Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL – CAMPUS DE FRANCA
THAÍS LIMA BENEDETTI
O reinado de Æthelred II (978-1016) e os seres monstruosos em Beowulf
FRANCA
2004
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
THAÍS LIMA BENEDETTI
O reinado de Æthelred II (978-1016) e os seres monstruosos em Beowulf
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
História, Área de Concentração História
e Cultura Social, da Faculdade de
História, Direito e Serviço Social da
UNESP, campus de Franca, sob
orientação da Profa. Dra. Néri de Barros
Almeida.
FRANCA
2004
ads:
3
THAÍS LIMA BENEDETTI
O reinado de Æthelred II (978-1016) e os seres monstruosos em Beowulf
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História,
para obtenção do título de Mestre, Área de
Concentração História e Cultura Social, da
Faculdade de História, Direito e Serviço
Social da UNESP, campus de Franca, sob
orientação da Profa. Dra. Néri de Barros
Almeida.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Néri de Barros Almeida
Orientadora / UNESP-Franca
Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior
UFRJ / RJ
Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel
UNESP / Franca
4
À minha família,
Angela, Assis,
Tatiana e Julio.
5
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Néri de Barros Almeida, um
verdadeiro exemplo de conduta profissional e
caráter, pela orientação segura deste trabalho, pela
confiança e amizade.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP) pela bolsa concedida, sem a
qual esta pesquisa não teria sido possível.
Aos colegas do Grupo de Estudos da Memória e
do Parentesco na Idade Média (UNESP/CNPq)
pelas sugestões e discussões acadêmicas, e
principalmente à Claudia Regina Bovo pelo
convívio, amizade e incansável colaboração.
Aos meus pais, Angela e Assis, e aos meus
irmãos Tatiana e Julio, pela paciência, apoio e
incentivo.
Aos meus grandes amigos: Thaísa e Márcio,
Maria Ângela, Camila, Raquel, Karin, Elton, Renata
e Lidiane.
À Faculdade de História, Direito e Serviço
Social de Franca – Campus da UNESP pela
infraestrutura necessária à conclusão desse trabalho,
e aos seus professores e servidores pela cooperação
e ensinamentos.
6
“Ao homem, colocado entre o Céu e a Terra, foi dada a Razão, o
Saber e a Força, a fim de que, pensando, agindo, distinguindo,
pudesse mover-se em tal harmonia, educar-se e ser feliz.”
Wladimir Lindemberg
7
RESUMO
Estudar as funções dos seres monstruosos na literatura medieval remete-nos
à organização da sociedade transcrita nestes textos e daquela responsável pelo seu registro,
envolvida na reciprocidade social e no poder delimitados por laços interpessoais.
Com o objetivo de delimitar melhor as relações entre a aristocracia e as
estruturas sociais da Alta Idade Média, estudamos a Inglaterra anglo-saxônica por meio de
seu maior e mais antigo poema, o anônimo Beowulf, transcrito por volta do ano Mil que,
além de valiosas referências aos laços existentes entre a aristocracia guerreira, estrutura-se,
de nosso ponto de vista, fundamentado nas diversas funções desempenhadas pelos monstros
Grendel, sua mãe (um monstro-fêmea) e um dragão, que devastam a corte dinamarquesa e
geat.
Pela data de transcrição de Beowulf, a atenção contextual abrange o reinado de
Æthelred II (978-1016), marcado pelas invasões vikings e pela insegurança material e moral.
A análise das personagens caracterizadas como monstruosas mostrará que o poema épico
acompanha estes anos agitados, registrando nas suas entrelinhas a presença da guerra e da
traição entre os homens, constantes no final do século X e início do século XI.
Palavras-chave: Idade Média – Inglaterra – monstros – sociedade anglo-saxônica - Æthelred II
8
ABSTRACT
To study the roles of the monstrous beings in medieval literature take us to the
organization of the society written in theses texts and of that responsible for its register,
involved in both social reciprocity and authority delimited by interpersonal ties.
With the objective of fixing the boundaries better the relationships between the
aristocracy and the social structures of the High Middle Ages, we study anglo-saxon England
using its longest and oldest poem, the anonymous Beowulf, written near 1.000 a.C. which,
besides precious references to the relationships between warlike aristocracy, is structured, on
our point of view, in the various functions played by the monsters Grendel, its mother, a
female monster and a dragon, which destroy the geat and Danish court.
The dating of the Beowulf’s transcription leads us to the contextual attention in
the reign of Æthelred II (978-1016), when viking invasions and material and moral insecurity
took place. The analysis of the monstrous characters will show that the epic poem accompany
these disturbed years, recording in its lines the presence of warfare and treachery among men,
constant at the end of the tenth and beginning of the eleventh centuries.
Keywords: Middle Ages – England – monsters – anglo-saxon society - Æthelred II
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração I - Mapa do estabelecimento escandinavo na Inglaterra no
início do século X............................................................................................................22
Ilustração II - Uma página de Beowulf do Cotton Vitellius MS., Museu
Britânico ..........................................................................................................................36
10
SUMÁRIO
1. Introdução.........................................................................................................................11
2. Capítulo I – Os reinos e as invasões vikings...................................................................19
2.1. A responsabilidade real rumo à insegurança...............................................................19
2.2. As “narrativas de derrota” e Beowulf, séculos X-XI...................................................32
3. Capítulo II – A guerra e a floresta: considerações sobre a estrutura
tripartite de Beowulf......................................................................................................44
4. Capítulo III – As nomeações dos seres monstruosos: uma análise das
categorias sociais anglo-saxônicas................................................................................69
5. Conclusão .........................................................................................................................91
6. Referências bibliográficas ..............................................................................................94
11
1. Introdução
Na atualidade, o estudo da Inglaterra medieval vem ganhando espaço nas
universidades brasileiras com pesquisas que abrangem temas de análise histórica e literária
1
.
Especificamente, o estudo da Inglaterra anglo-saxônica
2
oferece-nos um leque de documentos
e possibilidades de análise, embora se encontre comprometido pela natureza fragmentária das
fontes textuais que temos conhecimento e pela dificuldade em datá-las precisamente. Embora
as dificuldades possam existir em grande número, a utilização de outras áreas do
conhecimento no estudo da Inglaterra medieval é de grande eficácia. O estudioso cujo
interesse acadêmico volta-se à Bretanha insular medieval pode utilizar a arqueologia, a
climatologia, a toponímia e a antropologia como uma contribuição segura e fértil no
desenvolvimento de suas pesquisas
3
.
O documento por nós selecionado, Beowulf, é considerado o maior e mais
completo poema que conhecemos da Inglaterra da Alta Idade Média, contendo 3.182 versos
em Old English, ou Inglês Antigo. Transcrito por volta do ano mil
4
, a trama principal relata a
luta de um guerreiro contra três seres monstruosos e, embora o enredo central pareça simples
e trivial
5
, o estudo das funções monstruosas na obra ainda é matéria de debate.
A data de transcrição do documento coloca-nos diante do reinado de Æthelred
II (978-1016) e às inconstâncias políticas vivenciadas pelos anglo-saxões, frutos de
acontecimentos ligados ao desempenho da função real frente às mudanças internas e à defesa
1
É oportuno dizer que já existe no Brasil um grupo de estudos anglo-germânicos que publica a revista virtual
BRATHAIR sobre temas célticos e germânicos, cuja sede é a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível
em: <http://www.brathair.cjb.net>, ISSN 1519-9053.
2
Referimo-nos ao período que se inicia com o estabelecimento dos anglos, saxões e jutos na Bretanha insular em
449 d.C. e finaliza-se com a Conquista Normanda, em 1066.
3
LOYN, H. R. Anglo-saxon England: reflections and insights. History, v. 64, n. 211, 1979, p. 171-181.
4
O dialeto em que foi transcrito o poema, o Antigo Alto Saxão, é característico do ano mil. CHICKERING Jr.,
H. D. (Ed.). Beowulf: a dual-language edition. New York: Anchor Books, 1977, p. 245. As discussões em torno
da datação do poema são discutidas na introdução, com a apresentação do documento.
5
KER, W. P. Medieval English Literature. London: Oxford University Press, 1962, p. 23.
12
do reino contra os ataques externos provocados pelas invasões vikings. Este período é um dos
mais bem documentados da história anglo-saxônica, em que “conquista e crise foram o maior
estímulo da escrita de narrativas históricas nos séculos X e XI” na Inglaterra
6
, fazendo surgir
nas entrelinhas da escrita produzida nestes anos uma certa “percepção histórica”. Esse
estímulo à escrita foi influenciado pela crise externa e interna, pelos temas de conquista e
colapso, e pelo senso de uma Inglaterra desunida, em “um desejo de explicar e uma
necessidade de recordar o passado imediato”
7
, sob a ótica da derrota
8
.
Pela data de transcrição de Beowulf, a atenção contextual abrange a primeira
fase do reinado de Æthelred II, o que inclui os primeiros 25 anos de seu governo, pouco mais
da metade do período que reinou. Para entendermos esse período faz-se necessária uma
comparação com reinados antecessores, inevitável pelo fato deste rei ter rompido com uma
“tradição de chefia” baseada na paz, na prosperidade e na conquista de outros reinos. Esta
“tradição” iniciou-se com o rei Alfred o Grande no final do século IX e seus sucessores,
pertencentes à casa real de Wessex e cada qual com sua política, consolidaram uma certa
harmonia interna e a defesa dos ataques vikings, o que não foi conseguido no reinado de
Æthelred II.
Por sua vez, os seres monstruosos estão presentes em toda a literatura
medieval, inserida em uma visão de mundo própria do período. Na Inglaterra, sua presença é
constante, registrados na forma de dragões vistos como símbolos figurados em estandartes ou
como prenúncios da fome, como o monstro canibal com corpo humano e cabeça de leão,
6
STAFFORD, P. Unification and conquest: a political and social history of England in the tenth and eleventh
centuries. London: Hodder Headline, 1989, p. 6
7
Ibid., p. 3-4. Segunda esta historiadora, a Crônica Anglo-saxônica relata o reinado de Æthelred II pela ótica da
derrota, não vendo uma possível causa ao colapso do reino por acontecimentos provenientes de fora – ataques
vikings - ou pelo colapso moral, e sim pela traição e liderança pobre internas. Na Crônica, não foram os ingleses
derrotados, mas seus líderes (p. 15). Enquanto o reinado de Alfred o Grande é contado pela perspectiva da vitória
ou paz, o de Æthelred o é pelas profundezas da derrota (p. 59).
8
O maior exemplo da oposição paz-derrota é a Crônica Anglo-saxônica.
13
Donestre, do texto Wonders of the East, compilado no início do século X e final do século XII
ou o monstro Gogmagog presente no centro do governo civil londrino citado por Cohen
9
.
Como uma contribuição à interpretação das funções dos monstros medievais,
buscamos analisar as personagens caracterizadas como monstruosas em Beowulf de acordo
com o contexto de sua transcrição, em uma tentativa de perceber como elas podem denunciar,
de certo modo, o que estava ocorrendo na Inglaterra anglo-saxônica durante o reinado de
Æthelred II.
Pensar as funções das personagens caracterizadas como monstruosas em
Beowulf é imprescindível para qualquer tentativa de interpretação dos propósitos de sua
transcrição. Assim, pretendemos analisá-las percebendo como elas acompanham ou desviam-
se das “narrativas de derrota” do reinado de Æthelred II, denunciando a situação de desastre
que assolou a Inglaterra no final do século X.
A utilização de outras fontes no embasamento contextual torna-se
imprescindível em nossa pesquisa. Por isso, selecionamos a Crônica Anglo-Saxônica
10
– cuja
transcrição foi iniciada no reinado de Alfred o Grande e continuou até 1054 – que consiste em
uma compilação dos principais acontecimentos deste recorte temporal, na forma de anais.
Existem várias versões da Crônica, das quais três se remetem a uma Inglaterra além da
Conquista Normanda e contribuem para nos fornecer referências sobre o contexto histórico, já
que registrou notadamente ataques vikings, mortes de bispos e duques, casamentos realizados
entre a aristocracia, entre outras. Utilizamos as versões A, B, C e D. O manuscrito A traz uma
9
A Crônica Anglo-saxônica (manuscritos D, E) narra que no ano 793 na Nortúmbria relâmpagos e “dragões
cuspindo fogo foram vistos voando no ar. Uma grande fome imediatamente seguiu-se a estes sinais [...]”, em D.
Whitelock, English historical documents (c. 500-1042), Eyre&Spottiswoode (London, 1955), p. 167; os dragões
vistos como símbolos são comentados por W. Chaney, The cult of kinship in Anglo-saxon England, Manchester
University Press (Manchester, 1999), p. 127-128. Em 1415, Henry V ergueu uma estátua do gigante Gogmagog
na torre de Londres, uma tentativa de memorizar o passado histórico da Inglaterra, já que para Cohen a presença
constante dos monstros há história da Inglaterra resume-se em uma tentativa de assimilação do que é estranho.
COHEN, J. J. Of giants: sex, monsters and the Middle Ages. Minneapolis, London: University of Minnesota
Press, 1999, p. 1-3 e p. 29. O texto Wonders of the East pertence ao MS Cotton Tiberius Bv folio 83v, na
Livraria Britânica.
10
WHITELOCK, D. (ed). The Anglo-saxon Chronicle. London: Eyre&Spottiswoode, 1961.
14
breve transcrição dos eventos e é contemporâneo ao século X. O manuscrito B foi transcrito
no final do século X e traz, notadamente, registros sobre conflitos na Mércia; o manuscrito C
é uma compilação feita no reinado de Edward o Confessor, em Abingdon. Os anais deste
último manuscrito “se apresentam como um catálogo dos ataques dos invasores vikings
11
. O
manuscrito D é uma compilação feita no norte, provavelmente em York, no final do século
XI
12
. O cronista estava obcecado com eles durante o reinado de Æthelred II e sabia que o
reino inglês estava próximo do fim, com a Conquista Normanda. Provavelmente a maior parte
do manuscrito foi transcrita poucos anos após os eventos descritos.
Alguns outros documentos foram utilizados para fornecer mais informações
sobre o contexto histórico e a organização social anglo-saxônica. Todos estes documentos
foram organizados e publicados por Whitelock
13
, em English Historical Documents (c. 500-
1042), em 1955, e servirão como ponto de apoio na contextualização dos séculos X e XI.
Sobre o reinado de Æthelred II (978-1016), utilizamos o tratado de paz
firmado entre o rei Æthelred II com o exército dinamarquês em 991; um códice emitido em
Wantage de 978 a 1008 pelo mesmo rei, durante uma reunião da assembléia, com importantes
informações sobre a organização social da área de influência dinamarquesa, o Danelaw; o
códice de Æthelred II promulgado em 1008.
Da mesma maneira, contribui para os temas da prática guerreira o códice de
Edmund (940-946) relacionado ao fæhđ
14
, um documento que mostra como era comum e
funcionava a prática da vingança privada na metade do século X, e que nos ajuda a
compreender a importância da guerra para a sociedade anglo-saxônica. Algumas outras leis e
códices emitidos ao longo da história anglo-saxônica dão embasamento histórico a assuntos
como as práticas de traição e a importância da função real, entre outros. São eles: as leis de
11
LAVELLE, R. Æthelred II: King of the English, 978-1016. Gloucestershire: Tempus, 2002, p. 47.
12
Os dados sobre a Crônica Anglo-saxônica são de Stafford. STAFFORD, op. cit.
13
Ibid.
14
Este documento sobreviveu nos manuscritos do início do século XII, no códice C.C.C.C., MS. 383, segundo
Whitelock, 1955, p. 391.
15
Ethelbert de Kent (602-3), as de Hlothhere e Eadric (673-685) de Kent, as de Wihtred (695)
de Kent, as de Ine de Wessex (688-694), as de Alfred (871 a 899) de Wessex, o tratado entre
Alfred e Guthrum (886-890), as leis de Athelstan proclamadas em Grately (924-939) e em
Exeter e o códice de Edgar emitido em Wihtbordesstan (962-963). A utilização desses
documentos que retrocedem no tempo justifica-se apenas para sustentar e informar o assunto
tratado.
É válido ressaltar, neste momento, que não nos compete definir uma
classificação dos diversos “tipos físicos” monstruosos, como Kappler fez em seus estudos
sobre os monstros no final da Idade Média
15
. Da mesma forma, não pretendemos relacionar
os monstros do poema com outras fontes que trazem tais seres, por acreditar que relacioná-los
entre si adequa-se mais às intenções dos folcloristas em perceber a presença monstruosa nos
diferentes espaços geográficos – e para isso uma grande variedade de documentos é
imprescindível – que às preocupações do historiador com limites temporais e espaciais
16
.
Como nossa atenção incide exclusivamente no contexto político-social anglo-
saxônico, não nos é proveitoso classificar ou relacionar os seres monstruosos em Beowulf
com outras fontes que também trazem tais seres, já que nosso comprometimento com a
análise do conteúdo do poema parece-nos mais expressivo no alcance dos propósitos do nosso
estudo.
Assim, as análises das personagens caracterizadas como monstruosas em
Beowulf estão organizadas em duas partes distintas: (a) a análise do espaço-tempo e da
ocorrência da guerra e (b) as nomeações dos seres monstruosos.
15
KAPPLER, C. Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
Os monstros presentes nas narrativas de viagem do século XIII ao XVI analisados por Kappler são sobretudo
visuais, ou seja, são imagens que tomavam forma nas conotações dos habitantes do Oriente e África. Por serem
visuais, a forma e a descrição física destes monstros ganharam uma atenção maior. Já Beowulfo permite uma
análise tão detalhada do tipo físico dos monstros porque em todo o texto as descrições físicas destes seres são
muito poucas se referentes às ações que praticam e os nomes que lhes são atribuídos.
16
Nossa preocupação não é coletar registros monstruosos em diversos documentos, mas refletir unicamente as
funções dos três monstros em Beowulf e o que elas podem contribuir para se pensar o contexto anglo-saxão do
final do século X e início do século XI.
16
Primeiramente, nosso estudo do conteúdo documental está voltada ao eixo
espaço-tempo. A dimensão espacial é-nos de grande utilidade na medida em que contribui no
estabelecimento das diferenças entre ambientes e, portanto, de mudanças de atitudes dos
guerreiros. Ela é identificada com a floresta e suas variáveis – que apresentam funções
similares de moradia monstruosa, como pântanos, pauis, charnecas, montanhas, lagos, colinas,
penhascos – contra a corte – moradia do rei e seus guerreiros e espaço cultural pela
assimilação de códigos de conduta e comportamento reconhecidos entre os homens, como o
juramento de lealdade, o banquete e a troca de tesouros. À dimensão espacial liga-se a guerra
pelo fato de que tanto uma como outra confluem na progressão das situações de fragilidade
sentida pelos homens.
Diferentemente dos seres monstruosos analisados por Kappler
17
ou pela
própria metodologia folclórica
18
, os seres monstruosos em Beowulf podem ser percebidos em
duas condições distintas. Em primeiro lugar, eles raramente são definidos pela sua natureza
física, e suas presenças são constatadas a partir de suas ações. São, primeiramente, seres
monstruosos que agem pela prática da guerra. Em segundo lugar, eles são nomeados como
pertencentes a diversas categorias sociais: são “solitários”, “estrangeiros”, “convidados”,
“traidores”, “violentos”, “exilados”, ou seja, categorias que se opõem
19
à coesão social que é a
base da organização aristocrática guerreira
20
.
Estas categorias serão analisadas por sobreporem as posições sociais
monstruosas às humanas em uma interpretação contextual da sociedade. A relação entre os
17
Kappler, op. cit.
18
Referimo-nos à análise morfológica, entendida como um “sistema desenvolvido de classificação de acordo
com a morfologia” (Barnes, p. 417), que procura paralelos de episódios narrativos na literatura. BARNES, D. R.
Folktale morphology and the structure of Beowulf. Speculum, n. 3, 1970, p. 416-434; SCOWCROFT, R. M. The
Irish analogues to Beowulf. Speculum, v. 74, n. 1, 1999, p. 22-65.
19
A oposição constatada entre as categorias sociais e a organização aristocrática tem como fundamento a ameaça
e o medo trazido por convidados, estrangeiros, solitários, exilados presentes na corte real bem como em atos de
traição e violência.
20
Há exemplos da natureza psicológica dos seres monstruosos, como sede de vingança e perfis de caráter
psicológico forte como cautela, ódio, sentimento de perda, fazendo com que Tolkien os classificasse como
personificações da malícia por terem pensamento próprio. TOLKIEN, J. R. R. The monsters and the critics and
other essays. London: HarperCollins, 1997, p. 17.
17
seres monstruosos e essas categorias sociais está aliada a uma acepção simultaneamente
“positiva” – a da amizade e lealdade como fortalecimento de interesses políticos recíprocos –
e “negativa” – a ameaça representada pela traição e covardia constatadas dentro de um grupo
social. Esta acepção negativa é melhor percebida nos finais do século X na Inglaterra anglo-
saxônica.
A análise documental apoiou-se na trama principal: os guerreiros e os reis
Hrothgar e Beowulf contra Grendel (aglæca), sua mãe (modor, aglæca-wif) e o dragão
(draca, wyrm). Cabe ressaltar, ainda, que a tradução de Beowulf para o Português foi feita por
nós, com o auxílio do A Concise Anglo-saxon Dictionary, de Hall
21
, de 1960 e breves
consultas ao dicionário de Pollington, Wordcraft: Concise New English to Old English
dictionary and thesaurus
22
, de 1993. Os dicionários trazem traduções do Inglês Antigo para o
Inglês Moderno, sendo de total responsabilidade nossa as traduções do Inglês Moderno para o
Português
23
.
Os capítulos estão organizados de acordo com as temáticas a serem tratadas. O
primeiro capítulo, subdividido em dois tópicos, contempla o contexto histórico e a política de
Æthelred II, bem como fornece uma breve apresentação de Beowulf e sua relação com as
“narrativas de derrota” do final do século X. Esta expressão por nós criada é decorrente da
constante visão de fontes primárias, como a Crônica-anglo-saxônica, que acentuam tão
21
HALL, J. R. C. A concise anglo-saxon dictionary. Cambridge: University Press, 1960. Optamos pela tradução
literal dos termos, e não a literária.
22
POLLINGTON, S. Wordcraft: Concise New English to Old English dictionary and thesaurus. Norfolk,
England: Anglo-Saxon Books, 1993.
23
A versão traduzida de Beowulf feita por Ary Gonzalez Galvão em 1992 foi descartada pela insatisfatória
tradução literal de verbetes que mudam o sentido dos termos. Um exemplo é que Galvão utiliza-se dos termos
“guerreiro” e “nobre” constantemente, o que acreditamos gerar uma certa confusão cronológica. O termo
“nobre”, a nosso ver, foi consagrado pela historiografia como referente à categoria social que surgiu no século
XI, primeiramente na Gália, com uma mudança única sobre os laços de parentesco, que passaram a estar
apoiados na indivisibilidade da herança e no reconhecimento da linhagem. Embora os dicionários tenham
contribuído muito para desvendar o significado dos termos originais, sentimo-nos mais seguros recorrendo
constantemente à utilização da excelente tradução do Inglês Antigo para o Inglês Moderno feita por Chickering
em 1977. CHICKERING, op. cit.
18
somente as derrotas de Æthelred II, sua falta de tolerância e sua perda de controle sobre os
ataques vikings
24
.
O segundo capítulo centra-se na análise da guerra textual e contextual que,
juntamente com a análise espacial, tem o intuito de perceber como o poema pode ter sido
direcionado pelo contexto. Serão analisadas as causas, conseqüências e intensidade da guerra
juntamente com a participação dos seres monstruosos nos três episódios. A dimensão espacial
resume-se à corte – com o reconhecimento de um código social entre o rei e os guerreiros – e
à floresta – moradia monstruosa. Objetivamos perceber como a insegurança está presente nas
entrelinhas do documento.
O terceiro capítulo consiste na análise dos seres monstruosos segundo os
epítetos que lhes são atribuídos no poema. As nomeações referem-se a categorias sociais que
denunciam a traição, a insegurança e o medo dos homens, situação similar ao contexto de
traições e derrotas vivenciadas durante o reinado de Æthelred II. Pela análise de termos e
significados específicos, mostramos que o poema acompanha, de certa maneira, os
acontecimentos contemporâneos à sua transcrição.
Finalmente, demonstrar que Beowulf apresenta uma razão muito particular por
ter sido transcrito por volta do ano mil é de todo ousado, mas necessário por contribuir com a
discussão tão ampla e controversa sobre sua datação. E é isso que, como objetivo mais amplo,
buscamos no nosso trabalho.
24
STAFFORD, op.cit, p. 59.
19
2. CAPÍTULO I – Os reinos e as invasões
2.1. A responsabilidade real rumo à insegurança.
As transformações políticas pelas quais passava a Inglaterra no século X e
início do século XI encontravam-se em estreita conexão com o desempenho político real e
com a unificação político-militar dos reinos. Essas duas instâncias podem ser interpretadas
como faces de um mesmo acontecimento: o exercício da função real na defesa do reino frente
às invasões vikings.
O pensamento político medieval centrou-se mais facilmente sobre a pessoa real
que sobre os direitos do povo ou o funcionamento teórico ou prático do sistema político. A
realeza foi considerada como semelhante ao poder real e à pessoa do rei
25
. A chamada
“monarquia pessoal”, termo utilizado por Stafford
26
, envolvia não apenas questões de herança
e sucessão, mas a responsabilidade real perante o bem-estar do reino. Cabia ao rei proteger
seu povo, assegurar seus súditos pelos juramentos de fidelidade e fazer manter a segurança e a
paz. O poder real podia ser constatado pela criação e promulgação de leis e no seu
cumprimento, bem como na doação e confiscação de terras aos homens, pelo controle de
cargos sociais e por concentrar em suas mãos todo o poder e as decisões a serem tomadas.
A responsabilidade do rei e a importância da função real podem ser verificadas
em leis, regras de conduta para bem reger a sociedade. As leis de Ine (688-94), de Wessex,
são feitas para garantir a segurança do reino. Com as invasões vikings, muitos tratados são
feitos, como entre Alfred o Grande e o chefe dinamarquês Guthrum (886-890). As leis do rei
25
BERCÉ, Y.-M.(Dir.) Les monarchies. Paris: Presses Universitaires de France, 1997.
26
STAFFORD, op. cit. Preferimos o termo “realeza pessoal” porque consideramos monarcas os governantes
feudais da Inglaterra apoiados em órgãos de caráter representativo. Pelo mesmo motivo, não concordamos com
Câmara que utiliza o termo “monarquia germânica” para a Inglaterra anglo-saxônica. CÂMARA, J. R. C. O
poder na Inglaterra anglo-saxã: uma leitura de Beowulf. BRATHAIR, v. 3, n.1, 2003, p. 24.
20
Athelstan (924-39) emitidas em Grately afirmam que os reis ingleses devem preservar a boa
ordem; posteriormente, nas leis emitidas em Exeter, esse mesmo rei afirma que as emitiu
porque “nossa paz não está sendo mantida como eu gostaria (...). Todos aqueles que
perturbam a paz devem ir comigo aonde eu determinar sob condição de nunca voltar para seu
distrito de origem”
27
. O Códice de Edmund, de meados do século X, que concerne às regras
de se realizar a vingança recíproca, inicia-se com a afirmativa de que, em primeiro lugar, deve
reinar a paz. Entre 962 e 963, o Códice do rei Edgar emitido em Wihtbordesstan pretende
manter a paz entre ingleses e dinamarqueses e melhorar a ordem pública e a segurança de
todo o povo.
O rei, como principal responsável em guiar os homens à prosperidade e manter
a coesão social, torna-se figura fundamental no desempenho da política medieval anglo-
saxônica e deve ser analisado diante dos acontecimentos contemporâneos e de acordo com a
sua ação. O centro da vida política era o “salão”, espaço público onde reis e guerreiros
partilhavam e reconheciam um mesmo código social que englobava juramentos de lealdade e
proteção, vingança, participação em banquetes, entre outros
28
.
Alguns anos antes do reinado de Alfred o Grande (871-899), em 866, teve
início a primeira onda de invasões vikings
29
, cujo interesse maior era o seu estabelecimento
em terras anglo-saxônicas. Já 871 é considerado o “ano das batalhas”, e por vencer muitas
delas Alfred tornou-se rei de Wessex, reino que se viu como uma fronteira entre as regiões
dominadas pelos anglo-saxões e as dominadas pelos dinamarqueses. O rei, consciente de sua
tarefa de não dar ao reino de Wessex o mesmo destino dos reinos a centro-norte, firmou um
27
WHITELOCK, 1955, p. 386.
28
Sobre este código social, ver capítulo III.
29
O primeiro registro de invasões nos vários reinos data de 793 quando homens provenientes dos atuais países
escandinavos invadiram e pilharam alguns mosteiros, em ataques sazonais. MUSSET, L. Las invasiones: el
segundo asalto contra la Europa cristiana. Barcelona: Labor, 1968. Apesar do caráter misto das tropas, Musset
mostra, por descobertas arqueológicas, que predominantemente os noruegueses foram para o oeste
(estabelecendo-se onde atualmente é a Irlanda) e para arquipélagos ao norte da Escócia, os dinamarqueses foram
para a Inglaterra e os suecos para a costa oriental do Báltico até Bizâncio, em 839 d.C.
21
tratado de paz em 876 e, durante este período, esforçou-se para conter a decadência material e
cultural
30
.
A Inglaterra, a partir desse momento, encontrou-se dividida em duas regiões
quase semelhantes em extensão geográfica: (a) a Inglaterra saxônica, constituída pelas terras a
oeste e sul e (b) o Danelaw
31
(área de influência dinamarquesa), que abrangia as do norte e do
leste. A bipartição da Inglaterra significou um período de paz e deu a Alfred o Grande a fama
de bom rei. A Crônica Anglo-saxônica
32
sublinha suas vitórias consecutivas: entre as 11
referências a batalhas envolvendo o exército do rei Alfred e os dinamarqueses apenas uma
vez – em 885 – o rei é derrotado, pois “neste mesmo ano o exército dinamarquês na Anglia
Oriental violou sua paz com o rei Alfred”
33
. Entre estes anos, os relatos mais longos da
Crônica são os acontecimentos referentes ao juramento de paz e submissão do chefe
dinamarquês Guthrum ao rei em 878 e a submissão de outras regiões à Wessex, em 893. Em
900, ao relato da morte de Alfred segue-se que “ele era rei de todo o povo inglês exceto
naquela parte que estava sob domínio dinamarquês”
34
durante quase 30 anos.
Após o estabelecimento dos anglo-saxões na ilha e a criação de reinos,
seguiram-se vários acordos de paz e alianças de casamento para evitar mais conflitos. A paz
35
,
ou a ordem pública, trazia o funcionamento e a prosperidade da sociedade
36
, possibilitando a
30
Durante este período de paz, o rei encorajou a vinda de homens letrados da Europa continental e de Gales para
mosteiros e aprendeu a ler e a escrever, tanto em Latim quanto em Inglês Antigo, incentivando os aristocratas a
fazerem o mesmo. Esta foi uma resposta do rei diante da destruição provocada pelos vikings, que saquearam
muitos tesouros de mosteiros e queimaram muitos textos. MORTON, A. L. A história do povo inglês. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 36-37.
31
HADLEY, D. M. Viking and native: re-thinking identity in the Danelaw. Early Medieval Europe, 2002, v. 2,
n. 1, p. 45-70. Este artigo mostra através da toponímia, de documentos escritos e da arqueologia como ocorreu a
adaptação dos invasores dinamarqueses na Inglaterra, concluindo que o impacto foi grande mas não uniforme (p.
69).
32
Citamos a versão A da Crônica.
33
WHITELOCK, 1961, p. 52.
34
Id., p. 58.
35
A paz se faz com a capacidade de fazer a guerra, isto é, a ordem pública só é conseguida por meio da vitória
nas batalhas.
36
Apesar dos frutos da guerra trazerem tesouros, é especialmente no período de paz que se constata maior
prosperidade, seja na agricultura, seja nas artes dos mosteiros, seja na atividade comercial que se inicia. Esta
prosperidade foi verificada durante o reinado relativamente pacífico de Alfred o Grande e de seus sucessores. Na
metade do século X, os anglo-saxões já estavam imbuídos dos valores positivos da paz e da ordem.
22
ILUSTRAÇÃO I – Mapa do estabelecimento escandinavo na Inglaterra no início do século X.
WHITELOCK, D. English historical documents (c. 500-1042). London: Eyre&Spottiswoode, 1955. p.
37.
23
rotina da agricultura, das colheitas e do comércio e propiciava aos homens do reino segurança
material e moral. As leis do rei Ine de Wessex, do final do século VII, mostram que o
camponês livre possuidor de terra era importante ao reino por ser a base da sociedade, e por
isso a lei protegia a honra e a paz de sua casa
37
. Além disto, era importante a luta para alargar
as áreas de cultivo em meio à atmosfera de violência e insegurança.
Alfred o Grande foi considerado um bom rei por garantir seu reino contra
ataques futuros e contra a desordem – construiu navios, burgos fortificados
38
e propiciou o
bom treinamento de soldados – garantindo a permanência da paz após sua morte. Ele foi
sobretudo um notável chefe militar: sua genialidade foi perceber que a conquista do Danelaw
era uma questão de tempo e de chefia organizada.
Essa política de defesa criou uma estrutura em que anglo-saxões e
dinamarqueses viveram juntos em uma aliança comum. Alfred (e seus sucessores
39
) não
expulsou os dinamarqueses, mas os conquistou, deixando-os administrarem suas próprias leis
e assembléias e organizarem-se com certa liberdade. Um “grande” rei ensinou seu povo a
defender seu reino e a vencer.
Com a morte do rei Alfred e a paz instaurada com os invasores, seus
sucessores vão empreender uma tarefa árdua: reconquistar o Danelaw, por meio do
estabelecimento de alianças com os chefes dinamarqueses. Apesar da efetivação deste
empreendimento de 900 a 975 d.C., a consolidação da Inglaterra em um único reino foi
sentida apenas na condição do reconhecimento da supremacia de um rei anglo-saxão pelos
dinamarqueses, uma vez que o Danelaw continuou com seu “caráter escandinavo”, seja na
37
STENTON, F. M. Anglo-saxon England. Oxford: University Press, 1943. O camponês ainda era visto como
nas leis de Æthelbert de Kent do início do século VII: uma pessoa com muitos direitos que estava submissa
somente ao rei.
38
Apesar de existirem burgos antes do reinado de Alfred o Grande, foi ele quem desenvolveu um sistema
defensivo organizado. Estes burgos fortificados deram origem às primeiras cidades inglesas. MORTON, op. cit.
39
Referimo-nos a Edward o Antigo (899-824), Athelstan (924-940) e Edgar (959-975). Excluímos Edmund I
(940-946), Eadred (946-955) e Eadwig (955-59) por serem reinados curtos sem acontecimentos tão significativos
se comparados aos outros reinados. Todos pertencem à casa real de Wessex.
24
língua, seja nas leis, mostrando que a força da política do século X apoiava-se na relação
entre centro-localidades, já que a centralização militar deu-se pela conquista de regiões
distantes do centro político real
40
, Wessex.
A sucessão de reinados prósperos foi possível pelas ações de figuras reais
centralizadoras, cuja ampla consciência de suas funções englobava interesses políticos: era
responsabilidade real defender o reino contra qualquer ameaça externa, seja no confronto
físico em campo de batalha, seja nas alianças estabelecidas por casamentos e juramentos de
lealdade. A função real consistia na manutenção do crescimento interno, principalmente
econômico e religioso (incentivando a construção de mosteiros e a troca de mercadorias), e na
proteção de seus membros, tendo como finalidade a harmonia social baseada na paz e na
segurança.
Edward o Antigo (899-924) deu continuidade a esta política de conquista,
fazendo alianças e acordos de paz com os chefes dinamarqueses além de continuar a
construção de fortificações. A conquista da Mércia foi o maior destaque de seu reino. Por sua
vez, Athelstan (924-939) avançou seu domínio para o norte e, continuando a política de
expansão dos reis de Wessex, conquistou o Danelaw. Muito pouco se sabe sobre essa
conquista. Tem-se conhecimento de que ele casou uma irmã com o rei Sihtric da Nortúmbria
– um líder viking –, conquistou York e doou terras daquela região a arcebispos e aristocratas
de sua confiança.
Edgar (959-975) manteve a ordem interna e a externa em seu reino
41
,
conquistadas inicialmente por Alfred e Athelstan e, devido à fidelidade dos dinamarqueses,
permitiu-lhes viver a seu modo
42
. Edgar foi o primeiro rei a reconhecer em lei que o Danelaw
40
STAFFORD, op. cit. Esta centralização político-militar da Inglaterra foi mais uma conseqüência natural da
política de expansão dos reis de Wessex que uma consciência de unificação.
41
Seu reino glorioso de paz também contrastou com as derrotas de seu filho Æthelred II.
42
Há uma semelhança entre o rei Alfred o Grande e o rei Edgar em reconhecer a independência da área de
domínio dinamarquês, com uma única diferença: o rei Edgar era reconhecido como único rei em todo o território
da Inglaterra. O reino de Edgar ganhou uma boa imagem pois foi igualmente contrastado com o reinado anterior
25
não era uma província conquistada, mas uma parte integrante do reino inglês
43
. Apesar da
divisão relativa do reino entre a corte de seu irmão Eadwig e a sua, conquistou todos os
homens como único rei e foi um bom preservador da harmonia interna e da paz externa.
Apesar da paz conquistada, a Crônica Anglo-saxônica vê a liberdade aos
“estrangeiros” como algo perturbador ao reino: “Ainda ele [Edgar] cometeu uma ação
grandemente má: ele adorava costumes estrangeiros perversos e também trouxe de modo bem
sólido estas maneiras [...] para seu reino, e atraiu estrangeiros e pessoas perigosas para o seu
país”
44
. O equilíbrio entre confiar nos dinamarqueses – estrangeiros – e nos anglo-saxões
mostrava-se frágil, sendo responsabilidade real garantir que essa fragilidade não culminasse
em guerra. Este frágil equilíbrio no reino de Edgar deveu-se, da mesma maneira, às situações
de disputas de espaço político e divisões entre os aristocratas. Protegendo os dinamarqueses e
os trazendo às cortes, os laços entre o rei e a aristocracia anglo-saxônica afrouxavam-se cada
vez mais.
A fragilidade entre a segurança e a insegurança, a paz e a guerra, manifestou-se
com força inicialmente no reino de Edward o Mártir (975-978). Este curto reinado estimulou
ainda mais os aristocratas a recobrarem propriedades confiscadas no reinado de Edgar e a se
revoltarem contra o rei após este ter ofendido com violência de palavras e comportamentos
alguns deles
45
. Seu reinado trouxe a impressão de uma desordem. Este reino ficou conhecido
somente pelas tragédias como a fome e a revolta dos aristocratas. Com a morte de Edward, as
incursões escandinavas que vieram mais que saquear
46
e um rei fraco geraram um desastre
sem proporções.
de Eadwig, um rei considerado moralmente deficiente e politicamente incompetente, não mantendo os acordos
de paz e submissão da Nortúmbria e da Mércia e exilando vários aristocratas de Wessex para outros reinos.
43
STENTON, op. cit., p. 371.
44
WHITELOCK, 1961, p. 75. A referência data de 958 (única passagem utilizada da versão D).
45
STAFFORD, op. cit.
46
A intenção dos dinamarqueses era de se estabelecerem nos territórios anglo-saxões, contra a rápida ação de
saquear, no qual os invasores apareciam, saqueavam e fugiam.
26
A insegurança vivenciada pelos homens do reino ganha sua máxima expressão
diante do reinado de Æthelred II (978-1016), a começar pela sua polêmica ascensão ao trono
em 978, após o assassinato não vingado de seu irmão. Edward o Mártir visitava seu meio-
irmão e sua madrasta em Corfe quando foi assassinado, o que levantou suspeita em torno de
Æthelred II. Mãe e filho se beneficiaram com a morte de Edward, que não foi vingada por
eles, deixando o corpo desonrado
47
.
O longo reinado de Æthelred II foi considerado um dos mais desastrosos da
história inglesa. Aethelred, impondo sua jurisdição em todo o território inglês, sufocou a vida
política dos vikings e perdeu o controle sobre seus súditos. No final do século X, a herança
política de Æthelred II resumia-se a um reino com hegemonia sobre um número de áreas
distantes. A soma de sua pouca tolerância, das traições freqüentes dos aristocratas e das
invasões dinamarquesas resultaram na forte presença do medo e da insegurança no reino. As
traições foram freqüentes na história da Inglaterra anglo-saxônica. Em 757 o duque Æthelbald
da Mércia foi morto pelo seu guarda-costas, em 758 Oswulf da Nortúmbria foi morto pelos
seus companheiros e em 796 Æthelred da Nortúmbria foi morto por um de seus homens,
tendo sua morte sido vingada por um súdito seu. Porém, as traições e covardias atingiram sua
maior expressão no reinado de Æthelred II, coincidindo com a retomada dos ataques vikings.
Considerado pelas fontes contemporâneas, como a Crônica, um rei
“fracassado”, o reinado de Æthelred II foi marcado por sua falta de tolerância, estranhas
explosões de energia e paixão e lapsos estranhos de preguiça e indiferença
48
. Nunca estava
seguro de si, era ineficaz na guerra e seus atos de violência e desconfiança geraram uma
insegurança entre ele e os aristocratas. Morreu arruinado, oprimido por adversários em seu
47
OMAN, C. Aethelred the Redless and Edmund Ironside, 978-1016. In: Id., A history of England. London:
Metheun, 1949. Apesar do episódio do assassinato, o rei Æthelred II foi mesmo assim eleito porque a maioria
dos aristocratas achou que o rei, então com apenas 10 anos de idade, dificilmente era o responsável pela morte
do irmão. Sua mãe, Ælfthryth, governou o reino até que o rei atingisse a idade – 15 anos – para tanto.
48
Ibid., p. 554.
27
reino e por súditos desleais e individualistas. A unidade inglesa conquistada duramente por
séculos fôra dissolvida.
O conflito com a aristocracia tornou-se inevitável. Æthelred II, que recebeu o
título de “Sem-Conselho”
49
, reinou por 38 anos em meio às invasões vikings que denunciaram
a situação interna já desestruturada: vários ealdormen, duques não necessariamente de
nascimento aristocrático que representavam o rei nas províncias, praticavam atos freqüentes
de traição, dando informações, por exemplo, aos dinamarqueses sobre planos de batalhas e
contribuindo assim para a vitória viking.
Em 934 as desavenças na assembléia se acentuaram culminando no exílio, em
985, de Ælfric Cyld, filho e sucessor do duque Ælfhere da Mércia. Em 992, um duque traiu o
rei passando para o lado dos vikings. Em 986, o rei entrou em conflito com o bispo de
Rochester, Ælfstan que, ao invés de utilizar procedimentos legais contra ele, o rei confiscou
as terras concedidas ao bispo. Æthelred recusou qualquer oferta do bispo e apenas abandonou
sua posição mediante o pagamento de certa quantia a ele, e o bispo teve que pagar cem libras
de prata
50
. Isto demonstra que o rei agia mais como um chefe de mercenários ou um chefe
viking do que garantia a proteção e a paz do reino. Em 993 o rei capturou Ælfgar, filho do
ealdorman Ælfric e cegou-o. Em 1001 o conde Pallig foi expulso da corte por traição, ao se
unir aos vikings. Em 1006 o ealdorman Ælfhelm da Mércia foi suspeito e assassinado e seus
filhos cegados sob o comando do rei.
O desmoronamento da aristocracia constatou-se pelo exílio forçado de seus
membros decretado pelo rei, atingindo seu auge no massacre no dia de “Saint Brice”, quando
o rei ordenou que todos os dinamarqueses da Inglaterra fossem mortos
51
. Sabe-se que houve
49
“Sem Conselho” no sentido de “homem destituído de conselho”, a titulação de Æthelred II deu-se não pela
ausência de conselheiros em seu reino, mas por seu talento em escolher sempre o pior. Id., p. 553.
50
OMAN, op. cit., p. 556.
51
A versão C da Crônica Anglo-saxônica descreve o episódio no ano 1002: “E naquele ano o rei ordenou que
fossem mortos todos os dinamarqueses que estavam na Inglaterra (...) porque o rei foi informado que eles iriam
traiçoeiramente destituí-lo, e a todos os seus conselheiros, (...) e possuiriam o reino depois.” WHITELOCK,
28
alguns massacres, e que com eles foi morta a irmã de Sweyn, um chefe viking, que após esse
incidente decidiu invadir a ilha novamente, em 1003. Estes massacres apenas deram aos
dinamarqueses boas desculpas para renovar as invasões. Exílios e assassinatos foram provas
dramáticas das dificuldades entre o rei, a aristocracia e os dinamarqueses. Além disto, o rei
confiscava terras quando achava necessário.
O governo de Æthelred II foi mais lembrado pela sua relação com os ataques
vikings. Este longo reinado teve 3 momentos de ameaças externas. A primeira são as invasões
vikings de pilhagem (978-991), poucos organizadas, em que os invasores invadiam mosteiros
e campos para pilharem tesouros ou comida. Em seguida, o Grande Exército dinamarquês
(991-1012) mostrou que os invasores estavam organizados sob uma chefia e pretendiam se
estabelecer na Inglaterra. Por fim, a tomada do reino pelos invasores (1013-1016) por um
chefe dinamarquês, Cnut, que conquistou o trono da Inglaterra
52
, é considerada a última fase.
Em 980, os dinamarqueses retomaram os ataques na Inglaterra e a resposta anglo-saxônica foi
mais local do que em todo o território, apesar da Crônica Anglo-saxônica descrever os
conflitos com termos gerais, como “ingleses” e “dinamarqueses”. Este documento mostra que,
no ano 1000, o real inimigo eram os dinamarqueses.
Os primeiros ataques foram feitos por pequenos bandos de aventureiros, mas
depois vieram exércitos profissionais organizados e guiados por líderes da Dinamarca. A
ordem social na Inglaterra foi afetada não apenas pela constatação da traição freqüente dos
súditos reais, mas pela venda de homens, crianças e jovens como escravos
53
. Mosteiros foram
destruídos; fazendas, pilhadas. Camponeses famintos foram igualmente vendidos como
escravos. Em 990 novamente são retomadas as invasões, mas desta vez com um exército
1961, p. 86. Cabe lembrar que, neste período, os dinamarqueses constituíam quase metade da população do
reino. Os governos de Alfred o Grande e Edgar foram prósperos porque permitiram aos dinamarqueses viverem
a seu modo, ao contrário do que ocorreu com Æthelred II, que queria dominá-los à força ou excluí-los.
52
O povo, preferindo a força à fraqueza no trono e a unidade à divisão, elegeu Cnut rei, vendo neste ato também
uma oportunidade das invasões cessarem.
53
BLAIR, P. H. Aethelred the Unready. In: Id., An introduction to Anglo-saxon England. Cambridge: Univeristy
Press, 1959.
29
profissional grande impondo o danegeld à fyrd (exército) local, com a liderança do chefe
viking Olaf Tryggvason. Em 991, os nórdicos invadem os shires do sudeste e ocorre a batalha
de Maldon. O rei e o witan (assembléia) decidem comprar a paz aos inimigos
54
. Esta atitude
foi considerada como a única boa para o povo, já que cessava os ataques e obtinha a paz
55
,
mas terminado o dinheiro os dinamarqueses voltaram.
Em 993 ocorrem novas invasões, e em 994, os chefes dinamarqueses Olaf e
Sweyn juntam suas tropas e invadem a Inglaterra. “Foi a invasão mais formidável que a
Inglaterra experimentou por meio século, e foi a mais perigosa porque muitos nobres ingleses,
em desespero pelo governo de Æthelred II, estavam preparados para aceitar Sweyn como
rei”
56
. As invasões dinamarquesas também contribuíram para a “quebra política”,
apresentando novos perigos.
Cabe-nos pensar por que, em 978, a Inglaterra não repeliu seus inimigos com
facilidade como antes. Ela era um reino ‘unido’, tinha uma grande frota e tinha a tradição da
vitória: os reis Alfred, Edward o Antigo e Athelstan destruíram os vikings e por isto os anglo-
saxões encaravam os ataques com confiança. Tudo mudou com o rei Æthelred II no leme do
governo: eles foram derrotados não por terem menos força ou estarem em menor número,
mas por má administração interna. Na Crônica Anglo-saxônica, há um toque de ironia ao
relatar que “enquanto nós estamos no sul, eles estão no leste”. De 978 a 1002, a Crônica
Anglo-saxônica relata quase todas as batalhas com os vikings pela ótica da derrota anglo-
saxônica. O terror tão relatado na Crônica Anglo-saxônica, como bem nota Lavelle
57
, não
54
O danegeld, “dinheiro dos dinamarqueses”, foi uma compensação em moedas dada aos dinamarqueses,
proposta por Aethelred II, em troca da paz. A primeira referência é de 980, na Crônica. Por sua vez, o wergeld,
“dinheiro de um homem”, surgiu antes das invasões vikings e era uma compensação em bens, propriedades ou
moedas que se dava aos parentes de um homem morto ao invés de praticar a vendetta, ou princípio de vingança
recíproca. LAVELLE, op. cit. Porém, a incompetência de Æthelred não significou a queda da administração do
reino. Como um rei conseguiria quantidades de moedas para pagar o danegeld? O reino devia estar
financeiramente organizado, já que cada shire (condado) pagava tributos ao rei e foi provavelmente esta quantia
dada aos dinamarqueses.
55
A paz era mais um acordo entre as duas partes feitos por contratos mútuos que uma imposição por parte do rei.
56
STENTON, op. cit., p. 378.
57
LAVELLE, op. cit., p. 73.
30
expressa apenas o grande estrago material constatado com as invasões mas o medo
psicológico que elas trouxeram.
Æthelred II, como membro da casa real de Wessex, tinha grande
responsabilidade em continuar a manter a prosperidade e a paz como seus antecessores. “O
fardo do passado e os feitos das gerações pesaram sobre os ombros de Æthelred”
58
. A
comparação entre o rei Alfred e Æthelred II parece ser inevitável. A crítica ruim ao reinado
de Æthelred não se sustenta pelas constantes guerras, já que qualquer rei entraria em guerra
com os vikings porque ela era um instrumento político na história anglo-saxônica, mas pela
má administração do reino e pelas constantes derrotas.
Æthelred II foi um rei “cruel e corrompido, traidor, inventor de assassinos, e
quebrador de juramentos”
59
. A traição interna, os conflitos com os dinamarqueses e a pobre
liderança compõem o seu reinado. Os anglo-saxões não só se sentiram sem direção, mas
também traídos. Tem-se a impressão de uma próspera sociedade que foi abandonada ante o
inimigo porque seus líderes foram incapazes de governar. “Por uma geração os invasores
banquetearam na carcaça de uma rica terra sem líder”
60
.
O fracasso político e militar deu contornos precisos ao estado de completa
destruição. A “unidade” política anglo-saxônica foi dissolvida, instaurou-se a desordem onde
houvera ordem culminando posteriormente na tomada do trono por um estrangeiro, Cnut
61
.
Os anglo-saxões não estavam somente sem direção, eles sentiram-se traídos. A fraqueza dos
laços de lealdade e dever pessoal em torno do rei geraram um constante estado de guerra e
58
Id., p. 15.
59
OMAN, op. cit.
60
BRYANT, A. The bones of shire and state. In: Id., The story of England: makers of the realm. London:
Reprint Society, 1955, p. 142.
61
Cnut era filho do chefe viking Sweyn. Em 1013, Sweyn não havia ainda pensado em conquista política,
aceitando receber tributos dos anglo-saxões e partindo. Apenas após longa experiência de desvalorização de
Æthelred II e o crescente descontentamento de seus súditos fizeram com que surgisse uma idéia em Sweyn de
ser rei da Inglaterra. Mello faz uma comparação detalhista sobre a situação política da Inglaterra pré e pós-
Conquista Normanda, relatando a invasão de Cnut e depois, a de Edward o Confessor. MELLO, J. R. de A. Os
alicerces medievais da Inglaterra moderna (1066-1327). In: MONGELLI, L. M. (Coord.) Mudanças e rumos: o
Ocidente medieval (séculos XI-XIII). Cotia, SP: ÍBIS, 1997, p. 17-51.
31
insegurança. Em uma época de várias crises, o rei não conseguiu direcionar seu povo nem
obter a confiança dos seus súditos. Com um rei agindo desta maneira, as invasões vikings
tiveram êxito. Após 100 anos de vitória, os anglo-saxões acharam que poderiam repelir os
dinamarqueses e tiveram uma surpresa.
Câmara acredita que a “tradição da vitória” foi apenas quebrada com a
Conquista Normanda, em 1066. Em seu recente artigo “O poder na Inglaterra anglo-saxã:
uma leitura de Beowulf
62
, o autor afirma que “a primeira grande dinastia a reinar inconteste
na Inglaterra será a casa de Wessex, única a fazer frente às invasões vikings do século IX,
com Alfred o Grande, como sua maior expressão, só vindo a perder seu poderio com a
conquista normanda de 1066”. Acreditamos que o processo de derrota iniciou-se com
Æthelred II, cuja má administração interna contribuiu para que os normandos conquistassem
a ilha poucos anos depois de seu reinado. Esta “tradição de vitória” encerrou-se com Edgar,
considerado o último dos reis anglo-saxônicos a fazer frente, com sucesso, aos ataques
vikings e a manter a ordem interna.
A tradição da vitória, que ensinou os anglo-saxões a encararem os ataques com
coragem entre o final dos séculos IX e X, desmanchou-se face à constatação das seguidas
derrotas e da confusão presenciadas com o reinado de Æthelred II. Æthelred II dificilmente se
desvincularia da imagem fracassada.
62
CÂMARA, op. cit., p. 20.
32
2. 2. As “narrativas de derrota” e Beowulf, séculos X-XI.
O período mais bem documentado da história anglo-saxônica deu-se no
reinado de Æthelred II
63
. Este período, denominado de pós-renascimento (c. 975-1016), nos
legou sermões, vidas de santos, textos religiosos, material legal, leis em nome do rei,
compilações privadas e poesias.
A necessidade de elucidar os constantes ataques vikings, já registrados no final
do século IX
64
, reapareceu no final do século X e início do século XI, durante o reinado de
Æthelred II: “Conquista e crise foram o maior estímulo à escrita de narrativas históricas nos
séculos X e XI”
65
. Segundo Stafford, toda a escrita histórica antes do século XI foi estimulada
pela crise, pela invasão e pela conquista, a qual denominamos de “narrativas de derrota”.
A partir da segunda metade do século X, as fontes narrativas transcritas após a
morte de Edgar mostram seu reinado como uma Idade de Ouro em comparação aos
acontecimentos iniciais desastrosos de Æthelred II. Após 975 os eventos traumáticos –
assassinato do rei Edward o Mártir, o caráter mau direcionado de Æthelred II e a insatisfação
da aristocracia – também aumentaram esta “percepção histórica”.
A Crônica Anglo-saxônica demonstra bem esta dimensão comparativa entre
reinados. Ela relata o reinado de Æthelred II pela ótica da derrota, que segundo ela não
ocorreu por causa dos ataques vikings ou pelo colapso moral da população, mas pela traição e
pobre liderança interna. Não foram os ingleses os derrotados, mas seus líderes
66
. De 980 em
63
Surpreende-nos constatar que Morton não faz nenhum comentário sobre este rei. MORTON, A. L. A história
do povo inglês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
64
STAFFORD, op. cit. O grifo é nosso. Stafford faz uma comparação entre os reinados de Alfred o Grande e de
Æthelred II concluindo que ambos são os períodos mais documentados e responsabiliza os ataques vikings como
um dos principais “incentivadores” da escrita. Durante o reinado de Alfred o Grande, muitos trabalhos foram
igualmente estimulados pelos ataques vikings e por um certo desejo de explicá-los e registrá-los.
65
Id., p. 6.
66
Id., p. 15.
33
diante, a Crônica descreve o reinado atacado pelos vikings e compara Alfred com Æthelred II.
O reinado próspero de Alfred é contado pela perspectiva da vitória e da paz; o de Æthelred II,
das profundas derrotas.
O manuscrito de Abingdon descreve cada incursão viking como investida de
grande significação. Esta dá ênfase à derrota militar e à traição. As passagens sobre o rei
“fracassado” falam sobre a incompetência, a arbitrariedade e a deslealdade no reino: fugas
individuais, obsessão com os ataques dinamarqueses à exclusão de quase tudo, falta de
tolerância ou de informação sobre a corte e outras áreas da Inglaterra.
Zumthor
67
acredita que até o ano mil a escrita expandiu-se lentamente por
quatro razões: (a) havia poucas cópias disponíveis de textos, (b) a técnica da escritura era
difícil, (c) copiar demorava, já que exigia um certo domínio do estilo e (d) a leitura era difícil
e pouco comum. Assim, copiava-se o que interessava e o que era considerado importante.
Segundo este mesmo autor, a escrita possuía duas funções: assegurar a transmissão de um
texto e assegurar o arquivamento e o enobrecimento do mesmo para o futuro. Se a escrita não
era um hábito e era utilizada para assegurar o arquivamento e a transmissão do que nela
estava contido, os documentos transcritos devem ser considerados relevantes à época de sua
transcrição. Cada escriba tinha não apenas uma maneira de transcrever como também de
interpretar o que transcrevia, o que faz com que o texto fosse modificado na medida em que o
escriba achasse conveniente e pela influência dos acontecimentos contemporâneos
68
.
Segundo Stafford
69
, há essencialmente na documentação produzida no final do
século X e início do século XI, seja narrativa, registro de terra ou códice de lei, uma crise que
lançou um desejo de explicar e uma necessidade de registrar o passado imediato. Muitas
67
ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
68
MOFFAT, D. Anglo-saxon scribes and Old English verse. Speculum, v. 67, n. 4, 1992, p. 805-827. A
transcrição é portanto subentendida como uma “cópia intencional”: o escriba alterava o texto conforme copiava.
69
STAFFORD, op. cit.
34
fontes foram influenciadas não apenas pelos ataques dinamarqueses a partir do século IX mas
pela progressiva unificação do reino – com o crescente poderio dos reis.
Muitos manuscritos foram transcritos neste período, porém poucos com
datação precisa. Um vasto volume de poesia em Inglês Antigo chegou a nós em 4 códices
compilados no final do século X e início do século XI
70
, indicando que nesta data houve uma
necessidade de registrar o passado e que a antiga poesia heróica ainda estava em uso, sendo
recitada a uma audiência, e não lida
71
. A maioria da poesia em Inglês Antigo não pode ser
datada exatamente e encontra-se em estado fragmentário. Whitelock afirma que a
sobrevivência da “antiga poesia” deveu-se ao interesse de famílias reais e aristocráticas anglo-
saxônicas em preservar os feitos de seus ancestrais
72
.
Inserido nas poesias transcritas no final do século X e início do XI encontra-se
Beowulf. Considerado o maior e mais antigo poema completo
73
da Inglaterra anglo-saxônica
de que temos conhecimento, Beowulf é constituído por 3.182 versos transcritos em Inglês
Antigo, ou Old English
74
. Rotulado como um poema heróico por trazer em seu enredo
principal as lutas de um herói contra três monstros, as discussões sobre seu gênero literário
estão longe de encontrar uma solução convergente: uns identificam-no como um poema
elegíaco, como Tolkien, outros como um conto maravilhoso
75
ou como uma epopéia, como
Ker, cuja matéria central procurou servir-se da poesia épica. “A poesia épica deve girar em
70
WHITELOCK, 1956, p. 213. Segundo Whitelock, esta literatura vernácula baseada em canções germânicas
pagãs versadas sobre seus heróis foram trazidas com o estabelecimento dos anglo-saxões na ilha no século V,
onde continuaram naturalmente a cantar seus poemas.
71
WOODWARD, E. L. Alfredo: as invasões dinamarquesas. A conquista normanda. In: Id., Uma história da
Inglaterra. Rio de Janeiro: Zahar, 1962. Na página 29, Woodward afirma que a poesia de caráter épico era
recitada a uma audiência no período anglo-saxônico. Ver nota 79.
72
WHITELOCK, 1956, op. cit.
73
Apenas 3 versos não podem ser identificadas por completo: versos 2228, 2229 e 2230.
74
O Inglês Antigo ou Anglo-saxão, nome dado aos dialetos próximos falados na Inglaterra a partir do século V
com a migração de povos anglos, saxões e jutos na Bretanha insular, até o século XI, englobava o Kentish (da
região de Kent), o Mercian (da Mércia), o West Saxon (da Saxônia Oeste) e o Northumbrian (da Nortúmbria),
além das influências continentais do Nórdico Antigo (Old Norse), do Velho Alto Alemão (Old High German) e
do Saxão Antigo (Old Saxon), entre outras. Ver W. F. Bolton, A short history of literary English, Edward Arnold
(Londres, 1972).
75
JONES, G. Kings, beasts and heroes. London: Oxford University Press, 1972. Neste livro, Jones argumenta
que Beowulf pode ser considerado um conto maravilhoso por trazer três premissas: (a) um salão, (b) um monstro
que o invade e (c) um herói que salva este salão (p. 12).
35
torno de um assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos
bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo, para que o
lendário se forme e/ou permita que o poeta lhes acrescente com liberdade o produto de sua
fantasia; o protagonista da ação há de ser um herói de superior força física e psíquica, embora
de constituição simples, instintivo, natural”
76
.
Tratar o documento como uma poesia épica já foi questionado. Tillyard
77
, em
seu estudo sobre a origem dos poemas épicos ingleses, afirma que Beowulf não preenche
totalmente a função épica clássica (do épico grego) porque seu mundo é muito restrito, ou
seja, o poema não transmite claramente o que estava ocorrendo no tempo do autor, pois “não
há o sentimento comum ou uma vida cotidiana caseira para completar o exercício do
heroísmo”
78
.
Beowulf foi provavelmente lido nas cortes reais anglo-saxônicas
79
e sua
complexa estrutura poética aliada à grande quantidade de referências ao mundo germânico
demonstram que o poeta ou escriba possuía um amplo conhecimento da vida nas cortes e de
fatos da história germânica. O termo scop (“poeta”) em Inglês Antigo, derivado do verbo
scieppan, “fazer, trocar palavras, unir palavras”, significa “o criador de palavras que se
complementam”
80
. No documento, elas foram organizadas em “pares aliterativos” e
“contrastes aliterativos”
81
. O vocabulário, de maneira geral, apresenta inúmeros sinônimos
para designar, entre outros, o termo “batalha” e “rei”, utiliza-se de kennings, ou espécie de
metáfora como em “luz-de-batalha” para significar “espada” e termos compostos, como em
wræcsiđum (“viagem de exílio”), exigindo um certo esforço para sua leitura e compreensão.
76
MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 181.
77
TILLYARD, E. M. W. The English epic and its background. New York: Oxford University Press, 1966.
78
Id., p. 122.
79
O poema inicia-se com o termo hwæt, que significa “ouçam”, pelo qual podemos perceber sua origem oral.
80
CHICKERING, op. cit., p. 4.
81
“A aliteração consiste na repetição do mesmo som ou sílaba em duas palavras ou mais, dentro de um mesmo
verso ou estrofe. (...) E contrariamente ao que permite supor a etimologia da palavra ‘aliteração’, a simetria
opera-se entre sons, não entre letras”. MOISÉS, op. cit., p. 16. Um exemplo verifica-se em heofon/halig
(“heaven/holy”, “céu/sagrado”) ou no contraste aliterativo, constatado na linha 119: swefan æfter symble – sorge
ne cuđon, “dormindo após o banquete – tristeza não conheciam”. CHICKERING, op. cit., p. 5.
36
ILUSTRAÇÃO II – Uma página de Beowulf do Cotton Vitellius MS., Museu Britânico. TIBBLE, A.
The story of English literature: a critical survey. London: Peter Owen,1970.
37
O manuscrito localizava-se em um mosteiro no reinado de Henrique VIII, no
século XVI, quando este rompeu com a Igreja católica, dissolveu os mosteiros e passou a ser
chefe da Igreja da Inglaterra. Nenhuma referência ao documento é encontrada até o século
seguinte, o período elisabetano, quando Beowulf foi para uma grande biblioteca do antiquário
Sir. Robert Cotton, que o catalogou. Em 1731, a livraria de Cotton foi incendiada e partes do
poema foram queimadas, fazendo com que o documento fosse passado aos cuidados do
Museu Britânico. Entre 1786 e 1787, o estudioso islandês Grímur Jónsson Thorkelin fez duas
transcrições do manuscrito
82
, que foi editado pela primeira vez em 1815. Desde então, o
manuscrito encontra-se no Museu Britânico, sob o códice MS Cotton Vitelius A. XV,
juntamente com outros quatro documentos em Inglês Antigo
83
.
Apesar dos abundantes estudos, ignora-se por quem, onde, como e quando
Beowulf foi composto. As referências parecem retroceder séculos no tempo. Em linhas gerais,
foram trabalhadas quatro possibilidades espaço-temporais da origem do documento,
relacionadas à supremacia de cada reino anglo-saxão: (a) o brilhante período de Beda o
Venerável (673-735 d.C.), sob o reinado de Aldfrith na Nortúmbria; (b) a corte do rei Offa da
Mércia (757-96)
84
; (c) a Anglia Oriental devido principalmente aos achados arqueológicos do
navio de Sutton Hoo em Suffolk
85
e finalmente (d) o reinado de Alfred o Grande (871-899),
82
O método utilizado por Thorkelin parece-nos interessante. Para a transcrição A, ele fez com que um copista
desconhecido e sem conhecimento do Inglês Antigo copiasse os versos mecanicamente. Já na transcrição B, o
próprio Thorkelin, que conhecia o Inglês Antigo, copiou o manuscrito. Após comparar as duas cópias, para
assegurar a maior fidelidade possível ao original, é que foi publicada a primeira edição.
83
The Passion of Saint Christopher, The Wonders of the East, Alexander’s Letter to Aristotle (todos em prosa) e
o fragmento poético Judiđ completam o códice.
84
É o caso de Câmara. CÂMARA, op. cit. O período de Beda é considerado para alguns estudiosos como
propício para o surgimento da estória de Beowulf por causa do “renascimento nortumbriano”, em que houve um
florescimento da literatura nos mosteiros. O fato do rei Aldfrith da Nortúmbria ter se interessado por esta
produção também foi considerado. Já o reino de Offa da Mércia, dominante no século VIII, foi estimado como
um local possível mais pela datação da estória (muitos acreditam que Beowulf foi transcrito por volta deste
século) que pelo próprio reino. Enfim, o reino de Wessex ganha expressão quando se trata de localizar a estória
do documento porque foi durante o reinado de Alfred, no século IX, que se compilou várias poesias e textos,
com incentivo do próprio rei.
85
As escavações arqueológicas de Sutton Hoo, em Suffolk, em 1939, mostraram tesouros de origem sueca
enterrados em um navio real, provavelmente datado do século VI. Isto prova que a Inglaterra e a Suécia tiveram
contato, o que pode facilitar a compreensão do enredo de Beowulf ao relatar os suecos. DENISON, S. Sixth
century cemetery points to origins of Sutton Hoo. British Archeology, 54, August 2000. ISSN: 1357-4442;
38
de Wessex
86
.
Davis
87
, pela análise dos termos geat e Scyld (este último, em Beowulf, aparece
como líder fundador dos dinamarqueses) concluiu que o poema pertence ao reinado de Alfred
o Grande, sendo uma tentativa de reconhecimento deste rei no domínio de outras regiões. As
invasões vikings do século IX trouxeram à Inglaterra os filhos do chefe Ragnarr Lothbrók:
Ivarr Sem Osso e Hálfdanr. Estes organizaram um reinado dinamarquês em York em 867 e
chamavam-se de Scaldingi, ou descendentes de Skjödr (Nórdico Antigo) ou Scyld (Inglês
Antigo). Portanto, o termo Scyld, presente nos versos iniciais de Beowulf, foi trazido à
Inglaterra após 867. Novamente, o termo aparece na variante Sceldwa na Crônica Anglo-
saxônica
88
, como um dos ancestrais do pai do rei Alfred, o rei Æthelwulf (839-871). Em
relação à “geat”, Davis constata que se confundia este termo com “Iutæ”, jutos de quem os
anglo-saxões acreditavam descender. O rei Alfred – como relata seu biógrafo Asser em 893
em A vida do rei – acreditava que seu avô materno descendia dos jutos.
Por causa das incertezas sobre a data de aparecimento da narrativa, nossa
escolha recai sobre uma datação diferente: o final do século X e o início do século XI, pelo
fato do único manuscrito de Beowulf ser de cerca do ano Mil
89
. Porém, as alusões ao código
guerreiro germânico
90
– ideais de justiça e lealdade, o destino trágico dos guerreiros, o
princípio da vingança recíproca – trazido pelo estabelecimento dos Anglos, Jutos e Saxões no
atual território inglês no século V – está fortemente presente no poema, bem como constantes
BROWN, P. O cristianismo do norte: Irlanda e Inglaterra anglo-saxônica. In: id. A ascensão do cristianismo no
Ocidente. Lisboa: Presença, 1999, p. 214.
86
LAPIDGE, M. “Beowulf”, Aldhelm, the “Liber Monstrorum” and Wessex. Studi Medievali, v. 23, n. 1, 1982,
p. 151-192; DAVIS, C.g R. Redundant ethnogenesis in Beowulf. The Heroic Age, n. 5, 2001.
87
DAVIS, id.
88
Na versão A da Crônica Anglo-saxônica esta referência está localizada em 855. Na versão C, em 856.
89
O manuscrito foi transcrito por dois escribas (pois se verifica duas mãos diferentes) por volta do ano mil, no
Antigo Alto Saxão, o dialeto literário do período na Inglaterra. Mas muitos estudiosos preocuparam-se com a
origem da narrativa, e não do manuscrito. Optamos pela data do manuscrito. CHICKERING, op. cit., p. 245.
90
A primeira referência ao código é de Tacitus (I d.C.), em Germania. WHITELOCK, 1956, op. cit.
39
alusões a personagens do mundo germânico, como Sigemund ou Wieland, o ferreiro
91
.
Segundo Chickering, uma pedra esculpida datada de 950-1050 d.C. e localizada na antiga
Minster, em Winchester, mostra uma cena da estória de Sigemund e, portanto, que a lenda era
conhecida na Inglaterra. Grande parte da matéria de Beowulf tem sua origem em um tempo
distante do da sua transcrição: a própria personagem Hygelac e o fæhđ
92
entre Suecos e
Geats
93
demonstram bem este recuo temporal.
Por outro lado, termos específicos como burh, caracterizado como uma
construção fortificada utilizada para defesa, surgiu nos documentos escritos por volta do
século IX, no reinado de Alfred o Grande (871-899), segundo Stenton
94
. Em Beowulf este
termo, com exceção de burgum, aparece em formas compostas como hleoburh, burhwellan,
freoburh, heahburh e burhlocan
95
.
A trama principal de Beowulf relata a luta de um herói contra três monstros.
Dividiremos a narrativa em três episódios baseados nas três lutas
96
.
O poema começa com alusões à sucessão de reis dinamarqueses, exaltando a
glória e a riqueza conquistadas em guerras vencidas. Num reinado de coragem e poder, o rei
Hrothgar decide construir um Palácio real, o Heorot, com a finalidade de servir de local para a
91
Sigemund (linha 875) ou Sigmundr, filho mais velho do rei Vlsungr, faz parte da mitologia escandinava,
sendo uma das personagens da Vlsunga saga (c. 1200). Wieland (linha 455) é o ferreiro que forja as espadas
mágicas, segundo a mitologia germânica. MOGK, Eugen. Mitologia nórdica. Barcelona; Buenos Aires: Labor,
1932 ou ver Chickering, op. cit., p. 314-317.
92
O fæhđ, situação de conflito que pode ser vingativo, está analisado no capítulo II.
93
Chickering nos traz dados importantes. Três referências ao rei Hygelac foram registradas em documentos. O
Liber monstrorum (século VIII), uma fonte latina transcrita na Inglaterra, cita que os ossos gigantescos do chefe
Huiglaucus dos Geats foram preservados no Reno, após este ter sido morto pelos Francos no século VI. A
Historia Francorum (c. 580), de Gregório de Tours e (c) a Gesta Francorum (c. 727, anônima) confirmam que
Chochilaicus, durante um ataque aos francos, foi morto em 521. A única diferença é que nestes dois últimos
Hygelac é considerado dinamarquês enquanto que no primeiro e em Beowulf ele é um chefe geat. Porém, não
acreditamos que o documento tenha sua origem no século VI apenas por ter citado personagens históricas, como
acredita Câmara. Acreditamos que a oralidade possa ter conservado estes nomes até a transcrição do poema.
CÂMARA, op. cit., p. 17. Heorot, o palácio do rei Hrothgar no poema, muito provavelmente localizava-se em
Lejre, uma aldeia próxima a Roskilde, na Dinamarca. O episódio da luta entre Suecos e geats relatado nos versos
finais de Beowulf deu-se por volta de 500 quando a comunidade geat, que hoje estaria localizada no sudoeste da
Suécia (entre o lago Väner e rio Göta), foi absorvida pelos Suecos (a atual Suécia restante). CHICKERING, op.
cit.
94
STENTON, op. cit., p. 290-292.
95
Os termos significam, respecitvamente, “cidade protegida” (p. 185), “cidade murada” (p. 60), “cidade” 9p.
138), “cidade importante” (p. 171) e “cidade murada” novamente (p. 60). HALL, op. cit.
96
No poema não existe esta divisão, ela apenas foi feita pata facilitar nosso trabalho.
40
distribuição de tesouros, a realização de banquetes e onde os guerreiros divertir-se-iam. Após
a construção de Heorot, a corte do rei Hrothgar é ameaçada pelos ataques de um monstro cujo
nome é Grendel, e que invade o Palácio por não suportar ouvir a alegria do salão. Grendel
pratica atos de massacre e mata vários guerreiros da tropa
97
real. Incapaz de combatê-lo
sozinho, o rei sofre com tristeza até a chegada do guerreiro-príncipe geat Beowulf, que vem
em seu auxílio. Beowulf mata o dragão em uma luta perigosa e como prêmio recebe do rei
tesouros e cavalos.
O segundo episódio inicia-se com a vingança da mãe de Grendel pela morte do
filho. Ela é um ser monstruoso que invade o Palácio, mata um homem da tropa real, Æschere,
e foge para sua moradia, um lago em meio a penhascos. Beowulf vai atrás dela com seus
companheiros e com os dinamarqueses, mas a enfrenta sozinha em um salão
98
embaixo do
lago. Novamente vitorioso Beowulf é reconhecido ao longe pelos feitos de bravura e recebe
mais recompensas do rei. O episódio termina com o retorno de Beowulf e seus companheiros
à sua terra natal onde relata ao seu tio, o rei Hygelac, os combates que realizou na corte
dinamarquesa.
Por fim, o último episódio se passa quando Beowulf é rei. Um dragão,
guardião de tesouros, ameaça o povo de suas terras com fogo devido ao roubo de um cálice
antigo por um escravo ladrão. Com a ajuda de um súdito, Wiglaf, Beowulf luta com o dragão
e mata-o, porém também é morto em combate. Os guerreiros de Beowulf fogem para a
floresta para salvarem suas vidas, em uma demonstração de covardia desaprovada por Wiglaf.
O poema encerra-se com o funeral do rei-guerreiro com tesouros ganhos, em palavras que
exaltam suas qualidades guerreiras, como a coragem, a lealdade e a fama, porém com um ar
de tristeza e medo sentidos pela comunidade que, sem rei, teme ataques futuros
99
.
97
Em Beowulf, as alusões a “tropa” são variadas, como hwearf, werod e heap.
98
O documento traz muitos termos para “salão”, como hus, sæl, reced e sele.
99
3.153. þæt hio hyre heofungdagas hearde ondrede,
wælfylla worn, werudes egesan,
41
Embora o enredo central pareça simples e trivial
100
, as lutas contra os monstros
em Beowulf encontram-se permeadas por digressões
101
, que mencionam batalhas entre grupos
germânicos e casamentos reais. Este entrelaçamento de fatos da sociedade germânica com as
lutas monstruosas mostra a complexidade da estrutura textual e contextual. “O poeta justapôs
vários episódios, o que mostra seu interesse intenso no contexto em que tomam lugar”
102
.
Alguns destes episódios referem-se a “segredos de disputa” entre Beowulf e Breca
103
,
narrados durante o banquete do rei Hrothgar, comparações entre Beowulf e o herói matador
de monstros Sigemund, a luta entre frísios e dinamarqueses, quando Hildeburh perdeu seu
filho e irmão, a origem de tesouros reais entre vários outros.
A tentativa de se estabelecer uma unidade entre os três episódios em Beowulf
ainda incentiva estudos, cuja discussão sustenta-se pelo fato dos dois primeiros episódios
formarem um bloco espaço-temporal único
104
, diferentemente do último. A natureza dos seres
monstruosos também é diversa. Os dois primeiros seres são mais constantemente
identificados por termos como aglæca, “monstro” e possuem uma relação próxima entre si –
são mãe e filho – e o terceiro é qualificado como draca, “dragão”. Assim, muitos acreditam
que o terceiro episódio não tem relação com os outros dois e foi apenas incluído
posteriormente na narrativa
105
.
Entre os anos 50 e 70, grande parte dos estudos sobre literatura inglesa trouxe
comentários gerais sobre Beowulf e outros documentos, mencionando o debate sobre a data de
hynđo ond hæftnyd.
(Ela disse temer invasões, muitas mortes, o terror das tropas, humilhação e prisão.)
100
KER, op. cit.
101
Do latim digressione(m), que significa “afastamento, separação”, é uma “figura de retórica, [que] consiste no
orador afastar-se do seu tema, através da inserção de matéria estranha àquela tratada no momento”. MOISÉS, op.
cit., p. 151.
102
CHICKERING, op. cit., p. 17.
103
Beowulf luta com seu amigo Breca no mar em uma demonstração de coragem dos dois jovens. Esta luta é
relatada no primeiro episódio do poema.
104
Há também uma diferença visível na forma escrita a partir do verso 1.939, onde a mão que transcreveu o
poema parece ser mais antiga.
105
Contrariamos esta posição porque acreditamos existir uma unidade em Beowulf, pelas análises de espaço, da
ocorrência da guerra e das categorias que nomeiam os seres monstruosos, um dos objetivos do nosso trabalho.
42
composição, o enredo, a estrutura literária e a natureza cristã do poema. Grandes literatos
como Anderson, Burgess, Clarke, Evans, Gordon, Legouis e Cazamian, Priestley e Spear e
Sampson
106
analisaram o poema citando suas “características gerais” em meio a tantos outros
documentos, sejam do período anglo-saxônico ou posterior.
Em 1930, Ker
107
escreveu um livro que influenciou toda uma geração de
estudiosos de literatura anglo-saxônica. Intitulado Medieval English literature, o autor não
poupou críticas ruins quando se referiu a Beowulf, afirmando abertamente que muitos
documentos sem valor foram preservados nas livrarias dos nobres ingleses, e que Beowulf
podia ser um deles
108
. Suas frustrações encontram-se fundamentadas na construção do enredo
do poema: a luta de um homem contra três monstros era algo banal e por isto sem
originalidade. Porém, o que diferenciava o documento de outros que também traziam lutas
contra monstros eram as várias alusões a eventos de fundo histórico como grandes batalhas e
reinados. Segundo Ker, as estórias secundárias desviavam nossa atenção da trama principal.
Este contraste interno influenciou a maioria das pesquisas posteriores.
Alguns anos mais tarde, em 1936, o escritor, professor e especialista em
literatura medieval Tolkien escreveu um ensaio chamado The monsters and the critics
109
, em
que criticou a opinião sustentada por Ker de que o supérfluo estava no centro e os dados
importantes eram marginais à trama principal. Tolkien propôs uma outra visão sobre os
monstros ao afirmar que se a trama principal estava contida ao longo dos 3.182 versos, algo
muito importante estava, então, relacionado às lutas entre homens e monstros. Como literato,
106
ANDERSON, G. K. The literature of the Anglo-Saxons. New Jersey: Princeton University Press, 1966;
BURGESS, A. English literature: a survey for students. Essex, England: Longman Group, 1958; CLARKE, W.
A short history of English literature. London: Evans Brothers, 1976; EVANS, I. A short history of English
literature. Middlesex; England: Penguin Books, 1963; GORDON, R. K. Anglo-Saxon poetry. London: J. M.
Dent&Sons, 1957; LEGOUIS, É.; CAZAMIAN, L. A history of English literature. London: J. M. Dent&Sons,
1964; PRIESTLEY, J. B.; SPEAR, J. Adventures in English literature. V. 1. London: Harcourt Brace
Jovanovich, 1963; SAMPSON, G. The concise Cambridge history of English literature. Cambridge: University
Press, 1970.
107
KER, op. cit.
108
Id., p. 22.
109
TOLKIEN, op. cit.
43
Tolkien analisou a intenção da inserção dos monstros como estritamente dramática, cujas
funções representavam a personificação da malícia e da hostilidade.
Aos poucos, outros estudiosos foram avançando nesta área, sendo a
contribuição de Jones
110
, no início dos anos 70, essencial. Em Kings, beasts and heroes, ao
discutir a unidade dos três episódios de Beowulf, Jones reforça as posições de Tolkien
afirmando que os monstros estão no centro da trama porque este é o lugar deles, e que ao
mesclar a luta contra monstros em uma posição geográfica e histórica – em meio a fatos de
fundo histórico – os escribas quiseram envolvê-los em uma perspectiva histórica e de grande
importância para a realidade do período. Assim, Jones aguçou o estudo dos seres monstruosos
relacionado ao contexto anglo-saxão, incentivando as posteriores pesquisas de caráter
contextual e contribuindo para o incentivo da exploração dos temas mais diversos oferecidos
pelo documento.
Analisar a natureza dos monstros assassinos em Beowulf é importante para
uma interpretação dos propósitos do poema. Para tanto, faz-se necessário perceber como a
presença monstruosa ocorre e quais suas relações com a função real e com a corte de
guerreiros.
Nossa análise recairá, em primeiro lugar, sobre o espaço-tempo em que se
verifica, progressivamente, que a floresta – e suas variáveis – enquanto moradia dos seres
monstruosos ganha espaço em detrimento da corte real. Em seguida, nosso estudo se
estenderá por meio dos nomes que são atribuídos aos monstros. Estas nomeações de
categorias sociais são consideradas por sobreporem, de certa forma, as posições sociais
monstruosas às humanas, em uma interpretação contextual da sociedade anglo-saxônica de
fins do século X e início do século XI na Inglaterra.
110
JONES, G. Beowulf. In: Id., Kings, beasts and heroes. London: Oxford University Press, 1972. p. 3-61.
44
3. CAPÍTULO II – A guerra e a floresta: considerações sobre a estrutura tripartite de
Beowulf.
O texto de Beowulf organiza-se ao longo de três guerras
111
feitas entre os reis e
seus guerreiros e os seres monstruosos. Por esta disposição, a trama já foi considerada “fraca e
banal”
112
e, ao leitor iniciante, “uma sucessão confusa de incidentes”
113
. Uma atenção maior a
esta “confusão” mostra que aí se encontra dilatada a insegurança tanto material quanto moral
que permeia todo o poema. Para tanto, analisamos as causas dos ataques dos seres
monstruosos em relação à responsabilidade real, as conseqüências e a intensidade dos mesmos
bem como o referencial espaço-temporal. De início, é possível constatar uma constante e
progressiva insegurança sentida pelos homens constituída em virtude de uma grande ameaça
ao poder real.
O espaço no texto é disposto em duas regiões distintas: a corte e a floresta. A
floresta e suas variáveis – estas apresentam funções similares de moradia monstruosa como
pântanos, pauis, charnecas, montanhas, lagos, colinas, penhascos – são contrapostas à corte,
onde o rei e seus guerreiros assimilavam códigos de conduta reconhecidos, como o juramento
de lealdade, o banquete e a troca de tesouros. Por sua vez, a dimensão temporal estende-se do
próspero reinado dos reis dinamarqueses ao de Beowulf. Após 50 anos de reinado, morre na
luta contra um dragão e é exaltado por suas qualidades guerreiras, enquanto deixa seu povo à
mercê de ataques e mortes futuras.
Muitos debates foram feitos sobre a estrutura tripartite do poema,
principalmente no que tange aos seres monstruosos. Muitos acham que os dois últimos
111
Utilizamos o termo “guerra” em sua acepção mais genérica, enquanto uma relação de confronto entre dois
grupos ou uma hostilidade declarada. Este sentido também é atribuído ao fæhđ, de modo geral.
112
KER, op. cit.
113
ANDERSON, G., op. cit.
45
monstros são variantes do primeiro. Outros acreditam que o segundo episódio é uma variante
do padrão da estória estabelecido no primeiro ou que o poeta achou as duas partes já unidas e
acrescentou o terceiro episódio. O que é expressivo observar é o fato do poema relatar em seu
enredo principal três lutas contra seres monstruosos, mostrando assim que a guerra
114
é uma
constante ameaça e está relacionada à presença monstruosa. Os monstros são quase sempre
definidos por suas ações de terror e violência, e vistos como inimigos que provocam mortes e
medo.
Beowulf inicia-se com a descrição de vários reis dinamarqueses e do constante
domínio exercido por eles. A sucessão real dinamarquesa, pela rápida descrição dos reinados
de Scyld Scefing, Beow e Healfdene, gera prosperidade e o poder é obtido e mantido por
meio de vitórias em guerras e pelo cumprimento das funções reais, tais como a doação de
tesouros e a garantia da proteção real por meio da reunião de corajosos guerreiros na corte.
Com o sucesso adquirido em guerra, Hrothgar, filho de Healfdene, atrai poderosos guerreiros
para sua corte e deseja construir um Palácio Real, o Heorot. O primeiro referencial espacial é
o próspero Palácio, cujo espaço é utilizado para os banquetes entre rei e guerreiros, para a
distribuição de tesouros e para os juramentos de lealdade.
À consolidação material do grande poder do rei segue-se a primeira referência
ao ser monstruoso, pelas conseqüências de sua ação. “O salão espera a guerra de chamas, o
massacre violento”
115
. A presença monstruosa é definida pelas ações maléficas de Grendel, e
constitui a primeira ameaça ao reino.
114
Os termos que designam guerra no poema são guð (“combate”, “guerra”, “batalha”, p. 162), wig (“batalha”,
“guerra”, “luta”, p. 408), hild (“guerra”, “combate”, p. 182), nið (“luta”, “inimizade”, “ataque”, “guerra”, p. 250)
e heaðo (“guerra”, p. 175). HALL, op. cit.
115
81. (...) Sele hlifade,
heah ond horngeap, heaðowylma bad,
laðan liges.
(O salão erguido no alto, nos penhascos e com grandes chifres, esperou as chamas, a labareda do inimigo).
46
86. ða se ellengæst earfoðlice
þrage geþolode, se þe in þystrum bad,
þæt he dogora gehwam dream gehyrde
hludne in healle (...)
116
.
(Então o poderoso monstro, na escuridão, sofria grande dor, quando ele ouvia
a alegria bem alta no salão, a cada novo dia.)
Grendel sente-se incomodado com a prosperidade conquistada pela corte e
decide atacá-la; é a primeira ameaça externa sofrida pelo rei e seus guerreiros. Esta “inveja
que justifica os primeiros ataques monstruosos é caracterizada como um “sofrimento
injusto”
117
para o rei e, portanto, estes conflitos ganham uma acepção de justiça para ele na
medida em que não se sente culpado pelos ataques, já que trouxe riquezas ao reino e manteve
a lealdade para com seus súditos. Constata-se uma situação de desequilíbrio de interesses já
que para o monstro existe uma justificativa correta para atacar, mas para o rei e seus
guerreiros a prática da guerra encontra-se sem fundamento. Apesar da não culpabilidade real
frente aos ataques, o rei, derrotado, sente-se triste, humilhado e aflito, por não cumprir sua
função de proteger seus súditos.
102. Wæs se grimma gæst Grendel haten,
mære mearcstapa, se þe moras heold,
fen ond fæsten (...).
(Aquele convidado cruel chamava-se Grendel, e era um imenso caçador das
fronteiras que habitava nas charnecas, pântanos e pauis.)
A moradia de Grendel, mudança de eixo espacial do poema, serve como
116
Todo o texto original foi retirado da obra de Chickering. CHICKERING, op. cit.
117
1251. Sum sare angeald æfenræste,
swa him ful oft gelamp,
siþðan goldsele Grendel warode,
unriht æfnde, oþþæt ende becwom,
1255. swylt æfter synnum.
(Um pagou gravemente durante o descanso noturno, como aconteceu freqüentemente quando Grendel tomou o
salão dourado, causou sofrimento injusto até chegar o fim e ele morrer por seus pecados).
47
contraste à descrição inicial da corte. Além de um espaço perdido e mal localizado, a floresta
é definida com paisagens sombrias e isoladas. Esta floresta vem relatada também em suas
variantes: pântanos, pauis, charnecas. A floresta, moradia do ser monstruoso Grendel, não é
uma terra imaginada pelo poeta. É igualmente uma realidade física do Ocidente medieval
europeu, e particularmente, da Inglaterra
118
. Presente na literatura medieval, a floresta ganhou
conotações muitas vezes metafóricas e ocasionava ameaças e perigos. “A história da floresta
foi feita de realidades espirituais e materiais misturadas entre si, de um vaivém constante entre
o geográfico e o simbólico (...)”
119
. Ela era o lugar dos temores lendários, universo de lendas
assustadoras, e em Beowulf está ligada ao medo e a insegurança dos homens.
O invasor feroz, selvagem e violento mata alguns guerreiros no salão,
deixando lamentos e tumulto ao amanhecer. A situação inicial de prosperidade é invertida
para uma situação de desespero e mortes. A segurança não é mais garantida e o rei entristece-
se pela perda de homens tão valorosos. Os ataques violentos de Grendel duram “doze
invernos”, ao longo dos quais Heorot tornou-se vazio e sem uso.
De sua terra, da comunidade geat, o grande guerreiro Beowulf (e seus
guerreiros) decide ajudar o rei Hrothgar a vencer seu inimigo, enfrentado sozinho Grendel no
salão. O combate com o monstro não apresenta sérias ameaças a Beowulf. Este vence com
grande facilidade, apenas apertando os braços de Grendel e arrancando seus ombros e suas
garras. Mortalmente ferido, Grendel foge para o pântano. O combate é considerado fácil pelo
guerreiro Beowulf:
118
Nos séculos V e VI, a Inglaterra era geograficamente coberta por florestas, áreas pantanosas e pequenas áreas
de cultivo. Posteriormente, no século VII, as terras dadas de presente pelo rei aos seus súditos eram
acompanhadas por florestas e pântanos, servindo muitas vezes como fronteiras naturais na demarcação de terras.
Conforme a necessidade de cultivar a terra na Inglaterra foi aumentando, as florestas foram sendo desbravadas.
Mas continuaram sendo palco de várias estórias na literatura do período. STENTON, op. cit.
119
LE GOFF, J. O maravilhoso e o cotidiano no Ocidente medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 46.
48
745. Forð near ætstop,
nam þa mid handa higeþihtigne
rinc on ræste, ræhte ongean
feond mid folme; he onfeng hraþe
inwitþancum ond wið earm gesæt.
750. Sona þæt onfunde fyrena hyrde
þæt he ne mette middangeardes,
eorþan sceata, on elran men
mundgripe maran. He on mode wearð
forht on ferhðe; no þy ær fram meahte.
755. Hyge wæs him hinfus, wolde on heolster fleon,
secan deofla gedræg; ne wæs his drohtoð þær
swylce he on ealderdagum ær gemette.
(Ele ergueu-se mais perto e então agarrou com as mãos o corajoso homem que
dormia. O inimigo estendeu suas garras a ele, que agiu rapidamente agarrando o monstro com
suas mãos. Então o guardião fogoso percebeu imediatamente que nunca havia encontrado, em
nenhum lugar desta terra, em nenhum outro homem, um aperto de mão tão forte. Em seu
íntimo, ele temeu por sua vida, mas não podia se mexer. Ele queria escapar, voar para os
pântanos, juntar-se aos outros. Ele nunca encontrou em sua vida tamanha recepção no salão.)
Após a vitória de Beowulf, as garras de Grendel são expostas como troféu no
salão real. A paz é instaurada, e o banquete e os tesouros oferecidos pelo rei concretizam a
amizade entre ele e Beowulf. Lutar contra o rei é lutar contra Beowulf, que se coloca desde o
primeiro momento à disposição do rei para defendê-lo quando for preciso.
Mas o rei e os guerreiros (tanto dinamarqueses quanto geats) não sabiam que
“o vingador ainda viveu”
120
. O segundo episódio inicia-se descrevendo a floresta (e é
marcado por ela), a moradia do segundo ser monstruoso, de forma mais detalhada e longa que
no episódio anterior.
1258. (...) Grendles modor,
ides, aglæcwif, yrmþe gemunde,
se þe wæteregesan wunian scolde,
cealde streamas (...).
(A mãe de Grendel, um monstro-fêmea, uma senhora que habitava em águas
terríveis e rios frios, manteve a mágoa da guerra em sua mente.)
120
1256. Widcuþ werum, þætte wrecend þa gyt,
lifde æfter laþum.
(É certo que o vingador, com ódio, ainda viveu depois da batalha, por muito tempo.)
49
A mãe de Grendel decide vingar a morte do filho e por isso resolve atacar.
Este objetivo, que justifica agora os ataques, insere-se em uma prática corrente da sociedade
anglo-saxônica: a prática do fæhđ de caráter recíproco ou vendetta
121
. Esta prática resumia-se
no dever do chefe ou rei de vingar a morte de um de seus homens e possuía um estatuto
jurídico
122
. Por esta ótica, a mãe de Grendel está apenas cumprindo uma conduta intrínseca à
organização social anglo-saxônica: está vingando um membro próximo de seu grupo. A razão
da guerra é equilibrada e não é mais colocada como um sofrimento injusto:
1304. (...) Ne wæs þæt gewrixle til,
þæt hie on ba healfa bicgan scoldon
freonda feorum (...).
(Não foi uma boa troca, porque ambas as partes deveriam pagar por amigos e
parentes.)
1333. (...) Heo þa fæhðe wræc
þe þu gystran niht Grendel cwealdest
þurh hæstne had heardum clammum.
(Ela vingou aquele fæhð, porque você matou Grendel na última noite, com um
aperto de mão forte você quebrou o laço do grupo violento.)
Neste momento, o cenário da luta entre Beowulf e o ser monstruoso não é mais
a corte, como no primeiro episódio, mas a floresta. O lago, onde mora a mãe de Grendel,
encontra-se em um lugar de difícil acesso – as colinas eram pedregosas, os caminhos estreitos
e os penhascos perigosos
123
– e desconhecido pelos guerreiros que, com o rei e Beowulf,
121
DAY, D. Hwanan sio fæđ aras: defining the feud in Beowulf. Philological Quaterly, v. 78, 1999, p. 77-95.
In: The Heroic Age, n. 5, 2001. O fæhđ também denota uma situação de conflito entre duas partes, e um caráter
recíproco quando da vingança da morte de um membro é feita pelo seu grupo. Esta vingança recíproca do fæhđ é
conhecida pelo termo latino vendetta, ou fæhđ de sangue (em inglês moderno, o termo é bloodfeud).
122
O códice de Edmund (939-946) mostra o caráter jurídico do fæhđ de sangue, cujas “leis” expressas definem
em que situações um homem pode vingar e como agir, caso em troca da vingança se decide pagar o wergeld.
Whitelock (1956) afirma que os laços entre o chefe e seus seguidores eram mais profundos que os benefícios
materiais proporcionados, como a doação de tesouros e armas: era garantia de proteção e coesão social, e
“reconhecido pela lei” (p. 32), como o códice de Edmund nos mostra.
123
steap stanhliðo, stige nearwe,
50
seguem em busca do combate à mãe de Grendel. No lago são vistos vários monstros marinhos
e a nas águas, sangue. O combate é mais difícil para Beowulf que o primeiro, exigindo dele
maior força física e habilidade guerreira. O guerreiro é atacado várias vezes pela mãe de
Grendel e a mata, depois de várias tentativas, não só pela força física, como contra Grendel,
mas com a ajuda de uma “antiga espada dos gigantes”
124
. Apesar da violência menor da mãe
de Grendel
125
, o combate é mais difícil que o primeiro, não apenas pela tristeza e falta de
esperança anunciadas neste episódio da floresta, mas pela própria luta em uma caverna
embaixo do lago:
Ongeat þa se goda grundwyrgenne,
merewif mihtig; mægenræs forgeaf
1520. hildebille, hond sweng ne ofteah,
þæt hire on hafelan hringmæl agol
grædig guðleoð.
(Então ele viu o lobo da água, a poderosa fêmea. Ele fez um ataque poderoso
com a espada – a lança de duas pontas – em mãos, uma arma com pontas aguda e com
motivos de anéis.)
Gefeng þa be eaxle (nalas for fæhðe mearn)
Guðgeata leod Grendles modor;
brægd þa beadwe heard, þa he gebolgen wæs,
1540. feorhgeniðlan, þæt heo on flet gebeah.
Heo him eft hraþe andlean forgeald
grimman grapum ond him togeanes feng;
oferwearp þa werigmod wigena strengest,
feþecempa, þæt he on fylle wearð.
1545. Ofsæt þa þone selegyst ond hyre seax geteah,
brad ond brunecg (...).
(Assim o homem dos geats observou o ombro da mãe de Grendel, e estava
feliz com a batalha. Ele estava furioso com seu inimigo mortal nesta difícil guerra. Ele jogou-
a e ela caiu no chão. De novo ela rapidamente enfrentou-o com um terrível ataque, agarrando-
1410. enge anpaðas, uncuð gelad,
neowle næssas (...).
124
Eald sweord eotenisc (linha 1558).
125
1282. Wæs se gryre læssa
efne swa micle swa bið mægþa cræft,
wiggryre wifes, be wæpnedmen.
(A violência foi menor por ser a força de uma mulher, a violência da batalha das fêmeas se comparada aos
homens armados.)
51
o. O mais forte guerreiro estava cansado até que o soldado em pé caiu no chão. Ela sentou-se
em seu salão de convidados e puxou o guerreiro que estava com sua brilhante lâmina.)
Novamente o guerreiro Beowulf e seus companheiros de guerra são recebidos
com um banquete e recompensados com tesouros.
Felizes com a restauração da paz e da segurança, Beowulf e seus
companheiros decidem voltar à sua terra, onde se inicia o último episódio. Nesta última parte
do poema, a referência espacial é dominada pela morada do dragão: uma montanha cavernosa
próxima a uma praia. O terceiro monstro, ou dragão, ataca por ter um cálice de seu tesouro
roubado por um ladrão. Em nenhum momento do poema a causa do ataque do dragão é
questionada, mas sim a razão do roubo pelo ladrão. A situação de injustiça recai no ato de
roubar, fruto do orgulho e do egoísmo:
2218. þeah ðe he slæpende besyred wurde
þeofes cræfte; þæt sie ðiod onfand,
bufolc beorna, þæt he gebolgen wæs.
Nealles mid gewealdum wyrmhord abræc
sylfes willum, se ðe him sare gesceod.
(O dragão, embora dormindo, foi enganado pela astúcia do ladrão. Logo o
povo soube, os homens da cidade, que o dragão ficou furioso. O tesouro do dragão foi
quebrado pelo próprio desejo do homem.)
Beowulf, como rei, deve proteger seu povo das desgraças provocadas pelo
dragão, que cospe chamas ameaçando todas as suas terras, e deve reparar o erro cometido por
um homem de seu reino. A situação inicial de ameaça está implicitamente ligada não aos
ataques do dragão, mas a uma atitude errada de um geat. O dragão, como guardião do
tesouro, quer apenas restituir a peça roubada de seu domínio. Ele apenas serve como um
reflexo de uma atitude mal direcionada, e por isto não é considerado inicialmente responsável
pela situação de desordem no reino. Beowulf luta com o dragão com extrema dificuldade,
52
precisando da ajuda de um guerreiro, Wiglaf, para matar o monstro. O combate é o mais
difícil e tem a pior conseqüência: a morte do rei.
2586. (...) Ne wæs þæt eðe sið,
þæt se mæra maga Ecgðeowes
grundwong þone ofgyfan wolde.
(Esta não foi uma empresa fácil, e o famoso filho de Edgetheow teve de deixar
a terra.)
þa wæs þeodsceaða þriddan siðe,
frecne fyrdraca, fæhða gemyndig,
2690. ræsde on ðone rofan, þa him rum ageald,
hat ond heaðogrim, heals ealne ymbefeng
biteran banum; he geblodegod wearð
sawuldriore, swat yðum weoll.
(Então o criminoso, o perigoso dragão de fogo, lembrou-se da batalha e atacou
com vigor os corajosos homens. Feroz e com chamas quentes, cobriu o pescoço de Beowulf
com afiados dentes. Este ficou cheio de sangue, que saía em ondas úmidas.)
Uma seqüência pode ser estabelecida em cima das três causas da guerra
promovidas pelos monstros. No preâmbulo do poema a guerra é vista como uma atividade
vitoriosa e enriquecedora, concretizada pela fama e pelo poder. Com as vitórias sobre vários
homens, os reis dinamarqueses recebem tributos deles e muitos guerreiros vão à corte prestar
lealdade aos reis. Estes celebram o crescente poderio da corte real. A partir do primeiro
monstro, a guerra é vista como uma ação maléfica, mas a derrota não é atribuída à
responsabilidade real. O segundo ataque equilibra as posições entre monstros e guerreiros,
sendo justo ambos os lados lutarem pelos seus companheiros. Grendel matou homens
dinamarqueses e Beowulf deve matá-lo. Porém, Beowulf matou Grendel e sua mãe deve
matar o guerreiro. O terceiro, por fim, é visto como injusto do lado do rei – e por isso
Beowulf, como líder de seu povo, tem de reparar os erros causados pelo homem de seu reino
– e justo pelo lado do dragão.
53
A mesma reflexão pode-se dar com as conseqüências dos ataques. Todas elas
são trágicas, seja pela perda de homens da tropa real (e um rei sem tropa não pode defender o
reino) seja pela função real que, anulada, dá lugar à desordem.
No primeiro episódio, com os ataques de Grendel, morre Hondscio. É o
guerreiro Beowulf que conta, no terceiro episódio, ao rei Hygelac a perda irreparável sofrida
por todos. Beowulf diz que o amado guerreiro fôra pêgo em batalha e morto violentamente
por Grendel. No segundo episódio, a morte de Æschere é lamentada pelo rei Hrothgar. A
única vez em que a mãe de Grendel ataca o salão, mata o irmão mais velho de um guerreiro
chamado Yrmenlaf:
2076. þær wæs Hondscio hild onsæge,
feorhbealu fægum; he fyrmest læg,
gyrded cempa; him Grendel wearð,
mærum maguþegne to muðbonan,
2080. leofes mannes lic eall forswealg.
(Então Hondscio foi pêgo em batalha e destinado à violenta morte. O guerreiro
cingido com a espada foi o primeiro a cair. Grendel matou o excelente guerreiro, devorando-o.
Engoliu todo o corpo do amado homem.)
Dead is æschere,
Yrmenlafes yldra broþor,
1325. min runwita ond min rædbora,
eaxlgestealla (...).
(Æschere, o irmão mais velho de Yrmenlaf, está morto. Ele era meu
conselheiro, sábio homem e companheiro de ombro.)
O rei é responsável pelos companheiros e deve vingar a morte deles, bem
como sua grande reputação devia atrair súditos à sua corte
126
. Com um rei humilhado, não só
a corte perde seu poder como a situação de desordem se instaura.
126
A política anglo-saxônica apoiava-se em laços construídos pelos homens. Quando um rei conseguia vencer
uma batalha, vários aristocratas guerreiros de outras regiões decidiam ir até sua corte e prestavam um juramento
a ele. Assim, os guerreiros prometiam defender o rei em troca de armas e banquetes.
54
Os ataques monstruosos de Grendel e sua mãe trazem tristeza ao rei, além de
inverterem a situação inicial de alegria em lamentos:
127. Grendles guðcræft gumum undyrne;
þa wæs æfter wiste wop up ahafen,
micel morgensweg. Mære þeoden,
æþeling ærgod, unbliðe sæt,
þolode ðryðswyð (...).
(Grendel apareceu aos homens na arte da guerra. Então lamentos elevaram-se
após o banquete, um grande tumulto. O famoso líder, o bom rei de velhos tempos, sentou-se
com tristeza porque perdeu sua forte tropa.)
1321. Hroðgar maþelode, helm Scyldinga:
"Ne frin þu æfter sælum! Sorh is geniwod
Denigea leodum (...).”
(Hrothgar falou, o protetor dos Scyldings: “Não pergunte agora por alegria,
porque a tristeza voltou ao povo dinamarquês”.)
Se no primeiro episódio as conseqüências são sentidas pela morte de um
guerreiro da tropa real, Hondscio, o segundo episódio reproduz este sofrimento pela morte de
sábio conselheiro, Æschere, lamentadas ambas pelo rei Hrothgar, mas, neste caso, com um
agravante, o espaço da floresta predomina e acentua a dor sentida pelos guerreiros, tantos
dinamarqueses quanto geats. Durante o combate entre a mãe de Grendel e Beowulf no lago, é
visto sangue nas águas. O rei dinamarquês e seus guerreiros desistem de encontrar Beowulf
vivo e vitorioso e voltam ao palácio tristes. Igualmente os geats “sentaram-se com corações
tristes, e ficaram no pântano sem esperança, desejando encontrar seu senhor e amigo”
127
. Esta
situação de tristeza extrema e possível perda daquele que poderia salvá-los da ameaça do
inimigo é expressa no documento como um contraste grande ao re-ordenamento social após o
127
1602. Gistas setan
modes seoce ond on mere staredon,
wiston ond ne wendon þæt hie heora winedrihten
1605. selfne gesawon.
55
combate a Grendel. A atmosfera de perda e angústia é mais forte no segundo episódio por
esta passagem da floresta.
No último episódio, a expressão de fragilidade dos guerreiros atinge seu auge,
devido à ajuda de um guerreiro lutando ao lado de Beowulf necessária para matar o inimigo –
esta situação não está presente nos outros dois episódios –, à morte do rei (ausência de um rei
para proteger o povo) e os presságios de futuras invasões e mortes. Neste episódio, o espaço
da floresta domina quase totalmente – cenário da luta entre Beowulf e o dragão – e a corte só
é mencionada enquanto atingida pela destruição:
2324. þa wæs Biowulfe broga gecyðed
snude to soðe, þæt his sylfes ham,
bolda selest, brynewylmum mealt,
gifstol Geata. þæt ðam godan wæs
hreow on hreðre, hygesorga mæst.
(Então foi dito a Beowulf sobre o desastre, a verdade, que sua própria casa, o
mais esplêndido dos palácios, o trono dos geats, derreteu com as ondas de fogo. Aquele bom
rei ficou com uma grande tristeza na mente e no coração.)
A estrutura do poema, que se inicia com a paz dos reinos dinamarqueses,
finaliza com a morte do rei e poderoso guerreiro, Beowulf. O único capaz de derrotar os
monstros morre em combate, em morte não gloriosa
128
. As palavras de Beowulf expressam
um conteúdo trágico e desolador:
wealdan moste swa him wyrd ne gescraf
2575. hreð æt hilde.
(Ele fez como podia pois seu destino não o daria glória em batalha.)
128
A glória na guerra era conseguida por atos de coragem e bravura, o que não ocorreu com Beowulf. Apesar de
no início da batalha ele desejar combater sozinho o dragão, suas forças não são suficientes para tanto e a ajuda de
um companheiro, Wiglaf, é fundamental para matar o dragão. Beowulf sente-se triste também por constatar seus
guerreiros covardemente fugindo para a floresta e deixando-o enfrentar o dragão sozinho.
56
Hreðsigora ne gealp
goldwine Geata; guðbill geswac,
2585. nacod æt niðe, swa hyt no sceolde,
iren ærgod. Ne wæs þæt eðe sið,
þæt se mæra maga Ecgðeowes
grundwong þone ofgyfan wolde;
(O rei geat não ostentou gloriosa vitória. A espada falhou na guerra, como
nunca deveria, este seu ferro bom de velhos tempos. Esta não foi uma empresa fácil, e o
famoso filho de Edgetheow teve de deixar a terra.)
A importância da morte de Beowulf está narrada no que ela significou para a
comunidade, descrita nos versos finais do poema. A morte aqui é vista como algo desastroso
e terrível. A principal constatação recai sobre a própria função da figura real. Como um povo
pode viver sem um rei? A morte do rei traz lamentos e temores de mortes futuras ao seu povo,
acentuando o final triste do poema:
2999. þæt ys sio fæhðo ond se feondscipe,
wælnið wera, ðæs ðe ic wen hafo,
þe us seceað to Sweona leoda,
syððan hie gefricgeað frean userne
ealdorleasne, þone ðe ær geheold
wið hettendum hord ond rice.
(Esta é a guerra e a hostilidade entre os homens, a qual eu espero que nos
buscará o povo sueco, depois que ouvirem que nosso rei está sem vida, ele que governou o
reino e o tesouro contra inimigos.)
(...) Higum unrote
modceare mændon, mondryhtnes cwealm;
3150. swylce giomorgyd Geatisc meowle
bundenheorde
song sorgcearig swiðe geneahhe
þæt hio hyre heofungdagas hearde ondrede,
wælfylla worn, werudes egesan,
3155. hynðo ond hæftnyd.
(Os guerreiros tristes afligiram-se pela morte de seu senhor. Uma mulher geat
com tranças atadas fez um canto fúnebre, um lamento para Beowulf, uma canção triste para a
posteridade. Ela disse temer invasões, muitas mortes, o terror para as tropas, humilhação e
prisão.)
57
Além desta passagem, uma outra se refere ao medo dos homens viverem sem
um rei para governá-los. Logo no início no poema, a morte do rei Scyld deixa seu povo
preocupado e logo um outro rei é procurado para substituí-lo:
(...) Fyrenðearfe ongeat
15. þe hie ær drugon aldorlease
lange hwile.
(Eles estavam sem um líder. Sofreram terrível desgraça durante muito tempo).
(...) Him wæs geomor sefa,
50. murnende mod. Men ne cunnon
secgan to soðe, selerædende,
hæleð under heofenum, hwa þæm hlæste onfeng.
(Eles lamentavam-se com as mentes tristes. No salão dos soberanos, os
homens – os heróis sob os céus – aflitos não sabiam dizer quem receberia aquele cargo.)
Os últimos versos do poema remetem-se às virtudes de Beowulf, quando os
geats afirmaram que ele era “o mais generoso dos homens e o mais gentil, o melhor para o
seu povo e o mais ávido de fama”
129
. As qualidades de Beowulf, que encerram o poema,
voltam-se a um passado de honras e vitórias conquistadas pelo rei que, agora morto, deixa seu
povo exposto aos mais terríveis perigos. O passado glorioso é substituído por um futuro de
massacres e guerras.
É possível verificar que, ao longo do poema, a presença monstruosa vai
ganhando espaço em detrimento da dos guerreiros: seja pela dimensão espacial da floresta
sobre o espaço da corte, seja pelas causas e conseqüências dos ataques que levam a uma
crescente desordem, seja pela intensidade dos ataques monstruosos experimentados por
Beowulf. A estrutura do poema reforça esta situação: apesar das referências aos banquetes
129
3180. Cwædon þæt he wære wyruldcyninga
manna mildust ond monðwærust,
leodum liðost ond lofgeornost.
58
oferecidos pelo rei Hrothgar como retribuição às vitórias de Beowulf e à retomada da situação
de segurança inicial, eles são sempre interrompidos pelos ataques. Vencido Grendel, os
guerreiros participam do banquete real e da distribuição de tesouros, mas logo em seguida a
mãe de Grendel decide atacar. Após ser derrotada, há um outro banquete onde Beowulf é
recompensado e o poema não se centra mais na paz e na segurança conseguida pelos
dinamarqueses, mas já prenuncia o terceiro episódio, com o ataque do dragão. Sabemos que
Beowulf reinou bem apenas por uma passagem:
2207. syððan Beowulfe brade rice
on hand gehwearf; he geheold tela
fiftig wintra (wæs ða frod cyning,
eald eþelweard), oððæt an ongan,
deorcum nihtum draca ricsian (...).
(Então Beowulf reinou aqueles tempos escuros, o reino estava em suas mãos.
Ele reinou bem por cinqüenta invernos e envelheceu, até que um dragão se aproximou na
escura noite.)
Se a guerra, expressa de diversas formas, é uma constante no poema, uma
análise de seu significado é imprescindível para pensarmos a função real e a insegurança.
Uma primeira observação esta relacionada ao espaço da corte, onde os três
seres monstruosos atacam e matam os súditos reais. A destruição material do Palácio feita por
Grendel é narrada como um ato de terror e violência, em que bancos se quebraram e sangue
espalhou-se por todo lugar.
Na história anglo-saxônica, o espaço da corte é igualmente tido como um lugar
de autoridade e ordem, onde o poder real exerce seu domínio. Muitos códices apontam o que
se deve e o que não se deve fazer neste espaço, como a gravidade de se cometer um crime no
salão real, ato redimido com o pagamento em moedas. O primeiro a fazer referência são as
leis de Ethelbert, de Kent (602-3), em que se um rei bebesse na casa de um homem e alguém
59
cometesse um ato terrível, este deveria pagar por sua má ação. Além disto, se um homem
forçasse entrar na casa de outro sem sua autorização, deveria pagar. As leis de Ine, de Wessex
(688-694), asseguram que se alguém lutasse na casa do rei, ele não só perderia todas as suas
posses como seria julgado pelo rei se continuaria vivo ou se seria morto. A entrada forçada na
residência do rei também era punida em moedas. As leis de Alfred o Grande acrescentaram
ainda que “se alguém ameaça a vida do rei, diretamente ou (...) seus homens, poderá perder
sua vida e suas posses”
130
. Já no século X, as leis de Athelstan emitidas em Grately (924-39),
além de reproduzirem as anteriores, afirmam ainda que se algum dos súditos reais
desobedecessem ao rei, deveriam pagar certa quantia. No poema, a gravidade é justamente a
invasão dos seres monstruosos, inimigos e violentos, no palácio real, local seguro onde o
poder real domina e exerce sua função sobre os homens.
Uma segunda observação consiste em notar que os seres monstruosos estão em
todo o poema relacionados ao contexto de guerra e de violência, ganhando existência
simultaneamente ao ato dos ataques, encontrando-se fundidas a prática da guerra e a presença
monstruosa. Os monstros, de certa maneira, podem ser considerados como o excesso da
violência
131
, pela repetição progressiva dos conflitos e das perdas. Os seres monstruosos são
percebidos como os maiores e mais violentos inimigos, trazendo o medo e sugerindo o perigo
aos homens. O’Loughlin
132
, estudando os diversos episódios (centrais e digressivos) do
poema, concluiu ainda que Beowulf é uma unidade porque seu propósito secular consiste em
mostrar o ideal germânico de conciliação entre grupos sociais e o estabelecimento de fæhđ
entre reis e guerreiros.
Os seres monstruosos em Beowulf são temidos não apenas por serem inimigos
violentos, mas por produzirem um sentimento de perda de segurança por parte do rei e dos
130
“As leis de Alfred”. WHITELOCK, 1955, p. 373.
131
Um paralelo pode ser feito em relação à figura do gigante, presente em documentos da Inglaterra medieval
analisados por Cohen. Segundo o estudioso, o gigante significa, em linhas gerais, o excesso da morte e da
satisfação. COHEN, op. cit.
132
O´LOUGHLIN, J. L. N. “Beowulf”- its unity and purpose. Medium Aevum, n. 21, 1952, p. 1-13.
60
guerreiros. A morte dos seres monstruosos significa a restauração da paz e da segurança, e em
conseqüência da prosperidade e do poderio do reino.
(...) Beowulfe wearð
guðhreð gyfeþe; scolde Grendel þonan
820. feorhseoc fleon under fenhleoðu.
(Glória na guerra foi dada a Beowulf. Desde aquele dia Grendel fugiu
mortalmente ferido pelos pântanos cobertos.)
(...) sele Hroðgares,
genered wið niðe; nihtweorce gefeh,
ellenmærþum. Hæfde Eastdenum
Geatmecga leod gilp gelæsted,
830. swylce oncyþðe ealle gebette,
inwidsorge, þe hie ær drugon (...).
(O salão de Hrothgar estava protegido do inimigo. Beowulf alegrou-se por sua
coragem e pela sua grande ação feita naquela noite. Os homens geats mostraram-se
orgulhosos aos daneses do leste porque curaram toda aquela dor, aquela tristeza que muito
sofreram.)
A derrota dos monstros é o triunfo da ordem. Mas este triunfo é ainda mais
passageiro quando o rei Beowulf morre, no episódio final. Com a morte do rei o medo dos
ataques futuros se firma como única certeza à comunidade geat.
Muitos estudos tentaram explicar o papel temático e estrutural do fæhđ em
Beowulf. Em um poema em que a paz parece ser impossível, a guerra poderia estar
relacionada à ênfase do caráter trágico de um poema heróico. Day
133
, em um artigo recente,
mostra que o termo fæhđ no poema é muito difícil de se definir, porque ele não é utilizado
com um sentido diferente de outros termos, de outras formas de violência organizada entre e
dentro de grupos socais, como a incursão ou a guerra. Day afirma ainda sobre o fæhđ:
133
DAY, op. cit.
61
O termo denota (...) potencialmente relações homicidas de hostilidade violenta
entre dois dos grupos componentes em uma sociedade, estas relações sendo, nada
além, um argumento de governar e finalmente, ao menos idealmente, por um
acordo pacífico. Onde as hostilidades são entre sociedades inteiras e não
meramente segmentos de uma sociedade única eles são mais convenientemente
descritos como guerras...
134
Um conflito externo e interno pode ser percebido quando analisamos os
conceitos de fæhđ no poema, em relação aos dois primeiros seres monstruosos. Apesar de
difícil definição, Day estabelece três premissas constituintes do fæhđ, de acordo com a
definição acima dada. Primeiramente, ele é um mecanismo intra-social porque opera entre
grupos da mesma sociedade. Segundo, porque o fæhđ é regulamentado e sujeito a um acordo,
o que significa dizer que, segundo as palavras do próprio autor, é tido como uma forma quase
jurídica de relacionamento, “atuando como um complemento de outra resolução de disputa
intra-social”
135
. Finalmente, esta prática de guerra possui um caráter de hostilidade
136
que
deve seguir certas regras de como e quando se fazer a vingança, cujo caráter de recíproco de
violência pode igualmente caracterizar o fæhđ como um conflito violento cuja intenção é
restaurar a ordem
137
. Gouverič, ao analisar as sagas – textos transcritos por volta do século X
no atual território da Islândia –, concluiu que o fæhđ de caráter vingativo, também
caracterizado nestes textos, é fundamental na restauração da felicidade e honra da
coletividade, restabelecendo o equilíbrio perdido.
De acordo com as colocações de Day, podemos refletir sobre as funções
guerreiras dos seres monstruosos. No primeiro episódio Grendel não aceita o pagamento do
134
Esta definição, utilizada por Day, foi retirada pelo autor do “Dicionário de Ciências Sociais”, de J. Gould e R.
K. Kolb, Free Press of Glencoe (New York, 1964). Id.
135
Id., p. 2.
136
O caráter de hostilidade ou guerra declarada do fæhđ persistiu após a Conquista Normanda. Porém na
Inglaterra feudal, o fæhđ só podia ser convocado pelo e para o rei. O fyrd foi igualmente mantido – a convocação
pelos reis anglo-normandos do serviço armado de toda a população para a defesa do reino. MELLO, op. cit.
POWICKE, M. The fyrd. In: Id. Military obligation in medieval England. Oxford: Clarendon Press, 1962.
137
GOUVERIČ, A. J. La naissance de l’individu dans l’Europe médiévale. Paris: Éditions du Soleil, 1997.
62
wergeld
138
, descrito nos versos 154-155: “[Grendel] paz não queria com nenhum qualquer
homem da tropa dinamarquesa”. Ou expresso na seguinte passagem:
nymeð nydbade, nænegum arað
leode Deniga, ac he lust wigeð,
600. swefeð ond sendeþ, secce ne weneþ
to Gardenum.
(Ele calculou o preço a pagar sem misericórdia com os dinamarqueses. Ele
desejou lutar, matar e devorar os dinamarqueses de lança, sem esperar nenhum ataque.)
Grendel decide não aceitar um tributo como forma de apaziguar a guerra e
opta por continuar lutando. Por não aceitar o pagamento do wergeld e levar ao limite a
violência, Grendel não reconhece ou não aceita as regras sociais reconhecidas pelos homens,
e portanto pode ser considerado não pertencente à comunidade dinamarquesa. O fæhđ entre
Grendel e os homens é caracterizado mais como uma hostilidade, ou um conflito intra-social,
porém externo ao grupo constituído pelo rei e pelos guerreiros. É o que afirma Cohen
139
, que
acredita ser Grendel o Outro cultural porque ele não compreende os ditames sociais. Ele é
uma versão monstruosa de um membro rejeitado da sociedade.
Já a mãe de Grendel expressa uma outra relação com a prática da guerra. A sua
violência é uma prerrogativa masculina
140
e um dever social. Ela quer vingar a morte de seu
filho como qualquer membro de um grupo o faria com um homem morto deste grupo.
Muitos debates preocuparam-se com as funções da mãe de Grendel no poema.
Ela é um monstro-fêmea que participa da guerra e que quer vingar a morte do filho. As
dúvidas recaem sobre se Grendel e sua mãe fazem parte ou não da sociedade (aí eles estariam
retratando membros rejeitados da sociedade) e sobre sua incapacidade de reconhecer os
códigos sociais do wergeld ou da vingança recíproca. Grendel não aceita o wergeld porque
138
Desde o início do estabelecimento dos anglo-saxões na ilha, o valor de um homem era definido por uma
quantia em moedas, denominada wergeld. Era o preço de um homem que deveria ser pago ao seu grupo e ao seu
rei caso se optasse por não fazer a vingança de sangue, substituindo o conflito armado pela quantia a ser paga.
139
COHEN, op. cit.
140
ANDERSON, C. Gæst, gender, and kin in Beowulf: consumption of the boundaries. The Heroic Age, n. 5,
2001.
63
prefere a guerra. Já sua mãe insere-se no caráter recíproco do fæhđ, cuja vingança pela morte
do filho tenta restaurar um equilíbrio de conflitos, pois homens e monstros devem retribuir as
perdas lutando
141
. Aí inclui-se, nas palavras de Day, o caráter ideológico do fæhđ, que explica
os acontecimentos entre duas partes ou grupos e a interação entre eles. Isto significa dizer que
os estragos provocados pela mãe de Grendel, que participa da natureza recíproca do fæhđ, são
colocados dentro de um modelo conhecido de interação e, portanto, tornam-se inteligíveis e
definem ainda mais a responsabilidade do rei. Pelo fato da mãe de Grendel participar das
regras sociais do fæhđ o conflito pode ser considerado uma ameaça interna, já que a vingança
recíproca é reconhecida como um código social a ser cumprido pelos homens de um grupo.
Assim, o fæhđ racionaliza a violência, que se torna perceptível por todos. Do
primeiro ao segundo episódio a insegurança provocada pelos ataques de Grendel é sentida
mais como responsabilidade real (pois o rei é responsável pela prosperidade do reino)
enquanto que o ataque da mãe de Grendel é sentido por todos da mesma maneira.
Da mesma forma, a mãe de Grendel é vista como um “inimigo”
142
. Isto
significa que suas atitudes são semelhantes às de Grendel, como a de atacar e matar. Ela vinga
por cumprir uma regra social, a vendetta, realizada pelo grupo ao qual pertence o membro
morto. Ela não apenas se assemelha a Grendel, mas aumenta a insegurança e o medo entre os
homens. A sua inserção no segundo episódio do poema está relacionada à causa da vingança:
ela cumpre o fæhđ, feita apenas pelos homens na organização social anglo-saxônica. Sendo
sua ação que a define pela prática da guerra, sua presença pode ser considerada um reforço
das situações de fragilidade vivenciadas pela corte desde o primeiro ataque.
141
O código social anglo-saxão reconhece que quase toda situação de homicídio de uma pessoa deve ser vingada
pelo seu grupo, seja pela morte do assassino, seja recebendo dele tributos.
142
O termo wif é também designado para conceituá-la e significa “fêmea”. HALL, op. cit., p. 408.
POLLINGTON, op. cit. Pollington coloca, na página 184, que o sinônimo de wif é “mulher”, porém o termo é
um substantivo neutro.
64
O termo fæhđ, igualmente, vem acompanhado no poema pelo termo fyren, que
significa “criminoso”
143
, o que demonstra que o fæhđ tem uma acepção negativa
144
e não é
uma força para o bem. Kahrl, analisando o tema fæhđ, constante no poema, constata que a
unidade e o propósito de seu enredo é mostrar que deve reinar a lei, tanto do wergeld quanto
de tratados feitos e mantidos. Beowulf é um apelo à paz. Segundo a análise exposta neste
capítulo, constatamos que, diferentemente de Kahrl, o poema termina com a insegurança
presente nos homens.
Percebemos com a inversão progressiva dos eixos temáticos corte-floresta,
prosperidade-morte, segurança-ameaça, felicidade-tristeza, vitória-derrota que não era
intenção primordial relatar feitos sob a ótica da vitória, mas acentuar a exposição dos reinados
à ameaça externa (Grendel) e interna (mãe de Grendel), identificada no documento pela
guerra entre os monstros e os homens. Assim, a paz parece ser impossível
145
. No terceiro
episódio, a paz deixa de existir e dá lugar ao medo desesperado dos geats de ataques futuros e
mortes que ocorrerão agora que estão sem um líder. O poema atinge o auge da insegurança e
do medo provocados por uma futura ameaça externa à comunidade, proveniente dos ataques
dos suecos.
Pela análise dos temas da guerra, percebemos uma progressão de situações de
fragilidade e perda, constantes e crescentes ao longo do poema. A estrutura do poema,
igualmente, não narra – com exceção da introdução – situações de felicidade e vitórias
extensas, prendendo-se mais às alusões conflitantes entre as categorias monstruosa e humana.
143
HALL, ibid., p. 118. Segundo Hall, fyren também significa “violência, sofrimento”. Já o dicionário de
Pollington traz o termo apenas como sinônimo de “violência”. POLLINGTON, ibid., p. 122.
144
Esta conclusão é de Day e de Kahrl. DAY, op. cit.; KAHRL, S. J. Feuds in Beowulf: a tragic necessity?
Modern Philology, v. 69, n. 3, 1972, p. 189-198.
145
(...) Sibbe ne wolde
155. wið manna hwone mægenes Deniga.
(Grendel não queria paz com nenhum homem da tropa dinamarquesa.)
(...) Hordweard oncniow
2555. mannes reorde, næs ðær mara fyrst
freode to friclan.
(O guardião do tesouro ouviu a voz de um homem; não havia mais tempo para perguntar por paz.)
Nota-se que em Inglês Antigo, o termo freod significa tanto “paz” como “amizade”. HALL, ibid., p. 138.
65
O reinado vitorioso de Hrothgar após a morte de Grendel e de sua mãe não ganha espaço nos
propósitos dos escribas, nem traz alusões ao bom reinado de Beowulf, o que nos mostra que a
intenção da transcrição de Beowulf está diretamente relacionada à presença de conflitos
constantes, a situações de perda e de derrota, à incapacidade do cumprimento de funções
próprias dos reis – nos dois primeiros episódios o rei é derrotado e no último o rei constata a
covardia de seus súditos e morre, deixando seu povo exposto a perigos futuros.
As guerras contra os maiores inimigos e as derrotas constantes trazem
humilhação ao rei Hrothgar e Beowulf, acentuando sua incapacidade de controlar a situação,
de defender o Palácio e seus súditos. Todos os seres monstruosos atacam diretamente o rei,
que não consegue desempenhar sua função de defender, proteger, assegurar a paz e a
segurança ao seu povo. O rei falha em sua função. Nos dois primeiros episódios, é a corte do
rei Hrothgar que é atacada e a responsabilidade maior recai sobre o rei, que necessita da ajuda
de Beowulf para vencer. No último episódio, o dragão ataca o rei, Beowulf.
O mundo violento não foi um privilégio da poesia. A ocorrência de guerras e
derrotas relacionadas ao desempenho da função real podem ser verificadas não somente no
texto mas também no contexto. A guerra foi uma constante na história anglo-saxônica, mas
suas piores conseqüências – ou as assim consideradas – tiveram lugar no final do século X.
Nesse período, as invasões vikings tornaram-se constantes e progressivas,
sendo que entre 980 e 1016 a Crônica Anglo-saxônica registrou ataques dinamarqueses quase
que anualmente. A progressão dos ataques deu-se pela especialização e treinamento dos
exércitos invasores que se iniciaram em pequenos bandos, cujo maior interesse era a
pilhagem, em uma primeira fase, e em seguida a formação do chamado Grande Exército
dinamarquês, que atacou de 991 a 1012 e pretendia se estabelecer no território invadido. No
mais recente livro publicado sobre Æthelred II
146
, Lavelle comenta em dois capítulos
146
LAVELLE, op. cit., p. 60.
66
específicos a formação deste grande exército, treinado nas cinco fortalezas de Trelleborg, na
Dinamarca. Outra fortaleza de renome, a de Jómsborg, ganhou destaque nestes anos: era o
estabelecimento de uma comunidade de soldados profissionais bem treinada e bem paga com
os tributos conseguidos pelas invasões. Os líderes destas comunidades militares seriam
posteriormente reis. É o que aconteceu com Cnut, que reinou na Inglaterra de 1016 a 1035.
Tais acontecimentos tiveram um peso grande na imagem negativamente
pintada de Æthelred II. A situação de desespero que assolou a Inglaterra deixou marcas
profundas na imagem real. À função do rei foram atribuídos, inevitavelmente, os desastres
provocados pelos dinamarqueses, desastres estes de cunho material – destruição de casas,
mosteiros, livros, fortalezas, pagamento do danegeld – e moral – inúmeros massacres
violentos que mataram centenas de pessoas, provocando o medo e a insatisfação da população
em relação à figura real.
Em Beowulf, a presença do corpo monstruoso ao longo do poema remete-nos
não só às guerras constantes mas também ao sentimento de perda e medo por parte dos
guerreiros. O rei dinamarquês Hrothgar teme a todo instante novos ataques por parte de
Grendel e sua mãe, mesmo sendo ajudado pelo guerreiro Beowulf. O poema mostra que a
responsabilidade real é grande. Embora o guerreiro Beowulf mostre-se apto a vencer os seres
monstruosos, e a vitória é conseguida e festejada, o rei foi incapaz de contribuir com esta
vitória.
Os três episódios da narrativa estão entrelaçados pelas funções exercidas pelos
reis: elas falham repetitivamente, aumentando ainda mais a insegurança representada no
poema. No primeiro episódio, o rei Hrothgar não vence Grendel, mas precisa da ajuda de um
guerreiro, Beowulf, para dar fim aos danos provocados por Grendel e à situação de
humilhação sentida por ele. No segundo episódio, novamente é o guerreiro Beowulf que
vence a mãe de Grendel e ganha fama enquanto que o rei Hrothgar apresenta-se incapacitado.
67
Enfim, no terceiro episódio o rei Beowulf mata o dragão – com dificuldades – mas morre,
deixando seu povo sem rei e aflito. A incapacidade real de manter a paz e a segurança do
reino é constatada nesta estrutura tripartite do poema.
Segundo Kahrl
147
, nos dois primeiros episódios o guerreiro Beowulf atua como
uma pessoa livre, porque foi ele quem decidiu lutar com os monstros. Já no último, Beowulf,
como rei de seu povo, não pode ser mais considerado um agente livre, mas tem por obrigação
matar o dragão. Assim, a importância da figura real, crescente no poema, é mais sentida
quando o rei Beowulf morre, pois foi ele que combateu o dragão. A guerra, por isso, ganha
uma acepção negativa pelas suas conseqüências desastrosas, fazendo Kahrl afirmar que o
propósito maior da transcrição de Beowulf era o de fazer prevalecer a lei do wergeld e de
tratados feitos e mantidos.
Alguns episódios digressivos acentuam ainda a constante presença da guerra
no poema. O episódio de Finnsburh
148
, narrado na primeira parte do poema, relata lutas entre
frísios e dinamarqueses após o rompimento de um acordo de paz. A digressão sobre o colar
de Brosing – pilhado em um conflito entre francos e geats e dado a Beowulf por causa de sua
vitória contra Grendel – narra quase que exclusivamente o conflito entre as duas
comunidades. Do mesmo modo, o final do terceiro episódio narra conflitos entre os suecos e
os geats, em um sucessivo embate de vinganças por parte das duas comunidades. Os
episódios digressivos, por acompanharem a trama principal e, de certa forma, atuarem como
um complemento ou uma ênfase dela, estão ligados pela prática da guerra entre as várias
comunidades, sublinhando ainda mais os confrontos e a insegurança destas comunidades
constantemente em luta.
Por fim, uma análise sobre os conflitos entre homens e seres monstruosos em
Beowulf demonstra que o conteúdo do poema não se resume em relatar uma confusão
147
KAHRL, op. cit.
148
Versos 1068-1159.
68
sucessiva de incidentes, mas que esta confusão, muito mais aparente do que real, está
fundamentada em um momento histórico específico da Inglaterra medieval, que é a
insegurança sentida pelos vários segmentos sociais durante o reinado de Æthelred II.
69
4. CAPÍTULO III – As nomeações dos seres monstruosos: uma análise das categorias
sociais anglo-saxônicas.
Os séculos durante os quais a sociedade anglo-saxônica foi sendo constituída
mostraram que a formação social dos vários reinos e, posteriormente, de um reino único –
politicamente unido – esteve fundamentada na relação construída entre os homens. Estes
homens, por pertencerem a categorias sociais diversas
149
, teceram relações diferenciadas
conforme seus interesses e possibilidades de ação.
A convivência em sociedade era regida por meio de regras de conduta social
que regulamentavam e guiavam as relações humanas, reconhecidas e vivenciadas pelos
homens de um mesmo reino, sob o comando de um mesmo rei. Este conjunto de leis que regia
os homens é conhecido como “código guerreiro germânico”, presente na literatura dos povos
germânicos e igualmente em Beowulf, base da organização social do comitatus
150
. No poema,
as palavras do rei Horthgar a Beowulf repousam neste código: “Tenha agora e guarde este
palácio real, lembre da fama, e do poderoso valor dos homens, vigie por seu inimigo!”
151
Da
mesma forma, em outra passagem, o rei Hrothgar pede a Beowulf que “mantenha muito
adiante nossa amizade”
152
e a interferência do escriba torna mais evidente esta preocupação
com o código social, dizendo que a função de um membro do grupo não é fazer malícia, e sim
149
Estas categorias estavam de acordo com o valor de cada homem – wergeld –, dado em função da posição que
ocupava na sociedade.
150
Comitatus é um termo utilizado para designar uma organização social trazida à Inglaterra quando do
estabelecimento dos anglos, jutos e saxões na metade do século V. Ele estava apoiado nos laços que uniam os
homens estabelecidos pelo juramento de fidelidade, pelos banquetes e pela doação de tesouros e armas por parte
do rei, bem como exigia aos súditos a proteção do senhor quando este estivesse sob algum tipo de ameaça.
RUSSOM, G. R. A Germanic concept of nobility in The gifts of men and Beowulf. Speculum, v. 53, n. 1, 1978, p.
1-15; ENRIGHT, M. J. The warband context of the Unferth episode. Speculum, v. 73, n. 2, 1998, p. 297-337.
151
658. Hafa nu ond geheald husa selest,
gemyne mærþo, mægenellen cyð,
waca wið wraþum.
152
948. (...)heald forð tela
niwe sibbe.
70
estar preparado para a morte dos companheiros
153
. Proveniente do continente no período
antecedente ao estabelecimento anglo-saxão na ilha, este código de conduta continuou sendo
construído e valorizado pelos homens na Inglaterra até o século XI
154
.
A sociedade anglo-saxônica apoiou-se, mais especificamente, em laços que
uniam o súdito ao seu chefe segundo um princípio de lealdade
155
. Esta rede de dependências
interpessoais ou intergrupais mantinha a coesão interna da sociedade anglo-saxônica, sendo
que muitas vezes estes acordos tinham o intuito de evitar as guerras. As funções de troca de
tesouros entre reis e súditos, dos casamentos pré-estabelecidos e do pagamento do wergeld ou
danegeld
156
são alguns exemplos que podiam firmar amizades de interesse conjunto. A
amizade era vista como “uma aliança fundada sobre (...) o interesse recíproco”
157
realizada
dentro da corte, onde todos os aspectos da vida dependiam da aprovação do grupo.
O código guerreiro germânico envolvia princípios de ética e moral consentidas
no estabelecimento de juramentos de lealdade, da oferta de banquetes e presentes pelo rei aos
súditos em troca de proteção e lealdade. O maior propósito era a harmonia e a paz entre os
homens. Em 920, os escotos
158
juraram fidelidade ao rei Edward pois “reconheceram-no
como pai e senhor”
159
, que pode ser verificado também com Edward e os gauleses, que
juraram submissão a ele. Em 927, Athelstan fez juramento e manteve a paz com reis gauleses
153
2166. (...) Swa sceal mæg don,
nealles inwitnet oðrum bregdon
dyrnum cræfte, deað renian
hondgesteallan.
154
Segundo Whitelock, o primeiro registro é de Tacitus em Germania, no século I d.C., que afirma que os laços
entre os homens eram muito fortes e que o juramento de lealdade era pessoal. Tal código perdurou até a
Conquista Normanda, no século XI. A recuperação de poesias entre os séculos X e XI mostra que ele ainda
estava em uso. WHITELOCK, 1956, op. cit.
155
Esta organização social coesa é bastante conhecida, sendo constituída pelo chefe e seus companheiros,
comites ou gesiđas. Sua origem remonta aos germanos antes de seu estabelecimento no século V na Bretanha
insular. BRUNDAGE, J. A. Lax, sex and Christian society in medieval Europe. Chicago: University of Chicago
Press, 1987.
156
O wergeld, que surgiu antes das invasões vikings, era uma compensação em moedas, posses ou bens para se
dar aos parentes do homem morto ao invés de praticar o feudo. Já o danegel”dinheiro dos dinamarqueses”, foi
uma compensação em moedas dada aos vikings pelo rei Æthelred II a partir de 980 d.C. em troca da paz.
157
GOUVERIČ, op. cit., p. 51.
158
Os escotos eram povos de origem céltica que se localizavam na Bretanha ocidental desde o século III d.C.
MORTON, op. cit.
159
Crônica Anglo-saxônica, p. 32-33. WHITELOCK, 1961, op. cit.
71
e escotos, bem como firmou uma aliança de casamento permitindo à sua irmã Æthelflæd
casar-se com o líder viking Sihtric, o que provavelmente mais tarde lhe permitiu conquistar a
Nortúmbria.
Os aliados eram tão importantes quanto os próprios súditos que viviam na
dependência do rei. O rei era uma figura política de grande valor porque emitia leis, segundo
as quais todos estavam submissos a uma mesma conduta social, e porque devia cumprir o
código guerreiro germânico. Por ser homem, lhe era esperado o cumprimento das leis sociais
vigentes e por ser rei – seu status era grande porque tinha jurisdição sobre vários reinos – era
visto como um modelo da prática do código germânico.
Todos estes laços sociais, quando verdadeiros e fortalecidos, inspiravam
confiança entre súditos e rei, permitindo que o reinado se fortalecesse sobre esta teia social de
obrigações e dependências, favores e interesses. O rei estendia seu poder por meio de um
grupo de nobres que, com o processo de unificação, foi se ampliando progressivamente. A
acumulação destas lealdades pessoais era uma atitude para o fortalecimento do controle sobre
os homens e o poder. Segundo Schücking
160
, o termo treow, “lealdade”, implica um
comportamento verdadeiro, sem feitos de malícia, uma relação leal para com o outro e exige
promessas, e o respeito aos juramentos. O dicionário de Inglês Antigo de Hall define treow
como “verdade, fidelidade, promessa, acordo, tratado”
161
. Promessa é sinônimo de fidelidade.
Diante da organização social anglo-saxônica comentada, podemos tecer uma
análise das personagens caracterizadas como monstruosas em Beowulf. Além da prática da
guerra já analisada, os seres monstruosos podem ser identificados por categorias de nomes, ou
seja, eles são nomeados com termos que expressam posições sociais. Estas nominações estão
160
A natureza desta relação entre os homens teve sua origem nos grupos germânicos continentais e foi
conservada na Inglaterra após as migrações do século V até fins do século XI. SCHÜCKING, L. L. The ideal of
Kinship in Beowulf. In: NICHOLSON, L. E. An anthology of “Beowulf” criticism. Indiana: University of Notre
Dame Press, 1963, p. 36.
161
HALL, op. cit., p. 348.
72
presentes em todo o poema, e uma análise voltada a elas pode contribuir para a reflexão da
presença dos seres monstruosos em Beowulf.
“Todas as vezes que se quer estudar um vocabulário técnico (...) as
dificuldades são muito grandes: (...) as palavras (...) não podem ser interpretadas sem o
conhecimento das coisas que evocam.”
162
Assim, analisar os termos que seguem as
conotações dos seres monstruosos em Beowulf não requer somente uma identificação das
passagens em que estas palavras aparecem no texto, e sim uma análise que ultrapassa a mera
classificação dos termos. Esta análise mais ampla consiste em delimitar os sentidos que os
termos ganham no poema e na organização social anglo-saxônica, servindo igualmente de elo
analítico entre texto e contexto.
Em primeiro lugar, constatamos que as nominações monstruosas são
constantes e similares, para não dizer repetitivas, nos três episódios. Diferentemente dos
monstros analisados pela prática da guerra – diferenciados pelas causas, conseqüências e
intensidade dos ataques – e pela mudança do eixo espaço-temporal – a floresta e suas
variantes que dominam o espaço da corte em um tempo cronológico –, as nominações seguem
qualquer referência monstruosa.
Um dos primeiros termos identificados é o de “estranho, inimigo”, que
corresponde majoritariamente ao termo gefremede. Embora a construção gramatical e a
estrutura poética permitam ao épico germânico medieval o emprego de vários termos com
semelhantes significados, uma análise voltada aos termos originais expressa melhor as
funções sociais que classificam os seres monstruosos. Gefremede designa apenas os dois
primeiros seres monstruosos.
162
MONFRIN, J. À propos du vocabulaire des structures sociales du Haut Moyen Age. Annales du Midi, v. 80,
n. 89, 1968, p. 611.
73
Logo no primeiro episódio, após o primeiro ataque contra o rei Hrothgar e o
massacre dos guerreiros no salão, Grendel retorna na noite seguinte, em novo ataque aos
homens:
134. Næs hit lengra fyrst,
ac ymb ane niht eft gefremede
morðbeala mare ond no mearn fore,
fæhðe ond fyrene (...).
(E esta não foi a primeira vez. Na noite seguinte o estranho retornou
novamente ao salão e não hesitou, vingador e criminoso.)
O primeiro ser monstruoso, Grendel, é considerado um estranho no salão, ou
aquele que não pertence ao grupo de guerreiros do Palácio. Segundo o Dicionário Conciso de
Anglo-saxão
163
o termo gefremede, derivado de fremde, significa tanto “estranho” como
também “estrangeiro, inimigo”
164
. É interessante notar que os três significados são similares.
Isto significa dizer que o estranho é visto como um inimigo e também como um estrangeiro. E
que o estrangeiro é um inimigo e um estranho. Grendel então absorve três categorias sociais,
sinônimas. Por um outro lado, a ameaça sentida é triplicada, porque tanto o estrangeiro,
quanto o estranho e o inimigo são categorias sociais que, sendo nomeações monstruosas,
auxiliam a perceber o grau de insegurança que envolve os guerreiros e o rei Hrothgar.
Podemos dizer que as três categorias sociais são “responsáveis” pelos ataques. Nota-se que o
termo gefremede vem ligado ao termo “criminoso”.
É ainda no primeiro episódio que o mesmo termo – referente a Grendel – é
utilizado para caracterizar o ataque, no discurso de boas-vindas a Beowulf declarado pelo rei
Hrothgar. Beowulf chega à terra da comunidade dinamarquesa com seus guerreiros, prontos
para combater o inimigo e proteger o rei Hrothgar, que declara tristemente a situação do reino
derrotado:
163
Id.
164
Id., p. 138.
74
Sorh is me to secganne on sefan minum
gumena ængum hwæt me Grendel hafað
475. hynðo on Heorote mid his heteþancum,
færniða gefremed. Is min fletwerod,
wigheap gewanod; hie wyrd forsweop
on Grendles gryre.
(Senti uma grande dor, por todos os homens, porque Grendel trouxe
humilhação em Heorot. O inimigo atacou com ódio. E a minha tropa, a legião de guerreiros,
diminui no salão. O destino os arrastou à violência de Grendel.)
O ataque de Grendel é sentido pelo rei como uma inimizade, e, por causa da
utilização do termo gefremed , como o ataque de um estrangeiro e de um estranho. Os três
termos qualificam o ataque do primeiro ser monstruoso. Este ataque traz tristeza ao rei.
Desolado, Hrothgar sofre pela perda de seus homens. Durante o banquete que se segue, o
guerreiro Beowulf diz a Unferth, um mensageiro do rei ainda não convencido das habilidades
guerreiras de Beowulf:
590. Secge ic þe to soðe, sunu Ecglafes,
þæt næfre Grendel swa fela gryra gefremede,
atol æglæca, ealdre þinum,
hynðo on Heorote, gif þin hige wære.
(Eu lhe direi uma verdade, filho de Edgelaf: nunca Grendel, o terrível monstro,
amaldiçoaria com tamanha violência o seu líder ou traria humilhação em Heorot se você o
matasse.)
Beowulf, provocado pela desconfiança de Unferth, diz que Grendel nunca
humilharia o rei de tal maneira com sua violência “estrangeira, inimiga, estranha” se Unferth
fosse mais corajoso. Pela qualificação de sua violência, Grendel é considerado novamente sob
os três significados.
Na porta do salão, depois de vencido Grendel, o guerreiro Beowulf diz ao rei
Hrothgar, após receber muitos elogios pelo feito de tamanha bravura, que ele e seus guerreiros
apenas cumpriram a função de lutar contra os “estrangeiros”, “estranhos”, “inimigos”.
75
957. Beowulf maþelode, bearn Ecþeowes:
"We þæt ellenweorc estum miclum,
feohtan fremedon, frecne geneðdon
eafoð uncuþes.
(Beowulf falou, o filho de Edgetheow: “Com nossos feitos heróicos lutamos
voluntariamente contra estrangeiros. Arriscamo-nos em perigos ao poder do desconhecido”.)
A expressão “estrangeiro, estranho, inimigo” vem reforçada pela repetição de
seu segundo significado: “estranho, desconhecido”. Este artifício literário confere à situação
uma intensidade ainda maior pela repetição seguida de palavras de mesmo significado
165
.
Já no segundo episódio, a única alusão ao significado de “estranho”, refere-se à
mãe de Grendel e Grendel, quando o rei Hrothgar, desolado com a renovação dos ataques, diz
a Beowulf que
1345. Ic þæt londbuend, leode mine,
selerædende, secgan hyrde
þæt hie gesawon swylce twegen
micle mearcstapan moras healdan,
ellorgæstas.
(Os habitantes da terra, meu povo, os conselheiros do salão me disseram terem
visto estas duas coisas, no caminho dos caçadores, que habitavam nas charnecas. São
estranhos de outra parte.)
O termo “estranho” é designado por um termo diferente, ellorgæst, que
segundo Hall, significa “estranho, estrangeiro, diferente”
166
. Segundo Pollington, giest é
sinônimo somente de “estranho”
167
. Este termo, utilizado apenas na poesia, amplia seu sentido
na medida em que vem acompanhado de “de outra parte, de longe”. O estranho e estrangeiro é
aquele localizado em uma distância geográfica, acentuado pela posterior referência espacial
“charnecas”, pântanos
168
.
165
CHICKERING, op. cit.
166
HALL, op. cit., p. 104. Aqui aparece como “alien spirit”, sendo a tradução “espírito estrangeiro, diferente,
estranho”.
167
POLLINGTON, op. cit., p. 112.
168
A análise do espaço encontra-se no capítulo anterior.
76
O termo gæst, por sua vez, é igualmente uma categoria nominal que serve para
identificar os seres monstruosos. A outra utilização deste termo vem expressa para designar
Grendel. No segundo episódio, após o ataque da mãe de Grendel a Heorot, onde matou o
valoroso guerreiro Æschere, o rei Hrothgar lamenta a perda do homem e comenta com o
guerreiro Beowulf que a mãe resolveu vingar a morte do filho, porque Beowulf matou o
estrangeiro, que também é um assassino:
1130. Wearð him on Heorote to handbanan
wælgæst wæfre.
(Em Heorot um inquieto estrangeiro tornou-se um assassino.)
A presença do termo gæst para designar os seres monstruosos é extremamente
interessante. Em Beowulf, os termos utilizados e suas variantes são giest, gæst, gast, gist, gyst que
têm como significado “convidado, estranho”
169
. Novamente, verifica-se o entroncamento de duas
categorias sociais em um termo apenas: o convidado e o estranho. Agora, o estranho não é apenas
o inimigo ou o estrangeiro, mas também o convidado. O termo é utilizado para designar, em um
primeiro momento, o espaço do salão, depois da vitória do guerreiro Beowulf sobre Grendel.
992. (...) Fela þæra wæs,
wera ond wifa, þe þæt winreced,
gest-sele gyredon.
(Muitos foram, homens e mulheres, para o salão de vinho, e o pátio do salão ficou
cheio de convidados.)
Posteriormente, no início do segundo episódio, o mesmo termo aparece pela
segunda vez, utilizado para descrever a moradia da mãe de Grendel, embaixo do lago na floresta,
durante a luta com o guerreiro Beowulf:
169
HALL, op. cit., p. 154.
77
1541. Heo him eft hraþe andlean forgeald
grimman grapum ond him togeanes feng;
oferwearp þa werigmod wigena strengest,
feþecempa, þæt he on fylle wearð.
1545. Ofsæt þa þone selegyst ond hyre seax geteah,
brad ond brunecg (...)
(De novo ela rapidamente pagou-lhe recompensa com um terível ataque, e
agarrou-o. O mais forte guerreiro estava cansado, até que o homem em pé caiu no chão. Ela
sentou-se em seu salão de convidados e puxou o guerreiro que estava com sua brilhante
lâmina.)
O termo “salão de convidados” designa a funcionalidade do espaço, utilizado
para receber convidados de vários lugares. A mãe de Grendel recebe Beowulf; o salão de
Hrothgar recebe os homens do reino.
Depois, o termo gæst vem nomear apenas o terceiro ser monstruoso, o dragão,
no terceiro episódio do poema. É relatado que, chegada a noite, o convidado, com muita fúria,
ataca o salão, considerado até então seguro pelos geats.
2072. (...) Syððan heofones gim
glad ofer grundas, gæst yrre cwom,
eatol, æfengrom, user neosan,
ðær we gesunde sæl weardodon.
(Quando o sol, brilhante sobre a terra, passou, o furioso e terrível convidado, a
fera da noite, veio nos procurar onde nós estávamos salvos no salão.)
A segunda utilização do termo aparece na metade do terceiro episódio, no
início da luta do rei Beowulf contra o dragão. O rei, após decidir combater sozinho o dragão,
vai até a moradia rochosa do ser monstruoso, pronto para atacar:
2556. (...) From ærest cwom
oruð aglæcean ut of stane,
hat hildeswat. Hruse dynede.
Biorn under beorge bordrand onswaf
2560. wið ðam gryregieste, Geata dryhten.
(Primeiro, a respiração do monstro, o quente vapor na batalha, veio para fora
das pedras. A terra estremeceu. Na montanha, o líder dos geats balançou o escudo para aquele
terrível estranho.)
78
A terceira utilização do termo referente ao dragão localiza-se no final da luta
com o rei Beowulf:
2666. æfter ðam wordum wyrm yrre cwom,
atol inwitgæst, oðre siðe
fyrwylmum fah fionda niosian,
laðra manna
(Depois destas palavras, o dragão furioso, o terrível convidado maligno, veio
outra vez, e a serpente inimiga atacou com fogo o adversário.)
Nas duas citações, o termo “convidado” vem seguido de palavras de teor
negativo, como “terrível”, “furioso”, “maligno”, o que demonstra que o dragão pode ser
considerado um “convidado ruim”. Os convidados no poema são vistos como estranhos,
estrangeiros, violentos e trazem mortes. Se o termo “convidado, estranho” é aplicado aos
monstros e os monstros trazem uma conotação de caos e morte, então a função de convidado
está ligada ao contexto de insegurança vivido pelos homens.
Anderson
170
, em um artigo em que analisa termos específicos empregados aos
seres monstruosos no poema, analisa o termo giest, que pode ser tanto convidado como
estranho.
Segundo a estudiosa, o termo gæst no sentido de “convidado”
171
incorpora
uma relação social de consumo. O convidado é aquele que se alimenta na casa do anfitrião. É
considerado um hóspede aquele que, em visita a uma corte, lhe é oferecido um banquete, que
constitui a hospitalidade do anfitrião. O convidado é aquele que deve ser alimentado. A
função do banquete é justamente de tornar o convidado um amigo, e não inimigo. É o que
acontece com o guerreiro Beowulf e seus companheiros quando chegam à comunidade
dinamarquesa. Estrangeiros, são vistos com desconfiança pelos dinamarqueses até que o rei
170
ANDERSON, C., 2001, op. cit.
171
Anderson coloca ainda que o termo gæst ocorre nove vezes como “convidado”, nos versos 1138, 1441, 1522,
1602, 1800, 1893, 2073, 2227, 2312. O termo é muitas vezes confundido com gaest que significa “fantasma”,
mas cuja pronúncia, mais longa, é difícil de diferenciar. Id.
79
reconhece a procedência de Beowulf
172
e lhe oferece um banquete de boas-vindas. A partir
deste momento, Beowulf passa a ser um súdito do rei Hrothgar, enquanto que hospedado em
Heorot e defendendo a vida do rei. É a mesma função da doação de presentes feitas pelo rei
aos seus convidados: esta atitude “garante aos estrangeiros, que por natureza não possuem
status, um lugar naquela sociedade”
173
.
Com exceção do último ser monstruoso, que ataca lançando fogo, os dois
primeiros são monstros canibais: tanto Grendel como sua mãe devoram os homens. Assim,
pelas atitudes de canibalismo, os dois seres monstruosos podem ser considerados “convidados
ruins” por trazerem na função de “ser alimentado”, ou seja, de convidado, o perigo definido
pela conseqüência destas ações: o massacre de homens.
Ao afirmar que, analisando estes termos, os seres monstruosos representam
ameaça e perigo, eles podem fazer papéis de “convidados ruins”, imitando o contexto social
concretizado na relação entre senhor e convidado e alargando em Beowulf o medo presente
nesta relação. A posição de um com o outro no relacionamento se mostra instável.
A relação rei-convidado era necessária para o estabelecimento da coesão social
e o que deveria fortalecer a relação entre os homens em Beowulf apresenta uma ameaça.
“Encontros entre estranhos e homens [que reconhecem um mesmo código social] em seus
salões confrontam ambos os participantes com a possibilidade de um colapso dos limites entre
a família e o estrangeiro [...]”
174
, apontando a fragilidade das relações, uma vez que o
convidado representa um perigo
175
. Assim, Beowulf enfatiza como as amizades entre os
homens são frágeis e as traições freqüentes.
Os termos “estranhos, convidados, inimigos, estrangeiros” remetem-se àqueles
que não estavam ligados a um rei, que não fizeram o juramento de lealdade. Um outro termo
172
O rei Hrothgar conheceu o pai de Beowulf, Edgetheow, por isto admite que Beowulf entre no salão.
173
ANDERSON, C., 2001, op. cit.
174
Id., p. 3.
175
Na linha 1291, a passagem “então o perigo veio” introduz o ataque da mãe de Grendel e a define enquanto
responsável por uma ação que traz perigo ao rei e aos guerreiros.
80
que se liga a este sentido estrito é o de “exilado”. O exilado não fazia mais parte de um grupo
social
176
e por isso não estava submetido ao rei e às leis. O exílio significava separar-se do
que era comum a todos e o exilado, que não fazia parte de um grupo, representava perigo.
O termo “exilado” em Beowulf vem expresso em geflymed e wræc. Segundo
Hall, flymed, por ser derivado de fliema, tem como significados “fugitivo, exilado, fora-da
lei”, enquanto que wræc pode designar “exílio” ou “tristeza”
177
. Polllington define “exílio”
com os termos forwrecan, fliema – também “fora-da lei”, segundo este mesmo dicionário – e
wræc
178
.
A situação de exilado era triste por não pertencer a um grupo social, que lhe
proporcionaria segurança e paz, inserindo-o nos moldes sociais reconhecidos. O exílio
permitia viver como um estranho. Dependia-se do grupo, em que o homem estava preso em
uma rede de obediências e submissões
179
. O homem sem seu grupo também era considerado
um infeliz.
O termo é primeiramente utilizado no primeiro episódio, em uma conversa
entre o vigia das praias da comunidade dinamarquesa e o guerreiro Beowulf e seus
companheiros geats, quando estes chegam à nova terra. Vendo os guerreiros e Beowulf
vestidos esplendidamente com armas e armaduras, o vigia afirma:
338. Wen ic þæt ge for wlenco, nalles for wræcsiðum,
ac for higeþrymmum Hroðgar sohton."
(Eu espero de vocês a glória, e não o exílio. Vocês vieram falar com Hrothgar
pela coragem.)
176
Grupo social aqui entendido como “um sistema estrutural de relações, onde o indivíduo se encontra
interligado por laços” sociais (p. 91). MURDOK, G. P. Análise do parentesco. In: Id. Social structure. London:
Collier-MacMillan; New York: Free Press, 1949, p. 91-112.
177
HALL, op. cit. Wraec localiza-se na p. 421 e flymed na p. 122.
178
POLLINGTON, op. cit., p. 54.
179
Um exemplo é o fæhđ de caráter recíproco, em que a vingança recíproca era baseada na solidariedade do
grupo.
81
A “glória” vem oposta a “exílio”, o que demonstra que o exílio era visto como
um ato desprestigioso, não honroso. O termo tem conotações negativas e por isto o vigia do
rei Hrothgar questiona a tropa estrangeira. O termo depois é citado como uma nomeação do
primeiro ser monstruoso, Grendel, que foge após ter sido derrotado pelo guerreiro Beowulf
em luta travada em Heorot. Nota-se que o termo “exilado” vem acompanhado de “infeliz”,
que afirma a terrível condição de exílio:
844. hu he werigmod on weg þanon,
niða ofercumen, on nicera mere
fæge ond geflymed feorhlastas bær.
(Disse como ele, cansado, conquistou o inimigo, que infeliz e exilado foi para
o lago dos monstros, deixando as pegadas expostas.)
No segundo episódio, o termo – agora wræc – remete-se aos dois seres
monstruosos, Grendel e sua mãe, na descrição dos dois seres feita pelo rei Hrothgar ao
corajoso guerreiro Beowulf:
1349. ðæra oðer wæs,
þæs þe hie gewislicost gewitan meahton,
idese onlicnæs; oðer earmsceapen
on weres wæstmum wræclastas træd,
næfne he wæs mara þonne ænig man oðer;
(O outro estava lá, tão longe quanto um sábio podia ver. Um com a forma de
uma mulher, e o outro, miserável, com a forma de um homem. Ele era mais forte que qualquer
outro homem. Eles andavam no caminho dos exilados.)
Um outro exemplo de como os seres monstruosos são vistos como não-
pertencentes ao grupo social reconhecido pelos guerreiros – tanto dinamarqueses quanto geats
– é a passagem em que o rei Hrotghar fala a Beowulf, no segundo episódio, que a desgraça
voltou ao reino com o ataque da mãe de Grendel. Ele descreve os seres monstruosos (citação
acima) e continua o diálogo utilizando o termo. Fæder, “pai”
180
, é utilizado para sugerir que
Grendel não possui laços sociais porque ele não conhece “pai”:
82
1354. þone on geardagum Grendel nemdon
foldbuende. No hie fæder cunnon (...).
(Desde muito tempo Grendel foi visto pelos habitantes. Ele não conhece pai...)
A equivalência do termo “pai” e “senhor” pode ser verificada quando, no
segundo episódio, o guerreiro Beowulf considera o rei Hrothgar “pai”, a partir do momento
que é inserido na corte como um convidado bem-vindo e torna-se súdito do rei. Beowulf,
jurando matar o inimigo, sela desta maneira um acordo com Hrothgar, que promete presenteá-
lo se a vitória for conseguida.
1474. "Geþenc nu, se mæra maga Healfdenes,
snottra fengel, nu ic eom siðes fus,
goldwine gumena, hwæt wit geo spræcon,
gif ic æt þearfe þinre scolde
1478. aldre linnan, þæt ðu me a wære
forðgewitenum on fæder stæle.
Wes þu mundbora minum magoþegnum,
hondgesellum, gif mec hild nime;
(Agora que eu estou pronto, lembre-se, famoso filho de Healfdene e sábio rei,
sobre o que falamos antes. Se eu perder a vida, você continuará sendo para mim meu pai. Seja
protetor dos meus homens, os companheiros de guerra, se esta luta me matar.)
Como este termo se repete com Grendel, concluímos que ele não tem senhor e
é considerado uma ameaça por não pertencer a um grupo e não estar submetido a nenhuma
ordem.
As traições e referências a estranhos também permeiam a obra nos textos
digressivos
181
. No início do terceiro episódio, quando o guerreiro Beowulf e seus
companheiros chegam de viagem para relatar ao rei Hygelac como se deu a vitória de
180
HALL, op. cit., p. 109. Segundo Pollington, o termo designa apenas “pai”. POLLINGTON, op. cit., p. 55.
Uma análise dos termos em Inglês Antigo feita por Pfeffer mostra que o termo fæder, que significa “pai”, é
diferente de fædera, “tio paterno” (p. 120). PFEFFER, G. The vocabulary of anglo-saxon kinship. L´homme, v.
27, n. 103, 1987, p.113-128.
181
OSBORN, Marijane. The wealth they left us: two women author themselves through others’ lives in Beowulf,
Philological Quaterly, v. 78, 1999, p. 49-75. In: The Heroic Age, n. 5, 2001. Osborn afirma, neste artigo, que
estas narrativas secundárias são mais que recordações de um passado de mitos, parábolas e fábulas (p. 11). Ela
acredita que todos os temas tratados – traição, violência – são contemporâneos ao surgimento do poema Beowulf.
83
Beowulf sobre os seres monstruosos, a narrativa é quebrada para dar lugar ao relato de
Modthryth
182
. Após um breve comentário sobre a rainha Hygd, mulher de Hygelac, tida como
uma excelente e generosa mulher, a rainha Modthryth vem descrita como uma péssima
mulher, porque perpetrou vários crimes. O episódio digressivo sobre o dinamarquês Heremod,
no segundo episódio, relata que ele matou os próprios companheiros de mesa e partiu triste,
sem dividir tesouros.
Convém pensarmos, como já foi proposto por Le Goff
183
, sobre a consideração
que a sociedade tem pelos considerados ‘marginalizados’. Segundo este autor, os estrangeiros,
os criminosos e os monstros são tipos de marginalizados identificados pela sociedade. Estes
tipos são sustentados por uma base ideológica, que consiste no controle ou na exclusão de
quem perturba a comunidade, em seu senso de identificar o que é comum – em relação aos
estrangeiros – e na necessidade de estabilidade, o que faz que todo aquele que não pertence a
um determinado grupo seja visto como uma ameaça.
Percebemos que, na análise das funções das personagens caracterizadas como
monstruosas no poema, ser um “estranho” encontra-se, muito constantemente, dilatado e
ampliado em outras categorias socais, como a de “convidado” e “estrangeiro”, que pode ser
relacionado a “exilado” quando nos referimos à perda dos laços estabelecidos entre os
homens.
Todas as traições afetam diretamente a estrutura do poder real, seja pela perda
de homens queridos, seja pela constatação de atos de traição na corte, desfazendo os
juramentos de lealdade. No terceiro episódio, após o combate, a fragilidade está relacionada à
covardia. A covardia, mal vista em um código que supervalorizava atos de coragem, é
reprimida no final do poema. O rei Beowulf, incapaz de combater sozinho o dragão, necessita
da ajuda dos seus guerreiros para sair vitorioso, mas apenas um – Wiglaf – o ajuda. Os outros,
182
Versos 1925-1976.
183
LE GOFF, op. cit.
84
covardes, fogem e por esta atitude são reprimidos por Wiglaf. A terra, direito de herança dos
homens mais honrados, não será partilhada com os covardes:
2845. Næs ða lang to ðon
þæt ða hildlatan holt ofgefan,
tydre treowlogan tyne ætsomne.
ða ne dorston ær dareðum lacan
on hyra mandryhtnes miclan þearfe,
2850. ac hy scamiende scyldas bæran,
guðgewædu, þær se gomela læg,
wlitan on Wilaf
(Não muito tempo depois, os covardes – eram dez unidos – que desistiram e
foram para a floresta, propagadores de falsas promessas, que não se arriscaram no combate,
tiveram grande necessidade de ver seu senhor. Envergonhados, foram com seus escudos e
armaduras para onde o sábio estava deitado e olharam para Wiglaf.)
2886. (...) londrihtes mot
þære mægburge monna æghwylc
idel hweorfan, syððan æðelingas
feorran gefricgean fleam eowerne,
domleasan dæd. Deað bið sella
eorla gehwylcum þonne edwitlif!
(Cada homem partirá desprovido de terra por direito, uma vez que os
aristocratas ouvirem ao longe sobre este feito desonroso. A morte é melhor para qualquer
guerreiro do que uma vida de desonra.)
A força do juramento de fidelidade implicava em um acordo entre homens. Os
guerreiros esperavam ganhar armas, cavalos e tesouros enquanto que o rei fornecia banquetes
em troca de proteção. Este laço que unia os homens era mais profundo que os benefícios
materiais: ele englobava o dever da vingança ou a compensação.Todos dependiam do apoio
do seu grupo em assuntos da vida. O homem que não fazia parte destas obrigações era visto
como um infeliz. Em um código social que exigia lealdade entre os homens, a traição, a
violência e a covardia eram tristes pois quebravam os laços entre guerreiro e rei. A pior
situação era ser foragido ou ter negada a proteção requerida.
Os termos referentes aos seres monstruosos analisados acima possuem uma
vinculação à organização da sociedade anglo-saxônica. Na história anglo-saxônica
observamos que estas funções encontram-se acopladas, da mesma maneira que no poema.
85
A história anglo-saxônica nos mostra que as alianças não eram tão sólidas, e
flutuavam de acordo com as circunstâncias e os interesses de cada um. As traições e
desconfianças, por exemplo, eram comuns. Já vimos que em 757 o duque Æthelbald da
Mércia foi morto pelo seu guarda-costas, em 758 Oswulf da Nortúmbria foi morto pelos seus
companheiros e em 796 Æthelred da Nortúmbria foi morto por um de seus homens, cuja
morte foi vingada por um súdito seu. Em 947, os conselheiros nortumbrianos romperam as
promessas feitas ao rei Eadred, fato registrado na Crônica Anglo-saxônica
184
. O auge da
quebra do código guerreiro germânico deu-se com Aethelred II, com os exílios forçados e as
ações de covardia de seus súditos e do próprio rei.
O grupo social servia para assegurar a paz e a segurança de seus membros
contra uma interferência externa. Um homem que não estava imerso nesta rede social era
considerado uma ameaça por não estar submetido a nenhuma regra de comportamento. Ele
não se mantinha em uma sociedade dominada pela hostilidade e sob tensão contínua. A
hostilidade e a tensão foram provocadas pelas guerras em Beowulf. O exílio era terrível por
separar o homem do “conforto” de seu grupo. O estrangeiro era considerado uma ameaça
constante porque não possuía senhor nem participava das regras sociais estabelecidas e
conhecidas pelos homens de um grupo social.
Aquele que não participava destas relações de conduta e comportamento
sociais regrados era considerado um estranho. O estranho não era visto como o “igual e
aliado” e, portanto, encontrava-se fora dos limites impostos pelo grupo e era visto como uma
ameaça.
Da mesma forma se operava com os convidados. Segundo Whitelock
185
, os
convidados da corte eram esperados para retribuir a hospitalidade do anfitrião em tempos de
184
A versão D da Crônica relata que, em 947, “(...) os conselheiros nortumbrianos fizeram promessas ao rei
[Eadred], e dentro de um curto espaço de tempo eles foram falsos a tudo, promessas e juramentos.”
WHITELOCK, 1956, p. 72.
185
Id.
86
guerra. Desde o século VI a hospitalidade era oferecida ao rei pelos homens de regiões
subjugadas. Na Inglaterra, os senhores de províncias subjugadas iam para visitas amigáveis e
para selarem alianças de casamento e negócios. Mas as visitas nem sempre eram amigáveis. A
Crônica Anglo-saxônica revela várias situações de convidados que traziam ameaças. O rei
Edward o Mártir, convidado de Æthelred II, morreu quando visitava o meio-irmão.
Igualmente, todas as alianças de submissão ou temporárias eram realizadas na corte de um
anfitrião.
Durante o século VII houve o predomínio de uma série de guerras entre
diversas províncias, que eram consideradas estranhas por serem regidas por outros reis. A
historiografia convencionou chamar estes reinos de “Heptarquia anglo-saxônica” pela
existência de sete reinos até final do século VII: Nortúmbria, Mércia, Anglia Oriental, Essex,
Kent, Sussex e Wessex
186
.
No século IX, o exército de um condado servia apenas no limite de suas
fronteiras contra a ameaça de outras fronteiras, consideradas estranhas. Até o século IX,
faziam parte desta categoria social os homens de outras províncias e, após 793, os próprios
invasores vikings. A criação do reino da Mércia, no século VIII, foi possível pela integração
do “estranho” ao considerado “comum”, na medida em que vários homens de outras
províncias (e que não estavam sob autoridade do rei Offa) resolveram jurar fidelidade ao rei
mércio, subjugando-se livremente a ele em troca de banquetes e armas, ou seja, em troca de
um lugar na sociedade.
Da mesma forma, a declaração de leis ao longo dos anos anglo-saxônicos
pretendia definir o que era considerado estranho e como agir diante dele. As leis promulgadas
pelos reis são de grande valia quando se trata de distinguir o que é “estranho” do que é
186
Após esta data, três reinos foram consolidados: Nortúmbria, Mércia e Wessex. Muitos debates foram feitos
sobre a constituição dos reinos na Inglaterra. Riché, por exemplo, afirmava existir não apenas sete, mas dezesseis
ou dezoito reinos antes do século IX. RICHÉ, P. As invasões bárbaras. Sintra, Portugal: Europa-América, 1952,
p. 105.
87
“comum”. No Tratado de Aethelred II com o exército viking
187
, emitido em 991, o rei
estabelece que dar comida aos vikings é permitido, enquanto eles estiverem unidos aos anglo-
saxões. O “dar comida” aqui envolve a relação de receber convidados, em que a estes eram
oferecidos banquetes. No mesmo tratado, o rei impõe que toda província que proteger aqueles
que prejudicam a Inglaterra será tratada como inimiga por todos. Porém a preocupação em
torno de “estranhos” não surgiu nos séculos X e XI. No século VII, as leis dos reis Hlothhere
e Eadric, de Kent, preocupam-se com os homens do reino que abrigam estranhos ou aqueles
que vêm da fronteira (da província). As leis de Wihtred são ainda mais evidentes: um estranho
deve fazer juramento a um chefe, como um súdito real.
Talvez as mais exigentes regras para aqueles considerados estranhos estejam
expressas nas leis de Alfred o Grande no final do século IX. A primeira afirmação é que cada
um deve manter seu juramento. Logo em seguida, uma série de cláusulas explica o que
acontece com um traidor, que se não consertar o erro é considerado um fora-da-lei. As leis do
rei Athelstan proclamadas em Grately fala que todo homem deve ter um senhor. Se ele não
tem, o grupo ao qual pertence deve achar para ele um senhor. E ainda acrescenta que se ele
não achar um senhor, será considerado um fugitivo.
O Códice emitido pelo rei Edgar em Wihtbordesstan (962-3) expressa ainda
mais a relação entre anglo-saxões e vikings, considerados estrangeiros. Este códice foi
promulgado em uma tentativa de convivência pacífica com o Danelaw. O códice afirma que
os dinamarqueses devem viver de acordo com suas leis, porque segundo o rei eles são leais.
Esta passagem está na Crônica anglo-saxônica, o que mostra que não foi muito bem aceita a
“independência dinamarquesa”: “Ainda ele [Edgar] cometeu uma ação grandemente má: ele
adorava costumes estrangeiros perversos e também trouxe de modo bem sólido estas maneiras
[...] para seu reino, e atraiu estrangeiros e induziu pessoas perigosas ao seu país”
188
. A
187
WHITELOCK, op. cit., 1955.
88
aderência a um códice de lei particular – como o Danelaw – era um componente significativo
de senso de diferença
189
.
Na Crônica, o rei Alfred identifica vikings com estrangeiros. Segundo Stenton,
havia na organização social anglo-saxônica uma categoria social denominada geneat
especialmente para cuidar dos estrangeiros que visitavam o rei
190
. Segundo Le Goff, o
estrangeiro era o “excluído por excelência”
191
. Ele era considerado o intruso, aquele que não
pertencia às comunidades conhecidas, o portador do desconhecido e da inquietação. Ele era o
que não jurou fidelidade, o que não era súdito.
No século X, a realeza pessoal também envolvia relações entre poderosos
aristocratas provenientes dos vários reinos, onde a corte real podia ser considerada um centro
político único que permitia aos nobres ganhar poder e posição, já que estas conquistas
dependiam apenas da vontade do rei. Quanto mais súditos estavam sob a dependência do rei,
mais poderosa era a corte. Quanto menos o rei tinha a oferecer, menos atraídos eram os
aristocratas causando grande instabilidade na corte, já que estes estavam sempre sujeitos a
procurar uma outra corte se aquela não oferecia muito.
Uma mudança grande se operou quando da unificação da Inglaterra, com o
reconhecimento da submissão a um rei por parte dos reinos. O rei, antes responsável pelo
governo de um só reino, passou a ser responsável por todos, enquanto que os reinos antes
considerados estranhos passaram a pertencer a uma mesma chefia, e por isto, a serem tratados
de igual maneira, sob as mesmas leis. Assim, as ameaças que antes provinham de homens de
regiões externas foram englobadas no processo de unificação em um único território,
passando a serem vistas como ameaças internas ao reino.
188
WHITELOCK, 1961, p. 75. A referência data de 958.
189
HADLEY, op. cit., p. 52.
190
STENTON, op. cit., p. 473.
191
LE GOFF, op. cit., p. 83.
89
Ainda por volta de 900 os vikings dominaram a Anglia Oriental e a
Nortúmbria, reinos que ficaram conhecidos como o Danelaw, onde as leis dinamarquesas
eram praticadas e reis e líderes vikings governavam com grande independência em relação ao
sudoeste. Com o território unificado, eles passaram a ser vistos como submissos a um mesmo
rei e partícipes da organização interna do reino. Segundo Stafford
192
, a situação política anglo-
saxônica dos séculos IX e X foi marcada pelas relações entre as províncias vizinhas.
Diante das constantes ameaças do reino recém-unificado, bem como dos
invasores vikings, ao rei cabia não só assegurar seus súditos pelo cumprimento do código
guerreiro germânico como também garantir a proteção do reino contra qualquer ameaça vinda
de fora
193
.
O rei, como figura unificadora e controladora, devia encontrar o equilíbrio
social harmonizando os reinos anteriormente sob sua jurisdição aos recém-conquistados. A
relação entre reinos encontrava-se estruturada em um acordo de dois tipos: (a) a submissão
temporária e a (b) aliança
194
, visando um propósito comum, e foi pela consolidação deles que
a Inglaterra foi unificada. Os reis das várias províncias prestaram juramento e fizeram
alianças com reis de Wessex, como Athelstan, Edgar e Aethelred II. As alianças e submissões
serviam para continuar a política de expansão dos reis de Wessex, onde reis de províncias
subjugadas tinham de pagar tributos ao rei.
O poema, neste momento, parece estar mais claramente próximo ao contexto
de sua transcrição. As conotações monstruosas dominam tudo o que é “marginalmente”
considerado em relação à corte: o estrangeiro, o exilado, o solitário são nomeações constantes
às criaturas monstruosas, e por isto ligadas de certa forma à destruição, à morte, ao caos.
192
STAFFORD, op. cit.
193
BRUNDAGE, op. cit.
194
A Mércia, ao se deparar com os invasores vikings no final do século IX, fez uma aliança com Wessex no
intuito de unir os exércitos dos dois reinos e aumentar a defesa contra os invasores. A aliança foi feita no reinado
de Edward o Antigo, que casou sua irmã Aethelflaed com o rei da Mércia. Alfred o Grande e seu pai fizeram
alianças de casamento não só na Mércia mas também com os gauleses, para acabar com as hostilidades. Alfred
também batizou Guthrum, dando-lhe presentes. STAFFORD, op .cit.
90
Todos estes termos estão ligados àquele que não faz parte de laços sociais conhecidos, e por
isto são vistos com desconfiança e como ameaças.
O auge da quebra do código aristocrático guerreiro deu-se no reinado de
Æthelred II: exílios, estrangeiros (invasores vikings), convidados (aristocratas e vikings)
traiçoeiros e a má administração do reinado foram definitivas para o insucesso da política real.
Por volta do ano mil, data da transcrição do manuscrito conhecido de Beowulf, o reinado de
Æthelred II ainda estava imerso nos constantes ataques dinamarqueses e nos seus desastres
conseqüentes. O reinado conseguiria certa estabilidade apenas posteriormente, por volta de
1008.
Constatamos em Beowulf que as conotações monstruosas estão relacionadas à
ameaça interna sentida pelos guerreiros, pelos atos de traição que prejudicam não só o rei
como seus companheiros. Os seres monstruosos reúnem em si conotações “marginais”, que
escapam a uma estrutura conhecida pela sociedade e representam um perigo. Todos estes
termos podem ser relacionados aos atos criminosos, violentos e aos massacres cometidos
pelos monstros. Com esta união de termos marginais e ações violentas, as personagens
caracterizadas como monstruosas consistem no retrato mais expressivo da insegurança e do
medo pelo qual estavam passando os habitantes da Inglaterra por volta do ano mil, na metade
do reinado de Æthelred II, quando a crise e a derrota atingiram o auge e serviram como um
estímulo para que Beowulf, neste momento de desespero, fosse transcrito.
91
5. Conclusão
Primeiramente, pela análise dos temas da guerra entre os reis e seus guerreiros
e os seres monstruosos, percebemos uma progressão de situações de fragilidade e perda, não
só constantes mas crescentes ao longo da narrativa. A estrutura do poema, igualmente, não
traz – com exceção da introdução – situações de felicidade e vitórias extensas, prendendo-se
mais às alusões conflitantes entre as categorias monstruosa e humana. O reinado vitorioso de
Hrothgar após a morte de Grendel e de sua mãe não ganha espaço nos propósitos dos
escribas, nem traz alusões ao bom reinado de Beowulf, o que nos mostra que a intenção da
transcrição de Beowulf está diretamente relacionada à presença de conflitos constantes, a
situações de perda e de derrota e ao não-cumprimento das funções reais – nos dois primeiros
episódios o rei é derrotado e no último o rei constata a covardia de seus súditos e morre,
deixando seu povo exposto a perigos futuros.
Os temas da guerra encontram-se presentes não apenas no documento mas no
contexto anglo-saxão, cuja ameaça trazida pelos ataques vikings contribuiu e, de certa forma,
determinou o futuro desastroso da Inglaterra. Constatamos que há uma relação entre a guerra
e a derrota textual e contextual, que implica em identificar as ameaças externas no documento
e no final do século X e no início do século XI. Nós não acreditamos que os seres
monstruosos representem os invasores vikings no documento, mas que a ameaça externa
ocasionada por ambos pode ter um elo de ligação que justificaria a transcrição do conteúdo
expresso em Beowulf. Por esta razão, Beowulf acompanha o contexto e as “narrativas de
derrota” do reinado de Æthelred II.
Além disto, verificamos que as conotações monstruosas no poema estão
relacionadas à ameaça interna sentida pelos guerreiros e pelos atos de traição que prejudicam
92
não só ao rei como a seus companheiros. Estes temas da “derrota” real e da insegurança,
embora presentes em outros momentos da história anglo-saxônica, atingiram seu auge e foram
direcionados pelo contexto de traição e derrota constatada no reinado de Æthelred II. O
sucesso da maioria dos reis da casa real de Wessex repousou sobretudo na organização de
seus recursos
195
– exército, súditos, fortalezas, alianças – e encontrou uma barreira quando
este rei subiu ao poder.
É-nos demais proveitoso estabelecer possíveis contatos entre os seres
monstruosos e a quebra de um acordo social e da ordem mantidos na relação rei-guerreiros,
com o objetivo de analisar como as funções monstruosas podem denunciar as desavenças
constantes do reinado de Æthelred II. Os seres monstruosos em Beowulf, figuras construídas
por um meio social
196
e registradas em um documento textual, representam situações de
conflito e fragilidade constantes e progressivas que atingem a corte e o rei, por
desempenharem a prática da guerra e serem identificados por termos considerados
“marginalmente” pela sociedade anglo-saxônica. A transcrição do documento por volta do
ano Mil foi influenciada, a nosso ver, pelo contexto de “guerra estrangeira” – os ataques
vikings – e “guerra civil” – a ocorrência da traição e de um rei mal sucedido – que denunciam
o reinado de Æthelred II e enfatizam aquilo que pode prejudicar um rei e seu reinado.
Sabemos que Beowulf foi provavelmente declamado nas cortes. Porém
devemos salientar que nunca saberemos quão longe está a versão oral da transcrita, nem quão
diferentes eram as duas narrativas do poema. Tudo o que sabemos é que a estória de Beowulf
foi importante o suficiente para ser transcrita. E que esta transcrição pode iluminar a
organização política e social de determinado contexto histórico porque o texto “pode ter uma
função social e política imediata e ser uma maneira de discutir um fato presente”
197
. Se o fim
195
POOLE, A. L. Medieval England. London: Oxford University Press, 1958.
196
CHARTIER, R. O mundo como representação. ESTUDOS AVANÇADOS, São Paulo, IEA/USP, v. 5, n. 11,
10/04/1991, p. 173-191.
197
INNES, M. Memory, orality and literacy in an early medieval society. Past&Present,n. 158, 1998, p. 5.
93
mais específico da poesia anglo-saxônica era passar uma sabedoria coletiva da sociedade
sobre ela mesma e sua percepção do ambiente que precisava controlar, segundo Bruce
198
,
concordamos com este autor na medida em que o poema, como analisado neste trabalho,
expressa o auge das situações de medo e insegurança específicas do reinado de Æthelred II.
Um outro artigo recente
199
discute justamente a razão da compilação de poesias
nos anos finais da Inglaterra anglo-saxônica. Trata-se de justificar – e o autor consegue – a
presença constante do código aristocrático guerreiro nas poesias, como o tema do heroísmo no
período em que foram transcritas. Segundo este artigo, Beowulf foi transcrito porque havia,
em um processo iniciado no século IX e que durou até o século XI, uma necessidade de
reformar os códigos sociais “tradicionais” e as obrigações entre os homens e de reforçar os
laços pelos quais estava organizada a sociedade anglo-saxônica. É, de certa maneira, o que
procuramos mostrar neste trabalho.
Buscamos na análise de um poema épico um propósito que vai além das
“lembranças de tempos imemoriais” conservadas pela oralidade, ou “que remontavam aos
tempos anteriores do paganismo”
200
. A organização social germânica enraizada no passado e
descrita nos versos de Beowulf é presente: Hrothgar era visto ainda como um bom rei nos dias
de Æthelred II
201
.
Enfim, a análise apresentada, além de contribuir para a identificação dos
propósitos da inserção das personagens caracterizadas como monstruosas no poema, permite
mais facilmente compreender os motivos da transcrição de Beowulf por volta do ano Mil, data
que tem merecido pouca atenção por parte dos estudiosos do poema.
198
BRUCE, A. An education in the mead-hall: Beowulf’s lessons for young warriors. The Heroic Age, n. 5,
2001. Neste artigo, Bruce trabalha a função didática da poesia anglo-saxônica compilada no final do século X e
início do século XI, principalmente porque o autor acredita estar ela voltada à uma audiência de geoguđ
(guerreiros jovens). Assim, Beowulf tem como finalidade mostrar aos guerreiros jovens que devem ser corajosos
e defender seu rei em troca de tesouros e fama.
199
HILL, J. Shaping anglo-saxon lordship in the heroic literature of the tenth and eleventh centuries. The Heroic
Age, n. 3, 2000.
200
VIZIOLI, P. A literatura inglesa medieval. São Paulo: Nova Alexandria, 1992, p. 35.
201
LAVELLE, op. cit.
94
6. Referências bibliográficas
Fontes Primárias
CHICKERING Jr., H. D. (Ed.). Beowulf: a dual-language edition. New York: Anchor Books,
1977. 416 p.
WHITELOCK, D. English historical documents (c. 500-1042). London: Eyre&Spottiswoode,
1955. 867 p.
____________ The Anglo-saxon Chronicle. London: Eyre&Spottiswoode, 1961. 240 p.
Obras de Referência
HALL, J. R. C. A concise anglo-saxon dictionary. Cambridge: University Press, 1960. 452 p.
MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974, 181 p.
POLLINGTON, S. Wordcraft: Concise New English to Old English dictionary and thesaurus.
Norfolk, England: Anglo-Saxon Books, 1993. 256 p.
Bibliografia
ANDERSON, George K. The literature of the Anglo-Saxons. New Jersey: Princeton
University Press, 1966. 444 p.
ANDERSON, Carolyn. Gæst, gender, and kin in Beowulf: consumption of the boundaries.
The Heroic Age, n. 5, 2001. ISSN: 1526-1867. Disponível em:
<http://members.aol.com/heroicage1/homepage. html>. Acesso em: 25 abr. 2002.
95
BARNES, D. R. Folktale morphology and the structure of Beowulf. Speculum, n. 3, 1970, p.
416-434.
BERCÉ, Y.-M. (Dir.) Les Monarchies. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. 536 p.
BLAIR, P. H. Aethelred the Unready. In: Id., An introduction to Anglo-saxon England.
Cambridge: University Press, 1959. p. 90-99.
BOLTON, W. F. A short history of literary English. London: Edward Arnold, 1972.
BROWN, P. O cristianismo do norte: Irlanda e Inglaterra Anglo-saxônica. In: Id., A ascensão
do cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. p. 214-231.
BRUCE, A. M. An education in the mead-hall: Beowulf’s lessons for young warriors. The
Heroic Age, n. 5, 2001. ISSN 1526-1867. Disponível em:
<http://members.aol.com/heroicage1/homepage.html>. Acesso em: 25 abr. 2002.
BRUNDAGE, J. A. Germanic invasions and law. In: Id., Law, sex and Christian society in
medieval Europe. Chicago: University of Chicago Press, 1987. p. 124-133.
BRYANT, A. The bones of shire and state. In: Id., The story of England: makers of the realm.
London: Reprint Society, 1955. p. 116-155.
BURGESS, A. English literature: a survey for students. Essex, England: Longman Group,
1958. 278 p.
CÂMARA, J. R. C. O poder na Inglaterra anglo-saxã: uma leitura de Beowulf. BRATHAIR, v.
3, n. 1, 2003, p. 17-26. ISSN 1519-9053. Disponível em: <http://www.brathair.cjb.net>.
Acesso em: 05 dez. 2003.
CHANEY, W. A. The cult of kinship in Anglo-Saxon England. Manchester: University Press,
1999. 276 p.
CHARTIER, R. A História cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Difel/Bertrand Brasil, 1988. 244 p. (Memória e sociedade)
96
_________ O mundo como representação. ESTUDOS AVANÇADOS, São Paulo, IEA/USP, v.
5, n. 11, 10/04/1991, p. 173-191.
CLARKE, W. A short history of English literature. London: Evans Brothers, 1976. 120 p.
COHEN, J. J. Of giants: sex, monsters and the Middle Ages. Minneapolis, London:
University of Minnesota Press, 1999. 235 p.
DAVIS, C. R. Redundant ethnogenesis in Beowulf. The Heroic Age, n. 5, 2001. ISSN 1526-
1867. Disponível em: <http://members.aol.com/heroicage1/homepage. html>. Acesso em: 25
abr. 2002.
DAY, D. Hwanan sio fæđ aras: defining the feud in Beowulf. Philological Quaterly, v. 78,
1999, p. 77-95. In: The Heroic Age, n. 5, 2001. ISSN 1526-1867. Disponível em:
<http://members.aol.com/ heroicage1/homepage. html>. Acesso em: 25 abr. 2002.
DENISON, S. Sixth century cemetery points to origins of Sutton Hoo. British Archeology, n.
54, August 2000. ISSN: 1357-4442. Disponível em:
<http://www.britarch.ac.uk/ba/ba54news.html>. Acesso em: 10 jul. 2003.
ENRIGHT, M. J. The warband context of the Unferth episode. Speculum, v. 73, n. 2, 1998, p.
297-337.
EVANS, I. A short history of English literature. Middlesex; England: Penguin Books, 1963.
287 p.
GORDON, R. K. Anglo-Saxon poetry. London: J. M. Dent&Sons, 1957. 334 p.
GOUVERIČ, A. J. L’individu et la tradition épique. In: Id. La naissance de l’individu dans
l’Europe médiévale. Paris: Éditions du Soleil, 1997. p. 33-111.
HADLEY, D. M. Viking and native: re-thinking identity in the Danelaw. Early Medieval
Europe, v. 2, n. 1, 2002, p. 45-70.
97
HILL, J. Shaping anglo-saxon lordship in the heroic literature of the tenth and eleventh
centuries. The Heroic Age, n. 3, 2000. ISSN 1526-1867. Disponível em:
<http://members.aol.com/ heroicage1/homepage. html>. Acesso em: 25 abr. 2002.
INNES, M. Memory, orality and literacy in an early medieval society. Past&Present,n. 158,
1998, p. 3-36.
JONES, G. Beowulf. In: Id., Kings, beasts and heroes. London: Oxford University Press,
1972. p. 3-61.
KAHRL, S. J. Feuds in Beowulf: a tragic necessity? Modern Philology, v. 69, n. 3, 1972, p.
189-198.
KAPPLER, C. Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média. São Paulo:
Martins Fontes, 1993. 497 p.
KER, W. P. Medieval English literature. London: Oxford University Press, 1962. 192 p.
KING, E. Politics and property in early medieval England. Past&Present, n. 65, 1974, p. 110-
117.
LAPIDGE, M. Beowulf, Aldhelm, the Liber Monstrorum and Wessex. Studi Medievali, v. 23,
n. 1, 1982, p. 151-192.
LAVELLE, R. Aethelred II: King of the English, 978-1016. Gloucestershire: Tempus, 2002.
160 p.
LE GOFF, J. O maravilhoso e o cotidiano no Ocidente medieval. São Paulo: Martins Fontes,
1983. 255 p.
LEGOUIS, É.; CAZAMIAN, L. A history of English literature. London: J. M. Dent&Sons,
1964. 1469 p.
LOYN, H. R. Anglo-saxon England: reflections and insights. History, v. 64, n. 211, 1979, p.
171-181.
98
MARCQ, P. Structure du système des prépositions spatiales dans le Beowulf. Études
Germaniques, v. 28, n. 1, 1973, p. 1-19.
MELLO, J. R. de A. Os alicerces medievais da Inglaterra moderna (1066-1327). In:
MONGELLI, L. M. (coord). Mudanças e rumos: o Ocidente medieval (séculos XI-XIII).
Cotia, SP: ÍBIS, 1997. p.17-51.
MOGK, E. Mitologia nórdica. Barcelona: Labor, 1932. 192 p.
MOFFAT, D. Anglo-saxon scribes and Old English verse. Speculum, v. 67, n. 4, 1992, p.
805-827.
MONFRIN, J. À propos du vocabulaire des structures sociales du Haut Moyen Age. Annales
du Midi, n. 80, vol. 89, 1968, p. 611-620.
MORTON, A. L. A história do povo inglês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. 483
p. (Perspectivas do Homem, vol. 59, Série História)
MURDOK, G. P. Análise do parentesco. In: Id. Social structure. London: Collier-MacMillan;
New York: Free Press, 1949, p. 91-112.
MUSSET, L. Las invasiones: el segundo asalto contra la Europa cristiana. Barcelona: Labor,
1968. 259 p. (Nueva Clio, La historia y sus problemas)
O´LOUGHLIN, J. L. N. “Beowulf”- its unity and purpose. Medium Aevum, n. 21, 1952, p. 1-
13.
OMAN, C. Aethelred the Redless and Edmund Ironside, 978-1016. In: Id., A history of
England. London: Metheun, 1949. p. 552-581.
OSBORN, M. The wealth they left us: two women author themselves through others’ lives in
Beowulf. Philological Quaterly, 78, 1999, p. 49-75. In: The Heroic Age, 5, 2001. ISSN 1526-
1867. Disponível em: <http://members.aol.com/heroicage1/homepage. html>. Acesso em: 25
abr. 2002.
99
PFEFFER, G. The vocabulary of anglo-saxon kinship. L´homme, v. 27, n. 103, 1987, p. 113-
128.
POOLE, A. L. Medieval England. London: Oxford University Press, 1958. 661 p.
PORTER, D. C. The social centrality of women in Beowulf: a new context. The Heroic Age,
n. 5, 2001. ISSN 1526-1867. Disponível em:
<http://members.aol.com/heroicage1/homepage.html>. Acesso em: 25 abr. 2002.
POWICKE, M. The fyrd. In: Id. Military obligation in medieval England. Oxford: Clarendon
Press, 1962. p. 1-25.
PRIESTLEY, J. B.; SPEAR, J. Adventures in English literature. V. 1. London: Harcourt
Brace Jovanovich, 1963. 215 p.
RICHÉ, P. As invasões bárbaras. Sintra, Portugal: Europa-América, 1952. 137 p.
RUNCIMAN, W. G. Accelerating social mobility: the case of anglo-saxon England.
Past&Present, n. 104, 1984, p. 3-30.
RUSSOM, G. R. A Germanic concept of nobility in The gifts of men and Beowulf. Speculum,
v. 53, n. 1, 1978, p. 1-15.
SAMPSON, G. The concise Cambridge history of English literature. Cambridge: University
Press, 1970. 976 p.
SCOWCROFT, R. M. The Irish analogues to Beowulf. Speculum, v. 74, n. 1, 1999, p. 22-65.
SCHÜCKING, L. L. The ideal of Kinship in Beowulf. In: NICHOLSON, L. E. An anthology
of “Beowulf” criticism. Indiana: University of Notre Dame Press, 1963. p. 35-49.
SENA, J. de. A literatura inglesa: ensaio de interpretação e de História. Lisboa: Cotovia:
1989. 454 p.
STAFFORD, P. Unification and conquest: a political and social history of England in the
tenth and eleventh centuries. London: Hodder Headline, 1989. 232 p.
STENTON, F. M. Anglo-saxon England. Oxford: University Press, 1943. 747 p.
100
THORNTON, D. E. Edgar and the eight kings, AD 973: textus et dramatis personae. Early
Medieval Europe, v. 10, n. 1, 2001, p. 49-79.
TIBBLE, A. From early times to the Norman Conquest. In: Id., The story of English
literature: a critical survey. London: Peter Owen,1970. p. 15-32.
TILLYARD, E. M. W. The English epic and its background. New York: Oxford University
Press, 1966. 548 p.
TOLKIEN, J. R. R. The monsters and the critics and other essays. London: HarperCollins,
1997.
VIZIOLI, P. A literatura inglesa medieval. São Paulo: Nova Alexandria, 1992. 160 p.
WHITELOCK, D. The beginnings of English society. London: Penguin Books, 1956. 256 p.
WOODWARD, E. L. Os anglo-saxões. In: Id, Uma história da Inglaterra. Rio de Janeiro:
Zahar, 1962. p. 16-24.
____________Alfredo: as invasões dinamarquesas. A conquista normanda. In: Id., Uma
história da Inglaterra. Rio de Janeiro: Zahar, 1962. p. 25-36.
ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1993. 324 p.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo