Download PDF
ads:
Jonice dos Reis Procópio Morelli
ESCRAVOS E CRIMES - FRAGMENTOS DO COTIDIANO
MONTES CLAROS DE FORMIGAS NO SÉCULO XIX
Belo Horizonte
2002
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Jonice dos Reis Procópio Morelli
ESCRAVOS E CRIMES - FRAGMENTOS DO COTIDIANO
MONTES CLAROS DE FORMIGAS NO SÉCULO XIX
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Curso de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção de
título de Mestre em História.
Orientador: Profº Dr.Douglas Cole Libby
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, Maio de 2002
ads:
Porquanto o réo seja cativo,
esta condição não lhe tira
os sentimentos de honra.
(Fala do curador do escravo Albino
Cabra, condenado à morte por
assassinato de Feitor. 16/10/1846)
AGRADECIMENTOS
Muitas foram as pessoas que tornaram possível a realização deste trabalho. Seria
impossível nomear todas elas sem incorrer em omissões. Assim, desde já, agradeço a todos
os que, direta ou indiretamente, contribuíram para a concretização deste estudo. Entretanto,
devo registrar meu agradecimento a algumas pessoas especiais, com as quais tenho uma
dívida perene.
Ao meu orientador, Professor Douglas Cole Libby, pelo encorajamento constante e
pela orientação segura. A confiança depositada na exeqüibilidade dessa pesquisa e o apoio
durante o trajeto me permitiram conhecer novos caminhos nos estudos da História da
Escravidão.
A Carla Maria Junho Anastásia, que, acreditando na potencialidade transformadora
do conhecimento, me co-orientou com firmeza e seriedade, discutindo, interpelando,
corrigindo e indicando saídas nas angústias da produção acadêmica.
Ao Professor Marco Antônio de Oliveira Pais (in memorian), primeiro orientador,
que me ensinou o sentido da palavra “Sertão”. Gostaria muito de que você tivesse visto este
trabalho pronto.
Aos professores Eliana Dutra, Heloísa Starling, Adriana Romeiro, Elisa Borges,
Regina Horta e Eduardo França Paiva, do Programa de Pós-Graduação em História da
UFMG, e ao Professor Tarcísio Rodrigues Botelho, da Pós-Graduação da PUC-MG, que
muito me ajudaram na descoberta de como é difícil e gratificante a arte de fazer história.
Foi um privilégio e uma alegria aprender em companhias tão agradáveis.
A Maria do Carmo e a Aninha, secretárias gentilíssimas do CEM e da Pós-
Graduação em História, agradeço pela simpatia e apoio. Vocês fazem mais leve a vida dos
pupilos da Pós-Graduação.
Aos colegas da Pós-Graduação, que sempre souberam oferecer auxílio e uma
palavra de estímulo diante das aperturas do mestrado, obrigada.
Sou grata às Professoras Wilma Isabel Fagundes Amaral, Márcia Pereira da Silva e
Regina Célia Lima Caleiro, que estiveram à frente de todas as grandes conquistas do
Departamento de História da Unimontes. Pessoas de coragem, determinação e ousadia,
estas mulheres trouxeram novas perspectivas para a História do Norte de Minas.
Na Unimontes, devo agradecer ainda aos funcionários da Divisão de Pesquisa e
Documentação, especialmente a Filomena Luciene, que abriu todas as portas para a coleta
de dados desta pesquisa e a Márcio Ruas, aluno do curso de História, que me auxiliou na
transcrição dos documentos.
À CAPES, pelo suporte financeiro necessário à execução deste trabalho.
Finalmente, quero registrar meu agradecimento aos meus amigos e familiares. Um
“muito obrigada” especial a Cândida Maria Veloso, amiga querida com quem convivi ao
longo da maior parte do tempo de execução desta pesquisa, partilhando inquietações e
muito estudo pelas madrugadas adentro, sem a sua presença certamente a caminhada teria
sido mais difícil. A Jacaúna, Júnior, Marilene e Cláudia pela afeição e cuidado a mim
dispensados, sua alegria e disposição em ajudar fazem de vocês grandes companheiros.
Agradeço a minha mãe Eunice Procópio, mulher corajosa, que me ensinou o valor
da luta e a força da determinação. Aos meus irmãos, que incentivaram minha escolha e
sempre estiveram na torcida. A Mateus, pela solidariedade, paciência e compreensão.
Ao meu filho Lucas, razão da minha alegria, agradeço por ter estado junto comigo,
aumentando minha confiança e me mostrando o prazer e a felicidade de ser mãe-mestranda.
Resumo
A presente dissertação, utilizando fontes documentais, como processos judiciais cíveis e
criminais, explora o cotidiano escravista no Termo da Villa de Montes Claros de Formigas
(após 1857, Cidade de Montes Claros), Comarca do Rio São Francisco, Província de Minas
Gerais, no século XIX, dentro da linha de pesquisa História Social da Cultura. O recorte
espacial compreende, além da sede, os arraiais e distritos que pertenceram ao Termo de
Montes Claros, quais sejam Santo Antônio da Boa Vista, Contendas, Coração de Jesus,
Bomfim, Olhos D’água, Morrinhos e São Gonçalo do Brejo das Almas. A pesquisa se
concentra no período entre os anos de 1834 e 1888, que demarcam os limites temporais do
acervo documental do Fórum Gonçalves Chaves. Nesses anos, registram-se os processos
judiciais, envolvendo escravos e forros na condição de vítima, réu, autor, testemunha ou
testemunha-informante. O objetivo da pesquisa visa explorar o cotidiano escravista no
século XIX, resgatar e explicitar as maneiras encontradas pelos escravos para se fazerem
construtores de seu tempo, ainda que sob o jugo do cativeiro, além de vislumbrar
experiências de vida que sustentaram ou, ao contrário, subverteram as normas e regras de
um tempo cujas relações eram aparentemente rígidas e punitivas. Entender os escravos
como agentes históricos reveste-se da maior importância, pois, além de uma interpretação
do passado, permite resgatar uma parte da história da cidade e da construção do Norte de
Minas Gerais, como também avaliar as permanências e modificações que se apresentam nas
relações sociais deste microuniverso, as práticas de violência, de solidariedade e
compadrio, de disputas e de entendimento, de crimes, sanções e perdões que existiram e
existem nesse Sertão. Da análise dos documentos procura-se depreender as relações sociais
entre senhores e escravos em Montes Claros, perceber através das fímbrias dos documentos
as estratégias e formas de resistência dos negros ao trabalho escravo, seja através do
confronto, do desafio à sujeição seja pela acomodação, aqui entendida como uma maneira
de diminuir o sofrimento e ainda adquirir privilégios e favores junto aos senhores. Nesta
pesquisa, estudamos ainda as relações dos escravos entre si, compreendendo os significados
e a extensão dos laços de parentesco e amizade, dos casamentos e da formação de núcleos
familiares e, enfim, as tentativas de se formarem estruturas familiares permanentes e
solidárias. A análise interpretativa de processos criminais permite a coleta de informações
sobre o modo de vida e sobre as questões escravistas, bem como a possibilidade de se
pinçarem as teias do universo cotidiano das relações escravo/senhor e escravo/ escravo.
Summary
The present dissertation exploits the slaves routine in the Term from the Villa de Montes
Claros de Formigas (after 1857, Montes Claros city), Comarca of Rio São Francisco,
province de Minas Gerais, in the nineteen century. This space consists, beyond the
headquarters, the communities and districts that belonged to the Term of Montes Claros,
which be Santo Antônio da Boa Vista, Contendas, Coração de Jesus, Bomfim, Olhos
D’água, Morrinhos e São Gonçalo do Brejo das Almas. This Study concentrates in the
period between the years of 1834 and 1888, that demarcate the temporal limits of the
collection documental of the Forum Gonçalves Chaves. In those years, they record
themselves the judicial trials, involving slaves and liberties in the condition of victim,
culprit, author, witness or witness-informer. The objective from the research aims at exploit
the slavery routine in the nineteen century, rescue and set out the ways found by the slaves
for themselves will do builders of their time, even if under the yoke of the captivity, beyond
glimpse experiences of life that maintained or, to the contrary, they subvewere the norms
and rules of a time whose relations were apparently strict and punitive. It understand the
slaves as historical agents reviewed itself from the biggest importance, therefore, beyond an
interpretation of the past, permits rescue a part from the history from the Montes Claros city
and from the construction of the North of Minas Gerais, as also evaluate the permanences
and modifications that present in the social relations of this “microuniverso”, the practices
of violence, of solidarity and “compadrio”, of disputes and of understanding, of crimes, of
forgiveness and of sanction of Sertão. From the analysis of the documents see the social
relations between owners and slaves in Montes Claros, perceive across of the fímbrias of
the documents the strategies and forms of resistance of the black person to the work slave,
be across of confront, of the challenge to the slavery be for the accommodation, here
understood like a way of diminish the suffering and still acquire privileges and favors of the
owners. In this researches, we study still the relations of the slaves between itself,
understanding the meanings and to stretch of the nooses of relationship and friendship, of
the marriages, of the family formation and, finally, the attempts of themselves will form
permanent family structures and supportive. The analysis of criminal trials permits collects
informations about the way of life and about the slavish question, as well as the possibility
of themselves they pluck the webs of the routine universe of the relations slave/owner and
slave/ slave.
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................. 01
Capítulo 1 A historiografia e a escravidão.
Discussões teóricas e formas de entender a escravidão....................... 07
1.1 Negro Raça inferior.................................................................. 07
1.2 Democracia racial e caráter benigno da escravidão brasileira ... 09
1.3 Contestações das teses freyrianas no Brasil................................ 12
1.4 Novos paradigmas na história da escravidão: contribuições de
Fogel, Engerman, Genovese e Gutman....................................... 20
1.5 Novos caminhos na historiografia A escravidão revisitada..... 24
1.6 Estudos sobre a escravidão em Minas Gerais............................. 32
Capitulo 2 Ocupação, povoamento e economia no Norte de Minas nos séculos
XVIII e XIX.......................................................................................... 42
2.1 A ocupação do Norte de Minas.................................................... 42
2.2 Transformações no Norte de Minas no século XIX..................... 45
2.3 Montes Claros de Formigas.......................................................... 50
2.4 Economia montesclarense no século XIX.................................... 63
2.5 Os escravos do Termo de Montes Claros..................................... 71
Capitulo 3 Códigos, valores e costumes no Sertão norte mineiro: as leituras das
leis e das normas.................................................................................. 77
3.1 Os processos judiciais como fontes de pesquisa......................... 77
3.2 Normatização e aplicação da justiça: entre os códigos legais e
as apropriações sócio-culturais.................................................... 90
Capitulo 4 Fragmentos do cotidiano em uma sociedade escravista
Resistência, acomodação, solidariedade e conflitos como estratégia
de sobrevivência.................................................................................... 102
4.1 Na redução à escravidão Vestígios da família escrava............. 104
4.2 Escravos e livres em conflito Motivações, ajustes e sanções.... 112
4.3 A posse de bens e os desafios como temas de crimes -
Princípios e valores expressos nas práticas costumeiras.............. 125
4.4 Nos namoros, nas festas, nas vendas, as explosões de violência 134
4.5 Os crimes a mando Associações entre livres e cativos............. 143
4.6 Vigilância, castigo, e morte: os limites da tolerância.................. 149
Considerações finais................................................................................................. 156
Bibliografia............................................................................................................... 159
Anexos...................................................................................................................... 164
1
Introdução
Este trabalho de pesquisa elegeu como atores os escravos do Termo de Montes
Claros de Formigas, que viveram entre as décadas de 1830 e 1880. A pesquisa concentra-se
na análise das situações cotidianas vividas por eles e coloca-se dentro dos estudos da
História Social da Cultura.
É objetivo deste estudo conhecer as múltiplas formas de relações entre senhores e
escravos, conhecer os meios diferentes encontrados pelos escravos para minimizar o
sofrimento de sua condição e alcançar uma situação mais confortável em um mundo de
incertezas e mazelas. Busca também entender os papéis exercidos pelos escravos (homens e
mulheres) nas relações produtivas, investigar vestígios de existência de mecanismos de
produção autônoma entre os escravos, bem como conhecer um pouco mais as relações dos
escravos entre si e entre os escravos e os homens livres. O conhecimento dessas relações
nos leva à compreensão dos significados e da extensão dos laços de parentesco e amizade,
dos casamentos e formação de núcleos familiares, das tentativas de formação de estruturas
familiares permanentes e solidárias. Assim, mostrar o caráter que a escravidão assumiu no
Norte de Minas Gerais significa conhecer como os escravos viveram, quais eram os
conflitos, como eram e por que eram os confrontos, enfim, como esses homens se fizeram
partícipes na construção de seu tempo.
Explorar o cotidiano escravista no século XIX é, a nosso ver, um mecanismo para o
resgate e explicitação das maneiras encontradas por aqueles homens e mulheres para se
fazerem construtores de seu tempo, ainda que sob o jugo do cativeiro. Ao revirarmos as
2
raízes da história, vislumbramos experiências de vida que sustentaram ou, ao contrário,
subverteram as normas e regras de um tempo de relações aparentemente rígidas e punitivas.
O estudo as estratégias de resistência e sobrevivência dos escravos mostra que esses
atos de rebeldia limitada e calculada não representavam subserviência à dominação e à
exploração. Ações como, por exemplo, amancebar-se com mulheres livres, portar armas
com anuência ou não de seus senhores, fingir de forro pelas ruas, mudar de dono quando
achasse conveniente, arrumar alguém que o escondesse por algum tempo visavam
contornar, e, não confrontar as imensas restrições impostas pelo regime escravista. Estas
ações foram, na realidade, exercícios de criatividade.
Os escravos do Sertão Norte-Mineiro, assim como muitos outros espalhados pelo
Brasil, souberam utilizar as contradições do sistema e as relações cotidianas ordinárias para
abrir novas frestas na cadeia da escravidão. Esgarçaram os elos do sistema e, de várias
maneiras, alteraram sua configuração. Deram significado próprio ao termo liberdade,
diferente da daqueles que a entendem estritamente como a autonomia individual. Na
perspectiva dos cativos, homens de outras necessidades, nem sempre a liberdade podia ser
assegurada integral ou definitivamente, sendo, portanto, necessário entender os vários
passos que podiam ou não ser dados em direção a ela. Liberdade que, nesse estudo, é
entendida como um processo de conquistas que podiam ser graduais ou bruscas, de avanço
ou recuo. Uma caminhada que começava ainda dentro da escravidão, com a conquista de
espaços que, em princípio, eram vedados aos cativos.
Para entender esses arranjos em que o mais fraco, muitas vezes, tinha de ser mais
astuto e criativo para conseguir avançar, é impossível colocar a ação desses agentes em
bases que contrapõem o rebelde descontente ao sujeito acomodado, como se essas duas
situações limites comportassem todo o cabedal de criatividade dos cativos. Como bem
3
observaram João José Reis e Eduardo Silva
1
, Zumbi e Pai João não foram as únicas
possibilidades humanas na história da escravidão. Existiram outras tantas situações
intermediárias muito mais freqüentes entre esses dois personagens extremos. Se as
negociações entre senhores e cativos
envolviam partes desiguais, assimétricas, nem por
isso deixava de ser real. Os escravos, em geral, não eram líderes de quilombos, mas, por
mais frágeis que fossem, não eram entes passivos, não eram coisas, eram seres humanos e,
como tais, tinham desejos, sonhos e incoerências. O resultado daquelas negociações
rotineiras foi o desenvolvimento de condutas que, se não acarretavam um rompimento
imediato dos grilhões do cativeiro, os afrouxavam, muitas vezes em beneficio do cativo.
Entender os escravos como agentes históricos reveste-se da maior importância, pois
além de uma (re)interpretação do passado, permite avaliar as permanências e as
modificações que se apresentam nas relações sociais deste microuniverso encravado no
Sertão, onde co-existiram práticas de violência e crimes, de solidariedade e compadrio, de
disputas e entendimento, sanções e perdões. Os laços sociais, verticais e horizontais, que
uniam homens, mulheres e crianças não se dissolveram, mas aparecem ainda, aqui e ali, em
nosso meio, nos dias atuais.
A escravidão, no Brasil, forjou variadas experiências, nas quais as relações entre
livres e cativos assumiram múltiplas formas. Os escravos, ao longo do tempo, foram
dinâmicos em criar meios de participarem do jogo social. Os instrumentos que garantiam a
submissão dos escravos foram variados, mas os mecanismos de resistência à dominação, de
homens e mulheres que viviam sob o cativeiro, também o foram. Examinar como esses
escravos viveram situações de lutas, confrontos, litígios, dores e alegrias é procurar
1
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociações e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras,1989, p. 13-14.
4
compreender um pouco da forma como esses agentes históricos organizaram e participaram
de relações sociais dinâmicas, que não são compreensíveis apenas dentro do esquema
chicote-obediência. Mas fazer emergir a história dos cativos é sempre um esforço difícil e
restará sempre um resultado parcial nessa história vinda de baixo ou história da gente
comum.
Encontramos nos processos judiciais envolvendo escravos na condição de vítima,
réu ou testemunha uma fonte documental que nos possibilitou conhecer mais proximamente
o cotidiano da sociedade norte-mineira ao longo do século XIX. Boa parte deste estudo
acerca da natureza da escravidão no Norte de Minas Gerais baseia-se nessas fontes
cartoriais ou judiciais que forneceram uma substancial ajuda para a compreensão da vida
dos escravos e da sociedade na qual estavam inseridos.
No intuito de alcançar os fins pretendidos por esta pesquisa, principiamos por fazer
uma revisão simplificada da produção historiográfica sobre a escravidão para
compreendermos melhor os avanços e recuos das pesquisas em relação ao tema. Em nosso
primeiro capítulo procuramos perceber como as relações sociais, dentro de um mundo
marcado pela escravidão, foram entendidas e interpretadas pelos historiadores nacionais e
estrangeiros após a Abolição. Enfocamos com um cuidado especial os estudos mais atuais
relativos à escravidão brasileira e mineira que, reavaliando o tema, têm se oposto às
explicações generalizantes, oferecendo estudos de casos que demonstram as peculiaridades
de cada região na formação do país. Dentro desta nova orientação dos estudos sobre a
escravidão, os escravos são percebidos como agentes históricos que criavam estratégias e
mecanismos de inserção na sociedade a partir de valores e práticas engendradas na
experiência e convívio cotidianos com os variados grupos que formavam a sociedade.
5
No segundo capítulo esclarecemos alguns aspectos da formação econômico-social
do Norte de Minas Gerais e mais especificamente do Termo de Montes Claros de Formigas,
observando como as características econômicas, políticas e sociais da região influenciaram
nas escolhas e possibilidades de posse de escravos e nas relações estabelecidas pelos
escravos entre seus pares e com os livres.
O terceiro capítulo objetiva conhecer as possibilidades de análise dos processos
judiciais como meio para se tomar contato com um universo de pessoas anônimas, que
viveram em outra época e não deixaram muitos vestígios. Ao mesmo tempo, pretende
captar o contexto nacional no qual os processos judiciais se tornaram parte de um conjunto
de mecanismos de defesa de um ideal de ordem e civilidade. Na implantação de um projeto
político elaborado pela elite, as normas jurídicas deveriam informar as ações dos agentes
municipais e representar a unidade do poder coercitivo na contenção dos considerados atos
bárbaros dos homens incultos. Entretanto percebemos que a aplicação da justiça no Norte
de Minas não se pautou apenas pela letra da lei, muitas vezes o julgamento dos crimes se
baseou nos valores e princípios construídos cotidianamente, nascidos das relações entre
homens livres e cativos, assim, na prática da justiça estiveram presentes princípios e
comportamentos locais que inúmeras vezes contradiziam os códigos legais e referendavam
as conquistas dos escravos, fossem estas conquistas representadas pela posse de bens ou
pelo direito de limpar a honra ofendida. Ao nos debruçarmos sobre as regras e normas
pretendidas pelo poder instituído, percebemos como elas eram vividas e interpretadas pelas
camadas mais humildes da população.
O último capítulo foi dedicado à tentativa de desvendar um universo escravista no
qual as relações têm um grau de complexidade que não pode ser explicada em análises
simplificadoras que apenas antepõem senhores e escravos, envolvidos em laços de rebeldia
6
ou de submissão. Dialogando com os processos judiciais, captamos situações de luta,
conflito, acomodação e enfrentamento, solidariedade e mobilidade social e espacial,
vividas pelos escravos. Os crimes foram analisados como instrumentos que permitem
acessar indícios do cotidiano. Os processos-crimes funcionaram como um mecanismo a
mais na compreensão do cotidiano das relações escravo/senhor, escravo/ escravo,
escravos/livres. As transgressões ocorridas, envolvendo escravos, permitem enxergar muito
do como essa parte da população se organizava e participava da vida em sua coletividade.
7
CAPÍTULO 1
A historiografia e a escravidão:
Discussões teóricas e formas de entender a escravidão
Em todo o Brasil, historiadores têm revisitado o tema da escravidão, rompendo com
alguns estereótipos criados ao longo da trajetória da historiografia brasileira, segundo os
quais os escravos eram vistos ora como seres passivos, coisas, objetos da dominação e da
crueldade dos senhores, ora como rebeldes, arruaceiros e inconformados. É objetivo desta
seção tentar estabelecer, em seus contornos mais amplos, os lugares em que foram
colocados os escravos ao longo da história, por estudiosos que se debruçaram sobre o tema.
Estaremos analisando concepções historiográficas diversas, desde aquelas moldadas por
visões mais preconceituosas, que entenderam o elemento escravo como desregrado e
promíscuo, até visões mais atuais, que entendem as relações escravistas como resultado de
arranjos e acordos entre senhores e escravos.
1.1 - Negros Raça Inferior
Desde fins do século XIX, era uma idéia recorrente na produção sociológica
brasileira, centrada nas questões da escravidão, a de que o cativeiro seria, por excelência,
conformador de uma vivência, entre os escravos, destituída de normas e nexos sociais. De
certa maneira, a imagem de seres desregrados e vítimas de uma patologia social era comum
quando se pensava nos ex-escravos, tanto quanto o fora durante a escravidão. Essa
representação dos negros escravos e ex-escravos, certamente não construída por seus pares,
8
apontava para a suposta incapacidade genética e cultural dos negros de construir ações
políticas e coletivas conseqüentes e conscientes. Segundo Robert Slenes, o que estava posto
para muitos autores, entre eles Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Pandiá Calógeras, era a
incompetência dos escravos em formarem “famílias conjugais, extensas e intergeracionais
e de agirem em concerto com seus companheiros para definir projetos em comum..”
2
As
imagens apresentadas, desde antes da Abolição, sobre o mundo das práticas dos escravos, e
que permaneceram durante muitas décadas após adentrarmos o século XX, transmitiam
sombrias cenas de promiscuidade sexual, uniões conjugais instáveis, filhos crescendo sem a
presença do pai. Nina Rodrigues, na obra Os africanos no Brasil, argumentou que o
excessivo número de negros e mestiços no Brasil seria a causa do estágio inferior da nossa
“civilização”. Em suas palavras:
“A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus
incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam
as simpatias de que cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores
que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir
sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo. . (...) As vastas
proporções do mestiçamento, entregando o país aos mestiços, acabará
privando-o por largo prazo pelo menos, da direção suprema da raça branca.
E esta foi a garantia da civilização dos Estados Unidos.”
3
Nas décadas de 1920 e 1930 Oliveira Vianna enfatizou a pseudocientificidade da
inferioridade da raça negra, ao apontar o “branqueamento da raça” como solução para o
desenvolvimento do país. As conclusões a que tais imagens conduziam fortaleciam a idéia
da incapacidade cultural do negro em se manter dentro de padrões minimamente
civilizados, por seus próprios meios ou em alcançá-los sem a tutela do homem branco.
Importava a determinados segmentos sociais elaborar uma imagem da escravidão que os
2
SLENES, Robert. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 30.
3
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1977, p. 7.
9
isentasse de responsabilidades pelos problemas enfrentados pelos ex-escravos, tanto quanto
os justificasse em suas práticas racistas.
1.2 Democracia Racial e caráter benigno da escravidão brasileira
Com o pernambucano Gilberto de Mello Freyre, uma nova representação começou a
ser formulada acerca da escravidão no Brasil. A partir da adoção de uma perspectiva
culturalista, Freyre procurou construir uma análise da sociedade que se afastasse do
determinismo geográfico e racial. Sua obra, de caráter inovador, estabelece um novo olhar
sobre o Brasil, apresentando-o como o resultado de uma mistura cultural multirracial. Para
Freyre, as relações sociais construídas no Brasil entre brancos, índios e negros foram-se
harmonizando e dando origem a uma cultura brasileira sem tensões ou grandes
contradições. Sua obra valoriza a cultura negra e traz um elogio do projeto colonizador
português. Segundo o autor os problemas e atrasos do Brasil não seriam decorrentes da
influência debilitante da negritude africana, vista por outros autores como raça inferior. Ao
contrário, o português, não sendo avesso a mestiçagem, teria construído em suas colônias
um modelo de civilização original, permitindo uma interpenetração harmoniosa de
tradições culturais diversas.
As deficiências brasileiras seriam tributárias da monocultura, da escravidão e não da
miscigenação. Se em Casa Grande & Senzala, Freyre não condena a escravidão, vista por
ele como a forma possível para o projeto colonizador português, por outro lado ele
apresenta o negro impossibilitado de exercer uma ação política consistente, por causa de
sua condição de escravo. Assim, a responsabilidade política é do homem branco e aqui
mais uma vez Freyre afirma seu entusiasmo pelo modelo integrador português. Seu estudo
10
retoma a tese do paternalismo senhorial na qual o senhor trava relações amenas com seus
escravos desde que estes não se insurjam.
4
Ainda que o possamos tecer críticas a essa visão
de harmonia e equilíbrio, que esmaece as tensões sociais entre os grupos, sua obra oferece
uma perspectiva diferente para o estudo da sociedade brasileira, a partir da análise da vida
dos senhores de engenho, do dinamismo, humores e artimanhas dos escravos, da riqueza
dos alimentos, das variadas manifestações culturais que vão se misturando no Brasil a
partir da colonização.
Um dos resultados da discussão nascida desse paradigma cultural seria o
fortalecimento de uma outra imagem: a do senhor patriarcal, homem que ao mesmo tempo,
submetia o escravo e cuidava de suas necessidades físicas. O corolário desse pensamento
veio a ser a idéia da fraternidade, caráter brando, benevolente e não violento do trabalho
escravo no Brasil. A obra de Freyre constituiu um marco não só para os estudos sobre a
escravidão no Brasil
5
, mas também influenciou autores estrangeiros.
Na década de 1950, multiplicaram-se os estudos sobre a escravidão nos Estados
Unidos, impulsionados pelo aumento das tensões raciais e o fortalecimento do movimento
negro organizado, contribuindo para o surgimento de novas tendências historiográficas na
abordagem do tema, como por exemplo, o estudo comparativo da instituição escravista.
Estabeleceram-se comparações entre os sistemas escravistas dos Estados Unidos e Brasil,
discutindo, por exemplo, porque no primeiro “se desenvolveu um rígido sistema birracial
enquanto em outros países, dentre eles o Brasil, essa rigidez não é tão manifesta”
6
. Frank
Tannenbaum em 1947, em um ensaio intitulado Escravo e Cidadão, estabeleceu uma
4
proposto por Joaquim Nabuco e Perdigão Malheiro.
5
Cf. CARDOSO. Fernando Henrique. Livros que inventaram o Brasil. Novos Estudos: CEBRAP, São
Paulo. N
º
37, nov. 1993. p. 21-35, onde o autor discute a contemporaneidade de Freyre e contribuições
inovadoras para sua época como enfoque sobre a vida cotidiana como elemento fundamental na compreensão
do país e o fato de ter sido um dos primeiros a assumir a cara mestiça do Brasil.
11
analogia entre os dois sistemas escravistas América Inglesa e América Latina , na qual
o autor superestimou as tradições institucionais e ideológicas de ambos os continentes na
conformação da sociedade escravista. O mundo anglo-saxão teria sido marcado por um
escravismo implacável em função da tradição protestante e capitalista, entre outros fatores.
Já no mundo ibérico teria ocorrido o contrário, um escravismo benevolente e patriarcal em
função da tradição católica.
“A escravidão na América Latina foi marcada pela experiência
escravista prévia na península Ibérica e o contato com os mouros, a
tradição católica desses países e a existência de uma tradição jurídica
regulando a escravidão. Esses elementos institucionais e culturais foram
traduzidos numa variante mais suave do escravismo. Assim, o
reconhecimento da personalidade moral e espiritual do escravo expressou-
se na maior freqüência de alforrias e na assimilação mais fácil dos
libertos. Pelo contrário, as instituições e cultura anglo-saxônicas, baseadas
no governo político descentralizado e carentes tanto das restrições
corporativas do Catolicismo quanto duma tradição jurídica regulando as
relações com escravos, resultaram numa variante mais dura de
escravismo, onde a personalidade moral do escravo era negada”
7
.
Stanley M. Elkins
se situou na mesma perspectiva comparativa de Tannenbaum e
revitalizou o debate “atribuindo as diferenças a sistemas sócio-econômicos-culturais
diversos: um, pré-capitalista, católico e outro, protestante de economia capitalista.”
8
Ao
argumento básico de Tannenbaum, Elkins acrescentou a ênfase no impacto psicológico
causado, sobre os escravos, pela natureza capitalista da plantation sulista norte-americana,
criando o paradigma do escravo zambo
9
, infantilizado pelo poder absoluto do senhor.
Estimulados pelas comparações com o escravismo norte-americano e pela obra de
6
QUEIROZ, Suely Robles de. Rebeldia escrava e historiografia. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 17, nº
especial, 1987, p. 8.
7
TANNENBAUM, F. Slave and Citizen. In: HASENBALG, Carlos Alfredo. Discriminação e desigualdades
raciais no Brasil. Trad. Patrick Burglin. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 32.
8
QUEIROZ, Suely Robles de. Op. Cit. 1987, p. 09.
9
“O zambo, escravo típico da plantação, era dócil, porém irresponsável, leal, porém
preguiçoso, humilde,
mas sempre dado a mentir e roubar: seu comportamento era tolo e infantil e sua tagarelice cheia de exageros
de criança. Sua relação com seu senhor era de total dependência e ligação infantil: era de fato essa
qualidade infantil que constituía a verdadeira chave do seu ser” (ELKINS. Apud . FOGEL. R. W. e
ENGERMAN, S. L. Tiempo de La Cruz. La economia esclavista em los Estados Unidos. Madrid: Siglo
12
Freyre, parte da a historiografia brasileira ofereceu uma visão otimista da sociedade
brasileira, do sistema escravista e do legado do sistema colonial e do Império brasileiro
Mas esse foco de discussão gerou uma noção de um Brasil irreal, de convivência social
harmoniosa, mestiça e tolerante. A corrente revisionista que buscou contestar Freyre,
Tannenbaum e Elkins é representada por autores como David B. Davis , Charles Wagley,
C. R. Boxer, entre outros. Tais autores procuram destacar as similaridades entre os
sistemas, rejeitando a noção de que o escravismo nas diferentes áreas (Estados Unidos e
Brasil) tenha sido marcado por fortes contrastes.
“Davis(1966) (...) critica Tannenbaum e acusa-o de ver o cativeiro como
uma instituição cristalizada, sem mudanças e de exagerar a importância das
diferenças nacionais e culturais no escravismo das diferentes áreas”.
“Boxer(1963) (...) Segundo suas pesquisas, a existência do escravo negro
no Brasil era ‘dura, brutal e curta’. Da ideologia de senhores de terra e
mineradores fazia parte a convicção racionalizada de que ‘os negros são
pretos e portanto não são gente como nós’”
10
1.3 - Contestações das teses Freyrianas no Brasil
Os estudos sobre a escravidão no Brasil, produzidos subseqüentemente
rebateriam com veemência os pressupostos da obra de Gilberto Freyre. A pesquisa
historiográfica se preocuparia em desvendar o caráter violento da instituição escravista,
enquanto as pesquisas de cunho sociológico buscariam apreender a permanência da
intolerância racial e da discriminação no Brasil. Essa tentativa de demonstrar que a
perspectiva de Freyre era colonizadora e elitista e que sua visão culturalista era
interclassista, reacionária e harmonizadora das contradições e tensões sociais nasceu
principalmente no seio da escola sociológica da USP, em torno de autores como Florestan
Vintiuno da Espanha editores, 1981)
10
QUEIROZ, Suely Robles de. Op. Cit. 1987, p. 10.
13
Fernandes. Segundo José Carlos Reis, a obra de Florestan Fernandes e de seus seguidores
pretendeu romper com as construções idealizadas de um passado agrário-escravista-
exportador e reinterpretar a história do país sob a luz dos problemas brasileiros
contemporâneos, fugindo da suavização e da mitificação no estudo das relações sociais que
conformavam a realidade nacional. Era necessário, para Florestan e seus colegas, identificar
e formular os grandes problemas brasileiros, conhecer suas causas e repercussões sociais,
assim como as razões dos fracassos nas tentativas de conter esses mesmos problemas.
Nesse metier os pensadores marxistas se oporiam tenazmente à tese de Freyre.A idéia de
um escravismo pautado na suavidade era um mito cruel e pernicioso e deveria ser
destruído pois representava uma tentativa de aniquilar as presenças do negro e do indígena
na história.
11
A escola sociológica marxista de São Paulo (USP), formada por sociólogos e
historiadores tais como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e
Emília Viotti da Costa vai representar um lócus de contraposição à tese da democracia
racial e do caráter benigno ou brando da escravidão. Esses e outros cientistas abriram uma
nova vertente de estudos buscando constatar a violência na escravidão e analisaram o Brasil
utilizando conceitos de “classe social” e “luta de classes”. De acordo com seus estudos, o
sistema escravocrata estava longe de ser benévolo, e o escravo longe de ser submisso, pois
o escravismo,
“assentava-se na exploração e recorria à violência para se manter.
Vivia, portanto, em um círculo vicioso: a violência gerava a rebeldia do
escravo, punida com mais violência. As punições, por sua vez, conduziam
a maior rebeldia.”
12
11
REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagem à FHC. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 204-234
12
QUEIROZ, Suely Robles de. Op. Cit. P. 13
14
Supervalorizando determinados aspectos da obra de Gilberto Freyre, os paulistas
realizaram críticas às proposições do intelectual pernambucano. Recorreram à idéia jurídica
do instrumentum vocale segundo a qual o escravo era coisa, era propriedade, deixando de
ser coisa quando resistia (matava, fugia...), pois passava a responder por seus atos. A
resistência se daria, então, quando ocorresse o rompimento com a ordem estabelecida. Tais
estudiosos acabaram por propor uma concepção de escravidão que gerou um novo mito: a
coisificação do escravo.
O mito da coisificação do escravo partia de uma definição legal da condição do
escravo “reduzido à condição de cousa, sujeito ao poder e domínio ou propriedade de
outro, é havido por morto, privado de todos os direitos e não tem representação
alguma
13
.
Essa visão legalista, baseada no direito positivo foi apresentada por Perdigão
Malheiro em 1860, num estudo, de caráter abolicionista que atacava a escravidão e a
violência nela presente. Segundo Malheiro, a escravidão impedia a marcha normal do país
rumo ao progresso e à civilização. Muitos estudiosos associaram à coisificação legal uma
reificação subjetiva do escravo. Segundo eles, além de ser considerado como peça,
instrumento ou coisa pelo senhor, o escravo se “auto-representava como ser incapaz de
ação autonômica”
14
.
Segundo Caio Prado Junior,
“se o negro traz algo de positivo isso anulou-se, deturpou-se em quase
tudo. (...) o trabalho cativo não lhe acrescentará elementos morais; pelo
contrário, degradá-lo-á, eliminando nele até mesmo o conteúdo cultural que
porventura tivesse trazido de seu estado primitivo.”
15
13
MALHEIRO, Perdigão. Apud: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Sâo Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 37.
14
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: O negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 125.
15
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1953, p.
269.
15
Para esse autor, o escravo foi vítima de profunda deformação do caráter e da cultura
e as implicações dessa deformação o acompanharam em sua história subseqüente. A
imagem elaborada, ao enfatizar a dissolução moral do escravo e, por extensão, a dissolução
moral de toda a sociedade brasileira, atendia a uma opção política, pois condenava o legado
sócio-econômico do sistema colonial português, que, de acordo com esses pensadores,
Gilberto Freyre terminava por defender. Esses autores iriam insistir na idéia do Escravo-
coisa. Na reificação há a instauração de uma nova “significação operante”, a captação de
uma categoria de homens por uma outra categoria como assimilável em todos os sentidos
práticos, a animais ou a coisas. O escravo é metaforizado como animal. A legítima
preocupação em desvendar o caráter violento da escravidão terminou por forjar um outro
equívoco: a idéia de que o escravo era incapaz de autonomia na ação e estava sujeito a
determinações exteriores.
Preocupados em demonstrar a coisificação objetiva e subjetiva do escravo,
concluíram que os escravos apenas espelhavam passivamente os significados sociais
impostos pelos senhores. Essa elaboração mental, ao traçar um quadro da violência
generalizada em relação aos negros terminou por convertê-los em seres “anômicos,
perdidos uns para os outros, desprovido de laços de interdependência, de responsabilidade
e de solidariedade entre si,”
16
em suma, sem vontade política.
Empreender estudos sobre a escravidão e sobre a violência nela contida tendo como
balizamento essencial a teoria do escravo-coisa levou muitos historiadores a construírem
uma visão dos negros como seres incapazes de formulação de idéias autônomas e
receptores passivos dos valores e normas senhoriais. Criava-se um mito tão forte e
pernicioso quanto o anterior, a imagem mítica de uma sociedade democrática e harmônica.
16
As contribuições da Escola Sociológica de São Paulo, se por um lado trouxeram à
baila a discussão da existência de uma sociedade idílica, que camuflava, no limite, a
violência da instituição escravista e as lutas de classes, por outro lado gerou alguns
equívocos pela imposição de conceitos, modelos e leis pré-estabelecidas para o estudo da
escravidão.
Eduardo Paiva afirma, em sua obra Escravos e Libertos nas Minas Gerais do século
XVIII que,
“a revisão historiográfica empreendida negava a análise
patriarcalista e idílica e passava a enfocar a violência da relação
senhor/escravo.Com isso entendeu o cativo mais como objeto dessas
relações e menos como agente histórico, limitando a resistência à fuga, à
rebelião e à violência.”
17
O autor lembra que a concepção de escravo enquanto coisa está somente na
legislação, no discurso oficial e não nas práticas cotidianas; a reificação não existiu no dia-
a-dia. A insistência na abordagem da violência e da coisificação do escravo contribuiu para
a manutenção do que o autor denomina “imaginário do tronco”
18
.
Diante da corrente historiográfica que enxergava o escravo como coisa, numa
16
CARDOSO, F. H. In: Robert Slenes. Op Cit.,p. 48
17
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVII: estratégias de resistência
através dos testamentos. 2ª edição. São Paulo: Annablume, 1995, p. 49.
18
Segundo PAIVA, o imaginário do tronco repousa na idéia de que o controle dos escravos era produzido
principalmente pela utilização de instrumentos de coerção física e de muita violência, que inculcariam no
escravo a subserviência e coisificação absolutas. Ao se referir à importância dos testamentos e inventários
post-morten, para o estudo da participação dos escravos e libertos na sociedade colonial, o autor, diz: “É
através de legados como os deixados nesses papéis que se torna possível o ataque ao imaginário do tronco, tão
arraigado no entendimento sobre a escravidão brasileira. Os libertos testadores demonstraram em seus relatos
que esse e outros instrumentos de coerção física não tiveram, pelo menos em áreas urbanizadas do setecentos,
emprego tão intenso e corriqueiro quanto se acredita até hoje. Esse tipo de violência fora substituído por
outros, como as restrições à ascensão social dos forros e as interdições de variada natureza impostas
indistintamente aos cativos, a libertos e aos seus descendentes. Em muitas outras ocasiões o controle violento
dos mancípios foi substituído por acordos que interessavam a proprietários e a propriedades e que,
freqüentemente, reverteram em alforrias individuais e coletivas.” Em outros estudos, acerca do século XIX
inclusive, autores diversos concluíram que a participação de escravos e libertos na construção da sociedade
escravista brasileira desqualifica a idéia do escravo absolutamente submetido que aceita a condição de coisa e
da incompetência política dos escravos e forros, ainda que não se pretenda idilizar a realidade de crueldade do
sistema escravista. PAIVA, Eduardo França. Por meu trabalho, serviço e indústria: histórias de africanos,
crioulos e mestiços na colônia Minas Gerais, 1716-1789. Tese de Doutorado. Programa de Pós-
17
postura subserviente e anômica, outros historiadores propuseram um escravo rebelde o
cativo cujos atos seriam provenientes do seu inconformismo com a sua condição de coisa e
se materializariam em gestos de desespero e revolta. Nas palavras de Gorender “o
primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra seu senhor à fuga do
cativeiro”
19
.
A obra de Gorender (1978) rebateu as teses de Tannenbaum e Freyre e retomou o
tema do tratamento dispensado aos escravos. Nessa mesma época se desdobraram os
estudos na redescoberta das formas de resistência escrava. Começaram a avolumar-se os
estudos das formas violentas de resistência, principalmente as mais explícitas como fugas,
suicídios, rebeliões, formação de quilombos, homicídios.
20
Contrapondo-se à tese da suavidade do escravismo brasileiro, as obras desses
historiadores e cientistas sociais, ao enfatizarem o caráter violento da instituição no Brasil,
criaram outros estereótipos como o do escravo coisificado, subjugado ou o do escravo
rebelado (fugitivo, aquilombado ou que cometera homicídio ou suicídio). A única saída
para os escravos resgatarem sua humanidade estaria na “resistência aberta”, ou seja, a
rebeldia. Para Fernando Henrique Cardoso, restava aos cativos “apenas a negação
subjetiva da condição de coisa, que se exprimia através de gestos de desespero e
revolta.”
21
O maior problema advindo dessa avaliação da ação do escravo, repousa, a nosso ver,
no engessamento das manifestações e práticas sociais e culturais da população cativa. As
Graduação em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.Universidade de São
Paulo. São Paulo, 1999.
19
GORENDER, Jacob. O escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 65
20
Obras de maior destaque: FREITAS. Décio. Insurreições escravas. Porto Alegre. Movimento, 1976;
FREITAS, Décio. Palmares. A guerra dos escravos. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal. 1978. . GOULART. Alípio
Da fuga ao suicídio. Rio de Janeiro: Conquista. INL, 1972. LUNA. Luis. O negro na luta contra a
esravidão. 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra/INL. 1976; MOURA. Clovis. Rebeliões da senzala. Quilombo,
insurreição e guerrilha. Rio de Janeiro: Conquista. 1972, entre outras.
18
ações que demonstram mobilidades espaciais e até sociais, resistências, enfrentamentos e
acomodações são entendidas ora como exceção ora como beneplácito do senhor,
diminuindo o valor dos espaços conquistados pelos escravos em sua diversidade e
importância.
Alguns anos mais tarde, autores, como Sílvia H. Lara, criticaram essa limitação na
interpretação da ação do escravo:
“Assim, quando hoje se fala na escravidão no Brasil, a primeira
imagem que vem à cabeça é a de um homem negro, com o corpo
marcado de chicotadas, acorrentado ou preso a um tronco, submetido a
uma exploração sem limites por parte de senhores brancos, cruéis e
desumanos: é a imagem do escravo coisificado, totalmente subjugado ao
poder implacável do senhor, incapaz de qualquer ação autônoma a não
ser deixar de ser escravo, suicidando-se ou fugindo para os quilombos.
Por sinal, a outra imagem, também muito freqüente, é a do homem
negro, de olhar altivo e severo, líder de muitos escravos fugitivos, que se
reuniram e enfrentaram seus senhores durante décadas e décadas...”
22
Na mesma perspectiva de crítica feita por Sílvia Lara se situa a argumentação de
Sidney Chalhoub. As análises da violência inerentes ao sistema e às condições duras do
cativeiro fundamentariam o que o autor denomina de “teoria do escravo-coisa”, ou seja,
“a idéia de que as condições desfavoráveis no cativeiro teriam
desprovido os escravos da capacidade de pensar o mundo a partir de
categorias e significados sociais que não aqueles instituídos pelos
próprios senhores. Ocorreria, então, uma ‘coisificação social’ dos negros
sob a escravidão.”
23
Tal teoria, limitando os conceitos de resistência e de liberdade, apenas via ação
autônoma quando o cativo ameaçava ou rompia violentamente o status quo. Apesar da
crítica, Chalhoub lembra que
“Ë importante entender que todas essas afirmações, pinçadas de
estudiosos célebres como Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso e
21
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. São Paulo: Difel, 1962,
p. 265-270
22
LARA, Sílvia Hunold. Trabalhadores escravos. In: Trabalhadores. Campinas: Unicamp/IFCH, 1990, p. 11-
12
23
CHALHOUB, Sidney. Os mitos da abolição. In: Trabalhadores. Campinas: Unicamp/IFCH, 1990, p. 38
19
Jacob Gorender, tinham um intuito de denunciar os horrores da
escravidão em nosso país, desmascarando assim o mito da bondade dos
senhores de escravos nestas terras.”
24
O próprio Gorender, em sua obra A escravidão reabilitada, analisando as últimas
tendências e as novas orientações metodológicas no estudo da escravidão no Brasil,
produzidas nas últimas décadas pelas universidades brasileiras, apesar de não concordar
com os novos paradigmas acerca da escravidão no Brasil, reviu algumas posições, entre
elas reconhecendo o exagero da escola paulista ao superestimar o processo de coisificação
social que a instituição escravista impunha aos escravos. É importante lembrar que, na
década de 70, os estudos sobre a escravidão dedicaram mais espaço à rebeldia, estudos na
sua grande maioria de inspiração marxista.
Nessas concepções historiográficas, esboçadas acima, os estudiosos colocavam os
escravos em extremidades opostas. À imagem mítica da sociedade democrática e
harmônica foi sobreposta uma outra, a de uma sociedade estratificadora e violenta,
propiciadora da existência do escravo-coisa ou do escravo rebelde, cujas manifestações de
coragem e luta seriam um marco de não resignação. Essa talvez tenha sido uma construção
relacionada com uma necessidade profunda de desvincular do atual cidadão social e
politicamente ativo a imagem do antepassado escravo passivo. Mas é também uma
interpretação limitadora, pois nela a resistência só se dá quando ocorre o rompimento com
a ordem estabelecida, não se consideram os inúmeros acordos, as formas de co-existência,
formas de resistências estratégicas construídas no cotidiano. A idéia do escravo rebelde
como única forma de resistência, portanto, não explica todas as relações uma vez que
resistência é algo mais amplo, construído no dia-a-dia.
24
CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p. 38
20
1.4 - Novos paradigmas na historiografia da escravidão:
contribuições de Fogel, Engerman, Genovese e Gutman
Na década de 1970, o debate internacional sobre a escravidão se ampliou com as
obras de autores como R. W. Fogel e S. L. Engerman, Eugene D. Genovese e Herbert
Gutman
25
. Fogel e Engerman apresentam uma visão capitalista da escravidão, considerando
a plantação escravista uma empresa econômica altamente lucrativa. Os autores imputam o
sucesso econômico das plantações sulistas à mão-de-obra altamente disciplinada,
organizada e coordenada. Desta forma, a política dos senhores não resultou no zambo
preguiçoso e infantilizado de Elkins. Fogel e Engerman defendem que “el típico peón
agrícola esclavo no era pezeroso, inepto e improductivo. Por lo general era más resistente
y eficaz que el blanco.”
26
Este escravo preparado e produtivo seria resultante de uma ação que conjugava o
atendimento às necessidade básicas dos escravos, como alimento, vestimenta e habitação,
assistência médica, possibilidade de manutenção da família, castigos e prêmios. O resultado
de práticas aperfeiçoadas de organização do trabalho, em que a força era habilmente
combinada a um sistema de recompensas a curto e longo prazo, promoviam o trabalho
eficiente e responsável dos escravos.
Forgel e Engerman demonstraram a partir de análises cliométricas, que os escravos
não apenas aprendiam, mas também eram produtivos e eficientes. Relativizaram os
informes sobre o nível de vida dos cativos no Sul dos Estados Unidos demonstrando que a
prática escravista não era pautada na irracionalidade dos senhores nem na incompetência
25
FOGEL. R. W. e ENGERMAN, S. L. Tiempo de La Cruz. La economia esclavista em los Estados Unidos.
Madrid: Siglo Vintiuno da Espanha editores, 1981. GENOVESE. Eugene D. Roll, Jordan, Roll, The World
the Slaves Made. New York, 1974 (primeira parte traduzida); GUTMAN, Herbet. The Black Family in
Slavery and Freedon, 1750-1925. New York. 1976.
26
FOGEL. R. W. e ENGERMAN, S. L. Tempo de La Cruz. La economia esclavista em los Estados Unidos.
Madrid: Siglo Vintiuno da Espanha editores, 1981, p. 193.
21
dos escravos. E receberam muitas críticas que incidiram sobre vários aspectos de sua
pesquisa. Segundo Fogel, ao fim de uma determinada tarde de discussões em um colóquio
sobre escravidão, um colega lhes perguntou, num sorriso nervoso: “ ¿Qué es lo que estáis
tratando de hacer, chicos? ¿Vender la esclavitud?”
27
Não foi ponto pacífico estabelecer uma nova interpretação para a escravidão no
Velho Sul, como não seria também no Brasil. Fogel e Engerman apontaram algumas das
implicações dos novos estudos para a História da escravidão ao dizerem:
“Hemos atacado la interpretación tradicional de la economía esclavista no
con el fin de resucitar un sistema difunto, sino con el de corregir la
desvirtuación de la historia de los negros: con el fin de tirar abajo la tesis de
que los negros norteamericanos carecieron de cultura, logros y desarrollo en
sus primeros doscientos cincuenta años sobre suelo norteamericano. Hemos
tratado de mostrar que esta falsa descripción de la historia de los negros fue
en principio consecuencia de un debate entre los críticos y los defensores de
la esclavitud, debate que se basó en la premisa racista de que los negros eran
biológicamente inferiores a los blancos. Ya fueran norteños o sureños los
que escribían la historia del Sur, esta premisa fue mantenida por todos los
historiadores, salvo unos pocos, durante el período posterior a la guerra civil
y hasta la víspera de la segunda guerra mundial.
La reacción en contra del racismo, que coincidió con la segunda guerra
mundial, no condujo a rechazar la descripción racista de la historia negra,
sino a eliminar algunos de sus rasgos más groseros. De ahí derivó una sutil
refundición de la interpretación tradicional que siguió considerando a los
negros como un pueblo privado de oportunidades de desarrollo cultural,
intelectual, social y personal durante doscientos cincuenta años. Pero ahora
la explicación de este mísero desarrollo no era la inferioridad biológica, sino
las desafortunadas circunstancias sociológicas. Los negros eran las
lastimosas víctimas un sistema de esclavitud tan represivo que destruyó en
ellos el sentido de la familla, el deseo de prosperar, la inclinación hacia la
industria, la independencia de juicio y la capacidad de autoconfianza. En
lugar de una justificación biológica ya desacreditada, se entronizó una
respetable y aceptable justificación sociológica. Una de las peores
consecuencias de lá interpretación tradicional de la esclavitud es que desvió
la atención de los ataques a las condiciones materiales de la vida de los
negros en las décadas que siguieron al fin de la guerra civil. Al exagerar la
severidad de la esclavitud, todo lo que vino después apareció como un
proceso en relación a las condiciones anteriores.
28
27
FOGEL. R. W. e ENGERMAN, S. L.op. cit. p. 196.
22
O trabalho de Fogel e Engerman termina por demonstrar que o modo de produção
escravista instalado no Sul dos Estados Unidos não se baseava apenas na violência, antes,
dosava regras e acordos que foram construídos por escravos e por senhores. À violência
generalizada imputada aos senhores e à ineficiência da escravidão, os autores
contrapuseram sua interpretação, pela qual se percebe que a escravidão não era fator
impeditivo do desenvolvimento econômico.
Genovese também reviu as relações senhor/escravo ao apresentar um paradigma
paternalista nas relações escravistas, discutido detalhadamente na obra Roll, Jordan, Roll,
publicada em 1974 (a primeira parte desta obra seria traduzida para o português em 1988
sob o título “A Terra Prometida: O mundo que os escravos criaram”). Genovese, ao
desenvolver a sua concepção de paternalismo, não deixou de reiterar o caráter racista
inerente a essa prática. Segundo ele a “convergência das relações de classe, tal como se
manifestaram no paternalismo, não equivale menosprezar o racismo inerente ou negar as
intoleráveis contradições situadas no cerne do próprio paternalismo”
29
. Pelo contrário,
Genovese aponta o paternalismo como uma forma de dominação eficaz, do ponto de vista
do senhor, onde bondade e afeição coexistiam simultaneamente com crueldade e ódio.
Outro aspecto do paternalismo ressaltado por Genovese é a destruição da solidariedade
entre os escravos, na medida em que a ideologia paternalista reforçava a dependência dos
escravos em relação a seus senhores. Mas, como o próprio autor reitera, a dependência não
era absoluta, pois os escravos encontravam na religião sua principal fonte de resistência.
Esta lhes “ensinava a se amarem e valorizarem uns aos outros, a assumirem uma visão
crítica em relação aos senhores e a rejeitarem as justificativas ideológicas para sua
28
FOGEL. R. W. e ENGERMAN, S. L. Tiempo de La Cruz. op. cit., p. 220-221
29
GENOVESE, Eugene. A Terra Prometida: O mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 22
23
própria escravização”
30
.
A grande inovação da análise apresentada por Genovese está na distinção do
significado do paternalismo para senhores e escravos. O paternalismo sulista foi reforçado
pela proximidade física entre senhores e escravos e pelo fim do tráfico de escravos
africanos, proporcionando a reprodução da força de trabalho nos plantéis. O paternalismo
era aceito tanto por senhores, quanto por escravos, mas com interpretações radicalmente
diversas. Para os senhores, constituía uma forma de dominação e uma forma de corroer a
solidariedade entre os escravos, mas por outro lado envolvia o reconhecimento da
humanidade destes. “A insistência do paternalismo em obrigações mútuas - deveres,
responsabilidades e, em última instância, até direitos - representava, implicitamente, a
humanidade dos escravos.”
31
Para os escravos, a ideologia paternalista transformou-se
numa poderosa arma de resistência contra a desumanização. Se por um lado reforçou o
racismo e a exploração, por outro, esse sistema de relações permitiu aos escravos uma
leitura própria da ordem social, na qual enfatizava-se a garantia de direitos e a ampliação de
espaços de autonomia. Segundo a ótica de Genovese, o paternalismo significou para os
escravos a oportunidade de desenvolver uma cultura e religião próprias, tornando-se assim
um instrumento de resistência à opressão do domínio senhorial.
Entre as formas de adaptação cultural autônoma adotadas coletivamente pelos
escravos, no sentido de resistirem à desumanização imposta pelo sistema escravista, se
destaca a existência de estabilidade da família nuclear nas senzalas. Genovese, Fogel e
Engerman já haviam enfatizado a questão, mas a obra de Gutman constitui um marco na
historiografia sobre o tema. Contrapondose a autores como Ulrich B. Phillips, e Elkins,
cujas obras negam a existência da família escrava, o autor percebe uma forte estrutura
30
Idem, p. 24.
24
familiar negra, pelo menos desde a segunda metade do século XVIII. Utilizando-se de
fontes como registros de casamentos, demonstra a longa duração dos mesmos, apesar de
muitos serem desfeitos em função da venda de membros da família a diferentes senhores.
32
O autor também trabalhou com as correspondências entre casais, tratando de separações
involuntárias, demonstrando que a família era o núcleo central da comunidade escrava
sulista. O período estudado pelo autor antecede à Guerra de Secessão, iniciando-se em
1750. A importância dessas formas de adaptação para o grupo escravo, segundo o autor, é
que estruturas familiares e de parentesco foram a chave para a formação de uma
consciência de comunidade e a transmissão da herança cultural de uma geração a
outra.”
33
Esses processos de formação de famílias, fossem matrifocais, nucleares ou
extensas também ocorreram no Norte de Minas, e podem ser comprovados pelos processos
judiciais trabalhados em nossa pesquisa.
1.5 - Novos caminhos na Historiografia - a escravidão revisitada
Desde meados da década de 70, mas notadamente na década de 1980, junto com as
preocupações com o Centenário da Abolição, começaram a ser desenvolvidas pesquisas que
procuraram aprofundar os estudos sobre a escravidão, fugindo dos quadros estruturalistas e
dos enquadramentos em esquemas rígidos de classificações, que engessavam o
conhecimento e não permitiam avançar muito no conhecimento histórico. Começaram a ser
revisitados os arquivos, com a busca de novas fontes e utilização de novas metodologias
para se compreender aspectos significativos da história da escravidão no Brasil. Da análise
31
Idem, p. 23
32
GUTMAN, Herbet. The Black Familv in Slaverv and Freedon, 1750-1925. New York. 1976.
33
HANSEBALG, Carlos Alfredo. Op. Cit. P. 38
25
de múltiplos documentos, os historiadores buscaram depreender a economia durante a
escravidão, o cotidiano dos escravos, as relações sociais entre senhores e escravos, perceber
através das fímbrias dos documentos as estratégias e formas de resistência dos negros ao
trabalho escravo, seja através do confronto, do desafio à sujeição seja pela acomodação,
entendida como uma maneira de diminuir o sofrimento e ainda adquirir privilégios e
favores junto aos senhores.
Historiadores como Sidney Chalhoub, Sílvia Hunold Lara, Hebe Maria Mattos,
Robert Slenes, Eduardo França Paiva, Liana Maria Reis, Manolo Florentino, dentre muitos
outros, têm demonstrado que a adaptação e a docilidade do escravo representavam, muitas
vezes, além de uma ação política, a possibilidade de uma convivência menos sofrida, e até a
possibilidade, mesmo que a longo prazo, de conquistar a manumissão. Seus estudos
enfocam também o papel da família escrava no cotidiano do Brasil e a importância das
relações de parentesco para os senhores e para os escravos. Nas palavras de Sílvia Hunold
Lara
“(...) escravos que formalmente reiteravam as expectativas senhoriais
de fidelidade, obediência e trabalho assíduo para obter suas alforrias ou
cumprimento de tratos sobre alimentação e vestuário, escravos que
aproveitavam a ocasião de sua própria venda para escolher seu senhor, que
se recusavam a certos trabalhos. (...) Inegavelmente, estas são formas de
resistência. Não estão abarcadas, porém, nem pelo binômio ação-reação,
nem por uma classificação baseada na violência. Mais ainda, muitas delas
constituem ações de resistência e ao mesmo tempo de acomodação, recursos
e estratégias variados de homens e mulheres que, em situações adversas,
procuravam salvar suas vidas, criar alternativas, defender seus interesses.”
34
As novas abordagens sobre o escravismo brasileiro têm sido influenciadas pela
“Nova História” francesa, pelo marxismo revisionista inglês de Edward P. Thompson e
pelo paradigma paternalista das relações escravistas elaborado por Genovese.
34
LARA, Sílvia Hunold. Campos da violência; escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro
1750-1808.R.J. : Paz e Terra, 1988.
26
Em 1979, Kátia Mattoso publicou o artigo intitulado “Testamentos de escravos
libertos na Bahia no séc. XIX; uma fonte para o estudo das mentalidades”, e nesse mesmo
ano publicou na França sua tese Être esclave au Brésil
35
, onde faz uma síntese da
escravidão no Brasil, estudando basicamente a Bahia, ambos marcadamente influenciados
pela escola francesa. Seus trabalhos mereceram elogios da parte de alguns estudiosos, como
Ciro Flamarion Cardoso,
que os consideraram um marco na historiografia da escravidão
brasileira, e críticas por parte de outros, como Gorender
36
, que considera suas
interpretações um retorno às teses de Gilberto Freyre.
Uma das chaves interpretativas nesta nova historiografia da escravidão é a
ampliação do conceito de resistência, que ressalta as estratégias cotidianas dos escravos, os
espaços de autonomia conquistados por estes em função de sua própria leitura do
paternalismo. Os historiadores tenderam a abandonar os mitos dicotômicos do escravo ou
submisso ou rebelado criados ao longo do debate histórico, para se dedicar a uma linha
intermediária - a resistência cotidiana, as estratégias para melhorar a vida, os espaços de
autonomia conquistados e a luta para mantê-los e até ampliá-los. O enfoque dessas formas
menos explícitas de resistência se justifica pelos limites das abordagens anteriores que
davam destaque quase que exclusivamente à rebeldia escrava.
“Ao darem destaque às grandes revoltas, elas desconsideram e
mesmo depreciam como ‘não-políticas’ ou como ‘acomodação’ as
múltiplas formas de resistência e de lutas cotidianas dos escravos - e
estes são então excluídos da condição de sujeito de sua própria história
da escravidão no Brasil(...). Foram homens e mulheres trabalhadores,
submetidos a certas condições específicas de exploração do trabalho - a
escravidão - e que sob essas condições, isto é, como escravos,
construíram seus modos de vida e luta, o que inclui desde assumir o
papel de ‘bom escravo’ até a revolta aberta. Nem coisa, nem Zumbi,
esses escravos estabeleceram intrincadas relações com seus
companheiros de cativeiro, com seus senhores e com alheios, com ex-
35
Traduzido em 1982, com o título “Ser escravo no Brasil”, editado pela Brasiliense.
36
Cf. GORENDER, Jacob. A escravidão Reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.
27
escravos e com homens e mulheres livres e pobres.”
37
A análise de Sidney Chalhoub sobre a autonomia e a mobilidade escravas se refere
basicamente a cativos do meio urbano, seus atores são escravos que viveram no Rio de
Janeiro, nas últimas décadas do século XIX. Chalhoub defendeu a necessidade de se alargar
o campo de possibilidades na interpretação da instituição escravista e de como se
constituíam as relações senhores/escravos. Os escravos construíram vários caminhos em
direção a liberdade, desde a revolta, a fuga até as vias institucionalizadas (pecúlio dos
escravos, alforrias por indenização...) e as lutas cotidianas pela preservação e ampliação de
espaços de autonomia. “Pois para cada Zumbi existiu, com certeza, um sem número de
escravos que, longe de estarem passivos ou conformados com sua situação, procuraram
mudar sua condição de acordo com estratégias mais ou menos previstas na sociedade na
qual viviam.”
38
As críticas mais veementes a esse tipo de abordagem partiram do historiador Jacob
Gorender. A oposição central do autor aos trabalhos mais recentes acerca da escravidão no
Brasil se refere, no seu entendimento, ao estabelecimento de uma escravidão do tipo
contratual, e não apoiada na coação. Segundo Gorender, a escravidão “não podia ser
contratual, pois se apoiava na coação, na imposição pela violência, o trabalho escravo
exigia o mais alto custo de vigilância (...), dentre os tipos de trabalho baseados em
relações antagônicas de exploração.”
39
É impossível negar que o escravo fosse
propriedade de outro homem, seu trabalho era, no limite, assegurado através da coação
física e da punição exemplar e sua vontade era sujeita ao poder do senhor. Isso não quer
dizer, no entanto, que o escravo fosse um simples apêndice do senhor, desprovido de
37
LARA, Sílvia H. Op. Cit. 1990, p. 18
38
CHALHOUB, Sidney. . Op. Cit. 1990, p. 40
39
GORENDER, Jacob. Dossiê escravidão. A escravidão reabilitada.In: LPH: Revista de História. Volume
3. nº 1. 1992. Deptº de História/UFOP, p. 252.
28
direitos e incapaz de agir por si mesmo. Mas Gorender insiste em uma questão que é
nevrálgica para os estudos da historiografia da escravidão atual qual seja, assumir e
explicar o lugar do contratualismo/paternalismo nas relações escravistas modernas.
Os estudos recentes, que procuraram discutir as atividades econômicas, as relações
sociais, a mentalidade, as crenças, os costumes dos escravos, caminham, segundo Maria
Helena Machado
40
, no sentido de “superar as visões pessimistas a respeito do escravo e do
liberto, mergulhando nas fontes documentais que permitem reconstruir a realidade da
escravidão não necessariamente sob um ponto de vista heróico, mas realista.”
Novas abordagens e novas perspectivas têm sido abertas, pelo estudo de fontes
como testamentos, tanto de senhores quanto de libertos, cartas de alforria ou de liberdade,
processos judiciais, registros de batismos, para a compreensão da formação do espaço
brasileiro e para o entendimento da ação dos escravos.
41
Ao estudar o que o cativo podia,
ou, ao menos, tentava fazer para melhorar sua condição ainda dentro da escravidão, o
historiador pode perceber que as ações dos escravos ampliavam um pouco mais os limites
de sua liberdade. Está claro que esses limites eram móveis, pois muitas vezes o senhor
tentava tolher a humanidade do cativo que, por sua vez, buscava esticar ao máximo sua
autonomia e capacidade de escolha sobre todos os aspectos da vida.
40
MACHADO, Maria Helena P. T.. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a História social
da escravidão. Revista Brasileira de História, v.16, p.143-160, 1988.
41
Obras que apresentam essa abordagem: ALGRANTI. Leila Mezan. Estudos sobre a escravidão urbana
no Rio de Janeiro: 1808-1821. Petrópolis, Vozes. 1988..CHALHOUB. Sidney. Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras 1990.; LARA, Silvia Hunold.
Campos da violência. Escravos e Senhores na capitania do Rio de Janeiro- 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e
Terra. 1988; MACHADO, Maria Helena. Crime e escravidão. Trabalho, luta e resistência nas lavouras
paulistas - 1830-1888. São Paulo: Brasiliense. 1987; MATTOSO, Kátia M. De Queiroz. Ser escravo no
Brasil. São Paulo: Brasiliense. 1982., REIS. João José (org.) Escravidão e invenção da liberdade. São Paulo:
Brasiliense, 1988.. SCHWARTZ. Stuart E. Segredos internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial:
1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988; CARVALHO, Marcus. Liberdade: rotinas e
rupturas do escravismo no Recife. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1998; PAIVA, Eduardo França.
Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de Resistência através de Testamentos.
São Paulo: Annablume, 1995, entre outras.
29
Em seu trabalho, Rebelião escrava no Brasil, João José Reis aponta uma forma de
resistência coletiva na qual os valores étnicos e culturais ou religiosos teriam pesado na
organização e mobilização dos cativos. A revolta dos Malês, que atingiu o âmbito da luta
armada, teria sido fruto da coesão comunitária nascida de fatores étnicos e religiosos.
Analisando ainda outras revoltas de escravos na Bahia, na primeira metade do século XIX,
o autor salienta que os elementos propiciadores de sua deflagração estão ligados ao
aumento no número de importações de negros africanos e ao ritmo intenso de trabalho
exigido dos escravos. Ao apontar vários levantes urbanos e rurais ocorridos no
Recôncavo, inclusive alguns ocorridos em dias de festas, Reis lembra que “a escolha de
dias santos, domingos e feriados para o exercício da rebeldia fazia parte do modelo de
movimentação política dos escravos no Brasil e no mundo.
42
É inegável a competência de articulação política e percepção das possibilidades de
ação que esses escravos desenvolveram, como também o é o temor que causavam entre os
senhores. É significativo que os moradores do Recôncavo, ao longo da primeira metade do
século XIX, assustados com o aumento da violência exigissem das autoridades medidas de
controle social, especialmente proibindo batuques e reuniões de escravos. Os senhores
reconheciam nos ajuntamentos de cativos momentos propícios para as articulações dos
movimentos de rebelião. Dos documentos trabalhados por Reis podem ser pinçadas
manifestações da vida cultural dos escravos bem como resistência contra a situação de
cativos, levadas a cabo por escravos africanos. Em todas essas manifestações o escravo é
visto como agente de sua própria história, ainda que tolhido pelos limites extremos de sua
condição.
Utilizando fontes como periódicos e processos judiciais Reis vai recuperar a
42
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos Malês. (1835). São Paulo:
30
história dos escravos, ainda que perpassada pela pena do escrivão. Em suas palavras,
“A qualidade e a quantidade desses documentos torna-os um testemunho
vivo sobre a escravidão urbana e a cultura africana nas Américas. Temos
aí, por exemplo, mais de duzentos interrogatórios em que, apesar do óbvio
constrangimento da situação, os africanos falam, além da rebelião, de
aspectos de sua vida cultural, social, econômica, religiosa, doméstica e até
amorosa.”
43
Apesar de produzir uma obra importante para o estudo das manifestações de
resistência escrava, Reis comete um equívoco ao subestimar outras formas de resistência
que eram postas em prática pelos escravos (notadamente os crioulos). Segundo o
historiador, os escravos crioulos teriam uma certa cumplicidade com os senhores, numa
aceitação da ideologia paternalista da qual estava excluído o africano. Em sua concepção,
Reis percebe um “pacto antiafricano entre baianos senhores e escravos, pretos e brancos
e mulatos.
44
Ora, a nosso ver, o que ocorria era que, longe de estabelecer pactos com os
senhores contra seus próprios interesses, a ação dos escravos nativos inclinava-se a uma
resistência que possuía outras formas e ritmos, o que não implica numa aceitação da
escravidão e muito menos que os cativos nascidos no Brasil não se rebelassem tanto quanto
os africanos.
45
Em livros mais recentes o autor revê alguns de seus conceitos, inclusive
relativizando a concepção de pacifismo crioulo. Quanto à concepção de que os escravos
preferiam associações entre membros de seus grupos étnicos, o que só aumentaria a
rejeição mútua entre escravos nativos e estrangeiros, os estudos de Robert Slenes
46
comprovam que os escravos não se furtaram de criar comunidades de interesses e
Brasiliense, 1987, p. 87
43
Idem. p. 08
44
Para cf. o conceito de “pacifismo crioulo” : REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. A história do
levante dos Malês. (1835). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 171-175.
45
Os trabalhos de QUEIROZ, Suely Robles de. Escravidão negra em São Paulo.Rio de Janeiro: José
Olympio, 1977. FREITAS, Décio.Insurreições escravas. Porto Alegre: Movimento, 1976. AZEVEDO, Célia.
Onda negra, medo branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Entre muitos outros, são estudos que apontam
para a forte ocorrência de revoltas, formação de quilombos e reações de escravos ante o sistema escravista.
31
sentimentos que reforçavam os laços de solidariedade. Ainda que compreendendo as
especificidades da revolta dos Malês, e procurando não fazer generalizações, é importante
salientar que as práticas culturais, religiosas ou sociais dos cativos lhes permitia a formação
de laços que garantiam oportunidades de alterar os limites de sua condição.
Silvia Hunold Lara tratando das relações escravistas em Campos dos Goitacazes,
região Sudeste do Brasil, caracterizada por uma economia açucareira, a partir da análise de
autos criminais produzidos no período de 1750 e 1808, também apresenta preocupação em
resgatar aspectos da cultura e da experiência dos escravos, bem como em entender a
amplitude dos embates e das negociações cotidianas entre senhores e escravos no processo
de transformação ou manutenção do sistema escravista no Brasil. Uma de suas
preocupações repousa na tentativa de reinterpretar o caráter institucional dado à violência,
presente nas relações escravistas. Para a autora, o castigo físico, por exemplo, era, muitas
vezes, institucionalizado na sociedade e não apenas em relação ao escravo. O castigo
possuía uma dimensão pedagógica e como tal, mantido dentro de padrões toleráveis, era
aceito por cativos e por homens livres. Um dos objetivos da autora era argumentar que a
insistência apenas na denúncia da violência não permitia recuperar a ação dos escravos
como sujeitos históricos, como indivíduos que conseguiam agenciar suas vidas mesmo
dentro dos padrões mais adversos. É também importante perceber na ação dos senhores a
competência em estabelecer meios diferentes para manterem seus escravos sob domínio,
com a utilização de mecanismos que passavam, dentre outros, por práticas de tolerância,
acordos, acertos individuais e coletivos. E na dinâmica entre as ações dos dois grupos, é
tarefa do historiador deslindar os ganhos e perdas que se processavam de ambos os lados,
bem como a leitura que cada grupo fazia das situações criadas no dia-a-dia.
46
SLENES, Robert. Na senzala uma flor.
32
É importante ter em mente que as análises baseadas em referências empíricas feitas
por Sílvia Hunold Lara, como de resto para a maior parte dos estudos sobre escravidão, não
devem ser generalizadas para todo o período escravista e nem mesmo para todos os lugares
em que vigorou a escravidão no Brasil, uma vez que existem diferenças substanciais nas
características das áreas estudadas. A historiografia da escravidão se ressente do caráter
fragmentário e da concentração dos estudos empreendidos até o momento.
1.6 Estudos sobre a escravidão em Minas Gerais
Em Minas Gerais, estudos sobre a escravidão, dentro de uma nova perspectiva
ampliaram-se a partir do último quartel do século XX. Os trabalhos recentes têm
demonstrado que tanto a economia mineir a como as relações sociais inter e intragrupais
foram muito dinâmicas desde o período colonial. Nas relações sociais as negociações, os
acordos e conflitos se estabeleceram segundo as características de cada região de Minas
Gerais e em função das expectativas e necessidades dos diversos segmentos sociais que
compunham o cenário mineiro. Entretanto o foco maior dos estudos repousa nas questões
econômicas e ainda são relativamente escassos os estudos sobre as relações sociais
escravistas.
Alguns autores demonstram que a economia mineira no século XVIII e XIX
apresentou traços peculiares. Ela detinha o maior número de escravos neste período e
possuía caráter dinâmico e não decadente, como era considerado por autores como Celso
Furtado e Caio Prado Junior. Além disso, construiu um ágil setor de transformação. Esses
estudos revisionistas estimularam novas pesquisas, não apenas nas áreas de demografia e de
economia, mas também na área de História Social e Cultural, ainda que mais escassos.
33
Dentro do rol de estudos mineiros que discutem a natureza e as características da
escravidão, situam-se os trabalhos de Roberto Borges Martins
47
, que apresenta Minas
Gerais, no último quartel do século XVIII, como a maior província em número de escravos.
Esse quadro perduraria por grande parte do século XIX. Os estudos de Martins estimulam
novos debates que trazem à tona um quadro mais complexo e dinâmico da economia
escravista mineira. Reconsiderando uma versão historiograficamente construída de
estagnação econômica proveniente da decadência aurífera, bem como uma interpretação
convencional que articulava ao sistema escravista modernas atividades voltadas para
atividades agroexportadoras, Martins esteve na vanguarda de uma discussão que terminaria
por gerar uma ampla revisão das características da economia e sociedades mineiras. Em
seus estudos, porém, Martins desligou a produção mineira do mercado externo,
classificando-a como uma espécie de economia de subsistência, cujos excedentes seriam
comercializados no mercado interno ou local. Por outro lado, insistiu que a origem dos
escravos foi o tráfico transatlântico. Essa perspectiva foi contestada por Francisco Vidal
Luna e Wilson Cano
48
, que relativizaram a importância do tráfico, apresentando a tese da
reprodução natural como explicativa para o crescimento populacional escravo, ocorrido nas
Minas. Segundo eles, a mudança no tratamento dispensado pelos senhores aos seus
escravos resultou no decréscimo da exploração daquela força de trabalho e,
conseqüentemente, na possibilidade do crescimento vegetativo da população escrava.
Contestando algumas das posições de Martins, Robert Slenes apresentou uma nova
interpretação da economia mineira, tentando responder a questão da proveniência dos
recursos para a compra de escravos e procurando demonstrar que não houve um
47
MARTINS, Roberto B. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Texto para discussão
Discussão nº 10. Belo Horizonte: CEDEPLAR/FACE/UFMG, 1982.
48
LUNA, Francisco Vidal, CANO, Wilson. Economia escravista em Minas Gerais. Cadernos IFCH
UNICAMP, nº 10. Campinas, out.1983.
34
desligamento absoluto de Minas em relação aos mercados externos. Slenes sugeriu, com
muita propriedade, que certos setores da economia mineira se ligavam ao mercado de
exportação e exerciam um papel de impulsionadores da economia interna, em outras
palavras, as atividades exportadoras geravam divisas acumuláveis e estas mesmas divisas
formavam um mercado consumidor que impulsionava uma agropecuária voltada para a
mercantilização. Segundo Slenes,
“Minas no fim do período colonial e no Império se assemelhava à
área que é hoje o noroeste da Argentina, no século XVIII. Neste caso
também, a conjunção de altos custos de importação e um setor exportador
significativo que fornecia gado muar, bovino e cavalar para a região das
minas de prata do Alto Peru (hoje Bolívia), arroz para esse mercado e
outros mais próximos, e panos de algodão para o litoral criou um
mercado interno, e gerou uma agricultura comercial e uma manufatura
doméstica bastante diversificada para suprir esse mercado.”
49
Para Robert Slenes, o apego dos mineiros à mão-de-obra escrava se devia à
possibilidade de usar o trabalho e a terra para a produção mercantil. Assim, a economia de
Minas estaria em consonância com o mercado externo e, ao mesmo tempo, não deixava de
desenvolver um mercado interno amplo, baseado em pequenas e médias propriedades
produtivas contando com mão-de-obra escrava.
Douglas Cole Libby
50
reafirmou a diversidade da economia mineira, destacando em
sua obra a importância do setor de transformação, com a disseminação da atividade têxtil
artesanal, baseada sobretudo em unidades domésticas, cuja produção supria significativa
parte da necessidade provincial. Seu trabalho apresenta ainda a importância da pequena
siderurgia e a mineração subterrânea, esta levada a cabo por Companhias estrangeiras que
empregavam uma grande parte de mão-de-obra cativa. Novamente foram ressaltadas as
49
SLENES, Robert W. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista de Minas Gerais no século
XIX. Cadernos IFCH UNICAMP. Nº 17 Campinas, jun.1985.
50
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e Trabalho em uma economia escravista Minas Gerais,
século XIX. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPq, 1988.
35
características de diversificação da economia como geradora de uma dinâmica interna
muito peculiar que não se desligava do mercado externo, mas não dependia completamente
dele. Outro ponto importante enfatizado por Libby seria o desenvolvimento do trabalho
livre ao lado do trabalho cativo, perspectiva comprovada em nosso trabalho de pesquisa.
Carlos Magno Guimarães e Liana Maria Reis, em 1986, também foram autores que
conseguiram revelar a importância de atividades como a produção de cana-de-açúcar, de
queijos, criações de gado, porcos e galinhas, fiação e tecelagem de algodão, cultivo do
fumo, entre outros, para o fortalecimento econômico de Minas Gerais. Para Reis e
Guimarães
51
, a agricultura foi uma atividade desenvolvida desde o começo da colonização
das Minas e desde cedo contou com mão-de-obra escrava. Através da análise de cartas de
sesmarias, os autores procuraram reconstruir o movimento de expansão da atividade
agrícola, expresso no movimento de ocupação da terra. Os caminhos de São Paulo e do Rio
de Janeiro para as Minas Gerais foram mapeados e os autores apontaram a existência de
roças em praticamente todos os lugares onde se fizeram pousadas. O sucesso da atividade
aurífera certamente dependeu em grande medida da oferta interna de gêneros agrícolas
produzidas nas diversas regiões mineiras.
As cartas de sesmarias do século XVIII, estudadas por Guimarães e Reis, apontam
para uma diversificação das atividades econômicas, com um claro desenvolvimento das
atividades agropastoris e utilização do trabalho escravo, o que nos ajuda a confirmar o
equívoco da tese que defende a ausência do trabalho escravo nas áreas criatórias.
Refere Guimarães que
“A agropecuária foi desenvolvida desde o início do processo de
colonização, embora se compararmos com a produção de ouro com a
concessão de sesmarias perceberemos que os máximos em um e em outro,
51
GUIMARÃES, Carlos Magno e REIS, Liana Maria. Agricultura e caminhos de Minas (1700-1750). In:
Revista do Departamento de História. Nº 4, Departamento de História- FAFICH/UFMG, 1987.
36
acontecem em momentos diferentes. (...) O ponto alto das cartas pode ser
considerado como uma decorrência da crise do ouro que se prenuncia
com a queda de mais de 4% da produção mineira, que passa de 10.637 kg
no qüinqüênio 1735-39 para 10.047 no quinqüênio seguinte. (...) Muitas
das cartas concedidas em 1745 foram para o Sertão do São Francisco. Das
343 cartas concedidas para a Comarca [do Rio das Velhas], 150 se referem
à atividade criatória. (...)112 fazem referência à utilização do trabalho
escravo, o que equivale a 36,2%.”
52
Caio César Boschi, por sua vez, em artigo publicado na Revista História e
Perspectiva, de 1994, salienta que
“os aglomerados urbanos foram responsáveis pela introdução e pelo
desenvolvimento de intenso mercado interno, tanto nos seus próprios
limites, como no interior da capitania, e desta, com outras partes da
Colônia. Se a exploração aurífera foi o início, nem sempre e nem em toda
a região ela foi a principal atividade produtiva. Para cuidar do
abastecimento, simultaneamente à mineração, vai-se compondo
diversificada estrutura produtiva. Intensas relações comerciais e
expressivas produções agropastoril e manufatureira, caracterizadas pela
não inversão de grandes capitais e por baixo nível de renda e poder de
concentração, acabam configurando nítida economia regional, com ativo
mercado interno.”
53
Ao que tudo indica, a diversidade produtiva aliada ao crescimento da atividade
comercial, com uma ampla circulação de gêneros da terra, inclusive fora das áreas
produtoras, foi responsável por um certo dinamismo da região das Minas, mesmo após a
decadência aurífera. As divisas acumuladas pelos comerciantes, pequenos produtores e
criadores formariam o cabedal necessário para a aquisição de trabalhadores cativos, fosse
por tráfico externo ou por tráfico interprovincial. Houve, em muitos casos, a conjugação de
compra de escravos e reprodução natural para a formação e expansão dos plantéis de
cativos. É possível aventar a hipótese de que as características da economia ajudem a
explicar as peculiaridades das relações escravistas em Minas Gerais. Os pequenos e médios
52
GUIMARÃES e REIS op.cit. p. 96-97.
53
BOSCHI, Caio César. Nem tudo o que reluz vem do ouro. In: Revista História & Perspectiva, Uberlândia,
(11): 33-42, Jul./Dez. 1994.
37
plantéis, por exemplo, permitiriam, no Norte de Minas uma maior proximidade dos
escravos com a população livre. Encontramos indícios dessa proximidade, nos testemunhos
de homens livres que presenciaram atos criminosos, envolvendo escravos.
É importante salientar que estudos recentes comprovam o crescimento natural como
um mecanismo de reprodução da mão-de-obra escrava. O início do movimento revisionista
acerca da existência da família escrava pode ser encontrado nos estudos de Eugene
Genovese, que, em sua obra “A Terra Prometida”, constrói um modelo de família escrava
com parâmetros próximos aos da família senhorial. Já os estudos de Gutman constatam a
formação de famílias que possuem certa autonomia, além de serem duradouras,
conformadas muitas vezes por padrões diversos dos da família branca senhorial.
Para Minas Gerais, estudos como o de Paiva, Libby e Grimaldi
54
(1988) apresentam
uma revisão do tema da reprodução natural da população escrava. Francisco Vidal Luna e
Iraci Costa
55
pesquisando Vila Rica nos séculos XVIII e XIX, encontraram mais de 10% de
escravos casados, sendo que destes, a maioria se casou com forros.
Reafirmando a tese do abrandamento da exploração dos cativos aliado a outros
fatores como a própria estrutura de posse de escravos, caracterizada pelo pequeno número
de cativos em cada propriedade, Tarcísio Rodrigues Botelho comprovou para o Norte de
Minas Gerais o peso da reprodução natural na composição do crescimento da população
cativa. Segundo Botelho em boa parte das propriedades norte-mineiras as pequenas posses
permitem o compartilhamento, entre senhores e escravos, das mesmas atividades, o que
favoreceria a continuidade dos processos de reprodução natural. Em sua dissertação de
Mestrado Botelho apresenta uma redefinição ou alargamento da idéia de família no Brasil.
54
PAIVA, Clotilde A., LIBBY, Douglas C., GRIMALDI, Márcia. Crescimento natural da população escrava:
uma questão em aberto. IV Seminário sobre a Economia Mineira. Anais. Belo Horizonte:
CEDEPLAR/FACE/UFMG, 1988. p. 11-32.
38
O modelo tido como legal e sancionado não é suficiente para explicar os inúmeros arranjos
que caracterizaram as uniões familiares no Brasil. Em suas palavras,
“A família negra no Brasil deve ser entendida como estando entre o
paternalismo, enfatizado por E. Genovese, e a autonomia, enfatizada por
H. Gutman; entre a influência dos senhores e dos padrões herdados da
África. Ao menos no caso específico de Montes Claros, podemos
acrescentar um outro elemento: a influência dos padrões familiares que
vigoram entre as classes mais baixas da população livre.”
56
O autor deixa claro que o caráter normativo do casamento legalmente constituído
não foi o mais importante, tanto para os cativos quanto para a população livre em geral e
predominaram entre esses grupos as uniões consensuais e as famílias constituídas
legitimamente.
Recentemente, os estudos de Jezulino Lúcio Mendes Braga discutiram as relações
familiares que foram formadas entre os cativos do Termo de Mariana, no século XIX.
Avançando na compreensão dos processos de formação destas famílias o autor apresenta a
família escrava baseada, por um lado, na autonomia do escravo em sua experiência no
cativeiro e, por outro, como estratégia dos senhores para manter e aumentar suas posses.
Ainda dentre os estudos que procuram enfocar aspectos importantes da constituição
das relações sociais escravistas em Minas Gerais no século XIX, ressaltamos o trabalho de
Heloísa Maria Teixeira, que, através de análises apoiadas nos trabalhos de demografia
histórica, estabelece o perfil da família escrava marianense para a segunda metade do
século. Das conclusões da autora, evidencia-se que a escravidão não impedia a formação e
manutenção de laços familiares estáveis por períodos de tempo significativos. Como bem
salientou Teixeira,
55
LUNA, Francisco V., COSTA, Iraci. Vila Rica: Nota sobre casamentos de escravos (1727-1826). In:
ÁFRICA, 4:105-109, 1981.
56
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: Demografia e Família Escrava no Norte de Minas
Gerais no século XIX. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 1994 (mimeo.), p. 141.
39
os senhores geralmente seguiam a política de não separar as famílias
escravas. Até mesmo no momento mais tenso para a família (a partilha dos
bens entre os herdeiros), a maioria dos escravos conseguia contornar e
continuava unida a seus familiares. Mesmo para aquelas famílias que
sofreram separações parciais ou totais de seus membros, questionamos o
fato de isso acarretar o distanciamento das relações familiares. Pensando
em Mariana como uma região formada predominantemente por pequenos
plantéis em pequenas propriedades normalmente bastante próximas,
provavelmente a separação de proprietários não significava
necessariamente a proibição das relações familiares. Nas grandes
propriedades, talvez, a separação entre proprietários fizesse menos
diferença, pois, ainda que dividida, as frações de terras que resultariam da
partilha seriam vizinhas e, sendo assim, a convivência diária das famílias
escravas continuaria sem alteração.”
57
Segundo a autora, a cidade de Mariana, na segunda metade do século XIX,
encontrava-se integrada a uma economia voltada para a produção de subsistência e para o
abastecimento do mercado inter e intra provincial, destacando-se pela diversidade de suas
atividades econômicas. Mariana era formada, em geral, por pequenas propriedades,
normalmente bem próximas, que contavam com pequenos plantéis escravos.
Teixeira confirmou a permanência da utilização da mão-de-obra escrava em
Mariana, mesmo diante das mudanças ocorridas nas relações de trabalho em São Paulo e
no Rio de Janeiro, nesse período. Ao apresentar a distribuição da escravaria segundo a
estrutura de posse, ficou claro que o maior número de plantéis eram os de menor
concentração de escravos e ingênuos. Em plantéis de até 06 (seis) escravos a participação
de crianças era menor e nas categorias de 06 (seis) a 10(dez) escravos; 11 (onze) a 20
(vinte) e mais de 20 (vinte) escravos se encontrou um número maior de crianças. Os
plantéis menores possuíam maior porcentagem de ho mens e mulheres adultos jovens, ou
seja, com idades variando entre 15 e 44 anos. A autora atribuiu o número maior de crianças
57
TEIXEIRA, Heloísa Maria. Reprodução e famílias escravas em Mariana: 1850-1888. Dissertação de
Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. São
Paulo, 2001.
40
nos plantéis maiores à menor dificuldade destes para custear a manutenção desses infantes.
Os números apresentados por Teixeira confirmam a existência de formação de famílias
escravas matrifocais ou nucleares estáveis. A reprodução natural era economicamente
viável para uma região desvinculada do mercado externo e portanto estimulada pelos
senhores, mas era também uma política que permitia ao cativo “a construção de laços
familiares estáveis no interior dos plantéis, permitindo-lhe construir estruturas sociais
paralelas àquelas constituídas pelo poder senhorial.”
58
Tarcísio Rodrigues Botelho, estudando o Norte de Minas Gerais, encontrou um
quadro de população escrava que denotava a preservação dos plantéis cativos graças
principalmente à reprodução natural. Sua pesquisa aponta, entretanto, para o crescimento
do número de cativos baseado em nascimentos próprios tanto em grandes e médios quanto
em pequenos plantéis. Segundo suas conclusões, a estrutura do escravismo no Norte de
Minas Gerais era peculiar, trazendo características como grande presença de escravos de
origem nacional, relativo equilíbrio entre os sexos e presença significativa de crianças.
Botelho, se posiciona em relação à importância da família escrava e à leitura diferenciada
do papel dessa família para senhores e cativos de modo semelhante ao adotado por
Teixeira. Em suas palavras,
“A família escrava ocupa um posto importante nesta sociedade,
oferecendo a seus membros um elemento onde podem encontrar apoio
mútuo e forças para atravessarem a vida em cativeiro de forma mais
segura e confortável. Esta família cativa apresenta traços peculiares, que
devam ser observados caso queiramos compreende-la. O casamento
formal é pouco relevante, sobressaindo-se as uniões consensuais, muitas
de caráter estável. Tais uniões permitem que a família permaneça unida,
observando-se o convívio simultâneo de várias gerações e a preservação
de uma herança familiar comum. Embora o papel desempenhado pela mãe
seja fundamental, não se pode esquecer da presença paterna, muitas vezes
encoberta pela ausência de registros documentais.”
59
58
TEIXEIRA, Heloísa Maria. Op.cit.
59
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Op.cit., p. 195
41
Esses e outros estudos têm procurado evidenciar a presença da família escrava e sua
importância para os cativos e para os senhores, determinando elementos importantes para
se pensar as relações dos escravos na sociedade de modo geral. A partir de um enfoque
também regionalizado, o nosso trabalho pretende trazer uma contribuição a esses estudos
relativos a Minas Gerais. Salientamos que as ações dos escravos, nele apresentados,
desvendam um universo em que as relações têm um grau de complexidade que não pode
ser explicado em simples análises que antepõem senhores e escravos, envolvidos em laços
de rebeldia ou de submissão. Ao mesmo tempo, as características da produção no Norte de
Minas nos levam a confirmar o quadro de diversidade das relações econômicas presentes
em Minas. A vida social criada pelos cativos em Mont es Claros nega expressamente a
aceitação passiva da dominação senhorial, os arranjos construídos apontam para inúmeras
possibilidades de acordos e conflitos que envolvem os grupos de senhores e de escravos na
região. Ainda que exista um controle dos senhores e da elite local, os escravos exercem sua
força lançando mão de estratégias as mais variadas para minimizar seus sofrimentos e os de
seus parentes, além de não se furtarem a fazer uso da violência, que irrompe cotidianamente
nas relações de trabalho ou de lazer e provoca rupturas mais radicais na dominação
escravista.
42
CAPÍTULO 2
Ocupação, povoamento e economia no
Norte de Minas nos séculos XVIII e XIX
Para um entendimento mais claro da conformação da sociedade
montesclarense e das relações sociais cotidianas que aqui se desenrolaram e nas quais se
envolveram livres e cativos é imprescindível conhecer um pouco o processo de formação e
ocupação, administração bem como a economia dessa área. É o que nos propomos a estudar
neste capítulo. Neste levantamento surge com menor vigor a presença do escravo e do
homem pobre livre, que não participaram da criação dos códigos legais ou normatização
institucional da sociedade senão na condição de elementos a serem civilizados e
domesticados. Entretanto essa sociedade se engendrou dentro de um embate entre o projeto
e a realidade vivida, desse modo, a cada sessão da Câmara, a cada aprovação de lei, a cada
medida de fiscalização e controle criada pela municipalidade, levava-se em conta o cativo e
o pobre. Também em cada fazenda, roça, sítio ou venda em que se produzia algum bem,
ainda que só poucas vezes fossem os donos, certamente lá estavam os negros e negras
contribuindo para essa produção.
2.1. A ocupação do Norte de Minas
A região considerada como Norte de Minas compreendia, no século XIX, toda a
metade setentrional da Província de Minas Gerais. Em nosso estudo, focalizaremos a parte
central dessa região, a Comarca do Rio São Francisco, cuja sede era a Villa de Montes
Claros de Formigas. Os distritos que fizeram parte do Termo de Montes Claros foram, com
43
algumas alterações ao longo do século, Julgado da Barra do Rio das Velhas, Arraial de São
José do Gorutuba, Arraial do Senhor do Bomfim (atual Bocaiúva), Arraial de Contendas
(hoje Brasília de Minas), Arraial de Santo Antonio da Boa Vista, Arraial do Sagrado
Coração de Jesus, Arraial do Brejo das Almas (hoje Francisco Sá), e Tremedal (atual Monte
Azul)
60
.
Essa foi uma das primeiras regiões da futura Capitania das Minas Gerais a ser
explorada pelos portugueses. Segundo Urbino Vianna, memorialista montesclarense, a
primeira expedição a percorrê-la data de 1553. Foi a de Francisco Bruzza de Espinosa e do
Padre Jesuíta João de Aspilcueta Navarro, junto a alguns companheiros, que, partindo de
Porto Seguro, teria penetrado sertão adentro pela região do Rio Jequitinhonha e Pardo até
as Serras das Almas, Grão Mogol e Itacambira, passando pelo Rio Verde e alcançando o
próprio Rio São Francisco.
61
A ocupação do local vinculou-se ao processo de expansão dos currais de gado
nordestino. A pecuária nordestina se iniciou como abastecedora e associada aos engenhos
de cana. Aos poucos, veio a separação e o avanço daquela para o sertão. Encontrando o São
Francisco, as fazendas de gado começaram a seguir rumo às cabeceiras do rio. Datam do
século XVII as doações de grandes sesmarias às suas margens: à direita aos Garcia de Ávila
60
As localidades situadas entre o Rio das Velhas, Rio São Francisco e a Bacia do Rio Verde grande, ou seja
no Sertão norte-mineiro, apresentam mudanças de subordinação administrativa ao longo de todo o século
XIX. Assim, por exemplo, Tremedal esteve subordinado à Villa de Montes Claros de Formigas até meados
de 1840, passando então a estar subordinada à Grão Mogol e mais tarde à Rio Pardo de Minas. Em 1886,
Montes Claros não mais pertence à Comarca do Rio São Francisco e sim à Comarca de Jequitahy, que se
compunha então de dois municípios: Montes Claros e Jequitahy. Estes abarcavam, respectivamente, os
seguintes distritos: Coração de Jesus, Santt’Anna de Contendas, Santo Antônio da Boa Vista e São Gonçalo
do Brejo das Almas; Bom Sucesso e Almas do Guaicuhy, Senhor do Bomfim e Santt’Anna dos Olhos
D’água. O Arraial da Barra do Rio das Velhas, posteriormente Villa de Guaicuhy, pediu ao governo
provincial na década de 1870 sua subordinação à Villa de Montes Claros de Formigas, em função das
dificuldades de se atravessar o Rio São Francisco por ocasião dos períodos de enchentes. (Relatório de
Alistamento Militar de 09/11/1886. Acervo do Fórum Gonçalves Chaves. Divisão de Pesquisa e
Documentação Regional. Diretoria de Documentação e Informações da Universidade Estadual de Montes
Claros. De agora em diante nomeada com as siglas AFGC-DPDOR)
61
VIANNA, Urbino de Souza. Monographia do Município de Montes Claros. Breves apontamentos
históricos, geográficos e descriptivos. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Geraes, 1916.
44
(Casa da Torre), e à esquerda a Antônio Guedes de Brito (Casa da Ponte).
62
Estes sesmeiros
cederam aos pecuaristas vastas extensões de terras em troca do direito de cobrar-lhes foro.
Em meados do século XVII as fazendas já atingiam o Rio das Velhas. Nesse período a
pecuária na Bacia do Rio São Francisco despontava como atividade econômica por
excelência. Antonil assim se referiu à importância da agricultura e criação nesta região:
“E porque as fazendas e os currais de gado se situam onde há
largueza de campo e água sempre manente de rios ou lagoas: por isso os
currais da parte da Bahia estão postos na borda do Rio São Francisco, na
do Rio das Velhas, na do Rio das Rãs, na do Rio Verde, na do Rio
Peramirim, na do Rio Jacuípe (...); e de outros rios, em os quais, segundo
informação tomada de vários, que correram este Sertão, estão atualmente
mais de quinhentos currais.”
63
Segundo Tarcísio Botelho,
nesse processo de ocupação do Norte de Minas, instalou-se uma
economia baseada na criação de bovinos para tração e para a produção de
carne e couro, além de eqüinos. A presença do sal nos chamados
“barreiros” (depósitos superficiais de sal mineral) e as facilidades de
importação do produto do vale médio inferior do Rio São Francisco
(Capitanias da Bahia e Pernambuco), utilizando-se o próprio rio como via
de tráfego, favoreceram ainda mais a instalação desta economia.
Associada à pecuária, desenvolveu-se uma agricultura voltada para a
complementação da dieta alimentar dos habitantes da região.”
64
As expedições de exploração mineral e apresamento de índios, na segunda metade
do século XVII, em especial a bandeira de Fernão Dias, trouxeram os paulistas até o Vale
do São Francisco, com a fundação das primeiras povoações: Morrinhos (Matias Cardoso),
Salgado (Januária), São Romão e Barra do Rio das velhas (Guaicuí).
Ainda persistem dúvidas quanto à verdadeira origem dos primeiros povoadores da
região. Mas o mais importante é que, quando da descoberta de metais preciosos, na década
de 1690, as correntes de povoamento paulista e baiana já havia resultado na instalação de
62
PIRES, Simeão Ribeiro. Raízes de Minas. Montes Claros: 1979.
63
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil, por suas drogas e minas. Parte 4, capítulo I.
45
grandes fazendas de criação e que estas já haviam se firmado.
65
Kenneth Maxwell, em
estudo publicado em 1977, bem como Douglas Cole Libby, Robert Slenes e Clotilde Paiva
demonstraram que desde o princípio da atividade mineradora na capitania, houve uma
combinação entre mineração, agricultura e pecuária.
66
2.2 Transformações no Norte de Minas no século XIX
O Norte de Minas Gerais, no século XVIII, além de região abastecedora, passou a
ser uma das principais rotas de suprimento das minas e de contrabando de ouro. O desvio
do ouro e a necessidade de impor a dominação metropolitana sobre todo o território mineiro
sempre foram preocupações dos governantes portugueses. A região do norte de Minas era
relativamente isolada do resto do país, uma região semi-árida com um misto de economia
agrária e pecuária, voltada para um mercado local e regional, cuja população era, em
grande parte, pobre e possuidora de poucos escravos. A tarefa de controlar uma área tão
vasta e de ocupação esparsa era extremamente difícil. As tentativas de controle estatal e
econômico levaram a várias revoltas. A mais importante delas foi a chamada Sedição de
1736 ou Motim do Sertão. Levante de potentados e populares contra o governo da
Capitania, em função da tentativa de implantação da taxa de capitação, esse motim, como
outros ocorridos, demonstrava a dificuldade de garantir o espaço do poder metropolitano,
de controlar o excedente que era gerado pelo comércio isento de impostos e de impor as
normas no Sertão. A derrota do motim não destruiu o poder dos potentados locais. Ao
contrário, o relativo isolamento econômico e político, a que a região norte foi submetida
64
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: Demografia e Família Escrava no Norte de Minas
Gerais no século XIX. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 1994 (mimeo.)
65
MATA-MACHADO, Bernardo. História do Sertão Noroeste de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial de Minas Gerais, 1991.
46
nesse momento, fez com que a população cada vez mais dependesse dos favores e proteção
dos grandes fazendeiros.
67
No século XIX, a legislação imperial determinou a diminuição
sistemática dos poderes do legislativo municipal. As províncias passaram a se imiscuir em
quase todas as questões municipais. Em conseqüência de leis como as de 1828 e de 1841, o
Estado foi amealhando o controle sobre a polícia municipal e judiciária e os oficiais
municipais que garantiram suas posições por meio do patronato, tenderam a dar
sustentação, em âmbito provincial e nacional, aos partidos que os haviam conduzido ao
poder. Esses políticos locais controlavam os aparelhos policial e judiciário em suas
comunidades e puderam usar esses mecanismos de poder não apenas para influenciarem os
votantes e eleitores mas inclusive para alterarem os resultados eleitorais. Assim, a dinâmica
das forças políticas que se mantiveram no poder no Brasil, projetou a integração local e
regional com um sistema político nacional que, no limite, institucionalizou o patronato
político
68
, a dependência e a corrupção do sistema de justiça.
Segundo Judy Bieber, em sua obra Power, patronage and political violence, na qual
a autora faz uma análise da formação do Estado brasileiro a partir da observação da
estrutura e da participação política dos municípios, os procedimentos constitucionais
usados pelo aparato judicial e policial para proteger os aliados políticos (a nível local e
regional) e punir os adversários, foram fruto de distorções e adaptações dos preceitos legais
e instituições liberais introduzidas no Brasil nas décadas de 1820 a 1830. Conforme
salientou a autora,
“O Estado brasileiro centralizou o controle sobre a administração
municipal e comercializou cargos oficiais para obter resultados eleitorais
favoráveis a seus interesses particulares. Para o Estado os custos sociais e
66
MAXWELL, Kenneth. A devassa da Devassa. Rio de Janeiro: 1977, p. 112.
67
Sobre o Levante de 1736, cf. ANASTASIA, Carla Maria Junho. A sedição de 1736. Belo Horizonte:
68
Por Patronato entendemos o fenômeno político caracterizado pela distribuição de posições burocráticas e
subsídios financeiros entre as elites municipais partidárias da facção política que detivesse o controle dos
governos provincial e nacional, no Brasil, ao longo do século XIX.
47
econômicos do patronato eram baixos devido à alternância dos partidos
conservador e liberal no poder. O partido dominante estrategicamente
distribuía posições oficiais na polícia, no sistema jurídico municipal e na
Guarda Nacional para aliados municipais que receberam pouca ou
nenhuma remuneração por seus serviços. Se estes oficiais
subseqüentemente abusaram de sua autoridade utilizando-se de corrupção,
injustiça e violência para manterem privilégios e regalias, esses abusos
não chegaram a representar uma ameaça para o Estado.”
69
Em seu estudo sobre a inter-relação do Estado Imperial brasileiro, possuidor de um
caráter fortemente centralizador e da política municipal no Norte de Minas Gerais, Judy
Bieber fornece pistas valiosas para a compreensão da ascensão política de Montes Claros,
no século XIX. Se o isolacionismo do século XVIII favoreceu o aumento dos poderes dos
potentados do Sertão; no dezenove, com a perda de autonomia das municipalidades, os
líderes locais tiveram que ser hábeis em estabelecer acordos e uniões com os escalões mais
altos do governo imperial. As autoridades municipais montesclarenses mostraram-se
competentes em estabelecer alianças partidárias, modernizar-se, adaptando-se às novas
características do jogo político que garantiria o poder nos âmbitos local, provincial e
nacional.
Do ponto de vista econômico, Bernardo Mata-Machado enfatiza que em fins do
século XVIII, a região comercializava gado e peles com a Bahia e o Rio de Janeiro, além de
manter ligações inter-regionais e com as províncias de Goiás e do Nordeste. Para este autor,
“o isolamento não significou falta de produtividade. Contando com os próprios recursos, a
população desenvolveu um estilo de vida autônomo, fundado na agricultura para
subsistência e na utilização das riquezas naturais”.
70
A partir do início do século XIX, ocorreram transformações internas que mudaram a
economia regional. As transformações deram origem a uma nova configuração da
69
BIEBER, Judy. Power, patronage, and political violence: State Building a Brazilian Frontier, 1822-
1889. Nebraska: University of Nebraska Press, 1999, p. 02
48
economia e de rede urbana local. Seus reflexos são notados na perda de importância das
cidades ribeirinhas dentro do contexto regional e na diminuição das exportações da região
para províncias do Norte pelo redirecionamento do fluxo desta economia.
71
As cidades ribeirinhas, em função de suas posições estratégicas no comércio
regional e interprovincial, especialmente de sal, garantiram a sobrevivência econômica até
princípios do século XIX; a partir de então, foram perdendo espaço. Assim, primeiro
declinou a povoação da Barra do Rio das Velhas, para em seguida vir São Romão. Januária
(Salgado) manteve por mais tempo sua importância regional, graças, principalmente, ao
fato de possuir uma sólida agricultura baseada no cultivo da cana-de-açúcar. Entretanto,
sofreu irreversível processo de estagnação. Houve um progressivo deslocamento do eixo
econômico regional no sentido do afastamento do rio São Francisco, até então a principal
razão de ser do Norte de Minas. Neste processo, assistiu-se à ascensão de novos núcleos
urbanos, dentre os quais Montes Claros.
A mudança do eixo econômico, passando do Norte para o Sul, teria refletido sobre
os fluxos do comércio inter-regional. Ao se deslocar para o Sul, houve uma queda das
70
MATA MACHADO, Bernardo. Op Cit. ,p. 62.
71
Tarcísio Botelho informa que “é possível encontrar um bom exemplo[do redirecionamento econômico] na
trajetória do Registro do Rio Pardo ao longo do século XIX. Os registros eram barreiras alfandegárias
existentes em pontos estratégicos nos limites das Capitanias, responsáveis pela cobrança de impostos sobre
produtos exportados e importados. No Império, foram substituídos pelas recebedorias, com características
semelhantes. Rio Pardo e Malhada/Januária eram os mais importantes registros do Norte da Capitania, e
estavam colocados em rotas de comércio com a Bahia e Pernambuco. O último estava instalado na margem
esquerda do Rio São Francisco, enquanto o primeiro servia mais à área à esquerda do Rio Jequitinhonha. Nos
esclarecimentos prestados ao governo provincial pelas autoridades de Minas Novas, em 4 de Fevereiro de
1844, tratando das estradas que passavam próximo do Registro de Rio Pardo, afirmava-se que “há outra
estrada de grande commercio descoberta no tempo do Registro, para extravios, a qual he a lado esquerdo da
do Curralinho, chamada do R
o
Verde pequeno por ella descem gêneros de V
a
de Formigas [Montes Claros]
Gorotuba Tremedal e Catingas do R
o
Pardo, e do mesmo R
o
Verde, e sobem gêneros em grande numero”.
Quanto aos produtos que circulavam pelo Registro, “os gêneros que se exportão desta Província são Boiadas
Cavallarias Cargas d’algodão em lã mantas panos d’algodão, couros de Boi derivados e solla
allem de outros. Os de importação são fazendas seccas, enxofre, ferro, asso, chumbo, cobre, ferramentas,
louça, farinha de trigo, bolaxas, e vinhos.” Se os principais produtos de exportação não mudaram muito ao
longo do século XIX, os volumes comercializados sofreram variações, com quedas contínuas nas vendas de
49
exportações, sem que isso significasse necessariamente uma diminuição da atividade
econômica. O Norte de Minas passou a ter ligações mais estreitas com o centro e o sul da
província, integrando-se a sua economia. Ao longo do século XIX houve um declínio
econômico das províncias da Bahia e Goiás, parceiras do Norte de Minas. As relações
comerciais ainda eram mantidas, com exportação de gado de Montes Claros para a Bahia
em 1840, como foi observado por Gadner, mas nem sempre o número de cavalos e bestas
de cargas foi suficiente para atender a demanda. Em 1865 o viajante Burton evidenciava “a
importação de mulas para Januária, na mesma região de Montes Claros, vindas do Rio
Grande do Sul, via Sorocaba e São Paulo.”
72
É provável que até a década de 1870, Diamantina tenha sido também um centro
consumidor de diversos produtos do Norte de Minas, inclusive da região de Montes Claros.
Da Falla do Presidente de Província Quintiliano José da Silva, proferida em 1846, retiramos
a seguinte informação:
“Os ramos de Indústria em geral d’este Município [Montes Claros
de Formigas] consistem no commércio de fazendas seccas e molhados,
que entretem com a cidade de Diamantina, e com a Praça do Rio de
Janeiro, calculando-se os objetos importados annualmente de 80 a 100
contos de reis, e exportando de Indústria peculiar do paiz salitre, sollas,
couros cortidos, tabaco, tecidos de algodão, redes, etc.; assucar,
aguardente, rapaduras e queijos, sendo estes últimos objetos em não
pequena escala. Cultivao se os cereais, e por mera curiosidade, o trigo e o
café.”
73
(grifo nosso)
Por outro lado, criou-se um amplo mercado consumidor de produtos agropecuários
no Rio de Janeiro, com a vinda e estabelecimento da Família Real portuguesa no Brasil.
panos de algodão, bovinos e eqüinos. Até o fim da década de 1860, foi diminuída sua participação no total da
província, apresentando recuperação apenas na década de 1880.” BOTELHO, op. Cit., p. 43
72
SILVA, Vera Alice Cardoso e. Da bateia à enxada: aspectos do sistema servil e da economia mineira em
perspectiva, 1800-1870. In: Revista do Departamento de História. Nº 6, julho de 1988, p. 54
73
Falla dirigida à Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes na Sessão Ordinária do Anno de 1846,
pelo Presidente da Província Quintiliano José da Silva. In: Guia Hartness. Subject Guide to Statistic in the
Presidential Reports of the Brazilian Provinces, 1830-1890. Austin Texas: Institute of Latin American
Studies, University of Texas at Austin, 1977.
50
Finalmente, na segunda metade do século XIX, houve a ascensão de novo setor exportador
no interior da província de Minas Gerais, com a expansão do café na Zona da Mata.
74
Este
conjunto de fatores levou à diminuição do comércio com a Bahia e Goiás e ao aumento de
importância, para os produtores norte-mineiros, dos mercados do Centro e Zona da Mata de
Minas Gerais e do Rio de Janeiro.
2.3 - Montes Claros de Formigas
Montes Claros teve sua origem associada à bandeira de Fernão Dias, que saindo de
São Paulo, percorreu a região por volta de 1674.
75
Antônio Gonçalves Figueira, participou
da expedição e após o seu fim, estabeleceu-se com seus setecentos escravos na Fazenda
Brejo Grande, onde foi instalado o primeiro engenho de cana do Sertão.
76
Figueira chegou
ainda a empreender uma expedição contra os índios Tapuias da região, vencendo-os,
contando com provisões do Governador Geral. Fundou, posteriormente, as fazendas Jaíba e
Olhos d’Água. Obteve, por alvará de 12 de abril de 1707, uma sesmaria de légua e meia de
largo por três de comprido, nas cabeceiras do Rio Verde, pela margem esquerda, tendo ao
sul os montes de xistos calcáreos, estabelecendo aí a Fazenda dos Montes Claros.
77
Nessa
marcha, seguiu o caminho de outros paulistas que vieram com Fernão Dias e também se
estabeleceram na região. Em princípios do século XVIII a Fazenda de Montes Claros
contava, em sua sede, com casas, currais e capelinha de barro batido. Figueira fez construir
74
Para um estudo mais pormenorizado ver, em relação à Bahia, MATTOSO, Kátia M. Bahia no século XIX:
uma província no Império e em relação a Goiás, FUNES, Eurípedes A. Goiás, 1800-1850: Um período de
transição da mineração à agropecuária, Niterói, 1983, Dissertação de mestrado. LENHARO, Alcir. As
tropas da moderação: o abastecimento da corte na formação política do Brasil. São Paulo: Símbolo, 1979.
75
VIANNA, Urbino de Souza. Op. Cit., p. 47-49.
76
PAULA, Augusto Hermes de. Montes Claros, sua história, sua gente, seus costumes. Montes Claros,
1979, v. 1, p. 4--5
77
VIANNA, Urbino de Souza. Op. Cit., p. 49.
51
uma estrada para Tronqueira, na Bahia, às margens do Rio Pardo, passando por sua fazenda
em Brejo Grande.
78
Estabeleceu ainda uma ligação com Pitangui e o Serro Frio. João
Gonçalves do Prado abriu o caminho novo do gado, passagem da estrada para a Bahia,
seguindo o Rio Verde Grande, conhecido como estrada baiana sertaneja. Uma ligação com
o São Francisco, com extensão de quarenta léguas, onde moravam Matias e Januário
Cardoso e Dona Maria da Cruz foi também estabelecida por Figueira.
79
Com a descoberta de jazidas minerais em Itacambira, foram criados os primeiros
núcleos urbanos afastados do São Francisco. Com o crescimento do comércio de gado
assistiu-se a um incremento populacional, não apenas homens livres, mas também “negros
fugidos, índios acuados e mineiros cansados de peregrinações frustradas,”
80
acrescidos
dos posseiros expulsos das áreas mineratórias de Itacambira. A vinda de povoadores de
Itacambira fez surgir novas fazendas na região, e na segunda metade do século XVIII já
existiam inúmeras delas.
As endemias, comuns nas margens do Rio Verde Grande, fizeram estes povoadores
se concentrarem em suas cabeceiras, especialmente às margens dos rios Vieira, Bois,
Lagoinha e Canoas. Após a volta de Antonio Gonçalves Figueira para Santos, a
administração da Fazenda de Montes Claros ficou a cargo de seu filho André Gonçalves
Figueira, que, envolvido no Motim de Montes Claros, foi deportado para Angola.
81
A
Fazenda foi entregue então a agregados e depois ao Sargento-mor Manoel Ângelo,
primogênito de Antonio Figueira. Em 1768 a fazenda foi vendida para o Alferes Jose Lopes
de Carvalho, que iniciou a construção de uma nova sede. Em 18 de junho de 1769, o
78
PAULA, Augusto Hermes de. Op. Cit, p. 7
79
PAULA, Augusto Hermes de. Op. Cit, p. 7. Cf. também VASCONCELOS, Diogo. História Antiga de
Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 50-51
80
VIANNA, Urbino de Souza. Op. Cit., p. 42-49.
81
PAULA, H. de. Op. Cit., p. 7; VASCONCELOS, Diogo de. História Média de Minas Gerais; Revistas do
Arquivo Público Mineiro edições 1896, 1898, 1900
52
Alferes requereu ao visitador geral do Sertão, Reverendo Silvestre da Silva Carvalho,
licença para edificar uma capela sob a invocação de Nossa Senhora e São Jose.
82
Daí se
originou a povoação de Formigas, já na segunda metade do século XVIII.
Nas últimas décadas do século XVIII havia na região três povoados: Tabúa,
Formigas e Cruzeiro, neste último residiam o sacerdote Theotônio Gomes de Azevedo e
seus agregados. O comércio constante que se fazia ali, e que se constituía na permuta ou
venda de gados, produções do solo, pequenas manufaturas, mercadorias vindas da Bahia,
etc, deu rápido incremento ao povoado, que prosperou mais que os outros principalmente
pela proximidade em relação à estrada que ligava a região à Bahia. Entretanto, entre os
anos de 1808 e 1809, abateu-se sobre o povoado uma assoladora epidemia de varíola e os
sobreviventes mudaram-se para Formigas após atearem fogo a suas casas.
83
Segundo Urbino Vianna,
“ao mesmo tempo em que a sociedade do Arraial de Nossa
Senhora e São Jose de Formigas se refundia pela junção de elementos
novos vindos de paragens mais adiantadas (...) aumentava a importância
do arraial pelo despertar dos interesses coletivos que encontravam
defensores, subindo de nível na consideração dos governos, os quais iam
lhe concedendo garantias e liberdades, ao mesmo tempo que a
prosperidade material crescia, despertando ideais de conforto.”
84
Em 13 de Outubro de 1831 o governo regencial elevou o povoado de Montes Claros
de Formigas à condição de Villa, pertencente à Comarca do Serro Frio, compreendendo a
Capela de Formigas, do Bonfim e de Contendas, e Freguesia da Barra do Rio das Velhas e
Morrinhos. Em 1832 ocorreu a elevação do Curato à condição de Freguesia, tendo por filial
o Curato de Bonfim de Macaúbas. Logo em seguida, foi criada a Comarca do Rio de São
82
PAULA, H. de. Op. Cit., p. 11
83
VIANNA, Urbino de Souza. Op. Cit., p. 47-49.
84
VIANNA, Urbino de Souza. Op. Cit., p. 57
53
Francisco, com sede em Montes Claros de Formigas e jurisdição sobre os termos da mesma
Villa, da de São Romão e Januária e do Julgado da Barra do Rio das Velhas.
A partir da década de 1830, houve uma progressiva ascensão da localidade
montesclarense. Isto se deveu a vários fatores. Em primeiro lugar, à mudança do eixo
econômico regional e provincial. O reflexo na região se deu principalmente a partir do
declínio de determinadas cidades ou regiões e da ascensão de outras. Com a perda de
importância de Sabará no plano provincial, houve a diminuição do comércio pelo rio das
Velhas, afetando a vida econômica da povoação de Barra do Rio das Velhas. A queda de
Paracatu e Goiás levou à decadência de São Romão. A perda de dinamismo da província
baiana gerou uma diminuição do fluxo de trocas econômicas via Rio São Francisco, mas o
intercâmbio da Comarca de São Francisco com a Província da Bahia continuou existindo, o
que pode ser comprovado pela ata da Camara Municipal da Villa de Montes Claros de
Formigas, em sessão de 11 de julho de 1837, na qual o Presidente declarou “estarem
concluídas as [estradas] que se dirigem para a Bahia pella Villa do Rio Pardo,
bifurcando-se dalli uma para Caitité e outra para Conquista.”
85
Com certeza, a cidade de
Diamantina, junto com o Serro cresceram de importância após a chegada da Família Real e
a mudança da Corte para o Rio de Janeiro. Por estar mais próxima de Diamantina, Montes
Claros foi favorecida. Em 1817, segundo o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, um
dos ramais da estrada de Diamantina a Bahia passava por Montes Claros, deixando clara a
facilidade de comunicação entre ambas as localidades.
86
Em julho de 1833 a Câmara
Municipal deliberou a abertura de uma nova estrada para Diamantina
87
. Quanto aos
reflexos, na região, da mudança do eixo econômico para o Rio de Janeiro, o irlandês
85
VIANNA, Urbino de Souza. Op. Cit., p. 241
86
SAINT-HILAIRE, A. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1975, p. 326.
87
VIANNA, Urbino de Souza. Op. Cit., p. 241
54
George Gardner, na década de 1830, afirmava que “artigos [europeus] vinham, primeiro,
da Bahia; mas o Rio de Janeiro agora parece ser o principal abastecedor dos
comerciantes”.
88
O afastamento das rotas de comércio do Rio São Francisco foi promovido, também,
pelas endemias comuns às suas margens. O povoamento efetivo da região mais interiorana,
os chamados Gerais, tornou possível que se evitasse o rio. Assim, assistiu-se a uma
mudança nas vias de transporte, do rio passou-se para o interior, para o sertão propriamente
dito. Ainda que houvesse surtos epidêmicos de varíola ou malária na região, a ação política
no combate às doenças infecto-contagiosas favoreceu o aumento da importância da Villa
de Montes Claros. Até 1860 foram constantes as correspondências com o Governo
Provincial solicitando o envio ou registrando o recebimento de pús vaccinico contra as
bexigas ou varíolas e outras infecções.
89
Poderíamos ressaltar ainda que as disputas locais prejudicaram a ascensão de
regiões como Januária. A historiadora Judy Bieber,
90
em seu estudo sobre o poder político
e as práticas de patronato no Norte de Minas Gerais, evidencia que oficiais do Januária e
Montes Claros geraram abundante e detalhada correspondência que revela acessos
marcadamente diferentes em suas interações com o governo provincial.
Nas décadas seguintes à independência, os montesclarenses prontamente adotaram a
língua de liberalismo enfatizando o dever cívico e a responsabilidade fiscal em sua
correspondência com as autoridades provinciais. Eles invocaram altos imperativos políticos
e sociais para alcançar seus objetivos. Por exemplo, o investimento em transporte poderia
facilitar deveres cívicos tal como votar, atender encontros do conselho ou participação do
88
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975, p. 195
89
Correspondência da Câmara Municipal da Villa de Montes Claros de Formigas Caixa de
correspondências recebidas. DPDPOR Unimontes, Montes Claros, MG
90
BIEBER, Judy. Op. cit., p. 45-66
55
júri ao aliviar a carga de viagem dos cidadãos residentes em distritos remotos. Expandir a
educação pública poderia informar os jovens sobre suas responsabilidades em uma
sociedade liberal e poderia resultar em uma mais moderna, erudita e produtiva população.
Uma taxação mais eficiente poderia promover maior desenvolvimento. Construir ou
reformar os prédios da Câmara ou da cadeia aumentaria a respeitabilidade da Villa, o poder
de coação e conseqüentemente o de controle da população. Os políticos montesclarenses
incorporaram novos conceitos de governo, cidadania, ordem e progresso dentro um diálogo
com uma comunidade política maior.
Os representantes políticos de Januária, ao contrário, parecem ter sido relutantes ou
incapazes de ver além de seus horizontes paroquiais e demonstraram um compromisso com
o localismo e as intrigas intestinas. Eles demonstraram relutância em participar das
questões provinciais mais abrangentes e suas iniciativas fiscais não trouxeram
imediatamente benefício para o crescimento da comunidade. As disputas localistas que,
segundo Bieber, impediram o crescimento político de Januária, resultaram de uma longa
luta entre os distritos de Brejo do Salgado e Porto do Salgado pelo controle da sede do
município. Cada distrito foi sede alternadamente entre os anos de 1833,1836,1845, 1850,
1853,1871, e 1885. Depois da transferência, ao Brejo ou ao Porto, o distrito vitorioso
temporariamente assumia o nome de vila Januária. Interessantemente, a cada vez que um
dos rivais peticionava pela mudança de sede, fazia-se um discurso liberal. Ambos os
distritos preocupavam-se, em sua retórica, com o crescimento econômico, com o controle e
desenvolvimento urbano, com as virtudes cívicas e com um governo responsável. Este
jogo particular pelo poder começou em 1833, quando Brejo do Salgado perdeu sua
condição como vila, depois que a assembléia provincial transferiu o assento do município
56
para Porto do Salgado. Os habitantes do Brejo protestaram em uma petição endereçada a
Dom Pedro II. Ali, eles alegavam que possuíam maior população e um bom número de
homens educados para administrar, também evidenciaram deter o maior número de
escravos e maior produtividade agrícola e pecuária, também destacaram os perigos
ambientais do Porto.
Os habitantes do Brejo revelaram muito sobre suas prioridades e valores na petição.
As críticas feitas às deficiências de Porto do Salgado realçavam exatamente as qualidades
que uma vila deveria ter. A administração municipal deveria estar em um local que
favorecesse a indústria, o comércio e mercados agrícolas. Também necessitava de edifícios
públicos e de igrejas. Uma população de número elevado não era suficiente, uma vila
também necessitava de homens educados para preencher postos administrativos.
Finalmente, a cidade deveria fornecer um nível mínimo de segurança contra perigos
ecológicos tal como inundações periódicas e um ambiente livre de doenças. Em sua disputa
por ser o centro administrativo, cada lado reforçava as características negativas do rival, um
sempre salientando no outro a ineficiência administrativa, a pobreza urbana e a
negligência.
Essa história de intriga local e disputas muito esclarece sobre o teor da política
municipal em Januária. Os adversários locais exprimiam suas apelações às autoridades
provinciais em termos de comércio, dever cívico, higiene pública e segurança, ou seja, das
necessidades mais amplas da comunidade. Mas a elite local envolvida em inúmeras
acusações de corrupção por parte dos rivais contribuiu para o descrédito político da
municipalidade. A despeito da capacidade das facções rivais na política partidária para
alcançar limitadas vitórias dentro do âmbito municipal, os oficiais locais permaneceram
tão envolvidos nestas acusações mútuas que parece improvável que qualquer autoridade
57
provincial tenha podido contar com essas lideranças. O inequívoco e constante
envolvimento com estas chamadas “intrigas intestinas” por parte da liderança política de
Januária permite concluir que era pequena a capacidade da elite para integrar-se em um
projeto político maior.
Judy Bieber
91
salienta que, em Januária, as autoridades não respeitavam a lei e
constantemente atropelavam os regulamentos municipais e provinciais. Por exemplo, os
regulamentos municipais haviam definido um número de incompatibilidades no exercício
de cargos públicos. Esse mecanismo foi projetado para impedir certas facções ou
indivíduos de influenciar ou manejar a política em benefício próprio. A proibição de
nomear parentes era uma dessas medidas. Indivíduos foram também proibidos de exercer
mais de um ofício público simultaneamente. Mas essas regras de incompatibilidades não
foram muito respeitadas. Em 1839, o conselho municipal explicava que, por falta de outro
candidato conveniente, foi permitido a um indivíduo servir como carcereiro e meirinho ao
mesmo tempo. Em 1852, José Ignacio do Couto Moreno solicitou que ele e Felipe José de
Santana fossem jurados ainda que eles servissem como suplentes de juiz municipal e
delegado de polícia. O conselho também adotou uma atitude negligente para com seus
empregados, talvez por causa de parentesco ou associações partidárias. Alguns
funcionários, ocupando cargos de secretário municipal foram responsáveis por
falsificações, alteração de documentos oficiais, e por não apresentarem à assembléia
provincial os orçamentos municipais, por esse meio incorrendo em multas pesadas, assim
como foram negligentes em solicitar os subsídios provinciais para sustentar as despesas da
Câmara e da cadeia pública.
A elite municipal de Januária também foi negligente em matérias fiscais. As
91
BIEBER, Judy. Op. cit., p. 45-66
58
sucessivas administrações fizeram algumas tentativas para aumentar a tesouraria de cidade
através de expansão de sua base de imposto, mas as tentativas raramente foram bem-
sucedidas. Por Exemplo, em 1839, o conselho começou implementar planos para uma feira
semanal no Porto para taxar mais eficientemente o tráfego comercial que passava através da
área, mas o projeto teve que parar por falta de verbas municipais. Em 1842, o conselho
pediu um monopólio em passagens de rio e pedágios no rio São Francisco e rios de
Carinhanha em troca do estabelecimento de novos portos e da manutenção de alguns
existentes. A municipalidade somente ganhou este privilégio sob uma lei provincial
aprovada em 1855. Em fins da década de 1840, o conselho propôs impostos locais sobre
cachaça, tabaco, carne e pesca para aumentar o tesouro municipal esgotado.
O conselho culpava pela sua pobreza aos oficiais e procuradores descuidados que
não apenas não guardavam os registros mas também foram negligentes em recolher
impostos e taxas. A corrupção dos coletores e procuradores, associados aos jogos de
favores e empréstimos escamoteados pelos dirigentes contribuía para aumentar as
dificuldades monetárias do município, que não recolhia devidamente seus impostos.
Durante a década de 1850, o volume de comércio gerado por Januária excedeu aquele
gerado por Montes Claros em aproximadamente 25 por cento, ainda assim Montes Claros
recolheu quase duas vezes mais em renda de imposto à província. Januária não guardou
seus livros regularmente, e isto com freqüência era desculpado pelo desaparecimento
daqueles materiais do arquivo no tempo em que o assento municipal estivera com o distrito
rival.
De acordo com Bieber
92
, as práticas culturais de algumas autoridades de Januária
também contribuíram para seu descrédito político. Em seus esforços para desacreditarem-se
92
BIEBER, Judy. Op. cit., p. 45-66
59
mutuamente, os políticos rivais evidenciaram a participação da elite local em práticas de
cultura Afro-brasileira. Em particular, o oficial militar português e latifundiário José
Ignacio do Couto Moreno freqüentemente criticava seus vizinhos que permitiam a
participação de seus cativos em encontros políticos. As críticas revelam que brasileiros
brancos da elite e negros de baixa condição freqüentemente compartilhavam o mesmo
espaço social. Entretanto, a análise dos processos criminais e judiciais da Villa de Montes
Claros demonstra que essa proximidade entre senhores e cativos não foi privilégio de
Januária. Em todo o Norte de Minas, muitos homens brancos gostavam de jogar não apenas
com negros livres mas também com escravos. Escravos e negros livres participaram de
encontros políticos, socializaram, dançaram, beberam, jogaram e lutaram junto com os
membros de famílias de elite. Embora escravos, pobres livres e senhores certamente
tivessem desfrutado de acesso diferenciado à força política e aos recursos econômicos, a
distância efetivamente não poderia ser muito grande em razão da própria característica da
estrutura de planteis da região norte-mineira.
É importante salientar que, no estudo de Bieber sobre Januária o nível de detalhe
fornecido sobre as alternativas para a cultura européia, que os membros da elite toleravam
e até mesmo abraçavam, é mínimo.Essas referências acerca de práticas Afro-brasileiras na
região do São Francisco apareceram esporadicamente, usualmente no contexto de tentativas
de desacreditar rivais políticos. Mas a autora sugere que ao menos alguns dos líderes rurais
tradicionais não escolheram o modelo europeu para suas vidas.
Quaisquer que fossem os motivos precisos do apego de Januária ao localismo, da
tolerância em relação à expressão cultural não européia, da obsessão da elite com intrigas
intestinas, essas características apontam para uma inabilidade em superar assuntos de
âmbito mais localizado. Januária permaneceu mais paroquial em seu pensamento e teve
60
menos competência em unir suas forças para participar de um projeto político mais
engajado no âmbito nacional e essa pode ser uma explicação para sua decadência, associada
aos problemas econômicos advindos da perda de vitalidade da economia bahiana e da
mudança do eixo econômico para o centro-sul da nação.
As ações políticas dos membros da elite januarense contrastam vivamente com o
zelo modernizador de Montes Claros. Em Montes Claros, teria havido um cuidado das
autoridades municipais em se fazer conhecer como defensores incansáveis de lei, sempre
vigilantes combatentes contra a ignorância e pequenas intrigas políticas. A preocupação
em atender o regimento das Câmaras Municipais, de 1º de outubro de 1828, pode ser
exemplificada em relatos das sessões da Câmara de Montes Claros, onde se vê que no dia
16 de outubro de 1832 o vereador Francisco Vaz de Mourão leu o ofício em que “o
vereador Fernandes se excusava (sic) de tomar assento na Câmara, porque ele era
cunhado do vereador Antonio Xavier de Mendonça.
93
Confirmando a preocupação com as
normas legais e com a moralidade pública, nesta mesma sessão da Câmara, o secretário
José Bento de Andrade firmou em ata que “o senhor presidente ordenou que o secretário
apresentasse e lesse o ofício do senhor vereador Verciani, em que excusava (sic) de
exercer conjuntamente os empregos de Juiz de Paz de seu curato [Bomfim] e o de
vereador, e que se encarregava do primeiro. Sendo lido o ofício foi aprovada a excusa do
senhor vereador.”
94
Montes Claros adotou o discurso da objetividade, respeito ao bem
público, moralidade,e engajamento político. Esse discurso deve ser tomado não como um
reflexo preciso da realidade, mas antes como aspirações da elite municipal. Membros da
elite local ocasionalmente transgrediram limites legais, mas, segundo Bieber, com menor
93
Ata da sessão ordinária da Câmara Municipal da Villa de Montes Claros de Formigas, 16/10/1832. Apud.
NEVES, Gilson. O coronel dorme nu. Montes Claros. Edição independente. p. 83
94
Idem.
61
freqüência que em outros locais da Comarca.
95
Montes Claros mostrou-se desejosa de dissociar a sua imagem da de distritos
retrógrados, como é o caso de Morrinhos, que não se conformou aos ideais europeus de
conduta. Em 1834, o conselho condenou Luiz José de Azevedo, o vigário nomeado de
Morrinhos, por subversão política, conduta desordenada, e indulgência com costumes
Afro-brasileiros indecentes.
96
Os políticos montesclarenses também usaram de estratégias para manipular limites
territoriais. A cidade, segura em sua posição como dirigente da Comarca, não teve que lutar
com desafios sérios pelo controle municipal, como tinha ocorrido em Januária. Procurou
expandir sua base territorial para competir com municípios vizinhos como Grão Mogol,
São José de Gorutuba, e São Romão, incorporando vários distritos. “Em um solicitação em
1833, o Conselho tenta justificar uma troca de território com São Romão, mas na
solicitação não menciona que os distritos que esteve desejoso de ceder sofrem de pobreza
e malária endêmica.”
97
A comunidade também demonstrava maior responsabilidade fiscal e iniciativas para
expandir seus mercados e tributação. Foi uma das poucas que enviou informações com
alguma regularidade para a administração provincial mineira. Montes Claros buscou
assegurar administração responsável e progresso econômico. Além disso demonstrou uma
disposição para trabalhar com o governo provincial e nacional, o que se comprova pelas
inúmeras correspondências enviadas e recebidas pela Câmara Municipal.
Existem correlações entre as medidas políticas adotadas pela elite de Montes Claros,
sua capacidade para colocar os filhos locais no governo provincial e sua ascensão como um
95
BIEBER, Judy. Op. cit., p. 45-66
96
BIEBER, Judy. Op. cit., p. 45-66
97
BIEBER, Judy. Op. cit., p. 62
62
centro regional. O fato é que Montes Claros foi capaz de construir uma base política que
transcendia interesses locais. Certamente cons eguiu criar uma imagem de um aliado,
inspirando confiança em mais altos níveis de governo. Uma reputação de estabilidade pode
ter sido um componente crucial de credibilidade para Montes Claros.
Este processo de ascensão de Montes Claros se deu através de transformações
graduais e perceptíveis nos registros dos viajantes que passaram pela região. O francês
Auguste de Saint-Hilaire afirmou que, em 1817, a povoação “pode compreender
atualmente duzentas casas e mais de oitocentas almas” e que era “um dos pontos
principais da parte oriental do Sertão”, possuindo “uma hospedaria, várias vendas, e,
enfim, algumas lojas em que se vendem fazendas e quinquilharias”.
98
Na segunda metade
da década de 1830, o irlandês George Gardner se referiu à povoação como uma vila de
pequenas dimensões, com população de cerca de mil almas e poucas casas comerciais onde
se vendiam artigos europeus.
99
Montes Claros esteve economicamente vinculada, desde a sua formação, à atividade
agropecuária, onde se destacaram a criação de gado bovino e eqüino, o cultivo de cana-de-
açúcar e do algodão e a agricultura de subsistência. Ao longo do Oitocentos, segundo o
historiador Tarcísio Botelho, Montes Claros abasteceu mercados que estavam se
expandindo dentro da Província. No comércio, principalmente a partir de 1830, os produtos
importados provinham na maioria dos casos, do Rio de Janeiro e de Diamantina. Os
produtos exportados eram basicamente derivados do leite, couro e carne, algodão em rama,
mantas e tecidos e derivados da cana-de-açúcar. Esse comércio, ainda que não fosse dos
mais intensos, denota uma povoação em crescimento.
98
SAINT-HILAIRE, A. op. Cit., p. 326-7
99
BOTELHO, Tarcísio, op. Cit., p. 55-56
63
Ao crescimento da cidade associou-se o aumento da sua importância como centro
econômico, social e político. A cidade conheceu a projeção de muitos de seus políticos no
cenário provincial e nacional. Um dos exemplos é o do Dr. Antônio Gonçalves Chaves
Júnior, advogado local que chegou a governador das províncias de Minas Gerais e Santa
Catarina, além de exercer outras funções políticas importantes mesmo na República.
Camillo Philinto Prates foi outro nome expressivo, tendo sido presidente da Câmara e
Intendente Municipal, assumindo depois cargos de deputado e senador , inclusive após a
proclamação da República. De famílias tradicionalmente importantes, geralmente
fazendeiros, mas também cônegos, médicos e advogados, os representantes
montesclarenses, conservadores ou liberais, com poucas diferenças ideológicas entre si,
foram hábeis em manejos políticos que lhes garantissem a permanência na condução dos
interesses municipais.
2.4 - Economia montesclarense no século XIX
A partir dos escritos de vários viajantes que percorreram Minas Gerais no século
XIX, o historiador Marcelo Godoy propôs uma regionalização econômica da província
segundo a qual Montes Claros faria parte da Região do Sertão. Suas principais
características seriam a baixa exploração econômica, a aridez do clima e vegetação, a
pequena densidade demográfica e uma estrutura fundiária marcada pela alta concentração.
Sua principal atividade seria a pecuária, associada a uma agricultura de subsistência e ao
cultivo e processamento da cana-de-açúcar e do algodão.
100
100
GODOY, Marcelo M. Vida econômica mineira na perspectiva de viajantes estrangeiros. Belo
Horizonte: FAFICH/UFMG, 1999, p.52-55
64
Ao longo do século XIX, a vida econômica, tanto urbana quanto rural, foi
ganhando maior complexidade. Um bom reflexo disso pode ser encontrado nas mudanças
que ocorreram nas profissões locais referidas nas listas de eleitores. Ainda que as listas de
eleitores apresentem uma certa parcialidade, visto não serem todos os habitantes votantes,
é possível extrair delas um certo perfil da economia local.
A partir da análise da tabela elaborada por Botelho( ver tabela 01 em anexo),
podemos perceber que no decurso da segunda metade do século XIX, as atividades
agrícolas apresentaram um predomínio absoluto, até mesmo aumentando sua participação.
Entretanto, houve uma evidente diversificação de profissões, especialmente daquelas
ligadas à administração pública, aos ofícios manuais e ao artesanato. As ocupações em
cargos públicos evidenciam uma atenção mais constante às questões administrativas. O
número de professores é crescente, porém importa evidenciar que os relatórios da Câmara
Municipal de Montes Claros de Formigas traduzem as preocupações dos administradores
com a educação das crianças, cujos pais são relapsos em envia-las à escola.
O crescimento no número de carpinteiros, que geralmente eram também pedreiros,
na segunda metade do XIX sugere um incremento populacional e a demanda por
construções. Os telheiros também ganham destaque neste período, o que denota uma
preocupação com a melhoria das construções e telhados, antes em sua maioria feitos de
sapé. No comércio é interessante perceber que entre 1862 e 1876, o número de negociantes
cai, , mas o número de tropeiros cresce, sugerindo talvez uma mudança para um tipo de
comércio mais lucrativo, mais regionalizado e menos local. Quanto às profissões liberais é
importante salientar que a cidade sempre contou com advogados e médicos e seu número,
inclusive, cresceu no último quartel do século, mas a parca presença de farmacêuticos e
com certeza, o acúmulo de tarefas dos médicos (que geralmente ocupavam também cargos
65
administrativos e políticos), reforçaram a necessidade das práticas curandeiras dos(as)
raizeiros(as) e benzedores populares que atendessem e socorressem a população em seus
males.
Infelizmente as listas de eleitores não trazem, por motivos óbvios, referências
acerca da ocupação dos escravos. Mas os processos judiciais utilizados na trajetória desse
estudo permitiram o encontro com alguns escravos que viveram na cidade e nela
desenvolveram algumas atividades diferenciadas, como carpintaria, sapataria, costura.
Porém em sua maioria, os escravos encontravam-se em fazendas ou sítios, nos arrebaldes
das cidades e se ocupavam das tarefas rotineiras da roça, como limpar, plantar, colher,
criar, buscar lenha, tecer, fiar.
Em relação aos produtos da região destacava-se, sobretudo a pecuária, com a
exportação de eqüinos e bovinos e seus derivados (couros, solas, queijos). Saint-Hilaire deu
seu testemunho de que existiam “nos arredores de Formigas fazendas importantes pelo
número de cabeças de gado que ali se criam.”
101
Vianna afirma que apesar de a cidade
desenvolver outras atividades econômicas, “o município tira, porém, toda a sua
importância das indústrias connexas à lavoura, das quais a principal é a pecuária.”
102
A
atividade voltava-se principalmente para as outras regiões de Minas Gerais e para as
províncias vizinhas (Bahia e Goiás) e era marcada sobretudo pela baixa produtividade,
decorrência direta das secas e daquilo que o sertanejo denominava as “pestes do gado”
(parasitas, verminoses, etc.).
É importante enfatizar, entre os produtos da região, a exploração do algodão
(especialmente os tecidos e as mantas), dos derivados de cana-de-açúcar (açúcar,
aguardente e rapadura) e uma grande produção de salitre. O algodão sempre esteve presente
101
SAINT-HILAIRE, A. op.cit., p. 327
66
na região, mesmo que em pequena escala e posição marginal. Houve aumento de sua
importância em alguns momentos, gerando surtos ocasionais coincidentes com conjunturas
internacionais favoráveis ao produto como foi o caso dos boom algodoeiros do começo do
século e da década de 1860, este devido à desorganização da produção norte-americana
durante a Guerra Civil.
103
No geral, a produção algodoeira voltava-se sobretudo para a
fabricação doméstica de tecidos, apesar de ser observada a exportação em rama.
104
A profissão declarada de quase todas as mulheres que testemunham em processos
judiciais do Termo da Villa de Montes Claros de Formigas, ao longo do século XIX é de
costureira, rendeira e fiandeira, o que reforça a imagem de uma estreita ligação entre as
atividades domésticas cotidianas e a produção de tecidos para o mercado. Saint-Hilaire,
quando passou pelos sertões da região São Francisco-Montes Claros, registrou que não
encontrou nenhum indício de plantio de algodão nem de produção doméstica de tecidos.
Em vista da contradição entre o que viu e os testemunhos nos processos crime somos
levados a crer que Saint-Hilaire não viu as mulheres tecendo, porque não era costumeiro
que estas aparecessem diante de homens estranhos e desconhecidos, bem como não viu
ninguém fiar ou tecer por ser domingo e, além do mais, dia de procissão.
105
A observação
das profissões informadas por testemunhas, réus e vítimas nos processos judiciais do Termo
de Montes Claros de Formigas auxilia no esclarecimento da alocação da população na
atividade de fiar, tecer e costurar. É ilustrativa a denúncia feita pelo Promotor público da
Villa de Montes Claros em 30 de junho de 1834:
“o Promotor Público da Comarca (...) em cumprimento do dever
que lhe impõe o art. 73 do Código do Processo Criminal, vem dar queixa
contra Firmino da Rocha Coelho, pello facto que passa a narrar. O dito
102
VIANNA, Urbino de Souza. Op. Cit., p. 235
103
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista. P.. 151
104
VIANNA, Urbino de Souza. Op. Cit., p. 227
105
SAINT-HILAIRE, August. Apud: PAULA, Hermes Augusto de. Montes Claros, sua história, sua gente ,
seus costumes. Montes Claros, 1979, p. 14.
67
Firmino devia a Maria Leite Vieira a quantia de cinco mil e duzentos reis,
resto da quantia maior proveniente de um casaco de pano molle, de
algodão e de sete e meia varas de algodão liso fino que comprara em sua
caza. (...).”
106
Esta prática, comum entre livres e cativas, era primordialmente feminina e foi
reforçada pela primeira experiência fabril da região, a Fábrica do Cedro, instalada em 1882
e que teria perdurado até a terceira década do século XX.
107
Em relação à venda do algodão em rama, segundo Botelho,
“os dados sobre as exportações mineiras em 1882-1883 indicam que as
recebedorias da região responderam por toda a exportação de algodão em
rama da província. Assim, Januária exportou 300 quilos do produto,
enquanto Rio Pardo exportou 810 quilos, num total de 1110 quilos em toda
a província.”
108
Outro produto de grande peso na economia regional foi a cana-de-açúcar. A
produção de aguardente, rapadura e açúcar foi significativa ao longo dos séculos XVIII e
XIX. A sua importância em Montes Claros pode ser sentida a partir dos dados sobre os
senhores de engenho, disponíveis para vários momentos do século XIX. Segundo os dados
coligidos por Tarcísio Rodrigues Botelho (ver quadro 01 em anexo) houve praticamente
uma duplicação do número de engenhos instalados a cada vinte anos. É notório que o
plantio e processamento da cana-de-açúcar foi uma atividade que perdurou ao longo de
todo o século XIX. Manteve, conseqüentemente, um peso relativo no contexto econômico
da localidade.
Os fazendeiros vendiam aguardente ou bebidas espirituosas a vendeiros locais, que
em seguida a revendiam nas casas ou nas vendas da Villa, mas também vendiam para
pessoas que iam dispor das bebidas em diferentes distritos ou municípios. Nas vilas e
106
Processo de 30-06-1834. AFGC-DPDOR - Unimontes
107
VIANNA, Urbino. Op. Cit., p. 230
108
BOTELHO, T. op. cit., p. 63
68
arraiais do Termo de Montes Claros era comum que mulheres vendessem aguardente em
suas casas, situação que muitas vezes provocou conflitos.
Para o comércio interno dessas bebidas era necessário recolher impostos. A Câmara
Municipal enviou e recebeu várias correspondências buscando esclarecer e alterar os
critérios para a cobrança do imposto, Em 1850, o Procurador da Câmara julgou que os
interesses do Município eram lesados quando a bebida era vendida fora da villa. Em sessão
ordinária de 12 de Janeiro de 1850, sob a presidência do Cônego Antonio Gonçalves
Chaves, a Câmara apresentou parecer sobre o requerimento em que o procurador alegava
que as providências para a cobrança da taxa de 320$000 sobre cada barril de aguardente ou
restilho não preveniam o extravio que poderia haver na cobrança do imposto. Segundo o
procurador:
“o regulamento só obriga aos fazendeiros a darem uma lista das
pessoas que negociarem semelhante gênero, ao passo que ellas muitas
veses vão dispor em differentes distritos ou municípios e que neste caso a
Câmara delibere de sorte a ficar os ditos fazendeiros obrigados a essa
contribuição.”
109
O relator do parecer, Jose Rodrigues Prates, possivelmente um fazendeiro produtor
de aguardente, foi incisivo em sua resposta:
“A comissão pois não achando admissível a pretensão do mesmo
procurador, por isso que não pode esta câmara revogar um regulamento já
approvado pelo Ex.
mo
Governo e posto em execução. Entende que o
procurador ponha de sua parte todas as pesquisas, estabelleça em os
pontos que parecer agentes, dirija-se mesmo aos fasendeiros ponderando-
lhes a conveniência de receber de prompto a taxa na ocasião da venda, que
desta sorte evitará prejuízo ou extravio.”
110
109
Ata da sessão ordinária da Câmara Municipal da Villa de Montes Claros de Formigas, 12/01/1850.
Arquivo da Câmara Municipal de Montes Claros, Caixa 20, documentos históricos. Montes Claros, Minas
Gerais.
110
Ata da sessão ordinária da Câmara Municipal da Villa de Montes Claros de Formigas, 12/01/1850.
Arquivo da Câmara Municipal de Montes Claros, Caixa 20, documentos históricos. Montes Claros, Minas
Gerais.
69
A partir do documento e do quadro referente ao número de engenhos em Montes
Claros, é possível ressaltar não apenas a importância dos derivados da cana-de-açúcar no
comércio local, mas principalmente o porte das vendas de aguardente na região norte
mineira.
A exploração do salitre foi outra atividade que rendeu dividendos para Montes
Claros. Os viajantes bávaros Spix e Martius afirmaram que “enquanto era permitida no
Brasil a exportação de salitre, exploravam os habitantes de Formigas essa riqueza de sua
região e muitos milhares de arrobas foram despachados para a Bahia e Rio de Janeiro.”
111
Tendo passado pela região antes de 1820, não puderam os viajantes dar conta do
reflorescimento da extração de salitre a partir da Portaria da Secretaria da Fazenda do
Governo Provincial de agosto de 1822 que regulou essa produção. O memorialista Urbino
Vianna atenta para a profusão de grutas onde existia salitre e indica essa indústria como
importante para a região.
112
Nos processos judiciais são inúmeras as referências a trabalhadores se ocupando de
plantações de cana, de mandioca, de milho, de algodão, criações de porcos e gado vacum,
do beneficiamento dos produtos agrícolas, gerando farinhas, rapadura, aguardente, linha,
panos que atendiam as necessidades de subsistência, circulavam em um mercado local e
regional. Era uma economia marcada então, por uma produção parcialmente
mercantilizada, voltada para o mercado interno e subordinada aos grandes centros
dinâmicos brasileiros.
A mão-de-obra utilizada nessas atividades econômicas era composta, muitas vezes,
por escravos, homens pobres livres, agregados, camaradas, alugados e membros das
111
SPIX, J. B. Von e MARTIUS, C. F. Viagem pelo Brasil, 1817-1820. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Edusp, 1981, p. 181
112
VIANNA, Urbino. Op. Cit., p. 234
70
famílias dos proprietários. Dentre essa mão-de-obra que desenvolveu a produção o
contingente cativonão representava maioria, não sendo superior a 1/5 da população total no
norte de Minas.
113
Clotilde Paiva em sua tese de Doutoramento intitulada População e
Economia nas Minas Gerais do século XIX, afirma que a população do Sertão,
114
analisada
a partir das Listas nominativas de 1830-1, se comporia de 6.241 pessoas livres e 1.640
cativos. Seus dados são diversos daqueles apresentados por Tarcísio Botelho, em sua
dissertação de Mestrado, onde para o ano de 1838, nesta mesma região, os números são
14.407 pessoas livres e 2.127 pessoas cativas.
115
Salta aos olhos o reduzido número de
população escrava, que representaria menos de 20% (por cento) da população da região,
contrastando com alto índice de cativos nas regiões da Mata (+ de 50%), Sudeste (+ de
50%), Intermediária de Pitangui-Tamanduá (+ de 50%), entre outras regiões mineiras,
conforme salientado por Libby.
116
Para conhecermos um pouco mais acerca da distribuição da propriedade de escravos
observamos alguns dados censitários utilizados por Libby
117
em sua pesquisa (ver quadro 2
em anexo). Segundo suas informações, as posses de escravos em Minas Gerais eram
geralmente de tamanho médio (6 a 10 escravos) ou pequeno (1 a 5 escravos) sendo mais
escassas as posses consideradas grandes (com mais de 30 escravos). Além disso, o autor
aponta em Minas Gerais, um grande número de domicílios que não contavam com nenhum
escravo. Para Montes Claros e região sua afirmação é de que mais de setenta por cento dos
fogos não possuía escravos.
113
BOTELHO, op. cit., p. 67 . PAIVA, Clotilde A. População e economia nas Minas Gerais do século
XIX. Tese de Doutoramento. São Paulo, USP, 1996. LIBBY, Douglas Cole. op. cit., p. 55
114
Para PAIVA, C., o Sertão seria uma região composta pelos Distrito de Bomfim, Villa de Montes Claros de
Formigas, Arraial de Contendas e Arraial do Santíssimo Coração de Jesus. PAIVA, Clotilde População e
Economia nas Minas Gerais do século XIX , FFLCH/Universidade de São Paulo, 1996, p. 176 (Tese de
Doutoramento) (mimeo.)
115
BOTELHO, Tarcísio R. op. cit. .p. 68
116
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista. p. 105-112
71
Os dados levantados pelo autor, para a região São Francisco-Montes Claros
confirmam que o número de senhores que possuem 30 ou mais escravos é realmente
pequeno e a posse de poucos cativos é o tom predominante na região. Esse dado confirma a
pulverização das posses na região de Montes Claros, o que não teria impedido a formação
de famílias e de laços de parentesco entre os cativos.
2.5 Os escravos no Termo de Montes Claros
Nos estudos que se referem à região norte de Minas Gerais, notadamente ao Termo
de Montes Claros e pelos documentos do século XIX, percebemos que a vila e seus arraiais
cresceram paulatinamente. Nas engrenagens desse crescimento estava o braço trabalhador
formado também por um contingente escravo, que, mesmo podendo ser considerado
residual, apresentou, apesar das adversidades, características singulares de crescimento ao
longo do século XIX,. Botelho nos mostra que mesmo tendo ocorrido algum tráfico
interprovincial para as áreas cafeeiras pós-1850, a região conseguiu manter e até ampliar o
número de cativos. Argumenta o autor que esse crescimento da população escrava deu-se,
principalmente graças à reprodução natural. Os processos -crime, as ações de liberdade, as
cartas de liberdade, bem como os inventários e testamentos são fontes excelentes para
constatarmos as evidências de crescimento natural da população cativa na Villa de Montes
Claros de Formigas e nos arraiais da Comarca.
A partir de 1830, quando os processos judiciais passaram a ser feitos na Villa de
Montes Claros, até 1888, ano da abolição da escravidão, encontramos 140 processos
envolvendo o elemento servil. Nestes processos os escravos informavam sua naturalidade
117
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista. p. 105-125
72
e mais de 2/3 dos escravos que habitavam o Termo de Montes Claros haviam nascidos na
Província de Minas Gerais.
Do estudo da tabela elaborada pelo historiador Tárcísio Botelho (ver tabela 02 em
anexo), depreendemos que Montes Claros conseguiu preservar e mesmo expandir o
número de escravos ao longo do século XIX. Isto é ainda mais relevante se nos lembrarmos
de que, após 1850, conviveu-se com uma realidade que associava fim do tráfico africano e
expansão da lavoura cafeeira no Vale do Paraíba do Sul, Zona da Mata Mineira e São
Paulo. Apesar dos apelos da venda de escravos para a região cafeeira, o Norte de Minas,
região de economia subordinada e pouco dinâmica, ainda que diversificada, estava
conseguindo preservar seus escravos.
A adversidade do contexto pós-1850 para a manutenção dos escravos em suas
antigas áreas de habitação e trabalho pode ser mais bem apreendida nos relatos que dão
conta da atuação de comerciantes de escravos no Norte de Minas, assim como nas não raras
tentativas de redução de livres ao cativeiro após 1850. Em 1859, Francisco Mendonça e
Francisco Ferreira respondem a um processo por haverem roubado o menino cabra
Desidério de treze anos, na Fazenda Brejinho e o vendido em Diamantina.
118
Em um libelo cível de 1876, José Lourenço de Araújo tentava desfazer um negócio
com José Soares da Cruz, acusando-o de ter trocado uma cativa jovem e parideira por outra
de qualidade inferior. José Soares a adquirira a fim de completar um comboio do
negociante de escravos Francisco Alves Filgueira Campos, com destino “as Matas”.
119
No mesmo ano de 1876,o escravo Mateus, pardo, entrou com uma Ação de
Liberdade junto ao Juízo Municipal de Montes Claros contra o Tenente Coronel Francisco
Freire da Fonseca. Alegou, em sua petição, que casou-se, com o consentimento de seu
118
Processo de 13/04/1859. AFGC - DPDOR - Unimontes
73
senhor, com Desideria, mulher livre, com quem tinha um filho, estando já grávida do
segundo. Agora, o senhor queria vendê-lo a um traficante de escravos, podendo com isto
ser separado para sempre da família. Mais adiante, justificando de modo mais detalhado as
suas pretensões, o escravo dizia que
“[foi] informado de que seu Senhor o pretende vender a algum traficante de
escravos que o conduzirá a ser nas Mattas de Café revendido. Neste estado
de cousas procurou a proteção das leis e das authoridades e foi depositado.
Effetivamente depois desse passo dado pelo Supplicante seo dito Senhor o
vendeu ao Tenente Coronel Francisco Freire da Fonseca que como é sabido
compra escravo para os mandar nas Mattas revender”.
120
Ao observarmos a categoria profissional dos senhores de escravos na região de
Montes Claros, constatamos que a grande maioria dos senhores declarava-se agricultora,
mas estava envolvida geralmente com as atividades de criador e lavrador ao mesmo tempo.
Uma pequena parte de proprietários de escravos encontrava-se na categoria de comerciante
e alguns destes negociavam escravos para a região de Diamantina e para a zona cafeeira de
Minas e do Rio de Janeiro. O temor e a preocupação dos escravos em serem vendidos e
separados da família, que os levava a adotar medidas que pudessem impedir tal
acontecimento, deixa transparecer por um lado, que, apesar de todas as conquistas, o
escravo era uma propriedade, e por outro, que esse mesmo escravo não aceitava
passivamente sua condição, buscando de vários modos, interferir nos processos que
determinam os rumos de suas vidas. Esse é um dos paradoxos que a historiografia da
escravidão enfrenta continuamente, e com o qual nos deparamos ao tentarmos conhecer
mais de perto a vida dos escravos no Norte de Minas; de um lado, a eficácia dos
119
Processo de 20/07/1876. AFGC - DPDOR - Unimontes
120
Processo de 06/10/1876. AFGC - DPDOR - Unimontes
74
mecanismos de controle e das políticas de manutenção do domínio senhorial e de outro a
descoberta constante de práticas autônomas por parte dos cativos.
Os escravos no termo de Montes Claros de Formigas, talvez pela sua concentração
em plantéis menores, possuiam uma relativa mobilidade espacial e exerciam atividades que
lhes permitia maior proximidade com os homens livres. Outras vezes é o fato de viverem
no núcleo urbano que lhes permite ampliar sua margem de mobilidade. O caso do roubo na
Intendência dos sócios Maurício e Velloso, (Maurício ocupa várias funções administrativas
na Villa de Montes Claros) é ilustrativo de uma certa liberdade de movimentos conquistada
pelos cativos. Na noite de 09 de Abril de 1846, ocorreu um arrombamento seguido de
roubo na Intendência de Maurício e Velloso. Imediatamente se suspeitou dos dois escravos
que dormiam no local e que, segundo o dono Maurício, eram “uzeiros e vezeiros em
furtar.”
121
Ao fim nada se consegue provar sobre os dois que continuaram a vigiar a loja
durante as noites. As explicações dos dois escravos para não terem ouvido o barulho feito
pelos arrombadores denota os espaços de que possuíam. Joaquim Cabra alegou em sua
defesa que dormia a sono solto depois de ter ingerido umas bebidas espirituosas em Casa de
Umbelina, na Rua do Pedregulho e Antônio afirmou ter sono pesado e nada ter ouvido.
122
Belos vigias haviam arrumado os sócios. Freqüentar casas onde se vendia aguardente ou
bebidas espirituosas era comum entre os escravos da vila. Ainda que as Posturas
Municipais a proibissem, em inúmeros processos criminais encontramos referências a essa
prática.
Com relação aos trabalhos executados pelos escravos, fomos pinçando-os nos
processos. Muitas vezes da ocupação dos senhores podemos depreender a atividade dos
121
Processo de 09/04/1846. AFGC - DPDOR - Unimontes
122
Processo de 09/04/1846. AFGC - DPDOR - Unimontes
75
escravos. Na trajetória desse estudo nos encontraremos com alguns escravos que vivem na
cidade e nela desenvolvem algumas atividades diferenciadas, como carpintaria, sapataria,
costura. Mas esses são raros, em sua maioria os escravos encontram-se em fazendas ou
sítios, nos arrebaldes das cidades e se ocupam das prosaicas tarefas da roça, limpar, plantar,
colher, criar, buscar lenha, tecer, fiar. Exercendo, alguns poucos, certas atividades
especializadas, mas, quase todos, envolvidos em uma vasta gama de atribuições.
Ao enfocarmos neste estudo a natureza das relações senhor/escravo (paternalista/
conciliatória/violenta/intransigente) a forma e continuidade das famílias, o ambiente
familiar onde vivem esses cativos, as violências praticadas contra e por eles, as festas, as
relações com a vizinhança, avançamos no conhecimento e compreensão da estrutura
escravista e entendemos a participação do negro escravo na formação econômica, cultural e
social da cidade de Montes Claros. Através do estudo dos processos judiciais do termo de
Montes Claros no século XIX, podemos vislumbrar as relações entre senhores e escravos,
as relações dos escravos entre si, os conflitos, a solidariedade, a resistência ao jugo do
escravismo, a violência, as relações de vizinhança, ou seja, conhecer um pouco mais sobre
a escravidão em Montes Claros através da análise dos vestígios e pistas deixados nos
processos judiciais. A interpretação desses vestígios, pequenos, aparentemente sem
importância pode nos levar a acessar uma realidade social e cultural determinada, que não
seria tão acessível por meio de outros métodos de análise.
Essa primeira tentativa de estabelecer algumas características da estrutura da
população escrava no Termo de Montes Claros, será retomada ao longo do trabalho. Por
hora, buscamos demonstrar que em Montes Claros, como de resto em quase todo o Norte
de Minas, a ocupação espacial era predominantemente rural, prevaleciam as pequenas
posses, o contato entre homens livres e escravos era consideravelmente maior que nas áreas
76
de economia menos diversificada e encontramos entre esses escravos uma considerável
mobilidade espacial e conseqüente formação de laços entre livres e cativos.
77
CAPÍTULO 3
Códigos, valores e costumes no Sertão norte mineiro: as leituras das leis e das normas
3.1 Os processos judiciais como fontes de pesquisa
Os processos judiciais representam uma das poucas possibilidades de tomarmos
contato com o universo de pessoas anônimas, que viveram em outra época e não deixaram
muitos vestígios. Essa documentação mostra-se bastante fecunda, permitindo captar
diversas nuanças de seu universo cultural.
O estudo dos processos judiciais, principalmente os criminais, relativos ao Termo
de Montes Claros de Formigas no século XIX, transformou-se em uma atividade quase
detetivesca, difícil e instigante. Depois de coletados os documentos, papéis avulsos e
processos, tentando entender o seu conteúdo, deparei-me com o caso da a escrava Pia,
123
assassina. E não assassina de um senhor ou de um feitor, mas de uma mocinha escrava,
Anastácia, de apenas treze anos. Por que? Que razões levaram essa escrava a quebrar as
regras e os códigos jurídicos e atentar contra a vida de uma quase-menina? Primeiras
dúvidas que me levariam a buscar mais profundamente conhecer esse micro-universo
oitocentista do interior provinciano. Quantos documentos mais haveria sobre crimes de
escravos? Encontraria também escravos vítimas? Que histórias de vida se escondiam dentro
daquelas folhas? Descobri em meio àqueles documentos inúmeros relatos pessoais, de
dramas, tensões, conflitos nascidos das relações cotidianas. Mas, o mais interessante,
naqueles que se referiam aos escravos, confirmei que esses homens e mulheres não eram
123
Processo de 10/06/1842. AFGC-DPDOR.
78
apenas posses de seus senhores, não foram apenas semoventes, foram pessoas que
questionaram e quebraram muitas regras sociais, que não se submeteram aos espaços pré-
determinados que lhes foram impostos, eram e se comportavam como seres humanos
comuns, reagindo e agindo diante do que a vida lhes oferecia.
O passo seguinte da pesquisa foi conhecer a documentação sobre os escravos,
catalogando todos os relatos encontrados, conforme fossem cíveis ou criminais. Surgiu
então um problema, se para alguns anos havia um número relativamente bom de processos,
para outros não encontrava registros de espécie alguma. Duas explicações foram
encontradas para essas lacunas, uma foi a perda documental e outra foi a ausência de
registro de grande parte dos casos que envolviam escravos, uma vez que os senhores
preferiam resolver as questões internamente.
A perda de documentos ou de registros judiciais não foi incomum e as perdas
ocorriam por diversos motivos. Até pouco tempo, a guarda e conservação dos documentos
cartoriais eram de responsabilidade do Cartorário, funcionário escolhido pelo Juiz de Paz
do Distrito ou Arraial. Esses funcionários geralmente possuíam laços de dependência e de
lealdade com aqueles juízes que lhes colocaram no cargo. Ocasionalmente, ocorria de o
Cartorário cair em desgraça diante do Juiz de Paz e ser retirado do cargo. Foi o que ocorreu
em 1940, no Distrito de Santo Antônio da Boa Vista, com o Cartorário Manoel Gonçalves.
Tendo desagradado o Coronel José Corrêa, Juiz de Paz do Distrito, o Manoel Gonçalves
recebeu ordens de desocupar o Cartório e sair do Distrito, sob pena de fazê-lo debaixo de
chicote. O Cartorário então, antes de sair, fez pilhas de documentos na praça e ateou fogo
neles, desafiando o poder do Coronel e destruindo boa parte dos documentos existentes
naquela comunidade que nos proporcionaria conhecer um pouco mais deste mundo
79
violento.
124
Foi uma prática comum em Montes Claros a de sumiços de processos. Não foram
raros os casos em que processos que depunham contra potentados desapareciam ou jamais
eram remetidos ao Juiz de Direito da Comarca. Também não foram raros os processos para
apurar venda de autos, inclusive os que envolviam escravos e partilhas de bens. É bastante
elucidativo o auto de 16 de janeiro de 1837, aberto pelo Juiz de Paz do Arraial do
Santíssimo Coração de Jesus, contra Joze de Camargo Lira
125
. O crime do qual Joze é
acusado é o desaparecimento de um processo que envolvia o escravo Romão Crioulo (réu)
e Manoel Demétrio (vítima), ocorrido em 28 de Novembro de 1835, na Fazenda Riacho do
Cavallo, em Coração de Jesus. O processo contra Romão fora aberto em 1835, pelo Juiz de
Paz João Pinheiro Torres, que veio a falecer sem remeter os autos para a sede da Comarca,
que era a Villa de Montes Claros de Formigas. Segundo a denúncia, Joze de Camargo,
escrivão do Cartório, vendeu o processo a Remualdo Rodrigues Soares, por Cem mil réis. É
o próprio Remualdo quem aponta os fatos, dizendo:
“que foi incumbido por Mariana de Medeiros Cabral de retirar huma
certidan do auto de corpo de delito e ditos de testemunhas a que se
procedeu pello finado Juiz de Paz João Pinheiro Torres contra Romão
criollo escravo da dita Marciana pela morte feita a Manoel Demétrio (...).
Veio a este arraial para tirar as certidoens recontadas precurou a José de
Camargo Lira para tratar de aprezentar sua petiçan para o fim pertendido e
por este foi dito a elle testemunha que não hera preçizo para livramento do
dito criollo tirar a certidan pertendida e dice mais a elle testemunha que se
elle dece sem mil reis que elle Carmago o punha livre (...)
(rendado).......................................................................................
O dito Camargo se obrigou a aprezentar ou entregar a elle testemunha hua
dupricada que ce achava em mão do inspector José Ferreira para em virtude
da mesma çer o dito Romão prezo e juntamento prometeu entregar folha
corrida tirada neste cartório para mostrar que o dito Romão não hera
criminoso e que sua sinhora o pudia peçuhir livremente sem çusto de justiça
nem de crime algum (...).”
126
124
Informação dada pelo Senhor Geraldo Santana, morador do Distrito de Santo Antônio da Boa Vista- MG
em entrevista realizada no dia 20 de Maio de 2001, pela mestranda Jonice dos Reis Procópio Morelli.
125
Processo de 16/01/1837. AFGC-DPDOR
126
Processo número 16/01/1837. AFGC-DPDOR.
80
Neste caso, o extravio dos documentos foi impedido pela portaria do Juiz de Paz
Tenente Lázaro da Rocha Queiroz. Diz a portaria:
“Pela presente minha portaria (...) notifique a dona Marciana de Medeiros
Cabral para incontinente aprezentar neste juízo perante mim hum proceço
sumário a que se procedeu no tempo do finado Juiz de Paz João Pinheiro
Torres pela morte feita a Manoel Demétrio. (...)”.
127
O processo foi retomado e o réu condenado em 1837. Mas a prática nos permite
pensar sobre os problemas advindos de se ter que aplicar a justiça em uma região onde o
poder pessoal era muito grande e era possível desafiar os representantes legais do Estado.
Muitos documentos foram também retirados por particulares, por vários motivos,
entre os quais ocultar problemas familiares cuja divulgação não interessava aos envolvidos.
Casos de adultérios, furtos, espancamentos, eram certamente resolvidos dentro da casa,
onde estava a autoridade do pai ou, em poucas exceções, da mãe. Em verdade, o Estado vai
tentando, ao longo do século XIX, ampliar o espaço da autoridade pública, em detrimento
do poder do pai de família, mas no sertão norte-mineiro muito tempo se passaria antes de
os representantes do Estado conseguirem ocupar os espaços tomados pela autoridade
familiar. Assim, verificamos que a ação depredatória do tempo, das traças e dos homens
muito contribuiu para a perda de documentos judiciais.
Outra explicação para a escassez de documentos é a própria natureza da escravidão,
que permitia ao senhor resolver os problemas de correção e disciplina dos escravos dentro
de sua propriedade, sempre que conseguisse. Assim, um número menor de questões
chegaria ao conhecimento dos juízes de paz, delegados e subdelegados dos distritos e da
villa. É bem provável que os casos dos quais tomamos conhecimento formem apenas uma
pequena amostra dos variados conflitos ocorridos dentro de cada fazenda e no interior de
81
cada casa, no Termo da Villa de Montes Claros. Certamente só os casos muito graves ou
que afetassem os interesses de outras pessoas foram levados à justiça. Reafirmamos que o
Estado foi, ao longo do século XIX, paulatinamente se intrometendo e regulamentando as
relações entre os senhores e os escravos. São inúmeras as leis, decisões do governo,
alvarás, avisos e pareceres que foram sancionadas referentes à instituição escravista,
regulamentando inclusive a correção a ser dada aos escravos culpados de pequenos
delitos.
128
Mas ainda assim, os senhores sempre foram reticentes em aceitar essa
intromissão, que cerceava de certo modo a propriedade privada. Assim, é de se supor que
muitos casos, envolvendo brigas domésticas, bebedeiras, furtos, tenham sido resolvidos na
esfera doméstica, sob a autoridade e poder dos senhores, sem esquecer a capacidade dos
escravos em contornar e acomodar as questões.
O interesse econômico dos senhores pode também ter sido um motivo para não
apresentar à justiça os escravos envolvidos em crimes. Segundo o Código Criminal de
1830, em sua Primeira Parte, Título II - Das Penas, artigo 60,
“Se o réo for escravo , e incorrer em pena, que não seja capital , ou
de galés, será condennado na de açoutes e depois de os soffrer , será
entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo,
e maneira que o Juiz designar.”
Mesmo que a Lei determinasse o número máximo de açoites permitidos por dia, e
que os juizes usassem de moderação, sempre seria uma perda de produtividade. Além do
mais, haviam os gastos com a despesa da cadeia, onde o condenado ficava até terminar de
receber os açoites. Assim, não havia um grande interesse por parte dos senhores em
denunciar seus escravos. Muito mais séria era a perda quando o escravo incorria em crime
contra seu senhor, feitor ou seus parentes. Neste caso, as penas eram, em grau médio, as
127
Processo número 16/01/1837. AFGC-DPDOR.
82
Galés Perpétuas e em grau máximo, a morte por enforcamento, também chamada morte
natural.
Um outro obstáculo a ser enfrentado ao se utilizar os processos judiciais como fontes
de pesquisa está ligado ao fato do processo ser construído a partir de múltiplas versões,
oferecidas pelo promotor, pelas testemunhas, pela vítima e pelo acusado. Cada versão é
formulada com o objetivo de incriminar ou inocentar o acusado e se torna impossível ter
acesso aos fatos da forma como realmente aconteceram.
129
Em nossa análise, entretanto,
entendemos que as versões são portadoras de sentido e permeadas de valores culturais e
que através da investigação das circunstâncias e motivações dos processos e da análise das
diferentes versões, podemos nos acercar dos laços culturais e sociais existentes entre os
indivíduos.
Tendo presente a consciência da impossibilidade de conhecer todos os crimes e
ações cíveis que envolveram escravos no Termo de Montes Claros, bem como da condição
dos processos como versões, optamos por estudar todos os documentos que indicassem
essa presença escrava, nas condições de vítimas, réus ou testemunhas e a partir deles
encontrar os vestígios de práticas culturais, sociais, dos valores e certas normas morais
entre os cativos. Ainda que estes dados não sejam em quantidade suficiente para se
estabelecer padrões de comportamento que pudessem ser generalizados, permitem fazer
uma análise de cunho qualitativo das relações sociais que se estabeleceram em Montes
Claros, ao longo do século XIX, entre livres e cativos.
Utilizando o paradigma indiciário, do método analítico proposto por Ginzburg,
baseamos nosso trabalho na tentativa de reconstruir, ainda que parcialmente, alguns
128
FENELON, Déa. Levantamento e sistematização da Legislação relativa aos escravos do Brasil, In: Anais
do VI Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, São Paulo, 1975, p. 261.
129
ZENHA, Celeste. “As práticas da justiça no cotidiano da pobreza” In: Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 5, nº 10, mar-ago, 1995, p. 126
83
aspectos das formas de agir, pensar e viver dos negros escravos, livres. A partir da análise
de fragmentos, de dados aparentemente desprovidos de grande importância e do sentido
indiciário também presente nas palavras soltas ou nas expressões descuidadas, que vêm à
tona nos momentos mais inusitados porque fazem parte de práticas e costumes
imemoriáveis, julgamos ser possível apreender um pouco mais de uma certa realidade
social e dos valores culturais de uma dada sociedade. Para Ginzburg,
“se a realidade é opaca , existem zonas privilegiadas sinais, indícios que
permitem decifrá-la. Essa idéia, que constitui o ponto essencial do paradigma
indiciário ou semiótico, penetrou nos mais variados âmbitos cognoscitivos,
modelando profundamente as ciências humanas. Minúsculas particularidades
paleográficas foram empregadas como pistas que permitiam reconstruir trocas
e transformações culturais (...). A representação de roupas esvoaçantes nos
pintores florentinos do século XV, os neologismos de Rabelais, a cura dos
doentes de escrófulas pelos reis da Inglaterra e França são apenas alguns
entre os exemplos sobre o modo como, esporadicamente, alguns indícios eram
assumidos como elementos reveladores de fenômenos mais gerais.”
130
Concordamos com Ginzburg quando ele afirma que é possível utilizar um método
interpretativo no qual detalhes aparentemente miúdos, sem importância, podem fornecer
chaves de acesso a determinadas realidades sociais. Se não é o melhor paradigma, em
termos de rigor científico, para se conhecer questões mais ligadas à experiência cotidiana,
sem dúvida alguma, a análise dos sinais não intencionais, presentes nos documentos
judiciais, permite apreender resultados relevantes acerca de realidades sociais que não
deixaram muitos outros registros.
No nosso trabalho, a discussão acerca da natureza da escravidão no Norte de Minas
Gerais baseia-se em fontes cartoriais ou judiciais que fornecem uma substancial ajuda para
a compreensão da vida dos escravos e da sociedade na qual estavam inseridos. Neste
130
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas e
sinais: Morfologia e história.São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 173-174
84
trabalho os processos-crimes foram as janelas por onde espiamos o passado, buscando
perceber as situações de luta, de conflito, de acomodação e de enfrentamento, de
solidariedade e de mobilidade vividas pelos escravos.
Foi estudando os processos judiciais que pudemos reconstruir os elos de ligação
entre as várias camadas da sociedade. A propriedade escrava em sua maior parte estava
pulverizada nas mãos de inúmeros pequenos e médios proprietários, que viviam próximos
uns dos outros. Essa característica permitia uma convivência mais constante entre homens
livres e escravos pertencentes a senhores diferentes, o que gerou redes de contato entre os
variados segmentos sociais. As relações pessoais nesta sociedade norte-mineira eram de
suma importância. As vidas de livres, libertos e escravos se enredavam em relações sociais
inter e intragrupais cotidianas. Encontramos várias referências às relações de dependência
e obrigações entre indivíduos pobres ou escravos e proprietários mais abastados, apontando
para a importância dos elementos de dominação pessoal existentes nos laços que envolviam
esta sociedade. Contudo, nos processos analisados as relações próximas entre os homens
pobres e escravos aparecem em quantidade muito maior e, por mais que a legislação se
esforçasse para diminuir esse convívio
131
, a proximidade e a estreiteza desses laços
emergem constantemente nos encontros e desencontros que se verificam nas festas, nas
vendas, nas ruas e em mesas de jogos. Dos momentos de lazer ou trabalho que reuniam
livres e escravos resultaram, incontáveis vezes, disputas e tensões provocadoras de
agressões e assassinatos.
Os processos criminais nos fornecem indicações do quanto as normas legais não
eram respeitadas, sugerindo que os indivíduos se conduziam a partir de um código de
valores diferente daquele proposto pelas normas jurídicas sancionada e vigentes. Assim, os
131
Cf. referência à posturas municipais da Villa de Montes Claros na seção 3.2. desta dissertação.
85
processos criminais são também importantes porque nos remetem às regras formalizadas e
ao Código Criminal, que nos informam sobre o conjunto de normas sociais, justiça e ideais
de ordem que estiveram sendo construídos e implementados ao longo do século XIX.
O crime, neste estudo, foi analisado como um instrumento que permite acessar
indícios do cotidiano, das regras e normas pretendidas pelo poder instituído e como eram
vividas e interpretadas pelas camadas mais humildes da população, das relações intra e
intergrupais que envolviam os escravos. Principalmente dando voz às testemunhas, que
muitas vezes não tinham grandes escrúpulos em falar dos acontecimentos tanto quanto o
réu ou a vítima, a análise interpretativa de processos criminais permite, não apenas a coleta
de informações sobre o modo de vida e as questões escravistas, mas ainda a possibilidade
de se pinçar as teias de significados dados ao universo cotidiano das relações
escravo/senhor, escravo/ escravo, escravos/livres.
Concordamos com o pensamento de Maria Helena Machado, quando ela valoriza os
processos-crime como fonte documental. Segundo a autora,
“apesar do caráter institucional desta fonte, ela permite o resgate de
aspectos da vida cotidiana, uma vez que, interessada a justiça em
reconstituir o evento criminoso, penetra no dia-a-dia dos implicados,
desvenda a sua vida íntima, investiga seus laços familiares e afetivos
registrando o corriqueiro de suas existências.”
132
A utilização de fontes documentais outras que não apenas os documentos oficiais, e
novas metodologias no trato dos documentos tem permitido uma ampliação nas leituras que
das relações sociais. Boris Fausto, por exemplo, ao trabalhar com a violência em São Paulo,
entre o final do século XIX e o princípio do século XX, verificou que existiu uma estreita
relação entre o aumento da urbanização da cidade e o aumento da criminalidade e percebeu
que a massa de pessoas miseráveis, notadamente os ex-escravos, compunha grande parte do
86
contingente de criminosos. Sua obra é importante pois denota a possibilidade de se estudar
o cotidiano através do crime, observando-se inclusive a ação repressora policial e judiciária
como instrumentos de controle da elite sobre o crescimento da população e da cidade.
133
Maria Silvia de Carvalho Franco
134
analisou a criminalidade na região do Vale do
Paraíba no Sudeste brasileiro do século XIX, entre os homens pobres livres. A autora
mostrou em seu estudo que em relações de aparente estabilidade no trabalho, nas atividades
de lazer, entre vizinhos e em família, irrompiam cotidianamente atos de violência, que
demonstravam a existência de um código de valores informado por princípios como
dominação pessoal, auto-afirmação e valentia. Pessoas que possuíam anteriores relações de
amizade e laços de solidariedade tornavam-se criminosas no calor de embates que
emergiam no dia-a-dia, e não apenas quando estavam em questão tensões maiores nascidas
anteriormente e que opusessem os contendores.
Pautando-se por um código de valores tipicamente ‘caipira’, as situações de ultraje
nunca poderiam ser relevadas, pois a marca maior da coragem e da honra estava,
justamente, em vingar-se valentemente ou bater-se ferozmente contra qualquer violação. A
valentia era um valor cultivado e respeitado entre os caipiras, dentro do código do sertão.
Acreditamos que as práticas sociais dos escravos no Norte de Minas não eram
muito diferentes daquelas decodificadas por Maria Sílvia de Carvalho Franco em relação
aos homens pobres livres da região do Vale do Paraíba. Os escravos eram regidos por um
código de valores muito semelhante. Ideais como o de honra, coragem, desafio, práticas
pautadas pela violência não seriam exclusividade de homens pobres livres, mas ocorriam
também entre os escravos, fosse com relação a outros escravos, fosse com relação a homens
132
MACHADO, Maria Helena P.T. Crime e Escravidão: Trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas
1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 23
133
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Editora
Brasiliense, 1984.
87
livres, dentro de uma dinâmica de apropriação e (re)apropriação cultural . Comprovamos
essa idéia ao analisarmos as dezenas de processos-criminais nos quais os escravos surgiram
como vítimas ou como réus, na Comarca de São Francisco, na área norte da Província de
Minas Gerais. Nesta região de potentados rurais e de homens pobres livres onde a presença
do Estado foi implantada com alguma dificuldade e onde os códigos de honra, fidelidade e
coragem circulavam e informavam as práticas cotidianas, os escravos não poderiam estar
se conduzindo por uma teia de normas absolutamente diferentes daquelas que conduziam os
seus contemporâneos. Mesmo sabendo que eram posses de alguém e, portanto, estavam
limitados em sua liberdade, se os laços sociais que envolviam escravos e senhores não eram
absolutamente rígidos, se esses escravos possuíam alguma mobilidade, conforme
procuraremos provar adiante, então não é de estranhar que possuíssem também os mesmos
valores morais defendidos e prezados pelos homens livres do Sertão.
No livro Campos da Violência, Sílvia Hunold Lara
135
se empenhou em desmitificar
e reinterpretar o caráter institucional dado à violência, presente nas relações senhor-escravo
do ponto de vista do controle social exercido pelo senhor e das formas de reação do
elemento escravo ao modo de vida que lhe era imposto.Estudando a região conhecida como
Campos de Goitacazes, Sílvia Hunold Lara alerta sobre a filtragem estabelecida pela pena
do escrivão, e outras representações dos interesses da classe dominante, nos processos
criminais, mas lembra que “a revelia dos objetivos pelos quais [a documentação] foi
produzida, traz até nós o registro do cotidiano.” A riqueza dos processos criminais,
segundo a autora, repousa no fato destes oferecerem “não só o relato dos senhores,
agregados, negociantes e até mesmo dos escravos a respeito de um mesmo acontecimento
134
FRANCO, M.S. C. op.cit.
135
LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro 1750-
1808. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1988.
88
como também, aos olhos do historiador, o dia-a-dia das relações pessoais entre escravos e
senhores.”
136
Essas observações servem para a análise que empreendemos em relação ao Norte de
Minas. O estudo dos processos crimes pode nos levar ainda mais longe, na medida em que
encontramos outros personagens envolvidos nos crimes praticados homens e mulheres
livres que se relacionavam diariamente com escravos, na condição de companheiros de
trabalho, de lazer e de vida.
Maria Helena Machado, em sua obra Crime e Escravidão, lançou mão dos
processos criminais da cidade de Campinas para o período de 1830 a 1888, para analisar a
vida dos escravos na ótica da resistência. Machado considera como de resistência o uso de
estratégias de sobrevivência dos cativos nas lavouras paulistas. Em sua análise da
importância do processo-crime como fonte a autora salienta que,
“a consideração dos autos criminais permite a abordagem de aspectos
sociais da vida das camadas dominadas, tais como relações de amizade,
parentesco ou vizinhança, os padrões familiares e mesmo a organização do
trabalho e sobrevivência daqueles que foram alijados das tarefas
socialmente dignificadas.”
A autora lembra porém, que é o evento criminoso que condiciona as confissões e
revela-se como o fio condutor do documento, emprestando significado à pluralidade dos
fatos registrados. Daí a necessidade de um cuidado especial pois os testemunhos podem
revelar um pensamento onde as ações dos envolvidos são pensadas a partir do crime, o
crime (acontecimento final) é que iria explicando ou dando sentido a acontecimentos
anteriores, na recriação da trajetória. Isso limita um pouco a fonte, pois a mesma é
portadora de intencionalidade da fala do envolvido no processo. Mais uma vez é preciso
estar atento aos sinais intencionais ou não-intencionais presentes na recriação dos crimes,
136
LARA, Silvia Hunold. Op. cit., p.
89
feito pelas testemunhas.
Ainda assim, as transgressões ocorridas na Comarca do Rio São Francisco,
envolvendo escravos, nos permitem enxergar muito do como essa parte da população se
organizava e participava da vida em sua coletividade. Além dos 140 processos judiciais
(cíveis e criminais) envolvendo escravos em Montes Claros, na condição de vítimas, réus
ou testemunhas, utilizamos partes do código das Posturas Municipais sancionados ao longo
do século, para tentar captar aspectos da vida cotidiana na cidade bem como para tentar
esclarecer como eram os mecanismos de manutenção da ordem, cuja finalidade precípua
era garantir a estabilidade e o sossego públicos, controlando o comportamento da
população.
É importante observar que a análise dos códigos legais e dos procedimentos de
fiscalização e punição dos infratores dos códigos permite um outro olhar. Os escravos não
eram imunes ao que acontecia ao seu redor. Enfocando o uso que cativos fizeram das leis e
normas propostas para a Província e para Montes Claros, percebe-se que eles foram
capazes de aproveitar as brechas que as regras institucionalizadas foi-lhes facultando, para
desenvolver um conjunto de estratégias de sobrevivência e resistência que serviram para
aumentar o poder de barganha face aos senhores. Assim, o conjunto jurídico em vigor
naquele momento histórico, as pessoas que faziam uso dele e o modo como o faziam dão
importantes indícios das práticas legais e dos vários comportamentos sociais que ocorriam
no Sertão norte-mineiro.
O corpus documental utilizado neste trabalho é composto de 140 processos
judiciais, completos ou incompletos, do acervo do Fórum Gonçalves Chaves. Esta
documentação compreende todos os autos disponíveis em que escravos aparecem na
90
condição de réus, vítimas ou testemunhas, no Termo de Montes Claros de Formigas,
Comarca do Rio São Francisco, entre 1834 e 1886, em vários tipos de ações judiciais
(cíveis ou criminais). A documentação encontra-se no Acervo do Fórum Gonçalves
Chaves, Divisão de Pesquisa e Documentação Regional - Diretoria de Documentação e
Informações da Universidade Estadual de Montes Claros. Além dos processos, utilizamos
as Posturas Municipais de Montes Claros vigentes no período compreendido pela pesquisa,
assim como algumas atas das sessões da Câmara Municipal da Villa de Montes Claros, no
intuito de estabelecer as características de algumas práticas de controle e normatização da
sociedade e perceber como essas regras foram aceitas ou subvertidas pelos grupos sociais
que viviam e interagiam na localidade.
3.2- Normatizações e aplicação da Justiça: entre os códigos legais e as apropriações
sócio-culturais.
É comum na historiografia do Império a interpretação de que as medidas político-
administrativas adotadas no período regencial constituíram uma tentativa de resolver o
problema da instabilidade política vinda da Abdicação de D. Pedro I. Após 1831, os liberais
moderados promoveram a reforma da Constituição e aprovaram o Código do Processo
Criminal bem como criaram as assembléias legislativas provinciais e extinguiram o
Conselho de Estado, numa clara demonstração da superioridade do legislativo e da
descentralização administrativa como base de um projeto político nacional. Através desses
mecanismos, que visavam a ampliação dos poderes das lideranças provinciais, os liberais
moderados possibilitaram ainda que não fosse esse o objetivo principal, um relativo
fortalecimento dos municípios e, por conseqüência, o prestígio dos chefes locais.
91
Segundo Edna Maria Resende, em seu estudo sobre os homens livres em São João
Del Rei, no século XIX, o posto de juiz de paz, criado em 1827, foi uma tentativa de
minorar o estado caótico da justiça mas também obedecia a motivações políticas. Um
eleitorado local escolhia o juiz, portanto o poder do governo central seria diminuído. Entre
as atribuições do juiz de paz, estavam as obrigações de promover conciliações entre partes
litigiosas, dispersar reuniões públicas suspeitas de desordens, encarcerar possíveis
arruaceiros, garantir que homens e mulheres se ocupassem de atividades decentes e
honestas. O Código Criminal de 1832 ampliou a jurisdição penal e os poderes policiais do
juiz de paz, dando-lhe a responsabilidade não apenas de reunir provas, mas inclusive, de
determinar a causa das denúncias e fazer a formação de culpa. Ao juiz de paz cabiam
funções judiciais e policiais, inclusive supervisionando e controlando os inspetores de
quarteirão. Esse momento da descentralização administrativa, contribuindo sobremaneira
para a ampliação dos poderes dos chefes locais, gerou entretanto alguns problemas. Um
deles foi que autoridade local se tornou praticamente autônoma sem que existissem muitos
meios de sujeitar ou controlar os juízes e outro, tão importante quanto o primeiro, foi o
fomento às disputas e agitações locais ocasionadas pelo desejo das facções locais de terem
seus representantes ocupando o posto de juiz.
Essas questões em torno do controle sobre a magistratura local começaram a ser
contornadas em 1841, com a reforma do Código do Processo, que transferiu os poderes
penais e policiais, antes pertencentes aos juizes de paz, para funcionários nomeados pelo
governo. Nesta medida e em outras, contrárias às anteriores, está a tentativa do governo
imperial em centralizar o poder político-administrativo. Com a Interpretação do Ato
Adicional (12 de maio de 1840), a Reforma do Código do Processo Criminal (3 de
dezembro de 1841) e o restabelecimento do Conselho de Estado (23 de novembro de 1841)
92
ficou organizado o aparelho estatal e foi subtraída a força das províncias e municípios. As
alterações produzidas pela Interpretação do Ato Adicional tiveram como efeito a
transferência do controle do sistema judicial e policial das Assembléias Provinciais para o
governo central. A Reforma do Código do Processo propiciou a transferência das
atribuições dos Juizes de Paz para o chefe de polícia, nomeado pelo Imperador e seu
Ministro da Justiça, e para os delegados e subdelegados, nomeados pelos Presidentes de
província. Também os Juízes municipais e promotores públicos, antes nomeados pelas
Câmaras, agora estavam sob controle direto do governo central.
137
Por este movimento centralista, foi sendo controlado o poder das Câmaras
Municipais e Assembléias Legislativas. À medida que os juizes de paz, eleitos em cada
cidade, e os juizes municipais, indicados pelas Câmaras, perderam a competência jurídica e
policial, em detrimento das autoridades designadas pelos Presidentes de Província e, em
última instância pelo governo imperial, a margem de manobra dos proprietários, eleitores
qualificados das localidades, tendeu a diminuir.
Os ajustes nos aparelhos administrativos e judiciários demonstram o empenho das
lideranças políticas do Brasil império em criar meios para manter a ordem e garantir certas
prerrogativas dos grupos dominantes. No entanto, como a historiografia mais recente tem
enfatizado, o Governo, no projeto de construção do Estado, precisou efetivamente do apoio
dos grupos privados para execução deste projeto. Possivelmente, “sem cooptar e angariar
os favores e liturgias dos senhores locais,
138
o Governo não conseguiria manter a ordem e
o poder desejados. O processo de constituição do Estado Imperial foi portanto, marcado
pela presença de tensões constantes. Na atuação dos juízes de paz temos a manifestação
137
CASTRO, Paulo Pereira. A experiência republicana, 1831-1840. História Geral da Civilização
Brasileira, t.II, v.2, 1972. p. 56-57.
138
URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial, 1978. p. 112.
93
dessa tensão. Se, por um lado, havia uma certa definição dos poderes desses magistrados
por decretos e estatutos; por outro lado, eleitos pela sua comunidade, por um tempo
determinado, esses homens sofriam pressões de seus conterrâneos, o que muitas vezes
impedia a aplicação da lei na forma pretendida.
Após o regresso conservador de 1840, houve um processo de centralização e de
normatização, de supremacia do poder público através da constituição de redes
administrativas, que, em tese, deveriam estar menos infensas às disputas de interesses
particulares. Porém, o desejo do governo imperial de construir espaços neutros, fora do
poder de influência das elites locais, sofreu as limitações impostas pela extensão do
território, pela pequena densidade populacional de muitas regiões, pelas práticas
patrimonialistas do Estado e pela ausência dos recursos financeiros. A utilização de
recursos privados em projetos e necessidades públicas era uma constante, o que tornava
ainda mais complexo o processo de burocratização da administração. Segundo Maria
Sílvia de Carvalho Franco,
“embora mantidos os gastos sempre dentro do imprescindível à
preservação dos bens e à continuidade dos serviços do Estado, mesmo
para esse mínimo, os recursos oficiais eram escassos, compensando-se
essa falta pelas incursões aos bolsos dos cidadãos e das autoridades. E o
resultado disso foi que , em lugar do funcionário público tornar-se cada
vez mais um executivo que apenas gere os meios da administração,
manteve-se preservada a situação em que ele detinha a propriedade. (...)
Essa mistura entre a coisa pública e os negócios privados fundamenta, sem
dúvida, a extensão do controle pessoal a todo o patrimônio do Estado.”
139
Também a escolha dos funcionários sofria as influências dos interesses privados. Em
um universo onde os letrados estavam em número muito limitado e geralmente alocavam-
se entre os cidadãos de posses, os critérios para a escolha dos funcionários restringiam-se
139
FRANCO, M. S. C. Homens livres na ordem escravocrata. p. 131
94
ainda mais e a competência administrativa era muitas vezes preterida em função de laços
de parentesco e amizade, que garantissem apoio aos interesses do grupo. Às abstratas
preocupações com os regulamentos formais e burocráticos, os funcionários antepunham os
interesses e necessidades de sua vida cotidiana. E, com maior freqüência que o desejado, as
pessoas que deveriam fazer cumprir a lei de modo imparcial, utilizavam a força policial e
judicial em proveito de seus interesses pessoais, transformando os órgãos públicos em arma
contra os adversários políticos e em sustentáculo dos partidários. Assim, entre o projeto de
construção de um Estado Nacional centralizado e ordeiro e as forças que atuavam na
administração no âmbito local e mesmo provincial, existia um espaço de tensões e
desacordos, onde prevaleciam os interesses privados sobre os projetos de interesse geral.
Se no tocante ao corpo administrativo, o governo central teve dificuldade em impor
seu projeto, mais ainda se vê na instalação de normas e regras de controle do
comportamento dos cidadãos. O Código Criminal de 1830, depois reformulado em 1841, e
as Posturas Municipais foram dois instrumentos utilizados com o objetivo de garantir a
ordem e a estabilidade públicas. O Código, tinha entre seus objetivos limitar o poder dos
potentados locais, eliminar o controle regional do judiciário, expandir os tribunais e
padronizar a ação da justiça. Marcado pelo racionalismo e pela impessoalidade, o Código
suprimiu as penas cruéis, aboliu as diferenças de status dos criminosos, atrelou a pena ao
indivíduo e não mais à sua família, propôs o castigo como um mecanismo de reeducação e
não mais como um exemplo público que viesse a inibir novos crimes.
Na perspectiva dos responsáveis pela elaboração do corpus jurídico, a lei, por seu
papel educativo, poderia moldar e induzir comportamentos. Porém, do ponto de vista
dessas autoridades, a sociedade, constituía em sua maioria por uma massa de escravos e de
homens pobres ainda era reconhecidamente ignorante e inculta e a incivilidade da
95
população era uma das responsáveis pela violência e impunidade existentes no país. Assim,
na ação padronizada das autoridades e nas medidas coercitivas estariam os mecanismos que
garantiriam a manutenção da ordem uma vez que a instrução da população, a reforma dos
costumes e a assimilação de hábitos e valores eram processos lentos. Assim, muitas
vezes, encontramos referências a punições exemplares solicitadas pelas lideranças políticas
e pelos magistrados, como no caso da condenação do escravo Joaquim Nagô, preso por
assassinato do irmão de seu senhor. No libelo crime acusatório, o promotor público da
Comarca solicitava, “que o réo seja punido com a penna do artigo 192, no grau máximo
[pena de morte natural] para exemplo de outros, pois que de outra forma não pode haver
segurança para os pais de família, e principalmente neste centro onde não se tem feito
exemplo algum.”
140
As Posturas Municipais, por seu turno, também constituíam um mecanismo de
controle e fiscalização dos comportamentos dos munícipes e de seus escravos. Sendo as
vilas e arraiais um lugar, ao mesmo tempo, de tensões e de solidariedades intra-grupais, as
posturas serviam para limitar as ações cotidianas dos habitantes e garantir a ordem e o
sossego públicos. A administração municipal montesclarense preocupou-se, por exemplo,
em fixar horários limites para o funcionamento casas comerciais, proibir jogos, impedir
ajuntamentos de escravos, bem como quaisquer atitudes que pudessem gerar incômodo aos
habitantes.
No tocante ao trato com os escravos, as Posturas Municipais de Montes Claros
denotam a preocupação das autoridades locais em relação aos limites estreitos que a estes
se devia dar. No título que se referia à Segurança Pública, havia proibição dos “jogos de
parar” e várias restrições aos jogos de outras naturezas, como loterias e rifas. Mas aos
140
Processo de 16/06/1835. AFGC-DPDOR
96
escravos, as posturas proibiam tacitamente os jogos. A lei deveria punir inclusive os livres
envolvidos na infração.
“art. 91. É prohibido a escravos toda a qualidade de jogo em caza publica
para esse fim licenciada, caza de jogo, ou qualquer lugar publico pena de
três dúzias de palmatoadas e um dia de prizão: só essa será agravada em
caso de reincidências. A mesma prohibição compreende o jogo de filhos
famílias, caixeiros, criados e tutellados pena de 2$000 réis. O dono da
caza publica de jogo ou negocio que consentir n’elle jogar qualquer dos
mencionados, serámultdo em 30$000 réis e prezo por oito dias e o dobro
na reincidência .
Art. 93 . O homem livre achado a jogar dinheiro ou couza que o valha,
com escravos, filhos famílias, criados ou tutellados, sofrerá a multa de
20$000 réis e quatro dias de prizão, além de repor o que tiver ganho.”
141
Muitas vezes o poder de fazer valer a letra da lei estava em estreita correlação com
os interesses privados das autoridades municipais. Foi o caso, por exemplo, de um processo
em que figura como autora a Justiça e como réus os livres José Pereira do Amaral, Ananias
e Joaquim. Essas pessoas estavam jogando apostado com os cativos Manoel, Bernardo e
Agostinho, o crime era de infração ao artigo 91 das Posturas Municipais. Os escravos, que
foram pegos jogando pertenciam respectivamente ao Capitão Antônio de Almeida Saraiva,
Ludugério de Souza Meira e ao Tenente Coronel João Alves Maurício. Os réus foram
considerados culpados e condenados a quatro dias de prisão e à multa estipulada no art. 92.
Coincidentemente, o Tenente Coronel João Alves Maurício era o Juiz Municipal Substituto
em exercício. No processo não se alude a penas impostas aos escravos.
142
Era-lhes também proibido fazer a dança do batuque com algazarras, ou jogar o
entrudo, nas casas e ruas das povoações, tanto durante o dia quanto à noite.
143
Essas
medidas coercitivas denotam o temor causado pela presença dos escravos, na maioria das
141
Posturas Municipais de Montes Claros. In: Livro da Lei Mineira 1858 Tomo XXIV parte 1ª - Folha
nº 11. Arquivo Público Mineiro Acervo Biblioteca
142
Processo de 15/15/1862. AFGC-DPDOR - Unimontes
143
Posturas Municipais de Montes Claros. In: Livro da Lei Mineira 1858 Tomo XXIV parte 1ª - Folha
nº 11. Arquivo Público Mineiro Acervo Biblioteca
97
vezes, vistos pela justiça como arruaceiros, ladrões, facínoras e o desejo de cercear o
convívio de escravos e livres, considerado como prejudicial à ordem e ao sossego da
coletividade. Os escravos que viviam de jornais eram considerados mais perigosos,
provavelmente porque viviam menos submetidos à autoridade de seus senhores. As
posturas eram claras ao delimitar os mecanismos de controle aos quais se deveriam
submeter esses cativos. Em seu art. 123, estabelecia que nenhum quitandeiro ou
quitandeira poderá vender em qualquer fazenda, sem licença de seu dono, feitor ou
administrador multa de 2$000 réis.” Também em seu artigo 126 as Posturas proibiam a
compra de quaisquer bens ou produtos na mão de escravos, sem a autorização de seus
donos.
144
Percebemos aqui a preocupação em conter os cativos que, muitas vezes, andavam
com ou sem autorização de seus senhores, pelas ruas e estradas da vila e dos arraiais, bem
como se ajustavam com homens livres para cometerem arrombamentos, furtos e roubos.
Supomos que o maior número de pequenos plantéis, as vizinhanças próximas e o
número de pessoas livres pobres que viviam em constante ir-e-vir entre as fazendas e as
casas das povoações facilitavam a mobilidade e conseqüentemente a integração dos
escravos no mundo dos livres e aumentavam os mecanismos de autonomia que estes
construíam lentamente.
Nas posturas não são feitas referências ao porte de arma por parte dos escravos, e
essa ausência pode ser um indício revelador das diferentes perspectivas que nortearem o
comportamento das lideranças locais. Contudo a proibição do porte de armas constava do
Código Criminal, bem como o andar sem passaporte à noite. Não foram poucos os casos de
processos contra escravos que, tendo sido encontrados em ruas e botequins, muitas vezes
144
Posturas Municipais de Montes Claros. In: Livro da Lei Mineira 1858 Tomo XXIV parte 1ª - Folha
nº 11. Arquivo Público Mineiro - Acervo Biblioteca
98
portando armas, foram abordados pelos praças do corpo policial e reagiram, causando
incidentes. Os cidadãos comuns também podiam interpelar escravos que estivessem fora de
suas casas ou em botequins, à noite e portando armas. Verificamos que existia a
preocupação das autoridades em controlar o comportamento dos habitantes do município e
manter estreita vigilância sobre os indivíduos potencialmente perigosos para a ordem
estabelecida, mas verificamos também que o espaço da lei servia para acertos de contas
entre adversários ou rivais, onde muitas vezes a autoridade policial usava da justificativa
do estrito cumprimento do dever para perseguir desafetos.
Vejamos o caso do escravo Luis Crioulo, escravo de Dona Valeria Joaquina da
Silva, denunciado por porte de armas e resistência,
“O promotor Público da Comarca abaixo assignado dá denuncia contra
Luis crioulo, escravo de D. Valeria Joaquina da Silva e contra José
Cabrinha pelo fato que passa a narrar.
O Delegado de Polícia desta cidade com o louvável fim de evitar a prática
de crimes, barulhos e algazarras que pertubão o socego publico, expediu
um mandado de fazerem-se em todas as noutes por patrulha de praças do
corpo policial aqui destacado rondas nas ruas e praças da cidade.
Em cumprimento deste mandado uma patrulha rondando a cidade na noite
do dia 24 próximo passado Dezembro, encontrou-se com os dous
denunciados a cima ditos, os quais querendo a patrulha dar-lhes busca
como suspeitos e provocadores de desordens, resistirão a essa ordem
armados ambos, e acometerão os praças fazendo lhes algumas offensas
phisicas. Luis crioulo foi preso, mas Jose Cabrinha logrou evadir-se
protegido pelo escuro da noute.”
145
Conforme os autos, no dia vinte e quatro de dezembro de 1872, o escravo Luis e seu
amigo Jose Cabrinha receberam voz de “alto” por parte dos praças da força policial local.
Segundo os policiais, Jose carregava um porrete e Luis portava uma faca e um porrete e os
dois resistiram à ordem de se sujeitarem à busca. Daí surgiu um atrito onde os quatro
policiais e os dois amigos receberam diversos ferimentos leves. Na confusão, Jose fugiu e
Luis foi preso. A partir do momento da prisão, toda uma história foi montada pelas
99
testemunhas, em sua maioria os próprios policiais envolvidos na contenda, no sentido de
demonstrar a periculosidade de Luis e faze-lo ficar detido. Em seus testemunhos, os
soldados afirmam que os dois réus resistiram e atacaram a patrulha, porém, esta versão é
refeita pelos próprios soldados, que contraditoriamente, terminam por deixar claro que a
ação agressiva partiu dos soldados e que já existia inimizade entre Luis e alguns membros
da força policial. Jose Candido de Oliveira, praça do corpo policial, aos costumes declara
ser inimigo do réu, por causa de uma prisão ocorrida anteriormente. Em outro momento é o
curador de Luis que afirma, sem que as testemunhas contestem, que os soldados já haviam
agredido o réu Luis dois dias antes.
Assim, ao longo do processo, as testemunhas vão elaborando um quadro de
resistência à ordem policial, mas é inegável que no caso houve abuso de autoridade, uma
vez que os policiais não possuíam ordem de dar busca nos réus. Mais do que isso, tendo um
dos soldados invadido a casa de uma moradora da vila para arrancar de lá o escravo asilado
desrespeitou a lei que determinava dever a força policial cercar a casa e não permitir a
entrada ou saída de ninguém até o amanhecer, momento então que poderia ser feita a
entrada na casa e a apreensão do suspeito. O promotor e o Delegado de Polícia não levaram
em consideração tais irregularidades confirmando a infração cometida pelos réus. O juiz de
Direito da Comarca, porém, no dia 30 de janeiro de 1873, despronunciou os réus, presos a
mais de um mês. Para a despronúncia, além da própria ilegalidade do ato de busca sem as
formalidades legais necessárias, provavelmente concorreu a justificativa de ausência e o
apelo da senhora do escravo Luis. No documento, Dona Valeria Joaquina diz que,
“tendo sido intimada para comparecer hoje perante V. Sa., não lhe é
possível cumprir este dever porque sendo a supp septuagenária, nestes
últimos tempos sua enfermidade se tem agravado de sorte que não pode
sair de sua caza. Mas como o senhor segundo tabellião que lhe intimou lhe
145
Processo de 26/12/1872 AFGC DPDOR.
100
declarasse que o fm do seu comparecimentos é o de fazer a supp
declarações acerca do seu escravo Luis Crioulo que perante V. Sa. está
sendo processado por crime de resistência a suppe preenche o supradito
fim offerecendo o documento junto pelo qual se evidencia que a suppe
deu liberdade condicional ao referido escravo, e affirma que ignora todas
as circunstâncias do crime que se atribue ao mesmo escravo. Outro sim,
sendo como é, tão notória a summa indigência da suppe, que
absolutamente só tem os poucos serviços desse escravo, hoje preso, a
suppe espera e requer a V. Sa. seja servido assim considerál-a no cazo de
qualquer responsabilidade que por ventura lhe possa sobrevir em
conseqüência de tal crime.”
146
A mobilidade do escravo, justificada pela senhora em função das atividades por ele
exercidas, ao mesmo tempo em que representava uma fonte de renda para Dona Valeria,
também a isentava de conhecer os passos de seu escravo. Fica claro também que ela
utilizou a condição de pobre a fim de não ser responsabilizada pelas despesas que viessem
a surgir em decorrência da prisão de seu escravo. Mas a indicação de sua pobreza e da
dependência em relação ao trabalho do Luis Crioulo, provavelmente foi mais um elemento
levado em consideração pelo Juiz de Direito.
É importante ressaltar que os interesses e as leituras das normas e leis feitos pelos
cidadãos que compunham o teatro do poder judiciário nos processos levados a cabo em
cada comarca nem sempre se pautavam pelo que estava expresso na legislação. Diferentes
perspectivas norteavam os posicionamentos dos delegados, dos juízes, promotores e
principalmente dos juizes de facto, ou seja, do corpo de jurados do tribunal do júri. É
possível, através da análise dos processos-crimes, compreender até onde estavam presentes
os interesses pessoais e qual o código de valores partilhado pelos indivíduos que atuavam
ao longo de todo o processo. Da delegacia aos tribunais do júri, passando pelas versões
construídas pelos oficiais de justiça, inspetores de quarteirão, juizes de paz e municipais,
queixosos e réus e também pelas testemunhas percebemos que havia uma distância
146
Processo de 26/12/1872 AFGC-DPDOR.
101
razoável entre o discurso normativo daqueles que deveriam ser responsáveis pela
manutenção da ordem e do sossego públicos e pela construção de uma sociedade de ordem
e estabilidade e a prática daqueles que efetivamente davam execução à lei. Assim, no
intuito de compreender as diferentes concepções de ordem, crime e justiça presentes na
sociedade montesclarense, não deixamos de considerar as contradições entre os projetos de
nação almejados pelo governo imperial, provincial e municipal e o como os indivíduos
entendiam esse projeto e se apropriavam, ou não, dele.
102
CAPÍTULO 4
Fragmentos do cotidiano em uma sociedade escravista -
Resistência, acomodação, solidariedade e conflitos como estratégias de sobrevivência
A sociedade brasileira imperial resultou da dinâmica social entre homens livres e
escravos. Nessa sociedade formou-se uma rede de relações sociais em que todos eram
afetados pelos valores e elementos do sistema escravista. Ainda que nem todos fossem
senhores ou escravos, as relações escravistas perpassavam todo o tecido social. Mas é
importante ressaltar que cada grupo social (senhores, escravos, livres pobres, forros)
possuía uma percepção e uma vivência próprias em relação à escravidão.
A escravidão não pode ser compreendida sem uma análise da violência como um
mecanismo de domínio de uma camada social sobre outra, contudo, a violência não se
restringia ao uso da força como meio de domínio. O constante confronto aberto com os
escravos não era uma política muito recomendada, uma vez que conduzia ao desgaste do
poder coercitivo e à perda de funcionalidade do sistema. Assim o controle social era
exercido através de vários mecanismos de dominação. Porém, ao mesmo tempo em que o
sistema escravista mantinha-se vivo e legítimo, engendrava meios de resistência dos
escravos, fosse pelas brechas legais das quais os escravos se apropriavam, fosse pela
oposição que se estabelecia no interior do sistema em funcionamento. Se os mecanismos de
coação e coesão utilizados pela camada senhorial procuravam garantir a acomodação dos
escravos no interior do sistema, os escravos por seu turno manipulavam muitos desses
mecanismos para resistirem à desumanização que lhe conferia a sua condição.
A utilização do sistema jurídico que amparou o estatuto escravista é um exemplo
103
das maneiras distintas pelas quais um aparelho podia ser enxergado. Apesar de não ser
considerado como pessoa ou não possuir identidade jurídica, o escravo podia ser julgado,
ou seja, quando criminoso adquiria essa identidade. Também podia, através da pessoa
jurídica de um curador, exigir a garantia de determinados direitos, que ao longo do século
XIX, cresceram em número e qualidade. A necessidade de sucessivos meios de conter os
escravos dentro de uma certa ordem e poder de resistência destes dentro do sistema
demonstram que a coisificação legal dos escravos não encontrava eco na realidade. Os
escravos souberam mover-se e resistir à escravidão mesmo dentro do sistema.
A revisão do conceito de resistência favorece o recorte dos espaços de autonomia
conquistados pelos escravos frente ao mundo dos senhores. Ao elaborarem uma ética
particular do trabalho, seus próprios valores morais, uma concepção de mundo marcado por
violências aceitáveis e intoleráveis, ao circularem entre livres, na cidade e na roça e
estabelecerem laços de amizade e solidariedade entre si, na forma de compadrios,
presenças em festas, uniões consensuais, estes escravos estabeleceram um modo muito
particular de resistência à dominação escravista. A autonomia dos escravos foi construída
nos espaços subtraídos à dominação senhorial e se essa autonomia não destruía de vez a
escravidão, sem dúvida alguma provocava rupturas na unidade e coesão do sistema.
Uma boa parte dos processos judiciais encontrados no acervo do Fórum Gonçalves
Chaves referem-se a casos em que os escravos, na condição de vítimas, fugiam e
denunciavam seus amos. Esse fato indica que os escravos tinham acesso à justiça e
procuravam recorrer a ela sempre que lhes era possível. A ação de promotores, abertos a
queixas contra senhores que se excediam nos castigos a seus cativos, ainda que não tenham
sido em grande número, provam que o Estado tentava regulamentar os laços entre senhores
e escravos.
104
Diante do número de processos judiciais encontrados e da natureza das relações que
pretendíamos estudar, buscamos então conhecer, as redes de relações que conformaram
esse universo norte-mineiro. Assim, procuramos verificar as tendências de criminalidade
cometidos contra os escravos, os lugares onde esses crimes se passaram, as pessoas
envolvidas e as relações essas pessoas que mantinham entre si, bem como procuramos
conhecer os processos cíveis de ações de liberdade, através dos quais ocorria a
contestação da condição de escravo por muitos negros e negras que se consideravam
alforriados.
4.1 Na redução à escravidão - vestígios da família escrava
Observamos que as décadas de 1840, 1860 e 1870 são as que possuem maior índice
de ações movidas por escravos (ver quadro 2 em anexo). Nestes períodos o maior número
de ações referiu-se a tentativas de manutenção ou negociação da liberdade, seguida de
perto por processos criminais contra pessoas livres que houvessem reduzido libertos negros
à escravidão. Nestes últimos, os pretensos libertos tentavam provar sua condição de livre,
reconstituindo, muitas vezes com a ajuda de vizinhos e parentes, sua trajetória de vida. Ao
mesmo tempo, tentavam provar que a pessoa que os privara da liberdade, incorria no crime
de escravização de pessoa livre, apresentando documentos comprobatórios de sua
condição. Esses processos trazem uma riqueza impar, pois permitem verificar a mobilidade
dos escravos, seu acesso aos cartórios e à Igreja e seus vínculos familiares, delineando mais
claramente as relações sociais dos cativos ou ex-cativos.
Um processos muito interessante foi movido pelo curador de Andrezza Ignácia de
Magalhães contra o Capitão Antonio Hipollito G. de Magalhães em 20 de Fevereiro de
105
1965. O Capitão Hipollito era membro da Guarda Nacional, plantador e criador, com um
plantel de mais de 15 escravos, certamente influente no Arraial de Coração de Jesus, onde
foi Juiz de Órfãos e curador de bens de vários inventariados, ainda assim, foi preso e
condenado por manter em cativeiro injusto Andreza Ignácia e suas filhas as meninas
Marcelina e Francelina,. A denúncia, dada ao Delegado de Polícia é taxativa ao afirmar que
Andreza tivera sua liberdade comprada por seu pai e que fora reconduzida ao cativeiro
indevidamente pelo Capitão Hipóllito. Na denúncia se lê:
“Gregório da Fonseca Cunha, tomando pela liberdade da miserável Andreza
Ignácia de Magalhães e suas duas filhas menores, de nome Francelina e
Marcelina, todo interesse que os membros da sociedade devem tomar
quando a humanidade opprimida geme sob o duro e rigoroso captiveiro,
vem por isso fundado na potente faculdade do Art. 73 do Cód. do Proc.
Crim. queixarçe contra Antonio Hipollito Gomes de Magalhães, pela
redução à escravidão de Andreza Ignácia de Magalhães e suas 2 filhas, a
qual nascendo em captiveiro de Valleriano José de Araújo, por alforria
comprada por seu pai Ignácio Nicolao de Barros a Donna Anna Margarida
Gomes, ou seus herdeiros obteve pleno gozo de seus direitos, dos quaes sem
subtração alguma gozou Andreza o lapso de mais de 14 annos na Fazenda
do Carmo neste Termo, com mança, pacifica e pública vida e trato comum
na sociedade, antes da época de 1859, dando a luz nesse tempo a duas
referidas filhas, q. com igual sorte escravizadas sofrem o injusto captiveiro
do reductor, sendo baptizadas por livres em 1858 e 1860, o que se prova
pelo documento junto. (...) Foi sem dúvida o inventário de seo escravizador
Antonio Hipollito Gomes de Magalhães, como radiante constelação, que
determinou em Dezembro de 1864, no solo da America brasileira, mais
uma, ou algumas, victimas que as rocas vozes dos grilhões do captiveiro
retinindo suplantavão os clamores dos miseráveis nas ribeiras do Valle ou
soberbo Rio das Velhas.
147
Ao longo dos depoimentos, as testemunhas vão deixando claro que o Capitão
Hipóllito não respeitou os desejos de sua mãe que fora a responsável pela manumissão de
Andreza. Em verdade, a alforria foi comprada pelo pai de Andreza e a moeda com que se
pagou foi parte do feitio de uma casa de vivenda construída na Fazenda do Carmo.
Uma das testemunhas, o forro Themoteo Ferreira Guimarães, nascido na Vila de
147
Processo de 20/02/1865. AFGC-DPDOR
106
Guaicuhy, vaqueiro, declara que Andreza se manteve como forra por quatorze anos após a
morte de Dona Anna Margarida Gomes, agenciando sua vida em plena liberdade, também
que tivera suas duas filhas em liberdade, contribuindo para comprovar essa condição os
registros de batismo das meninas. O Capitão Hipollito declara que Themoteo é o pai de
Marcelina e Francelina, e que portanto tem interesse na liberdade de Andreza e das filhas,
mas isto não fica comprovado nos autos. Se, de fato, Themoteo é o pai das meninas,
provavelmente não era casado com Andreza, mas mantinha laços com a mesma, a ponto de
por ela interceder. Essa possibilidade de formação de famílias onde a presença do pai não
parece ser permanente, mas que se faz presente nos momentos de crise fornece uma pista
para pensar acerca da família cativa no Norte de Minas. Segundo Tarcísio Rodrigues
Botelho a ocorrência de processos de reprodução natural entre os escravos permitiu, por um
lado, a manutenção e até expansão dos plantéis, e, por outro, contribuiu para a existência da
família cativa. Porém, o autor salienta que os casamentos legalmente constituídos não
tiveram um índice muito elevado no Termo de Montes Claros. Conforme salienta Botelho,
“o predomínio de uniões consensuais entre os cativos parece ter sido uma
constante em todo o século XIX. As crianças ilegítimas entre aquelas
batizadas na paróquia de Montes Claros sempre representaram mais de
80% do total quando comparamos dados, seja para a década de 1810, 1840
ou 1870. Portanto só podemos perceber a família escrava em Montes
Claros caso nos desliguemos da preocupação com o casamento formal.”
148
Assim, consideramos a existência de famílias matrifocais, onde a figura da mãe
representava um ponto de ligação entre as gerações. Mas contestamos a idéia de ausência
do pai, neste exemplo vemos claramente a interferência de dois homens (o pai e o
companheiro) acompanhando e interferindo nas questões mais importantes da vida dessas
mulheres. Se apenas os casamentos legalmente sancionados eram considerados pela justiça,
as evidências embora esparsas, dão prova de vários outros meios de estabelecimento de
107
famílias cativas. Nos processos criminais ou cíveis são constantes as aparições de
familiares buscando a manutenção da liberdade de seus parentes.
Esse processo também permite mapear um pouco mais as práticas produtivas
comuns na região. O aluguel de pessoas aparece como mais uma atividade econômica
entre as diversas que já foram salientadas. Entre os trabalhos executados por Andreza, em
sua condição de forra, encontra-se a atividade de alugar-se como ama de leite e as tarefas
do serviço doméstico, tarefas que garantiriam a sua subsistência, tanto quanto a de suas
duas filhas. José Cabrinha, em processo já referido, também declara no auto de
qualificação, ao ser inquirido sobre sua profissão ou modo de vida que vivia de viajar-
alugado.
149
O pai de Andreza, escravo de Anna Margarida, era constantemente alugado
como Oficial de Carpinteiro, tendo sido inclusive a alforria da Andreza adquirida como
pagamento de uma construção. A informação do costume de alugar escravos é reiterada
inclusive pelo réu: “Disse mais elle réo que he verdade que o finado Capitão João Manoel
precizando de hum Oficial de Carpinteiro obteve da senhora do dito Escravo Ignácio
Nicolau de Barros allugar com elle João Manoel o mesmo escravo pagando-lhe
diariamente seu jornal.”
150
Na página 42 dos autos, a testemunha João Francisco da Motta declara
“que andava elle testemunha em giro de desobriga, da casa de seo
compadre Antonio Gomes Pereira, acompanhado do mesmo, seguio para a
Fazenda do Carmo, logar da residência de Dona Umiliana Angélica Gomes,
em cuja caza administrou o pasto espiritual, e mais sacramentos exigidos
pelos seos fregueses, e sendo a primeira vez que neste logar tinha hido e
admirando-se da Benfeitoria, disse a elle testemunha o dito Antonio Gomes
Pereira , ter sido feita por Ignácio de tal, e que della nada recebera por ter
sido aplicado o seo trabalho ou valor a troco da liberdade de huma filha do
mesmo por nome Andreza, a qual pouco depois mostrarão a elle testemunha
e que ali era moradora.”
151
148
BOTELHO, T. R. op. cit. p. 143
149
Processo de 26/12/1872. AFGC-DPDOR
150
Processo de 20/02/1865. AFGC-DPDOR
151
Processo de 20/02/1865. AFGC-DPDOR
108
O testemunho do Padre que fizera os batizados das filhas de Andreza é muito
importante como elemento comprobatório da denúncia de redução ao cativeiro.
Indubitavelmente, sem ele seria mais complicado para Andreza provar seu direito,
principalmente porque todos os envolvidos em sua alforria já se encontravam mortos. A
decisão do Juiz de Direito, manifesta no dia 19 de Março de 1965, em face dos
testemunhos foi a de declarar procedente a queixa de Gregório e garantir a liberdade de
Andreza e de suas filhas. Um tento a mais para aqueles que sabiam o quão difícil era
provar, apenas com testemunhos e sem as cartas, o seu direito à liberdade.
Um outro aspecto do cotidiano escravista na região aparece na denúncia que é feita
contra o Capitão Hipollito, o Vigário collado João Francisco da Motta declara que um certo
Joaquim de Souza Freitas teria se consorciado com o Capitão Hipollito para reduzir
quatorze pessoas à condição de escravos “para sofrerem o golpe mercantil em suas vidas”.
Estas pessoas escravizadas seriam levadas para Sabará e certamente vendidas. Segundo o
Vigário o fato foi impedido pela interferência da comunidade e do dito Vigário e pela fuga
dos prisioneiros, que já se haviam evadido para o Distrito de Pirapora. O Capitão nega
veementemente esta denúncia, porém de todos os testemunhos é reiterado que Hipollito era
uzeiro em reduzir livres ao cativeiro.
Entre 1842 e 1885 encontramos inúmeros cativos tentando provar que tem direito à
manumissão, seja própria, seja de entes queridos. No caso de Luzia e de seus filhos
Maurício e Raimundo
152
, da Fazenda Mucambinho, a justiça dá ganho de causa ao seu
senhor Joaquim de Medeiros Lima, mesmo possuindo a escrava uma carta de alforria
passada pelo pai de Joaquim Medeiros. Neste caso, a carta de alforria fora escrita e
152
Processo de 04/08/1853. AFGC-DPDOR
109
registrada em Cartório da Villa de Montes Claros de Formigas em 27 de Agosto de 1836,
mas a partilha dos bens da família, segundo os dados apresentados, havia sido feita a 20 de
Março de 1824, portanto a escrava não mais pertencia a Guilherme de Medeiros Lima para
que este pudesse forrá-la. Ainda assim a ação tramita durante dois anos, com apresentação
de muitas testemunhas que fazem a balança pender, ora em benefício dos libertandos, ora
em benefício do senhor, até que o alferes José Fernandes pronuncie a sentença final. Os
escravos interferiam até onde era possível para decidir os aspectos mais significativos de
suas vidas.
Em 26 de Setembro de 1842, é a vez do pai de Anna dos Santos Pereira reivindicar
a liberdade da mesma e de seu irmão Telmo, bem como da neta, filha de Anna, que teriam
sido dadas por Ignácio Francisco de Oliveira. A ação legal, movida por Jerônimo Pereira da
Silva, é vencida pelo queixoso e as liberdades de sua filha e filho e neta são asseguradas.
Novamente a família e principalmente, a figura paterna, aparece como um componente de
sustentação e segurança, garantindo a unidade na vida social desses ex-cativos.
No caso de Simplícia
153
, é seu irmão,Thomas Antonio Nogueira, já forro, que por ela
intercede. Segundo a denúncia dada por Thomas, contra Martinniano Gonçalves Ribas, em
1849, Dona Rosa Maria da Conceição forrou a escrava Simplícia com a condição que a
mesma servisse durante dois anos ao referido Martinniano. No mesmo ano Dona Rosa
morreu. Martinniano, depois de se servir por algum tempo dos serviços da cativa, passou a
negociar os serviços dela e os cedeu a João Muniz das Neves, dos quais este lhe passou
uma obrigação. Depois desse trato e já estando a escrava e sua filha no serviço de João, o
denunciado mandou por Francisco de Oliveira buscar a referida escrava dizendo-lhe que
lhe daria dinheiro em prata para resgate de sua liberdade e da filha. Tendo sido levada para
153
Processo de 03/01/1853 AFGC-DPDOR
110
a casa de João, lá chegou o Martinniano, ao qual a escrava pediu então a sua carta de
liberdade. Neste momento Martinniano disse a mesma escrava que não lhe entregaria a
carta e que, por ser Simplicia sua escrava, a podia vender livremente. Ajudado por
Francisco de Oliveira, foi Martinniano vender a ambas em outra parte da Comarca do Rio
São Francisco, distante da Freguesia de Contendas, onde viviam os envolvidos na questão.
O subdelegado de Contendas acolhe a denúncia e manda intimar as pessoas para
testemunharem do que soubessem sobre o caso, a fim de formar a culpa dos denunciados.
João Muniz, primeira testemunha, confirma toda a denúncia e acrescenta que Martinniano e
Francisco, além de levarem a escrava para um lugar ignorado, onde provavelmente a
venderam, voltaram para Contendas e passaram a vender todos os bens possuídos,
demonstrando a intenção de saírem do povoado. As demais testemunhas são unânimes em
declarar que viram Martinniano na estrada, em seu cavalo, trazendo a menina Maria em
seus braços e estando Simplicia na garupa. Também atestam que viram Francisco em outro
cavalo, conduzindo os alforges e as malas. Outrossim, confirmam que passados
aproximadamente vinte dias os réus voltaram à freguesia e prepararam-se para deixar o
lugar. O processo, tendo sido iniciado em janeiro de 1853, foi considerado procedente em
junho do mesmo ano. Curiosamente, somente em março de 1855 o promotor público
apresenta o libelo crime contra os réus, acusados de alienarem uma pessoa livre e outra
coartada e portanto incursos nos artigos 179 e 264 do código Criminal, pedindo a
condenação dos réus no grau máximo. Não sabemos como o caso se encerrou, pois ao
processo faltam as últimas folhas, mas queremos ressaltar que no caso em questão, se
apresentam algumas características que vão se tornando comuns nos relatos que envolvem
escravos. Em primeiro lugar, a formação de laços familiares, mesmo quando os parentes
não vivem juntos, Thomas é o parente que se encontra próximo e busca todos os recursos
111
da lei para reaver a liberdade da irmã e da sobrinha. Outro aspecto importante, que fica
claro na fala das testemunhas, é a existência de contatos próximos entre os vizinhos, que se
conhecem e acompanham a vida uns dos outros, dando guarida aos viajantes ou
informando quem se encontra ou não se encontra na região. Dessa proximidade, em muitas
ocasiões, resultariam situações de violência e crimes, mas nesse caso, é esse
conhecimento da vizinhança que permite a Thomas estabelecer os passos dos raptores de
seus parentes. Também a disposição de homens livres pobres ou remediados em depor em
favor de uma pretensa liberta, provavelmente a pedido do irmão, nos informa da rede de
solidariedade que se estabelece entre os moradores da região, envolvendo livres e cativos.
Se nas relações de vizinhança cotidianamente podiam irromper conflitos e desavenças, é
também através desses laços que se consegue ajuda e apoio diante das dificuldades da vida
e das irregularidades e desmandos de senhores.
Outra evidência da importância da família na construção da estabilidade e coesão da
vida social de escravos se encontra no processo de Ação de Liberdade movido pelo cativo
Manoel Hippolito, em seu favor e de suas irmãs e sobrinho, Vicência, Luiza e João. Em 13
de Maio de 1859, Manoel entra com um pedido de depósito para si e seus parentes, tendo
em vista a apelação que fará da decisão da justiça, por esta ter-lhes negado a liberdade.
Nesta petição está expressa a preocupação de Manoel com a segurança de seus parentes.
Dizia ele que
“tendo o suplicante bem direito a ver declarado livre com seus irmãos e
sobrinhos, pretende proclamar novamente a sua e a liberdade de delles, visto
como he açção imprescreptível, e para esse fim requer que V. Sa. mande-os
novamente depositar, nomeie-lhes com juramento hum tutor e curador, com
tanta mais urgência quanto sendo o Suplicante e seus ditos irmãos e
sobrinhos anteriormente ao julgamento ao recurso que intentarão vendidos
a Luis Jose Afonso se acham em perigo de serem, ou levados por elle para
municípios differentes, onde lhes será impossível fazerem valer o seu direito
ou novamente vendidos a quem os conduza para Províncias remotas, e ahi
em pezado trabalho, longe de quem lhes preste o auxílio da ley, soffrerão
112
perpétuo captiveiro.”
154
O Capitão Antônio Agostinho Velloso, segundo substituto do Juiz Municipal de
Órfãos da Cidade de Montes Claros expede ordem para que o depósito de Manoel e seus
parentes seja feito. Apesar de não ser possível conhecer o desfecho final do caso, fica
evidente a preocupação com a manutenção da união familiar, bem como da condição de
livre, interesses que conduzem a ação de Manoel. No caso de Montes Claros, em quase
todos os processos ou recursos para conquista ou manutenção da liberdade, a família
aparece como elemento importante e facilitador da ação.
4.2. Escravos e livres em conflito - motivações, ajustes e sanções
As tentativas de homicídio e os homicídios consumados são expressivos entre os
cativos (ver quadros 2 e 3 em anexo). A análise dos autos referentes a esses crimes
evidencia que a violência surgia muitas vezes, de situações corrique iras do dia-a-dia. Este
foi o caso por exemplo do homicídio perpetrado em Francisco Pardo, carreiro, por seu
cunhado, compadre e também escravo Martinianno, em 08 de julho de 1848. Martinniano
nascera e vivera sempre na Fazenda do Sítio, na Villa de Montes Claros de Formigas, era
casado e tinha filhos. Foi justamente pelo incômodo de ver Francisco castigando o seu
filho que servia a vítima como guia do carro de bois dele que Martinniano atacou
Francisco, desferindo-lhe facadas e provocando-lhe a morte.
Este caso nos permite jogar ainda um pouco mais de luz sobre a questão da família
escrava e sobre a importância dos laços de parentesco artificial que os escravos criavam.
154
Processo de 13/05/1859. AFGC-DPDOR
113
Nos autos fica claro que Martinniano, cuja idade era de 60 anos, pertence a uma família
que se constituiu na Fazenda, sua mãe era também escrava do Guarda Mor Gonçallo
Cristóvão Pereira, sua mulher e filhos viviam com ele e o escravo assassinado era seu
cunhado e compadre. A existência dessa família só ajuda a desconstruir a crença de que a
promiscuidade e a exploração sexual teriam destruído a família escrava. Historiadores têm
demonstrado que a família foi, muitas vezes, a base da organização social entre os cativos e
o caso de Martinniano ilustra essa tese.
Assim, não apenas temos um exemplo de família formada por avós, pais e filhos,
vivendo juntos, mas também laços de compadrio que estreitam as relações do grupo.
Martinniano julga-se infortunado por ter perpetrado o crime contra seu cunhado, ou seja,
prezava os laços que os unia. Os laços sociais geralmente significavam um amparo na vida
dos cativos. O batismo e compadrio sempre foram utilizados como mecanismos de criação
de parentesco fictício, porém entre os escravos as escolhas dos padrinhos variaram de
região para região. Em Montes Claros, os escravos padrinhos não representavam a maioria
dos escolhidos. Segundo os dados levantados por Tarcísio Rodrigues Botelho
155
, em sua
dissertação de mestrado, a opção geralmente era por padrinhos livres, mas mesmo assim,
houve uma tendência ao longo do século, de aumento da participação de escravos. No caso
de Martinniano, certamente o parentesco colateral e a amizade reforçaram o motivo da
escolha do padrinho do filho. Comumente o batismo era utilizado tanto por homens pobres
livres, quanto pelos escravos, como um mecanismo de construção de relações sociais mais
sólidas.
Como atestam os estudos de Maria Sílvia de Carvalho Franco, muitas vezes a
violência ou o conflito emergia cotidianamente, entre pessoas que se prezavam e não
155
BOTELHO, T. R. op. cit. p. 174
114
possuíam inimizade. Nesse caso a contenda teve início pela defesa dos interesses do filho
de Martinniano, que não aceitou a covardia presente no ato de seu compadre. Porém, a
agressão surgiu e atingiu dimensões que a princípio pareceriam improváveis. Ao que
parece, os contendores se moveram pela necessidade de provarem mutuamente a
capacidade de enfrentamento. Os envolvidos no processo, sejam testemunhas ou o próprio
réu, são unânimes em afirmar que não havia motivo para um desfecho tão trágico.
Ouçamos a voz de Martinniano, ainda que filtrada pela pena do escrivão:
“respondeu o réo que por huma desgraça hera elle o asassino porque nunca
teve tal tenção de asassinar seu próprio cunhado e compadre e só por hum
desaçossego podia acontecer tal morte porque tendo o asassinado feito
tenção de espancar a elle réo o foi provocar na rossa onde chegou com o
carro de conduzir feijan, primeiramente espancando hum filho delle réo e
depois agarando-se com elle e lutando.”
156
Boris Fausto, em sua obra Crime e Cotidiano, atenta para a importância da análise
do tema ou motivo do ato homicida como um indicativo das normas sociais de
comportamento vigentes, das expectativas de conduta que permitem considerar um crime
como justificado ou como torpe.
157
Ao bater no menino com o relho de bater no gado,
Francisco ofendera seu compadre e despertara seu instinto paterno o que culminou no
homicídio.
158
Essa violência, que irrompera de problemas cotidianos, demonstra que a
ofensa aos membros da família era uma situação intolerável e o castigo injusto constituía-se
em um motivo para uma reação súbita. É interessante perceber que o réu declara não ter
tido intenção de assassinar seu compadre e o conflito, inicialmente uma briga, ganha uma
dimensão maior e resulta em um desfecho fatal. Depois do ocorrido é comum que as
testemunhas digam que não existia inimizade entre os contendores, e por mais que este
possa ser um mecanismo de proteção ao criminoso, excluindo-se a possibilidade da
156
Processo de 29/07/1848. AFGC-DPDOR
157
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. p. 103
115
premeditação do crime como agravante, parece-nos provável que a violência “explodia”
pelo costume de se usar a força, sem que para isso concorresse uma forte e arraigada
motivação.
A inimizade provocada por palavras consideradas ofensivas ou injuriosas podia
gerar também situações de atrito, que vinham à tona em momentos de lazer ou de distração.
O costume, reiterado em muitos processos, de se reunirem os homens para comprar e beber
cachaça ao fim do dia, em casas de residência ou em vendas, podia propiciar encontros que
reacendiam querelas antigas. Antagonismos antigos, não resolvidos através dos
mecanismos coercitivos comuns como o temor da ação da justiça ou da prisão, reavivam-
se se transformando em conflito depois que os homens bebiam. Nesses momentos a
valentia, a força e o destemor afirmavam-se e eram estimulados pela presença de pessoas
que consideravam esses atributos altamente valiosos e provavelmente concordavam com os
acertos de contas pessoais.
Nessas reuniões muitas vezes se encontravam escravos, homens livres e libertos. A
facilidade de movimentação espacial dos escravos permitia-lhes estabelecer vários laços de
amizade e de solidariedade, mas também de antagonismos e antipatias que geralmente
tinham que ser resolvidos pelos próprios cativos. No decurso desse estudo verificamos que
as relações de sociabilidade cativas resultaram do alto grau de circulação dos escravos em
vendas, casas, ruas, estradas, entre outros lugares, onde se encontravam geralmente por sua
conta e se envolviam nas mais diversas situações. O caso do assassinato do escravo
Francisco, em 1883, retrata bem essa assertiva, tanto no que se refere à sociabilidade
quanto na mobilidade. O escravo Francisco, de propriedade de João Nepomucemo
Bernardino de Barros envolveu-se em uma briga com Amâncio Moreira, em decorrência da
158
Processo de 29/07/1848. AFGC-DPDOR.
116
qual foi assassinado.
É o promotor público da Comarca que diz:
“em cumprimento do dever que pela lei lhe é facultado vem denunciar a
Amâncio Moreira, residente no distrito de Contendas, deste termo, pelo
facto criminoso que passa a expor. No dia 29 de julho findo no lugar
denominado Tiririca e a poucos passos distante da casa de Faustino Lopes,
onde estavam reunidas muitas pessoas, e entre estas Francisco, escravo de
João Nepomucemo Bernardino de Barros, e o denunciado referido,
aconteceo que, depois de retiradas as pessoas que na casa alludida havia,
apparecesse huma altercação e em seguida um barulho entre o mesmo
denunciado e Francisco, e isto alguns passos distante da casa, cujo
barulho deo em resultado sahir este mortalmente offendido por aquelle
com huma facada que, dada pouco abaixo do peito direito produziu-lhe a
morte instantaneamente. O motivo que levou o denunciado a perpetrar este
crime foi a inimizade que votava a Francisco, a quem, como asseverão as
testemunhas do inquérito, havia muito antes e publicamente por veses
promettido matar.”
159
À medida que as testemunhas foram depondo o crime ganhou contornos mais
nítidos. Segundo Cassiano Rodrigues,
“no dia 29 de julho estando em casa de Faustino Lopes Pereira, quando
ouvio uma altercação no caminho a poca distância da caza e elle
testemunha correndo para o dito logar encontrou o referido escravo
[Francisco] offendido e no mesmo momento morrera; perguntado mais se
sabia quem havia cido o autor da morte, respondeo que, havendo no dito
logar mais pessoas, e elle testemunha perguntando quem havia assassinado
o referido escravo, várias pessoas lhe disserão que havia cido Amâncio
Moreira.”
160
Em seu depoimento Manuel Pereira Rosa continuou a esclarecer os fatos,
“perguntado mais se não sabia se havia entre o morto e o dito Amâncio
intrigas, respondeu que sabia haver, por Amâncio dizer publicamente que
ainda havia de matar o referido Francisco.(...) Perguntado mais se as
demais pessoas no logar estavam armadas, respondeo que todas as pessoas
estavam armadas de porretes e que Amâncio trazia uma faca.”
Outro dos presentes, Pedro Pereira, esclareceu que o conflito não tivera início com a
159
Processo de 31/07/1883. AFGC-DPDOR.
160
Processo 31/07/1883. AFGC-DPDOR
117
altercação de Amâncio e Francisco, mas sim com uma dúvida travada entre Manuel
Antônio Fonseca e Josephino de Tal. Afirmou que o réu se aproveitara de uma situação de
tumulto para vingar-se do escravo.
Essa versão foi confirmada pelo dono da casa, Faustino Lopes, que acrescentou
novos detalhes à cena,
“Respondeo que a vinte e nove de julho passado no logar Tiririca morada
delle depoente acha vão-se reunidos comprando-lhe e bebendo cachaça
Amâncio Moreira, Josephino de Tal, Manoel Pereira e outros entre os
quais apareceu uma discução durante a qual chegou algum dos presentes a
munir-se de faca desembainhada conseguindo porém elle depoente a
dissuadí-lo de brigar e haver qualquer catástrophe; entre os presentes que
achavão-se em desharmonia achava-se também Francisco escravo de João
Nepomucemo, que dispersado o grupo, queixava-se à mulher delle
depoente de estar alli sozinho e sem proteção, em vista do que ella
aconselhou-lhe que se retirasse , afim de que não lhe acontecesse alguma
coisa, visto como em mês, mais ou menos, antes do dia em que se deu o
facto, Amâncio Moreira quase desfechara um tiro em Francisco na própria
cozinha delle depoente ao que obstou a intervenção em tempo da mulher
delle depoente e isto devido a uma pequena duvida que entre elles houve
proveniente de dizer um que tinha dinheiro isto é, Amâncio e Francisco
affirmar o contrário. Logo depois espalhando pouco a pouco as diversas
pessoas que em sua casa se achavão, elle depoente quase entrando no val
da porteira da onça que confronta com sua caza, ouvio grande altercação
entre as referidas pessoas e correndo para o logar onde se achava o grupo
de pessoas e conhecendo ser barulho entrou no meio com o fim de fazer
desaparecer o barulho quando inesperadamente recebera uma pancada
sobre a cabessa e cahiu desacordado.(...) pouco depois de acordado, tendo
elle depoente perguntado a sua mulher o que tinha havido, contou-lhe sua
mulher que Amâncio Moreira, mostrando a faca ensangüentada, a ella e a
outros presentes, jactava-se dizendo que ‘alforriara Francisco como
sempre lhe prometera.’(...) Reperguntado se Francisco era desordeiro e se
tinha entre as pessoas que presente estavão, excepto o denunciado, alguma
inimizade donde podesse receber a offença da qual perecera? Respondeu
que pelo pleno conhecimento que tinha de Francisco, sabe não ser
desordeiro e antes tratar bem as pessoas, assim como sabe que a excepção
do denunciado que alli estava, nenhuma outra das pessoas presentes lhe
tinha inimizade ou desaffeição.(...)Reperguntado se conhece o denunciado
e se é homem pacífico ou desordeiro. Respondeu que o conhece desde
criança, que nunca o vira praticando crime, mas sabe por ouvir dizer e ser
público no logar ser o mesmo denunciado homem que tem por costume
promover desordens.”
De acordo com o depoimento das testemunhas, a inimizade entre o Francisco e
118
Amâncio, devia-se tanto ao caráter violento do segundo, homem provocador e agressivo,
quanto à reação do escravo diante das provocações. Ainda que fosse considerado por todos
como pacífico e respeitador, o escravo, segundo o depoimento de Faustino, ao ser
ameaçado por Amâncio [que o pretendia amarrar], sacou de uma faca que trazia, impedindo
que o denunciado fizesse o que prometera. A nosso ver, apesar de posteriormente declarar-
se amedrontado pelo fato de estar sozinho, no momento da refrega o escravo reage como
um indivíduo qualquer que se sente ameaçado e usa das armas para se defender. Também
fica claro que neste crime não existiu premeditação e a eclosão da violência se deu
inesperadamente, num impulso agressivo próprio de uma sociedade onde o uso da força era
muito difundido.
O código de valores que informa seu comportamento é o mesmo que privilegia a
coragem e a ousadia do homem livre. A tensão presente no desafio feito toma conta do
ambiente e exige do escravo uma reação que vem com destemor e ousadia, Francisco saca
de uma faca que a princípio sequer poderia estar portando. Aqui temos exemplos de
comportamentos violentos que não respeitam as regras formais ditadas pela lei. Nesse caso,
o que a norma jurídica esperaria de Amâncio? Que o mesmo se dirigisse ao senhor do
escravo e dele desse queixa. Contudo, esses homens do sertão não parecem fazer caso da
regra e o assassinato ocorrido denota que os limites impostos pela lei, na prática nem
sempre eram obedecidos.
Ao pensarmos no local em que se encontrava o escravo, ou seja, fora de sua
residência, à noitinha, podemos salientar mais uma característica dessa estrutura escravista
das zonas rurais de posses marcadamente pequenas, ou seja a mobilidade espacial dos
cativos. Francisco freqüentava não apenas a casa de Faustino, onde lhe tinham amizade,
mas também, segundo depoimentos, outras casas da redondeza, inclusive a casa da sogra
119
de Amâncio. Fora da casa de seus senhores, geralmente, os escravos criavam laços de
sociabilidade, participavam de contendas, resolviam por seus próprios meios as questões
nas quais porventura entrassem, usando de sua autonomia e discernimento. As andanças
dos escravos não eram completamente controladas pelos senhores e essa mobilidade talvez
fosse proveniente dessa modalidade muito peculiar de escravidão, onde predominavam
pequenas posses e proximidade de contato com homens e mulheres livres que muitas vezes
dividiam o trabalho com os cativos. Dessa proximidade surgiam laços que se estreitavam
tornando possível a circulação dos escravos entre livres. Aos domingos, dia livre para os
escravos, estes podiam se dirigir a casa de seus amigos, beber, dançar e se divertir e nesses
momentos, nem sempre os senhores sabiam onde estavam e o que faziam suas “posses”. O
assassinato de Francisco decorreu de uma situação que se forjou a partir de laços sociais
construídos por ele. Das sociabilidades podiam resultar brigas, mas morrer em uma briga
de homens era uma forma decente de se morrer nessa sociedade violenta, ainda que
certamente não fosse o final desejado por esse cativo.
A liberdade de movimentação dos escravos fora de seus locais de residência e de
momentos de trabalho construía-se cotidianamente. As festas foram ocasiões muito
propícias para a construção de amizades e para encontro das famílias, mas conforme já
salientamos, nessas reuniões, soíam ocorrer incidentes que envolviam livres e cativos,
pequenas altercações que rapidamente se transformavam em distúrbios e confusões,
geralmente deixando vítimas. Em 1884, no distrito de Cana Brava, Distrito de Brejo das
Almas,Termo de Montes Claros, em casa de Anna Pereira Lima, durante uma festa em que
parentes livres e cativos se divertiam, Francisco José Martins, vulgo Nevoeiro, pardo livre,
agride seu sobrinho Paulo, escravo de Francisco José Alves, com uma facada. Desse crime
resultou a prisão de Francisco Nevoeiro e para o escravo Paulo um período de inabilitação
120
para o serviço. Segundo a denúncia feita pela promotoria, estavam reunidos Francisco
Nevoeiro, Paulo e várias outras pessoas bebendo aguardente em casa de Anna, Paulo e
Francisco saíram para o terreiro da casa e nesse momento surgiu uma dúvida entre eles. As
pessoas presentes intervieram e os contendores se retiraram. A alguns passos da casa
continuaram a disputa e ouvindo vozes de briga os presentes na festa correram para fora
encontrando o escravo já esfaqueado nas virilhas e o Francisco, numa atitude de bazófia,
declarando “ter empurrado o negro co’a faca.”
161
No exame de corpo de delito, os peritos
informaram que o ferimento era mortal, que produzia um grave incomodo de saúde,
inabilidade para o serviço por mais de trinta dias e que o valor do dano causado era da
ordem de 500.000$000 (quinhentos mil réis). No dia 12 de abril de 1884, estando o réu
preso e encontrando o Subdelegado no inquérito motivo de queixa envia os autos para o
promotor da Comarca, para dar prosseguimento ao processo. Nesse processo podemos
verificar as dificuldades em fazer andar a máquina judiciária, os oficiais de justiça se
recusam por dois meses a notificarem as testemunhas, declarando acúmulo de serviço e
falta de tempo para se dirigirem ao Brejo das Almas, somente depois que o Juiz Municipal
ameaça de punição aos responsáveis é que as testemunhas são chamadas. De acordo com o
depoimento de Manoel Rodrigues da Cruz, o crime fora mesmo cometido por Francisco
Nevoeiro, o depoente acrescenta que tanto o ferido quanto o ofensor eram muito
conhecidos dele e que nunca deixaram de merecer os qualitativos de prudentes e bons, cada
um na sua condição. Dando-se a palavra ao réu para contestar a testemunha este não o fez,
declarando que se encontrava em tal estado de embriaguês no dia do crime que não se
recordava de ter sido preso e muito menos de ter esfaqueado a Paulo.
A testemunha seguinte, informante, é Anacleto Alves Ferreira, que não pode jurar
161
Processo de 10/06/1884. AFGC-DPDOR
121
no caso em questão por ser parente do réu em razão de ser casado com uma sobrinha deste
e do paciente por ser casado com uma prima carnal deste. Declara que não estava presente
quando ocorreu o conflito, por ter se retirado antes, justamente temendo uma cena
desagradável, já que costumeiramente quando Francisco Nevoeiro bebia aguardente ocorria
de “ficar esquentado.”
Antonio Pereira Lima, outra testemunha, declara ser parente em grau remoto tanto
do réu quanto do paciente e reforça a versão de que todos os presentes em casa de Anna se
encontravam em “divertimento e bebendo aguardente.” Em seu depoimento diz que viu o
denunciado no terreiro envolvido no barulho com a faca nua e empunhada em uma das
mãos e a garrucha em outra e que dirigindo-se ao mesmo por meios brandos e palavras
persuasivas procurou retira-lo dali, no que não foi atendido pelo réu, por este estar exaltado
por bebidas alcoólicas das quais estava tomado.
162
Contudo duas outras testemunhas,
ambas parentes dos envolvidos no conflito, contradizem essa ultima afirmativa dizendo que
o réu não estava embriagado, mas somente exaltado por bebidas espirituosas. Estas
informam ainda que Paulo também encontrava-se “alegre por haver tomado um pouco de
espírito.”
Anna Pereira Lima, com 22 anos de idade, solteira, costureira, que recebera os
amigos em sua casa “para uma brincadeira de marujada” ao ver o denunciado perseguindo
a vítima, gritou a seus irmãos pedindo-lhes que
“não deixassem Francisco José Martins matar a escravo alheio.(...) Disse mais que
Paulo esteve doente desse ferimento por mais de trinta dias e sem poder prestar serviços a
seu senhor e agora mesmo [30/071884] ainda se queixa de sofrimentos provenientes da
ferida feita por Francisco.(...) e que por ouvir dizer sabe ser o réo barulhento, mas não sabe
162
Processo de 10/06/1884. AFGC-DPDOR
122
nem consta à testemunha haver inimizade entre o denunciado e o paciente.”
163
No dia 26 de agosto de 1844, o juiz municipal expediu ordem para que fosse
conduzida, debaixo de vara, a 5ª testemunha (faltosa) José Pereira dos Santos, visto ter
sido intimada e não ter comparecido sem alegar motivo algum para sua falta. Entre a
desobediência da testemunha e a omissão do oficial de justiça em cumprir a ordem, os dias
se passavam e o réu continuava aguardando preso. Aos 30 dias de fevereiro de 1845, José
Pereira finalmente depõe, nenhuma novidade acrescentando aos autos.
As testemunhas foram unânimes em asseverar que não existia inimizade entre Paulo
e Francisco, que Paulo sempre fora bom, obediente e pacífico e Francisco, apesar de
esquentado, não tinha inimizades e não provocava desordens, senão quando bebia, os
depoimentos ressaltam também o fato de que, no dia em questão, parentes e amigos
estarem reunidos. O crime ocorrera em um momento de festa, em um dia próximo da
semana santa e todos, inclusive Paulo, já haviam ingerido bebidas alcoólicas. Maria Sílvia
de Carvalho Franco observou que as reuniões ou festas, entre os grupos de homens livres e
pobres, por um lado promoviam o estreitamento dos laços de solidariedade, mas por outro
propiciavam a deflagração de porfias, atualizando e liberando tensões que comprometiam a
estabilidade e continuidade das relações entre membros do grupo.
164
O local da festa,
principalmente na zona rural, representa um espaço para se afirmar a supremacia e realizar
façanhas onde a força e o destemor, bem como a intolerância diante de provocações são
valores aceitos por todos, ou, pelo menos, pela maior parte das pessoas. O ocorrido entre
Paulo e Francisco, pessoas que não eram inimigas e que estavam tomadas por bebidas,
provavelmente foi fruto de uma palavra áspera ou uma brincadeira de mau tom, que
rapidamente derivou para a desavença e para o confronto aberto. Mesmo com a tentativa de
163
Processo de 19/04/1884 AFGC-DPDOR.
123
alguns dos presentes em conter o litígio, o uso de bebidas e o costume de reações violentas
predispuseram os contendores a afirmar-se pelo uso da força, já legitimada pela
coletividade como um mecanismo de solução de disputas. A aceitação do comportamento
esquentado de Francisco indica essa legitimação.
Contudo entre a legitimação da comunidade, com ou sem ressalvas, e o
posicionamento dos responsáveis pela manutenção da ordem e da justiça, aparecem as
diferenças informadas pelos mecanismos de justiça que tentam controlar as pessoas. O
promotor público pronuncia o denunciado como incurso nos artigos 193 e 34 do Código
Criminal, por tentativa de homicídio, com a qual concorda o Juiz Municipal e recomenda a
permanência de “Nevoeiro” na prisão. O réu recorre imediatamente ao Juiz de Direito da
Comarca, que indefere o recurso e sustenta a pronúncia. Quando porém o tribunal do Júri
se reúne para julgar de fato o crime em questão fica evidente a distância entre o que está
determinado pelo código jurídico e o comportamento aceito e sancionado pela comunidade
como iníquo ou reto. Os quesitos apresentados aos doze jurados foram respondidos do
seguinte modo:
“Ao primeiro, Sim, por nove votos. O réo Francisco José Martins, na noite
de nove de abril de mil oitocentos e oitenta e quatro, próximo passado, (...)
fêz na pessoa de Paulo o ferimento constante do auto de corpo de delicto.
Ao segundo, Sim, por nove votos. O réo assim praticando pretendeu matar
o paciente Paulo. Ao terceiro, Sim, por seis votos, este ferimento produziu
no paciente grave incômodo de saúde. Não, por seis votos, este ferimento
não produziu no paciente grave incômodo de saúde. Ao quarto Sim, por
seis votos. Este ferimento produziu inabilitação por mais de trinta dias.
Não, por seis votos, não produziu inabilitação de serviços por mais de
trinta dias. Ao quinto, Sim, por seis votos. O réo foi impelido por motivo
reprovado. Não, por seis votos. O réo não foi impelido por motivo
reprovado. Ao sexto, Não por nove votos, não houve por parte do réo
superioridade em forças ou armas, de maneira que o ofendido não podesse
defender-se com probabilidade de repellir a ofensa. Ao sétimo, Não, por
onze votos. O crime não foi cometido com surpresa. Ao oitavo, Não, por
nove votos. Não existem circunstâncias atenuantes em favor do réo.
164
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. op. cit., p. 40.
124
(...)”
165
As discordâncias do corpo de jurados, principalmente quanto à motivação do crime,
nos permite vislumbrar um código de valores que legitima determinados comportamentos
violentos através dos quais se afirmava a superioridade masculina. Ao mesmo tempo, os
jurados não levaram em consideração a atenuante do estado de embriaguez do réu
demonstram que consideraram que Francisco e Paulo estavam em igualdade de forças e que
portanto não houve covardia. Não houve unanimidade em relação a esse caso e as respostas
dos jurados oscilavam entre a culpabilidade do réu preso em flagrante e os valores postos
em xeque. Da ambigüidade das respostas dos juizes de fato se valeu o magistrado para
condenar Francisco a nove anos de prisão. Mas o condenado imediatamente interpôs um
recurso junto ao Tribunal da Relação de Ouro Preto, por considerar injusto o castigo, diante
do crime cometido. Do julgamento do recurso ficou o réu condenado a seis meses de
prisão, mas seu caso somente se encerrou em abril de 1887, quando Francisco finalmente
foi libertado.
O processo abordado acima nos permite uma tentativa de compreensão dos
significados dos atos violentos na sociedade. Presente nas situações mais corriqueiras, a
violência apresentava um caráter costumeiro e arraigado. Contrário a esse costume, o
projeto político nacional e o desejo das elites dirigentes propunham mecanismos políticos e
jurídicos para a construção de uma nação onde os indivíduos se conduzissem dentro da
ordem e civilidade. A violência costumeira na resolução de contendas era considerada
própria de um estado de barbárie e deveria ser substituída pela utilização de meios
civilizados e pacíficos. Assim, pela adoção de práticas que privilegiassem o controle das
emoções e a pacificação dos impulsos agressivos a sociedade alcançaria um necessário
165
Processo de 19/04/1884. AFGC-DPDOR
125
grau de civilidade.
166
Esse discurso civilizador da elite do século XIX porém, nem sempre
era eficiente. A persistência de irrupções de violência na resolução das demandas
individuais comprova que prevaleciam inúmeras vezes uma série de valores próprios das
camadas menos privilegiadas da sociedade, apesar de todas as tentativas de controle social
demonstram que os valores construídos coletiva e cotidianamente no Sertão estavam muito
bem enraizados entre esses homens e mulheres.
4.3. A posse de bens e os desafios como temas de crimes princípios e valores
expressos nas práticas costumeiras.
Possuir bens foi uma prerrogativa adquirida pelos escravos numa prática que
terminou por ser legitimada pela justiça. Esses bens ou posses, denominados legalmente de
pecúlio, tornaram-se um direito formal do escravo pelo artigo quarto da Lei Rio Branco, de
28 de setembro de 1871. Porém, de acordo com a lei, o escravo precisava do
consentimento de seu senhor para acumular o pecúlio obtido por seu trabalho e economia.
Possuir cavalos, porcos ou roças era prática costumeira entre os escravos do Termo de
Montes Claros e tomamos conhecimento dessas posses pelos processos e multas que muitas
vezes motivavam. Em um relatório da comissão responsável pela fiscalização das Posturas
Municipais, feito em 18 de janeiro de 1838, encontramos o seguinte:
“nesta Villa de Montes Claros, comarca do Rio São Francisco, sendo nella
presente o fiscal do Distrito da mesma Villa Francisco José Pereira do
Amaral, comigo secretário da Câmara abaixo assinado e officiais de
justiça Alberto Dias da Silva e Felippe Santiago de Galizza prosedendo-se
a visita designada no Edital publicado no dia 04 deste sobre os porcos e
cabras soltos, depois de corridas as ruas da villa se acharão soltos huma
porca preta pertencente a Delfina de Tal, outra na mesma rua pertencente a
166
RESENDE, Edna Maria. Entre a solidariedade e a violência: Valores, comportamentos e lei em São João
Del-Rei, 1840-1860. Dissertação de mestrado. UFMG . 1999, p. 90-91
126
Germana de Tal, outra pertencente a João Preto Velho, appelidado Timbú,
outra na Rua do Pedregulho pertencente a Joaquim, escravo de Dona
Maria Lucianna, e quatro na mesma rua pertencente a Eufrasia de Tal,
preta velha e assim mais um casal de cabras pertencentes a Manoel
Gonçalves Pires, a vista do que se achão seos donos comprehendidos na
multa de cem reis por cada huma cabeça na conformidade do artigo 156
das Posturas Municipais em vigor.(...)”
167
A condição de escravo não impedia portanto uma economia autônoma, que
implicava em direitos e responsabilidades e que era respeitada e legitimada pelas
autoridades municipais. Não nos esqueçamos contudo, que esses direitos adquiridos não
podem ser entendidos como geradores de situações plenamente estáveis pois podiam
cessar por uma fatalidade ou pelo arbítrio do senhor. Assim na vida cotidiana dos escravos,
a posse de bens e o temor de perde-los também podia ser motivo de contendas, como ilustra
o que ocorreu entre Jucellino e Severiano, em 02 de julho de 1884. Neste dia a casa, situada
nos arrebaldes de Jequitahy, estava cheia de gente, em um almoço festivo de despedida
pois o Coronel Francisco de Almeida e Silva estava se mudando para Diamantina.
Lemos nos autos que na Vila de Jequitahy, em casa de fazenda do Cel. Almeida, por
volta de dez horas da manhã, Jucellino, escravo de Coronel Almeida, tendo uma brusca
altercação com seu parceiro Severiano, deu neste com uma faca de ponta uma estocada
abaixo da clavícula esquerda, da qual resultou morte instantânea. Depois do assassinato
Jucellino fugiu e não foi mais encontrado. Até a conclusão do processo, em 1893, não se
registrara a captura do escravo.
No depoimento de Francisco Rodrigues Peixinho, consta que,
“estava elle respondente na salla da caza do Cel.Almeida em ocasião que
este almossava e preparava-se para viagem de sua mudança para
Diamantina, quando alli chegara appreçadamente um escravo do mesmo
Cel. e disse-lhe que Jucellino havia sangrado com uma faca a seu parceiro
em uma das senzalas, immediatamente elle depoente dirigiu-se para
167
Arquivo da Câmara Municipal de Montes Claros. Montes Claros - Minas Gerais . Caixa 20. Documento
Avulso do Livro de fiscalização das Posturas Municipais. 1836 a 1843
127
aquelle lugar e ali encontrou o paciente dando os últimos suspiros, não
tendo porém encontrado a pessoa que acabara de praticar aquelle crime,
sendo-lhe de novo referido por outros escravos do mesmo coronel
Almeida que aquelle crime fora perpetrado por Jucellino com uma faca
que elle depoente chegando alli avistara ainda ensangüentada no chão
próxima do paciente. Disse mais que ovio os outros escravos dizerem que
deo-se aquelle conflito por causa do estado de embriaguês em que se
achavão, pois que nenhuma rixa ou inimizade havia entre os
mesmos.(...)”
168
A violência de um crime como esse não tirava as pessoas de seus afazeres, senão por
um pequeno intervalo de tempo. Segundo o depoimento de Justino Lopes Pereira,
“saindo elle respondente com outras pessoas, dirigiu-se para este lugar
affim de participar a policia e promoverem a captura do indigitado
Jucellino que evadiu-se após aquelle facto, não tendo porém sido possível
efectuarem a prisão, apezar das diligências empregadas, voltou para
aquelle lugar do conflicto e ali soube que já se achava morto Severiano,
mas que elle respondente não vio porque continuou nos preparativos para
a viagem do Cel. Almeida para Diamantina em que antes estava. Disse
mais que ovio dizerem ser causa desse conflicto se ter desaparecido do
pasto um cavallo pertencente a Jucellino e que por este haver sido
entregue a Severiano como pasteiro ou encarregado do tratamento de
todos os animais da viagem em cujo número estava aquelle cavallo e cuja
fuga Jucellino atribuía ter sido de propósito ou por maldade do referido
Severiano, mas que elle respondente atribui esse conflicto antes de tudo ao
estado de embriaguez em que ambos se achavão.(...)
169
Este processo vem reforçar nossa afirmativa anterior da existência de
comportamentos que se pautam pelo uso da força na solução dos problemas cotidianos. A
expectativa de mudanças associada a exaltação pelo uso de bebidas alcoólicas
provavelmente já predispunha esses homens a uma certa inquietação. Essa situação tendeu
ao conflito quando ocorreu a perda de um bem importante e o temor de não ser o mesmo
reavido pelo escravo. Assim a violência explodiu ocasionando a morte de um dos
contendores. Mais de uma vez as testemunhas afirmam que não havia inimizade entre
Jucellino e Severiano, o que confirma a concepção de que nessa sociedade rural a violência
168
Processo de 12/08/1885. AFGC-DPDOR
169
Processo de 12/08/1885. AFGC-DPDOR
128
se tornara rotineira, surgindo usualmente como mecanismo de solução de contendas.
Em um processo de 1874, novamente nos deparamos com uma contenda que surgiu
em função da posse e preservação de bens pertencentes a um escravo. Nesse caso, o cativo
Felipe, de propriedade de Antônio Augusto Verciani, ofereceu, através de seu curador,
170
uma queixa contra Felipe Pereira do Amorim, alegando que este, pessoalmente ou pela
ação de seu filho, teria destruído uma roça de milho e feijão pertencente ao escravo. De
acordo com o curador,
“o offendido, obtendo permissão de seu senhor, em terras do mesmo, na
vizinhança da povoação do Bomfim fez uma roça em que plantou milho e
feijão. O querelado, que possuía uma vaca, a achou morta, talvez mordida
de cobra; mas suppondo que ella fosse offendida pelo dito escravo por ter
entrado dentro da referida roça, veio disso queixar-se ao senhor delle -
Antonio Verciani, exigindo indennisação do prejuízo da morte da vacca,
pelo escravo. Antonio Verciani pedio-lhe como condição de indennisal-o
alguma prova convincente de ter sido o dito escravo ligado a autoria do
facto por elle allegado. E como o querelado não tivesse as provas,
desesperou, promettendo perante pessoas que havia de tirar vingança do
escravo sobre a dita roça, manifestando que teria de arrasal-a alguns dias
depois appareceu grande porção de cerca da roça deribada, o milho em
grande parte destroído e todo feijão arrancado. As suspeitas de todos, que
tomarão conhecimento do facto davão o querelado como seu autor,
..........................................................................................................(rendado)
que não fora elle o arrasador do milho e feijão mas um seu filho, que por
idade menor esteve protegido de criminalidade pelas novas leis penais.
Orça-se o danno em 60$000 réis. Ora, semelhante procedimento investe ao
artigo 266 do Código Criminal na segunda parte por ter havido a
concorrência das aggravantes do artigo 16 §§ 1,4,8,9,13,17 e do artigo 17
§ 1º, e mais o querelado depois do summario será pronunciado como autor
ou ao menos como cúmplice, por isso o curador do escravo vem dar a
presente queixa.(...).”
As testemunhas alegam que viram a roça destruída e ouviram dizer que fora o
querelado, mas não existem provas do fato. Também de ouvir dizer, as testemunhas
afirmam que o escravo Felipe era acusado de ter matado uma vaca do querelado, motivo
170
MACHADO, M. H. P. T. citando Perdigão Malheiro, esclarece que ao escravo não era permitido dar
queixa por si, podendo no entanto faze-lo por intermédio de seu senhor, do promotor público ou de qualquer
pessoa do povo, como pessoa miserável. MACHADO, M.H.P.T. Crime e escravidão., p. 75.
129
que teria gerado a vingança expressa na destruição da roça. De acordo com o Felisberto
Peres da Silva, que foi ao local, as coisas se passaram da maneira seguinte,
“depois da festa que se fez para celebrar o dia de São Sebastião, elle
testemunha em dias que não se recorda foi chamado por Antonio Verciani,
senhor do escravo Felippe, para qui, como official de justiça da
subdelegacia, notificasse duas testemunhas, que verificassem os estragos
feitos na cerca e na roça do referido escravo que em vista disto elle
testemunha notificou a Vicente José da Silva e a Virgilio de tal morador
dentro do Arraial do Bonfim e com elles foi ao lugar da roça dannificada
distante do arraial um quarto de légua, mais ou menos, e viu com effeito
alguns lanços da cerca derribados em numero de três ou quatro e lhe
paricião ser derribadas por homens e não por annimais, porque as
forquilhas estavão arrancadas e o lugar que ellas ocuparão estava limpo de
terra solta a que dava mostras de não terem sido ellas arribadas por
annimais. Disse que viu também porção de pés de milho já bunecando,
estragadas a golpe de foice mas que não fez reparo da quantidade do milho
estragado e que não viu signal de fejão, porque se ali tinha existido, o gado
já tinha acabado com elle, assim como já acabara com muitos pés de
milho. Disse mais que o querellado queixara a ele testemunha de ter
aparecido perto da referida roça uma sua vacca que dizia ter sido matada
mas não atribuiu nesta queixa a autoria do dano da morte da dita vacca a
pessoa alguma. Disse mais qui quando foi verificar o dano da roçça sobre
que depoz, levou em sua companhia um menino de nome Joaquim, filho
de Maria (vulgo) Maria Lião, de idade maior de doze annos, e qui este lhe
dissera que julgava ter sido o querellado o autor do danno referido porque
ouvio o mesmo falando com algumas pessoas, cujos nomes o menino não
declinou, que tinha de abrir ou havia de abrir a cerca da referida roça.
Dada a palavra ao procurador do réu para reperguntar e contestar a
testemunha foi reperguntado que extenção devia ter o pedaço de cerca
dismanchado? respondeu que poderia ter três braças. Reperguntado qual a
porção, maior do milho estragado a que fora derribada por annimais, ou o
que lhe parecera cortado a ferro? Respondeu que o milho estragado por
annimais era em porção maior do que aquele que fora golpeado a ferro e o
milho cortado tinha sido em outra parte da roça. Disse mais que na roça
não havia vestígio de plantação de feijão. Perguntado se era grande a roça?
respondeu que não pode precisar o tamanho, mas que era situada em uma
pequena ilha formada por uma barroca e que a roça e d’aquellas que se
chama rocinha.”
171
Outra testemunha, João Melquiades Baptista, com trinta e quatro anos de idade,
oficial de Justiça, solteiro, morador no arraial do Bomfim, que aos costumes disse ser
171
Processo de 13/03/1874 AFGC-DPDOR
130
amigo do réo, mas que não se julgava por isso suspeito para jurar em seu processo,
declarou que,
“por uma segunda vez tendo ido a roça já lá entrara e viu então pés de
milho distroçados por annimais e que tendo examinado a referida vacca a
ver se tinha sido morta de propósito por alguém, viu abaixo da cauda,
dentro do anus signal de uma ferida feita por um corpo extranho, que a ser
faca, lhe pareceu não ter fio, porque em vez de cortar rasgou, mas que elle
testemunha não pode por isso, formar um juízo certo para pronunciar se a
vacca fora ou não matada, e que o querellado declarou a elle testemunha
que disconfiava ter sido escravo Felippe o autor do danno na dita vacca,
porque ella appareceu morta junto da roça de Felippe e com o estrago
sobre que já depôs, e que, em vista disso, o querellado lhe dissera que ia se
entender com Antonio Versiani para d’elle cobrar o prejuízo da morte da
vacca, e que do mesmo querellado ouviu dizer que de facto lá esteve com
Versiani , e lhe contava o resultado desse encontro, de que elle testemunha
não se recorda a circunstancia, sabendo somente que o querellado não fora
pago. Perguntado se depois que o querellado entendeu-se com Antonio
Versiani para d’elle cobrar o prejuízo da vacca não manifestou alguma
intenção de vingança contra o referido escravo? Respondeu que o
querellado somente lhe dissera e participara o não êxito de sua entrevista a
Antonio Versiani e que nada manifestou de palavras contra o escravo ou
contra a roça.”
172
Não conhecemos o desfecho do processo, pela perda das peças restantes, mas até
onde pudemos acompanhar, as desavenças podiam surgir, entre vizinhos, por cuidados
com as posses. Pessoas que viviam próximas umas das outras, nem sempre estabeleciam
relações pacíficas. Sendo esses homens pobres, altamente ciosos de cada um de seus bens,
a ameaça ou destruição destes provavelmente era vista como um grande golpe. Se de fato o
escravo atacou a vaca e se de fato o filho do querelado Felipe destruiu a roça, não
saberemos jamais. Contudo, percebemos o quanto era usual o uso da força para resolver as
pendências rotineiras. Era costumeiro que os envolvidos tendessem a resolver entre si as
contendas, sem buscar os mecanismos de controle oferecidos pelas instituições
formalmente responsáveis pela ordem e pela segurança. Neste caso, possivelmente, a
131
justiça foi acionada por ser o senhor do escravo um membro influente da sociedade que
ocupava inclusive o posto de suplente de Juiz Municipal. O escravo, sentindo-se ameaçado
e provavelmente tendo se queixado a seu senhor, teve neste um apoio e um incentivo para
buscar o ressarcimento de seu prejuízo por meio da justiça, o que fez de fato, usando de um
outro mecanismo que já lhe garantia efetivamente direitos legais para resolução de
querelas. Assim, parece-nos que a opção da justiça era, entre essas pessoas, uma das
últimas a ser acionada na defesa dos interesses pessoais.
Franco, analisando situações de ameaça à preservação dos recursos econômicos,
entre os caipiras do Vale do Paraíba, no século XIX, encontrou também padrões violentos
de comportamento quando surgiam demandas entre vizinhos. Segundo a autora,
“A pobreza das técnicas de exploração da Natureza, os limites estreitos das
possibilidades de aproveitamento do trabalho e a escassez de recursos de
sobrevivência não podem deixar de conduzir a uma sobreposição das áreas
de interesse. Instalam-se, assim, processos competitivos sem alternativas
muito plásticas para se resolverem, dado o caráter simples e pouco flexível
dos mecanismos de ajustamento inter-humano (isto é, a relativa
indiferenciação da estrutura social e a fraca discriminação das linhas de
poder, aliadas ao domínio uniforme da cultura e à comunhão em um sistema
de valores claramente definidos). O que está em jogo são objetivos comuns
e primários que, ao se transformarem em problemas práticos, são
equacionados em termos também comuns e bastante rígidos: a manutenção
das prerrogativas de uma das partes implica, simplesmente, eliminar as da
adversária.”
173
Ao longo do dia, durante o trabalho, também podiam surgir momentos de altercação
que eventualmente resultavam em homicídios, principalmente em função de disputas pelo
porte do trabalho e pela eficiência na produção. Estas disputas ou desafios ocorriam muitas
vezes estimuladas pelos senhores ou capatazes, que pretendiam ver aumentada a
produtividade dos escravos. Eventualmente, vencer a disputa podia resultar em prêmios ou
pequenos benefícios, o que estimulavam ainda mais a competição. Aceitar as competições
172
Processo de 13/03/1874 AFGC-DPDOR
132
propostas por senhores/administradores ou surgidas pelos costumes dos próprios escravos
não significava uma aceitação da escravidão. Também não eram os escravos indivíduos
desprovidos de sagacidade que não percebessem as intenções de seus senhores. Mas antes,
se aceitavam participar desses arranjos era porque acerca desses mo mentos possuíam sua
própria leitura, segundo a qual, provavelmente, era possível optar por estratégias que lhes
permitisse aumentar suas margens de manobra e mobilidade dentro de circunstâncias por
sua natureza adversa. Participar dos jogos e alcançar prêmios era um meio de adaptar-se e
auferir algumas vantagens em um contexto antagônico, contudo essa adaptação não
significou passividade diante da espoliação, mas fundamentalmente o exercício da arte da
sobrevivência. Essas disputas contudo não eram entendidas por todos de um mesmo modo
e, propiciavam o surgimento de tensões que podiam resultar em violência. Foi o que
ocorreu na Fazenda do Pequi, Villa de Montes Claros, pertencente ao Coronel João
Antonio Maria Verciani. O relato seguinte, feito pelo próprio Coronel, dá conta dos
confrontos ocasionados em momentos de trabalho e seus resultados.
“respondeu que estando seus escravos empregados em serviços de carpina,
conjuntamente com o escravo Agostinho, pertencente aos seus netos órfãos,
filhos do finado Tenente Coronel João Alves Maurício, bem como mais
escravos pertencentes a estes, soube elle respondente, depois do facto, que o
referido Agostinho tivera altercações no serviço, com o escravo assassinado,
mas que apaziguando a dúvida outros escravos, bem como o feitor José
Gonçalves, que nisto interveio tornarão-se em paz, chegada a hora de se
retirarem do serviço Agostinho e o assassinado adiantarão-se dos outros que
logo após seguindo (...) já encontrarão o cadáver de Bonifácio com uma
grande ferida e uma porção immença de sangue que da mesma tinha vasado.
(...) Manoel Soares do Nascimento que igualmente com os escravos
trabalhava declarou a elle respondente que se topara com Agostinho que
vinha apressadamente, e nascendo-lhe d’ahi suspeitas interrogou qual era a
razão por que elle assim passava por um caminho diverso do costumado
quando elle o tinha deixado ainda no serviço, que necessariamente seria
alguma falcatrua que elle tinha praticado, neste caso respondeo Agostinho
que na verdade tinha tido uma dúvida com Bonifácio e lhe tinha dado uma
facada, mas que sendo ella pequena hia-se apadrinhar com o Alferes Simeão
173
FRANCO, M. S. C. op. cit., p. 28
133
Ribeiro da Silva, sendo certo que o referido escravo desde esse momento
desapareceo.”
174
A primeira testemunha, informante, Marcellino, escravo do Cel. Verciani nada
acrescenta aos fatos. Porém, José Crioulo, segundo informante, introduz novidades ao
afirmar
que estando no serviço da roça de seu senhor, ali tão bem se achavão
outros escravos, bem como pessoas forras, José Gonçalves na condição de
feitor e Manoel Soares, alugado (jornaleiro), ao entrar o sol desse dia dous
de dezembro, Agostinho pôs-se em altercações com Bonifácio, em
conseqüência de ter este delineado um eito largo aos demais escravos e o
feitor os apaziguou. (...) e como fosse essa hora immediacta a que tinham
elles de deixar o serviço, Bonifácio e Agostinho adiantarão-se em direção
a Fazenda do Pequi, e elle e outros ficarão apromptando lenha, mas
demorando-se pouco seguirão logo em sua vizinhança e na estrada
encontrarão à Bonifácio já morto.”
175
Inocêncio Crioulo, também informante declara que
“Agostinho teve dúvidas com Bonifácio em razão deste ter cortado um
eito mais largo e que estando elle no centro tornava-se-lhe o serviço mais
pesado. (...) Mais tarde, reproduziu-se a questão entre os dois e nesse ato
Agostinho dirigiu insultos a Bonifácio.”
176
O réu, posteriormente preso, foi condenado pelo Tribunal do Júri a Galés Perpétuas.
O motivo para o crime, considerado pelo corpo de jurados como frívolo e a ausência de
atenuantes em favor do condenado tornam a situação mais delicada. Mesmo interpondo
recurso o réu não recebeu benefício algum, sendo sua condenação mantida pelo Tribunal de
Relação. Se para os representantes da sociedade as altercações e o crime se deram por
motivos de somenos importância provavelmente não eram assim considerados pelos
envolvidos na questão. O ato de dar conta do trabalho sem “pedir arrego” era prova de
força e eficiência. Ao reclamar do excesso de trabalho o escravo Agostinho apareceu como
174
Processo de 10/03/1865. AFGC-DPDOR
175
Processo de 10/03/1865. AFGC-DPDOR
176
Processo de 10/03/1865. AFGC-DPDOR
134
mais fraco ou mais lento e recebeu insultos por parte de Bonifácio. Nesse momento, o
desafio saiu do campo do trabalho e atingiu um âmbito mais pessoal. A ofensa feita por
Bonifácio, provavelmente já repetida em disputas anteriores, acendeu a ira de Agostinho
que revidou violentamente, certamente repetindo o padrão de comportamento sancionado
pelos seus pares.
4.4. Nos namoros, nas festas e nas vendas - as explosões de violência
A violência também está presente nas uniões consensuais ou nos espaços de
formação de laços afetivos entre escravos. Nestes espaços as tensões e os confrontos eram
constantes. No caso do escravo Pedro, que recebeu um tiro de garrucha dado por Serafim
Pereira de Aguiar (livre), existem elementos que tornam a situação mais complexa. Anna
Ferreira de Souza (livre), vendedora de aguardente, era amasiada com Serafim, mas era
também companheira de Pedro. Sendo encontrado por Serafim no interior da casa de Anna,
depois das “Ave-maria”, Pedro foi questionado por Serafim acerca de boatos que andara
espalhando na cidade sobre ter colocado Serafim para correr. Diante da confirmação do
dito, Serafim atacou Pedro, que se defendeu com uma faca que trazia. Serafim então
ofendeu o escravo com uma arma de fogo. Do conflito saiu gravemente ferido o escravo
Pedro.
O que está posto, neste caso, entre outras coisas, são valores como honra e destemor.
Sempre que a valentia e a coragem eram postas a prova, um dos contendores haveria de
querer sobrepujar o outro. O apego à vida era menor que o apego à coragem e a honra. As
relações entre Pedro e Anna põem a descoberto relações de sociabilidade bastante
peculiares, encontramos vestígios de amasiamento de homem escravo com mulher livre,
135
fora da propriedade do senhor. Também está presente o livre trânsito de escravos à noite, o
porte de armas, elementos que assinalam conquistas permitidas pelos arranjos entre
senhores e escravos dentro da dinâmica da escravidão.
Outro exemplo dessas relações dos escravos com mulheres livres encontramos no
caso do escravo Hilário, José Ribeiro e Delfina. Na petição do Capitão Manoel de Souza
Silva, dono de Hilário, contra José Ribeiro, consta que no dia 16 de novembro de 1836,
tendo mandado seu escravo ao lugar denominado Lagoinha, a fazer um conserto em uma
cerca, por volta das oito horas da noite, José Ribeiro, morador naquele lugar cometeu um
atentado dando umas porretadas no escravo. O capitão diz que o motivo do atentado foram
os “zelos de uma meretriz escandalosa de nome Delfina parda, sendo o mesmo suplicado
e seus irmãos os que servem de capa para o escravo do suplicante acoitando-o em suas
casas, de cujo procedimento tem sido agora o suplicante siente.”
177
Perante o juiz, a testemunha Patrício Gonçalves, crioulo, morador na Lagoinha,
afirmou que,
“lá ao pé da casa de Higino estando o dito escravo dando humas pancadas
em huma rapariga de nome Delfina, que chegara ahi nessa ocazião o réo e
que propondo a apartar a tal dúvida, que neste acto dera huma porretada nas
costas do dito escravo, hi que nisto opondo-se o dito escravo para que o reo
se não lhe desse correra o reo para sua casa e que indo o escravo hilário até
lá, começou com disfrutos xingando ao reo, achando-se o mesmo escravo
com um machado e huma faca, e que nestas duvidas em tão he que o reo
dera huma porretada na cabeça do dito negro. (...) e sendo perguntado a elle
testemunha se o dito negro tinha de costume nos domingos e dias santos e a
noite paciar naquele sítio da Lagoinha disse a testemunha que sabe que o
dito escravo tem costume paciar naquele lugar; por elle testemunha já
algumas vezes ter visto em casa de Honório e Higino, e não na casa delle
testemunha. (...) Perguntado a testemunha se sabia que o reo ou seu irmão
avia por alguma vez repreendido o dito escravo sobre os passeios que fazia
naquele lugar (...) ou se avia participado ao queixoso, diz elle testemunha
que não sabia e sendo perguntado mais a dita testemunha sobre o estado da
dita rapariga Delfina e aonde morava a mesma, disse a testemunha que a
dita Delfina é uma prostituta e que mora no dito lugar da Lagoinha e que
177
Processo de 18/11/1836. AFGC-DPDOR
136
tem ouvido elle testemunha a mesma mulher dita Delfina dizer que é
amazia do escravo do queixoso; tanto que tem huma filha que diz ser do
mesmo escravo sendo perguntado a elle testemunha pelos costumes disse
que não tinha parentesco algum com as partes e sim que mora em casa do
reo comendo em sua mesa com o qual tinha amizade. (...) e sendo presente o
reo perguntou a testemunha pela maneira seguinte : se era o reo acostumado
a fazer barulhos ou dar pancadas respondeu (...) que não, antes que he
homem pacifico e se deo a porretada no escravo foi porque achou o mesmo
escravo espancando a tal rapariga dentro dos limites de sua fazenda
(propriedade) e que achando o reo o dito escravo muito furiozo sem attender
aos clamores deste reo e para evitar algum mal maior bem como poderia
haver a morte da tal rapariga porque sabe que o reo não tem inimizade com
o queixoso e nem com o escravo. (...) Disse a testemunha que o escravo é
uzeiro e vezeiro de fazer barulho naquele sítio e que sabe que retirando-se o
reo para a sua casa ali mesmo veio o dito escravo com hum machado huma
faca na mão e em altas vozes passou a descompor ao reo e mais pessoas que
ali se achavão, com palavras injuriosas, bem como filho da puta, ladrão e
outras injúrias, insultando todo mundo. (...) A vista do dito da testemunha
diz o reo que pelas respostas a suas perguntas está bem provado que elle
não cometeu crime algum por não ter intenção de praticar a porretada que
deu no escravo do queixoso o foi em sua defesa e da dita mulher que se
axava debaixo da sombra de sua propriedade e que se assim não fizesse
poderia o dito escravo tirar a existência da dita mulher ou delle reo por ir
acudir a mesma, e que por este motivo e pelo muito que está provado claro
está que o dito foi o proprio que cometteo o crime de insulto e injurias ao
reo dentro de sua propriedade, e que a vista do artigo quatorze parágrafo
primeiro, segundo, terceiro e quarto do Código Criminal, não tem o reo
cometido crime algum, e que a vista do próprio artigo estava absolvido de
qualquer accusação contra si. (...) Estando presente o queixoso disse que a
resposta do reo evidentemente confeçou o crime perpetrado no seo escravo,
e que elle queixoso nega que o seu escravo quizesse perpetrar crime na dita
mulher de nome Delfina, e menos que elle queixoso até este ponto tivesse
noticia que o dito escravo fosse costumado a cometer barulhos, e dado o
cazo que os tenha cometido no sitio da Lagoinha, atesta que o reo o tem
apoiado, pois que nunca deo parte disso ao queixoso seo senhor, antes sim o
consentia como deposto tem a testemunha e que o contrário devia praticar,
pois na açção do barulho estando elle reo com mais de oito homens seus
irmãos, parentes e aggregados, nem hum direito e nem forças lhes faltarão
para deixarem de prender o dito escravo, e o levarem amarrado pois que elle
queixoso nunca deo ousadia a seos escravos para cometerem delitos antes
sim nunca poupava o castigo que elles merecessem. (...)”
178
Uma segunda testemunha acrescentaria que a parda Delfina a pouco menos de dois
178
Processo de 18/11/1836. AFGC-DPDOR
137
meses procurava afastar-se de Hilário, por estar de casamento contratado. Porém o escravo
teria continuado a persegui-la assim como também ao noivo da mesma Delfina. Da
perseguição resultara a violência contra a mulher, em cuja defesa interviera José Ribeiro.
Ao longo do processo, pelo depoimento das testemunhas, vai se delineando a
liberdade de movimento do escravo Hilário, que possuía livre trânsito no sítio Lagoinha.
Novamente aparecem os laços afetivos com uma mulher livre, mas há uma desqualificação
da mulher, aqui claramente rotulada de prostituta. Apesar do rótulo as testemunhas
informam que Delfina tivera uma filha com Hilário. É provável que não fosse desejo do
escravo romper com os laços afetivos construídos, ainda que não fossem muito sólidos. A
honra masculina ferida permitiu a ação do escravo, mas o fato de não lhe ser possível
garantir a proteção e assistência esperadas de um marido exemplar, lhe retirou o apoio da
comunidade, que passou a vê-lo como um agressor. Da ambigüidade da situação do
escravo, de sua atitude violenta e da resposta que comunidade lhe ofereceu, ao não dar
apoio à sua agressão à Delfina, compreende -se porque o júri não incriminou José Ribeiro.
Este foi visto, no teatro do julgamento, como um defensor da mulher desvalida, ainda que
esta mulher fosse desqualificada. Além disso, José era um proprietário, possuía agregados e
dependentes, ajudava desvalidos e se aceitava escravos passeando em sua propriedade era
por benevolência e não por se misturar com eles. Sendo o corpo de jurados provavelmente
formado por donos de terras, professores e advogados é possível que a situação sócio-
economica do réu tenha feito pender a balança em seu favor. O certo é que José Ribeiro,
tendo espancado o escravo, não foi penalizado pelo crime cometido, pois conseguiu
convencer o corpo de jurados, da legitimidade de sua ação. O júri, não encontrado matéria
para acusação, garantiu sua liberdade.
Em 1860, um outro crime nos informa que os escravos eram movidos pelo mesmo
138
código de honra dos homens livres nesta sociedade interiorana. Um homem enciumado,
ferido em seus brios, recorreu a violência para defender sua honra. João Africano, escravo
do Juiz de Direito Jerônimo Máximo de Oliveira e Castro, tendo encontrado na cama
Antônio Ribeiro dos Santos e Pulqueria Crioula, também escrava de Jerônimo Máximo,
esfaqueou-os, tornando-se assim criminoso. João Africano, solteiro, nascido na Costa da
Mina, viera para junto do seu senhor no “ano da fumaça” (referência ao ano de 1833) e
vivia de trabalhar para seu senhor nos dias de semana e para si aos domingos. No dia 16 de
julho de 1860, saiu o réu da Fazenda Tamboril, a mando de seu senhor, para abrir um
caminho a uma distância de duas léguas de sua moradia. Mais tarde, tendo ingerido uma
grande quantidade de bebida alcoólica, se dirigiu à Fazenda do Cedro, do mesmo
proprietário, onde morava Pulqueria. Levava para a escrava um par de sapatos, mimo
precioso que provavelmente comprara com o fruto de seu trabalho domingueiro. Ao chegar
na casa da moça encontrou as portas fechadas e espiando pelo buraco da parede viu sua
parceira deitada com Antonio. Encolerizado, João descobriu o telhado e entrou na casa,
atacando o casal, que ainda dormia, a facadas. Em seguida, saiu da casa e foi para a fazenda
de João Antonio Maria Verciani Junior, onde narrou ao proprietário o ocorrido. Na manhã
seguinte, João Antonio Verciani mandou um recado a Manoel Joaquim Alves, oficial de
justiça, pedindo-lhe para ir até a Fazenda. Logo que chegou foi-lhe dito pelo proprietário da
fazenda “vá prender a João que eu creio que elle fez no Cedro hua morte ou duas.”
Perguntado pelo oficial de justiça onde se encontrava o escravo, João Antonio Verciani
respondeu “está ahi dentro. Depois de prender o réu e estando conduzindo-o para a Villa
de Montes Claros, o oficial de justiça perguntou ao escravo o que havia acontecido, João
respondeu que “havia dado muitas pancadas em Pulqueria e em Antonio, mas como foi
denoite não sabia se tinhão morrido ou se tinhão escapado.”
139
Nos depoimentos de testemunhas que conversaram com o escravo após o crime,
podemos perceber que a razão do está relacionada a um código cultural e moral que
privilegia a defesa da honra. Segundo vários depoimentos, João disse que “ o sentimento
que tinha era não ter matado os dois.” Tendo a escrava, com quem João tinha relações, se
deitado com outro homem, fez por merecer o castigo, que inclusive, devia ser estendido
também ao amante, não se sentindo o réu intimidado pelo fato de Antonio ser um homem
livre.
Ao ser interrogado pelo delegado de polícia, João afirmou que havia ingerido muita
cachaça e não se recordava de nada que havia acontecido. É possível que João, apesar de
sua condição de escravo, soubesse que o estado de embriaguez era um atenuante nos casos
de homicídio ou de lesões corporais Da leitura do parágrafo 9 do artigo 18 do Código Penal
depreende-se que a embriaguez é uma circunstância que atenua a penalidade, mas não
justifica o ato delituoso. Mas cotidianamente os réus usavam desse argumento para
justificar seus impulsos agressivos. Mesmo que os homens pobres livres e os escravos não
tivessem acesso ao texto formal do Código Jurídico, estes indivíduos se informavam dos
mecanismos possíveis para se inocentarem, geralmente utilizando leituras muito próprias
da lei, usando desse artifício, João Africano procurou afastar a sua culpa alegando estar
embriagado. No libelo acusatório, o promotor público pediu a condenação do escravo no
grau máximo do artigo 202 e 205, com diversos agravantes. Porém, os juizes de fato
decidiram e o juiz de direito condenou o escravo às penas prescritas no art. 205 em grau
médio, com o atenuante da embriaguez. De acordo com os autos, sua bebedeira não foi
aceita como prova de inocência, mas ele conseguiu diminuir a sua pena em função dessa
estratégia.
No entanto, a violência não esteve presente somente em situações que envolviam
140
encontros ou desencontros amorosos. Também surgiam conflitos nos momentos de festas e
divertimentos, quando as pessoas se reuniam para conversar, cantar, dançar e beber. Apesar
de serem espaços de sociabilidades, desavenças surgiam em razão de brincadeiras muitas
vezes relacionadas com coragem, valentia ou posse de dinheiro. Os gracejos podiam se
transformar rapidamente em motivos de tensões e atritos. Foram também comuns as
confusões surgidas em vendas, onde os homens costumavam se reunir depois do trabalho.
Em uma sociedade na qual o uso da violência era muito difundido, os momentos de lazer
eram também propícios para demonstrações de força e valentia. Muitas vezes o conflito
tinha início com troca de “palavras ásperas” entre as partes, porém, rapidamente as
pessoas chegavam às vias de fato, se agredindo com porretes, facas e, em menor número,
com armas de fogo. Foi o que aconteceu na noite de 16 de janeiro de 1879, numa tentativa
de assassinato ocorrida quando se achavam reunidas várias pessoas em um entretenimento
na casa de Antonia Pereira dos Anjos.
179
Infelizmente muitas partes desse processo se
perderam e não foi possível conhecer o desfecho do mesmo. Ainda assim, sua leitura
permitiu confirmar que os momentos de lazer eram propícios para a explosão de conflitos.
Entre as pessoas presentes no festejo se encontravam Luis, escravo de Dona Silvana Maria
de Oliveira e João, escravo do advogado Justino de Andrade Câmara. No meio da noite
apareceu na festa Antonio Jose dos Santos, acompanhado de um escravo de nome Pedro.
Antonio, já embriagado, demonstrou desejo de dançar com Maria Carijó, uma das
convidadas, porém esta recusou o convite. Como continuasse a insistir, Vicente Soares
interveio e não permitiu que Antonio forçasse Maria a dançar. A partir deste momento
Antonio começou a tentar agredir Vicente, que se recusou a brigar dizendo “não quero
brigar com vossê és hum homem mandigueiro e valentan” ao que replicou Antonio “se
179
Processo de 28/01/1879. AFGC-DPDOR
141
vossê não quer eu quero.” Os presentes impedem a briga e Antonio e seu escravo se
retiraram para o quintal. Algum tempo depois espocou um tiro de garrucha e Vicente foi
alvejado dentro de casa. Antônio e Pedro foram presos, uma vez que ambos portavam
armas de fogo.
No ano de 1874, em uma roda de viola, em casa de Maria Carijó, na rua de Santo
Antonio, diversas pessoas estavam reunidas, entre elas Luis Crioulo, escrava de dona
Silvana Joaquina, a escrava Umbellina e Fortunato, escravo de Roberto Fonseca e várias
pessoas livres. Uma patrulha de guardas municipais fazia a ronda na cidade percorrendo as
ruas, becos e praças segundo a ordem do delegado a fim de evitarem conflitos. Deparando a
patrulha com o grupo reunido na porta da casa de Maria, que se divertindo bebia cachaça,
dançava e cantarolava, quis o comandante da patrulha dispersar as pessoas por considerar
que reuniões dessa natureza eram propiciadoras de desordens. No momento em que tentava
persuadir as pessoas a se retirarem teve início uma discussão entre o escravo Luis, seu
amigo Roberto e um guarda da patrulha. Essa discussão se transformou em um conflito no
qual os convivas e os guardas se esbordoaram violentamente. Em seguida as pessoas do
grupo se dispersaram rapidamente. O comandante da guarda deu queixa contra todos os
participantes da reunião, mas somente alguns foram indiciados. Entretanto esse processo
não foi concluído.
180
Em 1886, em uma brincadeira de viola ocorrida na casa de Antonia, moradora na
rua do Urubú, Villa de Montes Claros, o escravo Raimundo, escravo do cidadão Jose
Antonio Verciani, muito embriagado, espancou de modo bárbaro Celestino Fernandes da
Costa. No processo não consta o motivo do espancamento. O escravo foi preso porém teve
180
Processo de 02/03/1874. AFGC-DPDOR
142
deferido um pedido de habeas-corpus e o processo não teve prosseguimento.
181
Em um último exemplo, Chrispim, escravo de Domingos Alves, residente em uma
fazenda de Santo Antonio da Boa Vista, foi denunciado por ter assassinado Francisco
Timbó, em uma reunião festiva. Conforme a denúncia do Inspetor de Quarteirão, no dia 1º
de janeiro de 1875, por volta de duas horas da tarde, estando reunidas em um folguedo
diversas pessoas, em casa de Mariano Fagundes Jacome. Chegou aí o escravo Chrispim e
perguntou a Francisco quem era o seu senhor e de onde era natural. Em seguida, pediu a
Francisco que apresentasse seus documentos pois tinha ordens para prende-lo. Francisco
Timbó respondeu-lhe que muito estranhava que um cativo quisesse ver seus documentos
pois os homens do lugar nunca haviam pedido para vê-los. Afirmou ainda que não
possuía mácula, nem por ser cativo, nem por ser criminoso.” E, para arrematar, disse
Francisco que “quando nasceu diserão pega o menino e elle Chrispim quando nasceu
diserão pega o moleque.” Ferido em seus brios, Chrispim retirou-se e as pessoas que
estavam na casa se dirigiram a uma casa vizinha onde logo se puseram a tocar viola, beber,
cantar e dançar. Ao fechar da noite, Chrispim voltou ao local, atirou em Francisco,
matando-o e fugiu. Imediatamente o Inspetor de Quarteirão, presente na reunião saiu em
perseguição ao assassino e conseguiu alcança-lo no meio do caminho. Chamando o escravo
para conversar o Inspetor foi até a um canto da estrada e segurou as rédeas da mula que
conduzia o escravo. Sentindo-se confiante, deu voz de prisão à Chrispim que reagiu
atirando no Inspetor. Nesse momento os outros homens presentes também atiraram na
direção do escravo. Dos tiros recebidos o escravo também faleceu.
182
Todas essas histórias descortinam um universo cultural em que o recurso à violência
é pratica normal. Nas atitudes violentas, o homem, na condição de escravo tanto quanto na
181
Processo de 29/12/1886. AFGC-DPDOR
143
condição de livre, demonstrava coragem e valentia e se afirmava perante seu grupo de
convívio. As afrontas, insultos e desafios feitos por livres ou por cativos, não podiam ficar
sem resposta. As provocações ofensivas deviam ser rechaçadas pela força. Nessa
sociedade, pobre de recursos e de oportunidade de diversões, as atividades de lazer
geralmente eram coletivas e esses espaços de convivência eram propícios à afirmação dos
valores de valentia e valor pessoal. Os confrontos entre indivíduos nos momentos de lazer
apontam para a necessidade de afirmação masculina. Não reagir aos desafios e
provocações, principalmente sendo estas feitas na presença da comunidade, significava a
aceitação da desmoralização, a perda do respeito social.
183
Esse código de valores valia
tanto para os homens livres quanto para os escravos.
4.5. Os crimes a mando associações entre livres e cativos.
Não são comuns, nas análises de criminalidade escrava, a referência às associações
de livres e cativos na elaboração ou perpetração de crimes. Entre poucos, Sílvia Lara,
dedicou-se a esta temática, salientando que “os escravos, normalmente utilizados nos
serviços domésticos ou agropastoris, podiam transformar-se, segundo as necessidades
senhoriais, numa espécie de milícia particular que executava atentados, castigava
invasores de terras, galanteadores, pretendentes desqualificados, etc.”
184
Porém, a ação do
escravo criminoso aqui aparece relacionada com a ordem ou pedido de seu senhor. Para
Montes Claros, encontramos evidências da existência de situação em que o escravo ou
escrava praticou delitos também por pedido ou mando de outra pessoa que não seu senhor.
182
Processo de 15/01/1875. AFGC-DPDOR.
183
FRANCO, M. S. C. op. cit. p. 38-40
184
LARA, Sívia Hunold. op.cit., p. 142
144
O processo seguinte teve como rés a escrava Pia, de 50 anos de idade, e Anna
Pereira, esta mandante e aquela executora do crime de envenenamento da escrava
Anastácia, de 13 anos. O caso, ocorrido na Villa de Montes Claros de Formigas no dia 10
de junho de 1842, não foi negado pela escrava Pia, que contudo incriminou Anna Pereira,
ao declarar, no auto de interrogatório, que
“seus meios de vida era servir a seu senhor e que estava nesta villa em casa
de seu senhor quando aconteceu o delito de que é acuzada e que não tem
motivo algum particular a que atribua a queixa ou denuncia e que não tem
provas que justifiquem sua inocência porque é verdade que ella ré foi a
própria que recebeu um embrulho em um papel pardo que lhe dera Anna de
Tal, irman de José Vicente, pedindo esta a ré que deitasse a mistura que se
achava naquele papel na comida que a mulatinha Anastácia houvesse de
comer, que aquilo não hera para matal-a e sim para ensinal-a. Com efeito
ella ré recebeu o dito embrulho e o abrindo para ver não pode perceber o que
era mas imitava besouro moído porque posto ao sol lumiava e pondo a ré a
dita mistura em um poco de feijão que deo a dita mulatinha para comer no
mesmo dia esta adoessera tanto assim que pouco depois que a dita mulatinha
acabou de comer ella ré a chamando para soccar um poco de arroz apenas
principiou e não pode continuar queixando-se já com dores da qual cahio e
poco dias durou, porque desde o dia que cahio foi logo em vômitos nos
quais lançava sangue vivo pela boca. (...) E perguntando mais o subdelegado
a interrogada em que lugar lhe foi entregue o tal embrulho e com que
interece fez o tal delito, respondeu a interrogada que hindo de passagem
para hir ver uma galinha a mando de seu senhor e passando pela porta de
Anna, esta a chamou no canto da caza e ahi lhe deu o dito embrulho e que
ella interrogada havia de ganhar uma saia que a dita Anna havia de lhe dar.
E perguntada mais se sabia o motivo de a dita Anna fazer tal malefício
respondeu que o motivo era porque a dita Anna vivia desconfiada que
Chrispino de Tal com quem esta se trata de amiga andaria tão bem de
amizades com a dita mulatinha Anastácia, tendo o dito Chrispino em certa
ocazião brigado com Anna por ter prometido dar à dita Anastácia não uma,
mas duas saias, ao que Anna respondeu que elle podia dar as duas saias mas
que a mulatinha não as havia de disfrutar. Disse mais ella interrogada que
em certa ocazião indo ella a fonte a buscar água em uma casamba e levando
consigo a dita mulatinha Anastácia na volta vindo a dita mulatinha adiante
della presenciou a dita Anna apanhar huma mão de terra no rasto adonde a
dita mulatinha tinha pisado e que conduzira para dentro de sua caza para
sertas simpatias. E neste mesmo lugar lhe dera o dito embrulho.(...)”
185
185
Processo de 10/06/1842. AFGC-DPDOR
145
As testemunhas que depuseram no caso juraram de ouvir dizer, e discordavam entre
si acerca do crime em questão, o que favoreceu o despronunciamento da ré Anna Pereira,
sob a alegação que os depoimentos nada provaram contra a mesma. Contudo, o juiz
sustentou a pronúncia contra a escrava Pia, que assumira o ato criminoso, enquadrando-a
no artigo 192 do código do Processo e conservando a escrava na prisão, sendo os autos
enviados para o juiz de direito da Comarca. Se Pia conseguiu se livrar da pena de prisão e
açoites nos não saberemos, uma vez que o restante do processo não foi encontrado. Mas, no
decurso dos interrogatórios e depoimentos que lhe formaram a culpa, podemos vislumbrar
algumas práticas de comportamentos femininos que se destacam nessa sociedade.
O comportamento de Chrispino, ao desafiar sua “amiga” oferecendo mimos à
escrava, criou uma nova tensão, que para Anna, só poderia ser desfeita com o afastamento
da concorrente. Marcado por redes de amizade, trocas e temores, um pequeno grupo de
homens e mulheres pobres e escravos sancionava o delito de uma mulher, provocado por
ciúmes. Provavelmente essa sanção se devia à propalada competência da ré Anna Pereira
com as práticas mágicas. O uso de veneno e o sortilégio com a terra que fora pisada por
Anastácia feitos por Anna com o fito de “ensinar” à escravinha o seu devido lugar foram
reiterados por todas as testemunhas. Essas declarações informam a respeito de crenças em
forças naturais e sobrenaturais que muito possivelmente fariam as pessoas não desejarem se
indispor com a ré mandante do crime.
Laura de Melo e Souza, estudando a religiosidade popular e a feitiçaria no Brasil
colônia, ao apresentar os níveis de sortilégios que eram usados por escravos contra seus
senhores ou visando impedir maus-tratos, salienta quesortilégios com raspaduras das
solas de sapatos ou com a terra pisada por aquele a quem se desejava fazer mal eram
comuns também às populações européias. Difícil saber se este hábito era corrente também
146
entre populações africanas.”
186
A autora aponta exemplos onde o sortilégio de recolher a
terra pisada era usado como um mecanismo usado pelos cativos como prevenção contra
castigos, porém no caso da escrava Anastácia, a terra e o veneno traziam a intenção de
fazer o mal, o que efetivamente fizeram.
Ao propinar o veneno e atentar contra a vida de Anastácia, a escrava Pia criava o
ponto alto de uma tensão nascida de relações cotidianas. A vida cotidiana desses indivíduos
era fortemente marcada por relações de amizade, parentesco e vizinhança. As testemunhas,
todas elas conhecidas e do grupo de relações tanto da escrava Pia quanto de Anna, quanto
da dona da escrava Anastácia, fazem suas declarações diante das rés. Percebemos que os
depoimentos feitos por pessoas que juraram “por ouvir dizer,” acerca responsabilidade das
rés no crime, foram contestados por Anna de um dos dois modos, ou afirmando: “o facto
que aqui se diz é falço e sobre o depoimento nada tinha a dizer porque a testemunha era
sua amiga e não haveria de jurar falço contra ella.” Ou então com a afirmativa: “a
testemunha veio de propósito jurar falço.” Ao longo do processo, as testemunhas dizem
que sabem de tudo o que aconteceu porque vizinhos iam à suas casas para contar os fatos
ocorridos, Nos depoimentos, as testemunhas informam que parentes de Anna os
procuraram antes do dia do comparecimento diante do juiz, para pedir “que tudo negasse
afim de evitar má satisfação da ré sua tia”, “para que não viesse cá depor izortando que
não levantasse falço porque também tinha filhos.” Já a senhora da escrava Anastácia,
mandava recado às testemunhas para que “jurasse a verdade e não metesse sua alma no
inferno.” Sendo todos os envolvidos vizinhos e parentes é de supor que as testemunhas
ficassem divididas entre os pedidos da queixosa, dona da escrava assassinada e os pedidos
da ré mandante. Porém provavelmente o temor da vingança de Anna falou mais alto e as
186
SOUZA, L. M. O diabo e aTerra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 207
147
contradições e desentendimentos entre os depoimentos facilitaram a despronuncia da ré
mandante.
Entre as duas forças antagônicas encontrava-se ainda a figura da escrava Pia, cujo
curador todos os esforços envidava no sentido de provar que a mesma nenhuma culpa
tivera, tendo apenas colocado no prato da menina a mistura entregue pela ciumenta Anna.
Contudo é a escrava Pia que continua presa após a remessa dos autos ao juiz de direito. Na
motivação declarada por Pia para executar o mandado de Anna está o desejo de adquirir
uma peça de vestimenta, de tornar-se dona de uma saia. Nesse caso, mais uma vez é
possível ressaltar que, dentro da situação limite em que os escravos viviam, possuir
pequenos adornos, peças suplementares de vestimenta, miudezas, aparentemente sem valor,
representava uma diferenciação para esse escravo, destacando-o dos demais e portanto o
objeto adquirido era entendido como uma riqueza de inestimável valor. Ao mesmo tempo,
para aceitar aplicar o castigo na menina Anastácia, dando-lhe a mistura para a “ensinar,”
provavelmente Pia concordava com as alegações de Anna com relação ao comportamento
irregular de Chrispino e da escravinha. Não podendo atingir o homem, nesse caso o
causador da tensão, procurou Anna afastar a escrava Anastácia, para se livrar do problema.
Ao apoiar e executar o projeto de Anna, a escrava ré provavelmente concordava ser esta
uma solução legítima para a questão.
Nos processos relativos a crimes encomendados encontramos uma referência a
tentativas de pessoas livres de induzirem escravos a matar seus senhores. Neste caso, na
Fazenda Vereda, de propriedade de Antonio José de Castro, no dia 19 de junho de 1847, as
sete horas da noite, foi assassinado o feitor Justino dos Santos Pereira, por Justino Ferreira,
Benedito Queiroz e José da Eugenia. Entretanto, no decurso do processo, as testemunhas
informam que a morte desejada e encomendada era a do proprietário da fazenda e não do
148
feitor e quem encomendara fora José Antonio Silva e sua irmã Senhorinha, vizinhos e
parentes de Castro. O motivo da encomenda do crime teria sido a disputa por uma herança
deixada por Dona Maria. No termo de informação feito por Isidora Queiroz, surge a
denúncia dos acordos tentados para matar Castro. Segundo ela,
“sabe por ouvir de um escravo de Castro que havia de assassinar a seu
senhor por lhe ter cativado, tendo a finada sua senhora Dona Maria deixado
a elle e aos demais libertos em testamento, pois que assim lhe havião dito,
cujo escravo que assim lhe falara he o de nome Anacleto; porém que sendo
descoberto o plano deste e de outros escravos prendeu-se o mesmo e mais
alguns os quais confessarão que Sutério de Miranda hera quem os
industriara para se levantarem e assassinarem o seu senhor dito Castro, cujo
Sutério mora nesta fazenda em casa de Lina Joaquina de Mendonça onde
morava o réo José Antonio da Silva(...). Disse mais que o dito réo José
Antonio da Silva e sua irman Senhorinha mostrão grande descontentamento
e tem mostrado paixão contra Antonio Jose de Castro por lhe aver Dona
Maria lhe deixado sua herança.”
187
Evidencia-se, na denúncia dada, uma tentativa de manipulação, por pessoas livres,
dos desejos e expectativas dos escravos visando mobilizá-los em demandas particulares.
Claro está que os escravos não eram ingênuos a ponto de se responsabilizarem pela
elaboração de um plano de assassinato e, ao culparem Sutério, já envolvido em uma
situação de antagonismo com Castro, provavelmente estavam usando de uma estratégia que
poderia livra-los de uma acusação de tentativa de homicídio ou pelo minimiza-la.
Contudo, ao apontar para a tentativa de insuflação dos escravos encetada por Sutério, a
informante apresenta a uma nova possibilidade da acordos e estratégias produzidas
cotidianamente entre os homens livres e os escravos. Aqui, os espaços de sociabilidade
permitem, inclusive a tentativa de manipulação dos cativos para o cometimento de crimes.
Assim, nos registros das relações sociais estabelecidas entre livres e cativos
encontramos situações de delitos cometidos a mando, em parceria ou mesmo por
187
Processo de 19/06/1847. AFGC-DPDOR
149
insinuação de livres. Apesar do pequeno número de casos que se apresentam com essas
características, é necessário resgatar também essas práticas, não como incomuns ou
excepcionais, mas como possibilidades de arranjos e acordos presentes no cotidiano de
uma sociedade escravista.
4.6. - Vigilância, castigo e morte: os limites da tolerância
A escravidão foi responsável por forjar representações ambíguas sobre o trabalho e
sobre os cativos. O trabalho manual, visto como indigno e aviltante estaria reservado para
os escravos, enquanto aos livres caberiam tarefas mais leves. Porém , o negro era visto
também como teimoso, resistente ao trabalho e preguiçoso, o que impelia os senhores a
adotarem mecanismos como a vigilância e o castigo para garantirem a produtividade de
seus escravos no trabalho. Uma das formas de os escravos reagirem ao trabalho, que
legitimava a escravidão, era resistir àquilo que consideravam excessos no controle imposto
pelos senhores e por seus administradores. Se havia uma espécie de padrão do que era ser
bom ou mau escravo, também existia um padrão do que se poderia aceitar e esperar do
senhor. Ainda que os padrões destes intercâmbios variassem de região para região, e que
fossem marcados por tensões, é certo que existiram e deram um certo equilíbrio às relações
de grupos sociais distintos e antagônicos. Se havia uma expectativa por parte dos senhores
em relação aos seus escravos, no que tange à produtividade e ao comportamento social,
também havia uma percepção dos escravos em relação ao que era um bom ou mau
senhor/feitor e principalmente, em relação aos limites que se poderia aceitar em relação à
disciplina, ao castigo e ao trabalho. Dessa forma, entre senhores e cativos estabelecia-se
uma espécie de fronteira ou limite para a ação dos dois grupos. Essas fronteiras irregulares
150
e incertas estavam permeadas de tensões e representavam também espaços de negociações,
pois tanto os senhores como os escravos procuravam minimizar os atritos e aumentar suas
vantagens. Os limites de tolerância deviam ser preservados nestas relações sociais para que
não se colocasse em risco, por um lado, a rentabilidade econômica e por outro a
sobrevivência do escravo. Nestas relações sociais os limites do trabalho e dos castigos
estavam constantemente sendo construídos e reconstruídos e a disciplina era um ponto de
constantes problemas para senhores e feitores/administradores.
Na análise dos processos judiciais envolvendo escravos na condição de réus,
ocorridos entre as décadas de 1830 e 1880, no Termo de Montes Claros, ressaltam os
homicídios e tentativas de homicídio e dentre estes, pelo menos a quarta parte dos 38
crimes de sangue se referiu a ataques contra feitores, administradores e senhores. Esses
crimes foram fruto das tensões provocadas pelas tentativas de disciplinar o trabalho e o
comportamento dos escravos e pela resistência destes à estas tentativas. Na maioria dos
casos os réus foram incursos nos artigos da lei de 10 de junho de 1835, cujo objetivo
principal era coibir e castigar de forma exemplar os escravos que atentassem contra a vida
de senhores ou de seus prepostos.
188
A maior parte dos crimes contra senhores ou feitores
ocorreu durante o dia, na fazenda ou na roça, motivados principalmente por castigos
considerados injustos ou excessivos e por tentativas de imposição de ritmos mais intensos
de trabalho. Em ambas as situações ressentem-se os escravos de uma espécie de quebra da
rotina, que pode significar uma perda de espaços e posições duramente conquistados.
A proximidade entre senhores, feitores (em menor número) e escravos também
favorecia um certo descuido ou falta de precaução por parte dos donos ou fiscalizadores de
188
A Lei de 10 de junho de 1835, em seu artigo 1º punia com a pena máxima os escravos que matassem por
qualquer maneira que fosse, propinassem veneno, ferissem gravemente ou fizessem outra qualquer ofensa
física a seu senhor, sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morassem, o
151
escravos. Fosse porque grande parte desses escravos tivesse nascido ou vindo muito
jovem para a região ou fosse pela crença dos senhores no poder da autoridade da qual
estavam investidos, o certo é que muitos crimes ocorreram quando, extrapolando os limites
já estabelecidos, os disciplinadores não se precaveram devidamente e obtiveram como
resposta a reação violenta dos cativos.
Em 1846, na Fazenda Santa Cruz, em Montes Claros, Albino Cabra, 25 anos,
casado (com uma escrava), nascido na Fazenda Santa Clara, escravo de Manoel Teixeira da
Fonseca assassinou a facadas o feitor Eleutherio Jose dos Reis. Os escravos que levaram,
por ordem do delegado, o corpo do feitor para a Igreja da Matriz, disseram que
“o dito Eleutherio, feitor da casa de seu senhor Manoel Teixeira, por
duvidas dos escravos propôs-se o dito feitor a prender o escravo Albino para
o castigar, isto ao amanhecer, (...) dirigindo-se a senzala aonde estava o
Albino, ali o feitor lhe deu voz de prisão e o dito escravo (...) carregou o dito
feitor de facca e porrete e este querendo agarral-o de frente deu Albino a
formidável faccada de que resultou sua morte. (...) e que não puderam autuar
a prisão em razão de se acharem desarmados, pois que o feitor, facilitando
não quis armar-se e nem a elles. (...) Enquanto se acudia o morto o matador
fugiu; sabe que sendo posteriormente o delinqüente encontrado por Camillo
de Tal, crioulo forro, morador em Santa Clara que este perguntando-lhe qual
o seu destino respondera-lhe o escravo Albino que procurava Diama ntina
aonde se o seguissem só morto o pegariam.(...)”
189
Seis meses depois o escravo foi preso em Diamantina e no termo de interrogatório,
em presença de seu curador, João Luis Procópio, declarou que o motivo da morte do feitor,
foi pelo fato de ter ido o mesmo feitor prende-lo em sua senzala para o açoitar
“por enredos das negras da casa. (...) cuja prisão era injusta porque não deo
motivos para tanto pois apenas se lembra que a escrava Ritta que hera
concubina do feitor, de propósito, diminuia-lhe a rassão de comida,
principalmente ao noitecer e que elle reo o foi mostrar ao feitor para mandar
.............. (rendado) ........ pelo contrário o discompos e o ameassou com o
tacao por isso que o reo lançou a comida nos narizes da dita escrava Ritta,
administrador, feitor e às suas mulheres, que com eles vivessem. Lei nº 4 de 10 de junho de 1835. Coleçção
das Leis do Governo do Império. Ano 1835.
189
Processo de 10/04/1846. AFGC-DPDOR
152
sendo que a escrava queixou-se ao feitor e este logo prometeo de assoitar a
elle reo que elle mesmo presenciou o enredo da negra e a promessa do
feitor, mas cuidou que essa promessa seria só para satisfazêl-a, (...) quando
de manhã cercou a senzala para o prender e castigar vio elle reo razão para
não obedecer e matal-o.”
190
Salta das páginas a indignação do escravo com os abusos cometidos pela escrava e
com os excessos do feitor. Diante do comportamento aparentemente arbitrário do feitor, o
réu se viu no direito de se rebelar. Se levarmos em conta ainda que o réu era casado e a
tentativa de prisão deu-se na porta de sua casa, mais um motivo se apresenta para o revide.
Nesse caso aceitar ser punido por artimanhas de uma negra significava ser diminuído em
sua masculinidade. A intolerância do escravo em relação ao comportamento do feitor
ganha mais motivo no contra libelo acusatório oferecido pelo seu defensor, no qual se
afirma que
sendo o réo casado e estimando e zelando de sua mulher com aquele amor
que manda a religião católica, por vezes o finado Eleutherio a insistia para
fins desonestos, o que ella não annuia por sua capacidade, e por este
procedimento o réo já não lhe podia ter afecto. E ainda mais, porquanto o réo
seja cativo, esta condição não lhe tira os sentimentos de honra e por isso
zelloso de sua mulher, não podia jamais andar satisfeito com quem a queria
desencaminhar. E porque se elle r. já fosse de costume o ser desobediente, a
mais tempo teria mostrado com outros feitores que anteriormente
administrarão a fazenda, mas por aquelles se portara com outro respeito. A
vista do exposto concorrerão as circunstâncias atennuantes a favor do réo,
por isso não pode ter lugar a pena de morte pedida pelo senhor promotor e
antes deve ser absolvido, visto ser seu crime justificável.”
191
Embora se deva considerar que o papel do curador é fazer a defesa legal do
curatelado, é relevante ressaltar que valores como honra, masculinidade e respeito são
aqui considerados próprios a todos os homens, independente de sua condição. Não era por
estar na condição de cativo que Albino podia ter sua integridade moral solapada por um
190
Processo de 10/04/1846. AFGC-DPDOR
153
feitor. E se esse mesmo feitor ultrapassara os limites da convivência pacífica,
desrespeitando o escravo, a sua ação justificava o ato criminoso. Novamente nos
deparamos com posturas que legitimam a defesa da honra e os atributos de força e coragem
masculinas. Infelizmente para Albino o corpo de jurados e depois deste o tribunal de
apelação, condenou o escravo à pena de morte.
O castigo injusto desponta também como móvel dos assassinatos perpetrados por
outros escravos. Sempre que os senhores julgavam necessário, aplicavam a justiça de
modo particular, nos limites da fazenda ou da casa. Maria Helena Machado explica que a
razão para o
“pequeno numero de processos criminais relativos aos atentados contra a
propriedade, cometidos por escravos, reside na consideração do costume,
arraigado entre os senhores, de resolver as pendências relativas aos
prejuízos causados pelos furtos e roubos dos escravos.
Porém, ao tentar resolver uma demanda com o escravo Francisco, o senhor
Joaquim Alves, perdeu a vida e ainda a de um escravo chamado Ezequiel, que teria tentado
auxiliar o proprietário contra o ataque. De acordo com o depoimento da testemunha
informante, Manoel Cabra, no dia 24 de julho de 1851, o senhor, ajudado por um escravo,
tentara amarrar o réu Francisco para o castigar por ter praticado o escravo o delito de furto.
Quando, tendo amarrado um braço, buscava segurar o outro, Francisco lançou-se sobre a
cintura de Joaquim, onde havia uma faca e com ela agrediu o senhor. Incontinenti, o
escravo carreiro Ezequiel atirou-se sobre Francisco para interpor-se ao ato e também
recebeu uma facada. Em seguida o escravo fugira, sendo que a voz pública dizia ter-se
escondido nas margens do Rio São Francisco. O réu, tido pelas testemunhas como
“valentão”, foi condenado à pena de morte, tendo a mesma sido executada em janeiro de
191
Processo de 10/04/1846. AFGC-DPDOR
154
1852. Ainda outros cinco assassinatos de senhores foram encontrados entre os homicídios
praticados por escravos no Termo de Montes Claros de Formigas. Todos resultaram em
condenação à pena capital. As demonstrações do poderio pessoal dos senhores poderiam ter
um efeito moralizador, mas se, em sua ação, o proprietário rompesse os limites de
tolerância construídos no trato cotidiano, a ação podia provocar um efeito inverso e
colocar a vida do senhor em risco.
No dia 16 de junho de 1835, o juiz de paz o Arraial de São Jose do Gorutuba deu
início a um processo contra Joaquim Nagô, morador na Fazenda Lages, pelo assassinato de
Joaquim Antunes de Oliveira, irmão do senhor do réu. O crime foi explicado pelo
interrogado da seguinte maneira,
“Interrogado se sabia a cauza porque estava preso. Respondeu que sim, que
fora por matar Joaquim Antunes que lhe dera hum conselhos. Disse mais
que sahindo o dito Joaquim Antunes da casa de seu senhor para a sua
própria casa, elle interrogado o acompanhou com hua fouce e pouco distante
da casa no caminho deu-lhe huma fouçada hindo o finado adiante e elle
atrás, e depois de cahir dera quatro facadas com a faca do mesmo finado,
três nas gouellas e huma na boca do estômago. Interrogou mais se tinha
inimizade com o dito finado. Respondeo que não, so sim por hir lá lhe dar
hum conselho para não brigar com a parceira e porque não tinha dado agoa a
beber aos cavallos de seo senhor que estavão na capoeira a dois dias.(...)”
192
Neste caso, mais que os depoimentos das testemunhas, que juram “por ouvir dizer a
voz pública” pesa contra o escravo a sua própria confissão. Em sua declaração, Joaquim
Nagô, ao contrário do que ocorria usualmente, afirmou que cometeu o crime e que não
possuía maiores motivos para isso. Mas no libelo oferecido pelo promotor contra o escravo
se apresenta mais um motivo para a condenação à pena de morte a necessidade de dar
exemplo a todos os escravos do poder e da autoridade incontestável dos senhores. Se nos
recordarmos que 1835 foi o ano da revolta dos malês na Bahia e que em todo o país
192
Processo de 16/06/1835 AFGC-DPDOR.
155
ocorriam movimentos populares de contestação, gerando temor e apreensão entre os
proprietários de escravos, podemos depreender as preocupações dos representantes do
poder judiciário, tanto magistrados quanto juizes de fato, em submeter toda e qualquer
tentativa de insubordinação e violência por parte dos escravos.
Os escravos envolvidos em crimes contra senhores, seus familiares ou
administradores, tentaram se livrar da culpa de seus delitos ou pelo menos diminuir suas
culpas sempre que possível. Fugindo, se escondendo, coagindo outros escravos ou
articulando estratégias onde livres apareciam como mandantes, os escravos imaginavam
variados modos de livrarem-se das punições tão logo percebiam a dimensão dos seus
delitos. Muito longe de serem coisas, esses escravos compartilhavam com seus senhores e
com os homens livres em geral valores, princípios, angústias, e buscavam se ver livres das
punições muitas vezes alegando que a resposta violenta seria dada por qualquer homem,
nas mesmas condições.
Queremos ressaltar que os cativos compartilhavam com seus senhores, muitas
vezes, as vicissitudes de uma vida com poucos recursos. Essa característica da economia e
sociedade norte-mineira favorecia relações de trabalho conjunto, geralmente praticado por
proprietários, seus parentes, agregados, homens livres alugados e escravos. Essa
proximidade não impedia que tratamentos violentos fossem dados aos cativos por parte dos
livres, mas por outro lado, permitia aos escravos revidarem e atacarem seus companheiros,
com base em princípios de um mesmo código de valores. A maior parte dos crimes
envolvendo escravos surgiu em resposta à situações surgidas no cotidiano, viabilizadas
pelo contato direto entre senhores e cativos.
156
Considerações Finais
Neste trabalho discutimos as práticas sociais dos escravos, suas experiências comuns
e seus laços com outros escravos, com homens livres pobres, com forros e com seus
senhores. A análise se concentrou na partilha de valores e códigos culturais em um
universo rural ou urbano, onde os escravos criaram redes de solidariedade, amizade,
vizinhança, com todos os seus correlatos em violência e criminalidade. Pela leitura dos
processos judiciais foi possível conhecer momentos do dia-a-dia de pessoas que, ao
transgredirem as normas legais, imprimiram a marca de suas práticas e costumes na
história.
Da tentativa de desvendar esses fragmentos de história no sentido de esclarecer as
ações desses homens e mulheres surgiu um universo que combinava solidariedade e
explosões de violência. Na rua, na venda, nos festejos, perseguimos a ação desses cativos
que estreitaram suas relações sociais e divertiram-se, embriagaram-se, brigaram e
esfaquearam-se, fazendo valer seus valores e levando temor à elite, como bem nos lembra
Luciano Figueiredo.
193
Por meio de vestígios e pistas registrados nos processos judiciais da Comarca do
Rio São Francisco, conhecemos o cotidiano dos escravos em uma região onde a economia
existente gerou uma modalidade específica de escravidão com o predomínio de pequenas
posses escravas e com utilização de pessoas livres e familiares trabalhando junto aos
escravos nas atividades econômicas. Libertos, escravos, livres, pretos, pardos ou brancos
193
FIGUEIREDO, L. O avesso da Memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século
157
viveram e trabalharam juntos, forjando laços de solidariedade, amizade e vizinhança,
partilhando experiências e valores comuns.
O ambiente de proximidade entre livres e cativos propiciou a existência de um
cotidiano complexo de relações sociais diversas com significativo grau de mobilidade
espacial e estabelecimento de laços de solidariedade e amizade. Rotineiramente os cativos
se envolveram nas mais variadas situações nas ruas, vendas, fazendas, caminhos e
arrebaldes dos povoados assim como na zona rural resultando daí sociabilidades e crimes.
Os escravos estabeleceram relações com os mais variados segmentos sociais em suas
andanças. Dessas relações podemos ressaltar encontros amorosos, compadrios e
negociações com livres onde era possível criar espaços de autonomia.
Os escravos do Termo de Montes Claros viveram também as tensões violentas do
seu tempo agindo e reagindo frente a elas para defender suas prerrogativas duramente
conquistadas. Os espaços de solidariedade podiam se tornar espaços de violência e os
conflitos e tensões que irrompiam no cotidiano eram resolvidos com um misto de força e
valentia que resultava em agressões, ofensas e assassinatos. Os ajustes violentos nem
sempre eram vistos como crimes pois a coragem, a ousadia, o destemor, que faziam com
que os homens se enfrentassem a cada desafio, eram atributos prezados nesta sociedade.
A conduta turbulenta de escravos, libertos e livres representava ameaças à ordem e
tranqüilidade públicas, para contê-la e educar a população era necessário às lideranças
políticas, policiais e judiciais adotar medidas e procedimentos coercitivos. Os mecanismos
de controle da população expressos no Código Criminal e nas Posturas Municipais
objetivavam estabelecer e manter a ordem bem como difundir a civilidade, substituindo a
força pela razão na resolução das demandas pessoais ou grupais. Porém, interpondo-se ao
XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
158
projeto de construção de uma sociedade “civilizada” havia a prática cotidiana que
legitimava o uso da força e reforçava as experiências e valores constituídos cotidianamente
pelos grupos sociais. Assim, a norma jurídica não se impôs de maneira eficaz, antes foi
permeada por inúmeras contradições e mediações. O código de valores que informava as
práticas dos indivíduos estava muito mais baseado nos costumes e experiências cotidianas
da comunidade que nas determinações jurídicas. Dessa forma, jurados, testemunhas,
vítimas e réus faziam suas próprias leituras da lei e se manifestavam em relação a ela a
partir de suas próprias experiências e valores.
Na teia das relações sociais formadas entre os homens livres e os escravos no Norte
de Minas encontramos inúmeras ambigüidades. Se viveram trabalhando lado a lado com os
seus senhores e outros homens livres, nem por isso deixaram de ser castigados e reagirem a
esses castigos em atos de resistência a dominação senhorial. Mesmo possuindo um relativo
grau de mobilidade espacial, não se furtaram às oportunidades de fugirem das propriedades
de seus senhores. Se constituíram famílias e estabeleceram laços de parentesco fictício e de
alianças aumentando os espaços comunitários e de autonomia também investiram contra
esses laços sempre que afloraram questões relativas a coragem, honra ou destemor. Nessas
e em muitas outras circunstâncias se constatou a existência de um cotidiano complexo com
elementos de amenidades e de violência, permanência e rupturas no qual os escravos
atuaram ativamente.
159
BIBLIOGRAFIA
1. Fontes Manuscritas
1.1. Arquivo da Câmara Municipal de Montes Claros
- Atas das Sessões ordinárias e extraordinárias da Câmara Municipal de Montes
Claros.
- Códigos das Posturas Municipais aprovadas pela Câmara de Montes Claros, 1875.
1.2. Divisão de Pesquisa e Documentação Regional - Unimontes
Diretoria de Documentação e Informações da Universidade Estadual de Montes Claros.
Acervo do Fórum Gonçalves Chaves
- Processos judiciais de 1834 a 1886.
2. Fontes Impressas
- CÓDIGO Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique
Laemmert, 1859.
- COLLEÇÃO das Leis do Império do Brasil (decisões, decretos, decretos-leis e leis)
- COLLEÇÃO das Leis Mineiras. Livro da Lei Mineira 1858 Tomo XXIV
parte 1ª - Arquivo Público Mineiro - Acervo Biblioteca
3. Livros e Artigos
ALGRANTI. Leila Mezan. O feitor ausente: Estudos sobre a escravidão urbana no Rio
de Janeiro: 1808-1821. Petrópolis, Vozes. 1988.
ANASTASIA, Carla Maria Junho. A sedição de 1736. .(dissertação de Mestrado) mimeo.
Belo Horizonte: UFMG
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil, por suas drogas e minas. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
AZEVEDO, Célia. Onda negra, medo branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
BIEBER, Judy. Power, patronage, and political violence: State Building a Brazilian
Frontier, 1822- 1889. Nebraska: University of Nebraska Press, 1999.
BOSCHI, Caio César. Nem tudo o que reluz vem do ouro. In: Revista História &
Perspectiva, Uberlândia, (11): 33-42, Jul./Dez. 1994.
160
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: Demografia e Família Escrava no
Norte de Minas Gerais no século XIX. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 1994
(mimeo.)
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: O
negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
___________________________. Livros que inventaram o Brasil. Novos Estudos:
CEBRAP, São Paulo. N
º
37, nov. 1993.
CARVALHO, José Murilo de. Construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de
Sombras: a política imperial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, Relume-Dumará, 1996
CARVALHO, Marcus. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife. Recife: Ed.
Universitária da UFPE, 1998;
CASTRO, Paulo Pereira. A experiência republicana, 1831-1840. História Geral da
Civilização Brasileira, t.II, v.2, 1972.
CHALHOUB, Sidney. Os mitos da abolição. In: Trabalhadores. Campinas:
Unicamp/IFCH, 1990
____________________. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras 1990.;
ELKINS, Stanley M. Slavery: A Problem in American Institutional and Intellectual Life. 2.
ed. Chicago, 1968.
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo 1880-1924. São Paulo:
Brasiliense, 1998.
FENELON, Déa. Levantamento e sistematização da Legislação relativa aos escravos do
Brasil, In: Anais do VI Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História,
São Paulo, 1975, p. 261.
FIGUEIREDO, L. O avesso da Memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais
no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
FOGEL. R. W. e ENGERMAN, S. L. Tiempo de la Cruz. La economia esclavista em los
Estados Unidos. Madrid: Siglo Vintiuno da Espanha editores, 1981
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4ª ed. São
Paulo: Ática, 1974.
FREITAS, Décio. Palmares. A guerra dos escravos. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal. 1978.
_____________. Insurreições escravas. Porto Alegre. Movimento, 1976.
161
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: Formação da Família brasileira sob o
regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio ed. 23ª ed., 1984.
FUNES, Eurípedes A. Goiás, 1800-1850: Um período de transição da mineração à
agropecuária, Niterói, 1983, Dissertação de mestrado.
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975
GENOVESE, Eugene D. Roll, Jordan, Roll, The World the Slaves Made. New York, 1974
(primeira parte traduzida). A Terra Prometida: O mundo que os escravos criaram. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999
GUIMARÃES, Carlos Magno e REIS, Liana Maria. Agricultura e caminhos de Minas
(1700-1750). In: Revista do Departamento de História. Nº 4, Departamento de História-
FAFICH/UFMG, 1987.
GODOY, Marcelo M. Vida econômica mineira na perspectiva de viajantes
estrangeiros. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1999.
GORENDER, Jacob. Dossiê escravidão. A escravidão reabilitada.In: LPH: Revista de
História. Volume 3. nº 1. 1992. Deptº de História/UFOP, p. 252.
________________. O escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978
________________. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990
GOULART. Alípio Da fuga ao suicídio. Rio de Janeiro: Conquista. INL, 1972.
HASENBALG, Carlos Alfredo. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Trad.
Patrick Burglin. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
LARA, Sílvia Hunold. Campos da violência; escravos e senhores na capitania do Rio de
Janeiro 1750-1808.R.J. : Paz e Terra, 1988.
_________________. Trabalhadores escravos. In: Trabalhadores. Campinas:
Unicamp/IFCH, 1990
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto, São Paulo: Ed. Alfa-Omega,1975.
LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da corte na formação
política do Brasil. São Paulo: Símbolo, 1979.
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista. Minas
Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988.
LUNA. Luis. O negro na luta contra a escravidão. 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra/INL.
1976;
162
LUNA, Francisco Vidal, CANO, Wilson. Economia escravista em Minas Gerais. Cadernos
IFCH UNICAMP, nº 10. Campinas, out.1983.
LUNA, Francisco V., COSTA, Iraci. Vila Rica: Nota sobre casamentos de escravos (1727-
1826). In: ÁFRICA, 4:105-109, 1981.
MACHADO, Maria Helena P. T.. Crime e escravidão: Trabalho, luta e resistência nas
lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Brasiliense, 1987
_________________________. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a
História social da escravidão. Revista Brasileira de História, v.16, p.143-160, 1988.
MALHEIRO, A. Perdigão. A escravidão no Brasil. Ensaio histórico, jurídico e social. 3ª
ed., 2 vol. Petrópolis: Vozes, 1976.
MARTINS, Roberto B. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Texto para
discussão Discussão nº 10. Belo Horizonte: CEDEPLAR/FACE/UFMG, 1982.
MATA-MACHADO, Bernardo. História do Sertão Noroeste de Minas Gerais. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1991.
MATTOSO, Kátia M. Bahia no século XIX: uma província no Império. São Paulo.
_________________. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense. 1982.
MAXWELL, Kenneth. A devassa da Devassa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
MOURA. Clovis. Rebeliões da senzala. Quilombo, insurreição e guerrilha. Rio de Janeiro:
Conquista. 1972.
MOURÃO, João Martins de Carvalho. Os municípios. Sua importância política no
Brasil-colonial e no Brasil-Reino, 1916. p.313.
NEVES, Gilson. O coronel dorme nu. Montes Claros. Edição particular. s/d.
PAIVA, Clotilde A. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. Tese de
Doutoramento. São Paulo, USP, 1996.
PAIVA, Clotilde A., LIBBY, Douglas C., GRIMALDI, Márcia. Crescimento natural da
população escrava: uma questão em aberto. IV Seminário sobre a Economia Mineira.
Anais. Belo Horizonte: CEDEPLAR/FACE/UFMG, 1988.
PAIVA, Eduardo França. Por meu trabalho, serviço e indústria: histórias de africanos,
crioulos e mestiços na colônia Minas Gerais, 1716-1789. Tese de Doutorado.
Programa de Pós-Graduação em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas.Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999.
163
_____________________. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVII:
estratégias de resistência através dos testamentos. 2ª edição. São Paulo: Annablume, 1995.
_____________________. Escravidão e Universo Cultural na Colônia Minas Gerais:
1716-1789.Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
PAULA, Augusto Hermes de. Montes Claros, sua história, sua gente, seus costumes.
Montes Claros, 1979, v. 1.
PIRES, Simeão Ribeiro. Raízes de Minas. Montes Claros: 1979.
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia. São Paulo:
Brasiliense, 1953.
QUEIROZ, Suely Robles de. Rebeldia escrava e historiografia. Estudos Econômicos. São
Paulo, v. 17, nº especial, 1987.
REIS. João José (org.) Escravidão e invenção da liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988.
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociações e Conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras,1989.
REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagem à FHC. Rio de Janeiro: FGV,
2001.
RESENDE, Edna Maria. Entre a violência e a solidariedade: Valores, comportamentos r a
lei em São João Del-Rei, 1840-1860. Dissertação de Mestrado. UFMG, Belo Horizonte,
1999.
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1977.
SAINT-HILAIRE, A. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1975.
SCARANO, Julita. Cotidiano e solidariedade: vida diária da gente de cor nas Minas
Gerais do século XVIII. São Paulo: Brasiliense, 1994.
SCHWARTZ. Stuart E. Segredos internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial:
1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988.
SILVA, V. A. C.. Da bateia à enxada: aspectos do sistema servil e da economia mineira
em perspectiva, 1800-1870. In: Revista do Departamento de História. Nº 6, julho de
1988
SLENES, Robert W.. Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na formação da
família escrava Brasil, Sudeste, seculo XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
164
________________. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista de Minas
Gerais no século XIX. Cadernos IFCH UNICAMP. Nº 17 Campinas, jun.1985.
SPIX, J. B. Von e MARTIUS, C. F. Viagem pelo Brasil, 1817-1820. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981
TEIXEIRA, Heloísa Maria. Reprodução e famílias escravas em Mariana: 1850-1888.
Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, 2001.
URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial: a burocratização do Estado
patrimonial brasileiro no século XIX. São Paulo: DIFEL, 1978.
VASCONCELOS, Diogo de. História Média de Minas Gerais; Revistas do Arquivo
Público Mineiro edições 1896, 1898, 1900
VASCONCELOS, Diogo. História Antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia,
1974
VIANNA, Urbino de Souza. Monographia do Município de Montes Claros. Breves
apontamentos históricos, geográficos e descriptivos. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de
Minas Geraes, 1916.
ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 5, nº 10, pp. 123-146, mar-ago 1985.
165
ANEXOS
166
Tabela 01 - Profissões na Paróquia de Montes Claros, 1848, 1862, 1876.
1848 1862 1876
Profissão
N % N % N %
Criador 46 10,4 5 0,7 31 2,4
Fazendeiro 12 1,7 99 7,5
Lavrador 284 64,4 558 78,0 942 71,8
Proprietário 13 2,9
Vaqueiro 2 0,5 4 0,6 8 0,6
Atividades Agrícolas
Subtotal
345 78,2 579 81,0 1080 82,3
Alfaiate 7 1,6 6 0,8 8 0,6
Carpinteiro 12 2,7 23 3,2 48 3,7
Chapeleiro 11 0,8
Curtidor 1 0,1 2 0,2
Ferreiro 8 1,8 12 1,7 13 1,0
Fogueteiro
3 0,4 4 0,3
Latoeiro 1 0,2 1 0,1 1 0,1
Ourives 3 0,7 4 0,6 6 0,5
Pedreiro 1 0,1 2 0,2
Picheiro 2 0,2
Sapateiro 5 1,1 2 0,3 34 2,6
Seleiro 5 1,1 4 0,6 7 0,5
Telheiro 5 0,4
Artesanato
Subtotal 41 9,3 57 8,0 143 10,9
Ajud. Tabelião 1 0,1
Carcereiro 1 0,1
Coletor 1 0,2 1 0,1 1 0,1
Curador Geral 1 0,1
Empr. Público 4 0,6
Escrivão 4 0,9 1 0,1 4 0,3
Magistrado 1 0,1
Oficial Justiça 4 0,6 5 0,4
Partidor 1 0,2
Porteiro 1 0,1 1 0,1
Professor 1 0,2 1 0,1 3 0,2
Promotor Público 1 0,2
Sacerdote 2 0,5 2 0,3 1 0,1
Secret. Câmara 1 0,1
Tabelião 2 0,5 2 0,3 2 0,2
Administração Pública
Subtotal 12 2,7 16 2,2 22 1,7
Advogado 1 0,1 2 0,2
Farmacêutico 1 0,1
Médico 1 0,2 1 0,1 2 0,2
Músico 1 0,1 1 0,1
Reguerente 2 0,5
Profissões Liberais
Subtotal 3 0,7 4 0,6 5 0,4
Negociante 36 8,2 57 8,0 49 3,7
Caxeiro 1 0,2
Tropeiro 1 0,2 2 0,3 11 0,8
Comércio
Subtotal 38 8,6 59 8,3 60 4,6
Carreiro 1 0,1
Arrieiro 1 0,1
Transportes
Subtotal 2 0,2
Sem Informação 2 0,5
Total 441 100,0 715 100,0 1312 100,0
(fonte: BOTELHO, 1994, p. 57 )
167
Tabela 02 - População do Termo da Villa de Montes Claros -1838 e 1872.
Livres Escravos
Ano Distrito
N % N %
Total
Montes Claros 5.001 90,6 518 9,4 5.519
Contendas 3.914 90,1 430 9,9 4.344
Coração de Jesus 2.767 85,0 488 15,0 3.255
1838
Bonfim 2.725 79,8 691 20,2 3.416
Montes Claros 8.862 88,6 1.143 11,4 10.005
Contendas 13.293 96,1 544 3,9 13,837
Coração de Jesus 5.923 85,2 1.026 14,8 6.949
1872
Bonfim 4.889 87,3 714 12,7 5.603
(Fonte: BOTELHO: 1994, p. 68)
Quadro 01 - Número de Engenhos de cana-de -açúcar instalados em Montes Claros séc. XIX
Ano 1832 1855 1874
Engenhos
instalados
15 engenhos
31 engenhos
62 engenhos
(Fonte: BOTELHO, 1994, p. 64)
Quadro 02 Distribuição da propriedade de escravos por região 1831-1840
São Francisco-Montes Claros - %
Porcentagem de proprietários Número de escravos possuídos
29 % 01 escravo
19 % 02 escravos
27 % 03 a 05 escravos
15 % 06 a 10 escravos
04 % 11 a 15 escravos
03 % 16 a 20 escravos
02 % 21 a 30 escravos
01 % acima de 30 escravos
(Fonte: LIBBY.1988. p. 102)
168
Quadro 03 Discriminação das ações judiciais motivadas por delitos contra escravos
Delitos Décadas Total
1830 1840 1850 1860 1870 1880
Tentativa de Homicídio - 1 - - 2 2
5
Homicídio - 3 3 1 3 1
11
Lesão Corporal 2 1 2 - 1 -
6
Castigo imoderado - - - - - 2
2
Redução à escravidão 1 2 2 2 3 -
10
Sequestro - 1 1 - - -
2
Crimes contra a pessoa 3 12 11 7 12 6 51
Dano à propriedade - - - - 1 -
1
Crimes contra a propriedade - - - - 1 - 1
Discussão de posse e averiguação
de alforria
-
7
3
8
12
1
31
Total
3 19 14 15 25 7 83
Fonte: Processos cíveis e criminais da Comarca do Rio São Francisco e de Jequitahy 1830-1886. AFGC-
DPDOR Unimontes
Quadro 04 Discriminação dos delitos cometidos por escravos
Delitos Décadas Total
1830 1840 1850 1860 1870 1880
Homicídio 4 9 6 6 5 2
32
Tentativa de Homicídio - - 2 - 2 2
6
Ameaça - - - 1 - -
1
Lesão Corporal 2 2 - 1 4 -
9
Crimes contra a pessoa 6 11 8 8 11 4 48
Roubos e furtos 3 1 - - 1 -
5
Estelionato 1 - - - - -
1
Crimes contra a propriedade 4 1 - - 1 - 6
Infração às posturas - - 1 - - -
1
Porte de armas e falsificação de
documentos
-
1
1
-
1
-
3
Fuga da cadeia 1 1 - - - -
2
Fuga 1 1 - - - -
2
Resistência - - - - 1 -
1
Crimes contra a ordem pública 2 3 2 - 2 - 9
Total
12 15 10 8 14 4 63
Obs: A soma dos casos das duas tabelas é superior ao número de processos estudados porque em muitos
casos, tanto réus e quanto vítimas eram escravos.
Fonte: Processos cíveis e criminais da Comarca do Rio São Francisco e de Jequitahy 1830-1886. AFGC-
DPDOR Unimontes
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo