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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Um caso de “feitiçaria” na
Inquisição de Pernambuco
Tatiane de Lima Trigueiro
Recife
2001
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2
Tatiane de Lima Trigueiro
Um caso de “feitiçaria” na
Inquisição de Pernambuco
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
História da Universidade
Federal de Pernambuco como
requisito parcial para a obtenção
do grau de mestre em História,
sob a orientação do Prof. Dr.
Marcus Joaquim Maciel de
Carvalho.
Recife
2001
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3
RESUMO
A chegada do Santo Ofício ao Brasil se deu com a união das coroas
ibéricas e com o fim dela o “espírito” da perseguição, da delação e do
confisco de bens já estava enraizado no seio da nossa sociedade.
Pernambuco não poderia ficar de fora desse processo inquisitorial. Por
terras duartinas passou o primeiro visitador que esteve no Brasil e aqui
deixou plantada a semente da suspeita e da delação, apesar de ser
considerada uma terra de degredados penalizados pelo Santo Ofício, ou
de fugitivos da inquisição portuguesa.
Por outro lado, a Capitania pernambucana era uma fonte de riqueza e
de onde saiam muitos provimentos para a metrópole européia; dessa
forma as oportunidades de comércio e bons negócios era uma constante
na realidade da população. Contudo, os moradores da Capitania
conviviam com presença tanto de religiosos, que procuravam impor
mais as regras que praticá- las, quanto com “feiticeiros”, “curandeiros”
e “bruxos” que procuravam para livrar- se de mau querenças ou
conquistar algo ou alguém. Como conseqüência dessa realidade
religiosa que permeava Pernambuco, se constituiu uma sociedade com
algumas particularidades.
4
A todos aqueles que
um dia se sentiram
injustiçados.
5
AgradecimenAgradecimentostos
Muitas são as pessoas a agradecer pelo apoio para a realização deste
trabalho.
Primeiramente a Deus por tudo que ele representa na minha vida e
também a meus irmãos, pai e mãe, sobrinho e cunhados. A Rogério
pelo carinho ao presenciar minhas crises de choro.
Algumas pessoas são diretamente responsáveis pela realização desta
dissertação e muito me ajudaram. Por ordem cronológica: Prof. Dr.
Carlos Miranda pela ajuda na elaboração do meu projeto e pelo
incentivo a este tema; ao Prof. Dr. Marcos Joaquim M. de Carvalho
por ter aceitado me orientar, não só na minha formação acadêmica,
mas também como amigo compreensivo e confessor nas horas de
angústias. À professora Virgínia Almoêdo de Assis pela amizade,
pelas conversas e pelo apoio constante. À prof.ª Drª. Sílvia Cortez
pelo carinho, pelas leituras e pela ajuda na construção do trabalho.
Ao professor Severino Vicente pelas leituras e sugestões
bibliográficas.
Não poderia esquecer as amigas que tanto me ajudaram, não só por
serem amigas, mas principalmente por serem profissionais da área
extremamente competentes: Érika Simone de Almeida Carlos Dias,
pela pesquisa no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, e pela
decana amizade e companheirismo, mesmo estando além-mar. À
Maria da Conceição Pires da Silva, pela correção deste trabalho, mas
principalmente pelos esporos para a sua conclusão.
Aos meus amigos de sala de aula, aos professores do mestrado, que
tanto contribuíram para a minha formação. Ao CNPq pela bolsa de
estudos. A Rogéria Feitosa, a Carmem Lúcia de Carvalho dos Santos,
a Luciane Costa Borba. Funcionárias competentes da UFPE e amigas
queridas. À Andrea Nunes F. de Barros por escaniar as imagens.
Para finalizar gostaria de deixar o meu agradecimento e o meu
respeito a uma pessoa que muito se esforçou para a elaboração e
conclusão deste trabalho. Eu mesma.
6
SumárioSumário
Introdução
Capítulo 1: A Inquisição ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 16
1.1 Histórico inquisitorial: períodos
Medieval e Moderno :::::::::::::::::::::::::::::::::: 20
1.2 Inquisição na Península Ibérica: Questões
políticas, econômicas e religiosas ::::::::::::: 30
Capítulo 2 Brasil Inquisitorial :::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 47
2.1 A Inquisição chega ao Brasil :::::::::::::::::::::::::: 48
2.2 A Primeira Visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil 1593 ::::::::::::::::::::::::::::::: 55
2.3 As Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia ::::::::::::::::::::::::::::::::: 70
7
Capítulo 3 Uma “feiticeira” em Pernambuco :::::::::::::::: 83
3.1 Descrição do processo de Antonia Maria
3.1.1 Beja-Évora-Portugal/1713 :::::::::::::::::::::::: 85
3.1.2 Recife-Pernambuco-Brasil-Lisboa/1723 ::::: 89
3.2 Análise do processo de Antonia Maria :::::::::: 99
Considerações Finais ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 123
Bibliografia :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 127
Anexos :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: 135
8
IntroduçãoIntrodução
Ao longo dos tempos a mulher sempre foi a responsável pela
transmissão das tradições culturais da sociedade. Até bem pouco
tempo atrás, era responsabilidade exclusiva da mãe a educação dos
filhos e a passagem dos conceitos morais e religiosos que pertenciam à
comunidade.
Nas sociedades primitivas,
1
a mulher possuía uma posição de destaque;
ela era considerada um ser sagrado, porque [podia] dar vida e (...)
ajudar a fertilidade da terra e dos animais.
2
A mudança desse conceito do papel feminino é evidente no período
onde se inicia a caça aos grandes animais. A partir desse momento as
comunidades passaram a necessitar de mais alimento para abastecer a
população e de mais espaço territorial para ocupar. Iniciaram-se as
1
Entendemos por sociedade primitiva as comunidades que antecederam o período neolítico e que
sobreviviam da coleta de frutos e da caça aos pequenos animais.
2
MURARO, Rose Marie in KRAMER Heinrich e SPRENGER, James. Malleus Maleficarum O Martelo
das Feiticeiras. Rio de Janeiro, 1993, Editora Rosa dos Tempos, p. 05.
9
guerras, momento em que a força física masculina tornou-se evidente e
dominante.
Com a sedentarização dos grupos nômades coletores e caçadores de
alimentos, as sociedades se tornaram patriarcais. A mulher passou a
exercer um papel doméstico, mas ainda sendo respeitado seu ofício
dentro da máquina funcional dessas sociedades, o de transmissora dos
padrões culturais da comunidade.
O medo do desconhecido, do não acessível e do poder que algumas
mulheres possuíam em manipular ervas e rezas ou de gerar outro ser,
desenvolveu nos homens, nos médicos letrados e nas autoridades tanto
eclesiásticas quanto estatais, um sentimento que “justificou”, na Idade
Média, uma das maiores perseguições existente na História.
O medo e o receio do mistério que envolvia as rezas e os nascimentos,
associado ao delírio e a intolerância, proporcionaram uma histeria
coletiva que passou a conduzir essas perseguições.
Na Idade Moderna também essa perseguição se instituiu nos países
europeus, principalmente da Península Ibérica. Segundo Anita
Novinsky dezenas de mulheres foram perseguidas e torturadas pelos
Tribunais da Santa Inquisição nesse período da história, e mortas nos
Autos de Fé.
3
Além das mulheres, judeus, cristãos novos e também
muçulmanos, foram perseguidos, presos, torturados, condenados e seus
bens foram confiscados para o Estado e a Igreja.
Quem conseguiu escapar das “garras” da Inquisição se refugiou em
terras distantes da perseguição; o Brasil pertenceu à “rota” dos
imigrantes-fugitivos. Inúmeros refugiados migraram para a colônia
como alternativa de vida tranqüila. Contudo, os domínios
inquisitoriais aqui também aportaram e essas populações se viram
cercadas por suspeitas, intrigas e delações. Viram-se presas e
condenadas, tiveram seus bens confiscados e ficaram marcados por
gerações.
Pernambuco se inseriu como uma alternativa a esses grupos; por
questões particulares de sua povoação e colonização, a intolerância a
esses grupos se deu de forma amena. Além desses fatores, houve uma
maior permissividade com relação às práticas e crenças que diferiam
da difundida pela Igreja Católica Romana.
3
Festa realizada em praça pública durante todo o dia com uma série de atividades religiosas, entre elas a
missa e a procissão, onde era lido o veredicto dos vários processos e os condenados a morte pelos Tribunais
da Santa Inquisição eram executados no encerramento destas atividades. Detalharemos essas festas no
capítulo 1.
O presente trabalho tem como proposta analisar está sociedade na
primeira metade do século XVIII tendo como referência a atuação da
Inquisição em território pernambucano no que diz respeito a
perseguição às práticas heréticas de “feiticeiras”.
Contudo, para se estudar as práticas mágicas desses grupos no período
moderno é necessário que entendamos como a inquisição chegou até
eles. Nessa época da história a Igreja Romana estava mais preocupada
nos bens que pudessem ser confiscados do que nessas artes
propriamente ditas; o Estado também compactuava com esse
pensamento e principalmente com essa ação.
A entrada das práticas de feitiçarias foi apenas um “fio” inserido na
“rede” de intrigas, denúncias e confissões. O que interessava às
autoridades tanto seculares quanto regulares (Igreja e Estado) eram os
cristãos novos, que na sua maioria eram proprietários de riquezas.
A palavra “bruxa” e “feiticeira” apesar de hoje terem se tornado
sinônimo, possuíam significados diferentes. Os bruxos possuíam
apenas certas capacidades ocultas (poderes), que transporta
hereditariamente, é causador de efeitos maléficos sem (...) ter disso
consciência [já os feiticeiros] pratica igualmente malefícios mas para
o fazer tem que executar ritos, recitar fórmulas, ou ministrar porções.
4
Dessa forma, as bruxas eram mulheres que haviam herdado das mães
suas habilidades e as usava com fins de praticar maldades; as
feiticeiras também eram do “mal” só que necessitavam utilizar alguns
meios para realizar suas artes. Dentro desse contexto de práticas
heréticas se inseriam os curandeiros, que praticavam o bem
manipulando ervas e rezas na realização dos seus trabalhos, segundo
Paiva, eles praticavam a magia com finalidades benéficas e à
semelhança do “feiticeiro”, para o fazer tem que executar certas
operações ou aplicar “medicina”.
5
O período colonial foi selecionado por sentirmos necessidade de
compreender a atuação inquisitorial em Pernambuco, nesse momento
histórico, no que diz respeito às práticas heréticas desses grupos, já
que no final desse período houve um “relaxamento” das autoridades
eclesiásticas às artes mágicas praticadas pelas populações locais e que
antes eram reprimidas e condenadas.
4
PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de
Coimbra (1650-1740). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1992, p. 25.
5
PAIVA. Idem.
Assim nos esclarece Carlos André Cavalcante em sua dissertação de
mestrado intitulada “A Reconstrução da Intolerância: o Regimento de
1774 e a Reforma do Santo Ofício”. Ele nos diz que:
no final do séc. XVIII e início do XIX os acusados de
práticas mágicas (...) foram perdoados. Os
inquisidores alegavam que eles eram pessoas humildes
e ignorantes por acreditarem em certas superstições
atribuídas na época à práticas mágicas que
protegeriam ou ajudariam eles e os seus.
6
Também será analisada as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, promulgadas em 1707 e organizadas pelos diocesanos com o
intuito de ditar as regras para a sociedade brasileira nesse período.
Essas leis representaram o primeiro e o mais completo conjunto de
normas jurídico- religiosas que, apesar de serem inspiradas em outros
documentos diocesanos, foram adaptados à realidade da colônia
portuguesa na América e são fontes essenciais para compreendermos o
comportamento religioso e social da época estudada.
6
CAVALCANTE, Carlos André Macedo. A Reconstrução da Intolerância: o Regimento de 1774 e a
Reforma do Santo Ofício. P. 61 e 62.
Esta dissertação de mestrado abordará, no primeiro capítulo, o
contexto histórico da instituição da Inquisição nos períodos Medieval
e Moderno, relacionando as diferenças existentes em um e outro
momento. Como a perseguição se posicionou nessas duas realidades
distintas da História Ocidental considerando as particularidades
religiosas, políticas e econômicas de cada época, principalmente na
Península Ibérica.
No segundo capítulo examinaremos como essa perseguição chegou e
foi instituída na Colônia brasileira e de que forma ela se adaptou à
diferente realidade de sua cultura de origem. Versaremos sobre os
porquês da primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil, e porque
Pernambuco se inseriu neste roteiro. Analisaremos como se encontrava
a Capitania no que se refere às práticas religiosas e ao seguimento das
regras defendidas pela Igreja Católica Apostólica Romana. Teremos,
entre outras fontes, as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, de 1707.
No terceiro e último capítulo discutiremos a sociedade pernambucana
tendo como ponto de análise a Inquisição na colônia e as “práticas
mágicas” que povoaram e amedrontaram a Capitania e os dirigentes
religiosos, observando o significado dessas artes e tentando
compreender as causas do envolvimento da população de Pernambuco
na aceitação desses ritos considerados heresias.
Através do estudo dessas práticas tentaremos demonstrar que camadas
da sociedade se envolviam e utilizavam estes artifícios. Que grupos
recorriam ao emprego de rezas e simpatias para resolverem
divergências sociais, problemas econômicos e conquistar ou até
mesmo se livrar de homens e situações indesejadas, além de se
servirem desses mecanismos para prejudicar algum desafeto.
Também levantaremos que práticas eram consideradas como sendo
“mágicas”, qual o ritual que envolvia a realização delas e se o
resultado obtido era satisfatório, ou seja, se o efeito desejado era
alcançado.
Capítulo 1
A InquisiçãoA Inquisição
1.1 Histórico
inquisitorial: Períodos
Medieval e Moderno
1.2 Inquisição na
Península Ibérica: questões
econômicas, políticas e
religiosas
17
A perseguição religiosa não é uma novidade dos tempos modernos.
Desde a Antiguidade grupos religiosos são atormentados por
colocarem em risco a unidade e o funcionamento político e econômico
dos seus reinos; assim ocorreu com os primeiros cristãos em Roma,
quando muitos foram executados pelos imperadores romanos
justamente por pregarem uma nova ordem social que diferia da
existente até então.
A partir da conversão do Imperador Constantino, em 313, e da religião
cristã ter se tornado a religião oficial a partir de 380, os imperadores
cristãos que se seguiram passaram a punir com rigor o paganismo e as
heresias
1
. Segundo Novinsky, esse conceito de herege surgiu a partir
do momento em que a Igreja Romana, no final do séc. XIII passou a
receber críticas contra os seus dogmas, esses críticos foram chamados
de hereges.
2
1
GONZAGA, João Bernardino Garcia. A inquisição em seu mundo. São Paulo, Editora Saraiva, 1993, p.
93.
2
NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982. “A palavra herege
origina-se do grego hairesis e do latim haeresis e significa doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja
em matéria de fé. Em grego, hairetikis significa ‘o que escolhe’”. p. 10-11.
18
No período Medieval, os cristãos já não mais eram perseguidos, agora
assumiam o papel de perseguidores. Sabe- se que tanto a Igreja
Católica como outros grupos sociais acossaram, torturaram e
executaram pessoas que não se adequaram ao padrão sócio- cultural
estabelecido pelos grupos dominantes.
Essas perseguições se deram a partir do momento em que os interesses
da Igreja foram postos em “xeque” e as várias populações passaram a
não aceitar a “verdade absoluta” da Igreja e se rebelaram assumindo
posturas e defendendo valores que colocavam em risco a unidade da
Igreja e o seu poder.
Já a perseguição por parte do que hoje chamamos de Estado,
3
ocorreu
sempre que este viu seus interesses prejudicados. Dessa forma se deu
com os cristãos em Roma, na Antiguidade, e também no período
moderno contra os cristãos- novos na Europa, pois havia a necessidade
de acumular capitais para consolidar a centralização política e a
modernização necessária para o desenvolvimento do Estado como
Nação. Alguns Estados se encontravam falidos e sem perspectiva de
3
Organismo político administrativo que, como nação soberana ou divisão territorial, ocupa um território
determinado, é dirigido por governo próprio e se constitui pessoa jurídica de direito público,
internacionalmente reconhecida. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua
Portuguesa, Editora Nova Fronteira, 1986, p. 714.
19
concentrar forças e riquezas para este propósito. Neste contexto, entra
a Igreja como cúmplice e colaboradora dos monarcas na perseguição
aos infiéis cristãos.
Dentre os perseguidos da Europa se encontravam comerciantes e
camponeses, além de memb ros do próprio clero como Giordano Bruno
que, de certa forma, passaram a questionar os valores e os dogmas da
própria Igreja. Todavia, judeus e cristãos novos que habitavam a
Península Ibérica, detentores de riquezas e influências, foram os
grupos sociais que mais sofreram com a perseguição.
Veremos, neste capítulo, como se deu a inquisição no período
medieval e moderno e a instalação dela na Península Ibérica.
20
1.11.1 Histórico Inquisitorial:Histórico Inquisitorial:
Períodos Medieval e ModernoPeríodos Medieval e Moderno
A época medieval, até bem pouco tempo atrás, era considerada pelos
pesquisadores como um momento da história da humanidade Ocidental
em que as artes e as ciências praticamente não se desenvolveram e
onde o conhecimento e o saber foram sufocados por religiosidades e
superstições.
Apesar dos recentes estudos sobre o período chegarem a algumas
conclusões que desmistificam essa realidade, esse imaginário medieval
não é de todo falso.
No início da Idade Média, as populações do imenso Império Romano
migraram em virtude das diversas invasões dos povos bárbaros -
para o interior e se refugiaram nas propriedades rurais dos senhores
21
feudais. A partir do século IX, houve a revolução artística carolíngia
4
e um reflorescimento das letras e das artes. Várias escolas foram
fundadas e com elas se desenvolveram algumas áreas como as artes e
as ciências. Foi durante esse período que a transmissão do
conhecimento passou a se dar através de uma instituição, e houve um
desenvolvimento das ciências, principalmente a médica que,
interessada no corpo humano, nos remédios e chás, associou- se à
Igreja Católica Cristã para se contrapor à medicina popular que era
praticada nas comunidades medievais e principalmente pelas mulheres.
Segundo Michelet, a escola da feiticeira e do pastor, situada no campo
e com suas experiências que eram consideradas sacrilégios (utilizavam
corpos e manuseavam venenos) “incentivou” a escola científica,
localizada nas Igrejas, a estudar e a se desenvolver para poder
eliminar a concorrente. Tudo teria ficado com a feiticeira; ter-se-ia
dado às costas ao médico para sempre. Foi preciso que a Igreja
tolerasse e permitisse esses crimes
5
para que essa universidade
científica aprendesse com a feiticeira e com o pastor.
6
4
Esta revolução artística se deu no governo de Carlos Magno, coroado imperador do Império Franco (ou
novo Império Romano do Ocidente) no natal de 800 pelo Papa Leão III.
5
MICHELET, Jules. A Feiticeira: 500 anos de transformação na figura da mulher. Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 1992, p. 37.
6
MICHELET. Idem
22
Assim, a partir do século XIV, eram condenadas à morte as mulheres
que ousassem tratar sem ter estudado
7
, pois a arte de curar cabia aos
médicos (...) que haviam para isso freqüentado cursos.
8
Apesar das proibições, as “heresias” de praticar a medicina popular -
utilizando plantas e rezas nos tratamentos, eram pregadas com denodo
nos campos, transmitidas de aldeia em aldeia
9
para uma população não
letrada e mística, que vivia afastada dos centros urbanos e dos
médicos cientistas e que acreditava em fadas, duendes, porções
mágicas, bruxas, simpatias, etc, dos diversos povos que habitavam as
florestas e os campos inquietando, aos poucos, a Igreja e o Estado.
Alguns desses grupos, como os cátaros por exemplo, investiram contra
as autoridades eclesiásticas e as verdades de seus ensinamentos.
Contrapondo- se ao Cristianismo, sua doutrina consistia na crença de
que Jesus era mais um anjo e que seu sofrimento e morte, pregados
pela Igreja Católica como sendo algo verdadeiro e concreto,
representavam apenas uma ilusão.
10
Também defendiam que Deus,
infinitamente bom e perfeito, não podia ser o criador de um mundo
7
MICHELET. Op. Cit. p. 38.
8
GONZAGA. Op. Cit. p. 55.
9
GONZAGA. Op. Cit. p. 94.
10
FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo, Editora Perspectiva, 1976, p. 41.
23
mau e corruptível. Portanto, o mundo da matéria seria a obra de um
(...) deus do mal.
11
À Igreja Cristã restou a responsabilidade de resgatar os vários hereges
e “fracos de espírito” da influência maléfica e do fogo do inferno, sob
o argumento de que nenhuma outra religião poderia salvar as
populações das tentações do mal e conduzi- las ao “Céu”.
Os vários reinos que se formaram ou se converteram ao cristianismo
(necessitados de se firmarem como instituição detentora da
organização das comunidades aldeãs bem como da felicidade material
e terrena) viram- se impossibilitados de colocar em prática sua política
em virtude da resistência de seus povos em se submeterem a tais
governantes. A alternativa encontrada foi a associação com a Igreja
Cristã induzindo seus povos a se converterem a uma religião que, além
de impor regras e limites tão necessários a esses objetivos, os
conduziria à “felicidade suprema”.
A religião transformou- se numa doutrina educativa, (pois) constitui
um poderoso instrumento de paz social e de freio às más paixões
11
FALBEL. Op. Cit. p. 52.
24
(...).
12
Contudo, a não cessão às pressões “obrigou” essas duas
instituições, associadas ainda à ciência médica, a se unirem e se
organizarem contra esses infiéis, considerados leigos e contestadores.
Conforme W. Keller essas populações que se recusavam a submeter-se
às regras e leis desses novos reinos e que, portanto, foram perseguidos
pela Inquisição Medieval, não se encontravam os judeus. Estes, ao
contrário, eram tidos como sábios sendo esta sabedoria considerada
base importantíssima [para] a vida intelectual,
13
eles eram os
herdeiros da ciência árabe.
14
Esses homens se destacaram na
sociedade ibérica e ocuparam lugar de destaque junto aos Reis
cultivando a Astronomia e a Astrologia (...) eram os médicos da corte
e (...) do país.
15
Por outro lado, a mulher como detentora da transmissão da
religiosidade e da conduta moral e ética da comunidade, foi umas das
principais perseguidas nos seus atos, até então, rotineiros; a elas cabia
debelar doenças com rezas e benzeduras, pois conforme a crença do
período, a mulher estaria mais próxima da natureza e mais bem
12
GONZAGA. Op. Cit. p. 82.
13
KELLER, Wener. História del pueblo judio, Barcelona, 1987 apud GONZAGA. Op. Cit. p. 148.
14
SARAIVA, Antonio José. Inquisição e cristãos novos , Portugal, Editora Inova, 1969, p. 31.
15
SARAIVA. Idem.
25
informada de seus segredos (...) [com] poder não só de profetizar, mas
também de curar ou de prejudicar por meio de misteriosas receitas.
16
A Igreja e os seus associados desenvolvem uma campanha de
difamação do comportamento e dos valores repassados, de geração a
geração, pelo sexo feminino. Segundo Jean Delumeau:
da idade da pedra, que nos deixou muito mais
representações femininas do que masculinas, até a
época romântica a mulher foi, de uma certa maneira,
exaltada. De início deusa da fertilidade, ‘mãe de seios
fiéis’, e imagem da natureza inesgotável, torna-se com
Atenas a divina sabedoria, com a Virgem Maria o
canal de toda graça e o sorriso da bondade suprema.
17
Entretanto, com o período Medieval essa visão romântica da figura da
mulher foi modificada. O nascimento de uma filha passou a ser
considerado uma desgraça; as mulheres eram tidas como “bocas
inúteis” e apenas uma era considerada o bastante para a família. Por
trabalharem menos que os homens, tinham tempo suficiente para se
dedicarem a pensar e fazer maldades.
18
A mulher passa a ser uma
16
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800. uma cidade sitiada, São Paulo,
Companhia das Letras, 1989,. P. 311.
17
DELUMEAU, Op. Cit. p. 310.
18
DELUMEAU, Op. Cit, p. 320.
26
concorrente da Igreja na transmissão do conhecimento e dos valores da
sociedade e precisava, por isso, ser eliminada.
A mulher foi criada, segundo santo Tomás de Aquino, mais imperfeita
que o homem, pois o corpo [masculino] reflete a alma, o que não é o
caso da mulher. O homem é (...) imagem de Deus, mas não a mulher
(...) cujo corpo constitui um obstáculo (...),
19
assim, ela teria que se
submeter ao homem, pois seria inferior.
20
Para justificar uma maior incidência da mulher em compactuar com as
forças maléficas que o homem, Brás Luís de Abreu, médico do século
XVIII, publicou em 1726 um Tratado onde afirmou que
as mulheres são <<ligeiras>> e caiem mais
facilmente em enganos, porque são curiosas,
<<amigas da novidade>> e tudo quererem saber, ou
para satisfazerem os <<seus segredos e apetites>>
ou, finalmente, para enganarem, pois as mulheres são
os <<grilhões do mundo>>, isto é, a fonte do
pecado.
21
19
DELUMEAU, Op. Cit, p. 317
20
DELUMEAU. Idem.
21
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas” - 1600-1774. Lisboa,
Notícias Editorial, 1997, p. 37.
27
Essa visão do século XVIII é fruto de anos de destruição e
reconstrução da imagem da mulher diante das suas atribuições. Assim,
após toda essa distorção das funções e da importância do papel
feminino na transmissão dos valores, crenças e crendices da
comunidade, coube a ela esconder e omitir suas habilidades na
manipulação das ervas, das rezas e do poder da benzedura. Mesmo
assim, ela foi perseguida e acusada de fazer maldade tendo que
responder pela morte de recém nascidos, pela impotência sexual dos
homens e pela esterilidade das mulheres, pela morte de animais e pelo
fracasso das plantações, entre outras acusações.
A curandeira se transformou em feiticeira; a parteira, em sócia do
diabo roubando as almas dos inocentes pagãos; a benzedeira, em má.
A vocação e a habilidade que até então eram consideradas dádivas dos
Céus, “as mãos da divindade operando através das mulheres”, agora
eram castigos. As mulheres que as possuíam eram tidas como
aprendizes e amantes do Diabo, bruxas e feiticeiras em favor do mal.
As que eram acusadas desse crime de heresia eram levadas aos Santos
Tribunais Eclesiásticos da Inquisição e torturadas psicologicamente e
fisicamente; tendo suas vidas e sua intimidade sexual exposta ao
28
público. Nas torturas
22
para a obtenção da confissão, as mulheres eram
abusadas sexualmente com a justificativa de procurar a marca invisível
do diabo. Isso consistia em inserir objetos pontiagudos em todos os
locais; a vagina era minuciosamente explorada em busca de amuletos
que julgavam [os torturadores inquisitoriais] ali escondidos.
23
As famílias das acusadas e condenadas eram sentenciadas a se
afastarem do convívio das outras e ainda tinham que conviver com a
desconfiança, a vigilância e a discriminação de todos os outros
membros da comunidade. A sentença condenatória da maioria das que,
sob tortura, declaravam- se culpadas das acusações era a morte nas
fogueiras dos autos de fé. Segundo Novinsky a coroa, nobreza e o
clero atestavam a legitimidade da violência.
24
Apesar do “período das trevas” e da superstição terem findado e de ter
se iniciado o período da razão, essas mesmas fogueiras queimaram
também centenas de mulheres na época Moderna. As acusações eram
as mesmas - heresia, prática de artes mágicas, bruxaria, feitiçaria,
22
Ruston Lemos Barros apresenta a lista de tipos de torturas aplicadas no período. BARROS, Ruston Lemos.
Estado, Inquisição Moderna e a Tortura in Saeculum Revista de História nº 2 João Pessoa, Editora
Universitária/UFPB, 1996, p. 141 e 142.
23
BARROS. Op Cit. p. 139.
24
NOVINSKY, Anita. Sistema de Poder e Repressão Religiosa: para uma interpretação do fenômeno
cristão novo no Brasil in Anais do Museu Paulista, tomo XXIX, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1979, p. 6.
29
curandeirismo todavia as razões e os objetivos dessa nova
perseguição eram diferentes.
Com a instituição da Inquisição também no período Moderno, tem-se
uma mudança do objeto da perseguição. Agora os judeus e os cristãos
novos (judeus convertidos à religião católica cristã pela força) são os
mais perseguidos, torturados, condenados ao degredo ou a serem
executados sob forma de decapitações e/ou através das fogueiras;
contudo, havia uma continuidade das estruturas da Inquisição
medieval,
25
bem como no recurso a todos os artifícios empregados
anteriormente.
Os principais países a utilizarem a Inquisição Religiosa como artifício
de repressão e subterfúgio para o confisco dos bens dos acusados e
condenados foram os países da Península Ibérica. Diferente do
restante da Europa, esses países - no período medieval - tinham como
característica a tolerância étnica; com a instituição do Tribunal do
Santo Ofício houve um abandono dessa tolerância e o desenvolvimento
de um espírito fanático e retrógrado da cristandade medieval.
26
25
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália séculos XV-XIX,
São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 35.
26
NOVINSKY, Anita. Uma fonte inédita para a História do Brasil in Revista de História nº 94, São Paulo,
Universidade de São Paulo, 1973, p. 563.
30
1.21.2 Inquisição na Península Ibérica: Inquisição na Península Ibérica:
questões políticas, econômicas e religiosasquestões políticas, econômicas e religiosas
A inquisição na Península Ibérica iniciou- se na Espanha em 1478 e
quase 60 anos depois migrou para Portugal. Durante a Idade Média
coabitavam quase que harmoniosamente cristãos, judeus e muçulmanos
no território onde hoje compreende a Espanha e Portugal. A partir do
século XV, com a centralização política e a demarcação territorial,
houve a necessidade de uma unidade religiosa sob a égide da Igreja
Católica Apostólica Romana.
Os judeus, possuidores de propriedades, bens, riquezas e influências
eram membros importantes da sociedade: médicos, professores,
astrônomos, conselheiros ... e também possuidores da ira de uma
parcela da população cristã que se encontrava insatisfeita com o poder
31
político, social e econômico cada vez maior dos judeus em detrimento
às posições dos cristãos.
Essa população cristã, revoltada com os filhos de Israel, associou- se à
Igreja Católica e desenvolveu uma campanha contrária a eles. Também
os judeus convertidos ao cristianismo, foram alvo dos cristãos já que
gozavam dos mesmos direitos graças à liberdade de ação que lhes
concedia o batismo, ocupavam as primeiras posições mais ainda do
que na época em que praticavam a antiga religião,
27
sendo acusados
de, à surdina, praticarem os ritos da gente da nação. Em virtude dessa
suspeita, vários massacres a conversos foram promovidos por cristãos.
Nessas “guerras santas” nenhum judeu foi tocado; mas vários
convertidos foram executados.
A campanha contra os conversos na Península Ibérica deu origem aos
“estatutos de pureza de sangue”, que estabeleciam que nenhum
descendente de judeu ou mouro, até a sexta ou sétima geração, poderia
pertencer às corporações profissionais, cursar universidades, ingressar
nas ordens religiosas e militares ou ocupar qualquer posto oficial.
28
O
Estado e a Igreja endossaram e legitimaram a teoria da inferioridade
27
DELUMEAU. Op. Cit. p. 303
28
NOVINSKY. A Inquisição, Op. Cit. p. 28.
32
racial desses grupos com o objetivo de controlar as possibilidades de
competição e ascensão social
29
dos cristãos novos. Em 1449, a cidade
de Toledo e toda a área de sua jurisdição baseada no direito canônico
e no civil, foram as primeiras a considerar indignos de ocupar cargos
privados ou públicos
30
os judeus e seus descendentes.
Uma das razões para que se acredite que a Inquisição no Período
Moderno se deu por questões econômicas e políticas estão no fato de
que as corporações profissionais adotaram este estatuto antes da Igreja
Católica. Segundo Anita Novinsky esse fato demonstra que o problema
era mais social que religioso,
31
apesar dos estrangeiros serem
proibidos de fazer parte dessas corporações antes mesmo do
estabelecimento desse estatuto: e nenhum estrangeiro trabalhará no
dito ofício se não for aprendiz, ou homem admitido à cidadania do
dito lugar.
32
A partir de 1478, após a união dos reis católicos Fernando e Isabel, foi
instituído na Espanha um Tribunal da Santa Inquisição. A princípio a
Igreja Romana se opôs a sua instituição mas após um acordo político
29
NOVINSKY, Sistema de poder e repressão religiosa, Op. Cit. p. 7.
30
DELUMEAU, Op. Cit p. 306.
31
NOVINSKY. A Inquisição, Op. Cit. p. 28.
32
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1972, p. 65.
33
com os reis acabou por concordar. O governo passou a se sustentar
também com o confisco das riquezas dos judeus e dos conversos.
A instituição de um Tribunal Inquisitorial em território espanhol
significou, segundo Bethencourt, uma ruptura com uma tradição
medieval de só a igreja nomear os clérigos inquisidores: pela primeira
vez, assistia-se ao estabelecimento de uma ligação formal entre a
jurisdição eclesiástica e a jurisdição civil,
33
pois os reis católicos
conseguiram que o Papa permitisse- lhes que nomeassem os
inquisidores. Esse consentimento se deu a partir da argumentação dos
reis espanhóis de que o desenvolvimento da heresia (dos judeus
conversos) se deu com a tolerância dos bispos
34
nomeados pela Igreja.
Entre 1480
35
-1487, setecentas pessoas foram queimadas só em Sevilha,
enquanto que em Toledo foram duzentas as condenações à morte no
espaço de quatro anos.
36
Os protestos contra a violência e as
arbitrariedades dos inquisidores foram apresentados aos reis espanhóis
e ao Papa que nada fizeram para resolver o problema. Bethencourt
esclarece que três argumentos foram apresentados pelos opositores do
33
BETHENCOURT. Op. Cit. p.18.
34
BETHENCOURT. Ibide. p.17.
35
Ano da nomeação de dois inquisidores pelos reis católicos. Os dominicanos frei Juan de San Martin
(bacharel em teologia) e frei Miguel de Morillo (mestre em teologia). BETHENCOURT. Ibide. p. 18.
36
DELUMEAU. Op. Cit. p. 302.
34
Santo Ofício: o caráter arbitrário do tribunal, o segredo do processo
e a injustiça do confisco dos bens, que excluía da herança os filhos
inocentes, reduzindo à miséria as famílias dos condenados.
37
Com todas essas perseguições, confiscos e mortes por parte do
Governo e da Igreja na Espanha, muitos da “gente da nação”, cristãos-
novos, muçulmanos, entre outros, migraram para muitos países da
Europa, inclusive para Portugal, onde a inquisição ainda não havia
iniciado seus trabalhos.
Durante 58 anos esses povos puderam conviver quase que
tranqüilamente em terras lusitanas. Entretanto em 1536, após uma
longa negociação que durou 30 anos
38
entre o Estado português e
Roma sobre a divisão dos bens dos condenados, foi instituído o
Tribunal do Santo Ofício também em Portugal, tendo um funcionando
em Lisboa, que era responsável pelas colônias do Brasil e Angola, um
em Évora e o outro em Coimbra.
39
Cada tribunal desses possuía
organização própria.
40
Para inquisidores- gerais foram nomeados os
37
BETHENCOURT. Op. Cit. p. 20.
38
D. João III utilizou manobras políticas para conseguir a autorização definitiva de Roma que lhe concedia
centralizar o poder político e religioso nas mãos da coroa. NOVINSKY. O Tribunal da Inquisição em
Portugal in Revista da Universidade de São Paulo nº 5. 1987, p. 91.
39
Também foram instituídos Tribunais em Lamego, Tomar e Porto, contudo foram abolidos por causa de
abusos e corrupção na administração. NOVINSKY. A Inquisição, Op. Cit. p. 36.
40
MARQUES, A. H. de Oliveira. Breve História de Portugal. Lisboa, Editorial Presença, 1996, p. 268.
35
bispos de Ceuta, o de Coimbra e o de Lamego
41
. A autorização do
funcionamento do Tribunal da Santa Inquisição em Portugal foi
resultado de um jogo de interesses da Igreja e do Estado.
42
Segundo Oliveira Marques a inquisição fora estabelecida em Portugal
sem razões que lhe justificassem a existência. Afirma ainda que os reis
D. Manoel e D. João III pretendiam copiar o modelo de Espanha e
conseguirem uma nova arma de centralização régia.
43
D. João III, rei de Portugal, conseguiu também a autorização do Papa
para que pudessem funcionar sem as restrições e interferências da
Igreja.
44
No Arquivo Histórico Nacional, de Madri, encontra- se uma
carta de sua irmã, a Imperatriz Isabel, datada de 04 de setembro de
1536, em que ela o aconselha a não publicar a bula, pois continha
restrições à atividade inquisitória.
45
Assim, os Tribunais de Portugal, após negociarem com Roma,
passaram a possuir absolutos poderes contra os judeus, cristãos novos,
41
BETHENCOURT. Op. Cit. p. 24.
42
NOVINSKY. O tribunal da inquisição em Portugal, Op. Cit. p. 91.
43
MARQUES. Op. Cit. p. 267.
44
NOVINSKY. A Inquisição, Op. Cit. p. 35.
45
AHN, Inq., livro 1254, fl.14 r-v, e livro 1276, fls. 47v -48r. in BETHENCOURT. Op. Cit. p. 417.
36
muçulmanos e contra todos aqueles que praticassem heresias contra a
fé e a moral cristã. Conforme Novinsky:
O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, em
Portugal, foi introduzido exclusivamente para
fiscalizar e punir os descendentes de judeus que
haviam sido convertidos à força ao catolicismo, e sob
suspeita de praticar a religião judaica. Foi gradativa
a ampliação de seus objetivos até abarcar diversos
tipos de comportamento e crenças. Às heresias em
matéria de fé juntaram-se feitiçarias, bruxarias,
sodomia, bigamia, blasfêmias, proposições, desacatos
e problemas diversos de sexualidade.
46
Ainda segundo aquela autora, a inquisição lusitana ultrapassou em
ferocidade e violência a Inquisição espanhola,
47
embora não tenha
sido contínua. Em determinados períodos os acusados de heresia, na
sua maioria judeus e cristãos novos, eram presos, condenados,
torturados e executados, seus bens eram confiscados e sua família
degredada; em outros momentos eram concedidas condições de vida
sem perseguição, desde que se pagasse um tributo. Essa alternância de
comportamentos variava de acordo com o rei que assumia o poder.
46
NOVINSKY.O tribunal da Inquisição em Portugal. Op. Cit. p. 92.
47
NOVINSKY. A Inquisição. Op. Cit. p. 36.
37
Apesar da proteção de alguns Reis aos judeus contra os cristãos, ele, o
Rei, encarregava os judeus de funções odiosas, como a de cobrança de
impostos e direitos, colocando-os numa posição que tem analogias
com a do carrasco
48
pois por mais profundo que fosse a fé do povo
cristão no sacramento do batismo, um usurário, ou um arrecadador de
impostos, seria sempre considerado antipático, tanto antes quanto
depois da conversão.
49
Existiram muitos casos em que os judeus e muçulmanos foram
obrigados a se converterem ao cristianismo, mas também havia a
ameaça de terem seus bens confiscados e de serem expulsos do
território português.
Isso se dava, segundo Novinsky, por conta da necessidade do governo
lusitano do capital, principalmente judio, para sua manutenção. Os
judeus, sobretudo os cristãos novos, controlavam grande parte do
comércio, tanto interno quanto externo, tão importante para os
portugueses; eles formavam uma classe média de mercadores e
capitalistas.
50
Esse fato também contribuiu para a fúria da burguesia
48
SARAIVA. Op Cit. p. 36.
49
BAUER, A. História crítica de los judios apud CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial:
Portugal e Brasil-colônia. São Paulo, Editora Brasiliense, 1988, p.45.
50
MARQUES,. Op. Cit. p. 268
38
cristã velha, invejosa do seu predomínio.
51
Além desse grupo cristão
também as massas mais pobres viam neles os herdeiros dos odiados
usurários judeus.
52
Assim, em alguns momentos o Rei associou-se aos judeus e cristãos
novos e em outros, aos cristãos e à Igreja Católica (perseguindo e
confiscando os bens dos não cristãos).
Para Novinsky, uma das razões para que Portugal não se
desenvolvesse economicamente e tivesse realizado sua industrialização
tardiamente, comparando-se ao resto da Europa, deu- se por conta da
expulsão do capital judeu de seu território.
53
Os portugueses
investiram timidamente e não estavam acostumados a reinvestir de
novo, num ritmo acelerado (...) [e] do Estado não recebiam ajuda.
54
Com o fim da União Ibérica, em 1640, houve uma intensificação às
perseguições contra os cristãos novos; conseguiu-se arruinar bom
número de firmas e de homens de negócio.
55
Segundo Saraiva:
51
MARQUES. Idem.
52
MARQUES. Idem.
53
NOVINSKY. A Inquisição. Op. Cit. p 39.
54
MARQUES. Op. Cit.. p. 271.
55
MARQUES. Op. Cit. p. 271-272.
39
o Estado português do século XVI oferece
exteriormente uma aparência <<moderna>>, na
medida em que é uma grande empresa econômica, por
outro lado, ele assegura, no interior do País, a
persistência de uma sociedade arcaica, na medida em
que garante o domínio de uma classe tradicionalmente
dominante, cujo espírito está nos antípodas do
burguês.
56
Concordando com essa teoria, Raimundo Faoro afirma que o português
não pensou dentro dos moldes da realidade, permaneceu encarcerado
nas idéias medievais,
57
adaptando a política mercantilista moderna às
condutas medievais de moral, baseadas na religião cristã. Essa
realidade só foi modificada com a administração de Sebastião José de
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, a partir de 1750.
O Santo Tribunal Eclesiástico funcionava na seguinte forma: havia um
regimento interno, inspirado no Medieval e adaptado às exigências da
“modernidade”, onde continham as leis, os prazos e as ordens, e onde
estavam descritos os crimes contra a Fé e contra a Moral. Os primeiros
eram considerados mais sérios e diziam respeito ao judaísmo e as
criticas aos dogmas da Igreja Católica. Já os contra a Moral eram
56
SARAIVA. Op. Cit. p. 54.
57
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. São Paulo, Editora Globo, 1989. p. 61.
40
considerados menos graves e se referiam à bigamia, à sodomia, à
feitiçaria.
58
Todos os inquisidores gerais pertenciam à nobreza.
59
Diferentemente da Inquisição no período medieval, o crime de
feitiçaria já não mais era considerado grave, não sendo também os
condenados sentenciados com a pena de morte; na sua maioria eram
condenados ao degredo. A bula Cum ad nihil magis de estabelecimento
do tribunal em Portugal, fazia referências ao judaísmo dos cristãos
novos, ao luteranismo, ao islamismo, às proposições heréticas e aos
sortilégios.
A feitiçaria e a bigamia foram inseridas após os inquisidores gerais
publicarem um monitório, ou seja, uma advertência, onde
especificaram e ampliaram as cerimônias judaicas e islâmicas, as
heresias luteranas e os crimes de feitiçarias e bigamia. Segundo
Bethencourt talvez o único delito que não estava compreendido na
bula.
60
Tanto nos crimes contra a fé como nos contra a moral, os acusados
tinham suas casas lacradas, seus bens confiscados, a família era
58
NOVINSK. A Inquisição. Op. Cit. p. 56-58.
59
MARQUES. Op. Cit. p. 265.
60
BETHENCOURT. Op. Cit. p. 25.
41
considerada diminuta, ou seja, de menor valor que as outras e por isso
não poderiam permanecer em convívio com as famílias cristãs. Caso o
acusado não confessasse seu crime era levado à câmara da tortura.
Existia uma grande máquina burocrática que envolvia milhares de
pessoas ao redor da Inquisição e que eram pagas por ela; toda cidade
importante tinha os seus comissários com autoridade para prender,
ouvir acusações, interrogar, etc.
61
Em todos os lugares existiam os
familiares que observavam as pessoas e as denunciavam ao Tribunal
caso suspeitasse de uma má conduta. Eles ajudavam a inquisição (...)
espiando, prendendo, denunciando e informando.
62
Ser familiar representava ascensão social, pois se adquiria privilégios
importantes como não pagar impostos.
63
Segundo Marques, nos portos
de mar actuavam ainda os chamados visitadores das naus, com o
encargo de inspeccionar todos os navios entrados e de confiscar
materiais havidos por heréticos.
64
Para ser um familiar era necessário apresentar três requisitos básicos:
61
MARQUES. Op. Cit. p. 269.
62
MARQUES. Idem.
63
MARQUES. Idem.
64
MARQUES. Op. Cit. p.268.
42
primeiro, demonstrar “pureza ou limpeza de sangue”
(...) [ou seja] devia estar isento de mácula na
ascendência, (...) [segundo] não podia ter contra si
rumor de conduta moral desviante (...), amantes, (...) e
por último [que] tivesse posses, (...) para que resistisse
à tentação de seqüestrar os bens dos suspeitos em
proveito próprio.
65
Eles possuíam seus deveres e privilégios especificados nos regimentos
inquisitoriais;
66
e também tinham como função seqüestrar os bens dos
suspeitos e efetuar diligências (...), haviam ainda familiares que
avaliavam a resistência dos torturados.
67
A instituição de um processo inquisitorial exigia alguns procedimentos
legais que, teoricamente, deveriam ser seguidos. Ao receber a
denúncia de alguma heresia, os inquisidores em Lisboa
68
encaminhavam que se fizesse uma investigação (diligência) para que
se apurasse a denúncia.
65
VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), Objetiva, Rio de Janeiro, 2000, p. 219.
66
VAINFAS. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 218.
67
VAINFAS. Idem.
68
Estamos considerando que o denunciado seja do Brasil.
43
Esses depoimentos eram encaminhados novamente a Lisboa e havendo
a necessidade se instituiria um tribunal para que se processasse o(a)
acusado(a). Preso em Lisboa, ele(a) era interrogado pelo inquisidor e
seu depoimento era registrado por um escrivão e ao ato deveriam estar
presentes, como garantia de seriedade, duas pessoas de confiança e
imparciais, que a tudo assistiam sob promessa de manter segredo.
69
O interrogado permanecia preso o tempo necessário para que
confessasse suas culpas e denunciasse outras pessoas. Caso essa
realidade não se concretizasse, ele era levado a um local onde seria
torturado; dentre as mais utilizadas pela Inquisição em nome da
verdade e da fé, estavam o potro e a polé. O primeiro consistia em
uma cama com ripas onde o acusado era deitado e prensado contra a
cama. A polé era a suspensão do suspeito pelos pés ou mãos, a uma
determinada altura, de onde era solto sem bater ao chão. Muitos saíam
dessa sessão de tortura sem mais poderem andar.
A condenação era determinada na sessão do Tribunal. Após serem
condenados ao degredo, os réus não eram mais torturados - para que os
ferimentos cicatrizassem - e assinavam um termo em que se
comprometiam a nunca relatarem o que passaram no período a qual
69
GONZAGA, Op. Cit. p. 121.
44
estiveram presos. Quando a condenação era de morte o réu também
ficava por alguns dias sem ser torturado, para que houvesse a
cicatrização dos ferimentos.
O Santo Ofício não decretava nem executava as condenações à morte.
Havia um julgamento simulado, pois o reino punia os crimes de
heresia e o condenado era imediatamente executado.
70
Um dos direitos dos condenados era o de escolher se gostaria de
morrer na Lei de Cristo ou na Lei de Moisés. Morrer na Lei de Cristo
significava ser morto por estrangulamento antes e ser jogado na
fogueira. Morrer na Lei de Moisés consistia em ser queimado vivo.
Havia também a morte simbólica pela qual os acusados que
conseguiam fugir ou se suicidar eram condenados à revelia e
executados em forma de bonecos que eram jogados nas fogueiras dos
Autos de Fé.
As sentenças eram lidas nesses autos, que eram mais ou menos
públicos, pois
havia os autos de fé que se realizavam de portas
adentro (...) destinados exclusivamente aos
70
MARQUES. Op. Cit. p. 270.
45
<<reconciliados>>, isto é, àqueles que eram
readmitidos no seio da Igreja e condenados a penas
que iam desde penitencias espirituais até à prisão e
desterro. Havia (...) os que se realizavam na praça
pública, em que figuravam não só reconciliados, mas
também <<relaxados>>, isto é, aqueles que eram
entregues à Justiça secular para a execução da pena
de morte.
71
Os autos realizados em praças eram grandes festas, tratava-se de uma
apresentação pública da abjuração, da reconciliação e do castigo.
72
Nessas cerimônias coletivas estavam presentes as mais diversas
autoridades locais incluindo o Rei e a Família Real. Havia um grande
espetáculo que era lida a sentença dos condenados e as execuções dos
que iriam morrer queimados na fogueira. Segundo Marques, os autos
de fé entravam na categoria de espetáculos cuidadosamente
encenados, visando atrair, excitar e comover as massas além de toda a
publicidade para o evento
73
e os preparativos se iniciavam com várias
semanas de antecedência, mas o anúncio público fazia-se quinze dias
71
SARAIVA. Op. Cit. p 145.
72
BETHENCOURT, Op. Cit. p. 227.
73
MARQUES. Ibid.
46
antes, a tempo de construir o cadafalso e o anfiteatro, de
confeccionar os sambenitos.
74
Com a União Ibérica em 1580, o Tribunal do Santo Oficio foi
reforçado em Portugal e a perseguição foi intensificada nas colônias
portuguesas. Apesar da União dos países ibéricos terminar em 1640, as
atividades da Santa Inquisição lusitana estenderam-se, oficialmente,
até o dia 31 de março de 1821, quando foi abolida por decreto das
Cortes Portuguesas.
75
74
SARAIVA. Op. Cit. p. 149.
75
SILVA, Leonardo Dantas in MELLO, José Antonio Gonçalves de. Primeira Visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil: Denunciações e Confissões de Pernambuco. Recife, FUNDARPE, 1984.
Capítulo 2
Brasil Inquisitorial
2.1 A Inquisição
chega ao Brasil
2.2 Primeira
Visitação do
Santo Ofício às
partes do Brasil
2.3
Constituições
Primeira do
Arcebispado da
Bahia
Apenas tenho o nome
de esposa, porque o
mais he de escrava.
Reconheço que o
homem deve ser
cabeça mas não sei
que a mulher deva
ser os pés.
1
2.1 2.1 -- A Inquisição chegaA Inquisição chega
ao Brasilao Brasil
A perseguição religiosa na Península Ibérica proporcionou a fuga de
grandes levas de pessoas para outras localidades onde o Tribunal Santo
não tivesse instituído seus trabalhos. Assim, dentre esses lugares
muitos fugitivos se refugiaram na América.
1
NATIVIDADE, Sylvia. Conformaçam para os queixosos apud COATES, Timothy J.
Degredados e órfãs: colonização dirigida pela coroa no império português. 1550-1755.
p. 225.
No Brasil, a Inquisição chegou com a União Ibérica (1580) e se
intensificou a partir do governo dos Felipes.
2
Apesar do empenho de
algumas autoridades coloniais, não houve um Tribunal Santo em
território brasileiro, diferentemente de Goa, capital do império
português na Ásia, onde os portugueses assassinaram muitos hindus
ricos para apropriar-se dos seus bens.
3
Uma das razões para que a Inquisição só chegasse com a União Ibérica
está no fato de que a colonização efetiva do Brasil além de ter sido
iniciada tardiamente (1530), se comparada com a colonização
espanhola (1492), foi realizada e financiada também pelos judeus e
cristãos novos. Foram eles, os comerciantes e mercadores, que
investiram seus bens e se dispuseram a formar as primeiras Capitanias
no Brasil.
Dessa forma, a administração portuguesa se viu “impossibilitada” de
pôr em prática uma inquisição que prenderia e também confiscaria os
bens de um povo que estava investindo riquezas e mão-de- obra numa
2
NOVINSKY, Anita Waingort. Uma Fonte inédita para a História do Brasil in Revista de História,
Universidade de São Paulo, 1973. p. 565.
3
PAINE. European Colonie in LIMA, N. de Oliveira. Pernambuco: seu desenvolvimento histórico, Recife,
Coleção Pernambucana, Secretaria de Educação e Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, 1975. p. 18
terra desconhecida repleta de incertezas quanto ao sucesso comercial e
que não proporcionava o conforto da vida na metrópole.
Na América portuguesa, os acusados eram indiciados no Brasil e os
casos mais sérios levados para Lisboa onde eram novamente ouvidos.
Muitos presos eram torturados e a grande maioria condenada; ir para
Lisboa significava a tortura e a morte, principalmente para os acusados
de práticas judaizantes.
Em 1580, além de o Santo Ofício ter delegado poderes inquisitoriais ao
Bispo da Bahia para que enviasse os hereges a Lisboa, foram enviados
ao Brasil agentes inquisitoriais visitadores, comissários e familiares
para investigar e prender os suspeitos de heresias. Segundo
Novinsky, isso se deu porque já havia chegado aos ouvidos dos
inquisidores as infrações religiosas (...) [e] as notícias sobre as
riquezas dos colonos.
4
Também se observa que cristãos novos e cristãos velhos gozavam de
uma situação favorável para a integração na sociedade, pois
4
NOVINSKY. A inquisição. Op. Cit. p. 76.
necessitavam de colaboração (...) para sobreviverem às condições
geográficas e humanas tão adversas.
5
Esse grupo de cristãos novos constituía, no Brasil, uma classe de
burgueses ligados à terra e ao comércio nacional e internacional. Dessa
forma, eles adquiriram uma situação econômica importante. Eram
homens que tinham o controle de considerável parte de produção e do
capital.
6
Conseqüentemente, faziam parte da elite que administrava a
colônia.
Em 1593, a população de Pernambuco era de 7.000 moradores
brancos,
7
sendo que desse total 14% seriam cristãos novos, isto é, 910
pessoas.
8
Segundo Novinsky, o próprio D. Manoel, não sabendo o que
fazer com o Brasil arrendou-o a um grupo de mercadores cristãos
novos, que foram os primeiros a explorar o país economicamente.
9
Além desse fato, há na Biblioteca da Ajuda, em Portugal, documentos
que comprovam que em 1590 o Senado da Câmara de Olinda queixava-
se que a cidade já tinha gente suficiente e os degredados exilados para
5
NOVINSKY, Anita. Sistema de poder e repressão religiosa para uma interpretação o fenômeno cristão
novo no Brasil in Anais do Museu Paulista. Tomo XXIX, Universidade de São Paulo, 1979. p. 8.
6
NOVINSKY. Idem. p. 7.
7
O Barão do Rio Branco afirma ser de 8.000. MELLO. José Antonio Gonsalves de. Gente da Nação: cristão
novo e judeus em Pernambuco 1542-1654. Recife, Editora Massangana, 1990, p. 07.
8
MELLO. Idem.
9
NOVINSKY. Op. Cit. 1982. p. 75.
o Brasil deveriam ser mandados para as capitanias no sul ou para o
Paraíba.
10
Outro dado importante, e que justifica esse atraso na chegada da
Inquisição, diz respeito ao fato de no Brasil não terem sido
encontradas as riquezas que foram descobertas nas colônias
espanholas, diminuindo assim a necessidade de uma maior vigilância
por parte da metrópole portuguesa.
Isso propiciou aos judeus e cristãos novos viverem em terras
brasileiras sem que a Igreja e o Estado português os incomodassem.
Contudo, a Inquisição portuguesa nas terras do Brasil foi contínua e
alcançou o auge da perseguição inquisitorial na segunda metade do
século XVIII,
11
período da grande exploração aurífera nas Minas
Gerais.
12
Assim, na primeira metade desse século a colônia brasileira
[perdeu] parte significativa de sua (...) burguesia nacional,
13
como
também a vinda de pessoas para o Brasil foi controlada por Portugal
como forma de impedir que aventureiros aqui aportassem para explorar
as minas recém descobertas;
10
BA, 44-XIV-4, f. 194v. Carta do senado da Câmara de Olinda para a Coroa in COATES, Timothy J.
Degredados e órfãos: colonização dirigida pela Coroa no Império Português 1550-1755. Lisboa,
Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. p. 141.
11
NOVINSKY. Op. Cit. 1979. p. 08.
12
NOVINSKY. Op. Cit. 1982. p. 79.
13
NOVINSKY. Op. Cit. 1979. p. 9.
a partir de 1709, a Coroa ordenou que apenas
marinheiros, missionários, ou aqueles que tivessem
terra ou cargos no Brasil, poderiam emigrar para esse
território (...) todos deveriam partir do Porto ou de
Viana com os seus passaportes passados pela Relação
do Porto.
14
Além desses fatores, houve uma falta de organização eclesiástica no
Brasil nos primeiros anos da colonização. Durante muitos anos o
bispado da Bahia, criado em 1551, foi a única diocese responsável pela
vasta colônia portuguesa e somente no início do século XVIII teria a
Igreja Colonial suas próprias constituições,
15
em 1707.
Dessa forma, os clérigos responsáveis pela “tranqüilidade espiritual”
dos colonos não se encontravam nos mosteiros, templos religiosos ou
nos centros comerciais. Segundo Freire, a igreja que age na formação
brasileira (...) não é a catedral,
16
mas a capela do engenho.
14
PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de
Coimbra: 1650-1740. Coimbra, Livraria Minerva, 1992. p. 143.
15
VAINFAS, Ronaldo. Tropico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1997. p.15.
16
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. Rio de Janeiro, Record, 1998. p. 195.
Essa realidade se confirma quando em 1699 a metrópole portuguesa
escreve para o Bispo de Pernambuco autorizando que se facão as
igrejas nessessárias para o pasto espiritual das nossas ovelhas [pois
já se sabia m dos] dannos espirituais, e temporaes, que se seguem a
este estado.
17
17
Arquivo Histórico Ultramarino (a partir de agora AHU), Lisboa. Códice 257, folha 8v. 20/01/1699 in
Divisão de Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco (a partir de agora DPH-UFPE).
2.2 2.2 -- Primeira visitação do Santo OfícioPrimeira visitação do Santo Ofício
às Partes do Brasil às Partes do Brasil 1593 1593
Em 1591, chegou ao Brasil o padre Heitor Furtado de Mendonça,
18
enviado como inquisidor para investigar as práticas religiosas e a fé da
sociedade brasileira, iniciando a perseguição aos “infiéis às Leis de
Deus” com a sua chegada. Primeiramente dirigiu-se à Bahia, capital da
colônia desde 1549 e, portanto, o seu centro político e administrativo.
No dia 21 de setembro de 1593, chegou ao Recife partindo dois dias
depois para a vila de Olinda em um bergantim,
19
aportando no
Varadouro.
Em Olinda, o inquisidor era esperado pelas principais autoridades da
Capitania. Estavam presentes o Governador D. Felippe de Moura; o
18
Também havia estado em SãoTomé e Cabo Verde como inquisidor antes de chegar ao Brasil.
19
Bergantin: antiga embarcação à vela e remo, esguia e veloz.
vigário da Vara Eclesiástica, Diogo de Couto; o Ouvidor Geral do
Brasil, Gaspar de Figueiredo Homem; o Ouvidor da Capitania, Pedro
Homem de Castro; o Sargento- Mor do Estado, Pedro de Oliveira; o
representante da Câmara, Francisco de Barros, entre outras
autoridades, além de muitos moradores da vila. O Inquisidor iniciou
seus trabalhos trinta dias após sua chegada, permanecendo em terras
duartinas até o final de julho de 1595.
Pernambuco, apesar do pouco tempo de colonização, era considerada
uma rica Capitania, cuja prosperidade attrahia gente das outras
capitanias e seduzia colonos do reino, e até famillias nobres que
fugiam à miséria progressiva da metrópole.
20
Rodolpho Garcia, afirma que tanto os homens quanto as mulheres e
seus filhos vestiam- se de veludos, damascos e outras sedas, e que os
jesuítas os recriminavam afirmando que praticavam excessos, que a
vaidade era maior que a existente em Lisboa
21
. As casas eram de cal,
tijolo e telha
22
, ou seja, já tinham perdido a miserável apparencia das
primitivas palhoças defendidas por paliçadas e fossos.
23
Segundo José
20
LIMA, N. de Oliveira. Pernambuco: seu desenvolvimento histórico. Recife, Coleção Pernambucana,
Secretaria de Educação e Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, 1975. p. 18.
21
GARCIA, Rodolpho in MELLO, José Antonio Gonsalves de. Primeira Visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil: Denunciações e Confissões de Pernambuco. Recife, FUNDARPE, 1984. p. X.
22
GARCIA in MELLO Ibid. p. VIII.
23
LIMA. Pernambuco: seu desenvolvimento histórico. 1975. p. 31.
de Anchieta a população pernambucana em 1583 era de oito mil
brancos, dois mil índios mansos e dez mil escravos da Guiné e de
Angola
24
, contabilizando mais ou menos umas 20.000 (vinte mil)
pessoas.
O jesuíta Fernão Cardim, em 1584, afirmou que a Capitania de
Pernambuco possuía 60 engenhos e uma produção de açúcar de 200 mil
arrobas e que mais de 45 navios aportavam nos arrecifes
25
. Sobre esse
mesmo período, Oliveira Marques afirma que os pernambucanos
gastavam muito porque com facilidade ganhavam.
26
No Tratado
Descritivo do Brasil, de 1587, Gabriel Soares de Souza
27
escreveu
sobre Pernambuco:
É tão poderosa esta Capitania que há nela mais de
100 homens que tem 1000, até 5000 cruzados de
renda, e alguns até 8, 10 mil cruzados. Desta terra
saíram muitos homens ricos para estes reinos que
foram a ela muito pobres, com os quais entram cada
ano desta Capitania 40 e 50 navios carregados de
açúcar e pau-brasil, o qual é o mais fino que se acha
em toda costa;(...) E parece que será tão rica e
poderosa, de onde saem tantos provimentos para estes
reinos, que se devia ter mais em conta a fortificação
24
MELLO. Op. Cit. 1984, p. X.
25
SILVA, Leonardo Dantas in MELLO. 1984.
26
LIMA, Op. Cit. p. 32.
dela, e não consentir que esteja arriscada a um
corsário a saquear e destruir, o que se pode atalhar
com pouca despesa e menos trabalho.
28
Este relato mostra a relevância de Pernambuco para a coroa Ibérica e
nos faz compreender o porquê do Inquisidor ter também aportado nela.
Após ser instalado na vila de Olinda, o inquisidor Heitor Furtado de
Mendonça iniciou os trabalhos da mesa inquiridora, que era
responsável pelos residentes da Capitania de Pernambuco, de Itamaracá
e da Paraíba. No dia 24 de outubro de 1593, instituiu o Tempo da
Graça de trinta dias concedidos à vila de Olinda e às freguesias do
Salvador, de São Pedro Martyr, do Corpo Santo e de Nossa Senhora da
Várzea, cujas pessoas que soubessem de alguma heresia, algum crime
contra a fé católica ou contra a moral cristã deveriam denunciar.
A presença do inquisidor foi a primeira investida da Congregação do
Santo Ofício para fiscalizar o comportamento dos habitantes no início
da colonização.
29
Com o término desse período para tais localidades,
foi instituído novamente o Tempo da Graça, agora para outros lugares
27
Senhor de engenho da Bahia.
28
SILVA in MELLO. Op. Cit. 1984.
29
Idem.
e assim se seguiram os trabalhos durante os dois anos em que o
visitador inquisitorial, Padre Heitor Furtado de Mendonça, permaneceu
nessas terras.
Desta primeira visitação do Tribunal Eclesiástico do Santo Ofício, 271
casos foram registrados em Pernambuco.
30
Dentre as denúncias do
Tempo da Graça, tanto de Pernambuco quanto da Paraíba e de
Itamaracá, encontram-se os mais variados “pecados”, tais como o
homossexualismo feminino, blasfêmia e principalmente, as práticas
judaizantes de guardar o sábado e o de esvaziar os potes quando
ocorria o falecimento de alguém da casa. Nesta primeira visita já
foram encontrados alguns casos considerados de feitiçaria.
Um dos processos de feitiçaria encontrado nas Denunciações e
Confissões de Pernambuco é o de um licenciado chamado André
Magno d’Oliveira, presente na Mesa Inquiridora no dia 21 de
novembro de 1593. Ele se dizia cristão velho natural d’Oliveira do
bispado d’Elvas, de idade de 40 anos e viúvo. Segundo ele, uma
mulher que era vendedeira e mulata, chamada Brisida Lopes, era
feiticeira. Para justificar sua acusação, narrou que quando estava
30
174 eram reinóis, 21 eram ultramarinos, 59 eram brasileiros e 17 outros. MELLO, José Antonio Gonsalves.
Gente da Nação. p. 06.
preso, ela Brisida Lopes - compareceu à prisão e lhe fez algumas
previsões que, posteriormente, cumpriram- se. Relata ainda que a dita
“feiticeira” afirmou que uma amiga havia feito as feitiçarias, mas ele
acredita ter sido a própria Brisida Lopes quem as fez e, portanto, isso
o levou a denunciá- la ao Inquisidor Heitor Furtado de Mendonça.
31
Outro caso de feitiçaria denunciado nesta primeira visitação do Santo
Ofício é o de Isabel Antunes contra Anna Jacome, no dia 29 de outubro
de 1593. Isabel acusa Anna de ter embruxado sua filha recém nascida e
por conta disto a menina veio a falecer.
32
Uma das denúncias que nos chamou a atenção é o caso de Domingas
Jorge contra Felicia Tourinha, tomado no dia 28 de janeiro de 1594.
33
Domingas acusou Felicia de ser bruxa e de ter invocado o diabo para
lhe fazer perguntas e dele (o Diabo) mover uma tesoura em resposta às
perguntas de Felicia.
34
Com o término do Tempo da Graça das denúncias foi instituído o das
confissões, que funcionou segundo as mesmas regras; contudo, os que
31
MELLO. Op. Cit. 1984. p. 95.
32
MELLO. Ibid. 1984. p. 24.
33
Este relato se torna interessante por descrever uma prática até hoje realizada em reuniões de jovens
adolescentes, onde uma caneta ou um copo fazem o que fez a tesoura no caso de Felicia Tourinho.
34
MELLO. Ibid. 1984. p. 187.
se confessassem culpados por algum “crime” - de fé ou de moral, ao
contrário do que ocorria com as denúncias, seriam perdoados. Dentre
os mais comuns “pecados” confessados, se encontram os de relações
homossexuais entre homens e a blasfêmia - de afirmar que o estado de
casado era melhor que o do religioso - além de intrigas entre inimigos.
Em 1594, após um ano de iniciado os trabalhos inquisitoriais em
Pernambuco, o Inquisidor Geral e o Conselho do Santo Ofício de
Lisboa enviaram ao Inquisidor das terras brasileiras, o Padre Heitor
Furtado de Mendonça, uma correspondência em que eles diziam, entre
outras coisas, que tornamos a encomendar e encarregar muito que com
brevidade acabe a visitação e volte ao Reino.
35
Isto se deu por conta
do Padre ter sido considerado um leviano e um precipitado em sua
atuação tanto na Bahia quanto em Pernambuco. Alguns acusados
enviados para Lisboa, lá foram soltos por as culpas não serem
bastantes.
36
Durante os quatro anos de trabalhos no Brasil, o inquisidor encheu
centenas de páginas com denúncias e confissões. Cópias delas foram
35
BAIÃO, Antônio. Correspondência inédita do Inquisidor Geral e Conselho Geral do Santo Ofício para o
primeiro Visitador da Inquisição no Brasil, Brasília vol. I p 543-551 apud MELLO.Op. Cit. 1984.
36
MELLO. Idem. 1984.
feitas para a elaboração dos processos que formulou contra os
principais acusados, para os remeter presos ao Tribunal em Lisboa.
Boa parte dessas delações partia de membros da própria família:
irmãos que denunciavam irmãos, pais a filhos, tios a sobrinhos e vice-
versa, e também de amigos e vizinhos próximos. Isso se dava por conta
das torturas, físicas e psicológicas, que eram praticadas nos réus
presos, mas, principalmente, as torturas psicológicas a que eram
submetidas às pessoas que faziam parte da sociedade e freqüentavam
as missas, pois nelas havia os sermões do padre e a indução de não
pecarem omitindo hereges.
Apesar de algumas dessas acusações serem únicas e isoladas, ou seja,
partirem apenas de um denunciante, o Tribunal do Santo Ofício, em
Lisboa, aceitou- as em detrimento às declarações das testemunhas de
defesa, muitas figuras ilustres da sociedade ao qual pertencia o(a)
denunciado(a) como religiosos, senhoras “respeitáveis e respeitadas”,
prósperos negociantes e administradores que acusavam o(a)
denunciante de desequilíbrio mental, vingança, dentre outros motivos.
É o caso dos descendentes de Branca Dias e Diogo Fernandes, sendo
sua filha, Brites Fernandes, considerada mulher de pouco juízo
37
mas
que teve seu depoimento, no qual denunciou irmãs e sobrinhas, aceito
pelo Tribunal.
A atuação do Inquisidor em terras brasileiras foi considerada um abuso
de poder, pois o Brasil era tido como uma terra de degredo para os
penitenciados pelo Santo Ofício e nela exerciam cargos importantes,
38
além de asilo para os cristãos novos que podiam e conseguiam fugir
das perseguições na Europa.
39
Em 1595 partiu de Pernambuco, e do Brasil, o primeiro visitador do
Santo Oficio levando consigo inúmeros processos contra os colonos, e
deixou na capitania o “vírus” da delação. Após a sua saída inúmeras
pessoas foram denunciadas ao Tribunal da Santa Inquisição e muitas
foram levadas à Lisboa e condenadas as mais variadas sentenças.
Dentre essas pessoas, encontramos João Nunes, rico senhor de engenho
em Pernambuco, que foi acusado de práticas judaizantes e teve todos
os seus bens confiscados pela Inquisição.
40
37
MELLO. Op. Cit. 1990, p. 136.
38
LIMA. Op. Cit. p. 18.
39
MELLO. Op. Cit 1984, p. XX.
40
Seu processo se encontra, incompleto, na Divisão de Pesquisa Histórica da Universidade Federal de
Pernambuco.
Esse comportamento só abrandou quando, em fevereiro de 1630,
aportou a Pernambuco uma forte esquadra holandesa com o intuito de
invadir, conquistar e dominar Pernambuco, na época maior produtora
de açúcar. Iniciou- se um período da história em que Pernambuco,
juntamente com as terras compreendidas entre Sergipe e o Maranhão,
deixaram de ser colônia da católica Portugal e passaram a ser
administradas pelos protestantes holandeses.
Nesse período da nossa história houve um grande desenvolvimento
artístico e arquitetônico do Recife. Durante a administração do Conde
João Maurício de Nassau-Siegen, a cidade foi urbanizada e ruas foram
calçadas e saneadas, além das pontes que foram construídas para ligar
as ilhas. Cientistas analisaram a fauna e a flora brasileira, e médicos
estudaram as doenças tropicais bem como a propriedade das plantas;
pintores retrataram as paisagens e a vida no Brasil. Segundo Lima,
Nassau deixou a pequena povoação do Recife com mais de duas mil
pessoas.
41
Somada a todos esses benefícios, a administração do Conde
holandês, apesar de ser protestante, não perseguiu os católicos e
estendendo essa liberdade aos judeus, permitindo enfim o livre
exercício dos cultos (...) com todas as suas manifestações rituais.
42
41
LIMA, Op. Cit. p. 85.
42
LIMA, Ibid. p. 90.
Após o período de ocupação holandesa foram eles (judeus e cristãos
novos) os que mais receberam acusações e condenações. Segundo
Mello, em Gente da Nação, isso se deu por um conjunto de fatores,
pois durante a dominação flamenga tanto os cristãos novos quanto os
judeus, além de serem os cobradores de impostos, eram os
intermediários nas negociações entre holandeses e luso- brasileiros por
dominarem a língua, além de fazerem parte de uma parcela da
sociedade que se dedicava à indústria da cana- de- açúcar entre outras
atividades.
43
Toda essa mobilidade econômica e administrativa, associada às
práticas religiosas realizadas de forma livre de censura durante o
período de dominação holandesa, gerou uma série de
descontentamentos na população não judia e não cristã nova. Com a
saída holandesa do território pernambucano reiniciaram-se as queixas,
discriminações, perseguições, acusações e as denúncias.
43
MELLO. Op. Cit. 1984, p. 244.
Segundo o Cônego José do Carmo Baratta, o período de 1654 a 1676
foi o da reconstrução. Após a expulsão dos holandeses, a comunidade
eclesiástica, tanto os jesuítas e franciscanos quanto os carmelitas e
beneditinos, reedificaram seus conventos e igrejas, abriram colégios e
construíram hospícios e capelas, além de retomarem seus trabalhos nas
missões indígenas.
44
Com o término da guerra modificaram- se também alguns costumes e
numerosos sacerdotes seculares e religiosos passaram a prestar
assistência religiosa aos fiéis espalhados pelo vasto território, que se
encontrava longe da sede do bispado (Bahia).
45
Com a elevação do Bispado da Bahia à condição de Arcebispado, em
16 de novembro de 1676 pela Bulla Ad Sacram Beati Petri Sedem,
foram criados em Olinda e no Rio de Janeiro, também pela mesma
Bula, dois outros bispados. Sendo, a Diocese de Olinda, responsável
pelas cidades de Olinda, Paraíba e Natal.
Todavia, na primeira metade do século XVIII, o “estado moral” e
religioso de Pernambuco eram contraditórios. Apesar da população
44
BARATTA, Cônego José do Carmo. História Ecclesiástica de Pernambuco. Recife, Imprensa Industrial,
1922. p. 40.
45
BARATTA. Ibid. p. 41.
confessar os seus pecados, se comover e chorar, passada a emoção,
voltavam a praticar os mesmos “vícios” e pecados confessados. Essa
atitude se encontrava tanto entre a população menos favorecida
economicamente quanto aos mais afortunados, o próprio clero, que
deveria dar o bom exemplo e ser o mestre e o guia do povo(...) não
primava (...) pela santidade de vida e zelo sacerdotal,
46
pois, os
próprios ecclesiásticos eram assassinos e polygamos.
47
Os párocos pouco puderam fazer contra a religiosidade brasileira
48
e
conseqüentemente pernambucana existente no seio da sociedade;
rezadores, benzedores, imagens milagrosas e objetos protetores
tinham poder suficiente para resolver quase todas as situações.
49
Segundo o Cônego Baratta, essa “falta de moral” do clero e do povo
pernambucano se dava como conseqüência de um período em que
coincidiram lutas civis,
50
que depositaram ódios, desordens e vinganças
na sociedade; a ausência de um bispo responsável entre os anos de
1704 e 1725 durante o período de desocupação da Sé de Olinda; a falta
46
BARATTA. Op. Cit. p. 57/58.
47
LIMA. Op. Cit. p. 18.
48
Fruto da herança das crenças medievais portuguesas e da farta contribuição das culturas africanas e
indígenas. História Geral da Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil: Segunda Época
séc. XIX. Tomo II/2. Coordenado por José Oscar Beozzo. Petrópolis, Edições Paulinas/Vozes, 1992, p. 112.
49
História Geral da Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil: Segunda Época séc.
XIX. Idem.
50
Guerra dos Mascates em 1710 e 1711.
de uma instituição responsável pela formação do clero e, ainda, a
intervenção do Governo Civil na administração eclesiástica.
51
Todos
esses fatos colaboraram para que existisse em Pernambuco uma
comunidade, tanto eclesiástica quanto civil, com princípios morais
distorcidos do ponto de vista das leis da Fé Católica.
Associado a esses fatores já descritos, também é necessário que
levemos em consideração os cruzamentos das culturas que povoaram a
colônia portuguesa. Os três principais grupos que aqui se instalaram
o português, o negro africano e o nativo brasileiro proporcionaram
misturas, principalmente dos ritos religiosos, além dos casamentos
entre raças distintas. Essa mestiçagem proporcionou a criação de uma
prática religiosa que era transmitida de pessoa para pessoa através da
cultura popular oral.
Tal prática religiosa consistiu em algumas orações, devoções e
benzeduras, utilizando imagens, fitas, medalhas, rosários e patuás.
Segundo estudos sobre a religiosidade popular no Brasil, as populações
conviviam com a misteriosa presença de almas do
outro mundo, num misto de respeito, piedade e medo.
Protegiam-se com rituais que garantiam proteção(...),
51
BARATTA. Op. Cit. p. 59.
contra inimigos havia orações bravas, que não eram
para ser rezadas, mas levadas ao pescoço (...) ou
pregadas atrás das portas da casa.
52
Essa realidade era reflexo dos anos consecutivos de falta de condução
do clero, do ponto de vista das leis e regras da Igreja Católica, em
relação à população. Havia um excesso de liberdade [e uma falta] de
lei moral (...) na conduta dos portugueses recém-chegados do reino,
53
e também dos nativos, que precisavam ser catequizados. Além deles,
os clérigos seculares que chegaram após 1551
54
foram acusados de
serem coniventes com os “amancebamentos” dos leigos com as
escravas negras e absolviam quantos os procuravam em confissão.
55
A falta de formação de um clero profissional na colônia e a fragilidade
da estrutura eclesiástica montada no Brasil desde o início da
colonização favoreceu, no século XVIII, a existência de um clero
corrupto, uma população supersticiosa e uma conduta moral que não
condizia com a defendida pela Igreja de Roma a partir do Concílio de
Trento.
52
História Geral da Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil: Segunda Época séc.
XIX. Tomo II/2. Op. Cit. Idem.
53
VAINFAS. Op. Cit. p. 39.
54
Ano da instalação do Bispado da Bahia.
55
VAINFAS. Op. cit. p. 40.
2.3 2.3 -- As Constituições Primeiras doAs Constituições Primeiras do
Arcebispado da BahiaArcebispado da Bahia
No século XVI a Igreja Romana passou por uma série de mudanças
estruturais e ideológicas. Essas mudanças ocorreram a partir da
reforma protestante iniciada na Alemanha por Martinho Lutero e que
se propagou por toda a Europa. Essa Reforma foi fruto da crise
religiosa do século XV que afetou os pilares que davam sustentação à
Igreja. Sua estrutura foi minada e com isso ela teve que reformular sua
doutrina.
A partir das críticas e dos questionamentos feitos pelos reformadores
protestantes e da crescente aceitação da sociedade européia por essa
nova doutrina de conduta cristã, a Igreja Católica de Roma viu-se
obrigada a repensar e reformular seus métodos e práticas. Dessa forma,
na primeira metade do século XVI, os sacerdotes iniciaram os
trabalhos para definirem as novas regras morais e de comportamento
tanto do clero quanto da população leiga. Os resultados das inúmeras
reuniões realizadas e que duraram muitos anos, já que por várias
vezes foram interrompidos - ficaram conhecidos como o Concílio de
Trento. Segundo Vainfas, as resoluções desse Concílio tinham como
objetivo maior a defesa do catolicismo frente ao avanço dos
protestantes [pois] aparentemente não tomaram qualquer resolução de
afronta ao protestantismo.
56
A crise na Igreja Católica no século XV, que culminou com a Reforma
protestante, teve base nas práticas do clero. Os cargos (...)
eclesiásticos tornaram-se objeto (...) de um comércio,
57
e os benefícios
oferecidos pelo clero foram um cancro que minou a alma da Igreja até
as reformas tridentinas.
58
Associada a essa realidade, também a vida
particular dos religiosos não era nada aconselhável aos seguidores
católicos, uma vez que muitos bispos, arcebispos e cônegos possuíam
esposas e amantes, além dos inúmeros filhos que também usufruíam os
benefícios do pai eclesiástico; alguns chegaram a ser excomungados
por conta do escândalo de seus costumes e abuso de suas funções.
59
56
VAINFAS. Op. Cit. p. 19.
57
DIAS, José Sebastião da Silva. Correntes de sentimento religioso em Portugal: século XVI a XVIII.
Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960. p 35.
58
DIAS. Ibid. p. 40.
59
DIAS. Ibid. p. 37.
Esses religiosos acreditavam ter direitos sobre o patrimônio das Igrejas
e dos mosteiros.
Muito dessa realidade se dava por conta dos memb ros eclesiásticos não
se tornarem religiosos por vocação espiritual ou por revelação divina,
mas sim por pertencerem a uma classe social que os induzia, havia uma
total ausência de vocação sacerdotal.
60
A partir da segunda metade do século XV, algumas constituições foram
publicadas como uma tentativa de disciplinar os costumes do clero e a
prática dos fieis,
61
a de 1477 possuía esse propósito. Todavia os
resultados não foram suficientes para impedir que a Reforma
protestante surgisse e se propagasse pela Europa conquistando reinos e
fiéis. A realidade do clero romano só mudaria a partir do Concílio de
Trento,
62
que passou a defender e preocupar- se com a família e as
relações que a envolviam, dando a ela um dos lugares privilegiados da
vida cristã,
63
além de um maior preparo dos sacerdotes, entre outras
resoluções.
60
VAINFAS. Op. Cit. p. 21.
61
DIAS. Op. Cit. p. 73.
62
Convocado pelo papa Paulo III, durou 18 anos, de 1545 a 1563.
63
VAINFAS. Op. Cit. p. 23.
No Brasil do século XVIII a realidade eclesiástica não foi muito
diferente da vista na Europa no século XV. A conduta moral do nosso
clero havia sido importada da Europa e apesar dos jesuítas serem ma is
preparados e estudados, aqui no Brasil se desvirtuaram dos votos
religiosos que haviam feito quando consagrados sacerdotes e dos
longos anos de estudos.
A documentação da época demonstra que os religiosos, tanto jesuítas
como franciscanos e beneditinos, viviam em grande deserviço de
Deos.
64
Uma carta do Governador de Pernambuco, Sebastião de Castro
e Caldas, ao Rei em Portugal, datada de 1711, denuncia que os
religiosos que moravam na província causavam grande escandallo (...)
com as suas vidas e costumes [pois viviam] os religiosos do Estado do
Brasil sem respeito ao estado que pelo officio e ao exemplo que devem
dar com a sua vida e costumes.
65
Assim, diante dessa
rellaxação com que se portão sem temor de Deos,
[aconselha o governador da província que] Vossa
Magestade deve mandar reprezentar a sua santidade
os procedimentos das Relligioens que tem conventos
nas conquistas; [que ao Bispo] faça guardar os uzos e
costumes antigos das Igrejas [como também deverá
64
AHU, códice 265, folhas 258v in DPH da UFPE.
65
AHU, códice 265, folhas 258v-259 in DPH da UFPE.
ser usada a] jurisdição diocezana contra aqueles
Relligiozos que tiverem a seu cargo a cura das Almas
e administração dos sacramentos, cometendo erro nos
taes officios.
66
Esse documento demonstra que havia uma preocupação com a vida dos
religiosos que viviam no Brasil, e que também havia uma penalidade
para os que não se portassem dentro das normas e leis religiosas.
Todavia acredita- se que essas punições surtiram um efeito pouco
prático na realidade do dia a dia desses religiosos, pois o mesmo
governador afirma no inicio desse documento que por varias vezes
requerera
67
que se tomasse providências com a vida dos religiosos.
68
Também a população leiga se viu envolvida com as crendices que se
desenvolveram com a convivência dos mais variados grupos religiosos
e raciais. Além do convívio de cristãos e judeus, e dos degredados por
práticas mágicas, as práticas religiosas dos negros e dos aborígines
terminaram por se fundirem com os ritos católicos, formando uma nova
prática religiosa carregada de superstições e simpatias e que ocupava
lugar de destaque na vida familiar e individual.
69
66
AHU, códice 265, folhas 259-259v in DPH da UFPE.
67
AHU, códice 265, folhas 258v in DPH da UFPE.
68
AHU, códice 265, folhas 258v in DPH da UFPE
69
História Geral da Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil: Segunda Época séc.
XIX. Tomo II/2. Op. Cit. .p. 112.
Esses rituais mágicos que tanto fascinavam, mas ao mesmo tempo
incomodavam e amedrontavam esses grupos sociais eram, geralmente,
encomendados e/ou praticados por amantes repudiados, esposas
abandonadas, brigas de vizinhos ou ainda rezas de purificação ou
benzeduras contra mal olhado, entre outros.
Segundo Alfredo de Carvalho, as receitas para determinar ou
concretizar casamentos, ou abrandar corações eram as mais procuradas.
Os processos usados, ou aconselhados pelos (...) feiticeiros consistem
em ‘orações’(...) acompanhadas de manipulações com objetos de uso
pessoal das pessoas a affectar ou fragmentos de plantas ou animais.
70
A vida real da mulher no Brasil colônia permitia que ela se dispusesse
a esses artifícios para conquistar ou mesmo se livrar de um homem. A
repressão e a dependência instigavam nela sentimentos que variavam
desde o desejo de casar- se, uma cobrança da sociedade da época, até o
de se livrar dos maridos. A decepção com os casamentos, e com os
maridos, propiciava para que as mulheres desejassem divorciar- se ou
70
CARVALHO, Alfredo de. A Magia Sexual no Brasil in Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico
de Pernambuco, vol. XXI, Imprensa Industrial, Recife, 1919. p. 414.
ainda utilizarem de artifícios como porções e beberagens (...) para
conquistar o afeto dos maridos.
71
As várias camadas da sociedade, direta ou indiretamente, participaram
e contribuíram para a permanência e manutenção dessas práticas. As
feiticeiras eram invocadas tanto para preservar a integridade física
[quanto] para provocar malefícios a eventuais inimigos,
72
exercendo
um papel duplo: ora de feiticeira malvada e diabólica, ora de iluminada
por Deus.
Diante de todo esse contexto, em 1707, após alguns anos de discussões
e reuniões, a Igreja Católica promulgou as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. Essa decisão não foi uma iniciativa da diocese
da Bahia, durante todo o século XVI e XVII, Constit uições diocesanas
foram promulgadas em Portugal
73
como forma de conduzir tanto a
população leiga quanto o clero, principalmente no que diz respeito à
vida particular e social dessas pessoas.
71
VAINFAS. Op. Cit. p. 143.
72
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Companhia das Letras. p. 194.
73
PAIVA. Op. Cit. 1992. p. 45 e seg.
Aqui no Brasil, este documento foi organizado pelos Diocesanos e
coordenada por Dom Sebastião Monteiro da Vide
74
e representa um dos
mais completos documentos da Igreja católica no Brasil para conduzir
os colonos. Em sua parte introdutória o documento se apresenta do
seguinte modo:
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo, e reverendíssimo
senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, 5º Arcebispo
do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua
Magestade: propostas, e aceitas em o Synodo
Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho
do anno de 1707.
75
O intuito dos diocesanos era organizar uma legislação eclesiástica de
forma que os cristãos pudessem seguir a doutrina e conduzir como
católicos seus familiares. Essa legislação não só serviria à população
católica, como também aos governadores, juristas e aos próprios
eclesiásticos que seriam obrigados a possuírem e a seguirem tais leis.
Conforme consta na própria Constituição:
74
Arcebispo de sólida formação jurídica, planejou inicialmente a realização de um concílio provincial. Dada
porém a ausência do bispo do Rio de Janeiro, contentou-se com um sínodo diocesano. História Geral da
Igreja na América Latina - História da Igreja no Brasil. Tomo II/1. Coordenado por Eduardo Hoornaert.
p. 177.
75
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Capa
Por tanto auctoritate ordinaria mandamos em virtude
de santa obediencia a todas, e a cada uma das
sobreditas pessoas, que ora são, e ao diante forem, as
cumprão, e guarde: e ao nosso Provisor, Vigário
Geral, Desembargadores, Visitadores, e Vigarios da
Comarca, e da Vara, e a todos os mais Ministros de
nossa Justiça Ecclesiástica, as fação inteiramente
cumprir, e guardar, como nellas se contém, e por ellas
julguem, e determinem as causas, e se governem em
toda a administração da justiça.
76
Assim também como os advogados que advogarem perante nossos
Ministros, e sem o terem não serão admitidos ao tal oficio. Também o
terão o Meirinho geral, e o Escrivão da Camara.
77
Da mesma forma que na apresentação desse conjunto de Leis, há em
seu interior Títulos em que são especificados e determinados os termos
do seu uso e quais as pessoas que seriam obrigadas a tê- las além de
artigos referentes à obrigatoriedade da apresentação em público: (...) e
assim ordenamos, e mandamos a todos (...) que em voz alta, e
intelligivel leião a seus freguezes (...).
78
76
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. XXII
77
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 432, título LXXIII, cânone 1311
78
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 432, título LXXIV, cânone 1312
A falta da leitura por parte da população eclesiástica encarregada do
mesmo acarretaria uma pena de duzentos réis por cada vez que
faltarem para a Sé (...).
79
E as Constituições deveriam ser lidas em
alguns momentos especiais como os domingos, sendo esta leitura
iniciada pelos responsáveis assim que o volume destas Constituições
vier a seu poder, no primeiro Domingo logo seguinte lerão, e
publicarão o Prologo dellas, e o Título primeiro da Fé Católica.
80
Dom Sebastião Monteiro da Vide procurou adaptar a legislação
eclesiástica à realidade brasileira de sua época. O Arcebispo compôs
uma colcha de retalhos, pois acoplou diversas deliberações de
Concílios Ecumênicos, Bulas Papais, de Sínodos Provinciais e de
pesquisas dos principais teólogos contemporâneos para elaborá- la.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia é dividida em 5
livros, sendo que cada livro é dividido em Títulos, ao todo são 74.
Estes por sua vez são subdivididos em artigos compondo um total de
1318, distribuídos em 411 páginas. O conjunto possui 729 páginas e
apresenta dois índices: um por ordem alfabética, outro por ordem
crescente dos Títulos; além do Prólogo, do termo de como se
79
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
80
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 433, título LXXIV, cânone 1313.
conferirão as Constituições, do Regimento do Auditório Eclesiástico,
do Índice dos dias Feriados, entre outros.
Dessa Constituição alguns artigos espalhados pelos quatro primeiros
livros se referem a algumas heresias, contudo o quinto livro é referente
às mais diversas práticas heréticas e, principalmente, às punições que
deveriam incorrer aos que as praticarem. Segundo Paiva, algumas
Constituições diocesanas como a de Coimbra não especificam as
punições aos que se consultarem com feiticeiros, diferentemente das
Constituições de Lamengo, Lisboa, Braga, Algarve
81
e Brasil. Na
colônia americana se considerava prática herética a leitura de livros
que contivessem doutrinas não católicas; heréticos também eram
pessoas que não fossem batizadas. Na Constituição era ensinada a
forma de rezar a Deus, a Virgem Maria e aos Santos.
Apesar de toda a vigilância, este documento reserva aos superiores
eclesiásticos o poder de absolvição de pecados mais graves. Dentre
esses se encontram os de homicídio voluntário (...), os feiticeiros (...),
[os que] furtam alguma coisa pertencente à Igreja (...), [os que juram]
81
PAIVA. Op. Cit. 1992. p. 47.
falso em juízo (...), [os que incendeiam] de propósito para fazer damno
(...), dízimos não pagos às Igrejas
82
entre outros.
Esta Constituição diocesana representou a chegada na colônia
portuguesa de um documento organizado de acordo com a vivência e a
realidade dos moradores coloniais, apesar de ter sido elaborado de
acordo com as resoluções de outras reuniões religiosas sínodos,
concílios, etc. Até então as regras seguidas pelo clero e pela sociedade
eram importadas da Metrópole, inclusive os Tridentinos não se
preocuparam em determinar regras e condutas aos países que possuíam
terras no além mar, entre as resoluções do Concílio de Trento, nenhum
destaque fora dado à expansão católica (...), a composição
majoritariamente italiana dos conciliados dificilmente o levariam a
formular (...) uma política global para o Novo Mundo.
83
Dessa forma, verificamos a importância desse documento para a
sociedade eclesiástica e civil que estava vivendo, como vimos no
início deste capítulo, uma realidade totalmente distorcida dos
82
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 74-76.
83
VAINFAS. Op. Cit. p. 25.
princípios morais e éticos defendidos pela Igreja Católica Apostólica
Romana.
O Brasil, e principalmente Pernambuco com todas as suas riquezas e
luxos particulares, necessitavam de regras e normas que conduzissem
como bons cristãos católicos os súditos do Rei e os orientassem diante
de situações adversas, como as denúncias contra hereges. Por detrás
dessa moralização religiosa havia a necessidade de fiscalizar e
controlar a sociedade.
Antonia Maria foi contemporânea de toda essa realidade religiosa e do
desenvolvimento em que Pernambuco vivia. É com ela que o nosso
próximo capítulo irá se desenrolar.
Capítulo 3
Uma “feiticeira” em
Pernambuco
3.1
Descrição do
processo de
Antonia Maria
3.2 Análise do
processo de
Antonia Maria
Antonia Maria, degredada por práticas de feitiçaria, habitou em Pernambuco na
primeira metade do século XVIII. Tempo este em que a Capitania vivia os reflexos
da Guerra dos Mascates, da falta de uma presença religiosa por conta da ausência do
bispado além de uma firmação do modo de vida da burguesia comercial recifense
em detrimento ao da aristocracia açucareira que se encontrava mergulhada em
dívidas.
O presente capítulo tem como objetivo responder a algumas questões levantadas
quando na armação do problema que norteia nossa pesquisa. Essas questões são
basicamente referentes ao que a Inquisição considerava artes e práticas mágicas na
primeira metade do século XVIII e quais as causas do incomodo com esses rituais,
além da curiosidade de se registrar que camada da sociedade se consultava com
feiticeiras. Após a leitura, transcrição e análise dos processos de Antonia Maria
outras questões surgiram e procuraremos responde-las ao longo deste capítulo.
Contudo, antes de iniciarmos a análise dessas questões e do processo de Antonia
Maria, faz-se necessário descrevermos os processos de Beja e de Pernambuco para
assim facilitar o entendimento das questões que serão discutidas mais adiante.
1
1
Na leitura paleográfica do documento optamos pela transcrição atualizada do processo de Antonia Maria e
das artes praticadas por ela de forma a facilitar a compreensão do texto.
3.13.1-- Descrição dos Processos de Antonia Maria Descrição dos Processos de Antonia Maria
3.1.1 - Beja Évora Portugal/1713
Antonia Maria, casada com Vasco Janeiro, de idade de 30 anos, mais ou menos, foi
denunciada ao Tribunal do Santo Ofício por praticar artes mágicas e sortilégios.
Suas denunciantes foram os membros de uma mesma família, todas filhas de João
Rodrigues e de Brites Fernandes, já defuntos, natural e moradoras na rua Nova da
cidade de Beja, a saber:
Natália Maria, moça donzela, de idade de 30 anos, mais ou menos.
Caetana de Jesus, moça donzela, de idade de 33 anos, mais ou menos.
Aquimar da Rosa, moça solteira, de idade de 20 anos, mais ou menos.
Mariana Josepha, casada com Antonio da Silva, de idade de 17 anos, mais ou
menos.
Maria de Deus, moça solteira e doente, de idade de 38 anos, mais ou menos.
Antonio da Silva, casado com Mariana Josepha, de idade de 20 anos, mais ou
menos, tendo como profissão oficial de ourives.
Estes foram os denunciantes de Antonia Maria. As irmãs a procuraram para que ela
realizasse um sortilégio com o objetivo de que o padrasto e a mãe de Antonio da
Silva o perdoassem por ter roubado umas moedas de ouro do padrasto. Este, o havia
denunciado as autoridades judiciais e ele seria preso pelo furto. Antonia Maria, em
concordância com o pedido das irmãs realizou o seguinte sortilégio:
Primeiro mandou que se rezasse um rosário as almas dos fieis por nove dias: dez
Ave-Marias em pé e os Padre-Nossos de joelhos, e que o fizesse a noite e na porta
da casa com os olhos voltados para o Céu e dissesse estas palavras:
Deus vos salve, santos fieis de Deus, Deus vos salve, salvemos Deus
os da quem e os dalém os que andais pelos adros e pelos sagrados e
os batizados e por batizar todos se queiram ajuntar e incorporar no
coração de Manoel Rodrigues e de Ana Maria [padrasto e mãe de
Antonio da Silva] queiram entrar e o perdão do furto das moedas de
ouro lhe dar.
Segundo as irmãs essa reza não surtiu o efeito desejado e novamente procuraram
Antonia Maria para que ela realizasse algum outro sortilégio. Sendo assim, Antonia
Maria pediu 9 vinténs para comprar uns ingredientes e fez um fervedouro na casa
delas em que pôs numa panelinha os seguintes ingredientes: um coração de lebre
espetado com agulhas e alfinetes depois de ter lhes tirado as cabeças, sangue de leão
suco de lobo, alfazema, erva de barbasco e outras, um pedaço de pedra de ara, tudo
ferveu com vinagre e nesse momento dizia as seguintes palavras batendo com três
varinhas de marmeleiro no chão:
Manoel Rodrigues e Ana Maria aqui te fervo o teu coração com
quantos nervos em teu coração estão barrabás, califas, satanás,
Maria Padilha com toda a sua quadrilha, Maria da Calha com
toda a sua canalha e cavalo Marinho que os traga pelos caminhos
depressa e todos se queiram ajuntar e no coração de Manoel
Rodrigues e de Ana Maria se queiram entrar para que este perdão
queiram dar.
No momento da realização do fervedouro chegou o marido de uma delas, Antonio
da Silva, que nada sabia. Novamente esse sortilégio não surtiu efeito e ela ensinou
ao casal que eles deveriam ir a uma encruzilhada às onze para a meia noite para que
o perdão fosse alcançado. O ritual consistia no seguinte: colocar uma mesa forrada
com um pano velho e nela cinco bolinhos, cinco azeitonas, cinco pedacinhos de
queijo, cinco figos e cinco pedrinhas tiradas do local. Cada ingrediente desse em um
canto da mesa. E que se rezasse a seguinte oração sem que ninguém visse ou
ouvisse:
O primeiro bolinho, queijo, azeitona e figo sejam para barrabás, o
seguindo bolinho com o mesmo para califas, o terceiro bolinho
com o mesmo para satanás, o quarto bolinho com o mesmo para
Maria Padilha, o quinto bolinho com o mesmo para Maria da
Calha e havia de dizer mais estas palavras: esta mesa venho
plantar para meu bem não para meu mau.
Contudo, tanto Antonio da Silva quanto sua esposa, tiveram medo e largaram a mesa
na encruzilhada e novamente o sortilégio não surtiu efeito. Antonia Maria, desejosa
do pagamento da moeda de ouro que as irmãs lhes havia prometido e não haviam
pagado, as ameaçou de denunciá-las ao Santo Ofício e de fazer sortilégios para as
atingir. Elas, receosas do que poderia acontecer, anteciparam-se denunciado Antonia
Maria ao Santo Ofício.
Antonia Maria foi presa em 27 de agosto de 1712 pelas seguintes culpas: ações vans
e supersticiosas, invocação do demônio, pacto expresso com o diabo e erro no
entendimento contra nossa Santa Fé Católica.
Dia 27 de setembro de 1712 iniciaram-se os depoimentos de Antonia Maria, que
além desse crime, confessou outro, dentre eles rezas para que pessoas se casassem,
para amansar seu marido, que a impedia de sair de casa, simpatias para que
comerciantes se dessem bem nas compras e vendas, rezas para que mulheres
adúlteras não fossem descobertas pelos maridos. Segundo sua confissão, Antonia
Maria afirma que suas rezas, simpatias e sortilégios não deram certo, com raras
exceções, e que nem sempre era paga pelos serviços. E que só os fazia por ser muito
pobre e necessitar de algum recurso para sobreviver.
Em seu depoimento Antonia afirma que se iniciou nas artes mágicas com a mãe,
mas que aprendeu com uma amiga chamada Joana de Andrade, que também foi
presa e condenada pelo Santo Ofício.
No dia 13 de julho de 1713 Antonia Maria compareceu ao auto de fé que se realizou
em Évora e abjurou publicamente e recebeu como sentença a confiscação de seus
bens, cárcere e hábito penitencial perpétuo, açoites, excomunhão, degredo por toda a
vida da cidade de Beja e por três anos para o reino de Angola. Dia 10 do mesmo mês
e ano ela assinou o termo de segredo e de ida e penitencia.
3.1.2 - Recife Lisboa/1723
Não estão claros os motivos que levaram Antonia Maria a aportar e fixar residência
em Recife, contudo ela aqui chegou por volta de 1714.
Em Pernambuco Antonia Maria morou em algumas casas alugadas sendo todas na
ilha de Santo Antonio. Segundo seu depoimento logo que chegou houve uma
publicação, na Gazeta, em que afirmaram que ela havia sido degredada por
feitiçarias e por conta deste fato as pessoas passaram a procura-la para que ela lhes
fizesse alguma reza ou adivinhação do futuro. Negando-se, ela foi pressionada para
que atendesse aos pedidos, o que fez, já que era só numa terra desconhecida.
Dentre as pessoas que denunciaram Antonia Maria em Pernambuco em 1718,
encontram-se:
Pe. Francisco Xavier de Viveiros, 32 anos de idade, mais ou menos, morador na Vila
de Santo Antonio do Arrecife de Pernambuco, vizinho de Antonia Maria e a
procurou para que adivinhasse o futuro para ele. Seu pedido consistia em descobrir
se seria ordenado padre e se esta ordenação aconteceria antes ou depois da viagem
do Bispo ao Reino. Antonia fez as adivinhações utilizando os seguintes recursos: em
um alquidar com água colocou quatro vinténs, uma folha de papel dobrada e
desdobrada. Também foram necessárias uma peneira e uma tesoura.
Segundo o padre Francisco Xavier, Antonia Maria utilizou-se dos seguintes
procedimentos: pegou a peneira e abrindo a tesoura colocou as pontas no arco da
peneira suspendendo, no ar, de uma parte com o dedo por baixo do arco e ele, o
padre, de outra parte também com o dedo por baixo do outro arco. E ela mandou que
ele repetisse as seguintes palavras:
por São Pedro e por São Paulo e pela porta de Santiago em como
Francisco Xavier não há de ser clérigo.
E a peneira permanecia imóvel. Quando Antonia Maria dizia
por São Pedro e por São Paulo e pela porta de Santiago em como
Francisco Xavier há de ser clérigo
a peneira se mexeu por várias vezes como resposta positiva de que ele iria ser
ordenado padre antes do Bispo viajar para o Reino.
João Pimentel, 40 anos de idade, mais ou menos, casado com Bárbara de Melo,
cristão velho, tendo como profissão a de pedreiro, também foi vizinho de Antonia
Maria. A denunciou por ela ter feito um sortilégio contra sua mulher. Segundo seu
depoimento, ele e Antonia haviam tido uma “amizade ilícita” e a esposa havia
descoberto e ele terminara o romance. Antonia Maria não satisfeita com o fim da
relação fez com que ele, sua esposa e uma escrava doméstica caíssem doentes. Em
seu depoimento ele narra o exorcismo feito por dois padres de onde ele e sua esposa
“por via do curso natural” expeliram vários objetos, dentre eles dentes de gente,
ervas, farelos de madeira, ossos, carvão, arvorezinhas com galhos, espinhas de
peixe, pedaços de pedra, cabelos de gente e areia da praia, entre outras coisas.
Todavia não ficaram curados e procuraram um negro curandeiro de nome
Domingos João que com purgas, ervas e raízes os curou.
Bárbara de Melo, 50 anos de idade, mais ou menos, casada com João Pimentel, faz
pão. Em seu depoimento ela narra os mesmos acontecimentos que seu marido e
acrescenta que Joana de Andrade, amiga de Antonia Maria, foi quem confirmou
para ela que a ré havia feitos os feitiços por conta da proibição que deu a seu marido
de freqüentar a casa dela. E que Antonia havia se aperfeiçoado nas artes mágicas
com uma mulher parda de nome Páscoa Maria que era conhecida como feiticeira.
Isabel da Silva, 60 anos de idade, mais ou menos, viúva de Antonio Bayão, cristã
velha, mãe do Pe. Francisco Xavier e presenciou toda a cerimônia feita por Antonia
Maria. Declara os mesmos fatos que contidos no depoimento do filho e acrescenta
que a casa de Antonia Maria era muito visitada tanto de dia quanto de noite.
Ignácia Maria, 35 anos, mais ou menos, solteira, cristã velha, irmã do Pe. Francisco
Xavier. Além do deposto pelo irmão e pela mãe, ela acrescenta que na casa de
Antonia Maria iam muitas mulheres, principalmente meretrizes.
Domingos de Almeida Lobato, 33 para 34 anos, mais ou menos, cristão velho,
casado com Maria Crisostoma, tendo como profissão a de pedreiro. Ele narra que
estando doente de soluços procurou Antonia Maria para que ela lhe fizesse algo que
o curasse. Ela fez o seguinte sortilégio: apanhou cinco ramos de ervas e pediu que
ele tirasse o pé esquerdo da chinela e o pusesse sobre a terra e lhe trouxesse o meio
do rastro. Em uma panela nova de barro colocou 2 vinténs de água ardente da terra e
o rastro de seu pé esquerdo.
Pegando o primeiro ramo o meteu entre o dedo polegar e o
indicador e puxando por ele para baixo sem o desfolhar dizia,
satanás e o metia na mão direita e fazendo o mesmo ao segundo
ramo dizia barrabás, o mesmo com o terceiro dizia califas, e ao
quarto disse diabo coxo e ao quinto sua mulher.
Depois pegou os ramos e os colocou na panela dizendo a cada ramo que jogava
satanás, barrabás, califas, diabo coxo e sua mulher. Após ferver tudo mandou que
ele se defumasse com a água do fervedouro e depois a jogasse na porta da casa de
uma mulher chamada Basília Pessoa, que havia feito um trabalho de feitiçaria para
ele.
Contudo, os soluços pioraram e ele descobriu que esse sortilégio feito por Antonia
para o curar o fez piorar. Assim, ele procurou Domingos João, negro curador, que
lhe deu um pó para inspirar pelo nariz e pela boca e uma raiz para enterrar. Depois
ele voltou a casa do negro com sua esposa e este lhe deu uma bebida feita com ervas
pisadas e assim que ele bebeu vomitou um bicho que se parecia com um cavalo e
este estava seco da metade para baixo. O negro informou que quando o bicho
secasse totalmente ele morreria. Nesse momento entrou uma galinha que pegou o
bicho pelo bico e saiu voando. Segundo Domingos João ela era a dona do bicho.
Joseph Pereira, 33 para 34 anos, cristão velho, vive de sua agência, viúvo de Joana
de Andrade. Ele denuncia que se casou com a degredada por acreditar que ela havia
se redimido das culpas que havia sido condenada em Portugal e por se sentir
obrigado a celebrar matrimônio com ela. E que após se casar continuou a freqüentar
a casa de sua mãe e irmã e por muitas vezes sua irmã lhe tirou do casaco alfinetes.
Também narra que depois de casado ia a sua casa e de sua esposa muitas mulheres
dentre elas Isabel de Avelar, que havia sido também degredada pelo Santo Ofício e
D. Garcia, que queria que o marido voltasse a ter com ela vida conjugal. Após a
morte de Joana de Andrade, ele encontrou várias orações escondidas e muitos
alfinetes no travesseiro dele. Também narra que perto da morte de Joana, Antonia
Maria a veio visitar e lhe disse que queria vê-la morta por ela ter tirado o seu ganho
e que era sabido que esta Antonia era feiticeira e que fazia malefícios às pessoas.
Maria Crisostoma, 23 para 24 anos, casada com Domingos de Almeida. Declara que
foi ela quem procurou Antonia Maria para que curasse seu marido. Todavia, por ele
não ter melhorado uma amiga chamada Francisca, casada com Joseph Pereira, a
indicou o negro Domingos João. Seu relato sobre os procedimentos deste curador se
assemelha com o de seu marido.
Estes depoimentos foram encaminhados para Lisboa e a prisão de Antonia Maria foi
autorizada pelo Tribunal do Santo Ofício. Ela foi presa em Alagoas, para onde havia
fugido e enviada para o Reino pagando sua viagem.
Em Lisboa Antonia Maria iniciou sua confissão no dia 06 de março de 1720. Foi
ouvida e denunciou Joana de Andrade como responsável por todos os trabalhos de
feitiçaria que ela havia praticado. Declarou que Joana a obrigou com ameaças a
realizar os sortilégios e sem poder se negar ela os fez. Os inquisidores não aceitaram
sua confissão e a encaminharam para sua cela. Esse procedimento se repetiu por
inúmeros meses, durante esses meses ela confessou que inúmeras pessoas a
procuraram para que ela realizasse adivinhações e rezas para as mais variadas
causas. Os inquisidores não se sentindo satisfeitos ofereceram a ré, e ela aceitou, um
procurador para que este encaminhasse novo depoimento aos denunciantes de
Pernambuco, o que se fez em fevereiro de 1721. O procurador Brás de Carvalho
encaminhou ao reitor do Colégio da Companhia de Jesus da cidade de Olinda as
perguntas que deveriam ser feitas às testemunhas que depuseram contra Antonia
Maria e também a novas testemunhas que, segundo Antonia, sabiam que ela possuía
inimigos no Recife. São eles:
João da Mota, 55 anos, mais ou menos, sargento mor, casado com Brites de
Almeida. Declara que Bárbara de Melo já estava doente quando Antonia Maria
chegou ao Recife e que ela e seu marido, João Pimentel, eram inimigos de Antonia
Maria, não sabe o porque. E que ambos eram de fora de Recife.
Luis de Siqueira Pacheco, 50 anos, mais ou menos, ajudante de pedreiro, natural de
Recife, casado com Maria Frajoia. Declara que Antonia Maria e Bárbara de Melo
eram inimigas e que ouvira várias vezes Bárbara tratar Antonia por feiticeira e
ameaça-la de mandar degreda-la para Angola.
Maria Frajoia, 50 anos, mais ou menos, casada com Luis de Siqueira. Declara que
Bárbara e Antonia eram inimigas e que Bárbara fazia ofensas públicas contra
Antonia e que a causa dessa inimizade era que Bárbara desconfiara que seu marido,
João Pimentel e Antonia haviam tido um romance.
Agostinha Carneira, 24 anos, mais ou menos, solteira, filha de Luis da Siqueira
Pacheco. Declara que havia ódio entre Bárbara de Melo e Antonia Maria e que este
sentimento se originara da desconfiança que Bárbara tinha de Antonia com seu
marido e que Bárbara fazia ameaças públicas contra Antonia.
Brites de Almeida, 57 anos, mais ou menos, esposa de João da Mota. Declara que
foi Bárbara de Melo quem denunciou Antonia Maria ao comissário do Santo Ofício,
frei Bartolomeu do Pilar, bispo do Grão Pará. E que Bárbara de Melo sempre disse
que havia de se vingar de Antonia Maria por ela ter lhe dado feitiços.
Luciano de Siqueira, 29 anos, mais ou menos, solteiro, filho de Luis de Siqueira
Pacheco, cabo de esquadra da Companhia do capitão Agostinho Moreira. Declara
que não tem conhecimento de nada pois vivia viajando em cumprimento do seu
trabalho.
Pe. Frei Bernardo da Nápolis, 55 anos, mais ou menos, capuchinho do convento de
Nossa Senhora da Penha, superior e prefeito das missões dos capuchinhos. Declara
que só tem conhecimento que Bárbara de Melo se queixava de Antonia Maria ter
lhe dado feitiço.
Pe. Miguel Ângelo, religioso capuchinho que realizou o exorcismo de Bárbara de
Melo e seu marido João Pimentel e a persuadiu a denunciar ao Santo Ofício Antonia
Maria.
Francisco Rodrigues Chaves, 29 para 30 anos, mais ou menos, capitão, casado com
Maria Rodrigues de Aguiar, natural do arcebispado de Braga. Declara que procurara
Antonia Maria para que ela realizasse uma adivinhação para ele saber quem lhe
havia furtado mercadorias de sua casa. Antonia se recusou a realizar a adivinhação
por ele ser português e não queria engana-lo e caso ele fosse brasileiro o enganaria,
pois ela não sabia fazer adivinhações.
Com relação aos antigos depoentes, todos foram ouvidos e nada de novo
acrescentaram aos seus depoimentos a não ser o fato de declararem não conhecer
Joana de Andrade e de serem obrigados a denunciarem Antonia Maria pelos padres
confessores e pelo frei Bartolomeu do Pilar, bispo do Grão Pará e inquisidor que
tomou o depoimento das testemunhas em 1718. Também de novo acrescentou
Bárbara de Melo declarando que primeiro tentou denunciar Antonia Maria ao
ouvidor da província e pediu a ele para que a encaminhasse para a ilha do Príncipe,
para onde a princípio ela havia sido degredada segundo Bárbara de Melo, mais que
nenhuma providência havia sido tomada.
Quando esses depoimentos chegam a Lisboa de nada serviram, pois os inquisidores
responsáveis optaram por torturar Ant onia Maria para que ela confessasse suas
culpas. Dessa forma ela foi levada, no dia 26 de agosto de 1723, para a casa
deputada para que se realizasse o tormento que se deu da seguinte forma: chamaram
os médicos cirurgiões e os Ministros da execução para que procedessem com o
tormento. Ela foi despida para ser torturada no potro. Nesse momento ela foi
advertida que se morresse, quebrasse algum membro ou perdesse algum sentido a
responsabilidade seria dela, por não ter confessado, e não dos senhores inquisidores.
Após algum tempo de sofrimento e por clamar várias vezes pela Virgem se encerrou
o tormento e ela foi encaminhada a sua cela.
No dia 09 de setembro de 1723 o escrivão Fabian Bernardes concluiu o processo de
Antonia Maria e declarou que ela iria ao auto público e que teria cárcere e hábito
perpétuo sem remissão e que seria degredada por 5 anos para a cidade de Miranda,
que teria penitência espiritual e pagaria as custas. Assinam este documento o
inquisidor João Álvares Soares e João Paes do Amaral. O auto público se celebrou
em 10 de outubro de 1723 na cidade de Lisboa e estavam presente o Rei D. João V,
os infantes D. Francisco, D. Antonio e D.Manoel, os senhores inquisidores e
ministros da mesa, nobres e o povo. E assina o escrivão Manoel de Figueiredo. Em
outubro do mesmo ano ela assina o termo de segredo, e o de ida e penitência.
3.2 3.2 Análise do processo de Antonia MariaAnálise do processo de Antonia Maria
No dia 09 de junho de 1713 compareceu ao Auto Público da Fé na forma
costumada
2
Antonia Maria levando carocha na cabeça com o rótulo de feiticeira.
Estavam presentes o Excelentíssimo Senhor Cardeal da Cunha inquisidor geral e o
seu conselho e a mesa. El Rei, e os senhores infantes Dom Francisco, Dom Antonio,
Dom Manoel o núncio, Bispos de Angola e de Sagoste(SIC).
3
Nesta cerimônia
Antonio Maria
4
Abjurou
5
publicamente seus erros e ouviu sua sentença. Além de ser
excomungada, teve os seus bens confiscados para o fisco e câmara real, todavia por
ter tido confessado seus crimes, ela recebeu ao grêmio e união da santa madre
igreja (...) e em pena e penitencia deles [os crimes] lhe [assinaram] cárcere e hábito
penitencial perpétuo e [seria] açoitada pelas mas públicas denacidades (...) e a
2
Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa (a partir deste momento ANTT) maço 120, processo 1377,
microfilme 14067, p. 96. 1713
3
ANTT, maço 120, processo. 1377, microfilme 14067, p. 96v. 1713.
4
Antonia Maria, que tem ¼ de cristã nova por veia paterna, casada com Vasco Janeiro[...] natural e moradora
na cidade de Beja (bispado de Évora-Portugal), de 30 anos de idade. Que seus pais se chamam Bartolomeu de
Moraes e Luiza de Carvalho já defuntos, naturais e moradores da cidade de Beja. Que ela tem uma irmã
chamada Leomar Mendes, casada com Manoel ___ natural e moradora de Beja. (...) somente tem um filho
chamado Estevão de menor de idade. Que ela e cristã batizada e foi na Igreja do Salvador da mesma cidade
pelo cura Pedro Cordeiro, não sabe quem foi seu padrinho. ANTT, p. 46v-47. 1713
5
Abjuração em anexos.
100
[degradaram] por toda a vida da cidade de Beja, e por tempo de 3 anos para o reino
de Angola.
6
A penalidade de ser degredada por toda a vida da cidade de origem, no caso de
Antonia Maria, de Beja, se insere no contexto das penalidades instituídas pelos
tribunais no período estudado. Ser exilado de sua cidade representava que o
sentenciado seria privado do convívio social com a família e amigos, e dos negócios
econômicos; o exílio ou degredo era uma punição terrível e temida.
7
A qualidade do
degredo variava de acordo com o crime cometido. Havia uma listagem desses
crimes que eram divididos em três grupos:
QUALIDADE CRIME
Sérios Blasfêmia, homicídio, cometer uma ofensa, rapto,
violação, feitiçaria, agressão a carcereiros, entrar para
um convento com intenções desonrosas, provocar
danos por dinheiro, ofender alguém numa procissão,
ofender um juiz.
Imperdoáveis Heresia, traição (lesa-majestade), contratação e
sodomia
Menores Crimes sempre perdoados pelos tribunais
Fonte: Timothy J. Coates, p. 60
6
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p. 96. 1713
7
COATES, Timothy J. Degredados e Órfãos: colonização dirigida pela coroa no império português:
1550-1755. Lisboa, 1998, p. 43.
101
Segundo Coates, esses quatro crimes imperdoáveis eram assim chamados por porem
em risco os fundamentos teológicos, políticos, econômicos e sociais do Estado
português
8
do período que ele denomina de moderno emergente; ou seja, esses
crimes representavam tanto um desrespeito às leis cristãs que a Igreja Católica
Apostólica Romana não poderia permitir, quanto uma traição ao Rei, que deveria ser
punido com rigor para que outros não o fizessem.
As punições para esses crimes eram o degredo, sendo que este variava de acordo
com o local - que a sentença seria cumprida - e também dos interesses do tribunal
que o condenou; havia diferentes tipos de exílios: para toda a vida, durante o
período de tempo que ao Rei aprouver, para as galés, ou para um local específico
durante um determinado período de tempo, ou para fora da localidade onde se vive
ou das suas terras adjacentes.
9
No caso específico de Antonia Maria ela foi degredada
10
por toda vida da sua cidade
natal, Beja, e por três anos para Angola, depois de passado esse período poderia
8
COATES. Op. Cit. p. 60.
9
SOUZA, Joaquim José Caetano Pereira e. Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal in COATES, p.56.
10
Havia todo um procedimento após a condenação ao degredo. Teoricamente o degredado não poderia passar
mais de 3 meses encarcerado depois da sua sentença. Todos os sentenciados eram encaminhados para a cadeia
de Limoeiro, em Lisboa, de onde eram encaminhados para os navios; estes eram de particulares que tinham a
obrigação de leva-los ao seu local de degredo. Os capitães desses navios eram os encarregados de os conduzir
e de encaminha-los as autoridades competentes da cidade escolhida. Sobre os procedimentos legais de
condução de degredados veja-se Timothy J. Coates, Degredados e Órfãs: colonização dirigida pela coroa no
império português: 1550-1755.
102
voltar para Portugal, desde que se fixasse em outra localidade que não fosse Beja.
Uma das questões que nos chamou a atenção durante a leitura e transcrição dos dois
processos desta ré foi que apesar de ter sido degredada para Angola ela aportou no
Recife de Pernambuco estado do Brasil
11
, onde fixou residência na vila de Santo
Antonio. O que poderia ter acontecido para que o Tribunal mudasse o lugar do
degredo? E se isso realmente aconteceu, porque não há uma descrição em seu
processo informando desse ocorrido? Quais os motivos que a fizeram permanecer
em Pernambuco? Porque escolhera viver no Recife?
Coates nos sugere algumas evidências de tais acontecimentos. Ele nos informa que
em 1662 alguns condenados exilados para Angola e São Tomé foram enviados para
o Brasil por não haver navios no porto prontos para a partida para essas duas
localidades. Por conta dessa espera, estavam a gastar um ror de dinheiro para
[alimentar e vestir] estes prisioneiros [e que os] navios para o Brasil [estavam] de
partida e daí os prisioneiros [poderiam] seguir para os seus locais de degredo.
12
Sendo assim, a Coroa concordou em enviar para o Brasil esse grupo de degredados
de onde partiriam para cumprir seu exílio nas terras para onde foram sentenciados.
Todavia não se sabe se realmente esse grupo transportado para o Brasil foi depois
para Angola e São Tomé.
11
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 130. 1723.
12
BA, 51-VI-11, f. 125 (número 226), Regimento da Caza da Supplicação, 12 de setembro de 1662 in
COATES, Timothy J. p. 142.
103
Diante dessa possibilidade do Brasil servir de posto de paragem para degredados,
acredita-se que provavelmente o mesmo poderia ter acontecido com Antonia Maria,
apesar de não haver nenhum vestígio dessa ocorrência nos seus dois processos, e
dela não ter seguido para Angola, como havia sido determinado pelo Tribunal na sua
condenação, e sim permanecido em Pernambuco.
Outro motivo que levaria Antonia a ser degredada no Brasil está nas Leis
Extravagantes de 1535 e 1549; nelas consta que os condenados a cumprir degredo
na Ilha do Príncipe deveriam ser enviados para o Brasil.
13
O mesmo servia para os
condenados para São Tomé.
14
Essas leis nos fazem perceber que além das
autoridades determinarem a mudança do local de degredo dos condenados de um
lugar para outro através de leis, o Brasil estava em pleno processo de colonização,
ou seja, havia uma grande necessidade de se enviar pessoas para habitarem nas
terras americanas de Portugal, o mesmo poderia ter acontecido com Antonia Maria.
Com relação à não constar nenhuma referência no seu primeiro processo sobre a sua
vinda para o Brasil, entende-se que isso tenha ocorrido por conta do tribunal já não
possuir nenhuma jurisdição sobre os condenados. Após o auto de fé eles eram
entregues a justiça para que fossem encaminhados para o cumprimento das suas
13
Quarta parte dos delictos, e do accessorio a elles, título XVII de leis penaes sobre diversas cousas, Lei VIII
que se não degrade para a Ilha do Príncipe in Leis Extravagantes e Repertório das Ordenações de Duarte
Nunes do Lião, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987. p. 176.
14
Idem, Lei IX que o degredo para São Tomé se mude para o Brasil.
104
condenações, sendo assim a Inquisição não saberia se por questões práticas e/ou
financeiras, ela, Antonia Maria, haveria de primeiro aportar em Pernambuco, para
depois seguir para Angola.
No segundo processo também não consta nenhuma referência à mudança do local de
exílio. No início dele, quando ela é presa e entregue à justiça, em 1720, consta que
Antonia Maria re conciliada que foi por esta inquisição no auto público da fé que se
celebrou nesta cidade em 9 de julho de 1713 no qual abjurou culpas de feitiçarias,
sendo degradada para Pernambuco se acha relapsa nas mesmas culpas.
15
Ou seja, a Inquisição tinha o conhecimento de que Antonia Maria havia sido
degredada para Pernambuco, ou pelo menos que estava degredada em Pernambuco.
Todavia nenhum documento foi encontrado que possa nos esclarecer essa mudança
da localidade do exílio. Acredita-se que ela possa ter aportado aqui e que não tenha
seguido para Angola fixando-se nessas terras com o conhecimento e autorização das
autoridades competentes.
16
Não se sabe ao certo em que ano Antonia Maria chegou a Pernambuco, mas é
possível sugerir uma data aproximada. O auto de fé em que ela foi condenada e
15
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p.108. 1723.
16
Entendemos por autoridades competentes os encarregados de receber os degredados: juizes da localidade de
exílio, a Câmara da cidade, etc. As localidades estipulavam quem seria a pessoa ou qual seria o órgão
encarregado de os receber e fiscalizar. Sobre esse assunto ver Timothy J. Coates. Capítulo II (A base legal do
exílio como pena).
105
abjurou suas culpas celebrou-se em 09 de junho de 1713. No dia 10 de julho de 1713
ela “assinou”
17
um termo de segredo
18
onde se comprometia a nunca relatar o que se
passara nesse período em que estivera presa, e no dia 17 do mesmo mês e ano ela
“assinou” o termo de ida e penitência
19
. Sendo assim e levando em consideração que
não havia navios para Angola e que ela não poderia permanecer mais que três meses
encarcerada depois da leitura da sentença, e que ela teve que vir para Pernambuco e
essa viagem levava mais de um mês, ela aportou em Recife no final do ano de 1713.
Outro dado que nos faz acreditar nessa hipótese está no depoimento das primeiras
testemunhas que a acusaram em Pernambuco em julho de 1718. Os depoimentos dos
oito denunciantes afirmam que tudo aconteceu de tres para quatro anos, pouco mais
ou menos,
20
ou seja, se o ano é o de 1718 e estão denunciando que as magias
praticadas por Antonia Maria se deram três para quatro anos antes do depoimento,
essa conta nos remonta ao ano de 1714-1715.
Com relação à última indagação: quais os motivos que a levaram a permanecer em
Pernambuco, e principalmente no Recife e não em Olinda, por exemplo? Como foi
dito no segundo capítulo deste trabalho, Pernambuco era uma rica capitania e com
prósperos negócios. Acredita-se que Antonia Maria tenha sabido, ou percebido, esse
17
Antonia Maria não assinou esses documentos por não saber escrever. Eles foram lidos e ouvidos por ela e
assinados pelo escrivão com o consentimento da ré.
18
Termo de Segredo em anexos
19
Termo de ida e penitência em anexos.
20
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p. 120. 1723.
106
desenvolvimento, e durante o período em que ficou aportada em Recife esperando
seu navio para Angola, optou por permanecer degredada numa terra rica e com
possibilidades de ganhos para ela - como trabalho, casamento - do que se transferir
para Angola, terra mais distante de Portugal que Pernambuco e nem tão rica quanto
o Brasil. Nesse período Angola representava um dos lugares mais indesejáveis para
ser exilado, pois era um dos locais mais remotos e insalubres.
21
Recife acabara de ser elevada à categoria de Vila e passara pela Guerra dos
Mascates (1710-1711) de onde havia saído vitoriosa e fortalecida como grande
centro comercial e econômico. Somando-se a esses dados, Olinda era a morada da
aristocracia açucareira endividada e preconceituosa, da elite política e das famílias
tradicionais, ao contrário de Recife, centro comercial e onde se encontrava o porto,
passagem obrigatória para quem chegava à Capitania.
Essa guerra representou, segundo Evaldo Cabral de Mello, uma confrontação entre
a loja e o engenho (...) entre um Recife florescente que aspirava a emancipação e
uma Olinda decadente que procura mantê-lo numa sujeição irrealista.
22
Esse grupo
de comerciantes era impossibilitado de pertencer, ou aspirar a pertencer, à ‘nobreza
da terra’
23
assim, o antagonismo econômico, político e social
24
que circundava esses
21
COATES. Op. Cit. p.182.
22
MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos nobres contra mascates: Pernambuco 1666-
1715. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. p123.
23
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro,
Topbooks, 1997.p. 118.
24
MELLO.Idem.
107
dois grupos pertencentes a “elite” da sociedade pernambucana no início do século
XVIII, proporcionaram uma realidade distinta de outras regiões da colônia
brasileira.
Em 23 de dezembro de 1718, o escrivão João Cardoso enviou ao Tribunal da Santa
Inquisição de Lisboa, responsável pela colônia do Brasil, os depoimentos tomados
nos dias 21, 28 e 29 de julho contra Antonia Maria, informando a mesa do Santo
Ofício que ela re tinha reincidido nas mesmas culpas fazendo sortilégios, malefícios
e curas supersticiosas usando nelas de invocação do demonio.
25
No dia 08 de
fevereiro de 1719 a inquisição responde afirmando que as culpas eram bastantes
para a delata ser presa nos cárceres do santo oficio e que com efeito o
26
fosse. No
dia 23 de janeiro de 1720 é entregue pelo meirinho (...) João Botelho de Andrade ao
alcaide (...) Fernando Coutinho a presa Antonia Maria que [vinha] de
Pernambuco.
27
A partir desse momento Antonia Maria foi mais uma vez encarcerada e submetida a
três anos de depoimentos e a torturas psicológicas e físicas, culminando com a
condenação lida no auto de fé que se celebrou no dia 10 de outubro de 1723 tendo
como
25
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 249. 1723.
26
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 109. 1723.
27
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 107. 1723.
108
pena e penitencia de suas culpas [...] cárcere e hábito penitencial
perpetuo sem remissão e a degradam por tempo de 5 anos para a
cidade de Miranda. Será instruída nas causas da fé necessárias
para salvação da sua alma, e cumpra as mais penas e penitencias
espirituais que lhe forem impostas, e pague as custas.
28
Na condenação deste segundo processo, percebe-se que Antonia foi instruída a pagar
as custas do processo. Isso indica que possuía meios para tal, já que na condenação
do primeiro processo não é relatado esse fato; percebe-se também a posse de algum
bem quando de sua prisão e translado para Portugal, no auto de entrega o escrivão
afirma que Antonia Maria vem de Pernambuco na não caridade,
29
ou seja, sem
precisar que custeie a sua ida para a metrópole. Outro dado importante é que ela foi
novamente degredada só que desta vez para a cidade de Miranda, situada no
nordeste de Portugal, divisa com a Espanha, pelo tempo de cinco anos, diferente da
primeira condenação que foi por tempo de três anos para fora de Portugal.
Esse fato nos leva a perceber que além do degredo externo, ou seja, para as colônias
portuguesas na América, na África e na Ásia, também havia o degredo interno, ou
seja, algumas regiões de Portugal pouco povoadas como Castro Marim, ao sul e
Miranda, ao norte, eram localidades escolhidas para habitarem degredados. Havia
uma tabela onde se estabelecia que um ano de degredo no Brasil representava dois
28
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 254. 1723.
109
anos na África, dois anos no Brasil significava um ano nas galés. Toda a vida no
Brasil era o mesmo de 10 anos nas galés. O degredo passou a representar uma
necessidade do Estado português em acomodar os indesejáveis do Reino em locais
de pouca população, como essas localidades dentro do país, ou de baixa mão de
obra, como as colônias.
Algumas questões nos surgem quando analisamos os processos de Antonia Maria.
Segundo alguns historiadores, destacando-se Anita Novinsky, defendem que a
inquisição se estabeleceu no período moderno na Península Ibérica por questões
econômicas, afirmam que tanto a Espanha quanto Portugal necessitavam do capital
judaico e cristão-novo para financiar e manter suas ambições expansionistas e suas
colônias. Encontravam-se vazios [os] cofres do Tesouro (...) [e] os meios (...)
conseguidos (...) [são o] confisco dos bens dos condenados pela Inquisição.
30
Partindo do princípio econômico da perseguição com a finalidade do confisco dos
bens e sabendo-se que a maioria dos condenados por práticas heréticas,
principalmente a bruxaria, a feitiçaria e o curandeirismo, nada possuíam de valor
para que o fisco pudesse se apoderar, porque então eram eles perseguidos e
condenados? Os mágicos perseguidos em Portugal eram (...) quase todos de origem
29
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 107. 1723.
30
NOVINSKY. Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982. p. 30.
110
social humilde, sem qualquer formação literária,
31
situação semelhante se observa
em Pernambuco. O negro curador citado do processo de Antonia Maria, Domingos
João, era forro e não tinha emprego, o mesmo Páscoa Maria que era parda
32
. No
Arquivo da Torre do Tombo, em Portugal, constam alguns registros, que não se
tornaram processos, dentre eles o de uma negra escrava de nome Tereza, moradora
em Goiana,
33
de outra negra escrava de nome Lourença, moradora na Vila do
Recife,
34
e de uma mulher parda de nome Maria de Araújo, moradora na freguesia
de Varge do Capibaribe,
35
todos negros ou pardos, escravos ou forros, e que
portanto, não possuíam bens suficientes para que a Inquisição os confiscasse.
Portanto, com qual objetivo seriam esses curandeiros e mágicos presos por meses e
até anos, condenados ao degredo ou executados, sabendo-se que todo o ritual desde
a prisão até a condenação era custoso para a Inquisição e que não haveria confisco
satisfatório para suprir os gastos?
Antonia Maria foi condenada tanto no primeiro quanto no segundo processo ao
degredo. Apesar de no segundo ela ser obrigada a pagar as custas, não teve bens
confiscados o que sugere que ela estava de posse de algum bem adquirido em
Pernambuco. Ou seja, o bem que possuía só dava a garantia das custas do processo.
31
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e supertição num pais sem “caça as bruxas”: 1600-1774. Lisboa, Notícias
Editorial, 1997. p. 163.
32
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p 108v. 1723.
33
ANTT, livro 279, caderno 86. p. 238. 238v.
34
ANTT, livro 277, caderno 84. p. 149.
35
ANTT, livro 262, caderno 68. p. 210, 210 v, 211.
111
Já em seu primeiro processo ela teve seus bens confiscados, contudo acredita-se que
não tenha sido algo de muito valor, uma vez que confessa que fazia os sortilégio
pelo interesse de lhe darem alguma coisa
36
[e] por ser mui pobre.
37
Essa realidade financeira da ré é confirmada por uma das suas denunciantes
chamada Maria de Deus;
38
em seu depoimento afirma que a ré era cristã nova pouco
temente a Deus e mulher que [fazia] tudo por arte do diabo só por comer.
39
Já no
segundo processo a ré declara que fazia os sortilégios por razão da notícia que
houve naquelas partes de ela ter saído nesta inquisição,
40
ou seja, por ser procurada
pelos moradores que sabiam que ela havia sido degredada por prática de feitiçarias.
Diante de toda essa realidade financeira que não justificava a perseguição às bruxas,
feiticeiras e curandeiros em Portugal e no Brasil, partindo-se da premissa que esta se
deu por questões econômicas, questionou-se qual o sentido deste fato, uma vez que
não possuíam bens de valor que pudessem servir de garantias para o fisco. Segundo
alguns historiadores como Paiva
41
e Coates
42
não só de confisco de bens a inquisição
e o Estado português sobreviveu, de acordo com seus estudos o degredo como pena
era de muito valor para Portugal.
36
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 54v. 1713.
37
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 56. 1713.
38
Moça solteira, órfã de pai e mãe, natural e moradora na cidade de Beja em casa de sua irmã, de idade de 38
anos, mais ou menos. ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 23v. 1713.
39
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 24. 1713.
40
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 142. 1723.
41
PAIVA. Op. Cit.
42
COATES. Op Cit.
112
Um país como este, que possuía poucos habitantes e um pequeno território, não
tinha condições de colonizar as possessões da América, da África e da Ásia sem
utilizar o artifício da ocupação através da força. Ou seja, a teoria de que a instituição
da inquisição na Península Ibérica tenha se dado por questões meramente
econômicas para o Estado não é de todo completa. Pode-se dizer, portanto, que com
a necessidade de se colonizar as terras de além- mar, essa mesma inquisição - criada
para confiscar bens de judeus conversos - passou também a degredar homens e
mulheres com o intuito de habitarem regiões pouco povoadas tanto em Portugal
quanto nas terras conquistadas.
Essa teoria se torna mais forte quando se percebe que a introdução das heresias da
prática de artes mágicas foi inserida no contexto das perseguições depois da
instituição da inquisição em Portugal.
43
Como já citado: foi gradativa a ampliação
de seus objetivos até abarcar diversos tipos de comportamento e crenças [...]
feitiçarias, bruxarias, sodomia, bigamia, blasfêmias.
44
Dessa forma, compreende-se que os degredados serviram de mão-de-obra forçada
para os contingentes de “exércitos” que guardavam as colônias, além de uma
população masculina e feminina de hábitos portugueses (apesar de serem exilados)
43
Assunto já debatido no primeiro capítulo deste trabalho.
44
NOVINSKY, Anita.O tribunal da Inquisição em Portugal , São Paulo, Revista da Universidade de São
Paulo, 1987. p. 92.
113
para povoarem, habitarem e se fixarem nas terras conquistadas, repassando assim os
valores europeus para essas localidades colonizadas e reproduzindo-se por essas
terras.
Em Recife, Antonia Maria fixou-se na vila de Santo Antonio morando em casas
alugadas em companhia, por algum tempo de Joana de Andrade,
45
amiga da cidade
de Beja que também foi degredada por práticas de feitiçarias. Em Pernambuco,
declarou Antonia, logo se publicou o crime por que fora o dito degredo e
começaram a concorrer as casas dela re muitas pessoas, umas que lhes aplicasse
algum remédio aos ataques que padeciam outras que lhes adivinhassem algumas
coisas futuras
46
e que por conta dessa publicação ela foi induzida a iniciar os
trabalhos porque fora degredada, pois essas pessoas passaram a ter má vontade a ela
re argüindo-lhe de que ela lhes não queria fazer as merinhas só porque eles
padecessem os males nem lhes queria dizer o que lhe perguntavam só por lhes não
fazer este bem.
47
Em seu depoimento ela queixa-se que era uma mulher estrangeira
que foi para a dita cidade sem ter nela parentes alguns que lhe acudissem e
defendessem de tantos aleives quantos lhes levantavam os seus inimigos.
48
45
Antonia Maria e Joana de Andrade brigaram por questões pouco esclarecidas no processo. Joana se casou
com Joseph Pereira, cristão velho natural da vila, ela morreu de enfermidade não esclarecida; os denunciantes
de Antonia Maria declararam que ela morrera por feitiços feitos por Antonia Maria.
46
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p.208v. 1723.
47
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p. 208v- 209. 1723.
48
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067, p. 208v. 1723.
114
Percebe-se ainda que em nenhum momento ela se reporta a algum páro co ou amigo
que tenha lhe assistido ou dado apoio, abrigo, emprego, amizade ou conforto
espiritual, como lhe era cabido pela sua condenação em Portugal que afirmava que
ela seria instruída nas causas da fé necessárias para salvação de sua alma e
[cumpriria] as mais penas e penitencias espirituais que lhe [fossem] impostas.
49
Em
momento algum se percebe no processo que ela tenha tido aulas de catecismo ou um
acompanhamento por parte da Igreja ou das autoridades de Recife.
Em contra partida, percebe-se a influência que os padres confessores possuíam sobre
os denunciantes de Antonia Maria em Pernambuco. Alguns confessaram que só a
estavam denunciando por desencargo de sua consciência
50
e principalmente por
orientação dos seus padres confessores.
51
Nenhum deles admite estar denunciando
por questões particulares ou por ódio e mau vontade,
52
mas sim por serem obrigados
pelos confessores.
No primeiro processo, de Évora em 1713, os motivos que houve para que
denunciassem Antonia Maria não foi por orientação dos confessores, mas sim por
medo que Antonia Maria as denunciasse ao Santo Ofício, pois a delata (...)
49
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 96v. 1713.
50
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 119v, 121, 121v, 127v, 193v, 195, 195v, 196v, 197.
1723.
51
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 117v; 192v; 194; 195v; 197. 1723.
52
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 113v. 1723.
115
ameaçava (...) com a Santa Inquisição.
53
Outro motivo que as fizeram denunciá-la
foi o receio que ela fizesse algum sortilégio contra elas. Caetana de Jesus
54
em seu
depoimento assume que Antonia Maria as ameaçou que já que ele [Antonio da
Silva] não pagava (...) elas lhe pagariam pois tinha arte para tudo.
55
As denunciantes de Évora também se confessavam, mas em nenhum momento
admitem que seus confessores as orientaram para que denunciasse ao Santo Ofício o
ocorrido, diferente do procedimento dos confessores de Pernambuco. Estes
aconselharam os delatores para que procurassem o Tribunal Eclesiástico para
denunciá-la. João Pimentel
56
afirma que na ocasião em que veio del atar da
sobredita Antonia Maria a fizer pelos confessores assim o mandarem.
57
Assim como
Bárbara de Melo
58
que só denunciara Antonia Maria por ser obrigada de seus
confessores um dos quais era um religioso do Carmo
59
e ainda Maria Crisostoma
60
que declara ter denunciado Antonia Maria por assim o obrigar o dito comissário D.
Frei Bartolomeu do Pilar.
61
53
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 26v. 1713.
54
Moça donzela, órfã, 33 anos, moradora na cidade de Beja, depoimento em 22 de agosto de 1712.
55
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 26v. 1713.
56
Cristão velho, casado natural da Ilha de São Miguel e morador na Vila do Arrecife, de idade entre 40 e 43
anos. Depoimento dado em 21 de julho de 1718.
57
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 117v. 1723.
58
Casada com João Pimentel, natural da Ilha de São Miguel e moradora na vila do Recife, de idade de 50
anos. Depoimento dado em 28 de julho de 1718.
59
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 194. 1723.
60
Casada com Domingos Lobato de Almeida, de idade entre 23 e 24 anos. Depoimento dado em 01 de agosto
de 1718.
61
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 197. 1723.
116
Dessa forma percebe-se a presença dos religiosos das mais variadas ordens no
acompanhamento da vida espiritual dos moradores do Recife na primeira metade do
século XVIII, mas não se observa esse mesmo acompanhamento com Antonia
Maria, degredada.
Em Pernambuco havia inúmeros funcionários do Santo Ofício, dentre eles, os
familiares
62
que em geral eram leigos que, sem abdicar das suas actividades
profissionais, ajudava a Inquisição nas suas investigações, prisões e outras acções
pedidas nas instruções dos comissários ou directamente de Lisboa,
63
além de
fiscalizarem a sociedade e denunciarem os hereges a Câmara da cidade, este era o
órgão encarregado de receber as denúncias e de as encaminhar ao Tribunal em
Lisboa, para de lá, caso necessário, se instituir uma diligência, ou seja, tomar o
depoimento dos denunciantes.
Estes depoimentos eram enviados para o Tribunal na Metrópole, onde eram
analisados e caso se comprovasse a necessidade, o(a) denunciado(a) seria preso(a) e
encaminhado(a) para Lisboa. Caso os inquisidores não aceitassem, as denúncias
seriam arquivadas e não se transformariam em processo.
62
Já nos referimos a essa categoria de funcionários do Santo Ofício no capítulo 1.
63
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil, Verbo,
Lisboa/São Paulo, 1994. p. 332.
117
Dessa forma se deu com Antonia Maria. Ela foi denunciada a Câmara da Vila do
Recife e sua denúncia foi encaminhada pela Câmara para o Tribunal em Lisboa e de
lá se mandou fazer uma investigação e tomar o depoimento das testemunhas de
acusação.
64
Esses depoimentos foram encaminhados novamente para Lisboa e de lá
se autorizou à prisão de Antonia Maria e o início do seu processo que culminou com
o seu julgamento e condenação.
Não podemos deixar de mencionar que Bárbara de Melo tentou denunciar Antonia
Maria ao ouvidor de Pernambuco e que este não aceitou suas acusações. Seu
confessor a aconselhou que [ela] fosse ter com o ouvidor para que a fizesse [Antonia
Maria] ir cumprir o seu degredo para onde ela tinha saído o que ela testemunha
ainda que sem efeito pediu (...) ao ouvidor que a fizesse cumprir o seu degredo.
65
Algumas questões nos surgem com este fato. Porque o ouvidor se recusou a aceitar a
denúncia de Bárbara de Melo? Diante dessa recusa levantam-se algumas questões:
primeiro: prática de feitiçaria na província era uma constante e por esse fato o
ouvidor não deu importância às acusações de Bárbara de Melo; segundo: ele não se
sentiu responsável por receber denúncias desta natureza, sabido que o órgão
encarregado de as receber era a Câmara; e terceiro: o fato do romance de Antonia
com o marido de Bárbara já ter se tornado algo público, e portanto, o ouvidor não
64
Já relacionadas no início desde capítulo.
65
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 194. 1723.
118
levar em consideração as acusações contra Antonia Maria de práticas de feitiçarias,
acreditando se tratar de denúncias com propósito de vingança.
Pernambuco era uma terra onde se encontravam muitas denúncias de feitiçarias. Em
1671 a Câmara escreveu para Lisboa denunciando as inúmeras mortes de negros
escravos que assolavam o Estado por obra dos feiticeiros. O Príncipe respondeu em
6 de novembro de 1672 autorizando o governador Geral do Brasil Afonso Furtado
de Mendonça
66
para que realizasse uma diligência pelo recôncavo desta cidade para
que se averigúem estes damnos tirando se para isso devassa e avendo culpados
ordenareis que sejão castigados como dispõem as leys e ordenações do Reyno.
67
Além de autorizar a instituição da investigação para levantar os culpados, ele
autorizou o Governador para que ele se encarregasse de castigar os culpados, não
havendo a necessidade de os encaminhar a Lisboa para que se processasse os
encaminhamentos habituais.
Outras acusações de feitiçarias e artes mágicas denunciadas à Câmara em
Pernambuco e encaminhadas a Lisboa não se transformaram em processos. Dentre
eles estão os casos, já citados, das negras escravas Teresa e Lourença, e da parda
66
Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, também conhecido como o Visconde de Barbacena,
governou de 1671 a 1675. Colonial Governors from the fifteenth century to the present. The University of
Wisconsin Press Madison, Milwaukee and London, 1970.
67
AHU, códice 276, folha 74 in DPH da UFPE.
119
Maria de Araújo, além da parda Páscoa Maria e do negro forro Domingos João,
citados no processo de Antonia Maria.
Esse fato nos faz perceber que boa parte dos condenados por práticas mágicas em
Pernambuco era branca, diferente dos negros e pardos citados nesse período. Parece-
nos que a feitiçaria era “permitida” aos negros e pardos e não aos brancos. Em
Pernambuco tanto homens quanto mulheres, negras ou pardas, escravos ou forros,
eram consultados e denunciados, mas essas denúncias não se transformavam em
processo, diferente do caso de Antonia Maria, que aqui também foi denunciada e
processada, ao contrário de Páscoa Maria e Domingos João, entre outros, que por
serem parda e negro, respectivamente, coincidentemente não tiveram suas denúncias
transformadas em processo.
Outro dado que nos aguçou a curiosidade quando da análise destes processos,
principalmente em Pernambuco, é que nenhum dos denunciantes de Antonia Maria
que a procuraram para que ela realizasse algum tipo de reza, adivinhação ou
simpatia recebeu punição por parte do Santo Ofício; ao contrário, eles foram tidos
como vítimas. De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
68
havia punições para os que se consultassem com feiticeiros ou que participassem de
artes mágica,
69
contudo apenas Antonia Maria recebeu as penalidades cabidas nesses
68
Já citada e discutida no capítulo 2.
69
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 313, 314, 315, título IV, livro 5, cânone 894 a 898.
120
crimes, ao contrário dos que se consultaram com ela. Ou seja, as regras e leis
punitivas eram relevantes e postas em prática quando interessavam, assim aconteceu
com Antonia Maria, sua presença já não mais era de serventia para Pernambuco,
pois ela estava criando casos com moradores cristãos e seguidores da Igreja.
É relevante considerarmos que houve mistura dos ritos mágicos entre Antonia Maria
e Páscoa Maria. Em seu processo há denúncias de que ela teria se aperfeiçoado nas
artes mágicas com uma mulher parda de nome Páscoa Maria, também chamada de
Pascoazinha. Antonia Maria teria aprendido outras rezas e simpatias com o convívio
de Páscoa que era feiticeira conhecida na região.
70
Essa denúncia se comprova quando comparamos as simpatias, rezas e sortilégios
realizados por Antonia Maria em Beja, no primeiro processo, com as do Recife, no
segundo processo. A variedade de simpatias e rezas realizadas por ela em Recife é
notória.
A análise do contexto político e econômico de Pernambuco na primeira metade do
século XVIII nos faz reconstruir uma sociedade recifense com características
próprias e bem distintas. Nas terras duartinas havia uma grande permissividade com
os ritos não católicos. Isso se observa quando João Pimentel, Bárbara de Melo,
70
ANTT, maço 120, processo 1377, microfilme 14067. p. 119v. 1723.
121
Maria Crisostoma e Domingos de Almeida Lobato procuram um curandeiro para
realizar a quebra do “feitiço” de Antonia Maria. As rezas e chás desse curandeiro
fizeram mais efeito que o exorcismo do padre, feito em João Pimentel e sua esposa
Bárbara de Melo, além deles os inúmeros habitantes que procuraram Antonia para
os mais variados serviços.
Recife era uma terra de paragem para outras localidades, além de moradia para
estrangeiros. Não só Antonia, mais João Pimentel e Bárbara de Melo, além de
Francisco Rodrigues Chaves e sua esposa Maria Rodriguez de Aguiar, também eram
de fora. Somando a esses moradores, inúmeros comerciantes que circulavam
diariamente pela cidade trazendo consigo histórias e aventuras, além de mercadorias
e novos hábitos e costumes vividos em outras localidades. Toda essa circulação de
pessoas e culturas proporcionou à população, tanto leiga quanto eclesiástica,
coabitar com a presença de cristãos novos, judeus, feiticeiras e curandeiros, negros e
pardos livres e escravos, num misto de preconceito e respeito.
Após a leitura, transcrição e análise dos processos de Antonia Maria, além dos
documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico
Ultramarino, podemos observar que as práticas ritualísticas invocadas pelos
moradores, leigos ou clérigos, na Capitania de Pernambuco na primeira metade do
século XVIII, diziam respeito às necessidades primeiras desses moradores. Havia
uma precisão de respostas imediatas, o contrário do que a Igreja oferecia; as pessoas
122
que necessitavam desses “mágicos” eram freqüentadores das missas e dos rituais
católicos, comungavam e confessavam-se. Os rituais que tanto fascinavam, e
também amedrontavam a comunidade, dizia respeito a rezas, muitas aos santos
católicos, a simpatias e versos invocando deuses, do Céu e do inferno. O que tanto
fascinava era o espírito mágico e ritualístico que envolvia essas rezas, além do
anseio de se alcançar o desejado.
Essa realidade sócio-religiosa atingia os mais variados setores da sociedade.
Aspirante a padre necessitava saber com brevidade se seria ordenado; doentes
careciam de cura, sem se consultar com um médico letrado, o que nos faz crer que
os médicos eram de pouco número ou de pouca confiança. Maridos precisavam ser
acalmados pois as esposas necessitavam de fidelidade; comerciantes recorriam a
simpatias para poderem fazer bons negócios; ...
Essa era a realidade pernambucana no século XVIII. Uma capitania ao mesmo
tempo supersticiosa e devota. Onde os mais variados segmentos da sociedade se
refugiavam nos curandeiros, mágicos e feiticeiros para se assegurarem de seus
futuros, de seus negócios e de sua saúde. A eles era guardado todo o respeito, desde
que correspondessem as expectativas. A partir do momento em que punham em
risco os que se consultavam, todo o respeito a eles era substituído e passavam a ser
vistos como invasores de um espaço destinado aos seguidores e fieis católicos
cristãos.
123
Considerações FinaisConsiderações Finais
Iniciamos este trabalho dissertando sobre a Inquisição nos períodos
Medieval e Moderno e a diferenciação da implantação em um e outro
período. Ao contextualizarmos o período Moderno da perseguição nos
detivemos nos países da Península Ibérica e as “razões” econômicas,
políticas e religiosas que possuíram para estabelecê- la em seus
respectivos territórios, justamente num momento histórico de
descobertas no além- mar.
Percebemos que a instituição da Inquisição, principalmente em
Portugal, deu- se por questões econômicas e não religiosas, como já nos
havia esclarecido Anita Novinsky; todavia, avaliamos que com o
passar dos anos também foram somados, aos crimes heréticos de
judaísmo, o de feitiçarias e artes mágicas.
A inserção desses crimes demonstra que houve uma alteração no que
era considerado práticas mágicas, visto que elas existiam antes da
124
instituição da Inquisição mas que não eram observadas como perigosas
a ponto de porem em risco a unidade da Igreja Católica. Ou ainda por
elas não serem praticadas por membros da sociedade que possuíam
bens a serem confiscados.
Também nos detivemos a examinar os motivos da chegada desta
Inquisição em território brasileiro, particularmente à Capitania de
Pernambuco, e quais as razões que a fizeram ficar bandeira numa terra
considerada propícia para acolher refugiados de outros países e
condenados ao degredo em suas sociedades. A partir desse ponto
analisamos a economia e a política pernambucana.
Fez- se necessário avaliar o desenvolvimento da religião Católica
Apostólica Romana e dos clérigos que habitavam a Capitania, tendo em
vista as práticas eclesiásticas e também leigas da sociedade do final do
século XVII e início do século XVIII, principalmente no que diz
respeito ao cumprimento das leis que os regiam.
Esse corte temporal se fez necessário para podermos entender e avaliar
como se encontrava a Capitania às vésperas da chegada da condenada
ao degredo, por práticas de feitiçaria, Antonia Maria.
125
Finalizamos nosso trabalho descrevendo as “práticas mágicas” e os
sortilégios efetuados por Antonia nos, aproximadamente, 6 anos em
que viveu em Recife. Também discorremos sobre sua clientela e os
pedidos ao qual a “feiticeira” era solicitada a efetuar.
Ao findar a análise dos processos desta mulher, chegamos a algumas
conclusões. Primeiro: a punição a quem praticasse “artes mágicas” era
o degredo, e não mais a fogueira, como no período Medieval. Ou seja,
o degredo passou a servir como punição a partir do momento em que
era usado como forma de colonização das novas terras descobertas.
Segundo: o número de pardos e negros “feiticeiros” e “curandeiro” em
Pernambuco era bastante significativo. Associado a esse dado,
percebemos uma maior permissividade aos feiticeiros descendentes de
negros e índios (e não aos brancos) sabido que a eles não incorria
nenhum tipo de repressão por seus “atos mágicos”.
Terceiro: as mais diferentes e variadas camadas sociais se consultavam
com “curandeiros” e “feiticeiros”. Desde prostitutas ansiosas por um
casamento, passando por comerciantes desejosos que seus negócios
prosperassem, até mães preocupadas com os casamentos das filhas
126
solteiras e esposas querendo amansar seus maridos, até clérigos
desejosos de conhecer os futuros de suas carreiras religiosas.
Sendo assim, não faltavam clientes para proporcionar o sustento
necessário para uma mulher que habitava uma vila como Santo Antônio
no início do século XVIII. Mulher esta que não possuía nenhum
parente ou ajuda de amigos ou religiosos para se suster na terra ao qual
estava degredada.
127
Documentos primários consultadosDocumentos primários consultados
1- Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) in Divisão de Pesquisa
Histórica(DPH)
Códice 257, folha 8v.
Códice 265, folhas 258v, 259, 259v.
Códice 276, folha 74.
2- Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT)
Livro 262, caderno 68, folhas 210, 210v-211.
Livro 277, caderno 84, página 238-238v.
Livro 279, caderno 86, página 149.
Maço 120, documento 1377, microfilme 14067.
128
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140
Cena de
tortura da
polé
Execução da
fogueira
Vista externa
do cárcere
Vista interna
do cárcere
141
Desenho de Goya: cena do garrote, uma das formas de execução dos
condenados da Inquisição, usada para aqueles que “queriam morrer
como cristãos” antes de serem queimados.
142
Execução dos condenados pelo tribunal da Inquisição de Lisboa.
Percebe-se a quantidade de pessoas assistindo a execução dos
condenados a morte.
AnexosAnexos
136
Este texto está impresso no processo de Antonia Maria, as partes
sublinhadas significam a escrita do escrivão e das testemunhas.
Abjuração em forma
Eu Antonia Maria perante vós senhores inquisidores, juro
nestes santos evangelhos em que tenho minhas mãos, que de
minha própria e livre vontade anathematizo e apartio de mim
toda espécie de heresia que for ou se levantar contra nossa
Santa Fé Católica e Sé Apostólica especialmente estas em que
cai, e que agora em minha sentença me foram lidas, as quais hei
por repetidas aqui, e declaradas. E juro de sempre ter e guardar
a Santa Fé Católica que tem e ensina Santa Madre Igreja de
Roma e que farei sempre muito obediente ao nosso mui Santo
Padre Papa Clemente Undécimo, nosso senhor presidente na
Igreja de Deus, e a seus sucessores e confesso que todos os que
contra esta Santa Fé Católica vierem são dignos de condenação
e juro de nunca com eles me ajuntar e de os perseguir e
descobrir as heresias que deles souber aos inquisidores ou
prelados da Santa Madre Igreja e juro e prometo quanto em
mim for de cumprir a penitência que me é ou for imposta e se
tornar a cair nestes erros ou em outra qualquer espécie de
heresia quero e me praz que seja havido por relapso e castigado
137
conforme o direito, e se em algum tempo constar o contrário do
que tenho confessado ante vossas mercês por meu juramento a
severidade e correição dos sagrados cânones. E requeiro aos
notários do Santo Ofício que disto passem instrumentos e aos que
estão presentes sejam testemunhas e assinem aqui comigo e de
consentimento da re por dizer não sabia escrever assinei por ela
e mais testemunha abaixo assinados Fabiam Bernardês o sob-
escrevi.
João Souza de Carvalho
Fabiam Bernardes
138
Este texto está impresso no processo de Antonia Maria, as partes
sublinhadas significam a escrita do escrivão e das testemunhas e as partes
não preenchidas representam que não foram completadas pelo escrivão.
Termo de Segredo
Aos ___ dias do mês de outubro de mil setecentos e vinte e
três anos em Lisboa nos estaos e casa do despacho da Santa
Inquisição estando ali em audiência da manhã os senhores
inquisidores mandaram vir perante si do cárcere da penitencia
a Antonia Maria re presa contenda neste processo e sendo
presente lhe foi dado o juramento dos santos evangelhos em que
pôs a mão sob-cargo dele lhe foi mandado que tenha muito
segredo em tudo o que viu e ouviu nestes cárceres e com ela se
passou a cerca de seu processo e nem por palavras nem escrito
se descubra, nem por outra qualquer via que seja sob pena de
ser gravemente castigada o que tudo ela prometeu cumprir e
sob-cargo do dito juramento de que se fez este termo de
mandado dos ditos senhores que assinei pela ré de seu
consentimento. Manoel de Figueiredo.
139
Este texto foi escrito de próprio punho do escrivão. As partes não
preenchidas representam que o escrivão não as completou.
Termo de ida e penitência
Aos ____ dias do mês de outubro de mil setecentos e vinte e
três anos. Em Lisboa nos estaos e casa de despacho da Santa
Inquisição estando ai em audiência de ________ os senhores
inquisidores mandaram vir perante si a Antonia Maria re
contenda nestes autos por constar estava instruída e confessada.
E sendo presente lhe foi dito que ela não torne a cometer as
culpas por que foi presa e processada neste Sa nto oficio nem
outras semelhantes porque será castigada com todo o rigor de
pública e que trate em sua vida e exemplo de dar mostra e boa
fé católica cristã e cumpra o degredo em que foi condenada e o
mais que se contém em uma carta que lhe será dada o que
prometeu fazer sob cargo do juramento dos Santos Evangelhos
de que fiz este termo e assinei pela re de seu consentimento.
Rogo João Cardoso o escrevi.
140
Mapa de Portugal
Fonte: Joel Serrão e António Henrique de Oliveira Marques in Timothy J.
Coates. p. 291.
Miranda
Lisboa
Évora
Castro
Marim
Beja
141
Todas as imagens que se seguem foram retiradas do livro História das
Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Séculos XV-XIX. Do autor Francisco
Bethencourt.
Cena de tortura da polé.
142
Cenas de Tortura: a
primeira se refere a do
Potro ao qual Antonia
Maria foi submetida.
144
Representação de um auto de fé. No primeiro plano vê-se os
condenados em cima de mulas, sendo conduzidos pelas autoridades
civis e acompanhados por religiosos para o local de execução. Em
cima do palco, a cena central corresponde ao rito de degradação de
um clérigo pelo bispo da respectiva diocese. À esquerda, a escadaria
dos funcionários do tribunal e dos convidados, diante da qual, em
cima de um púlpito, um clérigo lê a sentença de um condenado, que
está sentado com uma vela na mão. Os sentenciados estão do lado
direito do palco, enquanto ao fundo se vê um altar com a cruz,
rodeado de dois baldaquinos, sob os quais se encontram os
inquisidores e a família real.
145
Hábitos penitenciais dos sentenciados chamados de “sambenitos”.
Eram feitos de linho cru pitado de amarelo. No caso dos reconciliados
era pintada uma cruz de Santo André (gravura do meio); no caso dos
condenados que tinham se salvado nos últimos dias com uma
confissão, eram pintadas chamas viradas para baixo (gravura da
esquerda); no caso dos relaxados, tinham o retrato pintado entre
chamas e grifos, com o nome e as “culpas” inscritas embaixo (gravura
da direita). Os reconciliados eram obrigados a usar o sambenito
durante um certo período.
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