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RITA LAGES RODRIGUES
Eu sonhava viajar sem saber aonde ia...
Entre Bruxelas e Belo Horizonte: itinerários da escultora
Jeanne Louise Milde de 1900 a 1997.
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
2001
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RITA LAGES RODRIGUES
Eu sonhava viajar sem saber aonde ia...
Entre Bruxelas e Belo Horizonte: itinerários da escultora
Jeanne Louise Milde de 1900 a 1997.
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado do Departamento de História da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em História.
Área de concentração: História e
modernidade: política, cultura e trabalho.
Linha de pesquisa: História Social da
Cultura; cultura artística e religiosidade.
Orientadora: Dra.
Adriana Romeiro.
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
2001
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Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
Dissertação defendida e aprovada,
em 19 de outubro de 2001,
pela banca examinadora constituída pelas professoras:
___________________________________________
Professora Doutora Adriana Romeiro (orientadora)
___________________________________________
Professora Doutora Constância Lima Duarte
___________________________________________
Professora Doutora Marília Andrés Ribeiro
___________________________________________
Professora Doutora Thaís Velloso Cougo Pimentel
Eu sonhava em viajar sem saber aonde ia.”
Trecho de depoimento de Jeanne Louise Milde presente no vídeo:
FROTA, Gastão. A vida na arte de Jeanne Milde. Belo Horizonte,
2000.
Dedico esta dissertação aos meus pais, Bené e Teté, e ao
ensino público e gratuito, no qual tive o direito de ser educada
por toda a minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço às professoras Adriana Romeiro, por me orientar no momento de escolher e
trilhar caminhos; Marília Andrés Ribeiro, por me introduzir na pesquisa em História
da Arte; Ivone Luzia Vieira, pelo auxílio na análise da vida e da obra de Jeanne Louise
Milde; e ao professor José Carlos Reis, pelo suporte fundamental dado pela disciplina
de metodologia. À CAPES, pela bolsa que me possibilitou dedicação aos estudos. Ao
Museu Mineiro, pelo acesso à documentação do acervo particular de Mlle. Milde,
especialmente ao Luís Augusto de Lima, atual diretor desta instituição. Aos meus
irmãos Bernardo, Martha, Fernando e Henrique, pelos anos de convivência. Aos
amigos Alessandra, Viviane, Matheus, Andréa, Guilherme, Carla, Carlos, Isaura,
Luciana, Balu, por continuarem ao meu lado, mesmo com todas as minhas tensões e
neuroses. À Camila, grande amiga nos últimos dois anos, e aos colegas de mestrado
Jean, Rodrigo, Dangelis, Alexandre, Evandro, Márcio Eurélio, Maira, Lúcio, Carmem
e Sônia, pela amizade em diferentes trechos dessa trajetória e por me fazerem lembrar
que não estava sozinha nos momentos de aflição (por um pouco de egoísmo talvez,
saber que todo aquele sofrimento na pesquisa, na escrita, era dividido com outros...). À
Kelly e à Raquel pelas boas risadas. Ao Gabriel, por ter participado da minha história.
Aos amigos feitos na Espanha, que certamente não irão ler este agradecimento, mas
que, ao longo de mais de dois anos, muito me ajudaram com uma presença-ausência
essencial.
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO.....................................................................................................p. 01
I DA FORMAÇÃO NA BÉLGICA À FORMAÇÃO DAS BRASILEIRAS:
VENTOS CIVILIZADOS ACADÊMICOS E MODERNOS PARA BELO
HORIZONTE........................................................................................................p. 10
I.I Da formação em Bruxelas..................................................................p. 12
A mulher, a artista e a cidade na virada do século XX..................p. 12
A Real Academia de Belas Artes de Bruxelas...............................p. 17
Mestres...........................................................................................p. 22
A vida profissional da artista na Bélgica........................................p. 25
I.II A Reforma de Ensino de Francisco Campos e a vinda de Jeanne Louise
Milde para Belo Horizonte.........................................................................p. 31
Mudanças na capital: A Reforma de Ensino e a Escola de
Aperfeiçoamento............................................................................p. 31
A vinda de Jeanne Milde para a capital..........................................p. 39
I.III Modos de ensinar.............................................................................p. 41
II HORIZONTES ARTÍSTICOS: JEANNE MILDE E AS ARTES PLÁSTICAS NA
CAPITAL MINEIRA............................................................................................p. 52
II.I O meio artístico belorizontino: mulher e artista..............................p. 53
II.II Exposições, salões, convivência com artistas: artes e ofícios.........p. 60
Exposições individuais...................................................................p. 65
Trabalhos sob encomenda..............................................................p. 68
A crítica de arte em Belo Horizonte...............................................p. 71
II.III Entre o Brasil e a Bélgica...............................................................p. 78
Estadas na Bélgica, visões do Brasil..............................................p. 78
II.IV Ostracismo e redescoberta.............................................................p. 82
O período de seu afastamento e a Escola Guignard.......................p. 82
O resgate de sua obra nos anos 80 e 90..........................................p. 83
III MODERNA, MAS COM UMA BASE CLÁSSICA... .................................p. 86
III.I As obras de Mlle. Milde e a arte moderna: Impressionismo, Simbolismo,
Expressionismo, Art Nouveau e Art Déco.................................................p. 89
III.II Desenvolvimento da escultura moderna.........................................p. 100
III.III Tradição escultórica: Rodin, Georges Minne e Constantin
Meunier.......................................................................................................p. 106
III.IV O Brasil na obra de Mlle. Milde: entre o exótico e a
identificação................................................................................................p. 122
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................p. 126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS..................................p. 130
Livros..........................................................................................................p. 130
Catálogos.....................................................................................................p. 134
Periódicos....................................................................................................p. 134
Vídeos..........................................................................................................p. 139
ANEXOS................................................................................................................p. 140
LISTA DE FIGURAS
1 Jeanne Milde. Alegoria à Indústria. Alto relevo em bronze. 130 x 210 m. 1932.
Coleção Belgo-Mineira..............................................................................p. 70
2 – Jeanne Milde. Cidadão Inglês. Madeira e gesso. 38 x 21 x 21 cm. S/data. Acervo
Museu Mineiro...........................................................................................p. 95
3 Jeanne Milde. Sem Título. Madeira. 21.5cm x 17,2cm x 6,6 cm. S/data. Acervo
Museu Mineiro...........................................................................................p. 96
4 Jeanne Milde. Sem Título. Madeira. 21.5cm x 17,2cm x 6,6 cm. S/data. Acervo
Museu Mineiro...........................................................................................p. 97
5 e 6 Jeanne Milde. Volúpia Maternal. Bronze. 35 x 22 x 23cm. Antes de 1945.
Coleção particular.......................................................................................p. 108
7 Jeanne Milde. Carinho. Entalhe em madeira (jacarandá). 41x17x 10,2cm.1979.
Acervo Museu Mineiro...............................................................................p. 109
8 – Auguste Rodin. Eva......................................................................................p. 110
9 Jeanne Milde. Sem Título. Bronze. 52,0 x 16,0 x 16,0. S/data. Coleção
Particular.....................................................................................................p. 111
10 Jeanne Milde. Pescador de Rede. Moldagem em gesso. 45,3 x 19,0 x 32,5 cm.
1970. Acervo Museu Mineiro.....................................................................p. 112
11 – Constantin Meunier. Ecce Homo. 1890.....................................................p. 113
12 – Constantin Meunier. Femme du peuple. Aproximadamente 1890.............p. 114
13 – George Minne. Mère pleurant ses deux enfants. 1888................................p. 115
14 – George Minne. Le fils prodigue. 1896.........................................................p. 116
15 – George Minne. L’adolescent agenouillé. 1898............................................p. 117
16 e 17 Jeanne Milde. Adolescentes. Modelagem em gesso. 94 x 62 x 16 cm. 1937.
Acervo Museu Mineiro................................................................................p. 118
18 – Jeanne Milde. Meu Bebê. Moldagem em Gesso, pátina com anilina e goma-laca.
31,5 x 10,8 x 16,5 cm. 1969. Acervo Museu Mineiro.................................p. 119
19 Jeanne Milde. Meus Filhos. Entalhe em madeira (aroeira vermelha). 51,5 x
15,3x 15,5 cm. 51,5 x 15,3 x 15,5 cm. 1979. Acervo Museu Mineiro........p. 120
20 Jeanne Milde. Ternura. Gesso, anilina, goma-laca. Moldagem x pátina. 35 x 22
x 23cm, 1970. Acervo Museu Mineiro........................................................p. 121
21 Jeanne Milde. Iara. Madeira. 85 (altura) x 80,1 (diâmetro) cm. S/data. Acervo
Museu Mineiro.............................................................................................p. 122
22 Jeanne Milde. A Deusa do Amazonas. Madeira. 116x 34,5x 32,5 cm. S/data.
Acervo Museu Mineiro................................................................................p. 123
23 Jeanne Milde. Coral. Entalhe em madeira (imbuia), pátina com anilina, cera. 95
x 47,5 x 6,0 cm. S/ data. Acervo Museu Mineiro.......................................p. 124
LISTA DE ANEXOS
Anexo I...................................................................................................................p. 140
Dados presentes no Livro de Registro da Real Academia de Belas Artes de Bruxelas,
Registro número 18850:
Anexo II..................................................................................................................p. 142
Complemento da ficha funcional de Jeanne Louise Milde presente no Instituto de
Educação de Minas Gerais:
Anexo III.................................................................................................................p. 144
Documento mimeografado presente no acervo da artista doado ao Museu Mineiro.
Pontos para exames de suficiências Trabalhos Manuais- 1º Ciclo
Anexo IV.................................................................................................................p. 146
Lista de obras presente no arquivo pessoal da artista.
Anexo V..................................................................................................................p. 148
Lista de obras presente no arquivo pessoal da artista.
Anexo VI.................................................................................................................p. 151
Dados de catálogo da exposição realizada na Galerie Maison D’or
Anexo VII...............................................................................................................p. 153
Trechos do livro: ANDRADE, Moacyr. República Decroly. Belo Horizonte, Edições
Pindorama, 1935.
Anexo VIII..............................................................................................................p. 159
Poema de Carlos Drumond de Andrade: As moças da Escola de Aperfeiçoamento
RESUMO
O trabalho que se segue tem por objetivo resgatar pequena parcela da trajetória
de vida da artista Jeanne Louise Milde, a partir de uma análise biográfica que
considere as inúmeras interrelações entre sujeito e contexto. Busca-se a elucidação de
alguns pontos para os quais sua vida serve de ponto de partida e de chegada, tais
como: a participação feminina na arte no século XX em Belo Horizonte, o ensino de
arte-educação, e questões sobre o antigo e o moderno na capital de Minas e o clássico
e o moderno nas artes. Mlle. Milde nasceu em Bruxelas em 1900 e formou-se pela
Real Academia de Belas Artes dessa cidade em 1925. Esse momento inicial foi
fundamental na constituição de seus valores e de sua personalidade. Mudou-se da
Bélgica para Belo Horizonte em 1929, para integrar a Missão Pedagógica Européia,
inserida na Reforma de Ensino de Francisco Campos. Presença significativa no
panorama artístico de Belo Horizonte, Mlle. Milde participou como artista plástica e
mulher nesse meio nas décadas de 20 a 50 do presente século. Foi a primeira mulher e
artista profissional a se estabelecer na cidade. Abriu espaço em Belo Horizonte para a
participação feminina e para a arte moderna que posteriormente se estabeleceria nas
terras da capital mineira. Sua arte era marcada pelo moderno-tradicional, sendo uma
artista clássica e moderna. Adotou linguagens artísticas ligadas ao Simbolismo, Art
Déco, Art Nouveau, expressionismo, mas permaneceu com uma percepção de arte que
pode ser denominada clássica.
ABSTRACT
The aim of this work is to review the life of Jeanne Louise Milde, considering
the relations between the individual and the context in a biography. Her life can help
us to understand some points about XX
th
Century life such as women in arts, art
education, and questions about the ancient and the modern in Belo Horizonte and
about the classic and the modern in arts. Mlle Milde was born in Brussels in 1900 and
was graduated by Brussels Royal Academy of Fine Arts in 1925. This moment was
extremely important in the formation of her values and her personality. She moved
from Belgic to Belo Horizonte in 1929, to integrate the Missão Pedagógica Européia,
in the Reforma de Ensino de Francisco Campos. Mlle. Milde participated as a sculptor
and women in the artistic field in Belo Horizonte and Brussels in the 20s till the 50s.
She was the first professional women artist to establish in the capital of Minas Gerais.
She has opened the artistic field to women participation and she has opened it to
modern art too. Her art has modern and classical characteristics she was an artist, at
the same time, modern and classical. Jeanne Louise Milde adopted artistic languages
related to symbolism, Art Déco, Art Nouveau and expressionism, but with an artistic
perception that may be called classical.
1
INTRODUÇÃO
Não se pode negar que há um estilo próprio a uma época, um habitus
resultante de experiências comuns e reiteradas, exatamente como, a cada
época, há também o estilo próprio de um grupo. Mas existe também, para
cada indivíduo, um espaço de liberdade significativa que encontra
precisamente sua origem nas incoerências dos limites sociais e que faz
nascer as mudanças sociais. Nós não podemos, portanto, aplicar os
mesmos procedimentos cognitivos aos grupos e aos indivíduos, e a
especificidade das ações de cada indivíduo não pode ser considerada
como indiferente ou privada de pertinência
1
Como pensar questões teórico-metodológicas ao abordar o indivíduo Jeanne
Louise Milde? Há de se passar pela emergência do sujeito, como possível de ser
analisado dentro de uma tradição historiográfica. A discussão sobre este sujeito é feita
pelos estudos dos campos: sujeito/contexto, subjetividade/objetividade, representações
de mundo de diferentes sujeitos e grupos sociais.
O gênero biográfico, presente desde há muito tempo nas obras dos que
buscavam um conhecimento histórico, foi usado no século XIX para enaltecer os
grandes homens. Caiu no ostracismo no século XX com o advento da Escola dos
Annales e da História das Mentalidades na França, vertentes da historiografia que
buscavam totalidades. Surge na Itália, no fim dos anos 70, um movimento de
renovação da História. Principalmente com Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, aparece
uma nova perspectiva, a da micro-história que, em linhas gerais, propõe reduzir a
escala, analisando pequenas realidades, muitas vezes a partir de um indivíduo, para
melhor compreender o todo. Nesse sentido, a micro-história é “uma gama de possíveis
respostas que enfatizam a redefinição de conceitos e uma análise aprofundada dos
instrumentos e métodos existentes.
2
Os micro-historiadores trabalham com a relativa
liberdade do indivíduo, mas sabendo que existem limitações do sistema normativo e
prescritivo em relação à liberdade individual.
Assim sendo,
“... o historiador não está simplesmente preocupado com a
interpretação dos significados, mas antes em definir as
ambiguidades do mundo simbólico, a pluralidade das possíveis
1
LEVI, Giovanni. Les usages de la biographie. p. 1335.
2
Idem. Sobre a Micro-História. In: BURKE, Peter. A Escrita da História. p. 135
2
interpretações desse mundo e a luta que ocorre em torno dos
recursos simbólicos e também materiais.
3
Giovanni Levi
4
realiza uma tipologia de biografias em que considera as formas
como são feitas as biografias hoje. Não busca um estudo que esgote a análise da vida
de uma certa pessoa, mas, antes de tudo uma biografia que nos faça pensar sobre
algumas questões mais amplas que perpassam a vida dessa pessoa e enriquecem a
compreensão de outros acontecimentos sociais. Levi divide em quatro os tipos de
abordagem: prosopografia, biografia e contexto, biografia e casos limites e biografia e
hermenêutica. Nesse último caso, biografia e hermenêutica, o material biográfico se
torna discursivo, mas não podemos traduzir a natureza real, a totalidade de
significações que a biografia possui: ela pode somente ser interpretada. Essa
aproximação hemenêutica parece mostrar a impossibilidade de se escrever uma
biografia mas, ao mesmo tempo, faz com que os historiadores reflitam sobre a
utilização das formas narrativas em seu trabalho.
Os problemas, ao se abordar a questão da biografia dentro do conhecimento
histórico, passam por questões de fundo da própria teoria do conhecimento: as
relações entre normas e práticas, entre indivíduo e grupo, entre determinismo e
liberdade ou mesmo entre racionalidade absoluta e racionalidade relativa. Giovanni
Levi encontra uma saída ao estabelecer uma relação permanente entre biografia e
contexto. Sem negar a repartição desigual de poder devemos considerar que os
dominados têm espaços, mesmo que reduzidos, para agir. Não se pode negar a
existência de um habitus do grupo mas, além dele, devemos considerar a existência de
um espaço de liberdade para cada indivíduo.
E é nesse espaço que Jeanne Milde age. Age como sujeito que possui liberdade
de escolha ao vir para Belo Horizonte em 1929, ao entrar para a Real Academia de
Belas Artes de Bruxelas, ao não se casar, não ter filhos e se dedicar ao ensino da arte-
educação. Mas existe também o contexto no qual ela age: é chamada na Bélgica por
um representante do governo mineiro para ajudar a fundar uma Universidade do
Trabalho em Minas Gerais (plano que não foi levado adiante), foi aceita na Real
Academia de Belas Artes, ainda que tenha passado por restrições devido ao fato de ser
mulher e escultora. O sujeito age dentro de um contexto e é na relação e na tensão
existente entre os dois que se produz a história de cada um dos seres humanos.
3
Idem. Sobre a Micro-História. BURKE, Peter. Op. cit. p. 136
3
Propõe-se aqui uma análise biográfica da vida de Jeanne Milde. Não uma
biografia que busque esgotar a análise da vida de uma certa pessoa, mas que procure
pensar algumas questões mais amplas que perpassem a vida dessa pessoa e
enriqueçam a compreensão de acontecimentos sócio-culturais. E uma biografia
realizada com todo o rigor possível, embora sabendo-se que a própria delimitação do
campo de trabalho já representa uma escolha subjetiva do pesquisador.
Além disso, não se pode esquecer que a fala, apreendida em reportagens, em
entrevistas dadas pela artista, muitas vezes não venha a representar aquilo que ela
realmente deseja. Deve-se, pois, trabalhar com os dados de que se dispõe, sem buscar
uma compreensão além do possível, na tentativa de entender o pensamento e a mente
da artista de uma maneira praticamente impossível de ser feita: nem mesmo os
próprios sujeitos se compreendem dessa forma. Existe a necessidade de racionalização
da atuação da artista para uma compreensão concreta de seus atos, suas motivações.
A percepção de suas representações do mundo caminham em via de mão dupla:
tanto ela como os meios em que vive dão significados à sua condição de mulher,
européia, artista plástica, professora. É na conjunção do objetivo e do subjetivo, do
simbólico e do real que Jeanne Milde se faz mostrar e, ao mesmo tempo, constrói sua
percepção de mundo. Nesse sentido, o objeto desta pesquisa encontra-se relacionado
com a micro-história e a biografia.
A cidade
Belo Horizonte, anos 20. Vários trabalhos já versaram sobre a cidade, a nova
capital planejada, pensada, racional, que logo deu espaço à irracionalidade de variadas
ações humanas. Cidade de cafés, de ficus, de avenidas largas, de construção do novo,
de praças, de funcionários públicos, de homens e mulheres desgarrados de suas terras.
Terra de ninguém, buscada por funcionários públicos, trabalhadores de sua construção,
aventureiros, nova sede do governo. Mas mais de 30 anos já haviam se passado desde
a inauguração da cidade quando Jeanne Louise Milde, belga de nascimento, aporta nas
montanhas de Minas.
Mas, qual seria a Belo Horizonte dos anos vinte? Era a Belo Horizonte
moderna, do movimento modernista de Minas? Era a Belo Horizonte tradicional das
4
Idem. Les usages de la biographie, 1989.
4
famílias mineiras que não aceitavam as mulheres fora do aconchego do lar? Belo
Horizonte, se não foi cosmopolita desde o seu princípio, tampouco deixou de possuir
em sua realidade traços do mundo urbano e moderno das cidades: espaço de conflitos
e contradições, de vivenciar o novo entremeado pelo antigo, de existência de classes
sociais distintas, de culturas diversas, de convergência de pessoas desgarradas de suas
terras, de suas realidades. E é esse choque entre o novo e o antigo, convivendo em um
mesmo espaço, que aparece na moderna Belo Horizonte:
Belo Horizonte vivia, na década de 20, mudanças nas
relações sociais e, conseqüentemente, no plano de concepção
de vida e mentalidade vigentes. Fixavam-se na capital mineira
contingentes populacionais oriundos de cidades interioranas
ou de áreas rurais, definindo um intenso processo de
urbanização. Daí a oscilação ideológica dos modernistas
mineiros que ora reduplicavam o pensamento autoritário
bernardista, ora se refugiavam em sua formação liberal.
Surgia uma ampla classe média, devido à circunstância de ser
a capital político-administrativa (e não ainda a capital
econômica) de uma região dirigida por poderosa oligarquia
regional. Note-se ainda a presença dos fazendeiros do ar,
expressão retirada de Carlos Drummond de Andrade e que se
refere ao homem que vem da propriedade rural para a grande
cidade, ingressando na burocracia e recordando, em sua
produção literária, valores e procedimentos formados na
grande propriedade fundiária, normalmente conflitantes com o
novo estilo de vida que encontram.”
5
Belo Horizonte era um espaço de encontro entre o moderno, o novo e o
tradicional, o antigo, oposições que podem vir a fazer parte de um todo, como o todo
de uma vida, moderna em alguns pontos e tradicional em outros. Podem vir também a
fazer parte do todo de uma cidade que tenha como parte integrante a tradição e a
modernidade, dois conceitos definidos a posteriori por aqueles que fazem um discurso
buscando dar inteligibilidade ao acontecimento passado.
Belo Horizonte poderia ser tanto um belo cenário, um “divino corpo com alma
de arraial”, uma “poeirópolis” como o exemplo de um “desenvolvimento inédito”,
símbolo do progresso e da civilização.
6
Poderia ser também “moderna e civilizada,
trepidante, uma verdadeira metrópole ou, ao contrário, uma cidade pacata e
5
BUENO, Antônio Sérgio. O modernismo em Belo Horizonte: década de 20. p. 25.
6
JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna (1891-1920). p.52-53. In: DUTRA,
Eliana Regina de Freitas. BH: Horizontes históricos. 1997.
5
provinciana, perdida em meio as montanhas de Minas, e onde, pela sua sem-graceza,
nem mesmo o trem tem vontade de parar.”
7
Em sua construção, a cidade de Belo
Horizonte já nasce marcada por um discurso do moderno, embora uma determinada
tradição seja preservada com a posterior transformação de Ouro Preto em “panteão da
nação brasileira.
8
Não seria uma tradição que teria como locus a própria cidade, a
tradição estaria relacionada com o resgate das figuras dos inconfidentes e da própria
preservação de um passado das Minas Gerais com a mudança da capital de Minas para
um “espaço de debate político e de ganho material que completava o destino das
Minas Gerais e dos seus heróis
9
Ao mesmo tempo em que existiria não uma ruptura do tipo novo/velho,
moderno/antigo, mas uma recomposição do tempo histórico dentro de uma
legitimação da justaposição tradição/ futuro
10
, Belo Horizonte era marcada pelo
discurso da modernidade, da necessidade de uma modernização de seu espaço. A Belo
Horizonte pretendida por seus idealizadores seria moderna e civilizada, civilizada de
acordo com os modelos europeus: Paris, Londres, Berlim e, por que não, Bruxelas, a
Bruxelas de Mlle. Milde. A artista belga aparece aqui como representante desta
civilização desejada para Belo Horizonte, a civilização européia, a modernidade do
Velho Continente. Jeanne Milde seria uma figura bem vinda na cidade que pretendia
se modernizar, que buscava conformar a urbe dentro de novos padrões.
Belo Horizonte nasce para ser a capital moderna do Estado de Minas Gerais em
tempos republicanos. Cidade planejada de acordo com os novos padrões europeus do
século XIX, versão brasileira das reformas de Paris, concebidas por Haussman, e de
Viena com a abertura da Ringstrasse. Belo Horizonte nasce marcada pela necessidade
do novo, cidade nova para novos ventos, mas sempre ancorada na representação de
valores tradicionais que tentavam, de toda maneira, se fazerem valer na capital.
Dois periódicos da Belo Horizonte dos anos 20, marcados por retóricas
passadistas e modernistas, servem para mostrar o ambiente que existia na cidade: A
Revista e O Leite Criôlo. Podemos assim perceber A Revista:
7
SILVEIRA, Anny Jackeline Torres Silveira. O sonho de uma petite Paris: os cafés no cotidiano da
capital. In: DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Op.Cit.
8
MELO, Ciro Flávio Bandeira de. A noiva do trabalho, uma capital para a república. p.45. In: DUTRA,
Eliana Regina de Freitas. Op.cit.
9
Ibidem. p.45.
10
Ibidem. p.13.
6
“... tem uma peculiaridade entre as publicações modernistas
brasileiras em geral: apresenta em seu espaço duas escritas, a
acadêmica e a modernista. No mesmo momento escritural,
coexistem linguagens que se contradizem. Esse banquete
heterogêneo é servido ao leitor cujo paladar certamente estava
habituado às iguarias convencionais. E os novos alimentos
vêm misturados aos costumeiros para serem mais facilmente
digeridos.”
11
Percebe-se Jeanne Louise Milde como uma representante desse
moderno/tradicional, parte integrante da modernidade, dialeticamente se relacionando
na constituição do ser e do espaço ocupado por este ser. É uma modernidade marcada
pelo moderno e pelo tradicional, não somente pelo moderno ou pelo tradicional,
segundo Marshall Bermman, o isto e aquilo da modernidade no século XIX.
12
Ela
chega em Belo Horizonte no ano de 1929, com uma formação acadêmica, tradicional,
mas ao mesmo tempo proveniente de uma realidade européia na qual os movimentos
modernistas nas artes já haviam ocorrido. A artista vinha de Bruxelas, a Bruxelas do
Art Nouveau de Victor Horta, por sua vez professor na Real Academia de Belas Artes
de Bruxelas na qual Milde realizou seus estudos. Milde, assim como A Revista,
também traz em si elementos acadêmicos e modernistas. Com relação à pintura
prevalecia, em Belo Horizonte, o academicismo de Aníbal Mattos, com algumas
incursões pelo impressionismo de nomes como Genesco Murta. Contudo, a Belo
Horizonte encontrada por Milde já conhecera outra mulher artista que viera mostrar
uma arte moderna na capital de Minas: Zina Aita.
Zina Aita realizou em 1920 a primeira exposição de arte moderna na cidade.
Sua obra utilizava intensamente as cores, algo não visto anteriormente em Belo
Horizonte. Transgressora das normas acadêmicas vigentes, pode se perguntar até que
ponto essa exposição influenciou as relações existentes entre os membros do meio
artístico. Mas, de qualquer maneira, teve repercussão, tendo tido defensores e
detratores da arte exposta pela artista, belorizontina de nascimento, com formação
artística realizada na Itália. A artista logo retornou à Itália, após ter participado da
Semana de Arte Moderna de 22 em São Paulo, permanecendo no país de origem de
seus pais até o fim da vida.
11
BUENO, Antônio Sérgio. O modernismo em Belo Horizonte: década de 20. p. 35
12
BERMAN, Marshall. Introdução. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da Modernidade.
p.15-37.
7
Nos jornais de Belo Horizonte percebe-se uma vontade de se ser moderno,
ancorada nos novos tempos que estavam chegando na capital, tempos de progresso e
desenvolvimento ao mesmo tempo técnico e social. Juntamente às notícias sobre a
exposição de Aita na capital, outras, falando da conquista de novos espaços pelas
mulheres, aparecem nas páginas dos diários, mostrando os progressos do
feminismo
13
e as conquistas realizadas pelas mulheres.
Assim, se em um primeiro momento as artes em Belo Horizonte estavam
marcadas por um academicismo, estavam também abertas aos novos tempos do
ecletismo e do Art Nouveau. É dentro dessa Belo Horizonte que aparece a figura de
Jeanne Louise Milde, como mulher e artista atuante na cidade a partir do ano de 1929.
Proveniente da Bélgica, traz em seu ser a idéia da modernidade e da civilização. É a
própria artista que dá o tom do que teria vindo fazer no Brasil: “Pensei bem e cheguei
à conclusão de que na Europa já estava tudo feito. Não podia dispensar uma
oportunidade de ir para um lugar onde estava tudo por fazer.
14
A vida de Jeanne Louise Milde pode ser tomada como referência para a
compreensão do tradicional e do moderno na capital de Minas, o desenrolar da arte-
educação na Belo Horizonte das décadas de 30 a 50, a inserção da mulher nas artes
neste mesmo século e a questão das opções feitas pela artista, que elege e escolhe suas
influências nas artes plásticas e o local onde vai se instalar dentro de certa gama de
possibilidades. O contexto e o indivíduo são analisados, sendo aquele compreendido
como algo não rígido, passível de ser reelaborado a partir de novas interpretações.
Belo Horizonte aparece aqui como um local, um palco para a atuação de personagens:
artistas, professores, alunos, governantes, funcionários públicos, que se relacionam no
espaço da cidade.
Mas como estabelecer o espaço do sujeito Jeanne Milde no século XX? Como
realizar um estudo sistemático desse sujeito? Partindo do pressuposto de que os
sujeitos são múltiplos e variados, não devemos considerar a mulher só como membro
de uma categoria geral de mulheres, mas, também, a partir de outros aspectos de sua
vida: raça, classe social, meio em que esta mulher vive, relações sociais por ela
estabelecidas. Jeanne Milde deve ser estudada como uma européia, branca, artista
plástica, professora, membro de uma classe média urbana e mulher que age e atua
dentro de um mundo através de suas convicções e por meio de práticas sociais.
13
DIÁRIO DE MINAS. 17 janeiro de 1920. p. 01.
14
ESTADO DE MINAS, Feminino, 23 novembro 1997, p.09.
8
Qual seria a condição de Jeanne Louise Milde como mulher, artista plástica e
professora de artes? Milde se insere em um determinado meio, o artístico, e se
apropria das formas de representação aí existentes, mas com uma diferenciação básica:
como mulher. Não se pode deixar de considerar que, pelo fato de ser proveniente de
um outro espaço, o europeu, talvez fosse percebida, pelos habitantes da cidade, antes
como artista plástica européia e civilizada do que como uma mulher artista plástica.
Ao se reduzir o objeto a uma determinada individualidade, se por um lado
restringe-se o campo a ser analisado, por outro verifica-se que a gama de
possibilidades apresentadas no estudo da vida de um sujeito é muito grande. Torna-se
necessário, então, delimitar as perguntas e direcionar o estudo. Essa a razão para se
dividir a dissertação em três capítulos.
O primeiro capítulo, Da formação na Bélgica à formação das brasileiras:
ventos civilizados acadêmicos e modernos para a moderna Belo Horizonte, aborda a
formação da artista na Bélgica e as conjunções que fizeram possível sua vinda para o
Brasil, para Belo Horizonte e sua atuação como professora de artes. Sua formação
realizou-se na Real Academia de Bruxelas, sendo analisados a estrutura da Academia
assim como as influências que os mestres tiveram na arte de Milde e também o meio
artístico belga, no qual Milde já se integrara antes de sua vinda para o Brasil. Para se
compreender sua arte e o modo como se relaciona com o mundo, deve-se observar sua
cultura primeira, a do meio artístico de Bruxelas do início do século. No outro aspecto
tratado, as conjunturas que possibilitaram a vinda de Mlle. Milde para a capital de
Minas, o ponto principal é a Reforma de Ensino de Francisco Campos e a sua atuação
como professora de artes: de aluna da Real Academia a professora de artes para as
professoras primárias.
O segundo, Horizontes artísticos: Jeanne Milde e as artes plásticas na capital
de Minas, procura elucidar a inserção da artista plástica no meio artístico da nova
capital de 1929 até os anos 90. A partir do local ocupado por ela como mulher e
escultora em Belo Horizonte, mostra-se como ela se inseriu no meio artístico sem
choques. Ela adotou os valores do meio, ligando-se ao artista de maior peso na cidade
na década de 20, Aníbal Mattos, e, ao mesmo tempo, abrindo espaço para novas
linguagens artísticas, diferentes do academicismo de Mattos, com sua participação no
Salão do Bar Brasil de1936. Jeanne Milde realizou exposições na cidade nos anos 30 e
40 e participou dos diversos salões que ocorreram na cidade no período. Ela não faria
mais parte do meio artístico de forma intensa a partir dos anos 50 reflexo da chegada
9
de nomes como Guignard ainda nos anos 40 e da construção do complexo da
Pampulha, marco da arquitetura e do urbanismo modernos. Além disso, foi nos anos
50 que se aposentou do cargo de professora no Instituto de Educação. Foi relembrada
nos anos 80, a partir de estudos empreendidos por Ivone Luzia Vieira e de diversas
homenagens que lhe foram prestadas ao longo das décadas de 80 e 90.
A análise das esculturas de Milde é o ponto central do terceiro e último
capítulo, Moderna, mas com uma base clássica... Sua obra insere-se dentro de uma
tradição escultórica onde aspectos acadêmicos e modernos se encontram. A artista,
formada em padrões artísticos ligados a uma arte mais característica do século XIX,
entrou em contato com novas linguagens artísticas ainda na Bélgica: a arte das
vanguardas já havia chegado a Bruxelas. Mas sua arte não é uma arte vanguardista,
ainda que seja moderna. Em sua arte integram-se elementos de diversos movimentos
artísticos como Simbolismo, Art Nouveau, Art Déco e expressionismo, assim como
percebe-se a influência de mestres como Auguste Rodin, influência assumida pela
artista, Constantin Meunier e Georges Minne, escultores belgas de grande influência
na arte moderna. Como era necessário um corte em sua produção artística, a
preferência foi dada às obras presentes no acervo do Museu Mineiro, que podem dar
uma idéia do todo da sua produção artística.
Onde foram encontradas as fontes para a escrita da dissertação? Elas fazem
parte, em sua grande maioria, do acervo pertencente à artista, doado ao Museu Mineiro
ainda em vida por Milde. Nesse acervo, encontram-se diversos recortes de jornais
desde o tempo em que estudava e trabalhava na Bélgica e reportagens sobre seu
trabalho como professora e artista em terras brasileiras, dos anos 20 aos anos 50, além
de diversas esculturas e utilitários. Reportagens e entrevistas da artista nos anos 80 e
90 também integram o corpus documental que serviu de base para a realização da
biografia de Milde.
10
I DA FORMAÇÃO NA BÉLGICA À FORMAÇÃO DAS BRASILEIRAS:
VENTOS CIVILIZADOS ACADÊMICOS E MODERNOS PARA BELO
HORIZONTE.
“Minha mãe não podia imaginar que eu queria ser escultora.
Era uma coisa impossível para ela compreender.
“E eu fui a única mulher que foi aceita na Escola de Belas Artes
a ser aluna entre os jovens. E os jovens me criticavam muito. Eles
diziam: esta mulher pequenina se julga ser um dia escultora com este
saltinho alto e esta roupa de enfeita.”
15
Jeanne Louise Milde
Jeanne Milde nasceu e se formou em Bruxelas. Durante os primeiros 29 anos
de sua vida, a sua realidade foi aquela cidade, as relações e os princípios de seu povo.
A formação da artista se deu nas terras belgas, européias, num momento de mudança
nas artes: vanguarda, modernismo, novas linguagens artísticas. Mas sua aprendizagem
se realizou em um ambiente tradicional europeu: uma Academia de Belas Artes. Para
além da arte, a formação da artista como ser humano realiza-se dentro daquela cultura
e as suas relações com o mundo vão ser marcadas por todo o aparato cultural com o
qual esteve em contato desde o início de sua vida. A posição da mulher-artista na
sociedade belga deve, pois, ser observada, buscando o seu lugar dentro de uma
realidade distinta da belorizontina.
Nasceu no ano da virada do século: 15 de julho de 1900, filha de Josse Milde e
Mathilde Cammaerts Milde. Era o início do século XX, de tantas transformações, pano
de fundo para a vida em exame, a de Jeanne Milde. Longo ou breve, o século XX que
serviu de palco para a artista foi uma época de profundas transformações, marcada por
duas grandes guerras, em uma das quais a artista estava presente, não como
participante direta, mas como habitante de áreas atingidas. Foi um século de
significativas mudanças nas artes, de movimentos como o futurismo, o cubismo, o
fauvismo, o surrealismo, o construtivismo, da maior divulgação do cinema, do
surgimento da televisão, da chegada do homem ao espaço. Foi também o século do
desespero: miséria, fome, guerras, possibilidade de destruição do mundo pela bomba
atômica...
15
Vídeo: FROTA, Gastão. A vida na arte de Jeanne Milde. Belo Horizonte, 2000.
11
Embora o foco principal do trabalho sejam as relações que se estabelecem com
a chegada de Jeanne Milde em terras brasileiras, a tentativa de compreender sua
formação como artista ajuda a elucidar sua atuação em Minas Gerais. Sua formação é
determinante, mas não age como uma camisa de força que amarra a artista por todos
os lados. Sem negar a importância fundamental daquele período em sua vida, não se
pode esquecer das novas relações que transformarão seu ponto de vista (ou não) no
momento em que toma contato com novas culturas - belorizontina, mineira, brasileira -
e com novas possibilidades de mundo.
Face importante da vida e do trabalho de Jeanne L. Milde, sua ligação com a
arte-educação remonta à sua formação na Real Academia de Belas Artes de Bruxelas.
Quais seriam as metodologias de ensino, as teorias adotadas na Real Academia e quais
seriam as escolhidas por Jeanne Milde ao chegar em terras brasileiras? Essas perguntas
devem ser feitas sem se esquecer de um diferencial básico: o estudo de Milde como
artista se deu em moldes clássico-acadêmicos, enquanto sua atuação como professora
na capital mineira será destinada a formar professoras que se utilizarão de saberes
artísticos para ensinarem a seus alunos outras disciplinas.
12
I.I Da formação em Bruxelas
A mulher, a artista e a cidade na virada do século XX
Assim como nos demais países europeus, as primeiras décadas do século XX
foi um período de lutas do movimento feminista na Bélgica: pelo direito ao trabalho,
pelo direito ao voto, pelo direito à cidadania, por direitos civis e sociais. A Bélgica de
Jeanne Milde não era diferente. Embora não fosse participante de nenhum movimento
pelos direitos femininos, Milde esteve indiretamente ligada à conquista daqueles
direitos ao entrar na Real Academia, local onde não havia muitas mulheres e onde,
segundo relata, não teve uma recepção muito calorosa.
Durante o século XIX, com o aumento da urbanização, tornara-se necessário
reestabelecer os papéis sociais dentro de um novo mundo das cidades. Michelle
PERROT considera o espaço público a partir do século XIX como espaço das cidades,
no qual homens e mulheres encontram-se nas extremidades opostas da escala de
valores. O homem público é respeitável: desempenhando um papel importante e
reconhecido, mais ou menos célebre, ele participa do poder. Já a mulher pública é a
parte escondida da cidade, é venal e debochada, um simples objeto, um território de
passagem sem valor, é a prostituta, a mulher de vida fácil, que não fica no aconchego
do lar. A mulher pública é vista de maneira extremamente negativa na distribuição de
papéis entre homens e mulheres: "para os homens o público e o político, seu
santuário, para a mulher, o privado e seu coração, a casa."
16
Com relação aos direitos políticos, na Bélgica independente de 1830, assim
como em todos os países europeus naquele momento, o voto não era permitido à
mulher. O status civil da mulher era o mesmo dos menores de idade e dos
incapacitados: só poderia trabalhar com a autorização do marido. O espaço público das
cidades não era, inicialmente, permitido às senhoras da sociedade e às moças de boa
família. Gradualmente, a cidade vai proporcionar o encontro das esferas pública e
privada, no sentido de que as mulheres (antes restritas à esfera privada) passam a
transitar no espaço público ao saírem de casa, seja se apresentando ou representando e,
cada vez mais, ocupando um lugar público, não mais restrito a sua casa, ao domínio do
privado.
16
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. p. 10.
13
Diferenciando espaço público e esfera pública, podemos definir esfera pública,
por oposição à esfera privada, como "o conjunto, jurídico ou consuetudinário, dos
direitos e deveres que delineiam uma cidadania mas também os laços que tecem e
fazem a opinião pública." O espaço público seria "mais concreto e material ...
amplamente equivalente à cidade, é um espaço sexuado em que os homens e as
mulheres se encontram, se evitam ou se procuram."
17
Mas neste trabalho o que se encontra em questão não é a vida privada de
Jeanne Milde. Não por considerá-la de menor importância para o conhecimento
histórico e sim por ver a entrada das mulheres no campo das artes plásticas como uma
conquista em um espaço antes reservado aos homens. As mulheres passam a ter a
opção de ingressar em determinado campo e não ficam mais restritas a um mundo
privado, visto como o lugar natural das mulheres. Aqui se encontra a defesa de uma
possibilidade de escolha para mulheres que pretendiam seguir a carreira de artistas
plásticas: foram necessárias mulheres como Jeanne Louise Milde para que este campo
do fazer e do conhecimento humano fosse ocupado também por mulheres e não
somente por homens. Ou seja, antes de mais nada, a abertura desse campo para as
mulheres possibilitou um espaço a mais e uma alternativa a mais para as mulheres.
E essa mulher, belga, artista plástica, é uma mulher da cidade, de cidades,
inicialmente de Bruxelas, posteriormente de Belo Horizonte. No século XX, as
mulheres conquistaram um espaço de fala, de escrita e de representação de si mesmas,
tornaram-se sujeito, deixando de ser representadas em um mundo público somente
pelos homens, antes praticamente os únicos agentes e participantes da construção do
saber humano, o espaço da escrita, da leitura, do conhecimento, das academias, da
ciência, das artes plásticas. A entrada da mulher no mundo do trabalho implicou
transformações na relação entre o público e o privado, uma vez que
"A presença constante das mulheres tanto no mercado de
trabalho como no campo cultural e político levou à evolução
do direito privado e à mutação das actividades domésticas,
que por sua vez facilitaram o alargamento da esfera feminina
pública."
18
Este trecho serve para ilustrar a importância fundamental da entrada da mulher
em ambientes nos quais não era bem vista: além do direito de escolha, a mulher passa
17
Ibidem. p. 7-8.
18
THÉBAUD, Françoise. Introdução. História das Mulheres: o século XX. p. 20.
14
a ter voz ativa em direitos que antes ficavam restritos ao privado, mas que acabaram
por se tornar públicos uma vez que as mulheres se tornaram públicas.
Das primeiras décadas do século até fins da Segunda Guerra Mundial,
observam-se os movimentos feministas, neles incluídas organizações sufragistas
femininas, caminhando em direção à conquista do direito de voto da mulher, que no
Brasil efetua-se em 1934. Além disso, há a entrada efetiva da mulher no mercado de
trabalho urbano, processo iniciado no século XIX e que na Europa e nos Estados
Unidos vai ser incentivado com as guerras pois, com os homens na frente de batalha,
seus empregos teriam que ser assumidos pelo sexo feminino. No entanto, com o fim da
guerra e a volta destes para seus empregos de origem, novamente se incentivaria o
modelo de mulher do lar.
A mulher é chamada de volta ao lar ou então para trabalhar no setor que se
convencionou chamar de setor de serviços. Conhecido como período de interregno, o
período que vai de 1945 a meados da década de 60 ainda é pouco estudado com
relação aos movimentos feministas talvez por não ter havido confronto direto, como
nos momentos anterior e posterior, um pela luta pelo voto feminino e outro pela luta
por igualdade de oportunidades em todos os setores da vida, ainda mais acirrada com
os movimentos feministas dos anos sessenta.
19
Na Bélgica, de 1890 a 1914, tem-se um período de fermentação na conquista
de direitos femininos. Surgem movimentos que lutam pelos direitos, na burguesia e
nas classes trabalhadoras, estes últimos juntamente com movimentos socialistas.
20
As
mulheres passam a ocupar espaços a elas antes não permitidos, se não legalmente, ao
menos por costume: o das salas de aula universitárias, o de juízas. Com a Primeira
Guerra Mundial, as mulheres se afastam das lutas por direitos como o de votar, o de
melhores condições de trabalho para as trabalhadoras, e mantêm atividades de
beneficência, como, por exemplo, a ajuda aos soldados de guerra. No curso dos anos
20 observa-se o desabrochar dos movimentos feministas que haviam surgido no
período de 1890 a 1914. Alguns grupos vão se ocupar da conquista do direito ao
trabalho e ao sufrágio feminino, da igualdade jurídica e lutar contra a prostituição e
pela proteção à infância, caso do Conselho Nacional de Mulheres. Ao mesmo tempo,
outros vão estar trabalhando por obras educativas, sociais e de caridade. Em 1921
19
LANGRAVE, Rose-Marie. Uma emancipação sob tutela. Educação e trabalho das mulheres no século
XX. In: THÉBAUD, Françoise (direção). História das Mulheres: o século XX. p. 505-543.
20
DE WEERDT, Denise. Zoé, Isabelle, Louise et les autres. Vies des femmes. 1980.
15
surge a Federação Belga de Mulheres Universitárias e em lei de 19 de fevereiro de
1921, as mulheres obtêm o direito de voto ativo aos 21 anos e o de voto passivo aos 25
anos nas eleições comunais. Somente em 1948 todas as mulheres passam a ter o
direito de participar das eleições parlamentares.
Qual era o espaço da mulher-artista na Bélgica? Assim como a História da Arte
Ocidental, a História da Arte na Bélgica esteve marcada por um pequeno número de
mulheres-artistas em seus meios. Aos poucos, de meados do século XIX ao século
XX, elas ocupam, cada vez mais, o meio artístico, passando de modelos a artistas. A
mulher vai passar de ser passivo de representação àquele que representa, que toma
para si os meios de produção artística. Ao longo da história das artes, a mulher não se
destacou no plano das artes plásticas. Que mulher se encontra entre os grandes nomes
dos artistas renascentistas, barrocos, neoclássicos ou românticos? As mulheres não
tinham acesso nem aos meios de produção artística pincéis, tintas, telas, madeira,
ferro, cinzel nem a um mestre e a um aprendizado acessíveis aos artistas homens.
Havia o discurso de que a mulher, um ser distinto do homem, deveria ter papéis
diferenciados, definidos natural ou religiosamente: o papel da mãe, da mulher do lar,
restrito a um ambiente privado, um ambiente distante das conquistas de um mundo
público de participação política, da luta por direitos e do espaço de discussão. Cabia-
lhe aceitar o seu papel de esposa honrada e mãe devotada. No entanto, a mulher não
vai limitar-se a exercer esse papel: ao longo do século XIX e XX vai lutar por um
lugar ao sol nas ruas das cidades, nos espaços de discussão pública, no mundo do
trabalho.
Jeanne Milde não se filiou a nenhum movimento feminista, mas teve uma vida
que pode ser analisada sob a ótica das conquistas realizadas pelas mulheres. Assim
como ela, outras mulheres começaram a trabalhar e a buscar uma profissão para se
inserirem em um espaço público, espaço de conquista individual e de uma coletividade
a qual o indivíduo pertence. Sem um engajamento político em partidos, em
movimentos feministas, sem queimar sutiãs, a transformação que ajudou a realizar foi
mais silenciosa: mostrando-se capaz de realizar uma atividade à qual as mulheres
ainda não haviam tido acesso.
Uma das etapas da aprendizagem nas academias de belas artes era realizada
com a utilização de modelos masculinos nus, visando à representação perfeita do
corpo humano pelo artista, aliás, representação bastante valorizada por Mlle. Milde.
Às mulheres não era permitida a visão do modelo nu, o que lhes limitava o acesso à
16
aprendizagem da base do desenho, considerada fundamental no ensino das belas
artes). Ficavam, pois, restritas a retratos, paisagens e naturezas-mortas.
21
Essa
orientação das academias constituía um empecilho à existência de estudantes mulheres
entre seus alunos.
A mudança radical em relação ao gênero no panorama artístico não se dá a não
ser no momento em que no próprio meio artístico com os movimentos modernos
os valores deste meio, de representação do real a partir de moldes clássicos, da
perspectiva, das leis de representação, são colocados em xeque. A entrada de mulheres
no meio artístico só ocorre, pois, quando há a quebra de tradições no campo da
representação nas artes ocidentais.
Com o impressionismo essa cena se transforma. Mulheres passam a ocupar o
lugar de artistas: as pintoras francesas Berthe Morisot e Mary Cassat, assim como a
belga Anna Boch, única pessoa a comprar um quadro de Van Gogh quando este ainda
estava vivo, e que era “um elo importante do meio artístico e intelectual [de Bruxelas]
e organizava entre outros, nas segundas-feiras, saraus musicais nos salões de seu
palacete em Ixelles.
22
Além dessas, não se pode esquecer a escultora Camille
Claudel, escultora renomada, aprendiz do escultor francês Auguste Rodin. Dentre as
pintoras, desenhistas, escultoras belgas que se destacaram em fins do século XIX e
princípios do século XX podemos citar além de Anna Boch, Jenny Montigny, também
impressionista; Marthe Donas, que manteve contato com o “De Stijl”, adotou a
linguagem cubista e foi convidada para participar das exposições de “Der Sturm”;
Marthe Guillain que teve contato com o meio artístico parisiense na década de 10 e foi
viver na África entre os pigmeus em 1953; Cécile Douard, escultora e escritora, que
teve sua entrada na Academia de Mons recusada, recebendo a autorização para aí
ingressar somente em 1911. Outra artista a ser citada é Louise Danse, desenhista que
fazia litos e águas-fortes, e era filha do pintor e gravador Auguste Danse.
Mas, mesmo dentro do que se chama arte, existem diferenças. Uma diferença
fundamental aparece entre a prática da pintura e da escultura: os meios necessários
para a prática da segunda são muito mais difíceis de se relacionar à “natural”
feminilidade e fragilidade da mulher. A prática da aquarela e do desenho exige
materiais menos “masculinos”, por assim dizer. Já a prática da escultura exige
21
LENNEP, J. Van (coord). Academie Royale des Beaux-Arts de Bruxelles 275 ans d’ enseignement.
1987.
22
MERTENS, Phil. Paradise Regained. Du modéle à l’artiste. Vies des femmes. p. 94.
17
materiais que demandam mais força para serem trabalhados e espaços muito mais
amplos. Essa, possivelmente, é a razão para se encontrar um número maior de
mulheres pintoras do que de escultoras.
Existiram algumas artistas em momentos anteriores ao final do século XIX.
Entretanto, assim como em outras profissões, as mulheres se inseriram mais
profusamente no meio artístico a partir do século XX, momento de mudanças que
possibilitaram o questionamento dos valores eternos do Renascimento. Embora não
exista uma relação de causa e efeito entre os dois acontecimentos, podemos afirmar
que a participação das mulheres no meio artístico e o questionamento dos valores
ocorreram simultaneamente.
A Real Academia de Belas Artes de Bruxelas
Da vida acadêmica de Jeanne Louise Milde, de 1918 a 1925, temos notícias
dos prêmios e notas que obteve, tendo sido sempre uma estudante aplicada.
23
A
própria artista nos fala sobre o momento em que se inicia no estudo e da relação entre
a artista-mulher e o ambiente da Academia, pouco acolhedor à sua figura:
E eu fui a única mulher a ser aceita pela Escola de Belas
Artes, a ser aluna com os jovens. E os jovens me criticavam
muito, eles diziam “essa mulher pequenina se julga ser algum
dia escultor, com esse saltinho alto e essa roupa de enfeita,
eles falavam.”
24
Mas, ao mesmo tempo em que frisa a dificuldade de ser aceita como mulher,
Mlle. Milde revela que foi a partir do seu talento, pela forma como obtinha a
expressividade de suas obras, que conseguiu se impor como artista nesse meio
predominantemente masculino:
...mas meus professores, quando eles vinham para me
corrigir, e principalmente na parte de escultura, eles me
perguntavam: mas como que você faz para dar expressão a
suas figuras. E eu dizia que eu olhava o modelo, a
composição...
25
23
Ver anexo 1, com dados das disciplinas cursadas por Mlle. Milde na Real Academia de Bruxelas.
24
Entrevista dada ao CRAV em 1996.
18
Ao que parece, ao iniciar a vida artística, Mlle. Milde entra em choque com sua
família. É a própria artista que nos relata a reação da família, ao dizer que nem seu pai
nem sua mãe a queriam na Real Academia de Belas Artes:
[...] Era minha mãe que não queria. Mas se meu pai soubesse
ele não deixava, mas eu não declarei e eu ia na Escola de
Belas Artes sem ele saber, pensando que eu estudava ainda, e
de fato estudava, porque a parte teórica é uma e a parte
escultural era outra.”
26
A entrada na Academia, apesar das adversidades ocasionadas pelas posições
proibitivas da família, aconteceu em 24 de setembro de 1918, sendo 18850 seu número
de registro. Ainda na Bélgica, sua obra estava marcada pelo academicismo, tendo a
artista estudado por quase dez anos na Real Academia de Bruxelas. Teve aulas com
De Rudder, Matton, Dubois, Marin, Rousseau e, talvez, Victor Horta, nomes que
aparecem à frente das cadeiras de escultura durante seu tempo de estudante na
instituição.
27
Para melhor compreender a formação da artista, é preciso examinar o lugar
ocupado pela Real Academia de Belas Artes de Bruxelas, em princípios do século XX,
no panorama artístico da cidade.
28
O termo “Academia” nos remete à palavra
acadêmico, a academicismo, expressão considerada pejorativa a partir do
desenvolvimento das vanguardas e que passa a ter um sentido de oposição, se
comparamos a arte acadêmica à arte moderna.
Instituição tradicional na cidade de Bruxelas, a Academia foi inaugurada em
1711, contando com mais de dois séculos de atividades no momento de ingresso de
Milde em seus quadros. Seu modelo era a Accademia del Disegno, fundada em
Florença em 1563. Posteriormente, em 1768, após ter sido colocada sob a proteção do
duque Charles de Lorraine, passou a se chamar “Academia de Pintura, Escultura e
Arquitetura” de Bruxelas.
Mas a função primordial da Academia era ensinar a arte do desenho, sendo este
a base para todas as outras artes:
25
Entrevista ao CRAV em 1996.
26
Entrevista ao CRAV em 1996.
27
ACADEMIE ROYALE DES BEAUX ARTS ET ARTS DECORATIFS. Distribution de Prix,
Dimanche, 21 mars 1926. Concurs de l’anée scolaire 1924-1925. Bruxelas, Typographie et
Lithographie E. Guyot, 1926.
28
Para conferir as informações sobre a Academia, ver o livro LENNEP, J. Van (coord). Academie
Royale des Beaux-Arts de Bruxelles 275 ans d’ enseignement. 1987.
19
Na origem, as academias são por destino as escolas de
desenho (A Academia de Bruxelas não escapa a esta regra) e a
cor, que não era considerada a não ser como um produto
subordinado ao desenho, será por muito tempo negligenciada
no ensino acadêmico.”
29
Essa função primordial será considerada no ensino dos diversos alunos que
passam a freqüentar aquele espaço de ensino, o que ocorreu mesmo à época dos
estudos de Mlle. Milde. Não por acaso, das cadeiras cursadas por ela nos seus três
primeiros anos na Academia, três eram de desenho.
30
Essa valorização do desenho
como base para as outras artes permanecerá no ensino: Alberto da Veiga Guignard,
quando assumiu as aulas na Escola do Parque em Belo Horizonte, em 1944,
privilegiava o desenho como primeira arte a ser desenvolvida pelos alunos. Só
posteriormente seus alunos passavam a aprender a pintura.
Somente em 1849 será criado o curso de pintura na Academia. Um ano antes,
em 1848, a Escola Real de Gravura havia sido anexada à instituição. Na constituição
de novos cursos, percebe-se uma tendência, já em meados do século XIX (de 1860 a
1862), de se voltar o ensino à promoção das artes aplicadas à indústria, dentro de uma
perspectiva utilitarista. A Exposição de Londres de 1851 serviu de impulso para a
valorização do ensino de artes aplicadas à indústria e esses novos ventos sobre o papel
reservado às artes acabaram por soprar em toda a Europa Ocidental. Essa relação arte-
indústria estará presente na formação e no ensino de Mlle.Milde.
Ao mesmo tempo em que há uma valorização das artes aplicadas, as artes
liberais também possuem lugar de destaque: o novo programa de 1862 insiste no
respeito à expressão pessoal e à individualidade do estudante.
A efetivação do desejo de se juntar o ensino de artes às novas técnicas
industriais ocorrerá em 1886, com a instituição da Escola de Artes Decorativas. O
ensino da escultura é também modificado, com o fim da cadeira de composição
histórica, extremamente valorizada no século XIX. No momento em que Milde realiza
seus estudos, os cursos de composição histórica já haviam sido abolidos e o local de
estudo da artista era a Real Academia de Belas Artes e Escola de Artes Decorativas a
Real Academia adotara este nome em 1886.
29
Ibidem. p. 23.
30
Ver anexo I
20
No século XIX, havia duas concepções do fazer artístico e da arte
31
: uma,
baseada em Ruskin e Morris, valorizava o artesanato, o gosto do belo por ele mesmo,
estando ligada ao resgate de um modo de fazer arte antigo, revalorizado; a outra
também valorizava o artesanato, mas como uma prática adaptada aos novos tempos
industriais, que coexistia com as Belas Artes. A concepção de Ruskin e Morris
relacionava-se a um resgate de uma arte do passado enquanto a outra concepção
procurava conformar a arte ao presente industrializado.
O objetivo da direção da Escola, ao abrir suas portas para o ensino de artes
decorativas, era possibilitar aos artesãos e operários o conhecimento da arte. Buscava-
se uma democratização do ensino de artes aplicadas e uma aplicação da arte à
indústria, colocando-se aquela a serviço desta mas, paralelamente, levando noções
ligadas às “artes maiores” para esta arte decorativa ligada à indústria.
32
Essa prática de
ligar a beleza na arte aos objetos cotidianos pode ser observada na própria concepção
de arte e ensino de Mlle.Milde, tendência ainda presente na Academia nos seus tempos
de estudo e por ela adquirida.
Existiam, ainda, na Bruxelas do século XIX, ateliês de pintura e escultura onde
os artistas-professores da Academia ofereciam aulas complementares aos alunos da
instituição. As mulheres, cujo acesso à Academia era vedado, podiam freqüentar esses
cursos paralelos. Somente no ano de 1892 elas têm acesso ao ensino da Academia.
Mas
os argumentos a favor da admissão ao curso de desenho
industrial estavam cheios de preconceitos. O acesso seria
subordinado a uma formação em artes industriais, toda a
pretensão feminina se resumiria ao desenho aplicado ao
bordado e à tapeçaria, ou com uma vocação de colorido.
33
Havia um choque entre diretores da Academia sobre a presença de mulheres
na instituição: um dos diretores, Portaels, vê reflexos na produção dos alunos homens,
pois “a presença das jovens, sem inconveniente nos cursos inferior e médio, exerce
uma influência deplorável nos cursos [cursos superiores]”
34
. Mas havia os defensores
da presença feminina, como Van Der Stappen (escultor e diretor da escola de 1898-
31
LENNEP, J. Van (coord). Academie Royale des Beaux-Arts de Bruxelles 275 ans d’ enseignement.
1987.
32
Ibidem.
33
Ibidem. p. 23 e 35.
34
Ibidem. p. 35.
21
1901 e de 1907 a 1910), que exaltava o sucesso alcançado pelas mulheres nos
concursos promovidos pela Escola. A conclusão a que se pode chegar com tais dados é
a de que já existia na Academia, no momento de ingresso de Jeanne Milde, uma certa
abertura ao ensino das artes às mulheres.
Victor Horta, o conhecido artista do Art Nouveau belga, formulou, em 1914,
um projeto de reestruturação do ensino da Academia, aprovado pela cidade de
Bruxelas, mas que não foi posto em prática. Horta propunha uma aprendizagem
progressiva dos alunos que passariam do ensino das artes decorativas ligadas à
indústria para um ensino realizado na Real Academia. Prevaleceu, entretanto, o
sistema anterior de ateliês livres proposto por Hermman Richir, que achava necessário
existir uma divisão efetiva entre a Real Academia e a Escola de Artes Decorativas: o
ensino das duas era diferenciado e não progressivo como o proposto por Victor Horta.
Apesar do projeto de Horta ter sido aprovado pelo Conselho Comunal de Bruxelas em
1914, ele não foi efetivado em razão do início da 1ª Guerra Mundial. Em 1918, com o
fim da Guerra, os ventos sopravam a favor de Richir. Foi o sistema de ateliês livres
que prevaleceu no momento em que Mlle. Milde estava realizando seus estudos na
Real Academia.
O ensino de escultura na Real Academia merece um destaque especial, uma
vez que foi a arte em que Mlle. Milde viria a se especializar. De 1711 a 1835 esse
ensino foi relegado a segundo plano. O artista Gilles Lamberd Godecharle (1750-
1835), que assumira a cadeira de escultura em 1814, já com a idade avançada, não
tinha muitas condições físicas para exercer a função, o que acarretou pouco
desenvolvimento no ensino da disciplina. Aposentado em 1831, somente em 1835 um
novo professor será contratado para assumir a cadeira.
Em meados do século XIX, o ensino de escultura foi reformulado pelo
professor Louis Jehonte, que assumira a cadeira em 1835, nela permanecendo até
1863. A transformação por ele empreendida durou até o princípio do século XX. Seu
ensino baseava-se em uma aprendizagem progressiva por parte do aluno:
primeiramente, ele deveria exercitar sua capacidade de desenhar; em seguida, ele
deveria modelar esculturas copiando estátuas antigas; finalmente, ele passava a
trabalhar com modelos naturais e com motivos históricos (durante o século XIX os
trabalhos de escultura se prenderam sobretudo ao neoclassicismo e ao emprego de
motivos históricos).
22
Além do enfoque neoclássico, o ensino da Academia sofreu influência de
outros movimentos artísticos europeus como o romantismo, o realismo e o
naturalismo. Foi o caso do professor Eugène Simonis, titular da cadeira de escultura de
1862 a 1882 que, inicialmente, valorizou o ensino das regras neoclássicas, adotando
posteriormente as tendências do romantismo.
Em fins do século XIX, a Real Academia de Belas Artes de Bruxelas já se
destaca no plano da escultura como principal centro formador de escultores da
Bélgica: dos 17 escultores belgas selecionados na Exposição de Paris em 1900, 15
haviam saído da Real Academia.
Havia também concursos na Academia, dos quais os alunos poderiam
participar. Aqueles classificados em uma primeira fase eliminatória, concorriam aos
prêmios concedidos em uma segunda etapa. Vários foram os prêmios obtidos por
Jeanne Milde como aluna da Real Academia: primeiros lugares nas cadeiras de
Pratique et mise au point – 1
er
année (1919-1920); Modelage torse antique soir (1920-
1921); Modelage figure antique soir (1921-1922); Modelage nature jour (1921-1922);
Modelage composition déco (1923-1924); Modelage composition (1924-1925);
Pratique et mise au point – 3
ème
année (1924-1925); Grand Concours Sculpture (1924-
1925).
35
Mas vai ser em princípios do século XX que os futuros mestres de Mlle. Milde
vão assumir as cadeiras de escultura: Victor Rousseau (1901-1935) e Paul Dubois
(1901-1929). Com a morte de Van der Stappen, em 1911, uma nova equipe se
constituiu em torno de Rousseau. Dela faziam parte Isidore De Rudder (cours de
sculpture d’après l’antique en arts décoratifs cours de jour, de 1911 a 1926) e
Arsène Matton (cours de sculpture d’après l’antique cours de soir, de 1911 a 1937).
Jacques Marin ingressou como professor na Academia em 1919, como professor da
cadeira de pratique et mise au point. Posteriormente, em 1935, ele assumirá a cadeira
de sculpture d’après nature.
Mestres
Dentre os mestres de Jeanne Milde, os nomes da Real Academia que aparecem
são os de De Rudder, Matton, Dubois, Rousseau e Marin
36
, professores da instituição
35
Ver anexo I.
36
JOURNAL D’ANVERS, Anvers, 19 agosto 1927.
23
nos anos 10 e 20 do século XX. Ao se traçar uma breve biografia de cada um deles,
pretende-se entender o lugar de seus mestres na Academia e no meio artístico belga,
com vista à compreensão da influência que exerceram na formação de Jeanne Milde e
em sua concepção estética.
O primeiro artista a ser considerado é Victor Rousseau (Feluy, 1865
Bruxelas, 1954). Aluno matriculado na Academia em 1879 no curso de desenho de
ornamento, aparece em 1880 cursando escultura ornamental na Escola de Desenho de
Saint-Josse-ten-Noode com Georges Houtstont, ornamentista, em cujo ateliê
permanece até 1890. Em 1886 retorna à Real Academia para cursar desenho de
ornamento e em 1887 começa a praticar escultura. Nos anos de 1888-1889, seguiu os
cursos de Van der Stappen, ganhando o prêmio Godecharle em 1890 e o Grande
Prêmio de Escultura de Roma em 1911. Com esse prêmio realizou viagens à
Inglaterra, França e Itália, retornando à Bélgica em 1894. Sua obra é reconhecida
como idealista e é desta maneira que se refere aos diversos movimentos artísticos:
Eu faço hoje a arte livre de toda idéias pré-concebida. O
classicismo e o romantismo não importam mais do que o
realismo que opomos ao idealismo. São, do mesmo modo,
movimentos diferentes do espírito que se referem à História da
Arte e que ela faz estudar. Uma coisa me importa, é o
espetáculo da vida, toda a vida, fisiológica, universal, que
conduz às idéias gerais pelo estudo sincero da natureza.
37
Nesse trecho fica clara a concepção aberta de arte que o artista possuía, sendo
um adepto do simbolismo em suas obras, tanto que uma de suas obras denomina-se O
Drama Humano. Rousseau foi diretor da Academia de 1919 a 1922, período em que
Milde estava freqüentando esta instituição. Uma das vertentes a qual a obra de Milde
encontra-se ligada é justamente a do simbolismo, o que a aproxima desse mestre da
escultura belga.
38
Rousseau possuía uma concepção artística que frisava a liberdade
artística dos indivíduos.
Paul Dubois foi professor de escultura de ornamento na Academia a partir de
1901; assumiu, também na Academia, a cadeira de escultura antiga, curso diurno, em
1905 e em 1910 a de escultura natural na Escola de Artes Decorativas. Também possui
37
(M. des Ombieux, 1908, p.76) apud LENNEP, J. Van (coord). Academie Royale des Beaux-Arts de
Bruxelles 275 ans d’ enseignement. p. 370.
38
Ver no capítulo 3, a parte referente às influências artísticas.
24
inúmeras obras em Bruxelas, como a fachada da Casa do Rei e o Monumento a Félix
de Mérode.
Outro artista a ter seu papel na formação de Mlle.Milde é Isidore De Rudder
(Bruxelas, 1855 1943). No ano de 1880 ele entra na Real Academia de Bruxelas,
passando por diversas cadeiras de desenho e ganhando o Prêmio da Academia da
Bélgica em 1880. Realizou viagens pela Alemanha, Inglaterra e França. Foi professor
de escultura antiga em artes decorativas de 1911 a 1926. Uma face importante desse
artista é sua ligação com as artes aplicadas: realizou máscaras decorativas, luminárias,
desenhos para bordados feitos por sua esposa. Encontram-se na Sala Etnográfica do
Palácio de Tervueren, obras de sua autoria com os temas: Civilização e Barbárie,
Família e Poligamia, Religião e Fetichismo, Liberdade e Escravidão. Outros títulos de
obras: A Primavera e A Verdade.
O gosto por viagens e o desejo de conhecer novos mundos já estava
impregnado no espírito europeu há muito tempo. Desde o nascimento do mundo
moderno, com o contato estabelecido entre os diversos continentes. Omesmo espírito
permaneceu no romantismo, onde se busca o conhecimento de outras culturas, visando
observar o que tem de exótico. Também a arte moderna voltou-se para motivos e
formas artísticas distintas das européias com, por exemplo, como Paul Gauguin (fins
do século XIX) e Picasso (século XX), este tendo se interessado por uma arte africana.
Um dos professores de Mlle. Milde, Arsène Matton, ao assumir a cadeira de
professor na Academia, empreende uma viagem ao Congo com um outro artista belga,
o pintor Alfred Bastien. Essa viagem foi motivo de um debate interno na Academia. O
referido professor, nomeado pelo Conselho Comunal por ter melhores relações
políticas, em detrimento do nome de Charles Samuel, inicialmente o nome escolhido
pelo Conselho Acadêmico, empreendeu a viagem após o início do ano letivo, quando
já havia alunos matriculados em sua cadeira. Mas o que interessa neste ponto é o gosto
pelo diferente, pelo exótico, a cultura de viagens que existia na própria Academia. E
nesse aspecto, a vinda de Mlle. Milde para o Brasil possibilitava seu contato com uma
outra cultura, um outro ambiente.
Outro professor de Milde foi o escultor Jacques Marin (Bruxelas, 1877
Nivelles,1950). Estudante da Academia de Belas Artes de Bruxelas, onde obteve
diversos primeiros prêmios, Marin obteve o Prêmio Godecharle em 1897. Realizou
inúmeros monumentos em Bruxelas como a escultura da escada da Rua Baron Horta
ao longo do Palácio de Belas Artes da cidade. Foi admitido como professor de prática
25
e de mise aux points na Academia em 1919. Em 1935 substituiu Egide Rombaux como
professor de escultura natural e foi diretor da Academia de setembro de 1941 a
novembro de 1944, deixando-a em 1947.
Uma das conclusões a que podemos chegar a respeito da vida acadêmica dos
professores de Milde e da influência que os professores tiveram em seu trabalho é de
que, pela forma como a artista estava com sua vida encaminhada em Bruxelas,
existiam grandes possibilidades de ela vir a ser uma professora da Academia. Como
quase todos os mestres dos quais ela disse ter tido influência, ela já possuía um ateliê
na Academia onde fazia suas obras e havia sido muitíssimo prestigiada com primeiros
prêmios. Difícil é estabelecer quais foram os professores de cada matéria: os dados
disponíveis não mostram os nomes dos professores de cada uma das disciplinas.
A vida profissional da artista na Bélgica
No momento anterior à sua viagem para o Brasil, Jeanne Milde estava
iniciando uma fecunda vida profissional em Bruxelas, com a realização de exposições
em algumas cidades e uma intensa produção artística.
Algumas reportagens e textos no Brasil mencionaram que a artista recebeu o
Prêmio Godecharle em 1925, o que parece não ser verdadeiro. O Prêmio Godecharle,
instituído em 1881 por Napoleón Godecharle, filho do escultor belga Gilles-Lambert
Godecharle professor da Real Academia em princípios do século XIX destinava-se
a oferecer bolsas de viagem para os jovens artistas, proporcionando-lhes a
oportunidade de conhecer o mundo e de ter uma nova visão das diversas culturas.
Essas viagens possibilitariam o contato com a obra dos grandes mestres da arte e, além
disso, o contato com outras pessoas, com outras culturas.
39
No ano de 1925, de acordo com a revista La Revue Moderne
40
, a artista chega a
concorrer ao Prêmio Godecharle, não sendo laureada. Entretanto, segundo livro
comemorativo dos cem anos do Prêmio Godecharle
41
, houve um concurso em 1924,
sendo o ganhador o escultor John Cluysenaar.
42
O prêmio coincidia com o Salão
39
Para maiores informações sobre o Prêmio Godecharle ver o texto LES CONCOURS GODECHARLE
ONT CENT ANS 1881-1981. 1981.
40
LA REVUE MODERNE, Paris: 15 agosto 1926. 26º Ano, nº 15.
41
LES CONCOURS GODECHARLE ONT CENT ANS 1881-1981. 1981.
42
Conferir o texto de ÁVILA, Cristina. Mlle. Milde, A escultura do sensível. In: Jeanne Milde, Zina
Aita 90 anos, 1991, no qual a pesquisadora diz a artista haver recebido o prêmio. Entende-se o erro: em
catálogo de exposição da artista realizada em 1948 na Bélgica (reproduzido no Anexo VI) têm-se os
26
Trienal de Belas Artes de Bruxelas, sendo trienal até 1933. Em 1925 e 1926 não houve
premiação, já que o prêmio fora concedido em 1924. Há, pois, uma contradição entre a
revista La Revue Moderne e o livro comemorativo do centenário do Prêmio
Godecharle.
Em 30 de abril de 1927, foi aberta uma exposição da Sociedade Francesa de
Belas Artes e Letras, com seções de escultura e pintura. De acordo com jornal da
época, os expositores da seção de artistas escultores eram menos numerosos do que os
pintores, mas a qualidade superior dos trabalhos compensava o pequeno número de
obras apresentadas. Duas artistas foram dignas de interesse por demonstrarem grande
esforço e perseverança: Jeanne Louise Milde e Paule Bisman. Segundo o crítico, cujo
nome não consta no artigo, a única objeção às esculturas era o fato de serem muito
acadêmicas, mas as obras Jeunesse au Printemps e La Rêveriere, de autoria de Jeanne
Milde, eram dignas de atenção.
43
A artista já havia também participado do Salão da
Sociedade Francesa de Belas Artes no ano de 1926.
44
Várias outras críticas elogiosas constam nos recortes trazidos pela artista ao
Brasil: suas obras teriam o senso do movimento e atitudes graciosas. A relação entre
Jeanne Milde e a crítica de jornal era boa, a exemplo da apreciação sobre a obra da
artista no texto que se segue:
Mlle.Jeanne Milde, jovem escultora de Bruxelas, já mostrou
em várias circunstâncias as mais apreciáveis qualidades. Sua
técnica é refinada. Ela possui o senso da elegância na linha e
da expressão viva no movimento. Sobretudo ela conhece e
compreende a plástica do corpo humano e interpreta
inteligentemente os sentimentos e os movimentos da alma
através do modelo de uma figura.
45
Camille L., crítica belga do jornal de Anvers, é admiradora do trabalho da
artista:
seguintes dados: “Prix Godecharle en 1925. Prix de Rome en 1927.” Entretanto, não existe nenhuma
referência em jornal da época ou algum documento comprovando o fato de a artista haver ganhado o
referido prêmio. Existem textos falando deste prêmio, no complemento da ficha funcional da artista do
Instituto de Educação consta este acontecimento da premiação, mas não existem outras comprovações e
a data da premiação ora aparece como 1925, ora como 1926. Cf. também dados da ficha funcional da
artista no Instituto de Educação, Anexo II.
43
JOURNAL DU LOUXEMBOURG, 1 junho 1927.
44
JOURNAL D’ANVERS, Anvers, 19 agosto 1927.
45
LA REVUE MODERNE, Paris: 15 agosto 1926. p. 22-23.
27
A artista conhece seu trabalho e trabalha com uma coragem
admirável da manhã até à noite, nada mais desejando do que
fazer uma obra sã, bela e sólida. Ela aproveitou largamente as
lições de desenho que recebeu de Mitre Mointald e honra, com
sua técnica e sua habilidade manual, seus professores De
Rudder, Matton, Dubois, Rousseau e Marin. Jeanne Milde
conheceu seu primeiro sucesso em 1923 na Galeria Giroux.
Em 1925 suas obras foram apreciadas na Sala Delgay e na
Galeria de Arte em Bruxelas e ela participa em 1926 e 1927
do Salão da Sociedade Francesa de Belas Artes. Eu tive a
oportunidade de ver várias vezes as obras da artista e nelas
apreciei sobretudo o sentimento. Na obra “Tendresse”, que
mostra uma mãe abraçando com amor seu bebê, eu descubro
uma certa graça e uma emoção que atraem; na obra
“Offrandre” talhada na pedra e bem estilizada, eu vejo
poesia, nobreza, grandeza e admiro a alegria franca, o
entusiasmo transbordante; a atitude cativante de “Rieuse”, um
bronze de belo efeito. Jeanne Milde tem diante de si um
caminho magnífico: ela o seguirá com a coragem que faz sua
força, e com o talento que nada mais poderá fazer senão se
afirmar e do qual ela já deu verdadeiras provas.
46
Em 1927 realizou uma exposição na Nef, uma galeria em Bruxelas, com mais
outros três artistas: a única mulher era a artista, fato destacado na reportagem que trata
da exposição.
47
Neste mesmo ano, uma obra em especial foi digna de referência: uma
placa em bronze com a figura do aviador norte-americano Charles Lindbergh de um
lado, e seu avião do outro. Lindbergh foi o primeiro a realizar um vôo sem escalas de
Nova Iorque a Paris no ano de 1927. Cópias da obra foram entregues ao embaixador
americano em Bruxelas, à mãe do aviador e ao embaixador da Bélgica nos Estados
Unidos. O aviador havia sido condecorado pelo governo belga por ocasião do seu
feito.
48
A artista recebeu o Prêmio de Roma no ano de 1927, de acordo com uma breve
biografia presente em seu arquivo e de acordo com relato da artista à Professora Ivone
Luzia Vieira
49
. Ela teria recebido o prêmio, mas, por problemas de ordem política
entre a Itália e a Bélgica, ela não teria viajado à Itália, e sim à França.
50
O Prêmio de
46
JOURNAL D’ANVERS, Anvers, 19 agosto 1927.
47
ACTION NATIONALE, Bruxelas, 09 outubro 1927.
48
Notas sobre a obra realizada pela artista encontram-se nos jornais: L’ÉCHO DU SOIR, Anvers, 9
agosto 1927; AVENIR DU TOURNAISI, Tournais, 10 agosto 1927; COURRIER DE L’ESCAUT,
Tournais, 10 agosto 1927; LA FLANDRE LIBERALE, 10 agosto 1927 e ETOILE BELGE, Bruxelas, 6
janeiro 1928.
49
Esta informação foi dada em conversas estabelecidas entre a autora desta dissertação e a Professora
Ivone Luzia Vieira em 21/08/2001.
50
Ver anexo II, ano de 1927.
28
Roma, estabelecido em 1817, inicialmente era destinado ao melhor aluno da Academia
de Anvers, mas, posteriormente, foi estendido a alunos das academias de toda a
Bélgica. Este prêmio foi criado por Guilherme I de Orange observando o modelo
francês: o aluno deveria gastar a maior parte do dinheiro adquirido com o prêmio, com
viagens a países mediterrâneos para observar as obras de arte.
51
O Prêmio de Roma era
dado a estudantes que haviam recentemente terminado seus estudos e havia uma
prática da Real Academia, na qual os alunos mais talentosos permaneciam em ateliês
na escola para se prepararem para os grandes concursos que tomavam corpo em
Bruxelas.
52
E Mlle. Milde permaneceu na Academia com um ateliê após terminar seus
estudos em 1925 onde pode praticar a sua escultura.
O ano de 1928 foi de intensa atividade. Milde realizou uma exposição no
Instituto da Rua Berlaimont, 34-36 onde sua obra foi interpretada como “próxima do
real, com muito estilo e lirismo” pela crítica.
53
Participou do II Salão da Federação
Nacional de Pintores e Escultores da Bélgica e freqüentou as reuniões da Seção Belga
da Sociedade Francesa de Belas Artes, então com 1527 membros
54
. A Federação
Nacional de Pintores e Escultores da Bélgica foi alvo de críticas em jornais,
especialmente devido a um Salão que organizou à margem de uma exposição
organizada sob os auspícios do governo belga. A Federação, de acordo com o jornal
Le Peuple¸ “partia em guerra contra a pintura moderna e contra o Estado Belga que,
ao que parece a eles [aos membros da Federação], cerca a arte de avant-garde de um
favoritismo descarado.”
55
Nas duas reportagens que tratam negativamente do Salão
realizado pela Federação, existentes no arquivo pessoal da artista, o nome de Milde
aparece como uma das poucas exceções dentre a mediocridade das obras
apresentadas.
56
Nesse ponto encontra-se um dos cernes da razão da existência desta
dissertação: moderna em Belo Horizonte, Jeanne Milde, em Bruxelas, mesmo com sua
51
O fato da artista haver ou não recebido este Prêmio de Roma foi uma dúvida existente na escrita
desta dissertação. Ao que tudo indica, a artista o recebeu no ano de 1927, de acordo com reportagem
presente em jornal belga e de acordo com depoimento da artista. O teor da reportagem do jornal belga é
o seguinte: “O verdadeiro sucesso artístico merece ser mostrado a todos àqueles que se ocupam da
pintura e da escultura: o último prêmio de Roma para a escultura me dá o prazer de citar aqui o nome
da jovem artista Jeanne Louise Milde.” JOUNAL D’ANVERS, 19 agosto 1927.
52
LENNEP, J. Van (coord). Academie Royale des Beaux-Arts de Bruxelles 275 ans d’ enseignement.
1987. P. 23.
53
LA LIBRE BELGIQUE, Bruxelas, 16 janeiro 1928 e LE NATIONAL BRUXELLOIS, Bruxelas, 16
janeiro 1928.
54
INDEPENDANCE BELGE, Bruxelas 31 janeiro 1928; L’ETOILLE BELGE, Bruxelas, 31 janeiro
1928; JOURNAL DE CHARLEROI, Charleroi, 1
o
fevereiro 1928.
55
LE PEUPLE, Bruxelas, 16maio 1928.
56
LE PEUPLE, Bruxelas, 16 maio 1928 e ETOILE BELGE, Bruxelas, 14 maio 1928.
29
obra sendo vista de modo positivo, ligava-se a um grupo que ia contra as vanguardas.
Mais uma vez o moderno e o tradicional se fazem presente na vida de nossa
personagem.
Mas outras críticas foram favoráveis ao II Salão da Federação Nacional de
Pintores e Escultores da Bélgica, principalmente ao compará-lo com o Salão realizado
pela Federação no ano anterior, sendo o nome de Mlle. Milde sempre citado entre os
artistas expositores.
57
Ao falar sobre o VIII Salão de L’Essaim, ocorrido em Mons, cidade belga, um
crítico de arte do jornal Les Nouvelles, identificado como L. O., cita três artistas: Jules
Bernaerts, Fernand Hecq e Mlle. Jeanne Milde. Sobre Milde, elogia o talento vigoroso
da artista, dotada de grande inspiração e liberdade de elaboração, exprimindo com
clareza os sentimentos através de suas esculturas, “ela faz viver esplendidamente o
barro talhado por seus dedos e, apesar da feminilidade de sua pessoa, apesar da
insuficiência de sua altura, ela se revela dotada de uma grandeza de expressão e de
uma força artística pouco comuns.”
58
Outro crítico, J. S., também refere-se à
qualidade do trabalho de Jeanne Louise Milde no salão em questão: “movimento e
graça, pureza de formas, elegância das atitudes e originalidade de apresentação.”
59
As obras expostas pela artista eram Rêverie, Jeunesse, Timidités, La Jeune Faunesse,
Tendresse, todas, de acordo com a crítica, muito expressivas.
Além dessa participação ativa no meio artístico, Mlle. Milde também trabalhou
em uma fábrica de manequins, ajudando a elaborar esses últimos pelo período de 5
anos.
60
Foi também convidada para desenhar modelos para algumas jóias.
Os últimos anos de estada de Mlle. Milde na Bélgica, antes de sua vinda para o
Brasil, sugerem que seu futuro em sua terra natal estava bem encaminhado: prêmio de
viagem a Roma, críticas favoráveis nos jornais, ateliê na Real Academia de Bruxelas.
Mas ela optaria por vir realizar um trabalho em outro país, onde então iria fixar
residência, afastando-se de seu país de origem.
A saída da Bélgica pode ter várias explicações. Que motivos a levaram a
abandonar seu país e buscar uma outra realidade? Fugir do peso da família, da mãe
que não queria uma filha artista; aventurar-se rumo ao desconhecido, ao exótico, na
57
NATIONAL BRUXELLES, Bruxelas, 18 maio 1928; LA LIBRE BELGIQUE, 18 maio 1928 e
LIEGE-ECHO, Liege, 31maio 1928.
58
LES NOUVELLES, La Louvière, 25 abril 1928.
59
LA PROVINCE, Mons, 26 janeiro 1928.
60
Cf. anexo II.
30
esteira de outros artistas europeus que a precederam; levar um modo de fazer arte para
uma realidade menos evoluída, voltando-se a um processo civilizador há muito
iniciado pelos europeus... As conjecturas são muitas, mas é impossível encontrar o real
motivo que moveu internamente a artista a tomar a decisão de se enveredar por novas
paragens.
31
I.II A Reforma de Ensino de Francisco Campos: a vinda de Jeanne Louise Milde
para a capital.
Mudanças na capital: A Reforma de Ensino e a Escola de Aperfeiçoamento
61
Quais seriam as condições que propiciaram a vinda de Mlle. Milde para a
jovem capital mineira?
Sem o ambiente favorável à sua vinda, o sujeito Jeanne Milde não teria
possibilitada a sua ação como artista e professora em Belo Horizonte, embora tal
contexto não nos possibilite saber a motivação pessoal de Jeanne Milde, o que a levou
a atravessar o Atlântico e bater em terras mineiras.
Nos anos vinte, houve um grande entusiasmo pela questão da educação e pelo
potencial transformador do ensino na sociedade, surgindo o movimento chamado de
Escola Nova, na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. A nova sociedade urbano -
industrial que emergia requeria mudanças no ensino nos seus mais diversos setores
sociais: desde os empresários até os anarquistas, passando pelos operários, pela classe
média emergente, e pelos próprios educadores sejam eles autoritários ou liberais. A
Reforma de Ensino de Francisco Campos, no governo de Antônio Carlos, se insere
neste panorama de mudança no ensino, sendo uma de suas medidas a fundação da
Escola de Aperfeiçoamento onde Mlle. Milde vai trabalhar desde o início até o seu
fechamento.
Com o surgimento de novos grupos sociais no Brasil dos anos 20, e também de
uma nova realidade social, econômica e política, a educação também iria se
transformar. A reforma na educação, que ocorreria em Minas Gerais, almejava não a
inserção de todos estes novos membros da sociedade igualitariamente dentro deste
novo mundo, mas a inserção destes membros como parte integrante do todo orgânico
da sociedade. Cada homem, como cada órgão, teria a sua função dentro do todo
social.
As idéias da Escola Nova, colocadas em prática na Reforma de Ensino, servem
para corroborar o plano do Governo de Antônio Carlos e seus objetivos políticos. Mas
61
Os dados referentes à Reforma de Ensino de Francisco Campos foram em sua maioria retirados das
dissertações:
PRATES, Maria Helena Oliveira. A Introdução Oficial do Movimento de Escola Nova no Ensino
Público de Minas Gerais. A Escola de Aperfeiçoamento. 1989.
PEIXOTO, Ana Maria Casassanta. A Reforma de Ensino de Francisco Campos. 1981.
32
não podemos nos restringir ao uso político-institucional que se faz do ensino; o
objetivo do presente trabalho é observar, microscopicamente, como Jeanne Milde agiu
dentro desta realidade, com idéias próprias que serviram não somente para uso do
referido governo, mas também para realizar um trabalho inovador no campo das artes
aplicadas.
O processo de mudança no ensino brasileiro a partir das idéias da Escola Nova,
e a ênfase na educação não somente como um processo de ensino, mas também como
um instrumento de participação social, ocorreu de maneira mais ou menos
diferenciada em vários estados da Federação: no Ceará em 1923, na Bahia em 1925,
em Minas Gerais em 1927, no Distrito Federal e em Pernambuco em 1928. Nos anos
20, a política do governo de Antônio Carlos pode ser compreendida como uma política
modernizante-conservadora, como está na frase a ele atribuída: “Façamos a Revolução
antes que o povo a faça”. A educação é o instrumento de maior relevância para se
construir uma nova ordem social: é a partir da educação que vai se formar o cidadão
para a nova sociedade, agora industrializada e urbana. As medidas tomadas durante
aquele governo serão a Reforma do Ensino Primário e Normal e a criação da Escola de
Aperfeiçoamento. Inserida na reforma do Ensino Primário e Normal, a Escola de
Aperfeiçoamento tem um papel fundamental naquele momento: vai ser ela a
responsável pela formação das professoras primárias, por sua vez, as responsáveis pela
formação do novo cidadão para a nova sociedade brasileira (as professoras que se
dirigiam à Escola de Aperfeiçoamento já haviam se formado na Escola Normal e já
eram profissionais em suas cidades de origem). A expansão do processo de
escolaridade, com os futuros cidadãos freqüentando a Escola Primária, aparece então
como instrumento de participação política.
Anamaria Casassanta PEIXOTO
62
relaciona a Reforma de Ensino de Francisco
Campos, secretário do governo de Antônio Carlos, com a busca de controle pelo
Estado das classes dominadas que passariam a ficar com a educação sob a tutela do
Estado. O cidadão seria construído a partir do modelo almejado pela elite,
controladora do Estado. O Estado Brasileiro passa de liberal a intervencionista,
assumindo as rédeas da economia e participando cada vez mais na vida dos brasileiros.
Mas a Reforma Educacional estudada passa por outro canal de atuação: não sendo
62
PEIXOTO, Ana Maria Casassanta. A Reforma de Ensino de Francisco Campos.
33
uma reforma somente político-institucional, preocupa-se, além disso, com o aspecto
pedagógico do sistema escolar.
Considerando-se que a educação reproduz a estrutura social e também coopera
na sua construção, estabelecendo um movimento dialético no qual pode ter um papel
fundamental na mudança social, nota-se que a reforma pregada por Francisco Campos
divulga ideologia da classe dominante aparentando defender uma visão de mundo
universal, justa e neutra
63
. Trabalha, pois, dentro de uma determinada ideologia,
embora no discurso busque ser uma reforma racional e científica. A educação proposta
pelo governo de Antônio Carlos se enquadrava na própria ideologia do governo.
Carlos Drummond de Andrade nos dá a chave para essa compreensão da racionalidade
vinda de cima ao escrever:
... Chamo seu Edgarzinho, / responsável pela Escola / Que
ponha reparo peço-lhe - / nas crianças do interior / que
ficaram sem suas mestras. / Convém destituí-las logo / à tarefa
habitual. / Ele responde: “São ordens / do Doutor Francisco
Campos, / nosso ilustre Secretário / de Educação e Cultura. /
Carece elevar o nível / do ensino por toda a parte. / Vá-se
embora não insista / em perturbar nossos planos racionais.”
64
Os planos racionais do Secretário não se efetivaram de uma forma total, pois a
sociedade não é assim tão previsível. Os profissionais chamados para trabalhar na
Escola de Aperfeiçoamento, mesmo inseridos em um plano geral do governo,
possuíam diversas possibilidades de atuação que escapariam ao controle do Estado.
O decreto n º 8987, de 22 de fevereiro de 1929, criou formalmente a Escola de
Aperfeiçoamento que, responsável pela formação do grupo de elite do ensino primário
no Estado, instalou-se oficialmente em 14/03/1929. A Escola funcionou inicialmente
na Av. Paraopeba hoje Augusto de Lima no prédio onde inicialmente iria ser a
Escola Maternal o que nunca ocorreu e, posteriormente, foi remanejada para o
prédio onde hoje funciona o Minas Centro, na mesma avenida.
A Escola de Aperfeiçoamento tinha por objetivo proporcionar um ensino para
professoras de 1
ª
a 4
ª
série primárias. Baseada nos princípios da chamada Escola Nova,
vai estabelecer novos parâmetros educacionais para o ensino em Minas Gerais. A
Escola Nova, além de propor uma maior promoção do ser humano individualmente a
63
Ibidem.
64
ANDRADE, Carlos Drummond de. As moças da Escola de Aperfeiçoamento. Conferir anexo VIII.
34
partir de suas aptidões, preocupava-se também com o papel do indivíduo como
membro integrante de uma determinada sociedade, com a sua formação como cidadão.
Mas, apesar de ter um projeto visando a constituição de um cidadão específico
para a nação brasileira, o governo de Antônio Carlos, com Francisco Campos à frente
da Secretaria do Interior então responsável pelo setor da educação no Estado , vai
procurar na Europa e nos Estados Unidos as novas metodologias e teorias de ensino
para a Reforma Educacional.
As realidades desses dois centros não são as mesmas, mas acabam por se
encontrar na Escola de Aperfeiçoamento. Dos Estados Unidos vem a preocupação com
a construção do futuro, uma preocupação maior com metodologias de ensino, visando
a formação de uma sociedade, uma preocupação com o todo, com a integração do
homem no corpo orgânico da sociedade. Isso se traduz na utilização do método global
de alfabetização para as crianças. Já no modelo europeu, o mais importante era o
estudo da psicologia, o estudo do presente baseado no indivíduo. O modelo
dominante, na Escola de Aperfeiçoamento, será o americano, com a introdução de um
grande número de cadeiras de metodologia.
65
Em 1927, cinco professoras são enviadas à Universidade de Columbia, em
Nova York, para aprender novas técnicas relacionadas à educação: Inácia Ferreira
Guimarães, professora da Escola Normal Modelo; Amélia de Castro Monteiro, vice-
diretora do Grupo Escolar Silviano Brandão; Alda Lodi, professora de classes anexas
da Escola Normal Modelo; Benedita Valadares e Lúcia Schmidt Monteiro de Castro
mais tarde Lúcia Monteiro Casassanta professoras do Grupo Escolar Barão do Rio
Branco. Dessas, três voltam para serem professoras na Escola de Aperfeiçoamento:
Amélia de Castro Monteiro, Benedita Valadares e Lúcia Schmidt Monteiro de Castro.
Por outro lado, em 1928, Alberto Álvares é enviado à Europa para trazer para
Minas pessoas de renome que promovam a renovação da área pedagógica do Estado.
Essas pessoas vão integrar a chamada Missão Pedagógica Européia juntamente com
Jeanne Milde
66
.
Theodore Simon, médico francês, professor da Univesidade de Paris e diretor
da Colônia de Alienados e Anormais de Perry-Vandeuse, auxiliar de Alfred Binet,
criador dos primeiros testes de medida da inteligência humana, realizava suas
pesquisas em psicologia a partir da observação e experimentação da criança. Esteve
65
Cf. PRATES, Maria Helena Oliveira. Op. cit.
66
DIÁRIO DE MINAS, Belo Horizonte, 23 fevereiro 1929.
35
em Belo Horizonte de fevereiro a maio de 1929. Leon Walter, do Instituto Jean
Jacques Rousseau de Genebra, trabalhava com Claparède, que estudava as
necessidades e interesses da criança, considerando que a atividade infantil na
aprendizagem deveria voltar-se para o lúdico, convertendo-se depois em trabalho.
Ficou em Belo Horizonte no primeiro semestre de 1929. Mme. Artus Perrelet, também
do Instituto Jean Jacques Rousseau, assumiu por dois anos a cadeira de desenho e
trabalhos manuais e modelagem, que posteriormente seria assumida por Mlle. Milde.
Prof. Omer Buyse, diretor do ensino técnico na Bélgica, dedicava-se ao ensino
técnico-profissional e não ao magistério.
Como pode se perceber, as pessoas que integraram a Missão Pedagógica
Européia provinham de áreas variadas, mas tinham em comum a relação com o ensino.
Helena Antipoff, assessora de Claparède no Instituto Jean Jacques Rousseau,
chegou ao Brasil alguns meses depois. Substituiu o prof. Leon Walter, aprofundou-se
na questão da psicologia infantil, tendo realizado cursos na Rússia e na Alemanha.
Somente ela e Jeanne Milde vão permanecer no Brasil até o fim de suas vidas. O
próprio Edouard Claperède veio ao Brasil em 1930, mas a Revolução de 30 o impediu
de realizar o trabalho que iria aqui realizar.
A maioria dessas pessoas viajou a bordo do vapor Alcântara, desembarcando
primeiro no Rio de Janeiro, vindo, logo em seguida, para Belo Horizonte.
Atravessaram o Atlântico e chegaram no Brasil em 22 de janeiro de 1929.
A Reforma de Ensino teve grande repercussão, o que pode ser constatado em
reportagem de jornal de 1935:
Moldada ao sabor das correntes victoriosas no campo da
pedagogia contemporanea teve a reforma, não só sua
concretização pelas medidas iniciaes de regulamentação e
propaganda, como, também, seu início de realidade pratica,
pela creação da Escola de Aperfeiçoamento, dirigida e
leccionada por um grupo de professores mineiros, que o
governo mandara estudar nos Estados Unidos e por outros
contractados na Europa, duas das quaes, mme. Heléne
Antipoff (psycologia) e Mlle. Jeanne Milde ainda se acham
naquelle estabelecimento.
67
As normalistas, alunas da Escola de Aperfeiçoamento, faziam parte da elite do
estado. Um dos únicos trabalhos permitidos à mulher, fora o doméstico, o de
67
O IMPARCIAL, Rio de Janeiro, 5 junho 1935
36
professora, também era a única maneira de as mulheres terem acesso ao estudo.
68
A
reação da sociedade mineira à chegada das normalistas em Belo Horizonte não era das
mais receptivas. As moças do interior chegavam à capital em busca de novas
informações e se deparavam com uma realidade distinta daquela que conheciam em
suas cidades de origem. Belo Horizonte assistia uma modificação no cenário urbano:
europeus aportaram aqui para realizar um trabalho pioneiro em termos de ensino,
professoras voltavam dos Estados Unidos com novas idéias e várias moças vinham do
interior para a capital, para estudar na Escola de Aperfeiçoamento.
Para se ter uma idéia da repercussão da instalação da Escola, basta observar o
poema que Carlos Drummond escreveu, intitulado As moças da Escola de
Aperfeiçoamento
69
, no qual mostra a reação dos jovens da cidade ele aí incluído à
invasão de Belo Horizonte pela moças que “vêm de Poços, de São João del Rei, Juiz
de Fora, Lavras, Leopoldina, Itajubá, Montes Claros, cidades novas de minas...” O
poema aponta o choque promovido na sociedade pela presença de moças que não se
encontravam mais fechadas” em suas casas, e que passavam a fazer parte do
cotidiano da cidade, vindo aprender novidades pedagógicas e transformando o ritmo
da cidade. Outro ponto a ser considerado na poesia é a modernidade que as moças
trazem para a pacata Belo Horizonte:
... E são assim tão modernas / tão chegadas de Paris / par le
dernier bateau /Ancorado na Avenida / Afonso Pena ou Bahia,
/ Que a gente não as distingue /das melindrosas cariocas / em
férias mineiras?/ Que vêm fazer essas jovens?
70
A presença dessas moças desnorteia o modo de pensar dos rapazes, pois será
que elas
Vêm para perturbar / se possível mais ainda / a precária paz
de espírito / dos estudantes vadios/ (eu, um deles) / que só
querem declinar / os tempos irregulares/ de namorar e de
amar? / Ai o mal que faz a Minas / a nós, pelo menos, frágeis, /
irresponsáveis, dementes / cultivadores da aérea / flor
feminina / fechada / em pétalas de reticência / a Escola
novidadeira, / dita de aperfeiçoamento ”.
71
68
Dos cursos superiores na capital, somente o de farmácia era frequentado pelas mulheres.
69
Ver anexo VIII.
70
Ver anexo VIII.
37
Além de mostrar todas as transformações que acarreta a presença das moças,
Drummond também exagera, em outro trecho do poema, o teor da transformação que
vem ocorrer em Belo Horizonte, escrevendo que as moças deveriam voltar às suas
cidades de origem, para dar aulas às crianças.
Existia um choque promovido pela presença destas moças, numa cidade que se
pretendia moderna, mas que, ao mesmo tempo, estava ancorada em uma sociedade
patriarcal que reservava à mulher o santo local do lar: “A gente não dava conta / de
tanto impulso maluco / doridamente frustrado / ante a pétrea rigidez / dos domésticos
presídios/ onde vivem clausuradas / as meninas de Belô...
72
Outra obra que versa sobre a presença das moças em Belo Horizonte é de
autoria de Moacyr de Andrade, que em seu livro República Decroly apresenta a vida
destas moças na capital. Ao contrário de Drummond, que aponta a transformação
causada pela da presença das garotas como parte da reação do ambiente conservador
que imperava em Belo Horizonte na época, Moacyr Andrade vê a cidade como
corruptora das pobres moças do interior que vinham para a capital. Trata-se de um
livro irônico no qual o autor conta-nos a história de uma moça do interior de Minas
Gerais, Zuleika, que vem para a capital estudar no Pedagogium (a Escola de
Aperfeiçoamento). Zuleika vai morar na Republica Decroly (nome do pedagogo belga
que influenciava a pedagogia adotada pela Escola) “O cometa dissera, no hotel, que
algumas moças do Pedagogium viviam na capital sozinhas em República como
rapazes, inteiramente à solta...”
73
Aqui fica claro a questão da liberdade permitida aos
rapazes e o local reservado às mulheres: fora dos locais públicos e guardadas pela
família.
Moacyr Andrade denigre a imagem da Escola de Aperfeiçoamento, seja
falando do pouco comprometimento das moças com o estudo
74
, seja insinuando a
respeito dos altos salários pagos aos professores estrangeiros.
75
Mas o choque cultural vinha também das professoras que foram fazer cursos
nos Estados Unidos, como relata Esther Assunção: “do grupo brasileiro que foi aos
71
Cf. anexo VIII.
72
Cf. anexo VIII.
73
ANDRADE, Moacyr. República Decroly. p.117.Cf. anexo VII.
74
Ibidem. p. 132. “ ... com ela [a pobre Zuleika] apenas reduzido número de moças levava a sério o
Pedagogium. Para as outras o Pedagogium era bem aquilo que o cometa palavroso e indiscreto dissera
em Itacoatinga: - pretexto para as moças do interior virem namorar na capital.”
75
Ibidem. p. 43. “E assim se inaugurava o Pedagogium, com professores notáveis e conhecidos mas de
preços desconhecidos para o povo que pagava.” (p. 43).
38
Estados Unidos, era comum ouvir-se dizer que elas vieram com liberdades
exageradas.
76
Não sem razão, Moacyr Andrade retrata a pouca atenção dada aos professores
locais, que foram colocados à margem, com a modernização do ensino à européia e à
americana.
O secretário Abdias, compreendendo que, apesar de seu
surpreendente esforço, O Pedagogium, para viver, tinha que
ambientar-se no regime nacional do ensino burocrático, do
ensino repartição pública, culpava do insucesso do plano
governamental o Dr. Roberto Rodrigues que, nos primeiros
tempos, com a confiança direta do Presidente, pondo e
dispondo na organização do Pedagogium, contrariava o
professorado brasileiro, humilhando-o mesmo, para só
destacar o valor da ciência que ele contratara na Europa, a
franco-ouro. Sem o estímulo necessário para tornar vitoriosa
realização daquele vulto, que teria naturalmente de encontrar
tropeços e enfrentar descontentamentos, porque destinada a
refinar o magistério o grupo seleto de professores
brasileiros, designados para o Pedagogium, ficou à margem.
Mestres que especialmente conheciam as questões do ensino e
para os quais a bagagem dos professores estrangeiros não
trazia grandes novidades, eles cumpriam, pontualmente, o seu
dever, mas lhe faltava o prestígio indispensável para sua
missão, pois só se reconhecia no Pedagogium um valor: - o
dos mestres que o Dr. Roberto trouxera!
77
Moacyr de Andrade mostra-se um crítico da pedagogia adotada pelo governo
Antônio Carlos, ao mesmo tempo em que se coloca como um verdadeiro defensor da
moralidade em Minas Gerais.
Um artigo do Correio Mineiro de 27 de abril de 1929 teceu severos
comentários sobre o ensino da Escola de Aperfeiçoamento. São criticados
especialmente os professores Theodore Simon e Mme. Artus Perrelet pelo tratamento
desrespeitoso que dispensavam às alunas e pelo fato de que confundiam
lamentavelmente o Brazil com a Zuzulandia e situam Minas um pouco abaixo do
Congo.” Aqui fica explícita a desaprovação aos professores que traziam novas teorias
(em moldes europeus) e que não se adequavam à realidade de Minas. Segundo o
jornal, os referidos professores não consideravam irrelevante a cultura brasileira, mas
76
Depoimento de Esther Assunção a Maria Helena Oliveira Prates. Em PRATES, Maria Helena
Oliveira, op. cit.
77
ANDRADE, Moacyr. República Decroly. p.133-134.Cf. anexo VII.
39
nos confundiam com os povos africanos e não percebiam no povo brasileiro a vontade
de se ilustrar.
O autor da matéria cobra do Secretário Francisco Campos uma investigação da
Escola de Aperfeiçoamento, pois
“... as professoras que aqui vieram ardentes no desejo de
cultivar-se e apurar as suas qualidades magisteriaes, estão
desiludidas e não escondem a sua amargura pelo que se passa
naquelle estabelecimento, em relação aos massudos
pedagogistas que nos espantam com a sua sabedoria, as suas
barbas de annuncios de pilulas e as suas roupas de
apanhadores de pontas de cigarros.”
78
A Belo Horizonte que se pretendia moderna buscava sua modernidade fora das
fronteiras do país, em novas experiências européias e norte-americanas. Entretanto,
também temos de considerar que as metodologias e teorias provenientes de outros
países acabaram por se transformar dentro de uma nova realidade: a do ensino em
Minas Gerais. Essas teorias não eram idéias fora do lugar, pelo contrário, fazia sentido
serem adotadas na realidade brasileira, principalmente se levarmos em consideração o
programa de governo de Antônio Carlos. O trabalho de Jeanne Louise Milde serve
para ilustrar esta mudança das teorias de outros países. Milde, ao tomar contato com
outra realidade em Minas, tanto no ensino como em sua produção artística, vai
provocar transformações em sua arte e na maneira de se ver a arte ao seu redor.
A vinda de Jeanne Milde para Belo Horizonte
Jeanne Louise Milde possuía um ateliê na Real Academia de Belas Artes de
Bruxelas, quando Alberto Álvares chegou à cidade. Enviado pelo governo mineiro
para trazer pessoas de renome para integrar a Missão Pedagógica Européia, acabou por
entrar em contato com Milde para que esta atuasse na área artística. Alberto Álvares
convidava as pessoas a virem integrar a Missão e conseqüentemente a fazerem parte
da nova elite formadora do professorado. De acordo com reportagem sobre Milde em
jornal de 1980,
78
CORREIO MINEIRO, 27 abril 1929. Pedagogia de Lampeão Belga.
40
Dentre os elementos que deveriam participar com
determinada especialização, faltava ainda um que lecionava
arte, didática da arte, e aperfeiçoamento de desenho e artes
aplicadas para as professorinhas do Instituto de Educação , ou
melhor, para a Escola de Aperfeiçoamento.
Alberto Álvares, encarregado deste recrutamento, dirigiu-se
então à Escola de Belas Artes de Bruxelas, onde foi informado
que um determinado elemento talvez se dispusesse a partir
para o Brasil: apesar de uma ressalva colocada pelo diretor
da Escola de Belas Artes de Bruxelas: ela era mulher. Mas
mesmo sendo mulher Jeanne resolveu vir para o Brasil.
“Sempre fui muito aventureira: não é que fosse uma aventura
vir para o Brasil, a aventura consistia em largar a Bélgica.” E
deixar o seu país era uma opção que lhe custava a própria
fama.”
79
No trecho anterior, observa-se que a própria imprensa (agora já nos anos 80 do
século XX) mostrava o pioneirismo da ação de mulheres como Helena Antipoff e
Jeanne Louise Milde: já famosas e com nome reconhecido na Europa, vêm para o
Brasil com um projeto civilizador, de levar o seu saber para um local onde as pessoas
não tinham acesso a uma educação e a uma cultura de alto nível como a européia, o
que vai ao encontro da proposta governista de transformação do social pela educação.
Outro ponto a ser considerado é a reação da imprensa belga à mudança da
artista para terras brasileiras. Em reportagens de jornais da Bélgica, a vinda de Mlle.
Milde é relatada como uma grande vantagem para ela. São curiosos os equívocos das
reportagens a respeito do que a artista belga viria fazer em Belo Horizonte, desde dar
aulas na Real Academia de Belo Horizonte instituição inexistente até exercer suas
atividades artísticas em um ateliê para ela, montado pelo governo na cidade.
80
A
artista só possuiria um ateliê graças à boa vontade do Sr. Arcângelo Maletta, dono do
Grande Hotel, onde se hospedou Jeanne Milde.
Ao que tudo indica, a artista Jeanne Milde veio para a capital de Minas para,
juntamente com o Prof. Omer Buyse, criarem uma Universidade do Trabalho. Dentro
desta Universidade, funcionaria uma Escola de Artes, e Mlle. Milde seria responsável
pela direção dessa Escola.
79
PIGNATARO, Iolanda. Estado de Minas. Jeanne Louise Milde, Pioneira como Helena Antipoff.Belo
Horizonte, 23 jan. 1980.
80
LA PROVINCE, Mons, Bélgica, 25 janeiro 1929. Além desta reportagem, outras com teor
semelhante aparecem nos jornais: LA PROVINCE DE NAMUR, Namur, Bélgica, 15 fevereiro 1929 e
L’EXPRESS, Liége, 15 fevereiro 1929.
41
I.III - Modos de ensinar.
Qual vai ser o local de ensino da professora belga em Minas Gerais? Ela
assumirá, na Escola de Aperfeiçoamento, duas cadeiras de desenho e modelagem, cada
uma dessas cadeiras era dada em um dos dois anos de duração do curso ministrado na
Escola para as professoras do Estado. Existiam as Escolas Normais de 1º e 2º graus e
as cadeiras de trabalhos manuais e modelagem faziam parte do currículo do segundo
ano dos dois graus e a de desenho dos dois primeiros anos dos cursos de 1º e 2º
graus.
81
Com relação à aplicabilidade de teorias no ensino das artes, pode-se dizer que
até o início do século XX, o modelo de ensino de educação artística era voltado para a
aprendizagem de elementos decorativos já que se pretendia o preparo dos jovens para
trabalhos manuais e para a arquitetura. A partir de 1927, o ensino de arte volta a ser
objeto de discussões. Jeanne Milde aparece ligada a uma vertente da arte-educação que
"defendia a idéia da arte como instrumento mobilizador da capacidade de criar
ligando imaginação e inteligência."
82
Os pressupostos teóricos para essa revalorização
da arte sob um novo enfoque vai ser dado por John Dewey. Mme Artus Perrelet que
também veio para Minas Gerais com a Missão Pedagógica Européia, escreveu o livro
O desenho a serviço da educação, que contém uma visão de integração orgânica da
experiência, de corpo e mente, experiência e raciocínio, gesto e visão, vida e símbolo,
indivíduo e meio-ambiente, sujeito e objeto. Existiria um processo de sensibilização,
reflexão e ação na elaboração do desenho. Mlle. Milde pensava tanto no aspecto da
arte relacionando-a à sensibilidade, como no aspecto de aplicabilidade da arte no
cotidiano das pessoas.
Mlle. Milde era responsável pelo curso de desenho, trabalhos manuais e
modelagem realizado na Escola de Aperfeiçoamento. Trabalhava com sua arte,
aplicando-a à realidade de uma nova sociedade que se pretendia construir tendo como
um dos pilares a educação. A cadeira de artes objetivava o aprimoramento do espírito
e da criatividade, mas voltava-se para a prática escolar. De acordo com o programa da
disciplina montado pelo próprio professor eram oferecidos às alunas: “técnica e
81
PRATES, Maria Helena Oliveira, op.cit.
82
BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação, p.1084.
42
conhecimento prático dos trabalhos manuais, desenho, modelagem, encadernação,
carpintaria...”
83
. Como relata a professora em entrevista:
“Eu tinha um papel específico, de ordem mais material, que
precisava ser combinado com o das outras professoras. Por
exemplo, na aula de linguagem, cada aluna criava sua
estorinha e eu ensinava como fazer os fantoches, máscaras etc,
caracterizando-os de acordo com a literatura.”
84
A parte prática da aprendizagem artística era destacada, mesmo porque o
objetivo da disciplina de modelagem não era formar grandes artistas e sim despertar a
sensibilidade e valorizar a técnica das alunas para que estas transmitissem seu
conhecimento às crianças e pudessem perceber e incentivar habilidades artísticas que,
por ventura, aparecessem nas salas de aula:
O nosso curso não era de formar artistas, mas formar
professores que cultivassem a arte, que viessem a ter ‘bom
gosto’, que amassem a beleza. Se nem todos são capazes de
produzir beleza, vamos formar os expressivos consumidores.
A técnica se aprende, o belo se sente, se adivinha, se absorve.
E nós alunas-professoras nos preparávamos para dar mais
graça e beleza às nossas aulas, a abrir os olhos dos mais
novos que nos esperavam, Platão teria dito: ‘a Arte deve ser a
base natural e enaltecedora de toda forma de educação.”
85
Além de se enfocar os objetivos profissionais das técnicas aprendidas nas
aulas, nas aulas de Mlle. Milde eram ensinadas as formas de se trabalhar a madeira, o
ferro, o barro, as massas plásticas e os materiais complementares, os fios, as fibras, o
papel cartão, os arames. A artista também indicava a necessidade da prática para se
realizar os trabalhos e se ensinar a fazê-los e a importância, a significação e a
finalidade do programa dos trabalhos manuais nas duas primeiras séries. Na disciplina
de Milde era dada importância fundamental ao desenho como linguagem no
83
Cf. Anexo III.
84
PRATES, Maria Helena Oliveira. A Introdução Oficial do Movimento de Escola Nova no Ensino
Público de Minas Gerais. P. 151. Em reportagem do DIÁRIO DE MINAS, 18 setembro 1949, mostra-
se também a importância do teatro de marionetes com “Inúmeras possibilidades abertas ao teatro de
mascaras e marionetes, velhas tradições encontradiças em quase todos os países europeus e que só aos
poucos alcança a devida atenção de nossos meios intelectuais, graças principalmente a esforços
isolados que hoje temos o prazer de anotar.
85
OLIVEIRA, Alaíde Lisboa de. Artista-professora. In: Jeanne Milde- Zina Aita, 90 anos. Catálogo de
exposição. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha: 1990.
43
planejamento da ação, algo que se associa ao próprio ensino acadêmico da artista e à
aprendizagem de uma técnica. A observação do todo era essencial, frisando-se a
necessidade de compreender os “problemas relacionados com as outras matérias do
curriculum ginasial e seu tratamento”.
86
Além disso, era preciso observar os tipos e
valores de matérias primas, assim como a procedência e uso prático de tais materiais.
Valorizava-se, da mesma forma, a representação em alto relevo com modelagem de
folhas e flores (dos quais temos exemplos da própria artista) e a reprodução de formas
de gesso.
Jeanne Milde introduziu na educação tanto uma forma de arte erudita, ao
ensinar técnicas esculturais às alunas como, a partir da constatação da realidade do
ensino nas Minas Gerais, uma arte mais aplicada; na qual trabalha com os elementos
presentes no próprio solo mineiro. A ênfase dada à criatividade dos alunos permitia
um ensino mais livre para as professoras que vinham ter aulas na capital do Estado.
Além disso, Milde também dava aulas de História da Arte com slides trazidos da
Europa: uma grande novidade em Belo Horizonte e que causou certo mal estar na
capital por ela utilizar em suas aulas cópias de esculturas com modelos nus.
Ao que tudo indica, era responsável por uma verdadeira oficina de criação na
Escola de Aperfeiçoamento, mais tarde Instituto de Educação, “uma oficina de tudo:
carpintaria, cerâmica, encadernação, trabalhos aos quais se acrescentaram
recentemente preparativos para atividades dramáticas escolares fabricação de
máscaras, fantoches, marionetes, sombras, com a construção dos respectivos palcos e
confecção de cenários.
87
Dessa oficina, ao final de cada ano letivo, durante vários
anos, saíam trabalhos para a realização de exposições com os trabalhos produzidos
pelas alunas.
88
Esses trabalhos eram analisados pelos críticos, na imprensa, sempre sob
a ótica de uma arte “genuinamente popular” e a exposição era considerada como um
autêntico mostruário folclórico
89
. Tais apreciações poderiam nos levar a considerar
as artes utilitárias como populares ou folclóricas. Essa, entretanto, não era proposta de
Jeanne Milde criada em um ambiente em que as artes eram aplicadas à indústria e
nem esse o teor das obras executadas pelas alunas.
86
Cf. anexo III.
87
DIÁRIO CARIOCA, Rio de Janeiro, 25 setembro 1949.
88
ESTADO DE MINAS, Belo Horizonte, 20 novembro 1949; MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 20
novembro 1949; FOLHA DE MINAS, 20 novembro 1949.
89
FOLHA DE MINAS, Belo Horizonte, 26 novembro 1949.
44
A repercussão de suas aulas pode ser observada na recepção dessas por parte
da imprensa, sempre bastante amável com a professora belga. Em reportagem do
Estado de Minas sobre exposição da Escola Normal Modelo, as aulas de modelagem
da professora são elogiadas:
Uma das secções mais interessantes, pelo inedito da
orientação pedagogica, é, sem dúvida, a de modelagem. A
esculptora européa Jeanne Louise Milde, contratada pelo
governo para leccionar na Escola Normal, realizou com as
alumnas do curso preparatorio numerosos trabalhos,
salientando-se os baixo-relevos que conseguiram prender a
atenção de todos os visitantes. Executados em classe, bem
como fora do estabelecimento, essas delicadas modelagens são
em grande número e mostram um acabamento que póde ser
julgado com rigores de apreciação.
90
Pode se perceber, pela utilização das palavras inedito pela orientação
pedagógica”, como a presença de Jeanne Louise Milde era marcada pela forma
inovadora de dar aulas, trazendo o novo para a capital de Minas. Na mesma
reportagem, observamos a importância dada ao desenho também presente na
Academia de Belas Artes de Bruxelas nos trabalhos das alunas de Aníbal Mattos,
sendo o desenho considerado pelo autor da reportagem como fundamental para o
aprendizado das demais disciplinas, fortalecendo a inteligência e dando uma
compreensão mais nítida das coisas que nos cercam”. Milde também valorizava
sobremaneira o desenho afirmando, certa feita, que o menor dos croquis diz mais do
que uma longa exposição.”
91
Washington Albino comentou a exposição das alunas do curso de Artes
Aplicadas, destacando a função sócio-econômica do referido curso que, ao incentivar a
utilização de materiais regionais, contribui para o desenvolvimento econômico da
região de Minas, vendo
nessa orientação segura que se dá à formação das
professoras de artes aplicadas, que irão preparar a
mentalidade das crianças mineiras, uma obra realmente
90
ESTADO DE MINAS, 2 de janeiro 1930. Outras reportagens tratam da importância do curso de
modelagem: MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 10 abril 1930; MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 14
abril de 1930. Da exposições de trabalhos das alunas trata reportagem do ESTADO DE MINAS, 23
novembro 1934.
91
CORREIO MINEIRO, 25 novembro 1924.
45
patriótica e de profunda utilidade, tal seja a de incutir na
criança maior amor pelas coisas que a rodeiam e que no caso
são as nossas riquezas esquecidas ou abandonadas bem
como inspirar a esse senso artístico que tão bem ajuda a
desenvolver a imaginação, o espírito de iniciativa e a própria
alegria de viver em um meio abundante de recursos para a
satisfação dos nossos sonhos e das nossas fantasias.
92
Professora belga, sua obra era considerada patriótica e inédita, por utilizar
materiais próprios do solo brasileiro na confecção de objetos, juntamente com suas
alunas, na cadeira de artes aplicadas. Em texto publicado em periódico carioca, a
professora é apontada como maior mestra em artes aplicadas no Brasil, utilizando-se
de materiais próprios do solo mineiro:
Os trabalhos executados pelas alunas da professora Jeanne
Milde, os materiaes neles empregados são a prova convincente
do excelente trabalho da mestra belga que, a nosso ver,
revelou um conhecimento do nosso meio geográfico-social de
altas proporções. Assim, as trinta e três novas especializadas
estão em condições de retirar de suas próprias regiões a
matéria prima para o ensino dos trabalhos. Chego mesmo a
acreditar que várias mestras da turma deste ano vão descobrir
recursos regionais que lhe passaram desapercebidos até aqui.
É pena que algumas não tenham compreendido o sentido
altamente social e econômico do importante curso de Desenho
e Artes Aplicadas. Contudo acordarão a tempo, não temos a
menor dúvida.
93
Jeanne Milde incentivava a criatividade e inventividade das alunas ao mostrar a
elas as formas de se produzir e de se aproveitar os materiais existentes ao redor:
A cabaça, de todos os tamanhos, transformava-se em porta
jóia, bomboniére, farinheira, abajour, totalmente esculpida
oupintada com desenhos de criação livre ou inspiração
marajoara. Fazíamos abotoaduras, botões, broches, capas de
álbum de madeira ou de couro; móveis de troncos e até cabos
de vassoura e também estantes e suportes, os mais diversos.
Aprendia-se a encadernar “para não perder os livros velhos”
que recebiam capas artísticas, com relevos aplicados,
desenhos e títulos dourados. Modelávamos, esculpíamos,
92
Citação de texto datilografado presente em pasta do acervo particular da artista doado ao Museu
Mineiro, assinado por Washington Albino.
93
SANTOS, Carlos Porfírio dos. Educação e Ensino. A professora Milde e as novas mestras de
Desenho e Artes Aplicadas. O Diário. Rio de Janeiro, 19 dezembro 1948.
46
desenhávamos, discutíamos os problemas individuais do
exercício do magistério.
94
Dentro da lógica do ensino de Jeanne Milde, o principal seria aprender a arte a
partir do cotidiano, e é a importância dada à realidade do solo mineiro que está o
tempo todo presente em seu trabalho:
A reciclagem desses materiais despertava nossa curiosidade
e induzia para outros aproveitamentos, com a função didática
de facilitar o trabalho das professoras das escolas de menores
recursos e as do interior, onde é grande a diversidade de
matéria prima regional. Tudo era reaproveitado e
reinventado. E tudo isto, muito antes dos “inventores geniais”,
os atuais vanguardistas, que fazem as mesmas coisas, (mais
de cinquenta anos depois) sob os títulos de “objetos”,
“conceituais”, “instalações”, etc. Faltava àquele tempo, o
recurso da comunicação ampla de que nos valemos hoje, tais
como os espaços dos jornais, revistas e a televisão, mais
abertos para a difusão da cultura e da educação.
95
Em 1931, em um evento intitulado Semana da Educação e que contou com três
conferências, uma de Mlle. Milde, outra de Amélia da Matta Machado e a última do
Dr. Aureliano Tavares Bastos, a professora belga mostrou uma das diretrizes básicas
do seu pensamento em relação à utilização da arte: “Aproveitar sempre os modelos
naturaes na confecção de objetos de utilidade pratica.”
96
Aqui vemos mais uma vez a
marca da formação da artista em sua fala e em sua prática cotidiana: a observação da
realidade a ser retratada é fundamental para a confecção das obras.
A diferença entre o ensino ministrado aos adultos (realizado por Milde) e o
ensino ministrado às crianças (realizado pelas alunas de Milde) é observada pela
professora que vê na criança uma espontaneidade e uma capacidade de lidar
naturalmente com a argila muito maiores do que nos adultos. Interessante percebermos
como se dava o ensino da artista na Escola de Aperfeiçoamento: ensinar às professoras
modos de produção manual para facilitar seus trabalhos ao ministrar as diversas
disciplinas, utilizando-se de recursos aprendidos nas aulas de trabalhos manuais e, ao
mesmo tempo, ensinar a maneira como as artes deveriam ser ensinadas às crianças.
94
TRISTÃO, Mari’Stella. Jeanne Milde. In: Jeanne Milde- Zina Aita, 90 anos. Catálogo de exposição.
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha: 1990.
95
TRISTÃO, Mari’Stella. Jeanne Milde. In: Jeanne Milde- Zina Aita, 90 anos. Catálogo de exposição.
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha: 1990.
96
MINAS GERAES, Belo Horizonte, 24 maio 1931.
47
A primeira vez que retornou à Bélgica foi em 1933, quando deu uma entrevista
ao jornal Le Soir, em que falou sobre o seu trabalho no Brasil, assim como da forma
como os brasileiros recebiam os belgas. Sobre suas aulas, contou que eram dadas em
uma escola primária para
“[...] jovens homens e mulheres de 20 a 25 anos, escolhidos
pelo governo entre os que pareciam apresentar o máximo de
aptidões. Depois, meu auditório não parou de crescer e conta
atualmente com 200 alunos. Por outro lado, minha escola,
onde estou sendo agora auxiliada por quatro auxiliares que
formei se transformou em uma verdadeira pequena indústria
que produz por seus próprios meios e vende para aumentar
seus recursos. Meus alunos são iniciados em todos os tipos de
trabalho manual, ao desenho para “ouvrages de dames”, à
modelagem à escultura em madeira, à feitura de móveis...
97
De acordo com a artista, para fazer esses móveis, ela realizou um estágio
prático com um grande marceneiro do Rio. Continuando com suas declarações sobre o
ensino, comenta que seus alunos encontravam empregos na indústria de algodão (de
tecidos), onde trabalhavam com desenho, e ilustrando manuais escolares”. Na
entrevista, Mlle Milde mostrou interesse em aumentar seus conhecimentos sobre
cerâmica na Bélgica para utilizá-los posteriormente no Brasil. Ela empreendeu viagens
ao Rio de Janeiro, a passeio, mas que serviam também para tomar conhecimento do
que acontecia no ensino de modelagem e desenho no Brasil.
98
Dos trabalhos ensinados por Jeanne Milde, podemos observar modelagens em
argila, talha em madeira, trabalhos de bordado e, de acordo com notícia da imprensa
sobre exposição com os trabalhos das alunas, “alli se encontram, feitos em madeira,
argilla, cartolina e panno, todos os objetos geralmente existentes em uma casa.”
Frisa-se mais uma vez o caráter utilitário da arte de Jeanne Louise Milde e o objetivo
maior da disciplina de desenho, trabalhos manuais e modelagem: a melhoria do ensino
a partir da utilização da arte no próprio dia a dia das pessoas.
No ano de 1932, Mlle. Milde teve uma pequena enfermidade que a
impossibilitou de dar aulas até o mês de abril. Observando as cartas escritas para os
amigos e representantes do governo, percebemos a vontade da professora em voltar às
atividades. Com licença médica até o dia 20 de maio do ano de 1932, resolve, devido
97
LE SOIR, Bruxelas, 13 janeiro 1933.
98
O JORNAL, Rio de Janeiro, 25 julho 1931 e O JORNAL, Rio de Janeiro, 29 julho 1931.
48
ao restabelecimento, voltar a dar aulas já no dia 09 de maio do mesmo ano. Durante o
período em que esteve convalescendo, ficou em Sabará, na casa do diretor da usina
siderúrgica Belgo-Mineira.
O trabalho de Milde foi reconhecido por suas alunas que a homenagearam
diversas vezes por ocasião da formatura das turmas do curso de aperfeiçoamento:
como paraninfa no ano de 1934 e no ano de 1952 (já no curso de Administração
Escolar do Instituto de Educação).
Depoimento que demonstra como a artista realizava o ato de ensinar nos é
fornecido com grande sensibilidade pela escritora Alaíde Lisboa:
Apelava sempre para a criatividade ao determinar tarefas:
‘Façam uma figura humana, como cada uma desejar, em pé,
sentada, andando, sonhando...’ Na hora de julgar, a mestra
apresentava o conjunto e cada pormenor: vulgar,
inexpressivo, reproduzido, original, criativo... Adivinhava as
intenções artísticas, os prenúncios de inspiração, as facetas de
inovação.”
99
Milde era bastante exigente em suas aulas. Ela determinava que cada aluna
fizesse dez croquis diários. O corpo discente da Escola de Aperfeiçoamento era
constituído de mulheres, já que o ensino primário, como ainda hoje, era função
feminina. Como professora de modelagem, Jeanne Milde exercia um fazer
considerado feminino, a educação básica, uma das únicas ocupações destinadas às
mulheres. Ainda assim, Milde não deixou de ter problemas em alguns momentos com
o moralismo da cidade, como no caso que relatou Maria Helena Oliveira Prates:
Da entrevista com Mlle Milde, pode-se destacar uma ocasião
em que o controle moral-religioso que se exercia através de
pequenos atos é claramente detectado. Relata ela que, uma
vez, ouvindo voz de homem na sua sala de aula, voltou-se e lá
estava o diretor assistindo à aula. Isso por causa de slides que
ela usava para ilustrar as aulas slides de arte grega, arte
clássica, nus. Por isso suas aulas foram “denunciadas”, ao
que ele viera, de súbito, para ver o que acontecia.
100
99
OLIVEIRA, Alaíde Lisboa de. Artista-professora. In: Jeanne Milde- Zina Aita, 90 anos. Catálogo de
exposição. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha: 1990.
100
PRATES, Maria Helena Oliveira, op.cit. p. 132.
49
Observa-se, na forma como seu ensino era visto pelas alunas, o aspecto
civilizador da atividade profissional de Mlle. Milde: “mademoiselle Milde deu valiosa
contribuição nesses cursos para professoras rurais, alargando-lhes o horizonte
estreito do meio em que viviam.
101
A efetivação de Milde no cargo de professora da cadeira de desenho, trabalhos
manuais e modelagem do curso de Administração Escolar do Instituto de Educação de
Minas Gerais ocorre em 5 de julho de 1952, por ato do Governador Juscelino
Kubitschek.
102
A artista se aposenta como professora da cadeira no Instituto de
Educação no ano de 1955, de acordo com ato publicado no Minas Gerais.
103
Nada melhor do que as palavras da própria artista e educadora para mostrar o
que significava o ensino para ela:
O importante na escola nova é ensinar a criança a aprender,
isto é, dar-lhe o caminho da experiência. A criança deve ser
estimulada a pesquisar de acordo com as suas possibilidades.
Além disso, deve ser preparada, psicologicamente, para as
lutas da vida, adquirindo, na escola, noções de sociabilidade,
num ambiente de amizade e cooperação com os outros
coleguinhas. Enfim continuou nossa entrevistada o
importante é orientar as crianças e não apenas repetir-lhes as
lições.
104
Mas o ensino da artista não se restringiu à Escola de Aperfeiçoamento, ela
lecionou em outros lugares como a Escola de Polícia Rafael Magalhães, Fazenda do
Rosário e realizou trabalhos em hospitais.
Jornal da época nos fala sobre a contratação para a Escola de Polícia Rafael
Magalhães: “Por ato de ontem, o chefe de Polícia Sr. Campos Cristo, contratou a srta.
Jeanne Milde para professora da Escola de Polícia “Rafael Magalhães” onde
lecionará aula de desenho e levantamento topográfico.
105
A professora trabalhou
naquela Escola por breve período, tendo sido a sua contratação alvo de críticas: “[...] E
a escultora Jeanne Milde foi contratada para a Escola de Polícia, sendo este um ato
101
MOURA, Elza de. Encontros com Jeanne Milde. In: Jeanne Milde- Zina Aita, 90 anos. Catálogo de
exposição. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha: 1990.
102
MINAS GERAIS, 5 julho 1952 e carta do governador parabenizando-a pela efetivação.
103
MINAS GERAIS, 30 abril 1955.
104
DIÁRIO DE MINAS, 18 maio 1956.
105
ESTADO DE MINAS, 13 julho 1949.
50
do sr. Campos Christo. Um acordo municipal-estadual no capítulo de nomeações
exquisitas.
106
Mas é a própria Jeanne Milde que nos fala sobre o seu trabalho na Escola de
Polícia Rafael Magalhães com o Dr. Campos Christo, onde exerceu o cargo de
preparadora da cadeira de investigações, realizando levantamentos topográficos
(maquetes), modelagens de peças e desenhos, para representação de local de crimes.
Tratava, pois, de alguns aspectos de criminologia, para ajudar advogados,
criminalistas, médicos legistas, etc. Abaixo encontram-se trechos de entrevista da
artista, nos contando sobre o seu trabalho como contratada da Escola de Polícia, que
consistia
“[...] em facilitar os estudos de tipos humanos, suas
tendências, anormalidades, através da modelagem das
características descritas nos livros médicos que os professores
me apresentavam. Por meio dessas modelagens em gesso os
alunos podiam assimilar as explicações dos professores da
Escola de Polícia.
107
Assim, buscava-se um estudo de tipos físicos mais comuns que poderiam se
ligar a tendências criminosas, no melhor estilo de Lombroso do século XIX.
A artista desenvolveu também um trabalho humanitário em hospitais, junto a
médicos e enfermeiras, utilizando-se do teatro de bonecos:
“[...] No Hospital de Neuro-Psiquiatria Infantil trabalhei com
médicos e professores especializados para orientar a
necessidade de realizar teatrinhos de fantoches e marionetes,
material manual de toda espécie, desenho, modelagem para
descobrir tendências e vocações, desenvolver certas atitudes
que a criança tem e descobrir as origens dessas mesmas
atitudes. Nesse Hospital trabalhei durante três anos
consecutivos.
108
Nos recortes de jornais presentes no arquivo particular de Jeanne Milde,
observa-se que ela se interessava, de uma maneira considerável, pelo teatro de
bonecos, recurso metodológico fundamental na formação de professores de crianças.
106
SILVA, Jair. Oropa, França e Bahia. Estado de Minas. 17 julho 1949.
107
VEADO, Lúcia. A mulher de nossos dias. Estado de Minas. Feminino. 17 abril 1960, p. 06.
108
VEADO, Lúcia. A mulher de nossos dias. Estado de Minas. Feminino. 17 abril 1960, p. 06.
51
Dedicava-se, pois, ao ensino da confecção de títeres e de cenários para o teatro de
bonecos.
Mlle. Milde trabalhou também na Fazenda do Rosário, coordenada por Helena
Antipoff:
“[...] alcancei pequena vitória através de minhas alunas que
comigo trabalharam na Fazenda do Rosário (onde lecionei
durante 3 anos) e que aplicaram os meus métodos em outras
escolas, no Instituto Patallozi e em algumas escolas do
interior. Quanto ao apoio e compreensão do governo, em
parte foi bastante apreciado o meu trabalho, mas faltou que
me entregasse professoras que desejassem realmente
especializar-se, gente de preparo maior e cultura que se
apaixonasse pela cousa com idealismo e tenacidade, a fim de
possibilitar um estudo mais sério e mais profundo, uma
verdadeira pesquisa científica. Lamento apenas que muita
coisa útil poderia ter sido realizada com proveito... e não foi.
109
Percebe-se, nessa fala, uma certa decepção em relação ao trabalho que realizara
no Brasil. Essa decepção devia-se muito mais ao material humano despreparado que
existia no Brasil do que à constatação de um choque entre culturas distintas: a sua,
belga e européia, e a das professoras.
A presença de Jeanne Louise Milde na cidade de Belo Horizonte se faz notar
em outros espaços como a Association Litéraire Française de que foi escolhida
diretora no dia 13 de outubro de 1932.
Múltipla e sempre a procura novos caminhos para a aplicação da sua arte,
ancorada em um saber adquirido na Europa: assim é Jeanne Louise Milde.
109
VEADO, Lúcia. A mulher de nossos dias. Estado de Minas. Feminino. 17 abril 1960, p. 06.
52
II HORIZONTES ARTÍSTICOS: JEANNE MILDE E AS ARTES PLÁSTICAS NA
CAPITAL DE MINAS
História de um homem é sempre mal contada. Porque a
pessoa é, em todo o tempo, ainda nascente. Ninguém segue
uma única vida, todos se multiplicam em diversos e
transmutáveis homens.
110
Chegando a Belo Horizonte com uma função que não era a de fazer escultura,
mas a de dar aulas, Jeanne Milde não teve nem mesmo um ateliê no qual pudesse
realizar suas obras. A artista belga viera de um meio em que as artes plásticas, ainda
que pouco praticadas pelas mulheres, tinham um determinado status que, em Belo
Horizonte, então pequena capital de Minas, não possuíam. O que fazer em terras
brasileiras? Levar a “civilização”, a “alta cultura”, para um povo que não valorizava a
beleza das artes, ou melhor, a beleza da arte européia, clássica, erudita? Ou, além de
levar um conhecimento próprio - que certamente ela, por pertencer àquela realidade,
por haver estudado nela, havia adquirido -, aprender também com as pessoas do lado
de baixo do Equador?
Poucos artistas em Belo Horizonte acompanhavam o que ocorria nas artes no
mundo e os que estavam cientes, na maioria das vezes, não valorizavam o novo, as
vanguardas artísticas, como era o caso de Aníbal Mattos.
Jeanne Milde também não estava diretamente ligada a nenhum movimento de
vanguarda nas artes. A escultura já havia iniciado seu desenvolvimento rumo ao
abstracionismo, como ocorrera com a pintura a partir da segunda metade do século
XIX, ocupando-se de características que seriam intrínsecas à atividade escultórica: o
volume, a relação com o espaço... A própria artista Jeanne Milde realizou algumas
obras com fortes tendências à geometrização no início da década de 30, mas sem se
ligar a movimentos de vanguarda.
Pretende-se, neste capítulo, percorrer os passos de Milde na capital de Minas
como artista plástica: espaços pelos quais andou, pessoas com as quais conviveu,
tendo sempre como ponto de partida o fato de ela ser a primeira escultora, mulher, a se
fixar na cidade.
110
COUTO, Mia. O apocalipse privado do tio Geguê. Cada homem é uma raça. Lisboa: Editorial
Caminho, 1990.
53
II.I O meio artístico belorizontino: mulher e artista
Tendo militado sobretudo no campo da arte-educação, a artista também
participou ativamente do meio artístico belorizontino. Atuando sempre nos salões
promovidos na cidade (ainda que se considere esse meio artístico local incipiente),
principalmente como jurada, Jeanne Louise Milde teve uma presença ativa nas artes
na Belo Horizonte das décadas de 30 e 40 do século XX.
Foi uma pioneira, a primeira escultora com formação acadêmica a atuar na
cidade. Antes dela, podemos falar de alguns poucos nomes que tinham formação
formal. É o caso de Luís Olivieri e João Morandi que estudaram, respectivamente, na
Escola de Belas Artes de Berna, Suíça e em Clermont-Ferrand, França e trabalharam
na cidade como escultores no período de sua construção até décadas posteriores. Mas,
além da escultura, ambos estiveram ligados à arquitetura, área de sua formação
profissional. João Amadeu Mucchiut, austríaco que estudou na Escola Industrial do
Estado, em Trieste, Itália e Carlo Bianchi também realizaram obras escultóricas na
capital. Assim, a priori, podemos considerá-los como os únicos escultores a exercerem
suas atividades artísticas na capital antes da chegada de Milde.
111
Com relação à atuação feminina nas artes em Belo Horizonte, duas outras
artistas aparecem na cidade no momento da chegada da artista belga ou em momento
imediatamente posterior: Aurélia Rubião e Maria Marschner. A primeira, pintora,
havia estudado na Escola de Belas Artes de São Paulo, tendo nascido em Varginha,
Minas Gerais em 1901. A outra, pintora e escultora, havia estudado arquitetura na
Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, tendo nascido em Pirassununga,
São Paulo, e começado a atuar em Belo Horizonte somente nos anos 30. Aurélia
Rubião participou da 1ª Bienal de São Paulo já em 1951, e Maria Marschner fundou a
FUMA (Fundação Mineira de Arte) em Belo Horizonte nos anos 50. Eram também
mulheres e artistas, mas o nome mais importante entre elas era o de Mlle. Milde.
112
Jeanne Milde viveu no meio artístico e partilhou com seus demais integrantes
certos códigos sociais e culturais. Sua história de vida nos fornece elementos para
111
RIBEIRO, Marília Andrés e SILVA, Fernando Pedro da (orgs). Um século de História das Artes
Plásticas em Belo Horizonte. 1997.
112
Ibidem. p.465-466; 447.
54
refletir sobre o ingresso das mulheres no meio artístico. Será que a entrada de um novo
agente, a mulher Jeanne Milde, ocasionou mudanças significativas naquele meio?
Pierre BOURDIEU
113
empreendeu um estudo sobre as mudanças ocorridas no
meio artístico desde o Renascimento, que serve de base para uma reflexão sobre as
transformações que tiveram lugar nesse ambiente. Segundo ele, com a separação entre
a obra de arte e as suas funções mágicas e religiosas, ocorrida no Renascimento, surge
uma categoria socialmente distinta de profissionais da produção artística que tem
condições de libertar sua produção e seus produtos de outros campos da vida humana.
No século XIX, o artista plástico vai, gradativamente, rompendo com a representação
do real, o que ocasiona um direcionamento cada vez maior a um código próprio,
intrínseco ao mercado artístico. A comunicação passa a se dar entre os pares aí
inseridos. São os artistas, os críticos, os marchands e os colecionadores que passam a
ter um controle quase exclusivo da arte produzida no meio.
A ausência de domínio do código artístico por parte do público não
especializado é antes causado pela falta de acesso ao capital cultural conceito
fundado por BOURDIEU do que pela recusa consciente do código existente no meio
artístico. São os agentes desse meio que vão estabelecendo as normas a seguir, os
padrões a serem obedecidos, a partir de uma auto-referencialização em aspectos
intrínsecos ao meio. Nesse sentido, os artistas plásticos constituem um grupo
específico que se pauta por relações sociais de um meio em que há uma circularidade
entre seus agentes internos: os artistas, os críticos, os colecionadores, os marchands e
os historiadores da arte. A partir da análise empreendida por BOURDIEU, pode-se
concluir que as mulheres virão a se inserir nesse meio a partir do momento em que
tomam para si as diversas profissões aí existentes. Principalmente quando passam a
partilhar do código específico existente nesse campo da vida e passam, também, a
representar seus mundos a partir desse código.
Além de recorrer à análise de BOURDIEU, pode-se enfocar a vida e a obra de
Jeanne Milde a partir da lógica do suplemento estabelecida por Jacques Derrida.
114
Assim, em que medida a artista assumiria os códigos existentes no meio artístico, mas
ao mesmo tempo os transformaria, sendo, como artista-mulher, simultaneamente,
adição e substituição? Pela lógica do suplemento de Derrida o suplemento vem a ser
113
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. O autor baseia-se em reflexões realizadas
por Erwin Panofsky.
114
SCOTT, Joan. História das Mulheres, 1992.
55
uma indefinição, ele é tanto uma adição como uma substituição. As indefinições são
"significados contraditórios que são impossíveis até de serem classificados
separadamente."
115
Com fundamento nessa teoria pode-se afirmar que as mulheres
apareceriam como personagens que se inserem no meio artístico trazendo novos
códigos, complementando e substituindo os códigos existentes anteriormente. As
mulheres-artistas viriam aí se inserir de maneira a aceitar e/ou a colocar em xeque os
modos de ver existentes. A interpretação da atuação de Jeanne Milde é feita
justamente ao se pensar no limite dessa atuação no meio artístico em Belo Horizonte,
nela como um agente adicionado a essa realidade e, ao mesmo tempo, um agente
modificador desse quadro. Entretanto, Jeanne Louise Milde não realizou mudanças
consideráveis no modo de se pensar a arte sob uma ótica que poderíamos chamar
feminina: antes de mais nada, ela adotou o modo de ver existente no meio artístico
como aluna da Academia de Belas Artes e como participante dos meios artísticos
belga e belorizontino. Milde se insere, no meio artístico de Belo Horizonte, buscando
conquistar um espaço maior para as artes plásticas na cidade.
O trabalho como escultora estaria marcado pela quebra da tradição da
dominação masculina dentro desse meio, pois raras foram as mulheres que se
arriscaram nas artes da escultura até meados do século XX, presenças iniciais que
acabaram por possibilitar a posterior entrada de mais mulheres nesse ambiente. A
artista era uma exceção no mundo artístico, principalmente como mulher-escultora. É
o que sugere o texto a seguir, no qual o autor mostra-se admirado como trabalho da
artista:
os trabalhos em bronze da escultora Jeanne Milde
denunciam sobretudo força de concepção. Por isso mesmo,
admira-se que delicadas mãos femininas os tenham moldado.
o apenas pelo que representam em massa, na brutal matéria
de pouca plasticidade e difícil de ser dominada. Ressaltamos
principalmente o rigor de expressão que a artista emprestou
às imagens.
116
Para que seu trabalho fosse aceito, era necessário adotar o código existente no
meio artístico e, para se impor como escultora, deveria ser capaz de realizar obras
dentro dos pressupostos artísticos da época, assim como ocorrera na Real Academia de
115
SCOTT, Joan. História das Mulheres, p. 76.
116
GRIFFA, agosto e setembro 1943.
56
Bruxelas
117
. Em entrevista dada ao jornalista Walter Sebastião no início do ano de
1997, a artista observa como foi difícil sua batalha para chegar a ser uma escultora e
como, segundo ela, até aquele momento, não existiriam escultoras de peso:
Todos me criticavam, meus professores tinham muito
interesse em saber por que eu me interessava por escultura.
Eles diziam que eu era muito pequena para ser escultora e que
devia me contentar em fazer bonecas de vitrina (a artista
trabalhou em uma fábrica de manequins). Não respondi nada.
Deixei eles falarem. A minha intenção era fazer coisas grandes
e, graças a Deus, recebi o convite para vir a Minas Gerais,
onde fiz peças bem grandes.
E até hoje você não encontra mulheres fazendo esculturas,
prossegue, ninguém acredita que a gente tem força e saúde
para realizar escultura.”
Entretanto, não podemos deixar de perceber a abertura existente no meio para
as obras da artista, sempre observadas como obras de grande valor:
Jeanne Milde é sem dúvida, uma artista de talento. Os seus
trabalhos, porém, se encontram camuflados nos corredores
escuros do Grande Hotel, quando deviam estar expostos à
claridade e aos olhos do público que os julgaria na sua
natural e espontânea beleza. SM.”
118
Essa abertura existente à sua produção artística no meio belorizontino
relaciona-se, além do seu talento artístico, ao fato de ser uma européia, professora,
com uma função bem definida e institucionalizada já no momento inicial de sua
chegada ao Brasil. Ou seja, para além do fato de ser mulher, Jeanne Milde ocupava
outras posições e representações no espaço da cidade que permitiam a ela ser figura de
destaque nesse panorama.
Jeanne Milde não atuou sozinha no campo das artes em Belo Horizonte. Teve
como colegas de profissão diversas artistas plásticas ao longo do século XX. Com
relação à participação feminina nas artes na cidade, podem-se delimitar quatro
períodos de atuação das mulheres dos anos 20 aos anos 60.
O primeiro momento corresponde à exposição realizada por Zina Aita em
1920. O segundo inicia-se com a atuação de Jeanne Milde. O terceiro caracteriza-se
117
Ver no primeiro capítulo a parte referente a Real Academia de Belas Artes de Bruxelas.
118
GRIFFA, agosto e setembro 1943.
57
pela atuação das artistas da Escola Guignard e o quarto e último momento é marcado
pelo embate, pela existência de uma luta política das mulheres nos anos sessenta,
embate que se realizaria também no plano das artes plásticas.
A atuação das mulheres de forma efetiva na capital mineira se inicia com a
realização da exposição da pintora Zina Aita em 1920, primeira exposição de arte
moderna na cidade. Transgressora das normas vigentes, pode-se perguntar até que
ponto essa exposição influenciou as relações existentes entre os membros do meio
artístico. Poderia essa exposição ser considerada como um marco dentro da história
das mulheres artistas em Belo Horizonte, visto ser a primeira exposição de arte
moderna e a primeira exposição de uma mulher? O evento abalou o meio artístico,
mas a artista retornou à Itália, onde permaneceu até o fim da vida, não sendo uma
presença constante no panorama artístico de Belo Horizonte no século XX.
Zina Aita havia nascido em Belo Horizonte, tendo realizado seus estudos em
artes na Itália, na Academia de Belas Artes de Florença. Além de ter realizado a
exposição de arte em Belo Horizonte, ela participou da Semana de Arte Moderna de
1922. Em jornal de 1920, o mesmo em que constam informações acerca da exposição
da artista, nota-se o interesse em se mostrar o desenvolvimento dos modos de vida da
mulher. Assim, após referir-se à nomeação da 1ª mulher para a magistratura pelo
prefeito de Nova Iorque e ao ingresso, na Universidade de Londres, da 1ª mulher que
deseja seguir a carreira jurídica, afirma o jornal:
Quer isso dizer que os progressos do feminismo se
accentuam, dia a dia e que tempo virá, muito breve, em que as
mulheres se equipararão, ainda nos paizes mais
conservadores, ao sexo forte, cuja força ficará sendo apenas
constituída pela sympatia com que vê e auxilia esse triumpho,
que equivale à sua própria derrota.
119
O poema Moças da Escola de Aperfeiçoamento, de Drummond,
120
revela uma
Belo Horizonte marcada pela novidade, embora ancorada em um conservadorismo que
fazia com que as moças da cidade ficassem restritas a suas casas. Daí a dúvida em
relação à abertura para que as mulheres transitassem pelo espaço público da cidade
como estudantes e profissionais. Belo Horizonte aparece como o espaço em que o
119
DIÁRIO DE MINAS, 17 janeiro 1920. p. 01.
120
Cf. Anexo VIII.
58
tradicional e o moderno se encontram, em uma relação dialética de transformação e
manutenção da ordem vigente.
Um segundo momento inicia-se com a chegada da artista Jeanne Louise Milde,
com a Missão Pedagógica Européia, no ano de 1929. Em entrevista concedida a Carlos
Ávila em 1984, a artista fala do momento em que seu nome é indicado para integrar a
Missão:
O Dr. Alberto Tavares consultou o secretário geral da
Escola de Belas Artes, pediu a ele que designasse uma pessoa,
e então ele falou no meu nome. Ficou um pouquinho em
dúvida por eu ser uma escultora. Na mulher as pessoas
realmente não depositavam uma confiança no mesmo nível que
poderiam ter em um rapaz. Mas eles falaram muito bem de
mim e mostraram bastante a minha atividade e certamente eu
não ia recusar. Eu era audaciosa mesmo...”
121
Assim, de uma maneira geral, sua aceitação como mulher-escultora no meio
belga e também em Belo Horizonte, não se deu livre de preconceitos.
No princípio do século XX a educação era uma das atividades atribuídas às
mulheres, mas uma educação básica, sem altas incursões intelectuais. Mas, mesmo
atuando como professora, Jeanne Milde vai se estabelecer como artista plástica na
cidade, realizando obras para a empresa Belgo Mineira, bustos de personalidades
mineiras e um painel para o hoje Instituto de Educação, além de várias outras obras
livres, não encomendadas. Jeanne Milde
"[...] tornou-se o elemento de maior significação no movimento
modernista de Minas na década de 30, nas artes plásticas,
enquanto artista e professora de artes, no sistema de ensino da
capital.”
122
Após esse segundo momento, marcado pela figura central de Milde, as
mulheres passam a assumir o fazer artístico como trabalho, mulheres que
sobreviveriam de seu trabalho enquanto artistas não mais como educadoras. Formadas
na escola de Guignard, muitas delas são hoje consideradas artistas de peso no cenário
artístico brasileiro, como Maria Helena Andrés, Yara Tupinambá e Sara Ávila.
121
ÁVILA, Carlos. Nós vamos apresentar agora uma grande escultora: Jeanne Milde, uma belga muito
mineira. Estado de Minas. Março 1984.
122
VIEIRA, Ivone Luzia. A presença da mulher no movimento modernista do início do século.
Cadernos do núcleo de estudos e pesquisas sobre a mulher. Mulher e Arte. p. 79.
59
Entretanto, todas as três trabalharam como educadoras na área de artes plásticas,
conciliando as duas atividades.
Já o último momento, na década de 60, caracteriza-se por uma arte combativa,
numa perspectiva feminista. A mulher exerce agora a arte como trabalho em um
momento de luta no plano político marcado na efervescência dos anos sessenta. Uma
rearticulação da sociedade estava ocorrendo com a entrada do movimento feminista no
cenário político-cultural do país. Artes que buscassem novos valores e que, muitas
vezes, enfocassem aspectos políticos fariam parte deste movimento de libertação da
mulher, tendo como nomes importantes os de Maria do Carmo Secco, Lótus Lobo e
Terezinha Soares.
Jeanne Milde teve uma participação mais efetiva no cenário de Belo Horizonte
durante as décadas de 30 e 40. Em fins dos anos 40, com a emergência da Escola
Guignard, a artista começou a cair no ostracismo. Isso se deveu ao próprio
desenvolvimento do meio artístico, pois a linguagem de Jeanne Milde, dentro da
"evolução" da arte moderna, seria considerada uma linguagem ultrapassada por ser
ainda figurativa e ligada a elementos simbolistas. Ao mesmo tempo, a artista se afasta
do ensino, quando se aposenta em 1955. Sua figura volta a ser lembrada no início dos
anos 80, com a realização de exposições sobre seu trabalho e com a pesquisa da
professora Ivone Luzia Vieira sobre o Salão do Bar Brasil.
É interessante a consciência que a artista tinha sobre sua posição dentro do
panorama artístico. Ela dizia que sua escultura era moderna, mas que tinha uma base
clássica. Assim, ela seria uma artista de formação acadêmica que rompeu com o
academicismo em vários momentos de sua arte, que via o moderno como necessário e
o fluir da arte como essencial.
60
II.II Exposições, salões, convivência com artistas: artes e ofícios
Desde o momento em que chegou a terras brasileiras, Milde estabeleceu
contato com o meio artístico do país. No Rio de Janeiro, em 1930, participou de um
salão, o Salão de Bellas Artes, no qual foi agraciada com uma medalha de ouro,
Bello Horizonte, 03 (do correspondente) A diretora do
curso de trabalhos manuais da Escola de Aperfeiçoamento,
Mlle Jeanne Milde é uma ilustre escultora belga. Estudou na
Academia de Bruxelas, obtendo os prêmios e distinções de
Rudder, Malton, Dubois, Marin e Rousseau. Terminou seus
estudos em 1925, ganhando o prêmio de viagem à Roma. Em
1929, veio para o Brasil, fazendo aqui o busto do embaixador
da Bélgica em Washington, Maal, e a máscara do presidente
Olegário Maciel. Concorreu a exposição de arte de 1930,
alcançando medalha de ouro conforme noticiaram os jornais
de 18 de agosto de 1930, inclusive O Globo. Todavia esse
prêmio até hoje não lhe chegou às mãos. Por intermédio do
Correio da Noite, Mlle Milde faz um apelo aos responsáveis
pela execução das resoluções do júri, a fim de que lhe seja
entregue a medalha.”
123
Mlle. Milde não teve participação ativa nos meios de São Paulo e Rio de
Janeiro pois, segundo ela, sua função de professora demandava muito tempo. Nos
períodos do ano em que podia se afastar de Belo Horizonte, os artistas dos outros
estados encontravam-se viajando. Já em Belo Horizonte, o meio artístico não seria dos
melhores:
“[...] na parte artística eu não encontrei nada naturalmente,
não havia nada não é? Em Belo Horizonte os monumentos
são, vamos dizer, zero. Só se pode encontrar obras
maravilhosas do Aleijadinho em Sabará, em Ouro Preto, em
Mariana, etc.
124
Sua visão sobre o meio era pessimista e era necessário promover alguma ação
para vitalizá-lo:
123
CORREIO DA NOITE, Rio de Janeiro, 5 agosto. 1936.
124
ÁVILA, Carlos. Nós vamos apresentar agora uma grande escultora: Jeanne Milde, uma belga muito
mineira. Estado de Minas, março 1984.
61
Com relação ao meio artístico de Bello Horizonte, [...] sinto
aqui falta de troca de idéias, de um ambiente propício à
expansão da arte. Os artistas não se procuram. Não
promovem reuniões e exposições que possam despertar nos
filhos desta bella terra maior amor pelas coisas de arte.[...]
Existem na capital prossegue com vivacidade melle. Jeanne
Louise Milde alguns elementos de valor que poderiam se
congregar em um movimento pró-arte tendo como finalidade,
por exemplo, a creação de uma Escola de Bellas Artes e outra
de Artes e Officios.
125
A relação de Mlle. Milde com os demais artistas deu-se sem atritos. Assim que
chegou à capital, ela se inseriu no meio expondo suas obras e julgando as obras de
outros artistas. As exposições que realizou no meio artístico de Belo Horizonte foram
sempre elogiadas pela crítica local, assim como por seus pares. Entretanto, a crítica
possuía pouca fundamentação teórica, assim como pouco conhecimento sobre as artes
plásticas em geral. A artista vinha respaldada por um projeto do governo do Estado, o
que lhe fornecia um status privilegiado. Era, além disso, européia, criada em um
ambiente de valorização das artes, que vinha ao Brasil para trazer um pouco da cultura
e da arte de seu continente de origem. Sua boa aceitação como artista estava além da
sua capacidade de produzir obras; encontrava-se na própria representação sócio-
cultural que possuía na cidade
Aníbal Mattos dominava o cenário cultural e artístico da capital. Além de
artista plástico era promotor cultural e também professor das futuras professoras
formadas na Escola Normal da Capital. Em Belo Horizonte realizavam-se Exposições
Gerais de Belas Artes desde 1918, fomentadas por ele, que foi também o fundador, em
1918, da Sociedade Mineira de Belas Artes.
Milde vai participar da VII Exposição de Belas Artes de Minas Gerais, de
acordo com reportagem da época, com “uma arte harmoniosa, de linhas elegantes e
de profunda sensibilidade
126
. Na seção de escultura havia, além das obras da artista,
as do escultor Antonino Mattos.
A artista participou também da VIII Exposição de Belas Artes de Minas Gerais
ou VIII Salão de Belas Artes, organizado por Aníbal Mattos no ano de 1932. Em
entrevista dada ao jornal Diário de Minas
127
, Aníbal Matos diz que “[...] na escultura,
além de Jeanne Milde, a artista notável que todos admiramos, apresenta-se também
125
ESTADO DE MINAS, 15 janeiro 1935.
126
DIÁRIO DE MINAS, 30 abril 1930.
62
com excelentes trabalhos a senhora Maria Meyer Marchner, que estudou em nossa
escola e na Europa [...]”.
128
Note-se o adjetivo usado para se referir à artista, notável,
além de dar como certa a admiração que todos nutririam por ela.
Em oposição às Exposições de Belas Artes, promovidas por Aníbal Mattos,
representante da arte acadêmica na capital, realizou-se em 1936 o Salão do Bar Brasil,
que revelou
“... uma subversão aos cânones acadêmicos da arte em Belo
Horizonte. Organizar uma exposição de arte em um bar é uma
transgressão ou negação dos lugares tradicionalmente
designados para a experiência estética. O fato causou tal
estranheza que para o cronista Jair Silva
129
estava havendo
“uma revivescência de costumes de artistas bohemios de 1936.
O Bar Brasil está enfeitado de quadros e de esculturas (...). O
Sr. Aníbal Mattos installou-se, sem bebidas, no Theatro
Municipal. os artistas novos foram discutir a arte na
penumbra de um bar. São opposicionistas. Não concordam
com a evidência concedida, em Minas, ao pintor Anibal
Mattos.”
130
O salão foi organizado por Delpino Júnior, pintor, desenhista, ilustrador e
caricaturista que
“[...] procurou o apoio de artistas de prestígio na cidade -
como Genesco Murta, Jeanne Milde, Renato de Lima, Julius
Kaukal, Érico de Paula e Monsã e convidou artistas novos
como Francisco Fernandes, Délio Delpino, Fernando
Pierucetti, Alvarenga, Alceu Pena, Aurélia Rubião, Nazareno
Altavilla, Rosa Barillo Paradas, Elza Coelho, Antônio Rocha e
José Pedrosa, entre outros. Buscou também o apoio de jovens
arquitetos e estudantes da Escola de Arquitetura, que havia
sido fundada em 1930. O catálogo da exposição relaciona o
127
DIÁRIO DE MINAS, 17 dezembro 1931.
128
DIÁRIO DE MINAS, 17 dezembro 1931. Outros artistas presentes na Exposição foram os pintores
Amílcar Agretti, José Quintino de Barros, J. A. Ferber, Laerte Baldine, Rafaelo Berti, Souza Reis,
Oladimir Kozak, Anns Naim Vieira, Nicia Ruas Santos, Maria Guiomar Neves Cavalcanti de
Abulquerque, Luiz Signorelli. No desenho a bico de pena apresentaram-se Raul Tassini, e o próprio
Aníbal Mattos. Com charges, os artistas Adalberto Mattos, A. Childe, Argemiro Cunha e Monsã
estiveram presentes juntamente com a professora Anna Ruhlemam, essa última na seção de artes
aplicadas (cadeira que Milde ministrava na Escola de Aperfeiçoamento).
129
SILVA, Jair. Folha de Minas. Belo Horizonte, outubro 1936.
130
VIEIRA, Ivone Luzia. Emergência do modernismo. In: RIBEIRO, Marília Andrés e SILVA,
Fernando Pedro da (orgs). Op. cit, p. 149.
63
nome dos seguintes arquitetos: J. Coury, Hardy Filho, Remo
de Paoli, Shakespeare Gomes e Santólia.
131
A oposição que se faz entre os participantes do Salão do Bar Brasil e o pintor
Aníbal Mattos se encontra na própria linguagem artística dos modernos do Bar Brasil
e do acadêmico Mattos. Artistas já estabelecidos em Belo Horizonte, como Genesco
Murta, Jeanne Milde, Renato de Lima, Julius Kaukal, Érico de Paula e Monsã
participaram do salão, apoiando novos artistas e suas linguagens modernas. As obras
expostas possuíam traços de novas tendências como o cubismo, o expressionismo e o
art déco, em oposição ao academicismo de Aníbal Mattos.
Apesar de não estar concorrendo a prêmios, Jeanne Milde expôs 22 trabalhos
como Castidade, Saudade, Vigilante, Bondade, Malícia, Hebe, Mestiça, Súplica,
além de pequenos trabalhos como cabeças de índios e mestiças, medalhas do
embaixador Peltzer, busto de Mme. Olyntho Fonseca, de Cecy, da menina Maria
Luiza Álvares.
132
Nesse salão, de acordo com a pesquisadora Ivone Luzia VIEIRA,
Jeanne Milde apresentou esculturas que revelam a transição entre expressões
subjetivas simbolistas e formas arredondadas, volumosas, de características art
déco.
133
Mesmo com a oposição clara entre os expositores do Salão de 36 e Aníbal
Mattos, Milde e Mattos mantinham boas relações. Em 1937, quando o vereador
Alberto Deodato indica Aníbal Mattos para coordenador do Salão da Prefeitura criado
no mesmo ano, Milde integra, juntamente com João Boutshauser, a comissão nomeada
para assessorar Mattos. A comissão teria sido criada para minimizar o confronto entre
modernos e acadêmicos, diminuindo o conflito entre os artistas do Salão de 36 e
Aníbal Mattos.
134
Jeanne Milde estava presente também para apaziguar conflitos e
servir de elo entre os artistas da tradição e da linguagem acadêmica e os novos artistas
com suas linguagens modernas. O I Salão de Arte da Capital ocorreu em 1937,
reunindo tanto os artistas ligados a Aníbal Mattos quanto os artistas do Salão do Bar
Brasil.
131
VIEIRA, Ivone Luzia. Emergência do modernismo. In: RIBEIRO, Marília Andrés e SILVA,
Fernando Pedro da (orgs). Op. cit, p. 150.
132
ESTADO DE MINAS, 30 agosto 1936.
133
VIEIRA, Ivone Luzia. Emergência do modernismo. In: RIBEIRO, Marília Andrés e SILVA,
Fernando Pedro da (orgs). Op. cit, p. 153.
134
Ibidem. p. 156.
64
A relação de Milde com Mattos era bastante amigável e é a própria artista que
dela faz um relato:
O Aníbal Mattos era muito, muito meu colega. Qualquer
exposição, qualquer coisa aqui em Belo Horizonte, eu era
convidada, até mesmo a fazer parte de júri de carnaval... Eu
era muito popular. O contato com Aníbal Mattos era constante
porque ele trabalhava no Instituto de Educação, com a classe
dos quinze ou dezesseis anos. Eu trabalhava com o curso
superior, dava aulas para professoras que, pelo menos, tinham
prática de dois anos.[...]”
135
Milde transitava em vários espaços artísticos da cidade, sendo acolhida por
artistas acadêmicos e modernos, mostrando-se aberta a novas linguagens. Ela pode ser
vista como uma ponte entre o novo, as novas linguagens artísticas na capital, e o
antigo, a linguagem acadêmica de Aníbal Mattos.
O II Salão de Artes da Capital contou com a presença de Milde como jurada. O
salão se desdobrou em um encontro de artistas na Fazenda Petrópolis, de sua
propriedade onde
“[...] nasceu o movimento que congraçará os artistas de Belo
Horizonte. Aliás, esse desejo de união residia há muito nos
corações dos que vivem para a arte e pela arte em Minas. Pois
bem, o domingo nove de outubro foi a data desse
acontecimento. [...] Primeiro entraram Renato de Lima e Del
Pino Júnior. As estatuetas olharam. Depois, Delio Del Pino,
Aurélia Rubião, Vicente Guimarães, Genesco Murta. Alfredo
Bastos e Maria Aurélia Bastos. As estatuetas admiraram-se. E
logo após vieram o Bracher e os dois Altavilla. Para culminar
entraram na dependência o Barão von Smigay e J. Carlos
Lisboa. As estátuas gritaram: - sim senhor vai haver barulho
no chateau!
136
Nomes dos mais importantes das artes em Minas foram ao encontro, o que
ilustra as boas relações da escultora com os mais diversos artistas. Jeanne Milde, de
acordo com um jornalista, teria se tornado “[...] dois braços que estão reunindo
quatorze artistas. É o abraço de Jeanne Milde. Em dia não muito longe ela abraçará
todos os que vivem pela arte em Minas Gerais. Ela conhece o futuro da arte...
137
135
ÁVILA, Carlos. Nós vamos apresentar agora uma grande escultora: Jeanne Milde, uma belga muito
mineira. Estado de Minas. Março 1984.
136
OLIVEIRA, Álvares. Folha de Minas. Fuga à realidade. 16 outubro 1938.
137
OLIVEIRA, Àlvares. Folha de Minas. Fuga à realidade. 16 outubro 1938.
65
Esse encontro em sua Fazenda Petrópolis demonstra a vontade que os artistas
tinham de que houvesse maior união entre as diferentes tendências e conquistassem
um espaço maior na cidade. Mas o encontro não passou de um germe que não se
desenvolveu. De toda maneira, a simples iniciativa de promover a reunião demonstra a
vontade que a artista tinha de ver o meio artístico se desenvolver na capital de Minas.
É o que sugere o discurso de Renato de Lima:
À mesa falou o pintor Renato de Lima que inicialmente
agradeceu às gentilezas da anfitriã. Foi focalizada pelo
orador a necessidade de congraçar os artistas mineiros,
casmurros e reservados, mas sempre em atividade, faltando-
lhes, porém, a união que fatalmente daria maior projeção à
vida artística-cultural de Minas Gerais.
Existia e existe uma grande vontade individual para promover
esse contato disse ainda o sr. Renato Lima mas verificava-
se a ausência do promotor de meetings e também o local.
Porém, Mlle Milde se tinha prestado a dar o seu concurso
para a realização desse projeto e pedia pois a todos os artistas
que se reunissem em torno da escultora belga, que dava
naquele momento o primeiro passo para o verdadeiro
congraçamento dos artistas mineiros.
138
Exposições Individuais
Em 1945 a escultora Jeanne Milde exibiu trabalhos (nos jornais dados
controversos sugerem de 35 a 58 trabalhos) em uma mostra realizada no Salão de
Festas do Grande Hotel de Belo Horizonte. Figuraram entre os trabalhos expostos
cabeças e bustos dos Srs. Celso Machado, Prof. Pinto Antunes, Maestro Arthur
Bosmans, Adami Requioni, Benjamin Cunha, Edmundo Paula Pinto, sras e senhoritas
Maria Elvira Salgado, Magda Carvalhais, Alice Boignard, Elza Maletta e da pintora
Serita. Além desses, Milde expôs busto de Otaviano de Almeida, que iria ser colocado
na Praça Hugo Werneck. Havia também na mostra baixos-relevos de Monsã, Vitório
Marçois, coronel Benjamin Guimarães e Thais d’Aita e alguns grupos de esculturas,
dentre os quais “Garimpeiros”.
139
Vários jornais anunciaram a exposição da artista no Grande Hotel, o que
demonstra um envolvimento ainda bastante significativo com a imprensa e com a vida
138
O DIÁRIO, 12 outubro 1938, p.09.
66
cultural da cidade naquele ano.
140
Foi a primeira exposição individual da artista, visto
que não havia realizado nenhuma individual na Bélgica.
No Edifício Sul América em 1947, aconteceu outra exposição individual de
Milde antes de uma viagem que realizaria para a Bélgica. Algumas reportagens foram
publicadas, as obras mostradas foram bastante elogiadas, mas uma crítica referente à
pouca divulgação da exposição revela como o meio artístico e os belorizontinos não
estavam tão interessados no que a artista estava produzindo.
141
A escultora Jeanne Milde não incorre nunca no erro de
exprimir o convencional. Pelo contrário, inspira-se em temas
da vida corrente, em figuras de existência real, como se pode
constatar nos grupos de danças populares e nas várias
cabeças expostas. Sua técnica tem suficiente liberdade de
movimentos para permitir-lhe revelar a sua personalidade de
uma escultora evoluída e segura em seus objetivos.
142
Nas obras expostas pela artista, há uma grande presença de temas ligados ao
povo diferente que ela encontrara em terras brasileiras. O contato com uma nova
cultura propiciava a realização de obras com temáticas diferenciadas. Acabava,
também, por transformar a própria arte, a partir da diferença do material utilizado, por
causa da necessidade de adaptação aos materiais provenientes do solo de Minas
Gerais. As obras expostas eram “obras com motivos brasileiros como Garimperios,
Dança Popular nº 1, Dança Popular nº 2 (terracota), Retirantes (bronze); bustos de
figuras conhecidas da capital como Monsã, Pinto Antunes, Francisco Fernandes,
Ferras de Carvalho, Ana Maria Mascarenhas e Maria Stael del Pino; Cabeça de
Cristo, Mestiça e Cavadores de Cristal (bronze).
143
Essa exposição seria a última da artista em território mineiro, antes de sua
viagem à Bélgica, de acordo com comentário de jornal de Belo Horizonte.
144
139
ESTADO DE MINAS, 19 agosto 1945.
140
Jornais e Revistas nos quais saíram reportagens sobre a exposição da artista: FOLHA DE MINAS,
14 agosto de 1945. MINAS GERAIS, 11 agosto 1945. MINAS GERAIS, 28 agosto 1945. DIÁRIO DA
TARDE, 29 de agosto de 1945. MINAS GERAIS, 1 setembro 1945. MINAS GERAIS, 2 setembro
1945. DIÁRIO DA TARDE, 3 setembro 1945. FOLHA DE MINAS, 5 setembro 1945. DIÁRIO DA
TARDE, 6 setembro 1945. MINAS GERAIS, 14 setembro 1945. DIÁRIO DA TARDE, 15 setembro
1945. REVISTA BELO HORIZONTE, agosto - setembro 1945. REVISTA ALTEROSA, outubro de
1945, ano VII, número 66.
141
Jornais que trataram da exposição: DIÁRIO DA TARDE, Belo Horizonte, 9 abril 1947. ESTADO
DE MINAS, 8 abril 1947. ESTADO DE MINAS, 29 de março 1947.
142
ESTADO DE MINAS, 8 abril 1947.
143
ESTADO DE MINAS, 29 março 1947.
144
ESTADO DE MINAS, 29 março 1947.
67
Essa relação entre a mudança de temas e a vivência no Brasil aparece também
nas reportagens publicadas pelos jornais belgas.
A obra de Mlle. Milde foi avaliada também na Bélgica. Milde realizou uma
exposição no período de 21 de fevereiro a 4 de março de 1948 em Bruxelas, na Galeria
Toison d’Or, juntamente com dois outros artistas, Yvonne Reper e Maurice Van
Weyenbergh. Não é possível saber se a artista realmente levou as obras ou somente
fotos dos mesmos, pois existe um depoimento da artista, já no fim da vida
145
(ressalvando-se os diversos momentos de falha na memória da senhora já idosa que
era, com muitas dificuldades para se lembrar de acontecimentos do passado), em que
ela diz haver levado somente fotos das obras realizadas em Belo Horizonte. Já no
acervo da artista, doado ao Museu Mineiro, encontra-se uma lista com dados de obras
que estariam presentes na exposição que realizara em Bruxelas.
146
Os dados do
catálogo são bem claros: “Após uma ausência de 19 anos Jeanne Milde expõe algumas
esculturas feitas no Brasil.” Pelos dados constantes no catálogo, a artista realmente
levou suas obras para a Bélgica. Ela teria exposto 30 diferentes esculturas em
terracota, bronze e cera, algumas com várias cópias, outras somente o original. O
Ministério de Instrução Pública da Bélgica adquiriu a obra intitulada Ma maman.
147
Algumas reportagens
148
trataram da exposição da artista, demonstrando que as
relações de Milde com o meio artístico belga ainda continuavam razoavelmente boas,
frutificando no momento em que lá retornou.
145
Entrevista dada ao CRAV em 1996.
146
Ver Anexo VI.
147
Documento do Ministère de L’Instruction Publique. Nº 3099, 1948.
148
LA LANTERNE, Bruxelles, 1
o
março 1948. LE SOIR, Bruxelles, 2 março 1948. L’EVENTAIL,
Bruxelles, 7 março 1948.
68
Trabalhos sob encomenda
Dos trabalhos realizados por Mlle. Milde em Belo Horizonte, alguns foram
encomendados por pessoas da cidade, por empresas ou pelo governo. Fica difícil
estabelecer entre as obras que retratavam pessoas quais teriam sido encomendadas e
quais foram feitas por iniciativa da artista, fosse por amizade ou por desejar retratar
um determinado modelo. Em seu arquivo particular, existe uma lista de obras,
material usado em sua confecção e prováveis donos das mesmas, mas não há dados
mais específicos dos trabalhos, como dimensão e fotos por exemplo. A relação
contribui, entretanto, para se ter uma idéia dos temas tratados pela artista.
149
A artista executou diversos bustos como os de Benedito Valadares, Otaviano
de Almeida, Dr. Gilberto da Silva Porto e retratos de Edmundo Paulo Pinto, Francisco
Fernandes, Celso Machado, Gilberto da Silva Porte e Louis Einch. Há um busto de
Benedito Valadares em Pará de Minas
150
e um busto de Barbançon em Monlevade. O
busto de Otaviano Neves, confeccionado a partir de fotos do médico, foi colocado na
av. Francisco Sales, entre a Santa Casa e a Casa de Saúde São Lucas.
151
É de autoria de Jeanne Milde a máscara mortuária de Olegário Maciel,
presidente do Estado de Minas, morto no cargo em 1932. O texto a seguir descreve o
modo de feitura da máscara:
“[...] o rosto do sr. Olegário Maciel foi impresso em gesso,
em várias camadas e em um só bloco, até adquirir
consistência.
Apenas uma das orelhas foi modelada em bloco separado,
devido à posição do corpo (deitado). O rosto foi umedecido
com glicerina. Arrancada a máscara foi esta transformada em
formas (negativo). Untada de sabão com o fim de ser evitada a
aderência, foi quebrada a máscara aos pedaços, depois de
cheia de nova camada de gesso (positivo).
O molde deixa ver que o trabalho foi perfeito. São
perfeitamente visíveis os poros do rosto e a menor reentrância
da pele.
Os pelos da barba e do bigode aderem à máscara em
abundância, a ponto de reimprimir-se no original. Estão
149
Nos anexos IV e V, estão listas com algumas obras e proprietários, lista feita pela artista e que se
mostra bastante elucidativa com algumas datas e proprietários das obras. Realizei algumas modificações
na referida lista buscando torná-la mais inteligível.
150
Ver anexo V.
151
ESTADO DE MINAS, 20 setembro 1946 e DIÁRIO DA TARDE, 7 julho 1945.
69
também visíveis os cabelos brancos da cabeça, na borda do
frontal e por cima das orelhas.
Explica a modeladora que é impossível evitar que os cabelos
sejam arrancados, dada a pressão da máscara de gesso no
rosto, acrescentando que, na Europa, dão muito valor aos
modelos extraídos do original e que trazem os sinais capilares.
Na base do rosto foi colocada uma toalha e pedaços de papel,
em volta da fronte, da altura do queixo à cabeça, com o fim de
evitar o transbordamento da massa, ficando a descoberto,
apenas, o rosto, até à orelha.”
152
As especificações do tratamento dado à confecção da obra traz alguns detalhes
que hoje podem ser considerados mórbidos, como a técnica utilizada para que os fios
do bigode não grudem na face, assim como o fato de a máscara ser feita a partir do
rosto já deformado morto. O lugar ocupado pela artista na cidade era, certamente, de
destaque naquele momento: não seria qualquer pessoa, sem ter um certo status, que
seria chamada para realizar a máscara mortuária do presidente do Estado.
A máscara mortuária foi roubada no mesmo ano em que foi confeccionada,
1932, tendo sido devolvida na década de 90. O roubo permanece, até o momento, um
mistério a ser esclarecido.
Das obras encomendadas pelo governo, duas merecem destaque: Alegoria às
Ciências e Alegoria às Artes. Encontram-se no saguão do prédio do Instituto de
Educação, em Belo Horizonte, inaugurado em 5 de setembro de 1930 com a
denominação de Escola Normal Modelo. O texto a seguir é uma descrição das duas
alegorias:
“O da direita é uma alegoria ao ensino das ciências naturais,
da geografia, da literatura e da geometria, e o da esquerda
representa uma alegoria ao ensino artístico da Escola Normal,
isto é, a escultura, o canto, a música, e a pintura. As duas
figuras principais representam o sol, isto é, a luz do
ensinamento e o progresso de Minas. As outras figuras estão
sob a impressão do desejo de conhecer e aprofundar o seu
saber, e vão subindo a escadaria do progresso. Sob cada baixo
relevo estão colocadas as efígies do Presidente Antônio Carlos
e do Dr. Francisco Campos que são os realizadores da
152
ESTADO DE MINAS, 7 setembro 1933. A máscara do presidente Olegário Maciel. Detalhe do
trabalho de Jeanne Milde. O jornal belga ETOILE BELGE, 15 outubro 1933 também fala da máscara
mortuária feita por Jeanne Milde.
70
reforma do ensino e os grandes artífices da obra educacional
em Minas.”
153
No Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, encontra-se a escultura
Água, sua alegria e sua embriaguez, que ultrapassou as fronteiras das coleções
particulares, assim como as duas alegorias. Outra obra de vulto da artista, Alegoria à
Indústria (fig.1), acha-se na Belgo Mineira, empresa siderúrgica com sede em Sabará.
É um alto-relevo em bronze que retrata o trabalhador, com toda a sua força, tendo ao
fundo um forno siderúrgico. A representação do trabalhador na obra, realizada em
1933, condiz com o ideal estadonovista de valorização do trabalho. A representação é
feita de forma a valorizar tanto a força do trabalhador, quanto a importância da
indústria. A partir da grandiosidade das figuras humanas, pode-se perceber como o
trabalho, figurado no próprio trabalhador, é enaltecido. Antes de ser uma Alegoria à
Indústria, a obra parece ser uma Alegoria ao Trabalho, com a artista valorizando o
homem como sendo a figura mais importante da peça, ainda que ao centro da obra
encontre-se a imagem da siderúrgica.
Fig. 1
Jeanne Milde. Alegoria à Indústria. Alto relevo em bronze. 130 x 210 m. 1932. Coleção Belgo-
Mineira.
153
MINAS GERAIS, 5 setembro 1930. p. 10. No jornal belga LE SOIR, Bruxelas, 22 agosto 1930,
também saiu uma referência à obra da artista.
71
A crítica de arte na capital mineira
As artes plásticas não tinham grande participação no cenário da capital e
tampouco significado ativo para a população. Percebe-se isso pelo desinteresse
generalizado que as manifestações artísticas pareciam ter por parte dos habitantes da
cidade. Algumas tentativas de explicação podem ser esboçadas: a falta de educação da
população para apreciar esse tipo de arte (BOURDIEU diria a falta de acesso ao
capital cultural); a não adequação da arte produzida ao esperado pelo meio, uma
preferência da população por outros tipos de arte... Assim, as análises das obras da
artista eram sempre muito pouco elaboradas, por não haver uma crítica especializada
na capital mineira.
Os jornalistas, muitas vezes, davam ênfase à formação da artista e ao seu
trabalho como professora na Escola de Aperfeiçoamento, como na reportagem que se
segue:
Vamos referir-nos nesta crônica à obra simpática desta
última artista, que o nosso governo em boa hora contratou na
Bélgica, para dirigir a cadeira de modelagem do curso
Normal, em que, se tem mostrado conhecedora perfeita da
moderna pedagogia. A escultora Milde mandou três trabalhos
para o Salão Mineiro: Primavera da vida, Mestiça e Retrato
da Senhorita Álvares da Silva.”
154
Diversos jornais da cidade publicaram reportagens sobre a VII Exposição de
Belas Artes de Minas Gerais. Uma das críticas mais interessantes, reproduzida abaixo,
é uma tentativa de análise da obra de Milde por crítico da capital:
“A escultora Milde é moça, de uma mocidade cheia de
entusiasmo e de amor pela sua arte admirável.
Em seus trabalhos palpita o encanto dessa mocidade, em
arrojadas composições escultóricas a que não faltam técnica e
sentimento.
Expõe no Salão Mineiro três trabalhos de grande
sensibilidade: Primavera da vida, Mestiça, e um retrato de
distinta senhorinha de nossa sociedade.
No primeiro, uma interessante composição cheia de graça e
movimento, há um deslumbramento de formas moças nas
figuras nuas das adolescentes que a compõem.
154
DIÁRIO DE MINAS, 30 abril 1930.
72
E nessas formas não há sensualismo nem luxúria mas uma
expressão de simplicidade e inocência, que tornam o grupo
empolgante na sua movimentação rítmica de bailado ao ar
livre. É um trabalho de grande valor como desenho, como
modelado e de linhas magníficas. Uma obra de artista
completa e empolgante, fundida em bronze e com uma patina
perfeita.
Mestiça é estudo realizado em nosso meio. Representa uma
pequena mulatinha, com todos os característicos da raça.
Retrato da senhorinha Álvares da Silva é outro trabalho feito
em Belo Horizonte. A artista mostra por essa forma que aquilo
que trouxe de fora é obra sua, pois que, nos trabalhos aqui
realizados, está patente a mesma segurança técnica, a mesma
delicadeza de sentimento e essa grande vibração de alma que
é a característica notável da sua obra de mestra. A escultura
de Mlle. Milde, artista que tem trabalhos no Museu de
Bruxelas, oferece um dos mais belos aspectos do salão
mineiro: é obra de verdadeiro talento.”
155
A arte da escultora seria arte de muita inocência e sensibilidade. A forma do
tratamento dado a ela, moça, é significativa da inocência que desejavam dar à artista.
Desejo de inocência motivado, talvez, pela posição, nem um pouco familiar, da artista
na cidade: solteira, profissional que ganhava seu próprio sustento como professora e
escultora na jovem capital. É claro o desconhecimento da arte escultórica por parte do
jornalista que realiza a crítica, assim como a total ignorância a respeito do
desenvolvimento da arte: não se fala em estilos (classicismo, romantismo, simbolismo)
ou mesmo da forma como foi realizado o trabalho.
Outra reportagem sobre a mesma exposição busca analisar a obra da artista,
mostrando a forma de execução dessa e as características próprias da arte escultórica,
mas sempre presa à retratação da realidade:
“[...]Um dos problemas que se torna muito complicado para o
escultor é a da escolha do modelo; mais difícil que para o
pintor, a quem o colorido é, sem dúvida, uma das principais
preocupações.
[...] Para o escultor a forma torna-se o motivo essencial,
porque na sua arte o que aparece, em primeiro de tudo, são as
linhas. Essas influem decisivamente no todo, - não só no
detalhe da figura, mas na estrutura da própria composição
que deve estar baseada em perfeitas linhas de harmonia e de
equilíbrio. E tão importante se torna esta exigência que os
defeitos de modelado não chegam a influir decisivamente no
155
DIÁRIO DE MINAS, 26 abril 1930.
73
julgamento de uma obra escultórica que se apresente com uma
linha original e interessante, que possa ser considerada uma
linha de beleza verdadeiramente marcante.
Neste particular a escultora Jeanne Milde aliou a graça de
uma forma delicada e serena ao traço de linhas
encantadoras.
156
No mesmo artigo, o crítico tece algumas considerações sobre as três obras
expostas. O autor vai desenvolvendo sua crítica falando das obras e da técnica da
artista. A primeira escultura a ser analisada é Primavera da Vida, conjunto escultórico
de figuras femininas nuas:
Tudo nele é graça, vida e movimento; expressão, forma e
delicadeza. Agita-o o ritmo da dança na desenvoltura de uma
radiosa liberdade em plena natureza.
A obra de arte que produz essa impressão forte e duradoura
que prende e fascina, é aquela que reúne todos os requisitos de
técnica, de inspiração e de sentimento que caracterizam as
obras mestras.
Em Primavera da vida palpitam os nervos e as veias dum
verdadeiro artista de talento, que criou a sua obra nesses
momentos admiráveis em que a inspiração diviniza a criatura
humana, dando-lhe esse dom sobrenatural de produzir as
obras superiores.
Primavera da vida é trabalho que deve ficar na Pinacoteca de
Minas.
157
Assim, coroa-se o talento da artista frisando-se a necessidade de que a obra se
estabelecesse em uma possível pinacoteca do estado. As outras obras são também
analisadas, cada qual dentro da sua peculiaridade, mais ligadas ao tema escolhido do
que ao tratamento dado à obra pela artista, como a obra Mestiça:
“[...] Mestiça é uma cabeça de criança, tipo de mulato, de
evidente cruzamento com a raça branca.
As características raciais estão patentes na fisionomia, a um
tempo desconfiada e triste, da pequenina mestiça, de cabelos
aos caracóis.
Na fronte larga há traços que aliados à melancolia do olhar
fixo e à vaga expressão dos lábios polpudos, nos dão essa
impressão de cisma e dolência em que, frequentemente, caem
os nossos mestiços.
Um excelente trabalho de expressão.
158
156
ESTADO DE MINAS, 25 abril 1930.
157
ESTADO DE MINAS, 25 abril 1930.
74
O juízo que se faz da obra e da representação realizada por Mlle. Milde como
fidedigna da própria raça mestiça, com a sua melancolia e lábios polpudos, é
elucidativo quanto à imagem que se tinha da raça brasileira a representação criada
pela artista é vista como uma representação da própria raça, um retrato deste povo.
Sem dúvida, Jeanne Milde retratava em suas obras os sentimentos e as sensações que
possuía em relação a determinado tema. Entretanto, a análise da obra é feita com
juízos de valor acerca da obra, dando um traço pejorativo à parcela mestiça do povo
brasileiro impressão de cisma e dolência algo que não é possível de se ver em uma
determinada obra.
A outra obra exposta, a figura de uma moça da sociedade belorizontina, é
também analisada sob essa ótica do modelo:
O outro estudo de Mlle Milde é o retrato da senhorita Maria
Álvares da Silva. [...] Este busto é uma prova de nossa
afirmativa pois a pureza das linhas do modelo devem ter
influído para a perfeição da sua escultora.
Se a artista teve a felicidade de encontrar numa figura humana
linhas de tanta harmonia e uma expressão de tão rara
fidalguia, não é para admirar que tivesse realizado um
trabalho de tal finura e de uma tão distinta elegância plástica.
Nesse busto a expressão do olhar doce, que parece velado pela
sombra acariciadora das sobrancelhas espessas: a elegante
linha do nariz, quase grego; o desenho fino e delicado da
boca, as linhas altivas do pescoço, em suma, as proporções de
evidente tendência clássica da retratada, inspiraram a artista
que realizou um trabalho de valor, modelado com
simplicidade e largueza e cheio de uma admirável expressão.
É com prazer que nos externamos sobre a obra desta escultora
moça que se revela uma artista feita, pelas qualidades
evidentes da técnica.
159
A crítica acima mostra a beleza das linhas da raça branca, colocando o juízo de
valor a serviço da idealização da beleza: o critério de julgamento da beleza não se dá
pela forma como a artista trata o tema mas pelo tema em si. Assim, o crítico via na
obra, Mestiça, um valor escultórico, mas a beleza não se encontra na obra em si, mas
sim no tema de que trata. O crítico dá importância à linha, não à relação com o espaço:
158
ESTADO DE MINAS, 25 abril 1930.
159
ESTADO DE MINAS, 25 abril 1930.
75
essa última será uma preocupação latente dos escultores a partir do desenvolvimento
da escultura moderna.
A diferença em relação às outras críticas presentes nos jornais é a tentativa de
ligar a arte de Milde a um desenvolvimento das artes plásticas:
A sua arte é moderna sem os exageros de tendências
futuristas, é a arte conscienciosa do artista sincero que faz
arte pela arte, com o entusiasmo moço pela profissão que
abraçou, com a sensibilidade fina de um temperamento de
extrema vibração emotiva.
Em sua escultura há serenidade e arrojo ao mesmo tempo,
como se a artista houvesse conquistado esse dom profundo de
dominar seus próprios nervos, dando à sua obra essa alta
expressão emotiva que não está disciplinada ao canon clássico
e que não tomba na vertigem do modernismo chocante.
É uma artista moderna dentro dos limites da compreensão
generalizada. Para admirar a sua escultura não é necessária a
hipocrisia de uma falsa supersensibilidade: ela está ao
alcance de todos os que, pela educação do sentimento estético,
estejam aptos a compreender a verdadeira Beleza.”
160
A arte de Milde ainda se mostrava, de acordo com o crítico, apreciável por
pessoas que não estavam cientes da arte moderna, “de uma falsa supersensibilidade”.
Sua arte seria também “moderna sem os exageros de tendências futuristas”.
O contato com a Bélgica continuou bem intenso nos primeiros anos da estada
de Milde no Brasil: a mesma reportagem, reproduzida acima, sobre as obras da artista
expostas na VII Exposição de Belas Artes de Minas Gerais, foi também publicada em
jornal belga.
161
As reportagens tratam a artista sempre de uma forma muito respeitosa,
destacando o grande valor de seu trabalho. A crítica é feita valorizando a capacidade
que a artista tinha de reproduzir o real, um real baseado em pressupostos clássicos.
Essa preocupação é característica da arte dita acadêmica, em oposição a uma arte dita
moderna. Jeanne Milde, mesmo identificada em alguns pontos de sua obra com o
moderno, trazia em sua arte preocupações de ordem acadêmica, como a boa
representação do modelo.
Esses críticos de jornal buscavam também na arte a expressão de um
sentimento, capaz de mostrar o momento inspirador de produção de uma obra artística.
160
ESTADO DE MINAS, 25 abril 1930.
161
LA PRESSE, 17 junho 1930.
76
Celso Brant realiza uma análise da obra Vers la Vie, de Milde, relacionando-a à beleza
da arte grega que teria sido perdida com “a incompreensão da vida dos primeiros
padres
162
e mostrando como a obra da artista faz parte de uma tradição greco-
ocidental:
Todo retorno à pureza grega é recebido com alegria pelo
nosso espírito. Sentimo-nos bem em contato de toda arte que
traz, na alma, o signo desses selos eternos, o sopro do gênio
helênico.[...] E com que contentamento pousamos os olhos
nessa admirável escultura de Jeanne Milde em que um simples
convite à vida retrata um modo superior de ver as coisas, uma
elegância de pensamento que chega a nos causar espanto em
meio a uma civilização que se envenenou terrivelmente com
uma pretensa virtude que é a própria negação dos princípios
fundamentais da vida. [...] É esse sentimento do mundo que faz
de Vers la vie uma rara expressão de beleza, uma verdadeira
obra-prima de bom gosto. E nós continuamos a acreditar com
Rodin, que “l’art est sentiment”.
163
Salienta-se a importância do sentimento na arte de Jeanne Milde, arte simbólica
por meio da qual a artista retratava os diversos sentimentos humanos. Mas a
imaginação (e por conseqüência a criação) é também considerada pelos críticos como
parte importante do trabalho artístico da escultora belgo-mineira:
“Longe de concentrar-se na representação do retrato humano
(às vezes em bustos de tamanho natural ou muito diminuído,
às vezes em forma de baixos-relevos de pleno ou três quartos
de perfil) a escultora dedica o seu cinzel a todos os aspectos
possíveis do mundo real ou imaginário, que uma mão artística
pode formar e interpretar em giz ou bronze.”
164
Críticas mais bem elaboradas, buscando compreender o papel da obra da artista
no panorama do desenvolvimento da arte moderna da capital, aparecem já no
momento em que seu valor como artista pioneira e moderna é resgatado nos anos 80.
Sua obra é então analisada à luz de teorias que são capazes de inseri-la no
desenvolvimento da arte ocidental e de estabelecer as diversas influências por ela
sofridas. É o caso da seguinte crítica de Ângelo Oswaldo, que a inclui nos movimentos
artísticos modernos:
162
BRANT, Celso. Diário da Tarde. 15 setembro 1945.
163
BRANT, Celso. Diário da Tarde. 15 setembro 1945.
77
A sua escultura se limpa de artifícios, rejeita mais e mais a
matéria no deliberado compromisso com a espiritualidade que
lhe infunde a artista, numa transfusão de alma do criador para
o objeto criado. Partindo do processo clássico simbolista,
condicionado por algumas características que as décadas de
vinte e trinta nitidamente imprimiram em seu trabalho, ela
compôs um novo binômio, no qual se conjuraram,
harmoniosamente, uma figuração sugerida pelo
expressionismo e a solução formal resolvida à maneira
concreta, dentro de um vocabulário geometrizante.
165
Outros críticos analisam a obra de Mlle. Milde, como Walter Sebastião, do
jornal O Estado de Minas, que mostra, mais uma vez, sua importância como artista
moderna na capital mineira.
166
As críticas em Belo Horizonte limitam-se a acompanhar o próprio
desenvolvimento das artes plásticas no âmbito da cidade. O fundamento das queixas
de Mlle. Milde em relação à pouca troca de informações existentes na capital mineira
evidencia-se na análise das críticas de jornais. Os críticos demonstravam não possuir
contato com as transformações artísticas que estavam ocorrendo nas outras partes do
globo. Isso se reflete no pobre arcabouço teórico dos comentários, na fundamentação
pobre e sem embasamento que marcou a crítica de jornal belorizontina na primeira
metade do século XX. Entretanto, já no fim da vida e mesmo após sua morte, nas
décadas de 80 e 90, sua obra foi alvo de críticas construtivas e enriquecedoras para a
compreensão de sua arte.
164
FRANCK, Roberto. Minas Gerais. Arte e Diversões. Flagrantes. s/data.
165
OSWALDO, Ângelo. Estado de Minas. 2ª Seção. 1 fevereiro 1994, p. 08. Este texto é elucidativo
para analisar a arte de Jeanne Louise Milde, mostrando influências diversas: clássico, simbólico,
expressivo, geometrizante, a serem abordadas no próximo capítulo.
166
SEBASTIÃO, Walter. Para conhecer ou relembrar Jeanne Milde. Viver BH. Estado de Minas. Belo
Horizonte, 17 outubro 1997, p. 20.
78
II.III Entre o Brasil e a Bélgica
Jeanne Milde havia estabelecido boas relações com a sociedade, com o meio
artístico e com o próprio governo belga, o que é demonstrado pelas homenagens por
ela recebidas. A artista foi condecorada pelo governo belga duas vezes, uma em 1930
e a outra em 1950. Primeiramente, recebeu a comenda da ordem Chevalier Leopold
que “representa um título honorífico da mais elevada distinção e só é conferido aos
cidadãos que se notabilizam pelos mais distintos méritos intelectuais e artísticos.”
167
Se ela fosse uma pessoa sem expressão no meio artístico ou na sociedade belga, não
teria sido agraciada com a comenda. Além dessa, recebeu a comenda de Cavaleiro da
Ordem da Coroa distinção que lhe outorgou o Príncipe-Regente Baudoin em 14 de
novembro de 1950. O decreto do Príncipe-Regente belga foi-lhe entregue em janeiro
de 1951 pelo Sr. Jean Thiry, cônsul da Bélgica em Minas.
168
Apesar de ter recebido essas honrarias do governo belga, Mlle Milde apresenta
um pedido de naturalização como brasileira, próximo ao momento de sua
aposentadoria: sua naturalização se dá por ato de 23 de novembro de 1951
169
e menos
de quatro anos depois ela se aposentaria
170
.
Antes belga, agora brasileira, a escultora permanecia no país que adotara.
Depois de dedicar mais de 25 anos ao ensino das artes, aposentava-se e podia se
dedicar a suas esculturas.
Estadas na Bélgica: visões do Brasil
Em 1933, quando primeiro retornou à Bélgica, Mlle. Milde concedeu uma
entrevista ao jornal Le Soir, relatando seu trabalho no Brasil e a forma amigável como
os brasileiros recebem os belgas. Nessa entrevista, mostrou interesse em aumentar
seus conhecimentos sobre cerâmica, para utilizá-los posteriormente no Brasil,
introduzindo, na matéria que lecionava, “a arte teórica e prática da cerâmica.” E
167
ESTADO DE MINAS, 10 dezembro 1930. Outros jornais com reportagens sobre a condecoração:
MINAS GERAIS, 10 dezembro 1930. L’ETOILLE BELGE, Bruxelas, 4 dezembro 1930.
168
MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 24 janeiro 1951.
169
proc. número 46576-51
170
MINAS GERAIS, 29 de abril de 1955. Este é o teor do decreto: “O governador do Estado, tendo em
vista o que consta o processo 79 da Sec. da Educação, DESS/1ª Seção, resolve conceder aposentadoria,
se acordo com o art. 142, par. II, da Constituição Estadual, a JEANNE LOUISE MILDE, no cargo de
professor, padrão I 31, da Cadeira de Desenho e Artes Aplicadas do Instituto de Educação de Minas
Gerais.”
79
acrescentou: Isto me permitirá aumentar, pela aplicação de nossos métodos
industriais, o prestígio de nosso país.
171
Assim, a própria Milde se colocava como
uma representante do povo belga em terras brasileiras.
Em 1947 retornou novamente à Bélgica, lá realizando algumas atividades,
entre as quais uma entrevista para uma rádio belga, onde se revela a percepção que
possuía do Brasil.
A artista, agora na Bélgica, estava presente nos meios de comunicação para
falar do Brasil, da sua experiência em outra terra: a belga que foi trabalhar em um
mundo distante, exótico e bastante distinto da Europa. E que se deixara influenciar por
modos de ser brasileiros.
O entrevistador
172
inicialmente apresenta a artista, uma belga que exerce no
Brasil a profissão de escultora, aos ouvintes belgas. A arte brasileira, mais
especificamente a arte colonial de Minas Gerais, foi um dos assuntos destacados na
reportagem. Segundo a artista “uma arte colonial de influência portuguesa, uma
mistura de estilos Manuelinos, Renascentista e Barroco Jesuítico”. Dos materiais
utilizados, a artista vai falar do granito e da pedra sabão, “uma espécie de granito
macio”.
Dos artistas do período colonial, Milde cita Aleijadinho, “um brasileiro de pai
português [...] particularmente dotado [...] foi devorado pela doença atroz da lepra.”
Após referir-se às mazelas da vida do Aleijadinho, passa à especialidade do artista, a
ornamentação,
Ele definiu sua época com uma personalidade incomparável,
é o único artista brasileiro que deixou, até o presente, um
grande nome. Suas obras remarcáveis são os Profetas de
Congonhas. São obras de toda beleza escultural, de expressão,
de vida, de movimento, são obras que vos fala e que vos
impressiona. Toda sua arte é inspirada em motivos religiosos e
na história do Brasil.
A artista demonstra, em sua fala, um conhecimento considerável a respeito da
arte mineira. Não era mais somente a artista belga que viera ao Brasil trazer seus
conhecimentos e sua civilização. Mostrava seu conhecimento acerca de uma cultura
171
LE SOIR, Bruxelas, 13 janeiro 1933.
172
VIE INTELECTUELLE PAR CARL HENRY. Entrevista dada por Jeanne Milde em 6 agosto de
1947 à Radio-Diffusion Nationale Belge (transcrição da entrevista no acervo da artista doado ao Museu
Mineiro).
80
distinta da sua, mas que, ao mesmo tempo, tornava-se sua segunda cultura, bem como
sua consideração para com ela.
Em seguida discorre sobre a Arte Moderna em Belo Horizonte, ocupando-se
das obras de Niemeyer e Portinari na Pampulha. Minas Gerais e Belo Horizonte são
bastante elogiados pela artista. Belo Horizonte é considerada o centro das reformas e
Minas Gerais é um Estado que ama o progresso e a maior preocupação do governo
atual é o ensino.” Inquirida sobre a música na cidade onde habitava, disse a artista ter
muito pouco o que dizer, somente teria a relatar que o maestro Arthur Bosman, que
dirigia a Orquestra Sinfônica da cidade, era belga. Diz também haver trabalhado muito
em solo brasileiro, como professora e como escultora: “eu fiz muitos retratos, muitos
trabalhos de composição, monumentos e baixo-relevos que foram vendidos e que se
encontram em locais públicos
A recepção dada pelos brasileiros aos belgas é vista pela artista como muito
boa: “É bastante agradável dizer que o Brasil me reservou uma boa acolhida e que
isso não é uma exceção: os belgas neste país são bem apreciados e bem acolhidos.
Na entrevista que havia dado em 1933, também falara sobre o tratamento dado aos
belgas: “Eu recebi no Brasil uma acolhida das mais calorosas. O Brasil é um país
magnífico. Não chove constantemente como em Bruxelas e as pessoas são agradáveis,
como aqui.
173
Essa boa acolhida foi, com certeza, um dos motivos que a levou a ficar
em terras brasileiras.
Os erros de conhecimento sobre o Brasil que aparecem em reportagens na
Bélgica são impressionantes:
“Encontra-se, nestas estátuas, as lembranças de tempos onde
as populações indígenas conservaram sua originalidade, mas
sobretudo imagens de uma América Meridional Hispânica e
totalmente entranhada do barroquismo espanhol. As estátuas
de Mlle Jeanne Milde têm a graça da flexibilidade, uma
ciência da vida no estudo das linhas e dos volumes. Elas são
igualmente cheias de espírito, de sensibilidade e sobretudo de
idealismo. Eu penso em sua Matin Inquiet, em sua Cantique a
la Vierge e em algumas de suas terracotas como
l’Intellectuele e la Songeuse. Sua arte é plena de graça e de
força, de charme e de energia.
174
173
LE SOIR, Bruxelas, 13 janeiro 1933.
174
LE SOIR, Bruxelles, 2 março 1948.
81
O erro do texto é flagrante: o Brasil torna-se uma América Meridional
Hispânica, entranhada de barroquismo espanhol. É o problema de se falar de algo sem
conhecimento de causa. Ao mesmo tempo, serve para que se perceba como Espanha e
Portugal muitas vezes são considerados como um só no imaginário (ou
desconhecimento) europeu, ao mesmo tempo em que as colônias desses países tornam-
se colônias hispânicas em vez de hispânicas e portuguesas. Na mesma reportagem,
diz-se que Mlle. Milde realizou uma mostra, com muito sucesso, em Buenos Aires,
exposição de que realmente não existem notícias.
O aspecto do exótico, do diferente, está presente na análise que se faz das
obras da artista, pois, as pessoas “que buscam o exotismo
175
ficariam satisfeitas com o
conjunto das obras exibido por Mlle. Milde. No entender dos críticos, Mlle. Milde
havia sido influenciada por uma arte que não era européia, ocidental. De fato, sua obra
modificou-se ao entrar em contato com povos completamente diferentes do seu povo
de origem. Mas o modo de fazer, as referências no fazer continuavam essencialmente
européias. A matéria-prima, os temas das obras se modificaram, mas a concepção do
que era uma obra de arte, a importância do utilitarismo das obras, das artes aplicadas à
indústria e ao cotidiano, fundamentos de algumas tendências da arte européia daquele
período, conservavam-se em sua produção artística. De acordo com Ivone Luzia
VIEIRA:
Em 1948, quando Jeanne Milde expõe novamente sua obra
em Bruxelas, na Galeria Toison d’Or, após dezenove anos de
ausência, causa impacto a expressão primitiva do seu trabalho
realizado no Brasil. A crítica local observou as mudanças em
sua arte e considerou sua obra estrangeira, de algum modo
“outra” para a cultura européia. Mas, ao olhar de forma
retrospectiva sua obra como um todo, constata-se que ela
soube viver as influências do seu tempo e libertar-se de
princípios alheios à sua originalidade.
176
Tem-se notícia de que a artista viajou à Bélgica também no ano de 1953, pois o
governo do Estado concedeu-lhe licença para afastar-se do serviço por um
determinado período daquele ano. Sobre essa viagem não existem dados
esclarecedores no arquivo da artista.
175
JOTTRAND, Lucien. L’eventail. Bruxelles, 7 março 1948.
176
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de Estado da
Fazenda de Minas Gerais. p.15.
82
II.IV Ostracismo e redescoberta
O período de seu afastamento e a Escola Guignard.
Apesar da importância de momentos como o Salão de 36 na transformação da
arte moderna em Belo Horizonte, foi a partir da ocupação dos espaços públicos da
cidade, com a construção do complexo da Pampulha, em 1944, que a arte moderna
passou a ocupar um lugar de destaque na capital. O choque ocasionado pela linguagem
de Portinari e de Niemeyer, já completamente dominada pelo moderno, vem
transformar o panorama artístico mineiro.
A chegada de Guignard no ano de 1944 e a sua nova metodologia de ensino
fizeram com que aqueles que trabalhavam com as artes plásticas em Minas antes de
sua chegada, entre eles Jeanne Louise Milde, passassem a ser vistos como portadores
de uma linguagem passadista e caíssem no ostracismo. Além disso, a Escola do
Parque, de Alberto da Veiga Guignard, encontrava-se no centro da cidade, no Parque
Municipal. O espaço público do Parque foi, pois, tomado por um ensino de artes muito
mais moderno do que o ensino instituído anteriormente por Aníbal Mattos, que
oferecia cursos de artes àqueles que se interessassem na aprendizagem artística. É o
próprio espaço físico da cidade que passa a ser um local de arte moderna: a cidade se
abria (mineiramente desconfiada e com grandes restrições) para novas tendências
artísticas.
A tomada de um centro urbano por uma nova arte era um acontecimento já
conhecido por Jeanne Milde. Belga, de Bruxelas, viveu na cidade transformada pelo
Art Nouveau de Victor Horta. Talvez, por isso, refira-se ao complexo da Pampulha
como Art Nouveau em Belo Horizonte, em entrevista dada na Bélgica em 1947. Na
realidade, o que a artista desejava dizer era uma arte nova (e não um Art Nouveau) que
se estabelecia na cidade: “depois do ano de 1940, um Art nouveau se faz presente, o
grande inovador, Juscelino Kubistchek, encorajou a Arte Moderna, ele era prefeito da
cidade nesta época
177
Após o elogio à figura de JK, o assunto passa a ser os artistas
presentes na cidade a partir de então:
177
VIE INTELECTUELLE PAR CARL HENRY. Entrevista dada por Jeanne Milde em 6 agosto de
1947 à Radio-Diffusion Nationale Belge (transcrição da entrevista no acervo da artista doado ao Museu
Mineiro)
83
Alberto Guignard, professor de Pintura e de desenho no
Instituto de Belas Artes, o arquiteto Niemeyer que perturbou
os espíritos com sua curiosa Igreja da Pampulha, seu Cassino,
sua Casa do Baile, seu Iate Clube e suas casas particulares
que são de uma arte e de uma concepção totalmente novas. A
Igreja da Pampulha tem suas partes exterior e interior
decoradas pelo grande pintor moderno de afrescos, Portinari.
Juntando-se a este cenário, o escultor Zamoysky, artista
polonês, que esculpiu uma grande figura simbólica: a mulher
polonesa. Tudo isso encontra-se à margem de um imenso lago;
é um lugar curioso, onde se admira o conjunto de uma
concepção nova, audaciosa e bela.
178
As expressões elogiosas à arte moderna em Belo Horizonte mostram que Mlle.
Milde não tinha, ao menos aparentemente, ressentimentos por não haver sido chamada
para participar da construção do conjunto arquitetônico da Pampulha. No entanto,
August Zamoysky, escultor e professor polonês que viveu no Brasil de 1940 a 1955,
fora chamado de outro estado para executar uma obra na capital mineira, enquanto a
artista não tivera seu nome lembrado.
Jeanne Louise Milde teria se ausentado desse panorama artístico, a partir da
chegada de Guignard, por estar presa a um ensino desvinculado da formação de
artistas (ela ensinava artes para professoras primárias) e, ao mesmo tempo, por haver
uma grande valorização do ensino do mestre pintor. Em meados dos anos 50, portanto
em um momento posterior à sua chegada, os alunos de Guignard passam a ser
reconhecidos em todo o Brasil. Ademais, Guignard já era um conhecido pintor quando
vem para Belo Horizonte a convite de Juscelino Kubitschek. A artista não havia
formado uma escola de artes, como Guignard, e já em 1955 havia se aposentado como
professora do Instituto de Educação.
O resgate de sua obra nos anos 80 e 90.
Na década de 80, a artista terá sua obra resgatada por pesquisadores que
estudam sua atuação em Minas Gerais. Algumas exposições de Milde acontecem em
Belo Horizonte, privilegiando sua posição como uma artista moderna no panorama
artístico belorizontino.
178
VIE INTELECTUELLE PAR CARL HENRY. Entrevista dada por Jeanne Milde em 6 agosto de
1947 à Radio-Diffusion Nationale Belge (transcrição da entrevista no acervo da artista doado ao Museu
Mineiro)
84
Nos anos 80, morava em um apartamento na Av. Augusto de Lima, centro da
cidade, onde continuava a produzir suas esculturas. Como uma das artistas importantes
a serem relembradas pela participação intensa no panorama artístico belorizontino, foi
homenageada no XIV Salão Nacional de Arte do Museu da Pampulha, em Belo
Horizonte. O Salão realizou-se de 10 dezembro de 1982 a 28 fevereiro de 1983 e a
artista teve suas obras expostas, juntamente com a obra dos artistas Délio Delpino,
Herculano Campos, Julius Kaukal (estes três participantes do Salão do Bar Brasil) e
Lorenzato (artista popular que teve contato com uma arte clássica), na Grande Galeria
do Palácio das Artes, a partir de 17 de dezembro de 1982.
Ela volta a ser notícia como artista atuante em Belo Horizonte desde 1929. É
lembrada como uma pioneira nas artes e no ensino em Minas Gerais, sendo
condecorada em 1982 com a Comenda da Ordem dos Pioneiros. Recebe, também,
outras condecorações como a Medalha do Mérito Educacional, em 15 de outubro de
1984, e a Grande Medalha da Inconfidência, em 21 de abril do mesmo ano, concedidas
pelo Governo do Estado como reconhecimento pelo trabalho prestado a Minas Gerais.
A artista deve ter se mostrado satisfeita com o resgate de sua história: reconhecida
ainda em vida, lúcida e com possibilidades de aproveitar aquele momento.
Além do salão e das condecorações, foram expostas algumas esculturas da
artista, com bastante repercussão na imprensa, em uma exposição realizada em 1984
no Museu Mineiro, inaugurada em 27 de março de 1984.
179
Essa exposição foi, na
realidade, uma retrospectiva da artista com obras as mais diversas. Essas datas e
acontecimentos servem para revelar como Mlle. Milde esteve presente na vida da
cidade de Belo Horizonte ao longo do século XX.
Na década de 90, prosseguem as homenagens. Em 1990, aconteceu um
seminário no Instituto de Educação para recordar Jeanne Milde e comemorar os seus
noventa anos de idade. Dentre os ex-alunos e conhecidos que participaram,
encontravam-se Alaíde Lisboa, Elza Moura, Mari’Stella Tristão, Daniel Antipoff,
Carlos Alberto Pinto Fonseca e Maria Antonieta Bianchi. A coordenadora do
seminário foi a Prof. Ivone Luzia, responsável pelo resgate da obra da artista nos anos
179
ESTADO DE MINAS, Feminino, 5 fevereiro 1984. p. 09. O Globo. Grande Rio. 07 fevereiro 1984.
p. 08. MARINA, Ana. DIÁRIO DA TARDE, Belo Horizonte, 26 março 1984, p.13. DIÁRIO DO
COMÉRCIO, Belo Horizonte, 29 março 1984, p.08. TRISTÃO, Mari’Stella. Museu Mineiro faz
retrospectiva de Milde. Estado de Minas. 21 março 1984. p. 06. DRUMMOND, Austen Amaro de
Moura. A transcendência escultural da forma. Estado de Minas, 09 agosto 1984.
85
80. Nos espaços pelos quais ela havia transitado em Belo Horizonte, prestavam-se
homenagens pelos serviços prestados à cidade.
Outra exposição ocorreu no Museu Mineiro, em 1994, em que as obras da
artista aparecem ao lado das dos artistas Renato de Lima e Aurélia Rubião, ambos
pintores participantes da Exposição do Bar Brasil em 1936. Quatro anos antes já
ocorrera uma exposição da artista e de Zina Aita, no Museu de Arte da Pampulha, em
comemoração dos 90 anos de nascimento de ambas.
180
Mas as homenagens não pararam por aí, continuaram após sua morte.
Felizmente, alguns pesquisadores a entrevistaram, deixando depoimentos para aqueles
que buscassem algum dia informações sobre essa mulher, artista e participante de
acontecimentos do século XX. É essa mulher, Jeanne Milde, que aparece dando
depoimentos, já idosa com 96, 97 anos, com falhas de memória, mas sempre
independente. E é essa a mulher retratada nas linhas desta dissertação. Uma mulher
realizada profissionalmente, ainda que em um meio incipiente, convivendo com
pessoas que muitas vezes não compreendiam sua obra, o que, com certeza, a artista via
como mais um obstáculo a ser vencido em sua longa trajetória.
Por ocasião de sua morte, os jornais publicaram reportagens sobre o papel
fundamental da artista em Belo Horizonte. Além disso, no ano de 2000, realizou-se, no
Museu Mineiro, uma exposição comemorativa do seu centenário de nascimento com o
lançamento de um vídeo intitulado “A vida na obra de Jeanne Milde”. Assim, Mlle.
Milde continua a chamar a atenção pela escolha que fez ao vir para o Brasil. Se tivesse
permanecido na Bélgica, talvez pudesse ser reconhecida como uma das primeiras
escultoras a atuar naquele país. No seu país de opção, é reconhecida por suas
esculturas, pelo trabalho que realizou como educadora e pelo importante papel que
exerceu no incentivo às artes plásticas em Belo Horizonte. Se não obteve grande
sucesso ao tentar incentivar o meio artístico com suas reuniões, com a participação no
Salão do Bar Brasil, tornou o ambiente da cidade um pouco mais receptivo à arte
moderna, abrindo caminhos para a afirmação de novos valores artísticos.
Apesar da naturalização e de dizer que se sentia muito bem como mineira, sua
cultura primeira, formadora de sua identidade, a européia, civilizadora, permanece
presente em sua arte e em sua vida, marcando os passos que daria ao longo de sua
longa existência.
180
JEANNE MILDE, ZINA AITA 90 ANOS. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 1991.
86
III MODERNA, MAS COM UMA BASE CLÁSSICA...
Moderna, mas com uma base clássica. Tem a anatomia que a
gente descobre, tem a inclinação da forma, tem interpretação.
Quer dizer: se sofro, vou me inclinar e sinto dor. E isso tem
que sair na expressão da modelagem.”
181
Jeanne Louise Milde
Para se discorrer sobre a vida de Jeanne Milde, devem-se utilizar as obras de
arte que ela produziu ao longo de sua existência. Através da análise de suas obras
pode-se compreender o que a movia a fazer sua arte, o que significava a arte para ela e
mesmo qual era sua concepção de mundo. Além de estar ligada a uma arte figurativa,
retrato do real, a artista via no fazer artístico a manifestação do seu sentimento, da sua
forma individual de ver o mundo. A arte era, para ela, a conjunção do retrato de um
mundo real com a representação do mundo feita por sua individualidade.
Como se tornava imperativa, dado o curto espaço de tempo para a elaboração
da dissertação, a redução do número de obras a serem analisadas, optou-se por fazer
uma seleção entre as diversas obras. Assim, deu-se preferência às obras pertencentes
ao Museu Mineiro que retratam momentos de sua carreira artística: obras simbolistas,
obras que possibilitam a referência da artista a um caminho do Art Déco, obras de
engajamento social, obras encomendadas, bustos, utilitários. Suas obras não são
analisadas buscando-se um modo de ver feminino: é uma mulher que fala, mas uma
mulher que adotou pressupostos de um meio ao qual pertence, o meio artístico.
A artista elaborou uma visão artística própria, desde o momento em que
começou a fazer arte, ingressando na Real Academia e assumindo a carreira artística
ainda na Bélgica. É essa visão própria, de uma artista que acreditava na expressão
individual, que é retratada neste capítulo. O objetivo do trabalho é entrelaçar obra e
vida, de modo a produzir um texto lógico e biográfico, em que os significados
inscritos na produção artística possam ser rastreados na experiência de vida da artista,
integrando aí os diversos movimentos aos quais esteve ligada ao longo de sua carreira.
Com esse procedimento, que implica a interpretação de sinais e indícios, no estilo da
micro-história como tão bem define Carlo Ginzburg -, pode-se ir além do universo
particular de Milde. A natureza polissêmica das obras de arte permite inúmeras
leituras.
181
ESTADO DE MINAS. 13 janeiro 1997. Trecho de entrevista de Jeanne Louise Milde.
87
Da Bélgica vêm o estudo da técnica, as referências artísticas, a própria
concepção de arte: a marca do fazer artístico. Do Brasil, a incorporação de novas
referências, a valorização desse fazer artístico originário de terras européias e uma
experiência singular: a ausência de interlocução no cenário artístico belorizontino,
marcado pela pouca valorização das artes,
O artista aqui vive isolado. Trabalha na surdina. Quasi que
se podia dizer que ele crea as suas obras apenas pelo prazer
de crea-las. Collocadas no seu “atelier”, elle mesmo as
contempla e admira. E muitos delles trabalham afanosamente,
pondo nas suas producções alma e cunho pessoal. Este detalhe
não pode ser esquecido, porque é a expressão mesma da
verdade.
182
Ao mesmo tempo em que via esse ambiente como pouco acolhedor ao debate
artístico, à troca de idéias, Milde sempre valorizou muito o seu trabalho como
escultora, paralelamente ao ensino de artes,
“Fora da Escola de Aperfeiçoamento iniciou Mlle. Jeanne
Louise Milde eu me consagro exclusivamente à esculptura.
Não tenho outras preocupações além de minha arte, com que
vivo identificada.”
183
Para se perscrutar os sentidos da obra de Milde, é preciso examinar também as
características do ensino acadêmico, as influências recebidas dos mestres e de outros
artistas com os quais conviveu. Nas inúmeras entrevistas, ela é genérica quando
indagada sobre estas questões, mas aqui se procura o particular. No capítulo I, já se
abordou o aprendizado na Real Academia e as influências dos seus professores. O
objetivo deste capítulo é examinar os movimentos dos quais se aproximou, o lugar
ocupado por ela no desenvolvimento da escultura moderna e os artistas com os quais
se identificou
A obra escultórica de Mlle. Milde já foi objeto de estudo por parte de alguns
pesquisadores e críticos de arte, a exemplo de Ivone Luzia VIEIRA e Ângelo
Oswaldo. É fundamental, assim, estabelecer um diálogo com as análises propostas por
esses autores, a começar pelos trabalhos de Ivone Luzia VIEIRA, primeira
pesquisadora a abordar de forma sistemática a produção da artista. VIEIRA escreveu
182
Entrevista da artista a jornalista. ESTADO DE MINAS, 15 janeiro 1935.
88
diversos textos sobre o tema, desde artigos sobre a posição de Milde no meio
184
, até
ensaios específicos sobre sua obra.
185
Outros estudiosos abordaram a obra de Milde -
como Cristina Ávila, Ângelo Oswaldo e Walter Sebastião -, de modo a relacioná-la
com os movimentos artísticos do século XX.
186
183
ESTADO DE MINAS, 15 janeiro 1935.
184
Conferir: VIEIRA, Ivone Luzia. In: Mulher e Arte, 1988. VIEIRA, Ivone Luzia. In: Um século de
história das artes plásticas em Belo Horizonte, p. 149. VIEIRA, Ivone Luzia. In: Jeanne Milde, Zina
Aita, 90 anos, 1990.
185
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de Estado da
Fazenda de Minas Gerais. p.14-15.
186
ÁVILA, Cristina. Mlle. Milde a escultura do sensível. In: Jeanne Milde, Zina Aita, 90 anos, 1990.
OSWALDO, Ângelo. Estado de Minas. 2ª Seção. 1
o
fevereiro 1994, p. 08. SEBASTIÃO, Walter. Para
conhecer ou relembrar Jeanne Milde. Viver BH. Estado de Minas. Belo Horizonte, 17 outubro 1997, p.
20.
89
III.I As obras de Mlle. Milde e a Arte Moderna: Impressionismo, Simbolismo,
Expressionismo, Art Nouveau e Art Déco.
Segundo ARGAN, a modernidade se instala no domínio da arte a partir do
romantismo e do neoclassicismo. Em meados do século XVIII, tratados ou
preceitísticas do Renascimento são substituídos por uma filosofia da arte (estética),
que se define como uma teoria elaborada sobre a arte, contrapondo-se a questões
puramente técnicas. Essa transformação liga-se ao Iluminismo, movimento que traz
em si um anti-historicismo, identificando as artes grega e romana com o próprio
conceito de arte. Essas artes são apreciadas como exemplos supremos de civilização,
mas “não prosseguem no presente e não ajudam a resolver seus problemas. Aquela
felicidade criativa perdida pode ser evocada e imitada (Canova, Thorvaldsen),
revivida como em sonhos (Blake) ou reanimada com a imaginação (Ingres). Pode
também ser violentamente recusada (Courbet). Mas será com os impressionistas que
sairá definitivamente do horizonte da arte.”
187
A arte passa a ser considerada
autônoma, “uma experiência primária e não mais derivada, sem outros fins além do
seu próprio fazer-se.
188
Seria, em outras palavras, a autonomização do campo
artístico que cada vez mais se auto-referenciava, estabelecendo um código próprio. A
autonomia da arte, articulada com as outras atividades, faz com que “o artista declare
explicitamente ser e querer ser do seu próprio tempo.”
189
Esse seria o tempo da modernidade, do advento de uma nova época, em que as
exigências artísticas são novas, em que o clássico perde o seu valor de modelo. Trata-
se de um conjunto mais vasto de transformações que se refletem no plano material, a
exemplo das novas tecnologias, como a invenção da fotografia que conduzirá ao fim
da concepção da arte como representação do real. ARGAN compreende o novo
estatuto da arte a partir da própria transformação do fazer e da produção artísticos,
levando em consideração também as mudanças na maneira de agir e de se relacionar
com o mundo que vão transformar, por sua vez, o campo artístico. Segundo ele, “a
passagem da tecnologia do artesanato, que utilizava os materiais e reproduzia os
processos da natureza para a tecnologia industrial que se funda na ciência e age
sobre a natureza, transformando (e freqüentemente degradando) o ambiente, é uma
187
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. p. 14.
188
Ibidem. p. 12.
189
Ibidem. p. 12.
90
das principais causas da crise da arte.”
190
O homem torna-se senhor do seu destino e
da sua arte.
A criação artística, além de se ancorar em uma nova concepção de mundo e em
uma nova relação com a natureza, passa a se utilizar de novos materiais, explorando
novas possibilidades criadoras. A pintura, bem estabelecida em seus aspectos materiais
como a bidimensionalidade e a utilização da tinta para retratar o real, caminha rumo à
abstração trajetória iniciada pela própria desmaterialização do real, inaugurada por
aqueles que perseguiam esse real de uma forma cada vez mais realista, isto é, os
impressionistas. Surgem nomes como Cézanne, Picasso, Mondrian, Kandinsky, cuja
pintura se caracteriza, entre outros aspectos, pela desconstrução do espaço de realidade
construída no interior da tela. O artista, fazendo parte de um mundo onde a arte se
tornava autônoma, passa a se preocupar com os aspectos intrínsecos à obra de arte,
desprezando a representação da realidade em moldes clássicos.
Para ARGAN, cinco são as características gerais das tendências modernistas da
arte em fins do século XIX e princípios do XX. A primeira é a deliberação de se fazer
uma arte em conformidade com a sua época e a renúncia à evocação de modelos
clássicos, tanto na temática como no estilo. A segunda, o desejo de eliminar a
distância entre as artes maiores (arquitetura, escultura e pintura) e suas aplicações nos
diversos campos da economia. A terceira, a funcionalidade decorativa da arte. Como
quarta característica, tem-se a aspiração a um estilo ou linguagem européia próprios e,
em quinto e último lugar, o esforço em interpretar a espiritualidade que se dizia (com
ingenuidade e hipocrisia) inspirar e redimir o industrialismo.
191
A análise da arte moderna feita pelo autor não se encerra nessas
características. Essas se relacionam ao momento inicial do modernismo, fase acrítica,
em que se aceita e se exalta o novo tempo urbano e industrial. Paralelamente ao
modernismo acrítico, existiria uma outra arte moderna, ligada a questões espirituais,
que criticava o rumo que a moderna civilização ocidental tomara. Era a arte moderna
de Gauguin e sua fuga exterior desse universo industrializado de fins do século XIX e
princípios do XX; era a arte de Van Gogh, com sua fuga interior e, para além dele, a
imagem decisiva que esse artista passaria a ter para as vanguardas do século XX: o
artista genial não valorizado em vida que, após a morte, teve seu trabalho reconhecido
e compartilhado pelo mundo. Além disso, não se podem esquecer os movimentos
190
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. p. 17.
191
Ibidem. p. 185.
91
artísticos que resgataram os tempos idos os pré-rafaelitas, os neo-góticos, a arte
primitiva, a arte oriental , procurando no passado e em culturas diferentes,
referências para uma arte fora do mundo industrializado ocidental. Já nos primeiros
anos do século XX, surgem movimentos artísticos, contestando de forma mais intensa
os pressupostos da arte ocidental e a modernização que ocorria e se mostrava
inexorável para todo o mundo.
Na obra de Jeanne Louise Milde, encontram-se presentes quase todas as
tendências iniciais do modernismo. Sua arte é uma arte de seu tempo, preocupa-se
com a utilização da arte no cotidiano (foi professora de um curso de artes aplicadas e
produziu diversos utilitários na vida). Além disso, pertence a uma tradição européia de
desenvolvimento das artes. Finalmente, em relação ao aspecto espiritual, sua obra
possui características que a ligam ao simbolismo, tais como a representação de estados
de espírito marcada por uma visão individual; títulos como Timidez, Angústia, A
Espera e Ternura que revelam uma preocupação com a dimensão humana da
civilização e não uma ode ao progresso. A artista não renunciou à evocação dos
modelos clássicos, mas esses eram usados por necessidade de estudo e não como
modelos a serem seguidos à risca.
Jeanne Milde, com todas as contradições do moderno/antigo, fazia parte de um
mundo que se modernizava, de um modernismo inicial. Relacionava-se não a
movimentos como futurismo, cubismo, surrealismo, e sim ao modernismo simbolista,
esse modernismo menos crítico e engajado. Fazia uma arte de seu tempo, sem ser,
contudo, panfletária, sem manifestos que propusessem rupturas radicais e
estabelecessem o completamente novo; em suma, uma arte não vanguardista.
192
Definir e enquadrar a arte de um indivíduo é sempre tarefa árdua. Corre-se o
risco de reduzir a complexidade da obra artística a partir de um único olhar, forjando,
muitas vezes, uma interpretação que lhe é exterior. Mas, se não se realiza o estudo,
192
Para a definição de vanguarda conferir o livro RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas, Belo
Horizonte anos 60. 1997. De acordo com a autora, vanguarda seria o que se encontra à frente, é a
ruptura com uma tradição passada através do choque, da surpresa e do escândalo visando a
construção de um futuro promissor e utópico” A autora toma como aspecto de suma importância a
questão estética: a problemática do trabalho não se estabelece a partir de uma determinação puramente
política, o caráter permanente e renovador dos artistas de vanguarda, referente a aspectos estilísticos, é
essencial para se compreender e analisar não só as vanguardas como também toda a História da Arte.
No entanto, é fundamental a questão do caráter inovador que se coloca também em termos políticos e
sociais a partir da transformação de uma dada realidade. As vanguardas históricas são identificadas com
os movimentos artísticos do início do século XX, representados pelo futurismo, cubismo, surrealismo,
dadaísmo, entre outros.
92
qual a função de se escrever sobre uma artista e seu tempo? Como decodificar os
múltiplos significados que a arte emite, sem estabelecer um nível de compreensão,
amparado pelas fontes e pela erudição? Indagar a respeito das ligações da artista com
os movimentos ditos modernos é essencial para a compreensão de suas obras. É a
própria artista que se diz ligada ao impressionismo, em reportagem datada de 1960:
“Fui da Escola Impressionista e conservo até hoje alguns
exemplares, considerando-a ainda a escola básica dos meus
conhecimentos em arte, porém, apreciando muito a arte
moderna na sua concepção sólida sem fantasia e sem
exageros. Sobre a escultura moderna, considero uma
necessidade evoluir e viver a nossa época. Como o artista é a
vanguarda de uma civilização, é natural que a arte se
transforme em visão e concepção diferentes.”
Apesar dessa afirmação, é difícil perceber elementos impressionistas em suas
esculturas. Antes, seria interessante definir o que seria essa arte impressionista,
principalmente no campo da escultura, para depois verificar em que medida Milde é
efetivamente tributária do movimento impressionista. Ao analisar a arte de Auguste
Rodin, READ
193
o considera impressionista, partindo da perspectiva do movimento
presente na obra de arte, não das características próprias da pintura impressionista que
seriam os tons, a luz e a cor. Entretanto, observar como característica principal de um
estilo o movimento da obra é bastante vago e impreciso: como não perceber, por
exemplo, o movimento das figuras de Michelângelo? Daí a recusa em ver Mlle. Milde
como escultora impressionista, movimento que adquiriu na pintura características tão
claras que se torna difícil transpô-lo para a escultura.
READ argumenta ainda que o impressionismo pode ser interpretado a partir da
ação criativa dos pintores, que estaria baseada em sentimentos visuais: “o artista pinta
seus sentimentos visuais, que podem ser ilusórios, mas o resultado está mais perto da
verdade que qualquer fotografia.”
194
Rodin, na interpretação realizada por este autor,
retrataria aquilo que via, sendo por isso um realista visual que esculpe o que vê, que
representa as suas sensações, não se limitando somente ao real. De acordo com essa
abordagem, o impressionismo traria em si elementos que o aproximariam do
simbolismo: resgatam-se, no impressionismo, características que seriam de cunho
subjetivista - ainda que os artistas perseguissem a representação objetiva do real. Mas,
193
READ, Herbert. La escultura moderna. 1998.
93
cumpre lembrar que a questão fundamental dos impressionistas residia nas pesquisas
sobre a cor e que acabariam depois por desembocar no neoimpressionismo de
Georges Seurat e Paul Signac. Portanto, as objeções de ARGAN
195
quanto à existência
de uma escultura impressionista são amplamente legítimas, o que desautoriza uma
interpretação impressionista da estatuária de Milde.
Por outro lado, é inegável a influência decisiva do simbolismo na arte da artista
belga. O movimento simbolista propôs uma linguagem que se baseasse não somente
no real, mas que representasse e fosse, ao mesmo tempo, a idéia desse real, e,
correspondeu, nas artes plásticas, ao simbolismo no campo literário, que ocorreu em
torno de Mallarmé.
O simbolismo e o impressionismo podem ser entendidos não como
movimentos que se contrapõem, mas que procuraram modificar a arte a partir de
diferentes pressupostos: o impressionismo modificava o valor das formas, enquanto o
simbolismo transformava o conteúdo. De acordo com ARGAN, “o simbolismo se
concretiza em tendência paralela e em antítese superficial ao Neo-Impressionismo:
configura-se como uma superação da pura visualidade impressionista, mas em
sentido espiritualista e não científico. A antítese prestava-se a ser facilmente
resolvida, reconhecendo o caráter ideal ou espiritual da ciência
196
A arte, no
simbolismo, não representaria, revelaria, por signos, uma realidade que está aquém ou
além da consciência. Mas, qual era o conceito de símbolo dos simbolistas? HAUSER
estabelece uma diferenciação entre símbolo e alegoria, que contribui para pensarmos o
que era pretendido pelos simbolistas, embora mostre que, ao longo dos tempos,
sempre existiram artes simbólica e alegórica. O símbolo já existia como meio de
expressão, mas os simbolistas da geração de Mallarmé fizeram “do simbolismo como
estilo poético, o objetivo consciente dos seus esforços.
197
194
READ, Herbert. La escultura moderna. p. 17.
195
Das características que congregariam os impressionistas em torno a alguns pontos, ARGAN enumera
cinco: “1) A aversão pela arte acadêmica dos salons oficiais; 2) a orientação realista;3) o total
desinteresse pelo objeto a preferência pela paisagem e a natureza morta; 4) a recusa dos hábitos de
ateliê de dispor e copiar os modelos, de começar desenhando o contorno para depois passar ao
chiaroscuro e à cor; 5) trabalho em plein-air, o estudo das sombras coloridas e das relações em cores
complementares.” Além disso, afirma ARGAN em passagem sobre Rodin e Rosso: “Não é correto
dizer que transferiram para a escultura a visão cromático-luminosa dos impressionistas...” ARGAN,
Giulio Carlo. A Arte Moderna. p. 76 e p. 145.
196
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. p. 82.
197
HAUSER. História Social da Arte e da Literatura. p. 924.
94
O símbolo “reúne a idéia e a imagem numa unidade indivisível, de modo que a
transformação da idéia implica também a metamorfose da imagem
198
. Múltiplo, ele
traz em si inesgotáveis possibilidades de interpretação. A alegoria seria “a tradução de
uma idéia abstrata na forma de uma imagem concreta, por meio da qual a idéia
continua, em certa medida, independente de sua expressão metafórica, podendo
também ser expressa de outra forma
199
. A alegoria é um enigma cuja solução é óbvia,
o símbolo tem que ser interpretado; a alegoria é estática, o símbolo, dinâmico.
CHIPP vê o simbolismo como um dos movimentos subjetivistas de 1885-1900,
com seus membros se afastando do mundo exterior e se voltando para o mundo
interior, dos sentimentos, imaginando seus temas. O Manifesto Simbolista (1886) de
Jean Moréas mostra as idéias centrais do movimento: “em oposição ao ensinamento,
declamação, falsa sensibilidade, descrição objetiva, a poesia simbólica busca revestir
a Idéia de uma forma perceptível [...] A realidade encontraria-se no reino da
imaginação e da fantasia.”
200
O movimento simbolista foi “resultado de novas possibilidades pela rejeição
da obrigação de representar o mundo concreto e dos novos estímulos proporcionados
pela exploração do mundo subjetivo.”
201
O simbolismo pode, então, ser caracterizado
como um movimento que rejeitou a objetividade em favor da subjetividade, afastando-
se da representação direta da realidade, mostrando a síntese de diferentes aspectos
dessa, e sugerindo idéias por meio de símbolos ambígüos.
202
É neste registro artístico
que se situa a produção artística de Milde, como se depreende dos títulos de suas
esculturas e da representação dos sentimentos a partir de sua visão de mundo: a sua
estátua Angústia, realizada ainda na Bélgica, as obras que representam mães e filhos -
todas se agregam em torno de uma imagem formada pela artista, uma imagem-
representação que se torna o próprio título da obra, formando este um todo indivisível
constituído pela obra e pelo pensamento da artista. Assim, “uma das características
marcantes de sua obra é a expressão marcante do rosto que anuncia, sempre, a
198
HAUSER. História Social da Arte e da Literatura. p. 924.
199
Ibidem. p. 924.
200
CHIPP, Herschel Browning. Teorias da Arte Moderna. p. 45.
201
Ibidem. p. 45.
202
THE THAMES AND HUDSON DICTIONARY OF ART TERMS. p. 182.
95
subjetividade de um sentimento em relação ao título da obra
203
e a artista, como os
simbolistas franceses, “se volta para os mitos existenciais.”
204
Nessas obras de inspiração simbolista, são notáveis a sensibilidade e a
liberdade com que Milde revelava seus sentimentos de resto, ausentes nas obras
feitas de encomenda e nos bustos de personalidades (fig. 2). Essencial para a sua
sobrevivência como artista em um mundo mercantilizado, essa segunda parte de sua
obra destacava-se por uma fatura bastante acadêmica, desprovida de vida e sentimento
pessoal.
Fig. 2
Jeanne Milde. Cidadão Inglês. Madeira e gesso. 38 x 21 x 21 cm. S/data. Acervo Museu Mineiro
Além do simbolismo, o Art Nouveau também se encontra presente na formação
artística de Mlle. Milde. O Art Nouveau floresceu, assim como o simbolismo, nas duas
últimas décadas do século XIX e primeira do século XX. A Bruxelas onde viveu Mlle.
Milde estava marcada pelo Art Nouveau, principalmente na arquitetura de Victor
Horta. Esse estilo se caracteriza pelo uso de formas onduladas de todos os tipos,
chamas, ondas, mulheres com cabelos esvoaçantes. Recusava o historicismo de
203
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de Estado da
Fazenda de Minas Gerais. p.14.
204
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de Estado da
Fazenda de Minas Gerais. p.14.
96
movimentos anteriores e se propunha a fazer uma arte de seu tempo. Ligava-se ao
simbolismo e ao movimento de Arts and Crafts.
205
O Art Nouveau era
a contrapartida, nas artes aplicadas, do simbolismo na
pintura. Baseando seu pensamento no idealismo de William
Morris, ainda assim, em contraste com este, aceitava
totalmente a realidade do industrialismo e da produção
mecanizada, com suas implicações estéticas. Viu o novo
movimento (embora evitasse a expressão Art Nouveau), como
uma revolução necessária contra conceitos tradicionais, e
considerou seu desejo de criar um ambiente de harmonia total,
que por sua vez tornasse a vida mais harmoniosa como a base
do futuro.
206
Em parte da obra de Mlle. Milde, encontram-se bancos, biombos, pequenos
alto-relevos para a decoração, que caracterizam-se pela utilização de elementos do Art
Nouveau. Mas que elementos seriam esses? Seria principalmente a temática
naturalista, de flores e animais presentes nessas obras (Figs. 3 e 4). Em uma divisória
de sua autoria que hoje encontra-se no Museu Mineiro, percebem-se claramente esses
elementos: a divisória é entalhada a partir de temas como folhas e aves e, ademais, é
claramente um objeto de cunho decorativo.
Fig. 3
Jeanne Milde. Sem Título. Madeira. 21.5cm x 17,2cm x 6,6 cm. S/data. Acervo Museu Mineiro
205
THE THAMES AND HUDSON DICTIONARY OF ART TERMS. p. 21.
206
CHIPP, Herschel Browning. Teorias da Arte Moderna. p. 52.
97
Fig. 4
Jeanne Milde. Sem Título. Madeira. 21.5cm x 17,2cm x 6,6 cm. S/data. Acervo Museu Mineiro
ARGAN enumera outras características para esse estilo que não se encontram
presentes na arte da pequena belgo-brasileira: motivos derivados da arte japonesa;
preferência por motivos baseados nas curvas e arabescos, e recusa da proporção e do
equilíbrio simétrico.
207
Sendo um fenômeno tipicamente urbano, o Art Nouveau levava
um determinado tipo de arte, para o cotidiano. Uma arte com características bem
definidas e que fazia parte da Bruxelas onde a artista cresceu e foi educada. Mlle.
Milde, apesar de iniciar uma nova prática da arte como produção utilitária,
contrutiva”, não “abandona suas atividades de Belas Artes.”
208
O Art Nouveau não se
estabeleceu como um estilo escultórico a exemplo do simbolismo, vertente à qual a
artista belga-brasileira se liga. Era um estilo decorativo.
Se suas obras mostram-se simbolistas, em alguns momentos elas são tomadas
por uma simplificação que pode se relacionar ao Art Déco, estilo decorativo assim
denominado após a Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais
Modernas, acontecida em Paris em 1925. Incentivava-se o uso de materiais luxuosos
mas, em contraste com o Art Nouveau, as formas do Art Déco eram muito simples e
massivas.
209
Ligava-se mais aos novos tempos industriais de despojamento das formas.
O primeiro texto crítico que se tem notícia que relaciona a arte de Mlle. Milde
a esses movimentos artísticos modernos é de autoria de Ângelo Oswaldo, publicado no
207
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. p. 199.
208
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de Estado da
Fazenda de Minas Gerais. p.15.
98
ano de 1984. É um dos textos que a posiciona dentro do desenvolvimento da arte
moderna:
Entre o requintado e elaboradíssimo depuramento do art
nouveau de um Victor Horta, ousando a elegância
esculturalmente sóbria e sensual da arquitetura maior que
legou a Bruxelas, e a modernidade do simples, proclamada
nas formas esculpidas pelo art decorativismo ao largo das
explosões cubistas, do arbitrário dadaísta, do surrealismo
visionário e da tensão expressionista Jeanne Milde
encontrou a sua vertente. A forma clássica tocada pela
vibração do simbolismo aparece como fonte emanadora de
suas mais sensíveis emoções. Sua escultura traz a marca
translúcida do espírito que, entre as duas Guerras, cristalizou,
paralelamente ao fluxo de rupturas, a projeção serena do
primado simbolista [...] Aos poucos, lentamente, na medida de
sua produção rarefeita, vencendo o encapsulamento mineiro e
estimulada pela força mental que a sustenta em boa forma
física ao cabo de longos anos de estafante atividade no
magistério, a artista atingiu um plano de extrema
simplificação culminando a paciente busca da forma pura.
210
Nota-se como o crítico relaciona a obra da artista aos diversos movimentos:
simbolismo, Art Nouveau, Art Déco. A análise das esculturas de Mlle. Milde encontra-
se justamente na busca de elementos dos diversos estilos modernos. Outras críticas
acerca da obra de Milde também caminham na mesma direção:
Desde seus tempos de estudante em Bruxelas, Milde revela
uma escultura pura, sensível e sensual. Tocada pelo
simbolismo e influenciada, mais tarde, por aspectos da art
déco e do expressionismo, mescla a uma notável concepção
clássica formal, a leveza dos volumes e movimentos,
conferindo uma espetacular longilineidade a suas peças.
211
Nessa análise, acrescenta-se a influência do expressionismo em sua obra. Mlle.
Milde procurava dar vazão aos sentimentos e expressá-los em seus traços. Entretanto,
esse expressionismo encontra-se distante do alemão - do movimento Die Brücke (a
209
THE THAMES AND HUDSON DICTIONARY OF ART TERMS. p. 20-21.
210
OSWALDO, Ângelo. A obra de Jeanne Milde em meio século de Minas. Estado de Minas. Belo
Horizonte 4 de abril 1984.
211
ÁVILA, Cristina. Mlle. Milde a escultura do sensível. In: Jeanne Milde, Zina Aita, 90 anos, 1990.
p. 15.
99
ponte) - e do expressionismo francês - dos fauves (feras)
212
, em seus aspectos formais.
Mas se compreendermos o expressionismo para além desses movimentos, a arte de
Mlle. Milde também pode possuir alguns traços expressionistas, principalmente suas
obras sociais, como Os retirantes e O pescador de rede (fig. 9). Da definição dada por
ARGAN, pode-se refletir acerca do expressionismo como a antítese do
impressionismo, ao mesmo tempo que o pressupõe, pois
ambos são movimentos realistas, que exigem a dedicação
total do artista à questão da realidade, mesmo que o primeiro
a resolva no plano do conhecimento e o segundo no plano da
ação. Exclui-se, porém, a hipótese simbolista de uma
realidade para além dos limites da experiência humana,
transcendente, passível apenas de ser vislumbrada no símbolo
ou imaginada no sonho. Assim se esboça, a partir daí, a
oposição entre uma arte engajada, que tende a incidir
profundamente sobre a situação histórica, e uma arte de
evasão, que se considera alheia e superior à história.
213
Na arte de Milde, marcada pelo simbolismo, que a perpassa ao longo das
décadas, há espaço também para o expressionismo, marcante em algumas obras de
Milde realizadas no Brasil, de acordo com Ivone Luzia VIEIRA, a partir da década de
1930.
212
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. p. 227.
213
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. p.227.
100
III.II Desenvolvimento da escultura moderna
A escultura, assim como a pintura, sofreu transformações profundas na forma e
no conteúdo em fins do século XIX e, principalmente, na primeira metade do século
XX. Os críticos da arte moderna vêem na escultura um certo “atraso” em relação ao
desenvolvimento da pintura moderna. Mlle Milde, artista do século XX, liga-se, em
parte considerável de suas obras, a movimentos de fins do século XIX e princípios do
XX.
Entretanto, não há como falar de sua produção artística sem abordar o
desenvolvimento da arte moderna, a arte com a qual Milde tinha contato mesmo
vivendo nas Minas Gerais, em um meio de poucas trocas de idéias no campo das artes
plásticas. O primeiro passo é compreender sua própria concepção da arte escultórica.
Suas definições podem ser consideradas clássicas, no sentido de estabelecerem
divisões entre os diversos tipos de arte e o que ela denominava Arte. Para Mlle. Milde,
a Arte (com A maiúsculo), que merecia estar em exposições, era aquela que
respeitasse a escultura como uma forma artística bem estabelecida: a escultura como
uma forma tridimensional que retratasse algo, seja da realidade, do sentimento ou da
imaginação. Os materiais utilizados nas suas obras escultóricas eram também os
materiais tradicionais: o barro, a madeira e o gesso, esse último usado em peças que
um dia desejava ver moldadas em bronze (nesse caso enquadra-se a escultura As
Adolescentes fig.16).
A arte escultórica do século XX ultrapassou esses limites estabelecidos na arte
de Mlle. Milde. O que a artista teria de vanguardista, seus objetos realizados em terras
brasileiras com elementos encontrados nessa própria terra, nunca foram vistos por ela
como obras de Arte. Não se pode, no entanto, deixar de constatar que existia também
uma arte que se relacionava ao cotidiano da artista, uma arte que retratava uma
sensibilidade que poderia atingir a todas as pessoas a partir da educação. Entretanto, a
elaboração de uma Arte Maior seria privilégio de pessoas que soubessem manejar bem
os elementos próprios da escultura, os verdadeiros escultores.
No século XIX, a escultura havia se entregado a um academicismo e a um
historicismo que a faziam parecer congelada no neoclassicismo. Dentro dos estudos da
arte moderna, poucos escultores são considerados: fala-se de Rodin como o artista que
101
conseguiu redimir a escultura, recuperando “para a arte da escultura os valores
escultóricos
214
Existiram artistas como Medardo Rosso (escultor), Auguste Degas, Henri
Matisse (pintores e escultores), que se embrenharam por caminhos da escultura mas
que não conseguiram um rompimento tão intenso na escultura como o que foi
propiciado por Cézanne e, posteriormente, pelos cubistas na pintura. Somente em
princípios do século XX aconteceu o rompimento com a tradição escultórica, fazendo
com que os artistas se voltassem para aspectos intrínsecos da escultura e
desconstruíssem a concepção de escultura existente em momento anterior, em um
movimento paralelo ao que acontecera na pintura.
De acordo com ZANINE, a escultura, no século XIX, mostrava espírito
conservador-naturalista, sendo uma arte “em situação desfavorável para corresponder
à pesquisa e aos meios criativos que se manifestavam em pintura naqueles anos.
215
Um dos problemas detectados por ZANINE é o de que a escultura teria adotado, desde
o Renascimento, métodos mais adequados aos procedimentos pictóricos, com a
atenção do escultor voltando-se mais para “a elaboração da superfície do volume do
que a valorizá-lo em termos de profundidade [...] decide-se ainda pelos efeitos óticos
no approach prospéctico da figura representada, obedecendo a princípios de
visualidade que lhe são menos específicos.
216
. Compreende-se essa posição de
ZANINE no concernente à observação do “atraso” da escultura em relação à pintura: a
escultura não começara, ainda, o seu desenvolvimento rumo à abstração moderna.
Entretanto, uma crítica que pode ser feita em relação a essa posição, que busca uma
valorização da profundidade do objeto tridimensional em detrimento da superfície,
baseia-se na própria abertura que acaba por ocorrer com o surgimento de uma nova
forma artística, o objeto. No objeto, as diferentes artes plásticas (pintura e escultura
principalmente) se encontram presentes. Em princípio, a utilização de características
que são menos específicas à escultura poderia, até mesmo, possibilitar a transformação
da arte.
O crítico norte-americano Clement GREENBERG, incentivador do
expressionismo abstrato de Jackson Pollock e que via na arte de Pollock o que de mais
novo havia na arte na década de 40, realiza críticas sistemáticas sobre a arte moderna,
214
READ. Herbert. La escultura moderna. p. 19.
215
ZANINE, Walter. Tendências da Escultura Moderna. p. 17.
216
Ibidem. p. 17.
102
investigando o desenvolvimento dessa arte nos séculos XIX e XX. A passagem que se
segue, de autoria do crítico em que diz passar a arte a uma especialização cada vez
maior com os homens estabelecendo um gosto pelo real, imediato, é elucidativa
quanto ao desenvolvimento da arte moderna e do mundo moderno,
“... o qual deseja que a pintura, a escultura, a música e a
poesia se tornem cada vez mais concretas, limitando-se
estritamente ao que há nelas de mais palpável, isto é, seus
meios, e abstendo-se de tratar ou de imitar o que reside fora
de seus efeitos exclusivos [...] a sensibilidade moderna
reclama a exclusão de toda a realidade externa ao meio da
respectiva arte ou seja, a exclusão do tema.”
217
A arte moderna passa a ser uma arte preocupada com seus próprios meios, não
mais com aspectos exteriores, como a busca de se retratar a realidade. Com relação à
escultura, GREENBEG dá a ela um caráter ora espacial, ora ótico, observando a
mistura que ocorre entre a pintura, a escultura e a arquitetura. Ele frisa, em artigos de
sua autoria, o aspecto espacial e óptico da escultura, deixando de acentuar o seu
aspecto tátil a escultura deveria tornar-se uma forma no espaço, colocando de lado as
injunções da gravidade e da massa”. GREENBERG enfatiza a opticalidade da
escultura que, como toda forma, deveria existir em termos ópticos realizando “o
aspecto mais positivo da estética modernista.”
218
O aspecto principal a ser considerado
na arte escultórica, seria o ótico? O espacial? O volume e o táctil, aproximando-se da
arte sensorial, a ser desenvolvida em momento posterior? Essas são questões de fundo
da própria definição do que vem a ser uma escultura e que demonstram que, além da
arte em si, deve se observar o próprio conceito existente por detrás da forma
elaborada.
Resumindo em breves linhas o desenvolvimento da escultura, vê-se que os
diversos críticos da arte moderna observam na escultura, assim como na pintura, o
desenvolvimento rumo à abstração em movimentos que aconteceram na Rússia, na
Alemanha, na França, nos Estados Unidos, na Holanda e em outros países. Dentre as
mudanças fundamentais, podem ser enumeradas as que se seguem: a escultura adquire
217
GREENBERG, Clement. A nova escultura. Clement Greenberg e o debate crítico. p. 67. Este ensaio
A Nova Escultura foi publicado em Partisan Review em junho de 1949 e revisto na revista Arts
Magazine de junho de 1997.
218
Ibidem. p. 67. O crítico norte-americano, em vários de seus textos, defendia a existência de aspectos
intrínsecos de cada uma das artes plásticas. Neste texto específico, ele trata da questão da escultura
103
uma consciência de si mesma; é marcada por padrões abstratos, assume uma função
construtiva de ampla envergadura; substitui a relação direta artista-natureza pela de
artista-pesquisa interior da forma; transforma a figuração a partir de artistas como
Picasso, Brancusi e Henry Moore. Os cubistas e os construtivistas russos tiveram papel
fundamental nesse desenvolvimento da escultura moderna, assim como ocorreu com a
pintura.
219
Os cubistas transformaram a forma de representação anterior com suas
colagens e mesmo com os experimentos escultóricos de Picasso (a cabeça de mulher
de Picasso é datada de 1910). A escultura era, para Picasso, um campo de reflexão
sobre a arte moderna. De acordo com ZANINE, os cubistas realizaram obras que
possuíam uma não-identificação expressa com a natureza. Eles buscaram uma
realidade auto-suficiente, fenomenológica, para a arte e a utilização de novos materiais
suas pesquisas abriram caminho para o desenvolvimento do construtivismo. A arte
construtivista de Naum Gabo, de Antoine Pevsner e de Tatlin se engajou na
realidade de uma civilização modificada a fundo pela tecnologia.
220
Anteriormente,
a problemática homem/tecnologia já havia sido abordada por Boccioni, no movimento
futurista. Aliás, Tatlin realizou as primeiras construções inteiramente não
referenciais a protótipos figurativos nos mesmos anos em que Balla fazia voltejar o fio
de ferro no espaço.
221
Os movimentos da arte moderna se pretendiam universalistas e acabaram por
atingir toda a Europa, expandindo-se pelas demais áreas do globo.
Essa breve passagem mostra, em linhas gerais, o panorama escultórico na
primeira metade do século XX, levando em consideração a trajetória em direção à
abstração. Entretanto, a artista cuja obra está sendo aqui analisada não se identificou
com as vertentes que levaram ao desenvolvimento da escultura como abstração.
Examinar os movimentos que ocorreram nas artes ao longo da primeira metade do
século XX fornece subsídios para elucidar a modernidade de Milde em Belo
Horizonte: moderna, com formação na tradição acadêmica européia; moderna,
pertencendo a uma modernidade de fins do século XIX, com traços do Art Déco dos
como parte de uma espaço que seria o da própria arquitetura, misturando as diversas formas artísticas no
espaço.
219
ZANINE, Walter. Tendências da Escultura Moderna. 1971.
220
Ibidem. p. 303.
221
Ibidem. Tendências da Escultura Moderna. p. 199.
104
princípios do século XX. Uma artista moderna em Belo Horizonte, mas uma artista
moderna já não tão moderna na Europa das vanguardas do século XX.
Na Bélgica, parte pequena dos artistas já havia se integrado às vanguardas
artísticas no momento em que Mlle. Milde realiza seus estudos, ainda que tardiamente
em relação ao que ocorria na França e na Alemanha.
222
O movimento expressionista e
as vanguardas se desenvolveram na Bélgica após a 1ª Guerra Mundial, justamente no
momento de ingresso da escultora na Real Academia de Belas Artes de Bruxelas
(1918). Os escultores Georges Minne e Constantin Meunier inspiraram gerações fora
das fronteiras belgas, no momento anterior à 1ª Guerra Mundial, mas não obtiveram
aprovação na Bélgica.
223
. Algumas obras desses escultores possuíam características
expressionistas, e pode vir daí a influência expressionista na arte de Milde que
afloraria no Brasil:
A sua escultura se limpa de artifícios, rejeita mais e mais a
matéria no deliberado compromisso com a espiritualidade que
lhe infunde a artista, numa transfusão de alma do criador para
o objeto criado. Partindo do processo clássico simbolista,
condicionado por algumas características que as décadas de
vinte e trinta nitidamente imprimiram em seu trabalho, ela
compôs um novo binômio, no qual se conjuraram,
harmoniosamente, uma figuração sugerida pelo
expressionismo e a solução formal resolvida à maneira
concreta, dentro de um vocabulário geometrizante.
224
Na Bélgica, na década de 20, já haviam aparecido movimentos de vanguarda
em Bruxelas e Anvers, com a participação de escultores como Georges Vantongerloo,
Oscar Jespers e Jozef Cantré, que se aproximavam do abstrato. Ou seja, no momento
em que Milde freqüentava os ateliês da Real Academia, as vanguardas já se
encontravam presentes em Bruxelas.
A artista iniciaria, no Brasil, o caminho rumo a uma arte mais limpa, menos
rebuscada uma arte que os críticos caracterizam como influenciada pelo Art Déco. A
trajetória que a artista percorre em território brasileiro se aproxima do
desenvolvimento vivido pela arte européia: expressionismo e simplificação das
222
HOOZE, Robert (org).L’Art Moderne en Belgique. 1992.
223
Ibidem. p. 08. Outros escultores belgas também realizaram obras ligadas ao naturalismo: Victor
Rousseau (professor de Mlle.), Ernest Wijnants; Georges Grard e Charles Leplae; a uma introspecção:
Erick Wouters, Constant Permeke e Oscar Jespers; e a influências do exótico: Henri Puvrez. In:
ZANINE, Walter. Tendências da Escultura Moderna, p. 63.
224
OSWALDO, Ângelo. Estado de Minas. 2ª Seção. 1
o
fevereiro 1994, p. 08.
105
formas. Mas essa trajetória não é linear, a artista retoma, ao longo de sua vida, as
diversas correntes da arte às quais se relacionou.
106
III.IV Tradição escultórica: Rodin, Georges Minne e Constantin Meunier.
Os mestres da escultura belga tiveram importante influência na obra de Mlle.
Milde Rudder, Matton, Dubois, Marin e Rousseau, nomes já citados no primeiro
capítulo como mestres da artista na Real Academia. Mas a arte, a percepção do
momento artístico encontra-se além da Academia, encontra-se no meio artístico
europeu, no meio artístico belga. Acreditando-se na existência de um espírito do
tempo, no melhor estilo da história das mentalidades, pode-se afirmar que, vivendo em
uma determinada época marcada pelo espírito do tempo, as pessoas seriam tocadas por
esse espírito. No entanto, ao se estudar uma individualidade, devem-se considerar as
incongruências existentes quando se restringe o indivíduo a um modo de pensar de um
certo momento histórico. Ao mesmo tempo em que o artista é atingido por um
“espírito do tempo”, possui, outrossim, um “espaço de liberdade significativa
225
, o
que ocorre com Mlle. Milde. Assim, a artista também escolhe suas influências: Rodin,
influência assumida, Georges Minne e Constantin Meunier.
Acadêmica e clássica de formação e moderna no espírito, assim pode ser
caracterizada a pequena artista.
Que escultor no primeiro quarto do século XX não se deixou tomar por algum
sentimento em relação a Rodin? Alguns autores o colocam como aquele que resgatou
o caráter próprio da escultura na segunda metade do século passado. Realmente, ao
longo do século XIX, a escultura esteve marcada por obras monumentais, baseadas em
pressupostos acadêmicos, que ressaltavam temas específicos de determinada região,
determinada nacionalidade. É o momento das grandes esculturas comemorativas,
colocadas em locais públicos na Europa. Em Bruxelas, as esculturas se encontram nas
ruas, nas praças, fazendo parte da vida das pessoas que transitam pela cidade.
A arte de Jeanne Milde em muitos aspectos se assemelha à de Auguste Rodin,
podendo ser estabelecido um diálogo de suas obras com a produção artística desse
mestre da escultura européia. Rodin também teria a marca dos movimentos simbolista
e impressionista, e seria sensível “às sutilezas fantasiosas do Art Nouveau.”
226
Rodin foi o responsável pela retomada de concepções referentes à escultura
antiga, afastando-se da escultura somente ligada a comemorações e feitas para ocupar
espaços públicos, “mas a contribuição fundamental de Rodin reside na compreensão
225
LEVI, Giovanni. Les usages de la biographie. 1989.
226
ZANINE, Walter. Tendências da Escultura Moderna. p. 29.
107
genuína dos problemas da forma e de sua inserção no espaço.
227
A diferença
fundamental de Rodin em relação à pintura de Cézanne foi a permanência da herança
fundamental da tradição escultórica: ainda que tenha rompido com as formas da arte
neoclássica predominante na escultura, permaneceu ligado a Michelangelo e Fídias,
escultores que admirava e tinha como exemplos.
228
Para ARGAN, Rodin vem antes modificar a concepção de monumento do que
transformar a própria escultura, procurando superar a contradição entre espaço fechado
e forma aberta, ultrapassando o equilíbrio clássico com uma monumentalidade
exaltada e mesclando Praxíteles e Michelangelo com o simbolismo e o Art
Nouveau.
229
Milde também buscava conjugar os clássicos com movimentos
modernos de fins do século XIX como o simbolismo e o Art Nouveau.
Rodin era um humanista, dedicado a servir a humanidade e dar à sua obra uma
dimensão pública, não somente um espaço público na cidade sem um sentido
humano.
230
Não por acaso, antes de morrer, já havia estabelecido que sua casa e as
obras que nela se encontrassem tivessem um destino público: seria transformada em
museu que guardaria toda a sua produção. Jeanne Milde também tinha esse desejo, em
grau menor, mas com a mesma concepção do mestre europeu, pois, antes de morrer,
suas obras e seus arquivos pessoais foram doados ao Museu Mineiro.
Dos escritos de Rodin, temos o seguinte excerto que pode servir de reflexão
sobre a própria concepção de arte de Mlle. Milde:
Concebe a forma em profundidade.
Indica claramente os planos dominantes.
Imagina as formas como dirigidas até você,
toda vida surge de um centro
e se expande de dentro para fora.
Ao desenhar, observa o relevo, não o perfil.
O relevo determina o contorno.
O principal é ser comovido, amar,
esperar, tremer, viver.
Seja um homem antes que um artista.
231
Observa-se na passagem a importância dada ao espaço e à tridimensionalidade
da escultura, ainda que sem considerar o espaço circundante. O central no espaço seria
227
ZANINE, Walter. Tendências da Escultura Moderna. p. 29.
228
READ. Herbert. La escultura moderna. p. 10.
229
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. p. 145.
230
READ. Herbert. La escultura moderna. p. 14.
108
a própria escultura, independente do espaço circundante. O importante seria o relevo,
com a luz, não o perfil.
Fig. 5
Jeanne Milde. Volúpia Maternal. Bronze. 35 x 22 x 23cm. Antes 1945. Coleção particular
Fig. 6
Jeanne Milde. Volúpia Maternal (detalhe). Bronze. 35 x 22 x 23cm. Antes 1945. Coleção particular.
Jeanne Milde, em suas obras leva esse relevo em consideração como em
Volúpia Maternal (figs. 5 e 6), ainda que em outras, como Súplica, Surpresa, Espera e
Carinho (fig. 7), haja uma simplificação da linha rumo ao Art Déco.
231
READ. Herbert. La escultura moderna. p. 14.
109
Fig.7
Jeanne Milde. Carinho. Entalhe em madeira (jacarandá). 41x17x 10,2cm.1979. Acervo Museu Mineiro
Além desses aspectos, Rodin, nesta passagem, diz que se deve ser um homem
antes que um artista, mostrando tanto o humanismo existente em suas obras como todo
o sentimento existente ao se realizar uma obra de arte: há de se comover, amar,
esperar, tremer, viver, para dar vida à obra de arte. É preciso cultivar os sentimentos,
transformá-los em obras, no melhor da tradição simbolista, simbolismo também
presente em Jeanne Milde. Assim como Rodin, a artista também era uma humanista
que valorizava o ser humano, seja partindo da sua arte como representação de uma
individualidade que faz parte do todo, seja partindo da sua forma de ensinar,
participando de uma corrente de ensino europeu que privilegiava a psicologia e o
individual no desenvolvimento de habilidades específicas (ver Capítulo 1, ítem II).
Da influência de Rodin é a própria Mlle. Milde quem fala, dando os vestígios
para se trilhar o caminho da sua integração dentro de uma tradição escultórica:
Eu tive uma base acadêmica muito rígida por causa dos
meus professores. E, felizmente, não fui muito obediente
porque o clássico mata um pouquinho seu entusiasmo de
110
artista, obriga você a ser assim, assim... e a juventude não
suporta!!! Então, obedeci, fui escrava um certo tempo, mas fui
muito admiradora dos impressionistas, por exemplo, eu fui
muito admiradora de Rodin. Porque Rodin cortou tudo isso,
foi espontâneo e fez coisas grandiosas, de uma expressão de
grande personalidade como também profissionalmente,
materialmente. Ele modelava de uma forma toda diferente e
isso me impressionou muito, eu tinha nessa época vinte e cinco
anos.”
232
Fig. 8
Auguste Rodin. Eva.
Fonte: AUGUSTE RODIN. Catálogo de exposição realizada no Museo de Bellas Artes de Sevilha,
janeiro a março de 2000. p. 54.
Existe uma obra de Milde em particular, que exemplifica de forma direta a
influência exercida por Auguste Rodin sobre a artista. Comparando a escultura Eva
(fig. 8) com a obra Sem Título (fig. 9) de Mlle Milde pode-se observar a semelhança
entre as duas. A diferença encontra-se principalmente no tamanho das referidas
esculturas: a de Rodin em tamanho natural e a da belga em pequenas dimensões. Mas
a essência da obra parece ser a mesma: o inacabado da escultura, a textura da
232
ESTADO DE MINAS. Março 1984.
111
representação da pele, a imagem de uma alma angustiada com algo que havia sido
feito... A de Rodin leva ao extremo essas características, a de Milde apenas as sugere.
Talvez essa seja uma das diversas interpretações que uma obra simbolista permite,
uma vez que as obras simbolistas formam um todo indivisível título, obra, objetivo
do autor - que é reelaborado pela interpretação dada pelo espectador.
Fig. 9
Jeanne Milde. Sem Título. Bronze. 52,0 x 16,0 x 16,0. S/data. Coleção Particular
As obras realistas de Constantin Meunier influenciaram as obras de Mlle Milde
que possuíam cunho social. Daí Mlle. Milde também haver sido influenciada em obras
suas pela temática realista (fig. 10), retratando o lado do trabalhador, de figuras
presentes no espaço das ruas de Belo Horizonte. Principalmente na década de 30, de
acordo com estudos realizados sobre sua obra, as esculturas de Milde foram tocadas
por um realismo que, por vezes, aproxima-se de um expressionismo.
233
233
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de Estado da
Fazenda de Minas Gerais. p.15.
112
Fig. 10
Jeanne Milde. Pescador de Rede. Moldagem em gesso. 45,3 x 19,0 x 32,5 cm. 1970. Acervo Museu
Mineiro
Em fins do século XIX, Constantin Meunier era um reconhecido escultor de
trabalhadores como personagens heróicas. Artistas europeus do período se deixaram
tomar por uma admiração profunda por seus trabalhos e o adotaram como modelo para
seguir uma estrada que os ligava ao seu próprio tempo e aos problemas sociais
existentes naquele momento, deixando de lado o academicismo das Escolas de Arte.
113
Fig. 11
Constantin Meunier. Ecce Homo. 1890.
Fonte: HOOZE, Robert (org). L’Art Moderne en Belgique. Anvers: Fonds Mercator, 1992. p. 36.
Mesmo sendo um escultor realista,
Em certas obras, ele conseguia, contudo, adaptar
completamente sua linguagem plástica à angústia de seus
personagens. Em esculturas como Ecce Homo (fig. 11) e
Femme du peuple (fig. 12), a fisionomia dos personagens
igualmente frisada pelos críticos mostra uma linguagem
nova pela qual Meunier se une ao expressionismo.
234
234
HOOZE, Robert. Antes da 1ª Guerra Mundial. L’Art Moderne en Belgique. p. 37-38.
114
Fig. 12
Constantin Meunier. Femme du peuple. Aproximadamente 1890
Fonte: HOOZE, Robert (org). L’Art Moderne en Belgique. Anvers: Fonds Mercator, 1992. p. 37.
Já Georges Minne esculpiu obras que demonstram uma influência direta nas de
Mlle. Milde: na escolha dos temas, no conteúdo, na forma da escultura... Por ser um
simbolista assumido, a semelhança é clara em grande parte de suas obras. Além disso,
percebem-se traços expressionistas em alguns de seus trabalhos, o mesmo ocorrendo
com os de Mlle. Milde:
Diante das obras de Milde autênticos ícones das primeiras
criações que vão puxar o fio modernizante das artes em Belo
Horizonte -, e respeitando inclusive sua produção, melhor
seria falar daquelas situações de passagem entre as estéticas
do final do século XIX (o simbolismo, em especial) e o
modernismo. De um lado estão alegorias e símbolos, de outro
figuras do cotidiano e ênfase aos temas da expressão.
Igualmente digno de nota, nessas peças algo dispersas e
produzidas ao sabor das circunstâncias, está uma tensão entre
despojamento e interesse pela forma, sempre conjugada com
115
um interesse por valores psicológicos, em alguns casos
vizinhos do que, hoje, se entende como expressionismo.
235
Escultor belga e estudante da Real Academia de Belas Artes de Bruxelas,
Georges Minne seria um representante do simbolismo belga”, combinando
sensibilidade e tendência social”, realizando um afastamento da realidade”,
utilizando o expressionismo em algumas de suas obras. Em suas esculturas eram
temáticas freqüentes: mãe e filho, adolescente. Possuía alguma influência do Art
Nouveau, realizando posteriormente uma “simplificação da forma” e esculturas de
pequeno tamanho. Destas características, a sensibilidade aliada à tendência social, o
fato de ser representante do movimento simbolista, a influência do Art Nouveau,
alguns traços expressionistas e também a simplificação das formas, são características
dos trabalhos de Mlle. Milde.
236
Fig. 13
George Minne. Mère pleurant ses deux enfants. 1888
Fonte: HOOZE, Robert (org). L’Art Moderne en Belgique. Anvers: Fonds Mercator, 1992. p. 33.
235
SEBASTIÃO, Walter. Para conhecer ou relembrar Jeanne Milde. Estado de Minas. 17 outubro
1997.
236
HOOZE, Robert. Antes da 1ª Guerra Mundial. L’Art Moderne en Belgique. p. 37-38.
116
Alguns grupos de Minne como Mére pleurant ses deux enfants (fig. 13) e Le
fils Prodigue (fig. 14) referem-se a Rodin tanto em suas formas como em seus temas.
Contudo, mesmo se Minne inicia suas obras a partir de pesquisas anteriormente já
realizadas por Rodin, a força vital de Rodin é, entretanto, convertida em uma
expressão de desespero, de abatimento e de encrespamento. É remarcável a liberdade
que tem Minne a respeito das formas anatômicas.
237
Fig. 14
George Minne. Le fils prodigue. 1896
Fonte: HOOZE, Robert (org). L’Art Moderne en Belgique. Anvers: Fonds Mercator, 1992. p. 34.
Dentre os personagens criados por Minne, encontra-se L’adolescent agenouillé,
(fig. 15) que se contrasta com seus personagens angustiados anteriores, mostrando
certa paz e graça: as deformações e a vivacidade do modelo se unem a uma superfície
abstrata de linhas e superfícies contornadas.
238
237
HOOZE, Robert. Antes da 1ª Guerra Mundial. L’Art Moderne en Belgique. p. 37.
117
Fig. 15
George Minne. L’adolescent agenouillé. 1898
Fonte: HOOZE, Robert (org). L’Art Moderne en Belgique. Anvers: Fonds Mercator, 1992. p. 35.
Uma das obras mais conhecidas de Jeanne Louise Milde é justamente As
Adolescentes (figs. 16 e 17) sendo o tema o mesmo da obra do simbolista Minne (fig.
15). Tem uma simplicidade de formas, sem trazer, no entanto, as deformações
presentes na obra do artista belga, mostrando-se, em certa medida, muito mais clássica
em sua essência. Só que no trabalho de Milde estão representadas figuras femininas,
enquanto a obra de Minne retrata um homem adolescente.
238
Ibidem. p. 38.
118
Fig.16
Jeanne Milde. Adolescentes. Modelagem em gesso. 94 x 62 x 16 cm. 1937. Acervo Museu Mineiro
Fig.17
Jeanne Milde. Adolescentes. Modelagem em gesso. 94 x 62 x 16 cm. 1937. Acervo Museu Mineiro
119
Outro tema bastante freqüente em obras simbolistas é o de mães e filhos. Mlle.
Milde retratou esse tema de diversas formas, mostrando de diferentes maneiras a
relação mãe e filho. Em Meu Bebê (fig. 18), a mãe, sintetizada em linha que
desprezam o detalhe e buscam a essência, é terna o amor e o carinho ao filho estão
claros na obra.
Fig.18
Jeanne Milde. Meu Bebê. Moldagem em Gesso, pátina com anilina e goma-laca. 31,5 x 10,8 x
16,5 cm. 1969. Acervo Museu Mineiro
Em Meus Filhos (fig. 19), toda a ternura da obra anterior é substituída por uma
ligação mais visceral: os filhos formam um todo com a figura materna cuja expressão
é, ao mesmo tempo, triste e resignada. O entalhe lembra o próprio ato de entalhar, com
sulcos na madeira, mostrando uma maneira diferente de trabalhar com a superfície
escultórica.
120
Fig. 19
Jeanne Milde. Meus Filhos. Entalhe em madeira (aroeira vermelha). 51,5 x 15,3x 15,5 cm. 51,5 x 15,3
x 15,5 cm. 1979. Acervo Museu Mineiro
Já em Ternura (fig. 20), a mulher possui um olhar distante, parecendo que, ao
mesmo tempo em que segura o filho em seus braços, seu pensamento encontra-se
alhures. Essa terceira escultura mostra-se diferente das outras duas nestas últimas, o
pensamento das mães encontra-se naquele momento retratado ou nas injunções que
levaram àquele momento. A diferença dada a uma temática em comum reflete
sentimentos diversos e ilustra o próprio sentido da arte simbolista cada obra forma
um todo indivisível e aberto a interpretações que devem ter em conta a forma, o
conteúdo, o pensamento da própria artista e, por que não, o pensamento daquele que
vê a obra.
121
Fig.20
Jeanne Milde. Ternura. Gesso, anilina, goma-laca. Moldagem x pátina. 35 x 22 x 23cm, 1970. Acervo
Museu Mineiro
A representação do corpo feminino é outra constante em suas obras. De acordo
com a crítica, “Jeanne Milde trabalha a repressão da condição humana da mulher no
mundo moderno; particularmente dá ênfase ao corpo feminino, misterioso e
expressivo.
239
Apesar de se perceber a importância da figura feminina nas obras de
Milde suas representações de sentimentos são sempre realizadas a partir de figuras
femininas não é possível observar em suas esculturas a figuração da “repressão da
condição da mulher em um mundo moderno.”
240
De qualquer forma, é elucidativa sua
opção por retratar os sentimentos sempre a partir de figuras femininas: não são nunca
homens que representam os diversos sentimentos humanos.
239
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de Estado da
Fazenda de Minas Gerais. p.14.
240
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de Estado da
Fazenda de Minas Gerais. p.14.
122
III.V O Brasil na obra de Mlle. Milde: entre o exótico e a identificação.
Outra referência para as obras de Jeanne Milde seriam as transformações que
sofreram no momento em que ela se estabeleceu em terras brasileiras: modificaram-se
na temática e na forma, com o seu caminhar rumo ao Art Déco. As esculturas Iara
(fig. 21), Deusa do Amazonas (fig. 22), Coral (fig. 23), como também os trabalhos
referentes às mulheres e homens do povo, mostram em que medida o ambiente
brasileiro interferiu na vida da artista.
Fig. 21
Jeanne Milde. Iara. Madeira. 85 (altura) x 80,1 (diâmetro) cm. S/data. Acervo Museu Mineiro
Se a forma procurada é a européia, o conteúdo passa a ser brasileiro, assim
como o material utilizado na confecção das obras:
“Com mármore eu não trabalhava, só com madeira. Gostava
da madeira porque senti que a madeira era a alma aqui, do
lugar. Era um prazer imenso talhar madeira. Até mesmo este
123
quarto (onde estamos) foi feito por mim, esse móvel foi feito
com essa madeira de caixote. Eu quis mostrar que quem tem
inteligência pode facilitar as coisas.
241
Fig.22
Jeanne Milde. A Deusa do Amazonas. Madeira. 116x 34,5x 32,5 cm. S/data. Acervo Museu Mineiro
O incipiente ambiente artístico de Belo Horizonte não possuía escultores com
sólida formação como Mlle. Milde. As trocas que a artista poderia ter no meio artístico
eram poucas, mas, ao mesmo tempo, ela é influenciada por uma cultura diferente, a
brasileira e, principalmente, a indígena. Essa última, tema de várias obras de sua
autoria, seria a verdadeira cultura brasileira no entender da artista. Um pouco da visão
de Mlle. Milde sobre o Brasil encontra-se refletido em suas obras: tanto o exótico do
indígena como as diversas figuras urbanas e os diversos bustos de personalidades
revelam a constituição de uma imagem diferente da paisagem belga.
241
SUPLEMENTO LITERÁRIO. nº 60. Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais. Junho
2000.Entrevista da artista concedida a Gastão Frota em 1997.
124
A simbologia que ela vai utiliza ao retratar o indígena brasileiro encontra-se na
cultura indígena: a Iara (fig. 21), divindade dos rios, que seduz pela sua beleza; uma
Deusa do Amazonas (fig. 22) com feições indígenas assim como Coral (fig. 23),
retratado no meio de folhas que também apresentam figuras com feições indígenas.
Ademais, essas obras são muito mais simplificadas, com as linhas bem definidas, do
que as obras que antes havia realizado na Bélgica.
Fig.23
Jeanne Milde. Coral. Entalhe em madeira (imbuia), pátina com anilina, cera. 95 x 47,5 x 6,0 cm. S/
data. Acervo Museu Mineiro
No final da década de 29, já haviam acontecido, no Brasil, manifestações
modernistas e movimentos modernos, como a Semana de Arte de 22, o modernismo
literário em Belo Horizonte, o modernismo em Cataguases. E em Belo Horizonte, nas
artes plásticas, alguns artistas, como Zina Aita e Pedro Nava
242
, já haviam
incursionado pelas linguagens modernas. A modernidade artística já fazia, pois, parte
242
VIEIRA, Ivone Luzia. Vanguarda modernista nas artes plásticas: Zina Aita e Pedro Nava nas
Minas Gerais da década de 20. Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
125
do panorama brasileiro. Em 1929, com a chegada ao Brasil, as obras da escultora
belga se modificam. A artista “deixa que os traços da cultura brasileira primitiva
misturem-se, enlacem-se à sua arte, plena da erudição tradicional da cultura
européia...
243
Em Belo Horizonte foi bem acolhida, sendo que, nas lembranças que guardou,
na velhice, os problemas maiores que vivenciou aparecem na Bélgica. O Brasil é
retratado como um espaço agradável e receptivo, ainda que com alguns problemas.
244
A artista não viu empecilhos à sua entrada no meio artístico de Belo Horizonte. Ela
veio para o Brasil à procura de um espaço diferente no qual pudesse cada vez mais ser
ela mesma e onde pudesse realizar suas obras com liberdade de atuação.
Próxima de movimentos artísticos de fins do século XIX e início do século XX,
sua obra se transformou à medida em que tomou contato com novos ares e novos
movimentos. O significado das mudanças não é linear por vezes a obra da artista vai
e volta, realizando uma trajetória cheia de regressos a motivos, a formas anteriores.
Simbolista principalmente, sua obra também se ligou ao Art Nouveau, ao
expressionismo e ao Art Déco. Mas a referência acadêmica, clássica, européia,
continuaria presente nos trabalhos dessa moderna artista belgo-brasileira.
243
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de Estado da
Fazenda de Minas Gerais. p.15.
244
Entrevista dada ao CRAV em 1996.
126
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Escrever sobre a vida de uma pessoa não é tarefa das mais fáceis. Escolhem-se
acontecimentos, dentre os vestígios que restaram de uma trajetória. O estudo de uma
vida serve para clarear alguns pontos, assim como para obscurecer outros que em
análises anteriores mostravam-se cristalinos.
Escrever sobre Jeanne Louise Milde não foi, nem será, tarefa das mais fáceis.
Foram muitas as dúvidas ao longo da escrita, cortinas de fumaça rondaram o texto, até
que esse, enfim, estivesse pronto. Mas ainda há muito o que dizer, o que pesquisar,
sobre essa personagem por vezes enigmática, por vezes revelada a partir de uma
escultura, uma fala da artista, um escrito de outrem...
Ao se eleger uma pessoa para que dela se realize uma biografia, pensa-se que
há algo a dizer. Há um significado a ser atribuído a tal personalidade em um
determinado espaço ao longo de certo tempo. E Mlle. Milde foi presença significativa
no panorama artístico de Belo Horizonte. Diversos foram os caminhos que trilhou.
Alguns foram retratados nesta dissertação. Inicialmente, a vida de estudante e
profissional na Bélgica, essencial na constituição de seus valores e de sua
personalidade, foi objeto de análise. A Real Academia, local de seus estudos, possuía
um status já estabelecido naquele país. Era uma instituição tradicional, cujos
professores foram fundamentais na formação de Mlle. Milde. Além disso, há de se
lembrar o grande valor adquirido pela escultura belga em fins do século XIX e
princípios do XX, embora a escultura tenha sido relegada a segundo plano com o
desenvolvimento da pintura moderna.
Além dos estudos, Mlle. Milde, no momento em que foi chamada para
trabalhar no Brasil, já iniciara sua trajetória como artista belga em terras européias: o
Prêmio de Roma, os prêmios aos quais concorreu, os inúmeros primeiros prêmios
adquiridos como aluna na Academia, as exposições que realizou, ilustram um início
bem sucedido na Bélgica. Uma trajetória que, ao que tudo indica, frutificaria, se
tivesse permanecido em sua cidade natal. Escultora formada pela Real Academia de
Belas Artes de Bruxelas, desde cedo mostrou-se uma pessoa convicta daquilo que
queria realizar: esculturas. Além disso, almejava ser uma boa profissional naquilo que
se dispusesse a fazer. Realizou seus objetivos, por isso disse ao final da vida: “Eu
127
sonhava toda minha vida ser uma coisa especial, não ser como todo mundo. E graças
a Deus eu sou...
245
Sua vida como artista na Bélgica se interromperia com o advento de outros
tempos o tempo do Brasil, de Belo Horizonte. Veio para Belo Horizonte ensinar
aquilo que melhor sabia fazer, sua arte. Ensinou a professoras, que por sua vez iriam
transmitir a seus pequenos alunos as técnicas aprendidas com a mestra belga. Para
Belo Horizonte, veio como representante de uma outra cultura, a belga, a européia,
para participar da Reforma de Ensino de Francisco Campos. Essa Reforma trazia em
seu interior a idéia de formação de um novo cidadão. Só que, partindo de um ideal
conservador, o governo buscava moldar o cidadão para servir aos interesses da parcela
dominante da população. Entretanto, a vida, a arte e o ensino de Mlle Milde
encontram-se além de objetivo governamental. Suas atividades como professora na
Escola de Aperfeiçoamento revelam uma preocupação com a formação de suas alunas
que ultrapassava a sala de aula. Desejava formar um público sensível às manifestações
artísticas e, ao mesmo tempo, professoras que soubessem aproveitar o que o solo
mineiro proporcionava. Utilizava em seus utilitários cadeiras, mesas a madeira
encontrada nessas terras e ministrou aulas de marcenaria às suas alunas.
Sua arte e sua vida transformaram-se ao tomar contato com novas culturas
belorizontina, mineira, brasileira - e com novas possibilidades de mundo. Jeanne
Milde passa então a ocupar um lugar em Belo Horizonte o lugar da artista belga que
veio trazer ensinamentos do outro lado do Atlântico, para uma terra menos
desenvolvida que a belga, uma terra onde havia muito o que fazer. Em Belo Horizonte,
fez-se presente em diversos campos, ensino, artes plásticas... E também foi tocada por
uma nova cultura: novas artes, como a de Aleijadinho, novos temas...
Como mulher e artista fez parte da vida social, artística e cultural da cidade.
Foi a primeira mulher e artista profissional a se estabelecer na capital de Minas. Com
sua presença no meio artístico, abriu espaço em Belo Horizonte para a participação
feminina e para a arte moderna que posteriormente se estabeleceria nas terras da
capital mineira.
Tem-se notícia de sua ampla participação no meio artístico nas décadas de 30 e
40. Ao lado do conservador Aníbal Mattos, que também teve seus méritos como
incentivador das artes na capital mineira, e ligando-se aos nomes da arte moderna no
245
Depoimento de Jeanne Louise Milde presente em vídeo. In: TAVARES, Mariana. Um Século de
História das Artes Plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/Arte, 1997.
128
Salão do Bar Brasil de 1936, Mlle. Milde realizou, com sua participação artística, a
junção entre o antigo-acadêmico e o novo-moderno. Conviveu com artistas das mais
diversas vertentes, ainda que seu nome não tenha sido recordado para trabalhar na
Escola do Parque, do mestre Guignard. Tampouco foi chamada para esculpir obras
para o Complexo da Pampulha. Novos tempos, de um ambiente dominado pelo
moderno, haviam chegado à capital belorizontina. Era o tempo da escultura moderna
de Franz Weissman, no qual a arte de Milde só caberia como passado um passado
esquecido por quase trinta anos.
Somente nos anos 80 sua arte é resgatada, agora como parte integrante da
História da Arte em Belo Horizonte. Sua presença na cidade ficara adormecida por
vários anos, tendo ela retornado à vida artística de Belo Horizonte com a pesquisa da
Professora Ivone Luzia Vieira. Nesse período de ostracismo, a artista havia passado
alguns anos no Rio de Janeiro, período do qual não se levantaram acontecimentos,
dada a escassez de tempo para a realização deste trabalho.
Sua arte é também marcada pelo moderno-tradicional. É a própria artista que se
diz clássica e moderna. Seria uma arte de transição? Pode-se chamá-la assim. Arte em
que o modo de fazer, a concepção do que era a arte, permaneciam ligados a valores
clássicos, característicos da sua formação, mas também arte tocada pelo moderno, em
sua essência transcendental-simbolista, em sua simplificação das formas Art Déco, nos
volteios do Art Nouveau...
Jeanne Louise Milde era uma artista moderna, se se entende o moderno na arte
constituindo-se a partir do neoclassicismo e do romantismo como entende ARGAN.
Seu simbolismo inicial configurava-se como arte moderna. Além desse moderno-
novo, o antigo-clássico também encontrava-se presente em sua obra. Sua produção
permanecia presa a pressupostos clássicos, por isso não se pode ver em seu fazer
artístico, em sua concepção de arte, uma arte vanguardista. Um modo antigo de ver a
arte, transparecia em sua concepção artística clássica. Para Mlle. Milde, as obras de
Arte eram figurativas e realizadas a partir de muito estudo e dedicação. Certamente,
ela nunca consideraria seus utilitários como obras de arte juntamente a obras das Artes
Maiores.
Sua vida e sua arte juntam-se em um trajeto, uma viagem, entre o clássico e
moderno; o tradicional e o moderno, o antigo e o novo. Não só ela, mas também sua
arte, entrelaçando-se em seu tempo de vida, conjugam-se nesse antigo-moderno
integrante da modernidade.
129
Ainda haveria muito o que dizer, dados a coletar... Suas obras de arte, dados
sobre sua vida, encontram-se perdidos em jornais e coleções particulares não
consultadas. Como pesquisar tantos materiais, com as atribulações da vida moderna,
com o espaço de tempo reservado à escrita de uma dissertação? Contudo, não se
pretendia com este trabalho a recuperação de toda uma vida. Visava-se unicamente, a
partir da abordagem de alguns acontecimentos de uma vida, trazer uma modesta
contribuição à compreensão desta vida como também de certo espaço em determinada
época. Alguns pontos a respeito da participação feminina na arte no século XX em
Belo Horizonte foram aqui esclarecidos. Também foram discutidas algumas questões
sobre o antigo e o moderno na capital de Minas e o clássico e o moderno nas artes.
Conclui-se essa dissertação com a certeza do muito que resta a escrever sobre
essa artista belgo-mineira. Cabe lembrar, porém, que este texto deve ser ampliado por
novos estudos que ajudem a compreender, não somente a vida dessa artista plástica,
mas também a questão do moderno e do antigo em Belo Horizonte, bem como a
posição da mulher na capital mineira. Estudos biográficos servem para constatar a
relativa liberdade do indivíduo, que se movimenta a partir de normas culturais, de
significados já atribuídos a ações por um certo grupo. Jeanne Louise Milde agiu dentro
de determinadas conjunturas Bruxelas, Belo Horizonte, Real Academia, meio
artístico mas também escolheu livremente parte do caminho a ser percorrido em sua
longa trajetória.
130
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instituição
ACTION NATIONALE, Bruxelas, 09 outubro 1927.
AVENIR DU TOURNAISI, Tournais, 10 agosto 1927.
BRANT, Celso. Diário da Tarde. 15 setembro 1945.
BRUXELLOIS, Bruxelas, 16 janeiro 1928.
CORREIO DA NOITE, Rio de Janeiro, 5 agosto. 1936.
CORREIO MINEIRO, 25 novembro 1934.
CORREIO MINEIRO, 27 de abril de 1929. Pedagogia de Lampeão Belga.
COURRIER DE L’ESCAUT, Tournais, 10 agosto 1927.
136
DIÁRIO CARIOCA, Rio de Janeiro, 25 setembro 1949.
DIÁRIO DA TARDE, 7 julho 1945.
DIÁRIO DA TARDE, 29 de agosto de 1945.
DIÁRIO DA TARDE, 3 setembro 1945.
DIÁRIO DA TARDE, 6 setembro 1945.
DIÁRIO DA TARDE, 15 setembro 1945.
DIÁRIO DE MINAS, Belo Horizonte, 23 fevereiro 1929.
DIÁRIO DE MINAS, 26 abril de 1930.
DIÁRIO DE MINAS, 30 de abril de 1930.
DIÁRIO DE MINAS, 17 dezembro 1931.
DIÁRIO DE MINAS, 18 setembro 1949.
DIÁRIO DE MINAS, 18 maio 1956.
ESTADO DE MINAS, 2 de janeiro 1930.
ESTADO DE MINAS, 25 de abril de 1930.
ESTADO DE MINAS, 10 dezembro 1930.
ESTADO DE MINAS, 7 setembro 1933.
ESTADO DE MINAS, 23 novembro 1934.
ESTADO DE MINAS, 15 janeiro 1935.
ESTADO DE MINAS, 30 agosto 1936.
ESTADO DE MINAS, 19 agosto 1945.
ESTADO DE MINAS, 20 setembro 1946.
ESTADO DE MINAS, 29 de março 1947.
ESTADO DE MINAS, 8 abril 1947.
ESTADO DE MINAS, 13 julho 1949.
ESTADO DE MINAS, 20 novembro 1949.
ESTADO DE MINAS, março 1984.
ESTADO DE MINAS, 13 jan.1997.
ESTADO DE MINAS, Feminino, 23 novembro 1997, p.09.
FOLHA DE MINAS, 14 agosto de 1945.
FOLHA DE MINAS, 5 setembro de 1945.
FOLHA DE MINAS, 20 novembro 1949.
FOLHA DE MINAS, Belo Horizonte, 26 novembro 1949.
FRANCK, Roberto. Minas Gerais. Arte e Diversões. Flagrantes. S/data.
GRIFFA, agosto e setembro 1943.
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JOTTRAND, Lucien. L’eventail. Bruxelles, 7 março 1948.
JOURNAL D’ANVERS, Anvers, 19 agosto 1927.
JOURNAL DE CHARLEROI, Charleroi, 1º fevereiro 1928.
JOURNAL DU LOUXEMBOURG, 1
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junho 1927.
LA FLANDRE LIBERALE, 10 agosto 1927.
LA LANTERNE, Bruxelles, 1
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março 1948.
LA LIBRE BELGIQUE, Bruxelas, 16 janeiro 1928
LA LIBRE BELGIQUE, 18 maio 1928.
LA PRESSE, 17 junho 1930.
LA PROVINCE, Mons, Bélgica, 25 janeiro 1929.
LA PROVINCE DE NAMUR, Namur, Bélgica, 15 fevereiro 1929.
LA REVUE MODERNE, Paris: 15 agosto 1926. 26º Ano, nº 15.
L’ÉCHO DU SOIR, Anvers, 9 agosto 1927.
LE PEUPLE, Bruxelas,16 maio 1928.
LES NOUVELLES, La Louvière, 25 abril 1928.
LE SOIR, Bruxelas, 22 agosto 1930.
LE SOIR, Bruxelas, 13 janeiro 1933.
LE SOIR, Bruxelles, 2 março 1948.
L’ETOILLE BELGE, Bruxelas, 31 janeiro 1928.
L’ETOILE BELGE, Bruxelas, 14 maio 1928.
L’ETOILE BELGE, Bruxelas, 6 janeiro 1928.
L’ETOILLE BELGE, Bruxelas, 4 dezembro 1930.
L’ETOILE BELGE, 15 outubro 1933.
L’EVENTAIL, Bruxelles, 7 março 1948.
L’EXPRESS, Liége, 15 fevereiro de 1929.
LIEGE-ECHO, Liege, 31 maio 1928.
MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 10 abril 1930.
MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 14 abril de 1930.
MINAS GERAIS, 5 setembro 1930. p. 10.
MINAS GERAIS, 10 dezembro 1930.
MINAS GERAES, Belo Horizonte, 24 maio 1931.
MINAS GERAIS, 11 agosto 1945.
MINAS GERAIS, 28 agosto 1945.
MINAS GERAIS, 1
o
setembro 1945.
138
MINAS GERAIS, 2 setembro 1945.
MINAS GERAIS, 14 setembro 1945.
MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 20 novembro 1949.
MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 24 janeiro 1951.
MINAS GERAIS, 5 julho 1952.
MINAS GERAIS, 29 de abril de 1955.
MINAS GERAIS, 30 abril 1955.
NATIONAL BRUXELLES, Bruxelas, 18maio 1928.
O DIÁRIO, 12 de outubro de 1938, p.09.
O IMPARCIAL, Rio de Janeiro, 5 junho 1935
O JORNAL, Rio de Janeiro, 25 julho de 1931
O JORNAL, Rio de Janeiro, 29 julho de 1931.
OLIVEIRA, Álvares. Folha de Minas. Fuga à realidade. 16 out. 1938.
PIGNATARO, Iolanda. Estado de Minas. Jeanne Louise Milde, Pioneira como Helena
Antipoff.Belo Horizonte, 23 jan. 1980.
REVISTA ALTEROSA, outubro de 1945, ano VII, número 66.
REVISTA BELO HORIZONTE, agosto-setembro 1945.
SANTOS, Carlos Porfírio dos. Educação e Ensino. A professora Milde e as novas
mestras de Desenho e Artes Aplicadas. O Diário. Rio de Janeiro, 19 dezembro 1948.
SILVA, Jair. Folha de Minas. Belo Horizonte, out. 1936.
SILVA, Jair. Oropa, França e Bahia. Estado de Minas. 17 julho 1949.
VEADO, Lúcia. A mulher de nossos dias. Estado de Minas. Feminino. 17 abril 1960,
p. 06.
Outros jornais consultados
ÁVILA, Carlos. Nós vamos apresentar agora uma grande escultora: Jeanne Milde,
uma belga muito mineira. Estado de Minas. Março 1984.
DIÁRIO DE MINAS. 17 janeiro de 1920. P. 01.
DIÁRIO DO COMÉRCIO, Belo Horizonte, 29 março 1984, p.08.
DRUMMOND, Austen Amaro de Moura. A transcendência escultural da forma.
Estado de Minas, 09 agosto de 1984.
ESTADO DE MINAS, Feminino, 5 fevereiro 1984. P. 09.
MARINA, Ana. Diário da Tarde, Belo Horizonte, 26 de março 1984, p.13.
139
O GLOBO. Grande Rio, 07 fevereiro, 1984. p. 08.
OSWALDO, Ângelo. A obra de Jeanne Milde em meio século de Minas. Estado de
Minas. Belo Horizonte 4 de abril 1984.
OSWALDO, Ângelo. Estado de Minas. 2ª Seção. 1 fev. 1994, p. 08.
SEBASTIÃO, Walter. Para conhecer ou relembrar Jeanne Milde. Viver BH. Estado de
Minas. Belo Horizonte, 17 out. 1997, p. 20.
SUPLEMENTO LITERÁRIO. Nº 60. Secretaria de Estado da Cultura de Minas
Gerais. Junho 2000.Entrevista da artista concedida a Gastão Frota em 1997.
TRISTÃO, Mari’Stella. Museu Mineiro faz retrospectiva de Milde. Estado de Minas.
21 março 1984. P. 06.
VIEIRA, Ivone Luzia. A juventude de uma obra. Suplemento Literário. Secretaria de
Estado da Fazenda de Minas Gerais. P.15.
Vídeos
FROTA, Gastão. A vida na arte de Jeanne Milde. Belo Horizonte, 2000.
Vídeo de Entrevista dada ao CRAV (Centro de Referência Audiovisual da Prefeitura
de Belo Horizonte) em 1996.
TAVARES, Mariana. Um Século de História das Artes Plásticas em Belo Horizonte.
Belo Horizonte: C/Arte, 1997.
Transcrição de Entrevista.
VIE INTELECTUELLE PAR CARL HENRY. Entrevista dada por Jeanne Milde em 6
agosto de 1947 à Radio-Diffusion Nationale Belge (transcrição da entrevista
consta no acervo da artista doado ao Museu Mineiro)
140
ANEXOS
Anexo I
Dados presentes no Livro de Registro da Real Academia de Belas Artes de Bruxelas,
Registro número 18850:
DADOS BIOGRÁFICOS:
Na Academie Royale de Beaux-Arts et Ecole des Arts Decoratifs:
Anées Cours suivis Concours pour
les places
Concours
pour les prix
Distinctions
obtenues
1918-19 Dessin d´ornem. 2
ème
D 17 7
1918-19 Peinture ornem. 1
ère
année 6 10
1919-20 Dessin tête et torse antiques 1 8
1919-20 Modelage tête antique jour 1 2 2
ème
Prix
1919-20 Pratique et mise au point
1
er
année
1 Prix
1920-21 Modelage torse antique soir 1 1 Prix avec
distinction
1920-21 Etude dessin figure 11 3 1
er
Accessit
1920-21 Pratique et mise au point
2
ème
année
Prix avec
distinction
1921-22 Modelage figure antique soir 1 1 Prix
1921-22 Modelage nature jour 3 malade
1922-23 Modelage figure antique soir HC
1921-22 Modelage nature jour 2 1 1
er
prix avec
distinction
1922-23 Modelage composition 2 2
ème
Prix
1922-23 Pratique et mise au point 3
ème
année
2 Prix avec
distinction
1923-24 Dessin modèle 12
141
Anées Cours suivis Concours pour
les places
Concours
pour les prix
Distinctions
obtenues
1923-24 Modelage nature Jour Arts
déco
1 2 2
ème
Prix
1923-24 Modelage Composition déco. 1 1
er
Prix
1924-25 Modelage nature soir 1 2 Prix avec distinc.
1924-25 Modelage composition 1 1
er
Prix avec
distinction
1924-25 Pratique et mise au point
3
ème
année
1 Prix
1924-25 Grand Concours Sculpture 1 Prix
1924-25 Modelage Nature Soir 1
142
Anexo II
Complemento da ficha funcional de Jeanne Louise Milde presente no Instituto de
Educação de Minas Gerais:
Iniciou suas atividades profissionais como modeladora da Fábrica Reper para
manequins, em Bruxelas, durante um período de 5 anos.
Diplomas:
1916: Curso secundário, Colégio Berbemont, Bruxelles
1917: Curso de corte em escola reconhecida pelo governo belga.
1918: Curso menager reconhecido pelo governo
1922-23: Escola de Belas Artes de Bruxelas, Seção de Escultura do Natural com 1º
Prêmio, distinção e medalha de bronze.
1923-24: Escola de Belas Artes de Bruxelas, Seção de Escultura composição com 1º
Prêmio, distinção e medalha de bronze.
1924-25: Escola de Belas Artes de Bruxelas, Seção Natural e Composição com 1º
Prêmio, distinção e medalha de bronze.
1924-25: Escola de Belas Artes de Bruxelas, Seção de Escultura do Natural com 1º
Prêmio, distinção e medalha de prata dourada.
1924-25: Escola de Belas Artes de Bruxelas, Seção de Prática (moldagem, talhe de
pedra e madeira) com 1º Prêmio, medalha de prata.
1925: Escola de Belas Artes de Bruxelas, 1º Prêmio Godecharle com a composição
estátua: “La femme en prois a la frayeur”
1927: Escola de Belas Artes de Bruxelas Grande Prêmio Viagem a Roma Jornais
L´echo d´ostende e Le Soir de 4 de junho de 1927.
1928: Aquisição de escultura intitulada Danse Folle pelo Museu Nacional de Belas
Artes de Bruxelas
1929: Convidada pelo governo do Estado de Minas Gerais, presidente Antônio Carlos,
conforme contrato assinado na Bélgica, para ocupar o lugar de professora e
orientadora dos cursos de Desenho, Escultura e Artes Aplicadas nos cursos:
143
Normal, Profissional, Superior e Aperfeiçoamento. Jornais do Rio e Minas
publicaram reportagens a respeito.
1929: Condecoração pelo rei Alberto da Bélgica. Publicado nos jornais Le Soir na
Bélgica, Minas Gerais e Estado de Minas em Belo Horizonte.
1930: Medalha de Ouro no Salão de Belas Artes no Rio de janeiro. Publicado em
jornais do Rio.
1940: Aquisição de uma obra “Água sua alegria e sua embriaguez”, pelo Museu
Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.
1947: Um ano de férias concedido pelo Presidente Milton Campos sem ônus para o
estado.
1948: Realizou uma exposição em Bruxelas na Galeria Toison d´Or.
1948: Convidada e chamada de volta pelo Governador Milton Campos e pelo
Secretário Dr. Abigar Renault, conforme carta de 22-02-1948 da Sra. Amélia
Monteiro de Castro, diretora do Instituto de Educação, para continuar o curso
de especialização de desenho e artes aplicadas para professoras.
1948: Convidada a trabalhar no curso de Professores Rural Fazenda do Rosário e no
curso de férias para curso secundário, organizado pelo Secretário Abgar
Renault.
1948: Aquisição de uma obra Ma maman pelo Museu nacional de Belas Artes de
Bruxelas
1949: Convidada a trabalhar no curso de Prof. Pré-primário criado e organizado pelo
Professor Abgar Renault.
1949: Convidada e contratada por ato do chefe da polícia do Estado de Minas Gerais
Sr. Campos Cristo. Escola Rafael Magalhães onde ensina desenho,
levantamento topográfico, modelagem e moldagem. Publicado no Jornal Minas
Gerais de 12 de julho de 1949 e no Estado de Minas de 13 de julho de 1949.
1950: Convidada pelo secretário Abgar Renault a trabalhar no curso de
Biblioteconomia.
1951: Condecorada por decreto na Bélgica com a ordem Chevalier de l`ordre de la
Couronne publicado nos jornais: Libre Belgique de 16-01-1951 e Minas Gerais
de 24-01-1951
1952: Convidada pelo Secretário de Educação a trabalhar no curso de férias para
Professoras de curso secundário.
144
1952: Convidada a trabalhar na Escola Senai para dirigir e orientar o ensino nos cursos
vocacionais em Belo Horizonte.
145
Anexo III
Documento mimeografado presente no acervo da artista doado ao Museu Mineiro.
Sem data.
Pontos para exames de suficiências Trabalhos Manuais- 1º Ciclo
- Instrumentos empregados com madeira. Classificação. Descrição, conservação e
preceitos técnicos de utilização.
- Os trabalhos manuais e seus objetivos. Objetivos profissionais. Objetivos
educativos. Princípios e normas psicológicas a serem atendidos. O lema “aprender-se-
á fazendo” e o seu conceito. O ensino ativo e a prática dos trabalhos manuais.
- Os três principais grupos de material utilizado na execução dos trabalhos manuais.
As madeiras, as argilas e as massas plásticas. Os metais. Material complementar: fios,
fibras, papel cartão, arames. Associação dos diversos materiais.
- A eficácia e o alcance do ensino ativo nas classes de trabalhos manuais. O sistema
de projetos e a sua essência. Concepção e realidade. Valores culturais e morais.
Exatidão e precisão. Medida e sinceridade nos propósitos de ação.
- Encaixes, rebaixos e chanfros de madeira. Rebaixos curvos, côncavos e convexos.
Encaixes marchelados e seus diversos tipos. Encaixes em rabo de andorinha.
- O programa dos trabalhos manuais nas duas primeiras séries. Sua importância,
significação e finalidade. Sua feição técnica.
- Regularização e tratamento das superfícies curvas nos trabalhos com madeira.
Peças cilíndricas, cônicas, em calotas esféricas ou elipsoidais. Emprego de galvanite.
Acabamento das superfícies.
- Repuxados e latoaria. martelados e cinzelados. Recortes e serreados de metal em
folha ou chapas de ferro batido. Cortes metais a frio. Trabalhos em chapa. Planificação
dos sólidos e traçados do material. Ferramentas e operações de furar.
- O planejamento no sistema de projetos. Sua apresentação e desenvolvimento.
Imitação, criação e “leitura do plano”. O desenho como linguagem no planejamento.
10º - Junções e articulações de madeira. Espécies mais comuns. Junções sobrepostas
de meia madeira, de meia madeira cruzada, de meia madeira com talão. Articulações
com tômos, cubos ou carrilhas.
146
11º - As bases objetivas de observação e de experiência nas aulas de trabalhos
manuais. Compreensão dos problemas relacionados com as outras matérias do
curriculum ginasial e seu tratamento.
12º - Breve notícia sobre as argilas e as massas plásticas. Operações principais da
moldagem.
13º - O “ensino de oportunidade” e a sua aplicação em classes de trabalhos manuais.
Tipos e valores de matérias primas. Procedência e uso prático.
14º - Representações e estereorâmicas. O barro de modelação. Ferramental necessário.
Acabamento. Modelagem do relevo.
15º - Os trabalhos manuais e sua influência na definição de tendências, do gosto e da
capacidade dos alunos. A “orientação educacional” e os trabalhos manuais.
16º - Modelagem de estereoramas para os exercícios da geografia física. Reprodução
em pasta de papel.
17º - Os projetos coletivos e os trabalhos em cooperação. Cunho educativo e valores
morais. As atividades manuais nas classes mistas. Técnica e aplicação.
18º - Representação em alto relevo. Modelagem de folhas e flores. Reprodução de
formas de gesso.
19º - As madeiras e seu aproveitamento. Os metais e seu aproveitamento. As argilas e
as massas plásticas. usos e valores. Procedência, uso prático e técnica de
aproveitamento.
20º - As bases objetivas de observação e de experiência nas aulas de trabalhos
manuais. Compreensão dos problemas relacionados com as outras matérias do
curriculum ginasial e seu tratamento.
147
Anexo IV
Lista de obras presente no arquivo pessoal da artista.
Título da obra Material Data
Vaidade gesso (realizada na Bélgica) s/data
O resto do meu amor prata 1947
Retrato inglês gesso 1949
Meu cachimbo terracota 1950
Sonhando gesso 1962
Vera-retrato baixo-relevo em gesso 1964
Novidade baixo-relevo em canela 1969
Meu bebê gesso 1969
Meu Segredo imbuia 1970
O pescador de rede gesso 1969
Ternura gesso 1970
Coral baixo-relevo em imbuia 1975
A Deusa do Amazonas canela 1976
Os estivadores imbuia 1977
Carga Pesada terracota 1978
Solidão pau cetim 1978
Pé de lâmpada aroeira 1978
Carinho jacarandá 1979
Meus filhos aroeira vermelha 1979
Surpresa jacarandá 1982
Súplica imbuia 1982
A Espera imbuia 1982
As mulheres no cais jacarandá - esboço 1982
O filósofo jacarandá - esboço 1982
Baixo-relevo apagador gesso-pedra 1958
Luz indireta gesso patinado em bronze 1958
Adolescentes gesso 1932
Iara braúna 1976
148
Motivo decorativo imbuia-divisória 1977
149
Anexo V
Lista de obras presente no arquivo pessoal da artista.
Título Proprietário/local onde se
encontra
Material
Hebe Sr. Louis Einch - Sabará Bronze
Faunesse Sr. Louis Einch - Sabará Terracota
Dançarina Sr. Louis Einch - Sabará Bronze
Retrato do Sr. Louis Einch Sr. Louis Einch - Sabará Bronze
Trabalho na entr
ada do
escritório
Sr. Louis Einch - Sabará Bronze
Retrato de Barbaçon??? Sr. Louis Einch Sabará busto em bronze
Busto de Benedito
Valadares
Pará de Minas
Praça
pública
busto em bronze
Busto de Benedito
Valadares
Eugenópolis Praça pública busto em bronze
Busto de Benedito
Valadares
Cambuquira Praça pública busto em bronze
Baixo-relevo de João de
Almeida
Ginásio em Pedra Azul Bronze
Busto do Prof. Otaviano de
Almeida
Em Praça Pública na Santa
Casa
Bronze
Homenagem a Rio Branco Dr. J. Lambert baixo-relevo em bronze
Busto do Dr. Gilberto da
Silva Porto
Escola de Polícia Rafael
Magalhães
Gesso
Alegoria à Pedagogia, com o
retrato do Pr. Antônio Carlos
Ribeiro de Andrade
Entrada do Instituto de
Educação em Belo Horizonte
Gesso
Alegoria à P
edagogia, com o
retrato do Dr. Francisco
Campos
Entrada do Instituto de
Educação em Belo Horizonte
Gesso
150
Manhã inquieta Sr. Horst; Inês Brenck Bronze
Medo Sr. Horst; Inês Brenck Bronze
Primavera Sr. Horst; Inês Brenck baixo-relevo em gesso
Ventania Carlos Alberto Fonseca Terracota
Índio
Sra. Lily Kraft ou Vera
Milton Gomes
Bronze
Saudade
Sra. Lily Kraft ou Vera
Milton Gomes
Bronze
Vaidade
Sra. Lily Kraft ou Vera
Milton Gomes
em madeira pau cetim
Cântico à Virgem
Sra. Lily Kraft ou Vera
Milton Gomes
baixo-relevo em bronze
Castidade Sr. Silviano Brandão busto em terrracota
Garimpeiro Dr. Osvaldo de Andrade Terracota
Os emigrantes Dr. Alfredo Camare Santiago Terracota
Retrato do Dr. Edmundo
Paulo Pinto
Dr. Edmundo Paulo Pinto Gesso
Fauno Dr. Edmundo Paulo Pinto Gesso
Última Palavra Dr. Edmundo Paulo Pinto Gesso
Retrato do Dr. Francisco
Fernandes
Dr. Francisco Fernandes Gesso
Visão de Guerra Dr. Francisco Fernandes Gesso
Retrato Dr. Celso Machado Dr. Celso Machado Gesso
Remorso Dr. Túlio Ribeiro Bronze
O Bambi
Enfadado
Malícia
M. Jeanne Paque; Dra. Nelly
Paque e Mlle. Louise Dubois
Imbuia
Bronze
Bronze
Minha mãe
Dr. Alfredo Carneiro
Santiago
Bronze
A antipática
Dr. Alfredo Carneiro
Santiago
Bronze
A antipática Sr.Arthur Denis Bronze
Retrat
o do Dr. Gilberto da
Dr. Gilberto da Silva Porte busto em gesso
151
Silva Porte
Mulata Priscila Freire Bronze
Mulher
Dr. Ângelo Osvaldo de
Araújo Santos
Gesso
152
Anexo VI
DADOS DE CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO REALIZADA NA GALERIE MAISON
D’OR
Data: 21 de fevereiro a 4 de março de 1948 em Bruxelas.
“Aprés une absense de 19 ans Jeanne Milde expose quelques sculptures faites au
Brésil. Laureate avec distinction et grande distinction de l’Academie Royale de
Belgique (classe de sculpture)
Prix Godecharle en 1925.
Prix de Rome en 1927.
Ouevre acquise, en 1928, par le Gouvernement belge avec Danse Folle.
Invitée en 1929, par le Gouvernement du Brésil pour remanier l’enseignement du
dessin et de la sculpture.
Medaile d’or en 1930, au Salon des Beaux-Arts de Rio de Janeiro Brésil.
Ouevre acquise en 1940, par le gouvernement de Rio de janeiro avec Água Sua
Alegria Sua Embriaguez.
Catalogue
Série de Bronze, cire perdue et terre cuite.
1 – Souvenir (saudade) à 5 exempl.
2 – Melancolie à 5 exempl.
3 – La Peur à 5 exempl.
4 – Le Secret à 5 exempl.
5 – La danse (samba) à 5 exempl.
6 – Ma maman à 5 exempl.
7 – Timidité à 5 exempl.
8 – Mélancolie à 5 exempl.
9 – Malicieuse à 5 exempl.
10 – Miroir de l’eau à 5 exempl.
11 – Pensée interieur original
12 – Matin Inquiet original
13 – Chercheux de Cristeaux original
14 – Enchantement original
15 – Tête au vent original
153
16 – Antipatique original
17 – L’Angelus original
18 – Cantique á la vierge original
19 – Faunesse (masque) 5 exempl.
20 – Tête faunesse original
21 – Rieuse aux Perles 15 exempl.
22 – Tête d’indien original
23 – Tête mulatiesse original
24 – Tête l’ignorante original
25 – Destin original
26 – Portrait Médaille: Mr Peltzer
(anc. Ambassadeur à Rio de Janeiro)
Mme Peltzer De mot
TERRE-CUITE
27 – Printemps de la vie
28 – L’Intelectuelle
29 – Songeuse
30 – Rêverie
154
Anexo VII
ANDRADE, Moacyr. República Decroly. Belo Horizonte, Edições Pindorama, 1935.
Trechos do livro República Decroly nos quais aparece a figura de Mlle. Milde e nos
quais refere-se, especificamente, ao Pedagogium, identificado como a Escola de
Aperfeiçoamento.
“O cometa dissera, no hotel, que algumas moças do Pedagogium viviam na capital
sozinhas em República como rapazes, inteiramente à solta...” (p.117)
Dr. Abdias: Secretário da Instrução, falava às professoras:
“As senhoras disse vão ser as legionárias do novo ensino no interior. Vão levar a
todos os recantos de nossa terra o verdadeiro sentido da Pedagogia moderna.
O secretário falava com eloqüência da grandeza de sua obra de administrador.” (p.
126-127)
“[...] com ela [Zuleika] apenas reduzido número de moças levava a sério o
Pedagogium.
Para as outras o Pedagogium era bem aquilo que o cometa palavroso e indiscreto
dissera em Itacoatinga: - pretexto para as moças do interior virem namorar na capital.”
(p.132)
“O secretário Abdias, compreendendo que, apesar de seu surpreendente esforço, O
Pedagogium, para viver, tinha que ambientar-se no regime nacional do ensino
burocrático, do ensino repartição pública, culpava do insucesso do plano
governamental o Dr. Roberto Rodrigues que, nos primeiros tempos, com a confiança
direta do Presidente, pondo e dispondo na organização do Pedagogium, contrariava o
professorado brasileiro, humilhando-o mesmo, para só destacar o valor da ciência que
ele contratara na Europa, a franco-ouro. Sem o estímulo necessário para tornar
vitoriosa realização daquele vulto, que teria naturalmente de encontrar tropeços e
enfrentar descontentamentos, porque destinada a refinar o magistério o grupo seleto
de professores brasileiros, designados para o Pedagogium, ficou à margem. Mestres
que especialmente conheciam as questões do ensino e para os quais a bagagem dos
professores estrangeiros não trazia grandes novidades, eles cumpriam, pontualmente, o
seu dever, mas lhe faltava o prestígio indispensável para sua missão, pois só se
155
reconhecia no Pedagogium um valor: - o dos mestres que o Dr. Roberto trouxera!”
(p.133-134).
Depreciação da diretora do instituto, D. Carmela Teixeira, a chamando de incapaz.
“Pedagogium!
Isso, para a professora do interior, era, naquele tempo, o mesmo que a Academia de
Letras para o sonetista de arraial.
Tinha muito de grande e qualquer coisa de inatingível.
Ainda em Itacoatinga não se sabia bem o que fôsse o Pedagogium, nem poderia supor
[...]
O Pedagogium era a grande realização do governo do tempo.
O Secretário de Instrução concedia entrevistas aos jornais, desdobrando o plano do
novo instituto.
O presidente, nas suas excursões, era, em cada lugar, saudado sempre como um grande
beneficiador da Instrução referindo-se sistematicamente os oradores, enquanto
foguetes pipocavam no ar, a criação admirável do Pedagogium!...
Cada governo tem predileção por determinado ramo da administração. São sempre
salvadores todos eles. O estadista Fulano foi o salvador da Lavoura, aquele outro, da
Indústria; este das Finanças...
Quando se desenrolavam tais fatos, apontava-se, especialmente, o governo como
“salvador da Instrução”.
Tudo se reformava no ensino, e o Pedagogium nasceu dêsse prurido reformador e
renovador.
O Secretário da Instrução, lido em autores franceses e alemães, familiarizado com
filósofos e pensadores, queria deixar uma obra gloriosa.
Fizera a reforma do ensino, dando-lhe segundo anunciava nas suas entrevistas
caudalosas aos jornais, o “verdadeiro cunho científico.”
Mandara á Europa buscar técnicos. O Dr. Roberto Rodrigues, amigo do secretário,
fôra incumbido de procurar no estrangeiro, a qualquer preço, as sumidades
pedagógicas.
Com bôa ajuda de custo, foi o Dr. Roberto e de lá trazendo, sob contratos
admiravelmente clausulados e papinguemente ou, como afirmava o povo,
escandalosamente, corpo de técnicos estrangeiros do ensino.
Eram todos nomes conhecidos em seus países, como grandes autoridades.
156
O Dr. Roberto Rodrigues, de cada país por onde andou, trouxe um representante: da
Bélgica, da Suiça, da França e da Rússia, sem que por lá, entretanto, tivesse andado.
Mas Rússia é que espalhara seus filhos por todos os países, sem atender ao seu valor e
à sua posição.
Daí filósofos russos como garçons de restaurantes, professores de Universidade
catando papel na rua, princesas russas dansando em cabarets, generais e coronéis
exibindo-se em politeamas isso em Paris, em Roma, em Londres, em Bruxelas, em
Berlim, em Viena...
Um repórter, a convite especial do Dr. Rodrigues, dirigiu-se ao hotel, com a
curiosidade com que entraria no circo Sarrazani, para ver os bichos...
O Dr. Roberto mostrava, com a satisfação do empresário feliz, os sábios que trouxera
para ilustrar as nossas professoras, os quais sorriam para o repórter, mas não falavam,
porque ignoravam integralmente o português. E explicava que aquele barbado, ali, era
grande educador francês, aquela senhora alta, ossuda e de óculos, notável psicóloga
russa; aquela criaturinha loura como um esterlino, grande escultora suiça...
- Escultora? Para que? Inquiriu o repórter, bisonho.
- Ora, para que? Para as artes plásticas. Vai ser ela a orientadora do ensino dessa
disciplina que será executado no nosso programa (esse “nosso” era dito com acento
forte, porque o Dr. Roberto também colaborara na última reforma pedagógica),
simultaneamente com o ensino do desenho.
A criaturinha loura, a única que em matéria de estética, se salvava no punhado de
autoridades que vieram do outro lado do Atlântico para nos ensinar pedagogia, sorria
para o repórter, com seus dentes claros e fortes, parecendo estar compreendendo tudo.
- Mas, doutor, o povo diz que esses professores vão custar rios de dinheiro ao
governo... O senhor sabe como o povo é. Certamente, há exagero. Não seria
conveniente informar aos leitores por quanto fica esta embaixada tão ilustre?
O repórter fez a pergunta antevendo a possibilidade de ser lançado pela sacada do
hotel à rua, mas é que a pergunta lhe fora especialmente aconselhada pelo redator-
secretário de seu jornal.
O rapaz perguntou, mas ficou olhando para o Dr. Roberto. Foram segundos de agonia.
Não viera a agressão física, devia vir grande desaforo, pesado como aerólito, porque o
Dr. Roberto era notoriamente conhecido como o homem mais irritadiço da cidade.
Surpreendendo ainda o repórter, não veio também o desaforo.
157
Era a primeira vez, na sua existência, que o Dr. Roberto Rodrigues perdera a
oportunidade de um desabafo.
Mas com a cólera a custo sopitada, respondeu:
- O povo, isto é, esta canalha ignara não está na altura de compreender a obra
governamental em matéria de ensino. São uns bárbaros, uns botocudos, incapazes de
penetrar o plano educacional que cogitamos dar a nossa terra. Que era a escola até
aqui? Um conglomerado de alunos de inteligências diferentes, verdadeira miscelânea
de capacidades, tratados todos porém, por idênticos processos e métodos. Não havia
análise da inteligência, nem o estudo da capacidade de apreensão de cada discípulo.
Os “tests” embora existentes no regulamento não podiam ser aplicados
vantajosamente. A professora ignorava até rudimentos psicológicos, indispensáveis
para conhecer a sua classe. Era irrisório também o seu preparo em Metodologia. O
regulamento de que dispunhamos alinhava obrigações para as professoras, mas não as
armava dos conhecimentos imprescindíveis para o desempenho de suas funções. Era,
pois, um regulamento impraticável pelo magistério. Agora não! Com os técnicos que
acabo de trazer, vai o professorado, que passar pelo Pedagogium, adestrar-se para
exercer, em todos os cantos do Estado, o verdadeiro ensino não essa coisa empírica
que existia por aí porque a verdade é que não estávamos muito longe da escola do
Tico-tico... mas o ensino adequado ás inteligências, o ensino para o aluno, com o
cunho essencialmente científico. É esse, em resumo, o espírito da nossa reforma.
O Dr. Roberto falava em tom enérgico e firme, como era seu costume, olhando
o repórter, na disposição de desabafar sobre ele, se lhe opusesse leve contradita.
O legítimo repórter, entretanto, com uma ordem do redator-secretário para
executar, tem qualquer coisa de autômato. Nos ouvidos do pobre moço a voz forte do
Dr. Roberto, dissertando sobre a grandiosidade do plano educacional do governo não
apagara a ordem que trouxera do jornal saber o preço da embaixada de técnicos.
Dando a sua parte a entrevista por terminada, o Dr. Roberto estendeu a mão ao
repórter, como quem não quer nem mais uma palavra.
- E até logo... o senhor diga essas coisas no seu jornal. Mais tarde, procure-me
no Pedagogium, quando as aulas começarem.
E foi dando as costas.
- Doutor, mas qual o preço do contrato dos professores que o senhor trouxe?
Isso, o repórter disse, num supremo esforço de coragem, temendo a
tempestade.
158
O Dr. Roberto voltou-se rápido, e respondeu:
- Sabe que mais? Vá... e soltou um palavrão.
A professorinha loura, que estendia numa das poltronas do hotel o corpo
elegante, sorriu, porque a palavra que o doutor usara tem quase a mesma pronúncia em
português, como em francês...
Ele percebeu a gaffe e, querendo refazer-se da cólera, dirigiu-se-lhe, atencioso:
- Pardon, mademoiselle...
A professora russa, engolfada na leitura de um livro e o célebre professor
francês, procurando notícias da pátria num “Matin” de quatro semanas, não
pressentiram coisa alguma.
Dois hóspedes que passavam no corredor voltaram-se para verificar de onde
partira a palavra deselegante, o que não conseguiram, porque o Dr. Roberto,
disfarçando o incidente, já conversava com a celebridade loura, que ia conduzindo
para o bar do Hotel.
O repórter, com surpreendente capacidade de migração, de que não parecia
capaz com seu corpo rechonchudo ganhava a rua.
E assim se inaugurava o Pedagogium, com professores notáveis e conhecidos
mas de preços desconhecidos para o povo que pagava.” (p.31-43)
“Aos professores estrangeiros, inteligentes e cultos, não escapava, apesar de
pouco informados das minúcias administrativas do Estado, que o Pedagogium estava
em crise. Interessados no progresso das alunas, realizando o máximo possível de
trabalho, produzindo conferências notáveis, esses professores observaram muito bem
que o meio pedagógico do Estado não comportava um instituto daquele gênero, nas
bases em que o pretendiam moldar. Os cursos normais no Brasil, sempre feitos
displiscentemente, não davam normalistas, mas moças diplomadas, como, aliás, em
nosso país, as Escolas de Engenharia não produzem engenheiros, nem médicos as de
Medicina, nem advogados as Academias de Ciências Jurídicas. Porque estamos, diante
de outras nações, mesmo aqui na América, em situação vexatória em matéria de
ensino, apesar da imponência arquitetônica dos problemas que quatrienalmente os
governos apresentam.
Madeimoselle Madeleine, a autoridade em artes plásticas, vinda na caravana
estrangeira não compreendia a nossa organização ou, melhor, a nossa desorganização
administrativa, e ignorava que aqui cada governo se julga no dever de apresentar
159
iniciativas retumbantes para propaganda de seus méritos e obter elogios, não se
preocupando depois com a realização da iniciativa, como o químico inescrupuloso
que, lançando seu produto, faz dele espetaculoso reclame, mas não se interessa pela
segurança de sua fabricação.
Por ignorar taes particularidades do sistema brasileiro de administrar e
observando apenassuas alunas na Escola, mademoiselle Madelaine responsabilizava o
aluno nacional, com o seu descaso pelo ensino, pela impossibilidade de levar adiante
uma instituição como o Pedagogium, obra que mademoiselle julgava de grande
interesse, mas que não era só para crescer pelo esforço das lentes, precisando também
da colaboração das alunas. E estas, excetuando número restrito, não se preocupavam
com o Pedagogium. Preferiam pensar nos bailes das associações elegantes, nas sessões
“chics” dos cinemas, nas reuniões do Odeon, a sorveteria da moda, e nos passeios de
automóvel, em corridas audaciosas, pelas estradas do Retiro Saudoso, da Serra das
Almas, da Granja Universo e da Lagoa da Morte, lugares pitorescos, afastados da
capital 30 e 50 quilômetros, pontos prediletos de quantos buscavam repousar um
pouco do ruído urbano ou queriam esconder-se dos olhares curiosos da cidade...
Á vista de suas discípulas, algumas muito inteligentes mas desatentas, moças
que trabalhavam sem tirar os olhos do relógio, preocupadas com a hora da saída,
mademoiselle Madeleine chegou certa vez a dizer, francamente, ao Secretário Abdias,
pedindo-lhe excusas pela sua ousadia de estrangeira, que sentia faltar-lhe, entre nós,
boa argila para modelagem, o que foi dito no seu belo francês, indicando as alunas que
compreenderam a frase, mas julgavam que mademoiselle estivesse reclamando melhor
argila para os trabalhos diários...
O secretário sorriu e compreendeu que a estrangeirinha loura tinha razão, mas
o ensino entre nós era aquilo mesmo... Ela não compreendia o Brasil... Ele, sim, o
entendia muito bem...
“Com argila ou sem argila” Respondeu, também em francês, à professora das
artes plásticas o Pedagogium precisava ir para adiante. O Governo assim o queria e
contava com o esforço dela e de seus companheiros.
Era uma demonstração de autoridade, que ele se julgava no dever de dar,
embora cortesmente.” (p.136-141)
160
Anexo VIII
Poema de Carlos Drummond de Andrade sobre as alunas da Escola de
Aperfeiçoamento. Transcrição de recorte do Jornal Estado de Minas, sem data,
presente no acervo da artista doado ao Museu Mineiro.
As moças da Escola de Aperfeiçoamento
São cinqüenta, são duzentas,
são trezentas
as professorinhas que invadem
a desprevinida Belô?
São cento e cinqüenta, ou mil
as boinas azuis e verdes
e róseas alaranjadas
e negras e também roxas,
os lábios coracionais
e os tons pouce petulantes
que elas ostentam, radiosas?
De onde vêm essas garotas,
eu que sei?
Vêm de Poços de Caldas, de São João
Del Rei, Juiz de Fora, Lavras,
Leopoldina, Itajubá,
Montes Claros, Minas Novas,
cidades novas de Minas
ainda não cadastradas
no índice corográfico
do Pelicano Frade?
E são assim tão modernas,
Tão chegadas de Paris
par le dernier bateau
ancorado na avenida
Afonso Pena ou Bahia
que a gente não as distingue
das melindrosas cariocas
em férias mineiras?
Que vêm fazer essas jovens?
161
Vêm descobrir, saber coisas
de Decroly, Claparède,
novidades pedagógicas
segredos de arte e de técnica
revelados por Helène
Antipoff, Madame Artus,
Mademoiselle Milde, mais quem?
Ou vêm para perturbar
se possível mais ainda
a precária paz de espírito
dos estudantes vadios
(eu, um deles)
que só querem declinar
os tempos irregulares
de namorar e de amar?
Ai, o mal que faz a Minas,
A nós, pelo menos, frágeis
irresponsáveis, dementes
cultivadores da aérea
flor feminina fechada
em pétala de reticência
a Escola novidadeira
dita de Aperfeiçoamento!
A gente não dava conta
de tanto impulso maluco
doridamente frustrado
ante a pétrea rigidez
dos domésticos presídios
onde vivem clausuradas
as meninas de Belô
e irrompe essa multitude
de boinas, bocas, batons
escarlates, desafiando
a nossa corda sensível
que faz Mário Casassanta
autoridade do ensino
que não devolve essas moças
162
a seus lugares de origem?
Chamo seu Edgarzinho,
responsável pela Escola
que ponha reparo peço-lhe
nas crianças do interior
que ficaram sem suas mestras,
convém destituí-las logo
à tarefa habitual.
Ele responde: “São ordens
Do doutor Francisco Campos
nosso ilustre Secretário
Vá-se embora, não insista
Em perturbar nossos planos
racionais”.
Vou-me embora. Já na esquina
A boina azul me aparece
sob o azul universal
que faz de Belô um céu
pousado em pelúcia verde.
Sua dona, deslizante
entre forma costumeiras,
é diferente de tudo
e não olha para mim
e não olha para mim
deslumbrado, derrotado,
que vou bobeando assim.
Não há professora feia?
Pode ser que haja. A vista
até onde o sonho alcança,
cinge a todas de beleza,
e a beleza, disse alguém,
é mortal como punhal.”
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