender um pouco mais e, acima de tudo, tentado fazer uma abordagem histórica
do tema analisado. Agradeço pela oportunidade de envolver-me neste debate tão
rico, pautado na interdisciplinaridade.
à Profª. Dra. Elizabeth Madureira Siqueira, pelos ensinamentos, sugestões
e algumas críticas, oferecidos no momento do exame de qualificação deste
trabalho. Grande conhecedora da história mato-grossense e de suas fontes
empíricas. É sempre um privilégio poder contar com a sua generosidade,
segurança e competência;
vii
aos amigos, colegas, professores e funcionários do Departamento de
História e do Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado) da UFMT que,
direta ou indiretamente, contribuíram para enriquecer as reflexões desenvolvidas
no decorrer do curso de Mestrado e também na elaboração desta dissertação.
Neste momento de reconhecimentos, gostaria, ainda, de tornar pública minha
gratidão:
à Teresinha Vera Ribeiro Dorileo (Tetê), secretária do Departamento de
História e torcedora animada em prol das minhas conquistas, desde a graduação;
à Matildes Dias Koike, secretária do Programa de Pós-graduação em
História, pela imensa boa vontade a mim dispensada nos vários momentos que
precisei de depender dos seus préstimos;
aos funcionários do Arquivo Público de Mato Grosso (APMT) e do
Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da Universidade
Federal de Mato Grosso (NDIHR/UFMT), pela dedicação com que sempre me
atenderam, facilitando o meu acesso às várias fontes empíricas, documentos,
registros, sem os quais a elaboração deste trabalho não teria sido possível.
Construir um trabalho intelectual significa, na maioria das vezes, ter que
passar por alguns momentos de angústia e solidão. E nestes instantes complicados
do ofício, marcaram presença algumas pessoas queridas que me ajudaram a
superá-los, permitindo-me usufruir de sentimentos nobres como a amizade, o
amor, a compreensão e o companheirismo. No rol desses seres humanos especiais,
que a memória (auxiliada pelo coração) me faz recordar neste momento, gostaria
de destacar alguns nomes, os quais carinhosamente agradeço:
Mariano, meu grande amigo e torcedor fiel de todas as horas. É tão bom
poder contar contigo em todos os momentos, sempre. Intelectual capaz, atento e
perspicaz. Amigo generoso, sincero e confiável.
Mariluce (Lucinha), minha irmã, apoio cotidiano, presente nas soluções
encontradas para aqueles problemas corriqueiros e inesperados, mas que surgem
nos momentos mais solitários e angustiantes de um trabalho intelectual;
Maria (Negão), parte de mim, não apenas pela relação de parentesco, mas,
principalmente, pelo entendimento mútuo, amizade, sinceridade e também por
algumas pequenas, porém proveitosas divergências... Por que não???
viii
Agradeço, ainda, a alguns parentes mais próximos, que acompanharam de
perto essa caminhada, respeitando as minhas ausências em momentos de festas e
alegrias. Pelo incentivo e compreensão, destaco aqui, entre outros, as minhas
primas: Francina, Jucélia e Laura.
A elaboração desta dissertação também contou com o importante apoio
financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), efetivado através de uma bolsa de estudos, concedida pelo Programa de
Demanda Social. Registro aqui a minha gratidão a essa Coordenação, que tanto
favorece e estimula a pesquisa científica no Brasil.
ix
Um entendimento significativo do presente exige que se o
enxergue à luz do passado - de onde veio - e do futuro,
que está nascendo em seu interior. Todo desafio
enfrentado pelo homem, todo problema que precisou
resolver, tem origem histórica. Mais ainda, nosso modo de
agir é, em grande medida, determinado por nossas
imagens mentais do passado. Assim, para entendermos os
problemas de nossa sociedade e desempenharmos um
papel inteligente na construção de nossa civilização,
precisamos possuir um senso de continuidade no tempo,
devemos ter a consciência de ser impossível avançar para
o futuro, inteligentemente, sem a disposição de olhar para
o passado; devemos, enfim, conhecer o passado, saber
como veio a originar-se o presente.
George Rosen
[...] as doenças têm apenas a história que lhes é atribuída
pelo homem. A doença não tem existência em si, é uma
entidade abstracta à qual o homem dá um nome.
Jean-Charles Sournia
[...] Morrer é triste, mas mais triste é morrer em meio a
um lento desfazer-se das carnes, depois de uma silenciosa
invasão de um inimigo que penetra por toda parte, pouco
a pouco, destruindo todas as características mais nobres
do rosto e do corpo [...].
Ernesto Bertarelli, citado por Ítalo Tronca.
x
Resumo
Esta dissertação analisa representações e práticas sociais acerca da lepra, em
especial no que concerne às estratégias políticas de segregação social e de
isolamento hospitalar das pessoas acometidas pela moléstia no decorrer do
período 1924-1941. Sua preocupação central é discutir, com base em documentos
oficiais, o modo pelo qual a sociedade mato-grossense se mobilizou para enfrentar
a problemática da doença, focalizando especialmente as ações das elites. Também
busca identificar as condições sócio-políticas e médico-sanitárias em que a lepra
passa a ser encarada como um problema de ordem institucional em Mato Grosso,
de responsabilidade do poder público, e, em que medida a doença foi de fato
tratada como uma questão de Saúde Pública no Estado. Procura-se demonstrar que
o medo, a rejeição, o preconceito e o estigma milenar em relação à doença (e aos
infelizes acometidos por ela) eram representações que faziam parte de um
imaginário cujas raízes remontam aos tempos bíblicos, mas que ainda persistia,
com poucas alterações, entre a maioria dos mato-grossenses que viveram no
período aqui analisado. Esse imaginário recorrente, carregado de representações
estigmatizantes, resultava em práticas sociais que obrigavam os leprosos a serem
segregados do convívio social e isolados em hospitais destinados para tal fim.
Abstract
This research analyses representations and social politics concerning leprosy, in
special in what concerns to the political strategies of social segregation and
hospital isolation of the people infected by the disease, during 1924-1941. The
central concern is to discuss, based on official documents, the way the society
from Mato Grosso has been mobilized to face the problematics of the disease,
focus specially on the elite actions. Also trying to identify the social, political and
medical-hospital conditions, in which leprosy starts being faced as a institutional
problem in Mato Grosso, as so, being a Public Government responsability, and in
which way the disease was, in fact, treated as a matter of Public Health on the
State. It’s tried to be demonstrated that fear, rejection, prejudice and the ancient
stigma related to the disease and to the miserable infected by it were a part of
our imaginary representations, and which roots rebuild from the biblical times, but
which still persist, with just a few changes, among the majority people from Mato
Grosso who lived here on the analysed time. This imaginary, loaded with stigmas
and representations, resulted on social practices that forced the leprous people to
be segregated from the social coexistence and isolated in hospitals which were
destinated for this objective.
xi
Sumário
Introdução 10
Capítulo I - O estigma da lepra: representações e práticas sociais
na história da doença 24
1. Um histórico da lepra 25
2. Segregação, isolamento e vigilância: a função dos leprosários 41
Capítulo II - A trajetória da lepra em Mato Grosso: dos tempos coloniais
ao limiar do século XX 45
Apresentação 46
1. Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá: origens do
isolamento hospitalar como medida profilática em Mato Grosso 51
2. Lepra e abandono em Mato Grosso: a trajetória do Hospital
de São João dos Lázaros de Cuiabá durante o Império e inícios
da Primeira República 63
Capítulo III - Caridade e profilaxia: as elites de Mato Grosso e suas
atitudes acerca dos leprosos 74
Apresentação 75
1. Lepra, caridade e poder: a Sociedade Beneficente da Santa
Casa de Misericórdia de Cuiabá 83
2. Frutos da caridade: a Comissão Feminina PRÓ-LÁZAROS
e a reinauguração do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá 100
Capítulo IV - Lepra e Saúde Pública em Mato Grosso: pobreza,
isolamento e profilaxia 113
Apresentação 114
1. Lepra: uma doença dos pobres? 118
2. O Regulamento Sanitário de 1938: a institucionalização
das formas de isolamento para os leprosos em Mato Grosso 129
Considerações Finais 154
Fontes e referências bibliográficas 159
Anexos
168
10
Introdução
Não há realidade histórica
acabada, que se entregaria por si
própria ao historiador. Como todo
homem de ciência, este, conforme
a expressão de Marc Bloch, deve,
“diante da imensa e confusa
realidade”, fazer a “sua opção”
o que, evidentemente, não significa
nem arbitrariedade, nem simples
coleta, mas sim construção
científica do documento cuja
análise deve possibilitar a
reconstituição ou a explicação do
passado.
Jacques Le Goff
11
Esta dissertação pretende contribuir com a historiografia sobre as doenças
no Brasil, focalizando o modo como uma parcela da sociedade mato-grossense,
representada por seus dirigentes políticos, autoridades médicas e homens e
mulheres da elite local, lidou com a lepra
1
e com os leprosos, ao longo do período
1924-1941.
Minhas preocupações com a temática das doenças e, em especial, da lepra,
começaram ainda no início do curso de graduação em História na Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT). Em 1994, Por exigência da disciplina
Antropologia Social I, fiz algumas entrevistas com moradores do bairro São João
dos Lázaros, em Cuiabá, local onde resido desde o início da década de 1980. E foi
através daquelas simples entrevistas que fiquei sabendo da existência, naquele
espaço, até a década de 1960, de um hospital de segregação social e de isolamento
para leprosos, conhecido como Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá.
Em 1995, tive a oportunidade ímpar de ser aceito como bolsista do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), vinculado a um
projeto de pesquisa desenvolvido no Departamento de História da UFMT
2
. Como
bolsista, desenvolvi uma pesquisa sobre o Hospital de São João dos Lázaros de
Cuiabá (período 1755 - 1819), que seria a base de minha monografia de conclusão
da graduação
3
. Ampliada e aprofundada, esta pesquisa resultou na monografia que
apresentei como requisito para a conclusão do Curso de Especialização
4
, também
oferecido pelo Departamento de História da UFMT.
Durante estes anos, tive a oportunidade de discutir a pesquisa que vinha
desenvolvendo com alunos da rede estadual de ensino e do curso de Serviço
Social da UFMT. Nessas trocas de conhecimentos, conheci alguns alunos e alunas
1
Neste trabalho optou-se pelo uso do termo lepra, por ser esta a denominação dada à
moléstia no período aqui analisado.
2
Intitulado A transformação do espaço urbano de Cuiabá: as medidas profiláticas do
discurso moral (1840 - 1940), coordenado pelo prof. Ms. Oswaldo Machado Filho.
3
Intitulada As Origens do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá (1755 - 1819),
1997.
4
Intitulada Lepra e leprosários: medo, exclusão social e isolamento hospitalar em Mato
Grosso (1894 - 1941), 2000.
12
portadores da doença e também tive acesso à várias informações sobre problemas
sociais relacionados à lepra (ou hanseníase) em Mato Grosso. Pude, então,
perceber a presença de fortes preconceitos, falta de informações e o estigma que
ainda rondam a moléstia no presente. Essa experiência reafirmou minha intenção
de continuar a estudar e analisar a história da lepra no Estado e ajudou-me a
definir as questões que nortearam esta dissertação de mestrado.
Inicialmente, pretendia estudar o cotidiano dos leprosos isolados no
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, ao longo do século XIX e parte do
XX, em busca de responder a algumas questões: relações sexuais, casamentos
realizados na capela existente no interior do hospital; crianças nascidas dessas
relações entre os doentes internos (o que fazer com elas?); violência, caracterizada
por brigas e até mortes entre os internos; formas de organização para garantir a
sobrevivência naquele espaço de segregação social. Entretanto, no decorrer da
pesquisa, que se estendeu até o final dos anos 1930, fui percebendo que
dificilmente conseguiria responder satisfatoriamente a essas questões. Sobretudo
abarcando um período tã o longo, em uma dissertação a ser elaborada em apenas
dois anos. Por outro lado, a documentação encontrada e as sugestões da banca do
exame de qualificação me encaminharam em outra direção.
Nesse percurso, e lembrando das reflexões de Jacques Le Goff (citadas na
epígrafe que abre esta Introdução) sobre as escolhas que o historiador deve fazer,
optei por analisar a problemática de como a sociedade mato-grossense lidou com
a questão da lepra e, em especial, da segregação social e do isolamento hospitalar
dos leprosos, privilegiando um conjunto de representações e práticas sociais
produzidas no interior desta sociedade, no período 1924-1941.
Trata-se de buscar entender de que forma se deu a implementação do
isolamento hospitalar dos leprosos em Mato Grosso, naquele período. Como as
elites, apavoradas pelas possibilidades do contágio e da disseminação da lepra,
envolveram-se com a questão? A partir de quando e quais medidas de Saúde
Pública foram tomadas, pelo poder instituído, para tentar amenizar os problemas
trazidos pela moléstia à sociedade mato-grossense e, principalmente, às suas
camadas menos favorecidas? Que relações se pode estabelecer entre lepra e
pobreza, entre profilaxia da lepra e caridade pública na sociedade do período? E,
13
ainda, averiguar qual o papel reservado ao Hospital de São João dos Lázaros de
Cuiabá nesta história da lepra?
O recorte temporal - 1924-1941 - enfatiza duas datas que se apresentam
como balizas de um momento significativo na história do isolamento hospitalar
dos leprosos em Mato Grosso. Em 1924, numa conjuntura político-social que
sinalizava mudanças nas ações referentes à Saúde Pública no Brasil, o Hospital de
são João dos Lázaros de Cuiabá, fundado em 1816, e único estabelecimento
destinado ao isolamento de leprosos em Mato Grosso, foi reinaugurado, após mais
de um século de abandono e de decadência. Este acontecimento, ao mesmo tempo
que espelhava aquelas mudanças, caracterizadas por uma maior intervenção do
poder estatal na área da saúde, reiterava uma das mais antigas formas das
sociedades lidarem com a presença da lepra e dos leprosos em seu interior: a do
isolamento, amparado pela caridade pública.
1941, foi o ano de inauguração do Leprosário de São Julião (hoje
localizado no Estado de Mato Grosso do Sul), cujo cotidiano seria regido por um
minucioso conjunto de normas, definidas em um Regulamento Sanitário,
elaborado em 1938. A inauguração desta moderna Colônia de Leprosos,
simbolizava, de certa forma, o coroamento das mudanças institucionais na área de
Saúde Pública no Brasil daquele período. Para esta instituição foram sendo
transferidos, paulatinamente, os doentes segregados no Hospital dos Lázaros de
Cuiabá, contribuindo decisivamente para o seu ocaso. 1941 também foi o ano em
que se começou a fazer, no Brasil, os primeiros ensaios com a utilização da
sulfona no tratamento da lepra.
É importante frisar que as análises desenvolvidas nesta dissertação não se
limitam exclusivamente ao período 1924-1941. Com o objetivo de melhor
fundamentar as questões aqui abordadas, os dois primeiros capítulos fornecem
subsídios sobre a história da lepra, enfatizando o imaginário ocidental sobre a
doença e sua trajetória em Mato Grosso, nos séculos XVIII e XIX. As discussões
desenvolvidas nestes capítulos indicam que muitos elementos desse imaginário,
no que diz respeito às atitudes sociais acerca da segregação e do isolamento dos
leprosos, ainda se faziam presentes na primeira metade do século XX.
14
Mais especificamente, esta dissertação tem como objetivo identificar e
analisar representações e práticas sociais acerca da lepra, em especial no que diz
respeito às estratégias políticas de segregação social e de isolamento hospitalar
das pessoas acometidas pela moléstia no decorrer do período 1924-1941. Analisa
também o modo pelo qual a sociedade mato-grossense se mobilizou para enfrentar
a problemática da doença, focalizando especialmente as ações das elites; e
objetiva, ainda, identificar as condições sócio-políticas e médico-sanitárias em que
a lepra passa a ser encarada como um problema de ordem institucional em Mato
Grosso, de responsabilidade do Estado, e, em que medida a doença foi de fato
tratada como uma questão de Saúde Pública.
Por último, é também objetivo desta dissertação demonstrar como o medo,
a rejeição, o preconceito e o estigma milenar em relação à doença (e aos infelizes
acometidos por ela) eram representações que faziam parte de um imaginário cujas
raízes remontam aos tempos bíblicos, mas que ainda persistia, com poucas
alterações, entre a maioria dos mato-grossenses do período em questão. Esse
imaginário recorrente, carregado de representações estigmatizantes, resultava em
práticas sociais que obrigavam os leprosos a serem segregados do convívio social
e isolados em hospitais destinados para esse fim. Naquele universo de medo,
segregação social e do isolamento hospitalar como medida profilática, destacava-
se, em Mato Grosso, o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá
5
, como local
de recolhimento dos leprosos rejeitados pela sociedade sadia.
Quanto às fontes utilizadas nesta dissertação, privilegiou-se um conjunto
de documentos nos quais as representações e práticas sociais, que são objeto de
análise neste estudo, puderam ser melhor identificadas. Destaca-se aqui, dentre
outros, os Relatórios da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de
Cuiabá, o Regulamento Sanitário de 1938, Relatórios dos Inspetores de Higiene e
do Departamento de Saúde de Mato Grosso. Foram também utilizados inúmeros
documentos avulsos, manuscritos, mensagens dos presidentes de Estado, jornais,
revistas, artigos de comissões indicadas para vistoriar os estabelecimentos
públicos de caridade, prestação de contas, entre outros (além da bibliografia
5
Primeiro leprosário construído em Mato Grosso; inaugurado em 25 de abril de 1816, sob
a denominação de Casa Pia de São Lázaro.
15
disponível, arrolada no item fontes e referências bibliográficas), que permitiram
ampliar as aná lises daquelas práticas e representações. Esta documentação foi
levantada no Arquivo Público de Mato Grosso (APMT) e no Núcleo de
Documentação e Informação Histórica Regional da Universidade Federal de Mato
Grosso (NDIHR/UFMT).
Analisar esta documentação, significou buscar perceber - através dos
discursos oficiais das autoridades mato-grossenses, no âmbito político-
administrativo e médico-sanitário, e de homens e mulheres que, de algum modo,
se envolveram com a questão da lepra e dos leprosos - as representações e as
práticas sociais que impulsionaram a segregação social e o isolamento desses
doentes em Mato Grosso, no período em questão.
Neste sentido, alguns trabalhos foram fundamentais. Entre eles, destaco
aqui A história nova, de Jacques Le Goff, cujas as reflexões do autor sobre o papel
da história e suas múltiplas possibilidades de pesquisa para o historiador,
permitiu-me localizar melhor o tema tratado na historiografia sobre as doenças de
uma maneira geral. Em As doenças têm história, Le Goff faz uma apresentação
que muito contribuiu para o entendimento do lugar privilegiado que ocupa o tema
das doenças nos trabalhos de história, a partir da década de 1960. O autor
acrescenta, ainda, que a doença, o corpo sofredor - espaço privilegiado dos
fantasmas individuais mediatizados pela família, o meio, o Estado (gestor cada
vez mais poderoso da saúde) - transformou-se em objeto privilegiado dos
historiadores.
A doença pertence à história, em primeiro lugar, porque não é mais que
uma idéia, um certo abstracto numa complexa realidade empírica, e porque as
doenças são mortais. Nesse sentido, talvez mais que qualquer outra, a lepra é uma
doença que pertence à história. E não apenas
à história superficial dos progressos científicos e
tecnológicos como também à história profunda dos
saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às
instituições, às representações, às mentalidades
6
.
6
LE GOFF, Jacques.(apres.) "Uma história dramática". In: __________ As doenças têm
história. 1997, pp. 7-8.
16
Pode-se destacar, ainda, a obra História: novos objetos, Dirigida por Le
Goff e Pierre Nora, especialmente o ensaio "O corpo: o homem doente e sua
história", escrito por Jacques Revel e Jean-Pierre Peter, onde os autores expõem
sobre as dificuldades de se refletir sobre as aventuras do nosso próprio corpo e
sobre as incertezas e o preço de se escrever uma história da doença, que não seja
a história de outra coisa, ou que, para melhor dizer, não evite seu objeto
7
.
As noções privilegiadas pelo modelo de história cultural defendido por
Chartier, foram imprescindíveis nas análises aqui desenvolvidas. Segundo este
autor, a história cultural tem por principal objecto identificar o modo como em
diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos
8
. Considerando
essa noção de pluralidade, entende-se que as práticas sociais eram forjadas a partir
do lugar, da posição social que cada indivíduo ocupava na sociedade mato-
grossense para o período. A rejeição, a segregação e o isolamento dispensados aos
lazarentos também podem ser analisados como resultado de percepções do social
que não são, de forma alguma, neutras e que, portanto, produzem estratégias,
resistências e práticas sociais, políticas que tendem a impor uma autoridade à
custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou
a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas
9
.
Importante também, para a abordagem do tema analisado, foi o trabalho de
George Rosen Uma história da saúde pública, texto riquíssimo e imprescindível
como suporte teórico-metodológico para qualquer trabalho na área de saúde e
doença. O autor elucida questões de Saúde Pública desde as sociedades primitivas
até tempos recentes, afirmando que ao longo da história humana, os maiores
problemas de saúde que os homens e mulheres enfrentaram sempre estiveram
relacionados com a natureza da vida em comunidade. Como por exemplo, o
controle das doenças transmissíveis, a melhoria do ambiente físico (saneamento),
a provisão de água e comida suficientes e puras, a assistência médica e o alívio da
7
REVEL, Jacques. e PETER, Jean-Pierre. "O corpo: o homem doente e sua história". In:
LE GOFF, Jacques. e NORA, Pierre. (orgs) História: novos objetos. 1995, pp. 142-155.
8
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 1990, p. 16.
9
Ibidem, p. 17.
17
incapacidade e do desamparo. A ênfase sobre cada um desses problemas ou
aspectos variou no tempo. E de sua inter-relação originou-se a Saúde Pública
como a conhecemos hoje
10
.
Conhecer a história das doenças, segundo George Rosen, ilumina o
interesse público pela saúde. Os homens sempre tiveram que enfrentar problemas
de saúde, nascidos de atributos e carências de sua natureza. E com base nessa
necessidade da vida social, desenvolveu-se, com uma clareza crescente, o
reconhecimento da importância notável da comunidade para promover a saúde, e
prevenir e tratar a doença. A suma dessa consciência é o conceito de Saúde
Pública
11
.
Estudos de paleopatologia mostram não só a antigüidade das doenças, mas
suas ocorrências nas mesmas formas: infecção, inflamação, distúrbios do
desenvolvimento e do metabolismo, traumatismos, tumores, etc. Por exemplo,
encontrou-se a esquistossomose, existente no Egito ainda hoje, em rins de 3.000
anos de idade, e se diagnosticou a tuberculose da espinha em restos de esqueletos
de índios pré-colombianos. Se, no entanto, segundo Rosen, tais formas não se
modificaram, a presença das moléstias e a maneira das sociedades de lidarem com
elas variaram no tempo e no espaço. Conhecer essas variações é essencial para a
compreensão dos problemas de saúde e das teorias e práticas relativas à
enfermidade no curso da história
12
.
Ao ter que enfrentar e lidar com doenças endêmicas ou epidêmicas, as
comunidades e indivíduos agem de acordo com as percepções, conceitos e
preconceitos acerca da natureza das moléstias, existentes nas sociedades e culturas
onde elas se manifestam. Nesse sentido, práticas e representações sobre saúde e
doenças variam não apenas no tempo, mas também no interior destas sociedades e
culturas, ativando formas de compreensão que vão do sobrenatural ao científico
13
.
10
ROSEN, George. Uma história da saúde pública. 1994, p. 31.
11
Ibidem, pp. 25-26.
12
Ibidem, p. 33.
13
Cf. LE GOFF, Jacques. (apres.) "Uma história dramática" In: __________ As doenças
têm história, 1997, p. 7.
18
A lepra traz consigo particularidades em relação às outras doenças,
especialmente no diz respeito à demora da ciência em descobrir a cura e em
oferecer explicações esclarecedoras acerca da moléstia. Isso contribuiu para a
permanência de um imaginário marcado por um estigma que atravessou séculos
de história, acompanhando a doença e contribuindo para reforçar as atitudes de
segregação social e de isolamento hospitalar dos leprosos. É uma enfermidade que
permaneceu, durante séculos, pautada pelas explicações sobrenaturais. Desde os
escritos bíblicos do Levítico, a lepra já era descrita como uma doença
transmissível e incurável. Contudo, suas causas, formas de contágio e de
transmissão, diagnóstico seguro e sua cura são fatores que ainda hoje provocam
polêmica na sociedade em geral, inclusive entre membros que compõem uma
medicina científica das mais avançadas
14
.
A lepra sempre se apresentou como um grave problema social a ser
solucionado (ou pelo menos amenizado) pelos membros das inúmeras
comunidades que tiveram a infelicidade de enfrentá-la. Desse modo, a moléstia
tem sua história entrelaçada com as preocupações referentes à Saúde Pública ao
longo do tempo.
Muito úteis foram as reflexões de Michel Foucault, contidas, entre outros,
nos ensaios: "O nascimento da medicina social" e o "Nascimento do hospital",
encontrados na ontologia Microfísica do Poder. Estes textos permitiram-me
descobrir muito mais sobre a trajetória da medicina social e da instituição
hospitalar na história de alguns países do ocidente. Michel Foucault afirma que,
desde o final do XVI e começo do século XVII, iniciou-se na Europa Ocidental
uma preocupação mais abrangente com o estado de saúde da população num
clima social, político, econômico e científico, característico do período
denominado mercantilista
15
. E das conquistas de melhores condições de vida,
14
Sobre as dúvidas existentes ainda hoje acerca da lepra: suas formas de transmissão,
cadeia epidemiológica, fenômeno de suscetibilidade e de resistência das pessoas expostas
ao risco de adquirir a moléstia, grau de disseminação, etc. consultar o Anexo I deste
trabalho, intitulado "Sobre a lepra: considerações gerais".
15
FOUCAULT, Michel. "O nascimento da medicina social". In: __________ Microfísica
do poder, 1979, p. 82.
19
advindas do próprio mercantilismo ao longo do tempo, teve-se como resultado a
diminuição e até o desaparecimento da lepra na maioria dos países europeus
16
.
Estas foram discussões importantes para fundamentar a história da lepra no Brasil
e em Mato Grosso, e também do perfil institucional assumido pelo hospital de São
João dos Lázaros de Cuiabá no período em questão.
Também sobre a história dos hospitais e le prosários no ocidente cristão, foi
indispensável a obra de José Leopoldo Ferreira Antunes, intitulada Hospital:
instituição e história social. Sem as discussões e reflexões que Antunes faz em
seu texto, sobre a atenção dispensada à lepra e aos leprosários na Idade Média e
Moderna este trabalho ficaria bastante empobrecido.
Sobre o medo, sentimento indissociável da lepra e de sua história,
serviram-me de base os trabalhos de Jean Delumeau e Georges Duby, intitulados,
respectivamente, História do Medo no ocidente 1300-1800 e Ano 1000 ano 2000
na pista de nossos medos. No primeiro, Delumeau faz uma pesquisa acurada sobre
o medo e suas repercussões na Europa Ocidental, para o período citado; já no
segundo, Duby analisa e faz um paralelo muito interessante entre alguns dos
principais medos vivenciados pelas pessoas que viveram no ano mil com outros
enfrentados pelos homens e mulheres do final do século XX. Nestas reflexões
sobre o medo na história do ocidente, a lepra marca presença de forma acentuada,
pois as práticas e representações acerca da moléstia sempre estiveram
relacionadas com o medo que os indivíduos tinham de serem acometidos por ela.
Duby faz um breve paralelo entre o medo da lepra no passado e o medo da Aids
no presente. Discussões que vão ser retomadas por Ítalo Tronca, em seu livro,
intitulado As máscaras do medo: lepra e aids, onde o autor analisa vários aspectos
do imaginário sobre estas duas doenças no continente americano, principalmente,
no Brasil e nos Estados Unidos e também faz um paralelo, entre o medo da lepra e
o da aids.
Os escritos de Tronca são pioneiros na tentativa de analisar o imaginário
sobre a lepra no Brasil, inicialmente focalizando a doença no Estado de São Paulo,
na primeira metade do século XX. Na década de 1980, escreveu um artigo,
16
MORAES, Maria Auxiliadora Maciel de. et. al. Relação entre condições de vida e
hanseníase, 1990, p. 16.
20
publicado na obra Recordar Foucault: os textos do colóquio Foucault intitulado
"História e doença: a partitura oculta (a lepra em São Paulo, 1904-1940)", onde
analisa o imaginário de longa duração que envolve as praticas sociais acerca da
lepra no período. Reflexões que foram retomadas e reforçadas em seu trabalho
mais recente, já citado acima.
Segundo Tronca, estudar a lepra e os leprosos é também contribuir para se
retirar a doença de um relativo esquecimento ou desmerecimento por parte da
historiografia científica e cultural. Para este autor, a lepra merece ser analisada,
não apenas por ser uma moléstia muito antiga, cujas imagens e representações
remontam à Bíblia e, de alguma maneira, ainda sobrevivem no imaginário social,
como também porque acredita -se que, no "descaso" dispensado à doença, talvez
esteja a explicação para o vigor com que o estigma em relação aos leprosos ainda
sobreviva na atualidade
17
. Há um universo velado da lepra, sua história permanece
no silêncio, numa espécie de fronteira
entre a vida e a morte, onde médicos, enfermeiros,
funcionários e doentes conviveram durante muito tempo,
ligados entre si como os dedos às mãos, prisioneiros do
Castelo da Ciência
18
.
Ainda segundo Tronca, os especialistas em Ciências Sociais que
começaram, há alguns anos, a explorar esse domínio novo para eles - os corpos e
suas doenças -, vêm mostrando que, em todas as sociedades, ordem biológica e
ordem social se correspondem.
Em todos os lugares e a cada época é o indivíduo que é
doente, mas ele é doente aos olhos da sua sociedade, em
função dela, e segundo as modalidades que ela fixa. O
discurso do doente se elabora, portanto, no interior do
próprio discurso das relações do indivíduo com o social.
Esta é uma das descobertas que devemos a Michel
Foucault
19
.
17
Cf. TRONCA, Ítalo A. As máscaras do medo: lepra e aids. 2000, p. 23.
18
TRONCA, Ítalo A. "História e doença: a partitura oculta (a lepra em São Paulo, 1904-
1940)". In: Recordar Foucault: os textos do colóquio Foucault. 1985, pp. 136 - 137.
19
Ibidem, p. 137.
21
Na perspectiva de Tronca, a doença é também uma realidade construída, e
o doente é um personagem social. Essas reflexões foram tomadas como base
fundamental na construção desta dissertação. Trata-se do único autor (salvo
engano) que escreveu trabalhos específicos sobre a lepra no Brasil, na primeira
metade do século XX. Entretanto, a história da medicina, da saúde e das doenças
têm lugar na literatura brasileira desde a primeira publicação (1947) de História
Geral da Medicina brasileira, de Lycurgo Santos Filho, republicado (dois
volumes) em 1991. Obra pioneira e única na bibliografia nacional, pela
impressionante soma de dados, pesquisas e informações que traz consigo,
inclusive sobre a lepra e os leprosários no Brasil.
Foram também essenciais, para esclarecer melhor o contexto nacional de
transformações na política médico-sanitária no Brasil, os estudos de diferentes
áreas de conhecimento sobre saúde pública e saneamento no Brasil da primeira
metade do século XX, muitos deles desenvolvidos em programas de pós-
graduação na área de Saúde Coletiva
20
. Neste momento, a Saúde Pública brasileira
passa por um processo de institucionalização, tornando-se alvo das políticas de
centralização e de constituição do Estado-nação, sendo, paulatinamente,
incorporada como uma área de atividade estatal. Neste contexto, a lepra passa a
ser encarada, pelo poder instituído, também como um problema de Saúde Pública,
que precisa ser assumido pelo Estado.
Na historiografia mato-grossense existe uma grande lacuna no que diz
respeito à história das doenças, tema ainda muito pouco (ou nada) explorado pelos
historiadores
21
. E, quando se pensa na história da lepra em Mato Grosso, essa
20
Destaco aqui, os textos que considero fundamentais para a compreensão deste período:
MASSAKO, Iyda, Cem anos de saúde pública: a cidadania negada, 1994; RIBEIRO,
Maria Alice Rosa. História sem fim... inventário da saúde pública - 1880-1930, 1993;
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no
Brasil, 1998. BERTOLLI, FILHO Claudio. História da saúde pública no Brasil, 1996.
21
É importante assinalar que no Programa de Pós-Graduação em História (mestrado) da
UFMT existem alguns trabalhos em andamento sobre a questão das doenças e da relação
saúde/doença em Mato Grosso. Estes trabalhos tratam, em linhas gerais, das seguintes
22
lacuna torna-se maior ainda. O trabalho de Firmo Rodrigues - Figuras e coisas de
nossa terra - no qual o autor faz alguns apontamentos históricos dos Hospitais de
São João dos Lázaros e da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, é único e foi de
grande valia para a construção das análises desenvolvidas nesta dissertação,
principalmente para as questões discutidas no segundo capítulo. É um texto que
contém várias informações acerca das duas instituições de caridade, que foram
administradas por Rodrigues (via Sociedade Beneficente da Santa Casa de
Misericórdia de Cuiabá) na década de 1920.
Fora do campo historiográfico, destacam-se os estudos sobre doenças e a
relação saúde/doença produzidos no âmbito do Instituto de Saúde Coletiva da
UFMT, através de seu Programa de Pós-Graduação. Sobre a lepra em Mato
Grosso, tive acesso a uma monografia de especialização em Saúde Pública,
intitulada Relação entre condições de vida e hanseníase. Este estudo teve uma
importância significativa como fonte de informações e dados acerca da lepra e da
sua relação com as más condições de vida da maioria da população mato-
grossense para o período em questão.
Para melhor dar conta dos objetivos propostos, esta dissertação encontra-se
dividida em quatro capítulos. No primeiro capítulo, intitulado "O estigma da
lepra: representações e práticas sociais na história da doença", apresenta-se um
histórico da lepra, considerando as práticas e representações acerca da doença no
mundo ocidental, desde os tempos bíblicos até o momento em que a doença foi
praticamente erradicada na Europa (fins do século XVI e início do XVII) e passou
a ser um sério problema sanitário para as populações da América. Enfatiza-se,
também, a presença indissociável dos leprosários na história da doença, uma vez
que lepra e leprosários são termos dependentes um do outro, e ambos têm uma
história complexa e marcada pelo medo, pela rejeição, pelo abandono, pela
segregação social e pelo o isolamento dos leprosos.
O segundo capítulo, intitulado "A trajetória da lepra em Mato Grosso: dos
tempos coloniais ao limiar do século XX", traz uma visão panorâmica de como a
sociedade mato-grossense lidou com a problemática da lepra no período colonial,
temáticas: Práticas de cura no período colonial; a varíola em Cuiabá, na segunda metade
do século XIX; a sífilis na passagem do século XIX para o XX.
23
imperial e até inícios do século XX. Neste capítulo, enfatiza-se o Hospital de São
João dos Lázaros de Cuiabá, suas origens e sua trajetória, marcada pelo abandono
por parte do poder instituído, a partir do segundo quartel do século XIX até a
primeira década do século XX. Sendo o único leprosário existente em Mato
Grosso até o ano de 1941, o Hospital dos Lázaros apresentava-se como uma das
raras alternativas de profilaxia da lepra nessa porção territorial, através da
segregação social e do isolamento hospitalar dos leprosos.
O terceiro capítulo, intitulado "Caridade e profilaxia: a elite mato-
grossense e suas atitudes acerca dos leprosos", trata da caridade pública para com
os leprosos em Mato Grosso. Mesmo num período em que a Saúde Pública estava
sendo institucionalizada, saindo da esfera particular e religiosa para o controle do
Estado, a responsabilidade pelos leprosos ainda era transferida, em grande
medida, da ação do poder público para a sociedade civil. Tenta-se perceber como
a sociedade, principalmente parcelas da elite, se organizou para enfrentar o perigo
que representavam aqueles doentes à sociedade sadia. A caridade estava
fortemente ligada à necessidade de profilaxia da lepra em Mato Grosso. Destaque
foi dado, neste terceiro capítulo para as análises referentes à Sociedade
Beneficente da Santa Casa de misericórdia de Cuiabá e à Comissão Feminina Pró-
Lázaros, associações criadas com a finalidade de manter (pela via da caridade e da
filantropia) os leprosos isolados no Hospital dos Lázaros, em nome da profilaxia
da lepra.
No quarto capítulo "Lepra e saúde pública em Mato Grosso: pobreza,
isolamento e profilaxia", discute-se as mudanças no campo da Saúde Pública,
enfatizando a maior interferência do Estado nas questões sanitárias brasileiras.
Tenta -se perceber as relações entre lepra e pobreza em Mato Grosso e em que
medida a problemática da doença foi de fato assumida como objeto da Saúde
Pública. Enfatiza-se que, embora a legislação sanitária tenha sido aperfeiçoada e
ampliada (1938), seguindo parâmetros federais, sua aplicação efetiva estava longe
de se concretizar em Mato Grosso.
Espera-se que as discussões e reflexões aqui apresentadas possam
contribuir para o repensar acerca do preconceito e do estigma dispensados aos
leprosos, pois somente a informação pode combater as atitudes de asco e de
24
repulsão que ainda hoje se fazem presentes na sociedade brasileira. Talvez seja
esse o objetivo maior deste trabalho.
25
Capítulo I - O estigma da lepra: representações e práticas
sociais na história da doença
As lutas de representações têm
tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os
mecanismos pelos quais um grupo
impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os
valores que são os seus, e o seu
domínio.
Roger Chartier
Simetricamente, desde a origem da
crônica, o historiador fez da
doença uma das passagens
obrigatórias de sua narrativa.
Jacques Revel e
Jean-Pierre Peter
Na idade Média, o leproso era
alguém que, logo que descoberto,
era expulso do espaço comum,
posto fora dos muros da cidade,
exilado em um lugar confuso onde
ia misturar sua lepra à lepra dos
outros. O mecanismo da exclusão
era o mecanismo do exílio, da
purificação do espaço urbano.
Medicalizar alguém era mandá-lo
para fora e, por conseguinte,
purificar os outros. A medicina era
uma medicina de exclusão.
Michel Foucault
26
1. Um histórico da lepra
Antes do aparecimento do homem sobre a terra já havia doenças
22
. E se as
doenças têm história
23
, a da lepra é longa e marcada pelo medo, sofrimento,
rejeição, segregação social e isolamento daqueles que tiveram a infelicidade de ser
acometidos por esta moléstia.
Acredita-se que a lepra seja originária da Ásia, pois os registros mais
antigos de uma doença semelhante à mesma vêm da China e da Índia, e datam do
século VI a.C. Na China, um homem chamado Pai-Niu sofria de uma doença
parecida com a lepra, que era conhecida na época como lai, li e Ta Feng. Várias
outras denominações da moléstia foram percebidas nos escritos daqueles tempos
remotos: Da Feng e kustha, também na China; Susruth Samhita, na Índia e assim
por diante. Esperanças de que crânios e ossos de múmias egípcias pudessem
revelar evidências mais antigas de lepra não foram consumadas; a evidência
paleopatológica mais antiga da doença foi encontrada em múmias do século II
a.C.
24
.
A lepra, provavelmente, foi levada da Índia para a Europa no quarto século
a.C., pelos soldados e seus prisioneiros que retornavam das guerras gregas de
conquista empreendidas na Ásia por Alexandre o Grande. A primeira descrição de
uma doença que inequivocamente se tratava de lepra foi feita por Aretaeus, na
Grécia, cerca de 150 anos d.C. Ele denominou a estranha doença de elefantíase.
Da Grécia, a lepra foi lentamente disseminando-se pela Europa, levada por
soldados, comerciantes e colonizadores infectados
25
.
22
Cf. LYONS, A. S., PETRUCELLI, R. J. História da medicina. 1997, p. 19.
23
Cf. LE GOFF, Jacques. (apres.) As doenças têm história. 1997.
24
JOPLING, W. H., MACDOUGALL, A. C. Manual de Hanseníase. 1991, p. 05.
25
Ibidem, p. 07. Veja-se também a esse respeito a monografia de especialização de
MORAES, Maria Auxiliadora Maciel de. et. al. Relação entre condições de vida e
hanseníase. 1990, pp. 14 - 15.
27
A lepra recebeu inúmeras designações diferentes no de correr de sua longa
história. Além daquelas já mencionadas existiram e existem várias outras: zaraath,
mal de São Lázaro, morféia, micobacteriose neurocutânea, mal de hansen e,
atualmente, hanseníase.
No Antigo Testamento, a lepra era conhecida com a denominação de
zaraath ou carater, que significava impureza
26
. A relação da doença com impureza
e castigo divino, a falta de conhecimento acerca da mesma, bem como o fato de
ser uma doença contagiosa e incurável fez com que, durante séculos,
permanecesse um terrível preconceito contra os leprosos mantendo-se, deste
modo, a prática da segregação e do isolamento desses doentes do convívio social.
A aversão que as inflamações crônicas da pele,
dentre elas as lesões propriamente lepróticas, causavam
nas pessoas sadias já houvera suscitado, inúmeras vezes
ao longo da história, a expulsão de leprosos do convívio
comunitário. Os sentimentos de asco e repulsão às
manifestações da lepra foram sempre bastante comuns,
assim como as agressões a esses doentes
27
.
A aversão coletiva que a lepra acerbara também pode ser percebida em
algumas passagens bíblicas, em particular aquelas constantes nos capítulos 13 e
14 do terceiro livro do Antigo Testamento: o Levítico. De caráter normativo, o
Levítico enumera um arsenal de regras relacionadas ao sacrifício de animais, aos
alimentos considerados permitidos para ingestão pelos homens, relaciona leis
religiosas, morais e penais que devem ser obedecidas, lembradas e cobradas no
cotidiano das pessoas, descreve os hábitos sexuais tidos como lícitos ou ilícitos e
26
MORAES, Maria Auxiliadora. et. al. op. cit., 1990, p 15.
27
ANTUNES, José Leopoldo F. Hospital: instituição e história social. 1991, p. 77. Na atualidade,
o preconceito com relação ao hanseniano ainda é um problema sério na sociedade brasileira; talvez
devido à grande ignorância que ainda existe acerca do diagnóstico, dos modos de transmissão, do
tratamento e da cura da doença. Cabe ressaltar, entretanto, que hoje a transmissão ocorre apenas
quando a doença não está sendo tratada, pois uma quimioterapia eficaz torna os bacilos da lepra
inviáveis em tempo relativamente curto. O perigo para outras pessoas, caso sejam suscetíveis à
moléstia, advém não do paciente leproso em tratamento, mas sim dos casos não diagnosticados ou
não tratados da doença. Mais informações científicas sobre a lepra, consultar o anexo I deste
trabalho, escrito com base no trabalho de JOPLING, W. H., MACDOUGALL, A. C. op. cit.,.1991.
28
determina prescrições especiais para os períodos do mênstruo e do puerpério,
além de ensinar a reconhecer e a tratar os doentes com lepra
28
.
No pensamento bíblico, as idéias de pecado,
impureza, sujeira, doença, castigo e morte estão todas
intimamente interligadas. O livro da Bíblia em que se
pode perceber melhor essas idéias é o Levítico
29
.
De acordo com este texto sagrado, a identificação da doença seria atributo
de um sacerdote e seus sinais característicos seriam os tumores brancos ou
manchas de cor branca ou avermelhada na pele. Os tumores que fossem
resultantes da praga da lepra pareceriam mais profundos do que a pele e viriam
acompanhados de pequenas intumescências vermelhas, também descritas como
carne viva, pústulas ou manchas lustrosas e que causariam o branqueamento dos
cabelos e demais pelos do corpo. A doença é descrita com detalhes e os escritos
bíblicos também trazem informações de como diferenciar moléstias semelhantes,
mas que não deveriam ser classificadas como lepra. O termo pejorativo praga de
lepra, contido no Levítico, reforça a forte ligação da doença com a impureza e
com os possíveis pecados cometidos pelo leproso. A lepra era uma praga que
tornava o doente merecedor do castigo de Deus, revertido sob a forma de
sofrimento, rejeição, isolamento e morte inevitável do imundo.
Após o exame do suposto doente e a minuciosa classificação feita pelo
sacerdote, caso o suspeito fosse considerado leproso, estipulava-se uma terrível
sentença e o mesmo seria declarado pecador e imundo. A segregação social e o
isolamento seriam as medidas decretadas pela autoridade religiosa.
Quando no homem houver praga de lepra, será
levado ao sacerdote. E o sacerdote o examinará; se há
inchação branca na pele, a qual tornou o pêlo branco, e
houver carne viva na inchação, é lepra inveterada na
28
BÍBLIA SAGRADA. Traduzida para o português por João Ferreira de Almeida, revista
e atualizada no Brasil, 2ª ed., São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil,1993. Antigo
Testamento, Levítico, caps. 13 - 14, pp. 116 - 122.
29
MARTINS, Roberto de Andrade. Contágio: história da prevenção das doenças
transmissíveis. 1997, p. 24.
29
pele; portanto, o sacerdote o declarará imundo; não o
encerrará, porque é imundo
30
.
As roupas do leproso seriam rasgadas, os seus cabelos desgrenhados e se
aclamariam: imundo!, imundo!, para que todos soubessem que se tratava de
homem pecador e infeliz, por estar acometido pela praga da lepra maligna. E os
sadios e limpos dele deveriam se afastar. Seria considerado imundo durante os
dias em que a praga estiver nele; é imundo, habitará só; a sua habitação será
fora do arraial
31
.
Caso as manchas e os tumores da lepra regredissem até o total
desaparecimento, a pessoa deveria ser submetida a um longo e complicado ritual
de purificação, também dirigido por um sacerdote. Oblações, sacrifícios e
períodos em estado de observação faziam parte do cerimonial religioso, cuja
execução seria indispensável para a reintegração social do sarado.
Aquele que tem de se purificar lavará as vestes,
rapará todo o seu pêlo. Banhar-se-á com água e será
limpo; depois entrará no arraial, porém ficará fora da sua
tenda por sete dias
32
.
A partir do oitavo dia o ritual da purificação continuaria com oferendas e
mais sacrifícios por parte do interessado, tudo pela remissão da sua culpa, do seu
pecado e da sua imundície. Vale ressaltar que as obrigações - no que concerne às
oferendas - mudavam de acordo com a condição social do devedor a ser
purificado: os reconhecidamente pobres poderiam ser poupados - em nome da
caridade divina - de certas cobranças que extrapolassem as suas possibilidades
materiais.
No texto sagrado, a lepra aparece tão relacionada ao sobrenatural, que em
nenhum momento é tratada como uma doença incurável e adquirida através do
contato material com outro leproso. Era vista como uma praga terrível, um castigo
30
BÍBLIA SAGRADA. op. cit., p. 116.
31
Ibidem, p. 117. Sobre a expulsão dos leprosos do ambiente ocupado pelos sadios,
consultar também o trabalho de TRONCA, Ítalo A. As máscaras do medo: lepra e aids.
2000, p. 68.
32
BÍBLIA SAGRADA. op. cit., p. 118.
30
que poderia ser perdoado por um Deus misericordioso, dependendo das oferendas,
dos sacrifícios, do arrependimento, do comportamento moral e da abnegação do
leproso. Nesses termos, a moléstia era tida como um mal reversível, podendo o
doente ser reintegrado à comunidade após a sua cura divina.
Antunes problematiza um pouco mais as descrições e normatizações
contidas no Levítico acerca da lepra, levantando vários questionamentos: será que
os dados, as informações, as afirmações, enfim, o diagnóstico apresentado pelos
sacerdotes sobre a doença pode ser considerado totalmente legítimo? Ou poderia
ser fruto de incorreções ou talvez de alguma transposição de palavras? Eventuais
erros de tradução ou de compilação de trechos bíblicos são perfeitamente
possíveis, isto devido às dificuldades em se encontrar termos equivalentes às
antigas e obscuras palavras hebraicas ou mesmo por interesses conjunturais em se
reforçar determinados pontos de vista em detrimento de outros
33
.
Solucionar as dúvidas supracitadas não é o objetivo deste trabalho. O
importante neste momento é enfatizar que, independente de ser um legado da
antiga organização social dos hebreus ou uma projeção intencional sobre o Antigo
Testamento, as disposições do Levítico conseguiram passar à posteridade um
acentuado e perverso estigma social acerca da lepra. O texto bíblico expressa a
dolorosa associação entre a doença e a impureza, entre a lepra e o pecado,
merecedor do castigo divino. E essa atitude mental foi bastante difundida durante
a Idade Média, principalmente durante os séculos em que a moléstia teve maior
prevalência naquela sociedade, tornando-se (como nos escritos bíblicos) uma
praga entre a população européia daquele período.
A lepra representou a grande praga, a sombra
sobre todos os dias da humanidade medieval. O medo de
todas as outras doenças, juntas, dificilmente se pode
comparar ao terror da lepra. Nem mesmo a Peste Negra,
no século XIV, ou o aparecimento da sífilis, ao final do
século XV, produziram tanto pavor
34
.
Segundo Rosen, no início da Idade Média, durante os séculos VI e VII, a
lepra começou a se espalhar rapidamente pela Europa, passando a ser um sério
33
Sobre essas reflexões, consultar a obra de ANTUNES, José Leopoldo F. op. cit., p. 84.
34
ROSEN, George. Uma história da saúde pública. 1994, p. 59.
31
problema social e sanitário e tornando-se endêmica, especialmente entre os
pobres, nos séculos XIII e XIV. A moléstia assumiu proporções alarmantes em
decorrência dos grandes deslocamentos populacionais resultantes das Cruzadas,
pois ao retornar do Oriente os cruzados infectados traziam a doença e contribuíam
com a sua disseminação e proliferação na Europa
35
.
Não demorou para que a lepra passasse a ser vista e tratada como um
grande problema coletivo de saúde na Europa medieval. Como os médicos
daquele período não tinham muito a oferecer no que concerne à prevenção e ao
tratamento, a Igreja Católica assumiu a liderança do processo e dos encargos para
combater a doença, valendo-se dos princípios orientadores e normatizadores
encontrados no livro do Levítico - Antigo Testamento: pecado e impureza
espiritual eram considerados como fatores principais que levavam ao contágio, e
este era entendido como castigo divino pelas faltas cometidas pelo infeliz. Essas
pessoas deviam isolar-se do resto da comunidade até se submeterem a ritos de
purificação
36
.
O Concílio de Lião, realizado em 583, estabelecia regras da Igreja Católica
que deveriam ser aplicadas à prevenção da lepra. Dentre elas destacava-se a
restrição da convivência dos leprosos com as pessoas sadias, restando a eles a
triste pena da segregação e do isolamento social. Essas medidas preventivas foram
seguidas e aperfeiçoadas por vários outros concílios posteriores e vigoraram por
todo o período medieval
37
.
Decidir se um indivíduo era ou não leproso era tarefa confiada a uma
comissão que, no início da Idade Média, era composta por um bispo, vários
clérigos e um leproso considerado especialista em matéria de lepra. Mais tarde,
essa comissão permitiu a inclusão participativa de eminentes médicos e também
de alguns barbeiros citadinos. Se, após avaliação feita pela comissão, o indivíduo
fosse considerado leproso, prosseguia-se o ritual do isolamento.
35
Ibidem, p. 59.
36
Ibidem, p. 59.
37
Ibidem, p. 60.
32
O isolamento dos leprosos tinha regras muito
minuciosas e precisas. A realização do serviço funerário,
com a participação da vítima, simbolizava a terrível
exclusão da sociedade humana. O leproso vinha vestido
com uma mortalha, lia-se a missa solene para os mortos,
jogava-se terra sobre o doente; então os padres o
conduziam, acompanhado de parentes, amigos e vizinhos,
até uma choupana, ou um leprosário, fora dos limites da
comunidade
38
.
Por ser a lepra uma doença contagiosa e incurável, o leproso era
considerado morto para o mundo e deveria se comprometer publica e
religiosamente a agir como tal. Deveria usar traje característico para identificar-se
como portador do terrível mal, seria obrigado a anunciar sua aproximação por
meio de uma corneta, de um guizo ou de um badalo de sino; estava, ainda,
rigorosamente proibido de aparecer nos mercado públicos e de entrar em
hospedarias ou tavernas. Visto como uma ameaça, o leproso era expulso dos
espaços ocupados pelos sadios.
Um leproso representava uma ameaça. Assim, a
comunidade, no intuito de proteger seus membros sadios,
o expulsava. Sendo a doença incurável, ele se tornava um
proscrito para o resto da vida. Muito antes de receber a
bênção da morte física, já se o destituía de seus direitos
civis e se o considerava, para a sociedade, morto
39
.
A atitude mental de compreensão da lepra como sendo efeito da impureza
humana, da reprovação divina e da punição pelo pecado - herdeira dos escritos
bíblicos - não deixou de trazer sérias complicações e dúvidas aos representantes
da Igreja católica medieval, pois a eles era incômodo aceitar o fato de que também
estavam sujeitos ao contágio. E, não raras vezes, as autoridades religiosas e os
"soldados de cristo" (os cruzados) foram acometidos pela moléstia. Isso provocou
inúmeros questionamentos no interior do clero e fora dele.
Ao contrário do que se teria desejado, a lepra parecia não
saber diferenciar as pessoas que atingiria de acordo com
seus defeitos e qualidades, sua devoção ou devassidão.
Até os membros do clero, mesmo não tendo se dedicado
38
Ibidem, p. 60.
39
ROSEN, George. op. cit., 1997, pp. 58 61.
33
ao cuidado daqueles enfermos, não estavam imunes à
moléstia e por vezes contraíam-na. Havia outros, que após
terem sido enviados com todas as bênçãos até a Terra
Santa, para combater os "infiéis", retornavam portando a
terrível enfermidade, transmitindo-a aos cristãos
40
.
Os cruzados enfrentavam toda sorte de adversidades em suas
peregrinações: viagens extenuantes, várias batalhas travadas em nome da fé, fome,
falta de abrigo seguro e o contato inevitável com pessoas doentes. Todas essas
vicissitudes e privações provocavam uma debilitação física que os predispunham
à lepra. Além disso, no Oriente estavam os focos de difusão da doença e, ao
retornarem à Europa, os "soldados de Cristo" contribuíam fortemente para com a
disseminação da enfermidade em seu meio. Em cada retorno, os expedicionários
traziam formas diferenciadas e - talvez mais severas - da doença, piorando a
situação dos cristãos daquele período. Nesse sentido, segundo Antunes, seja por
não conseguir administrar um possível sentimento de culpa ou de
responsabilidade pelo acirramento da doença na Europa medieval, seja para tentar
proteger a cristandade da forte ameaça do contágio, os eclesiásticos resolveram, a
partir do século XII, tomar os leprosos por objeto de sua caridade. E, mesmo sem
deixar de taxá-los como impuros e pecadores, a Igreja passou a ponderar que os
doentes de lepra também eram dignos de serem assistidos e amparados pela
piedade cristã
41
.
Na Idade Média, a tradição cristã torna -se depositária de uma dupla
imagem acerca do leproso: a do estigma da impureza e do castigo divino pelos
pecados cometidos pelos homens (bastante discutida até o momento) e a da
doença vista como via de redenção, de martírio terreno para se alcançar a salvação
supra terrena. Considerando essas duas formas de encarar a moléstia, passava -se a
acreditar que a lepra tanto podia acometer rebeldes, ladrões e mentirosos, como
castigo pelas suas faltas, como podia atingir os justos e fiéis, com a finalidade de
testar a solidez da sua fé em Deus e nas escrituras sagradas.
40
ANTUNES, José Leopoldo F. op. cit., p. 85.
41
Ibidem, pp. 85 - 86.
34
Com a história de Job, o justo atingido na carne, o
mal físico aceite com submissão reveste-se de um outro
significado: uma via de redenção, e não o castigo
manifesto do pecado. O Evangelho segundo S. Lucas
mostra o pobre Lázaro morrendo coberto de úlceras,
depois acolhido por Abraão; na Idade Média, ele é
imagem de um pobre leproso, sofrendo na terra e
chamado à glória do paraíso
42
.
A lepra - encarada como via de redenção - serviu para justificar e explicar
os casos de contágio que apareceram entre os membros da Igreja Católica
medieval. Para os servos de Deus que a contraíam, a moléstia apresentava-se
como uma provação de fé e de persistência religiosa, onde o sofrimento, o
isolamento e a rejeição seriam recompensados posteriormente com a glória divina.
Também na Idade Média, em algumas regiões, a lepra conferia às suas
vítimas um estatuto jurídico perverso e estigmatizante: ao se referir ao infeliz,
depois do nome, todos deveriam mencionar o termo "leproso". O doente estava
sujeito à interdições de toda sorte, principalmente às de ordem sanitária. Além das
proibições e privações já mencionadas acima, os leprosos - por decisão do direito
canônico - também estavam proibidos de exercer o sacerdócio e alguns leprosários
tratavam de separar homens e mulheres, proibindo-lhes os relacionamentos
sexuais e, conseqüentemente, a procriação.
42
BÉNIAC, Françoise. O medo da lepra. In: LE GOFF, Jacques. (apres.) As doenças têm
história. 1997, pp. 133 - 134. A relação construída entre São Lázaro e os leprosos está
presente no imaginário cristão, originário da parábola bíblica O rico e o mendigo, onde
aparece um homem chamado Lázaro coberto de chagas e identificado, portanto, com os
leprosos. Lázaro tornou-se santo para os católicos devido a sua vida de extrema pobreza,
martírio e doença. Patrono dos mendigos, dos pobres sofredores e dos leprosos, São
Lázaro teve sua legenda tomada como inspiração para a Igreja Católica afirmar a imagem
do leproso a caminho da redenção e da salvação da alma e, portanto, merecedor dos
cuidados e da caridade cristã enquanto vida ele tivesse. BÍBLIA SAGRADA. op. cit.
1993, Novo Testamento, Lucas, pp. 96 97, cap. 16, versículos 19 a 31. Veja-se também
a esse respeito ANTUNES, José L. F. op. cit., pp. 86 87.
35
Se alguém for encontrado a fornicar, que seja
expulso da companhia dos seus irmãos e seja preso e
posto a pão e água - prevê o regulamento da leprosaria de
Meaux.
No total, estas normas têm em comum o
denominador da proibição [para os leprosos] de contactar
com a população saudável e de morar nos aglomerados
43
.
Na sociedade cristã medieval, caracterizada pela renúncia sexual e pela
condenação religiosa dos prazeres terrenos, acreditava-se, também, que a lepra
estava relacionada aos pecados da carne, às inúmeras tentações incontroláveis das
pessoas pervertidas, que eram facilmente tomadas pelo ardor sexual. No corpo
refletia-se a podridão da alma, corrompida pelos desejos sexuais impuros, pelo
adultério ou pela promiscuidade.
O leproso era, só por sua aparência corporal, um
pecador. Desagradara a Deus e seu pecado purgava
através dos poros. Todos acreditavam, também, que os
leprosos eram devorados pelo ardor sexual. Era preciso
isolar esses bodes. Portanto, a lepra, mal a que não se
sabia tratar, parecia, como a Aids pôde sê-lo na
atualidade, o signo distintivo do desvio sexual
44
.
Ao analisar uma narrativa fictícia da segunda metade do século XIX, Ítalo
Tronca afirma que o escritor Michener, inspirando-se nos horrores de Molokai
(leprosário construído na península de Kalawao - Hawai), revitalizou um antigo
tema da alegoria cristã, ao explorar a associação entre a lepra e a luxúria.
Segundo essa tradição, que remonta aos tempos bíblicos,
o doente de lepra seria possuído por desejos lúbricos, que
se expressariam por meio da devassidão, da orgia sexual
representada como algo consubstancial ao próprio mal
que o acomete
45
.
A lepra, o desejo de fornicação incontido e a luxúria caminham juntos na
narrativa citada e interpretada por Tronca. No decorrer da sua longa história, a
moléstia quase sempre aparece relacionada a um forte significado moral, que não
43
BÉNIAC, Françoise. op. cit., pp. 136 - 137.
44
DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. 1999, p. 91.
45
TRONCA, Ítalo A. op. cit., p. 65.
36
se encerrou na Idade Média: São sobrevivências culturais ainda vivas no século
XX, expressando-se por meio de alegorias.
Entre os temas organizadores da idéia de doença,
o da sexualidade é, sem dúvida, o mais obsessivo, do
ponto de vista alegórico. Descrevendo um movimento
similar a um "eterno retorno" através dos tempos e das
culturas, articula-se de variadas maneiras com outros
temas geradores de representações sobre a doença.
Assim, a sexualidade estará quase sempre presente, [...]
nos 'lugares do mal'
46
.
A lepra, portanto, carregou consigo, entre outros, o estigma do desvio
sexual, do desejo demoníaco, da sexualidade satanizada, congênita, que se
confunde com a própria natureza da doença. Nesses termos, uma história da lepra
é também uma história do entrelaçamento entre a moléstia biológica, a tradição da
religiosidade cristã e a sexualidade instintiva e pervertida, que invade e se apodera
dos corpos deformados e pecaminosos dos leprosos.
Encarados com benevolência ou rejeitados pela impureza, pelos possíveis
pecados cometidos ou pelas acusações de devassidão, os leprosos tinham um triste
destino comum: eram separados do convívio com as pessoas sãs, segregados
socialmente, expulsos de suas cidades, vilas e até mesmo de suas próprias casas.
Sendo, portanto, obrigados a viver isolados em cabanas, casas pias de
recolhimento mantidas pela Igreja, colônias afastadas, leprosários, etc.
A partir da segunda metade do século XIII, contudo, a lepra já estava em
refluxo na Europa Ocidental. Depois de ter acometido até Balduíno III, um rei de
Jerusalém, morto em 1183, a moléstia tornava-se cada vez menos freqüente entre
as camadas mais favorecidas da sociedade. Os leprosários existentes nos campos
começaram a entrar em decadência no decurso do século XV e até por volta da
segunda metade do século XVI a lepra quase que desaparecera por completo na
Europa, tornando-se sobretudo uma doença tropical
47
.
É bastante curiosa essa drástica redução da lepra na Europa Ocidental entre
os anos de 1250 e 1550, apesar da não existência de qualquer tratamento eficaz
46
Ibidem, p. 76.
47
BÉNIAC, Françoise. op. cit., p. 128.
37
para a moléstia. Segundo Béniac, a regressão acentuada da doença talvez tenha
sido resultado da crise demográfica européia acarretada pela peste negra.
Primeiro, muitos leprosos tiveram suas mortes antecipadas pelo flagelo da peste.
Segundo, as pessoas que sobreviveram à peste puderam se alimentar melhor e, ao
desfrutar de melhores condições de vida, adquiriram uma maior resistência às
doenças contagiosas. Resta ainda outra questão: por que antes da peste negra
(1250 - 1347) a lepra já apresentava acentuadas taxas de regressão, em pleno
período de superpovoamento na Europa? Existem algumas hipóteses sobre este
problema, porém nada de esclarecedor
48
.
De fato, inúmeras incertezas, dúvidas e enganos permanecem e
acompanham a lepra no decorrer de sua longa história. Diagnosticar a doença
representava um triste e perverso dilema nos tempos medievais. Os leigos, os
religiosos e até mesmo os médicos evocavam sob a denominação de lepra um
conjunto enorme de afecções dermatológicas. O confuso diagnóstico limitava-se,
mais ou menos, ao exame das mãos e do rosto sendo, portanto, bastante impreciso
e duvidoso. Por outro lado, os doentes procuravam ao máximo dissimular os
sinais da moléstia, pois tinham muito medo da rejeição social e do isolamento a
que estariam sujeitos caso o resultado do "exame" fosse positivo.
Ao longo da Idade Média, o nome "lepra" era aplicado
não apenas à doença que hoje em dia conhecemos como
tal, mas também a uma grande variedade de enfermidades
cutâneas, muitas das quais não eram contagiosas
49
.
Antunes também escreveu a esse respeito:
Durante toda a Idade Média, acreditaram-se leprosos, e
se submeteram indiferentemente a essa pecha, os doentes
cujos estados mórbidos seriam posteriormente
identificados como hanseníase, psoríase, sarna, tinha,
vitiligo, câncer de pele e complicações da sífilis ou da
tuberculose
50
.
48
Ibidem, p. 130.
49
LYONS, A. S., PETRUCELLI, R. J. op. cit., p. 345.
50
ANTUNES, José Leopoldo F. op. cit., p. 89.
38
Ainda sobre os fatores que concorreram para o declínio da lepra na Europa
Ocidental, Antunes destaca o fim das Cruzadas e a interrupção das rotas orientais
de transmissão da doença como fatores que colaboraram para diminuir a
incidência de novos casos; o florescimento das cidades durante a época do
renascimento, proporcionando melhorias sociais que podem ter revigorado as
defesas naturais dos indivíduos à moléstia, obstando sua propagação. É
possível também que
benfeitorias arquitetônicas tenham resultado na diminuição do número de
moradores por residência dificultando, deste modo, o contágio. O autor também
não descarta que naquele período a Europa assistiu a grandes calamidades
públicas, como a fome e as epidemias de peste, que atingiram a maioria das
cidades européias, dizimando elevadas parcelas da população, inclusive de
leprosos. Esses flagelos encontravam condições propícias para se alastrarem no
interior dos leprosários, em geral mal administrados, esquecidos pelas autoridades
governamentais e religiosas e superpovoados por pessoas subnutridas. A morte
repentina e avassaladora, trazida pela peste negra e por outras vicissitudes, deixou
muitos leprosários medievais praticamente - ou totalmente - vazios
51
.
A partir do século XIII, no campo e em cada cidade da Europa Ocidental, a
lepra foi regredindo com maior ou menor intensidade até vir a desaparecer
completamente na maioria das regiões. No final do século XVI e início do XVII, a
moléstia já era tida pelos europeus como um mal dos trópicos, um sério problema
sanitário da América.
Pesquisas recentes esclarecem que a lepra é mais prevalente nas regiões
tropicais e subtropicais, mas também ocorre como uma doença endêmica - embora
menos comumente - em regiões temperadas, tais como o litoral do mediterrâneo,
Austrália e América do Norte. O último caso de lepra na Grã-Bretanha foi
registrado em 1798. Na Europa Setentrional e Ocidental, a lepra é atualmente uma
doença importada, mas na Europa Meridional a moléstia tem persistido até os dias
atuais como um problema menor de saúde, porém de difícil erradicação. Casos de
51
Ibidem, p. 92. Sobre os leprosários, ver o item seguinte deste capítulo.
39
lepra na Sibéria e na Escandinava no século XIX derrubaram a idéia comumente
aceita de que a doença precisa de um clima quente para proliferar
52
.
Em suma, desde os tempos mais remotos, a lepra se faz presente como
uma doença contagiosa, mortal e aterrorizante. No mundo antigo, hebreus, gregos
e romanos conheceram a lepra. No período medieval, durante os séculos VI e VII,
a enfermidade começou a se espalhar pela Europa, tornando-se um sério problema
social e sanitário. Passou pela Idade Moderna, provocando pânico, isolamento e a
morte de inúmeras pessoas e chegou até os dias atuais quando, mesmo depois de
encontrada a cura, ainda é um problema a ser pensado criteriosamente pela
sociedade como um todo.
Seria difícil refletir sobre a problemática da lepra - e dos leprosos - sem
fazer alusão - ainda que brevemente - a um sentimento tão marcante nessa
história: o medo. Como compreender o estigma, a rejeição, o preconceito, a
segregação social e o isolamento hospitalar dos leprosos na Europa Ocidental, no
Brasil e, por último, em Mato Grosso sem considerar a atuação e a presença
onipresente do medo? Pode-se dizer que o medo esteve permeando cada um
desses sentimentos e alimentando a maioria (se não todas) das representações e
práticas sociais que compuseram essa longa e amedrontadora história da lepra
53
.
Desde os tempos bíblicos (do Levítico), lembrando aqui das reflexões
desenvolvidas ao longo deste capítulo, que a lepra e o medo caminham juntos, de
"braços dados". O leproso provocava um medo tão forte nas pessoas, que a
maioria dos indivíduos assumiam comportamentos muito parecidos - ou talvez
idênticos - em relação aqueles doentes: segre-los da sociedade, isolá-los em
espaços distantes do ambiente ocupado pelos sadios, desterrá-los para bem longe,
visando proteger a vida dos demais membros da comunidade.
O grande vilão dessa história da segregação social e do isolamento
hospitalar não foi a lepra, nem o leproso. O responsável maior pelo sofrimento de
muitos foi o medo, o pavor que os indivíduos tinham de ser acometidos pela
moléstia e de se tornarem alvo privilegiado do poder que o medo tinha para mover
52
JOPLING, W. H., MACDOUGALL, A. C. op. cit., pp. 05 - 07.
53
Sobre o medo, enquanto objeto de estudo do historiador, consultar o trabalho de
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 - 1800. 1989.
40
as atitudes de asco, de preconceito e de rejeição das pessoas em relação ao
leproso. De fato, não se pode construir a história de como as pessoas lidaram com
a lepra e com os leprosos, num determinado tempo e espaço, desconsiderando a
força que o medo assume nessa trama. E o medo permanece, acompanha a
doença, ajudando a compor um imaginário social de longa duração, que obriga,
ainda hoje, muitos hansenianos a viverem apartados.
Na atual conjuntura, os preconceitos, o medo, a rejeição, a segregação
social e o isolamento ainda são marcantes na sociedade brasileira. E, nesta parte
mais central da América do Sul, a lepra ainda se faz presente de forma
extremamente acentuada. Como se verá posteriormente, muitas reclamações
referentes a Lepra são encontradas nos documentos analisados para o período
privilegiado nesta pesquisa (1924-1941). As autoridades governamentais e
sanitárias advertiam, repetidas vezes, sobre o perigo que representava a doença
para a sociedade como um todo, e frisavam que muito ha que se fazer contra a
Lepra no Estado [de Mato Grosso], onde é grande a incidência da doença
54
.
A maioria da população pouco ou nada sabia sobre a lepra, e essa falta de
conhecimento e de informação contribuiu em muito com a permanência de
práticas e representações que têm suas raízes num passado bastante remoto. Nesse
sentido, Ítalo Tronca afirma haver ainda hoje uma aura de mistério e magia que
sempre envolveu a lepra, desde a Antigüidade, e que persiste como que num
movimento de repetição da história, um imaginário de longa duração
55
. E esse
mistério suscita vários questionamentos, como aqueles oportunamente elaborados
por Maria Stella Bresciani, no prefácio do citado livro de Tronca:
[...] estaria circunscrita à lepra, doença cujos registros
bíblicos evocam uma ameaça várias vezes milenar, a
incapacidade médica de expressar seu impossível controle
total? Por que outras moléstias igualmente letais livraram
seus portadores da pecha infamante? Seria o eterno
fantasma do perigo do contágio - declarado sob controle
pela linguagem médica - elemento suficiente para obrigar
pessoas a viverem apartadas?
56
54
APMT. Relatório do Departamento de Saúde do Estado de Mato Grosso.1940, p. 60.
55
TRONCA, Ítalo A. op. cit., pp. 23 e 93.
56
Ibidem, p. 12.
41
Se na atualidade ainda há um preconceito forte o suficiente para obrigar os
leprosos a viverem afastados, para o período analisado neste trabalho, pode-se
dizer que as atitudes de medo, de rejeição e de preconceitos de toda sorte em
relação aqueles doentes resultavam, quase sempre, na segregação social e no
inevitável isolamento nosocomial, que os afastavam do convívio com as pessoas
sadias. Por isso mesmo, a história da lepra, desde os tempos mais remotos, está
ligada à história das casas de recolhimento para leprosos, à história dos
leprosários, focalizada a seguir.
42
2. Segregação, isolamento e vigilância: a função dos leprosários
Os leprosários cumpriram
uma triste missão de vigilância
sobre a vida urbana durante
séculos, até o final da Idade
Média, quando a lepra declinou
rapidamente e foi substituída por
outras epidemias. A atividade de
controle público exercida por
aqueles estabelecimentos anunciou
uma forma inaudita de
enfrentamento das doenças
transmissíveis: a separação social
dos doentes e sua retenção em
instituições.
José Leopoldo Ferreira Antunes
A história da lepra, como procurou-se assinalar no item anterior, é
marcada pelo medo, pelo preconceito, pela rejeição e pelas práticas da segregação
e do isolamento social dos indivíduos acometidos pela moléstia. Segregar e isolar
o leproso do ambiente ocupado pelos sadios foi uma prática bastante utilizada em
diversos tipos de sociedades e em vários períodos históricos. O leproso era
excluído do convívio social e o isolamento era posto em prática valendo-se dos
mais variados locais: em cabanas, localizadas nos arredores dos acampamentos ou
dos arraiais; em residências particulares, porém distantes do contato com os
demais membros da família; em casas pias, mantidas pela Igreja Católica; em
colônias de leprosos, visando uma convivência coletiva para os doentes, etc.
A partir do século IV d.C., com a ascensão do cristianismo na Europa
Ocidental, vários estabelecimentos de stinados ao cuidado e abrigo dos doentes - e
outros necessitados - foram sendo fundados pelo clero, em nome dos preceitos da
caridade cristã. Os fundamentos do cristianismo estavam fortemente associados à
crença de que a assistência social aos desvalidos e aos desamparados era um
importante expediente de salvação da alma, de remissão dos pecados. Nesse
sentido, os Concílios de Nicéia, realizado no ano de 325, e o de Cartago, no ano
de 398, foram os grandes precursores no que concerne ao estímulo e à
43
multiplicação dos muitos estabelecimentos de caridade que passaram a ser criados
e difundidos na Europa a partir daquele momento.
São bastante conhecidas as disposições que, desde
aquela época, eram reconhecidas como as sete tarefas da
caridade cristã: alimentar os famintos, saciar a quem tem
sede, hospedar os estrangeiros, agasalhar quem passa
frio, cuidar dos enfermos, visitar os presos e sepultar os
mortos
57
.
Os atos de misericórdia em relação aos doentes e outros desvalidos eram
movidos pela convicção de que os mesmos seriam revertidos ao cristão
benevolente sob a forma da remissão dos pecados e do favorecimento de
indulgências divinas. Seguindo os auspícios dessa mentalidade desenvolvida e
incrementada pelo cristianismo, foram sendo criadas várias instituições, de
diferentes tipos, com a finalidade de amparar os necessitados, as quais em poucos
anos podiam ser encontradas por toda a Europa Ocidental. Dentre estas inúmeras
instituições que começaram a ser criadas pelo clero estão os Lobotrophia, que
eram asilos que acolhiam os inválidos e os leprosos. Talvez seja essa a primeira
denominação dada aos leprosários. Acredita-se que a mais antiga instituição desse
gênero tenha sido fundada antes de 350 d.C., por obra conjunta de um padre
chamado Zótico (canonizado mais tarde) e de Santa Helena, mãe do imperador
Constantino.
Os Lobotrophia recebiam doentes sem esperança de cura,
procurando mitigar-lhes o sofrimento. Os portadores de
afecções inespecíficas da pele, então reconhecidos pela
alcunha comum de leproso, também eram recebidos em
casas como essas, que acabavam cumprindo uma função
indireta de proteção aos sãos, pois os eximia de um
contato que lhes causava repulsão
58
.
O acirramento da incidência da lepra na Europa, onde foi uma doença
endêmica entre os séculos XI e XIV, influenciou enormemente no repensar
acerca
57
ANTUNES, José Leopoldo F. op. cit., pp. 39 - 40. (grifos meus).
58
Ibidem, p. 41.
44
dos procedimentos de atenção à moléstia. Os sentimentos de asco e de repulsão à
lepra não foram exclusivos desse período, porém com o aumento das
manifestações da doença entre a população, as autoridades sanitárias e a sociedade
em geral pressionavam e exigiam a instalação, nos arredores das cidades, de locais
para isolamento e efetiva segregação social dos leprosos.
Os primeiros leprosários foram criados na Europa ainda no século XI, para
logo em seguida se multiplicarem por todo o mundo ocidental. Em geral eram
edifícios de pequenas dimensões; com capacidade para dez ou vinte pessoas. Em
alguns casos, entretanto, chegavam a constituir autênticas comunidades
independentes, onde os isolados sobreviviam trabalhando a terra na companhia de
seus familiares e de outros doentes. A maioria desses leprosários impunha
péssimas condições de vida aos neles excluídos, bem como rígidas normas
carcerárias, para impedir as fugas e os contatos perniciosos dos leprosos com os
indivíduos sadios
59
.
Estima-se que o número de leprosários tenha chegado a quase dezenove
mil no continente europeu durante todo o período medieval. A assistência prestada
por esses estabelecimentos conjugava alguns raros cuidados de enfermagem com
a absoluta ausência de tratamento médico, mesmo nos períodos em que a
medicina já vinha sendo aplicada em outros dispensários
60
.
O perfil hospitalar dos leprosários residiu no caráter piedoso e caridoso
que movia seus mantenedores a dedicarem-se ao atendimento dos doentes neles
isolados, bem como na aspiração profilática que representava a segregação social
desses doentes. A atenção que a Igreja e seus seguidores despendiam aos leprosos
era ambivalente em vários sentidos, pois reunia compaixão e perseguição, piedade
e condenação, simpatia e discriminação. Nota-se que as atitudes da maioria dos
cristãos, no sentido de auxiliar os leprosos, também estavam envoltas por um
misto de aversão e de desprezo por aqueles doentes. Havia uma bondade egoísta
latente em grande parte dos fiéis, que era apoiada na expectativa de receber
indulgências pela concessão das esmolas
61
.
59
Ibidem, pp. 78 - 79.
60
Ibidem, p. 79.
61
Ibidem, pp. 90 - 91
45
A partir do século XV, os leprosários começaram a declinar na Europa. A
redução da incidência da lepra - acarretada por fatores já expostos neste trabalho -
levou à decadência e ao abandono de muitos leprosários. Vários outros foram
convertidos em hospícios ou hospitais regulares, muitas vezes preservando os
encargos do isolamento para doentes acometidos por outras moléstias contagiosas
ou para a realização de quarentenas ( os lazaretos).
O fim dos leprosários não implicou o mesmo
destino aos procedimentos da exclusão social e do
asilamento de doentes enquanto métodos de prevenção
das epidemias. Esses métodos continuaram a ser
aplicados aos portadores de outras moléstias e
consubstanciaram novas medidas com propósitos
profiláticos, como a quarentena preventiva dos casos
suspeitos de peste, dos comunicantes e virtuais portadores
da moléstia
62
.
É oportuno frisar que quando Antunes utiliza a frase o fim dos leprosários
está se referindo especificamente à Europa Ocidental. Como já exposto
anteriormente, ao declinar na Europa, a lepra já era um terrível problema social e
sanitário na América. Trazida pelos colonizadores através das grandes
navegações, pelos comerciantes à época do mercantilismo, pelos exploradores
ávidos pelo enriquecimento no "Novo Mundo" ou pelos aventureiros de toda sorte
que para cá se dirigiram, a lepra trouxe consigo o estigma da rejeição, do medo,
da segregação social e do isolamento. Portanto, estas representações e práticas
sociais acerca da doença e dos doentes também foram marcantes no Brasil e em
Mato Grosso. O capítulo seguinte vai tratar especificamente dessas questões.
62
Ibidem, pp. 92 - 93.
46
Capítulo II - A trajetória da lepra em Mato Grosso: dos
tempos coloniais ao limiar do século XX
O 'mal de Lázaro' inspirava terror.
Evitava-se o doente, que era
enxotado para fora das vilas e
cidades, tal como, aliás, sucedia
em todo mundo. E aquela triste
figura de retórica, até hoje
encontradiça nos textos religiosos,
que compara o pecado mortal à
lepra da alma, mais contribuía
para a generalização do horror à
doença.
Lycurgo Santos Filho
47
Apresentação
A partir do século XVI, com a expansão ultramarina, colonizadores
europeus, africanos escravizados, comerciantes e aventureiros de várias partes do
planeta introduziram a lepra no "Novo Mundo". E no ano de 1600 foram feitas as
primeiras notificações de casos de lepra no Brasil, mais especificamente na cida de
do Rio de Janeiro. Logo depois outros focos da doença foram identificados na
Bahia e no Pará. Apesar do governo colonial ter solicitado auxilio da metrópole
portuguesa, nada foi feito naquela época para tentar amenizar as possibilidades de
contágio e de propagação da doença
63
.
Não há registros que comprovem a existência da lepra entre os indígenas
antes da chegada dos portugueses ao Brasil, no entanto certos tropicalistas
europeus persistem em situá-la na América em períodos anteriores ao contato dos
índios com os brancos e com os negros. Santos Filho nega enfaticamente esta
interpretação:
No concernente ao Brasil, um julgamento retrospectivo,
alicerçado nos mais recuados depoimentos e narrações,
concluirá, com muito viso de verdade, pela ausência da
doença antes de 1500. Introduziram-na, então, os brancos
e os negros
64
.
Uma vez chegada ao Brasil, a lepra se alastrou de tal maneira que, no
século XIX, foi considerada (pelas autoridades governamentais da época)
endêmica em várias regiões, como Minas Gerais, Espírito Santo, Maranhão, São
Paulo e Mato Grosso. O mal de São Lázaro, como também era identificada no
Brasil, provocava terror e pânico nas pessoas. Evitava-se o doente, que era
exortado para fora das vilas e cidades e, tal como ocorrera na antigüidade e na
63
MORAES, Maria Auxiliadora Maciel de. et. al. Relação entre condições de vida e hanseníase.
1990, p. 16.
64
SANTOS FILHO, Lycurgo. História geral da medicina brasileira. v. I, 1991, p. 188.
48
Idade Média, o leproso era taxado de pecador, impuro e portador de manchas no
corpo e na alma
65
.
Em princípios do século XVIII, alarmadas com a disseminação da lepra
nas várias regiões brasileiras, as autoridades governamentais começaram a utilizar
e a propagar (como forma de evitar o contágio) a segregação social e o isolamento
dos morféticos
66
em pequenos hospitais situados nos arredores das povoações.
Naquele período, entretanto, apenas as principais cidades brasileiras podiam
contar com lazaretos
67
, onde era ministrada uma precária assistência aos doentes
neles abandonados. Na maioria das vezes, os leprosos embrenhavam-se nas matas,
perambulavam pelas estradas ou viviam esmolando nos arredores das vilas e
cidades
68
.
No Brasil dos séculos XVIII - XIX, e até o XX (a exemplo do que ocorria
na Idade Média), também foi geral a confusão entre a lepra e outras doenças
cutâneas, como a filariose, a sífilis e uma grande variedade de outras dermatoses.
Todos esses doentes eram alvo dos mesmos sentimentos de asco e de rejeição a
que estavam sujeitas as pessoas acometidas pela lepra. Nesse sentido, nos
hospitais de isolamento não eram encontrados somente leprosos, mas também
várias pessoas portadoras de doenças "semelhantes" à lepra e que foram (a
65
Ibidem, p. 188.
66
Morféia era a designação mais usada para a lepra no Brasil dos séculos XVIII e XIX.
67
O termo lazareto também é derivado do personagem bíblico Lázaro, e surgira no século XV para
designar outro tipo de estabelecimento hospitalar, especialmente destinado a recolher e isolar
pessoas vindas de cidades ou regiões onde grassava a peste bubônica, para dar tempo a que se
manifestasse, ou não, os sintomas da doença que poderiam trazer latente. Ao se multiplicarem pela
Europa, ante a grande propagação da peste, o termo "lazareto" passou a ser também utilizado para
se referir, de modo retroativo, aos dispensários para leprosos. O uso indiferenciado dessas duas
palavras - leprosários e lazaretos - é impróprio pois, apesar de os leprosários terem servido de
modelo para a instalação dos lazaretos, um não pode ser reduzido ao outro; cada qual preservou
características e atribuições funcionais distintas e autônomas, em períodos históricos diferentes. Os
leprosários estavam destinados à exclusão social e ao recolhimento de uma classe específica de
doentes já identificados enquanto tal; já os lazaretos estavam associados à realização de
quarentenas preventivas para o controle dos fluxos migratórios e do comércio marítimo entre as
cidades, em um período histórico posterior. Cf. ANTUNES, José L. F. op. cit., p. 87.
68
SANTOS FILHO, Lycurgo. op. cit., v. I, p. 188
49
começar pelos físicos, médicos e cirurgiões da época), ignorantemente, tomadas
como morféticas
69
.
Em meio a uma população pouco esclarecida, insegura e envolvida pelo
medo do contágio, inúmeras pessoas, que eram portadoras de outros males (muitas
vezes não contagiosos e curáveis), foram tomadas como leprosas e acabaram
sofrendo os traumas do abandono, da rejeição, da segregação social, do
isolamento e até da morte, em instituições destinadas para esse fim.
Como já exposto acima, foi somente a partir do século XVIII que as
autoridades governamentais passaram a utilizar o isolamento nosocomial como
medida para se evitar o contágio e a proliferação da lepra nas várias regiões da
Colônia. Desse modo, já em princípios daquele século, foram criados no Brasil os
primeiros leprosários. As cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram as
pioneiras na construção destas instituições, então chamadas de lazaretos
70
.
Nos lazaretos, os segregados recebiam uma assistência precária e
desumana, ficando - na maioria das vezes - entregues a sua própria sorte. Os
estabelecimentos eram mantidos à custa de esmolas, legados e de inúmeras outras
doações em nome da caridade cristã e da busca de indulgências religiosas. As
autoridades governamentais muitas vezes se eximiam das responsabilidades sobre
os leprosários, faziam questão de frisar que eram casas de caridade e, portanto,
deveriam sobreviver das doações feitas pela Igreja Católica, pelos seus fiéis e pela
sociedade como um todo.
Nos lazaretos, os recolhidos receberam
alimentação, assistência médica - de natureza paliativa e,
como é de se conceber, totalmente ineficaz - e assistência
espiritual prodigalizada por abnegados religiosos. De
capacidade bem limitada, mantinham-se eles à custa de
esmolas, legados, e, às vezes, de dotação governamental
71
.
69
SANTOS FILHO, Lycurgo. op. cit., v. II, p. 189.
70
No Brasil dos séculos XVIII, XIX e até princípios do XX o termo lazareto substitui o termo
leprosário. Isso pode ser constatado nos documentos do período e até mesmo em alguns trabalhos
mais recentes.
71
SANTOS FILHO, Lycurgo. op. cit., v. I, p.256.
50
A partir do início do século XIX, leprosários foram sendo paulatinamente
edificados em algumas outras cidades brasileiras como São Paulo, Belém, São
Luís e Cuiabá. Vale ressaltar que esses estabelecimentos de segregação social e de
isolamento existiram em número insuficiente no Brasil, considerando a grande
extensão territorial do país e o grande número de leprosos existente naquele
período. Também deve -se considerar que os leprosários eram vistos como espaços
de desespero, de infelicidade, de maus tratos e de abandono. Muitos deles foram
considerados (pelos doentes e pela sociedade em geral) antecâmaras da morte.
Diante dessa total falta de alternativas, a maioria dos doentes permanecia vagando
pelas estradas e pelos arredores dos aglomerados urbanos, sem teto e sem amparo
de qualquer espécie.
[...] os lazaretos abrigaram e medicaram poucos
pacientes no século XIX. As acomodações eram, de fato,
exíguas, o tratamento ineficaz, a alimentação péssima, e,
ao confinamento, ao isolamento, os leprosos preferiam
viver livres, vagando pelas estradas e esmolando
72
.
Na primeira metade do século XX no Brasil, o termo lazareto (até então
utilizado para se referir aos leprosários) foi sendo substituído pela insígnia colônia
de leprosos ou hospital-colônia. Naquele momento, o discurso médico e científico,
os conceitos de civilização e progresso, a higienização e a moralização dos
espaços urbanos tornaram-se preceitos básicos para a modernização e o
desenvolvimento da sociedade brasileira
73
. No bojo desses acontecimentos e
mudanças, impôs-se a necessidade da construção de hospitais modernos de
segregação social e de isolamento para os leprosos e outros portadores de doenças
contagiosas e incuráveis, bem como para os doentes mentais. Mais tarde, os
leprosários (ou os lazaretos dos séculos XVIII e XIX) cederiam lugar às grandes,
modernas e higiênicas colônias de leprosos.
72
SANTOS FILHO, Lycurgo. op. cit. v. II, p. 465.
73
Sobre estas questões, consultar os trabalhos de HERSCHMANN, Micael M., PEREIRA, Carlos
Alberto M. (orgs). A invenção do Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20 -
30. 1994. RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-
1930. 1985, pp. 163-206.
51
Apresentar uma breve trajetória da lepra e dos leprosários em Mato
Grosso, desde os tempos coloniais até os primeiros anos do período republicano, é
o objetivo deste capítulo. O Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá,
inaugurado no ano de 1816, é o eixo em torno do qual se refaz esta trajetória.
Considera-se que, através de sua história, pode-se compreender melhor as
representações e práticas sociais que constituem parte da história da moléstia na
sociedade mato-grossense e seus desdobramentos no período que interessa mais
diretamente a este estudo.
De fato, o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, a movimentação
dos homens e mulheres mato-grossenses em torno do mesmo, de sua fundação e
de sua manutenção ao longo dos anos, revela muito acerca das atitudes daquela
sociedade face ao problema da lepra. E muitos daqueles procedimentos terão uma
continuidade na primeira metade do século XX, período em que está inserido o
recorte temporal privilegiado neste trabalho.
É importante ressaltar, ainda, que o Hospital de São João dos
Lázaros de Cuiabá foi o único local destinado a reclusão dos leprosos em Mato
Grosso até o ano de 1941, quando foi inaugurada a Colônia de Leprosos de São
Julião: um novo e moderno hospital de isolamento que, a partir daquele ano,
receberia os leprosos de todo o Estado. A Colônia de Leprosos de São Julião foi
utilizada, inclusive, para acolher os doentes que há muitos anos encontravam-se
isolados no secular Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá. Essa remoção
contribuiu decisivamente para o ocaso deste estabelecimento.
52
1. Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá: origens do
isolamento hospitalar como medida profilática em Mato Grosso
Casa Pia de S. Lázaro foi a
primitiva denominação do hospital,
que consistia em um edifício
ocupando os três lados de um
retângulo, fechado na frente por um
muro de 4 metros de altura.
Três portões davam entrada para
o interior; um para a seção de
mulheres, um para a seção de homens
e outro para a capela. Nenhuma outra
abertura havia para o exterior do
prédio, que era dividido em cubículos
numerados, cada um com uma porta
que dava para espaçoso alpendre.
Firmo Rodrigues
Em Mato Grosso, a necessidade de leprosários era premente desde as
primeiras décadas da colonização e povoamento dessa porção territorial, iniciados
com a descoberta do ouro, em 1719. Alguns anos após criada a Capitania de Mato
Grosso (1748) a lepra - ou morféia como era denominada naquele período -
provocava medo e desespero na população e, principalmente, nas autoridades
governamentais. No ano de 1773, o Anal de Vila Bela da Santíssima Trindade -
capital de Mato Grosso naquele período, então dirigida pelo Capitão-General Luiz
de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres - registra um caso de lepra e as
medidas a serem tomadas pelas autoridades competentes:
Sendo certificado Sua Excellencia que o mal chamado de
S. Lazaro, hum dos mais incuraveis e communicaveis,
havia inficionado a hua Anna Ferreira [...] passou a
ordem a Camara para que a fizesse recolher ao seu sitio,
e que a mesma providenciasse em cazos semelhantes e
53
frenquentes nesta capitania, para preservar os povos de
contagio tão pernicioso
74
.
Antes, porém, do ano em que foi escrito o documento supracitado (1773),
já se fazia presente a preocupação com a construção de lazaretos, destinados
segregar e isolar os doentes acometidos pela lepra em Mato Grosso. Nesse
sentido, Manoel Fernandes Guimarães, português que viveu em Vila Bela da
Santíssima Trindade e que ali veio a falecer em 1755, deixou em testamento,
como sua última vontade cristã, um legado para a construção de uma casa de
caridade na vila de Cuiabá, destinada a acolher os portadores da moléstia
conhecida como morféia
75
. Testemunho de sua preocupação em se preparar
diligentemente para a morte e da sua grande devoção cristã, diante das apreensões
face aos mistérios da passagem para o além, esse legado representava a metade do
valor da herança desse português, que importava, no período, em cem mil
cruzados
76
.
Provavelmente pelo avultado da soma, o destino do legado tomou
caminhos adversos ao recomendado e firmado em testamento por Manoel
Fernandes Guimarães. Entre seu último desejo e a edificação da Casa Pia de São
Lázaro permeia um período de sessenta e um anos. Mais afeitos aos interesses
materiais e terrenos, alguns poderosos membros da elite mato-grossense não
titubearam em apropriar-se do montante, dificultando que as autoridades locais
dessem início a construção da almejada obra de caridade
77
.
Quarenta e oito anos mais tarde, em 1803, o Capitão-General Caetano
74
Anal de Villa Bella da Santissima Trindade, 1773. Apud. FREIRE, Gilberto. Contribuição para
uma Sociologia da Biografia - O exemplo de Luiz de Albuquerque, governador de Mato Grosso no
fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978, p. 154.
75
Cf. MENDONÇA, Estevão de. Datas matogrossenses. v. I, 1973, p. 164.
76
Do livro de Registro de Ordens do govêrno desta Capitania, relativas a Administração e Polícia
da Real Casa Pia de S. Lázaro, livro aberto a 9 de Outubro de 1815, pelo próprio Capitão general
João Carlos. In: RODRIGUES, Firmo. Figuras e Coisas de nossa terra. v. II, 1969, p. 134. Não
utilizei o documento original pelo fato de o mesmo (segundo informações obtidas no citado
trabalho de Firmo Rodrigues), fazer parte do acervo da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá e, no
período que desenvolvi a referida pes quisa, me foi negado pela administração da mesma Santa
Casa o acesso àquele arquivo.
77
Ibidem, pp. 130-131.
54
Pinto de Miranda Montenegro projetou a construção do hospital em Vila Bela da
Santíssima Trindade, por ser ali à época a sede do governo e também devido a
insalubridade e a constante manifestação de doenças naquela região. Chegou a
pedir autorização oficial ao Ministro dos Negócios Ultramarinos para utilizar-se
do legado deixado por Manoel Fernandes Guimarães, mas, tendo sido transferido
no mesmo ano para o governo da Capitania de Pernambuco, não conseguiu
concretizar seus planos
78
.
Seu sucessor na administração da capitania, o Capitão-General Manoel
Carlos de Abreu e Menezes, não cogitou sobre a construção do projetado hospital.
Coube, portanto, ao Capitão-General João Carlos Augusto D'Oeynhausen e
Gravenburg providenciar o Projeto para a construção da Casa Pia de São Lázaro
79
em Cuiabá, e não em Vila Bela da Santíssima Trindade, como ambicionaram
alguns de seus antecessores
80
.
D'Oeynhausen e Gravenburg foi o penúltimo Capitão-General a governar a
Capitania de Mato Grosso antes da derrocada do regime colonial, tendo
permanecido onze anos neste posto.
Tomou posse no dia 18 de novembro de 1807 e deixou o governo no dia 6
de janeiro de 1819. Nomeado por Carta Régia de 9 de junho de 1806, substituiu a
3ª Junta Governativa da Capitania de Mato Grosso. Segundo Firmo Rodrigues, ao
ser transferido da Capitania do Ceará para Mato Grosso, Oeynhausen já trouxe
consigo renome de um administrador criterioso e inteligente sendo, portanto,
recebido pelos cuiabanos com demonstrações de regozijo. Foi considerado, por
Rodrigues, um administrador extremamente competente, que realizou várias obras
e inúmeras benfeitorias na Capitania de Mato Grosso, durante seu governo, entre
elas a fundação do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá
81
.
78
Cf. NASCIMENTO, Heleno B. As origens do hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá
(1755-1819). 1997, p. 14.
79
Casa Pia de São Lázaro foi a primeira denominação dada ao Hospital de São João dos Lázaros
de Cuiabá.
80
Não obstante ter vivido e falecido em Vila Bela, no dia 4 de abril de 1755, Manoel Fernandes
Guimarães desejava que o hospital de caridade - uma casa de recolhimento para morféticos - fosse
construído na vila de Cuiabá. Cf. MENDONÇA, Estevão. op. cit., v. I, 1973, p.164.
81
RODRIGUES, op. cit., pp. 122-123. Sobre a construção dessa visão, ligada a historiografia
tradicional e comprometida com o enaltecimento do Capitão-General Oeynhausen, consultar
55
A lepra se alastrava rapidamente em Mato Grosso, principalmente entre os
escravos e livres pobres, porém aterrorizava a população como um todo. E as
famílias da elite - que também não estavam livres da ameaça que representava a
doença - pressionavam cada vez mais as autoridades governamentais para que o
desejo de Manoel Fernandes Guimarães fosse colocado em prática o mais breve
possível. A preocupação do Capitão-General João Carlos Augusto D'Oeynhausen
e Gravenburg, no sentido de acelerar a construção do hospital, é evidente no
Projeto que enviou, em 1814, ao príncipe regente Dom João VI, para que a
edificação do hospício fosse urgentemente aprovada:
Trata-se pois de acudir ao mal que já tem mais
vítimas e cuja espantosa propagação ameaça a população
inteira do Cuiabá, por tantos canais, que é difícil e talvez
impossível vedá-los, todos, a não se [sic] entregar á
polícia o cuidado de vigiar sôbre os seus progressos. [...]
Todo o pai de família tremerá, quando refletir por quantos
modos se pode introduzir êste mal na sua família
82
.
Apesar da urgência, não foram poucas as dificuldades administrativas que
o Capitão-General Oeynhausen teve que enfrentar para realizar o desejo do
benemérito português.
O principal empecilho à realização do referido Projeto - como em parte já
mencionado - foi que o montante do legado estava espalhado entre sessenta e nove
devedores, pertencentes à elite mato-grossense, que se apropriaram do capital sob
a forma de empréstimos. O Capitão-General Oeynhausen, sabedor da enorme
dificuldade em receber o dinheiro a curto prazo, decidiu, então, responsabilizar a
Real Fazenda pela dívida, assumindo, conseqüentemente, o direito de cobrança
em juízo. Os devedores eram, em sua maioria, grandes fazendeiros ou grandes
comerciantes residentes em Cuiabá e em localidades vizinhas. Por este motivo,
também os trabalhos de CORRÊA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso.1994, pp. 437-440.
MENDONÇA, Estevão de. Datas matogrossenses. v. II, 1973, p. 264. Opondo-se a essa visão e
buscando interpretar as ações políticas do Capitão-General João Carlos Augusto D'Oeynhausen e
Gravenburg de forma diferenciada: uma política reformista, populista e excludente, ver os
trabalhos de VOLPATO, Luiza R. R. A conquista da terra no universo da pobreza: formação da
fronteira Oeste do Brasil, 1719-1819. 1987, pp. 139-142. SIQUEIRA, Elizabeth M. et. alli. O
processo histórico de Mato Grosso. 1990, p. 50.
56
João Carlos Augusto D'Oeynhausen e Gravenburg optou pela forma considerada
por ele mais viável para que a Real Fazenda executasse a cobrança da dívida: o
pagamento seria efetuado em espécie, ou seja, em gêneros alimentícios
(plantações e criações) e em utensílios domésticos para usufruto dos internos que
seriam segregados no projetado nosocômio
83
.
O Projeto para aplicação dos juros vencidos pertencentes à herança de
Manoel Fernandes Guimarães apresentado ao Príncipe Regente, datado de 12 de
janeiro de 1814, foi aprovado por Carta Régia de 6 de junho daquele mesmo ano.
Na carta, Dom João VI recomendava que a cobrança das dívidas referentes ao
legado fossem executadas com moderação
84
.
Uma vez aprovado o Projeto, João Carlos Augusto D'Oeynhausen e
Gravenburg deu início à construção da Casa Pia de São Lázaro. Escolhido o local
para a construção do nosocômio, imediatamente foi transferido para lá um certo
número de doentes, que ali organizaram um arranchamento e passaram a utilizar o
terreno doado ao hospital para o cultivo de gêneros alimentícios, bem como para a
criação de pequenos animais domésticos. Esta remoção emergencial dos doentes,
que foram encaminhados ao local designado para a construção do hospital, antes
mesmo do início das obras, reforça o caráter de urgência assumido pelas
autoridades governamentais para a retirada de todos os portadores de moléstias
infecto-contagiosas do convívio social
85
.
O legado de Manoel Fernandes Guimarães assume importância ímpar na
história do primeiro leprosário de Mato Grosso: a Casa Pia de São Lázaro,
inaugurada em 1816 e posteriormente denominada de Hospital de São João dos
Lázaros de Cuiabá. O português foi, sem sombra de dúvidas, um pioneiro, ao
deixar metade da sua avultada herança para a futura criação de uma casa de
caridade na vila de Cuiabá
86
. Não obstante ter sido uma doação muito importante,
82
Do livro de registro de Ordens do govêrno desta Capitania, [...] op. cit., vol. II, 1969, p. 134.
83
Ibidem, pp. 130 33.
84
Nota-se, através da recomendação feita e como já afirmado anteriormente, que os devedores
eram pessoas de grande prestígio e influência dentro e fora da Capitania de Mato Grosso. Cf.
RODRIGUES, Firmo. op. cit. p. 136.
85
Sobre essas reflexões, consultar o trabalho de NASCIMENTO, Heleno B. op. cit., pp. 16 - 17.
86
. NDIHR-UFMT, Relatório do Presidente da Provincia de Matto Grosso o Capitão de Fragata
Augusto Leverger, 1851, p. 39.
57
o legado de Manoel Fernandes Guimarães não foi o único na história das origens e
da manutenção do hospital
87
.
Vale lembrar que os pequenos donativos e esmolas, apesar de ignorados
pela historiografia tradicional, sempre existiram e se apresentaram das mais
variadas formas. Homens e mulheres comuns, das classes menos favorecidas da
sociedade e até escravos aspiravam e tentavam, ao máximo, se aproximar dos
costumes praticados e defendidos pelos poderosos.
Os vários legados deixados em testamento e outros inúmeros donativos
que eram destinados às instituições de caridade estavam profundamente
relacionados com a religiosidade e o misticismo que faziam parte do cotidiano da
maioria dos homens e mulheres daquele período. Ricos e pobres procuravam
seguir de perto as determinações da Igreja católica, assumindo, na prática, um
comportamento baseado na crença religiosa e no sentimento de caridade. Como
bem lembra Boris Fausto, Estado e Igreja católica foram as duas instituições
encarregadas de organizar a colonização do Brasil:
O ingresso na comunidade, o enquadramento nos
padrões de uma vida decente, a partida sem pecado deste
'vale de lágrimas' dependiam de atos monopolizados pela
Igreja: o batismo, a crisma, o casamento religioso, a
confissão e a extrema-unção na hora da morte[...]
88
.
Mato Grosso não fugia à regra. Inserido no sistema colonial montado pela
metrópole portuguesa, e colocado em prática por seus diversos agentes espalhados
pela colônia, a Igreja católica estava presente no nascimento, na vida e na morte
da maioria dos mato-grossenses.
É a partir deste universo religioso que se pode compreender e explicar
melhor a importância dada pelas pessoas aos atos de caridade. No imaginário
religioso do período, legar em testamento bens materiais para obras pias
significava receber a recompensa em bens espirituais após a morte; e a caridade,
sob forma de doações e esmolas durante a vida, representava um acúmulo de
87
Seguindo os parâmetros da historiografia tradicional, Firmo Rodrigues, ao destacar as doações
consideradas por ele como sendo as mais importantes no decorrer da história do Hospital de São
João dos Lázaros de Cuiabá, o faz privilegiando aquelas de valor monetário mais significativo e o
legado de Manoel Fernandes Guimarães, como seria de se esperar, ocupa o primeiro lugar em sua
enumeração.
58
benfeitorias que garantiriam uma vida melhor, mais feliz e mais próxima de Deus
e da Igreja.
As doações mais avultadas eram prerrogativas de doadores que,
obviamente, pertenciam às classes mais favorecidas da sociedade e, o fato, de
serem vistos socialmente como pessoas caridosas e bondosas, elevava-lhes o
prestígio e o status. Porém, os mais pobres, apesar de pouco ou quase nada
possuírem, também legavam em testamento e/ou faziam doações em vida que,
muitas vezes, extrapolavam suas verdadeiras possibilidades materiais. Tudo isso,
para tentar “agradar” a Deus ou mesmo para satisfazer seus desejos pessoais de
ena ltecimento, em nome da caridade para com os "irmãos" que se encontravam
em situação de extrema necessidade e de profunda infelicidade
89
.
Em suma, entre os escravos, os livres pobres e entre os membros das
classes mais abastadas da sociedade existia um inte nso sentimento de caridade e
de preocupação com a vida após a morte, com a salvação da alma.
Foi também em meio a este universo religioso que o Capitão-General João
Carlos Augusto D'Oeynhausen e Gravenburg promoveu uma intensa campanha
(valendo-se da religiosidade dos mato-grossenses), no sentido de angariar fundos
que complementassem o dinheiro deixado, em testamento, por Manoel Fernandes
Guimarães, para a construção do Hospital dos Lázaros de Cuiabá. Nomeou-se,
dentre os oficiais das milícias e das ordenanças, o cargo de oficial esmoler
90
.
Oeynhausen determinou, ainda,
que, todos os anos, no dia 11 de Fevereiro, dia de S.
Lázaro, se pagasse pela Administração do Lazareto a
esmola usual de cinco missas e um memento, sendo a
primeira missa por alma de Manoel Fernandes
Guimarães
91
.
As pessoas designadas para servirem de agentes esmoleres, não apenas
aceitavam prontamente a missão, como também sentiam-se honradas com tal
função. Mesmo porque tal atribuição envolvia uma forte relação de poder, pois o
88
FAUSTO, Boris. História do Brasil, 1995, p. 60.
89
Cf. NASCIMENTO, Heleno B. op. cit., pp. 18 21.
90
Os oficiais esmoleres tinham por missão sair as sextas feiras e aos sábados, angariando esmolas
entre a população da Vila de Cuiabá e das localidades vizinhas.
91
RODRIGUES, Firmo. op. cit., p. 137.
59
simples fato de uma pessoa ter sido escolhida, mais que isso, ter sido nomeada
pelo Capitão-General para assumir a função de agente esmoler já a colocava
numa condição de preeminência na sociedade. Por outro lado, a função de agente
esmoler, supostamente, era um trabalho agradável e fácil de ser realizado, visto
que a população recebia e tratava os envolvidos com as obras de caridade como
cristãos altruístas por excelência.
Os donativos eram de toda espécie: arroz, feijão, fumo, bois, utensílios
domésticos e até escravos. Neste sentido, é ilustrativa a Carta de Doação de um
escravo ao Hospital de Nossa Senhora da Conceição da Misericórdia de Cuiabá
92
feita pelo Tenente Antonio Peixoto de Azevedo:
Ilmo. e Exmo. Sr. Achando-me em véspera de
partida para o Estado do Pará, afim de conduzir negócios
para esta Capitania, pelo rio Arinos, vejo-me em
circunstância de não poder conduzir um escravo que
tenho por nome Manoel, de nação Mina, por se achar com
uma ferida em uma perna e porque, deixando o
suplicante para se curar, o dito escravo pode acontecer,
não só que lhe falte o trato preciso, mas também que as
despesas que fizer, excedam ao valor do dito escravo,
tenho tomado a resolução de oferecê-lo a V. Excia. para o
Hospital da Misericórdia, onde melhor se poderá curar; o
dito escravo acha-se no Pôrto Geral em casa de Pedro
Ferreira, o qual eu possuo livre e desembargado
93
.
Quando se analisa a Carta de Doação acima, percebe-se que o Tenente
Antonio Peixoto de Azevedo, ao ter que partir para o Estado do Pará, e acha ndo-
se em difíceis condições por não poder conduzir em viagem um de seus escravos
que se encontrava gravemente ferido e temendo, ainda, que as despesas com o
tratamento do negro excedessem ao seu valor, resolveu doá-lo à uma instituição
pia. Aproveitando e valendo-se, portanto, do sentimento de caridade, o Tenente
Antonio Peixoto de Azevedo livrou-se da responsabilidade perante o tratamento
do escravo e cumpriu, ao mesmo tempo, com as suas obrigações religiosas
94
.
92
Atual Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá.
93
Carta de Doação feita pelo Tenente Antonio Peixoto de Azevedo, datada de 27 de Setembro de
1817. In: RODRIGUES, op. cit., pp. 141-142.
94
Não conseguimos comprovar se todos os escravos de propriedade dos hospitais de caridade
foram adquiridos através de doações, porém sabemos, com base em pesquisas documentais, que as
duas instituições pias de Cuiabá possuíam um certo número de escravos. E alguns, além de
60
Enfim, as inúmeras doações feitas pela população cuiabana, das
localidades vizinhas e até de outras Capitanias do Brasil, juntamente com o legado
do português Manoel Fernandes Guimarães, garantiram a edificação da Casa Pia
de São Lázaro e sua inauguração a 25 de abril de 1816.
Localizada distante da cidade
95
, a Casa Pia de São Lázaro foi criada para
receber os doentes do dito mal de São Lázaro, ou seja, os portadores das doenças
consideradas pelas pessoas do período que compreende o século XVIII e XIX
como morphéas contagiosas e incuráveis. Os doe ntes eram vistos e tratados como
terríveis ameaças e a segregação social representava a forma mais confiável de
prevenção, pois todos sabiam que a contaminação significava sofrimento,
isolamento e morte.
Após a inauguração do nosocômio, João Carlos Augusto D'Oeynhausen e
Gravenburg confirmou a existência de um saldo positivo (fruto do legado e das
doações e angariações obtidas com a campanha em prol da caridade) que, além de
garantir a manutenção da Casa Pia de São Lázaro, permitia ainda outras
aplicações. Decidiu, então, iniciar a construção de um outro hospital: a do supra
mencionado Hospital de Nossa Senhora da Conceição da Misericórdia de Cuiabá.
Em janeiro de 1817, o Capitão-General Oeynhausen designou um cabo da
Companhia dos Dragões para percorrer, a cada mês, um distrito da Vila, na função
de oficial esmoler. As doações recebidas com esta campanha serviriam de
complementação dos recursos que seriam empregados na construção do Hospital
de Nossa Senhora da Conceição da Misericórdia de Cuiabá. As obras deste
hospital tiveram início em fevereiro daquele mesmo ano. E, desde então, a
administração da Casa Pia de São Lázaro passou a ser denominada
trabalharem no Hospital de São João dos Lázaros e, principalmente, no Hospital de Nossa Senhora
da Conceição da Misericórdia de Cuiabá, vez por outra vendiam (a mando da Administração dos
hospitais) seus serviços a terceiros, com a finalidade de aumentar as rendas e ajudar na
manutenção dos ditos estabelecimentos. Cf. NDIHR-UFMT, Discurso recitado pelo Exm.
Presidente da Província de Mato Grosso, Antonio Pedro d’Alencastro, 1835, p.5.
95
. "O edificio, devido á piedade do fallecido Manoel Fernandes Guimarães, demora-se a pouco
mais de uma milha distante desta capital." NDIHR-UFMT, Relatório apresentado á Assemblêa
Legislativa da Provincia de Matto Grosso pelo Presidente da mesma Provincia o Exm. Sr.
Tenente-coronel Dr. Francisco José Cardozo Junior, 1872, p. 85. Justamente por ser um hospital
para segregação de pessoas portadoras de doenças contagiosas e incuráveis, o Hospital de São João
dos Lázaros de Cuiabá foi construído, naquele período, a mais de dois quilômetros distante da
Vila de Cuiabá.
61
"Administração dos Fundos", incumbida de governar os dois hospitais pios de
Cuiabá
96
.
A sociedade colonial mato-grossense era composta, em sua maioria, por
escravos e por trabalhadores livres pobres, com pequenas posses ou totalmente
despossuídos. Debilitados pelas difíceis condições de vida e por uma acirrada luta
pela sobrevivência, estas pessoas compunham o maior número de vítimas
acometidas pela lepra. Naquele universo, marcado pela insegurança social
(característica de uma região de fronteira), pelas correrias de índios, pela
violência urbana e rural e pela precariedade de socorros na área de saúde, a
população ficava a mercê das várias epidemias, endemias e sezões que acometiam
e matavam grande número de pessoas
97
.
As elites também não estavam livres do ataque das doenças, pois sendo
elas em sua maioria transmissíveis (no caso da lepra, também incurável) todas as
pessoas estavam sujeitas ao contágio, ao isolamento e à morte. A significativa
diferença estava nas melhores condições de vida e no fácil acesso às raras formas
de prevenção e tratamento de que desfrutavam os extratos sociais privilegiados.
Estes, tinham mais facilidade para sair da Capitania em busca de tratamento e de
medicamentos nos centros mais avançados da Colônia ou, nos casos mais graves,
buscavam assistência médica na Europa. Para os pobres, restavam os curandeiros,
que se utilizavam de prátic as e remédios caseiros, tais como: sangrias, purgas,
gordura de pacú, raízes, plantas medicinais, etc
98
.
De fato, a lepra, como também ocorria no período privilegiado neste
trabalho, ameaçava a sociedade como um todo, mas o maior número de vítimas
estava sempre entre as classes menos favorecidas da sociedade. A esse respeito,
declarou, em 1815, o Capitão-General João Carlos Augusto D'Oeynhausen e
Gravenburg, fundador do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá:
96
Cf. NASCIMENTO, Heleno B. op. cit., pp. 23 24.
97
Cf. VOLPATO, Luiza R. R. A conquista da terra no universo da pobreza: formação da
fronteira oeste do Brasil, 1719-1819. 1987.
98
Cf. MOURA, Carlos Francisco. Médicos e cirurgiões em Mato Grosso no século XVIII e início
do XIX. 1981, s/p. e BERTOLLI FILHO, Claudio. História da saúde pública no Brasil.1996, pp. 5
- 7.
62
É a terrivel molestia de que falo, a morféa, mal
funesto com que se tem familiarizado a tal ponto a classe
mais infeliz, que ás vezes, os escravos buscam nela um
titulo para sua liberdade
99
.
É interessante notar, analisando a citação acima, que alguns escravos,
devido aos maus tratos recebidos de seus senhores e a total falta de perspectiva de
vida futura, chegavam ao ponto de buscarem na lepra uma das formas de se
livrarem (através da concessão de uma carta de alforria) da opressão e da
crueldade a que estavam sujeitos. Tomados pelo medo que provoc avam as
chamadas morphéas, os senhores de escravos não titubeavam em libertar e isolar
um negro leproso.
Em suma, a lepra representou um grande tormento para a sociedade mato-
grossense, desde o início da colonização portuguesa. Interessados em receber
indulgências divinas neste mundo ou preocupados com a vida após a morte, com a
salvação da alma e, principalmente, com a profilaxia que representava o
isolamento nosocomial, muitos cristãos dedicaram-se, das mais variadas formas,
às obras de caridade, principalmente no que concerne ao atendimento e amparo
daqueles acometidos por moléstias contagiosas e incuráveis, entres eles os
leprosos, que eram, em sua maioria, pertencentes às camadas menos favorecidas
da sociedade.
O medo e as preocupações acerca da doença foram fatores marcantes no
modo como a sociedade mato-grossense lidou com a lepra e os leprosos ao longo
de sua história. As autoridades governamentais e sanitárias dessa região também
defendiam e acreditavam piamente na segregação social e no isolamento
hospitalar dos leprosos (e demais portadores de moléstias contagiosas e
incuráveis) como sendo a estratégia profilática mais confiável para se livrar a
sociedade do contágio e, portanto, deveria ser também a mais utilizada e difundida
pelo poder instituído. Assim, o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá,
99
Do livro de Registro de Ordens do govêrno desta Capitania, [...] op. cit., p. 134, (grifos meus).
Sobre a sociedade mato-grossense e seu cotidiano de miséria, penúria, sofrimento e doença nos
séculos XVIII e XIX, consultar os trabalhos de VOLPATO, Luiza R. R. A conquista da terra no
universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil, 1719-1819., 1987 e ___________
Cativos do sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá: 1850/1888. 1993.
63
sendo o único espaço para o confinamento dos portadores de doenças contagiosas
e incuráveis, assumiu uma importância ímpar para a sociedade que o constituiu,
pois somente através dele se poderia concretizar o isolamento dos leprosos, como
medida profilática em Mato Grosso.
Todavia, como se verá no item seguinte, a manutenção do Hospital de São
João dos Lázaros de Cuiabá, após a emancipação política do Brasil, tornou-se um
problema para os administradores da Província. Os doentes segregados da
sociedade e ali isolados foram entregues a sua própria sorte, e o hospital relegado
ao mais completo estado de abandono. Insuficientes, os recursos para este
leprosário, obtidos através de esmolas, legados e outras doações movidas pelo
sentimento de caridade existente na sociedade civil e pela necessidade de manter
os doentes afastados do convívio social, jogaram o Hospital de São João dos
Lázaros em uma situação extremamente precária ao longo de todo o século XIX,
conforme se verá a seguir.
64
2. Lepra e abandono em Mato Grosso: a trajetória do Hospital de
São João dos Lázaros de Cuiabá durante o Império e inícios da
Primeira República
Durante a pesquisa empírica, realizada para o desenvolvimento deste
trabalho, as raras informações encontradas nas fontes documentais referentes ao
século XIX, acabaram por comprometer um pouco a história do Hospital dos
Lázaros de Cuiabá, no período que vai da sua inauguração até o final daquele
século. Para tentar elucidar algumas questões relativas a essa grande lacuna
existente durante o período Imperial, utiliza-se aqui como referência básica,
conforme já apontado na introdução, os apontamentos históricos feitos por Firmo
Rodrigues. Buscar-se-á, através dos seus escritos, complementando suas
informações com aquelas que encontramos em alguns documentos oficiais,
particularmente os relatórios dos presidentes da Província, evidenciar o abandono
a que foram relegados o Hospital dos Lázaros e, em conseqüência, os leprosos e a
própria questão da lepra.
No entanto, se as referências sobre a incidência da lepra em Mato Grosso,
assim como sobre as medidas necessárias para se evitar a sua propagação não
encontram grande espaço na documentação oficial da Província, a questão da
saúde da população, não deixou de ser tratada nestes registros. Assim, embora não
tenha um papel de destaque nas preocupações dos administradores imperiais
100
, as
questões sobre a assistência à saúde era um item permanente dos relatórios dos
presidentes da Província, apresentando-se sob as rubricas Hygiene Pública,
Estabelecimentos Pios ou Caridade Pública. Observa-se, ainda, que, a exemplo
de outros aspectos, como a própria instrução pública, as atividades produtivas, os
100
Este papel coube à Instrução Pública, que ocupou um espaço significativo nas estratégias das
elites imperiais no sentido de inserir o Brasil no rol das sociedades civilizadas. Sobre esta questão
em Mato Grosso, e o modo como aqui tomaram forma aquelas estratégias, consultar o trabalho de
SIQUEIRA, Elisabeth Madureira. Luzes e Sombras: modernidade e educação pública em Mato
Grosso (1870-1889). 1999.
65
meios de comunicação, as cadeias e a colonização, as questões pertinentes à saúde
da população foram focalizadas sob a ótica dos referenciais de progresso e
civilização, especialmente após a segunda metade do século XIX.
Na opinião de Firmo Rodrigues, a transferência do Capitão-General
Oeynhausen - o grande protetor das Obras da Caridade em Cuiabá - do governo
da Capitania de Mato Grosso para a de São Paulo (1819) foi uma medida drástica
para os dois hospitais de caridade de Cuiabá. Nas décadas seguintes à saída do
referido Capitão-General, o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá
enfrentou sérios problemas de abandono por parte dos seus sucessores no
governo
101
.
Pode-se constatar esta situação lastimável, apontada por Firmo Rodrigues,
nos documentos produzidos por uma comissão que, em 1828, por ordem da
presidência da Província, foi encarregada de visitar as prisões e os
estabelecimentos de caridade. Em visita ao Hospital dos Lázaros em 1831, os
fiscais da comissão constataram a difícil situação em que se encontravam os
leprosos ali isolados:
No Hospital dos Lazaros achão-se quinze
enfermos, duas mulheres, e trese homens; são assistidos
diariamente com duas libras de carne fresca, com meia
quarta de farinha, para oito dias, meia vara de fumo por
mês. Os escravos da casa deitão lhe lenha hum dia de
cada mês. Queixão-se esses infelises, que a lenha, a
farinha e o fumo não lhes chega, clamão de fome, e dizem
que se achão quasi nús, por que a tres annos receberão
huma camiza, húa ciroula, e huma baeta, que já estão
rotas
102
.
Naquele mesmo ano, os fiscais da comissão pedem as autoridades
governamentais que tomem providências, no sentido de melhorar a situação
daqueles desgraçados:
A bem da humanidade exige á attenção da
Camara sobre estes desgraçados, que soffrem a bem de
101
APMT. Relatório da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia. Apresentado ao
Exmo. Sr. Presidente do Estado, 1924, p. 18.
102
APEMT. Cópia dos artigos da Commissão nomeada para visitar às prisões e os
estabelecimentos públicos de caridade. Lata A, 1831, § 2º.
66
suas molestias, a fome, e nudez, males estes, que as
authoridades lhes podem milhorar. Entre elles existe hum
bastantemente velho, que por ferido, e cego anda da
Gatinha pela terra, e se vê como os mais, na dura
necessidade de esperar pela carne, que lhe pertence,
muitas veses até o meio dia! Que desgraça!
103
No mesmo artigo, pode-se também sentir o atroz sofrimento dos leprosos
confinados no Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá. Alguns, que
provavelmente estavam ali há muitos anos, mais que esperar, desejavam
ardentemente a morte:
Huma das mulheres exclamou, presente a
Commissão que desejava morrer, pois só assim findaria
os males, e mizerias que soffre. A Commissão tendo em
vista o [...] tanto padecimento, e ouvindo á Manoel
Antonio Muniz, zelador do Hospital, hé de parecer que se
deve dar a cada hum huma quarta de farinha para dez
dias, huma vara de fumo por me (este lhes serve para
lavarem as feridas, e não em vicio, que o gastão) meio
alqueire de arros pilado, e meio dito de feijão para todos
em hum mes; lenha em dous dias de cada mez, conduzida
pelos escravos da mizericordia: duas enxadas, huma
almocafre, e o conserto de huma alavanca, que existe;
igualmente huma gamella em que se possão lavar. Hum
delles, que ali habita de quinze annos, dice, que estes
socorros se lhes dava no tempo, que governou esta
Provincia o Marquez de Aracaty, fundador deste
Estabelecimento
104
.
O discurso do abandono e do sofrimento também estava presente nos
relatórios da comissão para o ano de 1834. Acrescentava -se, ainda, que o prédio
do Hospital dos Lázaros encontrava-se em ruínas. Um paralelo entre a citação a
seguir e a do ano de 1831, demonstra que no ano de 1834 havia um número menor
de leprosos isolados no hospital, provavelmente resultado das fugas freqüentes
105
,
devido ao estado de miséria enfrentado por aqueles doentes ali isolados.
103
Ibidem, § 2º.
104
Ibidem, § 2º.
105
NDIHR/UFMT. Relatório apresentado pelo Presidente da Província de Mato Grosso, Augusto
Leverger, 1851, p. 37.
67
O Hospital dos doentes Lazaros tem em si 12
doentes, sendo 9 homens e 3 molheres; estes miseraveis
em rasão da dura fome que geralmente sofremos,
acomodarão-se com a carne, farinha, e sal, que se lhe
ministrava, [...] Este estabelecimento acha-se com grande
necessidade de reparos, o telhado todo roto, por isso que
precisa duas sacadas novas, ou tirar as velhas que existe,
huma grade no portão da repartição das mulheres,
embassar e caiar as paredes de todo o edificio pelo
estrago que lhe tem feito o tempo
106
.
Ao abandono do Hospital de São João dos Lázaros e dos homens e
mulheres que ali se achavam, somava-se o da Santa Casa de misericórdia, cuja
situação ao longo do período imperial, de acordo com Firmo Rodrigues, não era
muito diferente:
[...] até expirar o regimem dos presidentes da Província,
isto é, durante longos anos, as instituições de caridade
desta cidade arrastaram existência mais ou menos penosa,
quasi equivalente a não existir; as enfermarias da
Misericórdia eram consideradas a antecâmara da morte,
para onde só os desgraçados ou os escravos eram
conduzidos, não por vontade própria, mas resignados,
como um condenado ao patibulo
107
.
Nos relatórios dos presidentes de província, o discurso sobre a precária
situação destas instituições, condenadas a uma quase total decadência, também é
recorrente durante todo o período imperial
108
. Todavia, esta situação talvez não
possa ser atribuída apenas aos problemas de uma província pobre como a de Mato
Grosso, cujas despesas foram bancadas pelo Tesouro Nacional, devido à
fragilidade de sua economia e à sua condição de fronteira, durante todo o período
106
APEMT. Cópia dos artigos da Commissão nomeada para visitar às prisões e os
estabelecimentos públicos de caridade. Lata A, 1834, § 1º.
107
RODRIGUES, op. cit., pp. 144-145.
108
NDIHR/UFMT. Discurso apresentado pelo Presidente de Província de Mato Grosso Antônio
Pedro de Alencastro na Abertura [...]1835, p. 5. Relatório do Presidente de Província Estevão
Ribeiro de Rezende, [...] 1840, p. 22. As reclamações também podem ser vistas, com bastante
ênfase, nos relatórios dos Presidentes da Província de Mato Grosso para os anos de 1880, 1884,
1886 e 1888.
68
imperial
109
. É preciso levar em conta também que situações como estas são
expressões concretas do modo como a questão da saúde das populações era
encarada naquele período, isto é, quase nos mesmos moldes daquilo que ocorria
durante a vigência do regime colonial.
A Saúde Pública naqueles dois momentos da história do Brasil, como
assinala Massako Iyda, apresentava-se como uma questão de domínio privado,
familiar ou local. Em alguns momentos assumia um tipo de organização bastante
precária e deficiente, através das Comissões de Homens Bons (na Colônia) ou os
Probos (no Império), com funções filantrópicas e fiscalizadoras, nas quais os
proprietários rurais participavam com o intuito de obter prestígio social. Além do
mais, os recursos direcionados pelo poder instituído para o exercício da função
sanitária eram mínimos
110
.
Nesse quadro geral de discussões entre doença e Saúde Pública em Mato
Grosso, é importante voltar a enfatizar que, desde o período colonial e até fins do
século XIX, a sociedade era composta, em sua maioria, por escravos (1888) e por
trabalhadores livres pobres, vivendo em condições lastimáveis de exploração e de
abandono por parte das elites dirigentes. Estava, portanto, entre esses extratos
sociais "esquecidos" pelo poder instituído, o maior número de vítimas acometidas
pela lepra e também por outras várias doenças que assolaram a Capitania e a
Província de Mato Grosso.
Nas avaliações do quadro de salubridade da Província, pelo menos até
meados do século XIX (antes que as epidemias de varíola e do cólera morbos a
atingissem), pode-se perceber que são poucas as referências, nos documentos
oficiais, à grandes problemas de saúde no seio da população. Todavia, a denúncia
do estado de absoluta carência de médicos, instituições hospitalares e boticas na
região, também se repetem ano a ano. Em 1837, por exemplo, um relatório
presidencial dava conta da ocorrência de febres na cidade Mato Grosso (Vila Bela
da Santíssima Trindade, capital de Mato Grosso no período colonial), ocasião em
que morreram um não pequeno número de pessoas sem [...] consolo e
tratamento, por falta de profissionais médicos na região:
109
Cf. BORGES, Fernando Tadeu M. Do extrativismo à pecuária: algumas observações
sobre a história econômica de Mato Grosso (1870-1930). 1991.
69
Em toda a Província existe apenas o Cirurgião-mor do
Corpo de Ligeiros, que não podia abandonar o hospital
do mesmo e a Santa Casa da Misericórdia. [...] Nem uma
só botica existe na Província à exceptuar-se a pequena
que possue o mesmo Cirurgião-mor [...]
111
.
A situação de carência na área de saúde continua sendo registrada pelas
autoridades imperiais até o final do regime. Contudo, os relatórios são também
recorrentes no que tange ao levantamento das necessidades da Província nesta
área e estas são apontadas em conformidade com os preceitos modernos de
higiene e salubridade.
Assim, desde meados do século XIX, a cidade de Cuiabá, capital da
Província, e centro hegemônico das relações econômicas, das manifestações
sócio-culturais e das decisões político-administrativas - também foi palco
privilegiado dos novos conceitos de civilização, de higienização, do discurso
médico-científico e da moralização dos espaços urbanos em defesa do progresso e
em nome da modernidade. Tais conceitos eram enaltecidos e exigidos pelo poder
instituído, que representava a sociedade disciplinar que se desenvolveu no Brasil
daquele período
112
.
Valorizando e enaltecendo tais conceitos e assumindo como parâmetros a
serem seguidos as grandes cidades européias, a elite mato-grossense mais
especificamente a cuiabana tentava transformar a cidade de Cuiabá num
ambiente disciplinado, higiênico, medicalizado e moralmente sadio
113
. Nesse
sentido, os tidos como vadios e turbulentos, loucos e os portadores de doenças
contagiosas e incuráveis, como a lepra deveriam ser segregados e isolados em
hospitais apropriados para tal fim
114
.
110
IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. 1994, pp. 23-32.
111
NDIHR/UFMT. Discurso apresentado à Assembléia Legislativa da Província de Mato Grosso
por Antônio Pimenta Bueno, [...] 1837, p. 10.
112
Cf. VOLPATO, Luiza R. Ricci. op. cit., 1993, pp. 82-106.
113
Ibidem, pp. 88-95.
114
Sobre a segregação dos loucos em Cuiabá, consultar CANOVA, Loiva. A loucura é uma
loucura: as representações sobre o louco e a ordenação do espaço urbano em Cuiabá (1889 -
1931). 2000.
70
Os inspetores de higiene, os poucos médicos, os educadores e demais
autoridades que para cá se dirigiam acreditavam que poderiam impor aqui os
conceitos trazidos de outras regiões do país e da Europa. A cidade de Cuiabá
deveria (no discurso médico e oficial) ser higienizada e transformada em um lugar
de bem estar, onde conviviam as famílias honestas e de educação adequada, as
famílias da elite. Defendia-se uma cidade medicalizada, com a desinfecção dos
lugares públicos, a limpeza dos terrenos baldios, dos matadouros públicos e,
principalmente, do Córrego da Prainha, que cruzava as principais ruas da cidade
de Cuiabá.
Estes discursos, em especial no que diz respeito à higiene e prevenção de
doenças, ganharam maior densidade após a Guerra da Tríplice Aliança contra o
Paraguai (1865 - 1870), durante a qual ocorreu uma epidemia de varíola. A guerra
contra os paraguaios - episódio do qual a Província de Mato Grosso foi palco
privilegiado naquele período - contou com a terrível epidemia de varíola, que
assolou a população cuiabana em 1867, para aumentar ainda mais o pânico e a
insegurança social entre os diferentes segmentos sociais que viveram em Mato
Grosso, mais especificamente em Cuiabá, naquele período.
A varíola foi um mal que atingiu a população cuiabana como um todo,
mas o grande número de vítimas, segundo Volpato, também estava entre as
classes menos favorecidas da sociedade. A guerra contra os paraguaios e as cheias
do rio Cuiabá (1865) contribuíram em muito para a desestruturação na produção e
no abastecimento de gêneros alimentícios na Província. A escassez de alimentos
atingia primeiramente aos mais pobres. Estes, debilitados pelas difíceis condições
de vida, pela miséria e pela fome, tornaram-se alvos fáceis para a doença
115
.
No entanto, a terrível experiência da epidemia de varíola não alterou
significativamente a situação de abandono, o quadro de misérias a que, segundo
Firmo Rodrigues, foram relegados, durante o século XIX, os dois hospitais de
caridade de Mato Grosso
116
.
115
Cf. VOLPATO, Luiza R. Ricci. op. cit., 1993, pp. 80-81.
116
RODRIGUES, Firmo José. Op. cit. , 144-145. Segundo o autor, foi difícil reconstituir este
quadro de abandono, pois que o desleixo ou mão criminosa consumiu grande parte do arquivo da
Santa Casa. Em 1867, foi a população de Cuiabá dizimada pela varíola e, sôbre os serviços que
então deveria ter prestado a Santa Casa, não encontramos referência alguma no arquivo. Para
71
Em 1879, o presidente da Província de Mato Grosso, João José Pedrosa,
pretendendo melhorar as condições lastimáveis em que se achavam a Santa Casa
de Misericórdia e o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, nomeou uma
comissão com a finalidade de organizar uma irmandade que pudesse assumir a
administração dos mesmos. Uma vez organizada essa irmandade, o seu
regulamento foi submetido à aprovação da Assembléia Legislativa da Província
de Mato Grosso, tendo sido adotada por lei n.º 532 de 19 de novembro daquele
mesmo ano.
[...] e, em seguida, foi procedida a eleição da mesa
administrativa que se compunha de: provedor, escrivão,
tesoureiro, procuradores, irmão de mesa e mordomos.
Compreendia também essa associação uma classe
de irmãs honorárias, dentre as quais eram escolhidas uma
provedora, doze irmãs de mesa e quatro mordomas.
A irmandade ficou constituída com trezentos e
quarenta membros e a escolha de provedor recaiu na
pessoa do Desembargador Firmo José de Matos que foi,
pode-se dizer a alma dêste movimento generoso em
benefício das instituições fundadas com tanto zêlo pelo
Capitão João C. A. de Oeynhausen
117
.
Durante os três anos de existência e de atuação da referida Irmandade, a
situação da Santa Casa de Misericórdia e do Hospital de São João dos Lázaros de
Cuiabá, segundo Firmo Rodrigues, melhorou consideravelmente. Mas a partir de
1884, surgiram discórdias entre alguns sócios importantes da associação, que tão
bons serviços vinham prestando e, como conseqüência, os recursos necessários à
manutenção dos hospitais minguaram novamente. Por esses motivos, a lei
provincial n.º 718, de 17 de setembro de 1886, fez voltar ao antigo regime de
nomeação, pelo presidente de Província de Mato Grosso, do pessoal componente
da mesa administrativa da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, desaparecendo,
assim, a tão estimada e relevante irmandade. Firmo Rodrigues atribui a este fato a
situação em que se encontrava o Hospital de São João dos Lázaros em 1887,
estava deserto: tinha sete enfermos apenas, 3 homens e 4 mulheres
118
.
saber mais sobre a epidemia de varíola em Cuiabá, à época da Guerra do Paraguai, ver também
MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Noticias sobre a Provincia de Matto Grosso.1869.
117
RODRIGUES, op. cit., pp. 145-146.
118
Ibidem, p. 146.
72
Em 1886, Mato Grosso foi assolado pela epidemia do cólera morbos e em
1890 pela epidemia de febre amarela. A situação era de pavor e de desespero e os
hospitais de caridade, principalmente a Santa Casa de Misericórdia, tinham que
assumir o ônus com o atendimento de um número de doentes muito superior às
suas possibilidades materiais e a seus parcos recursos financeiros. Segundo
Rodrigues, o regime republicano em nada melhorou a situação dos referidos
hospitais, ao contrário, a situação de incertezas decorrentes da nova ordem política
aumentava ainda mais a ausência do poder público nas atividades relacionadas às
duas instituições de caridade.
Em suma, pode -se afirmar que, ao longo do período imperial, as
preocupações com a lepra ficaram relegadas a segundo plano em Mato Grosso. Há
uma relativa ausência de comentários e de informações acerca da moléstia nos
documentos oficiais referentes aquele período histórico, além do que muitos
documentos escritos, fontes e outros registros - como já afirmado anteriormente,
com base nos escritos de Firmo Rodrigues - foram destruídos, por mão criminosa,
no arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá.
A presença da varíola (1867); os problemas com a irmandade organizada
para administrar os dois hospitais de caridade em 1879, porém extinta em 1886; o
ataque epidêmico do cólera morbos (1886); as incertezas trazidas pelo regime
republicano (1889); as dificuldades enfrentadas pela população com o surto de
febre amarela (1890) foram fatores que contribuíram para um certo
"esquecimento" da lepra por parte dos órgãos oficiais de Mato Grosso. Com a
relegação da moléstia a segundo plano, é oportuno afirmar que o Hospital de São
João dos Lázaros de Cuiabá (juntamente com os leprosos nele isolados) também
ficou, durante aquele longo período, a mercê do esquecimento e do abandono.
A lepra é uma moléstia particular em relação as outras doenças que
assolaram o Brasil no século XIX e inícios do XX. Sobre aqueles males, havia um
teoria que unificava e sintetizava a ação assistencial: administrativa, religiosa e
médica, sobretudo nos tempos coloniais. Com o advento da medicina social,
durante o Império, o objetivo principal das autoridades sanitárias, dos médicos,
deixa de ser o doente e passa a ser as doenças, suas causas sociais e biológicas.
Naquele contexto, o papel da assistência religiosa vai sendo paulatinamente
73
substituído pelo do médico, que politiza progressivamente os procedimentos em
nome da proteção à saúde coletiva
119
.
Entretanto, no que concerne à lepra, diferentemente das outras doenças,
essa teoria não existia, pois o seu conteúdo era muito mais simbólico do que
científico. Visava, ao invés de curar, proporcionar uma assistência piedosa e
caridosa à criaturas - portadoras de um mal que além de contagioso, também era
incurável - já consideradas em trânsito sem retorno para a sepultura.
120
Essa
particularidade da lepra, entre outras, permitiu que representações e práticas
sociais acerca da doença (e dos seus portadores), originadas em tempos bastante
remotos, permanecessem vivas até o período analisado neste trabalho. A caridade
pública em benefício dos leprosos, a segregação social e o isolamento hospitalar
daqueles doentes compõem parte desse imaginário de longa duração.
Ao iniciar-se o período republicano, num quadro de grande instabilidade
social, econômica e política
121
, foi organizada pelo presidente de Província de
Mato Grosso Manoel José Murtinho, em 1894, a Sociedade Beneficente da Santa
Casa de Misericórdia de Cuiabá.
122
Entretanto, em suas duas primeiras décadas de
existência, a referida Sociedade Beneficente - devido as condições históricas supra
mencionadas - pouco ou quase nada pôde fazer para melhorar a situação de
abandono em que se encontrava a Santa Casa de Misericórdia e, princ ipalmente, o
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá.
A reincidência da varíola no estado de Mato Grosso, em 1907,
provocando pânico generalizado na população, para grande preocupação das
autoridades governamentais e médicas, demonstrou cabalmente aquela situação. O
estado não dispunha, em pleno século XX, das mínimas condições para oferecer
tratamento ao grande número de indigentes acometidos pela moléstia; restando
119
Cf. TRONCA, Ítalo A. "História e doença: a partitura oculta (a lepra em São Paulo, 1904 -
1940)". In: RIBEIRO, Renato Janine. (org.) Recordar Foucault: os textos do colóquio Foucault.
1985, pp. 138 - 139.
120
Ibidem, pp. 138 - 139.
121
Sobre o assunto, consultar o trabalho de CORREA, Valmir Batista. Coronéis e Bandidos em
Mato Grosso: 1889 - 1943. 1995.
122
Sobre esta Sociedade, ver o próximo capítulo.
74
para a Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá a obrigatoriedade de receber e de
tentar cuidar dos enfermos.
Nesse contexto das primeiras décadas do século XX, no que respeita ao
enfrentamento do problema da lepra, que volta a ocupar um lugar de destaque (a
partir da década de 1910) nas preocupações com a saúde da população, dirigentes
políticos e autoridades médico-sanitárias, mais uma vez, apelarão para a caridade
pública, ainda que o momento seja, também, marcado pela instituição do regime
republicano e pela emergência de um novo parâmetro no que diz respeito à Saúde
Pública no Brasil, que, paulatinamente, se institucionaliza, configurando-se como
uma questão que vai afetar diretamente ao Estado.
O capítulo seguinte, analisa o modo como a sociedade mato-grossense
lidou com a lepra naquele momento, em especial entre os primeiros anos da
república e meados da década de 1920, considerando o entrelaçamento entre
caridade e poder e focalizando, sobretudo, as atitudes das elites locais face à
existência de um número considerável de leprosos nesta sociedade, ou à margem
dela, ameaçando de contágio a população sadia, e face às estratégias de
segregação social e de isolamento hospitalar daqueles doentes, como medida
profilática em Mato Grosso.
75
Capítulo III - Caridade e profilaxia: as elites de Mato
Grosso e suas atitudes acerca dos leprosos
Muito me agradaria si ao
dispor me, leitores meus, para vos
dirigir esta chonica, tivesse eu
habilidade e tirocinio taes,
capazes de arrancar de vossos
corações uma chamma ardente de
amor caridade, de amor chistão,
em favor dos pobres infelizes, os
degredados do Hospital dos
Lazaros.
Revista A violeta, 1932.
Verdadeira reforma e
inadiavel se impõe quanto ao
serviço da hygiene: a saúde
publica não pode continuar dessa
forma, pois está completamente
abandonada.
É preciso que se diga sem
rebuças, a hygiene ainda está por
se fazer em Matto -Grosso.
Relatório do Inspetor
de higiene, 1906.
76
Apresentação
Este capítulo tem como objetivo mais geral discutir como a sociedade
mato-grossense - especialmente parcelas da elite - enfrentou a problemática da
lepra e dos leprosos nas primeiras décadas do século XX, focalizando as ações
caritativas e filantrópicas, que visavam assegurar o isolamento hospitalar dos
leprosos e, com isso, garantir a profilaxia da doença em Mato Grosso. As
ambigüidades presentes nas ações das autoridades governamentais e sanitárias
estaduais, frente ao perigo que representava a doença para a sociedade mato-
grossense como um todo, também serão analisadas neste capítulo.
Desde o primeiro quartel do século XIX até a primeira década do século
XX, como se procurou demonstrar no capítulo anterior, as preocupações com a
profilaxia da lepra, o isolamento hospitalar dos leprosos e, ainda, com as
condições do Hospital São João dos Lázaros, o único estabelecimento destinado
para este fim, foi relegado a um segundo plano pelas autoridades públicas de Mato
Grosso. Todavia, a partir da década de 1910, a doença volta a figurar na
documentação oficial como um grave problema de saúde que ameaçava a
população mato-grossense e que, como tal, estava a exigir respostas das
autoridades e, em especial, da sociedade.
A que se deve este renovado interesse por uma doença que nada tinha de
novidade para as autoridades mato-grossenses, já que ela em momento algum
deixou de se constituir em um grave problema de saúde a ser enfrentado em Mato
Grosso? Embora seja possível, a partir dos discursos destas autoridades, supor
que a lepra tenha se tornado mais visível e que sua incidência tenha aumentado
nos primeiros anos do século XX, a resposta a essa questão deve ser buscada em
um contexto mais amplo, que diz respeito ao lugar da saúde no debate sobre o
diagnóstico dos males do Brasil e as formas de superá-los. Este debate ganha
amplitude na nova configuração política inaugurada com a República, e é
estimulado pela ocorrência de epidemias variadas, que assolaram várias cidades
77
brasileiras, em especial a capital do país, nas duas primeiras décadas do novo
regime
123
.
As primeiras décadas do novo regime foram marcadas por uma nova
conjuntura social, econômica, política, cultural e ideológica, pautada nos ideais de
ordem, progresso, civilização, modernização. Como assinala Galetti:
Cabia à República construir um novo tempo,
modernizando as instituições políticas, a economia e a
sociedade nacionais de modo a equiparar o Brasil aos
avanços do progresso e da civilização exibidos por outras
nações. Para a efetivação de tal projeto tornava-se
fundamental homogeneizar o país, eliminar diferenças
étnicas e culturais, reduzir as distâncias geográficas e
históricas que ameaçavam desintegrá-lo como nação.
Mais do que nunca a tarefa que se colocava era a de
eliminar a fronteira entre barbárie e civilização no
território nacional, auxiliada agora pela ciência e pela
técnica modernas
124
.
Entre os muitos aspectos que precisavam ser reformados e adequados à
nova ordem e aos preceitos de civilização e progresso, estavam as doenças, em
especial as chamadas epidemias urbanas e as doenças endêmicas dos sertões, que
foram ganhando visibilidade com a interiorização das ações estatais (como a
construção de ferrovias e linhas telegráficas, entre outras), implementadas nas
primeiras décadas republicanas.
Nesse momento, a construção de uma identidade moderna e civilizada para
a nação brasileira, no campo médico-sanitário como em outros, estava seriamente
comprometida. Neste campo, a imagem negativa do Brasil como um vasto
hospital - conforme assinalou, em 1916, o médico Miguel Pereira - mobilizava
médicos, engenheiros e outros profissionais a elaborarem análises, onde se
diagnosticavam os problemas e se indicavam suas soluções, visando alterar esta
imagem. Entre estas soluções destacam-se os programas de saneamento do país,
123
Cf. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial.
1996. LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação.
1999. SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes.
1984.
124
Galetti, Lylia da S. Guedes. Nos Confins da civilização: sertão, fronteira e identidade
nas representações sobre Mato Grosso. 2000, p. 223.
78
não só nas cidades mas, sobretudo, nos sertões, espaços vistos como
completamente abandonados pelo poder público federal
125
.
As várias iniciativas no sentido de sanear o Brasil, entre as quais se
destacam as expedições sanitárias realizadas sob a direção de Oswaldo Cruz,
levaram os estudiosos a caracterizar o período como A era do saneamento.
Em sua análise deste período, Hochmann resume a visão de médicos e
outros profissionais que se envolveram neste movimento sanitarista. Para eles:
[...] o Brasil era um país doente, isto é, caracterizava-se
pela onipresença de doenças endêmicas, contrapartida da
ausência do Poder Público em grande parte do território
nacional, para impedir a ação do micróbio da doença que
pega. O nacionalismo do movimento sanitarista, apontado
pela literatura, deve ser entendido, agora, como a
descoberta da nação a partir da consciência da
interdependência social promovida pela doença. O
movimento sanitarista saturou a sociedade brasileira com
uma interpretação sobre o Brasil a partir de dois eixos
complementares que o definiram: o hospital e os sertões.
O hospital indicava a (oni)presença da doença e sua
difusão; os sertões significavam o abandono e a ausência
da autoridade pública
126
.
Projetava-se, então, sobre os sertões, o interior, os grotões do país, a idéia
de um espaço doentio, povoado por populações atacadas pelo bócio, amarelão,
doença de Chagas e lepra, entre outras. Esta idéia ganhou densidade nas primeiras
décadas do século XX e, para alguns intelectuais brasileiros, boa parte dessa
situação era devida ao descaso do Estado com a saúde de sua população; outros, a
atribuíam preferencialmente à falta de instrução pública e ao isolamento do
interior. Para outros, ainda, a precária situação de saúde nos sertões era devida à
ignorância da maioria da população, pobre e mestiça, seu desconhecimento dos
mínimos preceitos de higiene, sua preguiça e indolência
127
.
Na década de 1920, os esforços empreendidos por médicos e sanitaristas,
que defendiam uma intervenção direta dos poderes públicos na área da Saúde
125
Cf. LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação.
1999. Em seu estudo, a autora analisa um conjunto de artigos sobre o tema, elaborados
por médicos engajados nestes programas.
126
HOCHMAN, Gilberto. op. cit., p. 79.
127
Cf. LUCA, Tania Regina de. op. cit., 1999.
79
Pública começam a apresentar resultados mais substanciais
128
. Em 1925, foi
concluída e aprovada a Reforma sanitária no Estado de São Paulo, através de uma
lei sanitária que serviria de base e de modelo para os encaminhamentos
relacionados à saúde pública no restante do país. Mais conhecida como Reforma
Paula Souza
129
, essa política de saúde ganhou uma nova concepção, cujo o ponto
central seria a educação sanitária do indivíduo.
O eixo dessa nova orientação deslocou-se do policiamento
para a educação a as ações sanitárias transferiam-se da
população em geral para o indivíduo em particular. Com
isso, na prática sanitária, o policiar as coisas - habitação,
água, esgoto, lixo - o vigiar a cidade ganhava um novo
aliado - a persuasão do indivíduo, o uso das palavras
para forjar no indivíduo a consciência sanitária, a prática
sanitária definiu-se como policiar e persuadir
130
.
Segundo Ribeiro, após a Reforma Sanitária de 1925, a antiga concepção
mudou e adaptou a estrutura do Serviço Sanitário a uma nova maneira de ver os
instrumentos da prática sanitária. A estrutura em funcionamento desde 1892-1896,
com algumas poucas alterações que não comprometiam a concepção geral, cedeu
lugar a um novo aparato sanitário. A velha estrutura consolidada por Emílio Ribas
desmoronou-se pela ação reformadora do jovem médico Paula Souza, recém-
chegado dos Estados Unidos, imbuído de novas idéias
131
.
Foi também com a Reforma Sanitária de 1925 que se criou uma inspetoria
especial para atuar na construção e na organização das colônias para leprosos, a
Inspetoria da Profilaxia da Lepra
132
.
Iyda acrescenta que foi através da Reforma Sanitária de 1925 que a Saúde
Pública criou e impôs sua área de atuação e sua autoridade no aparelho estatal.
E a partir de então, incorporará, além do controle das
doenças transmissíveis, a higiene do trabalho, do
128
Esta questão será retomada no próximo capítulo, com ênfase para as décadas de 1920 e
1930.
129
Geraldo Horácio Paula Souza era diretor do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo
naquele período e foi o promotor/articulador da referida Reforma Sanitária.
130
RIBEIRO, Maria Alice Rosa. História sem fim... Inventário da saúde pública, São
Paulo - 1880-1930. 1993, p. 246.
131
Ibidem, p. 247.
132
Ibidem, p. 252.
80
alimento, do escolar, a lepra, a fiscalização domiciliar da
medicina e da farmácia, ampliando, ainda mais, nas
reformas de 1931 e 1938, para incluir a tuberculose, a
sífilis e doenças venéreas, a assistência dentária e a febre
amarela
133
.
Na Reforma Sanitária de 1925, a lepra assume papel privilegiado em
detrimento de outras doenças contagiosas e incuráveis daquele período. Prova
disso foi a criação de uma inspetoria especial só para cuidar das preocupações
relacionadas à moléstia. A grande atenção dispensada à doença, ao menos no texto
da nova lei sanitária, foi alvo de críticas por parte de alguns parlamentares, que
julgavam que a lepra estava na moda, enquanto que a tuberculose - doença
responsável pelo maior número de mortes no mesmo período - ficou relegada a
segundo plano pela referida Reforma Sanitária
134
.
As elites mato-grossense não ficaram alheias a este quadro nacional,
relativo ao enfrentamento das questões da saúde pública no país, nem ignoraram
as relações que então se estabeleciam entre a erradicação de doenças, em especial
epidêmicas e endêmicas, e a construção de um Brasil moderno, sadio e
civilizado
135
.
Neste ponto, é importante assinalar que Mato Grosso era visto, a partir do
litoral civilizado, já desde o século XIX e com mais força nas primeiras décadas
do XX, como um protótipo do sertão. Assim,
Para os dirigentes e intelectuais brasileiros que o
enxergavam de fora, tendo como referência a realidade do
processo de modernização do litoral, as concepções
ocidentalistas de progresso e civilização e teorias sobre a
inferioridade racial do mestiço, embora nem sempre
concordando integralmente com elas, [Mato Grosso] se
definia mais do que nunca como um grande e remoto
sertão e, igualmente, como uma ainda longínqua fronteira
do país, a reclamar a presença do Estado, da ciência e da
técnica afim de ser incorporada à nação
136
.
133
IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. 1994, pp. 50-51.
Em Mato Grosso, como veremos no próximo capítulo, uma Reforma Sanitária de grande
vulto só vai acontecer no ano de 1938.
134
Ibidem, p. 63.
135
Cf. Galetti, Lylia, op. cit., 2000.
136
Ibidem, p. 224
81
Além disso, é preciso frisar que as elites dirigentes e intelectuais de Mato
Grosso compartilhavam destas apreciações sobre a sua terra natal e, do mesmo
modo, também faziam coro às reivindicações, mudanças e reformas que eram
propostas para colocar o País nos rumos do progresso e da civilização. E, neste
sentido, estavam talvez ainda mais mobilizadas pelo mesmo anseio de progresso e
civilização que impulsionava os intelectuais dos grandes centros urbanos, como
São Paulo e Rio de Janeiro
137
. Deste modo, as ações do chamado movimento
sanitarista e as reformas federais no âmbito da Saúde Pública logo se fizeram
notar nas práticas das autoridades governamentais e sanitárias mato-grossenses.
Assim, nas primeiras décadas do século XX em Mato Grosso, as questões
sanitárias e a profilaxia das doenças epidêmicas e endêmicas, entre estas a lepra,
passaram a ocupar lugar de destaque nos discursos daquelas autoridades. No caso
da lepra, isto ocorreu praticamente ao mesmo tempo em que a doença passava a se
incluir, por decisão federal de 1911, entre aquelas cuja notificação se tornava
compulsória em todo o território nacional
138
.
Em 1922, organizou-se o Serviço de Profilaxia Rural em Mato Grosso
(órgão criado pela Lei número 802, de 14 de agosto de 1918), e, segundo Firmo
Rodrigues, apesar do exíguo número de doentes isolados no Hospital dos Lázaros
de Cuiabá, as constantes inspeções domiciliares desenvolvidas por aquele serviço
revelaram a existência de grande número de pessoas acometidas pela lepra no
Estado. O número reduzido de leprosos isolados no hospital devia-se às suas
lastimáveis condições de existência daquele estabelecimento naquele período
139
.
Como se verá ao longo deste capítulo e do próximo, entre fins do século
XIX e a década de 1930 do XX, ganham corpo, nas práticas e representações das
autoridades sanitárias e dirigentes políticos mato-grossenses, bem como de
137
Cf. Galetti, Lylia. op. cit. Ver principalmente a parte IV - “Terra Natal: Mato Grosso
sob o olhar nativo”.
138
IYDA, Massako. op. cit., 1994, p. 62.
139
APMT. Relatório da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórida.
Apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado, 1924, pp. 18-19. Vale esclarecer que
Firmo Rodrigues, ao falar do exiguo numero de doentes alli isolados e também do grande
numero de individuos atacados d'aquele mal no Estado de Mato Grosso, o faz sem
oferecer, no documento citado, os dados numéricos que comprovassem as suas
colocações.
82
parcelas significativas da sociedade local, uma insistente preocupação com a lepra
e, especialmente, com o isolamento dos leprosos.
Assim, já a partir de 1912, a Sociedade Beneficente da Santa Casa de
Misericórdia de Cuiabá (fundada em 1894) passou a receber um maior estímulo
financeiro por parte do poder público estadual, melhorando, deste modo, a sorte
daquele estabelecimento pio. Em 1919, ano de criação do Serviço de Profilaxia
Rural pelo governo federal, A Sociedade Beneficente, então sob a administração
do padre Manoel Gomes de Oliveira, ganha um novo impulso, conseguindo,
através da caridade pública, importantes melhorias para a Santa Casa.
Contudo, o Hospital dos Lázaros, até o ano de 1922, permaneceu em
completo estado de abandono, vindo a ser beneficiado somente a partir de 1923, já
na administração de Firmo Rodrigues à frente da Sociedade Beneficente, quando
as preocupações com a lepra e, conseqüentemente, com o Hospital de São João
dos Lázaros de Cuiabá passam a ocupar um lugar de destaque na sociedade mato-
grossense.
Único estabelecimento destinado ao isolamento de leprosos no Estado de
Mato Grosso, o Hospital encontrava-se completamente abandonado e os esforços
se voltaram para a sua reconstrução. Os representantes do poder público alegavam
falta de recursos para a sua manutenção e, ao mesmo tempo, lançavam sobre a
sociedade o peso desta tarefa, ape lando para a caridade cristã, a filantropia, o
amor ao próximo e a si mesmo e, principalmente, objetivando uma profilaxia mais
eficaz da terrível moléstia, cuja cura ainda era um mistério para a ciência.
Na era do saneamento, das reformas nos serviços sanitários, da
modernização das formas de prevenção e de tratamento, da notificação obrigatória
e do isolamento compulsório dos portadores de moléstias infecto-contagiosas, as
atenções voltavam-se, também, para uma das mais antigas moléstias que afligem o
homem: a lepra. Em Mato Grosso, o estigma, o preconceito, o medo e a rejeição
também estavam "de volta", exigindo a segregação social e o isolamento
hospitalar como única medida profilática capaz de amenizar o pânico e diminuir
as possibilidades de disseminação da doença no Estado.
Contudo, mesmo no contexto das mudanças que estavam acontecendo no
Brasil, e também em Mato Grosso, no campo da Saúde Pública, o problema dos
83
leprosos ainda era enfrentado pela sociedade mato-grossense, em larga medida,
pela via da caridade e da filantropia. Assim, neste capítulo, privilegia-se essas
ações pautadas na caridade pública e nas atitudes beneficentes, focalizando a
Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá e a Comissão
Feminina Pró-Lázaros.
84
1. Lepra, caridade e poder: A Sociedade Beneficente da Santa
Casa de Misericórdia de Cuiabá
A Sociedade Beneficente da
Santa Casa de Misericórdia de
Cuiabá, constituída a 25 de
novembro de 1894, de accôrdo
com a Resolução n. 69 de 3 de
julho de 1894, e com o acto n. 555,
de 22 de dezembro de 1894, do
Governo do Estado, [...] terá por
fim principal amparar aos
indigentes doentes.
Estatutos da Sociedade
Beneficente [...], 1932.
[...] todos os socios
desempenharam os seus deveres
relativos, com dedicação e
interesse pela caridade, que é o
fim principal desta Associação.
Relatório da Sociedade
Beneficente [...], 1908.
Caridade cristã e filantrópica em favor dos infelizes do hospital dos
lázaros, amor àqueles pobres degredados, solidariedade para com os leprosos
segregados naquele hospício a espera da morte, piedade religiosa dos que lá
vivem separados dos seus e da sociedade. Estas são frases recorrentes nos
registros sobre a lepra, produzidos em Mato Grosso nas décadas de 1920-30.
Nestes registros pode-se identificar uma imensa preocupação, principalmente por
parte da elite mato-grossense, em angariar fundos, valendo-se da caridade, da
beneficência social e do medo do contágio, para fazer frente ao objetivo de
assegurar a segregação social dos leprosos e mantê-los isolados até a morte.
85
No Brasil do século XIX, segundo Santos Filho, a assistência aos doentes e
demais necessitados não recebia recursos do poder público, eram, em sua maioria,
administradas e sustentadas por entidades particulares. Esse modelo de assistência
dividia-se em duas categorias: as associações que prestavam auxílio a todos os
necessitados e que possuíam como modelo a Santa Casa de Misericórdia, e as que
se ocupavam dos próprios sócios, tais como as Irmandades Religiosas, Orde ns
Terceiras e as Associações de Beneficência, de socorro mútuo, representadas,
estas últimas, pelas Beneficências Portuguesas, com seus hospitais. Havia, ainda,
associações beneficentes de ingleses, franceses e italianos, que chegaram a
construir e manter grandes hospitais.
Sobre as Associações Beneficentes no Brasil do século XX, também
escreveu Santos Filho:
As Associações Beneficentes e outras semelhantes,
denominadas "caixas de socorro", "dispensários", "ligas"
etc., proliferaram e contaram-se por centenas em todo o
país, nas primeiras décadas do século XX. Quando não
possuíam hospital, contribuíam com somas em dinheiro
para o pagamento das diárias dos associados doentes
internados. E foi o atendimento médico-hospitalar
oferecido pelos Institutos governamentais - reunidos no
Instituto Nacional de Previdência Social - o responsável
pelo esvaziamento e, mesmo, pelo desaparecimento da
maior parte das Associações Beneficentes, nos dias que
correm
140
.
No que diz respeito especificamente à lepra, como visto anteriormente, a
doença tem a sua história intimamente entrelaçada com as obras de caridade,
desde pelo menos o século XII, quando a Igreja Católica tomou os leprosos por
objeto da caridade cristã. Esmolas, doação de bens e valores em testamentos, além
de variadas formas de arrecadação de recursos foram acionadas não apenas por
piedade cristã com os leprosos mas, sobretudo, como forma de proteger os
indivíduos sadios, garantindo que aqueles doentes permanecessem reclusos nos
estabelecimentos de isolamento. Estas mesmas atitudes vigoraram também no
Mato Grosso colonial, como visto no Capítulo II, quando as práticas beneficentes
140
SANTO FILHO, Lycurgo. História geral da medicina brasileira. v. II, 1991, p. 471.
86
eram movidas por uma preocupação muito mais voltada para o supra terreno, para
as questões religiosas.
Mais de dois séculos depois, já nas primeiras décadas do século XX, ainda
persistem muitas das representações e práticas que deram origem em Mato Grosso
ao primeiro estabelecimento destinado à reclusão de leprosos. Porém, já se pode
perceber um forte interesse voltado para o lado prático, racional e profilático no
que diz respeito às obras de caridade direcionadas ao Hospital de São João dos
Lázaros de Cuiabá.
Lembrando das reflexões desenvolvidas no segundo capítulo desta
dissertação, no que diz respeito ao forte sentimento de religiosidade cristã (ainda
presente na sociedade mato-grossense para o período em questão), os pobres
também viam nas obras de caridade uma forma de conseguir indulgências divinas
em vida ou de se facilitar a salvação da alma após a morte do corpo. Portanto,
pode-se afirmar que a preocupação com as obras beneficentes, direcionadas aos
leprosos, estava presente em todo o tecido social, pois as classes menos
favorecidas da sociedade também tinham interesse em contribuir com a profilaxia
da lepra em Mato Grosso, que se concretizava através do isolamento e da
manutenção, no Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, dos acometidos pela
terrível moléstia. A esse respeito, torna-se interessante observar a citação abaixo:
Magnanimo tem sido sempre o nosso povo quando
procurado para qualquer acto de beneficencia ou em
favor das crianças pobres ou enfermos, ou para fins
religiosos e philantropicos, qualquer que seja a iniciativa
da obra.
Uma causa, porem, parece bem mais sympathica a
qualquer classe social, porque a qualquer dellas que por
ella se pede não nega, jamais, o seu concurso; nunca
falha o seu obulo; nunca lhe é indifferente o seu pedido!
E esta causa, cara, entre as mais caras, ao
coração benfazejo do povo, é a comiseração pela sorte
dos enfermos do hospital dos Lázaros
141
.
Nas décadas de 1920 e 1930, vários tipos de associações, ligas, comissões
141
NDIHR/UFMT. Revista A Violeta - orgam do Gremio Literario "Julia Lopes", anno
XVI, n.º 201, Cuiabá, 31 de outubro de 1932, p. 1. Chronica assinada por ARINAPI
(Maria Dimpina Lobo). (grifos meus).
87
e sociedades foram criadas
142
com a finalidade de promover e incentivar as mais
variadas campanhas em prol das obras de caridade junto aos mato-grossenses, e os
recursos angariados pelas mesmas deveriam servir, principalmente, para amenizar
a situação em que se encontravam não apenas o Hospital de São João dos Lázaros
de Cuiabá, como também à Santa Casa de Misericórdia, que continuava a ser um
dos únicos estabelecimentos hospitalares do Estado.
Dentre aquelas várias organizações de caráter beneficente, destaca-se a
Sociedade Beneficente da Santa de Misericórdia de Cuiabá, constituída em 1894.
Ainda em 1921, o presidente do estado chamava a atenção para a importância de
amparar esta Sociedade, em especial quanto a papel que representava na difícil
tarefa de manter o Hospital São João dos Lázaros
Acha-se também, como sabeis, a cargo da
Sociedade Beneficente o Hospital de S. João dos Lázaros,
para o qual a respectiva Directoria pede a attenção dos
poderes publicos. É uma instituição que merece ser
amparada, quer pela sua antigüidade tradicional quer,
sobretudo pelo auxilio que poderá prestar ao Estado na
solução do difficil problema dos leprosarios ainda em
fóco entre os povos cultos
143
.
Coube à esta Sociedade Beneficiente, durante décadas, administrar aqueles
dois estabelecimentos de caridade que existiam em Mato Grosso. A partir de sua
constituição, a maior parte das responsabilidades quanto à manutenção destes
estabelecimentos deixam, oficialmente, de pertencer ao poder público estadual.
Ela deveria promover e incentivar a caridade pública, através das mais diversas
ações e campanhas junto à sociedade mato-grossense, com o objetivo de obter os
142
APMT. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, pelo Bel. Julio
Strübing Müller, 1941, p. 34. Pode-se citar, entre outras, A Liga Feminina Pró-Lázaros, a
Sociedade de Assistência aos Lázaros e defesa contra a Lepra e a Sociedade Cuiabana de
Assistência aos Lázaros.
143
APMT. Mensagem dirigida á Assembléa Legislativa, por D. Francisco Aquino Corrêa,
Bispo de Prusiade, Presidente do Estado, 1921, p. 6. Vale ressaltar também que, a partir
do mês de fevereiro de 1817, quando tiveram início as obras de construção do Hospital de
Nossa Senhora da Conceição da Misericórdia - atual Santa Casa de Misericórdia de
Cuiabá -, a administração do já inaugurado (1816) Hospital de São João dos Lázaros de
Cuiabá passou a ser denominada Administração dos Fundos, incumbida de governar os
dois hospitais pios de Cuiabá. Cf. NASCIMENTO, Heleno B. op. cit., pp. 23-24.
Portanto, desde aquele período que a Santa Casa de Misericórdia e o Hospital de São João
dos Lázaros de Cuiabá passaram a ser administrados de forma conjunta.
88
recursos que garantiriam, principalmente, mas não exclusivamente, a manutenção
do Hospital dos Lázaros de Cuiabá e a sobrevivência dos leprosos nele
segregados.
Não exclusivamente porque, devido a negligência do poder público com
relação às classes menos favorecidas e aos doentes de toda sorte, os recursos
adquiridos pela Sociedade Beneficente, muitas vezes, tinham que ser aplicados na
assistência pública de modo geral. A este respeito um Relatório desta entidade,
assegura que os serviços prestados à população não eram apenas as de um hospital
de caridade, mas
[...] de assistência publica, - pois, o Estado e o Município
nenhuma organização de socorro publico possúem - e,
ainda, de defeza da sociedade contra o Mal de Hansen.
Os casos de ferimentos graves, accidental ou
criminosamente produzidos, em geral terminam com o
doente na Santa Casa, seja elle ou não indigente,
desempenhando assim este estabelecimento as funções de
Assistência Publica
144
.
Ao analisar a citação acima, nota-se que em Mato Grosso, nos anos 1920,
ainda não se tinha uma organização de saúde pública definida. Os termos socorro
público, Assistência Publica demonstram bem essa característica não
institucionalizada da saúde no Estado. A saúde pública não aparece como uma
área específica, com recursos a ela destinados pelo poder público. Os parcos
recursos destinados à saúde da população eram englobados pela insígnia socorros
públicos, assumindo, ainda, um caráter filantrópico e emergencial. Sobre as
questões de saúde pública no Brasil até o terceiro quartel do século XX, escreveu
Massako Iyda:
As doenças e suas conseqüências são solucionadas
predominantemente, fora do âmbito público, em nível
privado, pelas famílias e entidades filantrópicas, [...]
Neste sentido, a Saúde Pública, como área
específica de atuação, não se institucionaliza, apesar das
tentativas de organização, e não se institucionaliza
inclusive por ausência de uma feição própria,
fundamentada num saber específico, combinando
atividades assistenciais (sociais ou médicas) e
144
APMT. Relatório da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuyabá,
1932, pp. 9 e 20.
89
fiscalizadoras. E apesar das leis, decretos, normas, ela
não ganha muita expressão nas diversas Constituições
desde 1824 até 1964, e, ainda, com alguns de seus
aspectos incorporados à legislação trabalhista, após
1930
145
.
A Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, além
dos dois hospitais supra referidos que já mantinha, poderia
crear, em qualquer tempo, asylos para a infancia
desemparada [sic] e para a velhice sem recursos,
maternidade, hospício para alienados e outros
estabelecimentos, ou secções dentro dos existentes, para
attender aos multiplos aspectos dos soffrimentos
humanos
146
.
Os Estatutos da Sociedade Beneficente explicitavam que a finalidade da
mesma era a de amparar os doentes indigentes, e que para isso contaria com os
valiosos sentimentos de caridade e beneficência dos seus próprios sócios, como
também de uma significativa e piedosa parcela da sociedade mato-grossense.
Entretanto, os estabelecimentos pios sob sua administração também estavam
autorizados a receber e atender enfermos não indigentes, em quartos especiaes,
mediante remuneração, que será prevista em seu regulamento interno
147
. A frase
“em quartos especiais, mediante remuneração” deixa transparecer a diferença
existente no atendimento dispensado àqueles que podiam pagar e àqueles tidos,
pela Socieda de Beneficente, como indigentes.
A Sociedade Beneficente não fazia restrições quanto ao número de sócios
para a sua composição; eles também poderiam ser de ambos os sexos. Sabendo-se
que os sócios eram classificados de acordo com a quantia paga no momento do
seu ingresso na Sociedade e também de conformidade com o valor da
mensalidade, torna-se fácil compreender a total falta de impedimentos para se
associar: quanto mais sócios, maior a quantia arrecadada pela Sociedade
Beneficente. A esse respeito, escreveu Firmo José Rodrigues, vice-presidente em
exercício da Sociedade Beneficente, 1924 :
145
IYDA, Massako. op. cit., 1994, pp. 34-35.
146
APMT. Estatutos da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá., 1932,
Art. 2.
90
No intuito de interessar outras pessoas nesta
Instituição fiz distribuir entre pessoas não associadas o
relatorio de 1923, acompanhado de attenciosa carta,
solicitando a attenção dessas pessoas para o movimento
de nossas casas de caridade e o auxilio daquellas que
acceitassem ser incluidas nesta Associação.
Desse modo o numero de associados elevou-se no
anno findo a 170
148
.
De acordo com as contribuições pagas, os sócios poderiam ser
considerados Efetivos (que poderiam pertencer às classes A ou B), Remidos,
Beneméritos ou apenas Contribuintes. Os Estatutos estabeleciam e exigiam a
manutenção de uma hierarquia rígida e amplamente direcionada pelas condições
financeiras de cada associado.
Serão considerados socios:
§ 1º - Effetivos, as pessoas de ambos os sexos, maiores de
21 annos que pagarem 20$000 de joia no acto da
inscripção e a mensalidade de 5$000 ou de 3$000,
conforme quizerem pertencer á classe a ou b, classes
essas que têm indenticos os demais direitos e obrigações;
§ 2º - Remidos, as pessoas que pagarem a quantia de
500$000 de uma só vez;
§ 3º - Benemeritos, as que fizerem doação de quantias não
inferiores a 5:000$000, ou prestarem serviços relevantes
á sociedade, a juizo, neste ultimo caso, da Assembléa
Geral;
§ 4º - Contribuintes, as pessoas menores de 21 annos que
pagarem mensalmente a quantia de 2$000
149
.
Os Estatutos evidenciavam que para fazer parte do quadro social da
Sociedade Beneficente era necessário que se tivesse um certo nível de renda e,
dependendo da classificação almejada, o pretendente teria mesmo era que
pertencer à elite mato-grossense. Percebe-se, ainda, a presença de uma forte
relação de poder no que concerne à importância dada à diferença existente entre as
classes A e B, na classificação dos sócios efetivos: mesmo estando sujeitos a
direitos e obrigações idênticos, existiam aqueles que, sendo possuidores de
147
Ibidem, Art. 4.
148
APMT. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade
Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, 1924, p. 06.
91
melhores condições financeiras, poderiam optar pela classe A, pois ao pagar uma
mensalidade de valor superior, automaticamente assumiriam uma posição de
maior prestigio na Sociedade Beneficente e, conseqüentemente, na sociedade em
geral.
Uma análise mais acurada do citado Artigo 6 permite considerar que a
classificação dos sócios, estabelecida pelos Estatutos da Sociedade Beneficente, é
uma real demonstração de que a beneficência e as obras de caridade em Mato
Grosso no período em questão estavam entrelaçadas por uma relação de poder e
de status social. Quanto melhor a condição financeira do benemérito, mais
interessante seria a sua classificação no quadro social da Sociedade Beneficente
da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá.
Era dever de todos os sócios zelar pelo nome da Sociedade, auxiliar no
serviço de assistencia aos necessitados e visitar constantemente os hospitais. Os
sócios efetivos, além dos deveres citados, estavam obrigados a comparecer às
assembléias sob convocação; acceitar e exercer com dedicação; salvo motivo
justificado, cargos ou comissões para que fossem eleitos ou nomeados. Em
contrapartida, todos os sócios tinham o direito de serem tratados nos
estabelecimentos da Sociedade Beneficente, em quartos especiaes, caso viessem a
necessitar desse auxilio. Também era de direito dos sócios em geral, receber o
funeral e o enterramento de qualquer pessoa de suas famílias por conta da
Sociedade Beneficente, caso o indivíduo viesse a falecer nas dependências dos
hospitais
150
.
No que diz respeito aos direitos adquiridos pelos sócios da Sociedade
Beneficente, pode-se dizer que a mesma acabava funcionando como um "plano de
assistência médica particular". Os indivíduos se associavam, pagavam as
mensalidades, cumpriam uma série de obrigações frente aos Estatutos da
Sociedade e, na condição de sócios com seus deveres cumpridos, recebiam
assistência médica diferenciada no hospital da Santa Casa de Misericórdia de
Cuiabá e, se necessário, também no Hospital dos Lázaros. Nesse sentido, estar
associado significava ter uma certa segurança social, numa sociedade onde o
149
APMT. Estatutos da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá.
1932, Art. 6.
92
atendimento em instituições pú blicas era quase que impossível, visto que as
autoridades governamentais não assumiam os problemas e carências sociais e de
saúde como se fossem de responsabilidade do poder instituído.
As reflexões acima permitem fazer um paralelo interessante e curioso com
os problemas sociais enfrentados atualmente em Mato Grosso e no Brasil pela
maioria da população de baixa renda. O poder público cobra altos impostos, mas
não repassa esses valores sob a forma de benefícios para a população. O acesso
das camadas menos favorecidas da sociedade à saúde, por exemplo, é negado de
forma lastimável e vergonhosa; resta, para aqueles que têm possibilidades
materiais, pagar um plano de assistência médica particular. Nessas condições, a
maioria da população permanece excluída de seus direitos sociais mais
elementares, sobrevivendo entregue a sua própria sorte.
O pagamento rigoroso das mensalidades, dentro dos prazos
preestabelecidos pelos Estatutos da Sociedade Beneficente, era condição essencial
para o indivíduo permanecer associado e continuar gozando dos benefícios que a
mesma oferecia. Assim, o sócio que, por algum motivo, deixasse de arcar com as
suas obrigações mensais durante um ano, seria eliminado do quadro social e
somente seria incluído novamente mediante o pagamento de nova joia de
inscripção
151
.
O patrimônio da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de
Cuiabá era constituído:
§ 1º - Dos bens, moveis e immoveis já existentes e dos que
venha a Sociedade a adquirir por compra, doação ou por
quaesquer outros titulos;
§ 2º - Da divida activa devidamente inscripta;
§ 3º - Dos legados e donativos superiores a 2:000$000
152
.
A dívida inscrita, que aparece na citação acima, me parece ter suas raízes
ainda no século XVIII. As origens do Hospital de São João dos Lázaros de
Cuiabá, como já mencionado no capítulo anterior, estão relacionadas com o
legado deixado em testamento pelo português Manoel Fernandes Guimarães, no
150
Ibidem, Art. 7, 8 e 9.
151
Ibidem, Art. 14 e 15.
152
Ibidem, Art. 16. (grifos meus).
93
ano de 1755. Esse legado foi apropriado por sessenta e nove devedores, membros
da elite cuiabana, sob a forma de empréstimos. O Capitão-General João Carlos
Augusto D'Oeynhausen e Gravenburg (fundador do Hospital dos Lázaros),
sabedor da enorme dificuldade em receber o montante a curto prazo, decidiu,
então, responsabilizar a Real Fazenda pela dívida. O pa gamento da mesma deveria
ser efetuado em espécie, ou seja, em gêneros alimentícios (plantações e criações)
e em utensílios diversos para usufruto dos internos que seriam segregados no
hospital dos Lázaros. Vale ressaltar que a Real Fazenda assumiu a dívida referente
ao legado no ano de 1814
153
.
Nos vários documentos e registros analisados referentes ao século XIX e,
principalmente, naqueles relacionados ao período privilegiado neste trabalho,
aparece uma cobrança, direcionada ao poder público, dos juros referentes à dívida
inscrita que, por não ter sido quitada completamente, acabou se transformando em
patrimônio da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá.
Continúa em andamento o processo de liquidação da
Divida Inscripta da União para a Santa Casa, no valor de
76:697$505, ouro, os juros dessa divida vinham sendo
pagos desde 1832, tendo sido suspenso o seu pagamento
em 1924
154
.
As fontes de renda da Sociedade Beneficente, para custeio dos hospitais,
conservação dos bens patrimoniais, acquisição diversas e demais despesas
administrativas eram provenientes do rendimento do patrimônio social, das jóias e
mensalidades pagas pelos sócios, das subvenções devidas pelos poderes públicos
(quando recebidas), dos juros da dívida inscrita, das diárias dos pensionistas em
tratamento nos hospitais, dos legados e dos vários tipos de donativos e esmolas,
frutos da caridade individual, coletiva, de associações e até de empresas
particulares.
O Snr. Antonio Tenuta, proprietario da Empreza
Funeraria, tem fornecido gratuitamente caixões para
153
Cf. NASCIMENTO, Heleno B. op. cit., pp. 15-16.
154
APMT. Relatório da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuyabá,
1932, p.14. Relatório da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia, 1923, p.
27 e 1924, p. 31. Cita-se aqui apenas três, entre os vários documentos que fazem
referência a dívida inscrita, devida pela União à administração da Santa Casa e do
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, desde de 1814.
94
todas as creanças que fallecem em nossos hospitaes. E,
ultimamente, prometteu fazer o mesmo com relação aos
enfermos fallecidos em São João dos Lazaros
155
.
A prática dos legados ainda era muito utilizada pelas pessoas que viveram
e morreram no período em questão. Muitos homens e mulheres, que pertenciam à
elite mato-grossense e até de outros Estados brasileiros, no momento da passagem
para o além, deixaram em testamento valores significativos - dinheiro ou bens
móveis e imóveis - para auxiliar os doentes necessitados que recorriam aos
hospitais mantidos pela Sociedade Beneficente.
Tendo fallecido em 1922 o mattogrossense Dr.
Francisco Murtinho (...) havia legado em seu testamento
para a Santa Casa, a quantia de vinte e cinco contos e que
tambem sua Exma. Snra., filha de Matto Grosso, pois
nasceu em Corumba, não se furtaria a auxiliar, na medida
de suas possibilidades a esta instituição.
Constando tambem que o Snr. Albano do Couto
falleceu no Rio de Janeiro deixando em testa mento o
legado de dois contos de réis para a Santa Casa
156
.
As reflexões supra referidas, acerca dos legados deixados em testamentos
direcionados às instituições de caridade, trazem a luz novamente as origens do
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá (analisadas no primeiro capítulo),
que estiveram diretamente relacionadas ao legado, deixado em testamento (1755),
pelo português Manoel Fernandes Guimarães, para a construção do Hospital de
São João dos Lázaros de Cuiabá.
A arrecadação da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de
Cuiabá, segundo a maioria dos indivíduos que estiveram a frente da sua
administração, era quase sempre insuficiente para cobrir satisfatoriamente as
despesas com os dois hospitais de caridade. As subvenções de responsabilidade do
poder público estavam em constante atraso ou tendo seus valores sendo
drasticamente reduzidos por certos governantes.
155
APMT. Relatório da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuyabá,
1932, p. 18. Sobre outras fontes de renda da Sociedade Beneficente, consultar os
Estatutos da Sociedade Beneficente da Santa Casa (...) op. cit., Art. 20.
156
APMT. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade
Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, 1923, p. 10.
95
(...) tem sido cheio de embaraços o recebimento da
subvenção de 15:000$000, consignada no orçamento de
despeza da União como auxilio a esta Santa Casa.
No decorrer de 1924 foi recebida a subvenção
relativa a 1922, estando ainda em andamento os
processos de pagamento das relativas a 1923 e 1924
157
.
A redução ou suspensão do pagamento das subvenções federais, Estaduais
ou municipais devidas a Sociedade Beneficente era um fato bastante comum e
corriqueiro. Certos governantes, principalmente aqueles que ocuparam o poder
após a chamada Revolução de 1930, simplesmente decidiam autoritariamente que
as contribuições estavam extrapolando o orçamento público e deixavam de pagar
ou diminuíam os valores pagos de forma aleatória.
A subvenção municipal éra de 12:000$000 (doze
contos de reis) annuaes. O digno Prefeito actual reduziu-a
no anno findo a 6:000$000 (seis contos de reis).
O governo revolucionario suspendeu o pagamento
dos auxilios e com a creação da caixa de pensões,
reduziu toda a sua contribuição em benefício da nossa
Santa Casa a 10:000$000 (dez contos de reis) annuaes
158
.
Deve-se acrescentar, entretanto, que os problemas enfrentados pela
Sociedade Beneficente, no que concerne ao recebimento das rendas a que tinha
direito, não passavam apenas pela esfera do poder público. Muitos sócios não
efetuavam o pagamento das mensalidades de acordo com as normas estabelecidas
nos Estatutos; outros atrasavam os pagamentos em demasia; e também existiam
aqueles que se tornavam remissos a ponto de perderem os direitos de sócios,
sendo excluídos do quadro social
159
.
A arrecadação também ficava comprometida pelos desvios de renda, que
ocorriam no momento do acerto de contas entre a Sociedade Beneficente e muitos
daqueles que se dispunham a realizar festas, teatros, touradas, etc., em benefício
da caridade. Para atrair muitas pessoas, os responsáveis pelos eventos usavam o
157
APMT. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade
Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, 1924, p.12.
158
APMT. Relatório da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuyabá,
1932, pp. 9-10.
159
APMT. Relatorio apresentado à mesa administrativa da Sociedade Beneficente da
Santa Casa de Misericordia de Cuiabá - pelo seu Presidente Eloy Hardman, 1908 p. 19.
96
pretexto de beneficiar os doentes necessitados e acudidos nos hospitais mantidos
pela Sociedade Beneficente. Porém, mesmo tendo conseguido grande sucesso com
a presença do público em uma festa tida como beneficente - por exemplo -
entregavam quantias insignificantes ao tesoureiro da Sociedade.
(...) não é raro companhias de diversões, que por aqui
transitam, explorarem a caridade nunca desmentida do
nosso povo, com espetáculos que dizem ser em beneficio
da Santa Casa.
Procurados depois os diretores d'essas
companhias, entregam ao nosso thezoureiro quantias
irrisorias, apezar da optima frequencia que conseguem
essas festas de beneficio.
Penso que a Directoria da Santa Casa não deve
consentir na continuação desse condemnavel expediente
de extorquir dinheiro sob pretexto de beneficiar aos
doentes dos nossos hospitaes, exigindo um entendimento
previo com os promotores de festas em benefício da Santa
Casa
160
.
A constante falta de recursos, devido, entre outros, aos vários fatores supra
mencionados, fazia com que os administradores e demais associados da Sociedade
Beneficente estivessem sempre criando novas estratégias, junto a sociedade mato-
grossense, para tentar aumentar a arrecadação. Em uma dessas tentativas, Firmo
José Rodrigues sugeriu, enfaticamente, que fosse instituído em Mato Grosso o
Imposto de Caridade. Segundo ele, em outros
Estados e em muitos Municipios tem o poder legislativo
auxiliado os estabelecimentos pios, creando impostos de
caridade; assim é que, no Amazonas o commercio de
castanha, de alcool, etc. foi tributado para aquelle fim e a
renda produzida tem constituido valioso auxilio á Santa
Casa de Manáos (...).
Seria, estamos certos, acceito com sympathia pelo
publico, a adopção d'aquella medida pelos poderes
legislativos do Estado e do Municipio, taxando
suavemente, o fumo, cartas de jogar, o alcool, as entradas
em theatros e cinemas, as corridas de touros, etc
161
.
160
APMT. Relatório da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuyabá,
1932, p. 12.
161
APMT. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade
Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, 1924, p.12.
97
Para Firmo José Rodrigues, administrador da Sociedade Beneficente da
Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, a solução para o problema da falta de
recursos para os hospitais de caridade estava na criação de mais impostos. Ainda
segundo Rodrigues, o público seria simpatizante do chamado Imposto de
Caridade. Talvez porque o projeto de criação do referido imposto tivesse como
proposta aplicar os recursos arrecadados em obras de caridade, no auxílio aos
indigentes doentes, na diminuição do sofrimento dos leprosos segregados no
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá. Com o novo imposto, a sociedade -
sendo obrigada a pagá-lo - assumiria mais uma vez o ônus com as despesas da
Sociedade Beneficente; e o poder público novamente estaria se ausentando de
assumir as suas responsabilidades.
A Sociedade Beneficente era administrada por uma Directoria, composta
de um Presidente, um 1º e um 2º Vice-Presidentes, um 1º e um 2º Secretários, um
1º e um 2º Thesoureiros e doze fiscaes, eleita por um biennio. Os fiscais estavam
incumbidos de visitar:
diariamente, quando escalados, os hospitais da
Sociedade, e uma vez por semana, o de São João dos
Lázaros, inquirindo dos enfermos sobre o modo por que
são tratados, se lhes são ministrados os remédios e dietas
a tempo
162
.
É sabido, porém, que os fiscais não cumpriam o dever de visitar os
estabelecimentos pios com a freqüência exigida pelas normas dos Estatutos da
Sociedade Beneficente. São muitas as reclamações principalmente em relação
ao Hospital dos Lázaros acerca do estado de completo abandono em que se
encontravam os doentes indigentes que deveriam ser atendidos pela Santa Casa de
Misericórdia e os infelizes lazarentos isolados no Hospital de São João dos
Lázaros de Cuiabá. A grande distância entre a cidade de Cuiabá e este último
estabelecimento de caridade e a falta de transportes até ele eram justificativas
comuns apresentadas pelos fiscais responsáveis pelas visitas para não terem que se
aproximar dos leprosos isolados naquele nosocômio, à espera da morte
163
.
162
APMT. Estatutos da Sociedade Beneficente da Santa Casa (...) op. cit., Art. 33.
163
APMT. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade Beneficente
da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, 1923, p. 05.
98
A eleição da nova Diretoria Administrativa e da nova Comissão Fiscal da
Sociedade Beneficente era realizada através do voto secreto, na primeira quinzena
do mês de dezembro do segundo ano de mandato da Diretoria anterior. Os sócios
que não estivessem em dia com as suas mensalidades, não podiam votar nem ser
votados
164
. Impedir a participação política representava mais um instrumento que a
Sociedade possuía para exigir dos associados que o pagamento das mensalidades
estivesse sempre em dia.
Para a realização do serviço clínico, a Sociedade Beneficente dispunha de
médicos, farmacêuticos, enfermeiros e ajudantes de enfermeiro, todos nomeados
pela Diretoria Administrativa. Os médicos que prestavam serviços à Sociedade
eram considerados sócios e, portanto, estavam isentos do pagamento de jóias (para
o ingresso na mesma) e de mensalidades
165
.
A administração interna dos serviços prestados pelos hospitais da
Sociedade Beneficente era exercida, sempre que possível, por irmãs de Caridade,
com as quais a Diretoria assinava contrato, respeitando as normas previstas nos
Estatutos. Este Artigo evidencia a forte ligação ainda presente, no período em
questão, entre a caridade e a religiosidade cristã. A forte religiosidade, a
preocupação com o recebimento de indulgências neste mundo, com a vida após a
morte, com a salvação da alma, fazia com que muitas pessoas doassem esmolas e
contribuíssem com as associações beneficentes. Muitos deixavam em testamento
valores significativos de seus bens para serem revertidos em obras de caridade.
Essas representações e práticas eram comuns no cotidiano dos homens e mulheres
que viveram no Brasil dos séculos XVIII, XIX e até da primeira metade do XX
166
.
Os recursos provenientes da caridade individual, coletiva, de empresas
privadas e das ligas femininas, entre outros fundos, eram, sem sombra de
dúvidas, a principal fonte de renda da Sociedade Beneficente. Donativos diversos,
legados, festas beneficentes, loterias, pedidos de esmolas, touradas, teatros,
164
APMT. Estatutos da Sociedade Beneficente da Santa Casa (...) op. cit., Art. 41 e 47.
165
Ibidem, Art. 49-51.
166
Veja-se a esse respeito, os trabalhos de REIS, João José. A morte é uma festa: ritos
fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX., 1991, pp. 92-95. VOLPATO, Luiza
Rios Ricci. Entradas e Bandeiras., 1991, pp. 75-76 NASCIMENTO, Heleno B. op. cit.,
pp. 12-25.
99
comissões compostas para angariar fundos eram outras estratégias, incentivadas e
promovidas pelos sócios para manter os hospitais em funcionamento pois, como
já exposto acima, as subvenções e auxílios dos poderes públicos eram escassos e
pouco confiáveis.
A omissão do poder público em relação aos doentes de lepra remonta ao
período colonial. Os leprosos foram vítimas desse descaso de forma bastante
acentuada na história da medicina brasileira, pois as preocupações acerca da lepra
- bem como as responsabilidades com os infelizes acometidos por esta doença -
sempre estiveram relacionadas às obras de caridade. Talvez mais ainda do que os
outros doentes, os leprosos estiveram a mercê da boa vontade da sociedade civil,
dependendo da caridade a da beneficência das pessoas para sobreviverem - ainda
que de forma precária e desumana - isolados em hospitais de segregação social. A
esse respeito, escreveu Santos Filho, referindo-se ao início do século XIX:
Neste período a assistência hospitalar marcou-se pelo
signo da caridade. No Conjunto, a orientação visada foi a
do socorro ao desvalido. E o governo, quer o reinol, quer
o local, de modo geral foi o grande omisso. Deveu-se ao
espírito caritativo do povo luso-brasileiro a execução de
uma das 'obras corporais' da Misericórdia, a de 'curar os
enfermos'
167
.
Em Mato Grosso, a negligência das autoridades governamentais em
relação aos leprosos e aos dois hospitais de Caridade, foi alvo de muitas críticas,
não só dos administradores dos estabelecimentos de caridade, como também das
pessoas que se mobilizavam para angariar fundos destinados à sua manutenção,
como foi o caso de um grupo de mulheres da elite cuiabana:
É de todos os paizes civilizados da atribuição dos
governos a assistencia aos doentes desamparados.
E quem mais, senão estes a quem não se dá a
permissão e o acolhimento para angariarem pessoalmente
o necessario e para quem ate as proprias portas das
cidades são fechadas?
168
167
SANTO FILHO, Lycurgo. op. cit., v. I, 1991, p. 258.
168
NDIHR/UFMT. Revista A Violeta - orgam do Gremio Literario "Julia Lopes", anno
XVI, n.º 196, Cuiabá, 31 de Março de 1932, p. 2. Chronica assinada por ARINAPI
(Maria Dimpina Lobo).
100
Estas mulheres destacaram-se na organização, no desenvolvimento e na
execução dos mais variados projetos, destinados à arrecadação de recursos
relacionados e direcionados àquelas instituições de caridade. O apelo lançado a
elas pelas autoridades, que certamente se legitimava na construção do gênero
feminino à época - fazia parte desta construção a idéia de que a mulher era
naturalmente mais piedosa e mais caridosa que os homens - surtiu efeitos. Coube
a elas, como se verá no próximo item, desempenhara um papel importante e
eficaz, no que diz respeito às obras beneficentes em Mato Grosso, no período em
questão.
101
2. Frutos da caridade: a Comissão Feminina PRO-LÁZAROS e a
reinauguração do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá
Conforme em relatorio
anterior já expuz a V. Exc. é
necessaria a remodelação da
Sociedade organizada em virtude
de decreto da Assembléia
Legislativa e sancionada pelo
presidente Murtinho em 3 de julho
de 1894, de modo a interessar na
mesma sociedade o elemento
feminino.
Os hospitais de caridade
vivem da caridade e para imploral
a não ha melhor auxilio que o
elemento feminino sempre mais
habil para promover as chamadas
festas de caridade.
Relatório da Sociedade
Beneficente [...], 1923.
Em Mato Grosso, no período em questão, muitos leprosos de Cuiabá e
também de outras cidades, vilas ou localidades rurais do Estado foram excluídos
da sociedade e isolados no Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá.
169
A
segregação social e o isolamento eram medidas profiláticas, consideradas pelas
autoridades governamentais e sanitárias, como únicas e eficazes para o controle da
lepra, doença contagiosa e ainda incurável naquele período.
A lepra aterrorizava a sociedade mato-grossense como um todo, por isso
era de interesse primordial, principalmente para as elites, manter os leprosos
afastados, isolados em um nosocômio para esse fim. Só o isolamento poderia
169
APMT. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade
Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, 1923, p. 3.
102
evitar o contato dos doentes com as pessoas sadias, diminuindo as possibilidades
de proliferação da enfermidade pelo Estado
170
.
Isolar e garantir a precária sobrevivência dos leprosos segregados no
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá foi uma preocupação social constante
em Mato Grosso. Contudo, como já exposto acima, o poder público não assumia
os encargos referentes àqueles doentes. Deixava para a sociedade civil as
responsabilidades de manter a estrutura física do hospital, bem como de assegurar
a sobrevivência dos internos nele segregados.
A sociedade deveria garantir a sobrevivência dos infelizes em seu local de
isolamento, para que os mesmos não se vissem obrigados (ou incentivados) a
fugirem do nosocômio em busca de gêneros alimentícios - ou de qualquer outra
espécie -, comprometendo, com a fuga, a população sadia, através dos possíveis e
indesejáveis contatos perniciosos.
[...] quando vamos ao encontro dos pobres enfermos do S.
João, estamos pagando a caridade que com seu
recolhimento naquelle hospital isolado nos fizeram.
A nós, e não a elles, importa esse irremediavel
degredo.
A elles, assaltados pelo traiçoeiro mal, orphãos de
esperanças, desenganados para todo o sempre dos
prazeres do mundo, que lhes importaria a penosa
existência aqui ou acolá?
Somos nós que, obrigados pela lei da necessidade,
exigimos o afastamento dos doentes; e porque o exigimos
é justo, é de consciencia que estendamos sempre a nossa
mão benfazeja áquelles que, irremediavelmente, sofrem o
mais horrivel de todos os males, que para tal só bastaria o
isolamento perpetuo e obrigatorio
171
.
A citação acima expressa muito bem que a preocupação maior de muitas
das senhoras da elite mato-grossense não era apenas o recolhimento dos leprosos
ao Hospital dos Lázaros de Cuiabá, mas, principalmente, mantê-los lá isolados
até os últimos dias de suas vidas. Era necessário assegurar o mínimo necessário
para a sobrevivência dos doentes isolados para que não fugissem do hospital.
170
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, pp. 33-34.
171
NDIHR/UFMT. Revista A Violeta - orgam do Gremio Literario "Julia Lopes", anno
XVI, n.º 201, Cuiabá, 31 de outubro de 1932, p. 1. Chronica assinada por ARINAPI
(Maria Dimpina Lobo).
103
Como os recursos do poder público, destinados aos dois hospitais de caridade:
Santa Casa de Misericórdia e Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, eram
escassos e pouco confiáveis, sobrava para a sociedade a tarefa de garantir, através
das obras de caridade, a profilaxia da lepra em Mato Grosso, mantendo os
leprosos isolados naquele nosocômio.
O Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, reinaugurado no ano de
1924, sempre esteve, desde as suas origens (conforme analisou-se no capítulo
anterior), profundamente relacionado com as obras pias. Foi criado para ser um
estabelecimento de caridade destinado ao recolhimento de pessoas acometidas
pelo terrível mal da morphéa. E como tal, sua existência estava a mercê da boa
vontade da sociedade civil mato-grossense. As autoridades governamentais,
apoiando-se na condição primeira de o hospital ser uma instituição de caridade,
aproveitavam para se eximir da responsabilidade financeira frente ao mesmo. Aos
leprosos nele segregados, restava contar com os sentimentos da caridade cristã,
convertidos em esmolas que, na maioria das vezes, garantia a precária manutenção
daquele estabelecimento pio.
As preocupações e gastos abrangiam desde a aquisição de gêneros
considerados de primeiras necessidades: alimentação, vestimentas, remédios, etc.
até os inconvenientes mais complexos: providenciar o recolhimento compulsório
dos leprosos ainda não segregados, impedir as tentativas de fuga daqueles já
isolados, decidir sobre o destino das crianças nascidas no nosocômio, etc.
Destaque especial merece, tambem, nêste sector
profilático a Campanha de Solidariedade promovida êste
ano, entre nós pela benemérita senhora D. Eunice
Weaver, para a construção do preventório destinado aos
filhos sadios de lázaros, que arrecadou, em pouco menos
de um mês, a quantia superior a 500 contos
172
.
Movidas pelo sentimento de religiosidade, de caridade e, principalmente,
pela necessidade profilática, um grupo de mulheres da elite mato-grossense
também se mobilizou fortemente com o objetivo de assegurar que os leprosos
172
APMT. Relatório de Departamento de Saúde de Estado de Mato Grosso, 1940, p. 18.
Eunice Weaver era presidente da Liga de Defesa à Lepra e, em 1940, liderou uma
campanha visando a fundação de uma casa para filhos de leprosos em Mato Grosso. Cf.
NADAF, Yasmim Jamil. Sob o Signo de uma flor. 1993, p. 129.
104
fossem (e permanecessem) isolados no Hospital dos Lázaros de Cuiabá, em
benefício e proveito da sociedade
173
.
Neste sentido, destaca-se o grupo de mulheres reunido em torno da revista
A Violeta , cuja publicação, de responsabilidade do Grêmio Literário “Júlia
Lopes”, iniciou-se em 1916
174
. O tema da caridade, desde os primeiros números,
ocupou um espaço importante nesta Revista e, dentro desta temática, a questão
dos leprosos mereceu vários artigos, desde pelo menos 1916
175
.
Na perspectiva destas mulheres, que assumiam a mesma visão das
autoridades médico-sanitárias, era preciso impedir que os leprosos fugissem do
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá e não ficassem vagando pelas ruas ou
pelos arredores das vilas e cidades - colocando em risco a saúde e a vida de toda a
sociedade. Para isso, seria necessário oferecer aos mesmos o mínimo de
condições materiais necessárias à sobrevivência nas dependências daquela
instituição já existente; ou, de preferência, construir um outro nosocômio, dotado
dos requisitos necessarios a um hospital de segregação e de isolamento social.
E foi com tal objetivo que aquelas mulheres, a maioria pertencentes à elite
cuiabana, assumiram a missão de construir um moderno lazareto , que viria
substituir o velho, arcaico e secular edifício do Hospital de São João dos Lázaros,
que encontrava-se em ruínas e em completo estado de abandono
176
. Em seus
discursos, marcados por um forte apelo aos sentimentos caritativos e de
solidariedade, encontram-se os ecos do secular imaginário sobre a lepra e também
a reafirmação da medida de isolamento hospitalar como a única estratégia de
defesa dos sadios contra a doença:
Que é senão um degredo, muito embora suavisado
pela beneficiencia dos caridosos, a estada, irremediavel
até a morte, dos que lá vivem separados dos seus e da
sociedade, victimas que são de um mal até hoje incuravel.
O tuberculoso espera a morte certa e proxima,
cercado dos seus ou na maca do Hospital, mas o seu mal,
173
NDIHR/UFMT. Revista A Violeta, op. cit., 1932, p. 1.
174
NADAf, Yasmim Jamil. op. cit., p. 23.
175
Cf. NADAF, Y.J., op. cit., pp-127-130
176
APMT. Relatório apresentando ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade
Beneficente da Santa Casa (...), op. cit., 1924, p. 19.
105
contagioso embora, não é tão temido como o das pobres
victimas a que alludo.
O louco, desgraça lamentavel dos seus, pode
muitas vezes encontrar o seu descanso como parte
integrante do seu proprio mal.
O morphetico, o leproso, ao envez, são victimas de
um mal que consome aos poucos, morosamente, mas que
sepulta um corpo vivo num hospital onde, não fôra a
caridade chistã e philantropica de muitos, poder-se-ia
dizer que estavam segregados da humanidade para todo o
sempre
177
.
É importante assinalar que a criação de entidades como a Comissão Pró-
Lázaros e outras ligas e associações destinadas a engajar a sociedade em
atividades solidárias e caritativas, não só em relação aos leprosos, mas também
aos loucos, aos doentes e desvalidos de uma maneira geral, não pode ser visto
como um dado “específico” da sociedade cuiabana. Na década de 1910-1920, são
inúmeras as associações deste tipo criadas em todo o Brasil, não só para tratar de
problemas relativos à lepra, como também pertinentes à saúde pública de maneira
geral, como foi o caso das Ligas Pró-Saneamento.
É neste contexto, e não como uma iniciativa individual, que Corina Novis
Corrêa esposa do Coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa, Presidente do
Estado de Mato Grosso no período de 22/01/1922 a 25/10/1924 se coloca à
frente do movimento destinado a incentivar a caridade pública em prol do
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá. Nesta visita, segundo Relatório da
Sociedade Beneficiente da Santa Casa de Misericórdia, Dona Corina teve a
oportunidade de observar o estado de abandono e desconforto a que estavam
sujeitos os internos ali segregados.
Condoida pela situação em que se achavam, teve ella a
lembrança de realizar uma transformação no mesmo
hospital, conjugando esforços do povo com os dos
governos do Estado e da União
178
.
O documento oficial citado tenta demonstrar que Dona Corina Novis
Corrêa assumiu a incumbência de realizar as obras de reconstrução do Hospital
177
APMT. Relatório apresentando ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade
Beneficente da Santa Casa (...), op. cit., 1924, p. 19.
106
dos Lázaros movida apenas pelo nobre sentimento de piedade e caridade para com
os leprosos nele isolados e entregues a sua própria sorte. Entretanto, pode-se
deduzir, analisando a comparação que Firmo Rodrigues faz acerca do número
reduzido de doentes isolados e das terríveis condições de abandono pela s quais
passava o hospital, que seria muito mais difícil segregar e manter os leprosos
isolados com o nosocômio em tais condições materiais de existência. Portanto, a
efetiva profilaxia da lepra em Mato Grosso dependia da urgente e indispensável
construção de um novo hospital, que substituiria o antigo e decadente Hospital de
São João dos Lázaros de Cuiabá.
Para a construção do novo e moderno hospital de isolamento, Dona Corina
apelou para o coração feminino e, reunindo em sua residência um numeroso grupo
de senhoras e senhoritas da elite mato-grossense, organizou uma comissão
denominada de Commissão ‘PRO-LAZAROS’, que daria início à nobre e caridosa
tarefa de coletar esmolas, promover quermesses, organizar festas beneficentes,
realizar loterias em favor dos lazarentos, etc.
Logo em seguida foi realizada uma kermesse de
prendas no jardim Alencastro, produzindo a somma de
5:374$000.
Em auxilio da Commissão vieram o Centro Matto -
grossense de Letras e a Loja Maçonica ACACIA
CUIABANA os quaes promoveram diversas festas em
beneficio do hospital.
Foram distribuidas cem listas de subscripção entre
cavalheiros e distinctas senhoras cuja maior parte
attendeu com solicitude a esse appello, produzindo taes
listas a importancia de rs: 8:908$000
179
.
Contando com o espírito nobre e caridoso de pessoas dignas e distinctas
da sociedade mato-grossense, a comissão PRO-LÁZAROS conseguiu alcançar
resultados bastante satisfatórios e, por não ter sido conseguida da União a verba
necessária para a edificação de um novo, grande, moderno e bem equipado
hospital, como era o desejo de Dona Corina Novis Corrêa, as associadas
178
Ibidem, p. 19.
179
Ibidem, pp. 19-20.
107
resolveram então, conforme permitia o dinheiro angariado, restaurar e ampliar o
velho edifício do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá
180
.
Segundo o projeto que a comissão PRO-LÁZAROS colocaria em prática,
com os recursos adquiridos, poder-se-iam realizar as seguintes obras no edifício
do Hospital de São João dos lázaros de Cuiabá:
- Na fachada: demolir parcialmente o muro da frente, levantar o portão
entre pilares de tijolo com platibanda, abrir os espaços necessários para
colocação de sete janelas, construir um passeio de tijolos e mudar o portão
de entrada para a seção dos homens;
- Na seção das mulheres: demolir uma parede de catorze metros e construir
novamente, ripar e retelhar os compartimentos, substituindo parte do
encaibramento, abrir seis janelas, substituir os esteios da varanda por
pilares, rebocar e caiar as paredes, ladrilhar com mosaicos, construir
passeio de tijolos e construir privadas e banheiros.
- Na seção dos homens: reconstruir duas salas grandes, abrir catorze
janelas nos alojamentos, colocar o portão de entrada, rebocar e caiar os
compartimentos, construir privadas, banheiros, fazer passeio de tijolos,
ladrilhar todos os compartimentos e a Capela, substituir caibros e ripas
estragados, forrar o teto da Capela, fazer novo altar, levantar uma parede
divisória com dez metros;
- Na casa do zelador: rebocar, caiar e ladrilhar a cozinha, construir um
fogão com chapa de ferro, cinzeiro e chaminé, construir uma prateleira,
fazer reboco, construir um depósito cimentado para água, colocar duas
cancelas e fechar a frente com tela de arame;
- No edifício todo: fazer reboco, caiação e pintura a óleo nas portas,
janelas e barrado;
- Na parte exterior do hospital: construir uma fossa higiênica, com tubo de
descarga para o córrego mais próximo;
- No terreno: fechar uma parte com cerca de arame farpado e colocar duas
cancelas
181
.
180
Ibidem, pp. 20.
181
Ibidem, pp. 20-21.
108
Uma vez aprovado o referido projeto, iniciaram-se as obras de
reconstrução do hospital. Enquanto aguardava a conclusão das mesmas, a
Comissão PRO-LÁZAROS incumbiu várias senhoras da confecção de roupas e de
providenciar os utensílios e os móveis necessários para o uso pelos doentes e
também para a remodelação do serviço de rancho. Nesse sentido, foram
adquiridos móveis essenciais, tais como: mesas de jantar, bancos para refeitório,
bancos para o jardim, armários com prateleiras e uma estante para livros. A cada
um dos leprosos foi distribuído um jogo de utensílios para o uso pessoal: bacia,
pratos, tigela, talher, caneco, urinol e chaleiras. Também foram confeccionadas as
seguintes peças de roupa: camisas, calças, ceroulas, lençóis, vestidos, lenços,
guardanapos e foram adquiridos cobertores de lã e várias colchas brancas. Para o
serviço do rancho foi feita a aquisição de uma bateria de cozinha e marmitas para
condução da comida. Pelo presidente da loja maçônica de Cuiabá, foram
oferecidas trinta camas de ferro, trinta colchões e trinta travesseiros. Afim de
proporcionar aos doentes uma ocupação recreativa - e ao mesmo tempo útil - foi
fechada, com cerca de arame farpado, uma parte das terras pertencentes ao
hospital, para o plantio de frutas e legumes. E, ainda para facilitar o acesso de
visitantes e dos fiscais, foi melhorada a estrada que do alto do Areão vem ter a
este local
182
.
Com os melhoramentos realizados na cozinha do hospital e com a
aquisição dos móveis e utensílios necessários à mesma, o serviço de rancho foi
reorganizado em moldes diferentes: passou a ser dirigido pelo caseiro, findando-
se, assim, o antigo sistema onde cada doente preparava sua própria refeição.
Segundo Firmo José Rodrigues, com o antigo sistema, tornava-se difícil
economizar os alimentos. Já o rancho geral, preparado pelo caseiro, possibilitava
um maior controle e um melhor aproveitamento dos gêneros alimentícios doados
ou produzidos no próprio hospital
183
.
As obras de reconstrução do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá
foram concluídas em outubro de 1924. No dia 12 do mesmo mês, afluiram ao
182
Ibidem, pp. 22-25.
183
APMT. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade
Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, 1923, p. 22.
109
hospital altas autoridades do Estado, muitas familias e cavalheiros para
assistirem a solenidade de inauguração das obras de reconstrução do secular
nosocômio. Entre as autoridades, marcaram presença o Coronel Pedro Celestino
Corrêa da Costa, presidente do Estado de Mato Grosso; o Dr. Virgílio Alves
Corrêa Filho, secretário geral do Estado e Dom Francisco de Aquino Corrêa,
arcebispo metropolitano.
Após a bençam do altar e a celebração da missa o
Exmo. Sr. Arcebispo fez allusiva allocução aos enfermos,
e suas palavras, tão tocantes quanto confortadoras,
puzeram em relevo a caridade christã daquellle acto e
ennalteceram os sentimentos das dignissimas senhoras
que concorreram para a realização de tão grande
beneficio
184
.
Logo em seguida, tomou a palavra o major e vice-presidente em exercício
da Sociedade Beneficente da Santa Casa de misericórdia Firmo José Rodrigues,
que fez uma rápida exposição de todos os melhoramentos que foram realizados
pela Comissão PRÓ-LÁZAROS no Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá.
A Comissão,
representada pela muito nobre cuiabana a Exma. Sra. D.
Corina Novis Corrêa que, durante longos mezes,
trabalhou com o mais generoso enthusiasmo, efficazmente
auxiliada pelas senhoras de Cuiabá para a realização
destas obras
185
.
Firmo José Rodrigues declarou, ainda, que a administração da Sociedade
Beneficente da Santa Casa e do Hospital dos Lázaros de Cuiabá encontrava-se
imensamente satisfeita pela realização das obras de reconstrução desta última
instituição de caridade. Melhoramentos esses que já há muito tempo eram
desejados, mas que faltava-lhes os recursos necessários para colocá-los em
prática
186
.
Em Assembléia realizada no mês de novembro pelos sócios da Sociedade
184
APMT. Relatório apresentando ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade Beneficente
da Santa Casa (...), op. cit., 1924, p. 22.
185
Ibidem, p. 23.
186
Ibidem, p. 25.
110
Beneficente, ficou deliberada a inauguração do retrato da Exma. Sra. D. Corina
Novis Corrêa, no salão principal do mesmo hospital, no dia de seu anniversário
natalicio; em homenagem e gratidão à digna promotora dos muitos e necessários
benefícios em prol da caridade para com os leprosos segregados no secular
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá
187
.
Vale ressaltar, entretanto, que também por questões de poder e de status
social algumas pessoas da elite destacando-se aí as distintas Senhoras e
Senhoritas da sociedade cuiabana, naquele momento representadas na pessoa de
D. Corina Novis Corrêa - procuravam se envolver, organizar e desenvolver obras
de caridade, para serem homenageadas, prestigiadas, elogiadas ou simplesmente
citadas como beneméritas e altruístas no quadro social.
O ano de 1924 foi, segundo Firmo José Rodrigues, um dos mais prósperos
para o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, pois com as obras de
reconstrução e de melhoramentos realizadas pela Comissão PRO-LÁZAROS, a
instituição (que ainda não podia ser considerada modelar) passou a oferecer maior
conforto aos doentes; e já não produzia como antes a impressão de presidio
correccional
188
.
Pode-se fazer, neste momento, um interessante paralelo entre as reflexões
supra mencionadas, acerca da grande campanha promovida pela Comissão PRÓ-
LÁZAROS, com a finalidade de angariar recursos para a reinauguração do
Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá e a também intensa campanha
desenvolvida, no primeiro quartel do século XIX, pelo Capitão-General João
Carlos Augusto D'Oeynhausen e Gravenburg, para a construção e inauguração do
mesmo hospital. No sentido de angariar fundos que complementassem o legado
deixado em testamento por Manoel Fernandes Guimarães (1755), para a
construção do Hospital dos Lázaros, Oeynhausen nomeou várias pessoas ao cargo
de oficial esmoler, estes (em nome da caridade cristã e valendo-se da religiosidade
dos mato-grossenses daquele período) tinham por missão sair as sextas feiras e
aos sábados angariando esmolas e donativos diversos entre a população da vila de
Cuiabá e das localidades vizinhas. Acrescentados ao Legado de Manoel Fernandes
187
Ibidem, p. 27.
188
Ibidem, pp. 17 e 27.
111
Guimarães, os donativos e esmolas recebidos com essa campanha permitiram a
construção e inauguração do Hospital de São João dos Lázaros e ainda a fundação
do Hospital de Nossa Senhora da Conceição da Misericórdia, atual Santa Casa de
Misericórdia de Cuiabá
189
.
O Capitão-General João Carlos Augusto D'Oeynhausen e Gravenburg e
seus inúmeros oficiais esmoleres, Dona Corina Novis Corrêa e suas amigas
senhoras da elite cuiabana; são personagens históricos diferentes, que viveram em
espacialidades e temporalidades diferentes, mas com certas atitudes comuns
acerca da caridade, da religiosidade cristã, da busca do prestígio social (através de
seus atos ligados a beneficência) e, principalmente, do empenho profilático em
manter e assegurar a sobrevivência dos leprosos segregados no Hospital de São
João dos Lázaros de Cuiabá, para que aqueles doentes - portadores de um mal
contagioso e incurável - não colocassem em risco a vida e a saúde das pessoas
sadias.
Foram várias as ligas femininas de proteção aos lázaros, as sociedades de
assistência aos lázaros e defesa contra a lepra, também compostas por mulheres e
outras associações femininas de caráter beneficente, relacionadas especificamente
com o auxílio aos leprosos isolados no Hospital de São João dos Lázaros de
Cuiabá. Além da Comissão PRÓ-LÁZAROS, destaca-se entre elas, a Liga
Feminina Pró-Lázaros, criada em 1933,
[...] com o esclusivo fim de auxiliar a Santa Casa, na obra
de manutenção do Hospital S. João, onde são segregados,
para proveito dos sãos, os infelizes doentes no Mal de
Hansen
190
.
É interessante notar que os legados, donativos e esmolas que não eram
adquiridos pelas ligas ou associações femininas apareciam, com raras exceções,
direcionados à Santa Casa de Misericórdia e não ao Hospital de São João dos
Lázaros de Cuiabá. Apesar dos dois hospitais de caridade estarem sujeitos a uma
mesma administração, encabeçada pela Sociedade Beneficente da Santa Casa de
Misericórdia, percebe-se que os leprosos do Hospital dos Lázaros eram menos
189
Cf. NASCIMENTO, Heleno B. op. cit., pp. 18-21.
190
NDIHR/UFMT. Revista A Violeta - orgam do Gremio Literario "Julia Lopes", anno
XVI, n.º 201, Cuiabá, 31 de outubro de 1932, p. 9.
112
prestigiados pelos sócios da referida Sociedade Beneficente.
191
Talvez devido a
essa omissão, as mulheres mato-grossenses tenham resolvido assumir a vanguarda
nas obras de caridade: criando ligas, associações e comissões que eram
direcionadas, exclusivamente, aos lazarentos, aos pobres infelizes degredados do
hospital dos Lazaros
192
.
Em suma, os feitos da Comissão PRÓ-LÁZAROS garantiram a execução
de importantes melhoramentos e reformas no Hospital de São João dos Lázaros de
Cuiabá, que culminaram na reinauguração do mesmo, em 1924. Nas atividades
beneficentes desenvolvidas para angariar fundos para tal reinauguração, destacou-
se o elemento feminino: um certo número de mulheres pertencentes à elite
cuiabana que, apelando para os sentimentos de religiosidade, de solidariedade
humana, da caridade cristã e filantrópica, ainda bastante presentes entre os mato-
grossenses para o período em questão, conseguiram (mesmo que precariamente)
manter a estrutura física do hospital e a sobrevivência dos leprosos nele isolados.
Segregar os doentes do convívio social e conseguir mantê-los no
nosocômio era tarefa árdua, mas que se convertia em uma das poucas medidas
profiláticas encontradas para defender a sociedade do contágio e da morte. As
autoridades governamentais se eximiam de assumir as responsabilidades sobre os
dois hospitais pios de Mato Grosso: a Santa Casa de Misericórdia e o Hospital de
São João dos Lázaros de Cuiabá. Coube à sociedade civil (através da Sociedade
Beneficente da Santa Casa de Misericórdia De Cuiabá) assumir e pagar o ônus
que representava a segregação e o isolamento das pessoas acometidas pela lepra
em Mato Grosso, doença contagiosa e ainda incurável no período privilegiado
neste trabalho.
Assim, os esforços no sentido de promover e garantir a segregação social e
o isolamento dos leprosos, permaneceram durante todo o período aqui abordado,
em grande medida dependente da caridade e do "espírito filantrópico" de alguns
setores da elite mato-grossense. De fato, esta profilaxia ainda se concretizava no
191
Vale ressaltar que a maioria dos sócios que compunham a Sociedade Beneficente da
Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá eram do sexo masculino. Cf. APMT. Relatório
apresentando ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pela Sociedade Beneficente da Santa
Casa (...), op. cit., 1924, p. 41-44.
192
NDIHR/UFMT. Revista A Violeta, op. cit., 1932, p. 1.
113
antigo leprosário - o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá. Reinaugurado
no ano de 1924, o edifício do Hospital dos Lázaros foi utilizado ininterruptamente
até o ano de 1941, quando aconteceu a inauguração da moderna Colônia de
Leprosos de São Julião que, a partir daquele ano, passou a receber os doentes que
encontravam-se (ou aqueles que ainda seriam) isolados no secular nosocômio de
São João dos Lázaros de Cuiabá.
Com sua construção iniciada em 1937, próxima à cidade de Campo
Grande, no sul do antigo Estado de Mato Grosso
193
, Colônia de Leprosos de São
Julião significava, para as autoridades governamentais e sanitárias de Mato
Grosso, um grande salto de modernização nas formas de prevenção da lepra e da
segregação social e do isolamento hospitalar dos leprosos no Estado. Inaugurada
em 1941, respondia aos anseios do poder instituído e da elite mato-grossense
contar com um grande e moderno hospital de isolamento que, segundo eles, muito
ajudaria na profilaxia da lepra, que se alastrava de forma aterrorizante e
incontrolável pelo o sul do Estado
194
.
A Colônia de Leprosos de São Julião teria condições de receber, além dos
leprosos do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá (que para lá seriam
transferidos) vários outros doentes que vagavam pelas vilas e cidades da parte sul
do Estado de Mato Grosso. A inauguração desse hospital-colônia representou
também o ocaso do Hospital dos Lázaros, que foi sendo esvaziado paulatinamente
até a sua completa extinção na década de 1960.
Durante a construção do Leprosário de São Julião, e num contexto de
reorganização da Saúde Pública no estado de Mato Grosso, o poder público,
através das autoridades sanitárias, elabora um minucioso Regulamento Sanitário
(1938), com vários artigos dedicados à profilaxia da lepra. No próximo capítulo,
aborda-se algumas questões relativas à lepra como objeto de Saúde Pública em
Mato Grosso e também ao dito Regulamento Sanitário de 1938, instrumento
significativo de uma ação mais sistemática do poder público em relação à
profilaxia da doença no Estado.
193
APMT. Relatório do Departamento de Saúde do Estado de Mato Grosso, 1938, pp. 16-
17.
194
APMT. Mensagem apresentada á Assembléa Legislativa de Matto-Grosso, 1937, p.
18.
114
Capítulo IV - Lepra e Saúde Pública em Mato Grosso:
pobreza, isolamento e profilaxia
As doenças transmissíveis,
constituem preocupação máxima
de uma organização de Saúde
Pública.
Relatório do Departamento de
Saúde [...], 1940, p. 57.
Os doentes de lepra
verificados pelo serviço oficial
serão encaminhados a dispensário
ou isolados a juizo da autoridade
sanitária.
O isolamento poderá ser
domiciliário ou em hospital
especializado, para doentes da
lepra, dirigidos ou fiscalizados
pelo serviço oficial.
Serviço de Profilaxia
da Lepra, 1940, Art.10.
Na era pré-sulfona, a única
medida aplicável de saúde pública
era a da segregação compulsória
dos portadores de lepra. Seu
objetivo era o de isolar as fontes
de infecção. Mas o seu valor era
limitado porque aqueles com
doença inicial e ativa (os casos
contagiantes) escondiam o fato,
evitando que fossem forçosamente
removidos de seus lares.
Manual de Hanseníase,
1991, p. 153.
115
Apresentação:
As primeiras décadas do século XX são identificadas como um momento
de transição, no que diz respeito às questões de Saúde Pública no Brasil. Iniciava-
se, então, como visto no capítulo anterior, uma institucionalização da assistência à
saúde no país, que era objeto de discussão política e de reivindicação por parte
daqueles que atuavam no âmbito médico-sanitário brasileiro, os quais defendiam
uma ação mais direta do Estado nas questões de Saúde Pública.
Segundo Gilberto Hochman, no Brasil, em princípios da década de 1920,
ocorreu a primeira grande reforma nos serviços sanitários federais. Essa
significativa modificação foi resultado de várias outras reformas ao longo do
tempo, de um longo processo político, fortalecido a partir de fins da década de
1910, com as decisões sobre a criação e ampliação das agências federais para
tratar dos problemas sanitários do país. Naquele período foi surgindo, em amplos
setores das elites políticas, a consciência da existência de uma forte
interdependência entre um país doente e um Estado ausente. O Brasil era um
grande hospital, que necessitava de medidas sanitárias urgentes para sanar os
problemas causados pelas inúmeras doenças que assolavam o país.
Concretamente isso significou a passagem da noção de
responsabilidade puramente individual e local em
assuntos de saúde para uma concepção mais coletiva e
nacional.
Essa reforma implicaria unificação e centralização dos
serviços de saúde pública, na esfera federal, alterando as
relações entre estados e Governo federal estabelecidas
pela Constituição, adaptando-as às exigências da
natureza infecto-contagiosa da maior parte das doenças
que assolavam o país
195
.
Foram criados, entre outras agências federais, o Serviço de Profilaxia
Rural (SPR), em 1919 e o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), em
1920. Através da criação do SPR cresceram, segundo Hochman, as pressões por
ações governamentais mais efetivas na área de saneamento rural; e a criação do
195
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de Saúde Pública
no Brasil. 1998, pp. 91-147.
116
DNSP inaugurou uma nova etapa no desenvolvimento das políticas de saúde
pública e de saneamento no Brasil.
Massako Iyda complementa a interpretação acima, afirmando que a
descentralização política no Brasil da primeira República era meramente
executiva, uma vez que os recursos das taxas de importação de selo e de consumo,
estabelecidos pela Constituição de 1891, beneficiavam apenas os estados
economicamente mais poderosos, encabeçados por São Paulo. Conseqüentemente,
grande parte dos outros estados dependia do governo federal (como era o caso de
Mato Grosso), não se concretizando, assim, os ideais republicanos de autonomia
estadual
196
.
Em virtude da crise econômica cafeeira, desde o início do século XX e
agravada com a Primeira Guerra Mundial, foi possível a aceitação, após 1920, de
uma maior interferência do governo federal inclusive nos estados
economicamente mais prósperos. A partir daquele período é que se inicia o longo
processo pelo qual a pobreza começa a ser identificada como incômoda (e até
perigosa), associada à valorização do trabalho e a uma esfera de maior atuação do
Estado no mercado de trabalho.
Ainda segundo Iyda, a grande questão, a partir da década de 1920, era
organizar o mercado de trabalho, valorizando-o para a continuidade da ordem e do
progresso e, conseqüentemente, combatendo os distúrbios, como a pobreza e a
doença. É dentro deste quadro geral que à Saúde Pública caberá um novo papel.
Se até 1925, e assim o demonstram as reformas e a
estrutura administrativa do Serviço Sanitário de 1891,
1896, 1911 e 1918, predominavam na organização
institucional os hospitais de isolamento e de doentes
mentais e os serviços laboratoriais, que eram bases
fundamentais no controle de doenças específicas, a partir
da década de 1920, o Serviço Sanitário começa a ampliar
suas atividades, com a proteção à infância, a inspeção de
amas de leite e a profilaxia em geral
197
.
As décadas de 1920 e 1930 foram anos que, pelo menos para boa parte dos
intelectuais brasileiros de então, buscou-se um rompimento definitivo com o
provincialismo, com o formalismo e com a repetição das velhas fórmulas que não
196
IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. 1994, p. 48.
117
davam mais conta de explicar um cotidiano cada vez mais urbano e industrial. Os
anos 20-30 foram períodos cruciais em termos da redefinição não apenas político-
econômica, mas essencialmente cultural. Na busca de respostas para a construção
do ideário de um Brasil "moderno", que ganha força a partir do período
republicano, colocava-se, com ênfase pouco vista em outros momentos, a questão:
"que país é esse?" Médicos, educadores, engenheiros, literatos, enfim, todos os
intelectuais discutiam apaixonadamente o Brasil
198
, seus problemas e as soluções
que poderiam ou deveriam ser adotadas para se chegar ao ideal de um país
moderno e civilizado, efetivamente pautado pelos parâmetros da ordem e do
progresso.
Em 1937, momento crucial da década de 1930, acontece a I Semana
Paulista de Medicina Legal e é instaurado o Estado Novo. No programa de
governo defendido pelo novo regime - centralizador, autoritário e pautado na
modernização e no progresso da Nação - os serviços sanitários passariam por uma
ampla remodelação e a Saúde Pública deveria ser transformada em área
privilegiada para as ações de controle por parte do governo federal.
Daí em diante entrava-se num novo momento da
vida brasileira. A decretação do Estado Novo colocava a
nu alguns aspectos fundamentais do modo como , no
Brasil, se daria o processo de modernização.
Autoritarismo, exclusão de amplos segmentos sociais,
prevalência do Estado sobre a sociedade civil, fragilidade
da noção de cidadania, tudo isto aliado a um tom
fortemente ufanista que 'consolidava' uma aliança (nem
sempre vantajosa para todas as partes) entre o Estado, o
'povo' e diferentes segmentos intelectuais
199
.
Neste capítulo, considerando-se as mudanças políticas, sociais,
econômicas e culturais dos anos 20 - 30 e, nesse bojo de acontecimentos, também
as relativas à saúde, busca-se identificar até que ponto a lepra foi efetivamente
encarada como um problema de Saúde Pública, a ser enfrentado, prioritariamente,
via intervenção das agências federais e estatais, deixando em segundo plano os
apelos à caridade pública. Num segundo momento, tendo como referência o
197
Ibidem, p. 50.
198
HERSCHMANN, Micael M., PEREIRA, Carlos Alberto M. (orgs). A invenção do
Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20 - 30. 1994, pp. 29-33.
118
Regulamento Sanitário de 1938, busca-se analisar a intervenção do poder público
na área da saúde em Mato Grosso, com ênfase no que respeita à profilaxia da
lepra e ao isolamento hospitalar dos leprosos. Nesse sentido, privilegia-se aqui
duas questões principais: a relação de proximidade entre pobreza e lepra na
sociedade mato-grossense e as discussões acerca da intervenção do Estado na
Saúde Pública e na institucionalização dos serviços relativos à profilaxia da lepra
(através do isolamento hospitalar), articulando as medidas federais e estaduais.
199
Ibidem, pp. 36-37.
119
1. Lepra: uma doença dos pobres?
Más condições habitacionais e de
higiene têm papel importante na
disseminação da lepra, e as
campanhas de controle da doença
em países em desenvolvimento
terão melhores chances de sucesso
se realizadas num substrato de
melhorias dos padrões gerais de
vida.
Manual de Hanseníase,
1991 p. 156.
José Rivair Macedo afirma que corpos mal nutridos, de pessoas mal
alimentadas, estão mais expostos às doenças, principalmente as contagiosas
200
.
Portanto, refletir sobre a lepra em Mato Grosso no período em questão, é também
discutir acerca das condições de vida e de saúde das camadas menos favorecidas
da sociedade, evidenciado a correlação que existia (e ainda existe) entre más
condições de vida, alimentação deficiente, habitações precárias e coletivas, falta
de higiene e a grande disseminação da lepra entre as camadas menos favorecidas
da sociedade mato-grossense daquele período. Em Seus escritos, Macedo
acrescenta que:
Desde as mais antigas civilizações até os dias
atuais, a doença se faz presente. Como ocorre nos dias de
hoje, muitas enfermidades atingiam primeiro os mais
200
MACEDO, José Rivair. Movimentos populares na Idade Média. 1993, pp. 31-34. Ao
discutir a forte relação entre pobreza, fome e doenças no período medieval, Macedo
acrescenta que em diferentes séculos e em diferentes situações, os pobres estiveram
entregues à sua própria sorte, muito mais suscetíveis às doenças, principalmente as
contagiosas. Portanto, no período aqui analisado, a correlação entre miséria, fome e lepra
também não pode ser ignorada, visto que esta é uma doença que depende, essencialmente,
das defesas do organismo do hospedeiro para se manifestar dessa ou daquela forma, ou
até mesmo para não se desenvolver. Sobre estas informações científicas, consultar
também o Anexo I deste trabalho.
120
pobres. A má alimentação, a falta de condições para
combater os males físicos e mentais faziam com que a
doença, um problema individual, se transformasse
também (como hoje) num problema social
201
.
A proclamação da República, em 1889, foi embalada pelas idéias de
modernizar o Brasil a todo custo e pelo lema positivista da ordem e do progresso.
O novo regime deveria manter a ordem e cuidar para que o povo se tornasse
suficientemente saudável e educado para alcançar o progresso nacional, através da
dedicação e de muito trabalho. Nos primeiros anos da República, processo
iniciado com a constituição de 1891, criou-se, no Brasil, as condições necessárias
para o fortalecimento das oligarquias regionais. O funcionamento político da
Primeira República pautou-se pelo coronelismo,
ou seja, a dominação dos poderosos chefes políticos
locais, em geral grandes proprietários, sobre a massa de
eleitores que, pelos laços da dependência pessoal e do
favor que atrelavam os trabalhadores despossuídos,
transformava-os em sua clientela eleitoral
202
.
A situação dos pobres, dos trabalhadores, em quase nada mudou com o
novo regime político instituído no Brasil em 1989. A busca do progresso (através
da manutenção da ordem) e da modernização colocava a necessidade urgente de
atualizar a economia e a sociedade - escravistas, até pouco antes - com o mundo
capitalista civilizado. Os trabalhadores brasileiros deveriam ser redefinidos como
capital humano, capazes de produzir a riqueza da nação. O Estado teria que
interferir de forma mais definida nos assuntos sanitários, comprometendo-se em
garantir a melhoria da saúde individual e coletiva e, por extensão, garantir a
defesa do projeto de modernização do país
203
.
Segundo Iyda, foi para essa "ordem e progresso" que passou a haver a
necessidade de uma referência unificadora e identificadora em relação à saúde. A
partir da República, tentou-se criar uma identidade social em torno da Nação,
elemento constituinte da sociedade burguesa. Este mesmo processo ocorreu com a
Saúde Pública: o Estado deveria tornar-se responsável pela saúde da população. A
201
MACEDO, José Rivair. op. cit., 1993, p. 33.
202
NEVES, Margarida de Souza. e HEIZER, Alda. A ordem é o progresso: o Brasil de
1870 a 1910. 1991, p. 69.
121
Saúde Pública saiu da alçada do senhor de escravo e das ordens religiosas para
entrar na responsabilidade de uma entidade mais abstrata: o Estado
204
.
Paulatinamente, começou a ganhar forma no Brasil um novo campo do
conhecimento, voltado para o estudo da preservação das doenças e para o
desenvolvimento de formas de atuação nos surtos epidêmicos. Definiu-se, assim
uma área científica chamada de Saúde Pública. Diferentemente dos períodos
anteriores, a participação do Estado na área de saúde deveria ser global: não se
limitaria às épocas de surto epidêmico, mas estenderia-se por todo o tempo e a
todos os setores da sociedade. Junto com essa "política de saúde" que deveria ser
rapidamente implementada pelo governo, nasce também uma grande contradição:
O Estado tentava desenvolver a Saúde Pública sem investir os recursos
necessários em educação, alimentação, moradia, trabalho, etc., ou seja, sem uma
preocupação com o social.
Historicamente, a política social tem sido o setor
menos privilegiado pelas autoridades republicanas. E isso
apesar de o trabalho de cada um dos cidadãos ser
considerado a grande fonte geradora da riqueza nacional.
O compromisso governamental com as
necessidades básicas da população tem sido relegado
sempre a segundo plano, perpetuando um círculo
tristemente vicioso: desamparado e sem participação
decisiva nas decisões do governo, o trabalhador recebe
salários baixos e vive mal, adoecendo com facilidade.
Doente e mal alimentado, ele tem a sua vida produtiva
abreviada, tornando muito mais difícil a superação da
pobreza nacional
205
.
Essa triste contradição, entre o discurso das autoridades públicas e as suas
práticas no que diz respeito aos problemas de saúde enfrentados pela maioria da
população do Estado, era evidenciada em Mato Grosso já no início do século XX.
Falava-se muito em salvaguardar a vida humana, promovendo a saúde do ser
humano, pois este significava capital valioso em Mato Grosso, onde a população
era escassa e o seu aumento difícil de se conseguir através do processo de
203
BERTOLLI FILHO, Claudio. História da saúde pública no Brasil. 1996, p. 12.
204
IYDA, Massako. op. cit., 1994, p. 46.
205
Ibidem, p. 15.
122
imigração. Nesse sentido, escreveu o Presidente do Estado, Coronel Antonio
Pedro Alves de Barros, à Assembléia Legislativa de Mato Grosso:
Sabeis bem que a vida humana representa por toda
parte um capital precioso, confiado á guarda dos
governos e que esse capital sobe de preço n’aquelles
Estados, como o nosso, onde a população é escassa e o
seu augmento é difficil de conseguir por meio de
immigração.
Em taes condições, deixar perder o valor de uma
existencia que seja, pelo medo de onerar de mais os cofres
publicos, é, quando não um crime, pelo menos um erro
206
.
O citado Presidente de Estado era um grande defensor do direcionamento e
da aplicação de maiores recursos nos serviços de Saúde Pública em Mato Grosso.
Defendia a vida humana como um capital valioso, que não deveria ser esquecido
e nem descuidado pelo governo, principalmente em Mato Grosso, onde era difícil
recompor as perdas desse tipo de capital.
Toda despeza feita em nome da hygiene é uma
economia; nada é mais dispendioso que a molestia, a não
ser a própria morte; para as sociedades não há
disperdicio mais ruinoso do que o da vida humana
207
.
Em seu discurso estava sempre presente a preocupação com a higiene e
com a criação de lazaretos ou hospitaes de isolamento para os atacados das
differentes molestias contagiosas. Defendia, ainda, já em 1901, a organização do
Departamento de Saúde do Estado: deveis habilitar o governo a, si não de uma só
vez, ao menos paulatinamente ir organisando o departamento da saude publica,
fato que irá se concretizar em Mato Grosso, como veremos no item seguinte,
apenas 37 anos mais tarde (1938).
Contraditoriamente ao discurso do trabalhador enquanto capital precioso -
indispensável à construção da modernidade e ao alcance do tão sonhado
progresso - as práticas de prevenção, de atendimento e de tratamento de saúde
dispensadas à maioria da população mato-grossense eram lastimáveis, permitindo-
se, deste modo, que as doenças provocassem a morte de grande número de
pessoas em curto espaço de tempo.
206
APMT, Mensagem do Presidente do Estado de Matto-Grosso (...) 1901, p. 19.
207
Ibidem, p. 20.
123
Consta também do mappa do obituario, 106 obitos
[do total de 265 registrados] por molestias mal definidas
ou ignoradas. Estes obitos são, na sua quasi totalidade, de
pessoas fallecidas sem assistencia medica e constituem
uma grande irregularidade que perturba sensivelmente as
estatisticas
208
.
Naquele universo de pobreza, má alimentação e com terríveis problemas
de moradia, a lepra não matava como as outras inúmeras doenças que apareciam
ou reapareciam no Estado
209
, porém disseminava-se assustadoramente entre as
camadas menos favorecidas da sociedade, tornando-se um problema de Saúde
Pública cada vez mais crônico e que amedrontava a sociedade como um todo,
principalmente a elite. A moléstia consistia em um mal contagioso e incurável e
de difícil solução para as autoridades governamentais mato-grossenses
210
.
Essa triste contradição, entre o discurso das autoridades públicas e as suas
práticas no que diz respeito aos problemas de saúde enfrentados pela maioria da
população do Estado, era evidenciada em Mato Grosso já no início do século XX.
Falava-se muito em salvaguardar a vida humana, promovendo a saúde do ser
humano, pois este significava capital valioso em Mato Grosso, onde a população
era escassa e o seu aumento difícil de se conseguir através do processo de
imigração. Nesse sentido, escreveu o Presidente do Estado, Coronel Antonio
Pedro Alves de Barros, à Assembléia Legislativa de Mato Grosso:
Sabeis bem que a vida humana representa por toda
parte um capital precioso, confiado á guarda dos
governos e que esse capital sobe de preço n’aquelles
Estados, como o nosso, onde a população é escassa e o
seu augmento é difficil de conseguir por meio de
immigração.
Em taes condições, deixar perder o valor de uma
existencia que seja, pelo medo de onerar de mais os cofres
publicos, é, quando não um crime, pelo menos um erro
211
.
208
APMT. Relatório da Inspectoria de Hygiene Publica do Estado de Matto-Grosso,
1918, p. 11.
209
As causas de morte em lepra, na maioria dos doentes, são as mesmas do resto da
população em geral. Veja-se mais sobre esse assunto no Anexo I deste trabalho.
210
Sobre esses problemas sociais em Mato Grosso, relacionados às deficiências no campo
da Saúde Pública e às preocupações da elite e do poder instituído com a ameaça constante
representada pela lepra no Estado, cita-se aqui: APMT. Relatório do Departamento de
Saúde do Estado de Mato Grosso, para os anos de 1940 e 1944.
211
APMT, Mensagem do Presidente do Estado de Matto-Grosso (...) 1901, p. 19.
124
O citado Presidente de Estado era um grande defensor do direcionamento e
da aplicação de maiores recursos nos serviços de Saúde Pública em Mato Grosso.
Defendia a vida humana como um capital valioso, que não deveria ser esquecido
e nem descuidado pelo governo, pr incipalmente em Mato Grosso, onde era difícil
recompor as perdas desse tipo de capital.
Toda despeza feita em nome da hygiene é uma
economia; nada é mais dispendioso que a molestia, a não
ser a própria morte; para as sociedades não há
disperdicio mais ruinoso do que o da vida humana
212
.
Em seu discurso estava sempre presente a preocupação com a higiene e
com a criação de lazaretos ou hospitaes de isolamento para os atacados das
differentes molestias contagiosas. Defendia, ainda, já em 1901, a organização do
Departamento de Saúde do Estado: deveis habilitar o governo a, si não de uma só
vez, ao menos paulatinamente ir organisando o departamento da saude publica,
fato que irá se concretizar em Mato Grosso, como veremos no item seguinte,
apenas 37 anos mais tarde (1938).
Para Ítalo Tronca, a atmosfera alegórica que envolve as narrativas em
torno da lepra no Brasil assume um tom diferente daquele predominante nos EUA,
nas primeiras décadas do século XX. Enquanto lá os discursos científicos e
literários localizavam a doença no exterior, no estrangeiro, aqui, na primeira
metade do século XX, médicos e ficcionistas colocam em foco as populações
paupérrimas, perdidas nos grotões rurais: no interior de São Paulo, em Minas
Gerais, Nordeste, Goiás e em Mato Grosso. A lepra era tida como um mal que só
prosperava em ambientes de extrema carência, nos sertões longínquos e
esquecidos pela civilização
213
.
Ao analisar uma narrativa sobre as representações acerca da lepra e dos
leprosos em Mato Grosso, produzida em 1917 e intitulada Nos fundões de Mato
Grosso, Tronca afirma que por meio de certas linguagens acerca da lepra, como
sendo uma doença que prevalecia nos sertões carentes do país e que precisava de
uma grande atenção por parte do governo, deslocava-se, através de uma excessiva
212
Ibidem, p. 20.
213
TRONCA, Ítalo. As máscaras do medo: lepra e aids. 2000, p. 97.
125
propagação da moléstia, o olhar da sociedade dos problemas maiores que
deveriam ser enfrentados pelo poder instituído nos grandes centros urbanos, entre
os quais a tuberculose, que matava vinte vezes mais que a lepra nas cidades, as
péssimas condições de vida e de trabalho, a violência dos meios de controle sobre
a população e outros vários problemas sociais que envolviam e penalizavam a
maioria da população citadina no Brasil da primeira metade do século XX.
Embora surgissem como um risco, ainda que remoto, à
saúde pública, a lepra e suas vítimas prestavam-se
sobretudo a uma função politicamente metafórica,
manipulada para desviar a atenção das carências sociais
e da responsabilidade das elites dirigentes
214
.
Utilizados ou não como pretexto para desviar a atenção dos problemas
sociais brasileiros, a lepra e os leprosos, em Mato Grosso, estavam engendrados
naquelas carências sociais, faziam parte delas e, pode-se dizer também, que eram
resultado daquela situação de pobreza e desamparo social, na qual estava inserida
a maioria da população pobre do Estado, principalmente das localidades mais
afastadas da capital Cuiabá. Hoje, está comprovado que más condições de
moradia e alimentação deficiente são fatores importantes para a disseminação da
moléstia
215
.
A maioria dos leprosos do interior do Estado de Mato Grosso não tinha
acesso a qualquer tipo de atendimento hospitalar até o ano de 1941 (nem mesmo à
possibilidade do isolamento nosocomial), uma vez que o Hospital de São João dos
Lázaros localiza-se em Cuiabá e não tinha condições de receber uma quantidade
elevada de doentes, devido às suas exíguas e precárias instalações. Nos vários
documentos analisados para o desenvolvimento desta pesquisa, em nenhum
momento constatou-se a existência de mais de 50 leprosos isolados no referido
hospital. Veja-se como se encontrava o Hospital dos Lázaros, em 1929:
[...] informa em seu relatorio o Director da Saúde que
quando assumiu a chefia desse serviço, em 1927,
encontrou isolados no Hospital de São João dos Lazaros
apenas 23 doentes, e que, em 1929, esse numero se elevou
214
Ibidem, p. 97.
215
Maiores informações e esclarecimentos sobre estas questões, consultar o Anexo I deste
trabalho e o trabalho de MORAES, Maria Auxiliadora Maciel de. et. al. Relação entre
condições de vida e hanseníase. 1990.
126
a 50, realizando assim uma obra de prophylaxia, digna de
louvores e que lhe permitte affirmar ser hoje Cuiabá uma
das poucas capitaes de Estados ou talvez a única, com
todos os seus leprosos devida e rigorosamente isolados,
como exige a prophylaxia dessa enfermidade
216
.
Em contrapartida, na opinião da autoridade sanitária, a situação profilática
dos leprosos do interior do Estado era lastimável e preocupante:
No emtanto, fóra da Capital, affirma o Director de
Saúde, essa horrivel dermatose está se espalhando de
modo assustador, sendo seus principaes fócos
Rondonopolis, Caceres, Ladario e Poconé, onde os
doentes vivem em promiscuidade com as populações,
disseminando livremente o mal
217
.
Em 1937 - ano em que teve início a construção da Colônia de Leprosos de
São Julião - o Dr. Clineu da Costa Morães, Delegado de Saúde da circunscrição
sanitária de Campo Grande (região sul do Estado), alertava os Senhores
Representantes do povo mattogrossense que a lepra dia a dia se propagava pelo
sul do Estado. Segundo o referido Delegado de Saúde, todos os municípios e
todos os distritos já possuíam numerosos casos da doença. E
Sommam-se a essa grande legião dos já existentes, os
vindos de outros Estados, principalmente de São Paulo e
Minas e dos paizes visinhos especialmente do Paraguay.
Cada vez mais se torna ameaçador o surto de tal
endemia entre nós. Aqui, no sul, os clinicos que se
dedicam a esse problema, o nosso maior problema social,
calculam em mais de setecentos o numero de doentes e
cerca de duzentos de Corumbá, que serão beneficiados
com o Leprosario do Sul
218
.
Avaliar o número dos doentes em mais de 900, só na região sul do antigo
Estado de Mato Grosso, talvez fosse um exagero para se conseguir mais
rapidamente o início da construção da citada Colônia de Leprosos naquela região.
Entretanto, ao afirmar que a lepra representava um sério problema social em Mato
Grosso, a citação dá suporte às reflexões que vêm sendo desenvolvidas neste item,
216
APMT. Mensagem apresentada á Assembléa Legislativa, pelo Dr. Annibal Toleto, [...]
1929, p. 48.
217
Ibidem, p. 48.
127
acerca da existênc ia de uma correlação preocupante, no período em questão, entre
lepra e Saúde Pública, entre a moléstia e o estado de pobreza da maioria da
população mato-grossense. Um grande número de pessoas acometidas pela
doença demonstra que havia realmente uma grande disseminação da mesma entre
as camadas menos favorecidas da sociedade.
Após a organização do Censo da lepra em Mato Grosso (1938), o
Relatório do Departamento de Saúde, para o ano de 1940, apesar de apresentar
números mais tímidos (354 doentes fichados no sul do Estado) em relação a
previsão feita no ano de 1937, também confirmava a existência de um
considerável número de leprosos vagando pelas ruas e pelos arredores das cidades
e dos distritos do Estado. Naquele ano, o diretor do referido Departamento, o Dr.
Hélio Ponce de Arruda, previa que a Colônia de Leprosos de São Julião - a ser
inaugurada no ano seguinte (1941) - com capacidade para 300 doentes, já seria
insuficiente para as nossas necessidades, pois já temos
fichados, sem fazer o Censo na zona norte do Estado, 354
doentes, sendo provavel a existência de mais de 500
doentes em nosso Estado
219
.
Em suma, a problemática da lepra, como questão de Saúde Pública em
Mato Grosso, perdura por todo o período privilegiado neste trabalho. A doença
(bem como os seus portadores) apresentava-se como um sério e complicado
problema social para as autoridades governamentais. E, apesar de existir uma forte
correlação entre a moléstia e a pobreza: más condições de moradia, alimentação
deficiente, organismo debilitado pelas dificuldades e privações que sofriam as
camadas menos favorecidas da sociedade, as elites também não estavam livres da
ameaça que representava a doença, pois todos poderiam ser vítimas daquele mal,
terrível por ser contagioso e incurável e talvez ainda mais aterrorizante pelo
estigma da rejeição, que carregava consigo desde os tempos mais remotos.
218
APMT. Mensagem apresentada á Assembléa Legislativa, pelo Cap. Manoel Ary da
Silva Pires, [...], 1937, p. 46. (grifos meus).
219
APMT. Relatório do Departamento de Saúde do Estado de Mato Grosso, 1940, p. 18.
A população de Mato Grosso, pelo recenseamento geral de 1º de setembro de 1940,
somou um total de 432.265 habitantes em todo o Estado. Cf. CORRÊA FILHO, Virgílio.
História de Mato Grosso. 1994, pp. 637 - 638.
128
É oportuno destacar aqui, como ponto de reflexão, uma prática de
isolamento efetivada no ano de 1938, no 6º Distrito Sanitário de Guajará-Mirim
(interior do Estado de Mato Grosso), pelo chefe do posto de higiene:
Foram identificados numerosos fócos de Lepra
moradores à margem do rio Guaporé. Conforme
determinação desse Departamento, irei reunil-os em uma
ilha no rio Guaporé, juntamente com os quatro existentes
nesta cidade, até a conclusão do leprosário de Cuyabá. Só
assim poderemos evitar a disseminação do mal, que vae
em proporção espantosa
220
.
A citação acima reativa na memória os escritos sobre o leprosário de
Molokai (construído na península de Kalawao - Havaí do século XIX), utilizados
no primeiro capítulo deste trabalho, com base nas reflexões de Ítalo Tronca, para
clarear as discussões desenvolvidas acerca da associação entre lepra e luxúria.
Neste capítulo, o paralelo com aquela narrativa ajuda a elucidar as medidas
profiláticas de isolamento - colocadas em prática em relação aos leprosos no
Estado de Mato Grosso - e a suas fortes ligações com um imaginário passado, mas
que permanece, que retorna o tempo todo no período privilegiado para as análises
desenvolvidas neste trabalho.
Cercada por montanhas, penhascos e águas coloridas de topázio azul, a
ilha-leprosário de Molokai, segundo Tronca, foi transformada num lugar de exílio
sem retorno, onde os leprosos ou suspeitos de contaminação eram abandonados à
própria sorte. Ali viveram personagens emblemáticas - reais ou literárias - que
marcaram a história da doença na época contemporânea. A atitude da autoridade
sanitária em Mato Grosso (1938), ao isolar os leprosos numa ilha do rio Guaporé,
expressa o medo, os preconceitos, o estigma e necessidade premente de se livrar a
sociedade do perigo que representava a doença no Estado. Representações e
práticas sociais da primeira metade do século XX que permitem fazer um
impressionante paralelo, até mesmo através do local escolhido para o isolamento
(uma ilha), com as práticas de isolamento executadas no século XIX, num local
tão distante do interior de Mato Grosso. Porém, uma distância encurtada por um
220
APMT. Relatório Apresentado pelo Dr. Virgílio Alves Corrêa Neto, Diretor Geral do
Departamento de Saúde. 1938, s/p (anexos).
129
imaginário de longa duração, que dissolve o tempo e os lugares convencionais da
história, unindo-os numa concepção circular, marcada por um eterno retorno
221
.
Isolar os leprosos para proteger a sociedade do contágio. Esse era o lema
defendido pelas elites dirigentes que viveram em Mato Grosso no período em
questão. E as formas de isolamento vão assumir características distintas no Estado
a partir da década de 1930, mais especificamente, com a Reforma dos serviços de
saúde em Mato Grosso, incorporada e transformada em Lei Sanitária com a
elaboração e aprovação do Regulamento Sanitário de 1938. São essas questões
que serão desenvolvidas no próximo item deste capítulo.
221
TRONCA, Ítalo. op. cit., pp. 99-100.
130
2. O Regulamento Sanitário de 1938: a institucionalização das
formas de isolamento para os leprosos em Mato Grosso
Serão sujeitos a isolamento
obrigatórios: a) - os casos
confirmados de lepra pela
autoridade sanitária considerados
como contagiosos, compreendidos
os doentes que eliminem bacilos;
b) - os casos que, sob vigilancia ou
isolados em domicilio, não
ofereçam, por suas condições de
vida, ou por insubmissão as
medidas sanitárias impostas,
garantias e segurança para a
saúde coletiva.
O isolamento deverá ser feito:
a) - em estabelecimentos
nosocomiais; b) - em domicilio.
Regulamento Sanitário[...],
1938, Arts. 144-145.
É evidente que a crença no
contágio traz com ela a defesa das
medidas que devem ser tomadas
para prevenir a disseminação da
doença. A resposta clássica ao
contágio é isolar aqueles que
pegaram a doença. Isso era
verdadeiro nos tempos antigos
com os leprosos (continuou
verdadeiro na época
contemporânea) [...].
Ítalo A. Tronca
Como já exposto no segundo capítulo, os primeiros leprosários surgiram
no Brasil ainda no século XVIII, porém em apenas três das principais cidades
brasileiras: Rio de Janeiro, Salvador e Recife. No primeiro quartel do século XIX,
131
as autoridades governamentais empenharam-se em construir leprosários em outras
cidades brasileiras, destacando-se, naquele contexto, a inauguração do Hospital de
São João dos Lázaros de Cuiabá, no ano de 1816.
Segundo Santos Filho, o número de leprosários era bastante reduzido para
a grande extensão territorial brasileira e também para a quantidade elevada de
leprosos que deveriam ser segregados naqueles estabelecimentos. Portanto, a
maioria dos doentes sobrevivia vagando pelas ruas e pelos arredores das cidades e
vilas, pedindo esmolas e valendo-se da caridade pública. No Brasil do século
XVIII e do XIX, os lazaretos pouco cumpriram da sua função profilática de isolar
os leprosos e, com isso, também falharam na função de defender a sociedade do
contágio e da disseminação da lepra.
Ineficazes, até no intento de confinação falharam os
lazaretos. Exíguo foi o número de isolados, permanecendo
a maioria esmolando pelas estradas no mais constritador
dos espetáculos, sem teto e sem amparo de qualquer
espécie
222
.
No Brasil, a partir de 1910, a lepra começava a desvincular-se da esfera da
Igreja Católica e das instituições de caridade
223
. Como já exposto no capítulo
anterior, em 1911, a moléstia foi tornada de notificação compulsória e, a partir
daquele momento, seria, paulatinamente, assumida pelo governo federal em
parceria com os estados da federação. Em São Paulo - estado considerado como
de vanguarda da nação - esse processo culminou, como já visto, na criação da
Inspetoria de Profilaxia da Lepra, pela Reforma Sanitária estadual de 1925.
Em Mato Grosso, como será analisado mais adiante, a Reforma Sanitária
estadual somente veio a se concretizar em 1938, e o Serviço de Profilaxia da
Lepra só foi instituído em 1940, quinze anos depois da criação da Inspetoria de
Profilaxia da Lepra do Estado de São Paulo. Devido a construção da Colônia de
Leprosos de São Julião (iniciada em 1937 e concluída em 1941), fazia-se
necessário, inclusive para garantir o recebimento de verbas federais, a criação do
Serviço de profilaxia da lepra em Mato Grosso.
Considerando que se acha em instalação a
Colônia Agrícola de Campo-Grande, destinada ao
222
SANTOS FILHO, Lycurgo. História geral da medicina brasileira. v. I, 1991, p. 256.
223
TRONCA, Ítalo. op. cit., p. 99.
132
internamento dos leprosos do Estado, construída pelo
Govêrno da União, com doação, por parte do município
de Campo-Grande, da área julgada precisa;
Fica instituído o Serviço de Profilaxia da Lepra,
com autonomia técnica e administrativa, subordinada à
Diretoria Geral do Departamento de Saúde
224
.
A partir de meados da década de 1910, considerando os novos rumos das
políticas de saneamento no Brasil, o governo federal começou a perceber que era
problemático para as entidades filantrópicas assumirem sozinhas os custos da
assistência aos leprosos, necessitando sua incorporação como atividade estatal.
Esta permitiria a obtenção de maiores recursos destinados à profilaxia da lepra:
construção de colônias, asilos e instalação de leprosários regionais modelos e
abriria, também, a possibilidade de contrair empréstimos para esse fim. Em 1926,
a lei n.º 2.169 estabeleceu as medidas destinadas à profilaxia da lepra no país.
Essa lei determinava a elevação ao dobro do imposto sobre consumo da
aguardente, imposto esse que serviria para aumentar a arrecadação, objetivando
cobrir o serviço de juros e amortização de empréstimos que seriam direcionados à
profilaxia da lepra
225
.
O Estado assumiria a profilaxia da lepra, mas quem continuaria pagando
por ela seria a sociedade civil, pois a maioria das responsabilidades e despesas
foram repassadas a particulares, como auxílios e subvenções, sob a justificativa de
uma necessária "descentralização" de poderes. Essa política do governo deu
origem a movimentos civis que congregavam
médicos e leigos, basicamente, e mulheres que se dedicam
à filantropia, em associações ou ligas. Estas ligas (contra
a lepra e tuberculose, e de proteção à infância), servindo-
se da divulgação e propaganda, arrecadam recursos da
população em geral, criam taxas de contribuição, buscam
auxílios governamentais fundando sanatórios, leprosários
ou casas de proteção aos órfãos
226
.
É nesse quadro mais geral que Mato Grosso se inseria quando, em 1924,
como já exposto no capítulo anterior, criava-se a Comissão Feminina Pró-Lázaros
224
APMT. Diário Oficial - Estado de Mato Grosso. Decreto-Lei n.º 379, de 4 de
dezembro de 1940, Art. 1.
225
IYDA, Massako. op. cit., 1994, p. 63.
226
Ibidem, p. 61.
133
para - valendo-se da caridade pública - encaminhar as obras de reconstrução que
culminaram na reinauguração do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá,
naquele mesmo ano.
O início da década de 1930 foi marcado pela perda da hegemonia dos
estados brasileiros que eram grandes produtores de café. Após a Revolução de 30,
e diante da crise econô mica e política que vivia o país, inaugurava-se uma nova
etapa da sociedade brasileira, que se caracterizaria pela centralização do poder,
onde o governo federal ampliaria sua área de atuação e controle, inclusive nas
questões de saúde
227
.
A partir da década de 1930, a Saúde Pública ocupa um maior espaço
institucional e, por fortes pressões dos intelectuais e militares, ampliam-se os
serviços já existentes e criam-se novos campos de atuação para as campanhas
sanitárias no Brasil. Esta pressão resulta, também, na criação, em 1931, do
Ministério da Educação e Saúde, como resultado de um dos raros esforços do
Legislativo para reformar a administração. A Constituição de 1934, dispensou
especial carinho à Saúde Pública, dando-lhe uma considerável importância como
campo de responsabilidade do governo
228
.
A partir de 1938, quando se estabelece uma organização federal padrão
para os serviços estaduais de saúde, que os centros de saúde passaram a ser
implantados como órgãos polivalentes e distritais, executando atividades de
controle de doenças transmissíveis agudas: lepra, tuberculose, doenças venéreas,
etc. Os centros de saúde também estariam responsáveis pela proteção médico-
sanitária da gestante e da criança, pelo saneamento e polícia sanitária das
habitações, da higiene, do trabalho e da alimentação e exames periódicos de
saúde, destinando-se, para tal fim, no mínimo 5 médicos e 5 enfermeiras ou
visitadoras. As unidades que executavam as mesmas atividades em escala menor,
com menor número de pessoal, eram classificadas como postos de higiene (PH).
A ausência de visitadora sanitária relegava o posto à categoria de sobposto (SP).
227
Ibidem, p. 54.
228
Ibidem, p. 59.
134
Os postos especializados (PE) destinavam-se a uma atividade específica (bouba,
tracoma), e os postos itinerantes (PI) eram móveis e independentes das unidades
229
.
As autoridades governamentais e sanitárias mato-grossenses, a partir do
ano de 1938, passaram a seguir de perto os parâmetros ditados pela nova
organização federal padrão, para a reorganização dos serviços sanitários estaduais.
Iniciou-se no Estado a chamada Reforma Sanitária Júlio Múller
230
que - através do
seu Regulamento Sanitário - reorganizou, pelo menos teoricamente, os serviços
sanitários do Estado de Mato Grosso, estabelecendo normas oficiais rígidas para
a segregação e para o isolamento social dos doentes acometidos pela lepra.
O acontecimento de maior vulto no ano 1938 e que
fala eloquentemente da larga e patriotica visão da atual
Intervenção Federal foi o início de execução da reforma
sanitária. Disse e repito "início", pois obra de tamanho
vulto e tão grande alcance social e econômico não se
materialisa em exíguo espaço de tempo de doze mezes
231
.
A Reforma Sanitária Júlio Müller foi uma clara demonstração de que o
Interventor Federal em Mato Grosso estava sintonizado com as reformas
sanitárias federais, e que os auspícios de centralização do poder - inserindo, nessa
política nacional, as questões relacionadas à Saúde Pública - não encontrariam
resistência alguma no Estado, pelo contrário estavam sendo perfeitamente
acatados pelo representante estadual do governo federal: o Interventor Júlio
Strubing Müller.
Seguindo a conjuntura nacional, centralizadora, populista, autoritária e de
tom ufanista, o referido Interventor federal criou um corpo de normas sanitárias a
serem exigidas da população mato-grossense, expressas no Regulamento Sanitário
de 1938, que dificilmente seria posto em prática, num Estado sem o mínimo de
estrutura e com recursos financeiros tão minguados para fazer valer, na prática as
exigências sanitárias legais, expressas no dito Regulamento. Nesse sentido, torna-
se interessante analisar o que o Regulamento Sanitário de 1938 traziam de novo
229
Ibidem, p. 66.
230
Júlio Strubing Müller foi Interventor Federal em Mato Grosso durante todo o período
denominado Estado Novo. Assumiu o governo do Estado em 1937 e saiu apenas no dia
08 de novembro de 1945.
231
APMT. Relatório Apresentado Pelo Dr. Virgílio Alves Corrêa Neto, Diretor Geral do
Departamento de Saúde do Estado de Mato Grosso, 1938, p. 2.
135
com relação ao isolamento dos leprosos como medida profilática em Mato Grosso
e, melhor, até que ponto aquela lei sanitária teria condições práticas de ser
executada, num Estado com tantas deficiências na área da Saúde Pública: falta de
pessoal qualificado, estrutura física deficiente, vencimentos incompatíveis, que
empurravam os poucos médicos para as clínicas particulares, etc.
De um modo geral as atividades dos postos de
Higiene ainda são pouco satisfatórias.
Com raras exceções a maior deficiência reside no
fator pessoal, em vista dos médicos, seduzidos pela clínica
particular [...] Tecnicamente os Serviços de Saúde são
incompatíveis com a clínica.
O regimen do tempo integral com vencimentos
compensadores é, certamente, o único compatível com
uma organização sanitária perfeita.
Mas, Senhor secretário, não é para a perfeição que
eu tenho os olhos, quando venho prestar contas das
atividades do nossos Postos de Higiene. A vastidão dos
nossos problemas e o volume das nossas rendas, alijam-
na para o terreno da utopia
232
.
O Regulamento Sanitário de 1938, em seu artigo 1º, transformava a antiga
Diretoria de Saúde Pública no Departamento de Saúde do Estado de Mato Grosso,
subordinado à Secretaria Geral do Estado e que concentrava a administração,
coordenação e execução de todas as atividades relativas à saúde pública em Mato
Grosso. O Departamento de Saúde também teria sob seu encargo a organização
dos centros de estudos e de profilaxia especifica da malária, da lepra e da doença
de chagas
233
.
No que concerne à profilaxia da lepra, o Regulamento Sanitário do Estado
de Mato Grosso contava com vários artigos e dezenas de parágrafos que tratavam
especificamente da identificação, da notificação obrigatória e do isolamento
compulsório dos leprosos como medida profilática no Estado de Mato Grosso.
O processo de identificação do leproso poderia ser levado a cabo através
de caso confirmado por exame de laboratório, quando, mesmo sem apresentar
sintomas evidentes, a pessoa fosse considerada portadora do bacilo da lepra; ou
pelo fato de o suposto doente apresentar sintomas característicos da enfermidade,
232
APMT. Relatório do Departamento de Saúde do Estado de Mato Grosso, 1940, pp. 65-
66.
136
ainda que os exames tivessem resultado negativo
234
. Uma vez identificado como
portador do Bacilo de Hansen ou apenas como suspeito leproso, o indivíduo
deveria ser obrigatoriamente notificado à autoridade sanitária.
É obrigatória a notificação, tão precoce quanto
possível, dos casos confirmados ou suspeitos das seguintes
doenças: Lepra e várias outras doenças transmissíveis.
O médico que atender a um caso suspeito ou
confirmado de doença transmissível de notificação
compulsória deverá, desde o começo, estabelecer o
isolamento no proprio domicilio, antes mesmo de ter
notificado o caso à autoridade sanitária
235
.
As preocupações com a lepra assumiam uma importância ímpar dentre as
demais doenças transmissíveis de notificação compulsória em Mato Grosso, no
período em questão. Nota-se, analisando citação acima, a ênfase que é dada à
doença em detrimento das várias outras doenças transmissíveis, as quais nem os
nomes são mencionados no documento oficial.
Estavam obrigatoriamente incumbidos de fazer a notificação compulsória
das doenças transmissíveis: o médico que tinha examinado o caso; na falta deste o
chefe da família ou parente mais proximo que residir com o doente ou suspeito, e
depois ao enfermeiro ou qualquer pessoa que acompanhe o doente ou dele esteja
encarregado
236
.
Os diretores ou responsáveis pelos estabelecimentos comerciais,
indústrias, colégios, asilos, creches, policlínicas, etc. também estavam obrigados a
fazerem a notificação. A obrigação se estendia ainda ao farmacêutico ou droguista
que fornecesse medicamentos específicos para doença de notificação compulsória
e aos responsáveis por laboratórios particulares que obtivessem resultados
positivos em exames daquelas enfermidades. As notificações deveriam ser feitas
por escrito, ou por meio mais rápido, à autoridade sanitária; deveriam indicar o
nome completo do doente ou suspeito, idade, sexo, local de residência e a quanto
tempo estava acometido pela doença
237
.
233
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 1º.
234
Ibidem, Art. 140.
235
Ibidem, Art. 20.
236
Ibidem, Art. 80.
237
Ibidem, Art. 80.
137
Feita a notificação obrigatória do doente ou suspeito de ser portador de
doença transmissível, o processo deveria ser averiguado por um especialista do
serviço sanitário,
fincando o doente desde logo sob vigilancia em seu
domicilio e sendo convidado si necessário, a comparecer
ao serviço, a fim que sejam completados o competente
registro e os exames que poderão ser assistidos pelo
médico de sua confiança
238
.
A vigilância e a perseguição estavam presentes em todo o tecido social, e a
desobediência às normas estabelecidas estava sujeita à coerção e às penalidades
previstas no Regulamento Sanitário. A chamada autoridade sanitária aparecia
revertida de um imenso poder de polícia, vigilância, coerção e de aplicação das
sanções e penalidades diversas.
Será passivel de multa aquele que, sendo a isso
obrigado deixar de fazer a notificação ou quem fornecer
indicação falsa ou incompleta, que embarace à autoridade
sanitária a descoberta dos doentes, salvo si houver
demonstração cabal de não ter havido má fé
239
.
Em caso de remoção do doente afetado ou suspeito de estar acometido por
doença de notificação compulsória de uma casa para outra ou - em casas de
habitação coletiva - de um cômodo para outro, sem prévia autorização da
autoridade sanitária, os chefes das famílias ou os responsáveis pelas residências
onde houvesse a remoção do doente estariam sujeitos à multas. Se a remoção
clandestina acontecesse com a autorização ou com o conhecimento do médico
assistente, a ele caberiam as penalidades estabelecidas no Regulamento
240
.
As pessoas sob vigilância (doentes ou suspeitas de serem portadoras
moléstias transmissíveis), que conseguissem permissão da autoridade sanitária
para mudarem-se ou ausentarem-se de suas residências, deveriam fornecer ao
funcionário encarregado da referida vigilância, indicações precisas acerca do seu
novo destino, estando sujeitas à multas caso não o fizessem
241
.
238
Ibidem, Art. 142.
239
Ibidem, Art. 80, § 2º.
240
Ibidem, Art. 80, § 4º e 5º.
241
Ibidem. Art. 94.
138
As limitações não paravam por aí: nenhuma pessoa poderia, sem prévia
autorização da autoridade sanitária, guardar, emprestar, dar ou transportar
quaisquer objetos, utensílios ou roupas que tivessem servido ou sido usados pelo
doente considerado contagiante. O lançamento de dejetos, excrementos e águas de
lavagens provenientes de pessoas portadoras ou suspeitas de doença contagiosa
somente poderia ser feito em latrinas, depois do tratamento indicado em
instruções técnicas
242
.
O caráter arbitrário e autoritário do Regulamento Sanitário de 1938
reporta-nos às reflexões de Michel Foucault, sobre a medicina urbana, com seus
métodos de vigilância, de hospitalização, etc., aperfeiçoada na Europa, na
segunda metade do século XVIII, do esquema político-médico da quarentena que
tinha sido realizado no final da Idade Média, nos séculos XVI e XVII. Só que a
medicina não expulsaria, não excluiria mais, controlaria.
O poder político da medicina consiste em distribuir os
indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-
los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de
cada um, ver se está vivo ou morto e fixa, assim, a
sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido,
inspecionado, percorrido por um olhar permanente e
controlado por um registro, tanto quanto possível
completo, de todos os fenômenos
243
.
Caso fosse constatado, através dos exames, que o indivíduo era realmente
portador de doença transmissível, seria feito o registro do doente em livro
especialmente destinado para esse fim. Esse registro poderia ser feito em caráter
confidencial, sempre que o doente assim o desejasse e, nestas circunstâncias,
seriam inscritos na ficha apenas as iniciais do seu nome, porém, no livro supra
mencionado, o nome deveria constar por extenso. Nas fichas de registros estariam
consignados todos os dados clínic os, epidemiológicos e o resultado dos exames de
laboratório; e, por último, seriam enviadas cópias dessas fichas às seções técnicas
e ao estabelecimento hospitalar onde deveria ser internado ou (em caso de lepra)
isolado o doente
244
.
242
Ibidem, Arts. 92 e 93.
243
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: ______ Microfísica do
poder. 1979, p. 89.
244
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 142.
139
Vale ressaltar, ainda, que para o reconhecimento dos casos de lepra,
poderiam ser empregados e utilizados outros meios (além daqueles já relacionados
acima), desde que fossem considerados necessários e idoneos pela autoridade
sanitária, como, por exemplo, o exame sistemático e periódico das pessoas
consideradas comunicantes
245
dos leprosos.
A autoridade sanitária procurará para êsse fim
interessar todas organizações [públicas] ou privadas que
possam vir a ter conhecimento de casos novos, solicitando
a cooperação dos médicos encarregados, das inspeções de
saúde nas repartições públicas, corporações armadas,
escolas, associações desportivas, estabelecimentos
comerciais, industriais e quaisquer outros de natureza
coletiva e incentivando a pratica dos exames médicos
periodicos
246
.
Nos casos confirmados de lepra, o portador da moléstia seria segregado do
convívio com as pessoas sadias. O isolamento dos leprosos poderia ser feito em
hospitais de isolamento social ou em domicílios particulares. Neste último caso, o
isolamento somente seria permitido com a anuência da autoridade sanitária
competente e quando houvesse segurança com relação ao cumprimento rigoroso
das medidas impostas, através de uma possivel vigilancia assidua e eficaz
247
.
No domicílio em que se effectuar isolamento, a
autoridade sanitária affixará, em local visivel, cartaz que
instrúa o publico sob a existência e contagio da molestia e
prohiba o accesso a qualquer pessôa não encarregada do
doente ou do serviço.
A autoridade sanitaria poderá colocar no
domicilio vigilante permanente
248
.
Identificar, com cartaz ou outro aviso bem visivel, a residência que
estivesse servindo como local de isolamento para pessoas portadoras de moléstias
transmissíveis era exigência das autoridades sanitárias desde de 1936, com
respaldo no Regulamento da Saúde Pública do Estado de Mato Grosso para aquele
245
Eram consideradas comunicantes todas as pessoas que convivessem ou tivessem
convivido com os doentes de lepra. Cf. APMT. Regulamento Sanitário do Estado de
Mato Grosso, 1938, Art. 140.
246
Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 143.
247
Ibidem, Arts. 145-146.
248
APMT. Gazeta Official - Estado de Matto-Grosso - Regulamento da Saúde Publica de
Estado, 1936, Art. 187.
140
ano. Essa forma de expor o portador de doença contagiosa - principalmente o
leproso - e seus familiares à execração pública, foi reforçada com a Reforma
Sanitária Júlio Múller, através do Regulamento Sanitário de 1938
249
.
Pode-se verificar, nas citações acima, a presença de representações e
práticas sociais direcionadas aos leprosos em Mato Grosso, no período aqui
analisado, que têm suas raízes cravadas na Europa Ocidental, em plena Idade
Média. Colocar avisos nas casas onde estivessem isolados os portadores de
doenças contagiosas, para que os sadios não se aproximassem, assemelhava -se a
certos comportamentos medievais, onde a sociedade (instruída pela Igreja
Católica) exigia que os leprosos usassem trajes característicos para identificarem-
se enquanto tal, que anunciassem sua aproximação por meio de uma matraca, de
uma corneta, de um badalo de sino, etc. para que os sadios pudessem se
resguardar
250
.
O forte estigma em relação à lepra não atingia somente o leproso, mas
também seus familiares e demais pessoas que tivessem alguma relação
de
proximidade com o doente. Após identificado como portador da moléstia, o
leproso e todos aqueles que estavam ao seu redor passariam à condição de
suspeitos, seriam considerados perigosos para a sociedade sadia. A partir de
então, deveriam ter seus passos e atitudes vigiados e controlados pelo poder
disciplinar confiado, pelo poder instituído, à autoridade sanitária. Lembrando,
novamente, das reflexões de Miche l Foucault, agora acerca da disciplina:
A disciplina é uma técnica de poder que implica
uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não
basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram, é
conforme à regra. É preciso vigiá-los durante todo o
tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua
pirâmide de olhares
251
.
249
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 23.
250
Sobre estas questões, consultar os trabalhos de ROSEN, George. Uma história da
saúde pública. 1994, p. 60. e ANTUNES, José Leopoldo F. Hospital: instituição e
história social. 1991, pp. 80-81.
251
FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. In: ______ Microfísica do poder.
1979, p. 106.
141
O isolamento domiciliar só seria permitido em prédio que não fosse de
habitação coletiva, de comércio ou de indústria; e o leproso estaria obrigado a
cumprir uma lista enorme de exigências prescritas pela autoridade sanitária:
a) alojar-se em compartimento separado providos de
dormitórios, refeitórios e instalações sanitárias,
defendidos das moscas e culicidios pela proteção
adquada das aberturas para o exterior ou para
dependencias destinadas a habitação de pessoas
sãms;
b) - manter rigoroso asseios nos aposentos;
c) - nunca deixar expostas as lesões ulcerosas e
incinerar o material usado nos curativos;
d) - fazer a desinfecção concorrente das excreções e
dejeções e respectivos recipientes;
e) - dispor de utensilios próprios e só deles se servir;
f)
- ter para uso próprio e exclusivo roupas de corpo,
cama e mesa, as quais devem ser conservadas em
local apropriado, protegidas e submetidas, depois de
usadas a práticas eficientes de desinfecção;
g) - submeter a tratamento sistemático, orientado por
médico especialista;
h) - ter, quando necessário, a juizo da autoridade
sanitária, enfermeiro ou empregado domestico
privativo;
i) - afastar do domicilio as crianças e menores de vinte e
um anos e reduzir ao minimo o contacto com pessoas
sans, de acordo com instruções da autoridade
sanitária;
j) - não receber visitas sem prévio consentimento da
autoridade sanitária;
k) - não frenquentar lugares públicos ou residencias
particulares, ausentando-se do domicilio somente com
licença especial da autoridade sanitária;
l) - não exercer profissão ou oficio que a juizo da
autoridade sanitária o ponha em contacto direto ou
indireto com pessoas sans;
m) - não mudar de residencia nem se ausentar da
localidade sem prévia licença e guia especial da
autoridade sanitária;
n) - submeter-se a exames periódicos e as demais
determinações da autoridade sanitária
252
.
Analisando a citação acima, chega-se facilmente a conclusão de que os
leprosos pobres jamais ficariam isolados em seus domicílios. A falta de condições
252
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 146.
142
materiais não permitia que pessoas das camadas menos favorecidas da sociedade
tivessem acesso a imóveis com cômodos particulares e estruturados para garantir
o isolamento do doente em relação aos demais moradores. Nesse sentido, seria
quase impossível, por exemplo, que o doente pobre e seus familiares cumprissem
as exigências do item "a" do referido artigo. A maioria dos outros itens,
relacionados na escala de exigências profundamente arbitrárias e repressoras do
Regulamento Sanitário, também estava muito acima das possibilidades da
população cuiabana pobre e, principalmente, do interior do Estado que, em sua
maioria, era desprovida de recursos próprios e esquecida pelo poder público.
Julgo de grande eficiência a criação de postos de
higiene itinerantes com o fim de socorrer as populações
do interior, minadas pelas mais variadas endemias cujas
causas são: defeito de educação e estado de sub-nutrição
profunda, devido a um regime alimentar deficiente; e
minguados recursos financeiros, o que nos obriga a olhar
com maior atenção para sua sorte.
Outro problema é o da assistencia médica que em
Cuiabá se faz de modo relativamente escasso. Apenas a
sala de banco da Santa Casa de Misericórdia presta
assistencia médica, contudo de modo deficiente porque
não fornece os medicamentos
253
.
Os escassos recursos financeiros mantinham a maioria da população de
Mato Grosso alijada da assistência médica, do acesso aos medicamentos e das
mais elementares condições de saúde e de higiene. Sobreviviam com uma
alimentação mínima e deficiente e em condições deploráveis de vida. Pergunta-se
aqui: Como essa população poderia cumprir as exigências impostas pelo
Regulamento Sanitário, no que concerne ao isolamento domiciliar? E pior, como
conseguiria pagar as multas cobradas pelo não cumprimento das normas
estabelecidas pela a autoridade sanitária? Em suma, o isolamento domiciliar em
Mato Grosso tornava-se uma prerrogativa da elite; aos leprosos pobres restava
apenas o isolamento hospitalar ou - na maioria das vezes - o não cumprimento das
normas impostas pelo Regulamento Sanitário e cobradas pela autoridade sanitária.
As próprias autoridades sanitárias do Estado de Mato Grosso assumiam
que a maioria da população não estava preparada, e nem tinha condições
253
APMT. Relatório do Departamento de Saúde do Estado de Mato Grosso, 1940, p.64.
143
materiais, para cumprir a risca o Regulamento Sanitário. Deste modo, a lei
sanitária não poderia ser aplicada integralmente. Assim escreveu o Engenheiro
Sanitarista, Dr. Orlando Nigro:
Não o apliquei, integralmente, [o Regulamento
Sanitário] devido não estar o povo preparado para
receber e cumprir a lei, como déve ser cumprida.
Nêste ano diminuímos o serviço de intimações
devido termos no ano passado expedido 705 dos quais
sómente umas 300 foram cumpridas
254
.
Segundo o Regulamento Sanitário de 1938, o isolamento hospitalar em
mato Grosso, poderia ser feito em sanatórios, em hospitais-colônias e em asilos.
Esses estabelecimentos de isolamento receberiam, preferencialmente, os doentes
domiciliados no Estado ou nos municípios onde fossem construídos. E a
instalação dos mesmos deveria levar em conta sua localização conveniente (para
que o poder público pudesse exercer uma fiscalização assídua), o baixo valor dos
gastos com a
sua construção, as facilidades de manutenção, o número e as condições sociais dos
leprosos a serem isolados e, em última instância, as possibilidades e facilidades de
aproveitamento do trabalho dos internos nas profissões a serem desempenhadas
no nosocômio
255
.
O aproveitamento do trabalho dos próprios internos, no desempenho das
atividades de manutenção do estabelecimento para isola mento de pessoas
acometidas pela lepra, talvez fosse o item considerado mais importante pelas
autoridades governamentais antes da construção dos mesmos. Sendo a lepra uma
doença contagiosa e incurável, seria complicado conseguir e manter pessoas
sadias trabalhando naqueles hospitais, pois o medo do contágio impedia que os
indivíduos aceitassem tais ocupações, ainda que os rendimentos fossem
compensativos. Para o governo, a execução dos trabalhos nos hospitais pelos
próprios leprosos isolados era bastante interessante, além de significativamente
econômico: gastava-se menos, pagando salários inferiores aos que seriam pagos às
pessoas sãs (estas tinham direito a gratificações pelo contato direto ou indireto
254
Ibidem, pp. 51-52.
255
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 149.
144
com os leprosos) e mantinha-se os doentes ocupados, para que não pensassem em
fugas constantes.
Na administração dos leprosários o numero de
pessoas sãs será limitado ao estritamente indispensavel,
devendo nêles serem empregados tanto quanto possivel, os
próprios doentes.
Os funcionários obrigados ao contácto prolongado
com os doentes de lepra receberão uma gratificação de
50% sôbre os vencimentos correspondendes aos dos
demais funcionários de igual categoria e os que tiverem
menor contacto, 25%
256
.
Hospitais-colônias, sanatórios e asilos teriam finalidades diferenciadas, no
que diz respeito ao isolamento dos leprosos em Mato Grosso no período em
questão. Os sanatórios poderiam ser adotados, como medida profilática, para o
isolamento de um número reduzido de doentes, ou seja, estaria destinado ao
atendimento de pequenos focos locais de lepra; ou poderiam também ser
instalados próximos de um hospital-colônia, para neles serem isolados aqueles
leprosos que estivessem em melhores condições de saúde, aqueles nos quais a
doença ainda não tinha atingido um estado crítico e muito avançado. Seria
permitido, ainda, a criação de sanatórios especiais, para doentes contribuintes, os
quais seriam preferencialmente mantidos por particulares, mas submetidos à
fiscalização das autoridades sanitárias
257
.
Os Hospitais-colônias deveriam ser construídos em áreas grandes o
suficiente para permitir o estabelecimento de uma vila de leprosos, com anexos e
dependências necessários à administração e à sobrevivência dos doentes: casas,
pavilhões, dormitórios, enfermarias, preventório, asilo, local de reclusão para
loucos, criminosos e indisciplinados, veículos para transporte dos doentes, etc.; e
deveriam contar, ainda, com terrenos destinados à plantação de gêneros
alimentícios e até à criação de pequenos animais domésticos, para ocupação e
ajuda na manutenção dos doentes isolados. A exemplo dos sanatórios, nos
hospitais-colônias também haveria
256
APMT. Diário Oficial - Estado de Mato Grosso. Decreto-Lei N.º 379, de 4 de
dezembro de 1940. Institúe o Serviço de Profilaxia da Lepra. 1940, Arts. 22 e 30.
257
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 150.
145
acomodações especiais para contribuintes e será
permitido aos doentes construirem, a espensas próprias,
dentro da respectiva área, habitação particular, desde que
obdeçam às condições regulamentares
258
.
O isolamento hospitalar, para aquelas pessoas que tinham melhores
condições financeiras, poderia se tornar bem menos traumatizante e até certo
ponto confortável. Caso fossem isolados em sanatórios na condição de
contribuintes, ficariam em acomodações especiais, valendo-se de prerrogativas
que os leprosos pobres ou indigentes (que não podiam contribuir com a
manutenção do estabelecimento) jamais teriam acesso. Nos Hospitais-colônias,
onde a área reservada ao estabelecimento deveria ser mais ampla, além das
acomodações especiais, estaria facultado aqueles que tivessem condições
financeiras, a construção de residência particular, de acordo com as suas
possibilidades materiais e desejo de maior conforto e individualidade.
Os asilos para isolamento de leprosos poderiam ser instalados separados
ou anexos aos hospitais-colônias. Estariam destinados exclusivamente à
internação de doentes já inválidos, devido ao estágio avançado da moléstia em
seus corpos
259
. Representavam a parte mais triste e agonizante das tentativas de
profilaxia da lepra, através da segregação e do isolamento social dos leprosos.
Enquanto que os sanatórios estavam destinados a receber os doentes em estágio
inicial da doença, os asilos deveriam isolar aqueles leprosos já com a enfermidade
em estado avançado, funcionando, estes últimos, como um local de grande
sofrimento e solidão, uma antecâmara da morte.
Até o ano de 1941, o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá foi o
único nosocômio destinado ao isolamento de leprosos em Mato Grosso. Os três
diferentes tipos diferentes de estabelecimentos supra referidos: sanatórios, asilos e
hospitais-colônias representaram, até aquele período, apenas escritos e promessas
das autoridades governamentais e sanitárias, formalidades que nem se quer
chegaram a sair das páginas dedicadas aos vários artigos contidos no Regulamento
Sanitário do Estado de Mato Grosso, para o ano de 1938. Apenas no ano de 1941,
que o governo Júlio Müller inaugurou a colônia de Leprosos de São Julião, um
258
Ibidem, Art. 151.
259
Ibidem, Art. 152.
146
estabelecimento de isolamento para leprosos que teria características aproximadas
do tão propagado hospital-colônia
260
.
A convivência e as relações desenvolvidas no interior dos hospitais-
colônias seriam determinadas e organizadas pelos diretores dos mesmos, seguindo
um regimento interno, expedido pela seção técnica e respeitando as disposições do
Regulamento Sanitário. Uma vez isolados, os leprosos seriam destituídos de todos
os seus direitos civis, ficando a mercê da administração do estabelecimento e da
autoridade sanitária competente. As normas e regras preestabelecidas deveriam
ser rigidamente seguidas pelos internos, fincando os desobedientes sujeitos às
penalidades previstas no Regulamento Sanitário ou às criadas e aperfeiçoadas
pelas pessoas responsáveis pela administração daqueles hospitais-colônias.
O casamento entre doentes de lepra internados em hospitais-colônias
somente poderia acontecer com o consentimento do diretor do estabelecimento,
que deveria observar o estado de evolução da doença nos noivos e também
capacidade de fornecer habitação conjunta para os mesmos no hospital, após o
enlace matrimonial
261
.
Os filhos de doentes com lepra, nascidos em hospitais-colônias, deveriam
ser separados dos pais imediatamente após o nascimento, mesmo que apenas um
dos progenitores estivesse acometido pela moléstia. Em hipótese alguma os bebês
poderiam ser amamentados pela mãe ou por uma ama de leite que fossem leprosas
ou que convivessem ( ou tivessem convivido) com um doente de lepra. As
crianças seriam mantidas até a adolescência em domicilio, sob vigilância, ou em
preventórios especiais que, quando localizados na área do hospital-colônia,
ficariam anexos à zona de habitação das pessoas sadias
262
.
As pessoas da administração e outros empregados não acometidos pela
lepra que convivessem nos hospitais-colônias deveriam residir em local distante e
isolado dos locais de alojamento dos leprosos. E estes, apenas em casos especiais:
mediante licença e condições fixadas pelo diretor do respectivo hospital, poderiam
se ausentar do estabelecimento, somente podendo fazê-lo por tempo limitado e
260
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Getulio Vargas, pelo Bel. Julio Strübing
Müller, Interventor Federal em Mato Grosso, 1941-1942, p. 32.
261
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 153.
262
Ibidem, Art. 153.
147
previamente determinado. Altas ou transferências de leprosos para outros
estabelecimentos de isolamento estariam sujeitas à anuência da autoridade
sanitária, ouvidos também os respectivos diretores, que deveriam emitir uma
posição acerca das reais condições dos doentes a serem removidos ou transferidos
para seus domicílios, onde, neste último caso, ficariam sob rígida vigilância da
autoridade sanitária.
Os indivíduos que tiverem alta do isolamento
domiciliário ou nosocomial permanecerão sob vigilancia
durante o prazo, nunca inferior a 5 anos, estabelecido
pela autoridade sanitária, e serão obrigados a
comparecer periodicamente aos locais de exame
Caso se verifique reaparecimento de sintomas
suspeitos ou se torne o individuo novamente contagiante,
deverá voltar ao regimen ditado neste regulamento para
os suspeitos ou doentes
263
.
Os doentes com lepra, segundo exigências do Regulamento Sanitário de
1938, estariam completamente privados dos seus direitos de ir e vir na sociedade.
Além dos impedimentos supra mencionados, também não tinham o direito de ser
transferidos de um município para outro ou de um estado para outro, sem prévia
anuência das autoridades sanitárias, tanto do local do qual estivessem saindo,
quanto daquele para onde estivessem sendo destinados. Caso houvesse
desobediência das referidas normas, poderiam ser reenviados ao estado ou
município de sua residência ou procedência. Nesses termos, as empresas de
transportes ou os particulares somente poderiam conduzir doentes com lepra
quando observadas as condições estabelecidas pelas autoridades sanitárias, que
para
esse fim fornecerá guia especial, acompanhado das
respectivas instruções
Em caso de infração, serão os doentes
reconduzidos ao domicilio ou local de procedencia, à
custa de quem houver efetuado o transporte, sem prejuizo
de outras penalidades determinadas em lei
264
.
Em suma, o preconceito, a falta de conhecimento e o medo da transmissão
e da disseminação da lepra na sociedade levavam as autoridades sanitárias e
263
Ibidem, Arts. 153 e 157.
264
Ibidem, Art. 161.
148
outros responsáveis pela administração dos estabelecimentos de isolamento em
Mato Grosso a assumirem posturas extremas, que eram definidas e exigidas como
normas a serem seguidas pela sociedade como um todo.
A exemplo dos procedimentos arbitrários e autoritários assumidos pelo
poder instituído (aqui representado pela toda poderosa autoridade sanitária), em
nome da profilaxia da lepra em Mato Grosso, temos também, como regra a ser
seguida no interior dos hospitais de isolamento, a proibição da circulação de
moeda corrente entre os doentes isolados. Os diretores deveriam providenciar,
necessariamente, a emissão de vales especiais, que regulassem as trocas
pecuniárias no interior daqueles nosocômios.
265
Atitudes desse tipo demonstravam
a permanência, ainda no período em questão, de uma imensa falta de
conhecimento, no que diz respeito as formas de transmissão e de disseminação da
lepra.
O tratamento dispensado aos leprosos, no único hospital de isolamento de
Mato Grosso: o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, era bastante precário
e apresentava pouquíssimos resultados positivos para os leprosos nele isolados.
Pensava -se apenas em diminuir as possibilidades de contágio dos doentes e em se
evitar que a enfermidade se desenvolvesse, vindo a atingir estágios mais
alarmantes.
A finalidade maior do isolamento no referido hospital não era a cura, haja
vista que lepra ainda era uma moléstia incurável até o início da década de 1940 do
século XX. A segregação e o isolamento social dos leprosos apresentava-se como
medida profilática que, ao impedir o contato daqueles doentes com as pessoas não
portadoras do Bacilo de Hansen, poderia também evitar a transmissão da doença e
diminuir as possibilidades do seu alastramento na sociedade.
De fato, o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, como os hospitais
que funcionavam na Europa, desde a Idade Média até o século XVIII, não era, de
modo algum, um meio de cura, não era concebido para curar os leprosos nele
isolados. O Hospital dos Lázaros guardava características muito próximas do
hospital medieval que, segundo Michel Foucault, não era uma instituição médica,
265
Ibidem, Art. 153.
149
e a medicina era, naquela época, uma prática não hospitalar. Isso vai mudar a
partir do século XVIII,
[...] quando se constituiu uma medicina hospitalar ou um
hospital médico, terapêutico.
Antes do século XVIII, o hospital era
essencialmente uma instituição de assistência, como
também de separação e exclusão. O pobre como pobre
tem necessidade de assistência e, como doente, portador
de doença e de possível contágio, é perigoso. Por estas
razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-
lo, quanto para proteger os outros do perigo que ele
encarna. O personagem ideal do hospital, até o século
XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre
que está morrendo. É alguém que deve ser assistido
material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os
últimos cuidados e o último sacramento. Esta é a função
do hospital. Dizia-se corretamente, nesta época, que o
hospital era um morredouro, um lugar onde morrer. E o
pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a
realizar a cura do doente, mas a conseguir a sua própria
salvação. Era um pessoal caritativo - religioso ou leigo -
que estava no hospital para fazer uma obra de caridade
que lhe assegurasse a salvação eterna. Assegurava-se,
portanto, a salvação da alma do pobre no momento da
morte e a salvação do pessoal hospitalar que cuidava dos
pobres. Função de transição entre a vida e a morte, de
salvação espiritual mais do que material, aliada à função
de separação dos indivíduos perigosos a saúde geral da
população
266
.
É impressionante como as reflexões de Foucault, contidas na citação
acima, são extremamente elucidativas para várias das análises desenvolvidas neste
trabalho, acerca do Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá. Este conservou
tais características assistenciais, de separação e de exclusão até a primeira metade
do século XX. Daí a sua forte relação com as obras de caridade, com a
necessidade que se tinha de acolher os pobres leprosos, para se livrar a sociedade
do contato com a lepra, doença contagiosa, incurável e estigmatizante.
O Hospital dos Lázaros de Cuiabá foi, essencialmente, um morredouro,
um local onde os doentes, desenganados por serem portadores de uma doença
contagiosa e incurável, seriam isolados para esperar a morte certa, porém, na
150
maioria das vezes bastante demorada. E, como já exposto anteriormente, o
hospital era um forte expediente para a prática da caridade social. Unia -se em
torno do nosocômio, através das obras de caridade, a busca da salvação da alma e
a necessidade profilática do isolamento daqueles leprosos pobres, considerados
um perigo constante para a sociedade sadia.
Segundo o regulamento Sanitário de 1938, deveriam ser criados ainda
vários Dispensários para doenças da pele em Mato Grosso, com a finalidade
de para eles atrair os doentes, descobrir precocemente, os
casos recentes, com manifestações cutaneas insipientes ou
dissimuladas, e evitar a evolução superior da doença,
sobretudo para as formas contagiantes
267
.
Os chamados Dispensários também teriam por fim, entre outros, contribuir
para o levantamento do censo da lepra no Estado de Mato Grosso; fazer a seleção
dos casos da doença, para efeito de tratamento em ambulatório, vigilância
sanitária e isolamento domiciliar ou nosocomial dos leprosos; tratar dos casos
considerados pela autoridade sanitária como não contagiantes; fazer os vários
tipos de exames existentes para tentar diagnosticar a moléstia e ainda promover a
educação sanitária dos doentes, seja nos dispensários, seja nos seus domicílios.
268
A educação sanitária da sociedade em geral era tema recorrente no Brasil
das primeiras décadas do século XX, e muito mais enfaticamente a partir dos anos
30. Seu objetivo era convencer a população da necessidade de mudar hábitos
tradicionais anti-higiênicos, que facilitavam a disseminação de doenças,
principalmente as de caráter infecto-contagioso. Um dos recursos era a divulgação
de cartazes e panfletos, elaborados pelo Ministério da Educação e Saúde e pelos
serviços estaduais.
No entanto, grande parte dos brasileiros
continuava analfabeta, sem poder beneficiar-se desse
material. Por isso, desde 1938 as mensagens higienistas
passaram a ser divulgadas pelas emissoras de rádio
existentes em todos os estados.
A partir da instalação do Estado Novo, a
administração sanitária buscou reforçar as campanhas de
266
FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. In: ______ Microfísica do poder.
1979, pp. 101-102.
267
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 158.
268
Ibidem, Art. 158.
151
educação popular, criando serviços especiais para a
educação em saúde. [...] os funcionários deste setor
elaboravam cartazes e folhetos que chamavam a atenção
pelas ilustrações coloridas. Elas podiam ser entendidas
mesmo pelas pessoas que não sabiam ler
269
.
A partir de 1938, seguindo os diretrizes nacionais da instalação do Estado
Novo, as autoridades sanitárias de Mato Grosso procuraram incentivar a
propaganda e a educação sanitárias acerca da lepra no Estado, com o objetivo de
instruir a população sobre o perigo que representava a terrível moléstia. Nesse
sentido, todos deveriam obedecer ao programa de propaganda e educação
sanitárias, elaborado por uma Seção Técnica Sanitarista. Na execução desse
programa deveriam ser empregados os meios mais eficientes de divulgação das
condições de contágio e de transmissão da doença, dos meios de prevenção
aconselháveis e, ainda, dos perigos do charlatanismo médico e farmaceutico. Na
campanha educativa, as autoridades sanitárias deveriam tentar envolver e
interessar os responsáveis por escolas, quartéis, patronatos, asilos e outros
estabelecimentos, de modo que no ensino de higiene ministrado sejam incluidas
noções elementares sobre epidemiologia da lepra e meios de evitar a doença
270
.
Retoma-se aqui as reflexões desenvolvidas no segundo capítulo desse
trabalho, acerca da caridade e da exclusão das autoridades governamentais no
sentido de não assumir os encargos com a manutenção dos hospitais pios de
Cuiabá e, conseqüentemente, com o isolamento dos leprosos em Mato Grosso.
Mesmo com o início da chamada Reforma Sanitária Júlio Muller, através do
Regulamento Sanitário de 1938 e da criação do Departamento de Saúde do Estado
de Mato Grosso, não terminaram os incentivos e apelos, por parte do poder
público estadual, à criação de associações privadas, ligas e sociedades
beneficentes destinadas a cooperar na luta contra a lepra
271
.
Pode-se dizer que a Reforma sanitária Júlio Müller - que deveria
representar um avanço nas questões de Saúde Pública em Mato Grosso, no sentido
de favorecer uma maior e melhor interferência e atuação do poder instituído nos
269
BERTOLLI FILHO, Claudio. História da saúde pública no Brasil. 1996, pp. 34-35.
270
APMT. Regulamento Sanitário do Estado de Mato Grosso, 1938, Art. 159.
271
Ibidem, Art. 160. APMT. Relatório do Departamento de Saúde do Estado de Mato
Grosso, 1940, p. 18.
152
problemas enfrentados pela s camadas menos favorecidas da sociedade - não saiu
do papel. Muito pouco ou quase nada daquilo que pregava o Regulamento
Sanitário de 1938, principalmente em relação ao isolamento dos leprosos como
medida profilática no Estado, foi colocado em prática pelas autoridades sanitárias.
A começar pela estrutura física, o Estado não contava, em 1938, com um hospital-
colônia para recolher os leprosos. No Estado, existia apenas o antigo Hospital de
São João dos Lázaros de Cuiabá, um hospital de isolamento, como já explicitado
anteriormente, completamente ultrapassado e distante de ser adequado às novas e
modernas exigências contidas no Regulamento Sanitário.
Em Mato Grosso, o Serviço de Profilaxia da Lepra foi criado apenas em
1940. Este incorporou, com poucas alterações, os artigos do Regulamento
Sanitário de 1938, que tratavam da profilaxia da lepra no Estado. No entanto, as
medidas profiláticas referentes à lepra e ao isolamento dos leprosos contidas no
referido Serviço de Profilaxia somente poderiam ser colocadas em prática a partir
do ano de 1941, após a inauguração da Colônia de Leprosos de São Julião. Sobre
essas discussões entre legislação sanitária e sua efetivação prática na Saúde
Pública brasileira, bem escreveu Massako Iyda:
A existência de uma legislação sanitária não
efetiva sua aplicação, [...] porque a expedição de leis e
normas para o estabelecimento de uma organização
sanitária ocorre sem a implantação de uma estrutura
administrativa sanitária adequada, fato este comum na
Saúde Pública brasileira
272
.
No Brasil, em 1940, ocorre a introdução da quimioterapia no tratamento de
doenças até então consideradas incuráveis pela medicina científica. Em 1941,
acontece a I Conferência Nacional de Saúde, enfatizando a necessidade de
expansão do número de leitos em hospitais gerais, sanatórios e outras melhorias
no atendimento à população brasileira de baixa renda
273
. E naquele mesmo ano,
começa-se a utilizar a sulfona no tratamento da lepra.
A partir daquele momento, a prática da segregação social e do isolamento
compulsório dos leprosos começava (ou pelo menos deveria começar) a ser
repensada pelas autoridades sanitárias. Fazia-se necessário acelerar e instituição
272
IYDA, Massako. op. cit., 1994, p. 31.
153
do tratamento laboratorial, através de consultas periódicas e da distribuição dos
medicamentos específicos (dragas para quimioterapias continuadas) aos doentes.
Entretanto, o que se assiste até a década de 1990, no Brasil e em Mato Grosso, é a
precária ação governamental no sentido de tentar controlar e erradicar a lepra, que
ainda é endêmica em várias regiões do país e em vários municípios do Estado
274
.
Prevenir a lepra sempre foi a grande preocupação das sociedades ao longo
da sua história. Até o período privilegiado neste trabalho, a profilaxia se dava
através da segregação e do isolamento social daqueles que já tinham sido
acometidos pela doença. Depois de 1941, com o início do uso da quimioterapia no
tratamento da moléstia, essa mentalidade deveria ir se modificando, ainda que
paulatinamente. Cabe uma pesquisa futura para confirmar ou não essa hipótese.
O que as autoridades governamentais demoraram a reconhecer - ou
simplesmente ignoraram propositadamente - é que a prevenção da lepra se faz,
mesmo na atualidade, entre outras medidas, com a melhoria das condições de vida
e de higiene da população em geral, especialmente no que concerne à moradia,
evitando-se, desta forma, o contato muito próximo entre os membros de uma
mesma família. Uma boa alimentação também é indispensável para que o
indivíduo esteja prevenido de quaisquer tipos de enfermidades; e no que diz
respeito à lepra essa regra é essencial, pois um organismo forte e bem nutrido
torna-se muito mais resistente à doença. Lembremos, ainda, de alguns outros
fatores importantes na prevenção: educação, programas de conscientização e de
informação, propaganda sanitária, compromisso social, empenho e vontade
política do poder público e das autoridades sanitárias, apoio financeiro e infra-
estrutura adequada em número e qualidade. E não podemos esquecer de frisar que
essas medidas devem ser pensadas no sentido de amenizar o estigma, a
ignorância, o medo e o preconceito em relação à lepra (e aos leprosos), pois só
assim os pouquíssimos programas de combate à lepra no Brasil e em Mato Grosso
poderão ter sucesso no sentido de prevenir, controlar, tratar e - talvez a longo
prazo - erradicar a doença.
273
Ibidem, pp. 74-75.
274
MORAES, Maria Auxiliadora Maciel de. et. al. Relação entre condições de vida e
hanseníase. 1990, p. 4.
154
Considerações finais
Para que escrever a história,
se não for para ajudar seus
contemporâneos a ter confiança
em seu futuro e a abordar com
mais recursos as dificuldades que
eles encontram cotidianamente? O
historiador, por conseguinte, tem o
dever de não se fechar no passado
e de refletir sobre os problemas de
seu tempo.
Georges Duby
155
Provocar certas reflexões acerca da lepra, dos leprosos, da segregação
social e do isolamento hospitalar em Mato Grosso é, antes de mais, assumir o
compromisso de analisar fragmentos do passado com o objetivo de contribuir para
um maior e melhor entendimento sobre as manifestações da moléstia em nosso
Estado na atualidade. O historiador, segundo Duby, tem o dever de olhar para o
passado pensando na obrigação que tem de refletir sobre os problemas do seu
tempo. Nesse sentido, as questões desenvolvidas neste trabalho foram levantadas
acreditando na possibilidade prática de envolver agentes históricos do presente,
para que possam, com o auxílio das discussões aqui apresentadas, repensar
comportamentos carregados de preconceito e atitudes excludentes, que muitas
vezes foram (e ainda são) direcionados às pessoas acometidas pela lepra, hoje
mais conhecida como hanseníase.
Na atual conjuntura, a hanseníase ainda é uma doença bastante
desconhecida. A ignorância das pessoas comuns - e mesmo dos cientistas - acerca
dessa enfermidade contribuiu (e contribui), sobremaneira, para aumentar o
preconceito e o estigma em relação aos leprosos de ontem, aos hansenianos de
hoje e aos morféticos de anteontem, fortalecendo, assim, os sentimentos de
repulsão e de rejeição, que respaldaram (e respaldam) às atitudes de segregação e
de isolamento social desses doentes.
Procurou-se também, nesta dissertação, realizar um breve levantamento de
informações e de análises que buscaram abranger desde as origens da lepra; como
ela foi pensada na Antigüidade; os problemas e os medos que a doença provocou
nas pessoas que viveram nos tempos medievais; o seu declínio na Europa; a sua
chegada e rápida disseminação no Brasil; e, por último, as preocupações e os
tormentos que a moléstia provocou na sociedade mato-grossense, que viveu nos
séculos XVIII e XIX, analisando as práticas e representações sociais acerca da
doença no período entre os anos de 1924 a 1941. Na atualidade, a hanseníase
ainda se apresenta como um 'fantasma' a ser 'caçado' pelo poder instituído, um
problema social, principalmente entre as camadas menos favorecidas da sociedade
mato-grossense. Para muitos hansenianos, a doença ainda é um perigo que
amedronta e deve ser camuflado, através de um exílio voluntário, para tentar
livrar-se do estigma que a cerca.
156
Buscou-se analisar, ainda, aspectos dos espaços construídos pela
sociedade para isolar os leprosos, para afastá-los do ambiente ocupado pelos
sadios, enfatizando o Hospital de São João dos Lázaros de Cuiabá, inaugurado em
1816. O leproso, por ser portador de uma doença contagiosa e incurável, deveria
ser afastado e isolado, deveria esperar a morte em locais onde não oferecesse
perigo à sociedade. Nos dias de hoje, ainda se pode perceber fortes reverberações
dessa mentalidade construída e consolidada em torno da segregação dos leprosos
pois, mesmo sendo uma doença curáve l há mais de meio século, a rejeição e o
preconceito social (originários de tempos bastante remotos) ainda estão presentes
no modo de pensar e de agir de muitas pessoas. A prática do isolamento (hoje
talvez mais voluntário que compulsório) ainda é vista como alternativa de se
evitar a doença. Prova disso temos hoje, no Brasil, o Movimento de Reintegração
de Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), que tem como principal
objetivo acabar com os preconceitos seculares que acompanham a doença.
Constituindo-se numa entidade civil e sem fins lucrativos, fundada em 6 de
junho de 1981, o MORHAN pretende (valendo-se do trabalho voluntário de
homens e mulheres), entre outros objetivos, ajudar na cura, reabilitação e
reintegração social das pessoas portadoras de hanseníase. Essa entidade - e seus
fins - reporta-nos às reflexões desenvolvidas no terceiro capítulo desta dissertação,
acerca da caridade pública, incentivada pela elite mato-grossense, com o objetivo
de garantir a sobrevivência dos leprosos no Hospital dos Lázaros de Cuiabá e, ao
mesmo tempo, manter aqueles doentes afastados do convívio social. Se na
primeira metade do século XX, a sociedade acabava por assumir, em grande
medida, os encargos com a profilaxia da lepra em Mato Grosso, que deveriam ser
de responsabilidade do poder instituído, na atual conjuntura, entidades como o
MORHAN, ainda que com objetivos distintos, também estão assumindo encargos
relacionados aos hansenianos que deveriam ser assumidos pelo poder público.
As décadas de 20 e 30 de século XX no Brasil, como analisado nos
capítulos terceiro e quarto desta dissertação, foram anos de transformações e
agitações na economia, política, sociedade e cultura. Naquele contexto, as
questões de Saúde Pública foram repensadas pelas autoridades governamentais e
sanitárias, bem como as formas de se lidar com a lepra e com os leprosos no
157
Brasil e em Mato Grosso. Entretanto, em meio as mudanças institucionais, o
imaginário em torno da doença apresentava mais continuidades e permanências do
que mudanças ou rupturas. Muitas das representações e práticas sociais que
acompanharam a moléstia durante séculos ainda marcavam presença no período
privilegiado para a construção desta dissertação. Lembrando aqui das reflexões de
Ítalo Tronca, percebe-se, ainda, neste trabalho, imagens recuperadas de antigas
representações, persistências pouco explicáveis na linguagem da medicina,
elementos do imaginário falando mais alto e condenando pessoas ao isolamento
voluntário ou compulsório, um movimento de repetição da história, um
imaginário de longa duração.
Em pleno século XXI, homens e mulheres ainda sofrem com as marcas
estigmatizantes da lepra. A moléstia ainda aparece como um sério problema de
Saúde Pública no Brasil e em Mato Grosso, revelando-se como uma questão
social, que envolve a todos, mas que salta aos olhos entre as camadas menos
favorecidas da sociedade. A grande incidência da hanseníase entre as populações
de baixa renda, reafirma haver, ainda nos dias atuais, uma íntima e triste
correlação entre pobreza e doença. Más condições de moradia, alimentação
deficiente e um organismo fraco e debilitado são fatores essenciais para o
desenvolvimento do M. leprae.
Os leprosários do passado - incluindo o Hospital de São João dos Lázaros
de Cuiabá - foram considerados pelos próprios leprosos e também pela sociedade
em geral como espaços de desespero, de sofrimento, de isolamento e de abandono
por parte das autoridades governamentais. As pessoas neles segregadas estavam
entregues a sua própria sorte, restando-lhes, muitas ve zes, a fuga como forma de
resistir aos maus tratos e à rejeição a que estavam sujeitas. Portanto, aqueles
estabelecimentos muito pouco ou em nada contribuíram para diminuir a
incidência da lepra no decorrer da sua história. Eram, na prática, locais de
sofrimento e de martírio e não espaços para prevenção e tratamento.
Em 1941 (baliza que encerram-se as análises desenvolvidas neste
trabalho), foi inaugurada, no antigo Estado Mato Grosso, a Colônia de Leprosos
de São Julião, que sobrevive até os dias atuais. Cabe aqui um último
questionamento: se os leprosários do passado tiveram um perfil problemático,
158
longe alcançarem os resultados profiláticos esperados, porque ainda hoje, no
início século XXI e a mais de meio século de encontrada a cura para lepra,
instituições desse tipo ainda persistem? Quais as suas principais características e
funções sociais no presente?
Concluir um trabalho não significa solucionar e responder todos os
questionamentos em torno do tema analisado. Esta dissertação não foi construída
buscando encontrar verdades ou certezas. Trata-se apenas de algumas reflexões
sobre a problemática da lepra na sociedade mato-grossense entre os anos de 1924
e 1941. Resume-se num ponto de partida para enfrentar novos desafios e para
instigar futuras reflexões. Muitas das questões aqui suscitadas poderão ser
analisadas posteriormente.
159
Fontes e referências bibliográficas
Fontes manuscritas, impressas e microfilmadas
APMT/DOCUMENTOS AVULSOS - Copia dos artigos da Commissão nomeada
em conformidade com o Art.º. 56 no § 2º da lei de 1º de outubro de 1828,
para visitar as prisões e os estabelecimentos publicos de caridade. Cuiabá,
22 de abril de 1831, Lata A, 1831.
_______________Copia dos artigos da Commissão nomeada em conformidade
com o Art.º. 56 no § 2º da lei de 1º de outubro de 1828, para visitar as
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Cuyabá, 3 de Fevereiro de 1.900.
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sua 1ª Sessão Ordinaria da 12ª Legislatura. Em 7 de setembro de 1921. Por
D. Francisco de Aquino Corrêa. Bispo de Prusiade, Presidente do Estado.
_______________ Mensagem dirigida á Assembléa Legislativa, em 13 de maio
de 1926, Pelo Sr. Dr. Mario Corrêa da Costa, Presidente do Estado de
Matto-Grosso.
_______________ Mensagem apresentada pelo Presidente do Estado de Matto-
Grosso, Dr. Mario Corrêa, á Assembléa legislativa e lida na abertura da 3ª
Sessão Ordinária da 14ª Legislatura, 13 de maio de 1929.
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Aníbal Toledo, presidente do Estado de Matto-Grosso, e lida na abertura da
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169
Anexos
Anexo I - Sobre a lepra: Considerações gerais
A lepra (Doença de Hansen,
Hanseníase) é uma doença crônica
causada pelo Mycobacterium
leprae (M. leprae), infecciosa em
alguns casos, e afetando o sistema
nervoso periférico, a pele e alguns
outros tecidos.
Manual de Hanseníase,
1991, p. 1.
A lepra é uma doença causada por uma micobactéria ácido-resistente
chamada Mycobacterium leprae (M. leprae), a qual é obrigatoriamente
intracelular, ou seja, ela não pode viver senão no interior das células. É encontrada
em vários tipos de células, mais comumente no interior dos macrófagos, mas
também nas células dos nervos, nas células musculares, células endoteliais dos
vasos sangüíneos, melanócitos da pele e condrócitos de cartilagem, para citar as
mais importantes. É uma espécie de cepa única que, com uso de microscópio e
após coloração, se assemelha ao bacilo da tuberculose
275
.
Existem diferentes tipos de lepra. As formas de classificação apresentadas
e analisadas no manual de Hanseníase utilizado como base para este trabalho são:
a Lepra Tuberculóide, a Lepra Bordeline, a Lepra Lepromatosa e a Lepra
Indeterminada. Analisar cada uma delas em particular não é objetivo deste ensaio,
porém vale ressaltar que esses vários tipos de lepra também apresentam aspectos
275
JOPLING, W. H., MACDOUGALL, A. C. Manual de Hanseníase. 1991, p. 11.
170
clínicos diferenciados, divisões e até subdivisões no interior de uma mesma
classificação.
Se pudesse ser provado que os diferentes tipos de
lepra são devidos a peculiaridades do agente que infecta
cada indivíduo, então a lepra não estaria atraindo o
interesse de imunologistas em todo mundo. Entretanto,
bacilos da lepra obtidos de pacientes portadores de
diferentes tipos da doença, e vivendo em diferentes partes
do mundo, produzem alterações histopatológicas idênticas
quando transmitidos para os coxins plantares de
camundongos. Isto é fortemente sugestivo de que a lepra
humana é produzida por um tipo de bacilo e que padrões
clínicos da doença são determinados por diferentes
respostas do hospedeiro, isto é, por fatores imunológicos
do mesmo
276
.
O M. leprae foi descoberto pelo médico e botânico norueguês Gerhard
Henrik Armauer Hansen, em 1873, e suas observações foram publicadas em 1874.
Nesse sentido, o bacilo de Hansen é uma das mais antigas bactérias patogênicas
conhecidas que atingem o homem. Até os dias atuais ela tem desafiado as
pesquisas e as várias tentativas para conseguir seu cultivo em meios artificiais.
Todas as tentativas de infectar voluntários também têm falhado; e somente a partir
de 1960 foram desenvolvidas técnicas para transmissão do bacilo da lepra aos
animais
277
.
O conhecimento existente sobre a cadeia epidemiológica de transmissão da
lepra é ainda bastante incompleto. As dúvidas são muitas, principalmente no que
diz respeito às propriedades biológicas do bacilo de Hansen e as referentes ao
modo de transmissão e ao fenômeno de suscetibilidade e de resistência das
pessoas expostas ao risco de adquirir a moléstia.
As vias de eliminação do bacilo pelo hospedeiro e
as vias de penetração no indivíduo susceptível tem sido
alvo de muitos estudos, apontando principalmente as vias
respiratórias como a porta de entrada e saída dos bacilos.
Entretanto, não há provas conclusivas de que a
transmissão seja exclusivamente respiratória, pois alguns
276
Ibidem, p. 73.
277
Ibidem, p. 16.
171
pesquisadores continuam estudos sobre a transmissão
pela via cutânea, mucosa digestiva, secreções humanas
etc
278
.
Podem ser consideradas três possíveis rotas de transmissão: a pele, o tubo
gastrointestinal e as vias aéreas. Sejam quais forem as rotas de entrada no corpo
humano, somente uma parte das pessoas infectadas apresenta sinais da lepra após
o período usual de incubação, que é de três a cinco anos
279
. Exames em pessoas
que tiveram contato com leprosos algumas vezes mostraram a presença de um
único bacilo na pele, no nervo ou no músculo, sem que os sinais da moléstia
tenham se desenvolvido durante as revisões subseqüentes. Já em caso de
hospedeiro suscetível, o tipo de lepra que se desenvolverá é determinado pelo
modo com que as células de defesa responderão ao desafio da resistência. O
primeiro local para estes testes são os nervos periféricos, pois os bacilos da lepra
têm predileção pelo tecido neural e, seja qual for a rota de entrada para os nervos,
o órgão-alvo é a célula de Schwann (célula responsável pela limpeza dos nervos).
Nesse sentido, uma vez que os bacilos foram englobados pelas células de
Schwann, seu destino seguinte - bem como o tipo de lepra que se desenvolverá -
vai depender da resistência do indivíduo infectado
280
.
Os bacilos de Hansen não só têm predileção pelos nervos como também
são as únicas bactérias capazes de penetrá-los. Suspeita-se que essa penetração é
conseguida através dos vasos sangüíneos endoneurais. O endoneuro é a fina
camada de tecido que envolve as células de Schwann e os axônios. Os nervos
invadidos pelos bacilos podem ser dérmicos (cutâneos) ou troncos nervosos,
sendo que as regiões mais vulneráveis são aquelas onde os nervos estão mais
sujeitos a traumatismos
281
.
278
MORAES, Maria Auxiliadora Maciel de. et. al. Relação entre condições de vida e
hanseníase. 1990, p. 9.
279
Mas há relatos de variações de seis anos e até de várias décadas para o aparecimento
dos primeiros sinais ou sintomas da lepra em determinados indivíduos. Cf. MORAES,
Maria Auxiliadora. et. al. op. cit. 1990, p. 10.
280
JOPLING, W. H., MACDOUGALL, A. C. op. cit. 1991, p. 16.
281
Ibidem, p. 17.
172
O grau de disseminação da lepra em uma determinada comunidade
depende da proporção de pessoas susceptíveis e da oportunidade de contato com o
M. leprae. Os adultos são relativamente menos susceptíveis ao bacilo de Hansen.
Esse ponto de vista é apoiado em dois fatores: primeiro, todas as tentativas
de inocular voluntários falharam e, segundo, a incidência de lepra conjugal - lepra
adquirida do parceiro matrimonial - é somente de 5%. Já as crianças são mais
susceptíveis pois, onde elas correm algum risco pela presença da lepra, quase 60%
das mesmas desenvolvem a moléstia na infância ou no início da idade adulta. Até
recentemente acreditava-se que o bacilo da lepra não atravessava a placenta, mas
agora já existem evidências para se acreditar que a transmissão transplacentária do
M. leprae pode ocorrer como um evento raro
282
.
Mulheres já infectadas pelo M. leprae, porém ainda no período de
incubação da lepra, mostrarão sinais evidentes da doença na gravidez e no início
do puerpério. Se a doença já estiver estabelecida, ela apresentará uma piora
durante a gravidez, causando uma exacerbação da moléstia. Os bebês de mães
leprosas têm peso menor e crescem mais lentamente do que os bebês de mães
sadias. Esses bebês correm o risco de contrair a doença da mãe, se esta for
portadora de lepra lepromatosa não tratada; de um possível foco oculto de
infecção no lar ou entre parentes; de outros pacientes, se tiver nascido em um
leprosário.
A lepra não pode mais ser considerada uma doença exclusiva dos seres
humanos, pois há relatos da doença adquirida naturalmente em tatu, chimpanzé e
no macaco mangabey. Por esta razão, a lepra também tem sido rotulada como
zoonose. Há um relato da moléstia se desenvolvendo em cinco criadores de tatus
no Texas, todos naturais da região e sem nenhuma história de contato conhecido
com a lepra
283
.
A mais provável fonte de infecção para outras pessoas ou para os animais
susceptíveis ao contágio são os seres humanos que abrigam o M. leprae no trato
respiratório superior, especialmente no nariz. Estes provavelmente constituem
cerca de 20% de todos os pacientes leprosos. Deve -se ressaltar, entretanto, que a
282
Ibidem, p. 1.
283
Ibidem, p. 4.
173
transmissão ocorre apenas quando a doença não está sendo tratada, pois uma
quimioterapia eficaz torna os bacilos da lepra inviáveis em tempo relativamente
curto. O perigo para outras pessoas - caso sejam susceptíveis - advém não do
paciente leproso em tratamento, mas sim dos casos não diagnosticados da
doença
284
.
Más condições de moradia e alimentação deficiente são fatores
importantes na disseminação da lepra, pois uma superpopulação doméstica,
particularmente noturna, fornece as condições ideais para a infecção, seja por
gotículas , seja pelo contato cutâneo, ainda mais contando com a subnutrição, que
também reduz a imunidade celular das pessoas à doença.
Deve-se notar que Hansen, o descobridor do bacilo da
lepra, foi aos Estados Unidos em 1888 para ver se
poderia encontrar a doença nos descendentes dos
noruegueses que tinham emigrado da Noruega para evitar
a segregação. Como não encontrasse nenhum caso nessas
famílias, foi de opinião de que estava em grande parte
ligado às boas condições de vida e moradia dos mesmos
285
.
O fator mais marcante no que concerne à lepra é a enorme variação das
maneiras com que a moléstia pode acometer diferentes pessoas. Em algumas, a
doença compromete somente um nervo periférico (mononeurite) ou produz uma
única mancha que persiste indefinidamente ou desaparece por conta própria;
enquanto que em outras pessoas provoca inúmeros nódulos e outros tipos de
lesões cutâneas, associadas com polineurite e danos a órgãos vitais do corpo como
os olhos, a laringe, os testículos e até os ossos. Todos os tipos possíveis e
imagináveis de variações podem ocorrer entre estas duas extremidades. A
explicação se baseia no estado imunológico do indivíduo afetado, na resistência
que o organismo de cada pessoa apresenta em relação a moléstia
286
.
No que tange às manifestações cutâneas, os pacientes podem apresentar
máculas, pápulas, nódulos ou combinações dos três tipos. As máculas geralmente
são as que primeiro aparecem. As lesões cutâneas são múltiplas, com uma
284
Ibidem, p. 4.
285
Ibidem, p. 4
286
Ibidem, p. 24.
174
distribuição bilateral e simétrica. Embora a face, os braços, as nádegas e as pernas
sejam as partes do corpo mais acometidas, o tronco também pode estar
comprometido. Certas regiões da pele que possuem temperaturas mais quentes são
invariavelmente poupadas, como as axilas, as virilhas, o períneo e o couro
cabeludo; de acordo com regra geral, o bacilo da lepra prefere partes da pele com
temperaturas mais frias. Todos os raros relatos de lesões leprosas desenvolvidas
em couro cabeludo se referem ao couro cabeludo calvo, por ser este de
temperatura cutânea mais fria do que a do piloso
287
.
Além da pele e dos nervos, outros tecidos podem ser acometidos pela
lepra: unhas das mãos e dos pés, nariz, boca, faringe, laringe, traquéia, olhos,
ossos, testículos, rins, mú sculos, fígado e baço, apenas para citar os mais
importantes. As lesões renais da lepra lepromatosa podem resultar em
insuficiência renal crônica, que pode levar à morte por uremia ou por hipertensão.
Entretanto, as causas de morte em lepra, na grande maioria dos doentes, são as
mesmas do resto da população em geral. O efeito das drogas utilizadas no
tratamento dos leprosos podem reduzir, em alguns casos, a mortalidade causada
por alguma outra enfermidade; como também podem aumentar a mortalidade
pelos efeitos colaterais. É notável o aumento das mortes por suicídio entre os
doentes de lepra, isto devido ao preconceito, rejeição, segregação e isolamento
social a que estão sujeitos na convivência em sociedade
288
.
A estimativa oficial mais recente totaliza 11,5 milhões de casos de lepra no
mundo inteiro
289
. A maior concentração da doença está em áreas tropicais e
equatoriais, em sua maioria, nas regiões subdesenvolvidas e com problemas de
concentração exagerada da renda nacional nas mãos de poucas pessoas; onde a
grande massa populacional vive em condições deploráveis de vida e de saúde. A
lepra, em algumas dessas regiões, assume proporções alarmantes de
hiperendemicidade
290
.
287
Ibidem, p. 26.
288
Ibidem, p. 38.
289
Ibidem, p. 5.
290
MORAES, Maria Auxiliadora. et. al. op. cit. 1990, p. 2
175
Os continentes africano e asiático apresentam os maiores índices mundiais
de prevalência da lepra. Na América do Sul encontra-se 3% do total mundial de
doentes, sendo que o Brasil é responsável por 85% dos casos do Continente
Americano, ocupando o 2º lugar mundial em número de casos da moléstia, sendo
superado apenas pela Índia, cuja população é bem superior à do Brasil. A
Amazônia e o Centro-Oeste apresentam as mais altas taxas de incidência de lepra
do país.
[...] o Ministério da Saúde, em início de 1990, considerou
o Estado de Mato Grosso, juntamente com alguns outros
Estados do país como área de emergência e de
priorização à ações para o controle da hanseníase
291
.
Na década de 1940, mais especificamente no ano de 1941, começa-se a
utilizar a sulfona no tratamento da lepra. A partir daquele momento a prática da
segregação social e do isolamento compulsório dos leprosos começa a ser
repensada pelas autoridades sanitárias. Fazia-se necessário acelerar a instituição
do tratamento laboratorial, através de consultas periódicas e da distribuição dos
medicamentos específicos (drogas para quimioterapias continuadas) aos doentes.
Entretanto, o que se assiste até o momento no Brasil e em Mato Grosso, é a
precária ação governamental no sentido de tentar controlar e erradicar a lepra, que
ainda é endêmica em várias regiões do país e em vários municípios do Estado
292
.
Prevenir a lepra, sem sombras de dúvida, é melhor do que o tratá -la. E a
prevenção da moléstia se faz, entre outras medidas, com a melhoria das condições
de vida e de higiene da população em geral, especialmente no que concerne à
moradia, evitando-se, desta forma, o contato muito próximo entre os membros de
uma mesma família. Uma boa alimentação também é indispensável para que o
indivíduo esteja prevenido de quaisquer tipos de enfermidades; e no que diz
respeito à lepra essa regra é essencial, pois um organismo forte e bem nutrido
torna-se muito mais resistente à doença. Lembremos, ainda, de alguns outros
fatores importantes na prevenção: educação, programas de conscientização e de
informação, propaganda sanitária, compromisso social, empenho e vontade
291
Ibidem, p. 4.
292
Ibidem, pp. 17 -18.
176
política das autoridades governamentais e sanitárias, apoio financeiro e infra-
estrutura adequada em número e qualidade. E não podemos esquecer de frisar que
essas medidas devem ser pensadas no sentido de amenizar o estigma, a
ignorância, o medo e o preconceito em relação à lepra (e aos leprosos), pois só
assim os pouquíssimos programas de combate à lepra no Brasil e em Mato Grosso
poderão ter sucesso no sentido de prevenir, controlar, tratar e - talvez a longo -
prazo - erradicar a doença.
177
Anexo II - Acta da inauguração das obras de reconstruçção do
Hospital dos Lazaros, realizada pela commissão PRO LAZAROS
composta de senhoras da elite de Cuiabá, sob a presidencia da Exma.
Sra. D. Corina Novis Corrêa.
Aos doze dias do mez de Outubro do anno de mil novecentos e vinte e
quatro, pelas sete e meia horas da manhã, no recinto deste hospital, achando-se
presentes diversas autoridades grande numero de pessoas gradas e
representantes da Administração da Santa Casa de Misericordia, teve logar a
solemnidade da inauguração das obras de reconstrução e melhoramentos do
secular Hospital de S. João dos Lazaros, solemnidade iniciada com a bençam do
edificio e do novo altar, celebrando-se na Capella uma missa em açção de graças
pela realização de taes melhoramentos, em beneficio dos infelizes isolados neste
hospital.
Em seguida o Major Presidente da Santa Casa fez aos presente uma
rapida exposição de tudo quanto fora feito pela referida Commissão, neste
momento representada pela muito nobre cuiabana a Exma. Sra. D. Corina Novis
Corrêa que, durante longos mezes, trabalhou com o mais generoso enthusiasmo,
afficazmente auxiliada pelas senhoras de Cuiabá para a realização destas obras.
Dentro dos recursos pecuniarios angariados pela commissão, por meio de
Kermesses, leilões de prendas, listas de subscripções, funcções de cinema,
concertos musicaes, etc. foram feitas as seguintes obras: procedeu-se a demolição
de uma parte da antiga fachada, sombria e apavorante dos tempos coloniaes,
para dar o actual aspecto; os diversos alojamentos que mais pareciam cubiculos
de galés, foram convenientemente modificados com a collocação de vinte e uma
janellas, reboco e caiação das paredes, pintura das portas, janellas e barrado;
todo o hospital foi ladrilhado de mosaicos de cimento; foram construidos quatro
privadas e dois banheiros; foram reconstruidas duas salas grandes das quaes
restavam apenas os alicerces.
178
Infelizmente deu-se um desastre ao ser demolida uma antiga parede de
taipa, inesperadamente esta parede ruiu e esmagou um operaio pedreiro.
Foi construida uma fossa hygienica junto ás privadas e na parte externa
do edificio.
O antigo altar foi substituido por outro sendo a Capella forrada e
ladrilhada.
Afim de ser possivel o organização de um serviço de rancho regular foi
concertada a cosinha da casa do encarregado, dotando-a de um fogão com chapa
de ferro e um deposito de cimento para agua.
Foram adquiridos os moveis mais essenciaes taes como: mesas de jantar,
bancos para o refeitorio, bancos para o jardim, armarios com prateleiras para
utensilios e uma estante para livros.
A cada um dos enfermos foi distribuido um jogo de utensilios: bacia,
pratos, tijela, talher, caneco, ourinol e chaleirinhas.
Também foram confeccionadas as seguintes peças de reoupa: camisas,
calças, ceroulas, lençoes, vestidos, lenços, guardanapos, politots e adquiridos
cobertores de lã e colchas brancas.
Para o serviço de rancho foi feita a acquisição de uma bateria de cosinha
e marmitas para conducção de comida.
Pelo presidente da Loja Maçonica desta cidade foram offerecidas 30
camas de ferro, trinta conlchões e trinta travesseiros.
Afim de proporcionar aos doentes uma occupação recreativa ao mesmo
tempo que util foi fechada com cerca de arame farpado uma parte das terras
pertencentes ao hospital, para o plantio de fruxtas e lugumes.
E, ainda para facilitar o acesso de visitantes foi concertada a estrada que
do alto do Areão vem ter a este local.
Taes são as obras levadas a effeito pela Commissão "PRO LAZAROS".
Em seguida declarou o Sr. Major Firmo Rodrigues que a Administração
da Santa Casa sentia-se satisfeita por ver realizada a obra que ella tanto
desejava, mas para cuja execução faltavam-lhe recursos sufficientes e agradeceu,
em nome da Commissão "PRO LAZAROS" as pessoas que se dignaram
comparecer a esta solemnidade.
179
E, para todo o tempo constar, lavrou-se a presente acta que vae assignada
por muitas das pessoas presentes.(Assignados) -+ Francisco, Arcebispo
Metropolitano - Corina Novis Corrêa - Padre Hermenegildo Carrá, Inspector da
Missão Salesiana - Padre João Crippa - Dr. Alberto Novis, Inspector de Hygiene
- João P. - Francisco Bartholomeu de Mello - Maria Benedicta de Mello - Nair
Alves de Magalhães - Madre Francisca Lang - Irmã Maria Silvia Lanna - Violeta
Monteiro de Almeida - Paulo Corrêa da Costa - Catharina Monteiro Cuiabano -
Antonio Pio Vieria - João Vieira de Azevedo - Dr. Armando de Souza - Marcolina
Pereira de Souza - Major Quirino Ferreira da Silva - Antonio C. F. da Costa e
Silva - Benedicta Alves Rodrigues - Luiz Raymundo de Almeida - Deogracio Felix
de Oliveira - Luigi Taborelli - Francisco Mechi - Aristides T. de Arruda - Manoel
do Bom Despacho - Maria Benedicta Rodrigues - Izabel Alves Rodrigues -
Hygino Paulo de Cerqueira - Firmo José Rodrigues.
293
293
APMT. Relatório da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá,
1924, pp. 22 - 25
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