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Pontifícia Universidade Católica - RS
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Curso de Pós-Graduação em História
A FUNDAMENTAÇÃO ESTÉTICA DA CRÍTICA DE ARTE
EM ÂNGELO GUIDO
a crítica de arte sob o enfoque de uma história das idéias
Ursula Rosa da Silva
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação
em História da PUC/RS, como requisito parcial
para a obtenção do grau de Doutor.
Área de concentração: História do Brasil
Orientadora: Dra. Maria Lúcia Bastos Kern
Porto Alegre, janeiro de 2002
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Livros Grátis
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Milhares de livros grátis para download.
BANCA EXAMINADORA
Dra. Annateresa Fabris
Dr. Jayme Paviani
Dra. Maria Lúcia Bastos Kern (orientadora)
Dra. Mônica Zielinsky
Dra. Ruth Gauer
“A arte, mais do que procurada e pensada, deve ser
vivida. Acima da razão que cria fórmulas e dogmas, o
artista interpreta o universo pela sensibilidade”.
(Ângelo Guido)
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Agradecimentos
No decorrer de cada caminhada, nossos trajetos nunca são traçados de
maneira solitária. Assim, para a realização deste estudo, direta ou indiretamente, muitas
pessoas colaboraram e a estas devo meus sinceros agradecimentos.
À Profª. Dra. Maria Lúcia Bastos Kern, pela orientação, pela paciência e
total liberdade de escolhas. Aos professores do curso de Pós-Graduação em História da
PUC/RS, pelos sábios ensinamentos. Ao professor Dr. Arno Kern, coordenador do
referido curso, bem como às secretárias Carla Pereira, Rosana Sanches e Adriana Arús,
pela atenção dispensada.
À UFPel, Universidade onde atuo, aos funcionários e professores do ILA,
meus colegas, que tornaram possível minha disponibilidade para cursar o doutorado,
bem como à CAPES, órgão de fomento que viabilizou os recursos financeiros deste
trabalho através da Bolsa do Programa Institucional de Capacitação Docente e Técnica.
Às Direções e funcionários das instituições nas quais foram realizadas as
pesquisas
Museu da Brigada Militar (Porto Alegre - RS), Museu Hipólito José da Costa
(Porto Alegre - RS), Arquivo do Estado de São Paulo, Biblioteca Municipal Mário de
Andrade (SP), Biblioteca das FFLCH da USP (SP) e Biblioteca do Museu Nacional de
Belas Artes (RJ)
e à Profª. Dra. Alice T. Campos Moreira, que coordena o projeto de
pesquisa da Revista do Globo na PUC/RS. À Profª. Me. gia Blank, pela atenciosa
revisão do texto. Ao aluno Alexandre Keffel, que colaborou na coleta dos artigos.
Às pessoas que contribuíram com seu relato pessoal
Carlos Mancuso,
Aldo Obino, Nina Callegari, Círio Simon e Armindo Trevisan. Aos amigos que, em
diversos momentos, participaram com sugestões
Miriam Gershman, Fernanda Severo
e Renato Menegotto
, em especial a Círio Simon, pelo material que me cedeu, e a
Sérgio Sardi, pelos conselhos.
Enfim, aos meus familiares, sou grata pela paciência, compreensão e
estímulo, principalmente a Cláudio e Rodrigo.
Sumário
Resumo
06
Résumé
07
Introdução
08
1 - AS CONCEPÇÕES ESTÉTICAS E O ENGENDRAMENTO
DA CRÍTICA DE ARTE 38
1.1 O papel da crítica de arte na modernidade 39
1.2 A natureza subjetiva do discurso crítico 59
1.3 O legado da crítica de Kant e as teorias formalistas
de abordagem da obra de arte 66
1.4 A intuição e a estética romântica decorrentes
do criticismo kantiano 84
1.5 As teorias intuicionistas em Bergson, Dilthey e Croce 102
2 - OS FUNDAMENTOS DO PENSAMENTO CRÍTICO
DE ÂNGELO GUIDO 112
2.1 A Intuição como requisito para a compreensão da obra de arte 113
2.2 Arte e religiosidade: o ideal de arte como realização do
evangelho da beleza 126
2.3 A arte como expressão da visão de mundo por meio das
formas 150
2.4 A Crítica e os Critérios de Guido 173
3 - AS INSTITUIÇÕES DE FORMAÇÃO E DIFUSÃO DA ARTE NO RS E A
INCIDÊNCIA DA CRÍTICA DE ÂNGELO GUIDO NESTE CONTEXTO
3.1 As entidades e a legitimação da arte no RS 189
3.1.1 A emergência do campo artístico no RS e a atuação 189 de
Ângelo Guido
3.1.2 A crítica na imprensa 250
3.2 A importância de Guido no cenário cultural do RS 270
3.2.1 Guido e a análise individual dos artistas 295
3.2.2 Um olhar para o ideal clássico de beleza 311
3.2.3 A crítica ao modernismo 318
Conclusão
345
Bibliografia
específica
357
Bibliografia
geral
363
Anexos (volume 2)
Resumo
O tema do presente estudo é a crítica de arte em Ângelo Guido,
tendo como fonte de análise os textos referentes às artes plásticas que este
escreveu para o jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre (RS), no período de
1928 a 1945, bem como os livros que publicou contendo seu pensamento crítico.
Este trabalho, sob o enfoque de uma história das idéias, aborda os
fundamentos teóricos em que se baseia o discurso crítico de Ângelo Guido,
relacionando a sua crítica de arte com as teorias estéticas, as teorias da arte e da
história da arte que serviram de parâmetro para a configuração desta. Sendo
assim, é considerado o papel exercido pelas estéticas romântico-idealista,
intuicionista e formalista no processo de constituição da crítica de arte de Ângelo
Guido.
A pesquisa considera Ângelo Guido um dos primeiros a atuar como
profissional da crítica na imprensa no RS, tendo uma linguagem voltada para o
campo artístico e fundamentada na história e na filosofia da arte. Além da
fundamentação estética da crítica de arte em Ângelo Guido, o estudo pretende pôr
em questão a própria tarefa da crítica no campo artístico.
Résumé
Le sujet du présent étude c’est la critique d’art chez Ângelo Guido, en
avant comme source d’analyse les texts avec rapport à les arts plastiques qui celui
a écrit pour le journal Diário de Notícias, de Porto Alegre (RS), dans le période de
1928 jusqua 1945 aussi bien des livres qu’il a publié sur sa pensée critique.
Este trabalho, sob o enfoque da história das idéias, aborda os
fundamentos teóricos em que se baseia o discurso crítico de Ângelo Guido,
relacionando a sua crítica de arte com as teorias estéticas, as teorias da arte e da
história da arte que serviram de parâmetro para a configuração desta. Sendo
assim, é considerado o papel exercido pela estéticas romântico-idealista,
intuicionista e formalista no processo de constituição da crítica de arte de Ângelo
Guido.
Cette recherche consider Ângelo Guido comme pionnier dans
l’actuation profissionnel de la critique dans la presse, avec une langage plus
spécifiquement vers le champ artistique, fondée sur l’histoire de l’art et sur la
philosophie de l’art. Au delá de la fondamentation esthetique de la critique d’art
chez Ângelo Guido, l’étude prétend mêttre en question la propre tâche de la
critique dans le champ artistique.
Introdução
Na primavera de 1925, duas conferências ocorreram no Clube
Jocotó
1
, em Porto Alegre, com a finalidade de divulgar e esclarecer o que viria a
ser o Modernismo: a do poeta Guilherme de Almeida e a do artista e crítico de arte
Ângelo Guido. Na capital rio-grandense, os primeiros rumores e manifestações
a
favor ou contra ao movimento
aconteceram no âmbito literário. O debate iniciou
nos grupos formados por escritores que se reuniam no Café Colombo e na Livraria
do Globo, propagando-se o interesse, mais tarde, para as outras áreas artísticas
2
.
Muitos intelectuais foram convidados para discutirem o assunto no Rio Grande do
Sul, mas estas duas palestras merecem destaque, principalmente por
apresentarem posições antagônicas.
Guilherme de Almeida viajou do Sul ao Nordeste com o propósito de
divulgar o Modernismo, por meio de conferências, ressaltando, primeiramente, o
caráter nacionalista do movimento e declarando-se, ele próprio, um modernista.
Augusto Meyer, Cyro Martins e Moysés Vellinho reconheceram
3
que a visita de
Guilherme de Almeida incentivou o movimento modernista no Sul, articulando
elementos dispersos; todavia, esse movimento já havia iniciado, conforme eles, na
literatura, não com as características paulistas
de questionamento e busca de
novas linguagens de expressão
, mas, antes, com as peculiaridades do Rio
1
Mário Totta promovia no Clube Jocotó as “Horas de Arte”, com palestras literárias.
2
Os artistas Sotero Cosme, João Fahrion e Pelicheck já participavam deste grupo junto aos
literatos.
3
Entrevistas presentes no texto de LEITE, Lígia C. M. Modernismo no Rio Grande do Sul
materiais para o seu estudo. São Paulo: IEB, 1972, p.228-264.
Grande do Sul
voltada à elaboração de uma expressividade dos elementos
regionais, sem ser um movimento de ruptura ou revolucionário.
Quando chegou ao Rio Grande do Sul, Guilherme de Almeida
encontrou um grupo constituído
4
, que o recebeu calorosamente. Sua conferência
fez sucesso e abriu um debate mais efusivo a respeito do Modernismo. Portanto,
para estes intelectuais, Guilherme representou, neste momento, uma arte livre e
brasileira.
Ângelo Guido, por sua vez, não se apresentou como modernista,
mas, por outro lado, manifestou ser um artista com propostas um tanto inovadoras
frente ao que aqui existia, na época, no âmbito das artes plásticas. Em sua
palestra revelava o que, mais tarde, pode-se perceber ao longo de sua obra: o
caráter paradoxal de sua concepção artística, de não querer se ligar a nenhuma
corrente, nem a “passadista” nem a “modernista”, conforme seus termos.
Sua primeira impressão do Modernismo é a de um movimento que
foi buscar motivação nas tendências européias, deixando a desejar quanto à sua
brasilidade. Nesse sentido, critica a corrente paulista que pretende assumir um
tom nacionalista, mas não deixa de ser um reflexo do que já havia se apresentado
na Europa:
Não possui este modernismo, nos seus processos de criação, uma
diretriz própria, brasileira ou internacional. É uma mistura de
cubismo, dadaísmo, futurismo, ultraísmo e expressionismo, faltando,
porém, a essa salada de “ismos” precisamente a parte espiritual que
constitui o fundo das reformas estéticas estrangeiras
5
.
4
Augusto Meyer, Eduardo Guimarães, Pedro Vergara, Ruy Cirne Lima, Theodomiro Tostes, entre
outros. Cf. LEITE, Lígia C.M. Modernismo no Rio Grande do Sul, op. cit., p.299.
5
GUIDO, Ângelo. “Arte Moderna” (Conferência), Diário de Notícias, 18.10.1925, p.3 e 6 (vide texto
1, anexo 3).
E quanto aos escritores e artistas que se diziam modernistas
6
,
Ângelo Guido elogia seus trabalhos, no entanto, diz que se equivocam no que
tange ao traço profundo de brasilidade, pois este está ausente de suas obras. O
próprio Guilherme de Almeida é citado por Guido como suspeito de plágio em
suas “Canções Gregas”.
Ao que se pode ver, Ângelo Guido não veio ao Sul para defender o
Modernismo, mas tampouco se mostrou defensor do “passadismo”, ou seja, da
corrente ligada à expressividade pictórica de característica acadêmica
7
que se
contrapunha ao movimento no Rio de Janeiro e em São Paulo. Entretanto, ele
mesmo reconhece o lado interessante do Modernismo quando este fala em
inovação, brasilidade e libertação: “Valha, pois, o movimento modernista, pela
mocidade que nos deu”
8
, pois foi essa mocidade, segundo ele, que permitiu que
se vaiasse a tradição e o passado.
No Rio Grande do Sul, em 1922, em termos literários, não repercutiu
imediatamente os rumores da Semana de Arte Moderna, pelo menos não da
forma como esta ocorreu em São Paulo. O que aconteceu no RS, desde 1923, e
que é possível afirmar assemelhar-se a este movimento, foi uma busca de novos
6
São citados no artigo: Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Mário e Oswald de Andrade,
Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Anita Malfatti e Victor Brecheret. Cf. GUIDO, Ângelo. “Arte
Moderna”, op. cit., p.3.
7
Ângelo Guido define a arte acadêmica como aquela que tem por princípio a cópia exata da
natureza, sem valorizar outra forma senão a da reprodução fiel e minuciosa daquilo que se
oferece ao nosso olhar: “E como essa pintura reproduz a natureza de acordo com a visão comum,
como todos a enxergam, agrada à maioria, porque essa maioria compreende-a sem esforço, sem
mesmo ter necessidade de cultura estética”. Cf. GUIDO, Ângelo. “Salão da Escola de Artes”,
Diário de Notícias, 12.12.1929, p.5 (vide texto 16 anexo 3). A arte acadêmica é considerada
tradicional pelo seu caráter convencional de permanência das regras de representação artística,
dentre as quais: o espaço em perspectiva; o desenho com primazia sobre a cor; a busca por
meio da temática, do equilíbrio entre os planos e da harmonia na construção da composição , de
uma beleza ideal, que agrade, que revele o “bom gosto”.
8
Cf. GUIDO, Ângelo. “Arte Moderna”, op. cit., p.3.
valores, uma crítica aos cânones estabelecidos e à forma fixa de criação literária.
Nesse sentido, mesmo que retomando o regionalismo como ponto de partida para
a pesquisa por uma linguagem própria e uma releitura da tradição, os escritores
gaúchos consideraram-se modernos. E a passagem de Guilherme de Almeida,
ainda que indiretamente, no caso da literatura, contribuiu para entusiasmar esta
busca do novo. Por isso, Lígia Leite
9
defende a existência de um Modernismo no
RS, desde os anos vinte, considerando o envolvimento e intercâmbio dos
escritores gaúchos com os intelectuais paulistas e a consciência que os literatos
tiveram de querer renovar a escrita literária, apesar da concepção de regionalismo
desses escritores ser um dos pontos de apoio para a constituição de uma
identidade nacional.
No caso das artes plásticas, essa consciência e motivação não
ocorreram na década de 1920. Mas a presença de Ângelo Guido e, mais tarde (a
partir de 1928), sua constante atuação na capital gaúcha, como pintor e crítico de
arte, tende a motivar alguma inovação, principalmente na fundamentação das
idéias estéticas no campo artístico. Sua postura, inicialmente ambígua, talvez seja
decorrente de uma maneira própria de ser moderno, a qual, provavelmente,
esteja, também, no fundamento de sua crítica de arte. Mas isto é o que, neste
estudo, vamos verificar.
9
Vide os estudos de LEITE, Lígia C. M. Modernismo no Rio Grande do Sul
materiais para o seu
estudo. São Paulo: IEB, 1972; Regionalismo e Modernismo
o “caso gaúcho”. São Paulo: Ática,
1978.
Tema, Problema, Objetivos e Justificativa
Tornar a arte um objeto de historicidade é uma aventura paradoxal,
pois, quando mergulhamos no mundo artístico, na verdade, queremos nos
desvencilhar dos aspectos objetivantes da vida e dos momentos em que é preciso
atribuir sentidos explícitos ao que nos cerca. A arte permite-nos habitar
verdadeiramente o mundo, na concepção de Merleau-Ponty
10
, sem a mesma
pretensão da ciência, que ousa apreendê-lo de modo exclusivamente conceitual.
Tomar consciência do mundo espontaneamente, por meio da percepção, da
criatividade e da expressividade, sem necessariamente ter que torná-lo objetivo,
essa é uma das façanhas da arte. Assim, também, Ângelo Guido defende que o
conhecimento, que busca a objetividade, tem limites que a arte pode transcender:
Quando o filósofo não consegue fazer-nos entender o que sente, o
poeta cria um ritmo novo para despertar em nós o sentido do
mistério e conduzir-nos a esses píncaros inatingíveis da consciência,
vedados aos que têm o raciocínio para acompanhá-los na
iniciação da vida superior.
11
No entanto, muitas vezes, apresenta-se a nós, quando vivenciamos
um fenômeno artístico, a necessidade de expressar em palavras, conceitualizar,
atribuir um sentido objetivo. Buscar o significado nem sempre quer dizer traduzir,
mas ir ao encontro de algo que faça eco em nossa capacidade de apreender
através dos sentidos e do sentimento, que sintonize com nossa vivência.
10
MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito. São Paulo: Abril Cultural, 1992, p.47-49.
11
GUIDO, Ângelo. Ilusão
ensaio sobre ‘a estética da vida’, Santos, SP: Instituto Escolástica Rosa,
1922, p.7.
Não é simples nossa relação com a arte quando a vontade de
abarcar o sentido, de forma conceitual, é maior do que a espontaneidade da
experiência estética, do prazer desinteressado, como diria Kant
12
. Mas,
exatamente por essa característica humana de querer dominar com palavras, de
modo seguro, aquilo que se vê, é que surge a figura do crítico de arte: um
mediador entre o artista e o espectador, um interlocutor que desvela os segredos
da obra para apaziguar a inquietação racionalista do público. O crítico de arte é
aquele que, de certa forma, possibilita que artista e obra não permaneçam
estranhos ou inatingíveis, até o ponto em que a obra, ela mesma, se submeta ao
olhar.
A arte é um fato cultural, e a crítica de arte é um dos elementos que
constituem o campo artístico, juntamente com a obra, o artista, o público e as
instituições responsáveis pela sua propagação. A crítica está num âmbito de
reflexão a respeito daquilo que foi produzido (a obra); e pretende ser um elo
entre aquele que produz ou expressa (artista) e aquele que vivencia esta produção
(espectador). Enquanto mediadora, a crítica deve ter critérios e, por isso, acaba,
de algum modo, sendo um meio que apresenta a obra de maneira mais objetiva,
pretendendo torná-la mais compreensível para o público.
Apesar do caráter espontâneo, não-científico, da experiência
artística, o debate contemporâneo, a respeito da arte e da produção artística,
demonstra um encaminhamento em direção a critérios de julgamento mais
objetivos. E, neste envolvimento com a arte e seus elementos constituintes
artista, obra, público
tentamos, ao menos, diferenciar suas tarefas. A estética, a
história da arte e a crítica de arte envolvem-se nesta busca, redefinindo seus
12
Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação mediante
uma complacência ou descomplacência independente de todo interesse”. KANT, I. Crítica da
Faculdade de Julgar, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 55 (grifos do texto original).
papéis e interligando-se cada vez mais numa relação que foi determinada por
campos separados.
O ponto de partida desta pesquisa está numa pergunta que se tornou
constante durante o nosso envolvimento com o ensino acadêmico voltado para a
área de artes, e que consideramos ser o problema norteador de toda a reflexão
feita neste estudo, a saber: qual é o fundamento da crítica de arte? E nossa
primeira hipótese foi a de relacionar a crítica com a estética, considerando que a
crítica seria uma espécie de aplicação das idéias estéticas, e, como tal, um
elemento, se não imprescindível, no mínimo importante para enriquecer o olhar
perceptivo do espectador. Desta forma, o papel da crítica de arte tornou-se ponto
inicial para a reflexão e a definição do tema com que trabalhamos.
Entretanto, considerando a impossibilidade de esgotar, num único
trabalho de pós-graduação, a questão sobre o fundamento da crítica de arte, dada
a abrangência desta problemática, resolvemos delimitar o estudo refletindo a
respeito de um modo específico de exercer a crítica de arte, de preferência numa
época em que esta tivesse uma presença marcante no Brasil, como o teve na
modernidade européia. Além disso, direcionamos o olhar para o RS, pensando em
contribuir com a pesquisa nesta área, referente à produção teórico-crítica nas
artes plásticas, ainda pouco explorada. Assim, escolhemos um crítico que atuou
no RS num período em que a atividade crítica obteve uma legitimação
sociocultural muito forte, porém focalizando em seu pensamento os conceitos
vinculados às reflexões teóricas estéticas e à história da arte européia.
Desta forma, adotamos como tema, neste estudo, a fundamentação
da estética da crítica de Ângelo Guido, um crítico de arte que, devido ao seu
trabalho como artista e como teórico, pode ser considerado um pioneiro no campo
profissional da crítica no RS. Seu pioneirismo deve-se à inovação que fez na
aplicação da linguagem crítica, no âmbito das publicações periódicas, uma vez
que a tornou mais específica ao campo das artes plásticas
13
, numa época em que
a crítica literária emprestava o seu método e os seus conceitos para a crítica de
outras áreas.
Na atualidade, a função da crítica não é mais a mesma de quando
esta surgiu: diminuiu bastante a sua atividade em relação à militância que exercia
a cada movimento artístico novo que surgia, principalmente no século XIX e início
do século XX. Com a crise da modernidade, conforme notou Zielinsky
14
, a arte
deixou de ser considerada como uma propriedade do pensamento. Na verdade, a
modernidade vive, em seu momento de crise, o prognóstico que havia feito
Hegel a respeito da “morte da arte”. E, no caminho da arte contemporânea, a
crítica também irá sofrer as conseqüências e perder, de certa forma, o seu papel
de defensora das vanguardas, uma vez que a própria arte quer-se independente
de qualquer possível forma de restrição, mesmo a que a explique. A partir disso, a
crise da crítica não se deve à perda de seu sentido crítico, mas revela-se
principalmente na dificuldade de estabelecer relações entre a autonomia da arte e
o real, o tempo presente, como pensa Jimenez
15
. A conseqüência desta
dificuldade resulta, conforme Zielinsky, no risco de tornar-se a crítica uma atitude
neutra ou de celebração, uma vez que, embora solidamente fundamentada, ela
13
Atualmente utiliza-se o termo “artes visuais” para designar a produção artística, considerando a
multiplicidade de técnicas e o surgimento de novos suportes como, por exemplo, a informática e o
sistema audiovisual. Neste estudo será utilizada a expressão “artes plásticas” para ficar de acordo
com o termo utilizado no período referente à pesquisa e porque limita-se aqui às artes da pintura,
da escultura, do desenho e da gravura, vinculadas, em sua origem, ao sentido de plasticidade:
dar forma plástica. A origem do termo “plástico” vem do grego: o adjetivo “plastikós
(

) deriva do verbo “plassein” (
 
), que significa modelar”, “plasmar”,
“imaginar”, “moldar”, e também “fingir”, “simular”. O substantivo “plastès” (

) designa o
escultor, modelador, aquele que plasma. E o substantivo plasma” (

) refere-se ao
imaginário, significa “representação”, imitação”, “fingimento”. Assim, a palavra “plástica”, como a
arte de modelar, chegou ao século XVIII, nos textos de Shaftesbury (1713) e na Enciclopédia,
designando o fazer artístico como uma tarefa plástica. Cf.
LAUXEROIS, Jean. “Le Temps de
la Plasticité”; IN: Pratiques Revue de Réflexions sur l ‘Art, 1, Paris: ERBA, avril/ 1996,
p.125.
14
ZIELINSKY, Mônica. La Critique d’Art Contemporaine au Brésil: parcours, enjeux et perspectives.
Paris: Université de Paris I, thèse de doctorat, 1998, p.13.
15
JIMENEZ, Marc. Crise de l’Art ou Consensus Culturel? Paris: Klincksieck, 1995, p.12-13.
poderia não estabelecer um real diálogo com o leitor, eliminando a relação com
toda alteridade
16
.
Afora essas conseqüências, a atuação da crítica também
diversificou-se. Conforme Serraler
17
, a
proliferação de instâncias críticas que se
produziu na sociedade atual, fez com que o crítico deixasse de possuir o
monopólio sobre o julgamento das obras de arte, como tempos atrás, quando se
erigia praticamente um único juiz frente à opinião pública que assistia ao salão. O
advento dos salões abriu caminho a uma enorme e diversa oferta artística na
atualidade, que inclui, em termos comerciais e administrativos, as galerias de arte
particulares, os leilões, as feiras, as fundações, os centros de exposições e os
museus, mas também, no âmbito da difusão, não as tradicionais publicações
periódicas, como também os novos instrumentos tecnológicos de informação,
como a fotografia, o cinema, a televisão, o vídeo e o computador. Hoje estamos
habituados ao acesso às críticas de periódicos, aos ensaios estéticos e as
histórias da arte tanto quanto aos museus, às salas de exposições e às bienais,
como faz notar Bozal
18
.
Analisando o mercado de arte, Moulin
19
sublinha os dois caminhos
principais do crítico atual: o que se orienta para o mercado e se transforma em
agente de artistas ou de galerias, sendo este uma espécie de promotor de talentos
a comercializar; ou aquele que se encaminha para as instituições, pretendendo
fazer carreira e trabalhando como diretor de centros culturais ou em museus.
Ambos os tipos de críticos podem escrever artigos, organizar catálogos, lecionar
16
ZIELINSKY, M. Op. cit., p.12.
17
SERRALLER, Francisco Calvo. “La Crítica de Arte”; IN: ARROYO, Eduardo et al. Los
Espectaculos del Arte
instituciones y funciones del arte contemporáneo. Barcelona: Tusquets,
1993, p. 55-56.
18
BOZAL, Valeriano. “Orígenes de la estética moderna”; IN: Historia de las Ideas Estéticas y de las
Teorías Artísticas Contemporáneas. Vol. I, Madrid: Visor, 1996, p.17.
19
MOULIN, Raymonde. L’Artiste, L’Institution et le Marché. Paris: Flammarion, 1997, p. 208-209.
em escolas de arte ou fazer curadoria de exposições. Atualmente, nenhuma
formação específica é exigida do crítico: o único critério é o reconhecimento por
seus pares.
Todavia, o crítico deteve o poder exclusivo de julgamento e
exerceu o papel de decidir o que seria ou não obra de arte. De forma bastante
clara, Serraler
20
explicita a dimensão profética da crítica e o seu surgimento como
evento pico da modernidade, enquanto momento que questiona os valores da
tradição e busca autonomia para a ação do sujeito e novos paradigmas para o
conhecimento. Assim, a crítica surgiu com uma importante missão na
modernidade, na medida em que participou da estruturação do campo artístico,
que, como tal, também estava buscando sua autonomia e seus critérios para
poder fazer frente a outros campos sociais.
Serraler relaciona a crítica a outros fatos, tais como a irrupção do
fenômeno dos salões; o aumento do público e do mercado de arte; a atuação da
crítica e da história da arte em ambientes separados; a exclusividade do
julgamento da crítica e a relatividade deste, bem como o poder da crítica de fazer
ou desfazer o prestígio de artistas frente ao público. Entretanto, ele enfatiza que
um dos principais fatores que caraterizaram o desenvolvimento da crítica de arte,
independentemente do ponto que se considere,
foi a bifurcação que dividiu críticos e historiadores de arte, uma
bifurcação metodológica e profissional cujas origens se remontam à
restruturação dos saberes tradicionais provocada pela Ilustração e,
em particular, por Kant. O resultado desta revolução copernicana do
conhecimento no campo que tratamos foi, por uma parte, a
20
SERRALLER, Francisco Calvo. “La Crítica de Arte”; IN: ARROYO, Eduardo et al. Los
Espectaculos del Arte
instituciones y funciones del arte contemporáneo. Barcelona: Tusquets,
1993, p.15-73; “Orígenes y Desarrollo de un Género: la Crítica de Arte”, IN: BOZAL, Valeriano
(ed.) Historia de las Ideas Estéticas y de las Teorías Artísticas Contemporáneas. Vol. I, Madrid:
Visor, 1996, p.148-164; El Salon”; IN: BOZAL, Valeriano (ed.) Historia de las Ideas Estéticas y
de las Teorías Artísticas Contemporáneas. Vol. I, Madrid: Visor, 1996, p.165-178.
separação entre história e crítica, entre ciência e criação, entre saber
objetivo e subjetivo, entre estudo do passado e do presente, mas
também, de outra, a separação profissional do âmbito em que
qualquer dessas práticas tinha lugar, ficando reservada a
Universidade para os historiadores da arte e o periodismo para a
crítica.
21
Devido a sua origem não-acadêmica, a imprensa jornalística foi um
dos meios em que proliferou a crítica e onde sua relação com o público se tornou
mais próxima. O mesmo ocorreu no Rio Grande do Sul. Mas qual teria sido o
papel da crítica de arte para a cultura rio-grandense?
A crítica de arte rio-grandense apareceu nos jornais no século XIX,
muito vinculada à crítica literária. Os escritores que comentavam as produções
literárias, em geral, eram os mesmos que, esporadicamente, colaboravam com a
crítica das artes plásticas. Eles utilizavam os mesmos critérios e termos para
avaliar tanto as obras literárias quanto a produção artística. As análises, no caso
das artes plásticas, não se aprofundavam, eram vagas descrições sobre o tema e,
em geral, relacionavam este tema à literatura, fazendo uma apresentação poética
da obra, ou à filosofia, trazendo longas citações, normalmente, em francês.
Quando não tinha o formato poético ou filosófico, a crítica aparecia com um
conteúdo meramente informativo, com comentários a respeito da vida, das
produções e premiações do artista. Apesar disso, a crítica sempre foi responsável
pela formação da opinião blica e pela divulgação dos artistas. Prova disso são
as aquisições de obras feitas por instituições públicas ou colecionadores, todas
divulgadas na imprensa e, em geral, alguns dias após a publicação de notas
elogiosas a respeito de uma exposição ou frutos de comentários críticos.
21
SERRALLER, Francisco Calvo. “La Crítica de Arte”; IN: ARROYO, Eduardo et al. Los
Espectaculos del Arte
instituciones y funciones del arte contemporáneo. Barcelona: Tusquets,
1993, p. 47.
De qualquer forma, a crítica, com uma linguagem mais voltada para
as artes plásticas, começou a ser exercida no RS após o surgimento da Escola
de Artes e, mais especificamente, com o aparecimento de Ângelo Guido, tema de
nossa pesquisa.
Ângelo Guido
22
(1893-1969) foi o crítico escolhido neste estudo, pela
qualidade de seus artigos
23
os quais publicava, regularmente, num dos
periódicos de maior circulação no Estado do RS (jornal Diário de Notícias), na
época estudada (1928-1945)
; pelo conteúdo específico de seus textos, voltados
para a arte, e por trabalhar nestes dois âmbitos: a teoria, fundamento com o qual
concebe a arte, e a prática, tanto crítica quanto pictórica.
Portanto, trazer à tona um dos protagonistas da historiografia da arte
rio-grandense da primeira metade do século XX, significa não apenas apontar para
a importância histórica desta temática, de Guido como pioneiro de uma linguagem
específica da arte no campo da crítica e como formador de opinião. Também
colocam-se em foco questões referentes à constituição e legitimação do discurso
crítico, enquanto instância de propagação artística: o que seria esta atividade, a
crítica de arte, qual a sua importância e seu papel na sociedade da época? Seria
22
Ângelo Guido Gnocchi nasceu no dia 10 de outubro de 1893, na cidade de Cremona, Itália,
famosa por sua produção de seda e pela fabricação de violinos. Por parte de mãe, Guido
descende dos Guarnieri, que fabricavam o violino Guarnierius, e também se dedicavam à
fabricação de alaúdes. Por parte de pai, Guido descende de um famoso pintor de Milão,
Giovanni Pietro Gnocchi, nascido por volta de 1550, discípulo de Aurélio Luini. O pai de Guido,
Annibale Gnocchi, tinha sido pedreiro na Itália, não possuía formação artística, no entanto se
especializara na execução de ornamentos e molduras decorativas de fachadas de prédios; e
gostava muito de ler, principalmente romances. Em São Paulo, onde a família se radicara,
Annibale trabalhou como decorador de frontispícios, na construção. Também o irmão do pai,
Aurélio Gnocchi, dedicou-se à pintura decorativa no Brasil. Guido viera para o Brasil com dois
anos de idade, em 1895. Em 1915, Guido casou-se com Elsa Lustosa, a qual faleceu poucos
anos depois. Desse matrimônio houve uma filha, Amália, falecida prematuramente, em 1944.
Em 1939, já viúvo vários anos, desposou aquela que, durante trinta anos, seria a sua
companheira: Nina Viana, natural de Canguçu (RS). A 9 de dezembro de 1969, Guido falece na
cidade de Pelotas (RS).
23
No levantamento dos artigos de jornal, para a definição do projeto de pesquisa, estavam sendo
considerados todos os escritores da época. Ângelo Guido foi escolhido, primeiramente, pela
qualidade do conteúdo dos seus textos no jornal Diário de Notícias, por sua atuação constante,
ocupando um espaço próprio às artes.

ela responsável por mediar o diálogo entre a obra e o público ou apenas se
sobrepôs como poder decisório de avaliação e julgamento do valor das obras?
Partimos da idéia de que a crítica seja um dos elementos que
contribuem para a divulgação e compreensão do fenômeno artístico. Como pensa
Annateresa Fabris, a crítica, enquanto uma das instâncias de legitimação social,
existe intrinsecamente à produção artística e exerce um papel fundamental,
quer enquanto formadora de novas modalidades de percepção, quer
enquanto visão autobiográfica de uma geração, quer enquanto
portadora de um determinado sistema de valores, etc.
24
A crítica de arte relaciona-se, também, com a pesquisa histórica e
segue os acontecimentos artísticos, mediando a relação entre a arte e o público.
Como afirma Argan, é “impossível entender o sentido e o alcance dos fatos e dos
movimentos artísticos (...) sem ter em conta a literatura crítica que a eles se
refere”
25
. E a crítica, por sua vez, necessita ter conhecimento da história da arte
para poder julgar e identificar a importância das obras em estudo.
Consideramos, então, a crítica como uma atitude, um
posicionamento, que se modifica de acordo com os valores estéticos do meio e da
época em que se insere. Por isso, partiremos, nesta pesquisa, em busca do
fundamento estético da crítica de Ângelo Guido, e o que significou a sua atividade
no âmbito das artes plásticas no Rio Grande do Sul, no período de 1928 a 1945.
24
FABRIS, Annateresa. “Desconstruir/Reconstruir”, IN: Porto Arte, Revista de Artes Visuais, v.1, n.º
1, junho/1990, p.71.
25
ARGAN, Giulio Carlo. Arte e Crítica de Arte. Lisboa: Estampa, 1988, p.128.

Nossa hipótese é de que a fundamentação da crítica de Ângelo
Guido parece constituir-se de elementos advindos de tendências divergentes: de
um lado, o pensamento filosófico do idealismo romântico
nas teorias de Fichte,
Schelling e Hegel
estendendo-se no intuicionismo de Bergson e Croce; e, de
outro lado, as teorias formalistas de concepção da arte, nas abordagens de
Fiedler, Riegl e Wölfflin. Estas vertentes teriam uma mesma origem, o criticismo
de Kant, mas com um desenvolvimento de suas propostas em rumos opostos.
O idealismo pensava na importância da obra como o lugar de
manifestação sensível da idéia
26
, o que, por sua vez, resultou na concepção
romântica da arte como o lugar em que se poderia sentir a unidade essencial do
humano com a natureza. O formalismo
27
, por sua vez, surgiu como uma reação à
filosofia da arte romântico-idealista, negando a teoria hegeliana da arte e das
estéticas românticas, aproximando-se da estética formalista de Kant
tomando-a
como base para uma explicação da arte como atividade autônoma e a experiência
estética como experiência do formal nos objetos artísticos. A contraposição
estaria, de uma parte, na concepção da liberdade do artista efetivada por seu
espírito criador, defendida pelo romantismo; e, de outra parte, a produção artística
26
Para Hegel, a história da arte é a história da manifestação sensível do espírito. Esta idéia
resultou numa interpretação da arte, ainda hoje vigente, segundo a qual o importante na obra é
seu conteúdo. O espiritual na obra, ligado ao conceito, é considerado em contraposição a seu
aspecto sensível, a forma. Cfr. CARRENÕ, Francisca Pérez. “El Formalismo y el Desarrollo de
la Historia del Arte”; In: BOZAL, V. Historia de las Ideas Estéticas y de las Teorías Artísticas
Contemporáneas. Vol. 2, Madrid: Visor, 1996, p.189.
27
O Formalismo considera a história da arte como disciplina científica e busca critérios de
identidade próprios a ela. O Formalismo não se efetiva em uma única escola historiográfica. Das
idéias formalistas surgem uma série de métodos, de concepções da arte e sua história, que têm
em comum a delimitação de critérios puramente artísticos. As escolas formalistas, por diversas
que sejam as suas interpretações, compartilham do princípio de autonomia. Conceber a obra de
arte de forma autônoma implica tornar possível uma história interna e autônoma da arte, cujo
objeto de estudo é o desenvolvimento da forma, considerada como o especificamente artístico,
em suas diferentes manifestações. O princípio de desenvolvimento da arte estaria em si mesma
e não em causas alheias, como podem ser as motivações religiosas, políticas, técnicas ou
ideológicas em geral. Cfr. CARRENÕ, Francisca Pérez. “El Formalismo y el Desarrollo de la
Historia del Arte”; In: BOZAL, V. Historia de las Ideas Estéticas y de las Teorías Artísticas
Contemporáneas. Vol. 2, Madrid: Visor, 1996, p.189-190.

valorizada em seu aspecto formal, pela estética formalista, desconsiderando o
contexto e o traço individual de quem cria a obra.
O pensamento estético em si revela um aspecto paradoxal
no ato
de julgar, pois, de um lado, exigem-se critérios para o julgamento, mas, de outro, o
juízo não é algo que possa ocorrer a priori, antes da experiência estética. Assim,
no pensamento de Guido, podemos perceber elementos tanto da estética que
aborda objetivamente quanto da que julga os aspectos subjetivos da obra de arte.
Ângelo Guido considera a história da arte como uma evolução cíclica de estilos ou
formas
em que a criação artística seria decorrente de um ‘querer artístico’,
concebendo o artista como um instrumento de expressão deste querer. Por outro
lado, tanto no momento de criação quanto no de julgamento da obra, a
participação do sujeito deve se dar como completa interação e participação deste,
seja como espírito criador, seja como fruidor, num movimento de intuição ou
projeção sentimental
experiência que o crítico deve ter diante da obra refazendo
o processo de criação do artista.
Assim, Guido valoriza em seu pensamento crítico, tanto a forma que
expressa um querer interior, mas que não é exclusivo de uma subjetividade única,
como também defende a experiência estética como atividade que pressupõe um
envolvimento do sujeito que pensa e que se emociona.
O problema, que se torna primordial nessa explicitação da crítica de
arte de Ângelo Guido, é saber: como ele resolve este dualismo e o sintoniza em
seu pensamento crítico de forma coerente? Nosso estudo segui no
encaminhamento desta problemática, tendo presente os fatores citados acima
como pontos referenciais para explicitar o fundamento estético da crítica de arte
de Ângelo Guido.
Assim sendo, o objetivo deste estudo é o de retomar e analisar a
produção da crítica de Ângelo Guido, referente às artes plásticas no Rio Grande

do Sul
registrada no jornal Diário de Notícias, entre os períodos de 1928 a 1945,
e em sua obra publicada na forma de ensaios ou livros
para verificar, por meio
de seus textos, a fundamentação estética de sua crítica e a sua importância na
formação de um público voltado para a arte no Estado.
Pretendemos analisar quais são os fundamentos teóricos em que se
baseia o discurso crítico de Ângelo Guido, relacionando a sua crítica de arte com
as teorias estéticas, as teorias da arte e da história da arte que serviram de
parâmetro para a configuração desta. Desta forma, verificaremos o papel que
exerceram a estética romântico-idealista, bem como as estéticas intuicionistas e
formalistas no processo de constituição da crítica de arte de Ângelo Guido. Talvez
deste modo seja possível identificar, no que tange às artes plásticas, a presença
de uma visão estética presente no campo artístico que se formava no RS, dentro
do panorama nacional da época, e em relação com os movimentos artísticos
(nacionais e internacionais) que possam ter influenciado a reflexão crítica feita
sobre a produção artística desse Estado, naquele momento.
Antes de atuar no Rio Grande do Sul, Guido havia exercido a
atividade de crítico musical e de artes plásticas, em São Paulo, no jornal A
Tribuna, de Santos (1914 a 1922), estando, portanto, em contato com os
acontecimentos e idéias do movimento modernista, desde as suas primeiras
manifestações. Conforme a literatura
28
existente sobre o assunto, o Modernismo,
no campo das artes plásticas, enquanto efetivação da pesquisa por novas
linguagens, só chegou ao Estado na década de 40:
28
Vide: KERN, Maria Lúcia B. Les Origines de la Peinture Moderniste au Rio Grande do Sul
Brésil, Tese de Doutorado, Universidade de Paris, 1981;
PIETA,
Marilene B. A Modernidade da
Pintura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Sagra/Luzzatto, 1995; SCARINCI, Carlos. A
Gravura Contemporânea no RGS. Porto Alegre: MARGS, 1980; SCARINCI, Carlos. A Gravura
no RGS (1900-1980). Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982; LEITE, Lígia Moraes. Modernismo
no RGS
materiais para o seu estudo. São Paulo: IEB-USP, 1972.

O modernismo só começa a se difundir de fato no RGS após o
Estado Novo e a Guerra Mundial, época em que a sociedade rio-
grandense passa por um processo de modernização gerado pelo
crescimento industrial e comercial, e o conseqüente fortalecimento
econômico.
29
Após a guerra, tornou-se possível uma maior comunicação entre os
artistas locais e os do centro do país, bem como a realização de viagens de
estudo, dentro do Brasil e para a Europa. Além disso, o crescimento econômico do
RS propiciou o desenvolvimento maior do campo artístico.
A atuação de Ângelo Guido no RS, neste período que antecede a
ampliação da prática artística inovadora, legitimada como tal, foi fundamental por
estabelecer o debate e ter possibilitado a divulgação destas idéias no final da
década de 1920, mesmo que não fosse para defender o movimento. Assim,
pretendemos analisar, também, o seu posicionamento frente às idéias
modernistas, e como este pode ter influenciado na formação tanto do público, que
acompanhava as avaliações por ele feitas das exposições pela imprensa, quanto
dos artistas que por ele passaram, quando lecionou no Instituto de Belas Artes.
A figura de Ângelo Guido surge como possível agente de
modernização das idéias e da própria atividade crítica e artística no Estado. Qual
foi, então, a importância da sua atuação como artista e intelectual no Estado? Que
papel ele exerceu na formação do público específico e na constituição do campo
da arte? O que era a crítica, para Guido, e quais são os seus critérios de
julgamento? Estas são algumas das questões que encaminham a problemática
desta pesquisa, tendo como eixo norteador a convergência que ele faz das idéias
29
KERN, Maria Lúcia Bastos. “A Pintura Modernista no Rio Grande do Sul”, IN: KERN, Maria L. B.
& BULHÕES, Maria A. (orgs.), A Semana de 22 e a Emergência da Modernidade no Brasil.
Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p.51.

ambivalentes da estética romântico-idealista e da estética formalista em sua crítica
de arte.
Entendemos que é importante contextualizar a crítica e vinculá-la à
produção artística. Neste sentido, sabemos que a pesquisa no âmbito da crítica de
arte, no Brasil, nos deu alguns trabalhos importantes, tanto no aspecto de uma
reflexão geral sobre o tema
30
, quanto trabalhos específicos sobre críticos de
arte
31
. Entretanto, consideramos este um campo ainda pouco explorado, por esse
motivo, a presente pesquisa justifica-se por apresentar-se como uma nova, ainda
que pequena, possibilidade de acercarmo-nos mais da historiografia artística do
Rio Grande do Sul, uma vez que pretende analisar uma parte da crítica
correspondente à produção artística no Estado, no período compreendido entre
1928 e 1945 – delimitação que será justificada a seguir.
Metodologia
30
Citamos como exemplo o trabalho de ZIELINSKY, Mônica. La Critique d’Art Contemporaine au
Brésil: parcours, enjeux et perspectives. Paris: Université de Paris I, thèse de doctorat, 1998.
31
Nesta área podemos citar: AVANCINI, José Augusto. Expressão plástica e Consciência Nacional
na Crítica de Mário de Andrade. Porto Alegre: UFRGS, 1998; ARANTES, Otília B. F. Mário
Pedrosa
itinerário crítico. São Paulo: Scritta Editorial, 1991; GONÇALVES, Lisbeth R. Sérgio
Milliet
crítico de arte. São Paulo: Perspectiva/ EDUSP, 1992; GRINBERG, Piedade E. Ruben
Navarra e a Crítica de Arte na Década de 40 no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em
História da Arte, UFRJ, 1996; MILLIET, Sérgio. Diário Crítico de Sérgio Milliet (1940-1943). São
Paulo: Brasiliense, 1944; CHIARELLI, Tadeu. Um Jeca nos Vernissages
Monteiro Lobato e o
Desejo de uma Arte Nacional no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1995; CHIARELLI, T. De Almeida
Jr. A Almeida Jr.: a crítica de arte de Mário de Andrade, tese de Doutorado, Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1996.

Cada concepção de história envolve um elenco de instrumentos e
procedimentos adequados à produção do conhecimento histórico e em função do
objeto de estudo escolhido. Assim sendo, para demonstrarmos nossa
metodologia, vamos, primeiramente, situar nosso posicionamento frente à história;
logo depois, a maneira como delimitamos nosso objeto e, posteriormente, o modo
como procedemos na construção do texto historiográfico.
1. Posicionamento frente à história
Considerando as especificidades do objeto abordado, que envolve os
campos da crítica, filosofia, estética, arte e história, foi preciso adotar um ponto de
vista que possibilitasse a abordagem interdisciplinar.
Assim sendo, a história das idéias
32
, tal como a concebe Baumer
33
,
tornou-se o ponto de apoio principal deste trabalho, considerando que esta
abordagem histórica presta-se para uma melhor apresentação da fundamentação
estética das idéias de Ângelo Guido.
A história das idéias
34
difere da história política, social ou
institucional, voltando-se para as idéias dos homens, no ‘mundo interior do
32
Inicialmente pensamos em utilizar-nos da história oral e entrevistar pessoas que tivessem algum
conhecimento ou vivência com Ângelo Guido. Começamos por este caminho, mas este tornou-
se pouco interessante, porque as pessoas que poderiam dar seu testemunho tiveram algum
contato com ele, mas apenas na década de 60, como alunos ou colegas de trabalho. Estes
testemunhos pouco contribuiriam para fundamentar seu pensamento teórico-crítico, o qual
estávamos analisando, principalmente entre o período que compreende a sua produção da
década de 20 até a década de 40. Algumas entrevistas ou consultas foram feitas, mas
aproveitadas em parte (Nina Calegari, Círio Simon, Aldo Obino, Carlos Mancuso, Armindo
Trevisan), pois destas percebemos que muito coincidiam com os documentos que havíamos
obtido com referência à fundamentação teórica, aspecto privilegiado nesta pesquisa.
33
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. 2 vols. Rio de Janeiro: Edições 70,
1977.
34
A história das idéias tem origem no Iluminismo do século XVIII, mas teve seu interesse
diminuído, no século XIX, em virtude da valorização de outras histórias (história da filosofia,
história social e história política). A história das idéias torna-se relevante a partir do final do
século XIX, beneficiando-se da ‘revolta contra o positivismo contemporâneo’. Na França, o

pensamento’. O termo ‘idéias’, no entanto, é elástico e pode referir-se desde o
pensamento de uma pequena elite ao de toda gente. Por esse fato a história das
idéias tem seu lugar entre a história da filosofia e a história cultural. No entanto, a
história das idéias não se limita aos pensamentos de alguns, os talentosos, os
pensadores, os filósofos. Ela volta-se para as idéias que alcançam uma grande
difusão: “a história das idéias, ao contrário da história da filosofia, tenta ir além do
pensamento privado para o pensamento público, para além do único e
idiossincrático para os estados de espírito coletivos”.
35
Deste modo, a história das idéias, ainda que opere em grande parte
dentro do âmbito do pensamento racional, também lida com idéias que podem ser
crenças ou convicções. Baumer iguala as denominações de história das idéias e
história intelectual, mas, segundo ele, nenhum dos dois termos é suficiente. O
problema da história das idéias, como termo descritivo, é que todos têm idéias,
mesmo os que não elaboram ou sistematizam o seu pensamento. Por outro lado,
história intelectual, embora seja um termo mais preciso, pode dar a impressão
oposta, a de ser restrita ao pensamento de uma elite, como acontece na história
da filosofia. Assim, Baumer considera a história intelectual (ou das idéias) de
filósofo idealista Alfred Fouillée desafiou o determinismo científico, em relação ao
comportamento humano, afirmando a importância das idéias concebidas livremente pelo
espírito. Na Alemanha, Wilhelm Dilthey lutou para estabelecer a autonomia das ciências
‘culturais’ ou ‘humanas’. Na acepção de Dilthey, as ciências humanas proporcionam um meio
melhor que o das ciências naturais para a compreensão da natureza do homem e da sua
realidade histórico-social. Dilthey é considerado o ‘pai da moderna história das idéias’, tornando
preponderante a história entre as ciências humanas, estabelecendo uma metodologia para seu
estudo, e fazendo do espírito humano e das suas idéias o suporte da história. Ele ampliou
também o seu campo, incluindo, não o pensamento racional, mas também os produtos da
imaginação e da vontade humanas, expressos na literatura, na arte, na religião, na filosofia e na
ciência. A história das idéias estabeleceu-se, de forma mais ampla, no século XX. Dilthey foi o
responsável por esta popularidade, principalmente depois da publicação de suas obras
completas em 1920. Entre os historiadores, Ernst Cassirer e Friedrich Meinecke expandiram a
visão de Dilthey. Arthur Lovejoy introduziu a história das idéias, como disciplina, nos Estados
Unidos. Grande parte da história intelectual do século XX foi escrita por europeus, como
Bernhard Groethuysen e Federico Chabod, Daniel Mornet e Paul Hazard, Herbert Butterfield e
Basil Willey. Cf. BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno
séculos XVII e XVIII.
vol.1. Rio de Janeiro: Edições 70, 1977, p.17-25.
35
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno
séculos XVII e XVIII. vol.1. Rio de
Janeiro: Edições 70, 1977, p.21.

forma mais ampla, incluindo tanto os que popularizam as idéias como os que as
criam.
Os intelectuais desempenham o papel principal, segundo Baumer, na
história das idéias, mas este papel deve ser bem compreendido, pois implica o
relacionamento do intelectual com a sociedade em que se insere. De um lado, os
intelectuais constituem uma classe distinta, ocupando-se do pensamento original,
criativo e crítico da sociedade. De outro lado, esta classe nunca está tão desligada
que não se cruze com outras classes ou não compartilhe os interesses comuns de
sua época. Desta forma a classe intelectual seria como um espelho que reflete a
experiência de vida de grupos maiores. Todavia, o intelectual não se limita a
refletir idéias comuns, ele toma-as em seu estado original e dá-lhes estrutura,
eloqüência e um significado mais geral.
Deste modo, o intelectual é capaz de, por meio de um ensaio, uma
peça, um poema ou uma pintura, chamar a atenção de outras
pessoas para aquilo que experimentaram e que estão empenhadas
em revelar. O intelectual reflete as idéias de outras pessoas, mas
também as aperfeiçoa e esclarece. Por conseqüência, a história das
idéias propriamente dita concentra-se, sobretudo, nos intelectuais,
porque eles articulam melhor as idéias e as crenças que circulam
numa sociedade.
36
Para Baumer, a história das idéias é relevante porque relaciona-se,
fundamentalmente, com a procura das respostas às questões perenes
37
, isto é,
questões relacionadas com a natureza e destino humanos. O passado dá-nos
respostas, sutis ou simplesmente diferentes das nossas. Apesar de termos um
36
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno
séculos XVII e XVIII. vol.1. Rio de
Janeiro: Edições 70, 1977, p.23.
37
Questões perenes são as questões que o homem aborda, mais ou menos continuamente,
através de todas as gerações e de todas as épocas.

conhecimento superior em muitas áreas, vemos tudo ao nosso redor a partir de
uma perspectiva peculiar, a qual é inevitavelmente parcial e limitada. Por isso
precisamos conhecer o que outros, situados em lugares e épocas diferentes,
sentiram e pensaram.
Consideramos, portanto, o amplo contexto de manifestação da crítica
de arte, relacionando o sujeito pesquisado, como protagonista dessa história, aos
personagens e fenômenos artísticos, nacionais e internacionais, importantes para
a sua contextualização e compreensão. Para tanto, necessitamos recorrer à
história da arte, como forma de compreender os seus argumentos e juízos
estéticos.
Desta forma, juntamente ao enfoque da história das idéias, como
pano de fundo para orientar a exposição do pensamento de Ângelo Guido,
tratamos o tema na forma de uma biografia intelectual
38
, não dentro de uma
perspectiva tradicional de mera compilação de dados, classificação e
apresentação cronológica das idéias, mas, principalmente, como um trabalho que
revela e enfatiza o discurso individual que serviu de base às idéias da época. Uma
biografia intelectual considerada como uma história das problemáticas presentes
nos textos do crítico Ângelo Guido, inseridas, por sua vez, num contexto geral,
sem pretender tratar o personagem como um “herói” emblemático de um campo
cultural específico, mas como um indivíduo que, inserindo-se em seu meio, fez de
seu cotidiano uma luta em busca do aperfeiçoamento da arte e da vida.
38
Tentamos trabalhar e apresentar todos os ensaios publicados de Ângelo Guido e, ainda, grande
parte de seus textos jornalísticos, apesar de limitar estes ao período de 1928 a 1945, e à crítica
sobre artes plásticas. Sobre o tema da biografia intelectual, vide: LEVI, Giovanni. “Les Usages
de la Biografie”; IN: Annales: Économies, Sociétés, Civilisations, n.º 6, nov/déc. 1989, p.1325-
1336; SCHMIDT, Benito Bisso. “A pós-Modernidade e o Conhecimento Histórico: considerações
sobre a volta da biografia”; IN: Cadernos de Estudo. Pós-graduação em História, UFRGS, n.º
10, dez./1994, p.31-56; CHARTIER, Roger. “Histoire intellectuelle et histoire des mentalités.
Trajetoire et questions”. Revue de Synthèse, n 111-112, juil./dec.1983, p.277-307;
PASSERON, Jean-Claude. “Biografies, flux, itinéraires, trajectoires”; IN: Revue Française de
Sociologie, n.º 1, 1990, p. 03-22.

O que torna uma biografia interessante de ser escrita e lida, como
pensa Danto
39
, não é o simples desenvolvimento de uma narrativa programada
nem o que ela contenha de previsível, mas sim de casual: a interseção de
histórias que produzem eventos imprevistos. E, no contexto de uma história da
arte, esse cruzamento das contingências da história do indivíduo com o todo de
que faz parte, é necessário para a compreensão de ambos:
O que interessa ao historiador (...) deveria ser, tanto ou talvez mais
ainda que a confirmação, a tradução, a ilustração de uma tese
elaborada com base em documentos pertencentes a outras séries
que lhe são fornecidas pela imagem ou pelo monumento, deveria
ser, dizíamos, o desvio ou até a contradição que as obras
representam e que eventualmente testemunham: desvio e
contradição que não lhe compete nem diminuir nem resolver mas
que deve ter em conta, integrando-os na sua ordem e dimensão
próprias: as de uma história cuja unidade é sempre problemática e
que só faz sentido se juntarmos as múltiplas histórias de que é
tecida e fizermos surgir, no entrelaçamento destas, um texto que se
preste a leituras sempre renovadas.
40
A história resulta, assim, num processo dialético de constante
releitura e questionamento, na medida em que os desvios, as vivências das
histórias individuais contribuem sempre com novas situações a serem
confrontadas com as já desveladas.
Enfim, após termos escolhido o crítico, fizemos o levantamento e
análise de toda a sua obra publicada
na forma de livros ou artigos em jornais e
periódicos
, e selecionamos os textos de sua autoria que melhor revelariam sua
crítica referente às artes plásticas.
39
DANTO, Arthur. Después del Fin del Arte
el contemporáneo y el linde de la historia. Barcelona:
Paidós, 1999, p.61.
40
Cf. Hubert Damisch, sobre o vocábulo Arte (História da); IN: LE GOFF, J. (dir.) A Nova História.
Coimbra: Almedina, 1990, p.77.

2. Fontes e delimitação da pesquisa
A fonte principal desta pesquisa foram os artigos que Ângelo Guido
publicou no jornal Diário de Notícias, a partir de 1928, material que, por si só,
constitui uma fonte inédita de estudos e que, até então, não havia sido trabalhado
sob o enfoque de uma reflexão específica sobre a crítica das artes plásticas.
Selecionamos alguns desses artigos para serem apresentados em anexo
41
a esta
pesquisa, como forma de aproximar melhor o leitor desta fonte documental e,
também, para facilitar futuros estudos nesta área. Ao que não foi possível colocar
em anexo, fazemos referência na forma de citação, quando necessário. Vale
sublinhar que as citações são consideradas, neste estudo, não como ilustração
dos argumentos, mas como documentos que corroboram a análise apresentada.
Ainda consideramos como fonte primária, nesta pesquisa, toda a produção teórica
de Ângelo Guido publicada em livros e em revistas ou periódicos.
Foram consultadas, também, outras fontes complementares, tais
como revistas e jornais da época
1925 a 1945: Revista do Globo, Jornal do
Estado, Jornal A Nação, Correio do Povo, A Federação, estes de Porto Alegre, e
A Tribuna, de Santos (SP). E ainda os textos dos críticos da época, publicados em
41
Dos quatrocentos artigos coletados no jornal Diário de Notícias, selecionamos, entre os que
apresentam a assinatura de Guido, os principais referentes à crítica das artes plásticas e,
também, outros textos necessários para que se compreendesse o pensamento de Ângelo
Guido, bem como sua postura frente aos problemas socioculturais. Da Revista do Globo,
selecionamos cinco dos seis artigos publicados por Guido neste periódico, para serem
apresentados em anexo (vide anexo 3).

livros e periódicos, bem como a produção existente sobre as artes plásticas no Rio
Grande do Sul
42
e os estudos que se referem a Ângelo Guido
43
.
Foi necessário fazer um recorte temporal e uma delimitação dos
documentos coletados. Determinamos, então, como período inicial o ano de 1928,
considerando que é o ano em que Ângelo Guido se instala em Porto Alegre e
inicia sua atividade profissional como crítico de arte do Jornal Diário de Notícias.
Como a crítica, em geral, se constitui à medida que aparecem as Escolas e os
Salões de Arte, no caso do Rio Grande do Sul, essas instâncias começam a
manifestar-se, mais intensamente, a partir da década de 1920; além disso, os
fundamentos da crítica, possivelmente, estejam sendo reformulados, se
considerarmos que as idéias modernistas estejam começando a circular pelo
42
Sobre estudos que têm como tema as artes plásticas no Rio Grande do Sul, foram consultados:
CORONA. Fernando. Caminhada nas Artes (1940-1976). Porto Alegre, UFRGS/ IEL/DAC/SEC,
1977; DAMASCENO, Athos.
As Artes Plásticas no RGS (1755-1970). Porto Alegre: Globo,
1971; GASTAL, Susana de Araújo. Carlos Alberto Petrucci como Exemplo de Trajetória das
Artes no Estado. Monografia de Especialização em Artes Plásticas, PUCRS, 1988; GASTAL, S.
Imagens e Identidade Visual: a sistematização formal e temática da pintura em Porto Alegre
(1891-1930). Dissertação de Mestrado, Pós-Graduação em Artes Visuais, Instituto de Artes,
UFRGS, 1994; KERN, Maria Lúcia B. Les Origines de la Peinture Moderniste au Rio Grande do
Sul Brésil. Tese de Doutorado, Universidade de Paris, 1981; KRAWCZYK, Flávio. Espetáculo
da Legitimidade os Salões de artes plásticas em Porto Alegre 1875/1995. Dissertação de
Mestrado, Pós-Graduação em Artes Visuais, Instituto de Artes, UFRGS, 1997; PIETA, Marilene
B. A Modernidade da Pintura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Sagra/Luzzatto, 1995;
SCARINCI, Carlos. A Gravura Contemporânea no RGS. Porto Alegre: MARGS, 1980;
SCARINCI, C. A Gravura no RGS (1900-1980). Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982;
TREVISAN, Armindo. Escultores Contemporâneos do RGS. Porto Alegre: UFRGS, 1983;
VIGNOLI, Solange. Revisando a Produção Plástica de João Fahrion. Monografia de
Especialização em Artes Plásticas. PUC/RS, 1984.
43
Além dos artigos que comentam as exposições de Ângelo Guido, os quais serão citados no
decorrer deste estudo, encontramos alguns dicionários ou trechos de obras em que aparece o
nome do crítico em questão. Encontramos referências ao autor em: PONTUAL, Roberto.
Dicionário das Artes Plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969; BRAGA,
Theodoro. Artistas Pintores no Brasil. São Paulo: Limitada, 1942; REIS JR., José Maria dos.
História da Pintura no Brasil. São Paulo: Ed. “Leia”, 1944; LOUZADA, Júlio et al. Artes Plásticas
Brasil 98 seu mercado seus leilões. vol. 10, São Paulo: Louzada; MORAES, Raymundo de.
“Um Pintor de Águas”, Jornal O Paiz, 13.07.1927; MORAES, Raymundo de. Cartas da Floresta.
Manaus, 1927, p.191-198; Dicionário Brasileiro de Artistas Plásticos, vol. 2, Brasília: MEC/ INL,
1974; Revista Gesta, periódico de arte, literatura e pensamento, São Paulo, n.3, 12.11.1927
(número especial dedicado a Ângelo Guido); RUBENS, Carlos. Pequena História das Artes
Plásticas no Brasil. Rio de Janeiro, 1941, p.234; COSTA, Angyone. Migração e Cultura
Indígenas. Rio de Janeiro, p.126-140; ORNELAS, Manoelito de. Vozes de Ariel. Porto Alegre:
Livraria do Globo, 1939, p.73-81; MAGALHÃES, Basílio de. O Folclore no Brasil. Imprensa
Oficial, 1939, p.345; GOMES, Yaynha Pereira. Colcha de Retalhos. São Paulo, 1926, p.195.

Estado. O ano de 1945, por sua vez, como o outro pólo delimitador da pesquisa, é
marcado pelo final do período do Estado Novo, final da Segunda Guerra Mundial
e, também, é o momento em que se considera que as idéias modernistas
começam a se efetivar na produção artística do RS, fazendo com que a crítica
redimensione o seu discurso. Assim sendo, embora Ângelo Guido tenha escrito
textos para jornais até a década de 1960, restringimos o estudo ao período de
1928 a 1945. Além disso, depois de 1945, uma diminuição da produção de
seus textos para os jornais, por um certo tempo, talvez, em conseqüência de seu
vínculo ao Estado Novo
44
. E ainda é preciso considerar que, a partir da década de
1940, começa a haver uma atuação maior de novos críticos, tais como Fernando
Corona e Aldo Obino, os quais passam a dividir o cenário da crítica com Ângelo
Guido.
Restringimos a pesquisa ao âmbito das artes plásticas, mais
especificamente a pintura, a escultura, a gravura e o desenho, embora a produção
da crítica de Ângelo Guido também envolva a música, a dança e o teatro, mas
esta análise escapa aos limites deste estudo. Estes textos poderão, entretanto,
servir de apoio à argumentação e serão citados, caso isso seja relevante.
Quanto aos artigos coletados nos jornais até 1945, decidimos realizar
uma atualização ortográfica
45
nos textos das citações e do anexo, de forma a
facilitar a compreensão dos leitores interessados, não implicando, absolutamente,
nenhuma modificação do conteúdo destes.
44
A temática de seu discurso muda um pouco logo após um incidente que ocorre quando de sua
direção interina junto ao DEIP (Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda), em 1944,
episódio que retomaremos adiante.
45
A ortografia foi atualizada devido à falta de padronização na apresentação dos textos, por
exemplo, na acentuação, no uso de crases, no uso de “s” ou z”, no uso de “f ou “ph”. A
acentuação gráfica foi atualizada conforme a última mudança prescrita pela Lei n.º 5.765, de
dezembro de 1971.

3. Referências teóricas complementares
Utilizamos alguns referenciais teóricos para a análise dos textos
críticos de Ângelo Guido, tais como as obras de Henri-Louis Bergson
46
,
principalmente no que se refere aos conceitos de intuição e de simpatia
intelectual. Além deste, buscamos apoio nos textos dos filósofos do idealismo
alemão
como Fichte
47
, Schelling
48
e Hegel
49
e nas teorias formalistas de
Wölfflin
50
e Riegl
51
. Estes teóricos, dentre outros, orientaram a fundamentação dos
critérios utilizados por Guido em sua crítica.
Considerando, também, que este estudo abrange as áreas da
estética, da história da arte e da crítica de arte, tendo como eixo central o
encaminhamento da própria história, buscamos apoio complementar em algumas
leituras correspondentes a estes campos.
Assim sendo, no que diz respeito à crítica de arte, fizemos um
levantamento da produção bibliográfica a respeito, que pudesse nos auxiliar no
46
BERGSON, H. Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência. Lisboa: Edições 70, 1988; A
Intuição Filosófica. Lisboa: Colibri, 1994; “O Pensamento e o Movente”; IN: Cartas, Conferências
e Outros Escritos textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.99-151; “A Evolução
Criadora”; IN: Cartas, Conferências e Outros Escritos textos selecionados. São Paulo: Abril
Cultural, 1984, p.153-205; “Introdução à Metafísica”; IN: Cartas, Conferências e Outros Escritos
textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.11-39.
47
FICHTE, Johann Gottlieb. A Doutrina da Ciência de 1794 e outros escritos. 2.ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1984.
48
SCHELLING, F.W.J. Filosofia del Arte. Buenos Aires: Editorial Nova, 1949.
49
HEGEL, G.W.F. Estética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993.
50
WÖLFFLIN, Heinrich.
Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes,
1989.
51
RIEGL, Aloïs. Grammaire Historique des Arts Plastiques (volonté artistique et vision du monde).
Paris: Klincksieck, 1978.

encaminhamento das questões deste estudo, e utilizamos desde Diderot
52
,
considerado um dos iniciadores da crítica de arte, como gênero literário
e
Baudelaire
53
, até teóricos contemporâneos como Jean Lauxerois
54
que afirma
ser o discurso estético passível de plasticidade, de tomar novas formas de acordo
com o olhar do sujeito
e Rainer Rochlitz
55
para quem a obra de arte tem uma
finalidade estética: ela é criada para suscitar uma adesão do espectador, e sua
avaliação é imanente à sua criação.
Ainda quanto à crítica de arte, consultamos os textos de alguns
críticos brasileiros, tais como Mário de Andrade
56
, Sérgio Milliet
57
, Ruben
Navarra
58
e Angyone Costa
59
, de maneira a tornar possível o estabelecimento de
52
DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a Pintura. Campinas, SP: Papirus/ Ed. UNICAMP, 1993;
Oeuvres Choisies. Paris: Larousse, 1941; Salons de 1759-1761-1763. Paris: Flammarion, 1967;
Investigaciones Filosoficas sobre el Origen y Naturaleza de lo Bello. Buenos Aires: Aguilar,
1973.
53
BAUDELAIRE, Charles. Obras Estéticas filosofia da imaginação criadora. Petrópolis: Vozes,
1993; Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1951; Curiosités Eshétiques; IN: Oeuvres
Complètes. Paris: Gallimard, 1951, p.547-872; Sobre a Modernidade. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
54
LAUXEROIS, Jean. “Le Temps de la Plasticité”; IN: Pratiques Revue de Réflexions sur l ‘Art, 1,
Paris: ERBA, avril, 1996, p.123-138.
55
ROCHLITZ, Rainer. “Sens et fonction de la subversion esthétique”; IN: Critique, n.511, déc.
1989, p.937-954. Também foram consultados os teóricos mais vinculados à filosofia analítica da
arte, tais como Gérard Genette, Jean-Marie Schaeffer, Nelson Goodman, que defendem um
estatuto da obra de arte independente de qualquer avaliação, ou seja, independente de
qualquer definição ou conceito do que é arte. E ainda Arthur Danto, que considera ser o ponto
de vista valorativo da estética, expressão de uma ideologia. Da crítica vinculada à semiologia e
ao estruturalismo, consultamos Umberto Eco e Roland Barthes. Muitos destes textos, apesar de
constarem na bibliografia como fonte para pesquisas, não são citados no decorrer do trabalho
por não serem diretamente pertinentes à fundamentação estética presente na crítica de Ângelo
Guido.
56
ANDRADE, Mário de.
Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, s.d.;
AVANCINI, José Augusto. Expressão Plástica e Consciência Nacional na Crítica de Mário de
Andrade. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998.
57
MILLIET, Sérgio. Diário Crítico de Sérgio Milliet (1940-1943). São Paulo: Brasiliense, 1944.
58
GRINBERG, Piedade E. Ruben Navarra e a Crítica de Arte na Década de 40 no Rio de Janeiro.
Dissertação de Mestrado em História da Arte, UFRJ, 1996; NAVARRA, Ruben. “Salão de 1941”,
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 11.10.1941; “O Salão”, Diário de Notícias, Rio de Janeiro,
04.10.1942; “Salão de 1945”, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23.12.1945.
59
COSTA, Angyone. A Inquietação das Abelhas. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia., 1927.

comparações entre estes críticos e o autor estudado ou a possibilidade de analisar
o contexto da crítica, na época pesquisada, em âmbito nacional.
Além desses, examinamos outros teóricos da arte como Giulio
Argan
60
e Marc Jimenez
61
, que estabelecem uma importante relação entre a
crítica e a histórica da arte, bem como entre a crítica e a estética, e permitem
analisar a atuação de Ângelo Guido como crítico, teórico e professor de história da
arte.
4. Organização do Trabalho
Organizamos este trabalho de forma que fosse possível
compreender melhor a atuação de Guido como crítico de arte no RS. O texto
consta de três capítulos ao todo. No primeiro capítulo dividimos a apresentação
nos cinco itens que abordam: a emergência da crítica na modernidade, suas
relações e o seu papel na fundamentação de um estatuto próprio ao campo
artístico, em função do advento de sua autonomia. Em seguida, consideramos a
natureza subjetiva do discurso crítico, na origem da crítica como gênero literário,
em Diderot e Baudelaire. Depois, apontamos para o legado da crítica, nas suas
tendências formalistas e idealistas, para podermos estabelecer relações com a
crítica de Guido. E ainda consideramos no primeiro capítulo as abordagens
intuicionistas da obra de arte.
60
ARGAN, Giulio C. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992;
Guia de História da Arte. Lisboa: Estampa, 1977; Arte Moderna. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992;
Arte e Crítica de Arte. Lisboa: Estampa, 1993, 2.ed.; Crítica de Arte. Buenos Aires:
Rosenberg-Rita Edit., 1984.
61
JIMENEZ, Marc. Crise de l’Art ou Consensus Culturel? Paris: Klincksieck, 1995;
Qu’est-ce que
l’Esthétique? Paris: Gallimard, 1997; “Histoire de la Critique/ Critique de L’Histoire L’Art
Moderne N’Existe Pas”; IN: Porto Arte, Porto Alegre, v.4, n.7, p.43-50, maio/1993; “História
Crítica da Estética”, Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, Pós-Graduação em Artes Visuais,
Curso de Extensão, 04 a 08.05.1998.

A fundamentação do pensamento crítico de Guido é tema do
segundo capítulo desta pesquisa, em que procuramos explicitar como se
organizou sua teoria crítica, que elementos de outros teóricos utilizou e como
relacionou a crítica com a história da arte. Neste capítulo apresentamos também a
relação existente entre a concepção de Guido a respeito da arte, como origem das
formas, e seus critérios para julgar.
No terceiro capítulo, apresentamos a importância de Guido no
cenário cultural do RS, na primeira metade do século XX, vinculando-o ao
contexto em que ocorreu a efetivação de sua crítica. Tratamos, assim, da história
do campo artístico, das instituições de formação, difusão e legitimação da arte no
RS, onde, além das escolas, salões e salas de exposições, inclui-se a crítica como
responsável pela propagação, valoração e conseqüente legitimação das obras.
Neste terceiro capítulo aparece, sublinhado, o protagonista deste estudo, Ângelo
Guido, e sua produção crítica, principalmente na imprensa, assim como o seu
posicionamento frente ao Modernismo.
A conclusão constitui uma retomada de todos os passos seguidos
neste trabalho, e apresenta-se como um momento de reflexão a respeito da
importância do tema. Em anexo, apresentamos a relação de todos os artigos que
coletamos nesta pesquisa, para serem consultados caso haja interesse em futuras
pesquisas. Dos textos de Ângelo Guido, colocamos em anexo apenas aqueles em
que aparece a sua autoria, pois não era obrigatória essa identificação
62
na
imprensa, naquela época. Esta pesquisa não contém ilustrações devido à
dificuldade de encontrarmos os trabalhos comentados pelo crítico
63
.
62
Devido a isto, muitos textos que podemos, pela linguagem e estilo, atribuir a Guido, não foram
utilizados nesta pesquisa por não ter sido possível identificar a autoria.
63
Algumas obras foram encontradas em fotografias publicadas em jornais, mas estas ou aparecem
como fundo ilustrativo divulgando as exposições e as pessoas presentes nela, ou são
reproduções em preto e branco que não possibilitam uma análise mais detida a respeito das
observações feitas pelo crítico. Mesmo com a relação nos jornais das obras adquiridas por
entidades públicas e pessoas físicas, muitas vezes estas obras entram em um acervo com seu

Enfim, esperamos que este trabalho sirva a novas leituras e
investigações e, de alguma forma, contribua para a reflexão a respeito da crítica
de arte no Estado do RS.
título modificado, o que dificulta a sua identificação. A análise ilustrada seria interessante se
houvesse pelo menos uma obra de cada artista contemplado nesta pesquisa, ou de pelo menos
um número relevante de artistas, o que não se tornou possível.

I - AS CONCEPÇÕES ESTÉTICAS E O ENGENDRAMENTO DA
CRÍTICA DE ARTE
1.1 O papel da crítica de arte na modernidade
Nesta parte do estudo abordaremos o contexto em que surgiu a
crítica
64
na modernidade, quais foram as suas funções e sua importância, dando
ênfase ao embasamento que teve nas idéias estéticas e filosóficas. Tendo em
vista este fundamento da crítica, poderemos, então, refletir sobre a configuração
do pensamento crítico de Ângelo Guido e, posteriormente, analisar sua inserção
como crítico de arte no RS.
64
A crítica de arte é uma atividade que carrega ambigüidades desde sua origem. Sendo o ato
crítico, em si, próprio ao ser humano (do grego

julgar, distinguir), enquanto ato
de discernir, refletir, diferenciar, avaliar, característico do pensar, é, no caso da sociedade
ocidental, muito peculiar ao pensamento filosófico-científico que se estabelece, dando ênfase à
racionalidade.

A modernidade foi o momento em que o sujeito tomou consciência
de si, de sua capacidade e auto-suficiência para a investigação e passou, em
todos os campos do conhecimento, a reivindicar autonomia e a estabelecer as
bases para a correspondente atuação. É o século das Luzes, época de
esclarecimento, de elucidação e tomada de consciência do mundo pelo sujeito,
fenômeno que vinha se processando desde o Renascimento e a época das
navegações e dos descobrimentos.
O processo de consciência e autonomia do sujeito, com a
conseqüente subjetivação do mundo, ou seja, a ação do sujeito a partir de um
ponto de vista seu, imanente, subjetivo, e não mais transcendente, implica o
progressivo desmoronamento das tradições, por não estarem de acordo com a
liberdade dos homens e submeterem o indivíduo à determinação da exterioridade
e da transcendência da ordem do mundo como anteriores ao próprio querer do
indivíduo.
O advento da modernidade não é decorrente apenas de um declínio
das tradições, com o conseqüente questionamento do passado e a autonomia do
sujeito, que se liberta da verdade absoluta e transcendente, mas, também, é a
manifestação da multiplicidade da subjetividade humana.
Luc Ferry
65
defende a tese de que não é a política nem a economia,
ou mesmo a religião, que podem explicitar a revelação deste sujeito moderno, mas
sim a
estética, na qual é substancial a expressão das diversas concepções da
subjetividade, próprias dos tempos modernos, sendo também evidente o conflito
na relação entre o individual e o coletivo, entre o subjetivo e o objetivo. A
modernidade representa, assim, a dissolução progressiva dos marcos de
referência herdados do passado: é uma espécie de fronteira, ou melhor, pretende
65
Vide: FERRY, Luc. Homo Aestheticus a invenção do gosto na era democrática. São Paulo:
Ensaio, 1994, p.20.

ser uma divisa e uma ruptura entre a tradição e a inovação, mas, na verdade, este
limite e esta ruptura estão mais presentes no discurso do que na prática.
Quanto ao campo artístico, Bozal afirma que a autonomia da arte,
juntamente com o processo de autonomia do conhecimento científico, é um dos
fatores fundamentais da modernidade. Nesse sentido, constitui-se fator
fundamental para a efetivação da autonomia da arte e instauração de um campo
artístico independente, não apenas o desenvolvimento da crítica de arte, mas
também da história da arte e da estética
66
.
A crítica tornou-se um índice de modernidade, no que diz respeito à
liberdade e à consciência de si adquiridas pelo sujeito. A história da arte
67
, por sua
vez, afirma a existência de um sujeito histórico, com Winckelmann, não se
limitando a ordenar fatos cronologicamente, mas estabelecendo uma metodologia,
um conceito de beleza e um encadeamento de causas e efeitos no movimento da
história, no qual se valorizam os estilos. A seu turno, a estética passa a refletir a
questão da sensibilidade como uma faculdade que, além da razão, também é
responsável pelo conhecimento: a pergunta pela percepção, recepção e fruição
das obras pelo sujeito torna-se atributo de um juízo especificamente estético.
O momento em que a crítica de arte se institui como gênero literário
é simultâneo à geração de um consumo blico de arte, ou seja, juntamente com
o Salon, que abriu uma perspectiva diferente para os artistas, os quais não só
viram ampliado o número de prováveis compradores, como também puderam
desfrutar de fama e questionar os limites hierárquicos da academia
68
. Desta
66
Cf. BOZAL, V. “Orígenes de la estética moderna”; IN: Historia de las Ideas Estéticas y de las
Teorías Artísticas Contemporáneas. Vol. I, Madrid: Visor, 1996, p.19-20.
67
Id. Ibid., p.22-23.
68
As academias de arte, em geral, realizavam suas exposições para um público restrito e
delimitado pelos freqüentadores destas instituições e futuros interessados na formação artística.
As exposições serviam como uma forma de modelo ou paradigma do que se considerava como
verdadeira arte. A projeção pública destas mostras iniciou somente quando, no culo XVIII, a

forma, pela primeira vez confrontava-se o mérito artístico, conforme os cânones
da instituição acadêmica, frente ao apoiado pelo êxito público
o juízo “erudito”
em oposição à opinião livre e espontânea. O salão, segundo Bozal, foi
responsável pelo advento do público
o qual passa a ter acesso ao que antes era
privilégio apenas da corte e do clero
, bem como torna-se instância de difusão de
tendências, promovendo tanto informações como a crítica, em outras palavras, “o
salão constitui a primeira forma de democratização da recepção das obras de
arte”
69
.
Na visão de Benjamin, a realidade dada pelo advento dos salões
levou os artistas a assumirem uma nova postura diante do público
70
que surgia,
pois eles não estavam preparados para o fenômeno inédito do olhar da multidão,
acostumados que estavam a realizar obras para uma contemplação solitária ou de
um grupo; nem, por outro lado, o público estava preparado para receber a obra,
pois desconhecia os seus códigos.
Os pintores queriam que seus quadros fossem vistos por uma
pessoa, ou poucas. A contemplação simultânea de quadros por um
grande público, que se iniciou no século XIX, é um sintoma precoce
da crise da pintura, que não foi determinada apenas pelo advento da
estatizada academia francesa rompeu o restrito círculo profissional que caracterizava estas
visitas e abriu livremente suas portas a todo mundo. Esse dado é fundamental porque, sem
essa visita indiscriminada às exposições, a dimensão pública não teria sido atribuída a estas. Cf.
SERRALER, Francisco Calvo. La Crítica de Arte; IN: ARROYO, Eduardo. Los Espectaculos del
Arte – instituiciones y funciones del arte contemporáneo. Barcelona: Tusquets, 1993, p. 35-51.
69
Cf. BOZAL, V. “Orígenes de la estética moderna”; IN: Historia de las Ideas Estéticas y de las
Teorías Artísticas Contemporáneas. Vol. I, Madrid: Visor, 1996, p.20.
70
A própria existência histórica do salão está condicionada pela irrupção de uma oferta e uma
demanda artística completamente novas, basicamente, por uma extensão substancial do
mercado de obras de arte, que, em seu progressivo crescimento, se fez cada vez mais abstrato
e anônimo. Vinculada a estes fatos, está a gestação de um público cada vez mais numeroso e
influente, o qual não se restringia aos estamentos da nobreza e clero, que até então haviam
praticamente monopolizado a demanda artística, mas que, na maior parte dos casos, carecia de
qualquer relação pessoal com os artistas e com as instituições oficiais encarregadas pela
formação do gosto artístico, como as academias. Contudo, é no século XVIII, que este conjunto
de sintomas engendra efetivamente um mercado de arte e seu correspondente público com
influência decisiva. Cf. SERRALER, Francisco Calvo. La Crítica de Arte, op. cit., p. 35-51.

fotografia, mas independentemente dela, através do apelo dirigido às
massas pela obra de arte.
71
Benjamin acreditava que, assim como a reprodução em série ou a
visão do mundo por intermédio da máquina, o olhar da multidão poderia implicar
uma perda da aura artística. Na realidade, desde a metade do século XVIII,
exatamente com os salões, a existência do espectador é afirmada e passa a ser
um novo problema para a pintura: os quadros devem ser feitos para serem vistos,
apreciados por um público numeroso. Os críticos e teóricos da arte, como afirma
Rochlitz
72
, começam a pensar que é o quadro que deve considerar fortemente a
presença do espectador diante de si, dissolvendo a imobilidade imaginária do
público face à tela.
Ainda assim, conforme Serraler
73
, os artistas viram com otimismo
esta nova realidade, pois, graças a este juízo popular, surgia a possibilidade de
reforçar ou contrariar o fechado e, até então, inapelável critério da academia,
vendo-se, neste respaldo público, a única possibilidade do reconhecimento.
Segundo Kern, é a crítica que atenta o público para a obra:
Pode-se dizer que ela coloca em valor o trabalho artístico,
analisando sua linguagem plástica, tornando-a compreensível e a
mostrando. (...) O discurso estético é, logicamente, a etapa primeira
da legitimação cultural e da socialização da pintura.
74
71
BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”; IN: Magia e
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.188.
72
ROCHLITZ, Rainer. “Le refus du théâtral”; IN: Critique, n. 526, mars 1991, p.138.
73
SERRALER, Francisco Calvo. La Crítica de Arte; IN: ARROYO, Eduardo. Los Espectaculos del
Arte – instituiciones y funciones del arte contemporáneo. Barcelona: Tusquets, 1993, p.49-50.
74
KERN, Maria Lúcia Bastos. Les Origines de la Peinture Moderniste au Rio Grande do Sul
Brésil. Tese de Doutorado, Universidade de Paris, 1981, p.77.

Constata-se que o papel da crítica, na modernidade, como elemento
integrante do campo artístico, é o de exercer a tarefa de legitimar, bem como de
estabelecer os critérios para que a arte se configure independente das outras
instâncias sociais. Como afirma Kern:
Face aos problemas com que se depara a arte na modernidade, o
artista busca, de um lado, a autonomia do objeto de arte em relação
à realidade visível, história, literatura e religião; e, de outro, a
constituição do campo artístico relativamente independente de
outros campos: político, religioso, etc.
75
Caberia refletirmos sobre “como” e “por quê a crítica teria surgido
neste momento. Como revela Leenhardt, além da posição dos artistas, que
encaminham-se para uma crescente “consciência de si” como profissionais, a
questão da sensibilidade conquista espaço na filosofia, ao lado da razão, sob o
nome de estética. Estes fatores possibilitaram que a autonomia do campo artístico
se efetivasse. Todavia, enquanto a subjetividade do artista tende a expandir-se,
dando a si mesma maior liberdade de expressão, o espectador, por sua vez, não
sabe como apreciar o que vê:
Ele tem dificuldade em deixar crescer em si mesmo uma liberdade
de julgamento até agora não experimentada, procura ainda as
muletas de um critério socialmente aceito no qual se fiar.
76
Leenhardt atribui ao crítico a tarefa de uma “pedagogia da
sensibilidade”, em que o texto deve funcionar como uma educação do olhar, por
75
KERN, M.L.B. Arte Argentina: Tradição e Modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p.7.
76
LEENHARDT, Jacques. “Crítica de arte e cultura no mundo contemporâneo”; IN: MARTINS,
Maria Helena (org.). Rumos da Crítica. São Paulo: SENAC/Itaú Cultural, 2000, p.20.

meio de uma transcrição que possibilite a percepção do efeito plástico da obra
pelo leitor. O crítico deve saber apreciar a obra, achar nela um significado e
comunicá-lo na linguagem verbal
77
.
Além da tarefa de propor os critérios para legitimar o objeto de arte, a
partir da configuração autônoma e moderna de um campo artístico
78
, o advento da
crítica de arte ocorreu como uma forma de restabelecer o elo de comunicação
entre a obra e o espectador. A crítica surgiu com a função de mediar os
significados expressos em linguagem plástica, transformando-os numa linguagem
mais acessível ao público, sem ser tradução, mas um encaminhamento para o
significado. Conforme Bozal:
A crítica se propõe como uma consideração pessoal que valoriza as
obras e as compara, mas que também informa sobre o seu
conteúdo. Sua redação, breve e vivaz, sem pretensão de exaustão,
sem ânimo de tratadista. Um gênero novo, ligado diretamente à
atividade artística, que supõe a existência de uma indústria
periodística, por limitada que seja, e leitores entre os quais a
publicação difunde-se. Um gênero, finalmente, que anima o
comentário e o intercâmbio de opiniões, fundamental para difundir
não somente o conhecimento desta ou daquela obra, deste ou
daquele artista, mas também sua interpretação e, por sua vez, seus
pressupostos teóricos, explícitos ou implícitos, sobre os quais essa
interpretação (e valorização) se apoiam.
79
Direcionando-nos a uma reflexão estética, Gerd Bornheim
80
nos
indica que, para entender o surgimento e a necessidade da crítica, precisamos
77
Id. Ibid., p.20.
78
BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva,1992, p.99-101.
79
Cf. BOZAL, V. “Orígenes de la estética moderna”, op. cit., p.21.
80
BORNHEIM, Gerd A. “A Crítica de Arte”; IN: Páginas de Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: UAPÊ,
1998, p.115-139; As Dimensões da Crítica”: IN: MARTINS, Maria Helena (org.). Rumos da
Crítica. São Paulo: SENAC/Itaú Cultural, 2000, p.33-45.

compreender como se deu a gradual negação da tradição e da concepção de
verdade metafísica.
O homem ocidental, durante toda a história do pensamento humano,
tentou superar suas antinomias através de um conhecimento verdadeiro, objetivo,
racional. A racionalidade tornou-se a marca do saber ocidental, e esta
determinação da razão levou o homem a sentir a necessidade de apoderar-se do
significado exato de tudo, como de uma verdade absoluta. Isso se deu desde a
busca do conceito, da essência de todas as coisas, com o mundo das Idéias de
Platão, e foi o que marcou, de forma decisiva, o pensamento ocidental: a busca da
unidade e objetividade no sentido conceitual de tudo, dos seres e do mundo.
A concepção platônico-aristotélica, conforme Bornheim
81
, foi
assimilada e adaptada para ser o fundamento transcendente utilizado pela
tradição cristã medieval, seguindo os conceitos de imitação e de
verdade. Para
Platão, todas as formas de representação baseavam-se no conceito de imitação
82
(mímesis). A busca da perfeição, em qualquer âmbito de realização humana,
deveria ser fundamentada no mundo inteligível, das essências, e realizada no
mundo sensível, das coisas. Resulta desta teoria que o conceito se torna
responsável por dizer a essência das coisas, ao passo que, a representação, na
arte, deve encarregar-se de abarcar e emitir a verdade que está veiculando.
A fundamentação da imitação ocorre paralela à transformação da
essência da verdade, realizada pela tradição platônico-aristotélica, que introduziu
o conceito de verdade como adequação, em contraposição à concepção dos pré-
socráticos, para os quais a verdade era tida como desvelamento. As categorias de
81
BORNHEIM, Gerd A. “A Crítica de Arte”; op. cit., p.117.
82
A imitação tem sua origem etimológica no grego    (mimesis) que significa: imitação,
imagem. E o substantivo   (mimetés) designa o imitador, poeta, ator. Cf. Dicionário
Grego-Português/ Português-Grego. (ISIDRO PEREIRA, S.J.) Porto: Editorial A.I., 1984.

“sujeito” e “objeto” obtêm uma certa hegemonia, mas ambas não podem prescindir
da base fundante do processo da verdade
que é o mundo das essências, para
Platão, ou a divindade, na concepção medieval. Assim, o conhecimento seria
possível na relação existente entre sujeito, objeto e divindade (ou idéias,
essências).
Em Platão
83
, a idéia do belo é geralmente associada à idéia da
realização de uma ordem onde devem reinar a medida, a proporção, a adequação
e a harmonia. O belo é a manifestação evidente (que é visível) das idéias
perfeitas, e a arte é a imitação das coisas sensíveis ou dos eventos que se
desenvolvem no mundo sensível, é um “re-produzir”, ou seja, imitar ou produzir
novamente o que existe. O valor supremo do belo está no mundo das idéias,
portanto, está vinculado a um valor ontológico: a busca ideal da perfeição é o
desenvolvimento da virtude maior. A arte, por sua vez, expressa-se pela imitação
(mímesis), por isso não permite chegar à verdadeira realidade, pois permanece na
aparência, na imitação do objeto que está no mundo sendo este uma cópia
e não na idéia do objeto em si. A arte, para tornar-se uma atividade superior, deve
buscar a perfeição, buscar o belo, a harmonia.
Todo o contexto cultural da Antigüidade revela-nos que o mundo
deve ser mostrado na sua perfeição; portanto, o que interessa não é o indivíduo,
mas sim a obra. A idéia é anterior e superior à obra, ela preexiste a sua realização
83
A base da teoria epistemológica de Platão é a concepção dos dois mundos: o inteligível (ou das
idéias) e o sensível. O primeiro, das Idéias, seria o mundo do verdadeiro conhecimento
(epistême), da essência, do Ser; o segundo mundo, por sua vez, seria uma mera cópia do
mundo ideal, uma sombra, um reflexo, algo que se apenas como aparência, opinião: é o
mundo da ilusão. Esta teoria, a teoria das Idéias, é apresentada através do Mito da Caverna,
onde Platão explica a coexistência de dois mundos, o sensível e o inteligível. A teoria platônica
consiste, pois, na apresentação de uma dialética que faça a passagem do mundo da mera
opinião, mundo sensível em que vivemos, para o mundo do saber essencial, o mundo inteligível.
Encontra-se aqui uma das tarefas da concepção de Belo, ou seja, uma participação nesta
dialética. A beleza visível é o caminho principal que nos conduz às Idéias, é o acesso à
organização justa, à harmonia do mundo. O Belo está ligado à medida, à relação justa, à busca
da perfeição. Tudo deve se relacionar numa correspondência harmônica. Cf.: Platão,
República, Livro VII.

na matéria, a qual apenas a revela, a põe em evidência. Por isso, não criação
do indivíduo: a obra de arte não é a criação própria do artista, mas cópia (da
natureza ou das idéias), e a inspiração não é do sujeito, mas é divina. Para Platão,
não uma inspiração subjetiva, não um Eu que se manifesta através da arte;
existe, sim, a inspiração que vem dos deuses, porque uma ordenação do
universo, uma ordem para que as coisas passem de um plano para outro. O
artista é possuído pelo entusiasmo
84
, ele é um meio para a expressão, no mundo
sensível, da ordem que está fora, no mundo inteligível.
O belo, da tradição platônica, que permaneceu presente no
classicismo francês do século XVII, foi definido durante muito tempo como uma
apresentação sensível, visível, evidente, do verdadeiro, como uma transposição,
na ordem da sensibilidade material, de uma verdade
moral ou intelectual. O que
dava valor às obras da Antigüidade era a sua capacidade de se conformarem a
uma norma, a um princípio que lhes transcendia. Para os clássicos franceses, cuja
estética se inspira no cartesianismo, essa norma é a da razão, portanto, de uma
faculdade do sujeito. Assim, o lugar da arte ficou sendo secundário ao da filosofia,
pois a apreensão do verdadeiro não poderia ser feita por meio do sensível, mas
sim por um conhecimento claro e distinto da verdade em si e para si. Desta forma,
tanto no platonismo, quanto na teologia cristã ou no cartesianismo, o mundo
inteligível sempre foi superior ao sensível. E a conseqüência correspondente, na
estética, é uma racionalização e idealização da arte, em detrimento de uma
estesia mais sensível.
No período renascentista, conforme Jimenez
85
, o artista foi
reconhecido como criador, como intelectual, assim como os poetas e os músicos.
84
Origem etimológica da palavra entusiasmo, no grego  (mania) significa mania, loucura,
delírio, entusiasmo. Cf. ISIDRO PEREIRA, S.J. Dicionário Grego-Português/ Português-Grego.
Porto: Editorial A.I., 1984.
85
JIMENEZ, Marc. Qu’est-ce que l’esthétique? Paris: Éditions Gallimard, 1997, p.31-44.

Embora os critérios de belo, de imitação e de verdade absoluta continuassem a
ser usados, a partir da Renascença entra em crise a obediência aos padrões
metafísicos e, ao mesmo tempo, processa-se uma tomada de consciência do
poder do indivíduo, de sua capacidade de libertar-se das determinações impostas
na Idade Média. O Renascimento marca uma primeira transformação no processo
de reflexão sobre a arte, momento de renovação intelectual, fundado parcialmente
sobre a imitação dos modelos da Antigüidade:
O programa artístico renascentista foi determinado pelo
restabelecimento do conceito que fundamentara a teoria da arte na
Antigüidade: o da imitação imediata da verdade. Isso significou, em
primeiro lugar, a oposição de uma concepção fenomênica de arte à
concepção metafísica medieval; em segundo lugar, a oposição ao
naturalismo, pelo reviver do conceito de superação da natureza,
mediante a seleção e correção da natureza bruta, com vistas a um
grau de beleza jamais atingido na realidade. (...) Ao evitar as
‘incorreções’ da natureza, a arte atinge a verdade correspondente
àquelas leis universais: da contemplação da natureza, da
familiarização com o sensível se extraem a purificação e o
enobrecimento, que consistem na perfeita cognição da coisa. Este é
o conceito de ‘natural’ na arte, entendida como mediadora e, ao
mesmo tempo, como verdade.
86
A imagem existente na mente do artista renascentista é obtida e
esculpida por essa experiência que ele tem da realidade, como reflete o próprio
Alberti: “Tão grande força tem o que é apanhado da natureza. Por essa razão
devemos tirar da natureza o que queremos pintar, e sempre escolher as coisas
mais belas”
87
.
A criação artística livre tinha sido desconsiderada até a Idade Média,
pois criar deveria ser privilégio apenas de Deus. Na Renascença a criação passa a
86
DOBRÁNSZKY, Enid Abreu. No tear de Palas: imaginação e gênio no século XVIII. Campinas:
Papirus, 1992, p.33.
87
ALBERTI, Leon B. Da Pintura. 2.ed. Campinas: UNICAMP, 1992, p.133.

ser considerada autônoma, mas o artista não produz a partir do nada, e sim a
partir da natureza, lapidada por um saber adquirido cientificamente. O artista é
reconhecido como intelectual, como um cientista que descobre, mas não inventa.
Ele deixa de ser artesão, pois se considera que ele utiliza outras faculdades, além
das manuais, para criar. Fala-se em indivíduo, mas não ainda em subjetividade.
Jimenez identifica, sob esta criação do indivíduo, uma relação com o poder divino:
O princípio de imitação, que se impõe à Renascença e que se vigora
até as primeiras vanguardas do século XIX, não é um ato de
servidão ao olhar de um poder transcendente (...) nem um
testemunho de pura e simples submissão do artista à natureza. O
artista é dependente da natureza para melhor glorificar aquele que a
criou, ou seja, Deus.
88
Entretanto, como reconhece Jimenez
89
, a predominância da razão e
do intelecto, atestada pela observação de regras geométricas e aritméticas de
construção e pela submissão à ciência da perspectiva, não exclui a sensibilidade
da obra renascentista. O belo é definido como conveniência, deve estar ligado à
harmonia e implica um conhecimento científico e saber racional. Retomados os
conceitos de belo (como busca da perfeição, adequação, equilíbrio, verdade) e
imitação, a obra resulta racional, pois tudo está expresso no quadro. Assim, o
artista domina a natureza.
Com a crise da metafísica, com os abalos da revoluções científica,
religiosa e mercantilista, toda a estrutura baseada na imitação começa a desabar.
Esse movimento começa no Renascimento e se estende, aumentando
sistematicamente até o século XIX. A adequação e a imitação, segundo
88
JIMENEZ, Marc. Qu’est-ce que l’esthétique? Paris: Éditions Gallimard, 1997, p.46-47.
89
JIMENEZ, Marc. Op. cit., p.48-49.

Bornheim
90
, são possíveis através do Absoluto, mas, uma vez que esse divino,
transcendente, é destituído de sua função, a dicotomia sujeito-objeto fica
desestruturada. É nesse espaço, nesse relacionamento entre sujeito e objeto que
surge a figura do crítico de arte e a necessidade do seu olhar. A crise de
comunicação instaura-se porque a arte anterior, que tinha como base a
imitação,
era comunicativa por si, dizia a verdade em sua essência, sem precisar de
intérprete. Ela veiculava os valores fundamentais da sociedade.
A idéia de ruptura passa a integrar a consciência artística e se instala
no fundamento do ato criador. A verdade da obra de arte não apresenta o
caráter de evidência imediata, pois estabeleceu-se uma distância entre a obra e a
sua compreensão. De um lado, esse distanciamento ocorre pela negação do
absoluto, de qualquer determinação exterior ou transcendente à própria obra. De
outro lado, a arte torna-se reveladora do sentido do que nos cerca.
Gerd Bornheim
91
afirma que, quando cessa a imitação platonizante e
a autonomia divina põe-se em retirada, paulatinamente, as duas novas realidades
de sujeito e objeto passam a configurar todas as tentativas de explicitação da
verdade. Desta maneira, sem a delimitação da velha imitação, restam dois
caminhos para a arte, e é assim que se desenvolvem as duas novas linhas: a
estética do objeto e a estética do sujeito. E ele identifica estas duas abordagens
nas ênfases dadas, a partir do Renascimento, ao gênero do retrato
representando o nascimento de uma subjetividade realmente dona de si
e ao
gênero da natureza morta
a pintura que desvincula a natureza dos assuntos da
90
BORNHEIM, Gerd A. “A Crítica de Arte”; IN: Páginas de Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: UAPÊ,
1998, p.127.
91
BORNHEIM, Gerd. “As Dimensões da Crítica”: IN: MARTINS, Maria Helena (org.). Rumos da
Crítica. São Paulo: SENAC/Itaú Cultural, 2000, p. 37.

realidade divina e passa a uma descompromissada representação de elementos
vegetais quaisquer
92
.
A partir daí, compreende-se o quanto o projeto de consagrar ao
estudo da sensibilidade
uma ciência autônoma, a estética, representa um
abandono
decisivo do ponto de vista clássico
93
. O nascimento da estética implica
uma tomada de posição sobre a autonomia
94
de seu objeto e exprime, assim, o
abalo que o século XVIII inaugura em todos os campos. A estética representa a
conquista da autonomia do sensível perante o inteligível e sua problemática é o
sinal do advento dos tempos modernos e da real autonomia
95
da arte. Com a
conquista da autonomia, a arte passa a ser reconhecida como atividade
intelectual; o artista profissionaliza-se e o campo artístico, para se estabelecer,
precisa de critérios e valores próprios. Embora a arte seja tema de reflexão desde
a Antigüidade clássica (século V a.C.), ela adquire seu estatuto próprio e um
campo específico de tematização com o surgimento da estética
96
.
Antes da estética, em meados do século XVII, na Europa, o conceito
de gosto era uma das questões mais debatidas, e significava a capacidade de
92
BORNHEIM, Gerd. “As Dimensões da Crítica”, op. cit., p.35-37.
93
O ponto de vista clássico aqui refere-se à arte grega e aos conceitos platônico-aristotélicos
anteriormente abordados. O classicismo derivado de uma concepção cartesiana de sujeito
também será debatido, a partir do surgimento da estética, e procurará ser superado com o
Romantismo.
94
Sobre a autonomia da arte, vide: FERRY, Luc. Homo Aestheticus – a invenção do gosto na era
democrática. São Paulo: Ensaio, 1994, introdução.
95
Os principais momentos de afirmação da autonomia da criação artística, conforme Jimenez, na
história da arte ocidental, revelam-se no Renascimento, no Romantismo, na Modernidade e no
que se chamou de Pós-modernidade. Vide: JIMENEZ, Marc. Qu’est-ce que l’esthétique? Paris:
Éditions Gallimard, 1997, p. 9-28.
96
A palavra estética tem sua origem etimológica no grego aisthesis (
 
), que se refere
ao conhecimento sensível, à possibilidade de conhecermos através dos sentidos, das
sensações (Cf. ISIDRO PEREIRA, S.J. Dicionário Grego-Português/ Português-Grego. Porto:
Editorial A.I., 1984). Como disciplina filosófica, a estética surge no século XVIII com a função de
criar um estatuto próprio da arte e garantir o seu reconhecimento como atividade autônoma e
necessária.

distinguir entre o belo e o feio, e de apreender, pelo sentimento (aisthêsis)
imediato, as regras desta distinção. O conceito de gosto antecede o aparecimento
da estética e da crítica de arte, pois a partir do gosto tornou-se possível o
reconhecimento da faculdade de conhecimento sensível, com Baumgarten
97
. Até o
surgimento da estética, acreditava-se que esta experiência da ordem dos
sentimentos e das emoções, que resulta da contemplação da arte, não estaria
ligada ao conhecimento; não poderia, pois, da mesma maneira que o intelecto,
engendrar um saber científico. Ficava-se no âmbito da mera contemplação.
Entretanto, Baumgarten
introduziu uma
modificação essencial: para ele a
experiência artística não se esgota na sensação, nem na percepção, mas
tomamos consciência do que sentimos e somos capazes de representar essa
experiência, por isso ele considera que a faculdade estética é de ordem do
conhecimento, embora seja uma faculdade de conhecimento inferior, que ele
chamou de faculdade lógica cognoscitiva inferior.
Ainda muito presa ao racionalismo, a Aesthetica de Baumgarten não
chegou a fundamentar totalmente a autonomia do sensível diante do inteligível.
Desta forma, para o classicismo fundado nesse racionalismo, um quadro ou
poema valiam, antes de tudo, pela nobreza do tema que representavam, pela
verdade que apresentavam. É isso também o que está em jogo na conquista de
uma autonomia da sensibilidade em relação ao inteligível.
97
O termo estética aparece pela primeira vez no título de uma obra filosófica de Alexander Gottlieb
Baumgarten, discípulo de Leibniz e Wolff, que redige em latim as seiscentas páginas da
Aesthetica (1750). Desde a publicação da obra de Baumgarten, o termo estética conhece um
sucesso considerável. Filósofos e artistas não hesitam em empregá-lo. Kant o utiliza em sua
obra Crítica da Faculdade do Juízo (1790); Schiller, em 1795, redige as Cartas sobre a
Educação Estética do Homem; Jean-Paul Friedrich Richter compõe um Curso Preparatório de
Estética (1804), enquanto que Hegel se prepara em conferir aos seus alunos as Lições de
Estética (1820-1829). Todavia o termo estética vai tomando, em cada um deles, uma nova
concepção. Schlegel entende por “filosofia da arte” a nova disciplina criada por Baumgarten, ou
seja, o estudo científico e filosófico da arte e do belo. Mas ele estabelece uma relação de
exclusão entre o discurso filosófico e a arte, entre o pensador e o artista: ou bem o conceito, ou
bem a obra, mas não os dois simultaneamente, e sua concepção reflete exatamente o paradoxo
essencial do pensamento estético: ou o discurso objetivo ou a expressão subjetiva.

Com a Crítica da Razão Pura (1781), de Kant, pela primeira vez na
história do pensamento, a autonomia radical do sensível com relação ao inteligível
é filosoficamente fundamentada, abrindo espaço para a Crítica da Faculdade do
Juízo (1790). A afirmação de tal autonomia é que permitirá a Kant libertar-se do
classicismo e elaborar os princípios de uma estética, na qual a beleza passa a ter
uma existência própria, deixando, enfim, de ser um simples reflexo de uma
essência que, fora dela, lhe forneceria sua autêntica significação.
Kant
98
faz algumas
distinções entre o juízo estético e o juízo lógico;
entre sentimento de prazer e de desprazer; introduz conceitos (tais como os de
imaginação, gênio, talento) e busca a objetividade do juízo de gosto
que irão ser
fundamentais na estruturação da estética e também influenciarão as teorias
formais até o final do século XIX, como a teoria da visibilidade pura. Kant, na obra
Crítica da Faculdade do Juízo, havia diferenciado os atos críticos que representam
o “distinguir” e o “valorizar” a obra, pois o juízo possui duas etapas: aquela em que
se organizam os elementos de conhecimento sobre um fenômeno, o que nos
permite distingui-lo dos demais, e aquela em que se forma a apreciação ou o juízo
de gosto, que é subjetivo, por depender de um indivíduo concreto, mas tem um
fundamento histórico (social) que atua como limitador dessa subjetividade.
A estética se definia como ciência, como filosofia da arte (por sua
origem filosófica), e tornou-se responsável por estabelecer um sistema de
conceitos, aos quais filósofos, artistas, críticos de arte e também o público dos
salões poderiam se referir. De qualquer forma, esta tomada teórica, filosófica e
científica é ambígua. A fundação da estética como disciplina autônoma significa
que o domínio da sensibilidade torna-se objeto de reflexão. A intuição, a
imaginação e a paixão tornam-se faculdades cognitivas, ou seja, são reconhecidas
em sua capacidade de dar acesso ao conhecimento. Esta reabilitação da
98
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 45-200.

sensibilidade não ocorre de uma só vez, pois esse processo de autonomia estética
vinha ocorrendo, sistematicamente, desde o Renascimento, numa busca de
harmonizar a sensibilidade com a razão, de conciliar os dualismos do homem.
A estética tornou-se a ciência do objeto que se manifesta sob o
modo sensível e é apreendido pela sensibilidade. Além disso, a estética acaba
transformando-se na forma de constituição do sujeito do conhecimento.
O aparecimento da estética, como teoria da sensibilidade, contribuiu
para que ocorressem algumas mudanças no pensamento e na cultura modernos,
como cita Luc Ferry
99
: a autonomia do sensível com relação ao inteligível,
rompendo com a verdade metafísica; o surgimento da crítica, que vai repensar a
tradição e tornar possível a fundamentação de uma história da arte, numa nova
abordagem da originalidade do artista; e a crítica aparece como elo de
comunicação entre a obra e o espectador, redimensionando a questão dos
critérios do belo, e contrapondo a experiência individual ao senso comum.
A concepção de que o artista deve buscar a harmonia, a ordem, não
desaparece na estética moderna do século XVIII. O que muda, e significa uma
ruptura com a Antigüidade, é que essa harmonia não é mais pensada como
reflexo de uma ordem exterior, transcendente ao homem: não é mais por participar
de uma idéia de belo que o objeto agrada, mas por proporcionar um certo tipo de
prazer que se chama belo. O principal problema da estética moderna, do século
XVIII até o fim do século XIX, é o de conciliar a experiência subjetiva do belo com
a exigência de critérios, ou seja, de uma relação objetiva com o mundo, e este
problema reflete-se na crítica.
99
FERRY, Luc. Homo Aestheticus a invenção do gosto na era democrática. São Paulo: Ensaio,
1994, p.38.

Uma das temáticas centrais da estética passa a ser: os critérios que
permitem afirmar ou não que uma coisa é bela. Porém, seria possível formular
uma resposta objetiva, considerando que a fundamentação do belo se realize na
subjetividade do gosto? Mas, por outro lado, como renunciar à objetividade,
quando o belo, como qualquer outro valor moderno, pretende poder dirigir-se a
todos? Se o objeto belo é considerado como subjetivo, como seria possível obter
consenso sobre a beleza de uma obra de arte?
A investigação sobre os critérios do gosto, que caracterizou toda a
estética moderna, mostra-se essencial, pois é neste âmbito que se coloca o
problema da modernidade em geral: como fundamentar a objetividade na
subjetividade, a transcendência na imanência?
Justamente é essa a principal problemática das primeiras estéticas,
que as diferencia do período pré-estético e do período que as sucede o
contemporâneo. A estética moderna é subjetivista,
pois fundamenta o belo nas
faculdades humanas, na razão, no sentimento ou na imaginação, embora ainda
permaneça vinculada à idéia de que a obra de arte é inseparável, de certa forma,
de objetividade.
Como na arte se concebe que deva haver a possibilidade da
experiência livre de determinações, à medida que atribuímos uma posição a um
crítico estamos, de fato, tolhendo-lhe a liberdade. Conforme Greenberg, nem o
próprio crítico pode se predeterminar, pois no “caráter involuntário do juízo estético
reside uma liberdade preciosa: a liberdade de ser surpreendido, dominado, de ter
suas expectativas contrariadas, a liberdade de ser inconseqüente”
100
. A liberdade,
segundo ele, deveria consistir nesta abertura, na impossibilidade de prevermos as
nossas próprias reações.
100
GREENBERG, Clement. “Queixas de um Crítico de Arte”; IN: FERREIRA, G. & MELLO, C.
(orgs.) Clemente Greenberg e o Debate Crítico. Rio de Janeiro: FUNARTE/Zahar, 1997, p. 118.

Este processo paradoxal está presente na estética desde o
pensamento do próprio Kant, responsável pela distinção entre o juízo lógico, ou de
conhecimento, e o juízo estético, sendo este último subjetivo:
O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por
conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo
cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo.
101
Portanto, o que é subjetivo na representação de um objeto, ou seja,
o que configura a relação do juízo com o objeto, segundo Kant, é a sua
constituição estética. O julgamento, nesta teoria, mesmo que se refira à
experiência dos sentidos, não é responsável por nenhum tipo de conhecimento do
objeto, por isso não é objetivo. Porém, a referência das representações, mesmo
das sensações, pode, segundo Kant, ser objetiva. O que não pode nunca ser
objetiva é a referência ao sentimento de prazer e desprazer, “pelo qual não é
designado absolutamente nada no objeto, mas no qual o sujeito sente-se a si
próprio do modo como ele é afetado pela sensação”
102
.
Toda questão está, então, na forma como se constitui este
julgamento para diferenciar-se de um juízo de conhecimento. E esta, segundo
Lauxerois
103
, é uma grande aporia em Kant, mas é a obra de arte que deve
remeter a estética à reflexão. E será nos vestígios da teoria de Kant que se farão
possíveis tanto um encaminhamento para uma análise objetiva das formas
artísticas, quanto a abordagem da experiência estética fundada no olhar subjetivo
e na expressão da subjetividade singular.
101
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 48
(grifos do texto original).
102
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 48.
103
LAUXEROIS, Jean. “Le Temps de la Plasticité”; IN: Pratiques (Revue de Réflexions sur l’art), 1,
Paris: ERBA, avril 1996, p.123-138.

Por este viés, a estética moderna vai abrir espaço à estética
contemporânea: deixa de existir um mundo unívoco evidente, e passa a se
manifestar uma pluralidade de mundos particulares, de cada artista; não existe
mais uma arte, e sim uma diversidade quase infinita de estilos individuais. A partir
do século XIX, passam a coexistir as resistências, as lembranças, a nostalgia dos
movimentos tradicionais com o inédito, a novidade e o choque das invenções
sucessivas dos artistas modernos e vanguardistas.
Considerando, pois, esta duplicidade própria aos critérios de
julgamento da crítica, é que serão examinadas, a seguir, as teorias formalistas da
arte e as estéticas subjetivistas, de fundo intuicionista, e de que maneira Ângelo
Guido absorve e resolve este dualismo em sua pensamento crítico.
A partir do que foi apresentado nesta fundamentação das origens e
relações entre a estética e a crítica de arte, podemos analisar como se organizou
o pensamento de Ângelo Guido e de que forma ele pôs em prática a sua crítica.

1.2 A natureza subjetiva do discurso crítico
Neste item consideraremos o aspecto da relação subjetiva que o
fruidor, como crítico de arte, precisa ter em relação a obra nas considerações de
críticos responsáveis pela configuração da crítica enquanto tal: Diderot e
Baudelaire.
O termo
crítica de arte, desde sua origem, sempre esteve envolvido
com uma variedade de conceitos e muitos paradoxos. Geralmente, concebe-se a
crítica de arte ou como discurso valorizador da obra ou como um discurso
descritivo. Além disso, existe a constante problemática a propósito da natureza
desse discurso crítico, se deve ser ele de base objetiva ou subjetiva, e,
dependendo desta, questiona-se a respeito da pertinência dos métodos e critérios
na crítica de arte.

A crítica de arte, em geral, está vinculada à concepção de arte de
uma época, ou seja, ao que se valoriza como arte em cada cultura, o valor
estético
104
. Como afirma Poli:
A crítica de arte, em sentido estrito, é o processo que conduz à
formulação dos juízos de valor nas obras de arte. A crítica de arte,
que é um aspecto da crítica estética, se distingue desta por sua
missão de julgar obras individuais ou grupos de obras, enquanto que
a estética consiste em estudar os problemas da arte sob um ponto
de vista geral ou teórico. A crítica, ainda, se distingue da filosofia da
arte, pois esta tem a finalidade de interpretar, e não valorar
qualitativamente as obras.
105
A crítica exerce sua tarefa trabalhando com valores estéticos, muito
embora estes não sejam imutáveis nem, necessariamente, definidos a priori. Os
valores existem, e se eles são subjetivos ou objetivos, convencionais ou livres de
determinações, esta é a grande problemática que envolve a crítica e a torna, de
antemão, impossível de ser objetivamente estabelecida. Por isso, uma das
temáticas da crítica é distinguir se esta é objetiva, contando com uma convenção
geral ou critérios universais, ou se ela deve ser subjetiva, partindo de critérios
individuais.
104
Entende-se aqui “valor” como o que estabelece o que deve ser objeto de preferência ou de
escolha, como o que é importante, relevante. Em geral, os valores são definidos em função de
um padrão ou convenção social. Em cada cultura, a maneira como os homens se organizam
social, econômica, religiosa e politicamente, depende de sua concepção de mundo, de sujeito, e
de como eles se relacionam entre si. A partir destas noções, estabelecem-se os valores de uma
sociedade e se criam maneiras de garantir a existência e a vivência destes. Na arte existem
valores que se referem a este campo de expressão humana. É claro que os valores se
modificam sempre conforme a cultura e a época, porque também se modificam as noções de
ser humano e de seu contexto histórico e de mundo. A estética, como campo que reflete sobre
as questões pertinentes à arte, engloba um conjunto de valores
de um determinado grupo. A
estética, portanto, está ligada a uma forma de olhar o mundo, aos valores de uma cultura. Essa
visão de mundo é, ao mesmo tempo, interior, enquanto é própria ao sujeito, e exterior, à medida
que o sujeito se insere num contexto social.
105
POLI, Francesco. Producción Artística y Mercado. Barcelona: Gustavo Gili, 1976, p.69.

O teórico Omar Calabrese
106
, por exemplo, acredita que um bom
crítico necessita de experiência individual. Para ele, a crítica de arte está formada
por um conjunto de discursos sobre arte, dos quais uma parte segue uma “ciência”
da análise
parte da história que tem a tarefa de reconhecimento, datação,
descrição do tema da obra e sua atribuição
, segundo a qual se descrevem esses
discursos, enquanto a outra é uma via intermediária entre a objetividade
(valorização que parte de um cânone ideal) e a subjetividade (a experiência
cultural, a experiência do gosto, do intérprete da obra).
A importância dada à subjetividade do crítico foi mencionada e
valorizada por Diderot
107
que defendia uma crítica subjetiva, que analisasse
com as “entranhas”
108
, e não apenas com a técnica
; também por Baudelaire
109
,
que afirmou, em Curiosidades Estéticas
110
na introdução à crítica que fez do
Salão de 1846
, que a crítica de arte, para ser justa, ou seja, fundamentada,
106
CALABRESE. Omar. Cómo se Lee Una Obra de Arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 1993.
107
O francês Denis Diderot (1713-1784) é considerado como quem estreou o ofício de crítico,
sendo um dos primeiros a exercer a atividade de guia à interpretação e valorização das obras
de arte, na crítica que fez dos Salões, a partir de 1759. O fato de assistir a um Salão de pintura
e dizer o que nele se é uma atitude nova e revolucionária. Diderot foi um dos expoentes
neste gênero, e sua atividade inaugurou a era do diálogo, não com o artista mas com a obra
de arte. A crítica ideológica (referente à religião e à moral) está presente em seus escritos,
assim como, também, a crítica subjetiva. Também na estética inglesa do século XVIII, a ênfase
à sensibilidade e ao sentimento é dada por Shaftesbury, Locke, Hobbes e Hume.
108
“Mas o que significam todos esses princípios, se o gosto é uma questão de capricho e se não há
nenhuma regra eterna, imutável do belo? (...) Afastai-vos, Sofista! Jamais convencereis meu
coração de que não deve fremir, minhas entranhas de que não devem comover-se.” (Cf.
DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a Pintura. São Paulo: Papirus/Ed. UNICAMP, 1993, p.143).
Conforme Marc Jimenez, Diderot prescinde dos critérios de julgamento, pois ele é intuitivo, ou
seja, julga com o entusiasmo, com a ira, com as “entranhas” (Cf. JIMENEZ, Marc. Textos do
Curso de Extensão: “História Crítica da Estética”, Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, Pós-
Graduação em Artes Visuais, de 04 a 08.05.1998).
109
Charles Baudelaire (1821-1867) escreveu para muitos Salões, de 1845 a 1859. Nesses textos
se mostra eclético e, apesar de seu gosto pessoal ser romântico, procura dar opiniões justas e
matizadas sobre as obras que analisa.
110
Quant à la critique proprement dite, j’espère que les philosophes comprendront ce que je vais
dire: pour être juste, c’est-à-dire pour avoir raison d’être, la critique doit être partiale, passionée,
politique, c’est-à-dire faite à un point de vue exclusif, mais ai point de vue qui ouvre le plus
d’horizons”. BAUDELAIRE, Charles. Curiosités Esthétiques; IN: Oeuvres Complètes, Paris:
Gallimard, 1951, p.600.

deveria ser “parcial, apaixonada e política”, ou seja, ter um ponto de partida
específico, exclusivo, uma tomada de posição única, mas de forma que ampliasse
os horizontes.
Diderot assimilou o caráter ambíguo da estética e percebeu o círculo
vicioso que remete do sujeito à obra, e vice-versa, constantemente, devido à
multiplicidade dos objetos e à possibilidade, também múltipla, da percepção
sensível do sujeito. O próprio discurso estético se transforma, ou seja, é passível
de tomar novas formas de acordo com o olhar do sujeito.
O sujeito sensível é, pois, diverso; mas esta diversidade é também a
pedra de toque do juízo estético, como pensa Jean Lauxerois
111
. Ela ganha a
autenticidade da emoção suscitada e assegura a qualidade do julgamento. A
emoção estética precisa ser sempre plural e renovada para que o julgamento
encontre a sua modalidade crítica e o sujeito se apodere de si mesmo. Assim,
quando é tocada, a sensibilidade se experimenta na medida da multiplicidade de
seus sentidos. Mas à medida que o sujeito está inserido num tempo
compreendido este como passagem, como sucessão de instantes –, apresenta-se
a questão de como é possível uma unicidade no julgamento deste sujeito. É aí que
aparece a forma superlativa da emoção estética que é, para Diderot, a paixão,
compreendida como entusiasmo moral.
Diderot
trata, em sua crítica, de uma categoria essencial da
modernidade: deve-se julgar em termos de atualidade, isto é, somente se critica o
que se apresenta no presente, o que se exibe publicamente hoje, logo, o que
ainda não tem um reconhecimento. A crítica de arte, do que era periodicamente
exposto num Salão, pressupunha aceitar a natureza relativa dos juízos inspirados
111
LAUXEROIS, Jean. “Le Temps de la Plasticité”; IN: Pratiques (Revue de Réflexions sur l’art), 1,
Paris: ERBA, avril 1996, p.123-138.

ao recorrê-lo, tanto pela seqüência temporal dos Salões quanto pela forma como
estes organizavam e apresentavam os quadros para a contemplação pública
112
.
Diderot praticava um discurso crítico que julgava as novidades
artísticas apresentadas como acontecimento público. Além disso, a apelação à
atualidade, que consumava o processo de historização da arte
cuja evolução
deixava de ser vista como um desenvolvimento cíclico, em favor de uma
concepção linear de progresso indefinido, de avanço constante
, não respondia
exclusivamente a causas funcionais, como, por exemplo, a periodicidade das
exibições e sua peculiar forma de apresentação pública, nem sequer ao fato da
noção de democratização da cultura, mas, efetivamente, à definitiva entronização
da história
como a mais importante e polêmica das ciências humanas.
Jimenez considera que Diderot nunca ignorou que a crítica é,
necessariamente, subjetiva, mas que ela pretende uma universalidade relativa. O
paradoxo é apenas aparente: “a universalidade visada é relativa, pois a pretensão
não é exigência aqui. Diderot deixa a cada um o cuidado de formular um juízo
diferente do seu e de aventurar a criticar-se a si mesmo como crítico”
113
.
112
Diderot refere-se às coordenadas temporais que contextualizam o julgado e afirma que fala ao
acaso, desordenadamente, não por vontade sua, mas porque o que se exibe no Salão o
permite outra coisa, dado: o número abundante de quadros dependurados; a arbitrariedade de
procedência [condição, tamanho, gênero] e a localização nas paredes, pois o costume
tradicional neste tipo de exposições públicas até o século XX consistia no amontoamento das
obras, umas em cima ou ao lado das outras, sem nenhuma ordem lógica ou estética. Desta
maneira, explica-se por que o visitante do Salão estava envolvido num emaranhado de
solicitações visuais, absolutamente mediatizadas por fatores incontrolados de pura casualidade.
Cf. SERRALER, F.C., “La Crítica de Arte”; IN: ARROYO, Eduardo. Los Espectaculos del Arte
instituiciones y funciones del arte contemporáneo. Barcelona: Tusquets, 1993, p.33-35. Neste
texto Serraler refere-se à obra de Diderot: “Salon de 1765”; IN: Oeuvres Esthétiques. Paris:
Vernière, 1968.
113
“L’universalité visée est relative car la préténtion ici n’est pas exigence. Diderot laisse à chacun
le soin de formuler un jugement différent du sien et, d’aventure, de le critiquer lui-même en tant
que critique”. Cf. JIMENEZ, Marc. Crise de l’Art ou Consensus Culturel? Paris: Klincksieck,
1995, p.57.

Os critérios de Diderot são pessoais e ultrapassam o nível
puramente descritivo. Para ele, o julgamento e a avaliação estão além do objeto e
devem determinar as condições da experiência estética:
A crítica não é mais poesia, ela se escreve em prosa, com ajuda de
termos que não devem nada ainda à abstração filosófica mas que
‘conceitualizam’ de forma mais justa a impressão do crítico e
pretendem, eles mesmos, fazer obra (literária). Uma crítica, para ser
considerada e avaliada, levada a sério, e, eventualmente, tornar-se
objeto de crítica, deve apresentar ao público o caráter de uma obra
de arte.
114
Quase um século depois, Baudelaire insiste, de forma mais radical,
no mesmo modelo de fazer crítica de Diderot. Todavia, para Baudelaire, o mero
entregar-se aos sentimentos não é suficiente, ele precisa de uma estética. Ele
muda a ênfase da sensação para a consciência de como a sensação se
transforma em arte.
Baudelaire tem a necessidade de traduzir a voluptuosidade em
conhecimento; entretanto, ele reconhece que não é possível criar um sistema
único para julgar o que foi produzido. Um sistema, embora seja cômodo, ele faz
com que seja necessário sempre criar um outro novo para que não se paralise. E
sempre um produto espontâneo e inesperado tornaria, segundo ele, qualquer
ciência uma utopia. Por mais que se substitua ou estenda um critério, ele sempre
estará atrasado em relação ao homem universal e à versatilidade da arte. Assim,
114
“La critique n’est plus poésie, elle s’écrit en prose, à l’aide de termes qui ne doivent rien encore à
l’abstraction philosophique mais qui ‘conceptualisent’ au plus juste l’impression du critique et
prétendent eux-même faire oeuvre (littéraire). Une critique, pour être considérée et estimée,
prise au sérieux, et évetuellement devenir objet de critique, se doit de présenter au public le
caractère d’une oeuvre d’art.” Cf. JIMENEZ, Marc. Crise de l’Art ou Consensus Culturel? Paris:
Klincksieck, 1995, p.57.

Baudelaire contentou-se em, modestamente, sentir o novo, e nessa sensibilidade
ele encontrou a imparcialidade necessária para julgar as obras
115
.
Baudelaire comenta que se todos os responsáveis pela crítica, pelo
julgamento, seguissem um único modelo, um cânone, o belo desapareceria da
terra, pois todas as sensações e as idéias se confundiriam numa vasta unidade
monótona e impessoal. Segundo ele, a variedade é imprescindível à vida. E, na
arte, sempre algo de novo que escapa às regras e à análise
116
. A beleza, para
Baudelaire, contém algo de eterno e algo de transitório, algo de absoluto e algo de
específico. E este elemento específico, particular de cada beleza, provém das
paixões
117
. Aquilo que faz uma obra ser especial, aquele algo a mais que contém
a arte, não pode ser governado, melhorado, redimensionado por regras científicas
sem incorrer no perigo de condenar à morte a arte mesma. O bizarro, esse
tempero da arte que faz a diferença, é o que constitui a individualidade, sem a
qual não há o belo
118
.
Essa individualidade, valorizada por Baudelaire, foi também o ponto
de partida para os românticos, artistas e filósofos, desenvolverem a concepção de
um sujeito que necessita manifestar sua interioridade, seu espírito, sua
subjetividade. A respeito das teorias românticas e voltadas para a valorização da
intuição trataremos mais adiante.
115
BAUDELAIRE, Charles. Curiosités Esthétiques; IN: Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1951,
p.682.
116
Id. Ibid., p.683.
117
“Toutes les beautés contiennent, comme tous les phénomènnes possibles, quelque chose
d’éternel et quelque chose de transitoire, - d’absolu et de particulier. La beauté absolue et
éternelle n’existe pas, ou plutôt elle n’est qu’une abstration écrémée à la surface générale des
beautés diverses. L’élément particulier de chaque beauté vient des passions, et comme nous
avons nos passions particulières, nous avons notre beauté”. BAUDELAIRE, C. Curiosités
Esthétiques; IN: Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1951, p.669.
118
Id. Ibid., p.684.

1.3 O legado da crítica de kant e as teorias formalistas de
abordagem da obra de arte

Neste item desenvolveremos a relação da teoria de Kant com o
surgimento das teorias formalistas da arte, principalmente nos textos de Wölfflin,
Riegl e Worringer, cujas noções foram tratadas por Ângelo Guido na sua
reformulação dos conceitos referentes à história da arte.
Damián Bayón
119
considera que a crítica moderna apresentou duas
vertentes principais, que se desenvolveram na França e na Alemanha,
respectivamente. A vertente francesa parece tender mais para o aspecto subjetivo,
da atividade do sujeito que experiencia a arte, enquanto que a vertente alemã
volta-se, em geral, mais para a possibilidade de tornar objetiva a vivência estética
e seu julgamento.
Nas principais tendências francesas, destacam-se: a crítica
descritiva; a crítica ideológica, dirigida aos aspectos político e social; a crítica
histórica e a crítica filosófica. Contudo, a que permeia toda a época e está
vinculada à descrição “sentimental” da obra julgada é a crítica subjetiva. Seus
cultores no século XIX foram Delacroix, Baudelaire, Fromentin e os Goncourt.
Os pensadores alemães, por sua vez, continuando a orientação de
Goethe (1749-1832) e de Kant (1724-1804), criaram um sistema que passou ao
domínio da cultura geral. A partir de Kant, todo dogma artístico baseado no
respeito absoluto de um estilo parece algo superado. É com ele que se torna
possível a distinção entre uma estética subjetiva e uma estética objetiva. Para a
estética subjetiva kantiana, o que qualifica uma obra de arte, o belo, está no
homem, é o subjetivo. É o sujeito que empresta aos objetos o belo. E como a
natureza humana é mais ou menos homogênea em todos os homens, esses
podem sentir igualmente a beleza quando a imaginação se harmoniza com o
entendimento. O objeto que provoca tal estado, então, pode ser denominado belo.
119
Cf. BAYÓN, Damián. Qué es la Crítica de Arte. Buenos Aires: Editorial Columbia, 1970.

É à forma do objeto que nosso juízo se refere, porque ela suscita em nós o jogo
harmônico do entendimento e da imaginação.
Na teoria de Kant, a intuição é o modo de recepção e de
apresentação (pôr em presença) do objeto, que se manifesta à experiência do
sujeito finito e pode dar lugar a um conhecimento verdadeiro e a um julgamento.
Neste caso, não deve ser a simpatia a responsável pelo julgamento: “não se tem
que simpatizar minimamente com a existência da coisa, mas ser a esse respeito
completamente indiferente para, em matéria de gosto, desempenhar o papel de
juiz.
120
A liberdade dos princípios estéticos kantianos abriu os caminhos e
várias tendências daí vão partir, tanto as teorias idealistas, que desenvolvem a
noção de uma subjetividade autoconsciente que procura atingir o inefável, o
absoluto; quanto às teorias formalistas que seguem o caminho da análise isolada
da forma. A primeira tendência revela-se no pensamento romântico alemão e
origem a uma estética subjetiva. Friedrich Schelling
121
(1775-1854), por exemplo,
que vai desenvolver o aspecto estético, assim como Johann Fichte (1762-1814)
insistiu no aspecto da vontade e Hegel (1770-1831), na força do racionalismo.
Depois de Kant, a estética subjetiva permaneceu, até o século XX, concebendo o
belo como uma vivência do sujeito. A respeito desta tendência da estética
subjetiva trataremos no item 1.4 desta tese.
A estética objetiva, por sua vez, a segunda tendência decorrente das
idéias kantianas, procurou o belo no objeto. Ela manifestou-se tanto no
desenvolvimento de uma estética formal como no de uma estética material. A
120
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p.50.
121
Suas idéias sobre natureza e arte, ciência e arte ficaram expressas em seu discurso Sobre a
Relação das Artes Figurativas e a Natureza” (1807).

estética formal foi esboçada, inicialmente, por Herbart e Zimmermann
122
, e
estabeleceu idéias e conceitos gerais que são belos. E a estética material
defendia a realização, no real, de uma idéia ou essência do belo.
Numerosos pensadores e historiadores, preocupados com artes
visuais, lançaram-se à tarefa de pensar a forma em termos de “formação”,
segundo Didi-Huberman
123
. E não foi por acaso que um bom número dessas
tentativas surgiu no âmbito do grande movimento de pensamento vienense e
alemão que, dos românticos a Warburg e a Benjamin, não temia interrogar as
formas da arte e sua história num diálogo permanente com a interrogação
filosófica mais fundamental. A partir desta concepção de forma torna-se possível
fundamentar, na atividade artística, a crítica à imitação e substituí-la pelo ato de
formação.
O formalismo
124
foi, então, um campo do pensamento alemão que
exerceu influências até os nossos dias, acabando por definir uma tendência mais
objetiva para a crítica. Tudo parece partir de Johann Herbart (1776-1841), que,
seguindo as idéias de Kant, quis estudar a forma (sendo precursor da
visualidade pura de Fiedler). Veloso
125
afirma que Kant havia definido, na Crítica
da Faculdade do Juíz”, a forma como limite:
122
Herbart e Zimmermann tentaram elaborar uma estética científica a partir de uma concepção
psicologista do pensamento kantiano. Cf. CARRENÕ, Francisca Pérez
.
“El Formalismo y el
desarrollo de la historia del arte”; IN: BOZAL, V. Historia de las ideas estéticas y de las teorías
artísticas contemporáneas, vol 2, p.190.
123
Cf. DIDI-HUBERMAN, G. O que Vemos, o que nos Olha. São Paulo: Ed. 34, 1998, p.209.
124
Conforme Mireia, o formalismo parte do princípio da ‘arte pela arte’, as obras de arte são
consideradas como formas com um conteúdo significativo próprio, que devem nos levar a fixar
algumas ‘constantes’, escolas, nações ou etnias. FREIXA, Mireia (org.) Las Vanguardias del
siglo XIX. Barcelona: Gustavo Gili, 1982, p.24.
125
VELOSO, Marco. “A Arte como Forma”; IN: CERÓN, Ileana e REIS, Paulo (orgs.). Kant: crítica e
estética na modernidade. São Paulo: SENAC,1999, p.209-227.

A forma nada mais é do que a unidade que numa representação
unifica-se por si mesma numa multiplicidade qualquer apresentada
no juízo. No entanto, essa unidade não pode ser vista como um
conceito. A forma se num livre jogo que se passa entre duas
faculdades do conhecimento, a imaginação (da apresentação) e o
entendimento, sem que se constitua em sensação ou conceito. A
forma tem, então, uma consistência específica que a faz possuir
como atributo analítico sua pureza subjetiva.
126
Ao estabelecer o conceito de “esquematização sem conceito”,
Herbart defende a idéia de que na arte se pode conhecer formas. Para ele, o
belo é a forma em seu aspecto mais concreto, mas também com um conteúdo
significativo de pensamento ou vontade. Ele deixou dois princípios fundamentais:
o de fazer abstração do sentimento e o de fazer abstração dos diferentes tipos de
arte (pintura, escultura, etc.). O primeiro iria levar à visualidade pura e o segundo
serviu de contraponto às teorias generalizantes. Por sua vez, Robert Zimmermann
(1824-1898), discípulo de Herbart, propunha classificar as artes em dois tipos:
aquelas cuja representação é material e as que dependem da percepção visual.
Assim, as obras plásticas só poderiam ser julgadas por sua forma.
A teoria da visualidade pura
127
, a seu turno, foi expressa como uma
doutrina por Konrad Fiedler (1841-1895)
128
, partindo da distinção Kantiana entre
126
Id. Ibid., p.210.
127
A expressão “pura visualidade” (reine Sichtbarkeit) surgiu em 1875 para designar o programa do
formalismo figurativo enunciado por Konrad Fiedler, em diálogo com Adolf von Hildebrand e
Hans von Marées. Suas teorias, livremente interpretadas e aplicadas à história da arte por Aloïs
Riegl e Heinrich Wölfflin, difundiram-se também fora do âmbito germânico; refratadas ao mudar
de meio e misturadas com outras correntes, criaram uma tradição eclética na historiografia e na
crítica de arte. Cf. SOLANA, Guillermo. “Teorías de la ‘Pura Visualidad’”; IN: BOZAL, V. Historia
de las ideas estéticas y de las teorías artísticas contemporáneas, Vol. 2, Madrid: Visor, 1996,
p.208. O visualismo, como desenvolvimento do formalismo nas artes plásticas teve vigência na
obra dos teóricos e artistas pós-impressionistas Roger Fry e Clive Bell, na Inglaterra, o
historiador Lionello Venturi e o filósofo Benedetto Croce, na Itália. Porém, o fato que melhor
demonstra a influência contemporânea do Formalismo é que este contribuiu fundamentalmente
no desenvolvimento da história da arte, tal como hoje a conhecemos e que seus princípios
foram assumidos pela quase totalidade da crítica, com maior ou menor intensidade. Cf.
CARRENÕ, Francisca Pérez
.
“El Formalismo y el desarrollo de la historia del arte”; IN: BOZAL,
V. Historia de las ideas estéticas y de las teorías artísticas contemporáneas, vol 2, p.191.
128
Konrad Fiedler é o autor cuja obra inaugura a tradição formalista na teoria e na história da arte,
partindo das idéias de Herbart e Zimmermann. Praticamente contemporânea a sua é a obra de

percepção subjetiva, produzida por um sentimento de prazer ou de dor, e a
percepção objetiva que é a representação de uma coisa. O domínio da arte seria,
assim, o da percepção objetiva. E a história da arte
129
, um conhecimento concreto
da forma, e não a representação imaginária da arte como encarnação do “espírito
dos povos”, o Volksgeist hegeliano. O artista conhece a realidade por meio da
visão (pura visualidade), e a história da arte passa a ser a história desse
conhecimento do real, captado pela atividade artística.
A linha da visualidade considera a arte como um fato do
conhecimento, ou seja, na arte o sujeito toma consciência da confusão das coisas
visíveis e atribui-lhe uma forma: “a atividade formativa encontra, na obra de arte, a
sua conclusão exterior, o conteúdo da obra de arte não é senão o seu próprio
formar-se”
130
. A realidade não existe de modo independente desse ato formativo
de nossa consciência cognitiva.
Por conseguinte, a arte não elabora formas preexistentes à sua
atividade e independentes dela: o princípio e o fim da sua atividade é
a criação de formas que apenas por seu intermédio vêm a existir.
131
Fiedler propôs estudar a pintura, escultura e arquitetura pelos seus
aspectos meramente visuais, independentemente da temática que
Heinrich Wölfflin e de Aloïs Riegl que serve de nexo entre Fiedler, Hildebrand, Marées e autores
contemporâneos como Ernst Gombrich. Cf. CARRENÕ, F. P.
“El Formalismo y el desarrollo de
la historia del arte”; op. cit., p.190.
129
Conforme Argan, a teoria de Fiedler apresenta a arte como pura forma, a forma conhecimento:
o conhecimento é verdade, e, posto que a verdade é e não se torna, da verdade não se faz
história. O modo justo de ocupar-se da arte, portanto, pareceria ser a ciência e não a história.
ARGAN, G.C. Crítica de Arte. Buenos Aires: Rosenberg-Rita, 1984, p.77.
130
FIEDLER, K. “Del giudizio sulle opere d’arte figurative”; IN: SALVINI, R. La critica d’arte
moderna. Florença: L’Arco Firenze, 1949, p.62.
131
FIEDLER, K. “Del giudizio sulle opere d’arte figurative”, op. cit., p.56.

representassem. Ele apresenta, também, um caminho para a crítica moderna,
quando faz notar que a história não pode ser interpretada de acordo com um
padrão filológico e que, por outro lado, as obras não se geram umas das outras
passivamente, mas são o resultado da irrupção das distintas personalidades dos
artistas.
Ainda, seguindo a linha da aplicação da visualidade pura, temos dois
representantes: Aloïs Riegl (1858-1905) e Heinrich Wölfflin (1864-1945). Tanto
Riegl como Wölfflin, criadores da escola de Viena, desenvolveram a estética
formalista dotando-lhe de um sentido histórico fundamental. Pode-se dizer que
com eles a história da arte consegue definir seu papel, dentro das ciências sociais,
com critérios e métodos próprios. Riegl, aluno de Zimmermann, abordou as leis
formais por meio da dinamicidade de elementos táteis e de elementos óticos na
obra, e empenhou-se em demonstrar que o período romano e o barroco de Roma
não eram apenas cópias da arte grega e da arte renascentista, respectivamente.
Embora não tenha conhecido a obra de Fiedler, Riegl compartilha
com ele o neokantismo e a recusa do positivismo da historiografia de Taine e do
historicismo em geral, e concebe a história da arte como universal, posto que seus
princípios o são. Para Riegl, o princípio que engendra o processo da arte não é
uma mera readaptação de um repertório, mas sim uma “vontade de arte” ou
“vontade de forma” (Kunstwollen), que ele opõe a um “poder de arte”, ou seja, a
mera capacidade técnica de imitar a natureza. É, portanto, a evolução desta
vontade a causa das mudanças nos estilos, nos movimentos ou nas épocas
artísticas. O princípio da arte é sempre o mesmo: uma vontade artística que se
expressa de distintos modos. Nem a invenção de novos temas, a utilização de
novos motivos ou o descobrimento de novas técnicas explicam a evolução
artística
132
. A evolução mostra uma necessidade interna formal em cada um dos
132
Cf. CARRENÕ, F. P.
“El Formalismo y el desarrollo de la historia del arte”; op. cit., p.196.

estilos e, por sua vez, cada um deles exibe um modo diferente de perceber e
sentir a forma.
A noção de Kunstwollen tornou-se fundamental para a concepção
moderna de arte, pois justifica que, por detrás dos estilos, estaria uma torrente
profunda que os informa: é a atitude volitiva que se traduz no “fazer plástico”. A
arte
concebida como uma construção deliberada, a partir de uma predisposição
que canaliza, de maneira concreta, as intuições
, seria uma forma de superação
da idéia, defendida pelos românticos, de uma inspiração que visitava a certos
“escolhidos”.
Essa Kunstwollen é estudada por Riegl por meio da aplicação de
uma análise na qual não intervém o juízo de valor. A coerência estabelece-se no
interior da “personalidade do artista” que pode ou o encontrar a forma perfeita.
Não se trata de copiar nem de referir-se a um cânone abstrato e exterior. Como
um ato de vontade, a obra compromete ao que a exerce: o artista.
Otto Pächt
133
, por exemplo, interpreta essa Kunstwollen como um
querer artístico que não é um querer consciente ou uma vontade, mas um dever,
um querer imposto:
No sistema de Riegl, o grande artista tem seu lugar na evolução
como o executante supremo de um Kunstwollen que ele compartilha
com aqueles de sua escola ou de seu país.
134
133
PÄCHT, Otto. Questions de Métode en Histoire de L’Art. Paris: Macula, 1994.
134
“Dans le système de Riegl, le grand artiste a sa place dans l’évolution comme l’exécutant
suprême d’un Kunstwollen qu’il partage avec celui de son école ou de son pays”. Cf. PÄCHT,
Otto, texto de apresentação à obra: RIEGL, Aloïs. Grammaire Historique des Arts Plastiques
(volonté artistique et vision du monde). Paris: Klincksieck, 1978, p.XXIII.

Conforme Pächt, Riegl contribuiu decisivamente com sua teoria para
superar a estética normativa, pois sua proposta abriu o caminho à idéia de que a
sucessão perpétua dos estilos deve, no fundo, interpretar-se como a substituição
dos critérios de valor em vigor, num dado momento, por outros critérios, sempre
novos. As mudanças de estilos seriam, na verdade, mudanças nas idéias
estéticas, e a noção de ideal implica que o realizar em si da obra fique em
segundo plano. Neste sentido, o “querer artístico” de Riegl deve exprimir um
esforço estético positivo. Desta forma, a pesquisa das vias pelas quais os critérios
de valor mudam na história tornou-se a condição sine qua non da compreensão
das criações artísticas
135
.
Todavia, Riegl não trabalha com critérios puramente formais. Cada
maneira de ver específica acompanha-se indissociavelmente, para ele, de uma
atitude espiritual, de uma interpretação do mundo. Elas formam juntas a unidade
caracterológica, cuja criação artística individual que nos interessa é a expressão
fisionômica. Riegl tentou compreender os fenômenos artísticos a partir de sua
força mais íntima, de sua fonte de vida: essa força motora, ele denominou “querer
artístico”.
Riegl, segundo Pächt, não acreditava numa perfeita autonomia da
evolução artística. Ele concebia a história da arte como uma história da expressão.
E, na visão de história defendida por ele, o artista de gênio deve cumprir uma
missão: ele é quem percebe uma situação histórica determinada como uma
tensão que procura se apaziguar, como uma tarefa que ele resolve empregando
suas forças. Quanto mais um artista é importante, mais ele é o executor do
“querer artístico” próprio à tradição de que é oriundo e na qual se insere.
135
PÄCHT, Otto. Questions de Métode en Histoire de L’Art. Paris: Macula, 1994, p.74.

Riegl concebe que o gênio, quanto maior o seu talento, maior será o
seu poder de escolha para criar e libertar-se da tradição. Entretanto, como ele
consegue conciliar a direção determinada, de sua concepção de evolução, com a
liberdade do artista?
A liberdade criadora não é de modo algum uma liberdade de
escolha. É a liberdade de fazer o que convém, o que é sensato
numa situação determinada, face uma tarefa precisa. É uma
liberdade engajada, submissa, que se sujeita.
136
Gombrich
137
acredita que, procurando tornar a história da arte uma
ciência, Riegl vai eliminando as idéias subjetivas de valor, tais como, por exemplo,
a de progresso e a de decadência de estilos. Para Riegl, seria possível estudar a
mudança dos estilos, objetivamente, como uma espécie de reorientação geral das
intenções artísticas que se manifestam pela “vontade de forma”. Esta reorientação
não é arbitrária, pois segue leis implícitas, sendo o estilo reflexo de uma visão de
mundo. A função do historiador, então, seria explicar e não julgar.
Kultermann
138
, por sua vez, não considera que Riegl tenha negado
as categorias de valor, o que ele fez foi superar os limites do indivíduo afirmando
que o todo girava em torno de critérios objetivos. Para tanto, desenvolveu seu
conceito de vontade artística (Kunstwollen) como sendo uma base supra-
individual, a partir da qual estabeleceu um princípio intelectual como o da vontade
de época. Desta maneira, a Kunstwollen não se refere a uma vontade subjetiva
136
PÄCHT, Otto. Questions de Métode en Histoire de L’Art. Paris: Macula, 1994, p.157.
137
Cf. GOMBRICH, E.H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p.14-15.
138
KULTERMANN, Udo. Historia de la Historia del Arte. Madrid: Akal, 1996, p.221.

ligada ao individual, mas, ao contrário, é uma vontade supra-individual adequada à
época.
Com a obra de Riegl a história da arte ganhou, conforme
Kultermann, um impulso rumo à abstração, que teria maior propagação no início
século XX, fazendo parte de uma nova tendência a que pertenciam Henri Bergson,
na França, e Benedetto Croce, na Itália. Julius von Schlosser teria caracterizado
Riegl como um contraponto à teoria materialista de Gottfried Semper
139
:
As idéias de Riegl são justamente o contrário daqueles teoremas
naturalistas (...) Seu critério, se assim pode-se dizer, tem um caráter
vitalista; parte de um instinto formal inerente a nós, um ‘algo no
homem, que nos permite encontrar prazer na beleza das formas e
que criou livre e independentemente as combinações geométricas
de linhas, sem introduzir primeiro um vínculo material’. Se Semper
considerava a obra de arte como o produto da união de finalidade de
uso, matéria-prima e técnica, Riegl, ao contrário, via a obra como o
‘resultado de uma vontade artística determinada e consciente de
seus objetivos’(...).
140
Semper havia condicionado o estilo pela finalidade, material, técnica,
sem considerar o espírito criador. Riegl teria criticado esta solução e a substituído
pela vontade de arte, como afirmação idealista. Para Riegl, a obra de arte estaria
morta se fosse separada de seu processo espiritual de criação, por isso a
coerência necessária de uma obra deveria relacionar-se com a personalidade de
seu autor.
A história da arte seria, para a teoria materialista de Semper, uma
história da capacidade, ao passo que Riegl considera a história evolutiva da arte
139
Gottfried Semper (1803-1879) era avesso a todo idealismo e tendia à ciência natural, do tipo da
de Darwin. Não se interessava pela vida íntima da arte, mas pela evolução de formas que
considerava ideais. Ele ocupou-se mais da arquitetura e das artes decorativas. Cf. VENTURI, L.,
Historia de la Crítica de Arte. Buenos Aires: Poseidon, 1949, p.196.
140
Citado por KULTERMANN, Udo. Historia de la Historia del Arte. Madrid: Akal, 1996, p.220.

como uma história da vontade, ou seja, parte do suposto psicológico de que a
capacidade é um fenômeno secundário em relação à vontade. No dizer de
Worringer
141
, as particularidades estilísticas de épocas pretéritas não se devem a
uma falta de capacidade, mas a uma vontade orientada em outro sentido.
Um pouco mais conhecida dos historiadores da arte, a teoria de
Heinrich Wölfflin
142
, um formalista extremo, propunha cinco pares de categorias
143
linear e pictórico; superficial e profundo; forma fechada e forma aberta;
multiplicidade e unidade, e clareza absoluta e clareza relativa
cujo jogo dialético
permitia, a seu ver, explicar as formas artísticas, os estilos, em termos de
combinações sincrônicas e de transformações diacrônicas.
O projeto era encontrar um princípio quase estrutural capaz de
subsumir cada ‘sentimento da forma’, do detalhe de um quadro até o
quadro ele mesmo, do quadro até a obra do artista, e desta até o
estilo global, até a época da qual ela fazia parte.
144
141
Worringer, apesar de não concordar plenamente com Riegl, toma por base o seu método de
investigação fundado na Kunstwollen. Cf. WORRINGER, W. Abstración y Naturaleza. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica, 1953, p.24.
142
Importante, na formação do pensamento de Wölfflin, foi a tradição universitária alemã (Kant,
Hegel e as correntes do século XIX que valoriazam a erudição, os connoisseurs), os teóricos
Fiedler, Dilthey e o escultor Hildebrand. De Dilthey, Wölfflin extraiu a idéia da autonomia
artística, baseado na independência metodológica das ciências históricas em relação às
ciências naturais. Desta noção de autonomia, Wölfflin estabelece a história da arte com uma
evolução imanente e regras próprias, o que a torna independente de determinações externas. A
concepção de história da arte de Croce também teria dado elementos para Wölfflin e outros
teóricos formalistas. Para Croce, o importante seria estudar a obra em si e por si, fora de
qualquer consideração que não fosse estética. De Fiedler, Hildebrand e Riegl, Wölfflin adota a
atenção voltada para os símbolos visíveis da obra (linha, cor, composição, materiais
empregados). Cf. SILVA, Regina H.F. Wölfflin: Estrutura e Forma na Visualidade Artística”, IN:
WÖLFFLIN, H.
Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989,
p.12-17.
143
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes,
1989, p.15-17.
144
Cf. DIDI-HUBERMAN, G. O que Vemos, o que nos Olha. São Paulo: Ed. 34, 1998, p.209-210.

Assim, o sistema de Wölfflin torna-se como uma espécie de andaime
do pensamento artístico. Como historiador, ele não pretendia explicar e sim
descrever as obras, seguindo um ideal de clareza e ordem espacial
145
. No entanto,
Wölfflin é criticado por enfatizar a função visual do homem, desconsiderando
todas as outras, como se a obra não sofresse qualquer influência ou interpretação
de outros campos em que se insere
religioso, psicológico, social, político e
econômico.
A vantagem da teoria de Wölfflin, segundo Didi-Huberman
146
, estaria
na apreensão orgânica
147
da forma: a forma que se autodefine e se transforma
dando vazão as suas próprias capacidades de “formação”. Entretanto, o limite
deste sistema estaria em sua natureza mesma fechada e teleológica,
impossibilitando imaginar novas “constelações” formais, limitando-se aos cinco
exclusivos parâmetros formais prévios. Além disso, a visão teleológica da forma
a qual se desenvolve como um organismo vivo, entre progresso e declínio
não
comporta qualquer espécie de anacronismo ou fulgurações possíveis, ou seja, a
forma não foge às constelações previstas e ao denominador óptico:
Segundo Wölfflin, as linguagens plásticas de uma época adquirem
um estilo comum, têm o mesmo denominador óptico. O historiador
não nega a existência de personalidades diferentes numa mesma
época e refere-se aos ‘estilos individuais’ compostos de massas,
cores, linhas, sombra e luz peculiares a cada artista, mas acredita
que, acima desse estilo individual, um ‘estilo nacional’ ou
‘regional’, representando uma tendência dominante para a qual
convergem essas personalidades distintas. E mais uma vez, acima
145
Cf. GOMBRICH, E.H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p.14.
146
DIDI-HUBERMAN, G. Op. cit., p.211.
147
O desenvolvimento orgânico é, no sentido de Wölfflin, um processo imanente e que prescinde,
no essencial, de qualquer influência exterior. A teoria organicista defende a tese de que, para
produzir configurações valiosas e vitais, o desenvolvimento tem que permanecer sempre
vinculado ao passado, desenvolver o novo partindo do velho e, no sentido de Hegel, absorver o
velho, superando-o e conservando-o. Cf. HAUSER, Arnold. Teorías del Arte. Tendencias y
métodos de la crítica moderna. Barcelona: Guadarrama/ Punto Omega, 1982, p.136.

dos estilos nacionais, identifica o estilo de uma época, de um
momento histórico.
148
Na teoria de Wölfflin, o papel do artista fica limitado, pois ele
encontra-se vinculado necessariamente aos condicionamentos de uma
determinada época
possibilidades ópticas predeterminadas, repertório de
imagens, idéias e a maneira de organizá-las
149
. Nesse sentido, Wölfflin aproxima-
se de Riegl, para quem também os fenômenos históricos individuais já estão
implícitos e seriam predeterminados por forças superiores. Existe um espírito
universal transcendente responsável pelo rumo da evolução artística e
independente da ação isolada de um indivíduo. Riegl e Wölfflin partem do
pensamento de Hegel, o qual defendera, em sua estética, um princípio ideal e
supra-individual, condutor da evolução das formas artísticas.
Conforme Hauser
150
, toda a filosofia da história do século XIX move-
se entre duas atitudes: de um lado, descobre-se o caráter individual e único dos
fenômenos históricos, concebendo o indivíduo como emancipado e independente
e, de outro lado, faz derivar todo o histórico de um princípio supra-humano e
supra-temporal. A expressão desta ambivalência encontra-se nas teorias sobre a
história da arte do fim do século XIX. Uma dessas teorias seria a de Riegl, cuja
“vontade artística” parte da peculiaridade dos fenômenos da história da arte; a
outra seria a de Wölfflin, com sua “história da arte sem nomes” e o menosprezo do
indivíduo como agente histórico.
148
Cf. SILVA, Regina H.F. Wölfflin: Estrutura e Forma na Visualidade Artística”, IN: WÖLFFLIN,
Heinrich.
Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.16.
149
Cf. SILVA, Regina H.F., op. cit., p.17.
150
HAUSER, Arnold. Teorías del Arte. Tendencias y métodos de la crítica moderna. Barcelona:
Guadarrama/ Punto Omega, 1982, p.122-123.

A “história da arte sem nomes”, de Wölfflin, pressupõe que os
objetivos da criação artística vinculem-se ao tempo histórico. Desta maneira, o
artista encontra-se inserido numa determinada situação histórica, cujos limites de
sua época ele não tem possibilidades de ultrapassar. Para Wölfflin, as formas de
ver e de representar têm seu próprio desenvolvimento histórico e antecedem
quaisquer tendências individuais ou nacionais que atuem no artista.
De acordo com esta lógica, a história da arte move-se entre
oposições constantes e seu curso é o do nascimento e decadência
de ‘conceitos fundamentais’, como Wölfflin chama a estas categorias
antitéticas do ‘ver’. A fórmula do desenvolvimento responde no
essencial ao movimento autônomo de um princípio superior e supra-
individual, no sentido da filosofia da história de Hegel.
151
Esta “história da arte sem nomes”, segundo Hauser, teria alguns
elementos essenciais do positivismo de Comte, por isso não concede uma
verdadeira liberdade ao indivíduo. Nesse sentido, os historiadores positivistas e
socialistas coincidiriam com os idealistas quanto a sua tendência ao anonimato do
sujeito.
Por outro lado, nas teorias históricas de Riegl e Wölfflin, segundo
Hauser
152
, reaparecem as contradições internas próprias do historicismo,
principalmente a atitude ambígua quanto à questão do individualismo. Em geral,
considera-se a substituição de uma abordagem generalizadora pela
individualizadora como sendo a essência do historicismo. A ênfase ao aspecto
singular dos processos históricos e ao papel criador da individualidade no
151
HAUSER, Arnold. Teorías del Arte. Tendencias y métodos de la crítica moderna. Barcelona:
Guadarrama/ Punto Omega, 1982, p.125-126.
152
Idem, p.139-141.

engendramento dos valores culturais une-se, todavia, no historicismo, ao
menosprezo pelo indivíduo em detrimento de um princípio criador supra-individual.
O singular é explicado como a mera irradiação de uma força
superior, de uma luz mais intensa e mais pura, e a ‘história da arte
sem nomes’ de Wölfflin é, de certa forma, somente uma variante
desta doutrina ‘imanentista’, que faz aparecer todo o historicamente
concreto como reflexo, atualização ou articulação de um princípio
geral metafísico, de uma idéia transcendente ao mundo ou de uma
potência supra-humana.
A teoria imanentista da história supõe que os fenômenos históricos
individuais estejam implícitos num espírito universal. Hegel apresenta seu
historicismo imanentista, defendendo que, por meio dos motivos pessoais e pelos
meios subjetivos da personalidade individual, realiza-se algo que transcende o
individual e adquire validade objetiva. Na história da arte, este imanentismo estaria
sob o modo como o artista, usando seu talento individual e suas intenções
pessoais, insere-se no âmbito de um estilo válido num dado momento, embora,
esse estilo, como forma coletiva ou ‘vontade de forma’, não se encontre
conscientemente contido nos seus objetivos.
Wölfflin teria utilizado, então, para escrever sua “história da arte sem
nomes”, a união do historicismo, com a concepção de validade supra-individual e
o pensamento organicista.
A teoria estética que possibilitou a passagem do naturalismo ao
organicismo, e que constituiu a primeira reflexão moderna sobre a expressão, no
mundo dos sentimentos, foi a Einfühlung
153
.
153
A questão da projeção sentimental remonta-se ao Romantismo, cuja intuição artística antecipou
a concepção básica da estética vigente no século XIX e início do século XX. Mais tarde o
problema foi elaborado cientificamente por Lotze, Friedrich Vischer, seu filho Robert Vischer,
Gross, Siebeck e, finalmente, Theodor Lipps. Cf. WORRINGER, W. Abstración y Naturaleza.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1953, p.18. Segundo KULTERMANN, a psicologia

A estética moderna, que deu um passo decisivo do objetivismo
estético em direção ao subjetivismo estético o que quer dizer que
não parte em suas investigações da forma do objeto estético, mas
do comportamento do sujeito que contempla , culmina numa teoria
que com um nome geral pode designar-se como teoria da Einfühlung
(projeção sentimental).
154
Robert Vischer (1847-1933) foi quem deu aplicação, primeiramente,
à noção de Einfühlung
na obra Sobre o Sentido Óptico das Formas (1872)
, que
pode ser interpretada literalmente como “introdução ao sentimento” e,
posteriormente, foi definida como “intuição”, “comunicação fisiopsicológica”,
“empatia”, “simbolismo simpático”, “endopatia” ou “projeção sentimental”. Segundo
ele, temos a faculdade de substituir e de incorporar a forma de nosso corpo a uma
forma objetiva.
Na origem da teoria da Einfühlung está a busca do modo como as
formas da natureza nos atraem ou nos repelem e, também, como isso acontece
em relação aos objetos artísticos. A Einfühlung baseia-se na idéia de uma
comunicação orgânica intersubjetiva. A psicologia estética de Vischer teve ampla
aceitação entre os historiadores da arte, estava impregnada de idealismo e
baseava-se na visão de que a forma exerce sobre nossa psiquê uma espécie de
identificação do espírito com o objeto contemplado.
da Einfühlung (empatia) de Theodor Lipps teria sido utilizada por Wölfflin para poder interpretar
psicologicamente a mudança dos estilos. IN: Historia de la Historia del Arte. Madrid: Akal, 1996,
p.242. E, ainda, conforme Mireia, diversas interpretações da Einfühlung, mas todas
coincidem na visão de que as obras de arte serão expressivas pela projeção fisiopsicológica do
observador sobre elas. FREIXA, Mireia (org.) Las Vanguardias del siglo XIX. Barcelona:
Gustavo Gili, 1982, p.54.
154
Cf. WORRINGER, W. Abstración y Naturaleza. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
1953, p.18.

Wilhelm Worringer (1881-1965), no entanto, contribuiu para a cultura
da Einfühlung
155
apresentando, além do componente orgânico, outro referente à
abstração (uma abstração psicológica, não-cognitiva). Segundo ele, existiria no
homem uma necessidade psicológica que determina nele uma relação de simpatia
(ou empatia) com os processos orgânicos da natureza, e uma necessidade oposta
que o impele para a perfeição, o rigor, a objetividade das formas regulares, a
abstração.
A necessidade de projeção sentimental [Einfühlung] pode considerar-
se como suposto da vontade artística (...). O pólo oposto à
necessidade de projeção sentimental é o afã de abstração. (...) Uma
tendência abstrata se revela na vontade de arte dos povos em
estado de natureza, na vontade de arte de todas as épocas
primitivas e na vontade de arte de certos povos orientais de cultura
desenvolvida.
156
Segundo Arnheim
157
, a obra de Worringer tornou-se um dos
documentos de maior influência sobre a teoria da arte do século XX, pois
proporcionou uma base estética e psicológica à abordagem que seria dada pela
arte moderna. Ao mesmo tempo, propunha uma relação surpreendente entre dois
conceitos: abstração, utilizado para o entendimento da cognição humana, e
empatia, conceito resultante da filosofia romântica. Dora Vallier
158
acredita que o
155
Cf. DE FUSCO, Renato. História da Arte Contemporânea. Lisboa: Editorial Presença, 1988,
p.14.
156
WORRINGER, W. Abstración y Naturaleza. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1953,
p.28-29.
157
A obra de Worringer foi traduzida para vários idiomas e o termo Einfühlung teve versões
diferentes: Abstraktion und Einfühlung. Munique: Piper, 1911 [ingl.: Abstraction and Empathy.
Nova Iorque: International Universities Press, 1953; esp.: Abstración y Naturaleza. México:
Fondo de Cultura Económica, 1953; fr.: Abstraction et Einfühlung – contribution à la psychologie
du style. Paris: Klincksieck] Cf. ARNHEIM, Rudolf. Intuição e Intelecto na Arte. São Paulo:
Martins Fontes, 1989, p.51.
158
VALLIER, Dora. “Lire Worringer”; IN: WORRINGER, W. Abstraction et Einfühlung – contribution
à la psychologie du style. Paris: Klincksieck, 1986, texto de apresentação.

texto de Worringer insere-se no âmbito de uma estética psicológica face ao
ressurgimento da estética normativa sob a forma de ciência da arte. Significa que,
sua obra comporta um aspecto da estética e um aspecto da história da arte,
ambos desenvolvidos pelos termos de Einfühlung e abstração, sob os quais
encontram-se Lipps e Riegl, respectivamente. De Lipps, representante da estética
psicológica, Worringer adota a noção de Einfühlung: que ele teria definido como
sendo um gozo objetivado de si. Riegl, por sua vez, elementos para Worringer
sustentar a idéia de abstração na arte
159
.
A empatia (projeção sentimental) pode ser definida como sendo uma
vivência pela qual quem a experimenta se introduz numa situação objetiva, real ou
imaginária, de tal maneira que aparece como estando dentro dela. A empatia é o
caminho para alcançar a apreensão mais cabal possível de uma situação objetiva,
sem converter-se nesta última. No mesmo sentido que a intuição, a empatia
somente pode dar origem a uma compreensão autêntica quando transcende a
identificação afetiva e se transforma em conhecimento teórico.
Neste item apresentamos os principais teóricos formalistas dos
quais, direta ou indiretamente, Ângelo Guido absorve alguns elementos na
fundamentação de sua crítica de arte. A seguir, abordaremos o pensamento
romântico e a teoria do intuicionismo que, assim como os formalistas, podem nos
auxiliar no exame das idéias responsáveis pela instituição da crítica em Guido.
159
Worringer afirma que: foi Riegl quem introduziu no método de análise histórico-artístico o
conceito de ‘vontade de arte’. Por ‘vontade artística absoluta’ entende-se aquela latente
exigência interior que existe por si só, independente dos objetos e do modo de criar, e se
manifesta como vontade de forma. É o momento primário de toda criação artística; e toda obra
não é, em seu mais íntimo ser, senão uma objetivação desta vontade absoluta, existente a
priori”. Cf. WORRINGER, W. Abstración y Naturaleza. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 1953, p.23.

1.4 A intuição e a estética romântica decorrentes do
criticismo kantiano
A modernidade, nas artes plásticas, evidencia-se a partir do
Romantismo, o qual foi o movimento que criticou o Iluminismo, sua visão
historicista de mundo e sua idéia de progresso baseado num evolucionismo linear.
O culto ao Eu, próprio do pensamento do Romantismo, permitirá o
desenvolvimento de uma estética do gênio e de uma diversidade de linguagens. A
arte é valorizada como religião, o artista personifica o Eu absoluto, é quase divino
e deve responder pela legitimação da existência do mundo.
Conforme Baumer
160
, o movimento romântico foi o primeiro grande
protesto contra a civilização científico-racional que se instaurara ainda no século
XVII, designando um “mundo moderno”. Todavia, o Romantismo propunha uma
nova modernidade:
(...) podemos afirmar que eram mais modernos do que pensavam,
especialmente na sua exploração do lado oculto da vida, dos sonhos
e do inconsciente e no fornecimento da base teórica para o
nacionalismo moderno.
161
Não uma unidade que permita uma definição do movimento do
Romantismo
162
em si, no entanto, é possível identificar alguns pontos em comum
160
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno séculos XIX e XX. vol.2. Rio de
Janeiro: Edições 70, 1977, p.23.
161
BAUMER, Franklin L., op. cit., p.23.
162
Conforme Wat, a história do Romantismo se apresenta como um perpétuo trabalho de
redefinição. Essa ausência suscitou duas formas de interpretação crítica: de um lado, as
contradições do movimento levam a uma total indefinição e, de outro, o movimento em si não
comportaria uma definição positiva, uma vez que não é próprio da natureza do Romantismo

entre os românticos: davam importância ao sentimento e à expressão individual;
além de apresentar, também, uma tendência para o misterioso, o inefável, o
infinito.
Os românticos manifestaram um forte sentido para o irracional na
vida humana e davam ênfase à individualidade, em oposição à generalidade, na
arte, na história e na antropologia. Eles tendiam para a síntese, aspiravam unir o
ideal com o real, o espírito com a matéria, o sujeito com o objeto. Sentiam que os
indivíduos apenas particularizavam um Todo maior, Espírito ou Universo.
Entretanto, de forma paradoxal, defendiam a liberdade de criar na arte, criticando
o limite, a regra, as normas fixas, porque estavam conscientes de viverem num
mundo de criatividade e em devir
163
.
O Romantismo significou a busca desenfreada, pelo homem, de
suas raízes, tanto primitivas (externas) quanto as de sua própria consciência
(internas), isto levado por uma luta pela liberdade, pela autonomia, em todos os
campos. A Revolução Francesa abre caminho para um sujeito livre dentro do
próprio Estado que criou e do qual participa como indivíduo único e coletivo. A
emancipação dos artistas torna crescente a importância do mercado como
regulador institucional. Simultaneamente, a Arte Moderna, pelos caminhos do
Impressionismo, Expressionismo e demais vanguardas, torna o homem
consciente de sua percepção ilimitada. Um novo espaço é concebido e a natureza
não é mais vista como algo a ser meramente dominado, medido ou copiado
concepção adotada pela tradição artística desde a Antigüidade clássica e
retomada no Renascimento
, mas algo a ser desvelado, descoberto a cada dia
como um pólo de extensão do nosso próprio Eu, desafiando-nos, por isso, a
transcender sempre os nossos e os seus limites.
procurar por sua essência. Cf. WAT, Pierre. Naissance de L’Art Romantique: peinture et théorie
de l’imitation. Paris: Flammarion, 1998, p.5.
163
BAUMER, Franklin. Op. cit., p.29.

A autonomia reivindicada significava a busca da liberdade, do não-
limite, da ruptura com os entraves que a regra e a racionalização sempre
impuseram na sua ânsia por objetividade. Mas a autonomia que o final do século
XIX e o início do século XX trouxeram para a arte é resultado de uma luta
anterior, desde a consciência cartesiana
164
, que preparou o sujeito para a
autonomia do conhecimento. A
modernidade define-se por um processo de
submissão do mundo ao ponto de vista do sujeito: o conhecimento se
estabeleceria a partir do sujeito, da subjetivação do mundo, cujo modelo foi
fornecido, no plano filosófico, pelo método cartesiano
165
.
Conforme Schaeffer
166
, a palavra-chave do Romantismo é a unidade,
a qual caracteriza-se: de um lado, por não ser um princípio abstrato, mas uma
força viva, a alma de um universo orgânico onde tudo é vida; e, de outro, ela é de
natureza teológica. No Romantismo a sacralização da arte é indissociável de sua
função religiosa. E é no domínio filosófico que a necessidade da Unidade
164
No século XVII, o sistema cartesiano é fundado sobre a análise, classificação e ordem,
aparecendo como resposta à confusão gerada pela revolução científica. Descartes busca um
método para o conhecimento, para ter a certeza deste conhecimento a partir do sujeito. A
racionalização, a consciência, o sujeito passa a ser o ponto de partida para o conhecimento. O
processo da dúvida adotado por Réné Descartes (Cf. suas obras:
Discurso do Método e
Meditações) fornece o arquétipo da subjetivação de todos os valores. Num primeiro momento,
trata-se de pôr em dúvida as opiniões aceitas, todos os preconceitos herdados, fazendo tábula
rasa da tradição. Descartes realiza uma ruptura com a Antigüidade, que se equivale ao que
realizará a Revolução de 1789, a cisão política com o Antigo Regime. Num segundo momento,
busca-se um ponto de apoio seguro (evidências) para reconstruir o edifício do conhecimento
científico e filosófico. E, como quem efetua a investigação é o sujeito, o indivíduo, é em função
de suas próprias certezas que essa investigação poderá ou não se efetivar. O terceiro momento
conclui que é em sua própria subjetividade (Cogito), na certeza absoluta que o sujeito tem de
apreender a si mesmo (consciência de si) através de seu próprio pensamento, que se edifica o
sistema completo do conhecimento.
165
Enquanto, na Antigüidade, a ordem cósmica da tradição é que fundamenta para os homens a
validade dos valores, e assim instaura entre eles um espaço de comunicação, a partir de
Descartes, o problema se resume em saber como é possível fundamentar, exclusivamente a
partir de si, valores que valham também para os outros. Ou seja, como é possível, na imanência
dos valores à subjetividade, fundamentar a transcendência dos valores, tanto para nós como
para o outro.
166
Cf. SCHAEFFER, Jean-Marie. L’Art de L’Âge Moderne (l’esthétique et la philosophie de l’art de
XVIIIe siècle à nos jours). Paris: Gallimard, 1992, p.88-89.

manifesta-se mais amplamente. Schlegel, Novalis, Hördelin e os idealistas
objetivos Schelling e Hegel serão os representantes desta concepção.
A filosofia romântica foi formada, em princípios do século XIX, por
alguns pensadores alemães
167
que consideravam a intuição intelectual
168
como o
método essencial para o conhecimento filosófico. A partir deste fundamento, a
razão humana recebe uma tarefa dupla: de um lado, deve penetrar intuitivamente
na essência das coisas, desvelando o mundo imanente das essências racionais
que existe sob a aparência das percepções sensíveis, e, de outro, precisa
construir, mediante conceitos a priori, toda uma estrutura do universo e do homem
dentro deste. Estes filósofos acreditavam que, por meio da intuição intelectual,
seria possível penetrar na essência mesma da verdade.
Como eles chegaram a esta concepção de método filosófico,
fundamentado numa intuição radical, primária, a partir da qual todas as outras
formas (espírito, história, natureza, etc.) se desenvolveriam? Conforme
Morente
169
, todos eles estavam imbuídos da filosofia de Kant. Gilles Deleuze
170
também considera que o criticismo de Kant serviu como fundamento para o
Romantismo.
167
Os filósofos que melhor caracterizaram a filosofia romântica foram Fichte, Schelling e Hegel. Cf.
MORENTE, Manuel García. Fundamentos de Filosofía. Madrid: Espasa-Calpe, 1967.
168
A intuição consiste num ato único do espírito que, imediatamente, lança-se sobre o objeto, o
apreende, o fixa, o determina. A palavra ‘intuição’ relaciona-se com ‘intuir’ que, em latim,
significa ‘ver’. Desta forma, a intuição vale também como visão, como contemplação. Por meio
da intuição se obtém um conhecimento imediato, ao passo que, por meio do método discursivo,
do raciocinar ou discorrer sobre algo, se obtém um conhecimento mediato, que precisa passar
por operações sucessivas. A intuição surgiu, como método primordial do conhecimento
filosófico, com Descartes na filosofia moderna. Descartes foi quem, decompondo em seus
elementos a nossa experiência diante do mundo exterior, chegou a uma intuição primária, da
qual parte para reconstruir todo o sistema filosófico. Cf. MORENTE, Manuel García.
Fundamentos de Filosofía. Madrid: Espasa-Calpe, 1967, p.30-31.
169
MORENTE, M. G. Op. cit., p.28.
170
DELEUZE, Gilles. “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia de Kant”, IN:
Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991, p.131.

A característica principal da teoria kantiana consiste na distinção que
ele faz entre o mundo sensível fenomênico
dos fenômenos que se manifestam
para o sujeito
, e o mundo das coisas-em-si, de uma realidade em si mesma que
independe da manifestação para um sujeito. Esta distinção leva Kant a considerar
que todas as coisas do mundo sensível, individualmente ou em conjunto, não são
mais que a efetivação no espaço e no tempo de algo incógnito, profundo e
misterioso que estaria sob o espaço e o tempo.
Querendo superar e integrar a crítica kantiana numa nova doutrina
ontológica, os românticos e os pensadores do idealismo objetivo colocam em voga
os grandes sistemas metafísicos, retomando as idéias de Plotino, Espinoza e
Leibniz.
Assim, os filósofos do Romantismo chegam à conclusão de que: “o
importante é atingir, com uma visão intuitiva do espírito, a este algo profundo,
misterioso e incógnito que consiste na essência e definição de tudo”
171
. Quando
captassem intuitivamente a coisa-em-si ou o absoluto, como também o
denominavam, então, teriam a totalidade do absoluto e, a partir dele, todas as
suas múltiplas formas de explicitação no mundo (arte, natureza, espírito, história,
homem, etc.).
Os estetas românticos, por sua vez, acreditavam que a arte deveria
substituir o discurso filosófico. A função da arte torna-se, então, sacralizada
172
.
Como afirma Schaeffer
173
, a especificidade do Romantismo, em relação aos
desenvolvimentos posteriores da teoria da arte, reside na concepção de que a arte
seja a única apresentação possível da ontologia, da metafísica especulativa.
171
MORENTE, M. G. Op. cit., p.29.
172
Cf. ROCHLITZ, Rainer. Subversion et subvention (art contemporain et argumentation
esthétique). Paris: Gallimard, 1994, p.50.
173
Cf. SCHAEFFER, J. Op.cit., p.91.

Entretanto, será neste ponto precisamente que irá divergir o idealismo objetivo de
Hegel e Schelling.
Fichte (1762-1814) foi o primeiro a desenvolver os germens
idealistas da doutrina de Kant
174
, partindo das dualidades presentes na obra deste:
coisa-em-si e aparência, conteúdo e forma, formal e material, razão prática e
razão pura. Tentando superar estas antinomias, Fichte busca um princípio anterior
a qualquer relação entre sujeito e objeto, ou seja, um ponto em que estes formem
uma unidade. Este ponto, para Fichte, seria o Eu. A palavra Eu não designa uma
consciência particular, individual, mas uma consciência transcendental (eu puro ou
egoidade) que é uma estrutura universal, independente das consciências
individuais, responsável tanto pelo conhecimento teórico quanto por toda ação
prática humana.
O Eu fichteano, princípio incondicionado do conhecimento da
existência, voluntariamente afirma a si mesmo, cria a si mesmo como atividade
pura e, sendo, simultaneamente, objeto e sujeito, constitui a consciência e seus
fenômenos. O Eu é identidade pura: “o eu nada é fora do eu, ele é o próprio eu”.
175
O Eu também constrói o mundo exterior, a realidade do universo,
como oposto a ele, como um não-Eu, donde nasce a recíproca limitação, sobre a
qual levanta-se o Eu absoluto, onde um e outro estão postos como determináveis.
A este Eu absoluto e determinante Fichte o denomina Eu prático, para seguir
assim, ainda, a divisão de Kant. Este Eu infinito, livre e independente, não é outra
coisa que a vontade, a ordem moral, a força determinante, a atividade essencial, a
perpétua necessidade de produzir.
174
Cf. PELAYO, Marcelino M. La Estetica del Idealismo Aleman. Madrid: Rialp, 1954 (cap.2 e 3).
175
FICHTE, Johann Gottlieb. A Doutrina da Ciência de 1794 e outros escritos. 2.ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1984, p.93.

O destino dos seres finitos, segundo Fichte, é uma constante
identidade, uma harmonia completa com seu próprio ser.
Para dominar as
influências exteriores e fazê-las servir ao império da vontade, é necessária a
cultura, único meio de conseguir o fim humano, que é o perfeito acordo de um ser
racional consigo mesmo. Esta harmonia implica, não a do homem interior, mas
a harmonia das coisas exteriores com as idéias necessárias e práticas que delas
formamos, quer dizer, com o conceito destas coisas tais como deveriam ser. E, se
o homem não consegue conquistar de modo pleno o seu destino, pode, no
entanto, ir aproximando-se dele indefinidamente: é o que Fichte chama de
aproximação ao infinito.
Conforme a filosofia de Fichte, ninguém tem o direito de isolar-se de
seus semelhantes e de tornar inútil para eles sua cultura. A cultura parcial de cada
indivíduo se converte em propriedade de toda a espécie. o trabalho social o
coloca em capacidade de adquiri-la, e neste sentido é produto e posse da
sociedade, e deve tender ao enobrecimento progressivo do gênero humano, e ir
emancipando-lhe gradualmente. Entre esses compromissos particulares do ser
humano estaria a tarefa do sábio e do artista, a saber: velar com atentos olhos
sobre o progresso real da humanidade e ser o educador desta no sentido de seu
enobrecimento moral. Para tanto, o sábio deve dar o exemplo moral.
Fichte, entretanto, não encontrou lugar para a estética em sua
filosofia idealista, bem ao contrário de seu discípulo Schelling (1775-1854), que
dedicou parte de sua filosofia da identidade absoluta a questões relativas à arte. A
estética de Schelling influenciou, mais que qualquer outro filósofo, o movimento do
Romantismo e foi fundamental para as principais idéias da Estética de Hegel.
Em Schelling, a palavra identidade tem dois significados
complementares: designa o princípio originário, como unidade absoluta (o Todo-
uno) e como absoluta igualdade consigo mesmo (sujeito-objeto): “O Absoluto é

anterior a toda distinção e a toda determinação. Frente às diferenças que
singularizam a cada coisa e distinguem os indivíduos, o princípio metafísico é
identidade absoluta e absoluta totalidade
176
.
Além de sujeito e objeto, o idealismo de Schelling quer convergir
numa unidade superior o infinito e o finito, o ideal e o real, absorvendo-os no
absoluto, do qual são formas e manifestações diversas. Este sistema anula todas
as antinomias e oposições por meio da suprema identidade, da universal
indiferença ou neutralidade que leva em seu âmago o sujeito e o objeto, o Eu e o
não-Eu, o espírito (ordem interna da liberdade) e a natureza (ordem externa dos
fenômenos), que são aspectos parciais, mas complementares, pois são as formas
fundamentais do absoluto. O absoluto é a identidade dos contrários, e pode ser
conhecido mediante uma intuição espontânea e imediata.
Antes mesmo que a própria filosofia, a intuição artística pode
reconstituir o Absoluto. A intuição artística começaria na consciência do sujeito
quando o artista concebe a obra
chegando ao inconsciente e ao objeto, pois a
obra, como resultante de um esforço consciente, objetiva-se numa presença
exterior, como se estivesse emergido da própria natureza. A obra abarca,
portanto, as duas modalidades de ser que constituem o Absoluto.
A arte teria a capacidade de pôr a inteligência humana, de forma
imediata, em contato com a beleza
que é a revelação do infinito no finito, e
eqüivale à verdade. A unidade entre beleza e verdade é própria da concepção
romântica e tem como conseqüência a identificação entre poesia e filosofia. Para
Schelling, natureza, história e arte são três versões do mesmo fato
177
. Mas a arte
176
SCHELLING, Friedrich W.J. Filosofia del Arte. Buenos Aires: Editorial Nova, 1949, p. XVIII.
177
Schelling define a natureza como a manifestação do ideal no real ou “revelação imperfeita de
Deus”; a história como expressão do real no ideal e a arte como indiferença de real e ideal. O
terceiro momento, concebido como indiferença, supera aos anteriores. Cf. SCHELLING,
Friedrich W.J. Filosofia del Arte. Buenos Aires: Editorial Nova, 1949, p.XIX.

não se torna suprema. A filosofia a supera: somente a razão, “imagem perfeita de
Deus”, consegue que as formas particulares do mundo fenomênico atinjam a
identidade absoluta.
Desta forma, a intuição filosófica deve reunir em si a identidade do
consciente e do inconsciente no Eu, que aparecem divididos no fenômeno da
liberdade e na intuição dos produtos da natureza. Conhecer o produto da intuição
é conhecer a intuição mesma. O princípio deste produto será subjetivo
(consciente) e seu fim objetivo (inconsciente). A atividade inconsciente admite no
objeto uma grandeza que é impossível de admitir na atividade consciente, onde
nasce uma luta do Eu consigo mesmo, que pode ser resolvida pela intuição
estética, que é, por sua vez, involuntária.
A atividade inconsciente agirá por meio
da atividade consciente até entrar em identidade completa consigo mesma. As
duas atividades estão separadas para que a produção manifeste-se e objetive-se,
precisamente como devem estar em ato livre para que se faça objetiva a intuição.
Porém, não podem estar separadas até o infinito como no ato livre, porque então o
objetivo não chegaria nunca a ser manifestação completa da identidade.
O produto da arte depende da oposição entre a atividade consciente
e a atividade inconsciente, mas com a realização desse produto desaparece toda
luta, e com ela toda aparência de liberdade. É um favor voluntário de uma
natureza superior que resolve todas as contradições e torna possível o impossível.
Este ser incógnito que reúne em inesperada harmonia a atividade
objetiva e a atividade consciente é o Absoluto. Esta identidade imutável é para a
produção artística um poder obscuro e incógnito que acrescenta à obra imperfeita
da liberdade a perfeição objetiva, sem o consentimento da liberdade e, de certa
forma, contra a liberdade mesma. Schelling designa esta potência incógnita com a
noção obscura de gênio.

O artista expressa, no ato de sua criação, valores inéditos e formas
imprevistas que provêm de sua liberdade pessoal, de seu dinamismo originário do
ato criador. Essas formas inéditas podem ser captadas intuitivamente, jamais
poderiam ser descobertas pelo caminho da especulação filosófica.
No entanto, ainda que seja resultante de uma atividade livre, o
produto artístico é obra do gênio, isto é, a autêntica obra de arte não é arbitrária;
não nasce do capricho ou da loucura de um autor:
É filha de uma necessidade interior, impessoal, como o princípio
gerador de todas as coisas, que se vale do artista como de um
instrumento para expressar-se. É objetiva: seu conteúdo é o
absoluto, não a figura efêmera das coisas sensíveis, mas sim sua
alma mesma (...) a criação poética inteira de um homem, perseguida
sem descanso durante toda uma vida, deve ser concebida como a
unidade artística que intenta representar o infinito e comunicá-lo de
múltiplos modos aos demais.
178
Schelling exagera mais que todos os românticos no elemento
inconsciente das obras do gênio. Para ele, a produção estética depende de uma
oposição de atividades que, levadas por uma espécie de espontaneidade
involuntária à produção, não fazem mais que obedecer a um impulso irresistível de
sua própria natureza.
A inclinação artística procede, pois, do sentimento de uma
contradição interior. Só à arte é concedido satisfazer nosso esforço infinito e
resolver em nós a contradição suprema. O artista, lançado involuntariamente a
produzir, luta contra uma resistência que encontra em si mesmo, o objetivo chega
a produzir-se sem consentimento dele, isto é, de um modo puramente objetivo. O
artista, seja qual for seu propósito, parece estar dominado por uma força que o
separa dos demais homens (donde a idéia de inspiração por sopro exterior), e o
178
SCHELLING, Friedrich W.J. Filosofia del Arte. Buenos Aires: Editorial Nova, 1949, p. XXI.

obriga a expressar coisas que ele mesmo não percebe completamente e cujo
sentido é infinito. A arte é a revelação única e eterna da força suprema
.
Antes de efetivar-se na obra, as Idéias devem encarnar-se na
subjetividade do artista, e, depois, por atividade deste, incorporar-se
aos materiais. O infinito e o finito convergem, por obra do gênio, na
obra artística, e a multiplicidade de forma resulta da variação dos
limites em que se realiza essa incorporação. O gênio (...) incorpora
ao material a idéia e transfere ao espectador, por intermédio da
obra, seu próprio estado de alma. A obra, que nasce da tensão entre
a espontaneidade e a reflexão, ostenta o selo da beleza. A beleza é
um infinito expresso na figura finita.
179
Conforme Veloso, na teoria de Kant, o gênio artístico é a dimensão
criadora da forma estética. A partir de sua concepção de forma livre, de um
fundamento subjetivo e formal para o juízo de gosto, Kant havia deduzido o modo
de sua presença na obra de arte.
O sujeito dessa ação é o gênio, o qual, através de regras
indeterminadas, permite à obra expressar o gosto, o entendimento,
as idéias estéticas, a natureza e o supra-sensível. Todas essas
forças são convocadas na prática artística, limitando-se umas às
outras e gerando a obra de arte, como forma de expressão.
180
Gênio, na estética kantiana, seria o talento, o dom natural que a
regra à arte. Considerando que o próprio talento, enquanto faculdade inata do
artista, pertence à natureza, Kant pode afirmar que o gênio é a disposição pela
qual a natureza dá regra à arte.
179
SCHELLING, Friedrich W.J. Filosofia del Arte. Buenos Aires: Editorial Nova, 1949, p. XX.
180
VELOSO, Marco. A Arte como Forma; IN: CERÓN, Ileana e REIS, Paulo (orgs.). Kant: crítica e
estética na modernidade. São Paulo: SENAC,1999, p.215-216.

Na acepção de Schelling, por sua vez, o gênio não espera a regra ou
o preceito que poderia advir das teorias filosóficas: ele mesmo dita sua própria lei
e submete-se a ela, sem prévio enunciado, na realização da obra de arte.
Um outro filósofo representante do idealismo alemão é Hegel (1770-
1831), mas ele apesar de também buscar as formas de explicitação do Absoluto,
não defende que esta se por meio da intuição e sim pelo conceito. O
pensamento filosófico é que explicita e reconstitui todas as relações possíveis do
Absoluto. Mas, para Hegel
181
, essa explicitação, é um processo: de conceito a
conceito, a realidade evolui, graças ao dinamismo das contradições que a
impulsionam e que ela supera em cada etapa de sua evolução, até descobrir-se
inteiramente na totalidade que constitui o Absoluto.
Nesse processo, dois movimentos coincidem: o do pensamento, que
concebe os objetos, por meio dos conceitos que o exprimem; e o vir-a-ser,
resultante do emaranhado de conceitos, que se contradizem entre si, pois nenhum
deles, isoladamente, engloba a totalidade das relações que a razão determina. Em
cada etapa dessa dialética, o pensamento supera as contradições anteriores e
constitui novas. O conceito, que se efetiva para coincidir plenamente com o real, e
que aponta para o Absoluto, como a verdade a ser atingida em todo esse
processo, é a Idéia: união do subjetivo com o objetivo, da exterioridade (Natureza)
com a interioridade (consciência)
.
A Idéia supera os dois âmbitos (subjetivo e objetivo) com uma
consciência universal, que vai lapidando-se nas várias etapas que constituem o
Espírito. Primeiramente subjetivo, o Espírito, consciência individual limitada, em
relação com outras consciências, efetiva-se e universaliza-se nas formas objetivas
da vida social e ética, por ele mesmo instituídas. Depois, a Idéia manifesta-se,
181
Cf. NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte. São Paulo: Ática, 1991, p.63-65.

como Espírito Absoluto, ultrapassando na arte, na religião e na filosofia, a última
contradição entre o subjetivo e o objetivo. Segundo
Schaeffer
182
, Hegel manteve a
essência da revolução romântica: a instituição da arte como saber ontológico,
donde a definição das práticas artísticas como possuidoras de uma função
especulativa.
O seu mais alto destino, tem-no a arte em comum com a religião e
com a filosofia. Como esta, também ela é um modo de expressão do
divino, das necessidades e exigências mais elevadas do espírito. (...)
Mas a arte difere da religião e da filosofia pelo poder de dar, das
idéias elevadas, uma representação sensível que no-las torna
acessíveis.
183
A arte pertence à esfera do Espírito Absoluto, juntamente com a
religião e a filosofia, e possui o mesmo conteúdo dessas: a verdade total, a Idéia,
que é a própria divindade. Hegel coloca a imagem de Deus no centro de tudo,
como percebe Besançon:
A arte não possui outro objetivo possível que não seja o de
representar Deus, seja qual for o nome que lhe dermos ou a forma
que ele possa assumir o Deus de Hegel, é bem verdade, um Deus
em devir e em advento dialético , mas que em sua história,
recapitula todas as figuras do divino e comanda todas as
representações arroladas pela história da arte, não somente do
passado, mas (..) do porvir.
184
182
SCHAEFFER, Jean-Marie. L’Art de L’Âge Moderne (l’esthétique et la philosophie de l’art de
XVIIIe siècle à nos jours). Paris: Gallimard, 1992, p.171.
183
HEGEL, G.W.F. Estética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993, p.12.
184
BESANÇON, Alain. A Imagem Proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1977, p.329-330.

Na arte, na religião e na filosofia o homem tenta superar os limites de
sua subjetividade na conquista da unidade suprema do Espírito ou Absoluto. A
Arte seria a primeira manifestação do Absoluto, pela qual o Espírito torna-se
consciente de seus interesses, e tem um contato inicial com a verdade
.
O Absoluto, na arte, é apreendido pela intuição sensível e captado
pelo sentimento. No domínio da atividade artística, tudo é Espírito: a verdade se
revela de maneira concreta, porque está ligada à matéria, à representação,
tornando-se presença nos elementos sensíveis que lhe dão corpo. A beleza de
que ela se reveste é uma manifestação sensível da Idéia, um produto do Espírito.
O Absoluto torna-se aparência, manifestando-se num grau insuficiente para o
pensamento conceptual. Contudo, para Hegel, a aparência deve ser interpretada
como a forma exterior de um conteúdo interno: a arte encarna o espírito na
matéria. Essa encarnação, que se realiza em formas individuais, semelhantes às
formas sensíveis e exteriores da natureza, é que constitui a Idéia ou a Beleza
manifestada na Arte. Hegel considera inútil a imitação da natureza
185
, que a
tarefa do artista deve ser a expressão do ideal. Ele compreendeu que as fases do
desenvolvimento do “gosto” estão ligadas indissoluvelmente à evolução do espírito
humano e não a uma noção dogmática de beleza.
O Ideal, obedecendo ao ritmo histórico da evolução do Espírito,
passa, segundo Hegel, por três fases de desenvolvimento, que representam três
modalidades sucessivas de expressão artística (simbólica, clássica e romântica), e
particulariza-se nas diferentes artes (arquitetura, escultura, pintura, música e
poesia).
185
Cf. HEGEL, G.W.F. Estética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993, p.13-15.

Schaeffer
186
considera que a originalidade de Hegel está no fato de
ele ser o primeiro teórico da arte que tenta conciliar uma hermenêutica histórica à
uma análise semiótica das artes: duplo projeto, representado respectivamente
pela teoria das três formas de arte
187
(arte simbólica, arte clássica e arte
romântica) e pelo sistema semiótico das cinco artes.
No entanto, a arte não é capaz, conforme Hegel, de satisfazer o total
anseio do homem pela divindade. A religião, de certa forma, supera a arte, como
certeza interior de uma alma completamente interiorizada. Mas só a filosofia, como
forma de saber completa, pode atingir a medida definitiva do Absoluto.
Hegel é, para Besançon
188
, um expositor da estética romântica, pois
ele exclui o belo da natureza e situa na arte, submetendo-o a um processo
histórico que prevê uma progressiva desmaterialização. Porém, a introdução desta
historicidade na arte é o que permite a Hegel demonstrar que o limite dela é a
sensibilidade: a arte é a apresentação sensível de uma verdade histórica.
186
Segundo Schaeffer, nenhuma destas idéias, tomadas isoladamente, são inéditas: a análise
semiótica remonta a Aristóteles e a hermenêutica histórica é um projeto tipicamente romântico
(a história da literatura de Friedrich Schlegel, por exemplo). Mas a tentativa de sua união não
havia sido tomada seriamente pelos românticos. SCHAEFFER, Jean-Marie. L’Art de L’Âge
Moderne (l’esthétique et la philosophie de l’art de XVIIIe siècle à nos jours). Paris: Gallimard,
1992, p.174.
187
A arte simbólica caracteriza-se pela separação entre o conteúdo espiritual e a realização
sensível deste. Donde sua denominação, pois o símbolo nasce quando existe uma relação entre
o signo sensível e o conteúdo espiritual significado. A arte clássica, por sua vez, atribui uma
adequação recíproca do conteúdo e da figura sensível. A reconciliação do Espírito e da matéria
torna-se possível porque a arte clássica coloca a representação da figura humana no centro de
suas preocupações. De todos os objetos sensíveis o corpo humano é capaz de exprimir a
espiritualidade que o habita. A arte clássica descobre a interioridade humana como território da
Arte, mas esta interioridade é ainda identificada com sua figura imediata, ou seja, corporal: ela
não se representa como interioridade, fechando-se como subjetividade infinita, irredutível a toda
encarnação sensível. É a razão pela qual a arte clássica é apenas um momento de equilíbrio
transitório, que é superado pela arte romântica. Pode-se dizer desta última que ela é o efeito, no
interior da Arte, desse novo momento do Espírito que o faz ir além dela
.
SCHAEFFER, J. Op.
cit., p.199-202.
188
BESANÇON, Alain. A Imagem Proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1977, p.329.
A arte, até pelo seu conteúdo, se encerra em certos limites, que atua
sobre uma matéria sensível e, portanto, apenas tem por conteúdo
um determinado grau de verdade. A idéia possui, hoje, uma
existência mais profunda que não se presta à expressão sensível:
é o conteúdo da nossa religião e da nossa cultura. (...) Na hierarquia
dos meios que servem para exprimir o absoluto, a religião e a cultura
provindas da razão ocupam o grau mais elevado, muito superior ao
da arte. A arte é, pois, incapaz de satisfazer a nossa última exigência
de Absoluto.
189
Com Schelling e Hegel, a arte ainda encontra-se subordinada ao
conhecimento racional, forma superior da verdade, que a criação artística apenas
antecipa e do qual não pode fugir. Como afirma Luc Ferry
190
, Baumgarten e Kant
tentaram, contra a redução da sensibilidade ao inteligível, contra o primado da
determinação divina sobre a finitude humana, fornecer um estatuto de autonomia
à arte, por meio da estética. Hegel, com seu historicismo, pretendia restabelecer a
primazia do divino e do inteligível sobre o sensível.
A concepção da historicidade da arte foi fundamental, também, para
a própria sistematização da história da arte. Para Gombrich
191
, Hegel, e não
Winckelmann, poderia ser considerado o “pai da história da arte”. Entretanto, ele
reconhece que Hegel apropriou-se de algumas noções de Winckelmann ao seu
pensamento. Uma delas seria a presença do divino no trabalho humano, a
manifestação de valores transcendentais por meio da arte. Outra idéia
desenvolvida por Hegel, advinda de Winckelmann, seria a de que a arte não é
tanto obra de mestres individuais, mas expressão do espírito de um povo, descrita
como “coletivismo histórico”. E, em terceiro lugar, a concepção progressiva de
estágios da arte, que iriam do surgimento até sua decadência
mostrando esta
189
HEGEL, G.W.F. Estética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993, p.13.
190
FERRY, Luc. Homo Aestheticus. São Paulo: Ensaio, 1994, p.182.
191
GOMBRICH, Ernest. Hegel e a História da Arte”, IN: Gávea, Rio de Janeiro, n.º 5, abr./1988,
p.58-59.
como uma expressão consumada, cuja necessidade implícita é inteligível
, teria
relação com o determinismo histórico da teoria de Hegel. De fato estas três idéias
serão fundamentais para a arte, na maneira como Hegel as desenvolveu em sua
teoria idealista: a presença do absoluto; o espírito do povo, que estará efetivado
nas obras dos artistas, e o determinismo histórico, responsável por sua ordenação
hierárquica no acesso ao absoluto.
A partir do Romantismo, conforme Rochlitz
192
, a estética ficou
vinculada à crítica, pois, o juízo estético deu lugar à interpretação da obra como
fonte da verdade. Desta maneira, a estética tornou-se a metodologia elementar da
crítica que, questionando a obra de arte, atinge a verdade filosófica.
Com as teorias românticas, na interpretação de Benjamin
193
, o
conceito de obra exatamente determinado tornou-se, então, correlato do conceito
de crítica. A crítica preenche sua tarefa na medida em que, quanto mais cerrada
for a reflexão, quanto mais rígida a forma da obra, tanto mais intensivamente a
crítica conduz esta para fora de si, dissolvendo a reflexão originária. A crítica é,
então, em sua intenção central, não julgamento, mas antes, acabamento,
complemento, sistematização da obra, seu prolongamento.
A crítica era, para os românticos, uma espécie de regulador da
subjetividade, casualidade e arbitrariedade no surgimento da obra. A valoração é
imanente à pesquisa objetiva e ao conhecimento da obra. Não é o crítico que
pronuncia este juízo sobre ela, mas a arte mesma, na medida em que ela ou
aceita em si a obra no médium da crítica ou a recusa.
192
Cf. ROCHLITZ, Rainer. Subversion et subvention (art contemporain et argumentation
esthétique). Paris: Gallimard, 1994, p.53.
193
Vide: BENJAMIN, Walter. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. São Paulo:
EDUSP/Iluminuras,1993.
Conforme Benjamin, para os românticos, no século XIX, a crítica é
como um experimento da obra de arte, através do qual a reflexão é despertada e
ela é levada à consciência e ao conhecimento de si mesma. A crítica ultrapassa a
observação, revela-se a diferença entre o objeto artístico e o natural, que não
admite julgamento algum. A crítica é muito menos o julgamento de uma obra do
que o método de seu acabamento.
Para Benjamin, assim como para Baudelaire, criticar é um ato
estético e político, e eqüivale a atingir o ponto de ‘acabamento’ da obra:
resgatar o sentido de uma obra, interpretá-la, significa terminá-la.
Uma obra não criticada é uma obra condenada à indiferença e ao
esquecimento. Mas significa também esforçar-se por esgotar o
conjunto de suas significações; em outras palavras, é fazê-la morrer
de tal forma que somente permaneçam vivas, para o presente, estas
mesmas significações.
194
É neste sentido que os românticos fomentaram a crítica poética: uma
crítica que pressupõe que o texto exponha novamente a obra, que formará ainda
uma vez o formado, que completará a obra, irá rejuvenescê-la e configurá-la
novamente. Pois a obra é incompleta: apenas o incompleto pode ser
compreendido, pode nos levar mais além. O completo pode ser apenas
desfrutado. Toda obra é necessariamente incompleta diante do absoluto da arte
ou diante da sua própria Idéia absoluta.
A partir da estética romântica e das concepções de intuição a arte,
apresentadas neste item, pretendemos estabelecer relações com a crítica de
Ângelo Guido e analisar a maneira como ele assimila certas noções do idealismo
em seu pensamento como crítico de arte.
194
Cf. JIMENEZ, M. O que é Estética? São Leopoldo: UNISINOS, 1999, p.332.
1.5 As teorias intuicionistas em Dilthey, Bergson e Croce
Das principais modalidades de aplicação do método da intuição, na
filosofia contemporânea, destacamos duas que se relacionam com nosso tema de
estudo: a intuição tal como a empregam Bergson (1859-1941) e Dilthey (1833-
1911), autores a que Ângelo Guido faz referência ao longo de sua obra. Temos,
pois, em Bergson uma intuição de tipo emocional e em Dilthey, uma intuição de
tipo existencial volitiva.
A intuição em Dilthey
195
caracteriza-se como sendo uma intuição
volitiva. Para ele, como para Bergson, o intelectualismo, o idealismo, o
racionalismo, todos aqueles sistemas filosóficos que estabelecem com a realidade
mais profunda o intelecto, o pensamento, a razão, todas essas filosofias são
insuficientes. Dilthey acredita que não é o intelecto que descobre a existência viva
das coisas, pois esta não pode ser demonstrada pela razão. A existência das
coisas tem que ser intuída com uma intuição de caráter volitivo, que consiste em
percebermos a nós mesmos como agentes, como seres de vontade, de desejos,
antes de sermos entes de pensamento. Mas, nosso querer esbarra em
dificuldades, as quais convertemos em coisas. As dificuldades são as que nos
dão, imediata e intuitivamente, notícia das coisas. Uma vez que nossa vontade
depara-se com obstáculos, luta contra essas resistências, convertendo-as em
existências.
Conforme Dilthey
196
, a arte é a forma mais adequada para
compreender a vida. A poética, além de seus interesses teóricos, deveria
195
Cf. MORENTE, Manuel García. Fundamentos de Filosofía. Madrid: Espasa-Calpe, 1967, p.38.
196
DILTHEY, Wilhelm. Poética. Buenos Aires: Losada, 1945.
proporcionar ao artista uma técnica, um instrumento de trabalho, uma disciplina;
ao crítico, uma pauta adequada para a análise objetiva das formas; ao filólogo, um
auxiliar para a interpretação; e ao público interessado em arte, orientações
seguras em meio ao labirinto de criações heterogêneas e gostos incompatíveis.
Dilthey parte de um ideal de ordem, tendo predileção pela arte que idealiza seus
objetos em contraste com as direções realistas de sua época. A partir de um
espírito científico, propõe infundir clareza e rigor no domínio da cultura estética.
Os interesses do saber e da ação se unem na poética de Dilthey: de
um lado, é uma teoria das formas e, de outro, é uma técnica. Ele propõe-se a
descobrir leis universalmente válidas aptas para desempenhar o papel de regras
para a criação e normas para a crítica, e intenta, além disso, vincular a técnica de
uma época e uma nação com as leis gerais. Criticando as teorias antecedentes
objetivistas e subjetivistas, empiristas e metafísicas, o romantismo e o
racionalismo de sua época
, Dilthey faz uma investigação psicológica dos
processos de criação e gozo estéticos, e uma análise objetiva e histórica das
criações artísticas.
A poética deve apoiar-se na experiência e prestar atenção a dois
aspectos: a vida anímica e a obra de arte. Da vida anímica, Dilthey ressalta a
imaginação e o sentimento. Quanto à primeira, propõe um estudo do qual deriva
algumas leis destinadas a dar luz à imaginação criadora do artista. Ele não
pretende fechar o processo vivo de criação numa rede de conexões intelectuais,
que obstruiria a espontaneidade criadora, mas sim esboçar um sistema de
coordenadas que facilite sua intelecção e torne transparente o esforço de
compreensão. Quanto aos sentimentos, ele distingue e separa, na esfera afetiva,
seis círculos de sentimentos, dos quais, a partir do primeiro
que corresponde à
ordem sensível dos processos fisiológicos do organismo
, ele faz derivar os
outros (sensações, percepções, inteligência, instinto e vontade) a que relaciona os
princípios estéticos.
Ao examinar todos os elementos do problema
processo criador,
obra artística e gozo estético
Dilthey conclui que não existe um conceito
universalmente válido do belo. Há, no entanto, um processo de criação sujeito a
leis, que radica na natureza humana e é apreensível na estrutura da vida anímica:
o seu resultado, a obra de arte, engendra satisfação no criador e gozo no
contemplador. Não uma técnica de validade geral: a forma é inseparável do
conteúdo e este é de procedência histórica.
A filosofia de Henri Bergson, por sua vez, definida como um
“evolucionismo espiritualista”
197
, constitui o ponto de referência do pensamento
francês, entre o fim do século XIX e o início do século XX. O objetivo principal de
sua filosofia é a defesa da criatividade e da irredutibilidade da consciência ou
espírito contra toda tentativa reducionista de matriz positivista
198
. Para Bergson, a
vida espiritual ou consciência é irredutível à matéria, ela é uma energia criadora e
finita.
Como filósofo, Bergson inicia sua caminhada em busca de um
conhecimento filosófico mais preciso e, partindo do estudo da doutrina
evolucionista de Herbert Spencer
199
, chega à conclusão de que o tempo da
experiência concreta escapara à mecânica. E é por meio da idéia de tempo que
ele chega ao conceito de duração:
197
REALE, Giovanni. História da Filosofia. Vol.3. São Paulo: Edições Paulinas, 1991, p.708.
198
Neste sentido, Bergson faz uma crítica a toda ciência positiva que se dirige à observação
sensível, pois “ela obtém assim materiais cuja elaboração confia à faculdade de abstrair e de
generalizar, ao juízo e ao raciocínio, à inteligência. Tendo partido, no passado, das matemáticas
puras, ela continuou através da mecânica, depois da física e da química; chegou tardiamente à
biologia. Seu domínio primitivo, que permaneceu como o preferido, é o da matéria inerte”. Cf.
BERGSON, H. “O Pensamento e o Movente”; IN: Cartas, Conferências e Outros Escritos
textos selecionados. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.117.
199
Em sua obra “Os Primeiros Princípios” (1862), Spencer define a evolução como sendo a
mudança de uma homogeneidade indefinida e incoerente a uma heterogeneidade definida e
coerente acompanhada de dissipação de movimento e de integração de matéria. Spencer
também sustenta que a realidade última é incognoscível e que o universo é mistério, dando
lugar a uma concepção otimista do devir, visto como progresso incontível. Cf. COLLINS, F.H.
Resumen de la Filosofía de Herbert Spencer. Madrid: La España Moderna, T.1, s.d., p.67.
Quando falamos do tempo, comumente, pensamos na medida da
duração e não na duração em si mesma. Mas essa duração, que a
ciência elimina, que é difícil de conceber e de exprimir, nós a
sentimos e a vivemos
.
200
A essência, pois, da duração está em fluir e, por isso, a duração
revela-se como “criação contínua, ininterrupto jorro de novidade”
201
. Destarte, nas
suas considerações sobre a duração, Bergson encaminha-se para fazer da
intuição o método filosófico:
Porque um Schelling, um Schopenhauer e outros tinham apelado
para a intuição, porque opuseram mais ou menos a intuição à
inteligência, poder-se-ia crer que aplicávamos o mesmo método.
Como se a intuição deles não fosse a busca imediata do eterno!
Como se não se tratasse, para nós, ao contrário, de reencontrar,
antes, a verdadeira duração
.
202
Bergson critica os filósofos que concebiam a intuição como busca
imediata do eterno, porque eles, tentando superar a inteligência e atingir o inefável
(a coisa-em-si kantiana), abandonaram o tempo e substituíram todos os conceitos
fornecidos pelo intelecto por um conceito único que resume a todos, mas que é
sempre o mesmo
independente do nome que receba: Substância (Espinosa), Eu
(Fichte), Absoluto (Schelling), Idéia (Hegel) ou Vontade (Schopenhauer)
203
.
200
BERGSON, H. “O Pensamento e o Movente”; IN: Cartas, Conferências e Outros Escritos
textos selecionados. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.102.
201
BERGSON, H. “O Pensamento e o Movente”, op. cit., p.105.
202
BERGSON, H. “O Pensamento e o Movente”, op. cit., p.113.
203
BERGSON, H. “O Pensamento e o Movente”, op. cit., p.125.
Então Bergson contrapõe a atividade intelectual e a atividade
intuitiva, defendendo que a filosofia não pode ter outro método a não ser o da
intuição. Por meio da atividade intelectual, tanto os cientistas quanto os homens
na vida cotidiana consideram as coisas como estáticas e tratam a realidade como
se fosse um mecanismo, cujas partes podem montar e desmontar
204
. Segundo
ele, este seria um aspecto superficial da realidade captada desta forma pelo
intelecto. Sob esta realidade mecânica, estaria a mais profunda e autêntica
realidade, que é a realidade fazendo-se, fluente, impossível de decompor, sem
distinções, sem separações, que escapa quando queremos prendê-la.
Do mesmo modo, para Bergson, o intelecto realiza sobre esta
realidade profunda e movediça uma operação primária que consiste em solidificá-
la, detê-la, em transformar o fluente em estático. Desse modo, torna-se fácil a
explicação, porque, tendo transformado o movimento em imobilidade, decompõe-
se o movimento numa série infinita de pontos imóveis.
A missão da intuição é, pois, opor-se ao trabalho do intelecto ou
pensamento. Pois o aspecto profundo e real é movimento, a continuidade do fluir,
ao qual só pela intuição podemos chegar e, para isso, é necessário:
que nos recoloquemos na duração e que recuperemos a realidade
em sua essência, que é a mobilidade. (...) A intuição de que falamos
refere-se sobretudo à duração interior, (...) é a visão direta do
espírito pelo espírito. (...) Enfim, a mudança pura, a duração real, é
algo espiritual ou impregnado de espiritualidade. A intuição é o que
atinge o espírito, a duração, a mudança pura.
205
204
Cf. MORENTE, M. G. Fundamentos de Filosofía. Madrid: Espasa-Calpe, 1967, p.35-37.
205
BERGSON, H. “O Pensamento e o Movente”, op. cit., p.113-115.
Em A Evolução Criadora (1907), Bergson passa da análise dos
dados imediatos da consciência para a elaboração de uma visão global da vida e
da realidade, propondo a idéia de evolucionismo cosmológico. Ele afirma que, a
exemplo da vida da consciência, a vida biológica não é máquina que se repete,
sempre idêntica a si mesma, mas é constante e incessante novidade, criação, e
imprevisibilidade. A vida renova-se, pois, englobando e conservando todo o
passado, cresce sobre si mesma. A idéia de evolução criadora permite-nos ir além
das dificuldades das concepções do mecanicismo
206
(causa eficiente) e do
finalismo (causa final). A evolução criadora não é um processo uniforme e
retilíneo: a vida é criação livre, imprevisível, impulso vital e a matéria é o momento
de parada desse impulso, uma espécie de refluxo.
A vida em geral é a própria mobilidade; as manifestações
particulares da vida aceitam essa mobilidade com pesar, e
constantemente se atrasam em relação a ela. A vida vai sempre em
frente, mas suas manifestações particulares de bom grado ficariam
marcando passo no mesmo lugar. A evolução em geral se faria,
tanto quanto possível, em linha reta; cada evolução especial é um
processo circular. Como turbilhões de poeira levantados pelo vento
que passa, os vivos giram sobre si mesmos, pendentes do grande
alento da vida. Eles são ,pois, relativamente estáveis, e chegam a
imitar tão bem a imobilidade ao ponto de os tratarmos como coisas
mais que como progressos, esquecendo que a própria permanência
de sua forma não passa de um projeto em movimento. (...) O ser
vivo é sobretudo um lugar de passagem, (...) o essencial da vida
reside no movimento que a transmite.
207
206
Bergson divide as teorias da evolução em duas classes: as mecanicistas e as finalistas. O
evolucionismo mecanicista, exemplificado na teoria de Darwin, sustenta que as condições
externas são as causas diretrizes da evolução e exclui a hipótese de um impulso original a vida.
O evolucionismo finalista, por sua vez, concebe que a evolução siga um plano predeterminado e
funcional em relação a uma causa final. Cf. BERGSON, H. A Evolução Criadora; IN: Cartas,
Conferências e Outros Escritos
textos selecionados. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984,
p.157-158.
207
BERGSON, H. “A Evolução Criadora”; IN: Cartas, Conferências e Outros Escritos
textos
selecionados. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.172.
Portanto, vida e matéria encontram-se na base da evolução. E essa
evolução é o constante manifestar-se da vida orgânica em sua incessante
tentativa para se libertar da inércia da matéria.
A criação, para Bergson, é a realidade impregnada de espírito.
Assim, espírito e matéria são dois pólos de uma mesma realidade. Por isso, para
ele, a metáfora literária seria o instrumento mais apropriado para a expressão
filosófica.
O filósofo Benedetto Croce
208
(1866-1952) também deixou
importantes contribuições para a história da arte. Encontrava-se num momento de
transição de um conceito racional da história a uma nova concepção que incluiria,
também, o irracional. Para Croce, a obra era produto da intuição e, partindo desta
idéia, pretendia compreender o fato artístico. Ele adotou em sua filosofia e,
sobretudo, em sua Estética (1900) um ponto de partida marcadamente anti-
histórico e assim expressava de forma inequívoca sua nova postura frente à obra
de arte. Às idéias materialistas e mecanicistas do século XIX, Croce opôs sua
teoria da intuição, a qual concebia como algo indivisível. Também acreditava que
as artes não se dividiam em categorias concretas e considerava que o mais
importante em todas as manifestações artísticas era o processo criativo, que
escapava a qualquer possibilidade de crítica.
(...) intuição quer dizer, precisamente, indistinção de realidade e
irrealidade, a imagem no seu valor de mera imagem, a pura
idealidade da imagem; e, ao contrapor o conhecimento intuitivo ou
sensível ao conceitual ou inteligível visa-se reivindicar a autonomia
desta mais simples e elementar forma de conhecimento, que tem
sido comparada ao sonho da vida teorética.
209
208
KULTERMANN, Udo. Historia de la Historia del Arte. Madrid: Akal, 1996, p.239-240.
209
CROCE, Benedetto. Breviário de Estética. São Paulo: Athena, s.d., p.22.
A arte era, para ele, um todo vivo não passível de subdividir-se em
categorias e subcategorias, como queriam os historiadores de seu tempo. Croce
reconhecia que, para falar em história da arte, era preciso não confundi-la com
história dos sentimentos, das idéias, da biografia ou da psicanálise dos artistas.
“Croce era um fanático da forma: ‘o ato estético é... forma e nada mais que
forma’.”
210
Frente à divisão usual de conteúdo e forma, ele opõe a concepção de
obra de arte instaurada na relação recíproca de conteúdo e forma que, separados,
não seriam nada. Croce estava convencido de que não haviam relações
históricas, pois os elementos formais não afetavam o caráter artístico: ‘a arte é
intuição, e a intuição quer dizer individualidade, e a individualidade não se
repete’
211
. Assim, não havendo relações entre as realizações artísticas, não
poderia haver história da arte.
Na realidade, Croce não se opunha à história da arte, mas ao
método desta que se praticava, naquele momento, pressupondo sempre relações.
E, para ele, o importante era a obra individual, viva.
(...) a arte é visão ou intuição. O artista produz uma imagem ou
fantasia; aquele que aprecia a arte volta os olhos para o ponto que o
artista lhe indicou, olha pela fresta que ele lhe abriu e reproduz em si
mesmo aquela imagem. ‘Intuição’, ‘visão’, contemplação’,
‘imaginação’, ‘fantasia’, ‘figuração’, ‘representação’, e assim por
diante, são palavras que se tornaram continuamente quase
sinônimas quando se discorre sobre a arte.
212
210
KULTERMANN, Udo. Historia de la Historia del Arte. Madrid: Akal, 1996, p.240.
211
Citado por KULTERMANN, U., Op. cit., p.240.
212
CROCE, Benedetto. Breviário de Estética. São Paulo: Athena, s.d., p. 15.
Os limites da concepção artística de Croce deve-se a sua restrição
extrema ao clássico. Para ele não existiam formas não-clássicas da história da
arte (nem Idade Média, nem Maneirismo, nem Barroco, nem a abstração
contemporânea). Croce criticava, por exemplo, a teoria de Wölfflin que chegava a
abstrações que não se correspondiam com a realidade
213
.
(...) o que dá coerência e unidade à intuição é o sentimento: a
intuição é verdadeiramente tal porque representa um sentimento, e
somente dele e sobre ele pode surgir.
214
Conforme Umberto Eco, a filosofia idealista croceana, da arte como
visão, ao definir a arte como intuição do sentimento, afirmou que ela não era nem
moral nem conhecimento: quando a reflexão e o juízo desenvolvem-se, a arte
desvanece-se, advertia Croce
215
.
A idealidade (como também tem sido chamado o caráter que
distingue a intuição do conceito, a arte da filosofia e da história, da
afirmação do universal e da percepção ou narração do acontecido) é
a íntima virtude da arte: basta que dessa idealidade surjam a
reflexão e o juízo para que a arte se dissipe e morra (...).
216
As estéticas tradicionais estavam presas a uma estrutura apriorística
e normativa, pois partiam de uma definição do conceito de Belo ligada a uma
formulação filosófica geral e levavam a considerar belo apenas aquilo que cabia
213
KULTERMANN, Udo. Historia de la Historia del Arte. Madrid: Akal, 1996, p.241.
214
CROCE, B. Breviário de Estética. Op. cit., p.33.
215
ECO, Umberto. A Definição da Arte. Lisboa: Edições 70, 1972, p.15-16.
216
CROCE, Benedetto. Breviário de Estética. Op. cit., p.23.
dentro destes esquemas. A estética croceana não escapa deste condicionamento,
pois ligava o reconhecimento da beleza à aceitação prévia de uma doutrina do
Espírito e das suas atividades.
217
(...) a estética idealista ensinou-nos que a verdadeira invenção
artística nasce nesse instante da intuição-expressão que se
consome totalmente na interioridade do espírito criador; a
exteriorização técnica, a tradução do fantasma poético em sons,
cores, palavras ou pedra, era apenas um fato acessório, que não
acrescentava nada à plenitude e definitude da obra.
218
Como reação à esta postura idealista, segundo Umberto Eco, a
estética contemporânea teria se insurgido, voltando a valorizar a matéria, para
compreender que não há valor cultural que não nasça de uma vicissitude histórica
nem espiritualidade que não se manifeste por meio de situações corporais
concretas.
219
Após considerarmos as principais teorias filosóficas e estéticas que
abordaram a intuição como forma de conhecimento ou percepção artística, temos,
então, elementos para analisar como estas foram interpretadas e utilizadas por
Ângelo Guido, bem como para examinar as concepções de intuição, conhecimento
e criação artística presentes em sua crítica, como o faremos no capítulo 2.
217
ECO, U. A Definição da Arte. Lisboa: Edições 70, 1972, p.25-26.
218
ECO, U. A Definição da Arte. Op. cit., p.200.
219
ECO, U. A Definição da Arte. Op. cit., p.201.
II - OS FUNDAMENTOS DO PENSAMENTO CRÍTICO DE
ÂNGELO GUIDO
2.1 A intuição como requisito para a compreensão da
obra de arte
Neste item trataremos da concepção de intuição, em Ângelo Guido,
como sendo um elemento necessário para a compreensão da obra de arte, e de
como a realização dessa depende do processo de aquisição da consciência, ou da
visão de mundo, em cada cultura.
Ângelo Guido foi um intelectual sempre atualizado em relação às
idéias de seu tempo. Como artista e professor, ele foi constituindo o seu campo de
atuação, abrindo espaços novos das mais diversas formas, sempre visando à
educação do olhar e do gosto da sociedade para as coisas da arte e da cultura,
em geral, e procurando expor o seu pensamento de forma didática.
O embasamento teórico de Ângelo Guido não se limitava à arte, pois
sua sólida formação intelectual permitiu fundamentar as noções de arte, criação
artística e julgamento estético, relacionando filosofia, história e crítica de arte,
considerando ainda os aspectos sociais, econômicos e religiosos de cada cultura.
É importante sabermos, também, que, como intelectual, Guido não desconsiderou
os elementos místicos e esotéricos de sua reflexão teórica, pois, para ele, vida,
amor e arte seriam indivisíveis e, praticamente, sinônimos. Para compreender seu
pensamento, é preciso ter presente todas estas noções interligadas, ou melhor,
usando um termo que ele adotou de Bergson, simpatizar com sua visão de
mundo.
Na concepção de Ângelo Guido, a obra de arte deve ser uma
expressão, criada de tal maneira que permita ao observador recompor, reviver a
realidade viva que se expressou. Por isso, para julgar uma obra, é preciso,
primeiro, saber compreendê-la, e compreender
não é, simplesmente, analisar e descrever a forma e estabelecer
relações de seus elementos estruturais com os de outras formas
conhecidas. Compreender é penetrar interiormente, ressuscitar a
vida, extrair do imóvel a mobilidade, da aparência o real, do
superficial o profundo.
220
Nessa maneira de compreender a obra de arte, encontram-se
implicadas outras noções, tais como as de realidade, aparência, expressão, forma,
enfim, noções estas que, desde seus primeiros escritos, Ângelo Guido pretendeu
explicitar. A obra Ilusão
221
, de 1922, traz as concepções básicas de seu
pensamento, as quais, mais tarde, aprofundará em outros trabalhos
222
. Neste
texto, através de uma profunda reflexão, Guido aproxima as filosofias e as artes
ocidentais e orientais, chegando à conclusão de que, para compreender a
essência de uma cultura, é preciso emotividade, intuição, e não apenas
conhecimento e técnica.
Ângelo Guido, tendo como parâmetro a teoria de Bergson sobre o
conhecimento, explicita ser por meio da intuição
223
que podemos compreender o
sentido da obra de arte, tornando-o vivo
.
Através da simpatia intelectual ou
simpatia divinatória, bergsoniana, é possível penetrar no interior do objeto e atingir
o que ele tem de inexprimível. Ao contrário da análise, que se encaminha no
220
GUIDO, Ângelo. Forma e Expressão na História da Arte. Porto Alegre: Estado do Rio Grande do
Sul, Imprensa Oficial, 1938, p. 57.
221
GUIDO, Ângelo. Ilusão ensaio sobre ‘a estética da vida’. Santos: Instituto Escolástica Rosa,
1922. Esta obra é uma crítica ao livro de Graça Aranha, ‘A Estética da Vida’.
222
Os conceitos básicos de seu pensamento, Guido também apresenta na obra Forma e
Expressão na História da Arte, Porto Alegre: Estado do Rio Grande do Sul, Imprensa Oficial,
1938. Este trabalho é a tese com a qual concorreu no concurso para professor catedrático de
História da Arte do Instituto de Belas Artes da Universidade de Porto Alegre, em 1936.
223
A intuição, para Bergson, “é a visão direta do espírito pelo espírito. Nenhuma interposição;
nenhuma refração através do prisma do qual uma face é espaço e outra é linguagem. Intuição
significa, pois, primeiramente consciência imediata, visão que dificilmente se distingue do objeto
visto, conhecimento que é contato e mesmo coincidência. (...) A intuição é coincidência absoluta
do sujeito com o seu objeto, do sujeito consigo próprio.” Cf. BERGSON, H. A Intuição Filosófica.
Lisboa: Colibri, 1994, nota 34, p. 35. A maneira como Guido interpreta e adota este conceito de
“intuição” aproxima-se, conforme ele mesmo explicita, da noção de Einfühlung, tal como a
desenvolveram Lipps e Worringer. Cf. GUIDO, Ângelo. Forma e Expressão na História da Arte,
op. cit., p.29.
sentido de traduzir os mbolos de uma representação, a intuição
permitiria
perceber o “palpitar da alma” que criou.
Referindo-se à percepção da realidade, Bergson, em 1903, dizia
que a análise multiplica sem fim os pontos de vista para completar a
representação sempre incompleta, levando-nos assim a girar
eternamente em torno do objeto sem apreender-lhe nunca a
realidade absoluta.
224
Diferentemente da análise, a intuição ou simpatia intelectual projeta o
sujeito para fora de seu conjunto de conceitos e de sentimentos preestabelecidos,
elimina as resistências psíquicas e aproxima ao que existe de inefável na vontade
de forma de cada homem histórico. Toda obra de arte, tanto a coletiva quanto a
individual, expressa o sentido da vida do homem histórico, pois
o artista não é uma expressão isolada no ciclo cultural em que vive.
Sua alma está feita, por assim dizer, da substância da alma coletiva.
(...) Pela obra de arte, não nos transportamos ao que foi vivo
numa personalidade artística e continua vivendo na mágica
eternidade da expressão e da forma, como, através do que aquela
vida exaltada em emoção estética revelou de si mesma, chegamos a
mergulhar na viva profundidade de toda uma cultura, no seu viver,
no seu sentir, no fluir de seu ritmo emotivo.
225
É preciso colocar-se nesse estado de simpatia intelectual para tornar
a sentir a obra de arte como a sentiu o artista que a criou, conforme Ângelo Guido.
Mas essa projeção intuitiva é uma atitude de receptividade emotiva, é uma
atenção que pressupõe a ligação com as nossas forças espirituais. O historiador
de arte precisa projetar-se para poder compreender a expressão de um ciclo de
224
GUIDO, Ângelo. Forma e Expressão na História da Arte, op. cit., p.57-58.
225
Idem, p.58.
cultura e não deixar que a obra de arte se torne uma coisa morta: é preciso
simpatizar para conhecer.
Conforme Baumer, como uma crítica ao positivismo e à concepção
mecanicista de mundo, a teoria de Bergson surgiu afirmando que apenas a
intuição poderia dar ao homem um verdadeiro conhecimento da natureza e da
vida.
A intuição, que Bergson definiu como instinto, tornava-se consciente
de si própria, ia direta ao seu objetivo, enquanto o intelecto somente
podia andar à sua volta e tirar instantâneos de estados” e
“instantes” selecionados
.
226
Henri-Louis Bergson, no texto Introdução à Metafísica
227
, diferencia a
metafísica e a ciência para explicitar que existem dois métodos de conhecimento:
um, quando se volta para o objeto em vista de uma medida e, outro, que dispensa
a comparação e apenas simpatiza com a realidade. O primeiro método relaciona-
se com a matéria e trata do tempo espacializado e do espaço; o segundo refere-se
ao espírito e trata da duração real. Ele chama de científico o primeiro e de
metafísico o segundo, embora ambos se auxiliem mutuamente.
O interessante é que, opondo-se à forma convencional de definir a
objetividade científica, Bergson afirma que o conhecimento científico é relativo,
enquanto que o metafísico é absoluto, pois somente este entra realmente no
objeto, ao contrário do outro, que apenas o rodeia. O conhecimento científico é
226
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno
séculos XIX e XX. vol.2. Rio de
Janeiro: Edições 70, 1977, p.136.
227
Texto publicado na Revue de Métaphysique et de Morale, em 1903. Aqui utilizamos a tradução
brasileira: “Introdução à Metafísica”; IN: BERGSON, Henri. Cartas, Conferências e Outros
Escritos
textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
relativo porque depende do ponto de vista em que se coloca o pesquisador e dos
símbolos que utiliza. O fato de existir um ponto de referência faz com que o sujeito
esteja fora do objeto. Ao passo que o conhecimento metafísico simpatiza com os
estados de alma que insere nos objetos, por meio da imaginação: “e o que
experimentarei não dependerá nem do ponto de vista adotado em relação ao
objeto, nem dos símbolos pelos quais poderia traduzi-lo, pois terei renunciado a
toda a tradução para possuir o original”
228
.
Bergson afirma, ainda, que mesmo num romance em que o autor
possa variar como quiser o caráter, a ação e a fala da personagem, nada disso
valerá o simples sentimento de coincidir por um instante com a própria
personagem. Assim, é possível, para Ângelo Guido, conceber que se possa sentir
a obra como o artista que a criou, através desse conhecimento intuitivo.
Tudo o que me é contado acerca da pessoa me fornece pontos de
vista sobre ela. Todos os traços pelos quais me descrevem-na, e
que podem fazer com que eu a conheça através de comparações
com pessoas ou coisas já conhecidas, são signos pelos quais a
exprimimos mais ou menos simbolicamente. Símbolos e pontos de
vista me colocam, pois, fora dela; apenas me fazem conhecer dela o
que tem em comum com outros e que não lhe pertence
propriamente. Mas o que é propriamente ela, o que constitui sua
essência, não poderia ser percebido de fora, pois é, por definição,
interior, nem expresso por símbolos, pois é incomensurável com
qualquer outra coisa. Descrição, história e análise me deixam, pois,
no relativo. Somente a coincidência com a própria pessoa me daria o
absoluto.
229
Desta forma, o conhecimento absoluto é sinônimo de perfeição.
Toda representação é a tomada do objeto de um certo ponto de vista; uma
fotografia, a tradução de um poema usam símbolos nunca suficientes para captar
o sentido interno do original. Se o absoluto é perfeito e infinito, pelo fato de sua
228
BERGSON, Henri-Louis. Introdução à Metafísica, op. cit., p.13.
229
Id. Ibid., p.14.
apreensão ser ao mesmo tempo indivisível e inesgotável, então ele pode ser
dado numa intuição. Para Bergson, intuição é “a simpatia pela qual nos
transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de
único e, conseqüentemente, de inexprimível”
230
. A intuição define-se em oposição
à análise, a qual “é a operação que reduz o objeto a elementos já conhecidos”
231
.
Analisar consiste, pois, em exprimir uma coisa em função do que
não é ela. Toda análise é, assim, uma tradução, um
desenvolvimento em símbolos, uma representação a partir dos
pontos de vista sucessivos, em que notamos outros tantos contatos
entre o objeto novo, que estudamos, e outros, que cremos já
conhecer. Em seu desejo eternamente insatisfeito de abarcar o
objeto em torno do qual ela está condenada a dar voltas, a análise
multiplica sem fim os pontos de vista para completar a
representação sempre imperfeita. Ela se desenvolve, pois, ao
infinito. Mas a intuição, se ela é possível, é um ato simples.
232
A ciência, para Bergson, teria por função analisar, enquanto que a
metafísica dispensa os símbolos e, através da intuição, pode ter a realidade de
maneira absoluta. E uma realidade que todos apreendem de dentro, por
intuição, que é o próprio eu em seu fluir no tempo, o eu que dura: “podemos não
simpatizar intelectualmente, ou melhor, espiritualmente, com nenhuma coisa. Mas
simpatizamos, seguramente, conosco mesmos.”
233
Nesse ponto, Ângelo Guido
concorda plenamente que é em nós mesmos que encontramos o verdadeiro
conhecimento:
Todavia, depois de nos atormentarmos na procura da verdade
através da filosofia, da religião e da ciência, depois de folhear as
obras dos gênios e interrogar todas as esfinges, verificamos que a
230
BERGSON, Henri-Louis. Introdução à Metafísica, op. cit., p.14.
231
Id. ibid.
232
Id. ibid., p.14-15.
233
Id. ibid., p.15.

sabedoria humana só nos deu dúvidas e desenganos e que, só
dentro de nós a possibilidade de encontrar o sossego e a
explicação do torturante problema do Ser.
234
A maneira de tornar-se consciente de si, nesta busca da verdade, de
que fala Guido, assemelha-se com a forma como os românticos explicavam a
unidade entre o Eu individual com a totalidade, ou o espírito Absoluto, como vimos
anteriormente. O espírito expressa-se por meio da arte, da religião, das
realizações do sujeito no mundo.
O espírito, em contato com o mundo, expressa sua emoção,
desenvolve-se e cria. É pela emoção, que está em constante devir, que o espírito
tem consciência de si mesmo. A essência de uma cultura, para Guido, está nesse
vir-a-ser, que nasce como algo irracional, incipiente, ilimitado, e vai tomando forma
própria, vai atingindo sua plena capacidade de expressão, seu estilo próprio, sua
racionalidade, seu limite.
E chega uma fase em que a vaga emoção se define em conceito,
em que o irracional emerge para o racional e nele se cristaliza, toma
forma. A plenitude da forma é uma resistência ao vir-a-ser, como o
conceito é uma resistência ao puro sentir. Em ambos os casos,
passa-se do ilimitado à limitação, do indefinido viver ao circunscrito.
Uma obra de arte em que, pelo sentimento, não se adivinhe a
emoção viva e fluente de onde surgiu, não passa de uma imagem
petrificada da vida.
235
No início, enquanto a emoção é original e espontânea, a arte é puro
jogo, é magia, espanto. Não conceitos, nem perguntas, porque o homem
sabe sentir. A representação da forma é um ritual pelo qual o homem se apodera
da imagem das coisas e dos seres que o cercam. Depois, aos poucos, sua
234
GUIDO, Ângelo. Ilusão
ensaio sobre a estética da vida’. Santos: Instituto Escolástica Rosa,
1922, p.79.
235
GUIDO, Ângelo. Forma e Expressão na História da Arte, op. cit., p.58.

consciência procura o sentido do cosmos, a emoção pura vai tornando-se mais
concentrada e a vontade de expressão passa a se definir na forma de ver, na
visão de mundo de cada cultura. Atingir a plenitude da expressão é chegar a ter
um estilo próprio e um sentido para a vida.
O sentimento estético de uma cultura surge dessa emoção criadora
concentrada; porém, sozinha, a emoção seria desordenada, por isso a inteligência
a acompanha como responsável pela reflexão e pela procura do significado das
coisas:
A imagem cósmica, a particular imagem que cada Homem Histórico
forma da realidade, o emociona e arrebata, o seduz e espanta, mas,
ao mesmo tempo, o faz pensar e indagar. O pensamento plasma a
substância da emoção e lhe procura uma forma(...). A inteligência,
cheia do indeterminado conteúdo emocional de onde surgiu, trabalha
no mundo da forma, guia, por assim dizer, a emoção, na procura da
imagem que a expresse no reino das limitações.
236
O que foi produzido, aquilo que ganhou forma, é uma expressão que
se cristalizou, tornou-se uma limitação. Toda expressão reduzida, limitada, não
consegue traduzir toda a realidade da vida, porque é apenas uma relação entre a
infinita possibilidade do vir-a-ser.
Na alma histórica há uma evolução implícita que conduz do irracional
para o racional, do sentimento para o conhecimento, do ilimitado para o limite. E é
no limite, na resistência ao devir, que a vida toma consciência de si. Uma cultura
evolui em função de aprofundar sua consciência e expressão, assim como a arte
evolui enquanto se busca pelo sentido ainda não-expresso.
236
Idem, p.38.

Segundo Ângelo Guido, uma cultura evolui em seus estilos, desde o
mero simbolismo até as mais elaboradas formas de arte, buscando atingir a
perfeição, tal qual a imagina cada homem histórico. À medida que atinge a
plenitude de seu desenvolvimento criador, a cultura chega ao limite, atingindo a
plena consciência de sua vontade de expressão e chegando à união de
inteligência e emoção, conhecimento e intuição. A partir de então, “incapaz de
superar-se, o movimento expansivo da vida petrifica-se na forma definitiva,
invariável, rígida, que, a seguir, perderá cada vez mais seu conteúdo espiritual.
Cria-se a tradição, que, com o tempo, acabará degenerando-se em puras fórmulas
acadêmicas”
237
.
Esta concepção evolutiva das formas, em Guido, apresenta
elementos tanto da visão de Hegel
238
, que classifica as artes em simbólica,
clássica e romântica, quanto da explicação de Worringer
239
à transição que ocorre
entre a abstração e a figuração.
Guido diferencia os estilos nas culturas através da maior ou menor
quantidade de emoção ou de inteligência. Nas culturas de emoção mais ardente,
predomina o irracional sobre o racional, e o sentido da ornamentação é mais vivo.
Nas culturas onde está mais presente o senso de realismo, a arte figurativa pura
exprime o limite.
237
GUIDO, Ângelo. Forma e Expressão na História da Arte, op. cit., p.39.
238
Cf. HEGEL, G. Estética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993, II Parte. Vide também o item 1.4
deste trabalho.
239
“A evolução estilística da arte nos diferentes povos revela, exatamente como sua teogonia, os
diferentes níveis do que chamamos o sentimento vital. (...) Enquanto o afã de Einfühlung, como
suposto da vivência estética, encontra sua satisfação na beleza do orgânico, o afã de abstração
encontra a beleza no inorgânico e negador da vida, no cristalino ou em toda sujeição à lei e
necessidade abstratas. (...) Uma tendência abstrata revela-se na vontade de arte dos povos em
estado de natureza, na vontade de arte de todas as épocas primitivas e na vontade de arte de
certos povos orientais de cultura desenvolvida. Por conseguinte, o afã de abstração encontra-se
no princípio de toda arte e segue reinando em alguns povos de alto nível cultural, enquanto que
entre os gregos, por exemplo, e outros povos ocidentais vai diminuindo lentamente até que
acaba por substituí-lo o afã de Einfühlung. Cf. WORRINGER, W. Abstración y Naturaleza.
México: Fondo de Cultura Económica, 1953, p.18-28.

Repare-se que precisamente nos períodos de mais clara expressão
intelectual, em que o espírito procura firmar o sentido da vida em
conceitos limpidamente definidos, a linha pura, como símbolo de
limite, alcança seu maior desenvolvimento. Ao dinâmico movimento
das massas se opõem as formas de superfícies claras, de nítidos
contornos, como na estatuária grega, na limpidez de seu estilo
arquitetônico(...). É a mesma pureza linear do baixo-relevo egípcio e
da pintura renascentista.
240
A tendência de uma cultura é a de atingir a plenitude da sua
expressão artística, criando, assim, sua grande arte, que tanto pode ser produto
de muita tensão emotiva, quanto o desenvolvimento de uma lógica e um
pensamento certo de sua meta a ser expressa. No entanto, não se pode tomar
uma cultura como parâmetro de medida para avaliar o que é uma obra de arte.
Por muito tempo, tomou-se o raciocínio grego, expresso na dialética
platônica e no ritmo arquitetônico do Partenon, como modelo para medir o
pensamento estético de outras culturas. Entretanto, segundo Guido, “cada cultura
tem sua própria lógica, sua própria maneira de construir, nos domínios da Arte,
seus conceitos fundamentais.”
241
Conforme ele, em toda arte há um fundo de vida
emotiva, pertencente ao domínio do irracional e há, também, elementos
elaborados pela experiência do intelecto que podem ser transmitidos de uma
cultura para outra. Os elementos que não podem ser transmitidos são aqueles
ligados ao sentimento, à emoção da criação, ao irracional. A originalidade e o
estilo de uma cultura são produto da emoção, portanto, estes não são
transmissíveis. A essência da arte de um povo não pode ser transmitida, pois “não
há comunicação de alma a alma e, sim, de inteligência a inteligência”
242
.
240
GUIDO, Ângelo. Forma e Expressão na História da Arte, p.41.
241
Idem, p. 42.
242
Id. Ibid., p.47.

Mesmo assim, os elementos transmitidos de uma cultura, quando
entram em outra, sofrem modificações e adaptações. Por isso, é impossível o
retorno fiel a um velho estilo, porque cada cultura imprime sua vontade de forma,
seu estilo, sua característica na obra.
Por meio do entendimento, da análise, se pode compreender de
maneira superficial o que é essencial numa cultura, numa expressão artística,
porque esse essencial transcende à capacidade do intelecto de definir em
conceitos, em formas limitadas, que são insuficientes para atingir o que é
constante vir-a-ser.
Do irracional ao racional, do ilimitado para o limitado, toda cultura
caminha para ser expressa em limites. A obra de arte é uma forma limitada, mas
esta forma tem conteúdo, ela cristalizou um momento da vontade de expressão, e
por meio dela podemos atingir um pouco do constante fluir emotivo de uma
cultura.
Por isso, quando se busca o sentido da obra, não se pode prescindir
da compreensão da forma, pois esta é o resultado de uma efetivação dentre várias
possibilidades de expressão. A estética deve preocupar-se, então, com o sentido
que tomou forma, criando uma imagem, uma objetividade no mundo, passando do
puro sentir para o produzido.
Segundo Ângelo Guido, o problema da arte é a questão da forma e
do significado. Por isso, forma e expressão devem ser concebidas como uma
totalidade. Essa totalidade pressupõe o contexto, emocional e social, onde a obra
foi criada, além da estrutura da forma, ou seja, a linguagem em que foi concebida.
Entretanto, para compreender o que existe de vivo na obra, é
necessário desfazer-se dos conceitos preconcebidos, das limitações que os
pontos de vista e as teorias impõem àquele que percebe.

Em geral o Eu do observador é o produto de um conjunto de pontos
de resistência a toda verdadeira compreensão, a toda comunicação
viva com o objeto observado. São idéias feitas, preconceitos,
complexos conscientes ou inconscientes de disposições intelectuais
e psicológicas que impedem a clara visão e uma comunicabilidade
receptiva entre nós e o que na obra de arte é essencial.
243
Se o sujeito que julga, tomar consciência de seus pontos de
resistência, criados em sua mente pelo processo de formação cultural da época
em que vive, chegará à conclusão de que, para a compreensão de um ciclo
estético, é preciso desfazer-se das fórmulas prontas e adotar uma livre atitude de
“pura sensibilidade receptiva”. Esta talvez fosse a postura que o próprio Guido
procurava adotar para julgar as obras, enquanto crítico.
Desta forma, na acepção de Guido, muitos teóricos erraram ao
propor uma fórmula de olhar a obra de arte, como, por exemplo, Taine, que teria
reduzido a percepção estética à categoria da análise de formas mortas, ou mesmo
os teóricos que fundamentaram suas abordagens no preconceito classicista de
que a finalidade da arte é “revelar a Beleza”
244
. Esse preconceito classicista, o
qual pressupõe que a beleza seja a finalidade da arte, procura a forma perfeita,
arquetípica, ou uma realidade onde as formas existam como idéias. As idéias, no
pensamento platônico, são os modelos das coisas e, pela sua participação nas
coisas, entendemos a sua semelhança. A idéia é universal e imutável, participa
das coisas e pode ser separada pelo raciocínio. Nessa concepção platônica,
fundamenta-se o princípio estético dos gregos. Policleto e Lisipo, quando
estabeleceram os cânones das proporções humanas, buscavam a imutabilidade
dos estados de alma, uma figura tranqüila, harmoniosa e imperturbável realidade
plástica.
243
GUIDO, Ângelo. Forma e Expressão na História da Arte, op. cit., p.51.
244
Id. Ibid., p.52.

Esses conceitos ajudam a compreender o significado da estética
clássica. Por outro lado, trouxeram uma disposição fechada para a historiografia
da arte, tornando-a incapaz de compreender a forma e a expressão de todas as
manifestações artísticas que não se aproximam do ideal de beleza clássico. Esse
tipo de determinação da visão estética não consegue entender, por exemplo, a
linguagem dos estilos orientais, nem o barroco ou o gótico, conforme Ângelo
Guido.
Cada verdadeira obra de arte encerra a profundidade de um sentido
e esse não se alcança pela simples análise superficial da forma. Se,
entretanto, deixando de lado qualquer ponto de vista pessoal,
tentarmos nos identificar à vida que através da obra de arte procurou
expressar-se, então o perpetuamente vivo será atingido.
245
Ângelo Guido insiste em que a teoria é um limite e, comparando-a
com o mergulhador que pretende conhecer as profundezas do mar a partir do que
de dentro de um escafandro, lembra que sempre existirão as profundidades
insondáveis, o que ainda não foi atingido pelo conhecimento ou pelo olhar
humano. Assim também ocorre com a arte: além do que se pode ver e analisar
existem as profundidades insondáveis “palpitantes de vida”.
Essas profundidades inefáveis do ser podem ser atingidas por
meio de uma intuição, de uma projeção sentimental, de uma espiritualidade. À
união de arte com religiosidade é um dos encaminhamentos a que chega,
também, a teoria crítica de Ângelo Guido, como veremos a seguir.
245
GUIDO, Ângelo. Forma e Expressão na História da Arte, op. cit., p.57.

2.2 Arte e religiosidade: o ideal de arte como realização
do evangelho da beleza
Na época em que escrevia suas críticas para o jornal A Tribuna
246
,
Ângelo Guido apresentava suas idéias, em geral, estabelecendo um paralelo entre
a criação artística, como criação humana, e a perfeição da criação na natureza,
como criação divina. Este paralelo estava vinculado a sua religiosidade que, mais
tarde, servirá para que Guido estabeleça a necessidade de a arte voltar-se para a
espiritualidade humana, seguindo uma espécie de evangelho da beleza.
Numa mistura de misticismo religioso com a filosofia platônico-
aristotélica e o pensamento de Hegel, Ângelo Guido abordava a vida por meio de
uma teosofia onde a natureza seria o grande palco em que se refletiria a obra
mestra das idéias, dos pensamentos, da força espiritual divina.
Tudo é mistério dentro do eterno Mistério, que é um mistério também
para si mesmo, porque Deus não conhece a si mesmo, assim como
o olho não pode a si mesmo contemplar.
247
Esta relação da arte com a religião é bastante presente na estética
do Romantismo, onde a sacralização da expressão artística tornou-se o modo de
atingir a verdade do absoluto. De certa forma, esta ligação do homem com a
natureza é característica da relação romântica em que a paisagem passa a ser um
246
No jornal A Tribuna, Ângelo Guido assinava nos artigos, geralmente, apenas o seu sobrenome
(Guido Gnocchi), e algumas vezes assinou o nome junto com o primeiro sobrenome (Ângelo
Guido). Depois de fixar-se em Porto Alegre, passou a assinar sempre Ângelo Guido em todas
as suas publicações.
247
GNOCCHI, Guido. “Mistério Eterno”, A Tribuna, Santos,
12.03.1918, p.4.

cenário, onde se projeta tudo, desde um sentimento quase religioso, a uma
expressão do estado de espírito do artista.
A flor, um dos exemplos que Guido menciona como obra artística da
natureza, concretiza, na sua forma, a beleza da visão espiritual. Ela é a
manifestação inconsciente, segundo Guido, de uma alma presa à terra, uma alma
vegetal, mas que também quer revelar o mistério que tem dentro de si através da
forma, da cor e do perfume. As flores seriam formas de pensamento objetivadas
no plano físico.
Há, para ele, uma evolução destas formas de pensamento entre os
seres da natureza, desde as árvores até os homens. Assim como, através dos
vegetais, palpita uma vida consciente e misteriosa, através de tudo
até mesmo
das pedras
, se agita a mesma alma infinita, que se revela tanto na fealdade
como na beleza, porque tudo é vida, pensamento, espírito, e a matéria é uma
forma de energia, um símbolo com que representamos a nossa consciência, uma
das modalidades energéticas do Ser absoluto.
Esta concepção da natureza
248
como organismo vivo, crescente,
criativo, em devir encontra-se de forma bastante radical no pensamento romântico
alemão, que se voltou para as analogias biológicas como modo de criticar os
conceitos da ciência mecanicista.
248
Os românticos descreviam a natureza como naturans, isto é, animada por um princípio vivo em
oposição a uma natura naturata, isto é, um produto acabado e morto. Herder e Goethe foram
importantes nesta mudança para o pensamento ‘biológico’. Na sua obra Deus (1787), Herder
deu vida ao sistema filosófico abstrato de Espinosa, representando a natureza como vibrando
com a atividade de deus. Herder estava à procura de uma concepção do Absoluto como devir, e
a idéias concomitante de uma evolução criativa. O Deus de Schelling ou Absoluto realiza-se a si
próprio, às suas potencialidades e propósitos, no processo temporal, na natureza e na arte.
Deste modo, a natureza é um poder criativo que se abre para alcançar formas sempre novas e
melhores, e para se tornar consciente através do próprio homem. Apesar dos tons teleológicos,
a filosofia da natureza também ajudou a criar um clima favorável à idéia de evolução. Goethe,
por sua vez, concebia a natureza como toda viva, e a totalidade dos fenômenos era tida como
produção orgânica da forma ‘interior’. Cf. BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu
Moderno
séculos XIX e XX. vol.2. Rio de Janeiro: Edições 70, 1977, p.35-37 e REALE,
Giovanni. História da Filosofia. Vol.3. São Paulo: Paulinas, 1991, p.40.

E, seguindo uma acentuação própria do idealismo, Guido acredita
que tudo no Universo é pensamento e as formas são apenas a objetivação de
realidades abstratas e indizíveis. O grau de perfeição ou de beleza de uma forma
revela o grau evolutivo ou a força de expressão que uma alma alcançou em sua
escalada para o ideal. Todas as coisas e os seres têm dentro de si uma forma
transparente, impalpável, que procura no exterior uma expressão, ummbolo que
revele ou que reflita em outras almas a beleza transcendental, os pensamentos
que participam da sua existência misteriosa. Em cada coisa parece existir um
espírito que busca a si mesmo na revelação universal das formas.
Lembrando o pensamento idealista, tal como este se apresenta nas
filosofias de Platão e de Hegel, Guido argumenta que as coisas são idéias que
estão na ideação cósmica, e os objetos não são senão expressões da eterna
Idéia: Deus. Os pensamentos divinos surgem no “seio misterioso do Ser e da
serena região do incognoscível, das alturas do Espírito”
249
, vão objetivando-se até
tornarem-se concretos, até tornarem-se matéria. Por isso, a Natureza é o grande
refletor da Idéia eterna.
Da mesma maneira, natureza e Deus são idéias que os românticos
não concebiam separadamente. Baumer acredita que o Romantismo despertara
uma renovação religiosa, de cujas formas, uma delas foi o misticismo religioso que
unia natureza e espírito divino.
Os românticos encontraram também, de um modo característico,
Deus na Natureza (....). Estes ‘sobrenaturalistas naturais’,
revoltando-se contra o mecanicismo de Newton, procuravam fazer
da natureza um lugar em que o homem pudesse, outra vez, viver e
sentir-se perto de Deus e resolver assim o problema do dualismo
que incomodara o homem pensante, desde o tempo de Descartes. O
ímpeto desta nova maneira de pensar sobre a natureza veio, entre
outros, de Rousseau, para quem a contemplação da natureza levava
ao êxtase místico (...); e de Goethe, que, nos seus estudos
249
GNOCCHI, Guido. “Mistério Eterno”, A Tribuna, Santos,
12.03.1918, p.4.

morfológicos estava sempre a tentar descobrir os princípios originais
e íntimos das coisas, o eterno no infinito. (...) Este novo misticismo
da natureza estava presente também na filosofia de Schelling, que
criticando a concepção da natureza de Fichte como um obstáculo a
ser ultrapassado pelo ego, esforçou-se por sintetizar Deus, o homem
e a natureza, representando a natureza como o Espírito visível”
culminando no próprio homem, e o espírito como “Natureza
invisível”.
250
Conforme Guido, os nossos pensamentos são expressões que
podem materializar-se na palavra escrita ou falada, no som, na cor ou na forma.
Ele concebe o mundo de uma forma holística, pela qual o Universo vive dentro de
uma unidade, em que todos os vários aspectos da vida universal são como
vibrações de uma única energia: tudo é um. Porém, desta manifestação toda da
“eterna beleza”, nós percebemos um fragmento, uma parte, ou seja, aquilo que
é permitido pelos nossos sentidos, os quais, segundo ele, ao invés de auxiliar-nos
a conhecer a realidade, desfiguram essa realidade, permitindo-nos ter do Universo
apenas uma idéia subjetiva.
Tanto quando explica a organização da natureza e sua expressão,
comparando com a criação artística, quando fala da arte em si, Guido assume um
tom poético, revelando sua vontade de ser um artista de várias linguagens, o
poeta das cores e das palavras. Considera o artista como um ser especial, um
demiurgo, um gênio: assemelha-o a um deus que, criando o mundo, possui em si
o caos das aspirações supremas que se traduzirão em formas. Conforme Guido,
Deus não cria, mas se manifesta, não tira coisa nenhuma de nada: tira de sua
substância e de sua mente o Universo concreto. Da mesma forma o artista, quer
seja poeta, pintor, escultor ou músico, não tira do nada a sua obra, mas sim de si
mesmo, do próprio pensamento.
250
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno
séculos XIX e XX. vol.2. Rio de
Janeiro: Edições 70, 1977, p.34-35.

Assim Deus procura conhecer a si mesmo através do mundo
objetivo; assim como as estrelas comungam com o infinito na
vibração de sua luz ou de seu canto, (...) assim como o músico
transmite ao mundo físico um eco da harmonia de si, assim também
os pintores revelam a interior beleza pela linguagem das linhas e das
cores, da mesma maneira que o escultor encarna o seu verbo na
forma perfeita de alguma obra-prima (...)
251
Para Ângelo Guido, o universo não teria razão de existir se não
houvesse uma causa superior a ele, e essa causa não é um Deus antropomorfo,
mas algo incognoscível, um Ser eterno e absoluto, que só se torna consciente
quando se manifesta através do universo. Esta causa maior, incognoscível e sem
causa anterior, é a vida eterna que circula através de tudo, é a vibração primeira
de onde emanaram todos os centros vibratórios que foram se transformando em
átomos, moléculas, elementos, nebulosas, mundos, sistemas de mundos, vias-
lácteas, o cosmos, Guido a chama de Deus
252
.
Nada se perde, nada morre, nada desaparece para nunca mais
aparecer, mas tudo se transforma, ressurge e evolui, e assim
evoluem e ressurgem os seres, as coisas, as almas, os mundos e os
próprios universos; Ele é sempre o mesmo, Ele reina
eternamente, envolto nas trevas insondáveis do Eterno Mistério.
253
O misticismo de Guido concebe um Deus que não se restringe ao
espaço dos templos construídos pelos homens, e a sua revelação não se limita às
251
GNOCCHI, Guido. “Mistério Eterno”, A Tribuna, Santos,
12.03.1918, p.4.
252
Deus, para Guido, também pode chamar-se: Brahma, Adi-Buddha, Jehovah, Allan, Auramazda,
Zeus, En-Soph, Yao, Adonai ou Espírito, Grande Solitário, Incognoscível, Causa causorum ou
X, ou Matéria: o nome, para ele, pouco importa, esta Causa maior não deixará de ser o que é,
mesmo que se procure defini-la.
253
GNOCCHI, Guido. “Mistério Eterno”, A Tribuna, Santos,
12.03.1918, p.4.

páginas de um livro ou das Bíblias do universo, mas está em toda a parte e em
toda parte se revela, porque tudo é Deus substancialmente.
254
Na fase inicial da formação de seu pensamento, Guido apresenta
uma religiosidade maior relacionada em seus textos, que vai se transformando em
espiritualidade, a qual será a base da sua teoria artística.
Ângelo Guido, além de crítico foi também artista e, em sua arte,
procurou revelar o que fundamentou em sua concepção estética: o ideal de uma
arte eterna. Como ele mesmo afirmou:
Em arte, como nos elevados planos da espiritualidade, não
épocas, nem teorias, nem escolas, nem este ou aquele meio;
apenas indivíduos, centros de sensibilidade capazes de refletirem de
uma nova maneira a prodigiosa harmonia da Criação.
255
Ângelo Guido adota uma maneira idealizada de conceber a arte,
unindo matéria e espírito, conteúdo e forma, instinto e intuição, tanto no momento
de criação quanto no da percepção. Para ele, esta união significa o princípio da
verdadeira estesia em busca da unidade absoluta inefável.
Entretanto, ele não se deixa rotular, não quer tomar partido desta ou
daquela tendência artística, considerando que, no que se refere à arte, não é
possível traçar fronteiras ou limites, pois não existe uma verdade momentânea e
diferente para cada época ou cultura, mas apenas uma verdade eterna:
Deixamos que esses, por conveniência ou inconsciência, por
esnobismo ou ingenuidade, tomem partido a favor ou contra e façam
254
Neste período, de 1918 a 1920, Guido escrevia, simultaneamente, sobre arte e sobre a
religiosidade da vida. Ele realizava conferências defendendo o novo advento de Cristo.
255
Idem, p.159.

uma política estética modernista ou uma política com rótulo
classicista. A arte nada tem que ver com isso. Como não verdade
antiga e verdade nova, mas apenas verdade eterna, também não
arte passadista e arte modernista. Há arte e o que não é arte,
artistas ou simples intrusões, inconscientes e cabotinos. Mas desde
que nosso intelecto assume uma atitude preconcebida, contra ou a
favor de uma ou outra corrente, deturpa a pura visão e faz de uma
determinada orientação estética um partido.
256
Esta verdade eterna seria a realização, na arte, do espírito criador o
que corresponde, na concepção romântica da revelação do absoluto por meio da
expressão artística, única maneira de atingir o inefável, o infinito, a totalidade
absoluta. Quando se busca a verdade eterna, não se estabelecem limites nem
dogmas, pois a revelação estética é infinita. Nesse sentido, qualquer realização
efetiva, qualquer revelação do infinito por meio da arte, ela seja modernista ou
classicista, seria uma manifestação finita entre uma infinidade de possibilidades
da verdade maior que é absoluta e eterna. Essa noção de arte absoluta, eterna,
em Guido aproxima-se à concepção própria à arte entre os séculos XIX e XX,
como apresenta Argan:
Se existe um conceito de arte absoluta, e esse conceito não se
formula como norma a ser posta em prática, mas como um modo de
ser do espírito humano, é possível apenas tender para este fim ideal,
mesmo sabendo que não será possível alcançá-lo, pois alcançando-
o cessaria a tensão e, portanto, a própria arte
.
257
Por isso, para Ângelo Guido, no domínio artístico a liberdade deve
imperar, antes de tudo, para que aconteça a magia da expressão. Não se deve
procurar, assim, nem o presente nem o futuro, mas apenas o eterno, e esse
256
GUIDO, Ângelo. “Arte Moderna e Arte Clássica”, Diário de Notícias, 10.01.1942, p.6 (vide texto
72, anexo 3).
257
ARGAN, G.C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.26.

eterno está dentro de cada um: essa é a fórmula suprema da arte, para Ângelo
Guido.
Quanto à arte propriamente dita, Ângelo Guido estabelece uma
diferenciação entre: uma arte superior
que está acima do tempo, transcende as
épocas e os costumes, porque representa realidades eternas e reflete a vida do
espírito em suas manifestações supremas
; e uma arte inferior, aquela que
procura ser conveniente, se adapta ao meio e limita-se às idéias em voga e às
“futilidades da hora que passa”. Essa arte inferior é, segundo ele, a arte dos
“medíocres”, que impressiona as massas durante um certo peodo, mas não tem
força para se manter, pois não apresenta o “eterno evangelho de Beleza”
258
. A
arte inferior ênfase à efêmera intensidade da vida moderna. A arte elevada é
imortal, pois busca o universal, as imutáveis realidades, e é vibração
espiritualizadora que nos envolve, tornando-nos parte de uma unidade primordial.
Esta hierarquia estabelecida por Guido entre dois tipos de arte, na
realidade, não representa uma divisão da arte em duas formas de expressão, uma
melhor e outra pior, nem serviria para estabelecer uma separação entre as “artes
liberais” e as “artes menores”, como fez-se no Renascimento quando os artistas
foram elevados à categoria de intelectuais, diferenciando-os dos artesãos. A
concepção de Guido é de que a arte deve ser uma verdadeira expressão de um
espírito criador e, nesse sentido, estabelece uma diferenciação entre o que
realmente é arte, como sendo uma arte elevada, e o que, para ele, não é arte, ou,
no máximo seria uma expressão passageira, conforme as convenções de moda,
de momento, que agradam por um certo tempo mas passam. A concepção de arte
elevada, no seu pensamento, condiz com o espírito do Romantismo, em que a
arte é uma espécie de revelação, de realização do espírito nas formas. Ao passo
258
GUIDO, Ângelo. Ilusão
ensaio sobre a estética da vida’.
Santos: Instituto Escolástica Rosa,
1922, p.162.

que a arte inferior reduz-se ao efêmero, apaga-se como o momento transitório e,
segundo sua visão, seria característico da arte moderna, de uma expressão
vibrante, mas que visa apenas impressionar.
A arte superior, em todas as eras, é um clarão revelador para os
peregrinos que buscam o Incognoscível, é uma corrente impetuosa
que arrasta o espírito para o infinito, amplia e esclarece a
consciência, imergindo o Eu na Unidade, lançando-o no Absoluto
(...).
259
Esta revelação, este poder de tomar consciência de uma totalidade e
conseguir expressá-la de maneira que revele o ser interior, é o que cada artista
deve pretender atingir:
Ser artista é encontrar o infinito dentro de si e viver na própria vida
interior, como se o Universo fosse a expressão fulgurante do nosso
Eu e as coisas e os seres aparições fugazes de um sonho
interminável.
260
Então, podemos perceber que Guido, assim como os românticos,
acreditava que o artista é uma espécie de gênio para quem os segredos inefáveis
são revelados, e, só por ele a verdadeira arte pode ser expressa:
Artista é somente quem nos traz um evangelho novo e nos
surpreende com o segredo mágico de emoções desconhecidas.
Artista é quem nos fala de harmonias ignotas e, em sua arte, se nos
apresenta como um gênio que desce de alturas inexploradas onde
259
Id. Ibid., p.163.
260
GUIDO, Ângelo. Ilusão
ensaio sobre a estética da vida’.
Santos: Instituto Escolástica Rosa,
1922, p.163.

existem tesouros ignorados e reina imperturbável um sagrado
mistério.
261
a artista o que os outros não podem ver, pois o gênio é um
espírito criador, quase divino, que tem a missão de guiar os homens e de revelar-
lhe a verdade absoluta, por meio da arte.
Pode-se dizer que Guido tem como meta a realização de uma arte
ideal, espiritualizada. Ter presente a espiritualidade é essencial para a arte
realizar-se de forma verdadeira, e é, exatamente, a ausência deste espírito que
faz com que ele critique a arte modernista, embora seja a favor de uma expressão
artística moderna, como algo inovador e revelador da vida interior.
De nada valem, afirma ele, as teorias éticas, religiosas, científicas ou
filosóficas se não a energia de um ideal de beleza. A vida tem sentido se é
vivida em busca de um sonho, se cada dia se procura algo novo, um novo
espanto, alguma coisa que se possa admirar surpreendentemente. “Só um ideal
de beleza tem o poder de acender o fogo sagrado e acordar o deus que dorme
dentro de nós”
262
. Muito mais do que dogmas religiosos, para Guido, vale o ideal
grego antigo, a moral harmoniosa de Platão, que consistia em tornar a alma bela e
o pensamento formoso. Nenhum preceito pode ter validade se não possui um
impulso do idealismo e do aperfeiçoamento interior.
Quando a religião da humanidade for, como entre os gregos, a
Religião da Beleza, e a moral consistir em tornar a nós mesmos uma
obra de arte e em infiltrar uma emoção estética em cada gesto e um
pensamento puro, de graça e de elegância, em nossas atitudes,
teremos realizado a fraternidade dos espíritos, porque tornaremos a
vida a expressão de um Sonho interminável e nos consideraremos a
261
Id. Ibid., p.162.
262
GUIDO, Ângelo.
Ilusão ensaio sobre ‘a estética da vida’, op. cit., p.166.

nós mesmos as imagens do Deus desconhecido que realiza em
cada alma o seu Sonho de Amor e de Beleza.
263
Guido acreditava que seria preciso povoar o mundo com imagens
mentais que buscassem a beleza, assim como os gregos se aproximaram da
imortalidade povoando o céu e a terra de deuses, pretendendo assemelhar-se a
estes através da perfeição das obras, da pureza das emoções e da elevação do
pensamento. A forma bela, segundo ele, é aquela que encerra uma alma vivente;
assim, a matéria vive por causa da vida do espírito. O homem possui um mundo
interior e sua existência tem sentido como expressão da vida interna, como a
“manifestação dessa Beleza que os místicos contemplam em tudo e que nos é
revelada através da Arte, como através do Amor e da Sabedoria”
264
. Os gregos
aspiravam à sabedoria como sendo a arte de se aperfeiçoar e tornar a vida bela.
Nunca a humanidade subiu tão alto nem nunca teve tanta
consciência do seu poder criador como quando, na Grécia, ergueu
templos, mais para manifestar o seu amplo espírito de liberdade e as
suas aspirações estéticas do que para adorar.(...) Aqueles templos
abertos a todos os ventos, aquelas colunas elegantes, encimadas
por capitéis graciosos como se quisessem simbolizar pensamentos
de energia criadora, desabrochando nas alturas para plasmar formas
inéditas de arte; aqueles frisos cheios de figuras elegantes,
traduzindo movimentos harmoniosos, como se obedecessem a um
ritmo, não eram talvez o expoente de um intenso trabalho interior,
não eram a encarnação de um anseio de perfectibilidade e de
aspirações tendentes para o Divino?
265
Ângelo Guido considerava a arte grega como uma espécie de prece,
uma maneira de registrar a alma dos gregos em formas perenes, que marcassem
“uma etapa do espírito humano em sua escalada para o Ideal, e de provar às
263
GUIDO, Ângelo. Ilusão ensaio sobre ‘a estética da vida’. op. cit., p.165.
264
Idem, p.167.
265
Id. Ibid., p.168.

gerações futuras que a alma da humanidade sempre deixa, na sua passagem
através dos séculos, um eco da sua música interior”
266
. E, então, novamente
percebemos sua aproximação ao idealismo de Hegel que via a arte clássica como
o apogeu da expressividade do espírito, e à metodologia histórica de
Winckelmann, para quem a arte grega foi o paradigma da forma perfeita.
Quando se refere ao evangelho da beleza, vivido pela civilização
helênica, Guido não pensa especificamente em sua religiosidade, mas sim em seu
ideal de beleza
267
, seu amor pelas formas belas, que faz buscar a harmonia, o
equilíbrio, o ritmo em tudo que os rodeia, e também nos gestos, nos pensamentos
e nas emoções.
Os gregos, que seguiam o culto da beleza, educavam-se para a
virtude e para a formosura, aprendendo a ter pensamentos e emoções belas com
os poetas e os filósofos, desprezando o feio moral e a ignorância. Assim, tinha-se
como ponto de partida que cada pessoa poderia fazer de si mesma uma coisa
bela: “todo ser humano tem em si a faculdade criadora
268
. Para Guido, exercer
essa faculdade é o que há de mais nobre na vida. Viver é criar. Por isso, a cultura
intelectual é necessária para desenvolver a mente e tornar o intelecto uma força
criadora, assim como a cultura física põe em ação os poderes criadores da
beleza
269
. E, para isso, a noção de Einfühlung também contribuirá, pois, conforme
Vallier,
266
Id. Ibid., l. c.
267
GUIDO, Ângelo. “O Evangelho da Beleza entre os gregos e na época atual”, Diário de Notícias,
24.11.1929, p.16 (vide texto 11, anexo 3).
268
GUIDO, Ângelo. “Os exercícios de ginástica para a graça do corpo em movimento”, Diário de
Notícias, 21.07.1929, p.5 (vide texto 8, anexo 3).
269
GUIDO, Ângelo. Como conduzir a mulher moderna à busca da beleza”, Diário de Notícias,
18.08.1929, p.16 (vide texto 9, anexo 3).

A Einfühlung, saída de si objetivada, produz exatamente esta forma
de beleza que corresponde, nos vastos territórios da arte, à
Renascença italiana e a uma parte da antigüidade.
270
A mensagem de beleza, segundo Guido, continuou vibrando através
dos tempos. Os romanos não perceberam verdadeiramente o sentido interior da
arte helênica nem fizeram da beleza um ideal de vida. A Idade Média teve total
desprezo pelo corpo e pela cultura física, tanto que a própria falta de higiene era
considerada como agradável a Deus e fundamental para salvar a alma.
Como se o bem e a verdade não fossem, como dizia Platão, a
própria beleza. A beleza, como a verdade, como a vida, nada tem de
comum com os cultos religiosos dos homens. A beleza não tem
rótulos, como não os têm a verdade, e, se os gregos amaram a
beleza, ela era tão nobre como a que ama o cristão, porque não
beleza cristã ou pagã, mas a beleza imortal nas suas múltiplas
revelações através dos tempos, expressão que é da divindade na
maravilha da arte e nos mistérios da natureza humana.
271
O espírito helênico, conforme Guido, chegou até nós por essa força
de inspiração que emanou a outras épocas, pois foi esta vibração criadora que
palpitou também no Renascimento. O sentido da beleza da vida humana teria
renascido quando se encerrou o ciclo medieval, ressurgindo nas artes e nas
preocupações intelectuais. Os mitos gregos misturaram-se, na pintura, na
escultura e na literatura desse período, às personagens do Velho e do Novo
Testamento. E um dos principais artistas renascentistas, responsável por esta
270
VALLIER, Dora. “Lire Worringer”; IN: WORRINGER, Wilhelm. Abstration et
Einfühlung.(contribuition à la psychologie du style) Paris: Klincksieck, 1986, p.15.
271
GUIDO, Ângelo. “O Evangelho da Beleza entre os gregos e na época atual”, Diário de Notícias,
24.11.1929, p.16 (vide texto 11, anexo 3).

retomada do ideal de beleza e harmonia grega foi, conforme Guido, Leonardo da
Vinci.
Em sua obra Símbolos e Mitos na Pintura de Leonardo da Vinci
272
,
Ângelo Guido analisa a “Ceia”
273
, procurando mostrar a naturalidade e o conteúdo
da expressão artística de Da Vinci. Ele recorda a afirmação de Leonardo de que o
espírito do artista deve assemelhar-se a um espelho. Ângelo Guido enfatiza o fato
de Da Vinci referir-se ao espírito do artista, e não aos sentidos, ou seja, a arte não
é uma mera imitação do objeto dado pela natureza, mas é “o espírito que deve,
em si mesmo, com toda fidelidade, como se tivesse a lucidez do espelho, receber
as impressões do real, para transmutá-las em arte, penetrando-lhes a essência
qualitativa”
274
. É o espírito do artista que contempla e capta a essência dos seres
e das coisas, ele é o intérprete entre a natureza e a arte. Os sentidos são apenas
instrumentos para perceber o mundo sensível. A pintura era, para Leonardo, além
de arte, uma ciência, uma coisa mental.
A obra de arte, a concebia como um todo, semelhante a um cosmos,
com suas leis, seu corpo e sua essência, onde a livre fantasia criava
uma ordem e à lei dessa ordem ela mesma se sujeitava. Assim, a
obra de arte tinha imanente, como no universo, um princípio de
racionalidade, pois que, sendo um mundo nascido do espírito,
podia ser ordenado segundo um sentido, visto que só onde
sentido e ordem pode haver atividade criadora e o aparecimento de
algo que se distingue do caos.
275
Antes de tudo, Leonardo procedia a uma análise intelectual, para
penetrar no profundo sentido do que queria representar; depois havia o trabalho
272
GUIDO, Ângelo. Símbolos e Mitos na Pintura de Leonardo da Vinci. Porto Alegre: Sulina, 1969.
273
Refere-se aqui à obra “A Última Ceia”, 1495-97. Afresco pintado no refeitório da Igreja Santa
Maria das Graças, Milão.
274
GUIDO, Ângelo. Símbolos e Mitos na Pintura de Leonardo da Vinci, op. cit., p.13.
275
Id. Ibid., p.64.

inventivo da composição, para então fazer a execução: procurava um
pensamento diretor para inventar a forma. Ao conceber a “Ceia”, Leonardo da
Vinci o faz inspirado por idéias que o afastavam dos conceitos tradicionais da
Idade Média e de seu tempo. Não lhe satisfazia a interpretação com um sentido
simplesmente narrativo ou subordinado ao simbolismo eucarístico, mas queria
encontrar e revelar pela arte a transcendente significação.
Guido percebe que a concepção, vagamente expressa por Leonardo,
de uma ação que se fundamenta no sentido da circularidade, vinha de um
conjunto de idéias filosóficas e estéticas influenciadas por Pitágoras, pelo
platonismo, pelos Tratados do Corpus Hermeticum, como o Pimandro
276
, pelas
idéias do cardeal filósofo Nicolas de Cusa
277
e de Marsílio Ficino, o mestre da
Academia Platônica de Florença. Para Ficino, o mundo, em sua relação de mente
divina e matéria, é visto como um círculo perpétuo; Deus é o centro de todas as
coisas e, como centro de tudo que existe, é circunferência. O espírito especulativo
do Quattrocento associava à ordem estética uma ordem matemática do universo,
segundo a qual o próprio universo é considerado uma obra de arte, porque é
construído com harmonias, com números e proporções, porque é estrutura
rigorosamente matemática.
276
O Pimandro é considerado uma das expressões do pensamento teosófico esotérico do antigo
Egito, passado através da filosofia da Hélade. É uma construção teológico-religiosa,
essencialmente de caráter moral em seu conteúdo transcendente. Expõe a teoria do Verbo
luminoso que é Filho de Deus (Mente Suprema, Luz); Unidade de Deus e do Verbo, do Pai e do
Filho, das duas Pessoas das quais procede uma terceira, que é o Espírito, a luz que ilumina e
faz elevar até Deus todas as coisas criadas. O conhecimento do Pimandro auxiliou a
compreensão do pensamento cristão. O filósofo renascentista Marsílio Ficino foi encarregado,
por Cosimo dei Medici, de fazer uma versão em latim deste texto. Vide: TRIMEGISTO, Ermete.
Il Pimandro. Milano: Fratelli Bocca Editori, 1942.
277
Nicolas de Cusa, em sua obra De Docta Ignorantia, trata dos temas de Deus, do Universo e de
Cristo através de uma concepção metafísica e simbolizada matematicamente, o que teria
influenciado Da Vinci. “Seguindo este caminho dos antigos e coincidindo com eles, dizemos
que, como via de acesso às coisas divinas não se nos manifesta a não ser por meio de
símbolos, poderíamos usar com vantagem os signos matemáticos por causa de sua
incorruptível certeza”. Cfr. DE CUSA, Nicolas La Docta Ignorancia. Buenos Aires: Aguilar, 1973,
4.ed., p.50.

O círculo simboliza o todo, o perfeito, a unidade. O homem, por sua
vez, está no centro deste círculo, é o microcosmo, núcleo do macrocosmo. A
simbologia de Da Vinci remete à idéia de arte eterna e perfeita, a qual, em Ângelo
Guido, representa o evangelho da beleza.
Ângelo Guido é romântico, na medida em que procura o belo na arte,
exaltando-a como uma forma ideal de expressão e de espiritualidade reveladora
do Eu profundo. Entretanto, Guido apresenta caraterísticas modernas em seu
pensamento, sem ser modernista, no sentido revolucionário do termo. Assim, sua
modernidade encontra-se também conjugada com a visão e os anseios do homem
moderno romântico, quando propõe romper com regras prontas e formas
predeterminadas de expressar-se para exaltar a liberdade de criar.
Desprezemos todas as normas estabelecidas, todos os dogmas
forjados através dos tempos, todas as idéias alheias e comecemos a
formar em nós uma consciência nova, como se tivéssemos surgido
hoje do mistério inviolável da unidade absoluta.(...) Então seremos
verdadeiramente artistas, porque teremos a revelar alguma coisa
nova, uma diferente maneira de sentir as palpitações da natureza, de
interpretar a Beleza, o Amor, o Sofrimento, a Vida, os mil modos de
ser da incognoscível Alma cósmica, que se revela no jogo
deslumbrante das forças, dos pensamentos e das emoções.
278
Quando trata da arte do século XIX, Guido reconhece que duas
atitudes diversas se definem desde o início deste: duas atitudes que são maneiras
opostas de ver, de sentir e de pensar. E estas posições antagônicas parecem
continuar presentes na maneira como ele mesmo concebe o momento de conflito
entre um passadismo acadêmico e a arte moderna, que surge para responder à
crise:
278
GUIDO, Ângelo. Ilusão, op. cit., p.161-162.

Numa está o fervoroso culto do passado e de um ideal racionalista
de beleza, a intransigente defesa de postulados que pretendiam
reconduzir a arte a um classicismo mal compreendido e a um
conjunto de preceitos normativos que sufocavam a espontaneidade
do impulso criador; noutra, a paixão, a fúria sagrada do que de início
se classificou de espírito romântico, mas que foi, em realidade, o
impulso provocado pelo alvorescente sentimento de uma
sensibilidade que queria livremente tentar novas diretrizes e sentir-se
desvinculada de qualquer compromisso com formalismos
tradicionais ou modelos consagrados pela autoridade.
279
Na interpretação de Guido, a história da humanidade marca seus
ciclos evolutivos, rumo a uma maior consciência de si, seguindo períodos
alternantes de ação e reação, de dogmatismo e de idealismo, como um jogo
perpétuo de forças opostas.
(...) verificaremos que tem estado sempre em luta esses dois
princípios opostos do classicismo e do romantismo, do dogmatismo
e da idealidade; veremos que as forças de equilíbrio, tendentes a
manter a vida cristalizada em formas, até acorrentá-la à rotina e ao
preconceito, se têm oposto sempre ao que se me permitirá chamar o
espírito aventuroso e apaixonado do Romantismo. (...) Vivem,
através da épocas, em lutas contínuas, expressões opostas da vida
do espírito, a primeira conservadora, degenerando para a rotina, o
estreito dogmatismo, o preconceito, a intolerância fanática, em
certos períodos de transição; a segunda, renovadora, rebelde,
avessa às fórmulas e desprendida da tradição, audaz e aventurosa,
caracterizando-se na irreverência da mocidade pelos velhos ídolos,
por um transbordar de vida livre e trepidante.
280
Conforme Argan, é comum se fazer a contraposição entre o clássico
e o romântico, quando se fala sobre a arte desenvolvida na Europa e América do
Norte, entre os séculos XIX e XX:
279
GUIDO, Ângelo. Os Grandes Ciclos da Arte Ocidental. São Leopoldo: Faculdade de Direito Rio
dos Sinos, 1968, p.110.
280
GUIDO, Ângelo. "A Inspiração Dionisíaca do Romantismo", Diário de Notícias, 01.03.1930, p.11
(vide texto 19, anexo 3).

A cultura artística moderna mostra-se de fato centrada na relação
dialética, quando não de antítese, entre esses dois conceitos. Eles
se referem a duas grandes fases da história da arte: o ‘clássico’ está
ligado à arte do mundo antigo, greco-romano, e àquela que foi tida
como seu renascimento na cultura humanista dos séculos XV e XVI;
o ‘romântico’, à arte cristã da Idade Média e mais precisamente ao
Românico e ao Gótico.
281
Guido analisa o jogo dialético de clássico e romântico, negando todo
e qualquer tipo de dogmatismo que possa cristalizar a expressão e limitar o
impulso criador artístico, impedindo que haja renovação. Apesar de criticar o
impulso modernista e o exagero da expressão das vanguardas, Ângelo Guido está
ciente de que é preciso haver um caráter inovador na produção artística, mas que
esta inovação tenha estilo, personalidade e espiritualidade. A arte é responsável
pela revelação inacabável do mistério da vida. E não é seguindo regras e técnicas,
exclusivamente, que o artista consegue atingir este mistério.
Ao mesmo tempo em que o artista não deve seguir o arrebatamento
do movimento modernista, também não pode se restringir ao rigor dogmático da
representação pictórica. O verdadeiro artista necessita adquirir um temperamento
próprio, um estilo, mas através de uma busca pessoal, de uma espiritualização de
sua percepção. A criação deve estar imbuída de um espírito, de um ideal de
beleza; assim ela será inovadora, propondo um novo olhar sobre a forma de
expressar o mundo.
Segundo Guido, em geral, utiliza-se uma linguagem pronta, além de
normas estabelecidas e idéias feitas, para fundamentar as concepções políticas,
morais, religiosas e artísticas, esquecendo-se, assim, do próprio Eu, vivendo-se na
periferia e não atingindo nunca o centro, o interior de si mesmo. Para ele, artista é
281
ARGAN, G.C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.26.

aquele que encontrou o “centro do próprio Eu e contempla o Universo através
desse centro, que está acima do espaço e do tempo.”
282
. Para se tornar artista, é
preciso surpreender com a magia de emoções desconhecidas, revelar harmonias
ignoradas e estar além dos preconceitos, das crenças e dos dogmas.
Libertemo-nos de todo dogma passadista ou modernista, porque,
acima de tudo, a arte é grande quando se torna uma libertação;
libertação da fatalidade das leis da natureza pelas leis do espírito,
libertação da contingência material, do modelo convencional, das
idéias que os outros formam das cousas e da vida, libertação do
tempo e do espaço para projetar na perpetuidade de um ritmo uma
ilusão passageira, um instante de vida e de beleza.
283
Na sua crítica aos convencionalismos e aos dogmas, Guido parece
aproximar-se dos ideais de ruptura característicos da proposta modernista. As
vanguardas buscaram “a essência da arte, a sua purificação, prescindindo das
tradições nacionais e renunciando a qualquer autoridade, seja ela norma estética
ou tradição histórica de valores”
284
. Entretanto, apesar de propor a negação dos
dogmas, a concepção de Guido do que seja moderno e do que seja inovação não
está em nenhuma ruptura que a arte tenha que realizar, mas no poder que o
artista adquire em traduzir de forma espiritualizada, em obra, o que a natureza lhe
diz, em vida. A negação dos dogmas, em Guido, significa romper os limites das
formas convencionais, da vida que tornou-se cristalizada em preceitos fixos e que,
por isso, perdeu sua força inovadora.
282
GUIDO, Ângelo. Ilusão, op. cit., p.162.
283
GUIDO, Ângelo. "A Inquietação do Espírito Moderno", Diário de Notícias, 17.06.1928, p.10
(vide texto 3, anexo 3).
284
KERN, Maria Lúcia Bastos. Arte Argentina
tradição e modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1996, p.9.

Assim, embora critique o caráter de mesis da arte clássica, ele não
prescinde da presença da natureza como fonte principal de observação,
expressão e inspiração para a arte. Ângelo Guido afirma que a verdadeira obra
não é cópia da natureza, mas é a natureza interpretada pelo espírito, por isso,
através da arte, a realidade aparece transfigurada, como num sonho. E o
sentimento de libertação é tal qual o de um sonho ou o do amor. É preciso que
haja enamoramento para que se possa revelar a beleza. “O enamoramento é a
identificação com a verdade íntima da coisa amada. (...) As qualidades exteriores
se tornam apenas indicações da verdade exterior e é para revelar essa verdade
exterior que se realiza a obra de arte”
285
.
O sentimento poético existe na pintura: ele nasce do amor que os
artistas têm pela natureza e de sua capacidade de sentir a espiritualidade que está
presente em todas as coisas. Essa poesia se confunde com a percepção da
beleza, pois o artista penetra a alma das coisas para encontrar seu sentido divino.
A arte torna-se a mediadora entre o homem e seu próprio Eu, entre o
sujeito e o Universo. E o artista seria aquele que recebe a missão de realizar esta
busca profética. O artista é aquele que o que os outros não podem ver. Por
isso, sua criação é uma obra de arte: porque realmente, na sua produção, alguma
coisa se revela.
O artista as coisas que estão diante de todos, que todos podeis
ver, mas ele os percebe de um modo diferente e, embora nem todos
possais compreender, essas coisas comuns que vos cercam falam à
sua sensibilidade através da forma e da cor, comunicando-lhes
segredos de força, de vida, de profundidade ou de harmonia;
convidam-no à exaltação, ao êxtase, ao encantamento e como que o
conduzem a sentir o mistério que paira, insondável, sobre a ilusão
perpétua do universo. E, quando ele realiza a obra de arte, podeis ter
285
Idem, op. cit., l. c.

a certeza de que houve aí, mais que um ato da inteligência, um ato
maravilhoso de amor, de divino entendimento.
286
Guido acredita que os artistas sejam como uma espécie de
mensageiros divinos, que, para tanto, cada um precisa, primeiramente,
descobrir a sua linguagem interior para, então, entrar em sintonia com o Absoluto
e poder manifestá-lo em suas obras.
Nas obras de arte, não devemos considerar belo somente aquilo que
está de acordo com as teorias estéticas, as regras e os preceitos de
certas escolas, mas unicamente o que melhor exprime o mundo
interior, o que nos do Universo uma representação inédita e nos
faz sentir mais intimamente, como Beleza, o mistério inefável da
Unidade infinita da vida universal (...).
287
Ângelo Guido atribui ao artista um papel especial, de messias, de
orientador de um povo perdido em meio à confusão moderna. Esse messias
poderia ser, talvez, quem sabe, ele mesmo. Manoelito de Ornellas lembra que
Guido estava no meio daquele momento de turbulência cultural, que foi o
modernismo, e que sua atuação era resultante de uma geração consciente da
necessidade de participar e inovar:
Na Tribuna de Santos, seus ensaios aplainavam-lhe o caminho de
uma rápida popularidade. Vinha de uma geração insatisfeita, à
procura de novos rumos estéticos. No ar, pairava o espírito da
rebelião. Faltavam, apenas, as grandes diretrizes.
288
286
GUIDO, Ângelo. “Do Caderno de um Pintor”, Diário de Notícias, 06.09.1931, p. 12 (vide texto 42,
anexo 3).
287
GUIDO, Ângelo. Ilusão, op. cit., p.160.
288
ORNELLAS, Manoelito de. “Ângelo Guido”
discurso de recepção no Instituto Histórico
Geográfico do RS; IN: Vozes de Ariel. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1939, p.76.
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